ORGANIZADORAS
GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS
POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS
SALETE SILVA SOMMARIVA
MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL
COLEÇÃO
Não há lugar
seguro
Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres
nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos
VOLUME 4
ISBN obra 978-85-66149-42-5
ISBN coleção 978-85-66149-38-8
ORGANIZADORAS
Grazielly Alessandra Baggenstoss
Poliana Ribeiro dos Santos
Salete Silva Sommariva
Michelle de Souza Gomes Hugill
Coleção
NÃO HÁ LUGAR SEGURO
Estudos e Práticas sobre Violências Contra as
Mulheres nas Perspectivas dos Direitos Sexuais e
Reprodutivos
Volume 4
Edição Eletrônica
Florianópolis
2019
Copyright © 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR)
Diagramação: Poliana Ribeiro dos Santos
Capa: Athena de Oliveira Nogueira Bastos
Categoria:
Produção Editorial
Editora Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR)
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Figueiredo e Silva
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CONSELHO EDITORIAL
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Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de
Figueiredo e Silva
Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta
Juiz de Direito Fernando de Castro Faria
Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo
Moré
Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga
Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega (double-blind review) por
pareceristas ad hoc, pós-graduados.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
B144c
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas
perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos / Organizadoras: Grazielly Alessandra
Baggenstoss, Poliana Ribeiro dos Santos, Salete Silva Sommariva, Michelle de Souza Gomes
Hugill. Florianópolis: Editora Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR), 2019. Volume 4.
333 p. fig., tabs.
ISBN obra: 978-85-66149-42-5
ISBN coleção: 978-85-66149-38-8
1. Violências contra as mulheres. 2. Feminismo. 3. Direitos das mulheres. 4. Mulheres –
Condições sociais. I. Baggenstoss, Grazielly Alessandra; II. Santos, Poliana Ribeiro dos; III.
Sommariva, Salete Silva; IV. Hugill, Michelle de Souza Gomes. V. Título.
CDD: 340
Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida – CRB 1134/14ª
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(UFSC)
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(UFSC)
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(ULISBOA)
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Carolina Carvalho Bolsoni (UFSC)
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Deisemara Turatti Langoski (UFSC)
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Eduardo Passold Reis (AJ/TJSC)
Eliane Rodrigues (UFSM)
Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo
(UNIPAMPA)
Elza Berger Salema Coelho (UFSC)
Elza Berger Salema Coelho (UFSC)
Emilly Marques Tenorio (UFES)
Érika Costa da Silva (UFBA)
Fábio Mattos (FGV)
Fernanda Cornelius Lange (UNIVALI)
Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva
(CEG-SC)
Fernanda Marcela Torrentes Gomes (UFSC)
Fernanda Miler Lima Pinto (UFMA)
Fernanda Moreira Ballaris (UFRJ)
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Flavia Soares Ramos (UFSC)
Franciele Volpato (UFSC)
Francisco Pereira de Oliveira (UFPA)
Gabriela Feldhaus de Souza (UNIPLAC)
Gabriela Ferreira Dutra (Birkbeck College)
Gabriele Aparecida de Souza e Souza (UEA)
Gabriele Nigra Salgado (UFSC)
Genilson Fernandes Monteiro (UFPA)
Georgia Paula Martins Faust (UNIASSELVI)
Giovana Ilka Jacinto Salvaro (UFSC)
Grazielly Alessandra Baggenstoss (UFSC)
Hellen Lopes Dutra Mazzola (UNIVALI)
Heloisa Mondardo Cardoso (UFSC)
Hildemar Meneguzzi de Carvalho (UNIVALI)
Íris de Carvalho (PUCRS)
Isabele Bruna Barbieri (UEL)
Ísis de Jesus Garcia (UFSC)
Ismê Catureba Santos (UCAM)
Ivone Maria Mendes Silva (USP)
Janice Merigo (PUCRS)
Jeanine Dewes de Oliveira (UNISUL)
Jéssica Janine Bernhardt Fuchs (UFSC)
Jéssica Painkow Rosa Cavalcante (UFG)
João Antonio da Cruz dos Santos (UNIVALI)
João Fillipe Horr (UFSC)
José Dias Santana (UFPA)
José Elias Gabriel Neto (FMP/RS)
Josilaine Antunes Pereira (UNISINOS)
Júlia Farah Scholz (CATÓLICA/SC)
Júlia Sleifer Alonso (UNIPAMPA)
Juliana Alice Fernandes Gonçalves (UFSC)
Juliana Andrade da Silva (PUCRS)
Karine Grassi (UFSC)
Karine Kerkhoff (UNOCHAPECÓ)
Karla Fernanda Pereira (UFMA)
Karolyna Marin Herrera (UFSC)
Karopy Ribeiro Noronha (UFSM)
Kelly Cristina Schäfer Batistella (UNISUL)
Kimberly Gianello Studer (UFSC)
Laís Castro (UEM)
Larissa Emília Guilherme Ribeiro (IESP)
Larisse de Oliveira Rodrigues (UERJ)
Lauriana Urquiza Nogueira (UFSC)
Letícia de Cisne Branco (CESUSC)
Lia Gabriela Pagoto (UFFS)
Liandra Savanhago (UFSC)
Lívia Dornelles Madrid (URI)
Liziane da Silva Rodríguez (PUCRS)
Luana Limberger Marques (CESUSC)
Luana Marina dos Santos (UNISINOS)
Lucas Francisco Neto (DOCTUM)
Lucely Ginani Bordon (UFRN)
Luciana Bittencourt Gomes Silva (UNIDERP)
Luciele Mariel Franco (UEM)
Lucienne Martins Borges (UQÀM)
Luisa Chaves de la Rosa (UNIPAMPA)
Luísa Neis Ribeiro (UFSC)
Luiza Alano de Almeida (UNESC)
Luiza Niehues Bonetti (UNESC)
Maiara Leandro (UFSC)
Mainara Gomes Cândida Coelho (UFSC)
Maira Gabriela Anschau (UNOCHAPECÓ)
Márcia Aline Pacheco de Medeiros (CESUSC)
Márcia Cristiane Nunes-Scardueli (UNISUL)
Mareli Eliane Graupe (UFSC)
Mareli Eliane Graupe (UNIPLAC)
Mariana Silvino Paris (CLACSO)
Mariane Pires Ventura (UFSC)
Mariane Vanderlinde da Silva (UFSC)
Mariella Kraus (FURB)
Marília de Nardin Budó (UFPR)
Marília dos Santos Amaral (UFSC)
Marina Williamson Touro (UFSC)
Marja Mangili Laurindo (UFSC)
Mayara de Abreu Stuepp Cardoso (FMP)
Mayara Zimmermann Gelsleichter (UFSC)
Michelle de Souza Gomes Hugill (UFSC)
Milena Barbi (UFSC)
Miliane dos Santos Fantonelli (UFSM)
Mirenchu Maitena dos Santos Rivas
(UNIPAMPA)
Miriam Olivia Knopik Ferraz (PUCPR)
Monica Ovinski de Camargo Cortina (UFSC)
Nádia Maria Gonçalves Krüger (CEG-SC)
Natália Aparecida Antunes (UFSC)
Natielle Machado Santos (UNIPLAC)
Nínive Degasperi Poffo (UFSC)
Pamela de Gracia Paiva (UNINTER)
Paola Dozoretz (FURB)
Patrícia Backes (UFSC)
Patrícia Borba Marchetto (UB)
Paulo José Mueller (UNIVALI)
Paulo Thiago Fernandes Dias (PUCRS)
Paulo Thiago Fernandes Dias (UNISINOS)
Poliana Ribeiro dos Santos (UFSC)
Priscila Fernanda Santiago Ferreira (UFMA)
Raul da Silveira Santos (UFPA)
Regina Célia Costa Lima (PUCGO)
Roberta Logobuco de Araujo Pereira (PUC)
Sabrina Nerón Balthazar (UFSC)
Sara Alacoque Guerra Zaghlout (PUCRS)
Scheila Krenkel (UFSC)
Sheila Rúbia Lindner (UFSC)
Stella Scantamburlo de Mergár (UCAM)
Sthefanie Aguiar da Silva (UFSC)
Tainá Malinski (UNISUL)
Thamyres Cristina da Silva Lima (UFSC)
Thays Berger Conceição (UFSC)
Vanessa Martinhago Borges Fernandes (UFSC)
Vilma Pimentel Siqueira (UFSM)
Wellington Lima Amorim (UFRJ)
William Hamilton Leiria (UFSC)
Vítimas sublimes, projetos de sujeitos.
Não.
Sistema e sistemas. Estrutura e estruturas. Hierarquia e hierarquias. Vários “sub”.
Subsistemas, subestruturas. Dentro disto: sujeitOs. Fora: sujeitAs. Há entrecruzamentos, logo,
não há universalismo.
Num espaço como o Brasil, seus contextos histórico-político-econômico-culturaljurídico, importam. Invasão, genocídio dos povos originários, escravidão, ditadura militar,
golpes políticos. Poder descentralizado nas mãos dos que, observados os períodos e cenários,
já o detinham e o detém. Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos. Luta, muita luta.
Contra o genocídio, escravidão, ditaduras, golpes políticos, retiradas de direitos. Negação,
muita negação. De todos estes eventos e características próprias.
No atravessamento, as periferias. Os territórios e corpos periféricos. Ditos periféricos.
A marginalização do outrO. Da outrA. Sufocamento. A construção de uma mentalidade social
hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global.
A trama do desenho do sujeito. Do que é o sujeito. Do sujeito de direito. Quem tem direitos. E
do outrO. Da outrA. Que não o do direito. Quem não tem direitos.
Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado
de seus traumas, a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos, isto é; a não
sujeitO.
Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e
mobilizações destas sujeitAs: mulheres. Novamente: luta, muita luta e; negação, muita negação.
Se estrutura a sujeitA para que seja boa. Uma boa vítima. SujeitA vítimA. A negação do
“gênero” como arma feminicida.
Entrecruzamentos,
interseccionalidades,
descolonizações,
enfrentamentos.
Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas. Desfazimento da desumanização
dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes. Nem boa. Nem vítima. Sujeita de direito.
Sujeitas de direitos.
Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres, as margens desde e
para as margens, ou seja, desde os corpos periféricos, para um país construído como periferia –
Brasil – por teorias e práticas, desde e para as periferias do mundo.
Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas; mulheres.
Juliana Alice Fernandes Gonçalves
APRESENTAÇÃO
A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade, cuja
desigualdade entre os gêneros – aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres
– é observada em todo os campos da vida humana, baseada nas diferenças biológicas e, com
isso, na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal.
Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens
– sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente –, como também da
sociedade e da religião, que lhes limitava as atribuições à esfera privada, tais como a família,
reprodução e afazeres domésticos, enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera
pública, associada à liberdade, à produção, à política.
Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços
normativos, em especial a partir do século XX, em que foram firmados Tratados e Convenções
Internacionais, assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da
Penha e do Feminicídio, os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito
– e não mais de objeto –, como também reconheceram que as violações esses direitos são
violações aos direitos humanos, colocando as mulheres em patamar de igualdade com os
homens.
Por outro lado, tem-se que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal,
uma vez que, por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho, as
mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades. Mesmo trabalhando fora
de casa, permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos, cuidados com
os filhos e familiares. Assim, as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional,
contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas.
Como se vê, o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres, pois as
mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar, no
trabalho e na esfera pública. Em pleno século XXI, mulheres continuam sendo vitimadas,
subjugadas e morrendo pelas mãos de seus (ex) parceiros/maridos/namorados, permanecem
com medo de sair nas ruas à noite, sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas
roupas que vestem.
Diante de tudo isso, é que se denota da importância desta obra, cujo título da Coleção
“Não há lugar seguro”, reflete a busca dos(as) pesquisadores(as) de diversas áreas em trazer
panoramas, argumentos, críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a
problemática da violência de gênero.
Com toda a certeza, as reflexões aqui apresentadas, contribuirão para o desenvolvimento
de ideias e ações, sejam elas no âmbito público ou privado, para o aprimoramento da Justiça e
dos serviços públicos de proteção às mulheres. E, por que não dizer, contribuirão para que se
dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de
uma sociedade mais justa e igualitária.
Boa leitura!
Salete Silva Sommariva
Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC)
PREFÁCIO
O presente livro integra a Coleção “Não Há Lugar Seguro”, constituída por estudos
científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres.
Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith - Núcleo de
Pesquisas em Direito e Feminismos, da Universidade Federal de Santa Catarina, devidamente
certificado pelo CNPq.
O presente volume contempla pesquisas sobre nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos.
A categoria direitos sexuais e reprodutivos, na agenda estatal brasileira, está
intimamente ligada à saúde e ao planejamento familiar, sendo, assim, também derivados dos
direitos humanos e dependem da ação governamental para seu reconhecimento e efetivação, no
que diz respeito à assinatura de tratados, na participação de conferências que discutem estas
questões, criação e implementação de políticas públicas pelo Poder Executivo, promoção de
leis que assegurem e normatizem instrumentos jurídicos.
Desse conjuntura, frisa-se que a demarcação da relação entre Direitos Reprodutivos e
Direito à Saúde, no Estado brasileiro, é conferida pela Lei nº 9.263/96 (chamada Lei do
Planejamento Familiar), que prima pela garantia, conforme o parágrafo único do artigo 3º, I - a
assistência à concepção e contracepção; II - o atendimento pré-natal; III - a assistência ao parto,
ao puerpério e ao neonato; IV - o controle das doenças sexualmente transmissíveis; V - o
controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis. Ademais,
tem-se, no campo das categorias jurídicas mencionadas, ainda, o acesso a contraceptivos no
sistema público de saúde e à prática de esterilizações, tocando, especificadamente, demanda
por meios de controle da natalidade. De tal ordem, o planejamento familiar é definido, no artigo
2º da lei, como “um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garante direitos iguais
de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.
Percebe-se, assim, os direitos sexuais e reprodutivos também condizem com a forma
como o Direito e o Estado tratam as pautas que afetam as mulheres, sua autonomia, seus corpos
e seus direitos. Dessa forma, na proposta de concretizar os direitos humanos das mulheres, os
direitos sexuais e reprodutivos também são entendidos como posicionamentos de um
determinado tempo e espaço, em que a reprodução humana é politizada, normatizada e
judicializada.
A proposta dos estudos aqui apresentados, então, é de promover a reflexão sobre tais
direitos, relacionados ao contexto contemporâneo brasileiro, e em cotejo com os direitos
fundamentais das mulheres de autonomia e de liberdade para o exercício responsável da
reprodução humana.
Grazielly Alessandra Baggenstoss
SUMÁRIO
CARACTERIZAÇÃO DO ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO VIOLÊNCIA DE
GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS ..................................................... 17
Milena Barbi; Clarindo Epaminondas de Sá Neto
PROFISSIONAIS DO SEXO: VÍTIMAS DO ASSÉDIO SEXUAL ENQUANTO
DESENGAJAMENTO MORAL NO TRABALHO............................................................ 34
Priscila Fernanda Santiago Ferreira; Wellington Lima Amorim; Karla Fernanda Pereira
VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO QUOTIDIANO DO PROCESSO GRAVÍDICO PUERPERAL DE CADEIRANTES: BARREIRAS ARQUITETÔNICAS E
ATITUDINAIS ....................................................................................................................... 54
Thamyres Cristina da Silva Lima; Danielle Alves da Cruz; Natália Aparecida Antunes;
Adriana Dutra Tholl
OS DESAFIOS DA CIÊNCIA JURÍDICA NO COMBATE À VIOLÊNCIA
OBSTÉTRICA CONTRA MULHERES INDÍGENAS ...................................................... 73
Ana Beatriz Cruz Nunes; Patrícia Borba Marchetto
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DAS
MULHERES ........................................................................................................................... 87
Mainara Gomes Cândida Coelho; Poliana Ribeiro dos Santos
O DIREITO DE ESCOLHER E DE BEM NASCER: ENFRENTAMENTO DA
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA .............................................................................................. 107
Isabele Bruna Barbieri; Franciele Volpato
O ENSINO DE SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO NAS AULAS DE CIÊNCIAS:
POSSIBILIDADES À DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA .... 123
Gabriele Nigra Salgado; Lívia Dornelles Madrid
A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLÊNCIA GLOBAL E A
ALTERNATIVA (DE CONTENÇÃO) APRESENTADA PELOS INTERMEDIÁRIOS
................................................................................................................................................ 140
Gabriela Ferreira Dutra; Liziane da Silva Rodríguez; Paulo Thiago Fernandes Dias; Sara
Alacoque Guerra Zaghlout
FEMINISMO E PORNOGRAFIA: QUANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
É EROTIZADA E CAPITALIZADA ................................................................................. 157
Bruna Carolina Bernhardt; Kimberly Gianello Studer; Luísa Neis Ribeiro
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: A
REGULAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL ...................................................................... 175
Daniela Urtado; Mariana Silvino Paris
A INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO E AS
CONSEQUÊNCIAS DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO ....................................... 191
Julia Sleifer Alonso; Deisemara Turatti Langoski
A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL: ADEQUAÇÃO DA TEORIA DE
SILVIA FEDERICI À REALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO .............................. 201
Grazielly Alessandra Baggenstoss; Luciele Mariel Franco; Betina Fontana Piovesan
GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA E ESTUPRO DE VULNERÁVEL: O TRABALHO
DO ASSISTENTE SOCIAL ................................................................................................ 221
Karopy Ribeiro Noronha; Fernanda Nunes da Rosa Mangini; Eliane Rodrigues
UM OLHAR DA GESTALT-TERAPIA SOBRE O TRAUMA DO ABUSO E
VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA DA MULHER .................................................. 235
Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva; Nádia Krüger
ESTERILIZAÇÃO COMPULSÓRIA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR: O
CONTROLE DE NATALIDADE E A VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL
DA MULHER ....................................................................................................................... 247
Miriam Olivia Knopik Ferraz; Ariê Scherreier Ferneda
ESTERILIZAÇÕES FORÇADAS EM MULHERES: UMA ANÁLISE ACERCA DA
(IN)GERÊNCIA DOS CORPOS NO CAMPO BIOPOLÍTICO ..................................... 265
Luana Marina dos Santos; Bruna Marques da Silva
HOMICÍDIO CONJUGAL MASCULINO E FEMINICÍDIO ÍNTIMO: DIÁLOGOS
EPISTEMOLÓGICOS SOBRE AS VIOLÊNCIAS LETAIS NA INTIMIDADE......... 282
João Fillipe Horr; Bruna Adames; Lucienne Martins Borges
FEMINICÍDIO DE GESTANTES NOTIFICADOS NO SINAN NA REGIÃO SUL DO
BRASIL ................................................................................................................................. 303
Mariane Vanderlinde da Silva; Elza Berger Salema Coelho; Thays Berger Conceição;
Carolina Carvalho Bolsoni
ESTUPRO COMO ARMA DE GUERRA: ESTUDO SOBRE A GUERRA DA EXIUGOSLÁVIA ...................................................................................................................... 316
Fernanda Moura Muniz
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reprodutivos V.4.
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CARACTERIZAÇÃO DO ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO VIOLÊNCIA DE
GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
Milena Barbi1
Clarindo Epaminondas de Sá Neto2
RESUMO
Este estudo investiga o fenômeno do assédio sexual laboral e o problema que orientou seu
desenvolvimento foi: a prática de conduta caracterizadora de assédio sexual laboral é uma
espécie de violência de gênero e uma violação de direitos humanos? A hipótese que buscou-se
confirmar é a de que o assédio sexual laboral, por gerar reflexos na saúde da trabalhadora,
constitui uma espécie de violência de gênero e, consequentemente, uma violação de direitos
humanos. Para tanto, utilizou-se o método de abordagem indutivo e a técnica de documentação
indireta, por meio do procedimento de pesquisa bibliográfica. O objetivo geral do trabalho
consistiu em demonstrar a relação entre gênero e o assédio sexual laboral cometido por homens
contra mulheres. Para atingir os objetivos específicos do trabalho, foi apresentada a definição
de violência de gênero, identificando-a como violação de direitos humanos, assim como foram
abordados aspectos necessários à compreensão do fenômeno do assédio sexual laboral e sua
caracterização como espécie de violência de gênero. Ao final da pesquisa a hipótese foi
confirmada, concluindo-se pela caracterização do assédio sexual laboral enquanto violência de
gênero e violação de direitos humanos. Concluiu-se ainda que o assédio sexual laboral
apresenta-se como uma das formas mais comuns de violência contra a mulher na sociedade
contemporaneamente constituindo-se enquanto instrumento de controle e subordinação das
mulheres e provocando impactos diretos na saúde das trabalhadoras vítimas da conduta.
Palavras-chave: Assédio sexual laboral. Violência de gênero. Direitos humanos.
INTRODUÇÃO
O assédio sexual laboral é compreendido como violência contra a mulher na Lei n.
10.778/2003. A despeito da referida lei, o ordenamento jurídico brasileiro trata de forma escassa
a temática do assédio sexual: o Código Penal dedica apenas um artigo e a Consolidação das
Leis Trabalhistas nem sequer menciona o tema de forma expressa. Além disso, constata-se que
o tratamento dado ao assunto pela doutrina penalista é superficial, ao passo que o da doutrina
trabalhista é exíguo. Nesse sentido, a temática abordada neste estudo assume caráter de maior
relevância quando se considera a inexpressiva produção acadêmica confrontada com as
estatísticas relativas ao assédio sexual laboral no Brasil.
1
Técnica Universitária na Universidade do Estado de Santa Catarina. Bacharela em Direito (2019) pela
Universidade Federal de Santa Catarina. milenabarbi.mb@gmail.com
2
Professor efetivo do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Direito
(2017) pela Universidade Federal de Santa Catarina. clarindoneto@gmail.com
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reprodutivos V.4.
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Esta pesquisa objetiva introduzir a investigação do fenômeno do assédio sexual laboral
como espécie de violência de gênero. A partir de uma abordagem interdisciplinar, busca-se
evidenciar os aspectos que conferem à conduta tal caráter, importando conceitos que amparem
tal análise. Verifica-se que a produção acadêmica sobre a temática, além de insuficiente, apenas
ocasionalmente traça um recorte de gênero a partir do quadro de agressores e vítimas da conduta
em comento, razão pela qual este trabalho torna-se ainda mais inédito e, consequentemente,
necessário.
Por esse motivo, é importante destacar que esta pesquisa não pretende realizar uma
revisão sistemática da literatura produzida sobre assédio sexual laboral e sim descortinar as
relações existentes entre assédio sexual no ambiente de trabalho e a questão de gênero. Com
isso, não se objetiva ignorar que existe uma pequena parcela dos casos de assédio sexual laboral
que possuem homens como vítima da conduta, mas apenas fazer um recorte de gênero que
possibilite o desenvolvimento de pontos para a compreensão do fenômeno a partir da ótica da
indiscutível maioria das vítimas, quais sejam, mulheres3.
Considerando a delimitação do tema da pesquisa, o problema que orientou o
desenvolvimento deste estudo foi o seguinte: a prática de conduta caracterizadora de assédio
sexual laboral é uma espécie de violência de gênero e uma violação de direitos humanos? A
hipótese que buscar-se-á confirmar é a de que o assédio sexual laboral, por gerar reflexos na
saúde da trabalhadora, constitui uma espécie de violência de gênero e, consequentemente, uma
violação de direitos humanos. Para tanto, utilizar-se-á o método de abordagem indutivo e a
técnica de documentação indireta, por meio do procedimento de pesquisa bibliográfica.
O objetivo geral do trabalho é demonstrar a relação entre gênero e o assédio sexual
laboral cometido por homens contra mulheres. Constituem objetivos específicos da pesquisa:
definir violência de gênero; identificar a violência de gênero como violação de direitos
humanos; e compreender o fenômeno do assédio sexual laboral como espécie de violência de
gênero.
Em um primeiro momento, objetivou-se caracterizar o fenômeno social da violência de
gênero enquanto violação de direitos humanos, a partir da compreensão dessa espécie de
violência como um instrumento de controle social que impede as mulheres de acessar e fruir de
sua cidadania plena. Na sequência, buscou-se demonstrar a relação entre assédio sexual laboral
3
Este trabalho não tem como objetivo afirmar que homens não possam ser vítimas de assédio sexual laboral, senão
delimitar seu objeto de pesquisa relativamente à vitimação de mulheres. Por essa razão, este trabalho utilizará o
termo “assediada” no gênero feminino, e o termo “assediador” no gênero masculino, em observância ao recorte de
gênero da pesquisa, às esmagadoras estatísticas relativas ao gênero das vítimas da conduta e como forma de
reconhecimento simbólico da violência de gênero caracterizada pelo assédio sexual laboral.
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e violência de gênero, considerando a percepção social da violência e compreendendo essa
enquanto categoria historicamente construída.
1. VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS
Primeiramente faz-se necessário esclarecer que, para os fins dessa pesquisa,
compreende-se como gênero o conceito estabelecido por Joan Wallach Scott (1995, p. 86), cujo
núcleo da definição constitui-se na conexão entre duas preposições. A primeira preposição é de
que o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas
entre os sexos e a segunda de que o gênero é uma forma primária significar as relações de poder
(SCOTT, 1995, p. 86).
Silva, Copetti e Borges (2009, p. 15) elucidam que, para a antropologia, gênero trata-se
de uma categoria que diz respeito à construção cultural das diferenças entre homens e mulheres,
contrapondo-se à categoria sexo, que trata das diferenças biológicas, determinadas pela
natureza. Nesse sentido, gênero traduz o papel de cada indivíduo na sociedade, determinado
pela construção social, a partir de sua própria cultura (SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p.
15).
As relações de gênero são influenciadas por fatores históricos, ideológicos, religiosos,
econômicos e sociais e moldam a compreensão geral dos atributos e comportamentos
socialmente compreendidos como femininos e masculinos, e os valores a eles associados
(SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p. 16).
Com isso temos que uma abordagem destacada pela perspectiva de gênero, além de
ocupar-se com a condição feminina, as experiências e percepções das mulheres, busca trabalhar
a atribuição de papeis sociais, recursos, responsabilidades e expectativas relativas a homens e
mulheres. Isso evidencia, portanto, a compreensão de gênero como categoria relacional
(SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p. 17).
Compreendendo gênero como um conceito relacional e significante das relações de
poder, identifica-se a divisão sexual do trabalho como o locus de produção e manutenção da
estratificação de gênero, relativamente às diferenças de poder entre homens e mulheres. Isso
porque identifica as mulheres enquanto responsáveis pelo cuidado das crianças, da família e
das tarefas domésticas — independentemente de ter ou não outro trabalho — e atribui aos
homens a responsabilidade por tarefas não domésticas, na economia, na política e outras
instâncias sociais e culturais (STREY, 2001, p. 52).
Strey (2001, p. 55) elucida que as pessoas não são conscientes do poder — tipicamente
legitimado como autoridade — nos sistemas estáveis de desigualdade. O conceito de
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autoridade, nesse contexto, refere-se ao consenso entre superiores e subordinados com relação
ao dever de que alguns obedeçam a outros e esse consenso deriva de uma ideologia que justifica
os direitos, obrigações e recompensas de diferentes membros da sociedade (STREY, 2001, p.
55).
A ideologia de gênero, nesse cenário, legitima o poder masculino e justifica a
supremacia masculina, informando à sociedade as diferenças em direitos, obrigações, restrições
e referências entre homens e mulheres. Sendo assim, são socialmente instituídas normas de
gênero que possuem o condão de delimitar os comportamentos específicos e os atributos
pessoais considerados socialmente desejáveis para homens e mulheres (MACEDO, 1988; DEL
VALLE, 1989 apud STREY, 2001, p. 56).
No que se refere à violência, Marlene Neves Strey (2001, p. 47–48) leciona que, por
definição, a violência implica uma ação ou não ação de alguém, de um grupo, de uma situação
ou instituição que fere, maltrata ou submete alguém ou um grupo, podendo ser explícita —
direta — ou indireta. Ainda que a violência possa assumir os mais variados contornos, todos
eles revestem-se de algum tipo ou quantidade de poder que lhes permitam violentar em alguma
extensão (STREY, 2001, p. 47–48).
Nesse sentido, e considerando que há uma prevalência histórica do sexo masculino sobre
o sexo feminino, ocorre uma manutenção do status de subordinação das mulheres em relação
aos homens, localizando-as majoritariamente no polo vitimado nas relações de gênero
caracterizadas pela violência (STREY, 2001, p. 51).
A violência de gênero, portanto, não requer o dispêndio de grandes esforços na tarefa
de conceituação, na medida em que o conceito de gênero, por si só, já pressupõe uma pressão
sobre os indivíduos para se conformarem às normas de gênero. Além disso, também pressupõe
relações de poder, nas quais expusemos que, historicamente, é legitimado o poder masculino
sobre as mulheres (STREY, 2001, p. 59).
Sendo assim, verifica-se a necessidade de estabelecer um acordo terminológico com o
leitor: para os fins desta pesquisa utilizar-se-ão como sinônimas as expressões violência de
gênero e violência contra a mulher. Dessa forma também o faz Marlene Strey (2004, p. 13-16
apud SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p. 14), argumentando que, embora a violência de
gênero possa incidir sobre homens e mulheres, demonstrou-se que grande parte desta violência
é cometida contra as mulheres, por homens, sendo suas consequências físicas e psicológicas
muito mais graves, severas e daninhas para as mulheres.
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reprodutivos V.4.
21
Portanto, a violência de gênero ou violência contra a mulher é caracterizada quando
decorre da identidade de gênero da vítima — mulher —, não havendo distinção de raça, classe
social, religião, idade ou outras condições (ZANATTA; SCHNEIDER, 2017, p. 75).
A violência de gênero perpassa diversos âmbitos, como a violência intrafamiliar,
doméstica, física, psicológica, moral, sexual, econômica, patrimonial e institucional
(ZANATTA; SCHNEIDER, 2017, p. 78). Além disso, o limiar entre tais formas de violência
apresenta-se muito tenuemente, de modo que, não raras vezes, os atos de agressão não ocorrem
de maneira isolada e tampouco deixam de configurar outras formas de violência distintas
daquela inicialmente cometida (ZANATTA; SCHNEIDER, 2017, p. 78).
Saffioti (1994, p. 443-452), ao tratar da violência de gênero, sublinha que a violência do
homem contra a mulher é constitutiva da organização social de gênero no Brasil e que a
violência já está contida nos homens em virtude das relações que construíram com as mulheres,
a partir da estruturação assimétrica da sociedade em gênero. Nesse sentido, o homem violento
é gestado pelo ordenamento social patriarcal e nutre este tipo de relações de gênero, através de
suas práticas sociais.
Nesse contexto, Strey e Winck (2008, p. 116) assinalam que as agressões perpetradas
por homens contra mulheres são culturalmente permitidas e a postura de autoimposição
masculina é socialmente reificada e naturalizada. Os papeis de gênero, de acordo com os
autores, aprisionam homens e mulheres em modelos deterministas e são aprendidos
transgeracionalmente (STREY; WINCK, 2008, p. 116).
Sendo assim, os autores destacam que quando um homem legitima o seu ato violento
partindo de tais pressupostos também retransmite os discursos patriarcais e normalizadores
próprios da história da masculinidade e das relações de gênero (STREY; WINCK, 2008, p.
116). Portanto, quando um homem agride uma mulher não o faz de maneira isolada, ainda que
o faça no espaço privado, uma vez que a sociedade permite a constituição de tal violência, seja
por convicção ou por negligência (STREY; WINCK, 2008, p. 121).
Saffioti (1994, p. 452) atribui ao processo de construção da identidade de gênero a
constituição do que Welzer-Lang denomina masculinidade defensiva e Chodorow identifica
como masculinidade problemática. Em ambos conceitos, conforme a autora, reside a
insegurança da masculinidade, gerada no processo de sua construção a partir da negação do
feminino (SAFFIOTI, 1994, p. 452). Nesse contexto, estabelece-se a lógica de competição com
outros homens e o desejo de dominar as mulheres, negando-se a condição de sujeito destas
últimas, a qual só pode ser atingida a partir da transmutação de gênero, no imaginário masculino
(SAFFIOTI, 1994, p. 452).
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A partir disso, Saffioti (1994, p. 460) traduz a potencialidade de todo homem em ser
violento, à medida que é incentivado a ser valente e demonstrar que é macho, compreendendose aqui masculinidade como sinônimo de transformação da agressividade em agressão. Na
contramão, as mulheres são ensinadas a suportar, caladas, maus-tratos a elas infligidos por seus
companheiros.
Tal potencialidade masculina para a violência, entretanto, não deve ser considerada um
traço indelével de personalidade. Strey e Winck (2008, p. 116) destacam que a violência de
gênero não se constitui enquanto característica inerente aos homens, de forma que não se
configura como um estado permanente de propensão à utilização da violência quando
arbitrariamente julgue-se adequado. A violência contra a mulher, portanto, não assume
contornos essencialistas, mas localiza-se fundamentalmente nos papeis de gênero socialmente
desempenhados.
Ademais, os mesmos papeis de gênero que legitimam um poder implícito ao homem
constituem-se enquanto causa de um intenso sofrimento para eles. De acordo com Saffioti (1999
apud STREY; WINCK, 2008, p. 122–123):
Os próprios homens não conseguem evitar também prejudicarem-se com a sua
própria violência, como o “cachorro que morde o próprio rabo” ou a “pessoa
que dá um tiro no pé”: à medida que aumenta a necessidade de reafirmação de
todas as prerrogativas e expectativas concernentes à sua própria
masculinidade, maior também se torna o compromisso deste homem na
manutenção e na preservação deste papel - e isto é algo que, às vezes, também
custa caro. Demonstrar e exercer permanentemente fortaleza e autosuficiência é uma necessidade que não admite exceções ou momentos de
fraqueza: a frustração de ver-se impotente diante de situações nas quais
deveria ser imponente, “honrando” os pressupostos de seu “papel de homem”,
pode se mostrar tão intensa quanto a necessidade de manter-se,
inabalavelmente, correspondendo a este papel.
Vale dizer, o homem também contribui para a perpetuação de um sofrimento
autoinfligido em prol da manutenção da masculinidade hegemônica. Isso ocorre na medida em
que o homem não se aprofunda nos paradigmas que lhe outorgam autoridade e segue
reproduzindo uma identidade historicamente constituída, dentro de um senso-comum social e
culturalmente constituído que comporta a dispensabilidade da autorreflexão (STREY; WINCK,
2008, p. 124).
Saffioti (1994, p. 460–461) destaca que o núcleo duro da discussão sobre a violência
perpetrada por homens contra mulheres, portanto, é a compreensão de que este fenômeno é
consubstancial ao gênero e trata-se de um meio de controle social, cuja função precípua é a
domesticação das mulheres. Nesse cenário, ressalta que a violência não existe apenas enquanto
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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fato concreto, mas também como ameaça, sendo existente nesta última versão para a totalidade
das mulheres, o que configura uma eficácia política gigantesca, na medida em que se estabelece
nas relações sociais de maneira permanente (SAFFIOTI, 1994, p. 460–461).
Colette Gendron (1994, p. 463) compartilha dessa perspectiva da violência de gênero
enquanto instrumento de controle sobre as mulheres, não só social, como também físico, sexual,
político e econômico. Nesse contexto, acrescenta que a violência não se caracteriza meramente
como meio de controle de um indivíduo sobre outro, mas como meio de controle de um grupo
sobre outro e de uma sociedade sobre um dado grupo. Isso porque, para a autora, se
considerarmos a lentidão na tomada de medidas eficazes no combate à violência contra as
mulheres, podemos concluir que tais violências satisfazem, até certo ponto, estas sociedades
fortemente dominadas por uma cultura masculina. A autora afirma que a sociedade patriarcal
está para as mulheres enquanto grupo como o homem está para a mulher, enquanto indivíduos,
dentro de um contexto de relações de exploração e de dominação (GENDRON, 1994, p. 463).
Nessa esteira, Zanatta e Schneider (2017, p. 79) defendem que a violência contra as
mulheres é, além de uma manifestação da desigualdade sexual, um instrumento para a
manutenção de uma assimetria entre homens e mulheres. Gendron (1994, p. 463), da mesma
forma, assevera que as violências perpetradas contra as mulheres integram a estrutura social
que perpetua a desigualdade. A autora argumenta que as condições salariais, medidas fiscais e
legislações matrimoniais discriminatórias mantidas por sociedades presumidamente evoluídas
constituem poderosos meios de controle sobre as mulheres enquanto grupo de pessoas
(GENDRON, 1994, p. 463).
É nesse contexto que Saffioti (1994, p. 445) afirma que as mulheres não só têm sido
mantidas afastadas das políticas de direitos humanos, como “o Estado tem ratificado um
ordenamento social de gênero através de um conjunto de leis que pretendem-se objetivas e
neutras, porque partem da errônea premissa de que a desigualdade de fato entre homens e
mulheres não existe na sociedade”.
A autora assevera que o Estado normatiza o poder masculino sobre a mulher, na medida
em que proíbe e criminaliza apenas seus excessos. Nesse sentido, a punição dos excessos integra
o poder disciplinador da dominação masculina, sendo exercido pelo próprio Estado. Dessa
forma, através de um aparato jurídico que caracteriza a dominação legalizada, é ratificada a
falocracia (SAFFIOTI, 1994, p. 445).
Nesse cenário, temos que a violência de gênero apresenta-se enquanto instrumento de
controle social e impede as mulheres, enquanto grupo, de acessar e fruir de sua cidadania plena.
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Não obstante, Marlene Neves Strey (2001, p. 60) destaca que a subjugação das mulheres
é tão comum em nossas sociedades que não é amplamente aceita como uma questão de direitos
humanos. Nesse cenário, a autora defende que a discussão sobre violência de gênero situa-se
dentro da esfera de discussão do conceito de cidadania, uma vez que os valores homem e
masculino são os valores de referência para o pensamento e a conduta da humanidade (STREY,
2001, p. 61).
Silva, Copetti e Borges (2009, p. 15) informam que a violência contra as mulheres,
anteriormente vista como uma questão relativa à esfera privada, a partir de meados da década
de 80. Isso porque a violência contra a mulher passou a ser compreendida, pelos movimentos
feministas, como uma questão que demandava do Estado o reconhecimento da necessidade da
criação de órgãos especializados em atender às vítimas de violência e proporcionasse um
tratamento legal ao assunto, tendo em vista o caráter cultural, social e público desse problema
(SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p. 15).
Nesse sentido, compreende-se que deve haver o reconhecimento pleno e irrestrito da
violência contra a mulher enquanto violação de direitos humanos, uma vez que a violência de
gênero manifesta-se na transgressão do princípio constitucional da dignidade humana, na forma
como obstaculiza a realização da democracia e no impedimento da realização dos direitos
sociais (SILVA; COPETTI; BORGES, 2009, p. 14).
Além disso, Silva, Copetti e Borges (2009, p. 14) esclarecem que a violência de gênero
é muito mais complexa que a violência doméstica. Isso porque extrapola o ambiente doméstico
e faz-se presente em todos os lugares, caracterizando-se enquanto um tipo específico de
violência que vai além das agressões físicas e da fragilização moral, limitando a ação feminina.
Portanto, a violência de gênero apresenta-se como violência física, moral, psicológica, sexual
ou simbólica, uma vez que carrega uma carga de preconceitos sociais, disputas, discriminação,
competições profissionais e uma herança cultural machista (SILVA; COPETTI; BORGES,
2009, p. 14).
Parece-nos incontestável, portanto, que a violência de gênero constitui-se enquanto uma
espécie de violação aos direitos humanos. Isso decorre da observação de que a violência de
gênero faz-se presente em todos os lugares, acomete a universalidade de indivíduos de
determinado grupo — seja concretamente ou através da ameaça permanente —, cerceia o
exercício da cidadania plena e exerce o controle social, físico, sexual, político e econômico
sobre determinados sujeitos.
Grazielly Alessandra Baggenstoss (2017, p. 37) identifica uma configuração normativojurídica caracterizadora do conjunto de direitos humanos distinta para as mulheres.
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Historicamente, na aplicação das normas jurídicas, verifica-se que o status jurídico que subsidia
a existência masculina diverge daquele que garante a dignidade da pessoa humana e o mínimo
existencial às mulheres. Tal diversidade, conforme a autora, justifica-se a partir de uma
conformação cultural formatadora do papel social das mulheres como secundário em relação
ao conjunto de atribuições relativas aos homens, e não em razão de diferenças físico-biológicas
(BAGGENSTOSS, 2017, p. 37).
Nesse contexto, Zanatta e Schneider (2017, p. 93) defendem a necessidade de repensar
os fundamentos do Direito conforme rupturas paradigmáticas sociais. Isso ocorreria a partir de
uma releitura da violência contra a mulher a partir da ótica de seus direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana, a qual pode ser efetivada a partir da abertura à desconstrução de
signos tão naturalizados (ZANATTA; SCHNEIDER, 2017, p. 93).
Compreendendo a necessidade de realizar uma releitura da violência contra a mulher a
partir da referida ótica, a presente pesquisa busca descortinar as relações estabelecidas entre a
violência de gênero e o assédio sexual laboral.
Colette Gendron (1994, p. 468), a respeito do tema, argumenta que a sexualidade
também é utilizada como instrumento de dominação e esclarece que o assédio sexual constituise enquanto uma forma de violência cometida contra as mulheres. Isso porque se configura
enquanto uma manifestação de poder para o exercício do controle dos homens sobre as
mulheres, das quais os homens desejam dispor como estas fossem apenas objetos sexuais
(GENDRON, 1994, p. 468).
É precisamente sobre demonstrar as relações estabelecidas entre assédio sexual laboral
e violência de gênero que se estrutura a próxima seção desta pesquisa.
2. ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO ESPÉCIE DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
O assédio sexual, no ordenamento jurídico pátrio, é caracterizado pela conduta de
“constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendose o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de
emprego, cargo ou função” (BRASIL, 1940). Tal definição constitui o caput do artigo 216-A
do Código Penal, único dispositivo da legislação brasileira que trata da conduta de assédio
sexual.
Rodolfo Pamplona Filho (2001, p. 35) conceitua assédio sexual como “toda conduta de
natureza sexual não desejada que, embora repelida pelo destinatário, é continuadamente
reiterada, cerceando-lhe a liberdade sexual”.
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O bem jurídico tutelado pelo dispositivo que criminaliza a conduta de assédio sexual é
a liberdade sexual, na medida em que o assédio sexual constitui uma violação a tal liberdade,
tendo em vista que constitui um cerceamento do direito individual de livre disposição do próprio
corpo (PAMPLONA FILHO, 2001, p. 37).
A respeito dessa tutela, Pamplona Filho (2001, p. 24) elucida que um preceito proibitivo
não impede uma pessoa de, no exercício da sua liberdade individual, praticar condutas vedadas
pelo Direito, mas estabelece que a prática de tal conduta implica em determinada sanção pela
violação da ordem jurídica. Nesse sentido, o autor sublinha que são opostas limitações ao
exercício absoluto da liberdade, com o objetivo de garantir a organização da sociedade e o
exercício da própria liberdade (PAMPLONA FILHO, 2001, p. 27).
Sendo assim, temos que o exercício da liberdade na sociedade moderna pressupõe a
observância de alguns limites, estabelecidos como uma garantia da liberdade. Nesse cenário, o
conhecimento de tais limites, no que se refere à liberdade sexual, pode ser situado na
observância do direito de liberdade sexual, bem como de outros bens jurídicos que receberam
proteção constitucional, como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas
(PAMPLONA FILHO, 2001, p. 29).
Por essa razão, o assédio sexual, enquanto ilícito, constitui uma violação ao postulado
dogmático da liberdade sexual, justificando-se a sanção civil lato sensu dessa conduta, ainda
que não haja lei específica para todas as formas possíveis de assédio sexual — visto que tal
fenômeno não se restringe ao âmbito laboral — (PAMPLONA FILHO, 2001, p. 35–37).
Na maioria absoluta dos casos noticiados o sujeito ativo da conduta que configura
assédio sexual é homem e as assediadas são, predominantemente, mulheres (PAMPLONA
FILHO, 2001, p. 40). Tal configuração de gênero do assediador e assediada apresenta-se desta
forma desde a origem do desenvolvimento da figura jurídica do assédio sexual (VIVOT, 2002,
p. 28).
É precisamente por essa razão que a abordagem deste trabalho orienta-se pela premissa
de que os assediadores são majoritariamente homens e as assediadas, majoritariamente
mulheres. Nesse sentido, o assédio sexual encontra amparo no trinômio poder-sexualidadeviolência e guarda estreita relação com as desigualdades de gênero, sendo indiscutível que as
relações sociais de gênero são determinantes na perseguição moral no trabalho (BEDOLLA et
al. apud TOVAR et al., 2010, p. 44).
Além disso, o assédio sexual no trabalho verifica-se como expressão da dominação dos
homens sobre as mulheres e exerce-se diretamente sobre o corpo das afetadas, pressupondo
uma violência. As trabalhadoras podem ser sujeitas a duas categorias de perseguição, tendo em
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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vista que vivem uma dupla subordinação: a de gênero e a laboral (ACEVEDO apud TOVAR et
al., 2010, p. 44).
Rachel Franzan Fukuda (2012, p. 121) aponta que existe uma dificuldade na
caracterização de assédio, fundada no padrão cultural que legitima comportamentos sexuais
predatórios masculinos, do que resulta o tratamento do assédio apenas como problema nas
relações de trabalho e não como violência contra a mulher.
A autora destaca que os crimes de assédio sexual revelam a transposição das regras
socialmente impostas à esfera privada para a esfera pública, na medida em que há uma exigência
de adequação ao papel social feminino no espaço público, o que antes limitava-se à esfera
doméstica (FUKUDA, 2012, p. 123).
É nesse contexto que a ideia do espaço público como um ambiente masculino consolidase e perpetua-se, relegando ao feminino papel coadjuvante, do qual se espera atuação espelhada
àquele desempenhado no espaço doméstico, qual seja, o papel de mãe e de esposa (FUKUDA,
2012, p. 123).
As consequências mais graves do assédio sexual laboral dizem respeito à integridade
física e mental da empregada assediada. Nesse sentido, Maria de Lourdes Leiria (2012)
desenvolve a tese de que o assédio sexual laboral deve ser considerado agente causador de
doença do trabalho e as doenças desencadeadas pela violência laboral devem ser consideradas
doenças do trabalho, entre as quais devem ser incluídas aquelas causadas pelo assédio sexual
no ambiente de trabalho.
Conforme Leiria (2012, p. 145), o assédio sexual é um dos principais ensejadores do
estresse laboral, o qual é responsável por desencadear nos trabalhadores uma série de malefícios
para sua saúde. De acordo com a autora, o estresse decorre de condições psicossociais adversas,
e pode provocar insatisfação e desmotivação laboral, afetando tanto a saúde quanto o bem-estar
do trabalhador (LEIRIA, 2012, p. 145).
De acordo com Leiria (2012, p. 151), os transtornos psicológicos decorrentes do assédio
sexual podem gerar incapacidade para o trabalho, temporária ou permanente, somada a reflexos
na vida profissional, familiar e social da vítima. O quadro da vítima pode ser agravado pelo seu
isolamento e falta de vontade de conviver com familiares e amigos, reduzindo drasticamente
sua qualidade de vida e bem-estar (LEIRIA, 2012, p. 151).
O assédio sexual no ambiente de trabalho, portanto, trata-se de um mecanismo de
controle social gerado e mantido por uma sociedade que atribui características psicológicas,
condutas e papéis diferenciados a mulheres e homens desde seu nascimento e por toda a duração
de suas vidas (TOVAR et al., 2010, p. 46).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Nesse contexto, tais normas e expectativas culturais têm efeitos expressivos na
promoção e configuração da violência contra as mulheres, minimizando ou encobrindo seus
efeitos negativos, perpetuando a violência e negando assistência às vítimas (KOSS et al. apud
TOVAR et al., 2010, p. 46).
Corroborando essa perspectiva, Marie-France Hirigoyen (1999, p. 76) assevera que o
assédio sexual, enquanto violência praticada majoritariamente por homens contra mulheres, não
se trata fundamentalmente de obter favores de natureza sexual, mas sim de buscar uma
afirmação de poder, através da subjugação da mulher como objeto sexual.
Miriam Grossi (1994, p. 482) sublinha que tanto violência quanto gênero são categorias
historicamente construídas, o que significa dizer que a percepção social da violência não é única
nem universal, assim como o significado de ser homem ou mulher é variável de acordo com a
cultura e o momento histórico.
Nesse contexto verifica-se que, inicialmente, compreendia-se como violência contra a
mulher apenas os homicídios de mulheres perpetrados por seus maridos, companheiros e
amantes (GROSSI, 1994, p. 483). Posteriormente, essa violência passou a ser localizada nas
situações de violência doméstica e/ou conjugal e nos anos 90 a problemática passa a abranger
outras espécies de violência de gênero, como o assédio sexual, o abuso sexual infantil e as
violências étnicas (GROSSI, 1994, p. 483).
Hodiernamente, portanto, não há que falar-se em contestação da caracterização do
assédio sexual laboral como espécie de violência de gênero, na medida em que restam
suficientemente preenchidos os pressupostos para a qualificação da conduta enquanto violência
contra a mulher.
Não obstante o recente reconhecimento social da conduta enquanto violência de gênero,
já na década de 70 buscava-se demonstrar a correlação entre assédio sexual laboral e
desigualdade de gênero, como fez a jurista estadunidense Catharine MacKinnon em seu livro
“Sexual harassment of working women: a case of sex discrimination” (1979).
Na referida obra, a autora argumenta que o assédio sexual de mulheres no ambiente de
trabalho é uma forma de discriminação de gênero no emprego e defende que a estrutura dos
trabalhos ocupados pelas mulheres torna estas vulneráveis a essa forma de abuso
(MACKINNON, 1979, p. 4). Nesse contexto, temos que o assédio sexual é uma das dinâmicas
que expressa e reforça o papel tradicional — e inferiorizado — assumido pelas mulheres no
ambiente de trabalho (MACKINNON, 1979, p. 4).
MacKinnon defende, de maneira vanguardista, que o assédio sexual laboral obstaculiza
a obtenção de igualdade social pelas mulheres argumentando que o trabalho é essencial para a
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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sobrevivência e independência das mulheres (MACKINNON, 1979, p. 4). Nesse contexto, o
assédio sexual no ambiente de trabalho exerce um duplo papel no enfraquecimento da luta pela
obtenção da equidade de gênero, na medida em usa a posição empregatícia da mulher para
promover uma coação sexual e usa a posição sexual da mulher para exercer uma coação
econômica (MACKINNON, 1979, p. 4). Sendo assim, a autora defende que o rompimento do
vínculo entre a sobrevivência material e a exploração sexual poderia ser facilitado pelo
reconhecimento legal de que o assédio sexual é discriminação sexual (MACKINNON, 1979, p.
4).
A autora sublinha que o fato de o assédio sexual ser cometido contra uma grande e
diversificada população de mulheres apoia a análise de que o assédio sexual ocorre por causa
da característica compartilhada por esse grupo, qual seja, gênero (MACKINNON, 1979, p. 27).
Essa premissa é o que orienta a obra de MacKinnon, na medida em que a autora considera que
tal demonstração sustenta uma análise dessa violência como estrutural, portanto, capaz de
ensejar seu reconhecimento enquanto discriminação de gênero e não apenas como injustiça
entre dois indivíduos (MACKINNON, 1979, p. 27).
Nesse sentido, assevera a autora:
As práticas que expressam e reforçam a desigualdade social das mulheres para
os homens são casos claros de discriminação baseada no sexo na abordagem
da desigualdade. O assédio sexual de mulheres trabalhadoras é considerado
discriminação no emprego baseada no gênero, onde o gênero é definido como
o significado social da biologia sexual. As mulheres são assediadas
sexualmente pelos homens porque são mulheres, isto é, por causa do
significado social da sexualidade feminina, aqui, no contexto do emprego.
Três tipos de argumentos apoiam e ilustram essa posição: primeiro, a troca de
sexo pela sobrevivência historicamente assegurou a dependência e
inferioridade econômica das mulheres, bem como a disponibilidade sexual
para os homens. Em segundo lugar, o assédio sexual expressa o padrão de
papel sexual masculino da iniciação sexual coercitiva em relação às mulheres,
muitas vezes de maneiras cruéis e indesejadas. Em terceiro lugar, a
sexualidade das mulheres define em grande parte as mulheres como mulheres
nesta sociedade, por isso as violações dela são abusos de mulheres como
mulheres (MACKINNON, 1979, p. 174, tradução nossa).
A partir da premissa adotada pela autora de que essa prática contra as mulheres é
estrutural verificamos que, enquanto conduta que atinge a dignidade da pessoa humana, o
assédio sexual laboral constitui-se enquanto variante da violência de gênero. Isso explicita a
divisão sexual do trabalho e os mecanismos de dominação das mulheres por meio dos papeis
sociais.
Apresentando-se como verdadeiro instrumento de controle e subordinação das mulheres
e provocando impactos diretos na saúde das trabalhadoras vítimas da conduta, é inegável que o
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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assédio sexual laboral apresenta-se como uma das formas mais comuns de violência contra a
mulher na sociedade contemporaneamente.
Nesse sentido, e considerando que restou demonstrado na seção anterior deste estudo
que a violência de gênero configura-se enquanto violação de direitos humanos, temos que o
assédio sexual laboral caracteriza violência de gênero e, consequentemente, violação de direitos
humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa, orientada pela diminuta produção científica sobre a problemática do
assédio sexual laboral, objetivou analisar a referida temática a partir das relações guardadas
com a questão de gênero. Nesse sentido, o problema que orientou a pesquisa foi: a prática de
conduta caracterizadora de assédio sexual laboral é uma espécie de violência de gênero e uma
violação de direitos humanos? A hipótese, que foi confirmada, era a de que o assédio sexual
laboral, por gerar reflexos na saúde da trabalhadora, constitui uma espécie de violência de
gênero e, consequentemente, uma violação de direitos humanos.
O objetivo geral do trabalho, portanto, consistiu em demonstrar a relação entre gênero
e o assédio sexual laboral cometido por homens contra mulheres. Os objetivos específicos da
pesquisa tiveram seus desdobramentos abordados nas seções de desenvolvimento. Na primeira
seção, foi apresentada a definição de violência de gênero e analisou-se a efetivação dos direitos
humanos para as mulheres, identificando a violência de gênero como violação de direitos
humanos. Na segunda seção foram abordados os principais aspectos necessários à compreensão
do fenômeno do assédio sexual laboral e sua caracterização como espécie de violência de
gênero.
Nesse contexto, o trabalho abordou o conceito de violência de gênero como um
instrumento de controle social que impede as mulheres de acessar e fruir de sua cidadania plena,
a partir da compreensão da própria categoria gênero como um significante primário das relações
de poder. Dessa forma, investigou a relação guardada entre a violência de gênero e violações
de direitos humanos, concluindo pela caracterização desta espécie de violência enquanto
violação de direitos humanos. Tal caracterização decorre da compreensão de que a violência de
gênero cerceia o exercício da cidadania plena e exerce o controle social, físico, sexual, político
e econômico sobre determinados sujeitos.
A partir dessa compreensão, foi estabelecida a correspondência entre o assédio sexual
laboral e a violência de gênero. Analisando os principais aspectos constituidores e as
consequências da conduta que caracteriza o assédio sexual laboral, concluiu-se pela sua
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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identificação como espécie de violência de gênero. Isso porque o fenômeno foi compreendido
como expressão da dominação dos homens sobre as mulheres e sua constituição enquanto
instrumento de controle e subordinação dessas. Apoiando-se na premissa de que a violência de
gênero configura-se enquanto violação de direitos humanos, portanto, concluiu-se pela
caracterização do assédio sexual laboral enquanto violência de gênero e, consequentemente,
violação de direitos humanos.
Considera-se, portanto, que além da comprovação de que o assédio sexual laboral
constitui uma espécie de violência de gênero e, consequentemente, uma violação de direitos
humanos, esta pesquisa demonstrou que é imprescindível para a questão de gênero que ocorra
a legitimação social de novas problemáticas, de modo a impactar a formulação da construção
das agendas públicas. Considera-se que esta pesquisa, assim como o campo dos estudos de
gênero em sentido lato, configura-se como uma contribuição para tal objetivo, na medida em
que oferece subsídio científico para a atuação dos sujeitos envolvidos na formulação das
políticas públicas. Isso pode ocorrer por meio de estímulo à pressão política que deve ser
realizada pelos movimentos sociais ou pela orientação dos atores institucionais aptos a impactar
na implementação dessa agenda pública.
Dessa forma, aponta-se como proposta de desenvolvimento da temática abordada nessa
pesquisa o estudo mais aprofundado de estratégias de atuação para a consolidação de uma
agenda de políticas públicas de gênero ampla e geral. Isso porque a proposta inicial de solução
para a problemática enfrentada por esta pesquisa demonstrou-se inexequível, na medida em que
erradicação do assédio sexual laboral pressupõe a igualdade nas relações de trabalho, e o
estabelecimento da igualdade nas relações de trabalho passa, necessariamente, por uma
configuração social de gênero mais igualitária em sentido amplo. Sendo assim, orienta-se que
trabalhos futuramente desenvolvidos nessa área comprometam-se a investigar conjuntos de
expedientes aptos a provocar a reorientação da formulação das agendas públicas de modo a
compreender políticas públicas capazes de redirecionar a configuração social de gênero
estabelecida.
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Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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PROFISSIONAIS DO SEXO: VÍTIMAS DO ASSÉDIO SEXUAL ENQUANTO
DESENGAJAMENTO MORAL NO TRABALHO
Priscila Fernanda Santiago Ferreira1
Wellington Lima Amorim2
Karla Fernanda Pereira3
RESUMO
Há bastante tempo a humanidade convive com o comércio sexual e reflete a insatisfação com a
existência de tal, esforçando-se em bani-lo ou submetê-lo ao controle e exercício de poder.
Durante sua história muitas foram e são as depressões, assim como momentos de alta, mas a
prostituição sempre foi um fenômeno que acompanhou e ainda acompanha o desenvolvimento
humano. Os dilemas sobre a profissão são muitos entre aqueles que a aceitam como trabalho e
aqueles que não, dentre estes prevalece a prática do desengajamento moral, uma prática
estudada pelo psicólogo Albert Bandura, que mostra a capacidade do ser humano elaborar
explicações para justificar atos antissociais, de forma a eliminar ou minimizar a sensação de
culpa ou censura. Então este estudo tem por objetivo analisar a história de vida de uma exprofissional do sexo e identificar os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos
de assédio sexual contra essas profissionais. Sendo uma pesquisa pautada no método história
de vida, onde se relatou a história de vida de uma mulher que atuou como profissional do sexo
e que é referência para o movimento de prostitutas no estado do Maranhão. Este estudo tornase relevante porque acrescenta dados importantes à Rede Brasileira de Prostituição, assim como
à Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão (APROSMA) e beneficiará as Ciências
Humanas com informações que impulsionarão futuros estudos, servindo de fonte de pesquisa.
Palavras-chave: Prostituição. Desengajamento moral. Assédio sexual.
INTRODUÇÃO
A prostituição é considerada um dos trabalhos mais antigos na humanidade e de acordo
com Sandra Azeredo (2002) desde a antiguidade essa atividade já era vista como a posição mais
baixa desempenhada por uma mulher, em especial aquelas sem estudo e qualificação
profissional. As profissionais do sexo já viviam marginalizadas socialmente por exercerem um
trabalho cujo desprezo moral lhe cabia perfeitamente, assim como a violação de seus direitos.
Entende-se que, além disso, as profissionais do sexo estão expostas a diversos riscos
físicos, psicológicos, infecções sexualmente transmissíveis (IST), exploração sexual e
1
Mestra em Psicologia, Universidade Federal do Maranhão (2019). E-mail: priscila.santiago92@hotmail.com
Link do lattes: http://lattes.cnpq.br/6221267234920112
2
Pós-doutor em Filosofia, Universidade do Contestado (2018). Pós-doutor em Desenvolvimento Regional,
Universidade Federal de Santa Catarina (2018). Doutor em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa
Catarina (2009). E-mail: wellington.amorim@gmail.com Link do lattes: http://lattes.cnpq.br/8435602742904295
3
Mestra em Psicologia, Universidade Federal do Maranhão (2019). E-mail: karla_fernandakfp@hotmail.com Link
do lattes: http://lattes.cnpq.br/9361867430800607
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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violências como o assédio sexual que é comum nesse trabalho. Dessa forma, é importante
estudar como o desengajamento moral é manifestado enquanto assédio sexual contra as
profissionais do sexo por pessoas que praticam ações nocivas e buscam justificá-las social e
moralmente levando em consideração fatores culturais, históricos, sociais, políticos, entre
outros, e como é compreendido por elas, qual o significado que atribuem a esses
comportamentos.
Em Bandura, Azzi e Polydoro (2008), o conceito de desengajamento moral é trazido
como uma forma que as pessoas lançam mão para justificar atos antissociais sem que permitam
cair sobre si a culpa ou censura por isso. Como é o caso do assédio sexual que é uma forma
corriqueira, às vezes, sutil e velada contra as mulheres, de desengajamento abrangido no art. 1º
da Constituição Federal como violação aos direitos fundamentais de dignidade humana e
valores sociais do trabalho, indo de encontro à liberdade, igualdade, privacidade e intimidade.
Para Isabel Dias (2008), o assédio sexual consiste em uma atitude de cunho sexual não desejado
pela pessoa a que foi destinado, ofendendo a integridade física e moral da mesma. Assim, os
agressores podem utilizar algum (uns) dos oito mecanismos de desengajamento moral que
Albert Bandura definiu como Justificação Moral, Linguagem Eufemística, Comparação
Vantajosa, Deslocamento da Responsabilidade, Difusão da Responsabilidade, Distorção das
Consequências, Desumanização, Atribuição da Culpa.
Muitos agressores utilizam o assédio sexual contra as profissionais do sexo, tomando a
essência sexual do trabalho como justificação. E que no Brasil a cultura, que ainda tem
fortemente a figura masculina como dominante em relação à feminina, dá espaços maiores para
que o assédio sexual aconteça e seja tratado com normalidade e aceitável. Ao compreender
processos históricos pelos quais os brasileiros passaram é possível perceber a conservação e
mudança dos padrões estabelecidos pela sociedade e como interferiram e interferem no
exercício da prostituição em uma sociedade onde as mulheres ainda lutam para conseguir
espaço e respeito pelos seus direitos. Além de ser passível de percepção a maneira como o
desengajamento moral tem sido utilizado e as diversas formas de uso dos oito mecanismos
como violência àquelas que exercem o trabalho sexual.
O presente estudo é motivado pelo interesse em entender como ocorre o assédio sexual
às profissionais do sexo através da identificação do uso de mecanismos de desengajamento
moral com a finalidade de agredir física ou moralmente tais trabalhadoras. Assim como
compreender a manutenção e construção dos padrões morais, culturais, históricos, sociais que
embasam e ajudam a justificar as atitudes antissociais contra essas mulheres que além de
satisfazerem os desejos sexuais de clientes, suportam seus desejos imorais de vexar, perseguir
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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e chantagear. Visto que muitos são os estudos que tratam do perfil das profissionais do sexo,
mas poucos os que falam sobre a violência vivida no dia a dia do exercício laboral das mesmas,
como Costa et al. (2006) fazem em seu estudo intitulado “O Trabalho das Profissionais do
Sexo”.
No tangente ao desengajamento moral tem-se a oportunidade de contribuir com uma
pesquisa inovadora na temática, uma vez que são poucos os estudos realizados e, em geral,
falam sobre trânsito, tendo por exemplo o estudo “Uma Medida de Justificativas de Motoristas
para Infrações de Trânsito” realizado por Neto, Iglesias e Günther (2012). As contribuições do
estudo também acrescentarão dados importantes à Rede Brasileira de Prostituição, assim como
à Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão (APROSMA). E beneficiarão as Ciências
Humanas com informações que impulsionarão futuros estudos, servindo de fonte de pesquisa.
A partir do que foi supracitado, o problema que implicou a pesquisa foi: Como se
manifestam os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual
contra as profissionais do sexo? Dessa forma, o estudo tomou por base o objetivo geral de
Analisar a história de vida de uma prostituta não atuante e identificar os mecanismos de
desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra essas profissionais.
E como metodologia, a pesquisa teve por base uma investigação histórica e qualitativa,
visto que seu objetivo é entender a natureza social de um fato, o mundo da prostituição na
cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, dentro de um recorte temporal (século XX
e século XXI). Usou-se o método história de vida e a técnica recorte e colagem. Spindola e
Santos (2003, p.121) ressaltam que não há necessidade de averiguar os fatos contados, pois “o
importante é o ponto de vista de quem está narrando”, é compreender a história em
conformidade com o relato e interpretação do próprio autor.
O uso de tal método permitiu conhecer aspectos subjetivos, experiências e percepções
pela própria voz da entrevistada que há trinta anos atuou como profissional e atualmente é
presidente da Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão (APROSMA), sobre o assédio
sexual no exercício laboral de uma profissional do sexo, entre outros aspectos vinculados com
a sua vida profissional e enriquecer com detalhes o tema da pesquisa.
O método história de vida é um tipo de biografia e esta pesquisa não pretendeu focar
apenas em aspectos relacionados ao assédio sexual, mas relatar de fato a vida profissional de
uma pessoa que exerceu a profissão do sexo e com esse relato os dados obtidos foram tratados
e analisados. Onde se buscou inferir a mensagem, explorando seu sentindo com base em
contextos sociais, históricos, políticos entre outros que modularam e ainda modulam aspectos
sexuais e de violência como assédio sexual às profissionais do sexo. Assim, como se buscou
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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nas falas identificar e dar sentido aos mecanismos de desengajamento moral definidos por
Albert Bandura.
1. DESENVOLVIMENTO
1.1 Histórico do comércio sexual em São Luís - Maranhão
A prostituição no século XX em São Luís dava-se no Centro Histórico, especificamente
em uma área conhecida como Zona do Baixo Meretrício (ZBM) nas décadas de 40 a 80, fruto
dos poderes ditatoriais do interventor federal Paulo Martins de Souza Ramos e do chefe de
polícia Flávio Bezerra, “que juntos decidiram confinar as prostitutas em uma zona exclusiva,
na década de 40” (REIS, 2002, p. 9).
Um ponto de concentração para os homens da cidade, visto existirem poucos lazeres em
São Luís, apenas alguns bares e clubes no centro e subúrbios. As casas de prostituição tinham
um expediente das 19 horas às duas da madrugada, mas não era cumprido e se prolongava até
o amanhecer. Durante o horário de funcionamento, predominavam músicas como samba,
samba-canção, tango, bolero, foxtrote, rumba, mambo e guarachá, um repertório de tristes
histórias de amor.
Logo havia bons dançarinos que aprenderam a dançar com as profissionais do sexo que
davam shows nos salões, atraíam olhares dos homens e garantiam o consumo das bebidas. A
rotina noturna da prostituta era ficar, no início da noite, à porta ou esquina do casarão em que
trabalhava esperando o primeiro cliente, quando não conseguiam clientes nesse local iam às
boates para uma nova tentativa.
Entretanto o passar dos anos trouxe a urbanização à cidade e comprometeu o exercício
da atividade, com a inauguração da Ponte José Sarney ligando a antiga São Luís com o crescente
bairro São Francisco, inauguração do Porto de Itaqui, aterramento do Anel Viário e a vinda da
UFMA para o Campus Bacanga, povoando essas regiões com residências, restaurantes, boates
e motéis, de modo que os rapazes buscavam mulheres diferentes no outro lado da ponte. Assim,
o comércio sexual ludovicense espalhou-se de forma ampla e imensurável, perdendo a
característica boêmia e dando espaço à exploração sexual, e a Zona foi deixando de existir.
Ruas quase que desertas, prédios escorados, ruínas. Outros sobradões em uma
transformação muito lenta e tímida são tomados pela atividade comercial,
outros tantos servem de habitações coletivas para famílias. Pouquíssimos são
os bares que ainda tentam negociar, mesmo assim para os saudosistas ainda
dá para ouvir músicas das décadas de 50 e 60. (REIS, 2002, p. 144)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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No século XXI, a prostituição continua situada no Centro Histórico e seus arredores,
mas se expandiu para outros bairros e constitui-se por mulheres pobres, em sua maioria negras
e marginalizadas socialmente, sem a segurança e disciplina presente outrora na ZBM do século
XX. Com isso, foi fundada e regularizada em 2003 a APROSMA (Associação das Profissionais
do Sexo do Maranhão) visando a luta por leis, saúde, respeito e outras causas das profissionais
do sexo do estado.
1.2 Assédio Sexual
Uma das características da humanidade, desde sua existência, é a manifestação de
atitudes violentas com variados objetivos, e tais atitudes são um dos instintos do homem. Freud
explica que o ser humano possui dois tipos de instintos, os eróticos que, em geral, objetivam
unir e preservar, e o instinto agressivo ou destrutivo que visa destruir e até matar, logo a
violência é um instinto porque pode ser compreendida como agressividade proposta ou
empregada com finalidade e desejo de destruir, de aniquilar, ou de dano à integridade do outro
ou de si mesmo, de intencionalidade consciente ou inconsciente. Esse desejo de destruir a
integridade do próximo provém da intolerância, do prazer pessoal, da incapacidade de
compreender e aceitar a dor, a frustação, dando espaço para variadas vítimas e variadas formas
de violência. Dentre elas, destaca-se o problema da violência masculina contra a mulher que é
constante e crescente em toda sociedade, carregando traços patriarcalistas que refletem a
imposição de poder e domínio do homem sobre a mulher. Uma relação que se tornou frequente
não apenas na esfera familiar, mas na social e trabalhista, através de agressões, humilhações,
abusos e assédio, violências estas que podem ser manifestadas de forma direta ou indireta e
multifacetada, trazendo como elemento constituinte as diferenças entre os sexos. Para Moreira
e Monteiro (2012, p. 2), “essa relação estabelecida entre homens e mulheres, tendo como
mecanismo a desigualdade de poder, constitui violação dos direitos humanos e gera problemas
de ordem social, de saúde pública e de saúde da mulher, colocando-a à mercê de outros tipos
de violência [...]”.
A violência contra mulher é algo cultural no Brasil e está inserida na questão de gênero
cada dia mais assimétrica nas relações de trabalho, independente do tipo de atividade laboral
exercida e construindo cenários de desigualdade, desvalorização, discriminação e tentativa da
superioridade masculina, que interfere na saúde, bem-estar e motivação das vítimas. Ao analisar
um pouco da história brasileira é possível perceber a formação de um povo sob a égide da
violência, e uma violência que até hoje tem as mulheres como maiores vítimas e que em séculos
passados foi manifestada pelas índias violentadas pelos colonizadores e pelas negras africanas
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reprodutivos V.4.
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e escravas que estavam sob a tirania de seus senhores, períodos em que a violência contra a
mulher era justificada pela necessidade de obediência aos homens.
Quando retrocedemos um pouco mais no passado, e especialmente no passado
escravagista brasileiro, encontraremos o senhor, dono não apenas do trabalho,
mas também do corpo e da alma da sua serva. Não podemos dizer que a
relação senhor-escrava era da mesma natureza do assédio, pois nela a
imposição do domínio trazia implícita a noção de desobediência paga com a
morte, [...]. (FREITAS, 2001, p. 14)
Essa cultura de violência em ambiente doméstico ou profissional é mantida por
estereótipos de inferioridade feminina e afronta a dignidade de trabalhadoras que se sentem
lesadas, traídas em uma situação intolerável e complexa.
Apesar da sociedade brasileira deixar claro que o machismo não é um pensamento único
de homens, mas também de mulheres, percebe-se que nos últimos anos a inserção de mulheres
no mundo profissional aumentou e consequentemente o acesso à renda, direitos, busca pela
educação profissional. Essa crescente presença feminina no ambiente laboral ajudou a
modificar o perfil das organizações, o que todavia não garantiu às mulheres segurança nos
postos de trabalho, pois com esse crescimento aumentou também a violência no âmbito
trabalhista, contudo predominante de forma velada e psicológica. As trabalhadoras assujeitamse a essa situação pela necessidade de si manter financeiramente, manter a família ou
complementar o orçamento familiar e pela articulação do trabalho profissional com o
doméstico, o que lhes exige maior resiliência, mas não evita as consequências das violências
sofridas.
Uma das consequências mais comuns e que tem ganhado cada vez mais repercussão e
atenção é o assédio sexual, que conforme Dias (2008, p. 20), “trata-se de um fenômeno que
atenta contra a dignidade da pessoa humana, constituindo, ao mesmo tempo, um obstáculo à
produtividade e ao desenvolvimento econômico e social”. E que está fundamentado em um
construto sociocultural a respeito da importância da dominação masculina, ofuscando a
equidade entre homens e mulheres, como forma perniciosa de agressão às mulheres. Além
disso, a cultura brasileira é rica em erotismo, sensualidade, malícia, humor com duplo sentido
manifestados nas músicas, no modo de dançar, em algumas vestimentas, na informalidade, entre
outras formas, o que dá espaço para que se pense atitudes como o assédio de modo ingênuo.
Para Barreto (2018, p. 19) essa violência “trata-se de um crime contra os costumes,
especialmente, contra a liberdade sexual, considerado próprio e puro, [...] cuja consumação dáse por uma única conduta, que constrange e é suficiente para produzir o resultado,
independentemente da obtenção do favor sexual”. Uma violência que acontece, principalmente,
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quando o homem em posição hierárquica superior, não aceita ser negado, rejeitado pela mulher
subordinada e assim insiste e pressiona com a finalidade de conseguir o que almeja.
O assédio sexual é um tipo de agressão comum e rotineira no comércio sexual, que faz
das mulheres vítimas constantes da violência praticada pelos clientes, pois julgam que o fato de
estarem pagando lhes dá o direito e poder para agir ultrapassando os limites e direitos básicos
de ser humano a que as prostitutas têm assegurados como cidadãs, e ser agressivo na busca da
satisfação de seus desejos íntimos. “A relação prostituta/cliente é expressa como encontro
permeado de humilhação, repulsa e aversão, pois, além de ser agredida, é obrigada a fazer
‘coisas’ contra sua vontade e aceitar qualquer cliente” (MOREIRA; MONTEIRO, 2012, p. 04).
É uma relação comercial pautada em medo, visto que muitas prostitutas já foram agredidas ou
presenciaram colegas de trabalho sofrendo agressões, assim vivenciam e estão aprisionadas às
ameaças contra a integridade física e psicológica. E a um cotidiano de acusações, preconceito,
vexame, estigma e desprezo que coloca essas mulheres em lugar de vulnerabilidade.
As dificuldades vividas pelas prostitutas no contexto de trabalho e relacionadas ao
assédio sexual revela a banalização delas como mulheres que podem ser vitimadas pela
justificação da atividade que exercem. E a rua apesar de ser o local de trabalho delas, não é um
ambiente agradável, pois nela as humilhações são públicas, diárias e não vêm somente dos
clientes. Outro ponto é que a rua é um local de exposição, onde todos ficam cientes da atividade
que praticam e reforçam a rejeição e marginalização social por serem, essas mulheres,
consideradas uma ameaça à moral, princípios e valores da família.
Logo, as profissionais do sexo têm pouco amparo e apoio para combaterem a violência
que sofrem ou escaparem dela porque mesmo com uma legislação começando a ser moldada a
respeito do assédio sexual e a violência doméstica, onde se considera a Lei Maria da Penha que
visa coibir e punir os agressores de mulheres, é possível notar que o sistema judiciário brasileiro
ainda é ineficiente e inadequado, que muito se tem para progredir no combate à violência contra
as mulheres com ações voltadas para a educação social, uma vez que a sociedade continua
patriarcal em suas práticas, com crimes contra as mulheres sendo comuns, diários e seus agentes
muitas vezes absolvidos sem qualquer impunidade.
1.2.1 Assédio sexual como uma forma de desengajamento moral
O assédio sexual sempre é uma forma de desengajamento moral, visto que o agressor
pode usar mecanismos psicossociais que tornam pessoal e socialmente aceitáveis atitudes que
são prejudiciais, desconsiderando e ainda fazendo com que outros desconsiderem a sua culpa,
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responsabilidade pelo mal que causa, “podendo também diminuir, distorcer ou até questionar o
dano causado por seus atos prejudiciais” (BANDURA; AZZI, POLYDORO, 2008, p. 28).
Conforme Bandura, Azzi e Tognetta (2015), o desengajamento é uma prática
autorregulatória, ligada à reestruturação cognitiva de comportamentos tidos como aversos aos
padrões morais internalizados. Um conceito proposto com o objetivo de mostrar a capacidade
do ser humano elaborar explicações para justificar atos antissociais, de forma a eliminar ou
minimizar a sensação de culpa ou censura. Trata-se de um convencimento de si e do outro
pautado em construções ideológicas morais. Pode obscurecer a responsabilidade munindo-se
da difusão e deslocamento de responsabilidade de forma que os agentes não se sintam
responsáveis pelo mal que causam. Ou ainda minimizar, distorcer e até mesmo negar o mal
resultante de atividades prejudiciais (BANDURA; AZZI; TOGNETTA, 2015).
E para agir o agressor possui um leque de formas disponibilizadas pelos oito
mecanismos de desengajamento moral propostos por Bandura. Os mecanismos são divididos
conforme alguns esquemas, o primeiro esquema faz menção à transformação de uma conduta
prejudicial em uma conduta boa.
O primeiro esquema de mecanismos funciona como uma forma de
reconstrução e envolve os mecanismos de justificação moral, linguagem
eufemística e comparação vantajosa. Ele se caracteriza basicamente pela
transformação de uma conduta prejudicial em uma boa conduta, e mostra-se
o mais efetivo no desengajamento moral. (BANDURA; AZZI; POLYDORO,
2008, p. 169)
O primeiro mecanismo é a Justificação Moral, que se baseia no dito os fins justificam
os meios, operando aquilo que é passível de culpa, erro, e pode se tornar aceitável em sociedade.
A probabilidade de autocensura é reduzida, podendo ainda o ato analisado ser reconhecido e
valorizado socialmente. Exemplo: praticar assédio moral para garantir a permanência no cargo
e afastar a ameaça de ascensão de um colega para aquele cargo (BANDURA; AZZI;
POLYDORO, 2008). Outro mecanismo é Comparação Vantajosa, manifestado quando
consequências de uma conduta repreensível são minimizadas quando comparadas com ações
mais prejudiciais que ela, buscando diminuir sua importância. Exemplo: considerar que não há
mal em insultar um subordinado fazendo menção a uma dificuldade profissional, porque demitilo seria pior, uma vez que não consegue fazer tarefas mais complexas (BANDURA; AZZI;
POLYDORO, 2008). A Linguagem Eufemística também é um mecanismo, no qual o agente
tenta mascarar o erro através do modo como nomeia tal. Exemplo: Chamar um deficiente físico
de cocho é normal, é só um apelido (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008).
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No segundo esquema, tem-se um agente que distorce a relação de causa com a conduta
antissocial e os efeitos da mesma. Para Bandura, Azzi e Polydoro (2008, p. 170), esse esquema:
Funciona como uma distorção do agente da ação e envolve os mecanismos de
difusão da responsabilidade e deslocamento da responsabilidade. Ele opera
obscurecendo ou distorcendo a relação causal entre a conduta e seus feitos, já
que a auto-censura é mais forte quando a responsabilidade por um ato antisocial é reconhecida.
O mecanismo Difusão da Responsabilidade baseia-se na defesa de recorrer à ideia de
que outras pessoas também estão praticando a mesma ação. Exemplo: “Aqui é uma cervejaria,
todo mundo bebe, só ela que não. Precisa se adaptar ao grupo.” (BANDURA; AZZI;
POLYDORO, 2008). Há o mecanismo de Deslocamento da Responsabilidade que é usado para
mostrar que o ato antissocial é uma consequência de pressões sociais originárias de terceiros e
assim tirando a responsabilidade da ação realizada. Exemplo: “Eu estabeleci minutos para que
ela use o banheiro, pois precisa produzir mais, perder menos tempo. A chefia está cobrando
resultados.” (BANDURA, AZZI, TOGNETTA, 2015).
O terceiro esquema objetiva reduzir ou desconsiderar os efeitos prejudiciais dos atos. O
mecanismo de Distorção das Consequências manifesta-se quando se acredita em fazer o mal
pelo bem. Visa à minimização do mal causado. Exemplo: O assédio sexual não é nada demais
para uma profissional do sexo, pois demonstra interesse do cliente em relação a ela.
(BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008). O último esquema do desengajamento moral ajuda
a distorcer a percepção que o infrator tem de sua vítima ou de si mesmo. A Desumanização é
um mecanismo que prima à retirada de qualidades das pessoas e no lugar atribuírem
características não humanas. Exemplo: Já que ela é prostituta, não merece ajuda da polícia por
ter sido assediada sexualmente (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008). O mecanismo da
Atribuição da Culpa manifesta-se quando o indivíduo vitimiza-se sem culpa, devida a pressão
para responder de modo prejudicial a uma provocação. Exemplo: Não estou perseguindo-a,
apenas faço com que cumpra suas obrigações (BANDURA; AZZI; POLYDORO, 2008).
Mostrou-se em cada mecanismo justificativas e exemplos práticos de como o indivíduo
pode lançar mão ao desengajamento moral, contudo é importante lembrar que independente do
mecanismo utilizado, o resultado poderá trazer consequências que se prolongam por gerações
pela disseminação comportamental e a curto, médio ou mesmo longo prazo trarão resultados
como sofrimento, prejuízo à saúde daqueles sobre os quais a atitude desengajada recai.
Em aspecto de assédio sexual, o comportamento desengajado geralmente provém de
homem contra mulher por influência cultural, social em que o homem por muito foi tido
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exclusivamente como superior à mulher, em inúmeros fatores, mas que hoje vêm sendo
rompidos e amenizados.
1.3 Análise de dados
Apresenta-se neste tópico os resultados na pesquisa qualitativa através de entrevista para
a construção da história de vida de uma ex-profissional do sexo, nesse trabalho exercido por
ela. O roteiro tomou por base o objetivo geral, sem forma enrijecida, mas fornecendo espaço
para que entrevistador e entrevistada fizessem intervenções, adaptações, acréscimos ou
omissões quando necessário.
A entrevista foi realizada na manhã do dia 28 de dezembro de 2018, com uso de
gravador de voz digital (MP3) para o registro das falas, assim fiz anotações a punho de
expressões, tons de fala. O referencial teórico deste estudo pautado no desengajamento moral,
na história da prostituição e nas violências vividas por essas mulheres através do assédio sexual
permitiu a construção da história de vida da militante.
A seguir o resultado da análise, onde se buscou identificar os mecanismos de
desengajamento moral, usados em violências como o assédio sexual.
Natural de Bequimão, interior maranhense, Maria de Jesus Costa, ou Dona Djé (como
é conhecida), solteira, 61 anos, com ensino médio completo, mãe de três filhos e uma neta, hoje
é militante, funcionária pública, fundadora e presidente da Associação de Profissionais do Sexo
do Maranhão (APROSMA) e representante no nordeste da Rede Brasileira de Prostitutas, traz
em sua história de vida relatos e vivências de uma mulher que sobreviveu a traumas, que
enfrentou grandes dificuldades em uma sociedade e século onde o machismo, mais do que hoje,
parecia ser a base social do Brasil, assim como viu mudanças em lidar, reconhecer e construir
aspectos morais que caracterizaram e caracterizam o Brasil das décadas de 60, 70, 80, 90 e o
atual milênio dois mil.
Dessa forma, buscou-se compreender a história de vida da entrevistada com foco em
sua vida como profissional do sexo e a própria depoente trouxe à memória situações de sua
infância que direta ou indiretamente contribuíram com seu trabalho na Zona do Baixo
Meretrício na cidade de São Luís - MA, durante 30 anos. Maria veio para São Luís aos 12 anos
e ingressou na prostituição quando tinha 16 anos. Informou que aos 12 anos perdeu a virgindade
em uma relação sexual não consentida.
Na verdade, eu, eu cheguei do interior eu tinha 12 anos e... Mas com 12 anos
eu não comecei a me prostituir, só com 16, mais ou menos isso. Mas, na
verdade mesmo, eu fui, eu perdi minha virgindade com 12 anos (falou com
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tom de cuidado, cautela), que não foi uma relação, uma primeira relação
consentida, foi uma primeira relação que hoje caracterizava estrupo, né?! Mas
naquela época não.
Durante a entrevista, ao falar sobre a primeira relação sexual, usou tom de cautela,
cuidado, baixando um pouco a voz, o que permitiu inferir aspectos morais ensinados em nossa
sociedade às mulheres por muitas décadas e que são trazidos e guardados no século XXI. No
século XX, o contexto cultural exigia que as mulheres casassem virgem, ou seja, sem nunca
terem tido uma relação sexual antes do casamento. Não seguir esse padrão caracterizava para a
sociedade o que Albert Bandura chama de desengajamento moral e que Almeida (2017)
conceitua como ações que impõem sofrimento a terceiros sem que o autor das ações se
autocondene pela atitude danosa. A figura do homem como dominante e a figura feminina, às
vezes, oprimida, inferiorizada e restrita sobremodo em aspectos sexuais, entendia que o papel
da mulher estava voltado para a geração de filhos, educação dos mesmos e cuidados com o lar.
Apesar das mudanças sociais, políticas, econômicas ocorridas no século XX, como o
lançamento da pílula anticoncepcional, movimento feminista, ditadura militar, entre outras, a
disciplina marcou esse tempo. Os processos disciplinares foram a base geral de dominação
exercida nas mais variadas instituições, como escolas, hospitais, família, a Igreja, o Estado e no
próprio comércio sexual. As instituições eram como um controle social e controle moral, sob o
olhar vigilante que se impunha pelo cumprimento de regras e manutenção da ordem. Nota-se,
na verdade que o corpo e o comportamento dos indivíduos são adestrados pela sociedade
disciplinar.
Logo, é possível perceber que Maria traz ensinamentos morais em sua fala e que tomou
cuidado ao falar, pois poderia fazer-se entender como apoiadora de tal situação que fugia do
padrão, cometendo, pois, desengajamento moral. Visto que os conceitos de perder a virgindade
solteira e menor de idade, estando atualmente menos enraizados, continuam presentes. Mas se
considera o costume de algumas pessoas por serem adultas aproveitarem da ingenuidade de
crianças e assim satisfazerem através delas os desejos sexuais.
Acerca de ter perdido a virgindade com 12 anos, ela explica e aceita, hoje, que não há
culpados, mesmo tendo entendido ter sido vítima, não culpa ninguém, provavelmente por focar
no contexto e costumes machistas da época em que a violência aconteceu, apenas retorna à
necessidade de apoio familiar como algo que a incomodou e ainda incomoda, mesmo tendo
encontrado na prostituição uma pessoa (dona da casa de prostituição) que a acolheu muito mais
que a família. Visto que, ela veio morar em São Luís na casa de uma tia, e a ligação sanguínea
com a tia não a fazia se sentir acolhida, não havia confiança, aproximação.
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O lance da família é uma coisa, é assim, porque, deixa eu te falar, há quarenta
anos atrás, é vou falar 50 anos atrás. Na verdade, eu vou te falar 60 anos atrás,
nós não tínhamos nada que pudesse nos amparar em nada que a gente pudesse
é... ter essa coisa de apoio né?! É, não por que a família era desestruturada, é
porque a família, ela não tinha esse direcionamento, essa coisa que tem hoje,
olha a mulher paria filho, era pra casar, o filho era pra casar, não paria filho
pra ser gay, a filha pra ser prostituta.
Em sua fala, a entrevistada reitera a importância do apoio familiar e influência dos
costumes do século XX, tais quais o conservadorismo, a rigidez, e os aspectos políticos da
época, onde pode-se citar a Ditadura Militar, como um deslocamento da responsabilidade
(mecanismo) da família sobre o abandono e violência sofrida, onde ela atribui como causa de
tais ações o contexto social, político do momento. Da mesma forma que refletiu lamento e
incômodo por não ter sido entendida sobre a violência vivida, uma vez que relatou ter sofrido
discriminação dos parentes e por sua vida ter sido dirigida para a prostituição. Fatos em que é
possível perceber o mecanismo de desumanização em que se percebe a vítima como culpada e
a desrespeita ou reduz o respeito sobre ela (NETO; IGLESIAS; GÜNTHER, 2012).
Um indivíduo desengajado não é apenas aquele que pratica o ato, comportamento, mas
aqueles que apoiam direta ou indiretamente, veem o comportamento desengajado como normal,
adequado, aceitável. Situação observada na vida da depoente quando, por exemplo, ela se
tornou gerente de boate (casa de prostituição), um cargo de confiança em relação aos donos das
casas e que, segundo Dona Djé, era “gostoso demais”. O desengajamento se faz presente nesse
caso quando se considera que a prostituição abre espaço para ilegalidades como trabalho,
exploração, apologia sexual infantil, assédio sexual, entre outros problemas, uma vez que
compartilhando a liderança de uma casa de prostituição está sendo complacente com tais erros.
O preconceito no século XX era tão enfático que Djé o tem como uma forma de rejeição,
por estar lutando com companheiras de causa em todo o Brasil para a redução e até
desconstrução desses comportamentos contra as prostitutas, conforme fala: “Sempre nesse
patamar de anos tinha rejeição, com certeza (ênfase), porque o que a gente vem trabalhando
pra desconstruir o preconceito, não é de hoje”. Esclarece que nos dias atuais as pessoas valemse do mecanismo linguagem eufemística para amenizar ou ocultar o preconceito transmitido
em frases, palavras encontradas ao longo da história para substituir a palavra prostituta tida
como pejorativa.
Hoje o nome prostituição (falou o nome com ênfase e pausadamente) ainda é
um entrave na sociedade e a sociedade somos nós, mas se hoje é um entrave
na sociedade prostituição, e imagine antes, aí você se vira pra um nome mais
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elegante, profissional do sexo, trabalhadora do sexo, é secretária,
acompanhante, então assim, a gente também não questiona isso.
Além do preconceito, as trabalhadoras do sexo são extremamente vulneráveis a qualquer
outro tipo de risco por na maioria dos serviços prestados não escolherem os clientes e
trabalharem à noite nas ruas, riscos estes que são reconhecidos pela presidente da APROSMA,
contudo reconhece os riscos da profissão com naturalidade, como algo comum, normal e
corriqueiro e mesmo aceitável, nesse aspecto reitera-se que o desengajamento moral não está
apenas naquele que age, mas também em quem o vê com normalidade, pois lança mão dos
mecanismos conforme a situação.
Todas as profissões elas são difíceis, é difícil você ser médica e não ser uma
boa médica, você tá vulnerável a qualquer hora um paciente te esculhambar,
isso é notório, então, é... se você é advogada, você tá vulnerável a qualquer
hora um cliente lhe meter a bala porque você não defendeu, então todas as
profissões elas são perigosas, todas. Algumas com número de vulnerabilidade
maior que é nosso caso, né?! Por que? Porque a mulher tá na rua, porque ela
tá mais exposta, porque ela tá fazendo um, por acaso, ela vai se prostituir e vai
ficar com um cara que ela nunca viu, ela tá mais vulnerável, mas todas as
profissões são perigosas, cada uma tem o seu perigo constante.
E confessa que deve haver cautela por parte das trabalhadoras do sexo, ao interpretar a
atitude do cliente ou outras pessoas a fim de evitar desentendimentos ou interpretações erradas,
uma vez que cantadas e galanteios constituem o mundo da prostituição quando os clientes ou
os prestadores de serviço querem atrair e, dependendo da forma como são feitas, essas práticas
são diferentes do assédio sexual. “Claro que ele rola, mas muitas vezes a mulher que tá
trabalhando na prostituição, ela tem que saber a forma com que ele está convidando, pra não
ser um assédio e como ele está, aí é diferente”.
Entretanto, por defender não apenas as causas das prostitutas, mas também das
mulheres, ela comenta que “de modo geral, a violência contra a mulher, ela ocorre muito
dentro de casa [...]. A violência contra a mulher, ela é muito camuflada”, reforçando que a
violência a qualquer mulher também é uma causa de luta a ser combatida. Em relação ao assédio
sexual na prostituição, afirma que é praticado quando o cliente está a sós no quarto com a
profissional que prestará o serviço, quando não há quem veja (testemunhas) o seu ato
desengajado ou defenda a vítima, como um comportamento costumeiro, que muitos homens
em nossa sociedade aderem por terem noção de que violência é errado legal e socialmente.
Quando a violência é pública, Djé entende como uma forma que o homem usa para chamar
atenção, se enaltecer com humilhações verbais ou físicas publicamente perante a mulher.
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Porque se é no cabaré, ela tá no quarto. Os homens deixa a mulher ficar
sozinha e quando ela não tá sozinha e ele violenta é porque ele quer aparecer,
aí quando ele quer aparecer, ele vai lá, esculhamba no meio da rua e fala,
porque ele já quer aparecer e aí ele já fica violento.
Buscando entender mais como se dá a violência através do assédio sexual, perguntouse se quem mais praticava assédio eram aqueles que já fizeram uso dos serviços de prostituição
ou aqueles não usavam. A representante nordestina do movimento desconsiderou tal
comparação, e enfatizou que o assédio sexual é um reflexo da educação daqueles que o
praticam, que é uma questão, um problema social a ser trabalhado, principalmente, na
instituição familiar. Uma educação que em alguns casos é pautada no exemplo patriarcal do lar
e o indivíduo que convive com isso pode ter uma aprendizagem por modelagem, considerando
como normal e adequado o comportamento, através do mecanismo deslocamento da
responsabilidade, fazendo com que esta cai sobre o quesito educação familiar. “Não, isso aí
não tem muita lógica, não. Isso aí é... Essa questão aí dessa violência... Porque, às vezes, o
cara é violento de casa, por que ele ia deixar de violentar uma puta, uma prostituta, se ele já é
violento em casa, essa educação dele é de berço, é de casa?”.
E justifica que se “ele dá na mulher dele em casa, evidentemente ele vai querer dar
numa puta porque ele já tem essa coisa de eu vou dale (bate) porque é mulher, porque é frágil,
porque tá no cabaré. Então, essas coisas são assim, a gente tá tudo junto e misturado, né?!”
Em situação de risco, agressão, o ser humano tem diversas reações de resposta, sendo
entre elas o silêncio, ficar paralisado ou uma defesa ativa mesmo que em forma de reação
instintiva. Logo se sondou a entrevistada sobre como ela se defendia em relação ao assédio
sexual durante o exercício da profissão e a mesma respondeu desconsiderando as
particularidades de reação de cada um, mas generalizou como algo em que todos conseguem e
tem a obrigação de si defender, aspecto que pode ser reflexo de ela se considerar muito forte e
segura.
Qualquer mulher se defende. Se a mulher vir dar um tapa na minha cara, eu
vou dar um na dela também, não tenha dúvida. É essa defesa que todo ser
humano se defende da taca. Na mesma moeda, é de igual pra igual. Não tem
essa de esperar papai, mamãe, não. Nem de levar pra dona da casa (casa de
prostituição)
Apesar de ter a reação de defesa como uma reação que qualquer um pode ter sem
dificuldades, ela chegou a sofrer agressões físicas e justificou como quem sofreu por ter
merecido pelo fato de ser “brigadeira”. Uma vez com esse pensamento, tenta-se eximir o erro
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do agressor e trazê-lo para si, onde mais uma vez usa o mecanismo de atribuição de culpa,
fazendo cair sobre si a culpada agressão sofrida pelos clientes.
Ah, sofri, sofri, muitas. Porque eu era muito braba, então eu sofri muito a
violência, eu era brigadeira com quem errava, com quem era da casa e com
quem vinha pra casa errar, esculhambar minhas colegas, brigar, fazer sexo e
não pagar, aí o pau fechava. Aí a gente acabava levando umas bolachas.
É tão justificável para ela que a importância na fala dada às violências sofridas é pequena
e parece não lhe causar dor, sofrimento. “[...] mas nada que a gente não tirasse de letra depois
(risos)”. Entretanto, em momento posterior, ela admite que os assédios sexuais sofridos
afetavam, interferiam, emocional e moralmente a integridade e dignidade não apenas dela, mas
com qualquer mulher que venha a ser vítima.
Violência emociona, mexe emocionalmente com qualquer mulher, né?!
Porque só você lembrar que um homem te bateu, que um homem te machucou,
claro que vai mexer no teu ego, num tenha dúvida, vai te deixar sequelas
assim: “pô o cara me bateu e tal, não nasci pra apanhar e tal”. [...] É...
Assassinato de colegas minhas, que foram assassinadas e isso fica pra sempre,
né?! É... Mulheres que apanharam, que sofreram.
Apesar dos abalos emocionais, as agressões vividas não a desmotivaram no exercício
da profissão e na luta contra a violência e a favor dos direitos daquelas que trabalham no
comércio sexual “Não, não, não, não! Tanto que eu tô aqui te dizendo que não tenho motivo
pra ser triste”.
A legislação brasileira recomenda que em casos de violência contra mulheres, as
mesmas registrem boletim de ocorrência contra quem as agrediu. Contudo, há cerca de 40 anos
a polícia não dava suporte às prostitutas que eram violentadas e hoje esse suporte é falho e nem
sempre existe. E os próprios policiais agem preconceituosamente contra as prostitutas. “Não. A
polícia 40 anos atrás mais ou menos, ela sempre agiu com poder maior, também com
preconceito, né?! [...] Tratavam muito mal. O preconceito maior era da polícia até, acabava
sendo da parte deles, não da nossa (sociedade)”. Os policiais lançavam mão do status social
que possuíam e abusavam do poder que tinham. “E também com aquela questão do se
apropriar do que ele já era, entendeu? Se era polícia, tem que respeitar polícia, a mulher tinha
que respeitar polícia, entre outras coisinhas mais. Tratavam muito mal’. Praticavam, pois,
desengajamento moral usando o mecanismo de comparação vantajosa, já que os policiais agem
com condutas repreensíveis comparando à uma ação que gera “maior dano ou aversão social na
tentativa de demonstrar insignificância ou diminuir sua importância”. (BANDURA; AZZI;
TOGNETTA, 2015, p. 204)
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reprodutivos V.4.
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No tangente à liderança na rede de prostituição, Dona Djé reforça a liderança como uma
obrigação de respeito e apoio às colegas de profissão e afirmação do orgulho que tem em servir
a causa. De tal modo que ao ser perguntada sobre quando deixou a profissão, respondeu com
ênfase e firmeza que
“Sair, sair é... Não! Eu continuei, porque até hoje eu sou, eu me classifico
como uma puta liderança no movimento né?! Então, a gente nuca sai, a gente
sai de atuar como, mas você nunca deixa, você nuca sai (ênfase), porque você
continua nas áreas, continua. [...] O líder tem que passar a informação para a
frente”.
Por continuar acompanhando o desenrolar da profissão ao longo de sua vida, pode ver
conquistas sociais, políticas, assim como problemas que exigem solução, trato tanto no trabalho
das prostitutas como às mulheres que não exercem tal profissão. De forma que afirmou: “Eu
tenho revolta com a política que ainda não atingiu o que a gente queria que atingisse, que era
respeito às mulheres, entendeu? Esse cuidado, cuidar das mulheres, né?!”
Maria revela que sua luta por direitos não é apenas pela prostituição, mas pelas mulheres
e que isso a fez superar as lembranças, sequelas de violência vividas ou vistas e cobrar o
exercício de leis que protejam as mulheres da violência masculina, e assume consigo uma
responsabilidade de não permitir que o que lhe ocorreu, ocorra com outras entendendo como
importante
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desengajamento moral é um conceito que pode ser considerado uma estratégia
cognitiva cujas pessoas utilizam para justificar comportamentos antissociais, que vão de
encontro ao que a sociedade espera e toma como base comportamental. Essa estratégia é ativada
quando se busca minimizar ou eliminar a auto reprovação, auto sanção pelos atos imorais
cometidos, assim o autor não se sente responsável pela transgressão cometida. Compreende-se,
ainda, ser possível que o transgressor faça cair sobre a vítima a culpa dele, como merecedora
do que sofreu.
Ao longo deste trabalho que tomou como questão norteadora “Como se manifestam os
mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra as
profissionais do sexo?” apresentou-se os principais fundamentos, a base da Teoria de
Desengajamento Moral, de Albert Bandura, em que seus conceitos foram relacionados com o
assédio sexual, não apenas teoricamente, mas na prática por meio da história de vida de uma
profissional do sexo não atuante, de modo que os mecanismos de desengajamento moral foram
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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identificados, exemplificados e, na pesquisa analisados, sendo eles Justificação Moral,
Linguagem Eufemística, Comparação Vantajosa, Deslocamento da Responsabilidade, Difusão
da Responsabilidade, Distorção das Consequências, Desumanização, Atribuição da Culpa.
Apresentou-se a concepção de uma mulher, que por trinta anos viveu no comércio
sexual, acerca do assédio sexual laboral com profissionais do sexo, através da história de vida
da presidente da Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão (APROSMA), de modo a
conhecer sua história no mundo da prostituição aspirando depoimentos sobre assédio sexual
durante o trabalho das profissionais do sexo. Considera-se que poucos foram os relatos de
assédio sexual e até mesmo relatos indiretos, presentes nas entrelinhas da fala da depoente.
Contudo, obteve-se falas que revelaram aspectos históricos, políticos e sociais dos séculos XX
e XXI que foram vividos, influenciaram e influenciam o modo de pensar e comportar-se da
entrevistada em relação a situações de violência contra mulher, onde a interdependência entre
fatores pessoais e ambientais foi percebida.
A profissão do sexo, desde suas primeiras manifestações foi combatida por associar-se
a uma forma de quebrar regras e prejudicar moralmente a sociedade, indo de encontro aos bons
costumes familiares e femininos. Abrindo espaço para que a violência contra a mulher ganhasse
novas formas, novas justificativas e novos nomes para velhos problemas como assédio sexual
que não é um fenômeno recente, mas que a sua visibilidade social e política sim, onde as
discussões e preocupações sobre o assunto têm estado cada vez mais em pauta, com ênfase na
seriedade e gravidade às situações de agressão vividas por mulheres.
O assédio sexual é um comportamento de cunho sexual, visto em contexto profissional,
constrangedor, ofensivo contra outrem, em que se objetiva vantagem ou favor, privilégio sexual
por meio da superioridade hierárquica de cargo ou função. Assim caracterizando-se como
desengajamento moral e que atualmente tem sido causa de cobranças ao Estado sobre a garantia
e certeza a todos do direito ao respeito, honra, dignidade humana e proteção à violência.
Entretanto, a prostituição por não ser tida como um emprego, somente um trabalho, em
que Costa, et al (2006, p. 1) conceituam como “uma ação humana sobre a natureza, que muda
sua morfologia e constrói a identidade do sujeito, realizado histórico e socialmente”. E mesmo
assim não reconhecido socialmente, permanecendo na clandestinidade ao longo de nossa
construção histórica como trabalho informal, mas que carrega o peso do preconceito e rejeição
sobre aqueles que o exercem. Em especial, pela sociedade brasileira, no século XX, ter passado
por um processo disciplinar em que o controle masculino predominava mais que hoje, em que
atitudes machistas eram mais frequentes, aceitas e uma marca social, por muito compreendida
até como necessária. A fim de que a mulher se mantivesse dedicada apenas ao lar, ao marido e
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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aos filhos. Aquelas que fugiam desse padrão eram desprezadas e pejorativamente consideradas
prostitutas, a posição mais baixa que uma mulher poderia assumir para a população.
Durante a entrevista com a presidente da APROSMA esses fatores citados foram
percebidos em suas falas e aspirou-se que a violência a profissionais do sexo, através do assédio
sexual, trazida como uma justificação pautada na natureza do trabalho que exercem e desprezo
foram tomadas por ela como naturais, comuns no trabalho das profissionais do sexo, no sentido
de remeter, transparecer aceitação, como se o assédio sexual fosse algo aceitável porque o
homem brasileiro tem uma personalidade de superioridade e muitas vezes agressiva pela
educação que pode ter recebido, por aspectos culturais, políticos, etc, e o privado torna-se
público. Não houve especificação nesse ponto de assédio sexual, sobre trazer muitos relatos,
mas a naturalidade em lidar com essa violência foi percebida várias vezes quando, por exemplo,
ela retira a culpa daquele que a abusou sexualmente na infância, julga-se forte para lidar com a
violência, comenta que qualquer mulher é capaz de se defender de uma agressão, demonstra
gratidão por ter sido aceita em uma casa de prostituição quando ainda era menor de idade, entre
outras falas.
Mas se ressalta que, apesar, da naturalidade com que trata o assunto, ela não ignora os
atos antissociais que cometeu e que foi vítima, por falar em tom de cautela sobre a perda da
virgindade, por reconhecer ser criança quando começou a prostituir-se, falar dos
comportamentos preconceituosos vindos da própria família quando souberam do abuso sexual
e ter em sua posição de militante e líder comunitária a responsabilidade, necessidade e, mesmo,
obrigação em lutar para a violência contra qualquer mulher seja combatida, denunciada e as
prostitutas tenham direitos como qualquer profissão e respeito social. Então, fatores históricos,
subjetivos, culturais, sociais foram abstraídos em relação ao assédio sexual, só que fazendo
perceber o desengajamento moral na fala da depoente, onde ela mesma traz posturas
desengajadas e revelou a de outras pessoas.
Foi possível ainda entender como a cultura pode influenciar o desengajamento moral
que busca justificar o assédio sexual com as profissionais do sexo, por meio dos relatos de
violência e percepção de Maria, possibilitando identificar os mecanismos de desengajamento
moral e atribuí-los as aspectos culturais das décadas em que atuou como profissional do sexo e
do seu momento atual como representante nordestina da rede de prostituição. E assim, objetivo
geral cuja proposta é “Analisar a história de vida de uma prostituta não atuante e identificar os
mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra essas
profissionais” pode ser alcançado, revelando aspectos não esperados quando se buscou
trabalhar com a entrevistada a questão do assédio sexual. Onde as respostas não esperadas
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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pautadas na naturalidade em lidar e ver o assunto, onde ela mesma deixou perceptível ser
também desengajada moralmente, porém, foi justamente nesse ponto que os aspectos culturais
da nossa sociedade foram inferidos.
Diante do apresentado em todo este trabalho, as contribuições dão-se como informações
que acrescentam a estudos desenvolvidos sobre desengajamento moral, com uma 0pesquisa de
temática diferente e que dá espaço para que outras pesquisas tanto sobre desengajamento moral,
assédio sexual e prostituição possam ser realizadas, complementadas com as informações
trazidas. Assim como se reforça a necessidade de compreender e tratar as profissionais do sexo
como todo e qualquer ser humano, a necessidade de entender que o teor de seu trabalho não
justifica nenhum tipo de violência direcionada a tais.
REFERÊNCIAS
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patroas. Cadernos Pagu, n.19, Campinas, 2002.
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BANDURA, Albert; AZZI, Roberta Gurgel; TOGNETTA, Luciene R. (Org.).
Desengajamento Moral: teoria e pesquisa a partir da teoria social cognitiva. Campinas:
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2002.
SANTOS, Rosângela da Silva; SPINDOLA, Thelma. Trabalhando com a história de vida:
percalços de uma pesquisa(dora)?. Revista Escola de Enfermagem USP, São Paulo, v. 37, n.
2, jul. 2003.
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VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO QUOTIDIANO DO PROCESSO GRAVÍDICO PUERPERAL DE CADEIRANTES: BARREIRAS ARQUITETÔNICAS E
ATITUDINAIS
Thamyres Cristina da Silva Lima1
Danielle Alves da Cruz2
Natália Aparecida Antunes3
Adriana Dutra Tholl4
RESUMO
O estudo tem como objetivo relatar a vivência de gestantes cadeirantes, participantes de um
grupo inclusivo e refletir sobre as barreiras atitudinais e arquitetônicas que envolvem o processo
gravídico-puerperal e a forma como afetam seu quotidiano. Método: Trata-se de um relato de
experiência integrado ao Método de Pesquisa Cuidado em Grupo, realizado em um grupo de
gestantes, usuárias de um Centro Especializado em Reabilitação, no Sul do Brasil, no período
de abril a agosto de 2019, tendo a participação de duas mulheres cadeirantes e suas famílias.
Foram realizadas duas oficinas com duração de 04 horas cada, quais sejam: Oficina 1 Conectando-se com o bebê e Oficina 2 - Cuidados no período gravídico-puerperal e com o
recém-nascido. Resultados: Observou-se que as gestantes cadeirantes puderam se apropriar de
conhecimento sobre os seus direitos básicos constitucionalmente previstos, bem como dos
cuidados no processo gravídico-puerperal e com o recém-nascido, tornando-se mais preparadas
para os desafios da maternidade e com um olhar crítico frente às barreiras arquitetônicas e
atitudinais. Considerações finais: De acordo com os resultados que emergiram no estudo, fazse necessário repensar sobre a formação dos profissionais nos três níveis de atenção à saúde,
para que prestem assistência qualificada, respeitando as individualidades das mulheres
cadeirantes. É preciso garantir a essas mulheres uma assistência livre das barreiras
arquitetônicas e atitudinais, garantindo-lhes os direitos básicos constitucionalmente previstos.
Palavras-chave: Gestação. Lesão Medular. Pré-natal. Profissionais da saúde.
1
Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Bolsista
de Iniciação Científica (Pibic/CNPq) - Projeto: “O quotidiano da pessoa com lesão medular pós-programa de
reabilitação no estado de Santa Catarina”. Membro do Laboratório de Pesquisa, Tecnologia e Inovação em
Enfermagem, Quotidiano, Imaginário, Saúde e Família de Santa Catarina - NUPEQUISFAM-SC. Membro do
laboratório
de
Pesquisa
REHABILITAR.
E-mail:
thamyresc92@gmail.com
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0092605914409027
2
Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da UFSC. Bolsista do Projeto de extensão, intitulado:
“GALEME - Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular: reabilitando e contribuindo para a inserção social
no quotidiano”. Membro dos Grupos de Pesquisa: NUPEQUISFAM-SC e REHABILITAR. E-mail:
daniellecruz2008@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/9290806049399693
3
Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da UFSC. Bolsista da Pesquisa, intitulada: “Avaliação da
continuidade do processo de reabilitação no quotidiano domiciliar de pessoas com lesão medular e de suas
famílias”. Membro dos Grupos de Pesquisa: NUPEQUISFAM-SC e REHABILITAR. E-mail:
nataliaaparecidaantunes@hotmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/6284823259244078
4
Enfermeira. Doutora em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC (PEN/UFSC).
Docente do Departamento de Enfermagem da UFSC. Vice-Líder e pesquisadora do NUPEQUISFAM-SC.
Pesquisadora
do
REHABILITAR.
E-mail:
adriana.dutra.tholl@ufsc.br
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1606741459027273
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55
INTRODUÇÃO
De acordo com o Relatório Mundial sobre Deficiência, publicado pela Organização
Mundial da Saúde (2011), mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com
alguma forma de deficiência, dentre as quais, cerca de 200 milhões experimentam dificuldades
funcionais consideráveis. Nos próximos anos, a deficiência será uma preocupação ainda maior
porque sua incidência tem aumentado. Isto deve-se ao envelhecimento da população e ao risco
maior de deficiência na população de mais idade, bem como ao aumento global de doenças
crônicas.
O Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) aponta que aproximadamente 45,6 milhões de pessoas no Brasil, ou seja,
23% da população total, apresentam algum tipo de incapacidade ou deficiência. Incluem-se
nessa categoria, as pessoas com, ao menos, alguma dificuldade de enxergar, ouvir, locomoverse ou com alguma deficiência física ou mental (IBGE, 2010). Quanto à classificação, de acordo
com IBGE (2010), as deficiências se dividem em: deficiência física (tetraplegia, paraplegia e
outras); deficiência intelectual; deficiência auditiva (total ou parcial); deficiência visual
(cegueira total e visão reduzida) e deficiência múltipla (duas ou mais deficiências associadas).
No Estado de Santa Catarina, cuja população é de 5.248.436, existiam 72.216 pessoas
que apresentavam deficiência intelectual; 305.809 deficiência auditiva; 993.180 deficiência
visual; 420.545 deficiência motora, ou seja, 21,6% da população apresenta alguma deficiência,
conforme mostra o Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2010).
O trauma raquimedular é definido pela American Spinal Injury Association (ASIA)
como um dano de elementos neurais, dentro do canal espinhal, com consequente perda parcial
ou total das funções motoras e/ou sensitivas, abaixo do segmento da medula espinhal
comprometido. As respectivas sequelas, não apenas limitam em decorrência de mudanças
expressivas do domínio e da independência funcional, como também exigem longo processo
de reabilitação (KENNEDY et al., 2012).
A Lesão medular pode ter causas de origens traumáticas ou não traumáticas. Entre as
causas de etiologia traumática, as mais frequentes estão relacionadas a acidentes
automobilísticos, ferimentos por armas de fogo, mergulho em águas rasas, e quedas. Já as
causas das lesões não traumáticas podem estar relacionadas a tumores, infecções, alterações
vasculares, malformações e processos degenerativos ou compressivos (CEREZETTI, 2012).
Atualmente, nos Estados Unidos, há cerca de 288.000 indivíduos com LM e estima-se
que a cada ano mais 17.700 novos casos são incluídos nesse grupo (NATIONAL SPINAL
CORD INJURY STATISTICAL CENTER, 2018). No Brasil, os dados sobre a incidência da
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LM são vagos e relativamente antigos, no ano 2000 a incidência de indivíduos com LM no país
era de aproximadamente 11.304 novos casos por ano, com uma média de idade de 30,4 anos e
prevalência estimada de 0,11% da população, sendo observados predominantemente mais
indivíduos do gênero masculino e com pouca escolaridade formal (FRANÇA et al., 2013).
Ao sofrer uma lesão medular, a pessoa tem o seu quotidiano modificado repentina e
drasticamente, resultando comumente em deficiência física, mobilidade física reduzida, déficit
de sensibilidade, alterações geniturinárias, gastrointestinais, circulatórias, além de sequelas
emocionais, pois afeta diretamente a vida no âmbito social, afetivo, sexual e psicológico,
tornando-o vulnerável às complicações que limitam o processo de reabilitação e sua reinserção
social. A família, por sua vez, sofre paralelamente com esse processo de mudança, tendo que
alterar sua rotina para apoiar, estimular e dar assistência adequada para o familiar com LM,
para que juntos enfrentem os desafios que envolvem o processo de reabilitação (THOLL, 2015).
A gestação é um momento singular na vida da mulher e de seu círculo social, para a
mulher cadeirante, a gestação traz sentimentos ambivalentes, alegria pela vida que floresce, e
medo pelo enfrentamento das limitações físicas e da própria maternidade. A gestação de uma
mulher cadeirante requer cuidado extra, visto que os principais problemas médicos associados
à gravidez das mulheres com lesão medular são as infecções do trato urinário, as dificuldades
no manuseamento da bexiga e intestino neurogênicos, a anemia, o tromboembolismo venoso,
as úlceras de pressão, a espasticidade, a hipotensão, o parto prematuro e, em alguns casos, a
dificuldade respiratória e a disreflexia autonômica (MATIAS, SANTOS e CERQUEIRA,
2014).
Além das necessidades específicas de uma gestante cadeirante, faz-se necessário
ressaltar as questões voltadas para a acessibilidade dessas mulheres aos serviços de saúde no
período gravídico-puerperal, bem como do preparo dos profissionais da saúde no atendimento
dessas mulheres, resultando, por vezes, numa violência institucional: “caracterizada por
qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (art. 1º, caput, da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher
(Convenção Belém do Pará) de 09 de junho de 1994), inserida na legislação brasileira através
do Decreto 1973, de 1 de agosto de 1996.
A Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência propõe-se a “trabalhar os
processos de acolhimento, atenção, referência e contrarreferência, voltados às especificidades
das pessoas com deficiência para que elas possam ter acesso às Unidades de Saúde, em todo o
País, sem barreiras (arquitetônicas e/ou atitudinais), como todos os demais cidadãos brasileiros”
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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(BRASIL, 2010, p. 11). Entretanto, observa-se ainda, pouca expressividade no acesso aos
direitos constitucionalmente adquiridos por essas pessoas. A falta de acessibilidade não é uma
particularidade nas unidades de saúde, elas podem ser observadas na sociedade de uma forma
geral, o que reflete numa grave omissão do Estado em garantir e cumprir com o que se encontra
legalizado, comprometendo a qualidade de vida das pessoas com deficiência (CRUZ et al.,
2019). As pessoas com deficiência enfrentam desafios cotidianos, tais como: circulação em
calçadas e vias, meios de transportes e locais públicos ou de trabalho, sem infraestrutura
adequada, causando impedimentos à sua locomoção e constrangimentos em sua independência
individual (FREITAS, 2019).
Na rede de atenção à gestante, a cadeirante enfrenta barreiras arquitetônicas e
atitudinais ao buscarem atendimento nos Serviços de saúde caracterizando uma violência
institucional, fato este evidenciado pelas gestantes cadeirantes participantes do Grupo de Apoio
às Pessoas com Lesão Medular – GALEME, surgindo assim, a necessidade de inserir nas
atividades do GALEME, oficinas teórico-práticas para desenvolver temas relacionados ao
período gravídico-puerperal em um Centro Especializado de Reabilitação, visto que duas
participantes do grupo estavam gestando seus primeiros filhos e não estavam inseridas em
grupos de gestantes de suas unidades de referência.
Diante deste cenário, o fortalecimento das redes de apoio tem grande importância e
influência durante o período gravídico-puerperal da mulher cadeirante, podendo facilitar o
processo de autocuidado e cuidado com o recém-nascido. Os profissionais de saúde também
possuem um papel fundamental durante o período gestacional dessas mulheres. É durante o prénatal que surge a oportunidade do profissional de criar vínculo com a gestante e desta forma
auxiliá-la a desenvolver os cuidados necessários para esse período.
Este estudo justifica-se pelo aumento crescente de pessoas em condições especiais,
especialmente com LM que se tornaram cadeirantes, e as mudanças nas Políticas de Saúde,
principalmente na Assistência à Saúde da Mulher, visando uma gestação segura e saudável.
Faz-se necessário refletir sobre como as mulheres cadeirantes têm sido assistidas nas
Instituições de saúde no período gravídico-puerperal.
Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo relatar a vivência de gestantes
cadeirantes, participantes de um grupo inclusivo e refletir sobre as barreiras atitudinais e
arquitetônicas que envolvem o processo gravídico-puerperal e a forma como afetam seu
quotidiano.
Compreende-se por quotidiano, a “maneira de viver dos seres humanos que se mostra
no dia a dia, por suas interações, crenças, valores, significados, cultura, símbolos, que vão
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delineando seu processo de viver, em um movimento de ser saudável e adoecer, pontuando seu
ciclo vital. Esse percurso pelo ciclo vital tem uma determinada cadência que caracteriza a
maneira de viver, influenciada tanto pelo dever ser, como pelas necessidades e desejos do dia a
dia, que se denomina como ritmo de vida e do viver” (NITSCHKE et al., 2017, p. 8).
1. MÉTODO
1.1 Tipo de estudo
Trata-se de um relato de experiência, integrado ao Método de Pesquisa Cuidado em
Grupo (MPCG), cuja proposta é desenvolver pesquisa a partir da realização do cuidado em
grupo, o qual ocorre nas discussões e rodas de conversas, que proporcionam a escuta sensível,
expressão de sentimentos, verbalização das necessidades e socialização de ideias
(COSTENARO; RANGEL e LACERDA, 2012).
O Método de Pesquisa Cuidado em Grupo é definido como um método de cuidado
adjunto à pesquisa, pois cuida e pesquisa simultaneamente e o cuidado se desenvolve em grupo.
Define-se que toda ação deve ser refletida e questionada antes de sua realização, bem como no
momento da operacionalização da mesma e na sua conclusão. Esse feedback constante permite
retroalimentar esta ação e assim possibilita o alcance dos objetivos propostos (COSTENARO
e LACERDA; 2016).
1.2 Cenário do estudo
O estudo foi realizado em um Centro Especializado em Reabilitação no sul do Brasil,
caracterizado pelo Ministério da Saúde, como uma Instituição Pública, referência em
atendimentos e procedimentos de alta complexidade em medicina física e de reabilitação às
pessoas com deficiência física e intelectual.
Os participantes do estudo estão vinculados ao Centro por meio do Programa de
Reabilitação, da qual o GALEME – Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular se integra.
Ao se pensar em rede de apoio à pessoa com deficiência, destacamos aqui, a criação do
GALEME, que surgiu com o desenvolvimento da Tese de Doutorado em Enfermagem,
desenvolvida pela enfermeira: Adriana Dutra Tholl, apresentado ao Programa de PósGraduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina – PEN/UFSC, em
fev/2015, orientado pela Professora Dra. Rosane Gonçalves Nitschke, vinculado ao Laboratório
de Pesquisa, Tecnologia e Inovação em Enfermagem, Quotidiano, Imaginário, Saúde e Família
de Santa Catarina - NUPEQUISFAM-SC.
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Ao se compreender o quotidiano das pessoas com lesão medular (LM) e de suas
famílias, com seus limites e as potências na adesão à reabilitação, observou-se por meio das
entrevistas individuais, que um dos limites na adesão à reabilitação e ressocialização era a falta
de um espaço de convivência para que estes pudessem trocar experiências e se fortalecerem na
caminhada. Ao se validar os dados com os participantes da pesquisa por meio de duas oficinas,
uma com as pessoas com LM e outra com as famílias, sugeriu-se que fosse dada continuidade
às oficinas mantendo encontros mensais (THOLL, 2015).
A Gerência do Centro de Reabilitação, que ao reconhecer a importância desta atividade
no processo de reabilitação e ressocialização dessas pessoas e famílias, decidiu por integrar o
GALEME ao Programa de Reabilitação da Instituição, na qual é desenvolvido até a presente
data e conduzido pelas autoras deste relato de experiência, vinculados aos projetos: Projeto de
Extensão: “GALEME - Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular: reabilitando e
contribuindo para a inserção social no quotidiano” e ao Projeto de Iniciação Científica
PIBIC/CNPq: “O quotidiano da pessoa com lesão medular pós-programa de reabilitação no
estado de Santa Catarina”.
O GALEME se apoia na premissa de que a convivência entre iguais por meio de
atividades em grupo é uma expressão da Promoção da Saúde, permite o encontro de diferentes
pessoas, crenças, valores e culturas, nos quais as pessoas se identificam na fala do outro, em
uma dinâmica que possibilita falar, escutar, refletir e aprender sobre viver em outro ritmo,
envolvendo aspectos ligados ao reconhecimento, aceitação e adaptação ativa às novas
condições de saúde, à identificação de fatores de risco, ao cultivo de hábitos e atitudes que
promovam consciência para o autocuidado, primando por melhor qualidade de vida (THOLL
et al., 2016).
Ao que se refere às ações de saúde contínuas às pessoas com lesão medular, têm-se
como aliada as Diretrizes da Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência e a Portaria
793/2012 que, em parceria com o Ministério da Educação, recomendam a inclusão de
componentes curriculares nos cursos de graduação das profissões na área da Saúde, enfocando
a prevenção, atenção e reabilitação às pessoas com deficiência, o fomento de projetos de
pesquisa e extensão nesta área do conhecimento, a qualificação de recursos humanos e a
reorganização dos serviços (BRASIL, 2012).
1.3 Participantes da pesquisa
Tendo em vista o objetivo da pesquisa, foram incluídas 04 participantes, sendo: duas
gestantes cadeirantes que experenciavam a primeira gestação e dois membros da família
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(esposo e amiga), que frequentavam um Centro Especializado de Reabilitação, entre os meses
de abril e agosto de 2019.
Tabela 1 - Caracterização das participantes
Codinome
Idade
G1
23
G2
36
F1-G1
24
F2-G2
40
Parentesco
Escolaridade
Estado Diagnóstic
civil
o
-
3° completo
União
estável
Paraplegia - 38 semanas/Cesária
sequela LM
-
Ensino Médio União
Completo
estável
Paraplegia - 38 semanas/Cesária
sequela
Mielomenin
gocele
Pai
Amiga
Ensino Médio União
Completo
estável
Ensino
Fundamental
Completo
União
estável
Interrupção da
gestação/tipo parto
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Fonte: Elaborado pelos autores.
1.4 Coleta dos dados
Inicialmente, foi feito o planejamento de realizar quatro oficinas, a partir das
necessidades relatadas pelas gestantes, além do acompanhamento no domicílio, visando
identificar possíveis necessidades de orientação nos cuidados com o recém-nascido, bem como
adaptações domiciliares. Entretanto, em virtude do período avançado de gestação das
cadeirantes e com a interrupção da gravidez por complicações gestacionais associadas à
deficiência física, foram realizadas duas oficinas, com duração de quatro horas cada.
As oficinas foram baseadas em Nitschke, pela possibilidade de integração e conjunção
de estratégias sensíveis no processo de pesquisar e cuidar, sendo constituídas por três
momentos, conforme Fernandes, Alves e Nitschke (2008): Relaxamento de Acolhimento momento em que é preparado o ambiente, buscando torná-lo acolhedor, sendo, na sequência,
realizada uma técnica de relaxamento; Atividade Central - momento em que se apresenta a
temática a ser trabalhada; Relaxamento de Integração – momento este que se abre espaço para
que os participantes expressem seus sentimentos em relação à atividade desenvolvida.
Os dados foram registrados em Diário de Campo, com reflexões acerca das falas das
gestantes e suas famílias, bem como das observações das pesquisadoras. As oficinas, também,
foram registradas com fotografias e filmagem com o consentimento dos participantes.
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1.4.1 Oficina 1 - Conectando-se com o bebê
Nesta oficina, participaram duas gestantes e dois membros da família (pai (F1-G1) e
amiga (F2-G2)). Inicialmente, foi realizada uma roda de apresentação pelo simbolismo dos
ciclos, dos movimentos de recomeços e renovações, permitindo aos participantes expressar seus
sentimentos e emoções. No segundo momento, os participantes foram convidados a se deitar
em colchonetes, em um ambiente acolhedor (penumbra e aromaterapia), ao som da música “9
meses - oração do bebê”, sendo realizado uma técnica de relaxamento, envolvendo a respiração
e o toque, estimulando as gestantes e os familiares a se conectarem com o seu bebê. Realizouse massagem terapêutica no couro cabeludo. No terceiro momento, os participantes
expressaram seus sentimentos em relação à técnica de relaxamento, posteriormente o
fechamento desta oficina se deu com um lanche integrativo.
1.4.2 Oficina 2 - Cuidados no período gravídico-puerperal e com o recém-nascido
Nesta oficina participou apenas uma das gestantes, pois a outra gestante estava em
repouso absoluto. Os familiares não participaram desta oficina por não terem sido liberados das
suas atividades laborais. No primeiro momento, abriu-se espaço para a gestante relatar como
estava seu quotidiano. Posteriormente, foi realizada uma exposição teórica sobre os cuidados
no período gravídico-puerperal, abordando as alterações físicas e emocionais na gestação, e a
rede de atenção à gestante, conduzido por uma Fisioterapeuta do Centro de Reabilitação. Na
sequência, realizamos uma oficina teórico-prática sobre os cuidados com o recém-nascido,
abordando os aspectos de higiene, conforto e adaptações no domicílio, conduzido por uma
Enfermeira. No terceiro momento, a participante expressou seus sentimentos, expectativas e
dúvidas sobre o momento vivido e foi encerrada a oficina com um lanche integrativo.
1.5 ASPECTOS ÉTICOS
O relato da experiência seguiu os preceitos éticos referente à pesquisa, conforme a
Resolução n° 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, que dispõe sobre a Pesquisa com
Seres Humanos, e que preserva os princípios bioéticos da autonomia, não maleficência,
beneficência e justiça. Todos os participantes aceitaram participar da atividade e autorizaram o
uso do material impresso, das filmagens e fotografias registradas nas oficinas para fins
acadêmicos e científicos.
Além das recomendações da Resolução n° 466/2012, buscamos expressar nosso
compromisso social, enquanto enfermeira, pesquisadora, estudantes e membros de uma
sociedade, ressaltando o respeito às diferenças nas relações humanas.
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Os participantes tiveram seu anonimato garantido e são reconhecidos pela letra (G) de
Gestante e (F) de família, seguida do número cardinal na ordem em que aconteceram as falas.
2. DESENVOLVIMENTO
Neste momento, buscou-se refletir sobre o estigma da mulher cadeirante que se torna
gestante, seus sentimentos e enfrentamentos no processo gravídico-puerperal e a influência das
barreiras atitudinais e arquitetônicas no quotidiano.
2.1 Processo gravídico-puerperal da mulher cadeirante
De acordo com os Arts. 6° e 8°, ambos da Lei n° 13.146 de 06 julho de 2015 (Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência): “as pessoas com deficiência podem casar e
construir uma união estável; exercer direitos sexuais e reprodutivos; ter o direito de decidir
sobre o número de filhos e de ter acesso às informações adequadas sobre reprodução e
planejamento familiar; conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória. E é
dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade,
a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à
maternidade”.
No contexto Político Nacional de Saúde, a pessoa com deficiência é um cidadão exposto
às mesmas doenças e agravos comuns que acometem os demais, necessitando, portanto, de
outros tipos de serviços além daqueles estritamente ligados à sua deficiência. A assistência à
saúde da pessoa com deficiência deverá se estender para além das instituições específicas de
reabilitação, devendo-lhe ser assegurado o atendimento na rede de serviços, nos diversos níveis
de complexidade e de especialidades médicas (BRASIL, 2009).
Mesmo diante de Leis que garantem o direito à reprodução das pessoas com LM, a
sociedade enxerga essas pessoas como incapazes para esta função. A maioria das pessoas
acredita que cadeirantes não tem vida sexual ativa, e que tão pouco poderiam ser mães. Além
do tabu sobre a sexualidade das pessoas com deficiência física, existe o desconhecimento sobre
a capacidade dessas mulheres de gerar e criar (ZAGO, 2010).
As mulheres deficientes enfrentam dificuldades na maternidade, na medida em que
habitam um corpo que destoa dos padrões estéticos vigentes e enfrentam a descrença da
sociedade de que possa corresponder às expectativas de gênero, como assumir os papéis de
cuidadora, esposa e mãe (NICOLAU et al., 2013). As mulheres com deficiência têm seus
direitos violados, principalmente os direitos sexuais e reprodutivos. Tendo seus corpos
controlados, forçados à esterilização precoce, à abusos sexuais e ao aborto. Também tendo que
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passar por situações onde os profissionais da saúde às estimulam ao aborto, mesmo quando a
gravidez é desejada (STEFFEN, 2017).
Algumas famílias acreditam que as mulheres deficientes são dependentes e
incapacitadas, levando-as a desestimular suas potencialidades, condicionando-as às atividades
domésticas simples, tidas como próprias do gênero feminino, principalmente quando
apresentam limitação de origem congênita ou adquirida nos primeiros anos de vida (NICOLAU
et al., 2013).
Entretanto, pode-se dizer que a capacidade de gestar é considerada por qualquer mulher,
independente se esta é ou não uma deficiente, um fato extremamente significativo, tanto do
ponto de vista físico/fisiológico quanto do emocional e social (CARVALHO et al., 2010).
Ao se buscar conhecer os sentimentos vivenciados pelos participantes deste estudo sobre
a chegada do bebê, observou-se que os sentimentos são semelhantes aos vividos por mulheres
e famílias que vivenciam o processo gravídico-puerperal:“Compaixão (G1); Paixão (F1-G1);
Alegria (G2); Amor (F2-G2)
A gestação normal inspira cuidados preventivos para garantir a boa saúde maternoinfantil, entretanto, quando se trata de uma mulher cadeirante, esses cuidados devem
contemplar os fatores de interferência que a deficiência pode exercer sobre a gestação
(CARVALHO et al., 2010).
A assistência ao pré-natal é um importante componente de atenção à saúde das mulheres
no período gravídico-puerperal, uma vez que as práticas realizadas rotineiramente durante essa
assistência estão associadas a melhores desfechos perinatais.
As gestantes cadeirantes participantes deste estudo referem que são bem acolhidas pelos
profissionais de saúde, têm prioridades nos atendimentos ambulatoriais, nos exames de imagem
e de rotina, mas que as orientações específicas para sua condição são aquém das suas
necessidades, como se percebe nos relatos abaixo:
“Eu fui bem tratada pelos profissionais, sempre tive prioridade de
atendimento, principalmente nos exames, mas não sabem orientar sobre os
cuidados específicos da minha deficiência... aí fica difícil!” (G2)
“Construir vínculo é difícil, as informações daqui (atenção básica), não batem
com a de lá (maternidade), são queridos comigo, mas não sabem me
responder, preciso vir buscar com vocês (centro de reabilitação) e isso não é
bom (G1)”
A falta de vínculo entre os serviços que prestam a assistência pré-natal e ao parto é outro
problema identificado, resultando na peregrinação da gestante em trabalho de parto na busca de
uma vaga para internação, trazendo riscos adicionais à saúde da parturiente e do recém-nato.
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Destacamos aqui a importância da atuação da enfermagem no cuidado à gestante, nas
orientações direcionadas que fortalecem a construção de vínculos no processo gravídicopuerperal. Independente do risco que a gestante possa apresentar, o cuidado de enfermagem é
ferramenta fundamental para a sua assistência, de forma individualizada sob um olhar holístico
e humanizado, para a construção de um cuidado compartilhado com a equipe multi e
interdisciplinar, bem como, com a mulher e sua família. A enfermagem pode contribuir
positivamente para a manutenção do vínculo materno-fetal e a diminuição de sentimentos
negativos, estimulando a compreensão das alterações fisiológicas e emocionais que a gravidez
proporciona (LIMA, 2014).
Neste pensar, o estudo de Ramos et al., (2018), reitera que a participação do enfermeiro
no processo gravídico-puerperal se faz necessária para o fortalecimento das ações realizadas
durante o seguimento das consultas, visando a promoção da saúde e contribuindo para a garantia
dos direitos dessas mulheres.
Segundo recomendações do Ministério da Saúde, a assistência ao pré-natal deve ser
realizada por meio do acolhimento, que implica a responsabilização pela integralidade do
cuidado a partir da recepção da gestante com uma escuta qualificada. Realização de práticas
educativas e preventiva, abordando ao aleitamento materno, importância do acompanhamento
pré-natal, da consulta do puerpério, do planejamento familiar, direitos da gestante e do pai, os
riscos do consumo de álcool, tabagismo e outras drogas. Além da classificação do risco
gestacional (em toda consulta) e encaminhamento, quando necessário, ao pré-natal de alto risco
(BRASIL, 2012).
De acordo com Viellas et al., (2014), estudos nacionais de abrangência local têm
demonstrado a existência de falhas na assistência pré-natal, tais como dificuldades no acesso,
início tardio, número inadequado de consultas e realização incompleta dos procedimentos
preconizados, afetando sua qualidade e efetividade.
Para as gestantes cadeirantes, as barreiras atitudinais e arquitetônicas extrapolam as
dificuldades de acesso, são excludentes e ressaltam as limitações impostas pela deficiência.
Referem dificuldades de acesso ao pré-natal pela inacessibilidade dos Centros de Saúde, como
a presença de degraus, macas altas, impossibilitando que a transferência seja realizada pela
própria cadeirante, consultórios sem balança para cadeirantes, grupos de pré-natal realizados
em locais com escadas, além do encaminhamento tardio ao médico obstetra de alto risco. Nas
maternidades, as cadeirantes referem que o banheiro não é acessível, as portas são estreitas e a
cadeira de rodas de uso pessoal não entra, a cadeira de banho encontra-se em condições de uso
e de higiene precária, além da escassez de estacionamento:
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O centro de saúde não é acessível, já na chegada encontro um degrau e não
consigo chegar sozinha, preciso da ajuda de alguém. Não posso me pesar
porque não tem balança. Na maternidade, a cadeira de banho não entra no
banheiro, é suja e em péssimas condições de uso, tive que tomar banho na
cama, além de que não tem lugar para estacionar. (G1)
As macas são altas, nem que eu fosse a mulher maravilha em transferência eu
conseguiria passar para a maca. Ficamos na dependência de alguém nos
ajudar. E quando tem grupo de gestante tem escada... Demoram muito para
encaminhar para o pré-natal de alto risco. (G2)
As oficinas possibilitaram um processo educativo e reflexivo. As gestantes cadeirantes
puderam se apropriar de conhecimento sobre os seus direitos básicos constitucionalmente
previstos, tornando-se mais críticas frentes às barreiras arquitetônicas e atitudinais, bem como
(re)aprender sobre os cuidados no período gravídico-puerperal e se familiarizar com os
cuidados com o recém-nascido por meio da oficina teórico-prática. As gestantes trocaram
experiências, saíram dos encontros com solicitações a serem feitas aos profissionais que as
assistiam. As famílias por sua vez, colocaram-se como parte do processo, sendo uma rede de
apoio importante e principal para as gestantes (Nota Reflexiva).
Já no domicílio, após o nascimento dos bebês, constatou-se por meio de visita
domiciliar, que os primeiros quinze dias no domicílio foram muito difíceis devido às limitações
impostas pela deficiência, gerando a necessidade de que membros da família assumissem os
cuidados com os bebês. Todavia, os ajustes “internos e domiciliares” foram realizados e o
desejo do “querer viver o processo de cuidar do filho”, fez com que as mesmas assumissem os
cuidados com os bebês, dentro das suas possibilidades.
É tudo novo, mas a gente vai aprendendo, adapta aqui e ali. Preciso que
alguém segure para eu lavar o [...] Preciso de ajuda! Mas consigo cuidar
dele[...] Não amamento porque tomo muitas medicações. (G2)
Os primeiros 15 dias é uma provação muito difícil, alguém tem que fazer tudo,
me sinto deficiente. Depois que consegui chegar perto dele [...] além de ter
que adaptar a minha rotina e a casa para ele. (G1)
O nascimento de um bebê é um acontecimento novo para a mulher e demanda
competências para o cuidado. Para a mulher cadeirante, além da competência para o cuidado, é
preciso uma rede de apoio que esteja próxima e disponível para auxiliá-la no cuidado com o
bebê. As participantes do estudo relataram dificuldades no processo de cuidar, todavia, são as
dificuldades associadas às implicações decorrentes da deficiência física que as tornam
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“deficientes” no cuidado com o bebê. Neste pensar, ressalta-se a importância de um efetivo
acompanhamento da rede de atenção no domicílio dessas mulheres e famílias.
Para as pesquisadoras, o acompanhamento dessas mulheres e famílias não se esgota com
o desenvolvimento deste estudo, tem-se a finalidade de apoiá-las por meio do GALEME.
2.2 O (des)cuidado dos profissionais da saúde
No Brasil, a política desenvolvida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) vem primando
pela prevenção e promoção da saúde da população. Em franco processo de consolidação, o SUS
vem se apoiando nos princípios doutrinários: universalidade, equidade, integralidade; e
organizativos: descentralização, resolutividade, regionalização, hierarquização e participação
popular (BRASIL, 2010). Contudo, esse sistema apresenta fragilidades no que concerne àqueles
segmentos sociais mais vulneráveis, a exemplo daquele constituído pelas pessoas com
deficiência.
Estudo recente, que contou com a participação de 122 profissionais de saúde, atuantes
em 20 Unidades Básicas de Saúde, revelou dificuldade em se conseguir concretizar os
princípios preconizados pelas políticas de saúde voltadas às pessoas com deficiência. Esses
dados são preocupantes, visto que a legislação brasileira direcionada a esta população entrou
em vigor há sete anos, poucas mudanças foram realizadas para atender as necessidades desses
usuários. Cabe ressaltar a importância do aprimoramento técnico e científico dos profissionais
de saúde, com o objetivo de fornecer medidas que apoiem os usuários e sua rede de apoio, a
alcançar o equilíbrio e bem-estar, e melhorar a qualidade de vida. O número de pessoas com
deficiência vem crescendo consideravelmente, e o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde
é permeado por dificuldades, apesar da existência de uma Política Nacional (SILVA et al.,
2017).
É possível constatar que as diretrizes dessa política não têm sido suficientes para garantir
os direitos das pessoas com deficiências, pois, ainda podemos verificar o despreparo das
equipes de saúde no acolhimento e assistência desses usuários, e ainda problemas relacionados
à infraestrutura inadequada. O atual contexto social exige formar um profissional mais atento
às necessidades dos grupos isolados, que saiba como estabelecer um elo importante de
comunicação entre ele e o grupo especial, que também compõe a sociedade, garantindo
plenamente o atendimento de suas necessidades dentro do setor de saúde (SILVA et al., 2017).
A falta de preparo dos profissionais no cuidado à pessoa com deficiência se apresenta
nos diferentes contextos, incluindo, também, a assistência à mulher cadeirante no processo
gravídico-puerperal, como se mostra nos relatos das participantes:
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É muita falta de informação, não sabem esclarecer as dúvidas e reconhecem a
falha deles e do serviço. (G1)
É visível o despreparo deles... isso gera insegurança, minha sorte são vocês.
Quando preciso corro para cá (Centro de Reabilitação). (G2)
O estudo de Lima (2014) reforça este aspecto, quando as gestantes cadeirantes
participantes do estudo afirmam que para muitos profissionais de saúde foi uma surpresa
constatar a falta de preparo para lidar com a gestação da mulher cadeirante e a falta de acesso
adequado aos serviços.
A falta de formação dos profissionais de saúde frente à assistência às mulheres
cadeirantes é preocupante e precisa ser mais discutido em sua formação acadêmica. Esses
profissionais, com formações e concepções diversificadas podem deparar-se com uma gestante
que tem necessidades de cuidados próprios à sua condição de cadeirante, uma vez que os
cuidados e as expectativas em relação à sua gestação precisam ser abordados de maneira
adequada (LIMA, 2014).
Neste sentido, o atual cenário brasileiro nos indica que é preciso fomentar currículos
que possibilitem abordar o tema deficiência e reabilitação, possibilitando a reorganização e
integração dos serviços de saúde, sobretudo, fortalecendo os princípios e diretrizes do SUS. A
temática deficiência e reabilitação envolve o domínio de um conhecimento pouco abordado em
seus diversos níveis de formação profissional, de forma a enfocar a orientação no autocuidado,
buscando a autonomia de decisão e de execução da pessoa com deficiência, assim como
envolver familiares no processo de cuidar nos diferentes níveis de atenção à saúde (THOLL,
2015).
Preparar os profissionais da saúde para o cuidado às pessoas com deficiência confere
um posicionamento frente às iniquidades em saúde, de (co)responsabilidade no processo
educativo e emancipatório, ampliando a consciência de cidadania das pessoas com deficiência,
sobretudo acrescentando qualidade de vida para estas pessoas (SILVA, 2011; THOLL et al.,
2016).
A reabilitação, enquanto processo de desenvolvimento de potencialidades das pessoas
com incapacidades e deficiências, é uma expressão da Promoção da Saúde, busca o movimento
pela vida, caracterizado pela autonomia nas atividades da vida diária, estimulando as pessoas
pelas suas potencialidades, identificando recursos próprios para seguir em frente, despertando
a importância para o autocuidado. Ainda, tem o intuito de minimizar as complicações e, com
isso, diminuir reinternações, aumentar a expectativa de vida pós-lesão, facilitar a reinserção do
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indivíduo na sociedade, melhorando assim, a qualidade de vida dessas pessoas, primando pelo
envelhecimento ativo. Entretanto, a incorporação das ações de reabilitação em rede está aquém
do estabelecido pelas políticas de saúde do SUS (VERA, 2012; THOLL, 2015).
Este estudo apresenta como limitação uma amostragem intencional ao selecionar as
gestantes cadeirantes vinculadas a um cenário que foi pré-determinado. Outro fator limitante
foi o fato de as gestantes já estarem com idade gestacional avançada e necessitarem interromper
a gestação pelas complicações associadas à deficiência física, comprometendo o
desenvolvimento do planejamento inicial do grupo de gestante inclusivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A vivência aqui apresentada constitui um desafio para os profissionais da saúde que
prestam assistência pré-natal, sobretudo para os enfermeiros, considerando que acolher as
mulheres cadeirantes no processo gravídico-puerperal e proporcionar um cuidado que atenda
às suas necessidades pode ser uma tarefa complexa, uma vez que não está prevista nos
currículos de graduação. Por outro lado, pode ser gratificante à medida que possibilite a
reelaboração da prática profissional e que percebamos a sua aplicabilidade no quotidiano dessas
pessoas por meio do seu envolvimento no processo de reabilitação.
Dessa forma, verifica-se que as diretrizes das políticas não têm sido suficientes para
garantir todos os direitos das pessoas com deficiências, pois as barreiras arquitetônicas não
possibilitam a acessibilidade das gestantes cadeirantes aos serviços de saúde, influenciando no
seu quotidiano. A expectativa levantada pelos estudos buscados e pela vivência é que as
diferentes áreas da saúde consigam ter um olhar voltado às suas ações em sincronia para um
melhor atendimento das gestantes cadeirantes nos três níveis de atenção à saúde.
Faz-se necessário possibilitar às mulheres cadeirantes no processo gravídico-puerperal
uma assistência livre das barreiras arquitetônicas e atitudinais, garantindo-lhes os direitos
básicos constitucionalmente previstos. Com relação aos profissionais da saúde, é indispensável
buscar novos paradigmas, a fim de se promover uma assistência à saúde de maneira adequada
e humanizada. Somente assim, será possível se falar de fato em inclusão social para esta parcela
da população.
Neste sentido, torna-se premente uma sensibilização dos gestores e profissionais de
saúde quanto às implicações das barreiras arquitetônicas e atitudinais no quotidiano das
gestantes cadeirantes, considerando que estas barreiras caracterizam-se uma violência
institucional pelo desrespeito a direitos básicos previstos na legislação brasileira.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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OS DESAFIOS DA CIÊNCIA JURÍDICA NO COMBATE À VIOLÊNCIA
OBSTÉTRICA CONTRA MULHERES INDÍGENAS
Ana Beatriz Cruz Nunes1
Patrícia Borba Marchetto2
RESUMO
No Brasil, estima-se que uma a cada quatro mulheres sofre violência obstétrica. Contudo, o
tema da violência obstétrica adquire contornos particulares quando se busca discutir a questão
através de um recorte étnico em razão da construção histórica da sociedade brasileira. Assim,
desde um ponto de vista intercultural e da teoria feminista interseccional, o presente trabalho
buscará analisar em que medida a violência obstétrica trata-se de uma modalidade de violência
de gênero, apresentando uma dimensão étnica quando analisada a formação histórica e cultural
da sociedade brasileira. Além disso, buscar-se-á compreender em que medida a proteção contra
a violência obstétrica está intimamente relacionada à efetivação dos direitos humanos, sexuais
e reprodutivos das mulheres, bem como quais são os desafios dos aplicadores do direito no
combate às formas estruturais de violência contra a mulher, especialmente no que tange à
proteção da mulher indígena contra a violência obstétrica. A metodologia utilizada é a de
pesquisa qualitativa e exploratória sobre o tema, através do levantamento e análise da
bibliografia e dos dados estatísticos sobre a violência obstétrica no Brasil, bem como de estudo
de caso para a compreensão da dimensão étnica do parto e gestação. As conclusões alcançadas
apontam para a necessidade de um aprofundamento do estudo jurídico-teórico e dogmático
sobre o tema.
Palavras-chave: Violência obstétrica. Mulheres indígenas. Direitos humanos.
INTRODUÇÃO
Recentemente, a discussão acerca da legitimidade do termo “violência obstétrica” esteve
em voga no cenário jurídico-político brasileiro em razão de despacho emitido pelo Ministério
da Saúde no dia 03/05/2019 defendendo a abolição do termo de seus documentos oficiais de
políticas públicas. Embora as Recomendações nº 29/2019 do Ministério Público Federal e nº
5/2019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos tenham reiterado a legitimidade do termo,
recomendando sua utilização; em resposta às recomendações mencionadas, o Ministério da
Saúde, no ofício nº 296/2019, manteve a decisão de não utilizar o termo em suas normas e
1
Estudante. Mestranda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, Campus
de Franca/SP. Projeto de Pesquisa de Mestrado financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível
Superior
(CAPES).
E-mail:
ana_nunes@yahoo.com.br.
Link
do
lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K8720352U0.
2
Docente. Doutora em Direito (2001) pela Universidade de Barcelona - Espanha. Docente do Departamento de
Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras (FCLAR) da UNESP, Campus de Araraquara/SP e do
Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP, Campus
de
Franca/SP.
E-mail:
patricia.marchetto@unesp.br.
Link
do
lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4761740P2.
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políticas públicas. O ocorrido recolocou na agenda jurídico-política a relevância do debate da
violência obstétrica enquanto forma de violência de gênero.
Segundo estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo (2010) uma em cada quatro
mulheres brasileiras sofre violência obstétrica, que pode ser expressa de maneira física, através
do tratamento violento, doloroso ou contrário ao consentimento da parturiente ou gestante;
verbal, através de tratamento grosseiro, ameaças ou humilhação; através da negligência ou
discriminação na assistência ou no atendimento médico-hospitalar; através do abuso ou
negativa de administração de medicamentos à parturiente; bem como através da utilização
inadequada de tecnologias e procedimentos desnecessários ou contrários às evidências
científicas, durante a gestação, parto, pós-parto e puerpério (SENA, 2016).
Contudo, quando se busca analisar os números da violência obstétrica contra mulheres
indígenas, os mesmos são insuficientes em razão das diversas particularidades que envolvem o
debate étnico sobre o tema. O próprio estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo (2010),
que recolheu dados de 25 hospitais públicos e privados em 176 municípios brasileiros,
reconhece que os números da violência obstétrica contra mulheres indígenas são insuficientes
para a análise do fenômeno.
De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
coletados no Censo Demográfico de 2010, a população indígena brasileira é estimada em 817
mil indígenas, que representa algo em torno de 0,4% da população total do país. Conforme os
relatórios do Censo 2010 do IBGE, os dados sobre a população indígena no país foram
investigados a partir do pertencimento étnico e de critérios de identificação internacionalmente
reconhecidos, como a língua falada no domicílio e a localização geográfica, bem como a
autodeclaração de acordo com aspectos como tradições, costumes, cultura e antepassados
(IBGE, 2010).
Em razão da dimensão étnica, quando se analisa o nascimento e parto das mulheres
indígenas, deve-se levar em conta que estes eventos não ocorrem exclusivamente como um
processo fisiológico, pois possuem um significado cultural (JORDAN, 1993 apud MENESES,
2012). Sendo assim, deve-se ter em mente que tais eventos possuem um caráter particular em
cada sociedade, podendo o parto ser caracterizado como um evento biossocial significado
culturalmente (MENEZES, 2012).
Portanto, tendo em vista a relevância social e científica do tema abordado, que envolve
não apenas violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, mas também a regulação
dos corpos pelo Estado, o interesse social da sociedade civil e dos movimentos sociais, a
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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responsabilidade civil e penal médica, entre outros aspectos; verifica-se a urgência do estudo
jurídico-teórico sobre o tema.
Assim, desde um ponto de vista intercultural e da teoria feminista interseccional, o
presente trabalho buscará analisar a dimensão étnica da violência obstétrica a partir da
compreensão da interseccionalidade entre a violência de gênero, territorialidade e colonialidade
na América Latina. A partir dessa análise, o presente trabalho buscará compreender em que
medida a proteção das mulheres indígenas contra a violência obstétrica está relacionada à
efetivação dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos; bem como em que medida a proteção
contra a violência obstétrica envolve a compreensão do caráter estrutural da violência na
América Latina. Por fim, buscar-se-á apontar os desafios da proteção jurídica sobre o tema. A
metodologia utilizada é a de pesquisa qualitativa e exploratória, através do levantamento e
análise da bibliografia e de dados estatísticos sobre a violência obstétrica no Brasil, bem como
de estudo de caso para a compreensão da dimensão étnica do parto e gestação.
No primeiro tópico, serão apresentados os dados da pesquisa exploratória sobre a
violência contra a mulher no Brasil para, no segundo tópico, demonstrar a dimensão estrutural
da violência contra a mulher na sociedade brasileira.
No terceiro tópico, buscar-se-á compreender, através da teoria decolonial e
interseccional, em que medida a violência obstétrica é característica do processo colonizatório
latinoamericano, demonstrando como os marcadores sociais da diferença, especialmente de
etnia, impactam no não reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres
indígenas.
No quarto tópico, buscar-se-á demonstrar a relevância da conceituação e consolidação
do termo “violência obstétrica” no âmbito jurídico-normativo e jurisprudencial.
No último tópico, será apresentado o estudo de caso sobre a experiência de gestação e
parto das mulheres guarani-mbyá na cidade de São Paulo para que seja realizada a projeção do
estudo teórico, exploratório e de caso sobre a realidade da violência obstétrica contra mulheres
indígenas no contexto brasileiro atual.
A título de conclusão, verifica-se a urgência da compreensão da violência obstétrica em
sua totalidade a partir de um recorte decolonial, interseccional e étnico na análise jurídica sobre
o tema.
Por fim, reitera-se a contribuição social do estudo apresentado não apenas no que tange
à atualidade da temática abordada, como também na ampliação da visibilidade e do combate
dessa modalidade de violência de gênero que acomete um número expressivo de mulheres
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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brasileiras, incentivando as instituições e o aplicadores do direito à debaterem o tema em sua
totalidade.
1. OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL
Segundo dados da pesquisa de opinião pública “Mulheres brasileiras e gênero nos
espaços públicos e privados” de agosto de 2010, realizada pela Fundação Perseu Abramo, cerca
de uma em cada cinco mulheres brasileiras (18%) já sofreram algum tipo de violência por parte
de algum homem, conhecido ou desconhecido. Segundo as respostas coletadas, as violências
sofridas variam desde ameaças ou assédio, à violência verbal, física, psíquica, sexual e até
mesmo controle e/ou cerceamento, entre outros. Diante das 20 modalidades de violência
elencadas na pesquisa, duas em cada cinco mulheres (40%) já teriam sofrido alguma delas ao
menos uma vez na vida, sobretudo controle ou cerceamento (24%), violência psíquica ou verbal
(23%) e ameaça ou violência física propriamente dita (24%).
Com uma taxa de 4,8 assassinatos em 100 mil mulheres, o Brasil está entre os países
com maior índice de homicídios femininos, ocupando a quinta posição em um ranking de 83
nações, segundo dados do “Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil”.
Segundo a referida pesquisa, 8 milhões de pessoas sofreram algum tipo de violência em
2014 no Brasil. Do total, 45,9% pertenciam ao sexo masculino e 54,1% ao feminino. Isto
significa que 5,7% das mulheres brasileiras maiores de 18 anos sofreram algum tipo de
violência de pessoas conhecidas ou desconhecidas no ano de 2014. Sendo assim, a cada dia de
2014, 405 mulheres demandaram atendimento em uma unidade de saúde, por alguma violência
sofrida (WAISELFISZ, 2015).
De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN)
do Ministério da Saúde, no ano de 2014 foram atendidas pelo SUS um total de 85,9 mil meninas
e mulheres vítimas de violência exercida por pais, parceiros e ex-parceiros, filhos ou irmãos.
Agressões de tal intensidade que demandaram atendimento médico. Assim, estima-se que um
total de 107 mil meninas e mulheres foram atendidas em todo o sistema de saúde do país em
2014 vítimas de violência doméstica (WAISELFISZ, 2015).
Recentemente, os dados do “Atlas da Violência” de 2019, demonstraram que houve um
crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017, com cerca de 13 assassinatos por
dia, levando à estimativa de que no referido ano cerca de 4.936 mulheres foram mortas,
registrando o maior número desde 2007.
Especificamente em relação à violência obstétrica, a pesquisa “Mulheres brasileiras e
gênero nos espaços públicos e privados” de 2010 também revelou que cerca de 25% das
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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mulheres entrevistadas afirmaram terem sofrido algum tipo de violência durante o atendimento
ao parto. Segundo o referido estudo, as queixas mais comuns foram: terem recebido exame de
toque de forma dolorosa (10%); negativas ou não oferecimento de algum tipo de alívio para a
dor (10%); gritos (9%); não receberam informações sobre algum procedimento (9%); tiveram
atendimento negado (8%) e ouviram xingamentos ou foram humilhadas (7%). Ao menos 23%
das entrevistadas ouviram frases humilhantes, como “não chora não que ano que vem você está
aqui de novo” (15%) ou, “na hora de fazer não chorou; não chamou a mamãe, por que está
chorando agora?” (14%), ou ainda “se ficar gritando, vai fazer mal para o seu neném; seu neném
vai nascer surdo”.
Segundo pesquisa realizada por Sena (2016), que objetivou descrever e analisar a
experiência de violência obstétrica em maternidades brasileiras a partir de relatos de mulheres
entrevistadas via internet identificando práticas consideradas por estas como violência
obstétrica, 83,3% das entrevistadas informaram terem sido desrespeitadas pelo médico obstetra;
50% afirmaram que foram desrespeitadas pelos enfermeiros e auxiliares de enfermagem; 30%
afirmam que foram desrespeitadas pelo anestesista; 13,3% referiram desrespeitos a partir de
pediatras; 10% afirmaram terem sido desrespeitadas pela consultora de amamentação; 6,7% se
sentiram desrespeitadas pela recepcionista da instituição; 3,3% afirmaram que foram
desrespeitadas pela doula e a mesma proporção referiu ter sido desrespeitada pela direção do
hospital.
A partir da pesquisa exploratória e estatística sobre o tema, a primeira conclusão
inequívoca é a que inexistem dados oficiais concretos e suficientes da violência obstétrica
contra as mulheres indígenas. Tal constatação evidencia a invisibilidade da dimensão étnica da
violência obstétrica nas pesquisas quantitativas e demonstra a importância do estudo teóricobibliográfico e de caso sobre o tema.
Ainda, ante os elevados índices da violência contra a mulher, verifica-se que, de fato, a
violência contra a mulher não é algo anômalo ou pontual, mas sim algo naturalizado pela
sociedade brasileira. A análise dos dados da violência obstétrica dentro do contexto observado
pelo levantamento estatístico demonstra que os mesmos refletem o quadro estrutural da
violência contra a mulher no Brasil.
Por fim, os dados da violência obstétrica evidenciam a naturalização e a habitualidade
desse tipo de violência nas maternidades brasileiras, sinalizando para uma realidade de
violência de gênero, abuso na atuação médica e violação dos direitos humanos, sexuais e
reprodutivos das gestantes, parturientes e puérperas. Frente a todos estes dados, faz-se mister o
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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estudo teórico das origens, razões e sentidos da violência contra a mulher na sociedade
brasileira.
2. A DIMENSÃO ESTRUTURAL DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
A colonização da América Latina em geral e do Brasil em específico teve como um de
seus elementos estruturais a dominação e repressão sexual. Sendo assim, é necessário
compreender que “a opressão sexual e a dominação colonial são as duas faces de uma mesma
repressão entrelaçada com os fios da expropriação do próprio território corpo” (CELANTANI,
2014, p. 48, tradução livre)3.
Ao analisarmos o quadro da violência de gênero na América Latina, verifica-se que a
mesma não pode ser compreendida como pontual, atípica ou anômala, pois “temos que perceber
a sistematicidade desta gigantesca estrutura que vincula elementos aparentemente muito
distantes da sociedade e aprisiona a própria democracia representativa” (SEGATO, 2016, p. 75,
tradução livre)4. Essa sistematicidade refletiu, historicamente, na realidade de exclusão das
mulheres indígenas do processo democrático de conquistas e proteção de direitos. Portanto,
para a autora, a dimensão de gênero traduz-se como a intensificação da violência que é
estrutural em nossa sociedade.
Sendo assim, para compreender as raízes históricas da violência obstétrica no Brasil é
necessário um passo largo no sentido da compreensão do caráter estrutural da violência contra
as mulheres dentro do projeto civilizatório da colonialidade-modernidade (QUIJANO, 1992)
compreendendo em profundidade a função da violência na organização das relações de gênero
na colonização da América Latina.
Historicamente, as mulheres indígenas sofrem diversas discriminações que resultam em
sua exposição à violação de direitos humanos em todos os âmbitos de suas vidas: civis,
políticos, econômicos, sociais, culturais, sexuais e reprodutivos, entre outros. Suas denúncias
de violação de direitos humanos foram, inclusive, fundamentais para a conceituação da
violência de gênero sob suas próprias perspectivas contribuindo para a compreensão da
centralidade da violência contra a mulher na América Latina (CEPAL, 2015).
No original: “la opresión sexual y la dominación colonial son las dos caras de una misma represión entretejida
con los hilos de la expropiación del propio territorio cuerpo” (CELANTANI, 2014, p. 48).
4
No original: “tenemos que percibir la sistematicidad de esta gigantesca estructura que vincula elementos
aparentemente muy distantes de la sociedad y atrapa a la propia democracia representativa” (SEGATO, 2016,
p. 75).
3
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Portanto, embora não haja estatísticas nacionais ou internacionais sobre os dados da
violência obstétrica contra mulheres indígenas, verifica-se que a compreensão do tema deve ser
abordada no contexto do racismo, colonialismo e patriarcado, em razão da especificidade com
a qual a interseccionalidade dos marcadores sociais da diferença e da violência atingem as
mulheres indígenas.
3. A VIOLÊNCIA
CONTRA
A MULHER NO
CENTRO
DO PROJETO
CIVILIZATÓRIO COLONIAL
Os corpos das mulheres e a repressão da sexualidade estiveram no centro do projeto
civilizatório próprio da colonização da América Latina, e sobre os corpos colonizados
historicamente atuaram uma série de instituições: a família, o Estado, o mercado, a comunidade,
a religião, entre outros (CAMPOS; OLIVEIRA, 2009). Assim, pensar a violência obstétrica
desde um viés étnico, requer pensar as mulheres indígenas como corpo político, pois sua
expressão não se situa apenas em relação ao ser individualmente considerado, mas também
vinculado integralmente ao lugar, ao social e ao espaço público (CAMPOS; OLIVEIRA, 2009).
Segundo Celantani (2014), compreender a história desde a perspectiva dos povos
indígenas implica em compreender a luta desses povos por seus territórios e pelo direito à uma
cultura própria. Portanto, compreender a realidade histórica das mulheres indígenas implica em
compreendê-las
desde de corpos que foram submetidos a repetidas tentativas de definição,
sujeição e controle para serem expulsos da racionalidade e transformados em
máquina para a reprodução. É pensar a partir do lugar que os corpos são, do
território corpo que resiste à ideia moderna de que as mulheres incorporam a
animalidade à derrotar, a falta de domínio de si e a a-historicidade, e que com
sua indisciplina construiu a possibilidade de uma alternativa ao sujeito
indivíduo universal (CELANTANI, 2014, p. 48, tradução livre)5.
Nesse sentido, compreender a violência obstétrica desde uma perspectiva étnico-racial
implica não apenas em reconhecer a interseccionalidade de classe, gênero e raça/etnia no âmbito
da violência que é estrutural nas sociedades latinoamericanas. Implica também em compreender
o caráter específico que a violência de gênero imprime nos corpos, na autonomia e na
territorialidade dos povos indígenas.
No original: “desde cuerpos que han sido sometidos a repetidos intentos de definición, sujeción y control para
ser expulsados de la racionalidad y convertidos en máquina para la reproducción. Es pensar desde el lugar que
son los cuerpos, desde el territorio cuerpo que se resiste a la idea moderna que las mujeres encarnan la
animalidad a derrotar, la falta de dominio de sí y la a-historicidad, y que com su indisciplina ha construido la
posibilidad de una alternativa al sujeto individual universal” (CELANTANI, 2014, p. 48).
5
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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A territorialidade pode ser compreendida enquanto uma concepção historicamente
definida de território, na medida em que os sujeitos e seus territórios são co-produzidos por
uma forma específica de organização social em um determinado momento histórico e através
de caracteres de pertencimento (SEGATO, 2016). A territorialidade, a autodeterminação e a
autonomia são centrais na luta dos povos indígenas, sendo as principais demandas desde que
estes passaram a exigir da comunidade dos Estados Nação seu reconhecimento como sujeito de
direito6.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) considera que a violência
obstétrica e espiritual também são formas de violência contra a mulher e,
devido ao papel singular das mulheres indígenas como líderes espirituais e
núcleos da reprodução da cultura indígena, a violência contra elas perpetrada
em diferentes contextos as prejudica no âmbito físico, cultural e espiritual
(OEA, 2017, p. 7).
É importante destacar que, de acordo com Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas,
o quadro de referência da autonomia demandada pelos povos indígenas
expressa-se no reconhecimento do direito à livre determinação, que supõe a
existência e o exercício de direitos coletivos, assim como o respeito às
instituições e sistemas de autogoverno dos povos indígenas [...] (CEPAL,
2015, p. 18).
A proteção dos direitos sexuais e reprodutivos constitui, ainda na atualidade, um dos
grandes desafios a serem enfrentados para a proteção dos povos indígenas. O “direito à saúde
dos povos indígenas deve ser entendido tanto em sua dimensão individual como coletiva, sendo
interdependente da realização de outros direitos humanos” (CEPAL, 2015, p. 77).
Assim, é necessário compreender que a proteção das mulheres indígenas contra
violência obstétrica implica, necessariamente, no reconhecimento das dimensões da autonomia
e da autodeterminação.
A autonomia, como expressão da livre determinação, permite adotar decisões
e instituir práticas próprias relacionadas com a cosmovisão, território
indígena, terra, recursos naturais, organização sociopolítica, administração da
justiça, educação, idiomas, saúde, medicina e cultura dos povos indígenas
(CEPAL, 2015, p. 19).
6
Os dois principais marcos da proteção dos direitos das mulheres indígenas foram a Convenção nº 169 da
Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989 que reconheceu pela primeira vez
como direitos os valores e práticas sociais, culturais, religiosos e espirituais próprios dos povos indígenas; e a
Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007, que reconheceu o direito desses
povos à livre determinação.
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Portanto, o estudo teórico sobre a dimensão civilizatória e colonial sobre a violência
obstétrica demonstra que a proteção jurídica do parto étnica e culturalmente adequado implica
no reconhecimento das práticas e cosmovisão tradicionais indígenas, bem como no
reconhecimento das implicações da territorialidade sobre os eventos de gestar e parir em
contextos pluriétnicos.
Ademais, a proteção e promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres indígenas
está estruturalmente vinculada à erradicação da violência, “pois nos determinantes sociais da
saúde o cruzamento das desigualdades étnicas e de gênero se expressa precisamente nesses
âmbitos [...] impactando o direito fundamental à vida” (CEPAL, 2015, p. 86).
4. A ATUALIDADE DO DEBATE JURÍDICO SOBRE O TEMA
A recente controvérsia acerca da legitimidade do termo “violência obstétrica” que esteve
em voga no cenário jurídico-político brasileiro, trouxe à tona a relevância do debate da
centralidade da violência de gênero enquanto forma de manutenção das estruturas de poder na
sociedade brasileira. O próprio estudo teórico sobre o tema da sugere que a autonomia e a
sexualidade das mulheres indígenas passam cada vez mais a serem objetos de regulação do
Estado, sendo possível verificar a hipótese de que este processo tem como objetivo a subjugação
dos referidos corpos às tecnologias e operações próprias do funcionamento social na atualidade,
nos termos do que Foucault (1988) conceituou como biopoder. Especialmente em relação aos
corpos selecionados pelos marcadores da diferença: os corpos femininos, negros, indígenas,
lésbicos, transexuais, pobres e marginalizados.
Dentro de todo esse contexto, os acadêmicos e operadores do direito cada vez mais são
instados a analisar, compreender e propor soluções sobre o fenômeno sociojurídico, político e
cultural da violência obstétrica.
Em meio à relativização do termo enquanto produto histórico de estudos e pesquisas
tradicionais e científicos sobre o tema, o Judiciário pode figurar como importante ator no
reconhecimento dos direitos das mulheres ou como perpetuador da violência obstétrica.
Portanto, faz-se mister o estudo e debate aprofundados sobre o tema em toda sua totalidade e
complexidade pela comunidade jurídica como um todo: pesquisadores, acadêmicos do direito,
aplicadores do direito, bem como dos movimentos sociais e da sociedade civil.
Sobre o tratamento jurisprudencial da violência obstétrica, a pesquisa de Nogueira
(2015), que analisou 148 julgados provenientes dos Tribunais de Justiça dos Estados de São
Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo, demonstrou que as decisões judiciais
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analisadas não reconheceram os danos e lesões sofridas pelas vítimas como violência obstétrica,
bem como não os associaram aos direitos sexuais, reprodutivos ou até mesmo como direitos
humanos e fundamentais das vítimas de tal violência.
Nogueira (2015) destaca que a pesquisa do termo “violência obstétrica” como palavrachave nas ferramentas de buscas dos sites dos referidos Tribunais não encontrou nenhum
resultado, apesar do termo ser amplamente utilizado pelos movimentos sociais de humanização
do parto e de estudiosos da área.
Portanto, verifica-se a importância da reivindicação da legitimidade do termo para a
descrição do que as entrevistadas na pesquisa de Sena (2016) e da Fundação Perseu Abramo
(2010) identificaram e denunciaram como violência obstétrica. A ampliação do debate e estudo
jurídico sobre o tema, especialmente quando levamos em conta a especificidade do caso das
mulheres indígenas vítimas de violência obstétrica, pode proporcionar a compreensão da
necessidade de reivindicação do termo pelos próprios aplicadores do direito.
5. O CASO DAS MULHERES INDÍGENAS GUARANI-MBYÁ DA REGIÃO
NOROESTE DA CIDADE DE SÃO PAULO/SP
Ante o estudo realizado, verifica-se a necessidade do estudo interdisciplinar e
interseccional da violência obstétrica para a devida compreensão da dimensão étnica do
fenômeno. Portanto, optou-se pela realização do estudo de caso das experiências de gestação e
parto das mulheres indígenas guarani-mbyá da região noroeste da cidade de São Paulo/SP para
a compreensão da forma como esse tipo de violência se expressa em contextos pluriétnicos.
Com base na pesquisa de Menezes (2012), que analisou as práticas de cuidado com as
gestantes, parturientes e puérperas de uma comunidade da etnia guarani-mbyá da região
noroeste da cidade de São Paulo através de entrevistas e estudo etnográfico, a investigadora
verificou que:
O sistema biomédico de atenção à saúde da mulher gestante, parturiente e
puérpera é um sistema cultural construído a partir da realidade social local.
Apesar de seu destaque e qualidades, tal sistema não é uma verdade universal
e absoluta. Seu destaque para a ciência e tecnologia de modo etnocêntrico –
excluindo outras formas e possibilidades terapêuticas – pode ser contestado a
partir do fato de que as evidências científicas para a gestação e parto são
ignoradas em detrimento da realização de procedimentos de rotina
(MENEZES, 2012, p. 76).
Ao entrevistar as mulheres guarani-mbyá, a investigadora analisou como estas mulheres
percebem o atendimento institucional na saúde e na assistência à gestação e parto, verificando
que
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reprodutivos V.4.
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As indígenas guarani-mbyá da periferia da região noroeste da cidade de São
Paulo, quando estão gestando seus bebês, convivem em uma pluralidade
terapêutica utilizando tanto recursos próprios de cuidados à saúde ao serem
cuidadas por pessoas da comunidade, como recursos mistos oferecido pelo
sistema de saúde, onde é preconizada uma assistência intercultural mesclando
aspectos da biomedicina e levando em conta fatores culturais da cosmologia
indígena. As falas das mulheres evidenciaram a grande importância de um
cuidado holístico para a sua Saúde (MENEZES, 2012, p. 76).
A partir dos relatos das mulheres guarani-mbyá, a investigadora percebeu que existe
uma série de procedimentos ancestrais e tradicionais que envolvem o parto e o puerpério dessas
mulheres, especialmente no que se refere ao enterro da placenta, à dieta diferenciada e a uma
série de rituais familiares que envolvem banhos especiais e mudança nos hábitos dos familiares,
que frequentemente não são observados no parto hospitalar das mulheres entrevistadas.
Assim, embora nas últimas décadas tenham sido implementadas diversas políticas
públicas para a proteção do parto humanizado e culturalmente adequado, especialmente
voltadas para a proteção da saúde reprodutiva dos povos indígenas, as mulheres indígenas ainda
vivenciam um quadro de expropriação de seus corpos e de sua autonomia quando se trata da
questão da violência obstétrica.
Embora, oficialmente, o Estado ainda seja ator principal no combate a violações de
direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres, com a crise do Estado moderno e com
o avanço conservador na América Latina, as condições de tutela de direitos e garantias
fundamentais pelo Estado brasileiro tornam-se mínimas, especialmente no que tange à
controvérsia em relação à compreensão da violência obstétrica enquanto violência contra a
mulher.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos aportes supramencionados, verificou-se que a violência obstétrica
apresenta-se como uma das dimensões da violência de gênero, na qual os marcadores sociais
da diferença, especialmente de gênero e etnia, impactam no não reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres indígenas.
Verificou-se, ainda, que a violência obstétrica, quando analisada sob a perspectiva
étnica, apresenta um viés de contrariedade aos direitos à autonomia e autodeterminação dos
povos indígenas em sentido coletivo. Portanto, a violência obstétrica contra a mulher indígena
carrega uma carga histórica dupla de produção e significação do controle totalitário de corpos
e territorialidade, sendo sua expressão um ato de reafirmação da condição de “não-sujeito”
universal dos povos indígenas e de dominação colonial em sentido amplo.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Isto porque, no âmbito dos direitos humanos, os direitos sexuais e reprodutivos abarcam,
para além de sua dimensão enquanto saúde reprodutiva, uma dimensão relacionada à luta das
mulheres por direitos e liberdades democráticas.
Com base no estudo sociojurídico e de análise de caso sobre o tema, a despeito da
ausência de dados oficiais sobre a violência obstétrica contra as mulheres indígenas, verificouse a realidade de alijamento e cerceamento dessas mulheres em relação a seus direitos humanos
fundamentais, sexuais e reprodutivos.
Em relação ao aspecto jurisprudencial e dogmático, verifica-se que a ciência jurídica
pouco se aprofunda nas questões estruturais que permeiam a violência de gênero.
Portanto, verifica-se como hipótese de superação do paradigma atual da violência contra
a mulher e, especificamente, da violência obstétrica contra as mulheres indígenas, a necessidade
de compreensão metodológica do fenômeno sociojurídico da violência obstétrica desde uma
perspectiva interseccional e decolonial do Direito.
Essa questão é fundamental no campo do método e da ciência do direito, pois a atuação
dos Tribunais de Justiça exerce papel fundamental enquanto mediador dos conflitos sociais. De
fato, na relação dialética entre a emancipação política e a emancipação humana o direito ainda
configura-se como ferramenta fundamental para garantir a conquista das condições materiais
necessárias à emancipação política das mulheres.
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pasta, que havia abolido termo de políticas públicas. Folha de S. Paulo. 10/junho/2019 às
21h49. Caderno Cotidiano. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/ministerio-diz-reconhecer-termo-violenciaobstetrica-mas-que-continuara-a-nao-usa-lo.shtml. Acesso em 21/08/2019.
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reprodutivos V.4.
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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DAS
MULHERES
Mainara Gomes Cândida Coelho1
Poliana Ribeiro dos Santos2
RESUMO
O presente estudo surgiu a partir do despacho de maio de 2019, do Ministério da Saúde do
Brasil (FEGRASGO, 2019), que vetou a utilização do termo violência obstétrica, gerando um
intenso debate por todo o país. Desse modo, o problema da presente pesquisa se resume em:
Como o Brasil percebe e lida com a violência obstétrica? A hipótese levantada é de que o país
não amadureceu a ideia de violência obstétrica como violação aos direitos humanos das
mulheres. Assim, o objetivo geral é traçar um panorama sobre a violência obstétrica no Brasil
e nos países da América Latina que possuem leis especificas para o combate desta. Para isso,
têm-se os seguintes objetivos específicos: I – Contextualizar a história do parto e da violência
obstétrica sofrida pela mulher gestante; II – Conceituar a violência obstétrica e suas formas de
manifestações; III – Traçar um paralelo entre o Brasil e os três países da América Latina que
possuem legislação específica para trabalhar com a violência obstétrica; IV – Contextualizar a
violência obstétrica no Brasil. Optou-se por desenvolver uma pesquisa bibliográfica e
documental, através da lente interdisciplinar do Direito e das Relações Internacionais, com uma
metodologia de pesquisa qualitativa exploratória. Os resultados encontrados evidenciam que as
leis existentes não são suficientes para lidar com o problema visto que, além de não
criminalizarem a violência, há um problema cultural. Conclui-se que, além das leis é necessário
um trabalho de conscientização em todas as esferas e que o Brasil não percebe a violência
obstétrica como violação aos direitos humanos.
Palavras-chave: Parto. Violência obstétrica. Direitos das mulheres. Brasil.
INTRODUÇÃO
A luta contra a violência obstétrica surgiu a partir do movimento pela humanização do
parto e da medicina baseada em evidências, no final do século passado (MATOS et al, 2013).
Desde então, houve a intensificação de estudos sobre o tema, bem como formulação de políticas
públicas e aprovações de leis que ora a abordam especificamente ora a tangenciam.
Depois de os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres serem reconhecidos como
direitos humanos e ganhar destaque nas agendas estatais e de organizações internacionais, a
violência obstétrica passou a ser objeto de debate a nível nacional e internacional.
1
Graduanda do curso de Relações Internacionais, da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora
integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Feminismos (Cnpq/UFSC). E-mail: mainaragommes@hotmail.com.
http://lattes.cnpq.br/2652268126045133
2
Advogada. Especialista em Direito Penal e Processo Penal, pela Faculdade Damásio de Jesus (2015). Mestranda
pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora
integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Feminismos (Cnpq/UFSC). E-mail: polianaaribeiro@gmail.com.
http://lattes.cnpq.br/2149540920056487
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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Especificamente na América Latina, o termo ganhou notoriedade na década de 2000, quando
um médico venezuelano o utilizou para se referir às violações dos direitos das mulheres na
gravidez, parto, puerpério e abortamento. A partir de então, a Argentina e a Venezuela
promulgaram leis especificando a violência obstétrica como uma violência contra a mulher e o
Suriname alterou o seu código penal tipificando-a como um crime. Em alguns países latinoamericanos existem leis a nível estadual sobre o tema, cita-se Venezuela, Argentina e Suriname
e, no caso do Brasil, existem algumas leis que tangenciam.
Observa-se que embora esse tipo de violência contra a mulher seja uma discussão
recente, já é possível notar alguns avanços legislativos e sociais. Todavia, é necessário que os
países latino-americanos continuem avançando nessa agenda, visto que ainda é uma realidade
presente e que, muitas vezes, manifesta-se de uma forma quase imperceptível, o que provoca
subnotificações da incidência de tal violação. Por ainda ser considerado um ato comum na vida
das mulheres, a temática necessita de investimento contínuo em pesquisa e conscientização dos
profissionais da área da saúde, tal qual da população comum, em especial as mulheres, as
vítimas, visto que muitas delas ainda não possuem conhecimento acerca desse tipo de violência.
Diante desse quadro problemático no qual a mulher gestante está inserida, o problema
norteador da presente pesquisa se resume em: Como o Brasil percebe e lida com a violência
obstétrica? Sendo levantada como hipótese balizadora que o país ainda não amadureceu a ideia
de violência obstétrica como uma forma de violação aos direitos humanos das mulheres.
Para desenvolver a presente pesquisa o objetivo geral é traçar um panorama sobre a
violência obstétrica no Brasil e nos países da América Latina, que possuem leis específicas para
o combate a violência obstétrica. Em consonância com o objetivo geral, estabeleceu-se os
seguintes objetivos específicos, que também compõe os subcapítulos deste estudo: I –
Contextualizar a história do parto e da violência obstétrica sofrida pela mulher gestante; II –
Conceituar a violência obstétrica e suas formas de manifestações; III – Traçar um paralelo entre
o Brasil e os três países da América Latina que possuem legislação especifica para trabalhar
com a violência obstétrica; IV – Contextualizar a violência obstétrica no Brasil.
Desse modo, para atingir os objetivos e responder ao problema pesquisa suscitado,
optou-se por desenvolver uma pesquisa bibliográfica e documental, através da lente
interdisciplinar do Direito e das Relações Internacionais, primando por um diálogo plural.
Sendo empregando como metodologia a pesquisa qualitativa de viés exploratório.
1. PARTO: DO PROCESSO NATURAL À HOSPITALIZAÇÃO
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Para elucidar sobre a violência obstétrica, tanto sobre a origem do termo quanto a sua
definição e suas formas, é necessário um aprofundamento teórico sobre as nuances e práticas
do parto. Isto é, como essa atividade, que antes era realizada e protagonizada por
mulheres parturientes, foi tornando-se medicinal, instrumental e até mesmo patológica, cujo
protagonismo das mulheres foi se tornando cada vez menor e, muitas vezes, inexistente.
Anteriormente, até meados do século XX, aproximadamente até o início da década de
1960, o parto era realizado pelas próprias mulheres, conhecidas como parteiras, cujos
conhecimentos eram adquiridos através da prática e eram transmitidos de geração em geração.
A maioria dos partos acontecia na casa da parturiente, com a ajuda da parteira (CUNHA,
2015; ZANARDO et al, 2017). Logo, “o nascimento era uma cerimônia puramente feminina e
intimista, na qual a assistente do parto auxiliaria a futura mãe, respeitando seu tempo, seus
costumes e sua cultura” (CUNHA, 2015, p. 25). Assim, o parto era uma atividade estritamente
feminina, realizada pelas parteiras e o protagonismo era da mulher. As parteiras realizavam essa
atividade de uma forma humanizada, respeitando a autonomia e vontades das parturientes.
O trabalho das parteiras, ao longo do século XX, tornou-se cada vez menos frequente,
até, de fato, acontecer a hospitalização do parto, isto é, as parturientes começarem a ter os seus
bebês em hospitais com o uso de instrumentos medicinais. Segundo ROHDE (2016) e WOLFF
et al., (2008), os médicos começaram a exercer a atividade obstétrica no início dos séculos XVII
e XVIII. Na Europa, contudo, eles apenas acompanhavam emergências, os partos ainda eram
realizados pelas parteiras.
No Brasil, essa mudança paradigmática teve início por volta de 1808, com a criação das
Escolas de Medicina e Cirurgianos (sic), na Bahia e no Rio de Janeiro. As primeiras décadas
do século XX foram marcadas por movimentos sociais, de modo que a senhora Maria Antonieta
de Castro fundou, em 1930, uma entidade filantrópica visando a promoção da assistência
materno-infantil, chamada “Cruzada Pró-Infância”. A entidade tinha como objetivo combater a
mortalidade infantil e, dois anos depois de sua fundação, a Cruzada Pró Infância inaugura a
Casa Maternal, que apoiava mães e gestantes (FRANCO, MACHADO, 2016).
Como elucida Zanardo (2017), já no final do século XIX teve início um processo de
mudança, uma vez que o parto passa a ser tido como uma prática médica e não mais um evento
biológico feminino. Assim, a mulher parturiente deixa de ser a protagonista e é submetida aos
procedimentos médicos. Com a chegada da Família Real Portuguesa no Brasil, no século XX,
essa inversão do processo do parto, iniciada no século XIX, foi concretizando-se durante todo
o século XX, uma vez que a medicina começou a “ganhar poder” (FRANCO, MACHADO,
2016).
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Foi então no contexto pós Segunda Guerra Mundial, no século XX, que o parto começou
a ser hospitalizado e as mulheres começaram a transferir o parto residencial e humanizado para
os hospitais dando início à “institucionalização do parto” (MATOS et al, 2013, p. 871).
Uma vez que os governos começaram a perceber a necessidade de diminuir a mortalidade
materna e infantil, as parturientes passaram a ser afastadas de seus familiares durante o processo
do parto, permanecendo isoladas e no hospital, com a ideia de que seriam melhores assistidas.
Concomitantemente a esse fato, ocorreu uma intensificação dos usos da tecnologia e
intervenções de rotina, como a episiotomia, uma cirurgia realizada na vulva, cortando a entrada
da vagina com tesoura ou bisturi e o uso do fórceps. Wolff e Waldow (2008) elucidam que o
ato de dar à luz que outrora era domiciliar, transformou-se em experiência no âmbito hospitalar,
uma vez que os médicos e residentes de medicina e obstetrícia passaram a se utilizar desse
momento para treinar técnicas e aprender. Portanto, a prática de realizar um parto começou a
ser vista como um ato somente do médico e “com o intuito de aumentar a qualidade da
assistência, tem-se medicalizado o parto, utilizando em larga escala procedimentos
considerados inadequados e desnecessários” (ZANARDO et al, 2017, p. 3). Além disso, “o
parto passa a integrar um modelo centralizado na figura do médico e que exclui outros
profissionais da saúde, como enfermeiras, que por formação estariam habilitadas para atender
o parto normal (ZANARDO et al, 2017, p.3).
Nesse contexto de desenvolvimento médico e social, quando a medicina começou a
estudar a anatomia das mulheres, consequentemente suas especificidades passaram a
ser compreendidas como inferiores em comparação à anatomia do corpo masculino. Assim, os
médicos iniciaram a produção de ideias e descrição de uma “natureza feminina”, cuja
sexualidade estava atrelada às funções de mãe e esposa. Logo, suas atividades estariam restritas
ao âmbito privado e suas normalidades foram transformadas em patologias, isto é, o parto passa
a ser tratado, muitas vezes, como doença. Essa naturalização foi o principal suporte para a
medicalização do corpo feminino e para a intervenção médica (FRANCO, MACHADO, 2016).
De acordo com Oliveira e Albuquerque (2018), esse modelo tecnicista alterou o modelo
de assistência ao parto, visto que a mulher começou a parir da forma que fosse conveniente ao
médico e não mais como o seu corpo biológico ditaria. Ademais, após o nascimento, mulheres
e filhos passaram a ser imediatamente separados. Assim, a tecnologia passou a ser empregada
no parto sob o contestável argumento de salvar a vida das parturientes, mas com o tempo foi
possível observar que tal prática foi empregada e normatizada para otimizar o trabalho dos
médicos, possibilitando a realização de partos em série, em virtude da rapidez do procedimento.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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A Organização Mundial da Saúde (OMS), em documento publicado em 2018, referente
às recomendações durante o parto, afirma que esse processo de medicalização do parto diminui
a capacidade da mulher de dar à luz e afeta de forma negativa a sua experiência e, além do mais,
as intervenções que são realizadas sem indicações científicas continuam a acentuar a lacuna
existente entre os ambientes ricos e pobres em recursos financeiros e técnicos (WHO, 2018,
tradução livre).
No final do século XX, na década de 1980, surge o movimento pela humanização do
parto e do nascimento, que tem como objetivo resgatar a autonomia da mulher e o fenômeno
de parir como algo natural, humanizado, não patológico, sem intervenções desnecessárias.
Simultaneamente, a ideia do parto humanizado começa a reverberar e começam a surgir,
também, as doulas. De acordo com Tornquist apud Zanardo et al (2017), este movimento teve
como precursor as propostas da OMS, de 1985, que estimulavam o parto vaginal e a
amamentação logo após o parto, e diversas outras recomendações de assistência à parturiente e
ao recém-nascido.
No tocante ao Brasil, os movimentos de mulheres passaram a pressionar o governo para
mudanças legislativas e criação de políticas públicas que contemplassem as suas pautas. Isso
resultou na institucionalização da agenda feminista pelo Estado e, assim, o governo criou o
Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) em 1984, Conselho Nacional
de Direitos da Mulher (CNDM) e a Comissão de Estudos sobre Direitos da Reprodução
Humana (CEDRH), em 1985 (FRANCO, MACHADO, 2016).
O movimento pela humanização tornou-se mais difundido no ano de 2000, quando o
Ministério da Saúde (MS) emitiu a Portaria nº 569, de 1º de junho de 2000, que lançava o
Programa Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN). O Programa visa desenvolver
“ações de promoção, prevenção e assistência à saúde de gestantes e recém-nascidos” (BRASIL,
2000, s.p). Ou seja, o objetivo é melhorar a assistência do pré-parto, parto e puerpério. A
Portaria elucida quais medidas devem ser tomadas para que isso ocorra e salienta que para
humanizar o atendimento é necessário romper com as práticas intervencionistas que não são
necessárias e prejudicam a mulher e o bebê, como a episiotomia, por exemplo, corroborando
com as recomendações da OMS anteriormente citadas.
Dessa forma, a humanização do parto diz respeito à atenção à mulher, substituindo as
intervenções médicas e o uso de tecnologias por um modelo humanista, cujo foco
é um atendimento à mulher que respeite as diferenças sociais e culturais (MATOS et al,
2013). Assim, a ideia da humanização do parto é seguir uma medicina baseada em evidências,
que traz à tona que só devem ser realizados procedimentos que são estritamente necessários e
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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que possuem comprovações científicas de sua eficácia. Sob esse viés, é possível saber quais
são, de fato, as necessidades de intervenção e quais os riscos ou complicações geradas quando
realizadas sem necessidade (SILVA, 2018).
2. A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Com o surgimento do processo tecnicista do parto, assistência à saúde da mulher e do
bebê e, concomitantemente, a realização de procedimentos intervencionistas e, muitas vezes,
violentos, surge o conceito de violência obstétrica para debater e tipificar um tipo de violência
contra a mulher sofrida durante o período da gravidez, parto, pós-parto e abortamento. Franco
e Machado (2016) trazem à tona que, muito embora a discussão sobre o tema seja recente, a
violência obstétrica é uma violência de gênero, uma vez que se utiliza de uma condição
específica das mulheres: a reprodução e, a partir dessa condição, perpetuam-se hierarquias e
dominações através da violência.
O termo “violência obstétrica” surgiu na América Latina, no ano 2000, e foi criado pelo
médico Rogelio Pérez D’Gregorio, então presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia
da Venezuela. O termo foi importante nas lutas do movimento feminista pela erradicação e
punição dos atos tidos como violentos e desrespeitosos durante toda a assistência ao parto e
pós-parto (MARIANI; NASCIMENTO NETO, 2016).
De acordo com Cunha (2015), a luta contra a violência obstétrica está atrelada à garantia
dos direitos sexuais e reprodutivos, portanto, direitos humanos. Essa constatação de que os
direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos aconteceu na década de 70, em
consequência aos movimentos de mulheres da época. Porém, em âmbito internacional, foi
reconhecido apenas em 1994, quando ocorreu a Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento realizada em Cairo, reunindo 179 países, debatendo políticas de gênero como
essencial para a qualidade de vida.
Na segunda década do século XXI, o tema ganhou ainda mais visibilidade e começou a
ser debatido, bem como começou a ser objeto de estudos, documentários, investigação
parlamentar, ações no Judiciário, tema de políticas públicas e intervenções de saúde
pública. Sua relevância como problema de saúde pública foi compartilhada pela declaração da
OMS chamada “Prevenção e Eliminação de Abusos, Desrespeito e Maus-Tratos Durante o
Parto em Instituições de Saúde”, de 2014 (DINIZ et al, 2015). Este documento elenca que todos
os abusos, maus-tratos, negligência e desrespeitos antes, durante e depois da gravidez, parto,
pós- parto e abortamento são violações de direitos humanos fundamentais. Também afirma que
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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as mulheres grávidas possuem direitos de informação, de não discriminação e de terem saúde
física e mental da melhor forma possível, incluindo a saúde sexual e reprodutiva (OMS, 2014).
Desse modo, “violência obstétrica” é um termo usado para descrever situações de
violações de direitos das mulheres durante a gravidez, o parto, pós-parto e abortamento. É
considerada internacionalmente uma violência contra a mulher e, por isso, uma violência de
gênero, e é uma forma de violência institucionalizada, visto que é cometida por profissionais
da saúde em âmbito hospitalar.
2.1 Definição de violência obstétrica e suas manifestações
O Brasil é signatário de duas Convenções muito importantes que dizem respeito às
formas de violência contra a mulher: A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Contra a Mulher, de 1979, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994). A Convenção de
Belém do Pará define que a violência contra a mulher é “qualquer ação ou conduta, baseada no
gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado” (OEA, 1994, s.p).
A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a
Mulher vai mais além, quando elucida que:
Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a
mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e
que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo
ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na
igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em
qualquer outro campo (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1979,
s.p).
Embora as Convenções não mencionem expressamente o termo violência obstétrica,
recomendam que os Estados signatários adotem medidas legais para o combate a qualquer tipo
de violência contra a mulher. Ou seja, entre elas está a violência obstétrica, que deve ser
entendida como uma típica violência praticada contra a mulher e combatida nos termos das
Convenções Internacionais.
A OMS define violência como o uso intencional da força física ou do poder contra uma
pessoa ou grupo de pessoas, tendo como resultado ou possibilidade de acarretar lesão, morte e
dano psicológico. A inclusão da palavra “poder” e a frase “uso da força física” faz com que
o entendimento de violência usualmente conhecido seja expandido, uma vez que inclui atos que
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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resultem de relações de poder, como ameaças e intimidação, por exemplo. Mais ainda, também
inclui atos de negligência ou omissão (OMS, 2002).
Assim, a violência significa atos de dor e sofrimento. A violência contra a mulher pode
ser de diversas formas: física, psicológica, sexual, institucional, obstétrica, etc. A violência de
gênero, portanto, “é considerada a violência física, sexual e psicológica contra a mulher,
manifestando-se por meio das relações de poder, histórica e culturalmente desiguais ocorridas
entre homens e mulheres” (WOLFF; WALDOW, 2008, p. 140).
Nesse ponto de vista, Oliveira e Albuquerque (2018) demonstram que a violência
obstétrica é uma apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher pelos
profissionais de saúde, que são evidenciados pelo tratamento violento, uso excessivo de
medicação e patologização de um processo natural e biológico, que acabam por acarretarem na
perda da autonomia da parturiente, que não consegue decidir sobre seu corpo.
A OMS divide a violência obstétrica em cinco tipos: I- Intervenções e medicalização
não necessárias e de rotina; II- Maus-tratos, humilhações e agressões verbais e físicas; III- Falta
de insumos e instalações inadequadas; IV- Exercícios de residentes sem a autorização da mãe
com informação completa, verdadeira e suficiente; V- Discriminação por razões culturais,
econômicas, religiosas e étnicas (CASTRILLO, 2016, tradução livre). Assim, quando os
profissionais proferem palavras que humilham, constrangem, coagem ou fazem piadas sobre o
corpo, utilizam procedimentos e medicamentos inadequados; submetem a parturiente ao jejum;
impedem a parturiente de escolher posições para parir; privam-na de um acompanhante ou de
liberdade e privacidade; realizam exames de toques vaginais excessivos; negam atendimento
pré-natal ou de aborto, entre, outros, estão praticando violência obstétrica (PARTO DO
PRINCÍPIO, 2012).
Um dos problemas existentes é a cirurgia cesariana de rotina. A OMS recomenda que
as cesáreas sejam realizadas em até 15% dos partos, uma vez que esse tipo de intervenção deve
ser realizado apenas quando indicada por motivos médicos, como salvar a vida da parturiente
ou do bebê. Taxas maiores de cesárea não têm comprovação científica de que reduzem a
mortalidade materna e neonatal. A cirurgia pode causar complicações e até mesmo sequelas ou
morte, principalmente em locais onde há pouca infraestrutura e/ou capacidade de realizar
cirurgias de uma forma segura bem como tratar quaisquer complicações provenientes desta.
Sendo assim, a cesariana deve ser realizada se, somente se, for estritamente necessária (OMS,
2015).
Contudo, as cesáreas vêm sendo excessivamente realizadas por diversos motivos e
tornou-se uma prática rotineira e frequente, em diversos países do mundo, inclusive da América
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Latina, até mesmo naqueles países onde já existem leis específicas sobre esse tipo de violência.
Não existem evidências científicas que a cesárea, quando realizada sem motivos, diminui a
mortalidade materna e neonatal. A cesariana traz perigos imediatos e a longo prazo, riscos esses
maiores em mulheres que possuem pouco acesso a cuidados obstétricos, que podem afetar a
saúde da mulher e do filho (OMS, 2015).
Outro procedimento rotineiro e desnecessário, que também configura como um tipo de
violência obstétrica, é a episiotomia. Essa prática, que se tornou rotina, pode causar maior perda
de sangue, mais dor durante o parto, aumenta o risco de infecção, de hemorragia, dores na hora
do ato sexual, e problemas em longo prazo (LEAL, 2014; PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).
Esse procedimento é realizado, na maioria das vezes, sem o consentimento da mulher e sem
informá-la dos riscos e/ou benefícios. É realizada com a justificativa de aumentar o canal
vaginal para facilitar a passagem do bebê. Esse procedimento começou a ser realizado na
década de 1940, com a hospitalização e patologização dos partos, usando-se como
argumento de que a mulher não teria dilatação suficiente para a passagem do bebê. Assim, era
um “erro” anatômico e precisaria de intervenção médica para o parto acontecer (ROHDE,
2016).
Existe, ainda, a expressão e técnica conhecida como “ponto do marido”. Alguns
médicos, ao realizarem a episiorrafia, fazem um ponto a mais para deixar a vagina mais
apertada, sob o argumento de que isso ofereceria mais prazer ao parceiro da mulher na hora do
sexo. É considerada, por muitos, um exemplo de mutilação feminina, cuja prática pertence a
um contexto cultural no qual a sexualidade da mulher deve ser de serventia ao homem
(ROHDE, 2016). O documento chamado “Parirás com Dor”, elucida que a episiotomia é
realizada, aproximadamente, em 94% dos partos normais no Brasil, evidenciando, assim, que há
uma epidemia do procedimento cujo qual não é recomendado cientificamente, porque o corpo
da mulher já está apto para parir. A recomendação da OMS é de que a taxa de episiotomia seja
entre 10% e 30% (LEAL, 2014).
Nesse mesmo viés, outro exemplo de procedimento de rotina é o exame de toque
vaginal. Durante a espera para o parto, para verificar a dilatação, os médicos fazem o chamado
“exame de toque”. Muitas vezes, é realizado de forma excessiva, gerando transtornos e
humilhações à mulher. Na maioria das vezes, é realizado sem qualquer consentimento ou
entendimento da parturiente e essa manobra pode ser prejudicial para o trabalho de parto. Além
disso, existem vários relatos de uso de ocitocina, rompimento artificial da bolsa e dilatação
manual do colo do útero para acelerar a dilatação, seguida por processos de episiotomia,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Manobra de Kristeller e uso de fórceps. Se esses procedimentos não forem suficientes para a
saída do bebê, recorre-se à cesárea. (PARTO DO PRINCÍPIO, 2012).
As Ciências Sociais têm como ponto de partida, ao definir a violência obstétrica, pensar
a prática médica como expressão das relações de poder, posições de classe e hierarquias. Nessas
relações de poder, que são assimétricas, existem condições para que sejam exercidas violências
contra as mulheres gestantes e os recém-nascidos (CASTRILLO, 2016, tradução
livre). Algumas manifestações da violência obstétrica são mais evidentes, como as agressões.
Outras, são mais difíceis de serem notadas, haja vista que fazem parte de procedimentos
rotineiros, como as cesarianas, episiotomia, dentre outros.
De acordo com a OMS, aproximadamente 140 milhões de nascimentos ocorrem a cada
ano em todo o mundo e a maioria deles apresentam fatores de risco de complicações para as
gestantes e para os bebês, além de diferentes formas de violências contra as mulheres (WHO,
2018, tradução livre).
3. A AMÉRICA LATINA E A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Na América Latina, a luta contra a violência obstétrica teve início na década de 1990, a
partir do movimento “Medicina Baseada em Evidências”. Em âmbito mundial, a OMS vem
publicando, desde então, documentos e recomendações a respeito dos procedimentos do parto
e então, a partir da década de 2000, vários países latino-americanos começaram a tratar o tema
como um problema de saúde pública e aprovaram leis que garantiam às mulheres o direito de
terem um acompanhante durante o parto, como o Uruguai, Argentina, Brasil, Porto Rico, Chile,
México, entre outros. Porém, somente a Venezuela (2007), a Argentina (2009) e o Suriname
(2009) possuem leis federais tipificando a violência obstétrica e considerando-a uma violência
de gênero. Alguns outros países latino-americanos possuem leis a nível estadual que abordam
a violência obstétrica, como é o caso do México, Bolívia, Panamá, El Salvador, Brasil,
dentre outros.
Em 2013, todos os países da América Latina aderiram ao “Consenso de Montevidéu
sobre População e Desenvolvimento”, um dos acordos multilaterais da América Latina, da
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), da Organização das Nações
Unidas (ONU). A partir da ratificação, todos os países latino-americanos comprometeram-se
a universalizar e garantir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de forma humanizada e
de qualidade (CEPAL, 2013). Entretanto, um estudo produzido em 2017, pela Mira que te Miro,
uma Organização Não Governamental, elenca quais foram os avanços depois da adesão ao
Consenso. O documento traz à tona que menos da metade dos países da América Latina
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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possuem mecanismos para lidar com as mulheres vítimas de violência obstétrica. No que tange
ao parto humanizado, o estudo demonstra que apenas 8 dos 23 países promovem, em seus
relatórios, práticas consideradas negativas – como raspar os pelos pubianos, uso de analgésicos
durante o parto, etc. Para além disso, a região latino-americana, no geral, encontra-se defeituosa
no que diz respeito aos sistemas de denúncia para violência obstétrica e mais da metade dos
países da região não possuem sanções para a prática (MIRA QUE TE MIRO, 2017).
3.1 Argentina
A Argentina foi o primeiro país da América Latina a reconhecer a violência obstétrica
pela lei do parto humanizado, a partir da Lei Nacional 25.929, conhecida como “Lei de Parto
Humanizado” (SOARES, BASANI, 2018). A Argentina é um dos países da América Latina
com menores barreiras legais para que a mulher exerça os seus direitos sexuais e direitos
reprodutivos. Além disso, possui avanços consideráveis no que tange à prevenção da
mortalidade materna e à promoção do parto humanizado (MIRA QUE TE MIRO, 2017).
Nos últimos anos, o país aprovou uma série de leis sobre a temática que impulsionaram
a proteção da mulher gestante, quais sejam: A Lei n º 26.529/ 2009, que versa sobre os Direitos
do Paciente na relação com os profissionais e instituições de saúde; a Lei nº 26.485/2009, que
trata sobre a Proteção da Violência contra a Mulher e a Lei nº 25.929/2004, que diz respeito à
Proteção à Gravidez e ao Recém-Nascido.
Ainda, a “Lei sobre os Direitos dos Pais e Filhos no Processo de Nascimento”, diz
respeito ao Parto Humanizado. Entretanto, só foi regulamentada em 2015, através do Decreto
2035/2015. A referida lei evidencia que as mulheres têm direito a um parto natural, respeitando
o tempo fisiológico e sem qualquer intervenção desnecessária; desde que não a desrespeite nem
discrimine; têm direito a ser informada sobre todo e qualquer procedimento que for realizado;
direito a um acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós parto, dentre outros.
Também elenca quais são os direitos do recém-nascido e dos pais do bebê. A lei, portanto,
define os direitos das mulheres durante a gestação e garante à mulher o acesso à informação e
o respeito à sua individualidade (CARVALHO et al, 2019). Assim, a Argentina foi o primeiro
país da América Latina a legislar e definir a humanização do parto.
A Lei nº 26.485, Lei de Proteção Integral às Mulheres, de 2009, versa sobre a proteção
integral para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, conceitua a violência e
classifica-a em cinco tipos que se manifestam em cinco modalidades: física, psicológica, sexual,
econômica ou patrimonial e simbólica (SOARES, BASANI, 2018). Em seu artigo 6º, encontrase a definição de “violência obstétrica”: “Art 6º: Violência obstétrica: aquela que o profissional
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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da saúde exerce sobre o corpo e os processos reprodutivos das mulheres, expressando-se em
um tratamento desumanizado, um abuso de medicalização e patologização dos processos
naturais (ARGENTINA, 2009).
O Ministério da Saúde e Desenvolvimento Social do país elucida que a cesariana é uma
cirurgia que tem como fim resolver problemas durante o processo de nascimento e que, nesses
casos, é uma intervenção necessária. Não havendo indicações da cirurgia, ela envolve riscos e
não
deve
ser
considerada
como
uma
opção
(MINISTÉRIO
DA
SAÚDE
E
DESENVOLVIMENTO SOCIAL DA ARGENTINA, s.d, tradução livre), indo ao encontro das
recomendações internacionais.
Mesmo após a promulgação da lei especificando a violência obstétrica, alguns artigos
ainda não foram regulamentados e, além disso, não explicita quais são as sanções direcionadas
aos profissionais e às instituições de saúde que praticam a violação. Para sanar essas lacunas
existentes, em 2011, através do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Nação, mediante
a Resolução nº 120, foi criada a Comissão Nacional Coordenadora de Ações para a Elaboração
de
Sanções
da
Violência
de
Gênero
(CONSAVIG),
formada
por
especialistas
multidisciplinares ativistas dos direitos das mulheres, cujo objetivo é a articulação de todos os
poderes a nível municipal, provincial e nacional para coordenar ações para o desenvolvimento
de sanções contra a violência de gênero (EL PARTO ES NUESTRO, 2017, tradução livre;
MINISTERIO DE JUSTICIA Y DERECHOS HUMANOS, tradução livre).
Pesquisas demonstram que, mesmo após a promulgação da Lei 26.529/2009, que
garante às mulheres gestantes o direito à informação, esse direito é constantemente violado
pelas instituições de saúde. Além disso, procedimentos rotineiros como o uso de ocitocina e
episiotomia continuam sendo comuns e sem a autorização e ciência da parturiente. A taxa de
cesarianas no país, mesmo após a Lei do Parto Humanizado, continua sendo alta:
aproximadamente 30% nas instituições de saúde públicas e 70% nas privadas, indo de encontro
ao recomendado pela OMS (EL PARTO ES NUESTRO, 2017, tradução livre).
Percebe-se, portanto, que, muito embora existam leis que versam sobre o tema, a
realidade na Argentina ainda é preocupante, visto que os direitos das mulheres ainda são
violados
durante
a
gravidez,
parto,
puerpério
e
abortamento,
configurando
a
violência obstétrica. Práticas como episiotomia e cirurgia cesariana, para além da inexistência
de evidência e recomendação científica, fazem parte de uma cultura na qual se subjuga o corpo
da mulher e o coloca como pertencente ao outro e não a ela mesma, ideia constantemente
corroborada pela sociedade patriarcal e machista. A falta de clareza no que diz respeito às
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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sanções para os profissionais e instituições de saúde que cometam a violação, também contribui
para que essas práticas continuem acontecendo.
3.2 Venezuela
A República Bolivariana da Venezuela foi a precursora ao definir a violência obstétrica
como uma violação aos direitos humanos das mulheres. Em 2007, aprovou-se a Lei Orgânica
sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da Violência, tendo como ponto de partida o
Dia Internacional pela Eliminação da Violência, celebrado em 25 de novembro de 2006
(SOARES, BASANI, 2018).
Assim como a legislação da Argentina, a lei venezuelana define a violência obstétrica
como uma das formas de violência contra a mulher. Em seu Artigo 15, delineia quais são os
tipos de violência contra as mulheres e uma delas é a violência obstétrica entendida como:
Art. 15: A violência obstétrica é entendida como a apropriação do corpo e
processos reprodutivos das mulheres pelo pessoal de saúde, que se expressa
no tratamento desumanizante, no abuso da medicalização e patologização dos
processos naturais, resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir
livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na
qualidade de vida das mulheres (VENEZUELA, 2007).
Percebe-se que as definições argentina e venezuelana são bastante parecidas, porém, a
lei venezuelana difere-se ao afirmar que a violência traz consigo a perda da autonomia das
mulheres e a capacidade de decidir sobre o seu corpo e sua sexualidade. No entanto, tal qual a
lei argentina, a venezuelana não prevê sanções aos profissionais que pratiquem tais atos. Além
do mais, o Código Penal do país também sofreu algumas mudanças no que diz respeito à
interpretação, a partir de decisões proferidas pelo Tribunal Supremo de Justiça (TRIBUNAL
SUPREMO DE JUSTIÇA, s.d).
Todavia, a Anistia Internacional (2017) menciona que, segundo o Boletim
Epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde venezuelano, de 2016, a mortalidade
materna e infantil aumentou 65,79% e 30,12% respectivamente. Devido a esse aumento da
mortalidade materna, neonatal e infantil, intimamente ligado às violações de direitos sexuais e
reprodutivos, muitas gestantes estão cruzando as fronteiras da Colômbia para parir. Esse
aumento está atrelado, principalmente, à crise de saúde que o país vivencia, acarretando a falta
de insumos, de infraestrutura e na redução de pessoal, que tem sido denunciado por
diversas ONG’s de direitos humanos.
3.3. Suriname
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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A República do Suriname é o menor país da América do Sul considerado medianamente
desenvolvido. Não obstante o país é deficiente em alguns aspectos referentes aos direitos
humanos e, embora não possua uma lei específica para a violência obstétrica, como nos casos
venezuelano e argentino, o país reformou o seu Código Penal, de 1911, em 2009, e incluiu a
violência obstétrica como crime.
O país adotou um projeto chamado “Ação Integral de Gênero (2006-2010)” que teve
como objetivo garantir a transversalização do enfoque de gênero e a formulação e
implementação de políticas públicas na administração pública. Assim, um dos temas eram os
direitos humanos e um dos meios para promover o enfoque de gênero na administração pública
foi a reforma do Código Penal, que incorporou alguns temas como crime, a exemplo da
violência obstétrica (ONU MULHERES, s.d).
3.4. Brasil
No Brasil, a proteção à maternidade e à infância como assunto de saúde pública emerge
no Estado Novo como uma política voltada para garantir o aumento da mão-de-obra. A partir
de 1964, já no período ditatorial, dá-se início ao modelo de atendimento privado, tendo como
foco a relação de cuidado médico como algo individual e, na década de 70, o Estado destina-se
à prevenção de gravidez de risco e fornecimento de pílula anticoncepcional, proporcionando o
poder de escolha quanto à maternidade (SILVA, 2018).
A violência obstétrica ganhou mais notoriedade na década de 1980, a partir da
publicação de “Espelho de Vênus”, em 1981, que “fazia uma etnografia da experiência
feminina, descrevendo explicitamente o parto institucionalizado como uma vivência violenta”
(DINIZ et al, 2017, p. 2). O trabalho relatava as experiências femininas e descrevia o parto
institucionalizado como uma violência. Além disso, abordava a relação médico-paciente,
trazendo à tona algumas vivências das mulheres no momento gestacional, parto e
aborto (CARVALHO et al, 2019). Ainda de acordo com Diniz et al (2017) e Carvalho et al
(2019), a violência obstétrica também já estava sendo debatida no âmbito da saúde ao final
dessa mesma década com a criação do PAISM e do Programa de Atenção Integral à Saúde da
Criança, em 1984. Ambos os programas consideravam a mulher um sujeito de reprodução,
incluindo ações educativas, preventivas, diagnósticos, tratamento e recuperação (SOARES,
BASANI, 2018; FRANCO; MACHADO, 2016).
A partir da década de 90, ocorreram diversos eventos concernentes ao tema. Em 1993,
em Campinas, SP, um evento composto por diversos profissionais da saúde e ativistas de
gênero, discutia acerca da “situação atual do nascer na nossa sociedade”, o qual gerou um
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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documento, a “Carta de Campinas”, refletindo sobre a alta taxa de cesariana no país e
instituindo a organização Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (REHUNA), que
elenca acerca dos riscos à saúde das mães e bebês submetidos às práticas intervencionistas
inadequadas; resgata o nascimento como um fenômeno natural; revaloriza o parto humanizado;
incentiva as mulheres à sua autonomia e poder de decisão e adere ao movimento da medicina
baseada em evidências (REHUNA).
Já em 1998, o Ministério da Saúde (MS), através das Portarias nº 2815/GM e nº
2816/GM, estabelece como prioridades a redução da mortalidade materna e perinatal, qualidade
do pré-natal e parto e a redução das cirurgias cesarianas bem como os casos de violência contra
a mulher. Essas iniciativas inauguraram um processo de humanização dos serviços de saúde, o
que ocasiona no surgimento do Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento,
instituído pelas Portarias nº 569-570-571/2000, com o objetivo de mudar a assistência à
saúde (SOARES, BASANI, 2018).
A partir de 2000, o Brasil acentuou as políticas públicas e normativas no que diz respeito
à violência contra a mulher em seu período gestacional, parto e pós-parto, muito embora ainda
não dispunha uma lei em nível federal sobre o tema. Em 2004, o MS lançou a Política Nacional
de Humanização do Sistema Único de Saúde, destinado a gestores e trabalhadores do Sistema
e o Pacto de Redução da Mortalidade Materna e Neo-Natal. Em 2011, instituiu o Programa
Rede Cegonha (SOARES, BASANI, 2018), através da Portaria nº 1.459/2011.
O Programa Rede Cegonha é promovido pelo Sistema Único de Saúde e visa estimular
o planejamento reprodutivo e a atenção integral à gestante durante o período gestacional, parto
e puerpério e, para além, objetiva a redução da mortalidade materna e neonatal. Para implantar
um modelo de atenção à saúde da mulher que leva em consideração a assistência humanizada
no parto, puerpério e crescimento da criança, tem como base quatro componentes: Pré-Natal,
Parto e Nascimento, Puerpério e Atenção à Saúde da Criança. E, ainda, um sistema de transporte
sanitário e regulação. Assim, a finalidade última do programa é instituir a humanização do
atendimento e do parto. Dados do MS de 2016 mostram que o programa já atingiu mais de
5.000 municípios do Brasil alcançando mais de 2 milhões de gestantes (MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2017).
Em 2015, o governo brasileiro, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), editou a Resolução Normativa 368/2015, cujo objetivo é diminuir a alta taxa
de cesarianas realizada no país, considerada uma epidemia. No mesmo ano, foi
lançado o Projeto Parto Adequado, desenvolvido pela ANS, o Hospital Israelita Albert Einstein
e o Instituto para a Melhoria da Saúde (tradução livre) ou Institute for Healthcare Improvement,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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com o apoio do MS que visa identificar modelos novos e viáveis de parto e nascimento, dando
atenção ao parto normal para tentar reduzir a quantidade de partos cesarianos, utilizando-se da
medicina baseada em evidências (AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR,
s.d).
O Brasil não possui uma legislação específica sobre a violência obstétrica em âmbito
federal. Todavia, alguns estados possuem leis acerca do tema como, por exemplo, Santa
Catarina (Lei nº 17.097/2017), São Paulo (Lei nº 15.759/2015), Rio de Janeiro (Lei nº
7.191/2016), Minas Gerais (Lei nº 23.175/2018), dentre outros. Ademais, alguns estados já
contam, também, com legislação permitindo as profissionais doulas acompanharem as
mulheres no processo do parto, como é o caso de Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo e outras
cidades possuem leis municipais, como Uberaba-MG e Bragança Paulista- SP.
Apesar de todo o complexo e profundo histórico envolvendo a violência obstétrica no
Brasil e no mundo, em maio de 2019, o Ministério da Saúde do Brasil publicou um despacho
vetando o uso do termo “violência obstétrica”, por não agregar valor e não ajudar no movimento
de humanização do parto, algo inédito do órgão, depois de anos corroborando com a luta contra
a violência obstétrica, através do fomento de políticas públicas e recomendações. Em junho,
após várias críticas e, inclusive, recomendações do Ministério Público Federal, o órgão voltou
atrás e reconheceu o uso de qualquer termo que melhor represente as experiências vivenciadas
durante o parto, sem citar explicitamente a violência obstétrica (G1; FEBRASGO). Ainda no
ano passado, o Ministério lançou uma página informativa ou site para monitorar, de forma
online, as cesáreas no país (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2018).
O que se observa, portanto, é que, ao mesmo tempo em que os movimentos de mulheres
e organizações ativistas lutam pela erradicação de todas as formas de violência contra as
mulheres, percebe-se a ascensão de um movimento contrário ao uso do termo “violência
obstétrica” e como tal, o enquadramento da prática como uma forma de violência específica
contra os direitos humanos das mulheres. O Conselho Federal de Medicina publicou o Parecer
CFM, n. 32 de 2018, afirmando que o uso do termo configura uma agressão contra a medicina,
porque a expressão causa indignação na especialidade obstétrica (BRASIL, 2018).
Compactuando desse ponto de vista, no ano corrente, o Conselho Regional de Medicina do
Estado do Rio de Janeiro publicou a Resolução n. 293 (Rio de Janeiro, 2019) proibindo o(a)
médico(a) de aderir a quaisquer propostas e ou documentos que restrinjam a sua autonomia,
inclusive o plano de parto da gestante (BRASIL, 2019).
Além disso, os dados acerca desse tipo de violência evidenciam que a prática ainda é
um problema no país. A taxa de cesarianas é a mais alta do mundo, chegando a 56%, ficando
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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próximo àquelas de países como China, México, Itália e Estados Unidos, que estão entre 46 e
32%, mostrando que o país vai de encontro às recomendações da OMS no que tange às
cesáreas. A realidade do contexto brasileiro ainda é marcada por um abuso de intervenções
cirúrgicas, atendimentos humilhantes e, muitas vezes, até mesmo o impedimento a presença do
acompanhante. O modelo de atenção ao parto e a atuação dos profissionais da saúde não está
baseado em evidências (LEAL et al, 2014; ZANARDO et al, 2017; REDE HUMANIZA SUS;
ASSOCIAÇÃO ARTEMIS).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto, percebe-se que a violência obstétrica ainda é um assunto pouco
discutido em âmbito nacional na América Latina, mesmo nos países onde já existem leis
específicas acerca do tema.
No caso da Argentina e da Venezuela, que trazem consigo legislações configurando a
violência obstétrica como uma forma de violência contra a mulher, percebe-se que não
existem leis que preveem punições para quem cometer tal prática, estando os profissionais
e instituições de saúde responsáveis por promoverem a humanização da assistência e do parto.
O único país que teve um avanço nesse sentido foi o Suriname, que instituiu em seu Código
Penal a violência obstétrica como um crime e prevê punições.
No caso da Argentina, especificamente, mesmo após a promulgação das leis, os dados
continuam alarmantes, inclusive no que diz respeito aos partos cesarianos e práticas
intervencionistas não necessárias. No tocante à Venezuela, há aumento da mortalidade materna
e neonatal, devido à grave crise de saúde na qual o país se encontra, devido às faltas de
suprimentos, profissionais e infraestrutura. Durante a pesquisa, não se conseguiu encontrar
dados mais precisos acerca das taxas de cesariana e episiotomia no país.
No caso do Brasil, que promove uma discussão acerca do tema desde a década de 80,
houve vários avanços, principalmente de políticas públicas buscando-se atenuar o
problema. Alguns estados brasileiros conseguiram avançar aprovando leis que configuram a
violência obstétrica e, em alguns locais, até mesmo permitindo a presença das doulas, tornando
o parto humanizado uma realidade possível. Ainda assim, carece de leis de nível federal que
versem especificamente sobre o tema.
Além disso, ainda no que diz respeito ao Brasil, é perceptível a existência de diversas
ONG’s que realizam o trabalho de conscientização das mulheres e da população no geral.
Existem, ainda, inúmeras políticas públicas que visam atenuar a violência, bem como
profissionais que aderem ao movimento pela humanização do parto, muito embora o governo
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
104
brasileiro não considere a violência obstétrica uma violação aos direitos humanos das mulheres
nem uma prática que precisa ser constantemente combatida, criminalizada e debatida.
As lutas feministas, nesse sentido, trouxeram muitas conquistas aos direitos das
mulheres, demonstradas nas leis e políticas públicas do Brasil. Entretanto, ainda que o país
considere a violência obstétrica como um problema, esse tipo específico de violação ainda é
marginalizado e não se configura enquanto problema que deve ser erradicado e debatido entre
os profissionais da saúde, população e instituições governamentais.
Este papel de conscientização fica a cargo de profissionais ou da população que trazem
consigo a consciência de que é necessário avançar política e socialmente nesse aspecto. Assim,
há negligência por parte do governo brasileiro que, ao não perceber a violência obstétrica como
uma violação aos direitos humanos das mulheres, faz com que não haja mecanismos de
denúncia contra a prática, penalização e fiscalização.
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Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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O DIREITO DE ESCOLHER E DE BEM NASCER: ENFRENTAMENTO DA
VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Isabele Bruna Barbieri1
Franciele Volpato2
RESUMO
O presente artigo pretende analisar a autonomia da mulher gestante, no parto e pós-parto em
contrapartida com os direitos humanos em um cenário de violência obstétrica no Brasil. Partese da hipótese de que a perpetuação da violência sofrida pela mulher no parto e também pela
realização desnecessária de procedimentos médicos na mãe e no recém-nascido continua
ocorrendo diante de uma medicina arraigada de entendimentos patriarcais. Para tanto, o
primeiro capítulo inicia apresentando a primeira seção apresenta um panorama de direitos
humanos, e que os direitos das mães e dos recém-nascidos estão imersos nestas garantias
fundamentais. Ao passo, no segundo capítulo,na segunda seção, demonstram-se as práticas
violentas cotidianas e corriqueiras no trabalho de parto, ausência de respeito, amorosidade e
desrespeito a autonomia da mulher em um momento de vulnerabilidade. Finaliza-se apontando
um local de parto que respeita a autonomia da mulher e o bem nascer, sendo um instrumento
na disseminação das boas práticas e do respeito no parto, o que possibilita uma mudança na
forma de se pensar a assistência sobre o parto e as vidas envolvidas. Para isso, a metodologia
utilizada é o método hipotético-dedutivo por meio da pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Direitos humanos. Direito de escolher. Violência obstétrica. Centro de Parto
Normal.
INTRODUÇÃO
As mulheres são capazes de gestar, nutrir e parir naturalmente, sem a necessidade de
intervenções médicas. Essas intervenções deveriam ficar restritas àquelas situações em que há
complicações e risco à mulher e bebê. Todavia, não é essa a realidade brasileira, onde o parto
é marcado pela violência que submerge da sociedade patriarcal imbuída de valores machistas,
fragmentados e mecanicistas. Todavia, a gestação, o parto e o nascimento são eventos
complexos, integrados, holísticos, naturais.
1
Doutoranda do Programa de Pós-graduação de Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Pesquisadora do Observatório de Justiça Ecológica. Bolsista de doutorado pela CAPES.
isabele@ibbadvocacia.adv.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3274945152259897
2
Enfermeira Obstetra. Mestranda pelo Programa de Pós-graduação de Enfermagem da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Inovação Tecnológica em Saúde Obstétrica e
Neonatal.
Bolsista
pela
CAPES.
franparteira@gmail.com.
Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4137683H0
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
108
Nesse sentido, em sociedades marcadas pelo capitalismo extremado, o parto foi e
continua sendo, afastado de sua natureza intrínseca, para ser marcado pelo processo mecanicista
tecnológico e profissional-centrado, característico do modelo biomédico de cuidado.
O presente trabalho objetiva analisar a autonomia da mulher, no parto e pós-parto
imediatos em contrapartida com os direitos humanos em um cenário de violência obstétrica no
Brasil. Acredita-se que a perpetuação da violência sofrida pela mulher no parto continua
ocorrendo diante de uma cultura de cuidado arraigada de valores patriarcais, onde o
conhecimento na área da saúde é pensado e apreendido pelo viés da dependência e incapacidade
feminina, ancorado, na autoridade do profissional que detém o conhecimento.
Para tanto, o primeiro capítulo inicia apresentando um panorama dos direitos humanos,
em que os direitos das mulheres e recém-nascidos estão imersos nestas garantias fundamentais.
Ao passo, no segundo capítulo, demonstram-se as práticas violentas cotidianas e corriqueiras
no trabalho de parto, ausência de respeito, amorosidade e autonomia da mulher em um momento
de vulnerabilidade. E finaliza-se apontando um local de parto que respeita a autonomia da
mulher e o bem nascer, sendo um instrumento na disseminação das boas práticas e do respeito
no parto, o que possibilita uma mudança na forma de se pensar a assistência obstétrica.
A presente análise se justifica em virtude de um cenário de total retrocesso e
obscurantismos no sentido de ocultar a violência obstétrica por meio da não utilização de sua
terminologia, bem como pela necessidade de evidenciar essa violência através de um
comparativo com outra forma possível e respeitosa de parir e nascer. Dessa forma, pretende-se
contribuir com a luta pelo direito da mulher de autodeterminação, autonomia em seus processos
naturais e pela atenção respeitosa à fisiologia do parto e nascimento
Neste estudo, utiliza-se o método hipotético-dedutivo, com revisão bibliográfica e
narrativa de relatos.
1.
DIREITOS
REPRODUTIVOS
NA
MATERNIDADE
COMO
DIREITOS
HUMANOS?
A saúde é um direito fundamental do ser humano, onde o Estado deve zelar por suas
boas práticas e dar condições para que elas aconteçam. Inserido nesta amplitude de direito, estão
os direitos reprodutivos das mulheres que dispõe sobre as práticas de cuidados da saúde
feminina sob o enfoque da integridade corporal, autonomia pessoal, igualdade e diversidade
(ZORZAM; CAVALCANTI, 2016).
No caso da mulher parturiente, a saúde tem sido sinônimo de intervenções médicas
injustificadas, maus tratos verbais e, por fim, o descumprimento de leis, como no caso da Lei
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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do Acompanhante, Lei nº 11.108/05, nas quais as maternidades impedem a presença do pai ou
do acompanhante de escolha da mulher no trabalho de parto, parto e pós-parto.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a violência sofrida pelas mulheres é
uma violação dos direitos humanos, sendo que os “abusos, os maus-tratos, a negligência e o
desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das
mulheres, como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados
internacionalmente”. Ela aponta que há aproximadamente 140 milhões de nascimentos no
mundo anualmente, sendo que a grande maioria não apresenta fatores de risco que levariam a
complicações no trabalho de parto e para os bebês. (OMS, 2014, p. 3)
Todavia, os índices de intervenções só aumentam, sendo que nas últimas décadas têm
sido aplicadas diversas práticas de iniciar, acelerar, terminar esse processo fisiológico, o que,
por certo, debilitam a capacidade da mulher de conduzir um parto natural, afetando
negativamente sua experiência de parto (OMS, 2018).
A pesquisa nacional “Nascer no Brasil”, realizado pela Fiocruz entre 2011-2012,
entrevistou 23.894 mulheres em pós-parto e identificou que apenas 5,6% dos partos no SUS
são naturais, ou seja, sem nenhuma intervenção. Enquanto que 92% das mulheres pariram em
litotomia (deitadas de barriga pra cima), 56% foram vítimas de episiotomia (corte no períneo)
e menos de 50% delas foram beneficiadas com as boas práticas ao parto e nascimento (OMS,
1996), como liberdade para escolher a posição que deseja, alimentar-se durante o trabalho de
parto entre outras (LEAL et al., 2014).
Em 2018, a OMS publicou novas diretrizes para o parto e nascimento resultarem em
uma experiência positiva. São 56 recomendações para os cuidados durante o parto, contendo as
seguintes categorias: recomendado, não recomendado, recomendado sob um contexto
específico e recomendado somente em contexto de investigações rigorosas. Entre elas, orientase não realizar intervenções para acelerar o trabalho de parto, como o uso da ocitocina ou
cesariana (cirurgia de grande porte); não cortar o períneo antes do parto vaginal; disponibilizar
analgesia para alívio da dor quando solicitado; permitir a movimentação e escolha da posição
de parir; não realização de pressão no fundo uterino durante o período expulsivo (Manobra de
Kristeller); oportunizar clampeamento tardio de cordão umbilical, contato pele a pele com o
recém nascido, mamada na primeira hora; e garantir que mãe e bebê permaneçam juntos no
mesmo local 24 horas por dia. Dessa forma:
Hoje, há uma enorme discrepância no apoio prestado às mulheres em torno do
parto. Num extremo do espectro, são oferecidas demasiadas intervenções
médicas cedo demais. No outro, eles recebem muito pouco apoio tarde demais
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
110
- ou nenhum. Em nenhum extremo, as mulheres têm a experiência de parto
positiva que desejam e merecem. (SIMELELA, 2018, p.1, tradução minha)
Nos últimos 20 anos houve uma ampliação do uso de intervenções, que deveriam ser
utilizadas para evitar riscos ou complicações. Todavia, atualmente essas intervenções são
realizadas quando não há esse cenário, sendo que mesmo em mulheres saudáveis há pelo menos
uma intervenção clínica durante o trabalho de parto (NAÇÕES UNIDAS BRASIL, 2018.
No entanto, o que se verifica no cotidiano da assistência à saúde da gestante, parturiente
e do recém-nascido não é o respeito a um processo fisiológico natural, sob o cuidado baseado
em evidências científicas e amorosidade. Ao contrário, a experiência do parto para a maioria
das mulheres se torna um momento traumático.
O que aprendemos na nossa formação [Departamento de Saúde], na prática,
era que as mulheres têm seus direitos suspensos pela maternidade. Seu direito
à condição de pessoa, seu direito à integridade corporal, seu direito à equidade
e à diversidade não valiam mais, pois a maternidade é sacrifício, e qualquer
desobediência de sua parte seria, segundo aprendemos, uma ameaça à
segurança do bebê. Como parturiente, ela deveria aceitar ser fisicamente
imobilizada, mantida sem água nem comida, sem a presença de ninguém de
sua confiança. Deveria aceitar uma fila de pessoas desconhecidas
introduzindo os dedos na sua vagina, para seu própria bem (ZORZAM;
CAVALCANTI, 2016, p. 9).
Nesse sentido, além de um evento traumático emocional, psicológica e até fisicamente
é uma ferida nos direitos humanos. Um desrespeito a essas normas de proteção inerentes a todo
e qualquer indivíduo humano, independente de raça, cor, sexo, direcionadas para a proteção dos
mais fracos e vulneráveis nas relações desiguais, cujos direitos nasceram e nascem a partir da
mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de opressão, dominação, exclusão
(PIOVESAN, 2009).
Os direitos humanos impõem obrigações internas e internacionais que estão inseridos
no conteúdo da Constituição Federal Brasileira de 1988, primando pela dignidade da pessoa
humana, cuja pessoa é fundamento e fim de uma sociedade e de um Estado (PIOVESAN, 2009).
Os valores constitucionais asseguram, assim, a base de toda interpretação de normas esparsas
no ordenamento jurídico, guiando e orientando a aplicação do direito. Logo, questões de bemestar das mulheres devem ser vistas sob esse viés.
As questões de gênero são questões de Justiça, onde a demanda das mulheres por seus
direitos passa pela posição de questionar as políticas e práticas de bem-estar ou de maus tratos,
mas também ativa, aliado a necessidade de reconhecimento, da mulher como agente, sendo
ambos os aspecto, o do bem-estar e o da condição de agente, pautas dos movimentos feministas.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
111
O reconhecimento de apenas um desses fatores implica em uma condição restrita da mulher
como pessoa (SEN, 2000).
Por certo que, movimentos que lutam somente por questões de bem-estar, ou
benestaristas são importantes pela luta da não submissão da mulher a piores tratamentos ou a
uma alta mortalidade por parcialidade entre os sexos na assistência e distribuição dos cuidados
da saúde. Todavia, as mulheres já não são apenas “receptoras passivas de auxílio para melhorar
seu bem-estar, as mulheres são vistas cada vez mais, tanto pelos homens como por elas próprias,
como agentes ativos de mudanças: promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem
alterar a vida das mulheres e dos homens” (SEN, 2000, p. 220).
Nesta posição ativa, as mulheres começam a perceber os abusos que sofrem na
assistência ao pré-parto, parto e pós-parto e encorajam-se para denunciá-los. Neste sentido,
conforme Zormam e Cavalcanti (2016), são infrações aos direitos humanos e práticas mais
corriqueiras, que serão abordadas mais detalhadamente na próxima seção através da citação de
relatos de mulheres3:
●
o abuso físico, ou seja, o desrespeito a integridade corporal das mulheres, bem como
deixar de oferecer os melhores cuidados; ocitocina de rotina ou sem indicação; episiotomia;
cesárea sem indicação ou por conveniência do profissional.
●
Práticas sem consentimento ferem o direito da mulher ao acesso à escolha informada, e
informada não quer dizer comunicada apenas, mas explicada; além das intervenções acima
citadas, ainda tem-se, exames de toques para aprendizagem de residentes; descolagem digital
das membranas durante o toque vaginal; redução de colo durante o exame de toque.
●
Violência verbal e emocional fere o direito ao respeito e a dignidade: recebimento de
xingamentos e humilhações.
●
Discriminação a atributos específicos seja a classe social, condição étnica, idade, cor da
pele.
●
Coerção à autodeterminação e autonomia das mulheres: impedir que recebam
informações e que possam decidir livremente, sobre os tipos de parto.
São diversos documentos normativos que disciplinam o direito e a não violência, que
são frequentemente desrespeitados. Em vista disso, a Lei 17.097/2017 dispõe sobre a
implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência
obstétrica (SANTA CATARINA, 2017b). Assim, a mulher vítima de violência obstétrica pode
3
Nestas indicações não se pretende aprofundar nos conceitos médicos das intervenções realizadas, mas se pretende
pontuar as práticas consideradas violência, abusos ou que trazem mais prejuízos do que benefícios à mulher e ao
recém-nascido.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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acessar o Poder Judiciário demandando com ações civis de reparação de danos materiais e/ou
morais. Conforme a gravidade da violência sofrida, pode-se acionar a Defensoria e o Ministério
Público para dar entrada em uma ação penal por injúria ou por lesão corporal. Para tanto, fazse necessário convocar mais diálogo, pesquisa e mobilizações para desvelar a temática da saúde
da mulher e de seus direitos fundamentais.
2. UMA QUESTÃO DE GÊNERO: O PATERNALISMO NAS EXPERIÊNCIAS DE
PARTO
E
NASCIMENTO
PERPETUAM
UMA
VIOLÊNCIA
INSTITUCIONALIZADA
Ao longo do tempo diversas mudanças foram ocorrendo em relação ao parto e
nascimento no Brasil. A princípio o parto era visto como um processo fisiológico da vida, uma
reunião de mulheres em torno do nascimento de uma vida e assistência da mãe que pari. Com
a institucionalização e medicalização, o corpo da mulher passa a ser considerado um corpo
defeituoso que necessita de intervenções, subjulgando a mulher a uma autoridade que a faz
desacreditar em sua capacidade fisiológica de parir (JARDIM; MODENA, 2018).
A demonização do parto e a penitência da mulher são sinônimos do pecado original
feminino apregoado por concepções religiosas, onde a dor do parto é pagamento pelo pecado,
entendendo esse sofrimento como um desígnio divino (DINIZ, 2005). Todavia, a ciência como
salvadora dos homens da ignorância cega, chama para si o papel de resgatar essas ‘pecadoras’
resolvendo extirpar a dor da vítima, a dor de ser quem é, a dor da sua própria natureza. Desta
forma, a obstetrícia médica assume o papel de combater os perigos e de resolver o problema da
parturição sem dor (DINIZ, 2005), cuja medicina vislumbra o parto como uma violência
intrínseca, uma violência sofrida pela mãe perpetrada pela criança ao nascer (REDE PARTO
DO PRINCÍPIO, 2012).
Diante desse sofrimento, o modelo biomédico de cuidado obstétrico, em sua
superioridade, retira a mulher de seu papel ativo no trabalho de parto, retira o parir e torna-o
patológico, ou seja, implica em possíveis danos, riscos e sofrimentos.
[...] Oferecendo solidariedade humanitária e científica diante do sofrimento, a
obstetrícia cirúrgica, masculina, reivindica sua superioridade sobre o ofício
feminino de partejar, leigo ou culto. (DINIZ, 2005, p. 628)
Em se tornando assim um evento de puro sofrimento e dor, a obstetrícia médica ofereceu
‘soluções’, mulheres davam à luz inconscientes, sedação total para que não houvesse lembrança
do que tinha ocorrido. Nesta sedação total era também utilizado um alucinógeno, o que produzia
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
113
muita agitação nas mulheres, e para tanto, tinham que ser amarradas nas camas, cenário este
que demonstra um parto instrumental (DINIZ, 2005).
De pecadora à vítima, a mulher é subjulgada aos desígnios dos profissionais –
representações de uma sociedade patriarcal -, sedada, desacorda, amarrada, instrumentalizada;
o nascimento se torna novamente o pecado original sob a forma de salvamento. A mulher se
torna, então, um elemento secundário no cenário do nascimento.
No modelo hospitalar dominante do século 20 as mulheres, embora conscientes
eram/são “imobilizadas, com as pernas abertas e levantadas, o funcionamento de seu útero
acelerado ou reduzido, assistidas por pessoas desconhecidas. Separada de seus parentes [...]”
(DINIZ, 2005, p. 629).
Em seu momento de vulnerabilidade4 - “nas salas obstétricas, encontram-se mulheres
seminuas na presença de estranhos, sozinhas em um cenário desconhecido, em posição de
submissão total, pernas abertas e levantadas, genitália exposta, rotineiramente separadas de seus
filhos logo após o nascimento” – a relação de autoridade se impõe, onde os profissionais de
assistência ao parto são imbuídos de autoridade técnico-científica, em uma relação de poder
desigual promovem o nascimento como um evento médico com protocolos a seguir (JARDIM;
MODENA, 2018, p. 2).
Historicamente, a conquista do poder por uma elite profissional médica e masculina
envolveu uma luta que acompanhou a abordagem racional e científica da saúde, bem como
introduziu os homens em setores tradicionalmente atendidos por mulheres, como o parto
(CAPRA, 2012). O modelo biomédico hegemônico se centra em um excesso de procedimentos,
procedimentos estes que compõem um protocolo comum de serviços de assistência obstétrica,
bem como em uma relação médico-paciente autoritária (PALHARINI, 2017).
O modelo patriarcal perpassa o ensino médico, trazendo sua característica de
hierarquização do masculino acima do feminino, onde nesta relação desigual deve existir o
agente capaz de decidir sobre o incapaz.
[...] os preceitos da cultura médica hegemônica, perpetuada por meio de suas
práticas e da garantia de sua continuidade pela formação dos futuros médicos,
funcionam como um dispositivo de verdade que ultrapassa evidências
científicas, normas e recomendações de órgãos da saúde. (PALHARINI, 2017,
p. 25).
4
O presente artigo utiliza o termo vulnerabilidade no sentido de caracterizar o momento em que a mulher necessita
decidir sobre a saúde e a vida do seu filho, bem como do momento no parto natural em que a mulher se entrega
por completo ao trabalho de parto, em que muitas vezes a atenção e consciência está voltada somente para esse
momento interno não percebendo, muitas vezes, as demais questões externas.
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reprodutivos V.4.
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Neste sentido, Amorim (2019, p. 4) pontua que o “saber médico é constituído em um
modelo patriarcal que vê o corpo feminino como essencialmente defectivo. E é um modelo que
reproduz a desigualdade e a hierarquia da sociedade.”
Além da característica do saber científico que proporciona essa desigualdade na relação
de poder, o estereótipo da mulher como sexo frágil a mantém sob a autoridade patriarcal – o
profissional – revelando a presença constante e influência das questões de gênero, onde a
representação de uma figura masculina é quem melhor pode decidir frente a um sujeito
fragilizado, incapaz e dependente. As mulheres são infantilizadas e fragilizadas para reforçar
esse modelo de hierarquia onde devem ser conduzidas pelos médicos e equipe responsável.
Importante pontuar que neste modelo de ensino, embora se tenha a presença de
profissionais mulheres e homens, o saber está imerso nesses valores patriarcais e de
hierarquização, sendo que a figura de autoridade personifica esses valores. Por isso, se tem
violências perpetradas por profissionais mulheres também.
No modelo biomédico de cuidado as pessoas são desumanizados, retiradas suas
identidades para figurarem como um número de prontuário a ser estudado, diagnosticado e
tratado (DINIZ et al., 2015). Nas profissões da saúde, em sua maioria, o ensino não é
humanizado, restando uma relação de sujeito-objeto, ou seja, o médico e a doença, e o paciente
um material didático.
Neste cenário, onde o nascer está centrado no profissional, há terreno fértil para práticas
violentas. Usualmente se pergunta para a mulher que pariu: quem realizou seu parto? O que
demonstra uma completa desatenção a esta relação de mulher autônoma, inserida em seu
contexto social e cultural trazendo ao Mundo novo ser gestado, nutrido, cuidado pela mulher,
passando a demonstrar que a autoridade médica é a responsável pelo nascimento de uma nova
vida, enquanto a mulher foi mero receptáculo, afastando por completo seu protagonismo. Em
um mundo masculinizado, onde o parir se tornou patologia, se retira da mulher o parir
naturalmente, a expressão de ser quem é.
Nesse cenário, em que a mulher é objetificada e, por conseguinte, desconsiderada como
ser de direito, há terreno fértil para práticas violentas. Contudo, as mulheres têm reconhecido
nos aspectos patriarcais da medicina mais uma manifestação do controle do corpo das mulheres
pelos homens (CAPRA, 2012). Assim, cuidado centrado na mulher e o respeito a sua autonomia
feminina são nortes para transformar essa assustadora realidade (REDE PARTO DO
PRINCÍPIO, 2012).
A mudança neste cenário assustador, portanto, seria proposta pela organização civil
fundada nos preceitos do feminismo, centrando o olhar na consideração da mulher como
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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principal sujeito (REDE PARTO DO PRINCÍPIO, 2012). O feminismo teve um papel
fundamental na forma de reforma no parto nos Estados Unidos, criando centros de saúdes
feministas, sendo que esta luta evoluiu para se pensar a assistência a parir baseada em direitos,
um direito humano inserido nos conceitos de direitos reprodutivos e sexuais (DINIZ, 2005).
Do mesmo modo, a terminologia violência obstétrica nasce com o ativismo das
mulheres, sendo uma das inúmeras formas de violência de gênero e suas intersecções de classe
e raça, sendo mais fortemente difundido no ano de 2015. O termo é considerado recente,
todavia, a prática violenta não. Há narrativas da década de 50 nos Estados Unidos e na
Inglaterra, de partos em hospitais onde imperavam a negligência à mulher, bem como práticas
irracionais, como parturientes serem drogadas e amarradas contra sua vontade, separadas de
seus filhos (DINIZ et al., 2015).
No Brasil, desde a década de 80 documentos oficiais, como o Programa de Atenção
Integral à Saúde da Mulher (PAISM) já apontava e reconhecia o tratamento agressivo e
impessoal dado à mulher na atenção à saúde da mulher. E a temática avançou, tornando-se
objeto de leis estaduais, como a Lei Estadual de Santa Catarina, Lei ordinária nº 17.097/17 que
dispõe de medidas de informação e proteção contra violência obstétrica (DINIZ et al., 2015).
Há diversas definições, tipificações e classificações do termo violência obstétrica, sendo
relatado pela Organização Mundial da Saúde que
[...] desrespeitos e abusos durante o parto nas instituições de saúde incluem
violência física, humilhação profunda e abusos verbais, procedimentos
médicos coercivos ou não consentidos (incluindo a esterilização), falta de
confidencialidade, não obtenção de consentimento esclarecido antes da
realização de procedimentos, recusa em administrar analgésicos, graves
violações da privacidade, recusa de internação nas instituições de saúde,
cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e
situações ameaçadoras da vida, e detenção de mulheres e seus recém-nascidos
nas instituições, após o parto, por incapacidade de pagamento (OMS, 2019,
p.1).
Para a autora Amorin a
Violência obstétrica consiste na apropriação do corpo da mulher e dos
processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento
desumanizado, medicalização abusiva ou patologização dos processos
naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas
próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem
consequências negativas em sua qualidade de vida. (2019, p. 3)
Importante observar que as práticas de conduta violenta não são realizadas apenas por
médicos, podendo ser praticadas por qualquer profissional no decorrer do parto, aborto,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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puerpério, pré-natal. Todavia, diante do modelo de assistência hospitalocêntrico e
medicalizado, acaba-se focando na figura do médico e este, então, aparece mais nos relatos de
abusos.
Embora se tenha um aumento nas discussões com relação a violência sofrida pelas
mulheres na gestação, parto e pós-parto, na contramão o Ministério da Saúde, neste ano de
2019, instituiu como política pública o fortalecimento da utilização de outros termos que não o
da violência, sob a justificativa de que o profissional da saúde não teria a intenção de prejudicar
ou causar dano. Ora, a partir da narrativa dos casos concretos é possível apontar que o uso da
terminologia Violência Obstétrica é adequado. Quando um médico realiza a episiotomia sem o
consentimento da mulher, ao contrário, com a expressa manifestação de vontade solicitando a
não realização, isso caracteriza um dano. Ao passo que, de forma mais grave, como citado por
Amorim (2019), para realizar o procedimento da episiotomia, o médico rasga o períneo da
paciente com a mão. Se há a necessidade de um elemento subjetivo, ou seja, a vontade de causar
dano, este exemplo é indiscutível.
Uma auxiliar de enfermagem veio e disse que eu estava com frescura porque
parto normal era assim mesmo, doía e que eu tinha que ter pensado antes de
engravidar [...] Minha mãe consegui subir, mas foi barrada na porta [...] sabia
que ela deveria buscar socorro urgente porque eu morreria caso ninguém
fizesse nada. Ela tentou, mas ninguém ajudou – todos disseram que era
frescura [...]. Na troca do plantão pela manhã [...] a médica pediu que me
dessem soro com ocitocina para tentar fazer o parto. Mesmo assim, ela me
avisou que não sabia se seria possível e que talvez nem eu nem o meu bebê
sobrevivêssemos. [...] fui submetida a um parto normal com quatro
centímetros de dilatação, fizeram algo parecido com uma manobra de fórceps,
mas com as mãos, tomei 28 pontos na episiotomia [...] meu filho já estava em
sofrimento e passou 22 dias na UTI. [...] Foi muito traumático ter essa
experiência. Desencadeei um histórico de ansiedade e depressão pós-parto,
pois eu e meu bebê sofremos muito (Julia Souza5, 33 anos) (MASSA, 2016,
p. 2).
Colocaram meu bebê, que nasceu morto aos 5 meses, numa luva cirúrgica”
Talmai Terra, 31 anos (fonte: época – vítimas de violência obstétrica: o lado
invisível do parto)
Falaram: cale a boca! Quem manda no procedimento sou eu (Eva Maria
Cordeiro, 40 anos) (LAZZERI, 2015, p. 2).
Faziam 15 minutos que o meu primeiro filho tinha nascido e aí me aviaram
que ele havia falecido. Nesse momento começaram várias ofensas. Eu pedi
para o médico me desamarrar da maca, falei que estava sentindo muita dor nas
costas. Ele começou a reclamar que eu era muito “frescurenta”, que eu não
queria soro, que eu não queria ficar amarrada, que eu não queria que ele fizesse
o exame de toque. Disse que eu já tinha matado meu primeiro filho e que agora
eu ia matar o segundo (Luma, 22 anos) (SUDRÉ, 2019, p. 4).
5
Codinome utilizado na publicação fonte para preservar a identidade
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reprodutivos V.4.
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A obstetra fez exame de toque no meio de uma contração. Eu avisei que estava
tendo uma contração e ela enfiou o dedo mesmo assim, no meio de uma
contração. Eu quase morri (Yasilis, 32 anos) (SUDRÉ, 2019, p. 8).
Esses relatos concretizam o cenário de desrespeito e violência sofridos por mulheres no
parto, sendo que a Organização Panamericana da Saúde, afirma que há uma frequência de
desrespeito e maus-tratos no parto de 43% das mulheres, em verdade, “essas brutalidades são a
ponta de um iceberg, porque qualquer tipo de apropriação do corpo da mulher e dos processos
de saúde e assistência, reduzindo a autonomia da mulher, são caracterizados como violência
obstétrica, uma das formas da violência de gênero” (AMORIM, 2019, p. 3).
Em todos esses casos médicos, o que ocorre é a perpetuação de práticas misógenas,
patriarcal, medicalizada e hospitalocêntrica de um modelo de assistência a saúde sexual e
reprodutiva da mulher (AMORIM, 2019). E mais, a política silenciadora e invisibilizadora do
Ministério da Saúde em excluir a utilização do termo violência obstétrica reforça ainda mais a
permanência desse modelo de subalternização da mulher, tendo como matriz a violência de
gênero, a retirada da autonomia da mulher.
3. O CENTRO DE PARTO NORMAL – CASA DE PARTO
Diante de toda essa crença médica de falha do corpo feminino em parir, não há dados
científicos que apresentem tal condução, muito pelo contrário, como já apontado, as mulheres
em sua maioria não apresentam fatores de risco que influenciem no trabalho de parto.
Desta forma, questiona-se o que seria boas práticas para um trabalho de parto, bem como
para não apresentar complicações. O foco estaria no protagonismo da mulher, e não apenas em
práticas clínicas de rotina, onde se reconhece a experiência de parto positiva quando se supera
as crenças e expectativas pessoais e socioculturais prévias da mulher. Por certo que isso inclui
dar à luz a um bebê saudável em um ambiente seguro, assistida por profissionais amáveis e com
competências adequadas (OMS, 2018).
Outro ponto chave está na participação da tomada de decisão, mesmo quando se
necessita ou se deseja intervenções para parir. Haja vista, na assistência ao parto e nascimento
há situações que podem apresentar mais de uma opção de cuidado, sendo que cada opção
apresenta benefícios e riscos. O processo de tomada de decisão informada, portanto, objetiva
apoiar a mulher a fazer escolhas informadas no contexto de seus próprios valores e preferências
(ONTARIO PUBLIC HEALTH ASSOCIATION, 2018). É um direito da mulher e uma
demonstração de respeito à sua autonomia, envolvê-la nas escolhas sobre seu corpo.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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Nesse sentido, as recomendações da OMS sobre os cuidados essenciais no parto
afirmam que independente do país ou região e do tipo de saúde disponibilizada no país o
enfoque é uma prática centrada na mulher, por meio de uma visão holística baseada nos direito
humanos, considerando toda a complexidade deste evento (OMS, 2018). Além disso, nas
recomendações para um parto respeitoso aos direitos humanos e à complexidade do evento,
como alternativa para o modelo de cuidado hegemônico, têm-se o Centro de Parto Normal
(CPN), com a proposta de viabilizar um espaço baseado no cuidado, respeito e tecnologias
apropriadas para partos, com financiamento público, a fim de oferecer acesso a todas as
mulheres que optarem por esse local de parto.
Em Santa Catarina tramita o Projeto de Lei 0343.0/2017 que define o CPN como uma
unidade de saúde que presta atendimento humanizado, seguro e de qualidade exclusivamente
às mulheres em condições clínicas de realizar um parto normal sem distócia (SANTA
CATARINA, 2017a). Cabe apontar que o CPN é uma política pública nacional, respaldada pela
Portaria nº 11 de 2015 e incentivada pela Rede Cegonha como estratégia para redução do
excesso de intervenções ao parto e nascimento (BRASIL, 2015).
Nesse local, a enfermeira obstetra e obstetriz são as profissionais responsáveis pela
assistência, tendo em vista que são habilitadas para atendimento ao parto de risco habitual
(baixo risco na antiga nomenclatura). A fim de corroborar com a importância da implementação
de CPNs, estudos apontam que partos atendidos por enfermeiras obstetras têm maior índice de
satisfação das mulheres e menores taxas de intervenções (VARGENS; SILVA; PROGIANTI,
2017).
Ainda, o CPN privilegia a privacidade, a dignidade e a autonomia da mulher ao parir,
oferecendo um espaço acolhedor e confortável, onde o pré-parto, parto e puerpério (PPP) são
atendidos no mesmo ambiente, oportunizando o contato pele a pele imediato e ininterrupto da
mãe e do recém-nascido. Além disso, no CPN a presença do acompanhante de escolha da
mulher é estimulada, bem como o respeito a individualidade da mulher e ao seu protagonismo
no parto e decisões.
Uma das atividades previstas neste Projeto de Lei é o desenvolvimento de atividades
educativas e de humanização, no intuito de preparar a mãe para o parto e amamentação do
recém-nascido. Aqui importante apontar a essencialidade de tal projeto, visto que o Brasil tem
alto índice de cesáreas (55% no SUS, em 2016), “as implantações dos Centros de Parto Normal
(CPN) são fundamentais para acabar com a epidemia de cesáreas no Brasil, cujos números
ultrapassam em muito a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) que fixa
limite de 15% desses procedimentos” (SANTA CATARINA, 2017a; OMS, 2019, p. 3).
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Portanto, é um novo serviço na rede pública de saúde de atenção às mulheres, bebês e
famílias, um espaço de nascimento com respeito. Além disso, é uma outra opção de local de
nascimento, a qual oferece atendimento mais humano e menos intervencionista, entendendo o
nascimento como um processo saudável e parte da vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cenário obstétrico brasileiro caracteriza-se por elevada taxa de intervenções
desnecessárias e desrespeito à autonomia da mulher. O profissional, fiel ao modelo biomédico
assume o protagonismo do processo parturitivo e, por conseguinte, a condução do corpo da
mulher. Dessa forma, a fisiologia do nascimento é imputada pelas rotinas e práticas que visam
assessorar a ‘máquina que não está funcionando adequadamente’. A partir deste olhar, a mulher
é violada em seus direitos, pois suas necessidades, desejos e escolhas passam a ser secundários
a um sistema que serve a produção de nascimentos controlados e violentos. Desta forma, a
violência obstétrica tem deixado marcas em 1/4 das mulheres brasileiras.
O direito de bem parir e bem nascer, portanto, precisa ser respeitado e efetivado, haja
vista, mulheres, recém-nascidos e familiares serão influenciados por essa experiência ao longo
de suas vidas. Boas práticas ao parto e nascimento promovem vínculo, favorecem a
amamentação e garantem a satisfação da mulher. A fim de fomentar esse cenário respeitoso,
estratégias como o Centro de Parto Normal são incentivadas como política pública, bem como
o acesso a informação baseada em evidências científicas. À medida que a mulher conhece seus
direitos e é informada de suas possibilidades de escolhas, se empodera para escolher e se
mobiliza a resgatar seu espaço de agente ativa na roda da vida.
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O ENSINO DE SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO NAS AULAS DE CIÊNCIAS:
POSSIBILIDADES À DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Gabriele Nigra Salgado1
Lívia Dornelles Madrid2
RESUMO
O artigo analisa as representações de estudantes acerca do parto e nascimento, identificadas por
meio de desenhos produzidos nas aulas de ciências de uma escola de educação básica, e num
curso de formação de professores de biologia, na educação superior. A representação
predominante dos estudantes de ambas as instituições evidencia o parto como um evento de
sofrimento e dor à mulher, sendo a internação hospitalar e as intervenções médicas sempre
necessárias. As relações desta representação com a naturalização da violência obstétrica foram
discutidas sob a perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Ciências, visando identificar e
problematizar as relações sociais, de poder e de saber implicadas na construção de significados
sobre a temática. Esta abordagem do ensino de Sexualidade e Reprodução nas aulas de ciências
mostrou-se uma possibilidade didática potente à desconstrução de narrativas generalizantes e
deterministas que acabam por violar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Palavras-chave: Ensino de ciências. Violência obstétrica. Estudos culturais. Sexualidade.
INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a analisar as representações de estudantes acerca de temas
relacionados ao conteúdo Sexualidade e Reprodução, previsto nas escolas como currículo das
aulas de Ciências, e discutir a relação destas com a naturalização da violência obstétrica. A
investigação foi desenvolvida através de uma proposta de ensino que envolveu estudantes da
educação superior e básica em dois contextos e momentos distintos. A primeira etapa aconteceu
durante a disciplina de Tópicos em Biologia e Educação, ofertada para os estudantes da primeira
fase de uma turma do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), em 2017 e, a segunda, ocorreu nas aulas de Ciências ofertadas para
duas turmas de oitavo ano do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne3, em 2019.
Embora tenha sido necessário fazer adequação do conteúdo aos diferentes públicos, o
foco das aulas foi o nascimento e o parto, sendo o objetivo principal evidenciar a construção
1
Professora. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC). Docente articuladora
da área de Ciências da Natureza do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne. gabrielesalgado@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1048042365703759
2
Professora. Especialista em Ciências Ambientais pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões (URI). Docente de Ciências da Natureza do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne.
liviamadrid82@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8151416316428534
3
O Centro Educacional Marista faz parte do Grupo Marista e está localizado na comunidade do Monte Serrat, em
Florianópolis (SC). Atende a aproximadamente 550 crianças, adolescentes e jovens com educação básica, gratuita
e na perspectiva de Educação Integral.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
124
histórica e cultural de algumas representações sociais acerca de como acontece o parto. A
discussão promovida com os estudantes buscou relacionar algumas formas naturalizadas de ver
e de falar sobre o parto e o não questionamento de alguns protocolos hospitalares e discursos
médicos que constituem uma grave violação à autonomia das mulheres, aos seus direitos
humanos e aos seus direitos sexuais e reprodutivos (PAES, 2018).
A escolha por enfatizar esta temática e sua relação com a violação desses direitos se
justifica pela constatação de que a violência obstétrica, que acomete uma a cada quatro
brasileiras durante o parto (VENTURI et. al, 2010), é um conceito praticamente desconhecido
e que foi incorporado às leis e políticas públicas de proteção à gestante e parturiente há muito
pouco tempo no Brasil. Em Santa Catarina, por exemplo, este conceito aparece pela primeira
vez na Lei 17.097, aprovada em 2017, em cujo artigo segundo fica explícito que se considera
como violência obstétrica todo ato praticado pelo médico, pela equipe do hospital, por um
familiar ou acompanhante que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes, em
trabalho de parto ou, ainda, no período puerpério.
Apesar do considerável avanço do Estado em reconhecer a violência obstétrica, em maio
de 2019, o Ministério da Saúde emitiu um despacho no qual defendeu a retirada desta expressão
das leis brasileiras, sob a justificativa de uma conotação inadequada associada ao termo que, de
acordo com o que foi declarado no documento, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado
humanizado no continuum gestação-parto-puerpério. Esta decisão foi reiterada em junho deste
ano, quando o Ministério declarou manter a decisão de não usar esta expressão em suas normas
e políticas públicas, embora reconheça o direito da sua utilização pela população. Apesar deste
posicionamento, cabe ressaltar que na literatura científica esta expressão já é consolidada e,
segundo a revisão teórica realizada por Zanardo e colaboradores, compreende-se por violência
obstétrica:
[...] o uso excessivo de medicamentos e intervenções no parto, assim como a
realização de práticas consideradas desagradáveis e muitas vezes dolorosas,
não baseadas em evidências científicas. Alguns exemplos são a raspagem dos
pelos pubianos, episiotomias de rotina, realização de enema, indução do
trabalho de parto e a proibição do direito ao acompanhante escolhido pela
mulher durante o trabalho de parto (DINIZ, 2009; D’OLIVEIRA, DINIZ;
SCHRAIBER, 2002; LEAL et al., 2014 apud ZANARDO et. al, 2017, p. 5).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (2014), este tipo específico de violência
contra a mulher tem acontecido de diversas maneiras durante a assistência ao parto nas
instituições de saúde públicas e privadas no mundo todo, seja por meio de xingamentos ou
frases de conotação sexual (violência verbal), por meio de procedimentos dolorosos e
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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desnecessários sem consentimento (violência física) e, até mesmo, por negligência, abusos e
maus-tratos, o que pode ter consequências adversas para a mãe e para o bebê, principalmente
por se tratar de um momento de grande vulnerabilidade à mulher (ZANARDO et. al, 2017).
De acordo com García, Diaz e Acosta (2013), um fator sempre presente entre as
gestantes é a falta de informação e o medo de perguntar sobre os processos que irão ser
realizados na evolução do trabalho de parto. Esta situação pode levá-las a se conformar com a
exploração de seus corpos por diferentes pessoas, aceitando diversas situações incômodas sem
reclamar. Esta constatação nos provoca a questionar: como alguns discursos médicos e a
medicalização do parto foram naturalizados historicamente a ponto de práticas de violência
obstétrica serem aceitas, sem reclamação, pelas mulheres?
Alguns dos fatores que explicam a naturalização da violência obstétrica estão
relacionados hospitalização em massa dos partos, que ocorreu há cerca de cinquenta anos, e
transformou este evento, antes considerado como natural e que acontecia entre mulheres, em
algo perigoso, que precisa ser controlado por medicamentos, tecnologias e intervenções
realizadas, majoritariamente, por homens médicos. Este processo levou à perda de autonomia
e decisão das mulheres sobre seus próprios corpos durante o parto.
Somam-se a este cenário, fatores econômicos que enquadraram o parto numa lógica de
mercado, na qual se utilizam procedimentos que aceleram o processo e justificam algumas
intervenções caras e lucrativas como sendo necessárias.
Pela complexidade desta temática e pelas consequências deste tipo de violência para a
qualidade de vida das mulheres que passam pela experiência do parto, compreende-se que este
tema merece uma discussão aprofundada em diversos setores e instituições da sociedade,
inclusive na Educação em Ciências que acontece nas escolas e na formação de professores de
Ciências e Biologia, que serão os responsáveis por este ensino.
Através da análise das representações dos estudantes que participaram desta
investigação, nosso objetivo é possibilitar reflexões sobre o que a nossa cultura, incluindo-se
nesta o ensino de Ciências e Biologia, tem nos ensinado - ou deixado de nos ensinar - acerca
do corpo feminino e seu processo reprodutivo, bem como evidenciar algumas relações entre
estes ensinamentos e a construção de representações sociais acerca do parto.
Neste sentido, a organização das aulas esteve fundamentada na abordagem dos Estudos
Culturais em Ciências, que defende um modo de pensar a Biologia implicada em relações
sociais, em relações de poder e saber e nos contextos culturais (SILVA, 2012), o que possibilita
identificar e, talvez, desconstruir estas relações que participam da criação de narrativas
generalizantes e deterministas que acabam por naturalizar a perda de autonomia e capacidade
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
126
de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade
de vida das mulheres (AGUIAR, 2010). Com esta investigação, pretendemos possibilitar outra
perspectiva para o ensino de Sexualidade e Reprodução nas escolas, bem como contribuir com
as atuais discussões sobre os direitos reprodutivos e a violência de gênero contra as mulheres.
1. HOSPITAIS, MÉDICOS E TECNOLOGIAS: AS REPRESENTAÇÕES DE PARTO
EVIDENCIADAS NAS AULAS DE CIÊNCIAS
O ensino da Sexualidade e Reprodução nas aulas de Ciências tradicionalmente se baseia
numa abordagem bastante técnica, na qual se introduzem os termos científicos referentes à
morfologia dos órgãos que compõem os sistemas genitais (feminino e masculino) e suas
funções, bem como os mecanismos fisiológicos envolvidos na concepção, desenvolvimento e
nascimento dos bebês. De acordo com Michel Foucault (1998), essa tendência foi enraizada,
historicamente, por uma forma de saber desenvolvida graças ao conhecimento médico, ou seja,
“as metodologias orientadas pelo discurso médico-biológico, reproduzido na anatomia da
reprodução humana, cumprem, portanto, a função de reger a sexualidade, através de conceitos,
explicações e modos de disciplinarização, presentes na organização curricular” (CARVALHO,
2009, p.1).
A problematização desse ensino, tecnicista e disciplinador, foi o foco da aula
desenvolvida com os graduandos de licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC, que teve a
duração de duas horas e contou com a participação de quarenta e quatro estudantes. Para tanto,
buscamos evidenciar a sexualidade envolvida na reprodução humana como sendo um
dispositivo produzido pelos acontecimentos históricos, culturais, e mesmo subjetivos que irão
compor as nossas linguagens e as nossas práticas e representações (FOUCAULT, 1998).
Neste sentido, foram enfatizados os modos como alguns artefatos culturais, que
circulam na própria formação escolar básica e superior, participam da construção de
significados sobre o corpo feminino, tendo sido destacadas algumas imagens dos livros
didáticos de ciências onde se percebe a presença da mulher somente quando se ensina sobre o
sistema reprodutor. A ausência do corpo feminino na exemplificação de outros sistemas do
corpo humano e sua presença apenas quando se trata da reprodução é um exemplo de como o
referido dispositivo atua na construção de uma subjetividade que passa a compor a
representação social de que reproduzir-se e ser mãe é “natural” para a mulher e não uma escolha
pessoal.
Esta ênfase em como se aprende sobre o corpo feminino implicado com a reprodução
através do livro didático, bem como de outros artefatos culturais que circulam em nossa
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
127
sociedade (revistas, filmes, exposições, etc.), foi o enfoque diferenciado da aula ministrada aos
futuros professores de Ciências e Biologia, na UFSC. Em comparação ao que realizamos na
escola de ensino básico, com os educandos de oitavo ano, a metodologia de aula que passamos
a relatar a seguir, bem como os vídeos assistidos, foram os mesmos com as três turmas
investigadas.
As duas turmas de oitavo ano do CEM Lúcia Mayvorne totalizaram trinta e cinco
estudantes, e a temática foi desenvolvida em três aulas de cinquenta minutos cada. Na primeira
aula os educandos foram convidados a desenhar a cena de um parto, na qual deveriam
representar as pessoas envolvidas neste evento, o lugar onde acontecia e os sons que fazem
parte deste momento, utilizando recursos textuais como balões de fala e onomatopeias. Depois
de prontos os desenhos, todos assistiram a um vídeo de parto natural com o objetivo de
identificarem se o desenho de cada um apresentava elementos que se aproximavam do tipo de
parto apresentado. Aqueles que apresentavam proximidade ao parto natural foram colados de
um lado da parede, enquanto que os que eram diferentes ficaram no lado oposto.
No momento de observação coletiva dos desenhos, ficou evidente, tanto na turma de
estudantes da UFSC (que realizaram a mesma dinâmica) quanto nos oitavos anos do CEM Lúcia
Mayvorne, uma grande quantidade de desenhos com elementos que se referiam ao parto
hospitalar (65%) sendo, na maioria deles, realizado pelo médico, mostrando a mulher numa
posição passiva, deitada na posição de decúbito dorsal, com expressão de dor e sofrimento,
conforme representado nos desenhos que compõem a Figura 1.
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Figura 1 - Representações de parto e nascimento hospitalares
Fonte: Acervo pessoal da primeira autora.
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129
O vídeo escolhido para problematizar estas representações majoritárias foi o Birthday4
(2012), da parteira Naolí Vinaver Lopez, no qual ela documenta o nascimento da sua terceira
filha, tendo sido um parto natural, na água, em casa, com a presença dos seus familiares (marido,
filhos, pai e mãe). Neste vídeo, a mulher é mostrada dando à luz em seu próprio lar, de forma
ativa e livre, sentindo dores em alguns momentos e sorrindo em outros, assistida por pessoas
em quem ela confia e com respeito à evolução lenta e processual do parto, sem nenhuma
intervenção. Narrado em primeira pessoa pela própria parteira, o parto se apresenta neste vídeo
como sendo um processo fisiológico natural do próprio corpo:
[...] as mulheres dando à luz, quando são deixadas em paz, sabem exatamente
o que fazer para parir. Nós mulheres temos por dentro o profundo
conhecimento de como nos movimentarmos precisamente, de como empurrar,
quando empurrar. O corpo que fez o bebê sabe exatamente como expulsá-lo
do corpo e fazê-lo nascer (BIRTHDAY, 2012, 6'44''-7'05'').
Consideramos este um artefato cultural interessante para problematizar as
representações majoritárias presentes nos desenhos dos estudantes por se tratar de um vídeo
que constrói significados acerca do parto e nascimento bastante distintos daqueles atribuídos ao
parto hospitalar. Entretanto, cabe destacar, que 34% dos desenhos trouxeram elementos do
parto humanizado, conforme se pode observar nas imagens que compõem as figuras 2 e 3.
Figura 2 - Representação de parto domiciliar
Fonte: Acervo pessoal da primeira autora.
4
O filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VXLnw2J6Vuc. Acesso em 18 ago. 2019.
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Figura 3 - Representações que se aproximam do parto humanizado.
Fonte: Acervo pessoal da primeira autora.
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Nestes desenhos, o parto acontece no hospital ou em casa, com a assistência de um
médico da família (figura 2). A mulher aparece parindo em pé ou de cócoras, em acordo com a
gravidade que, por sua vez, auxilia na descida do bebê, e a mulher aparece sendo apoiada por
outras pessoas (companheiro, médico, mulheres) que lhes dão a mão e lhes dizem frases de
afeto, encorajamento e as expressões do rosto são de esforço, dor e tranquilidade.
Além de identificar as representações dos estudantes sobre a temática investigada, esta
dinâmica inicial teve o intuito de fazê-los perceber que o conhecimento que apresentam sobre
o parto e o nascimento são produzidos em muitos espaços e instâncias culturais, como nos
programas de TV, séries e filmes que assistem; nas músicas que ouvem, nas revistas e livros
que lêem (inclusive o livro de ciências da escola), nas práticas subjetivas advindas da
convivência familiar, com amigos e namorado/a; nos movimentos sociais, em políticas públicas
e campanhas para a promoção da saúde a que têm acesso, entre outras.
Através dos desenhos pudemos evidenciar e problematizar toda uma rede de instituições
que constituem uma Pedagogia Cultural5, pela qual se constrói e se divulga verdades e
representações culturais que nos transmitem atitudes, valores, crenças e significados que
influenciam nossa visão de mundo e nossas escolhas. Portanto, nesta arena cultural onde se
disputam significados, o conhecimento sobre sexualidade, parto e nascimento:
[...] ganha novos significados quando esse percorre diversas outras posições e
cenários que envolvem posições políticas, sociais, institucionais e pessoais,
muitas vezes não exploradas quando se visualiza a construção do cotidiano e
as possibilidades de desestabilizar identidades e discursos dominantes.
(CARVALHO, 2002, p. 17)
Apesar de alguns desenhos apresentarem elementos que representam a mulher como
protagonista, o parto retratado como um momento de sofrimento e dor, que precisa de
intervenções médicas e internação hospitalar, estava representado como discurso dominante.
Neste sentido, a próxima etapa da aula foi o momento de desestabilização deste discurso, que
pode estar intimamente relacionado à naturalização da violência obstétrica.
Para tanto, organizamos dados estatísticos e evidências científicas que pudessem
confrontar algumas afirmações dos estudantes que justificavam a necessidade da hospitalização
como medida de segurança às mulheres e bebês e a intervenção cirúrgica cesariana como
justificativa para "salvar vidas". Não negamos a conquista tecnológica que a cesárea representa,
5
Esta expressão foi cunhada no campo teórico dos Estudos Culturais e pode ser compreendida como um processo
que educa por meio da produção de significados (cultura), sendo exercido por diferentes instâncias culturais, não
somente as escolares. Deste modo, tanto a cultura é vista como uma pedagogia, como a própria pedagogia é vista
como uma forma cultural (SILVA, 1999).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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nem o fato de que ela possa salvar vidas, apenas questionamos, junto aos estudantes, quais
fatores levam a ocorrência de 52% desta cirurgia nos partos realizados no setor público,
podendo chegar a 88% no setor privado (PAES, 2018). Estas estatísticas se tornam alarmantes
quando consideramos a recomendação da organização mundial da saúde, de que a taxa ideal de
cesáreas varie entre 10% e 15% (OMS, 2014).
Neste sentido, levantamos as seguintes questões: se a cesárea serve para "salvar vidas",
o que justifica um número tão elevado desta cirurgia em nosso país? Parir e nascer se tornou
tão arriscado a ponto de justificar tais estatísticas? Por que motivos as mulheres não são
informadas acerca das consequências de uma cesárea? A problematização dos dados
apresentados junto ao histórico da hospitalização do parto, levantado por Zanardo e
colaboradores (2017), ajudou a esclarecer que alguns fatores políticos, econômicos e sóciohistóricos contribuíram para a cultura do parto hospitalar como a conhecemos hoje.
O processo de hospitalização do nascimento aconteceu no final do século XX, chegando
a uma taxa de 98,08% de partos hospitalares realizados na rede de saúde do Brasil, entre os
anos de 2007 e 2011 (ZANARDO, et. al., 2017). Concomitante a este processo, houve o
aumento do uso de tecnologias de monitoramento e controle da evolução do trabalho de parto,
com forte adesão em nosso país, conforme revelou a pesquisa nascer no Brasil, que entrevistou
23.940 mulheres em 191 municípios:
[...] em 70% das mulheres foi realizada punção venosa, cerca de 40%
receberam ocitocina e realizaram aminiotomia (ruptura da membrana que
envolve o feto) para aceleração do parto e 30% receberam analgesia
raqui/peridural. Já em relação às intervenções realizadas durante o parto, a
posição de litotomia (deitada com a face para cima e joelhos flexionados) foi
utilizada em 92% dos casos, a manobra de kristeller (aplicação de pressão na
parte superior do útero) teve uma ocorrência de 37% e a episiotomia (corte na
região do períneo) ocorreu em 56% dos partos. Esse número de intervenções
foi considerado excessivo e não encontra respaldo científico em estudos
internacionais (LEAL et al., 2014, apud ZANARDO et. al., 2017, p. 2).
As estatísticas comprovam que, a partir de uma cultura intervencionista, têm-se utilizado
em larga escala procedimentos considerados inadequados e desnecessários, que muitas vezes
podem colocar em risco a saúde e a vida da mãe e do bebê, sem avaliação adequada da sua
segurança e sem base em evidências científicas (DINIZ; CHACHAM, 2006).
No Brasil, os exames sofisticados, as intervenções e procedimentos cirúrgicos
contrapõem-se aos cuidados à mulher para realização e estimulação do parto normal e
caracteriza nossa realidade marcada pela cultura da medicalização do parto e por um
atendimento com abuso de intervenções cirúrgicas que transformaram o parto e o nascimento
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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em um evento médico e masculino, incluindo a noção do risco e da patologia como regra, e não
mais como exceção. Neste modelo tecnocrático, a mulher deixou de ser protagonista de seu
próprio parto, cabendo ao médico a condução do processo (PASCHE et al., 2010; SANFELICE
et al., 2014; WOLFF; WALDOW, 2008).
Para além das relações de poder (masculino/feminino; natural/tecnológico), cabe
destacar a apropriação de um discurso do medo pelas instituições que lucram com os partos
para convencer as pessoas de que é mais seguro um parto controlado, utilizando-se de vários
procedimentos e medicamentos caros, como a anestesia, internação, antibióticos,
antiinflamatórios, equipamentos do centro cirúrgico. Para fomentar uma ressignificação acerca
das representações dos estudantes foi preciso percorrer, em nossas discussões, estes outros
cenários, e posições políticas, sociais, institucionais não tão exploradas em seus cotidianos.
Encerramos a aula com a apresentação do vídeo A difamação do Parto6 (2015), de
Cynara Scheffer, que reúne um conteúdo imagético que possibilitou fazer uma excelente
sistematização da discussão realizada. A narrativa construída por Cynara demonstra como foi
sendo criada, através da cultura em diferentes períodos históricos, uma difamação do parto
normal que levou às estatísticas alarmantes que hoje conhecemos a respeito dos partos
cesarianos e à aceitação, sem questionamentos, de intervenções desnecessárias durante o parto.
O vídeo mostra, ainda, alguns partos naturais como contraponto ao modelo tecnocrático e
intervencionista, o que permitiu promover uma breve reflexão acerca do movimento de
humanização do parto.
Originado no final da década de 1980, este movimento vem propondo mudanças
baseadas nas propostas realizadas pela OMS que, em 1985, já "estimulava o parto vaginal, a
amamentação logo após o parto, o alojamento conjunto da mãe e do recém-nascido e a presença
de acompanhante durante o processo" (ZANARDO et. al., 2017, p.3). Para muitas mulheres,
estes quatro direitos básicos de assistência ao parto ainda são negados e geram consequências
inimagináveis para a qualidade de vida delas e dos bebês, o que nos motiva a propor aulas de
Sexualidade e Reprodução que provoquem os estudantes à ressignificarem o que lhes sempre
pareceu ser "normal" ou "natural" acerca do parto.
2. POTENCIALIDADES E LIMITAÇÕES DOS ESTUDOS CULTURAIS À
DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
6
O filme está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2jsUrevlua8. Acesso em 18 ago. 2019.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
134
A seguir compartilhamos um texto que explicita os efeitos desta aula para uma mulher
que percebeu ter sofrido violência obstétrica a partir das reflexões suscitadas na aula realizada
no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC, o qual a estudante estava cursando,
em 2017. A partir deste texto e de alguns comentários escritos pelos estudantes de oitavo ano
do CEM Lúcia Mayvorne, iremos tecer considerações acerca das potencialidades e limitações
da abordagem teórica dos Estudos Culturais em Ciências à desnaturalização da violação dos
direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.
Resolvi fazer meu comentário baseado no tema da primeira temática exposta
em aula: biologia e cultura imbricadas na reprodução e no parto. Esse foi o
tema que mais me sensibilizou, talvez pelo fato de ser mãe de dois filhos e
também pelas questões que me despertaram a respeito dos meus partos e de
tantas outras mulheres. Vieram-me as lembranças das mulheres da minha
família, minha mãe, tias e avós. Minha avó teve quatorze filhos, todos de parto
normal, em casa. Já minha mãe, que teve três filhos, todos nasceram de
cesariana no hospital e não amamentou nenhum porque, segundo ela, não
tinha leite. Perguntei o porquê da escolha das cesarianas, já que no caso dela
foi realmente uma escolha, e me disse que tinha medo de sentir dor, que parto
normal era coisa dos antigos e que nos hospitais o parto era mais simples. Era
o que ela pensava, ou foi induzida a pensar, não sei! Ela conta que, naquela
época, todas queriam fazer cesariana, pois era o mais indicado e ela abraçou a
idéia. Ela veio de uma cidadezinha pequena e foi morar em São Paulo e as
mulheres de lá faziam cesarianas. Quando eu fiquei grávida pela primeira vez,
optei pelo parto normal, fiz o pré-natal, estava tudo certo, teria meu filho pelo
SUS. [...] Fomos felizes para a maternidade, a Santa Casa da cidade que
morávamos. Chegamos e nos despedimos na portaria, pois era proibida a
entrada de qualquer outra pessoa. Naquele momento me senti muito insegura,
as dores estavam aumentando e eu não conhecia ninguém. Uma enfermeira
veio e me depilou, o que achei estranho porque ela nem me perguntou se eu
queria. Para ela era um procedimento normal, para mim, uma violação da
minha intimidade. Fiquei com vergonha! Depois me colocou numa sala de
pré-parto e várias gestantes estavam esperando à hora de ir para sala de parto.
Havia muitos gritos, fiquei com medo, meu marido ouviu os gritos e entrou lá
desesperado, achando que era eu. Ainda não era, e ele foi tirado pelos
seguranças que pediram para ele ir embora. Ele foi muito preocupado e triste.
[...] Um médico veio me ver e pediu para a enfermeira me colocar um soro e
ela não conseguia achar minha veia, me picou varias vezes até achá-la,
deixando meu braço todo roxo. Depois de colocado o soro a dor que senti
acredito que não exista maior no mundo. Não tinha posição e a orientação, ou
melhor, a ordem, era para ficar deitada. Chorei, vomitei, senti vontade de
morrer e, nesses momentos, perdi a conexão com meu filho, estava fora de
mim. O momento que tanto sonhei se tornou um pesadelo, estava rodeada de
pessoas estranhas e frias num lugar horrível. Depois de muito gritar, o médico
me levou para a sala de parto, me colocaram numa cama deitada, com as
pernas para cima e um dos médicos pressionava minha barriga. Senti que ia
desmaiar, até que fizeram um corte na minha vagina e fiz uma força que veio
de minhas entranhas. Meu filho nasceu lindo, 1.370kg, 49 cm, cabeludo, forte!
Fiquei enamorada dele, mas me levaram para uma sala pós-parto e fiquei
algum tempo sozinha. Como um bicho, fiquei nervosa com a falta da cria,
estava toda suja de sangue, levantei e fui tomar um banho sozinha. Ainda
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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sentia dor, a dor do corte na vagina. Logo depois ele chegou e ficamos num
quarto com outras mães por três dias. Recebi a visita da minha mãe e do meu
marido, falei para ele que pensava numa fuga, estava num nível de estresse
tão grande que não conseguia nem ouvir falar de parto e era só o que se falava
naquele quarto. Enfim chegou o dia que fui para casa com meu filho, parecia
que tinha saído de um campo de concentração! Logo depois me senti
deprimida, mas, mesmo assim, consegui amamentá-lo. Amamentei meu filho
por um ano e meio e minha mãe, que não tinha amamentado, se realizava
através de mim. Depois de contar-lhe como tinha sido meu parto, ela
concordou que minha avó, apesar dos 14 partos, sofreu muito menos porque
ela estava em casa, acolhida pela família. Os partos de minha avó foram
humanizados! Minha mãe não sentiu dor em seus partos, mas não teve leite e
acredito que pode ter sido uma conseqüência da cesariana. Meu segundo filho
também foi de cesárea, não pude fazer o parto normal porque ele teve
bradicardia e a obstetra achou melhor não arriscar. Confesso que, depois de
tudo também tive medo, mas arriscaria para não deixar de amamentá-lo. Trago
minha própria história porque depois dessa aula todas estas questões do parto
vieram à tona em mim, pois não me dava conta da tamanha violência que sofri
e que as mulheres continuam sofrendo. Tenho amigas que fizeram o parto
humanizado e suas histórias, apesar de também sentirem dor, são diferentes!
Dependendo de sua classe social você sofre mais ou menos e, infelizmente, os
partos humanizados ainda são para uma pequena parcela das mulheres que
podem pagar por ele. Ainda assim, acredito que esteja acontecendo um
movimento maior de divulgação desse parto, um resgate da nossa natureza,
pois esse tipo de parto nos permite aceitarmos quem somos: mulheres e
parimos! Cada qual com seu jeito, de cócoras, na água, deitada, mas acima de
tudo com amorosidade. Não temos educação sexual e o parto deveria ser um
tema a ser discutido, estudado e esclarecido. Ainda se romantiza o fato de ser
mãe, na realidade não tem nada de romântico porque as dores e dificuldades
são muito maiores para as mulheres. Somos induzidas o tempo todo a ser mãe,
mas será que temos consciência do que é ser mãe? Talvez se eu tivesse essa
consciência lá atrás, não teria tido, ou teria agora, mais vivida, menos
romântica.
Através do relato da estudante, é possível identificar expressões que revelam um
dispositivo de sexualidade, que age por meio da cultura do medo e do discurso institucional
determinando os modos de ver, falar e até as escolhas das mulheres em relação ao próprio parto:
[...] tinha medo de sentir dor; [...] nos hospitais o parto era mais simples; [...] ela conta que
naquela época todas queriam fazer cesariana, era o mais indicado e ela abraçou a idéia. Sua
narrativa, aos poucos, nos conta dos vários tipos de violência obstétrica que ela sofreu, a
começar pelo impedimento da presença de um acompanhante - [...] nos despedimos na portaria,
era proibida a entrada de qualquer outra pessoa; [...] me senti muito insegura - seguida da
tricotomia dos pêlos pubianos, procedimento com o qual ela sente-se violada - [...] ela nem me
perguntou se eu queria, para ela era um procedimento normal, para mim uma violação da
minha intimidade. A negligência ao atendimento de outra parturiente também é um fato
observado pela estudante: [...] gritava e não era atendida.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Algumas intervenções são relatadas, como a aplicação da ocitocina sintética - Um
médico veio me ver e pediu para enfermeira me colocar um soro - cujo efeito foi a aceleração
do parto e a intensificação das contrações uterinas, o que lhe causou muita dor: [...] acredito
que não exista maior no mundo, não tinha posição e a orientação, ou melhor, a ordem, era
para ficar deitada. Com os movimentos restringidos, outras intervenções são realizadas, como
a manobra de Kristeller (proibida em vários países) e a episiotomia: [...] um dos médicos
pressionava minha barriga e senti que ia desmaiar, até que fizeram um talo na minha vagina.
Quando a mãe e o bebê recebem alta, a sensação relatada pela estudante é de ter saído de um
campo de concentração e ela sentiu-se deprimida quando voltou para casa.
Não vamos nos deter em analisar o discurso da estudante, pois o que nos cabe aqui é
ressaltar que o seu texto nos indica que a aula lhe despertou algumas lembranças, emoções e
subjetividades, muitas vezes desconsideradas na abordagem de ensino tecnicista dos temas que
envolvem a sexualidade. Nossa aposta no ensino que considera a cultura e a biologia imbricadas
na relação do parto e nascimento está em possibilitar a percepção de que "as práticas carregadas
de significados culturais estereotipados de desvalorização e submissão da mulher, atravessadas
pelas ideologias médica e de gênero, se tornam naturalizadas na cultura institucional”
(ZANARDO et. al, 2017, p. 9).
Neste sentido, a aula aqui relatada, baseada nos Estudos Culturais em Ciências, mostrouse como uma possibilidade didática sensível e potente para evidenciar os impactos que a perda
de autonomia e de decisão tem sobre os corpos e sexualidade da mulher, contribuindo com uma
possível desnaturalização da violência obstétrica, conforme destacado pela estudante: Trago
minha própria história porque depois dessa aula todas estas questões do parto vieram á tona
em mim e não me dava conta da tamanha violência que sofri e que as mulheres continuam
sofrendo.
Esta proposta também se soma a um movimento que busca romper com o paradigma
conteudista da abordagem tecnicista do ensino de Sexualidade e Reprodução nas escolas de
educação básica, que foca na reprodução de nomes e funções dos órgãos do sistema reprodutor.
Uma das limitações desta abordagem é que o conteúdo se torna muito teórico e
descontextualizado das dúvidas e desafios que os adolescentes apresentam durante a fase da
puberdade. Assim, a aprendizagem pode se tornar, muitas vezes, enfadonha para os estudantes,
com ênfase na repetição de termos técnicos e não no questionamento e na contextualização
deste conhecimento em suas vidas e na comunidade escolar onde vivem.
Com as turmas de oitavos anos do CEM Lúcia Mayvorne pudemos perceber que a
abordagem dos Estudos Culturais em Ciências também possibilitou uma ressignificação das
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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representações de parto e nascimento verificadas em comentários escritos em seus cadernos:
Eu entendi que o parto de hoje pode ser feito em casa ou no hospital, que temos que respeitar
os corpos das mulheres, o momento dela e da criança [...]; Hoje em dia o parto é visto de uma
maneira muito menos importante do que deveria. Para ajudar, poderíamos fazer leis mais
rígidas sobre o parto [...]; O parto é visto como uma obrigação, como se a mulher só servisse
para ter filho [...]; Eu acho que para o parto voltar a ser um ato feminino e natural as mulheres
e seus parceiros, ou as pessoas que irão acompanhá-las na hora do parto, deveriam estudar e
se preparar mais. Assim, eles não precisariam, necessariamente, ir à maternidade.
Nas discussões realizadas com estas turmas, também foram relatados alguns casos de
violência obstétrica que familiares dos alunos sofreram. Contudo, observamos que para a
maioria dos estudantes ainda persiste a ideia de haver muitos riscos durante o parto o que,
justifica estar no ambiente hospitalar, como uma garantia à saúde da mãe e do bebê.
Neste sentido, é importante ressaltar que não enfatizamos em nossas aulas o parto
domiciliar como oposição ao parto hospitalar e nem o parto natural ao parto com intervenções,
pois reconhecemos que a biologia e a cultura são indissociáveis na reprodução e no parto, ou
seja, defendemos que o parto natural não é uma condição sine qua non a todas as mulheres, pois
cada uma apresenta uma história pessoal e um contexto social que irão se relacionar
intimamente com sua experiência de parto.
Acreditamos que, tão desrespeitoso quanto à violência obstétrica, seria atribuir à mulher
a incumbência de parir a qualquer custo, sob a justificativa de que temos instintos biológicos
que responderão, de forma natural, neste processo. Este pensamento desconsidera o momento
de vida, a história pessoal e outros fatores que podem levar a mulher a fazer outras escolhas
conscientes. O que está em discussão não é o retorno ao parto em casa sem assistência
especializada, o que consideramos um grande risco, mas o direito da mulher poder receber a
informação necessária para decidir sobre como deseja parir, e ser respeitada em sua decisão por
aqueles que irão assisti-la durante o parto, aconteça este em casa ou no hospital.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise dos registros acerca do parto e nascimento produzidos pelos estudantes
investigados nos permite concluir que há uma relação entre as representações de parto
hospitalares e a naturalização da violência obstétrica, evidenciada pelos desenhos e textos que
trazem significados culturais estereotipados de submissão, atravessados por ideologias médicas
e de gênero que, por sua vez, desvalorizam a mulher. Por outro lado, verificamos que pode estar
em curso uma mudança nesta representação predominante, pois também foram identificados
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reprodutivos V.4.
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elementos que apontam para uma ideia de parto onde a mulher é protagonista, respeitada em
suas necessidades e desejos.
Contudo, para que seja possível afirmar a existência desta mudança, bem como
compreender os seus impactos à qualidade de vida das mulheres, apontamos à necessidade de
mais pesquisas que relacionem a construção das representações sociais com a pedagogia
cultural existente nas várias instâncias culturais da nossa sociedade, não apenas nas escolas.
Nas aulas realizadas buscamos valorizar uma abordagem para o ensino de Sexualidade
e Reprodução que contemplasse além da dimensão biológica, a cultural e a estética, numa
tentativa de superar o conteudismo e a abordagem tecnicista. Neste sentido foi possível
constatar que estas aulas possibilitaram ativar emoções e subjetividades em relação à realidade
pessoal de alguns estudantes, o que consideramos uma possibilidade didática importante para
ressignificar as representações de parto e nascimento contribuindo, assim, com o direito à
informação contextualizada que, em sua potencialidade, pode desnaturalizar atos de violência
que ferem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
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reprodutivos V.4.
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A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLÊNCIA GLOBAL E A
ALTERNATIVA (DE CONTENÇÃO) APRESENTADA PELOS INTERMEDIÁRIOS
Gabriela Ferreira Dutra1
Liziane da Silva Rodríguez2
Paulo Thiago Fernandes Dias3
Sara Alacoque Guerra Zaghlout4
RESUMO
A invasão da privacidade da mulher, por meio do fenômeno conhecido como pornografia de
vingança, adquiriu novas proporções quando passou a ser cometida no ambiente virtual. Nesse
sentido, essa violência adquiriu caráter instantâneo, multiplicador e sem limitações de ordem
territorial. Utilizando-se de estudo bibliográfico, o presente trabalho tem como objetivo
principal analisar a violência da pornografia de vingança cometida contra mulheres no ambiente
virtual e o papel dos ditos “intermediários”. Primeiramente, analisar-se-á as características
dessa violência com ênfase no seu caráter cibernético (violência global), os sujeitos que
participam da violação (agressores primários e secundários) e as consequências para as vítimas.
Em seguida, pretende-se demonstrar a situação dos intermediários – sites que fazem o “index”
ou disponibilizam a informação. A investigação se debruçará ainda sobre o ordenamento
jurídico brasileiro, no que diz respeito à pornografia de vingança e à responsabilização dos
intermediários por mencionada prática.
Palavras-chave: Pornografia de vingança. Direito internacional privado. Violência de gênero.
Crime cibernético. Cyberspace.
INTRODUÇÃO
A invasão da privacidade da mulher, no que diz respeito à sua sexualidade, não é
novidade na história da humanidade. É possível observar contos tão antigos, datados de 485
a.c., que descrevem situações nas quais um homem busca observar a mulher nua sem o seu
1
Doutoranda em Direito internacional Público na University of Milan - Bicocca. Mestra em Direito pela University
of
London
Birkbeck
College.
E-mail:
gabefdutra@gmail.com.
Link
do
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1548554527209764.
2
Advogada inscrita OAB/RS. Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC/RS). E-mail: liziane00@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5373453337860546
3
Professor de Direito Penal na Universidade CEUMA e de Direito Processual Penal na Faculdade UNISULMAIESMA. Advogado inscrito na OAB/MA. Doutorando em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS). Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC/RS). E-mail: paulothiagofernandes@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4247353234663822.
4
Advogada inscrita na OAB/MA. Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS) e Bolsista CAPES. Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUC/RS). E-mail: sah.alacoque@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2927150421896071
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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consentimento. Refere-se ao conto descrito por Heredotus, no qual o Rei Candaules trai a
confiança de sua esposa Lydia ao tentar observá-la nua com a ajuda do guarda Gyges.
Apesar de não ser um comportamento novo, a invasão da intimidade sexual da mulher
assumiu novas características com o advento das Tecnologias de Informação e de Comunicação
(TICs), que possibilitaram que informações, dados e variados tipos de arquivos fossem
compartilhados com milhares de usuários da rede mundial de computadores em questão de
segundos, a um custo baixíssimo.
Dessa forma, a invasão da privacidade sexual da mulher, praticada no ambiente virtual,
adquiriu novas proporções ao exponenciar a exposição e tornar, na prática, impossível de
garantir a extinção da informação compartilhada na rede e hospedada em sítios eletrônicos,
principalmente, quando estrangeiros. Em função disso, utilizando-se de estudo bibliográfico, o
artigo versa sobre violações cometidas no ambiente virtual somente – dando enfoque para esse
tipo específico da violência contra a mulher.
No contexto desse trabalho, dentre as mais diversas formas de invasão da privacidade
da mulher, busca-se tratar mais especificamente da distribuição de material íntimo
(especialmente, fotos e vídeos), sem consentimento feminino, o que também é tipicamente
conhecido como “pornografia de vingança”. Conforme será brevemente explicado a seguir, essa
violência pode ou não ser praticada por um antigo ou atual companheiro da vítima – ou até
mesmo ser uma situação de extorsão –, o que, de certa forma, explicita uma das limitações dessa
terminologia5. Ainda assim, neste trabalho, preferiu-se utilizar a terminologia pornografia de
vingança (em seu sentido amplo), pois foi através dela que o conhecimento dessa forma de
violência tornou-se mundialmente conhecida.
As consequências dessa agressão para as mulheres são inúmeras e versam desde perdas
econômicas até consequências emocionais gravíssimas que, em alguns casos, já levaram
algumas vítimas à prática de suicídio (CARVALHO; ARRAES, 2017). Argumenta-se neste
trabalho, porém, que o fato dessa violência ser atualmente cometida no ambiente virtual
agravou significativamente os danos (e as perdas) para a vítima.
A pornografia de vingança no ambiente virtual também incluiu novos atores que
perpetuam de maneira direta ou indireta a violência contra a mulher violada. Em função disso,
pretende-se revelar o papel dos servidores de internet na exponencialização da violência e,
assim, demonstrar que a colaboração desses novos atores pode ser de grande importância para
5
Segundo a organização internacional End Revenge Porn, a expressão tecnicamente mais adequada seria
“pornografia não-consensual” (GIONGO, 2015). Já no âmbito da legislação brasileira (Lei 13.718/2018), a prática
é chamada de “divulgação não consentida de imagens íntimas”.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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atenuar os efeitos da violação, caso se recusem a compartilhar ou a hospedar esse tipo de
material íntimo.
1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA
Quanto mais a internet se incorpora às atividades do dia a dia, maiores são as chances
para invasões na vida privada. Aliás, a própria noção de privacidade vai ganhando novos
contornos, especialmente no que refere à cada vez maior divulgação de informações pessoais
(inclusive de cunho íntimo) nas redes sociais.
Nalguma medida, essa publicização do afeto, do íntimo, do particular, por meio de
mecanismos potencializadores desse processo de divulgação, relaciona-se com um sentimento
narcísico, no sentido de que o eu é projetado para o público (SENNETT, 2015, p. 21 e ss.).
Este, a sua vez, aprovará ou não o teor daquilo que, inicialmente íntimo, tornou-se público.
Não se trata, na contemporaneidade, da desvalorização da privacidade, de sua
substituição por ideais coletivos ou sociais, ou seja, não há uma substituição
da valorização individual pela preocupação coletiva ou pública. O que se
constata, na verdade, é uma busca pela exaltação da individualidade, que deve
ser exibida ao olhar do outro. É a imposição da privacidade no público. Assim,
os relacionamentos devem ser mostrados para o público em geral, para
transmitir uma ideia de felicidade e complementariedade do casal. Além disso,
há também um gozo em penetrar na privacidade alheia e conhecer a intimidade
da vida amorosa para se ter acesso não só à suposta felicidade dos parceiros,
mas, especialmente, aos conflitos e à infelicidade conjugal (MOREIRA;
LIMA; STENGEL; PENA; SALOMÃO, 2017, p. 11).
No que diz respeito à pornografia de vingança, segundo estudo realizado pela McAfee
(PITCHER, 2016, p. 1435-1466), aproximadamente 50% das pessoas utilizaram os telefones
móveis para compartilhar mensagens de texto, e-mails ou fotos de cunho íntimo. Esses números
apontam uma mudança considerável na forma como as pessoas compreendem, sentem e
manifestam a sua sexualidade na contemporaneidade, refletindo na maneira como essas novas
tecnologias serão utilizadas, inclusive no campo da criminalidade.
O problema público da sociedade contemporânea é duplo: o comportamento
e as soluções que são impessoais não suscitam muita paixão; o comportamento
e as soluções começam suscitar paixão quando as pessoas os tratam,
falseadamente, como se fossem questões de personalidade. Mas, uma vez que
esse duplo problema público existe, ele cria um problema no interior da vida
privada. O mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras; não se acha
mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento
alternativo e balanceado de si mesmas. A erosão de uma vida pública forte
deforma, assim, as relações íntimas que prendem o interesse sincero das
pessoas. Nas últimas quatro gerações, não ocorreu nenhum exemplo mais
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
143
vívido de tal deformação do que na mais íntima das experiências pessoais, o
amor físico (SENNETT, 2015, p. 21/22).
Amor físico esse, na atualidade, compreendido como sexualidade, tendo já passado pela
noção de erotismo. Para Sennett (2015, p. 22) o erotismo representava que a manifestação
sexual se verificava por meio de ações, sejam elas ligadas à repressão ou à interação. Sendo que
a sexualidade, por seu turno, configura “[...] um estado no qual o ato físico do amor decorre
quase como uma consequência passiva, como um resultado natural do sentimento de intimidade
entre duas pessoas”.
Nesse diapasão, à medida que as relações de consumo se modificam com o passar dos
anos, a própria sexualidade passa a ser experimentada de forma diferente. A troca de material
íntimo (os denominados nudes) via aplicativos de internet se insere nesse contexto em que as
relações se tornam superficiais, descartáveis, reféns da aprovação pública (por mais
desconhecido que seja esse público em termos reais). O próprio conceito de intimidade também
se torna poroso, haja vista que “[...], com a chegada dos smartphones, cada um passou a ser
protagonista do seu próprio show da intimidade. Ocorreu uma ruptura entre o sujeito que olha
e o olhar” (VERAS, 2019, p. de internet).
Após essas breves notas sobre a própria compreensão da sexualidade, verifica-se ainda
que não é apenas a frequência da utilização das Tecnologias de Informação e de Comunicação
que aumenta a exposição dos indivíduos a violações de privacidade, mas também o fato de o
Direito e os avanços tecnológicos se desenvolverem de forma diferente (RISCO). Enquanto as
tecnologias avançam de forma quase experimental, o Direito, em regra, regula aquilo que existe
já no plano material, ou seja, entre o desenvolvimento e a regulamentação de uma tecnologia
pelo Direito, observa-se um “gap” temporal, que contribui para que violações se perpetuem no
“cyberspace”.
A pornografia de vingança nem sempre é praticada por algum ex-parceiro da vítima que
pretende alguma vindita por conta do término do relacionamento ou mesmo evitar, via
chantagem, que enlace afetivo se desfaça. A revange porn pode ser realizada por sadismo de
hackers ou também com intuito de obter vantagem patrimonial indevida, configurando o delito
de extorsão, previsto no artigo 158 do Código Penal, cuja definição legal consiste em
“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou
para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer
alguma coisa” (BRASIL, 1940).
Aquele que pratica a pornografia de vingança parece ter o objetivo de causar o maior
prejuízo à vítima, seja ele financeiro, emocional e/ou social. É comum que o agressor envie o
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
144
conteúdo íntimo para a família da vítima, empregadores ou outras pessoas com as quais ela
mantenha laços afetivos/profissionais, atingindo significativamente suas relações sociais
(BUZZI, p. 29). Dessa forma, como consequência da exposição, as vítimas são muitas vezes
obrigadas a modificar suas características (como por exemplo, o corte e a cor do cabelo), mudar
de emprego ou de cidade, isolar-se do seu convívio social habitual, entre outras possibilidades.
O prejuízo decorre da vergonha em função da exposição daquilo que tradicionalmente pertence
à vida íntima de uma pessoa em um ambiente público.
Apesar de a pornografia de vingança afetar homens e mulheres, deve-se reconhecer que
ela afeta muito mais as mulheres do que os homens, tanto em números quanto na gravidade das
consequências que essa violência ocasiona para os diferentes gêneros (CITRON, 2014).
Ademais, a sociedade é considerada, por excelência, patriarcal, sendo a liberdade sexual
feminina ainda motivo de julgamentos, tanto perante o campo social da informalidade (senso
comum), como no campo da formalidade (Sistema de Justiça Criminal). 6 Isso significa que,
apesar de a violação do direito à privacidade ser – de certa forma – similar para esses gêneros,
as consequências (ou os prejuízos) sofridos pela mulher são, em regra, muito maiores e mais
intensos que os sofridos pelo homem, em função das tradicionais (e atuais) estruturas sociais
patriarcais.
Esse imaginário é baseado em normas socialmente construídas que fixam um
lugar para a sexualidade da mulher. São normas rígidas e tradicionais que
autorizam socialmente o julgamento e a punição daquelas que não seguem os
padrões. Do mesmo modo, padrões de masculinidade atuam para que os
homens não passem pelo mesmo julgamento moral que as mulheres. Para eles,
muitas vezes, ter uma foto íntima divulgada trata-se de uma afirmação da sua
masculinidade (DAMITZ; FARIA, 2017, p. 80).
Aguiar (2000, p. 308) acentua que o “[...] patriarcalismo estabeleceu-se no Brasil como
estratégia da colonização portuguesa [...]”, tendo estreita correlação com a escravidão. Estavam
(patriarcalismo e escravidão) intimamente interligados com a questão da sexualidade, já que os
escravocratas se valiam da prática de estupros para engravidar suas escravas e, com isso,
aumentar a quantidade de escravos (propriedade). Essa prática sexual abusiva é uma das
características do patriarcado. Ainda segundo Aguiar (2000, p. 309), “[...] a religião, portanto,
Para melhor elucidar, pode-se citar Shecaira: “[...] de um lado tem-se o controle social informal, que passa pela
instância da sociedade civil: família, escola, profissão, opinião pública, grupos de pressão, clubes de serviço etc.
Outra instância é a do controle social formal, identificada com a atuação do aparelho político do Estado. São
controles realizados por intermédio da Polícia, da Justiça, do Exército, do Ministério Público, da Administração
Penitenciária e de todos os consectários de tais agências, como controle legal, penal etc.”. (SHECAIRA, 2014, p.
56).
6
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145
enquanto substituta da magia, racionaliza o comportamento social pela regulação da
sexualidade”.
Saffioti (2011, p. 57-58) reforça a importância da manutenção do uso do termo
patriarcado, no que tange ao estudo dessa cultura da dominação masculina, que também é
sexual, em relação às mulheres. Deve-se conservar o termo patriarcado pelas seguintes razões:
a) por configurar-se uma relação de natureza civil (e não meramente particular); b) pela
concessão de direitos sexuais aos homens, de forma, pode-se dizer, ilimitada em face das
mulheres; c) em razão da natureza hierarquizada desse tipo de relação, observada nos diversos
estamentos sociais; d) por possuir uma base material; e) diante da corporificação que opera; e)
por caracterizar uma estrutura de poder firmada tanto na ideologia, quanto na violência.
Difícil dissociar a pornografia de vingança do âmbito da violência de gênero, já que,
nesse contexto, conforme apresentado acima, trata-se de uma violação, sendo esta concebida
como espécie de mandato, que, por sua vez, “[...] seria condição necessária para a reprodução
do gênero como estrutura de relações entre posições marcadas pelo diferencial hierárquico, e
instância paradigmática de todas as outras ordens de status” (PEREIRA, 2007, p. 459). No
contexto de uma sociedade patriarcal, portanto, evidencia-se, cristalinamente, a vulnerabilidade
vivenciada pela mulher, já que a sua sexualidade ainda é controlada e julgada (por homens ou
por critérios masculinos).
2. ASPECTOS ESSENCIAIS DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO
VIOLÊNCIA GLOBAL
Deve-se esclarecer que a conduta violenta cometida no ambiente virtual não conhece
fronteiras e que, dessa forma, assim como outros crimes praticados no “cyberspace”, a
pornografia de vingança é uma forma de violência global (CHAWKI, 2015, p. 8). Sobre o tema,
o Relatório Europeu concluiu que: “[...] computer-related crimes are committed across
cyberspace and don’t stop at the conventional state-borders. They can be perpetrated form
anywhere against any computer user in the world” (CHAWKI, 2015, p. 8)7.
Quando se trata da pornografia de vingança, afirma-se que o material que expõe a
intimidade da vítima tem o potencial para chegar a usuários da rede mundial de computadores
presentes em todos os países, isto é, o alcance é potencialmente global e difuso. Ainda que
agressor (primário) e vítima estejam sob a jurisdição de um mesmo país, a conduta violenta
7
“[...] crimes informáticos cometidos por meio do ambiente virtual não se limitam as fronteiras tradicionais dos
Estados. Eles podem ser cometidos de qualquer lugar e contra qualquer usuário de computador no mundo”.
(CHAWKI, 2015, p. 8). Tradução livre.
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146
acaba sendo perpetrada por outros milhares de usuários, muitas vezes anônimos e nas mais
diferentes jurisdições, que multiplicam o impacto e o alcance da violência, na medida em que
compartilham e/ou consomem o material íntimo distribuído sem o consentimento da vítima.
Nesse sentido, é possível identificar dois principais atores que participam da agressão
conhecida como pornografia de vingança. Como sujeitos diretos do crime encontram-se a
vítima, como a pessoa que teve seu material íntimo espalhado na rede sem consentimento, e o
agressor, enquanto responsável por disponibilizar esse conteúdo a terceiros sem o
consentimento da vítima. Como participantes de forma indireta na violência, podem ser
identificados dois outros atores: (1) aqueles que “consomem” e/ou compartilham o material e,
também, (2) os sites, provedores da web, mídias sociais que disponibilizam o material para uma
ampla audiência (que costuma atrair ganhos com publicidade, de acordo com o número de
visitações ao site. Com outros dizeres, há toda uma indústria estabelecida em torno dessa prática
ilícita).
Quando vítima e agressor encontram-se sob a mesma jurisdição parece mais
fácil garantir a punição do agressor, pois não é necessário buscar a cooperação judicial e o apoio
de países terceiros para haver a responsabilização. Nesse sentido, as legislações domésticas são,
talvez, num primeiro momento, importantes para combater a atividade maliciosa no ambiente
virtual (CHAWKI, 2015). No caso da pornografia de vingança, a legislação doméstica parece
servir, inicialmente, para prevenir que o conteúdo íntimo se espalhe por meio da rede mundial
de computadores (com ressalvas que serão realizadas a seguir).
O papel preventivo da lei talvez seja ainda mais importante nos casos de pornografia de
vingança, pois ainda que ações repressivas sejam tomadas contra esse agressor, pouco pode ser
feito para impedir que esse conteúdo se espalhe e se multiplique, quando já disponibilizado na
web. Uma vez que uma informação é disponibilizada na rede mundial de computadores, tornase quase impossível rastrear completamente o seu alcance. Dessa forma, é praticamente
impossível garantir que essa informação seja extinta (CHAWKI, 2015).
A incapacidade de garantir a extinção do conteúdo íntimo da web faz com que a vítima
viva constantemente sob o medo de ser confrontada novamente com o material que lhe causa
vergonha, dor, insegurança, temor e humilhação. Ainda que a vítima exerça nova profissão,
assuma outra identidade e mude de cidade para mitigar o impacto que a agressão teve em suas
relações e status sociais, a internet não conhece limites e a agredida pode voltar a ter a sua “nova
vida” invadida pela agressão sofrida no passado. Não é possível precisar quantas e quais pessoas
visualizaram o conteúdo divulgado. Ao considerar a possibilidade de se reviver infinitas vezes
a agressão, pode-se alegar que, além de ser uma violência global, a pornografia de vingança
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reprodutivos V.4.
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também é uma violência que se perpetua no tempo - o que a torna ainda mais cruel e de difícil
reparação.
3. AS DIFICULDADES NA RESPONSABILIZAÇÃO DE AGRESSORES PRIMÁRIOS
E SECUNDÁRIOS
Quando a prevenção não é possível, e atos caracterizadores da pornografia da vingança
são perpetrados, deve-se buscar a punição do agressor e a reparação da vítima. Porém, as
legislações domésticas apresentam pouca efetividade para lidar com o caráter global da conduta
violenta. Quando os agressores – primários ou secundários - se encontram em jurisdição
diversa, faz-se necessário o apoio no judiciário estrangeiro para a repressão, o que torna essa
violência um problema de direito internacional privado (BAMBAUER, 2014).
Os problemas na utilização da cooperação judicial para combater a pornografia de
vingança são inúmeros, destacando-se a falta de alinhamento nas diferentes jurisdições sobre
aspectos essenciais dessa violência, como a própria concordância sobre a definição da violência
e/ou o bem jurídico violado. Enquanto alguns países combatem a pornografia de vingança na
esfera criminal, outros o fazem na esfera civil. Alguns ainda possuem legislações específicas
sobre essa matéria, enquanto outros preferem realizar a repressão por meio da tutela da
privacidade.
A responsabilização daqueles indivíduos que consomem e/ou compartilham o conteúdo
íntimo enfrenta dois desafios: a) identificar o usuário que compartilha, e b) identificar a
consciência volitiva. As dificuldades na responsabilização dos agressores secundários,
apontadas a seguir, apresentam-se independentemente de estarem ou não na mesma jurisdição
em que a vítima se encontra e decorrem essencialmente do caráter virtual que assume essa
violência.
O problema sobre identificar todos esses envolvidos na perpetuação da violência se deve
ao fato de que a internet foi construída sobre a base do anonimato e, portanto, desenhada para
que os seus usuários não sejam identificados (CHAWKI, 2015). Identificar usuários da internet
e o seu comportamento na web transpassa inúmeras jurisdições e as suas respectivas leis de
proteção de dados (ou privacidade), o que envolve significativos recursos financeiros, humanos,
etc. Na prática, isso torna quase impossível identificar todos àqueles que acessam ou
compartilham o material de cunho íntimo que foi distribuído sem o consentimento.
Já a questão que se refere ao elemento da vontade, que é normalmente requisito para
responsabilização na esfera criminal, deve-se observar que existe material de cunho sexual
disponível na web que foi produzido e compartilhado de maneira consensual. Dessa forma,
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reprodutivos V.4.
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pode-se argumentar que se torna difícil para aquele que acessa ou compartilha a informação
como intermediário distinguir se o conteúdo foi disponibilizado com ou sem consentimento da
pessoa ofendida. Assim, ainda que fosse possível identificar todos os que acessam ou
compartilham as imagens decorrentes da pornografia de vingança seria difícil estabelecer o
nexo volitivo necessário para a responsabilização criminal.
Se não é possível garantir a extinção completa da informação, nem a identificação de
todos os envolvidos na perpetuação da violência - ainda que de maneira indireta - uma
alternativa parece surgir para buscar a minimização das consequências dessa violência.
Segundo Suzor (2017, p. 1057-1097), um dos remédios mais eficazes para trazer reparação às
vítimas da pornografia é a responsabilidade dos ditos intermediários, ou seja, aqueles que “host,
index ou make available” o conteúdo na web, uma vez que eles servem como pontos efetivos
de controle8.
Nessa categoria, encontram-se servidores, canais de buscas, redes sociais que são
considerados pontos focais na internet para a distribuição de conteúdo. Estabelecem, por assim
dizer, um vínculo entre o conteúdo e o consumidor. A capacidade de controlar os conteúdos
distribuídos por esses grupos focais pode, portanto, reduzir a visibilidade que o material íntimo
atinge na internet. Reduzir a visibilidade da exposição do material íntimo também pode ser
considerada uma forma para mitigar o impacto dessa violação (SUZOR, 2017, p. 1057-1097).
Um exemplo disso seria garantir que, quando for feita a busca por meio do site Google, valendose do nome de uma pessoa vítima da pornografia de vingança, a plataforma não disponibilize o
material de cunho sexual, relacionado à ofendida, como resultado das buscas feitas.
A dificuldade em acessar o material na internet pode ser fator que diminua,
consideravelmente, a exposição da vítima da pornografia de vingança e, portanto, amenize as
consequências dessa violência. Apesar das inúmeras críticas quanto à viabilidade de tornar
esses intermediários responsáveis pelas informações compartilhadas em seus domínios, número
significativo das maiores plataformas de busca de informações, sites como o Facebook e
Youtube desenvolveram, voluntariamente, sistemas para responder a denúncias registradas
nessa área (SUZOR, 2017, p. 1057-1097).
4. O TRATAMENTO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO E A RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS
8
Esses termos são tipicamente utilizados na linguagem empregada no ambiente virtual. A tradução literal seria
“hospedam, arquivam (ou classificam) e tornam disponíveis”.
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Nesse sentido, como o problema da pornografia de vingança parece se espalhar, juristas
do mundo inteiro buscam propor soluções para o problema. Tais soluções variam de
mecanismos relacionados à proteção da privacidade, ao direito dos contratos, à propriedade
intelectual e, por último, à busca pela causação de dor emocional (PITCHER, 2016). Conforme
mencionado anteriormente, enquanto alguns ordenamentos parecem utilizar medidas de
natureza cível pra lidar com a prática da pornografia de vingança, outras legislações parecem
optar pela via criminal. Nesse sentido, há diferentes provisões para combater essa conduta,
sendo que elas variam conforme o país, dificultando as possibilidades das vítimas em buscar
reparação.
Sobre a tutela da pornografia de vingança no ordenamento brasileiro, deve-se primeiro
observar que recentemente surgiu menção específica à conduta de espalhar conteúdo íntimo da
mulher sem o seu consentimento. Anteriormente, em regra, esses casos acabavam sendo
tratados pelo rol de crimes contra a honra, como a difamação ou a injúria, sendo o primeiro o
ato de imputar fato ofensivo à honra e o segundo o ato de ofender a dignidade ou decoro. Quanto
à sanção penal, poderia haver a detenção por até um ano (o que geralmente não acontecia, pois,
em regra, são casos sujeitos às medidas despenalizadoras da Lei n. 9099/95) e, no âmbito cível,
indenização por danos morais e materiais. Ademais, como mencionado anteriormente, pode ser
também enquadrado como crime de extorsão, em que as penas são de 4 a 10 anos de reclusão.
E, ainda, caso ocorra em situações especiais, pode-se recorrer ao Estatuto da Criança e do
Adolescente ou à Lei Maria da Penha, conforme a peculiaridade do caso9.
Importa destacar, também, que existiram diversos projetos de lei que objetivaram alterar
o Código Penal ou a Lei Maria da Penha para regulamentar a matéria no Brasil. Vale citar: o
Projeto de Lei nº 6.630, de 23 de novembro de 2013 (apensado ao PL nº 5.555/2013), o Projeto
de Lei nº 6.713, de 06 de novembro de 2013 (apensado ao PL nº 6.630/2013), o Projeto de Lei
nº 6.831, de 26 de novembro de 2013 (apensado ao PL nº 6.630/2013), Projeto de Lei nº 5.822,
de 25 de junho de 2013 (apensado ao PL nº 5.555/2013), dentre outros. Referida informação
demonstra a preocupação dos legisladores em tutelar de maneira específica a pornografia de
vingança em face da insuficiência da legislação anterior para combater essa prática.
No que concerne à figura dos intermediários, num dos projetos de lei, o de n. 5.555, de
09 de maio de 2013, é possível visualizar uma preocupação do legislador para com a retirada
do conteúdo da rede mundial de computadores:
9
Apenas com intuito de observação, na ação da pornografia de vingança, ao adquirir caráter transnacional, a
competência para o processamento e julgamento dos processos passa a ser da esfera federal.
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O artigo 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, passa a vigorar acrescido
do parágrafo 5º, com a seguinte redação:
Art.22 [...] §5º Na hipótese de aplicação do inciso VI do artigo 7º desta Lei, o
juiz ordenará ao provedor de serviço de e-mail, perfil de rede social, de
hospedagem de site, de hospedagem de blog, de telefonia móvel ou qualquer
outro prestador do serviço de propagação de informação, que remova, no
prazo de 24 (vinte e quatro) horas, o conteúdo que viola a intimidade da
mulher (BRASIL, 2013).
De forma geral, o que se observa nos projetos é que há preocupação com a retirada
rápida do material disponibilizado sem a oitiva prévia do responsável pelo site hospedeiro, para
que o conteúdo não fique mais tempo à disposição do público e nem seja (ainda mais)
compartilhado, evitando maior circulação (e danos).
Ademais, pode-se citar também a Lei 12.737/2012, batizada como a “Lei Carolina
Dieckmann”, que acrescentou ao Código Penal artigos sobre delitos informáticos, dispondo
sobre invasão informática e divulgação de materiais privados. Tais artigos abrangem sobre
violação de dispositivos informáticos que obtém, adulteram ou destroem dados ou informações
sem autorização do titular do dispositivo, como também criminaliza aqueles que produzem,
oferecem, vendem ou difundem dispositivos ou programas de computador que permitem a
prática das violações acima descritas.
Contudo, o Projeto de Lei que gerou a Lei 13.718/2018, é de número 618, de 16 de
setembro de 2015, de autoria da Senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB/AM), vinculado também
ao Projeto de Lei de nº 5452 de 2016 (BRASIL, 2015). Inicialmente o Projeto visava alterar o
Código Penal para prever causa de aumento de pena para o crime de estupro cometido por duas
ou mais pessoas. A Senadora, ao justificar, alegou que os “estupros coletivos” estão cada vez
mais corriqueiros e de extrema repugnância, pois, além da violência física, a dignidade da
mulher é atingida, causando traumas irreversíveis.
Referido texto foi aprovado, entretanto, com algumas modificações durante seu
andamento, como a inclusão da importunação sexual, inclusão da divulgação de cena de estupro
e também da divulgação não consentida de imagens íntimas. Observa-se que de início o texto
não estava vinculado à temática da pornografia de vingança, mas durante a tramitação para a
aprovação foi passando por alguns ajustes.
A norma aprovada, que discorre sobre oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender
ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de
comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro
registro audiovisual que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da
vítima, deixa dúvidas sobre a responsabilidade dos intermediários, pois não apresenta um texto
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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bem claro para tal situação. Apesar de tutelar a temática da “pornografia de vingança”, ainda
deixa a desejar pela utilização de verbos amplos, o que proporciona uma margem de incertezas
sobre determinadas situações, como, por exemplo, a dos intermediários.
Nesse sentido, em âmbito normativo, a responsabilização de intermediários, perante a
violência contra a mulher na pornografia de vingança, fica prejudicada, pois não há regulação
para a responsabilização destes, como também não apresenta nenhuma medida alternativa para
que os “host, index ou make available” sejam utilizados como uma alternativa de contenção, já
que a possibilidade de controlar os conteúdos distribuídos poderia reduzir a visibilidade do
material íntimo na internet. Referida dificuldade visualiza-se tanto na legislação especifica (a
Lei 13.718/2018) quanto na Lei 12.737/2012, a “Lei Carolina Dieckmann”.
Além disso, apenas com o intuito de fazer um acréscimo e um contraponto,
imprescindível notar que a legislação por si só não tem força para modificar a situação de
vulnerabilidade para os problemas de gênero. Davis aponta ser um erro considerar que a
legislação, sozinha, irá criar justiça e igualdade (DAVIS, 2009, p. 109), já que, conforme as
situações por ela analisada nos EUA mesmo após promulgações de leis consideradas
importantes para garantir direitos, muitos problemas ainda persistem, especialmente quanto às
desigualdades econômicas, raciais e de gênero.
Conforme a mesma autora é importante refletir atualmente sobre as violências
institucionais, visto que há uma tendência de tentar acabar com os problemas sociais violentos
de forma violenta, sendo que, diante do que discorre Davis, esta não seria a melhor estratégia.
Para ela, deve-se começar a pensar em novas estratégias, como por exemplo, através dos
movimentos de massa (DAVIS, 2009, p. 137).
Tendo em vista que o sistema de justiça criminal brasileiro tende também para ações de
cunho patriarcal (aliado ao fato de que é seletivo e estigmatizante (SHECAIRA, 2014, p. 308),
visto ser a sociedade como um todo construída e difundida por essa cultura, não há garantias
que as vulnerabilidades femininas serão resolvidas por legislação criminalizante. Tal afirmativa
consiste porque é possível verificar a vitimização feminina nas esferas ditas protetivas, ou seja,
ao ocorrer um crime como o de pornografia de vingança, que envolve as liberdades sexuais, por
vezes, os órgãos de poder e controle acabam por julgar a conduta da mulher vítima, avaliando
se ela é realmente vítima e se merecia ou não ser tratada daquela maneira (ANDRADE, 2012,
p. 148), o que por qualquer ótica se mostra absurdo.
Sendo assim, talvez as soluções mais interessantes sejam através de um controle maior
sobre os materiais disponibilizados e a retirada deles também, de forma a dificultar o máximo
possível a divulgação, bem como que sejam encontrados novamente. Ainda, uma atuação mais
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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significativa na esfera positiva (CELMER; AZEVEDO, 2007, p. 16), vinculada a efetivação de
direitos fundamentais, trazendo a mulher como um sujeito de direitos (CAMPOS, 2003), seja
mais interessante que uma efetivação na esfera criminal, na qual são vistas como apenas
vítimas. Além disso, também seria significativo um rompimento com a cultura patriarcal,
formando uma nova história para a sociedade: livre das amaras estigmatizantes e limitadoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pornografia de vingança, como já referido, por ser, em algumas das vezes, veiculada
em sites ou em aplicativos de redes sociais, fato que ultrapassa barreiras territoriais e não há
como mensurar sua real repercussão. Nesse sentido, identificam-se sujeitos, como a vítima –
aquela pessoa que teve seus vídeos e/ou fotos íntimas divulgados sem a sua autorização – como
também o agressor – responsável pela disponibilização do conteúdo a terceiros pelos mais
diversos motivos (vingança, ameaça, extorsão, entre outros) – e os demais sujeitos que atuam
indiretamente – “consomem” ou compartilham o material íntimo e também os sites ou redes
sociais.
Quanto aos limites territoriais, percebe-se que, quando ficam dentro do território
nacional, existem mais possibilidades de controlar a disponibilização – ainda que de forma
ínfima e deficiente – e de buscar por alguma reparação para a vítima. Entretanto, quando a
disponibilização do material íntimo adquire caráter internacional, se faz necessário buscar por
cooperação judicial de países terceiros para apurar e cessar a violência. Nesse sentido,
legislações específicas sobre a temática poderiam ser pertinentes visto que traria uma regulação
e permitiria, talvez, alguma prevenção, bem como facilitaria para com a colaboração de outros
países.
A legislação brasileira tutela especificamente sobre a pornografia de vingança (Lei
13.718/2018) e também sobre invasões informáticas (Lei 12.737/2012) ou quanto àqueles que
produzem, oferecem, vendem ou difundem dispositivos ou programas de computador que
permitem a prática das violações na rede mundial de computadores. Porém, a legislação
apresenta falhas, sendo uma delas referente aos intermediários.
A responsabilização dos “host, index ou make available”, ou seja, intermediários,
poderia ser uma alternativa de contenção, pois seria uma forma de barrar a divulgação não
consentida e minimizar as consequências dessa violência. Diante do fato de que nessa categoria,
encontram-se servidores, canais de buscas e redes sociais (que são considerados um dos pontos
de distribuição do conteúdo), a viabilidade de controlar os conteúdos distribuídos por esses
grupos poderia reduzir a visibilidade que o material íntimo atinge na internet.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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No Brasil, então, não há regulação para a responsabilização destes, como também não
apresenta nenhuma medida alternativa para que os intermediários sejam utilizados como uma
alternativa de contenção. Portanto, a violência contra a mulher no âmbito da pornografia de
vingança, fica prejudica nesse sentido.
Ademais, tendo em vista não somente questões normativas e com intuito de apresentar
uma crítica e contraponto, é importante considerar que somente a existência de legislação não
resolve os problemas da pornografia de vingança, pois é uma temática sensível que envolve
questões da sociedade patriarcal e também da liberdade sexual feminina. Portanto, necessário
pensar além de criminalizações, mas também considerar alternativas como movimentos de
massa e ações positivas que busquem a efetivação de direitos que estão respaldados
positivamente na Constituição Federal, considerando a mulher como sujeito de direitos e não
apenas como vítima.
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157
FEMINISMO E PORNOGRAFIA: QUANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
É EROTIZADA E CAPITALIZADA
Bruna Carolina Bernhardt1
Kimberly Gianello Studer2
Luísa Neis Ribeiro3
RESUMO
O presente trabalho apresenta criticamente a pornografia, sob a hipótese de que ela se enquadra
enquanto discurso e exercício institucional de violência contra a mulher. Para isso, utiliza-se da
metodologia de pesquisa bibliográfica, através do diálogo entre marcos teóricos feministas que
discutem o tema. Ainda, expõe-se dados empíricos representativos da dimensão da indústria
pornográfica e faz-se uma análise da atual situação da pornografia a partir deles. Objetiva-se,
por meio do trabalho, expor a relação da pornografia com o patriarcado e avançar rumo a um
arcabouço estatal efetivamente garantidor dos direitos civis das mulheres, que considere as
problemáticas exclusivas a elas, dada a atuação da indústria pornô. As autoras feministas Carole
Pateman, Andrea Dworkin, Catharine Mackinnon e Heleieth Saffioti são abordadas para
identificar os elementos políticos, econômicos e sociais da pornografia. Verifica-se, com base
na discussão entre as autoras e nos dados apresentados, a existência de estruturas condicionantes
do envolvimento das mulheres com a indústria pornográfica, que a caracterizam como
instrumento monetizador e promotor da violência contra a mulher. Diante disso, recomenda-se
um horizonte possível para o problema no âmbito jurídico, semelhante ao modelo legal sobre
assédio sexual existente hoje em diversos países. Por fim, destaca-se a necessidade do debate
livre sobre esse fenômeno amplamente disseminado e pouquíssimo problematizado, qual seja,
a pornografia.
Palavras-chave: Direito. Feminismo. Mulher. Pornografia. Violência.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende discutir a pornografia enquanto uma das instituições que
atraem, submetem e violentam mulheres4. Entretanto, sem jamais desconsiderar a importância
da prostituição na história, no modo de operação e na utilidade da pornografia, uma vez que
ambas constituem domínios interdependentes que se caracterizam pela troca de “sexo” por
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina desde 2018. Bolsista CAPES. Email:
bruna.bernhardt@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3221380570884685
2
Graduanda do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina. Email:
kimberlysstuder@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2620662542761454
3
Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina. Email: luu.ribeiro7@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8971992231087644
4
Para uma exemplificação do aliciamento de mulheres vulneráveis, pode-se verificar o que conta a ex-atriz pornô
Mia Khalifa sobre as companhias que “atacam mulheres jovens”, em entrevista de agosto de 2019, disponível em:
https://www.bbc.com/news/newsbeat-49330540. Acesso em: 20 ago. 2019.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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dinheiro. Deste modo, trata-se de investigar a condição das mulheres na esfera da pornografia,
considerando-a enquanto instituição social.
Em primeiro lugar, verifica-se que apesar da difusão da prática, a problematização
teórica acerca da pornografia não se encontra em estágio altamente desenvolvido pelas ciências
sociais, o que se reflete no reduzido estudo do problema sob o prisma jurídico. Na tentativa de
completar essa lacuna e de promover o debate acadêmico e social, considera-se primordial tratar
do assunto, dada a quantidade crescente de vidas implicadas na atividade pornográfica, o que
afere-se, no trabalho, por meio da análise de dados recentemente divulgados pela agência
pornográfica Pornhub e pela empresa DoubleClick Ad Planner.
Ademais, para facilitar o entendimento do estado da arte, separa-se as feministas que se
debruçaram sobre o tema em dois grupos principais: o primeiro, composto primordialmente
pelas feministas radicais, considera o fenômeno um atentado aos interesses comuns da classe
de mulheres. Já o segundo, formado por feministas liberais e pelas pós-estruturalistas, reduz a
questão a uma escolha individual, da qual o Estado não deve se ocupar, ou rejeita as atitudes
legais-institucionais deliberadas contra a indústria.
Isso posto, ressalta-se que algumas correntes do segundo grupo não compreendem a
pornografia, nem a prostituição, como problemas ou como violências contra as mulheres,
restringindo seu posicionamento à luta por garantias trabalhistas para as chamadas profissionais
do sexo. De outra parte, a perspectiva a que o trabalho se filia vê com desconfiança a legalização
e a regulamentação desse mercado, buscando no Estado e na sociedade o que permite o
funcionamento pleno desses institutos. Além disso, percebe-os enquanto práticas que, por sua
própria qualidade, submetem mulheres a situações violentas. Diante disso, considera-se
necessário um estatuto jurídico atento a essa problemática.
Assim sendo, por meio de pesquisa bibliográfica, apresenta-se marcos teóricos
feministas que localizam o problema da violência contra a mulher no âmbito da pornografia,
com atenção às dimensões políticas, sociais e econômicas que determinam a instituição. São
eles: Carole Pateman, Andrea Dworkin, Catharine Mackinnon e Heleieth Saffioti. Apesar disso,
destaca-se que a revisão bibliográfica do trabalho não esgota de nenhum modo o debate
feminista sobre o tema, que abarca uma pluralidade de análises.
Nesse sentido, parte-se do ponto de vista feminista presente na crítica de Carole Pateman
(1993) ao contratualismo social, doutrina legitimadora do Direito e do Estado modernos.
Utilize-se de sua contribuição para situar as peculiaridades da cidadania feminina,
possibilitando um olhar crítico às instituições sociais, especialmente à família, à prostituição e
ao Estado.
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reprodutivos V.4.
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Em um segundo momento, as contribuições de Dworkin (1981) são detalhadas para a
compreensão da hierarquia de gênero, histórica e socialmente construída, como razão primária
da existência da prostituição e, consequentemente, da indústria pornográfica. Portanto, é
somente no sistema denominado por Dworkin (1981, p. 200) de “dominação sexual masculina”
que surge o conceito de “puta”, assim como se possibilita a criação da pornografia, do comércio
sexual, do insulto, enfim, da capitalização do uso do corpo feminino como instrumento de
prazer masculino. Nesse sentido, demonstra-se que a desigualdade sexual de poder político,
econômico e simbólico funda e sustenta as instituições que subordinam a classe das mulheres
à classe dos homens.
Além disso, as reflexões de Dworkin (1981, p. 21) denunciam a realidade cruel do
mundo pornográfico que, de acordo com a autora, é reduzida retoricamente a uma “fantasia”.
Ainda, explica-se porque a atuação de mulheres no sistema prostituição-pornografia não deve
ser considerada trabalho, em contraposição com outras vertentes do feminismo.
No horizonte jurídico, a professora de Direito Catharine MacKinnon (1993, p. 34) guia
a exposição ao justificar que há uma permissibilidade da violência contra a mulher quando os
ordenamentos jurídicos tratam a pornografia como “discurso protegido”, obstando a proteção
de direitos civis das mulheres. Depois, inicia-se uma discussão especificada na condição sócioeconômica das mulheres brasileiras, através das pesquisas de Heleieth Saffioti (1985), para
trazer à tona o aspecto material da desigualdade sexual que possibilita o “mercado de sexo”.
Partindo, portanto, da hipótese de que a pornografia contribui para a constituição da
cultura do estupro, das mais variadas violências contra a mulher e da desigualdade sexual,
identifica-se o problema da pesquisa no não-reconhecimento (por parte do Estado e da
sociedade) da pornografia enquanto um instrumento de violência. Tratada como entretenimento
pessoal, ela blinda o estudo de seus efeitos, de modo que há ainda pouca pesquisa empírica
sobre a dimensão real que ela ocupa na vida das mulheres envolvidas, bem como no corpo
social como um todo. Nosso objetivo, portanto, é questionar esse instituto naturalizado,
apresentando os motivos de seu funcionamento atual.
Pretende-se, além disso, problematizar a percepção sobre as mulheres perpetuada pelas
produções pornográficas, assim como investigar em que medida existem alternativas possíveis
e adequadas no âmbito do Direito em relação à particularidade da violência sofrida através
dessa prática. Busca-se, desta forma, encontrar instrumentos jurídicos que deem poder às
mulheres violentadas nessa circunstância, considerando os limites de funcionamento do Estado.
Em vista disso, espera-se que o trabalho sirva para o questionamento da naturalização
da pornografia e que incentive o estudo qualificado a respeito do tema. Aspira-se, também, que
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outros pesquisadores preocupados com o problema da violência contra a mulher contestem em
suas produções a capitalização do corpo feminino e seus impactos, a fim de que esse tema
complexo seja mais bem discutido.
1. FEMINISMO E PORNOGRAFIA
1.1 Carole Pateman e a subcidadania feminina
Para tornar a crítica ao fenômeno atual da pornografia mais consistente, baseia-se na
tese de Carole Pateman (1993) sobre a subcidadania feminina. A análise da autora acerca do
período de ascensão dos Estados modernos e do Direito é categórica em afirmar que a
legitimação dessas instituições através das teorias do contrato social não contribuiu para a
emancipação das mulheres.
Para Pateman (1993), as mulheres foram o próprio objeto negociado neste contrato,
sendo impedidas de receber da nova ordem social os mesmos direitos inatos garantidos aos
homens. Por este motivo, estabelecem-se meios centrais de submissão femininos - o lar e a
prostituição -, carregando em si a funcionalidade da negação política da mulher.
Se o que marca a governamentalidade liberal (FOUCAULT, 2008) de que se está
tratando é a noção de consentimento, a opressão das mulheres tem sido, desde então, lida
socialmente como uma escolha: é natural da mulher se submeter a um homem5 e, nesse modelo,
a prostituição (e, contemporaneamente, a pornografia) é entendida como uma alternativa
normal. Ignora-se, porém, as coações morais, psicológicas e econômicas que o sistema social
impõe
à
mulher
que
assim
se
submete.
1.2 O tamanho da indústria pornográfica e sua relação com o patriarcado
Em 2017, o maior site de pornografia do mundo, o Pornhub, completou dez anos de
existência e atingiu a marca de 75 milhões de visitantes diários. Desses, a maior parte do público
era composta por jovens entre 18 e 24 anos, que tinham a seu dispor mais de 10 milhões de
vídeos na época (ORENSTEIN, 2017). Antes disso, no ano de 2012, a DoubleClick Ad Planner,
empresa pertencente ao Google, divulgou o recorde de views de outros dois canais
pornográficos que, conjuntamente, já alcançavam o tráfego de dados equivalente ao do Twitter,
Sobre isso, afirma Dworkin (1981, p. 206): “Este desejo da mulher de se prostituir é muitas vezes retratado como
ganância por dinheiro ou prazer ou ambos. A mulher natural é uma prostituta, mas a prostituta profissional é uma
prostituta gananciosa: gananciosa por sensação, prazer, dinheiro, homens”. Tradução livre de: “The natural woman
is a whore, but the professional prostitute is a greedy whore: greedy for sensation, pleasure, money, men”
(DWORKIN, 1981, p. 206).
5
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que recebia 5,9 bilhões de acessos por mês naquele ano. Somente o Xvideos possuía mais de 4
bilhões de visualizações mensais (ANTHONY, 2012).
Esses números revelam a magnitude da indústria pornográfica, comprovantes de sua
atratividade, por isso não é surpresa que seja uma das indústrias mais lucrativas do mundo6. É
por meio desta estrutura bilionária que se promove o que aqui se denuncia como um meio pouco
reconhecido de violência contra as mulheres, estejam elas envolvidas direta ou indiretamente
nesse cenário.
Antes de tudo, para compreender as origens desse alarmante interesse social pelo
conteúdo pornográfico, retorna-se aos alicerces da hierarquia de gênero, a fim de melhor
determinar porque a pornografia pode ser descrita como violência contra a mulher. As reflexões
de Andrea Dworkin, escritora feminista radical estadunidense, elucidam a derivação estrutural
da
instituição
pornografia
com
relação
ao
sistema
político
patriarcal.
Sabe-se que, historicamente, a classe dos homens sempre foi mais poderosa em relação
à das mulheres, em maior ou menor grau, nos mais diversos campos da existência humana7.
Após a constituição definitiva do patriarcado, eles se tornam os determinadores principais da
função e do valor da figura feminina e também de corpos femininos individualizados. Assim,
Dworkin (1981, p. 200) explica que “a mulher como ‘puta’ existe dentro do sistema objetivo e
real de dominação sexual masculina. A pornografia em si é objetiva, real e central para o sistema
sexual masculino8”. A elaboração e o uso masculinos do termo puta, portanto, dentro e fora da
pornografia, tem uma funcionalidade prática ao patriarcado à medida em que reduz a mulher a
mero objeto sexual, retirando-lhe seu caráter humano e dificultando seu enquadramento
enquanto sujeito de direitos.
Essa afirmação é comprovada pelas palavras de um dos traficantes de mulheres
envolvido em um esquema milionário na Espanha. Ele declara em sua autobiografia:
6
Embora seja difícil saber as receitas exatas da indústria devido à grande quantidade de empresas não
regulamentadas na internet, estima-se que este setor tenha movimentado cerca de 97 bilhões de dólares em 2006.
Hoje é possível adquirir ações de algumas empresas produtoras de pornografia, como a Beate Uhse, cuja receita
obtida em 2018 foi de 55,49 milhões de dólares, e a DNXcorp, cuja receita em 2018 foi de 23,61 milhões de
dólares. Disponível em: https://www.rankia.pt/top-11-de-industrias-que-movimentam-mais-dinheiro-no-mundoe-como-investir-nelas/. Acesso em: 19 ago. 2019.
7
Esta tese pode ser verificada, por exemplo, na obra de Simone de Beauvoir (2008), dentre outras produções que
articulam o tema. Antes da instauração do patriarcado, as mulheres já eram reservadas à vida imanente limitadora
de suas potencialidades quando comparadas a homens, em virtude de sua condição biológica reprodutiva. Porém,
com a constituição do patriarcado, é configurado um salto de dominação masculina, através das mais diversas
instituições por eles criadas e lideradas. Esta perspectiva existencialista ainda assim não naturaliza a submissão de
um sexo em relação a outro e vê o avanço da autonomia corporal da mulher como um dos motores à emancipação
feminina.
8
Tradução livre de: “Woman as whore exists within the objective and real system of male sexual domination. The
pornography itself is objective and real and central to the male sexual system” (DWORKIN, 1981, p. 200).
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Ninguém acorda em um certo dia e decide ser prostituta, mas nós temos a teia
de aranha perfeitamente tecida onde cabem as promessas de uma vida melhor
para ela e os seus, os elogios que gosta de escutar e algumas ajudas
insignificantes que apresentamos como grandes favores e que elas nos
agradecem como se fossem. Quando a mosca prende suas patinhas na rede, é
impossível se soltar. E lá fica. Presa. Pronta [...] A balança do acordo verbal
não se inclina para ambos os lados por igual. Por isso o suposto consentimento
das vítimas não é mais do que uma farsa onde não existem os requisitos éticos
imprescindíveis em qualquer relação pessoal, social ou trabalhista [...] Eu
forneci mulheres, durante anos, a 12 dos melhores macrobordéis que existem
na atualidade na Espanha. Enchi dessa matéria-prima que os puteiros chamam
de 'carne fresca', dia após dia. E jamais parei para pensar se a mercadoria que
eu importava eram pessoas como eu. Elas eram outra coisa. Eram putas
(JABOIS, 2017, grifo nosso).
O recrudescimento dessa desumanização é verificado nas cenas pornográficas, onde o
corpo feminino ordinariamente é retratado e estigmatizado como um “produto” sujo, o que
acaba por reforçar noções de que a sexualidade feminina em si é suja - enquanto a masculina é
natural e instintiva (DWORKIN, 1981). A pornografia, desse modo, contribui para o
exacerbamento do patriarcado, pois erotiza a objetificação feminina e despreza o sexo feminino
ao mesmo tempo em que mantém a integridade e o domínio do sexo masculino frente a este
objeto artificialmente construído. Além disso, evidencia-se ainda o fato de que o pornô é
midiatizado como forma de “diversão”, reforçando a ideia de que o que está sendo mostrado é
prazeroso para todos os envolvidos, especialmente para a mulher em cena9. Isso torna ainda
mais difícil modificar o ideário social de que é agradável para a mulher estar ali e fazer o público
entender o porquê da situação ser abusiva e se figurar como uma forma de violência.
Comprovante da situação emblemática na qual se encontra uma mulher que, em algum
momento da vida, envolveu-se com prostituição ou pornografia, a entrevista da ex-atriz pornô
Mia Khalifa para o jornal BBC News corrobora a carga de discriminação acarretada pela
participação nessa indústria. Khalifa (MIA, 2019) conta que já perdeu vagas de emprego por
causa de seu passado no pornô10, sendo mais um caso exemplificativo da forma degradante
como a sociedade estigmatiza essas mulheres. Diferente, por exemplo, é o caso de um homem
atuante no pornô, que ao sair do ramo não necessariamente tem suas ações anteriores
Dworkin (1981) percebe como “valores padrão da pornografia: a emoção de humilhação, a alegria da dor, o
prazer do abuso, a magnificência do pau, a mulher que resiste apenas para descobrir que ela ama isso e quer mais”.
Tradução livre de “the standard values of pornography: the excitement of humiliation, the joy of pain, the pleasure
of abuse, the magnificence of cock, the woman who resists only to discover that she loves it and wants more”
(DWORKIN, 1981, p. 215).
10
A frase original dita pela ex-atriz é: “It gets me so down when I get 'no's' from companies who don't want to
work with me because of my past[...]”, retirada de: <https://www.bbc.com/news/newsbeat-49330540>. Acesso
em: 20 ago. 2019.
9
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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constantemente relembradas e, eventualmente, pode até ocupar um cargo público11, não
prejudicando do mesmo modo seu estigma social. Entretanto, à mulher filmada reservam-se
difamações, rebaixamento intelectual e preconceitos, ou seja, percebe-se que o fardo da
discriminação sexual vivida por todas as mulheres é multiplicado nesse contexto.
Além disso, o viés racista da pornografia é exaustivo nas cenas em que mulheres negras
aparecem. Analisadas por Dworkin (1981), a mensagem passada ao público é bem clara: se
mulheres brancas são reduzidas a objetos pela categoria de “puta”, mulheres negras são punidas
sexualmente pela cor de sua pele. Disso resultam cenas notadamente mais violentas, nas quais
se apreende pelo enredo que “a modelo negra não precisa estar nua para ser sexo; qualquer
exibição de sua pele é sexo. O sexo dela está bem na superfície - sua essência, sua ofensa12”
(DWORKIN, 1981, p. 216). Essa promoção do racismo tem indubitavelmente a raiz histórica
da escravização, onde “o estupro era uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo
objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo, desmoralizar
seus companheiros” (DAVIS, 2016, p. 36). Percebe-se, portanto, consequências muito
problemáticas do discurso pornográfico, em termos raciais, que demandam aprofundamento.
Dando prosseguimento ao debate, a seção seguinte pretende explicar por que a
pornografia não pode ser considerada um trabalho, por intermédio da revisão das ideias de
Dworkin e da comparação entre o trabalho comum e a atuação na indústria pornográfica.
1.2.1 Complexo prostituição-pornografia e o mundo do trabalho
Outro ponto essencial discutido por Dworkin (1992) é se a atuação na
pornografia deveria ser tratada como uma profissão igual às demais, merecedora, portanto, de
regulamentação estatal enquanto trabalho.
Primeiramente, a autora aponta que, em nosso sistema político determinado pelo
patriarcado, nunca houve uma instituição de erotização e capitalização de corpos masculinos
11
Exemplo disso é o caso de Alexandre Frota, ex-ator pornô que, em 2018, foi eleito para o cargo de deputado
federal no estado de São Paulo, pelo PSL; atualmente, Frota é filiado ao PSDB.
12
“A violência contra o sexo dela é violência contra a pele dela. A excitação de torturar seu sexo é a excitação de
torturar sua pele. O ódio à seu sexo é o ódio à sua pele. Seu sexo é esticado sobre ela como uma luva e quando ele
toca sua pele, ele coloca aquela luva. Ela modela sua pele, seu sexo. Seu sexo é tão próximo, tão disponível, quanto
sua pele. Seu sexo é tão escuro quanto sua pele. A modelo negra não precisa estar nua para ser sexo; qualquer
exibição de sua pele é sexo. Seu sexo está bem na superfície - sua essência, sua ofensa” (DWORKIN, A. 1981, p.
216). Tradução livre de: “The violence against her sex is violence against her skin. The excitement of torturing her
sex is the excitement of torturing her skin. The hatred of her sex is the hatred of her skin. Her sex is stretched over
her like a glove and when he touches her skin he puts on that glove. She models her skin, her sex. Her sex is as
close, as available, as her skin. Her sex is as dark as her skin. The black model need not model naked to be sex;
any display of her skin is sex. Her sex is right on the surface - her essence, her offense” (DWORKIN, A. 1981, p.
216).
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semelhante ao que ocorre com as mulheres através do complexo prostituição-pornografia.
Diante desse paradigma historicamente colocado, a ascensão do dinheiro como meio de troca
transfigura-se em ferramenta de dominação de corpos femininos, na medida em que torna o
acesso a eles um privilégio dos homens, dada sua posição social de maior poder econômico13
(ILO, 2016).
Em virtude dessa articulação sócio-histórica das questões de gênero, Dworkin (1981) se
posiciona contra o reconhecimento legal da atuação pornográfica como profissão, alegando ser
a desigualdade econômica uma coatora que força mulheres a venderem seus corpos para
consumo masculino. Exige-se, diante disso, uma outra postura institucional, que pode ser
verificada a seguir.
Por outro lado, respondendo a críticas de que muitos homens também fazem o que não
gostam para obter dinheiro, Dworkin (1992) reconhece o cunho desagradável que o trabalho
pode ter para eles:
[...] Agora, nós compreendemos a respeito do trabalho masculino. Nós
compreendemos que os homens fazem coisas que não gostam de fazer a fim
de ganhar um salário. Quando homens fazem trabalho alienado em uma
fábrica nós não dizemos que o dinheiro transforma a experiência para eles de
tal maneira que eles a amaram, tiveram um bom divertimento, e de fato,
aspiraram a mais nada. Nós olhamos para o enfado, a ausência de saída; nós
dizemos, certamente a qualidade de vida de um homem deveria ser melhor
que essa (1992, p. 3).
Isso posto, além da necessária atenção às estruturas econômicas que discriminam
mulheres, o núcleo do problema está em saber identificar o que exatamente diferencia um
trabalho comum da atuação na pornografia e porque é primordial separar os dois
qualitativamente.
Ao compreender o trabalho como a venda do tempo de um indivíduo a outro em troca
de determinado salário, observa-se que o agente principal dessa relação é o trabalhador, em
virtude de ser ele o realizador de esforços físicos ou intelectuais específicos exigidos na tarefa.
Como afirmado pela autora, este trabalho pode ser indesejável, porém não vulnerabiliza
completamente o indivíduo frente a seu empregador. Há, nesse caso, um serviço a ser prestado
por alguém com consciência das atividades demandadas e um contratante que usufrui única e
exclusivamente delas, não se apropriando materialmente do corpo de quem as realiza. Mesmo
Para exemplificar: “Em nível global, a disparidade de gênero com relação a empregos tem diminuído por apenas
0,6 pontos percentuais desde 1995, com uma relação emprego-população de 46 por cento para as mulheres e quase
72
por
cento
para
os
homens
em
2015”
(ILO,
2016).
Disponível
em:
https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_458115/lang--pt/index.htm. Acesso em: 18 ago. 2019.
13
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assim, sabe-se que as relações chefe-empregado podem ser abusivas se o trabalhador é tratado
com indignidade. Quando isso ocorre, o subordinado pode buscar seus direitos via judicial.
De outra parte, a prostituição e a pornografia significam a venda do corpo da mulher
para alguém, ou seja, a mercadoria não é fruto de um esforço físico ou intelectual específico,
mas a própria carne de quem trabalha. O agente principal dessa relação não é ela, mas seu
detentor temporário ou duradouro. A subordinação desse tipo de atividade é singular, pois se
estrutura na apropriação da integridade física e sexual de outrem - e não de certa quantidade de
tempo. Ademais, o trabalho comum não envolve que o trabalhador seja coagido a aceitar
qualquer imposição externa fora dos limites do contrato anteriormente firmado, salienta
Dworkin (1992).
Em contrapartida, na pornografia, delega-se ao pornógrafo a decisão do que a atriz deve
aguentar no próprio corpo, assim como acontece na prostituição por arbítrio do cliente, levando,
muitas vezes, ao esgotamento dos limites físicos, mentais e psicológicos da mulher. Ainda, a
indústria pornográfica possui o agravo de mercantilizar o abuso através das gravações,
destituindo a atriz de qualquer poder sobre a circulação dessas imagens, o que é ressaltado por
Khalifa (MIA, 2019).
Considerando inerente o tratamento desumano para com as mulheres na indústria
pornográfica, busca-se agora introduzir um horizonte jurídico a respeito do tema na perspectiva
do feminismo radical. Sob essa ótica, é correta a assertiva de que é mais adequado prover uma
base institucional que empodere as vítimas, ao invés de ampliar demasiadamente o poder
punitivo estatal. Nesse sentido, o próximo tópico inicia apresentando as razões que
fundamentam essa postura.
1.3 A leitura de MacKinnon: Direito e Estado masculinos
MacKinnon (1983), jurista e cientista social estadunidense, propõe uma interpretação
feminista do Estado e do Direito. Isso implica colocar os problemas que as mulheres enfrentam,
como: estupro, agressão, pornografia, prostituição, assédio, discriminação sexual e aborto no
centro da análise dessas instituições. Esse exercício ressignifica a instituição estatal,
identificando nela um caráter promotor da supremacia masculina.
Assim, afastando-se da concepção do marxismo vulgar, de que o Direito é pura
ideologia replicadora da dominação de classe, e também da noção liberal, que entende o Direito
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como instrumento de fins políticos em disputa e vê o Estado como neutro14, MacKinnon (1983,
p. 644) afirma: “formalmente, o Estado é masculino na medida em que a objetividade é sua
norma”. A objetividade aqui firmada opera sob pressupostos da condição masculina, ignorando
especificidades da condição feminina para o funcionamento do Estado.
Nesse sentido, a racionalidade patriarcal modela a legislação, colocando o homem como
o padrão humano15 para condutas, tornando especialmente difícil lidar com a questão do
estupro, por exemplo. Sobre isso, pontua:
Tendo definido o estupro em termos sexuais masculinos, o problema do
direito, que se torna o problema da vítima, é distinguir o estupro do sexo em
casos específicos. A lei faz isso ao adjudicar o nível de força aceitável
começando logo acima do nível estabelecido pelo que é visto como
comportamento normal sexual masculino, e não no ponto de violação da
vítima ou das mulheres. [...] O ponto de referência substantivo implícito nos
padrões legais existentes é o nível sexualmente normativo de força16
(MACKINNON, 1983, p. 649).
Esse raciocínio feminista relativo ao estupro é exemplificativo da virada epistemológica
feminista, que analisa todas as áreas tratadas como “mercado de sexo” (incluída a pornografia)
sob outro ângulo.
Feita essa consideração preliminar, constata-se que o ponto de vista tradicional adotado
no ordenamento jurídico normalmente prejudica as mulheres, por terem suas especificidades
biológicas e sociopolíticas postas à margem - e não na centralidade. Apesar disso, Mackinnon
(1993) reconhece nas instâncias judiciais uma possibilidade de empoderamento feminino, como
de fato se obteve com a aplicabilidade da legislação relativa a assédio sexual por ela defendida.
É nesse sentido que é construída por ela uma espécie de anteprojeto de lei (DWORKIN;
MACKINNON, 1988) - abordado a seguir -, com participação de Andrea Dworkin. Esse
projeto, que intentava prover uma base jurídica contra a violência na pornografia, foi debatido
nas cidades de Minneapolis e Indianápolis e citado em decisões da Suprema Corte canadense
contrárias à pornografia, gerando ressonância em países como Inglaterra, Irlanda, Alemanha,
14
Esta é a visão adotada pelo positivismo jurídico, cujo principal teórico é Hans Kelsen. Ele afirma que o Estado
é um instrumento para qualquer um dos fins sociais deliberados socialmente, enquanto o Direito seria esse sistema
de normas reguladoras do comportamento humano acordadas em sociedade (KELSEN, 2005).
15
A contribuição de Simone de Beauvoir (2008) é primordial neste aspecto. Nas sociedades patriarcais as
características humanas são categorizadas de modo que os comportamentos social e biologicamente reservados a
homens são desvendados por um espectro positivo e neutro, enquanto a condição feminina é definida sempre
negativamente em relação ao homem - que define o padrão humano -, e não é captada em si mesma.
16
Tradução livre de: “Having defined rape in male sexual terms, the law's problem, which becomes the victim's
problem, is distinguishing rape from sex in specific cases. The law does this by adjudicating the level of acceptable
force, starting just above the level set by what is seen as normal male sexual behavior, rather than at the victim's,
or women's, point of violation. [...] The substantive reference point implicit in existing legal standards is the
sexually normative level of force” (MACKINNON, 1983, p. 649).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
167
Nova Zelândia e Tasmânia, como demonstram os trabalhos de Silva (2013). Infelizmente, não
houve, até o momento, qualquer discussão pública de proporção semelhante acerca do assunto
no Brasil.
1.3.1
O
regulamento
anti-pornografia
de
Mackinnon
e
Dworkin
O anteprojeto de lei (MACKINNON; DWORKIN, 1988), redigido pelas teóricas
apresentadas até aqui, pressupõe o reconhecimento estatal da pornografia como instituição
violadora dos direitos civis das mulheres, em vista da natureza ilocucionária da mesma.
Explica-se o termo: “to make visual pornography, and to live up to its imperatives, the world,
namely women, must do what the pornographers want to ‘say’” (MACKINNON, 1993 p. 25).
O vocábulo expressa que uma cena pornográfica não é apenas representação, mas consiste em
atuação no mundo real, o que compreende: por um lado, violência contra a mulher na
produção17, e por outro, disseminação de ideias de subordinação feminina18 através de seu
consumo. Logo, “de acordo com essa abordagem ‘radical’, a pornografia deve ser proibida não
porque representa dano (como obviamente faz) e não porque provoca danos (como alguns
sustentam) mas porque é dano19” (MCGOWAN, 2005, p. 28; grifo da autora).
Avaliando, portanto, o impacto negativo direto e indireto da pornografia para as
mulheres, o anteprojeto objetiva, em primeiro lugar, garantir às vítimas diretas uma causa de
ação contra seus pornógrafos. Para tal, há previsão de cinco possibilidades de processo: por
coerção na pornografia, por ter sido forçada à pornografia, por ser agredida por conta de uma
pornografia específica, por difamação através da pornografia e por tráfico na pornografia
(DWORKIN; MACKINNON, 1988).
O texto sustenta ainda que a motivação de recrutadores a cometer abusos, muitas vezes
via tráfico de pessoas20, é predominantemente financeira, constituindo a vil estrutura do
17
Através de uma análise estatística das cenas, constatou-se que há agressão física em 88,2% das cenas e agressão
verbal em 48,7% das cenas (BRIDGES et al, 2010, p. 1075). Entretanto, reforçamos que na perspectiva feminista,
mesmo quando agressões físicas e/ou verbais não ocorrem, a subordinação completa do corpo da atriz aos homens
do set (ator, pornógrafo e outros) já configura violência sexual.
18
Essas ideias podem surgir especialmente a partir da sistemática performance de atos masculinos violentos às
mulheres nas cenas pornográficas. McKee (2005) argumenta que, nesse contexto, a violência contra as mulheres
é um subtipo (e também um contribuidor causal) à objetificação delas (MCKEE apud BRIDGES et al, 2010, p.
1067).
19
Tradução livre de: “According to this ‘radical’ approach, pornography is to be prohibited not because it depicts
harm (as it obviously does) and not because it causes harm (as some maintain) but because it is harm”
(MCGOWAN, 2005, p. 28; grifo da autora).
20
Dos milhões de vítimas globais de tráfico humano, pouco menos de um quarto - cerca de 22% - são traficados
para atos sexuais. Esses 22% ganham um gritante 66% dos lucros do tráfico global (ILO, 2014). De acordo com o
Relatório da ONU de 2018, 72% das pessoas traficadas para fins sexuais são mulheres ou meninas (UNODC,
2018).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
168
mercado pornográfico. Por isso, qualquer legislação que busque 1. desincentivar e
desestabilizar a indústria pornô e 2. compensar a vítima pelo dano sofrido nessa circunstância21,
deve prever este tipo de ação no âmbito civil, abarcando esses casos de modo distintivo. A
importância da especificação é assim explicada:
Ter uma ‘causa de ação’ significa que há um direito contra o que ocorreu,
então pode-se processar. As vítimas não têm que lutar primeiramente se elas
são permitidas a processar ou não, da maneira como as mulheres agora, sem o
regulamento, têm que lutar quando querem deixar de ser feridas pela
pornografia. Com uma causa de ação, basta provar que o que a lei prevê
aconteceu com você22 (DWORKIN; MACKINNON, 1988, p. 41).
Contrário ao anteprojeto anti-pornografia, o jurista e filósofo do Direito Ronald
Dworkin (1993) argumenta que o Estado não deve adotar nenhuma iniciativa sobre a questão,
por considerar que: “a liberdade de expressão deve ser compreendida e defendida como uma
liberdade fundamental em um sentido negativo – o Estado, portanto, deve abster-se de legislar
sobre o conteúdo dos bens simbólicos que circulam na sociedade” (DWORKIN, 1993, p. 105).
A partir disso, o autor parece ignorar a dimensão concreta da pornografia, indissociável na
prática da esfera simbólica.
De outra parte, Dworkin (1993) e McKinnon (1993) entendem que o Estado, sendo
capaz de adotar medidas favoráveis ao grupo menos poderoso, assim deve proceder. Ou seja,
promover a liberdade substancial, e não aquela abstratamente pensada, requer da instituição
estatal realizar uma escolha: dar mais valor à vida e à integridade física e psicológica das
mulheres do que às “ideias” dos homens sobre elas.
“O propósito da indenização em ações judiciais é indenizar a vítima pela lesão. Embora seja impossível
realmente compensar qualquer pessoa pelos danos da pornografia, também é impossível compensar
verdadeiramente a lesão por difamação, morte por negligência, desmembramento, negligência médica e a maioria
dos outros danos pessoais que são compensados o tempo todo. O ponto específico de danos sob esta lei de direitos
civis é duplo: reconhecer que algo que pertencia à vítima foi erroneamente tirado dela, e fornecer restituição nos
mesmos termos que deram aos pornógrafos um incentivo para levá-la em primeiro lugar” (DWORKIN;
MACKINNON, 1988, p. 55). Tradução livre de: “The purpose of money damages in lawsuits is to compensate the
victim for the injury. While it is impossible truly to compensate anyone for the harm of pornography, it is also
impossible truly to compensate for the injury of libel, wrongful death, dismemberment, medical malpractice, and
most other personal injuries that are compensated all the time. The particular point of damages under this civilrights law is twofold: to recognize that something that belonged to the victim was wrongly taken from her, and to
provide restitution in the same terms that provided the pornographers with an incentive to take it in the first place”
(DWORKIN; MACKINNON, 1988, p. 55).
22
Tradução livre de: “To have a “cause of action” means that there is a law against what happened, so one can
sue. The victims do not have to first fight about whether they are permitted to sue or not, the way women now,
without the Ordinance, have to fight when they want to stop being hurt by pornography. With a cause of action,
one only has to prove that what the law provides for has happened to you” (DWORKIN; MACKINNON, 1988, p.
41).
21
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
169
1.4 As estruturas econômicas da pornografia: o caso brasileiro por Heleieth Saffioti
Para melhor aproximar a proposta das autoras estadunidenses à realidade brasileira,
busca-se situar o complexo prostituição-pornografia utilizando a obra da socióloga feminista
brasileira Heleieth Saffioti (1985). Segundo ela,
[...] o patriarcado não se resume a um sistema sociopolítico-ideológico, mas
apresenta também uma forte dimensão econômica (SAFFIOTI, 1985, p. 104).
A autora se debruça sobre o funcionamento do sistema capitalista e patriarcal pelas
lentes do materialismo histórico, concluindo que a divisão sexual do trabalho que subordina
mulheres a homens é originária da inter-relação do patriarcado - enquanto sistema políticoideológico - com o capitalismo - modelo de produção e reprodução da vida. Como não é
possível isolar esses institutos do ponto de vista estrutural, institui-se aí o que a autora denomina
de capitalismo-patriarcado, central ao aprofundamento do debate sobre pornografia, como
veremos.
O processo de industrialização e urbanização do Brasil na década de 1970 ilustra bem a
forma pela qual essa inter-relação se articula. Com o início de uma política de rebaixamento
dos salários no quadro da ditadura civil-militar brasileira, o ônus desse sistema altamente
discriminatório às mulheres se evidencia em dados estatísticos. Demonstra Saffioti:
[...] as diferenças salariais entre homens e mulheres tornaram-se muito mais
pronunciadas em 1976 do que eram em 1970. De um rendimento médio de
61,2% do masculino, em 1970, as mulheres passaram a auferir, em média,
apenas 48,6% do que percebiam os homens em 1976. O fosso foi, portanto,
ampliado de quase treze pontos percentuais, o que redundou em rendimentos
médios femininos inferiores à metade dos rendimentos médios masculinos
(SAFFIOTI, 1985, p. 135).
A explicação para essa aguda diferenciação salarial e de empregabilidade entre os sexos
está na gestão patriarcal da lógica do capital. A simbiose patriarcado-capitalismo flexibiliza a
maximização de lucro, que seria possível pela incorporação massiva da força de trabalho
feminino por menores salários, para priorizar a alocação delas nos aparelhos de reprodução, a
fim de salvaguardar em primeiro lugar a reprodução da família trabalhadora, explorando em
grau mais intenso a força de trabalho feminino “quando dela necessita e nas proporções em que
dela precisa” (SAFFIOTI, 1985, p. 139). Estabelece-se assim a dupla opressão feminina do
nosso tempo: na produção, mais exploradas do que homens, na reprodução, por eles subjugadas.
Esse estado de opressão feminina em termos de classe garante a base material para o
envolvimento de uma mulher na pornografia ou na prostituição. Todavia, não se trata de uma
relação direta de causalidade. Há que se levar em consideração fatores importantes que
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
170
constrangem mulheres a essas instituições além do critério estrutural econômico. Aqui se insere,
por exemplo, a variedade de fraudes adotadas pelo tráfico internacional de pessoas.
Aproveitando-se muitas vezes da falta de informação, inúmeras promessas falsas dos traficantes
são direcionadas sobretudo a mulheres jovens de países periféricos ou semiperiféricos, que
veem a realização de um sonho23 na oportunidade de trabalhar em um país central, como
examinado em detalhes por MacKinnon (2005).
No Brasil, país de semiperiferia do capitalismo, a discriminação às mulheres na
produção é ainda mais evidente que na maioria dos países centrais (SAFFIOTI, 1985), o que
facilita o direcionamento de algumas delas ao complexo prostituição-pornografia nacional e
internacional. Nessa condição, recrutadores de mulheres perpetuam seus negócios conscientes
do poder do dinheiro para atraí-las a esse tipo de transação. Depois de cooptadas, dificilmente
conseguem sair da situação de violência em que se encontram.
Procura-se esmiuçar aqui a condição da força de trabalho feminina brasileira como
constituinte de uma das premissas, a vulnerabilidade econômica, para a movimentação de
instituições que capitalizam mulheres. Depreende-se que, mesmo quando a pornografia for o
caminho de uma escolha, ela é resultado da opressão econômica - mas não só econômica realizada ante a supremacia masculina, assim como a prostituição o é. Outras variáveis
discriminatórias de natureza sexual, como gravidez seguida de abandono paterno, também
devem ser observadas.
Ainda sobre o caso brasileiro, chama à atenção a naturalidade com que o atual Governo
aborda o chamado ‘turismo sexual’, representando explicitamente o aval do Estado sobre a
erotização capitalizada de corpos femininos. Proferiu, recentemente, o Presidente da República:
“se alguém quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade" (RANGEL;
GADELHA, 2019). Diante de tal insensibilidade, espera-se que a sociedade civil brasileira
possa se importar com o problema, já que o Estado brasileiro parece estar longe de fazê-lo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a presente pesquisa, o objeto foi explorado com o suporte da filosofia política
de Carole Pateman, buscando colocar em perspectiva as violências praticadas contra as
mulheres no âmbito da indústria pornografia. Os dados comprobatórios do tamanho desta
impulsionaram a investigação do que está por trás desse fenômeno. Nesta esteira, utilizou-se de
“‘Fui com uma mala cheia de sonhos’: Assim brasileiras são transformadas em escravas sexuais na Espanha”.
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/18/internacional/1492537286_311397.html>. Acesso
em: 20 ago. 2019.
23
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
171
Andrea Dworkin para contextualizar a existência da instituição e seu caráter opressivo com o
sexo feminino. A seguir, Catharine Mackinnon foi trazida a fim de orientar uma proposição
jurídica cabível. Para avaliar essas questões à luz da realidade brasileira, Saffioti foi incorporada
ao trabalho, deslocando a discussão para as estruturas econômicas que condicionam a existência
útil do complexo prostituição-pornografia.
Considerando esses objetivos centrais da pesquisa cumpridos pelo uso de dados
empíricos e através de revisão bibliográfica, julga-se que o trabalho ampliou a compreensão
sobre a problemática proposta, visto que a pornografia, seu modo de funcionamento e suas
consequências ainda são pouco estudadas no Brasil.
Entende-se que, para um efetivo combate à violência contra a mulher, é preciso ampliar
o olhar a situações geralmente irrefletidas pela sociedade. Assim, observando a naturalização
de comportamentos e instituições variadas que fomentam a subcidadania feminina, a pesquisa
também se caracteriza enquanto uma provocação, especialmente para a comunidade jurídica
que se ocupa do problema de gênero. A responsabilidade que o Direito e seus operadores têm
é de mudar esse paradigma opressor, frente ao fato indiscutível de que a pornografia tem se
tornado uma máquina cada vez maior de mercantilização de corpos femininos. A cidadania da
classe de mulheres não conseguirá ser atingida em sua plenitude enquanto uma parcela dela for
reservada à venda.
Dessa forma, enfatiza-se que a proposta apresentada não consiste em ampliar o poder
punitivo estatal com seus cidadãos, mas sim, promover um aporte jurídico sob o qual as vítimas
dos abusos da indústria pornográfica poderão se amparar, considerando a atual lacuna do direito
brasileiro sobre o tema. O Estado tem o dever de garantir os direitos e facilitar o acesso à justiça
nesses casos, de modo similar ao avanço atingido frente à legislação de assédio sexual no
trabalho.
Ressalta-se que a abordagem que perpassou a problemática exposta é a do feminismo
radical. Porém, o problema da pornografia não fica limitado ao estudo nesse molde, diante da
evidente necessidade de discutir a matéria pelas mais variadas vertentes feministas e,
principalmente, de agir sobre essa realidade.
Por fim, deixa-se exposto o desejo primordial de que o debate acerca do tema aconteça
não só no ambiente acadêmico, mas principalmente fora dele. Essa análise surgiu também do
poderoso esforço para que a sociedade, como principal agente transformador, se perceba no
dever de combater urgentemente as brutalidades cometidas contra as mulheres e de questionar
o sistema opressor atual, para, enfim, rejeitá-lo definitivamente.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
172
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Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
175
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: A
REGULAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
Daniela Urtado1
Mariana Silvino Paris2
RESUMO
Este artigo tem por objetivo compreender a pauta pela descriminalização do aborto no Brasil,
partindo do pressuposto que a atual regulação do tema, como um flagrante desrespeito aos
direitos sexuais e reprodutivos delas, leva à uma série de violências contra as mulheres,
especialmente aquelas oriundas de grupos mais vulnerabilizados. Procura compreender a
regulação do tema no Poder Legislativo, levando em conta um breve percurso histórico pela
presença das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte e no Poder Judiciário, ressaltando
a importância de seu papel contramajoritário na afirmação de direitos de grupos
vulnerabilizados. Nesse ponto, busca compreender especialmente o ineditismo da ADPF 442 e
quais os seus impactos para a delimitação do tema no país. Utiliza metodologia de revisão
bibliográfica, bem como pesquisa jurisprudencial e de peças processuais para atingir os fins aos
quais se propõe. Conclui que, embora o papel do Poder Judiciário na implementação de direitos
seja tema controverso, é fundamental avaliar essa via como um importante caminho para mudar
os rumos desse tema sensível e polêmico, afastando-o das perspectivas morais ou religiosas e
aproximando-o dos direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal de 1988.
Palavras-chave: Violência contra mulher. Descriminalização do aborto. Direitos Sexuais e
Reprodutivos. ADPF 442.
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende avaliar a questão do aborto no Brasil, partindo do pressuposto que
a criminalização da prática precisa ser repensada à luz de alguns critérios. Em primeiro lugar,
leva em consideração, com respaldo em pesquisas estatísticas sobre o tema, que o aborto é um
fato natural da vida das mulheres e que a disposição legal sobre o tema ignora a autonomia das
mulheres e a importância do pleno gozo do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos para
sua autonomia; o que se consolida como uma violência de gênero, em última análise. Depois,
partindo do pressuposto de que a questão do aborto deve ser tratada como um assunto de saúde
pública, passa a discorrer sobre a tratativa do tema na Assembleia Nacional Constituinte, pelo
1
Estudante. Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Integrou a Clínica de Direitos
Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Integrou o Grupo de Pesquisa e Extensão Antígona da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail:
durtado19@gmaill.com. Link do lattes: http://lattes.cnpq.br/0703949265126394.
2
Advogada. Especialização em andamento em Direito homoafetivo e de gênero pela Universidade de Santa Cecília
(UNISANTA). Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latinoamericano de Ciências
Sociais (CLACSO). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisadora da Clínica de
Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (CDH | UFPR). E-mail: mari.sparis@gmail.com. Link do
lattes: http://lattes.cnpq.br/9751550314762427.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
176
Poder Legislativo, a regulação da matéria no Código Penal brasileiro e, por fim, interpreta o
papel do Supremo Tribunal Federal (STF) para decidir sobre o tema.
O estudo parte da premissa de que a participação no espaço público reflete as demandas
que são priorizadas, rememorando a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, para
lembrar da participação das mulheres na construção do texto constitucional e investigar o que
integrou a pauta, ainda que de forma tímida, sobre o aborto. Em seguida, analisa o Poder
Legislativo para evidenciar o contexto atual de assimetria das representantes no Congresso
Nacional e das pautas legiferantes em relação ao aborto.
Posteriormente, busca compreender o quadro normativo sobre o aborto no Brasil hoje,
discorrendo ainda que brevemente sobre as dificuldades de acesso a direitos já reconhecidos
pela legislação, tais como o aborto legal. Indica, nesse sentido, as violações de direito que
sofrem as mulheres ao tentar recorrer aos procedimentos previstos na legislação e como isso se
consolida em um ataque à autonomia das mulheres.
Por fim, discorre a respeito da judicialização da questão do aborto no Brasil, buscando
compreender os precedentes do STF sobre a questão. Especialmente no que diz respeito à ADPF
442, busca compreender seu ineditismo e seu importante papel para a consolidação dos direitos
das mulheres, pautado pela função contramajoritária a qual incumbe à suprema corte brasileira.
Em sendo assim, este artigo busca compreender de que forma o tema do aborto é tratado
pelas diferentes esferas de poder, com enfoque na judicialização da questão e nas novas
perspectivas possíveis a partir do ineditismo da ADPF 442. Tem por objetivo refletir
criticamente a respeito da regulação sobre o aborto no Brasil, bem como os reflexos da
participação feminina na Assembleia Nacional Constituinte, analisar a participação das
mulheres e dos movimentos feministas no Poder Legislativo, de que forma elas podem impactar
na concretização via legislativo dos direitos das mulheres e compreender qual o papel do Poder
Judiciário para proteger direitos fundamentais.
Essa análise se justifica especialmente porque o tema é controverso e polêmico na
sociedade brasileira, mas sobre o qual é fundamental refletir longe das paixões ou influências
religiosas ou morais. Analisar criticamente a questão do aborto é buscar compreender os
complexos fatores jurídicos que influenciam o tema, sobretudo compreender qual é a
proporcionalidade da criminalização diante dos bens jurídicos que supostamente visa proteger.
Avaliar o aborto como uma questão de saúde pública e sua criminalização como um fator de
vulnerabilização torna possível enxergar essa medida como uma violência praticada contra as
mulheres no cerceamento de seus direitos sexuais e reprodutivos. Nesse aspecto, compreender
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
177
a judicialização do tema para a garantia dos direitos fundamentais das mulheres é uma etapa
imprescindível.
Para isso, essa empreitada valeu-se de ampla revisão bibliográfica sobre o tema, fundada
em autoras e autores que discorrem sobre os conflitos jurídicos inerentes à questão e estudos
alinhados ao constitucionalismo feminista, além da investigação das peças processuais que
compõem a ADPF 442, bem como análise jurisprudencial das decisões do STF em temas
correlatos. Para isso, em um primeiro momento, será analisada a participação das mulheres na
Assembleia Nacional Constituinte; após, serão tecidas importantes considerações sobre a
configuração do Poder Legislativo atual e de que forma tem se regulado a questão do aborto.
Diante dessas conclusões, esse estudo se dedica à análise do quadro regulador do aborto no
Brasil e as novas perspectivas para concretização dos direitos sexuais e reprodutivos das
mulheres; por fim, avalia o papel do Poder Judiciário e, especialmente, a ADPF 442.
Entende-se que, dessa forma, o presente artigo pode contribuir para a reflexão crítica
sobre o tema e avançar na discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Compreender a questão do aborto distante das perspectivas religiosas ou morais significa
reconhecer a necessária compatibilização entre direitos fundamentais e abre caminhos para que
isso seja feito de acordo com os princípios consolidados pela Constituição Federal.
1.
A
PARTICIPAÇÃO
DAS
MULHERES
NA
ASSEMBLEIA
NACIONAL
CONSTITUINTE
A mobilização feminista dos anos de 1970, percebida como “segunda onda”, insere-se
no contexto da ditadura civil-militar (1964-1985), e aparece, no Brasil, comprometida com a
luta pelas liberdades democráticas. O movimento feminista e de mulheres guarda, portanto,
intrínseca relação com a democracia que se avistava no horizonte, porquanto “o processo de
redemocratização abriu caminho para novas militâncias, que ampliaram os embates políticos e
a relação dos movimentos sociais com o Estado, fortalecendo também os grupos ativistas dos
direitos da mulher.” (MORAES, 2015, p. 17).
As mulheres buscaram e buscam constitucionalizar as demandas que vinham
reivindicando historicamente. Isso faz parte de uma visão neoconstitucionalista, na qual a
vertente do próprio constitucionalismo feminista se insere, e é característica dos novos
processos de construção democrática no contexto da América Latina (SILVA; WRIGHT, 2015,
p. 172).
A Constituição da República Federativa do Brasil teve a gênese do seu texto construída
entre 1987 e 1988, com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, no plenário da
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Câmara dos Deputados. Insta lembrar que, no panorama constitucional,“[...] o poder
constituinte é tradicionalmente a fonte da qual a nova ordem constitucional brota. É o poder de
fazer a nova Constituição, da qual os poderes constituídos adquirem a sua estrutura [...] o poder
constituinte instala uma ordem jurídico-constitucional totalmente nova.” (CHUEIRI; GODOY,
2010, p. 170).
Dentre o total de 559 parlamentares constituintes, apenas 26 eram mulheres. Nas
reuniões, as parlamentares foram registradas sentadas juntas e de mãos dadas, simbolizando a
união que tinham para enfrentar o ambiente majoritariamente masculino. Para além da diferença
de participação, foi percebido um plenário que não contava com banheiros femininos. O espaço
em que seriam discutidas todas as propostas que culminaram com a promulgação do texto da
Carta Maior simplesmente não esperava por mulheres. Não obstante, a representação feminina
foi apelidada de “lobby do batom”, em clara estigmatização de suas presenças no debate
público. A emblemática expressão já indiciava os percalços do caminho:
Vale destacar que o Lobby do batom foi uma classificação feita pelos próprios
parlamentares a partir de um amplo recurso à ironia, pois, no meu entender,
foi uma tentativa de minimizar, senão ridicularizar, as contribuições das
mulheres no processo constituinte. Pode ser entendido como uma marca
misógina que tentou desqualificar a importância deste momento em nossa
história política em relação à atuação das mulheres, reduzindo-as a seus corpos
e aos artifícios utilizados para sedução. (PIMENTA, 2010, p.13)
A voz e a vez das mulheres neste momento contou com a campanha “Constituinte pra
Valer tem que ter Palavra de Mulher”, enaltecida pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM), criado em 1985, pela Lei 7.353, com a “finalidade de promover em âmbito
nacional, políticas para a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de
liberdade e de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas”,
econômicas e culturais, na época vinculado ao Ministério da Justiça - hoje ao Ministério dos
Direitos Humanos. O CNDM criou ainda a “Comissão da Mulher” para acompanhar e dar
suporte aos trabalhos durante Constituinte de 1987.
Neste ponto, é necessário ressaltar que há uma diferenciação no que se entende por
movimento feminista e por movimento mulheres, na medida em que o primeiro possui um
comprometimento com as pautas específicas para mulheres, enquanto o segundo não
necessariamente (MORAES, 2015, p. 17).
A mobilização resultou, ainda, na escrita da “Carta das Mulheres aos Constituintes”
endereçada ao Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães (PMDB).
A carta continha desde reivindicações gerais, como a igualdade, até mais específicas, no âmbito
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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da família, do trabalho, da saúde e muitas outras. Atenção volta-se aos pleitos, setorizados na
parte da saúde, que assinalam vedação ao Estado de “qualquer ação impositiva que interfira no
exercício da sexualidade”, bem como a “garantia do livre exercício da maternidade, [...] como
o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher.” (CNDM,
1897).
O conflito do aborto foi suscitado discretamente, ainda, como pano de fundo de
discussões da previdência, para abordar o planejamento familiar e o direito da mulher decidir
quantos e se deseja ter filhos (BRASIL, 1987, p. 194 - 195).
Das Atas de Comissões, documentos de registro da Assembleia Nacional Constituinte,
nota-se que da reunião da “Comissão da Família, da Educação, da Cultura e Esportes, Ciência
e Tecnologia e da Comunicação”, foi discutido o acréscimo da expressão “desde a concepção”
a proteção à vida. Isso para evitar qualquer controvérsia de que o texto admitisse interpretação
de prática do aborto. A discussão levou em conta a proposta que, em sentido contrário, previa
as hipóteses em que o aborto seria permitido (BRASIL, 1987, p. 56).
Sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez, os parlamentares constituintes
deixaram a questão em aberto, não dispondo sobre a extensão de proteção à vida e sobre o
exercício de escolha da mulher. É importante ressaltar que a dificuldade de enfrentamento dessa
pauta dá-se por diversos fatores. Dessa forma, pontua-se:
A socióloga Eva Blay, professora da USP e participante do movimento
feminista desde antes da redemocratização, explica que a discussão sobre o
aborto foi levada à Constituinte, porém rejeitada. Segundo ela, não foi apenas
a rejeição de grupos religiosos ou conservadores que impediu a inclusão do
tema na Constituição. A sociedade como um todo possui uma aversão a esse
debate. (BRASIL, 2018, p.69)
2. A PAUTA DO ABORTO NO PODER LEGISLATIVO ATUAL
Em relação ao Poder Legislativo, é possível dizer que funciona como um dos poderes
de maior cunho democrático, dado seu aspecto de eleição de representantes. Entretanto, o perfil
do legislativo atual deixa a questão controvertida, dada a crise da correlação de representação
entre os ocupantes dos cargos e os cidadãos e cidadãs.
No Brasil, apenas 11% das cadeiras do Parlamento são ocupadas por mulheres,
conforme dados da Organização das Nações Unidas de 2017. O que deu ao país a 154ª posição,
no ranking da participação das mulheres no Congresso, dentre os 174 países analisados. São 55
dos 513 lugares da Câmara e 12 dos 81 do Senado.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
180
Esse panorama assimétrico ainda é encontrado, embora passados 20 anos desde a
publicação da Lei 9.504, de 1997, a qual estipulou em seu artigo 10, § 3o que “cada partido ou
coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por
cento) para candidaturas de cada sexo”.
Em 2018, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.617, de
relatoria do ministro Edson Fachin, versou sobre a proporcionalidade destinada ao fundo de
campanha eleitoral para candidatas. A ADI redigida pelo Procurador-Geral da República,
explicita que o Brasil “[...] tem menos participação proporcional de mulheres no Poder
Legislativo do que outras nações de menor consolidação democrática, menor abertura política
e cultural ou menor condição socioeconômica”. A ADI foi julgada procedente por maioria para
ajustar para 30% como mínimo - a mesma proporção prevista para cargos eletivos - a ser
destinado ao fundo partidário de campanha.
A participação de grupos nos espaços de poder reflete as demandas, os anseios e
prioridades daquilo que é posto em pauta. Tendo em vista o cenário de representação feminina
alarmante, opções legislativas e direcionamentos judiciários de incentivo são uma tentativa para
atingir maior isonomia, materializar o princípio da igualdade, conquanto possa ser discutido
sua efetividade ou não.
Inúmeras propostas sobre a questão do aborto tramitam no Poder Legislativo, ora com
intuito de majorar o controle jurídico penal, como aumento de pena para os crimes já previstos
nos artigos 124 a 126, do Código Penal, ou criar novos tipos penais, ora para acrescentar à
Constituição o direito à vida desde a concepção, com fim de blindar uma possível permissão à
interrupção voluntária da gravidez. Alguns dos exemplos recentes: o PL n° 556, de 2019 “para
elevar a pena do crime de aborto provocado por terceiro, com o consentimento da gestante, e
criar nova causa de aumento de pena”; o PL nº 2574 de 2019 “criminaliza o aborto provocado
que seja motivado pela má formação fetal; PEC nº 29/2015 “altera a Constituição Federal para
acrescentar no art. 5º, a explicitação inequívoca ‘da inviolabilidade do direito à vida, desde a
concepção'".
Noutra via, exemplo de proposta no sentido de inaugurar nova causa de excludente de
ilicitude em relação ao tipo, é a Sugestão Legislativa nº 15 de 2014, a qual visava regular a
interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo sistema
único de saúde, que foi, posteriormente, arquivada.
Em que pese o consenso advindo do movimento feminista de que a representação
política importa, é notável a influência de variados fatores em relação à agenda do aborto, tais
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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como a presença de questões religiosas à arena política e posicionamentos de viés conservador,
por isso:
[...] a disputa pela regulação do aborto não é linear ou fixa, mas ocorre em
espaços sociais mais ou menos institucionalizados [...] e envolve atores não
estatais [...]e atores estatais . As estratégias e estruturas de mobilização
mudam de acordo com o equilíbrio das oportunidades e restrições políticas,
que por sua vez são constantemente alteradas pela ação de movimentos e
contra-movimentos. (MACHADO; MACIEL, 2017, p. 120 - tradução livre)3.
4. A DISCIPLINA LEGAL DO ABORTO NO BRASIL
Conforme Schiocchet e Barbosa (2013, p. 354), o aborto, no Brasil, possui caráter
constitucional, já que se insere no âmbito do planejamento familiar, previsto pelo art. 226, § 7º
da CRFB/88 e Lei nº 9.263/96 e também do direito à saúde (art. 196, da CRFB/88). Trata-se de
uma questão ampla, situada especialmente no campo da saúde pública, entrecortada por
questões de gênero e socioeconômicas.
Atualmente, a prática do aborto não é considerada crime em três hipóteses. Duas dessas
hipóteses de excludentes de ilicitude do aborto praticado pelo médico estão inseridas no artigo
128 do Código Penal (CP): quando houver risco de vida para a mulher ou quando a gravidez
for resultado de estupro. A terceira circunstância deriva de decisão do Supremo Tribunal
Federal (STF). Após julgamento da ADPF n° 54, a corte declarou a inconstitucionalidade da
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada
nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, todos do CP, com fulcro, notadamente, na inviabilidade
da vida extrauterina e da preservação da saúde psíquica da gestante.
O direito ao aborto legal tem difícil implementação e encontra-se ameaçado por
iniciativas conservadoras que ganham cada vez mais força no Poder Legislativo brasileiro.
Além das iniciativas apontadas anteriormente, as autoras apontam, por exemplo, o Estatuto do
Nascituro (PL n. 478/2007) como um “verdadeiro retrocesso no tratamento dos direitos sexuais
e reprodutivos das mulheres” (SCHIOCCHET; BARBOSA, 2013, p. 354), já que prevê, entre
outras medidas, a revogação das hipóteses de aborto legal, prevê auxílio financeiro aos filhos
cuja concepção decorrer da prática de estupro. A chamada “PEC da vida” (PEC 29/2015), do
“[...] the dispute over the regulation of abortion is not linear or fixed, but occurs in more or less institutionalized
social spaces and involves non-state actors (feminist movements and other social movements; trade unions;
religious, medical and legal organizations, and health professionals); and state actors (state bureaucracies of public
policy staff, members of congress, judges, and judicial officers). Mobilization strategies and frames change
according to the balance of political opportunities and restrictions, which in turn are constantly altered by the
action of movements and counter-movements.” In MACHADO, Marta Rodriguez de Assis; MACIEL, Débora
Alves. The Battle over Abortion Rights in Brazil’s State Arenas, 1995-2006. Health and Human Rights Journal,
[S.l.] vol. 19, p. 119-131, jun. 2017, p. 120.
3
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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ex-senador Magno Malta (ES), foi desarquivada no início deste ano e, em abril de 2019, recebeu
relatório favorável da Senadora Juíza Selma (PSL-MT), que argumenta que “o direito à vida
desde a concepção é o [direito] principal de todos os direitos humanos”4.
Segundo Schiocchet e Barbosa (2013, p. 355), inobstante as diretrizes previstas pelo
Ministério da Saúde5 que orientam o cuidado humanizado ao abortamento legal, “elas são
rotineiramente desrespeitadas de modo sutil, sendo correntes os atos de discriminação contra a
mulher pela escolha de realizar o abortamento, o que potencializa a sua vulnerabilidade”. Diante
das dificuldades de implementação da legislação vigente e das mais diversas violências às quais
as mulheres estão submetidas, sobretudo na consolidação de seus direitos sexuais e
reprodutivos, é fundamental discutir a questão do aborto no Brasil como uma questão
diretamente relacionada à autonomia e à cidadania delas, alinhada à melhoria da saúde pública
e ao planejamento familiar.
3. O ABORTO E O EXERCÍCIO PLENO DA AUTONOMIA DAS MULHERES
Diante desse cenário, é importante destacar a importância da plena garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres para o total exercício de sua dignidade e autonomia. Nesse
sentido, o ordenamento jurídico brasileiro expressamente reconhece a igualdade de gênero, já
que elenca, como um de seus objetivos fundamentais, a promoção do bem estar de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O
art. 5, da CRFB/88 estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
No âmbito internacional, o Brasil ratificou uma série de Convenções que obrigam o
Estado a se comprometer com a igualdade de gênero e o combate à violência contra a mulher.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a mulher e a
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(Convenção CEDAW) preveem um importante catálogo de direitos a serem assegurados às
mulheres, especialmente para que tenham uma vida livre de violências tanto no âmbito público
quanto privado. A Convenção de Pequim, por exemplo, prevê que o reconhecimento explícito
e a reafirmação do direito de todas as mulheres de controlar todos os aspectos de sua saúde, em
particular sua própria fertilidade, é básico para seu fortalecimento. Essas Convenções são
4
Ao expressamente considerar que o direito à vida deve ser protegido desde a concepção, admite-se a exclusão
das hipóteses de aborto legal e o prejuízo aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Ver:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/04/24/proposta-de-emenda-a-constituicao-contra-abortosera-votada-dia-8-de-maio-na-ccj
5
Atualmente, há duas normas técnicas elaboradas pelo Ministério da Saúde (MS) sobre a questão dos serviços de
interrupção voluntária da gravidez nos casos legalmente previstos: “Atenção humanizada ao abortamento” (2010)
e “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” (2012).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
183
importantes compromissos internacionais; além de consagrar o dever do estado brasileiro, como
estado-parte, de combater a violência contra a mulher.
É a partir deste arcabouço principiológico que se desenvolve hoje o constitucionalismo
feminista (SILVA; BARBOSA; FACHIN, 2019, p. 71), o qual considera a pauta do aborto uma
importante discussão inserida na temática dos direitos humanos, cuja disputa pela
descriminalização se fundamenta nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, no direito
fundamental à liberdade e à autodeterminação, assim como a integridade física e psíquica.
Nesse sentido, é fundamental destacar que o aborto é um evento comum na vida
reprodutiva das brasileiras. É isso que revelou a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA),
desenvolvida pela Anis - Instituto de Bioética6. A PNA de 2016 indicou que 1 em cada 5
mulheres até os 40 anos já realizou um aborto no Brasil. Além disso, a pesquisa mostrou que,
em 2015, aproximadamente 416 mil mulheres realizaram o procedimento e que houve maior
frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade, pretas, pardas e indígenas, vivendo
nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O principal método eleito pelas mulheres, como já
havia indicado a PNA 2010, foi a utilização de medicamentos. Outro dado alarmante é que
quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto e diversos casos
noticiados amplamente pela mídia revelam os perigos dos procedimentos ilegais e inseguros
realizados no Brasil7.
A criminalização do aborto relega as mulheres a um cenário de vulnerabilidade e
marginalização, submetendo-as a diversas e amplas formas de violência, aprofundadas
conforme os recortes de classe, raça, idade, etnia, posição em relação aos centros das
metrópoles, entre outros marcadores. Diretamente relacionada à questão da violência contra
mulher, a criminalização do aborto reforça uma série de padrões de estereótipos de gênero, com
vistas a uma suposta proteção da vida que, na prática, não se concretiza. Isso porque essa
Pesquisa Nacional do Aborto foi realizada pela Universidade de Brasília e pela Anis – Instituto de Bioética, com
financiamento do Ministério da Saúde e Fundo Elas. Em 2010, quando foi realizada a primeira edição da pesquisa,
o estudo recebeu o prêmio de excelência em literatura sobre saúde pela Organização Pan- Americana de Saúde,
Prêmio Fred. L Soper. (DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. Pesquisa Nacional de Aborto
2016. Cien Saude Coletiva, v. 22, n. 2, p. 653-660, 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/141381232017222.23812016>. Acesso em: 25 fev. 2017).
7
Mulher morre durante aborto clandestino em Montes Claros. O Tempo. Minas Gerais, 25dez2018. Disponível
em:
https://www.otempo.com.br/cidades/mulher-morre-durante-aborto-clandestino-em-montes-claros1.2084494; Jovem é encontrada morta após fazer aborto em clínica clandestina em Benfica. G1 Extra. Rio de
Janeiro, 23ago2018. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/jovem-encontrada-morta-aposfazer-aborto-em-clinica-clandestina-em-benfica-19981158.html; Grávida de quatro meses morre após fazer aborto
em casa e suspeita de realizar procedimento é presa. G1 Região Serrana. Rio de Janeiro, 20jul2018. Disponível
em: https://g1.globo.m clínica clandestina em Benficacom/rj/regiao-serrana/noticia/2018/07/20/gravida-dequatro-meses-morre-apos-fazer-aborto-em-casa-e-suspeita-usar-talo-de-mamona-e-presa.ghtml
6
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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discussão é absolutamente permeada por argumentos morais e religiosos, que obscurecem as
importantes questões de saúde pública inerentes ao debate e as violações dos direitos das
mulheres.
Assim, a defesa da igualdade de gênero e o combate ao fim da violência contra a mulher
não pode prescindir do direito à tomada de decisão sobre o próprio corpo, já que o pleno gozo
dos direitos sexuais e reprodutivos é crucial para a consolidação da autonomia e dignidade das
mulheres. A criminalização do aborto é ofensiva à dignidade da mulher em suas mais
complexas dimensões, já que se mostra como um mecanismo de controle dos corpos femininos.
Por isso, a questão do aborto deve ser enfrentada pelo Poder Judiciário, especialmente em uma
democracia constitucional, na qual as supremas cortes tem por função inexorável um poder
contramajoritário de proteção dos grupos vulnerabilizados. Neste cenário, a ADPF n. 442
adquire especial relevância.
4. O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O INEDITISMO DA ADPF 442
Como se vê, a questão do aborto no Brasil é um dos temas mais polêmicos e
controversos da atualidade. Com baixa aderência das pautas feministas no Congresso Nacional,
a agenda das mulheres, especialmente no que diz respeito aos seus direitos sexuais e
reprodutivos, bate às portas do Judiciário brasileiro. Inobstante os argumentos que reputam
ilegítimo o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal na proteção dos grupos
vulnerabilizados, esse é um entendimento já consolidado e respalda a atuação do tribunal
constitucional para solidificar o estado democrático de direito e proteger os direitos
fundamentais. Parece este ser o caso da descriminalização do aborto, tema sobre o qual a Corte
foi instada a se posicionar por intermédio da Ação de Descumprimento Fundamental n. 442.
Antes da ADPF 442, Cook e Machado (2018, p. 217) consideram que os precedentes do
STF firmaram o entendimento de que o debate judicial sobre a descriminalização do aborto
parte do pressuposto de que o art. 1 da Constituição Federal garante às mulheres o livre
exercício da cidadania. Muito embora a discussão feita na ADPF 54 tenha sido a respeito da
interrupção da gravidez nos casos de fetos anencéfalos, as autoras apontam que a Corte avançou
ao considerar os motivos pelos quais a descriminalização do aborto é fundamental para o
exercício da cidadania das mulheres, consistente com as noções que orientam a Constituição de
1988. Diante disso, considera-se que o Supremo Tribunal Federal abriu caminhos para a
descriminalização do aborto pela via judicial.
Segundo as autoras, o debate promovido pelo STF acerca dessa questão evidencia que
a Corte constitucional brasileira tem, de maneira louvável, movido a questão para longe de uma
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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narrativa religiosa, que impõe o sofrimento e a maternidade como fatos naturais e obrigatórios
da vida da mulher, para se aproximar de uma perspectiva constitucional, segundo a qual o
Estado deve promover e defender os direitos das mulheres à saúde e a uma vida livre de tortura
ou tratamento desumano (COOK; MACHADO, 2018, p. 217).
Ao reconhecer a importância dos direitos fundamentais das mulheres e de sua autonomia
para o exercício da plena cidadania, a Suprema Corte brasileira estabeleceu que a proteção do
feto precisa ser compatibilizada com os direitos das mulheres, indicando, a partir de suas
decisões anteriores, que o direito à vida não é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro.
Nesse sentido, em março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) impetrou
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, com pedido de medida
cautelar, pleiteando que o Supremo Tribunal Federal declare, com eficácia geral e efeito
vinculante, a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu
âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12
semanas, sob o argumento de que tais dispositivos legais são incompatíveis com a dignidade da
pessoa humana, a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação como princípios
fundamentais da República, além de violarem os direitos fundamentais das mulheres8.
Para sustentar o pedido, o partido político enfatiza que a prática do aborto é um fato
normal da vida reprodutiva das mulheres e destaca a importância de circunscrever a discussão
à dimensão jurídica e, consequentemente, à seguinte pergunta: qual a proporcionalidade do
poder coercitivo do Estado para coibir a interrupção voluntária da gravidez?9.
Os requerentes concluíram que não há objetivo constitucional legítimo na
criminalização do aborto, já que: 1. o embrião ou feto não deve ser considerado uma pessoa
constitucional, devendo sua proteção dar-se na esfera infraconstitucional, com fundamento na
compreensão internacional do aborto e nos precedentes do STF sobre o tema; 2. a
criminalização do aborto é ofensiva à dignidade da mulher em suas mais complexas dimensões,
e destacam que recortes de, por exemplo, classe, raça, idade, etnia, posição em relação aos
centros das metrópoles, são fatores que aumentam essas violações; 3. caso se admita que o
8
Na peça inicial, o partido indicou como preceitos violados os princípios fundamentais da dignidade da pessoa
humana, da cidadania e da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à
liberdade, à igualdade, à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, à saúde e ao planejamento
familiar, todos da Constituição Federal (art. 1o , incisos I e II; art. 3o , inciso IV; art. 5o , caput e incisos I, III; art.
6o , caput; art. 196; art. 226, § 7º), para que seja declarada a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código
Penal (Decreto-Lei no 2.848/1940).
9
Após traçar um histórico de cortes constitucionais de diversos países sobre a descriminalização do aborto, O
PSOL utiliza técnica desenvolvida por Verónica Undurraga para pensar a proporcionalidade e os diferentes
estágios do raciocínio constitucional em casos substantivos. Ver: UNDURRAGA, Verónica. Proportionality in the
constitutional review of abortion Law. In: COOK, Rebecca J. et al. (Orgs.). Abortion law in transnational
perspective: cases and controversies. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2014.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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embrião ou feto é dotado de direitos fundamentais, o embate entre direitos fundamentais
colocado pela criminalização do aborto não passa no teste de proporcionalidade que avalia a
idoneidade, a necessidade e a proporcionalidade da medida.
Em trâmite há mais de dois anos10, a ADPF conta, até o momento, com cinquenta e
quatro pedidos de habilitação de amici curiae. Entre eles, treze manifestaram-se em seus
pedidos de habilitação de forma contrária ao requerimento impetrado pelo PSOL; até o presente,
foram efetivamente habilitados o Partido Social Cristão (PSC), a União dos Juristas Católicos
de São Paulo (UJUCASP) e o Instituto de Defesa da Vida e da Família (IDFV), todos contrários
ao pedido formulado na inicial.
Nos dias 03 e 06 de agosto de 2018, foi realizada audiência pública, para a qual se
inscreveram mais de quinhentas entidades; foram habilitadas cinquenta e duas expositoras.
Dessas, dezessete manifestaram-se contrariamente ao pedido formulado na peça inicial. O
restante posicionou-se de forma favorável. As expositoras habilitadas incluíam pessoas físicas
com potencial de autoridade e representatividade, organizações não governamentais, sociedade
civil e institutos específicos, principalmente entidades da área de saúde, institutos de pesquisa,
organizações civis e instituições de natureza religiosa e jurídica. Cada expositora contou com
vinte minutos para fazer suas colocações e para informar a Corte das perspectivas éticas, morais,
religiosas e assim por diante.
A expressiva participação de órgãos públicos e entidades da sociedade civil nesta ação
específica aponta para a relevância do tema e para o acirramento dos ânimos por ele provocado.
Revela, sobretudo, o ineditismo dessa ADPF, especialmente no Brasil, que se tornou o palco
para discussão sobre principais argumentos e pontos críticos que envolvem a questão hoje.
Em análise preliminar dos pedidos de habilitação e das manifestações na audiência
pública, foi possível identificar os principais argumentos trazidos por aqueles que pleiteiam a
posição de amicus curiae e pelas expositoras na audiência pública e, consequentemente,
delinear inicialmente os principais pontos jurídicos em debate.
Resumidamente, os principais argumentos da discussão jurídica até então identificados
focam-se em três eixos e são operados tanto para posições favoráveis quanto contrárias: a) os
critérios de proporcionalidade e ponderação para propor soluções para o conflito entre o direito
10
Em novembro de 2017, a relatora (Min. Rosa Weber) indeferiu pedido de medida cautelar de urgência que visava
à suspensão de prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou decisões judiciais baseados
na aplicação dos artigos 124 e 126 do código penal a casos de aborto voluntário realizado nas primeiras 12 semanas
de gravidez.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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à vida e a autonomia das mulheres; b) o cenário internacional de regulação do aborto; e,
finalmente, c) a legitimidade do STF no debate sobre o aborto.
Ressalte-se que acima foram destacados os pontos importantes para circunscrever a
discussão jurídica. Foram explorados inúmeros argumentos de ordem religiosa, ética, moral,
biológica, sem, contudo, incrementar propriamente a argumentação jurídica. De um lado, vê-se
a recorrência de temas ligados a perspectivas religiosas e o uso de instituições jurídicas para
mascarar a defesa de estereótipos de gênero11; de outro, nota-se a robustez dos movimentos
sociais de mulheres para interferir e se posicionar na perspectiva de defesa e promoção dos
direitos delas. Não se ignoram, portanto, os impactos simbólicos e políticos dos argumentos de
natureza não jurídica, apenas se opta por delimitar o objeto de pesquisa aos aspectos acima
identificados. Por isso, a ADPF 442 marca um importante momento na discussão sobre aborto
no Brasil pelo ineditismo dos argumentos trazidos e pela relevância da judicialização desse
tema no Brasil.
Em primeiro lugar, é importante destacar que, se nos precedentes do STF sobre o
assunto, como na ADPF n. 5412, a discussão girou majoritariamente em torno da viabilidade da
vida em potencial, se há vida no período gestacional, quando é o início dela, a participação da
sociedade civil na ADPF 442 têm possibilitado o ingresso de temas inéditos na discussão sobre
a descriminalização do aborto. Além do pedido inicial vigorosamente fundamentado nesses
aspectos, é pela atuação dos amici curiae e das expositoras na audiência pública que temas
como a autonomia sexual e reprodutiva da mulher, o direito a um aborto seguro, além de
argumentos jurídicos importantíssimos como a regulamentação do aborto em outros países e as
normativas internacionais que orientam o tema foram aprofundados nesta discussão.
11
Em sua manifestação na audiência pública e nos memoriais apresentados, a União de Juristas Católicos de São
Paulo (UJUCASP), por exemplo, relaciona o aumento das gestações entre as adolescentes com a popularização
dos bailes funks em regiões periféricas, além de citar uma suposta “Síndrome pós-aborto”, responsável pelo
aumento da frigidez entre as mulheres e pela frustração de seu instinto materno.
12
O STF já se manifestou sobre temas correlatos à questão do aborto, especialmente na ADPF 54, na ADI 3510 e
no HC 124.306. Em síntese, na ADPF 54, STF declarou a inconstitucionalidade da tipificação como crime de
aborto a interrupção da gravidez de feto anencéfalo. A Suprema Corte considerou que a interrupção da gravidez
de fetos anencéfalos é atípica, pois tais fetos não deveriam receber proteção jurídica, considerando que não
possuem expectativa de vida extrauterina; ao julgar a ADI 3.510 e aprovar a constitucionalidade da pesquisa com
embriões, o STF afirmou que a Constituição Federal não estabelece quando a vida humana tem início, sendo esta
uma questão externa para o enfrentamento da constitucionalidade da pesquisa com embriões humanos; na decisão
do HC 124.306, tomada por maioria, julgada em novembro de 2016, pela 1ª Turma, o STF considerou que a
interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto. Seria, assim, hipótese
de atipicidade. Nessa última decisão, embora não tenha efeitos vinculantes e nem em face de todos, argumentos
diversos foram trazidos à discussão, tais como a desproporcionalidade da punição, direitos sexuais e reprodutivos,
autonomia da mulher, paridade entre os sexos, integridade física e psíquica da gestante, entre outros. Esse cenário
foi diverso das decisões anteriores, que se concentraram na argumentação a respeito do início da vida e na definição
da proteção à vida em potencial.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
188
Além disso, a ADPF 442 é o primeiro pedido judicial para descriminalização do aborto
com força vinculante e efeito contra todos. No Brasil, a ADPF 442 tornou-se o palco da
judicialização da questão do aborto, com o aprofundamento de discussões que já tardavam no
ordenamento jurídico vigente. Nesse sentido, a discussão posta nesta ação constitucional já se
mostra um ganho consolidado para o movimento feminista e para a delimitação dos argumentos
jurídicos sobre a questão. A ADPF 442 já se mostra um importante passo na defesa e promoção
dos direitos das mulheres, sobretudo para a construção de uma cultura jurídica emancipatória
entre os gêneros, além de contribuir para a consolidação de uma sociedade mais justa e
democrática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, é possível compreender a complexidade da questão do aborto no
Brasil. Avaliar criticamente a participação feminina na Assembleia Nacional Constituinte e a
presença das pautas das mulheres no Poder Legislativo indica a dificuldade de implementação
dos direitos delas por essa via. Especificamente no que diz respeito ao aborto, compreende-se
a influência religiosa e moral que determina a legislação sobre o tema, sobretudo no Poder
Legislativo brasileiro. Nesse cenário, avulta a importância da jurisdição constitucional para a
implementação de direitos.
Assim, discorreu-se amplamente sobre os fatores inéditos da ADPF 442 e a sua
importância para delimitar o debate à esfera jurídica, provocando o STF a se manifestar sobre
o conflito entre direitos fundamentais e indicar se a criminalização da prática está de acordo
com a CRFB/88. O que o entendimento internacional sobre o tema indica, assim como os
precedentes do próprio Supremo, é que é preciso ponderar o direito à vida diante do direito à
autonomia das mulheres, já que impedindo o seu pleno exercício o Estado chancela uma série
de violências contra elas.
Contudo, à guisa de considerações finais, é importante destacar que o potencial do papel
do Poder Judiciário para implementar ou aniquilar direitos é um tema tão controverso quanto
fundamental. Não há, contudo, resposta certeira: somente a indicação de que é necessária a
conjugação ponderada entre as matrizes que se opõem a toda forma de opressão, em busca de
posicionamentos emancipatórios e jamais reprodutores de desigualdades. Especificamente no
que diz respeito à consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e,
consequentemente, à descriminalização do aborto, é urgente a tarefa de enfrentar o tema a partir
de perspectivas jurídicas arejadas, críticas, distante dos estereótipos de gênero, critérios morais
ou religiosos e, principalmente, alinhadas ao que dispôs a Constituição Federal.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
189
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reprodutivos V.4.
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A INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO E AS
CONSEQUÊNCIAS DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO
Julia Sleifer Alonso1
Deisemara Turatti Langoski2
RESUMO
O artigo trata sobre a influência da moral religiosa no direito brasileiro e as consequências da
criminalização do aborto. O trabalho desenvolve uma pesquisa bibliográfica por método
dedutivo, acerca do conceito de moral na filosofia jurídica, principalmente, da moral religiosa
e a sua extensão nas relações do Estado e suas leis. Tem como objetivo principal demonstrar a
influência das religiões no Estado brasileiro, especialmente, no que diz respeito aos direitos das
mulheres, em específico aborda a temática da criminalização do aborto. Nesse sentido, foi
possível concluir que são alarmantes os dados constatados sobre a problemática, em função da,
ainda, criminalização da prática de interrupção da gravidez. De tal modo, como também
possível verificar um crescente envolvimento da igreja evangélica na política e nas decisões do
Brasil, afastando o conceito de Estado laico que, ficticiamente, permanece na Constituição
Federal de 1988.
Palavras-Chave: Moral. Moral Cristã. Filosofia Feminista. Criminalização. Aborto.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa desenvolver uma pesquisa analítica, por pesquisa bibliográfica
e método dedutivo, acerca das políticas de gênero, especificamente, sobre a violência contra a
mulher, mais precisamente, a respeito da, ainda presente, criminalização do aborto na sociedade
brasileira.
Objetiva mostrar o envolvimento das religiões no Direito brasileiro, igualmente as
consequências que isso está trazendo para o país. Em um primeiro momento o trabalho irá
abordar a influência da moral cristã no legislativo e judiciário brasileiro, seguindo de um
paradigma sobre a criminalização do aborto, assim como seus reais efeitos na sociedade. Para
ao final, fazer uma análise do que seria o melhor para a sociedade brasileira, tomando como
ponto de partida o fato de haver a liberdade religiosa no país, seu livre exercício e manifestação.
O trabalho também irá ter como base bibliográfica a filosofia feminista, na qual Tiburi
(2015, p. 254) descreve que, além de ser uma “forma de ética”, consiste também em uma
1
Estudante da graduação do curso de Direito na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Santana do
Livramento. juliasleiferalonso@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5003007476742764
2
Professora do Magistério Superior na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Campus Santana do
Livramento. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
deisemaraturatti@unipampa.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3978473576279102
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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“crítica da metafísica do patriarcado”. Neste sentido, assevera a autora que a filosofia feminista
é “um projeto que se estabelece na contramão da filosofia tradicional enquanto essa filosofia é
metafísica patriarcal ancorada em um discurso acrítico. A filosofia feminista, neste sentido, é
necessariamente filosofia crítica”. Motivo pelo qual se utiliza destes conceitos para promover
uma crítica reflexiva das estruturas ontológicas do patriarcado existente e submeter os discursos
e as práticas relacionadas ao tema em estudo.
1. CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DAS MULHERES NO BRASIL
Há pouco mais de cem anos, estava em vigência a segunda Constituição brasileira, de
1891, baseada ainda na cultura da mulher como propriedade privada do pai e após do marido,
porém, é recente a desvinculação do marido nas legislações sobre as mulheres. Foi apenas em
1962, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62), que além de outras garantias, previu
não ser mais necessário a autorização do marido para que as mulheres pudessem trabalhar,
receber herança e requerer a guarda dos filhos em caso de separação. A lei mudou mais de dez
artigos no Código Civil vigente, entre eles o artigo 6º, que previa a incapacidade feminina para
alguns atos. E foi só em 1977, com a Lei n° 6.515 que as mulheres conquistaram o direito ao
divórcio.
Desde o final do século XX, com a redemocratização do Brasil, houve uma nova era no
que tange aos direitos fundamentais e à proteção dos Direitos Humanos, se consolidando com
a Constituição Federal de 1988, o direito das mulheres, com maior ênfase em face ao
patriarcado até então vigente nas normas brasileiras.
“A desigualdade de gênero é uma afronta à igualização proposta pelos Direitos
Humanos desde a sua fundação no século XVIII, os três principais documentos sobre, são um
reflexo do social e da estreiteza em relação às diferenças de gênero” (COLLING, 2015, p. 159)
E foi na mesma década de 1980, tempo de promulgação da Carta Maior (1988), que as
mulheres começaram a poder exercer maiores papéis na sociedade, do mesmo modo que seus
direitos estiveram cada vez mais assegurados e garantidos.
Com a publicação do Código Eleitoral de 1932, no governo de Getúlio Vargas, seguido
da Constituição de 1934, as mulheres conquistam os direitos políticos e foi quando as
alcançaram pela primeira vez o direito ao voto no Brasil. Porém, seguido de golpes de poder,
só puderam exercer de fato tais direitos com a redemocratização, no final do século XX. Já a
“França, que criou a Declaração dos Direitos Humanos que pretendia ser universal, foi o último
país do ocidente a conceder o voto às mulheres, sua cidadania política” (COLLING, 2015, p.
159).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Com o novo Código Civil de 2002, as mulheres conquistaram importantes papéis dentro
do poder familiar, assim como a capacidade civil plena e igualdade de direitos civis. Entretanto,
só em 2006, após anos de luta e enfrentamento da violência contra as mulheres, que Maria da
Penha, depois de sofrer agressões do seu marido, chegando ao nível de ficar paraplégica e, tendo
que recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que foi aprovada no Brasil, a Lei n°
11.340, denominada de Lei Maria da Penha, representando uma medida de pena para com o
descaso do Estado brasileiro, para com as políticas públicas relacionadas à gênero. Referida lei
define e criminaliza a violência contra a mulher, prevê mecanismos de apuração e punição,
além de assinalar a necessidade de apoio e assistência.
A Lei n° 13.104, de 2015, traz mudanças significativas no Código Penal, instituindo o
crime de feminicídio. Relevante pontuar, todavia, ser o âmbito penal, no Brasil, o mais reticente
a revisões e alterações em normas claramente sexistas, conservadoras e patriarcais.
Conforme Machado (2017, n.p.), desde 1996, o Brasil é signatário da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (conhecida como
Convenção de Belém do Pará)”; também incorpora o Comitê CEDAW – Comitê para a
Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e assina o Protocolo
Facultativo, que segue normas da Organização Mundial de Saúde com relação ao atendimento
da mulher vítima de violência sexual e doméstica, por exemplo.
Até o ano de 1890 o Estado brasileiro se considerava Católico Romano, e foi com o
Decreto nº 119-A, de janeiro de 1890 que o Brasil deixou de ter uma religião oficial, então
declarando sua separação oficial do Estado com a Igreja, se tornando um país laico, como prevê
a Constituição Federal vigente.
Pode-se conceber a definição de laicidade da seguinte forma: “Por laicismo, entenda-se
a exclusão da religião da esfera pública de forma enfática, sem qualquer penetração em
ambientes estatais” (ZYLBERSZTAJN apud MACHADO, 2017, n.p.). Porém, o conceito de
laicidade não fica muito bem definido, nem para a sociedade nem para o Estado,
principalmente, quando há o crescente envolvimento de religiões na política e sua importante
influência nas decisões do Estado brasileiro.
Os números de religiosos envolvidos com a política se mostram cada vez maior, como
comprovam os dados nas eleições de 2018. Do mesmo modo, é crescente o número de
parlamentares na “Bancada Evangélica”, segundo pesquisa realizada pela Carta Capital (2018),
a atual “Bancada Evangélica” conta com 78 (setenta e oito) deputados federais, totalizando um
percentual de 15% (quinze por cento) do total da Câmara Federal.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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No entanto, é junto com a era progressista de direitos fundamentais, que parte da
população brasileira vem adquirindo nos últimos anos, que as igrejas têm tentado, novamente,
aproximação com o processo político, com a gestão governamental e nas decisões estatais. De
Destarte, fica evidente seu o real envolvimento de entidades religiosas para com as políticas
públicas, sobretudo, no que diz respeito às políticas de gênero, envolvendo às de violência
contra às mulheres.
2. INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO
Em contrapartida à era progressista, com referência aos direitos das mulheres, assim
como a já antiga separação da igreja com o Estado brasileiro, se tornando e auto definindo como
um Estado laico, nas últimas décadas, pode-se notar o crescente envolvimento de líderes
religiosos na política. Estes, no entanto, não se apresentam como pessoas com credos para
governar para todos, mas, como políticos autodeterminados, religiosos e ambiciosos em
conquistar importantes e altos cargos públicos para transcender seus dogmas religiosos nas
políticas públicas e na gestão do Estado brasileiro. De tal modo é o que se observa o caso da
“Bancada Evangélica”, citada anteriormente.
Machado (2017, n.p.) afirma haver um confronto da criminalização do aborto com a
laicidade do Estado e, que o aborto como “crime e pecado” está diretamente relacionado à
“família tradicional” consagrada pela igreja, eis que estabelece um “lugar” à mulher, o qual é
subordinado à reprodução da família. Do mesmo modo, até pouco mais de um século, a mulher
quando casada era considerada incapaz e, seu marido respondia por ela; ou antes do casório,
seu pai detinha a posse e administração de sua vida. Conforme explica Tessaro (2017, p. 27):
Partindo do princípio de que o direito à vida é um dom recebido diretamente
de Deus e que os homens são apenas administradores dela, existe um consenso
entre as crenças religiosas no que diz respeito ao caráter sagrado da vida.
Como sequência, proíbe-se qualquer intervenção do homem sobre ela.
Seguindo esta premissa, muitas são as religiões que condenam a prática da
interrupção voluntária da gravidez, ainda que o feto seja portador de anomalia
que incompatibiliza sua sobrevivência extra-uterina. A igreja católica é a que
adota a postura mais radical. Por muito tempo, nem mesmo a interrupção da
gravidez praticada para salvar a vida da gestante foi vista de maneira favorável
pela igreja. (TESSARO, 2017, p. 27).
A questão da criminalização do aborto está diretamente interligada com a moral
religiosa presente, de forma ativa, na sociedade brasileira, como também é a principal
influenciadora nos rumos do direito e das leis (SAMPAIO, 2015, n.p.). É possível perceber
através da análise de que em 36 (trinta e seis) projetos de leis que existem no Congresso
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Nacional, cinco almejam que a interrupção da gestação seja considerado crime hediondo, dados
levantados no ano de 2017 (ZANOTTO, 2017, n.p.).
Sobre o assunto, acrescenta Machado (2017, p. 1):
Os fundamentos do aborto como crime e pecado foram explicitado como
sanções religiosas e ao mesmo tempo regras morais. [...] A prévia longa
duração da criminalização do aborto durante a contínua expansão do
Cristianismo no mundo ocidental, da Idade Medieval à Moderna, se deu em
contexto em que predominava a não separação entre Igreja e Estado. Durante
séculos, as legislações dos Estados se articulavam ou se complementavam
com o Direito Canônico. E era o Direito Canônico o paradigma do
entendimento do aborto como crime e pecado. Contudo, é importante
sublinhar que o aborto não era considerado condenável se ocorresse nas
primeiras fases da gestação.
O termo canônico está diretamente relacionado à Igreja Católica Romana. “O Código
do Direito Canônico é o conjunto de normas (cânones) que orientam a disciplina eclesiástica,
definem a hierarquia administrativa, os direitos e deveres dos fiéis católicos, os sacramentos e
possíveis sanções por transgressão das normas (leis próprias da igreja)” (RIGUETI, 2015).
É presumível identificar que, nunca houve de fato uma separação dos ideais religiosos,
igualmente com a moral religiosa, para com o direito e por decorrência com o processo de
elaboração das leis. Neste sentido, considera-se que:
A ideia de “honra familiar” presente nas Ordenações Filipinas que distribui
desigualmente os poderes, as atribuições, os deveres e os direitos de homens
e mulheres, de pais, mães e filhos/filhas, de senhores e agregados e escravos,
está assentada (ou adequada) às normas disciplinares cristãs sobre sexualidade
(sendo toda a sexualidade que foge à heterossexualidade considerada sob o
signo do pecado da sodomia), diferença de sexo e gênero (as mulheres com
dever de obediência ao poder masculino e dever diferenciado de fidelidade) e
diferença e distância de status social (referente não só a classe social como ao
instituto da escravidão). Os princípios do código relacional da honra persistem
no Código Civil de 1916 e no Código Penal de 1940, e na memória social
(MACHADO, 2000, 2001, 2010; CORREA, 1983 apud MACHADO, 2017,
p. 1).
Para Machado (2017, n.p.), nos períodos colonial e de Império brasileiro, nunca existiu
a separação da Igreja Católica com o Estado, a ponto de fazer com que o direito absorvesse os
fundamentos religiosos nos mais variados níveis e esferas, apresentando consequências até a
atualidade. Contudo, não foi sempre que a Igreja Católica teve a mesma postura dos dias atuais
em relação ao aborto; isso porque durante, aproximadamente, 18 séculos, não houve consenso
a respeito do momento que a alma é incorporada ao produto da gestação e, durante esse período,
a Igreja sustentou pontos de vistas conflitantes, assegura Tessaro (2006).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
196
É explícito que o relativismo em relação à concepção de vida antes do nascimento é uma
polêmica que persiste por muitos séculos dentro da Igreja. No entanto, “a intolerância e a
intransigência da Igreja Católica, nessa matéria (do aborto), datam, portanto, pouco menos de
cento e quarenta anos” (FRANCO apud TESSARO, 2006, p. 28 ).
Outrossim, dispõe-se que,
O Código Criminal do Império de 1830, no Brasil independente, aderiu
parcialmente à longa duração do entendimento religioso sobre o aborto como
condenável, pois somente tipifica o crime de realizar o aborto em outrem. Não
considerou crime o autoaborto. Estavam ali presentes as porosidades e
interfaces do pensamento religioso e do pensamento social da ideia de
“honra”, modalidade de argumento (em parte secularizado) que poderia, no
senso comum da época, fazer entender à elite política porque uma mulher
poderia querer abortar. No período republicano, o Código Penal de 1890, que
teve vigência até 1940, criminalizou não só quem provocasse ou auxiliasse o
aborto, como a mulher que o cometesse. Em 1890, o aborto provocado por
terceiros e o infanticídio tiveram as penas aumentadas (MACHADO, 2017,
n.p.).
Apesar da Igreja Católica durante maior parte de sua história ter grande relativização e
controvérsias na definição de qual momento o feto começa a ter direitos, acarretando a
dicotomia às lutas contemporâneas, em que as religiões acreditam em “vida abstrata” e as
feministas antiproibicionistas defendem a vida que já existe, de “vida vivida”. Inclusive a forma
com que a Igreja Católica conduz o debate na atualidade, é inflexível, defendem a tese da
animação imediata do zigoto, fato que não condiz com o passado de séculos em que a questão
do aborto, do ponto de vista religioso, era objeto de um discurso aberto, não se tratando, ainda,
de uma postura fundamentalista (TESSARO, 2006, p. 38).
Apesar da crescente onda de laicidade dos Estados, é admissível notar que a partir do
século XVII, não foram significativas as mudanças nas legislações no que se refere à temática
do aborto, pelo contrário, estabeleceu-se tanto na sociedade quanto nas leis vigentes sua severa
criminalização, mudanças essas prejudiciais às mulheres. Tampouco o Estado teve o
reconhecimento de que a sua criminalização está baseada em fundamentos religiosos.
Como esclarece Machado (2017, n.p.), essa questão está diretamente relacionada à
outras temáticas também do direito, adjacente ao assunto dos direitos humanos, no que tange
aos valores familiares e conjugais que o direito herdou do entendimento cristão, os quais
estavam centrados na “autoridade e no poder desigual de homens e mulheres, e da sexualidade
(heterossexualidade e procriação obrigatória porque consideradas sagradas)”.
“Toda história da filosofia em relação às mulheres é ideologia patriarcal altamente
misógina” (TIBURI, 2015, p. 254). Então, é preciso compreender toda a função fundamentalista
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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imposta pelos ideais religiosos acerca do “ser mulher” na sociedade, designadamente, na
brasileira. E, além disso, “se podemos falar de lógicas seculares de disciplinamento das
condutas sexuais e reprodutivas das mulheres, presentes na instauração dos estados laicos, é
porque já haviam sido absorvidos os fundamentos religiosos cristãos de longa duração [...]”
(MACHADO, 2017, n.p.). Acrescenta, em seguida, a mesma autora que:
Foi somente no decorrer do século XX com a progressiva laicização e
separação da Igreja e do Estado, e com a movimentação por direitos, que, antes
dos anos sessenta, alguns poucos Estados legislam a favor da
descriminalização do aborto. Antes de 1960, o primeiro país europeu a
legalizar o aborto (com restrições) foi a Suécia, em 1938, seguido pela
Finlândia (1950) e pelas repúblicas bálticas (1955) - Estônia, Lituânia e
Letônia (MACHADO, 2017, p.1).
No Código Penal Brasileiro, de 7 de dezembro de 1940, os artigos 124, 125 e 126
consideram crime a prática da interrupção da gestação quando praticada por uma mulher
gestante, a seu pedido ou sem o seu consentimento. Referida norma, permite o aborto em duas
situações: gravidez em que há risco de morte para a mulher e em caso de estupro.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou a terceira situação na qual o aborto não
é considerado crime no Brasil: quando o feto é anencéfalo/inviável. Nestas circunstâncias, é
necessária a autorização da Justiça para realização da interrupção da gravidez.
Neste sentido, posiciona-se Machado (2017, n.p.):
Denomino retrocesso neoconservador o período que se inicia claramente ao
final de 2005 e que se agudiza a partir dos anos 2010, com o crescimento do
poder político da movimentação pró-vida no Parlamento brasileiro que reage
a um processo de secularização da sociedade e ao crescimento dos
movimentos sociais por direitos humanos. Nos anos noventa e início do
milênio era legítimo o debate público e político em prol da defesa dos direitos
ao aborto. Ainda que tal objetivo não tenha sido jamais atingido, foi
conseguido o atendimento no sistema de saúde de casos decorrentes de abortos
em situação clandestina, assim como se instituíram serviços de aborto legal
aos casos permitidos pela legislação brasileira.
"O aborto é uma questão de saúde pública” e, prossegue Diniz (2007, p. 7) em sua
preleção ao garantir que “enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como
uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos, e não como um ato de infração moral
de mulheres levianas”.
A partir de dados de internações por abortamento do Serviço de Informações
Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) do ano de 2005, estima-se que ocorreram
1.054.242 (um milhão, cinquenta e quatro mil, duzentos e quarenta e dois) abortos induzidos
naquele ano. E a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada em 2010, retrata que no Brasil,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
198
uma em cada cinco mulheres com até quarenta anos de idade, já realizou ao menos um aborto
em sua vida.
Sobre estes dados, menciona Tessaro (2006, p. 11) que:
Percebe-se, atualmente, que o aborto é responsável por 13% das mortes
maternas no mundo, representando no Brasil a terceira causa de morte
materna. Destarte, por integrar o grupo de países que possuem uma legislação
restritiva ao aborto e que na sua totalidade representam 40% dos países do
mundo, estimativas sugerem a realização de 238.000 à 1.008.000 abortos, no
período de 1999 à 2002. Em escala mundial, segundo dados da Organização
Mundial da Saúde, a legislação punitiva não impede que sejam realizados
anualmente entre 42 e 50 milhões de abortos, metade deles ilegais e de risco.
Além desse quadro alarmante, há ainda grandes números de abortos ilegais, em que
mulheres chegam ao óbito em função da prática ser ignorada e criminalizada pelo Estado. “É,
também importante apontar que os atos de aborto inúmeras vezes não chegam aos tribunais”
(MACHADO, 2017, p.1).
Entre as principais consequências do aborto clandestino e inseguro, sobressaem a
perfuração de útero, a hemorragia e a infecção (septicemia), sendo que tais situações podem
ocasionar distintos graus de prejuízos à saúde da mulher, até mesmo sua morte. Em face desse
contexto, Tessaro (2006, p. 11) alude que é urgente e necessária,
[...] uma adequação da lei penal à situação social apresentada, permitindo que
o problema da interrupção da gravidez, incluindo-se a gestação de feto com
malformação grave e incurável, seja tratado pela mulher de forma consciente
e esclarecida, sendo conferido à ela o direito ao livre exercício da maternidade,
optando entre interromper ou levar a termo a gravidez. Por conseguinte, estes
dados revelam que a punição do aborto não impede que as mulheres o
realizem. A manutenção de sua criminalização significa fechar os olhos à
realidade, à discriminação, ao sofrimento e violação dos direitos fundamentais
destas mulheres.
No 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, realizado em 1999 na
República Dominicana, instituiu-se o 28 de setembro como o dia Latino-Americano e
Caribenho pela Descriminalização do Aborto, mas tão-somente dois países latino-americanos
e caribenhos apresentou efetivas mudanças e o aborto foi legalizado: Cuba e Uruguai. Em 2007,
a Cidade do México convalidou de forma legal a prática do aborto, mas nos demais estados
mexicanos, escolta sendo considerado crime (SAMPAIO 2015).
Já no Uruguai, foi sancionada a Lei nº 18.987, em outubro de 2012, devidamente
regulamentada pelo Decreto nº 375/12. A lei dispõe sobre a "Interrupción Voluntaria del
Embarazo" e o artigo 1º versa que o Estado garante o direito de procriação consciente e
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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responsável, reconhecendo o valor social da maternidade, promovendo o pleno exercício dos
direitos sexuais e reprodutivos de toda a população.
Após o cenário de horror como é onde vigoram legislações proibicionistas, aonde a vida
das mulheres e suas vontades próprias em relação aos seus destinos são deixadas de lado em
busca de um “bem maior” que seria defender a vida de um incapaz, o mesmo discurso acaba se
tornando hipócrita, ao não defender a vida que já existe, ou seja, a vida da mulher.
O Uruguai se torna vanguardista e inspirador para os demais países, na medida em que
o Estado toma para si a responsabilidade da saúde pública que atinge todas as mulheres, fazendo
com que o número de mortes reduza a zero, desde que a prática do aborto deixou de ser
considerada como crime.
“A criminalização do aborto conflita com os direitos fundamentais, civis, políticos e
sociais das mulheres, assim como com a definição mínima de sujeito de direito, pessoa nascida
tornada social e jurídica a partir do nascimento, em uma sociedade plenamente laica”
(MACHADO, 2017, p.1).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo realizado, percebe-se a influência que as concepções e doutrinas
religiosas intervêm no direito brasileiro. Fica evidente a intromissão da teoria religiosa nas leis
que regem o Brasil, as quais sempre tiveram e ainda tem na atualidade, apesar do avanço da
sociedade e de tantas mudanças, esta interferência nos entendimentos é fortemente presente no
Poder Legislativo.
Uma moral construída por bases somente de cunho religioso, intervém na vida de toda
a população, como é o exemplo abordado no presente trabalho, e de forma geral, todas as
mulheres acabam por serem prejudicadas em seus direitos, como seres humanos e sujeitos de
direitos, em razão de uma falsa moral de defesa da vida, que a mesma política, em contrapartida,
acaba por condenar à morte mulheres já vivas.
É interessante observar que o presente estudo abre caminhos para várias abordagens
sobre a influência da moral religiosa no direito e suas consequências na criminalização do
aborto, haja vista o posicionamento do pontífice, o Papa Francisco, que manifestou-se contra a
criminalização do aborto, além de questões brasileiras de forte influência na política, como é o
caso da bancada evangélica, que exerceu forte coação social sobre o tema no pleito eleitoral do
ano de 2010.
REFERÊNCIAS
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
200
COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro (Orgs.). Dicionário crítico de gênero.
Dourados - MS: UFGD, 2015.
DINIZ, Debora. Aborto e Saúde Pública no Brasil. Cadernos de saúde pública. Rio de
Janeiro, v. 23, n. 9, set. 2007, p. 1992-1993.
DINIZ, Debora. A cada minuto uma mulher faz um aborto no Brasil. Carta capital, São
Paulo, dez. 2016. Seção sociedade. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/aborto-a-cada-minuto-uma-mulher-faz-um-abortono-brasil. Acesso em: 04 jun. 2019.
LOPES, Bárbara; MARTINS, Jéssika; MORENO, Tica (Orgs). Somos todas clandestinas:
relatos sobre aborto, autonomia e política. São Paulo: SOF, 2016.
MACHADO, Lia Zanotta. O aborto como direito e o aborto como crime: o retrocesso
neoconservador. Scielo. Dossiê conservadorismo, direitos, moralidades e violência. Cadernos
Pagu, n. 50, Campinas, jul. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php. Acesso
em: 29 nov. 2019.
FONSECA, Alexandre Brasil. Nem a bancada evangélica resiste ao vendaval. Carta capital,
São Paulo, out. 2018. Blogs Diálogo de fé. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/nem-a-bancada-evangelica-resiste-aovendaval/. Acesso em: 29 jun. 2019.
RIGUETI, Victor. Direito Canônico. Revista Jusbrasil, Salvador, 2015. Seção Artigos.
Disponível em: https://victorrigueti.jusbrasil.com.br/artigos/189140585/direito-canonico.
Acesso em: 29 jun. 2019.
SAMPAIO, Paula Faustino. In: Dicionário crítico de gênero. COLLING, Ana; TEDESCHI,
Losandro (Orgs.). Dourados - MS: UFGD, 2015.
TESSARO, Anelise. Aborto, bem jurídico e direitos fundamentais. 2006. Dissertação
(Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2006.
TIBURI, Márcia. In: Dicionário crítico de gênero. COLLING, Ana; TEDESCHI, Losandro
(Orgs.). Dourados - MS: UFGD, 2015.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
201
A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL: ADEQUAÇÃO DA TEORIA DE
SILVIA FEDERICI À REALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO
Grazielly Alessandra Baggenstoss1
Luciele Mariel Franco2
Betina Fontana Piovesan3
RESUMO
Para responder à pergunta “Por que as mulheres brasileiras são criminalizadas pela interrupção
voluntária da gravidez?”, mobilizou-se a teoria de Silvia Federici, numa revisão bibliográfica
de O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017). Na sequência, a partir
de uma revisão integrativa realizada nas bases de dados Portal de Periódicos da Capes e Revista
dos Tribunais online, analisaram-se artigos científicos publicados a partir de processos de
investigação e criminalização do aborto, publicados após o marco constitucional de 1988. Ao
final, os artigos foram analisados à luz da teoria de Federici, o que levou à conclusão de que a
criminalização do aborto, além de servir como estratégia de manutenção do sistema capitalista,
também se vincula às opressões de raça e classe.
Palavras-chave: Criminalização do aborto. Controle reprodutivo estatal. Violência
institucional.
INTRODUÇÃO
“[...] Ou vocês acha que nós não lembrava/ do estupro da escrava./ Pra vocês
ainda comemoração,/ porque o resultado: a linda miscigenação./ Ou vocês
acha que nós esquece a tragédia dos “mec mec”/ Que termina lá no cytotec./
Sim, aborto!/ A pergunta agora é se o feto era vivo ou morto/ E ela?
Crucificada aos dezesseis/ Sem ajuda de nenhum de vocês./ Sozinha./ Pedindo
aos céus ajuda de mainha,/Mas aqui só tinha inferno/ E o julgamento é eterno/
Se não vai pra prisão, pode ir pro valão/ Taxada de puta na televisão/ Pra nós
ninguém reserva oração [...]” Gabz (Gabrielly Nunes – Transcrição livre do
vídeo: Vencedora Slam Grito Filmes 2017 “Gabz”)4
“Blessed be the fruit”. A frase “bendito seja o fruto” trata-se da saudação
exaustivamente reiterada entre as aias, personagens da distopia futurista de Margareth Atwood,
1
Doutora e Mestra em Direito pela UFSC; Doutoranda em Psicologia pela UFSC; Professora Adjunta do Curso
de Direito e dos Programas de Pós Graduação em Direito (Acadêmico e Profissional) da UFSC. Pesquisadora líder
do Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos/CNP. E-mail: grazyab@gmail.com
2
Mestranda em Direito pela UFSC. Pós-graduanda em Ciências Penais pela UEM. Pós-graduanda em Direito
Penal e Processual Penal pela Estácio de Sá. Graduada em Direito pela UEM. Pesquisadora do Lilith: Núcleo de
Pesquisas em Direito e Feminismos/CNPq. Bolsista de mestrado pelo CNPq. Email: lucielemfranco@gmail.com
3
Mestranda em Teoria e História do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Federal
de Santa Catarina (PPGD/UFSC), com enfoque em historicismo, conhecimento crítico e subjetividades.
Pesquisadora do Lilith: Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos/CNPq. E-mail: betinapiovesan@gmail.com
4
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kZhPvruoeFw. Acesso em 18 ago 2019.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
202
na qual os direitos das mulheres são suprimidos por um Estado teocrático fundamentalista
cristão (Gilead, que outrora se chamava Estados Unidos). Em O conto da Aia, diante da alta
taxa de esterilidade, as mulheres férteis têm a obrigação de gerar filhos para uma elite
econômico-política. No contexto de ficção, tais mulheres são reduzidas a meros ventres, tendo
sua autonomia completamente minada.
No cenário brasileiro, por sua vez, o Estado considera a prática voluntária do aborto
ilegal, muito embora estudos nacionais demonstrem sua considerável ocorrência entre mulheres
de todas as idades e classes sociais. Além disso, após sua realização há uma significativa
incidência de internações hospitalares, decorrentes de procedimentos mal realizados, da
desinformação e da combinação com métodos invasivos e inseguros, que representam a
realidade da clandestinidade, mais onerosa sobre as mulheres mais jovens e de baixa renda.
Nesse sentido, verifica-se que o acesso ao aborto representa uma zona conflituosa na trama das
relações entre o Estado e a condição feminina, em que, ainda que não haja uma completa
supressão, a autonomia destas é relativizada. Nesse cenário, os direitos humanos se apresentam
como conceitos e práticas em construção e transformação permanentes, demarcados por
diversos marcadores, como o de gênero.
A partir dessas inquietações, ficcionais e reais, buscamos neste artigo examinar a
criminalização do aborto no Brasil, a partir do marco teórico da Silvia Federici. Assim, para
ilustrar e confirmar a adequação da teoria na explicação da realidade brasileira, utilizamos
trabalhos científicos publicados após 1988, marco constitucional que inaugurou uma série de
direitos e garantias fundamentais, os quais examinam processos judiciais sobre o tema da
interrupção voluntária da gravidez. Partimos do pressuposto de que a criminalização do aborto
não foi recepcionada pela Constituição Federal/88, de modo que a permanência de seu
tratamento legal através do direito penal representa uma constante violação dos direitos
humanos das mulheres por parte do Estado, verificável em múltiplos aspectos.5 Assim, este
trabalho se constitui em uma pesquisa qualitativa que, a partir do método dedutivo, busca dar
bases para a reflexão sobre a atuação do Estado no controle e violação de determinados corpos
reprodutivos.
Algumas perguntas nos movem: Quais vidas importam? A quem interessa criminalizar
o aborto? Existe uma ambivalência estatal? Se sim, (como) podemos resolvê-la? Tais perguntas,
5
Para considerações mais completas a esse respeito, ver o seguinte trabalho, especialmente a conclusão: Sena,
Gabriela de Mello. Aborto: criminalização no panorama da arguição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF) 442. 2019. TCC (graduação) - Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências Jurídicas.
Direito. Florianópolis, 2019. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/199450. Acesso em 25
ago. 2019.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
203
portanto, são condensadas em nossa problemática do por que as mulheres brasileiras são
criminalizadas pela interrupção voluntária de sua gravidez.
Para tentar responder e cumprir com os objetivos delineados, adotamos como
procedimento, primeiro, a revisão bibliográfica narrativa de trechos selecionados da obra O
Calibã e a Bruxa de Silvia Federici, filósofa feminista ítalo-estadunidense. Na sequência,
realizamos uma revisão bibliográfica integrativa de artigos científicos construídos a partir de
casos jurídicos de aborto e, por fim, analisamos os dados relatados a partir do marco teórico
que orienta este trabalho, levando a nossas conclusões.
Salientamos que para a revisão bibliográfica integrativa, o levantamento foi realizado
em dois bancos de dados, sendo o primeiro o Portal de Periódicos da Capes, por se configurar
como uma biblioteca virtual que contém um considerável acervo de textos completos e de bases
referenciais6, e o segundo a plataforma online da Revista dos Tribunais, por ser uma plataforma
de pesquisa específica da área jurídica, que contém as publicações de dezenas de revistas
científicas vinculadas à editora. Em ambos, a pesquisa foi limitada a periódicos revisados por
pares, em língua portuguesa e com a publicação dentro da delimitação temporal de 1988 a 2019,
correspondendo ao período pós Constituição Federal de 1988.
No primeiro banco de dados realizamos cinco buscas combinadas entre as palavraschave aborto, crime, processo judicial, processos judiciais e análise judicial, resultando em 26
(vinte e seis) artigos científicos dentro dos critérios de seleção. Após a análise de seus resumos,
verificamos que apenas 01 (um) se adequou completamente no enquadramento pretendido, qual
seja, artigos científicos construídos a partir da análise de peças pré-processuais e/ou processuais
relacionadas ao crime de aborto. No segundo, por sua vez, considerando a demasiada
quantidade de artigos não condizentes com a temática do aborto obtidos a partir dos primeiros
critérios, optamos pela busca da palavra-chave aborto nos títulos dos artigos científicos, de
modo a resultar em um total de 30 (trinta) estudos, dos quais 02 (dois) corresponderam ao
enquadramento supracitado. Nesse sentido, a revisão integrativa foi feita a partir dos 03 (três)
referidos estudos.
1. A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO EM O CALIBÃ E A BRUXA
6
Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o referido Portal de
Periódicos reúne o melhor da produção científica internacional e conta com um acervo de mais de 45 mil títulos
com texto completo, 130 bases referenciais, 12 bases dedicadas exclusivamente a patentes, além de livros,
enciclopédias e obras de referência, normas técnicas, estatísticas e conteúdo audiovisual. Disponível em:
https://www.periodicos.capes.gov.br/index.php?option=com_pcontent&view=pcontent&alias=missaoobjetivos&Itemid=109. Acesso em 09 set. 2019.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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O Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação foi publicado por Silvia Federici
em 2004, como resultado de uma pesquisa de quase trinta anos que buscou lançar um olhar
sobre a questão das mulheres nos estudos sobre as formas pelas quais o sistema capitalista se
impôs sobre a sociedade e sobre os corpos, compondo-se em um sistema econômico-social
necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo. O livro, lançado no Brasil apenas em 2017,
foi construído a partir de diversas historiadoras feministas, de modo a acrescentar novos
elementos importantes para a descrição do processo de acumulação primitiva de capital
inicialmente formulado por Karl Marx. Assim, além da expropriação dos meios de subsistência
dos camponeses e da escravidão dos povos da América e África, Federici aponta que foi
necessário um forte disciplinamento dos corpos para se transformarem em máquinas de
trabalho, ao mesmo tempo em que para as mulheres, os corpos passaram a ser máquinas de
trabalho reprodutivo.
Em sua obra, a autora descreve como a reprodução realizada pelas mulheres (além de
gerar, amamentar e cuidar das crianças) se manifesta por um conjunto de trabalhos necessários
para manter a sobrevivência da vida humana, como o cuidado com a alimentação, com as
roupas, com a higiene e manutenção dos espaços domésticos, bem como pelo apoio psicológico
e afetivo oferecido aos membros familiares. Neste sentido, para Federici, considerar o trabalho
reprodutivo como sem valor é uma forma de legitimação da escravidão das mulheres ao lar.
Assim, é um livro que investiga o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não
assalariados – mulheres e escravos –, da reprodução da vida e da força de trabalho, repensando
todo o processo de sua formação. Seu desenvolvimento demonstra que “[...] a reconstrução da
história das mulheres, ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino, implica uma
redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e uma visibilização das estruturas
ocultas de dominação e exploração” (FEDERICI, 2017, p.29).
Ainda, a partir das revisitações de memória e narrativas, a caça às bruxas dos séculos
XVI e XVII, tanto na Europa quanto no Novo Mundo (ainda que tenha se dado de maneiras
distintas), é apontada pela autora como um fato histórico determinante na aniquilação da
participação das mulheres nos movimentos de luta e resistência, o que até então era comum
naquelas comunidades. Nesse sentido, Federici (2017) desconstrói o imaginário de que tal
evento tenha sido recluso à Idade Média e somente resultante da perseguição da Igreja Católica
contra mulheres desertoras do cristianismo. Ao contrário, aponta que a perseguição às bruxas,
enquanto política da burguesia nascente e da burocracia estatal, por um lado, teria contribuído
para a construção de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, como as hierarquias
construídas sobre o gênero, a raça e a idade, que se tornaram constitutivas da dominação de
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
205
classe e do proletariado moderno. E, por outro lado, teria destruído o controle que as mulheres
exerciam sobre sua função reprodutiva, abrindo espaço para o desenvolvimento de um regime
patriarcal mais opressor.
A partir do exposto, é possível se ater a pontos específicos da referida obra, relevantes
para o debate proposto, em que a autora aborda as questões da sexualidade feminina e do
disciplinamento de seus corpos para a reprodução, pensadas em conjunto com a formação do
Estado Moderno.
No primeiro capítulo, ao apresentar as bases para uma leitura da “transição para o
capitalismo”7 a partir do ponto de vista da luta antifeudal na Idade Média, Federici (2017)
destaca o período subsequente à catástrofe demográfica produzida pela Peste Negra como um
importante momento de ascensão do controle da reprodutivo das mulheres. Isso porque, diante
da escassez da força de trabalho, uma parte importante do campesinato da Europa Ocidental
passou a reivindicar um maior poder de decisão sobre o seu trabalho, maior valorização e o
desaparecimento de sua servidão. Por consequência, os empregadores passaram a se queixar
das novas exigências dos trabalhadores e do poder econômico que estes teriam adquirido.
Assim, como resposta, desenvolveu-se uma contrarrevolução no final do século XV, por parte
tanto do Estado quanto da burguesia nascentes, que abarcava todos os níveis da vida social e
política.
Como meio de cooptar trabalhadores jovens e rebeldes, por exemplo, incorporou-se uma
política sexual que resultou na hostilidade contra as mulheres proletárias, através da
descriminalização quase total do estupro de mulheres pobres, como no caso da França, em que
o estupro coletivo de proletárias se tornou uma prática comum. O consentimento estatal para a
prática do estupro, segundo Federici, teria criado um clima intensamente misógino que, por
consequência, acabou por degradar todas as mulheres, independentemente de sua classe, além
de ter insensibilizado a população frente à violência contra a mesmas.
Além do referido exemplo, destaca-se como, diante da intensificação do conflito social,
houve a “[...] centralização do Estado como o único agente capaz de confrontar a generalização
Sobre o termo “transição”, Federici aponta que é um conceito que ajuda a “pensar em um processo prolongado
de mudança e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas que não eram
ainda predominantemente capitalistas”. No entanto, afirma que o mesmo sugere equivocadamente um
desenvolvimento histórico gradual e linear, sendo, portanto, “incapaz de evocar as mudanças que abriram o
caminho para a chegada do capitalismo e das forças que conformaram essas mudanças”. Assim, explica que o
termo é utilizado em sua obra principalmente em um sentido temporal, enquanto que “para os processos sociais
que caracterizaram a ‘reação feudal’ e o desenvolvimento das relações capitalistas” é usado o conceito marxista
de “acumulação primitiva” ou “originária”, embora ressalve a ausência na obra de Marx da “menção às profundas
transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social das mulheres”
(FEDERICI, 2017, p.116-118).
7
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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da luta e de preservar as relações de classe”, tornando-se o gestor supremo dessas relações “[...]
e o supervisor da reprodução da força de trabalho - uma função que continua desempenhando
até os dias de hoje” (FEDERICI, 2017, p.107).
No segundo capítulo, entre outras questões, Federici chama atenção para a
transformação do corpo em uma máquina de trabalho, com a sujeição das mulheres para sua
reprodução, a partir do processo de acumulação primitiva. Nesse sentido, expõe como os
processos que separaram os trabalhadores de seus meios de subsistência, como os
“cercamentos” das terras antes comunais e a criação de uma dependência das relações
monetárias, significaram também a redução do salário real e o aumento dos preços dos
alimentos, ao mesmo tempo que o trabalho feminino foi desvalorizado com relação ao
masculino e “[...] a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no
âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis [...]” (2017,
p.145). Assim, como resultantes da “acumulação capitalista” são observáveis fenômenos como
o empobrecimento, as rebeliões e a escalada do crime, posteriormente controlados com a
exportação da superexploração dos trabalhadores com a institucionalização da escravidão negra
e a expansão da dominação colonial (2017, p.161-162).
Em menos de um século após a invasão colonial na América, ocorreu um novo colapso
demográfico, tanto entre os povos originários do Novo Mundo, provocado conjuntamente pelas
doenças e pela brutalidade dos colonizadores, quanto entre a população da Europa Ocidental,
que alguns autores creditam tanto a escassez alimentícia quanto à apropriação ocorrida dos
rendimentos agrícolas. Segundo a autora, foi nesse contexto que a reprodução e o crescimento
populacional se transformaram em assuntos de Estado e do discurso intelectual, de modo a
promover a intensificação da perseguição às bruxas e a adoção de novos métodos disciplinares
para regular a procriação e quebrar de vez o controle das mulheres sobre a reprodução. Observase que, “[...] a partir de meados do século XVI, ao mesmo tempo que os barcos portugueses
retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos, todos os governos europeus
começaram a impor penas mais severas à contracepção, ao aborto e ao infanticídio”
(FEDERICI, 2017, p.172).
Enquanto que na Idade Média as mulheres contavam com muitos métodos
contraceptivos, utilizados para estimular a menstruação, provocar um aborto ou criar condições
de esterilidade, a criminalização da contracepção as expropriou desse saber, antes passado de
geração a geração, relegando-os à clandestinidade. Além da criminalização, diversas medidas
pró-natalistas foram adotadas na Europa naquele período, como a bonificação do casamento e
penalização do celibato, a valorização da família como instituição-chave para a transmissão da
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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propriedade e reprodução da força de trabalho, o início dos registros demográficos e as
intervenções do Estado na supervisão da sexualidade, da procriação e da vida familiar.
Federici visualiza nessas medidas o embrião de uma política reprodutiva do capitalismo,
na medida em que verifica “[...] na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais direta dos
requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do
problema da reprodução da força de trabalho” (2017, p.173). A partir do controle reprodutivo
e da sucessiva criminalização das mulheres, seus úteros teriam se transformado em um território
político controlado pelos homens e pelo Estado.
A autora ainda indica que mesmo depois desse momento incipiente do capitalismo “[...]
— e até o presente —, o Estado não poupou esforços na sua tentativa de arrancar das mãos
femininas o controle da reprodução e da determinação sobre onde, quando ou em que
quantidade as crianças deveriam nascer” (FEDERICI, 2017, p.180). E complementa que este
controle levaria as mulheres a uma indescritível angústia e desespero por verem seus corpos se
voltando contra si mesmas, como nos casos de uma gravidez indesejada.
Conforme mencionado, as políticas de natalidade conduziram a uma crescente
desvalorização do trabalho feminino, a partir de um processo que as reduziu a “não
trabalhadoras”. Sobre esse aspecto, menciona-se a perda de espaços das mulheres em empregos
que tinham tradicionalmente ocupado, a dificuldade em obter trabalhos além daqueles com
status mais baixos e com remuneração reduzida e a crescente suposição (no direito, nos
registros de impostos, nas ordenações das guildas) de que as mulheres não deviam trabalhar
fora de casa. Além disso, acrescenta-se o fato de que qualquer trabalho feito por mulheres em
âmbito doméstico era considerado como “não trabalho” e, portanto, sem valor, ganhando o
status de “trabalho doméstico”, ainda que não exercidos para sua família. (FERERICI, 2017, p.
181-190)
Todo esse contexto impossibilitava que mulheres pudessem sobreviver sozinhas, que
culminou no aumento da prostituição em diversos países da Europa. Esse crescimento, somado
ao clima de intensa misoginia, levou, inicialmente, ao estabelecimento de restrições à
prostituição e, posteriormente, a sua criminalização já em meados do século XVI.
Segundo Federici, é possível “[...] relacionar a proibição da prostituição e a expulsão
das mulheres do espaço de trabalho organizado com a aparição da figura da dona de casa e da
redefinição da família como lugar para a produção da força de trabalho” (2017, p.188). Nesse
sentido, todos os eventos se inter-relacionam, demonstrando como o Estado, a partir do auxílio
ou cumplicidade de outras forças sociais, foi utilizado para o controle da sexualidade, da
reprodução e do trabalho feminino.
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reprodutivos V.4.
208
Todo esse processo de desvalorização do trabalho das mulheres e de privação de sua
autonomia só foi possível graças a um simultâneo e intenso processo de degradação social,
produzido, por exemplo, por uma constante erosão de seus direitos, por sua infantilização legal,
pela diferenciação sexual dos espaços sociais e, também, pelo amplo debate desenvolvido na
literatura erudita e popular a respeito da natureza de suas virtudes e de seus vícios.
Na América colonial, no entanto, as relações de gênero que se desenvolveram e muitas
vezes foram impostas, tanto sobre os povos ameríndios e africanos quanto entre o proletariado
europeu que havia migrado em razão de dívidas ou do cumprimento de sentenças penais, se
deram de formas muito diversas, apresentando especificidades em cada colônia e de acordo
com as políticas implementadas pelos colonizadores em cada período histórico.
De todo modo, pela teoria descolonial, afirma-se que foi a colonização que impôs as
hierarquias de gênero nas Américas. Oportuno destacar a contribuição de María Lugones, que
nos apresenta a colonialidade de gênero, relacionada simultânea e reciprocamente às
colonialidades do poder e do saber. Inicialmente, a autora sustenta que até a invasão dos
colonizadores, as relações de gênero existentes entre os povos tradicionais não eram
dicotômicas nem hierarquizadas, de modo que o gênero não era um princípio organizador da
sociedade. Entretanto, como estratégia para colonizar, foram instituídas práticas discursivas que
recorreram ao gênero, disciplinando homens e mulheres da América Latina de acordo com a
perspectiva eurocêntrica. Trata-se do que a autora nomeou como “sistema moderno colonial de
gênero” (2014, p.935).
Esse sistema, de acordo com Lugones (2014, p. 935), é “[...] uma lente através da qual
[podemos] aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial, seu uso de
dicotomias hierárquicas e de lógica categorial”. Ou seja, de acordo com a autora, gênero e raça
foram criações categoriais da colonização, que tinham como objetivo racializar e engendrar as
sociedades colonizadas. A colonização pautou-se pela dicotomia entre o humano e o não
humano, este associado aos colonizados, que foram transformados em homem e mulher através
dos códigos de gênero e raça ocidentais e europeus.
Retornando à Federici, temos que, com a colonização, em alguns locais como no México
e no Peru, foram instituídas leis que tornaram as mulheres propriedades dos homens, sendo as
mesmas forçadas a seguir o destino destes. No Canadá, os jesuítas treinaram etnias indígenas
para incorporarem a supremacia masculina, com sua consequente submissão das mulheres e
filhos. Nas colônias norte-americanas, o racismo, assim como o sexismo, foi legislado e
imposto, especialmente após a institucionalização da escravidão.
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209
Em contrapartida, nos sistemas de plantations, até a abolição do tráfico de escravizados,
mulheres e homens eram submetidos ao mesmo grau de exploração, sem distinções de
hierarquias sexuais, muito embora as mulheres recebessem menos comida e estivessem
vulneráveis aos ataques sexuais de seus senhores, o que evidencia a desumanização conjunta à
desgenerificação, na medida em que mulheres eram tidas tão somente como seres escravizados.
Contudo, após a proibição legal do tráfico, fazendeiros do Caribe e dos Estados Unidos, por
exemplo, adotaram uma política de “criação de escravos”, tentando regular as relações sexuais
e os hábitos reprodutivos, a partir da necessidade de mais ou menos filhos para o trabalho no
campo (FEDERICI, 2017, p.224).
Conforme o exposto, verifica-se que a obra analisada expõe a transição para o
capitalismo como uma questão primordial para a teoria feminista, na medida em que descreve
como as sociedades capitalistas reconstruíram os papéis sexuais e redefiniram as tarefas
produtivas e reprodutivas da forma como se perpetuam até a atualidade, ainda que se valendo
de mecanismos diferentes. Nesse sentido, o uso da violência e a intervenção estatal foram
primordiais para essas construções e, segundo a autora, continuam sendo dispositivos utilizados
na manutenção do controle dos corpos femininos.
Dessa maneira, a partir das desmistificações propostas pela autora, buscamos analisar
de que modo a intervenção do Estado sobre os corpos das mulheres, através da criminalização
do aborto, alinha-se com tal política sexual que as transforma em meras reprodutoras de mão
de obra para o sistema capitalista, demonstrando a adequação da teoria de Federici à realidade
brasileira.
2. ESTADO, ABORTO E CRIMINALIZAÇÃO: REVISÃO INTEGRATIVA
Ao realizarmos a seleção de artigos científicos elaborados a partir da análise de peças
pré-processuais e/ou processuais relacionadas ao crime de aborto no Brasil, dentro dos bancos
de dados e do recorte adotados, obtivemos como material de análise três trabalhos. O primeiro,
de Danielle Ardaillon, foi publicado no segundo trimestre de 1998 na Revista Brasileira de
Ciências Criminais e tem como título A Insustentável Ilicitude do Aborto. O segundo, escrito
em coautoria por Debora Diniz e Alberto Madeiro, foi publicado na Revista Ciência & Saúde
Coletiva em 2012, intitulado Cytotec e Aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres. E o
terceiro, Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto: análise jurisprudencial, foi
publicado na Revista dos Tribunais São Paulo em 2013, tendo por autor Antonio Baptista
Gonçalves. Os pontos trazidos de cada um desses artigos priorizam as considerações realizadas
a partir dos processos analisados.
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reprodutivos V.4.
210
2.1 A insustentável ilicitude do aborto
Seguindo a ordem cronológica das publicações para análise, o primeiro artigo é
estruturado em quatro pontos principais. No primeiro momento, a autora analisa aspectos da
relação entre Estado, feminismo e o status social das mulheres, para na sequência examinar a
relação entre o Estado e o corpo das mulheres. Em continuidade, trata do différend8 do aborto
no Brasil e, por fim, aborda o domínio jurídico propriamente dito, ao examinar alguns aspectos
de seu discurso. No que se refere ao procedimento metodológico deste último ponto, o mesmo
é pautado no levantamento de inquéritos e processos judiciais em três Fóruns da Região
Metropolitana de São Paulo, que resultaram na coleta de 43 processos por aborto, além da
seleção de 117 acórdãos de recursos interpostos em processos de diversas Comarcas do Estado
de São Paulo, encontrados na Revista dos Tribunais, a partir dos quais se construiu a análise e
a argumentação.
Danielle Ardaillon (1998) parte do entendimento de que há uma situação sociocultural
que marca os corpos femininos e masculinos simbólica e politicamente pelo gênero e pela classe
social, de forma assimétrica e hierárquica. Como consequência, haveria uma negativa
sociocultural a impossibilitar que as mulheres usufruam de sua sexualidade de forma autônoma,
inclusive consolidada na ação estatal contemporânea. A demanda pelo aborto, então,
constituiria uma zona conflituosa na trama das relações entre o Estado e a condição feminina e
essa interligação poderia ser verificada na medida em que a reivindicação de acesso ao aborto
é um direito exercido sobre um corpo reprodutor e especificamente originado no corpo de sexo
feminino. Nesse sentido, essa zona conflituosa evidenciaria o limite da suposta relação do
Estado com indivíduos descorporificados, que entendemos como a abstração de um sujeito
universal.
Seguindo essas considerações, a autora reforça que as relações de poder desenvolvidas
a partir da formação das políticas públicas não afetam a diversidade de pessoas da mesma
maneira. Segundo Ardaillon, “o corpo das mulheres foi controlado desde sempre e em toda
parte, por ser, mais do que o corpo dos homens, o locus da reprodução. E por isso, talvez, que,
na nossa sociedade como em outras, o direito de abortar [...] parece simbolizar uma subversão
extrema, inaceitável” (1998, [p.4]).
8
A autora parte da definição de Jean-François Lyotard, afirmando que “os différends, ao contrário dos litígios, são
conflitos sem solução, são discussões que não chegam a um consenso definitivo, mas a tolerâncias mútuas e
provisórias entre os diversos atores sociais” (ARDAILLON, 1998, [p.2]).
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211
Dentro desse cenário, em que há uma disputa de narrativas promovida por um conjunto
de enunciados diferenciados de diversos atores sociais e dentro de diferentes campos, como o
judicial, o religioso, o médico, o feminista, o biológico, entre outros, a autora defende a inclusão
da demanda de acesso ao aborto no espectro dos direitos reprodutivos, por considerar que sua
ilicitude teria perdido muito da sua sustentação pós Constituição de 1988.
No que se refere à análise dos processos de aborto, um primeiro ponto levantado diz
respeito ao paradoxo verificado no fato de haver um enorme investimento social na proibição
do aborto, através de lei, polícia e prisões, ao mesmo tempo em que haveria uma baixa
penalização, o que faria levantar a hipótese de que sua punição não interessaria realmente à
sociedade. Nesse sentido, o Estado, muito distante de ser algo abstrato, representaria um
complexo de relações sociais e de poder entre cidadãos, e o referido paradoxo representaria o
intento de perseguir e maltratar, ainda que não o de punir penalmente.
A constatação desse paradoxo foi obtida a partir de algumas circunstâncias observadas
nos processos coletados. A primeira está relacionada com a materialidade do crime de aborto
que, ao ser definido doutrinariamente como a interrupção voluntária da gravidez com a
consequente morte do feto, requer que seja comprovado processualmente tanto uma gravidez
preexistente quanto que sua interrupção foi provocada voluntariamente. Nesse sentido,
Ardaillon (1998) observou nos processos analisados uma considerável dificuldade em reunir
elementos probatórios suficientes dessas condições, o que leva ao arquivamento dos inquéritos,
à impronúncia ou à absolvição, sumária ou na fase do júri, a depender de até qual fase os
processos se estendam.
Durante a própria coleta dos procedimentos, verificou-se uma quantidade muito superior
de inquéritos do que de processos judiciais, levando a investigação dos motivos para tanto. Em
primeiro lugar, observou-se que muitos inquéritos diziam respeito ao encontro de fetos sem a
presença de quaisquer indícios de autoria e da efetiva comprovação da voluntariedade do ato.
Outros casos tratavam da busca e apreensão em clínicas clandestinas de aborto, sem que
houvesse a obtenção da materialidade de crimes específicos, necessária para o processamento
judicial. Por fim, apontou-se que qualquer relato quanto à interrupção de uma gravidez antes de
seu termo normal foi tido como a chave para se abrir um inquérito, independente de tratar-se
visivelmente de um aborto espontâneo, submetendo as mulheres à investigação criminal para
após arquivá-la.
Diante da dificuldade na obtenção da materialidade necessária para a persecução penal,
Ardaillon (1998) aponta que os atores legais nitidamente exploram os processos fisiológicos
ligados à sexualidade da mulher e à reprodução, buscando objetivos muitas vezes diferentes:
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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212
comprovar ou não a realidade da gravidez; ou comprovar ou não a espontaneidade do aborto.
Nesse mesmo sentido, no decorrer de sua análise, observa uma dualidade representada ora numa
"intenção condenatória" ora numa "intenção absolutória" por parte de quem julga e até mesmo
de quem acusa (1998, [p.14]). Tal constatação advém do fato de que as provas documentais e
periciais, bem como os testemunhos, muitas vezes com o mesmo teor, são constantemente
valoradas com pesos diferentes, a depender de quem responde o processo.
Assim, observa-se que a reconstrução das diferentes personagens é feita de acordo com
papéis sociais estereotipicamente consagrados pelos atores sociais que as interrogam,
reforçando a ideia de que nos processos penais não se julga o crime isoladamente, mas a
moralidade dos indivíduos envolvidos. Ademais, tratando-se o aborto de um crime de difícil
comprovação, abrir-se-ia um grande espaço para debates retóricos, com o entrecruzamento de
argumentos biológicos, jurídicos e morais.
No que se refere aos processos que chegaram a ir a Júri, é destacada uma proporção de
um menor resultado condenatório, até mesmo nos casos em que o/a agente provoca a morte da
gestante (como nos processamentos de médicos e parteiras). Entretanto, também é verificada
uma disposição íntima, seja para absolver ou para condenar, nos pronunciamentos dos atores
envolvidos: juízes/as, promotores/as, defensores/as e conselho de sentença. O que se destaca é
a forte presença da moralidade em certos casos, em que é a sexualidade da mulher que é avaliada
como o motivo para a condenação, muito mais do que a prática do crime em si.
Acrescenta-se, então, ao paradoxo supramencionado o fato de que, quando a punição
ocorre, o que se pune é a sexualidade feminina. Sobre isso, a autora aponta que, até mesmo na
intenção absolutória, não aparece o reconhecimento do direito de opção das mulheres, de
decidir sobre o rumo de suas vidas e sobre o exercício de sua sexualidade, o que ocorre é a
redução das mulheres ao papel de vítimas dos homens, da vida e do azar.
Diante disso, Ardaillon finaliza asseverando que a Justiça, enquanto instituição que deve
respeitar os limites da cidadania, deveria conscientizar-se de que as mulheres não são "menorescivis" ou “menores-morais” (1998, [p.25]), que precisam ser protegidas ou corrigidas. Nesse
cenário, observa que, no Brasil, “[...] tanto os direitos como a cidadania são conceitos e práticas
em construção e transformação permanentes” (1998, [p.23]).
2.2 Cytotec e aborto: a polícia, os vendedores e as mulheres
O artigo escrito por Debora Diniz e Alberto Madeiro tem por objetivo a análise do
comércio ilegal do medicamento abortivo misoprostol no Brasil, a partir do estudo de dez casos
que alcançaram o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, entre os anos de 2004 e
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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2010, sendo seis inquéritos policiais e quatro processos judiciais - com um ou mais ré(u)s cada.
Sendo assim, estruturou-se o trabalho em três momentos: a história das mulheres investigadas;
o perfil dos vendedores, intermediários ou fornecedores; e os dois casos de morte materna, a
partir da análise das peças processuais e de entrevistas abertas com familiares.
A escolha do objetivo considerou a mudança dos principais métodos abortivos
utilizados pelas mulheres a partir da década de 1990 no Brasil, quando o misoprostol, princípio
ativo do medicamento conhecido como Cytotec®, passou a ser o agente abortivo mais utilizado,
em vez de substâncias cáusticas ou objetos perfurantes que resultavam em uma alta
morbimortalidade, com impacto maior entre as mulheres mais jovens e as mais pobres. No
entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) restringiu sua oferta a hospitais
credenciados desde 1998, em consideração à criminalização do aborto, impossibilitando sua
livre obtenção em farmácias. Sobre esse aspecto, destaca-se o fato de que seu comércio ilegal
acaba favorecendo sua adulteração e a venda de apresentações com subdoses ou até mesmo sem
o princípio ativo, além do risco de sua utilização em dose excessiva pelas mulheres, o que, por
óbvio, leva a diversas complicações.
No que se refere às histórias das mulheres investigadas, verifica-se uma variedade de
perfis relativamente aos marcadores sociais que as atravessam. Entretanto, indica-se uma
predominância de mulheres jovens, sem filhos, com companheiros (namorados ou esposo),
provenientes de cidades interioranas das regiões Norte ou Nordeste do Brasil, embora todas
fossem residentes de cidades-satélites do Distrito Federal. Como profissão, há o registro de
serem empregadas domésticas, donas de casa ou funcionárias de comércio, tendo como nível
educacional o fundamental básico, o que indica um forte atravessamento de classe.
Diniz e Madeiro relatam dois percursos típicos para o aborto entre essas mulheres. No
primeiro, o Cytotec® é usado com o conhecimento do companheiro e sua finalização é feita em
um hospital público, momento em que são denunciadas à polícia e tem início o inquérito
policial. No segundo, verificado nos dois casos em que as mulheres eram adolescentes, o aborto
teria sido forçado por seus namorados, ao introduzirem o medicamento em suas vaginas sem o
seu consentimento, após um encontro amoroso em um motel, colocando-as na situação de
vítimas.
Nestes últimos dois casos os companheiros figuraram como indiciados. Já nos demais,
ainda que se tenha informação de que os homens estavam cientes da gravidez e do aborto, nem
todos foram postos no papel de investigados. A esse respeito, ressalta-se a indicação de estudos
que mostram que geralmente “[...] a compra do Cytotec® é uma atribuição dos homens na
divisão das decisões sobre o aborto” (DINIZ; MADEIRO, 2012, p.1800).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
214
No que concerne ao perfil dos vendedores, estes estão divididos entre os intermediários,
que seriam os sujeitos que vivem na comunidade e que são conhecidos popularmente como
vendedores de remédio, e os fornecedores, descritos como traficantes de medicamentos ilegais,
mas encontrado em apenas um caso analisado. De qualquer modo, aponta-se que esse mercado
clandestino é dominado por homens. (DINIZ; MADEIRO, 2012)
Os intermediários, por terem contato direto com as mulheres, são referidos como
personagens importantes na trajetória reprodutivas das mesmas, na medida em que as orientam
quanto à rotina de usos, regimes e doses do medicamento e sugerem medidas terapêuticas
preventivas para o controle de infecções. Paralelamente, são indicados como figuras que
exercem uma grande pressão psicológica, ao desestimularem as mulheres a procurar os serviços
de saúde em situação de emergência, ao mesmo tempo que se recusam a socorrê-las. Quando
são descobertos pela polícia, costumam alegar que a posse do medicamento é para uso pessoal
por problemas de úlcera - indicação farmacológica do Cytotec® (DINIZ; MADEIRO, 2012,
p.1799).
Quanto aos fornecedores, há um silêncio policial em seu entorno, o que sugere as
hipóteses de que seja um personagem mais raro no comércio ilegal de medicamentos ou que
sua atuação escape ao controle da polícia. Sua prisão está atrelada a grandes operações da
Polícia Federal em parceria com a Anvisa, ocasiões em que também são encontradas armas,
munições, dinheiro e até mesmo indícios de produção artesanal de medicamentos.
Nos dois casos em que ocorreram a morte materna sabe-se que houve a participação de
um intermediário, embora em um deles a autoria estivesse em apuração. Neste, indica-se dois
aspectos de principal obscuridade: o primeiro é o fato da mulher ter morrido após chegar ao
hospital sentindo “[...] fortes dores abdominais, taquicardia e delírios, porém nada comentando
sobre sua conduta abortiva e os motivos que a levaram a cometer tal ato” (Inquérito Policial,
2008 apud DINIZ; MADEIRO, 2012, p.1801); e o segundo diz respeito à “[...] agilidade de
comunicação entre o hospital, a polícia e as mídias locais”, antes mesmo de que os familiares
fossem informados (DINIZ; MADEIRO, 2012, p.1801).
No segundo caso, por sua vez, considerando a extensa disponibilidade de peças
processuais como depoimentos, laudos e escutas telefônicas, foi possível verificar o itinerário
trágico da vítima, que teve sangramento e dores por quatro dias, sofreu a recusa de atendimento
pelo intermediário e postergou sua procura ao hospital pela intimidação deste e pelo medo de
ser denunciada à polícia. Assim, Diniz e Madeiro afirmam que a morte desta mulher decorreu
de complicações de um aborto realizado com a combinação do Cytotec® com métodos
invasivos, como o uso de sonda, seguido da demora no atendimento hospitalar.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Diante de toda a análise, concluem que não há garantia da qualidade do medicamento
para as mulheres que usam o misoprostol e que, ao serem forçadas a circular em um terreno de
clandestinidade, estão suscetíveis a múltiplas violências. Ademais, os hospitais apresentam-se
como espaços de ameaça às mulheres na medida em que há uma persistência da denúncia à
polícia por médicos, que quebram o seu dever de sigilo, ainda que seja uma grave violação à
ética profissional.
2.3 Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto
O terceiro artigo analisado é construído a partir de um estudo de caso, selecionado como
ponto de referência para a análise de algumas problemáticas e controvérsias atinentes ao crime
de aborto. Neste, Antonio Baptista Gonçalves debruça-se principalmente sobre as discussões
da doutrina penal a respeito do conceito de aborto, de sua classificação e da competência de seu
julgamento, que não são o objeto da análise que propomos. Mas, na parte final, o autor examina
os pormenores do processo selecionado, sendo esta a que nos ateremos.
O objetivo de Gonçalves foi avaliar o acerto da decisão de segundo grau que manteve a
pronúncia de uma mulher que fez uso de medicamento abortivo, provando o nascimento
prematuro do feto, que morreu somente algumas horas depois. Por conseguinte, a problemática
se deu com relação ao questionamento da defesa no que se refere ao nexo de causalidade
necessário para a configuração típica do aborto, ao afirmar a prematuridade como causa da
morte.
Em síntese, considerando a literalidade típica e o entendimento doutrinário, o autor
concluiu pelo acerto da decisão, além de ter afirmado seu posicionamento pela proibição do
aborto na medida que o entende como uma ação que representa um dano à vida do feto e,
igualmente, um risco à vida da gestante (GONÇALVES, 2013, [p.6]). Nesse sentido, apresentase como um contraponto às posições observadas na construção dos outros dois artigos
analisados, muito embora não negue as altas estimativas de abortos realizados clandestinamente
e que suas complicações levam a taxas consideráveis de mortes maternas.
3. A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
A partir do que foi exposto nos tópicos acima, destacamos, inicialmente, a atualidade
da obra de Silvia Federici e o acerto de seu diagnóstico, quando a autora coloca que podemos
reconhecer a caça às bruxas em fenômenos muito próximos a nós. A criminalização do aborto,
como estratégia de manutenção do capitalismo é um deles. Assim como Angela Davis (2016,
p.199) coloca que a continuidade das opressões generalizadas sobre as mulheres é uma “muleta
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216
essencial para o capitalismo”, em Silvia Federici, temos que “[...] a contínua expulsão dos
camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são
condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época” (FEDERICI, 2017,
p. 27).
Assim, nossa tese central é a de que o aborto permanece sendo criminalizado no Brasil,
um país geopoliticamente periférico, porque o sistema econômico em que estamos inseridas,
pautado no modo de produção capitalista, depende da formação e reprodução de cada vez mais
mão de obra para compor a força de trabalho. Inclusive, encontramos na própria autora a
resposta para o fato de que a interrupção da gravidez seja permitida pela legislação brasileira
em apenas alguns casos (ainda que não seja o objetivo deste trabalho discorrer sobre o aborto
legal).
Ao tratar sobre as consequências dos cercamentos e privatização das terras que
culminaram na exploração dos trabalhadores, Federici coloca que, no intuito de apaziguar as
revoltas que essas medidas provocaram, instituiu-se o trabalho assalariado aos trabalhadores
que não aceitavam a condição de servidão e escravidão. Com o disfarce de conquista e sob a
alegação de que o trabalho era remunerado, o salário era irrisório e perpetuava a miséria, além
de ser concedido a apenas alguns grupos de homens. Mesmo remunerado, o trabalho não era
livre. Tratava-se, pois, daquilo que a autora nomeou de “escravidão do salário” (2017, p. 125).
A lógica por detrás da permissão do aborto em apenas alguns casos é a mesma: diante
das constantes reivindicações dos movimentos feministas, da resistência das mulheres que
reivindicam a liberdade sobre seus corpos embasadas nos direitos humanos e nas garantias
fundamentais, o Estado brasileiro, sob a máscara do progressismo, acaba por permitir que a
gravidez seja interrompida nas hipóteses por ele estipuladas9. Mas, da mesma forma que a
introdução do trabalho assalariado não conferiu liberdade aos trabalhadores, a permissão parcial
do aborto também não torna as mulheres livres e emancipadas. E isso se confirma especialmente
quando confrontamos notícias, relatos e pesquisas que apontam as dificuldades de se realizar o
procedimento, mesmo nos casos legais. Em uma pesquisa sobre serviços de aborto legal no
Brasil, Débora Diniz e Alberto Madeiro (2016) concluíram por um distanciamento entre o que
é previsto pelas políticas públicas de saúde e a realidade do funcionamento dos serviços de
aborto legal, sendo o cumprimento das recomendações contidas nas normas ainda infrequente.
9
No Brasil, o aborto é permitido pela legislação quando a gravidez é decorrente de estupro ou quando não há outra
forma de salvar a vida da gestante. Além disso, por meio de decisão judicial do Supremo Tribunal Federal, é
também permitido nos casos de anencefalia.
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Em relatório publicado em junho de 2019 pela Artigo 19, organização nãogovernamental britânica, constatou-se que menos da metade (43%) dos hospitais públicos
brasileiros indicados pelo Ministério da Saúde para efetuar o procedimento de aborto, de fato o
realizam nos casos previstos10. Em ambas as pesquisas, tem-se que um dos principais motivos
pelos quais os hospitais não realizam o aborto legal, diz respeito a barreiras morais e religiosas.
Também é preciso recordar que os trabalhos analisados no tópico anterior dizem
respeito a processos judiciais que ocorreram após a Constituição de 1988, justamente porque a
Carta Cidadã inaugurou uma série de direitos e garantias fundamentais, sem distinção de sexo
ou de qualquer outra natureza, dentre os quais se destacam a vedação à tortura e a tratamentos
humanos degradantes, a dignidade da pessoa humana, a não discriminação, a liberdade, a saúde,
o planejamento familiar, além dos direitos sexuais e reprodutivos.
Parece-nos, portanto, oportuno afirmar que um Estado que prevê garantias apenas
formais, sem se atentar à materialidade, deixando de promover ações realmente efetivas no que
diz respeito à concretização dos direitos que foram afirmados no plano do discurso, está
aliançado a um determinado projeto de sociedade (que favorece apenas a classe dominante).
Pela proibição do aborto, temos que essa sociedade enxerga as mulheres mais como sujeitas ao
Direito do que como sujeitos de direito, o que as reduz a meros ventres.
Confrontando os artigos examinados com dados sobre o perfil das mulheres que são
processadas pelo crime de aborto, podemos identificar mais um acerto no diagnóstico de
Federici: a autora coloca que a caça às bruxas criou um clima geral de misoginia que atingia a
todas as mulheres; contudo, os efeitos foram sentidos de maneira mais intensa naquelas
marcadas por raça, classe e localização geográfica. Para nós, tanto a partir do que se pode extrair
das pesquisas analisadas no tópico anterior, quanto a partir de dados coletados pela Defensoria
Pública Geral do Rio de Janeiro (2018), o fato de uma mulher ser negra, pobre e brasileira
(latino-americana) a expõe, de forma mais acentuada, às consequências da criminalização do
aborto11. Aqui, entende-se por consequências da criminalização do aborto não somente a
submissão a procedimentos judiciais (inclusive, como visto, nos casos em que o aborto é
permitido ou em que não há evidentemente um crime), mas também a sua morte decorrente do
emprego de métodos clandestinos.
ROCHA, Julia et. al. Acesso à informação e aborto legal: mapeando desafios nos serviços de saúde. São Paulo:
Artigo 19 Brasil, 2019. Disponível em https://artigo19.org/blog/2019/06/19/relatorio-aponta-que-acesso-ainformacao-e-barreira-ao-direito-ao-aborto-em-casos-previstos-em-lei. Acesso em 25 ago. 2019.
11
Alguns dos dados colhidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro sobre o perfil das pessoas
criminalizadas pela realização de aborto demonstram que “as rés, na maioria dos casos, possuem cor e renda
definidas. Trata-se, em grande parte, de mulheres em situação de vulnerabilidade, negras e pobres”
(DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO RIO DE JANEIRO. 2018, p. 55).
10
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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Em análise sobre o perfil das mulheres que morrem em decorrência dos abortos
clandestinos, isto é, aquelas que não querendo dar continuidade a uma gravidez indesejada, se
veem desamparadas pelo Estado e se socorrem a métodos inseguros que as levam à morte, os
dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde em audiência pública da ADPF 44212
apontaram que as vítimas da clandestinidade são justamente as mulheres mais vulnerabilizadas
e marginalizadas na nossa sociedade: as pobres e negras.
É interessante observar, nesse contexto, que esses corpos estão sempre sob ataque no
modelo capitalista: seja pela flexibilização das leis trabalhistas, pela precarização da
previdência social, ou pela criminalização de seus corpos. Sobre isso, a partir de Federici
(2017), podemos observar como a criminalização do aborto relaciona-se com a geopolítica do
capitalismo.
Pelo exposto, considerando a obra de Silvia Federici, que através de uma análise
dialética sobre o desenvolvimento histórico da sociedade capitalista evidencia como as políticas
estatais de intervenção e disciplinamento dos corpos, especialmente das mulheres, servem a
propósitos de legitimação desse próprio sistema e manutenção do status quo do capitalismoracista-patriarcal, o que é reforçado pela análise dos artigos científicos que se dedicaram a
investigar processos judiciais sobre aborto, permanece como inquietação se o Estado brasileiro,
especialmente após a Constituição de 1988, cumpre a promessa de ser um garantidor e
efetivador dos direitos humanos e garantias fundamentais das mulheres.
Cabe ressaltar o questionamento feito por Danielle Ardaillon (1998) quanto à
permanência da criminalização, diante da enorme estimativa de abortos praticados por ano,
sendo a maioria nas piores condições de higiene e de desrespeito à dignidade humana e tendo
como consequência mortes e lesões. Interroga, ainda, por que essa demanda social não está
sendo ouvida pelo Estado.
Ao refletir sobre a permissão do aborto no caso de estupro, especialmente, parece-nos
que, diferente do que se sustenta, o que se busca tutelar com a criminalização não é a suposta
vida do feto, mas sim a sexualidade das mulheres, que são completamente ignoradas pelo
12
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal no
ano de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), onde, com base na Constituição Federal de 1988 e nos
tratados internacionais de Direitos Humanos, pede a declaração de recepção parcial dos artigos 124 e 126 do
Código Penal de 1940, para excluir do seu âmbito a interrupção voluntária da gestação até as doze primeiras
semanas, por ser incompatível e violar os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da cidadania e
da não discriminação, bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida, à liberdade, integridade física,
psicológica, igualdade de gênero, à proibição de tortura, trato desumano ou degradante, saúde e ao planejamento
familiar. No momento (agosto de 2019), já foi realizada a audiência pública para oitiva e participação de diversos
setores da sociedade civil, de modo que o processo está concluso ao gabinete da Ministra Relatora Rosa Weber,
para prosseguimento conforme os ditames do art. 102, §1º da CRFB/1988 e da Lei 9.882/1999.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
219
Estado quando se trata de debater sobre o aborto. Ardaillon sugere em seu artigo a existência
de “[...] algum interesse do estado, intenção política, portanto, em sancionar a assimetria das
relações entre homens e mulheres, e consequentemente uma ordem de gênero desigual” (1998,
[p.7]).
Assim, parece-nos oportuno e necessário, também, refletir sobre as considerações
tecidas no artigo de Gonçalves, que apontam para uma contradição em seu posicionamento com
relação à defesa da vida das gestantes e, ao mesmo tempo, a defesa pela criminalização do
aborto. Por diversas vezes o autor se refere ao aborto como um risco para a vida da gestante,
inclusive em suas ponderações sobre o caso concreto analisado, além de reconhecê-lo como um
caso de saúde pública, o que demonstra uma pretensa preocupação com direitos das mulheres,
mormente os direitos à vida e à saúde. No entanto, o referido sustenta a necessidade de sua
criminalização e indica como um dos motivos o próprio risco que a mulher coloca contra a sua
vida.
Sobre este ponto, primeiro destacamos a incoerência na pretensão de se proteger a vida
das mulheres através da punição penal, sendo este inclusive o motivo do suicídio ser um
indiferente penal em nosso ordenamento jurídico. Ademais, o que podemos notar é a
consonância com a conclusão de Ardaillon no sentido de as mulheres serem constantemente
vistas como “menores-civis” ou “menores-morais” (1998, [p.25]).
À guisa de conclusão, alinhamo-nos com Angela Davis, quando diz que “o controle de
natalidade – escolha individual, métodos contraceptivos seguros, bem como abortos, quando
necessários – é um pré-requisito fundamental para a emancipação das mulheres” (2016, p. 205).
Por isso, em que pese a necessidade de pensarmos o Estado como um aliado desse processo (e
daí que decorre sua ambivalência, pois como pudemos concluir, ao mesmo tempo em que ele
se apresenta como possível instrumento garantidor de direitos, é quem perpetua as violências),
pelo nosso horizonte, a libertação das mulheres depende de uma mudança sistêmica, afinal,
como coloca Silvia Federici, é “[...] impossível associar o capitalismo com qualquer forma de
libertação [...]” (2017, p.37), já que sua estruturação não permite qualquer troca igualitária,
sendo sua natureza “democrática” nada mais que um mito.
REFERÊNCIAS
ARDAILLON, Danielle. A Insustentável Ilicitude do Aborto. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, v. 22, p. 199-230, abr./jun. 1998.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2016.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
220
DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Entre a morte e
a prisão: quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro, 2018. Disponível em
http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/5372-DPRJ-aponta-perfil-da-mulhercriminalizada-pela-pratica-do-aborto. Acesso em 25 ago. 2019.
DINIZ, Debora; MADEIRO, Alberto. Cytotec e Aborto: a polícia, os vendedores e as
mulheres. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, n. 7, p. 1795-1804, 2012.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232012000700018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 10 ago. 2019.
DINIZ, Debora; MADEIRO, Alberto. Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo
nacional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 563-572, 2016.
Disponível em http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/servicos-de-aborto-legal-nobrasil-um-estudo-nacional/15229 Acesso em 21 ago. 2019.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação. Trad. Coletivo
Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2017.
GONÇALVES, Antonio Baptista. Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto:
análise jurisprudencial. Revista dos Tribunais São Paulo, São Paulo, v. 2, p. 87-106,
set./out. 2013.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v.22, n.3, p. 935-952, set./dez. 2014.
ROCHA, Julia et. al. Acesso à informação e aborto legal: mapeando desafios nos serviços
de saúde. São Paulo: Artigo 19 Brasil, 2019. Disponível em
https://artigo19.org/blog/2019/06/19/relatorio-aponta-que-acesso-a-informacao-e-barreira-aodireito-ao-aborto-em-casos-previstos-em-lei. Acesso em 25 ago. 2019.
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reprodutivos V.4.
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GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA E ESTUPRO DE VULNERÁVEL: O
TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL
Karopy Ribeiro Noronha1
Fernanda Nunes da Rosa Mangini2
Eliane Rodrigues3
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo analisar percepções e as concepções acerca das
demandas de gravidezes oriundas de estupro de vulnerável, tendo como referência o fazer
profissional do(a) assistente social e da equipe multiprofissional no atendimento dessas
situações de violência. Busca-se através de um estudo de caso, trazer ao centro do debate as
concepções sobre o estupro de vulnerável, suas implicações na vida das adolescentes
atendidas na maternidade do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e os entraves
dispostos no encaminhamento das usuárias do serviço pelo(a) assistente social. As
construções sociais sobre o estupro de vulnerável influenciam na dificuldade de compreensão
e atendimento das adolescentes, bem como perpetuam as múltiplas expressões da violência
contra a mulher. O ato do estupro normalmente não é percebido e vinculado ao abusador,
esse caminho muda apenas quando ocorrem os encaminhamentos legais sobre o crime.
Palavras-chave: Estupro de vulnerável. Serviço social. Adolescentes. Gravidez.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo analisar percepções e construções sociais acerca
da violência sexual contra as mulheres, especialmente no caso de crianças e adolescentes
notadamente, nos casos de estupro de vulnerável, tendo como referência o trabalho do(a)
Assistente Social realizado na Maternidade-Alojamento Conjunto (AC) do Hospital
Universitário de Santa Maria (HUSM). Este trabalho emerge do processo de estágio
curricular supervisionado do Curso de Serviço Social, da Universidade Federal de Santa
Maria, levando em consideração os condicionantes do referido campo e as demandas
atendidas no serviço.
Trata-se de um estudo de caso sobre as adolescentes grávidas atendidas no Hospital
Universitário de Santa Maria, cuja gravidez configura-se como estupro de vulnerável. Este
1
Estudante. Graduanda do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
karopyr@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4379349343344729
2
Assistente Social. Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Docente do Departamento
de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). fernandapesquisadora@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0599793251155702
3
Assistente Social. Especialista em Gestão e Atenção Hospitalar no Sistema Público de Saúde com ênfase na
linha
de
Cuidado
Materno-Infantil.
nanerodrigues@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1449445680739192
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
222
estudo toma como base o registro, a descrição e a documentação obtida por meio de diário
de campo. Para análise do material foi realizado um estudo de caráter teórico-bibliográfico,
tomando como referência os estudos sobre gênero e sexualidade, e o papel do(a) Assistente
Social no atendimento desses casos.
Na atualidade, há um desconhecimento de direitos básicos por parte da família e das
adolescentes que engravidam devido ao estupro de vulnerável4. Esta situação que é tipificada
como crime desperta muita dificuldade no entendimento, apontando para as representações
sociais predominantemente machistas e as desigualdades de gênero. Tais barreiras se
apresentam como desafios para os encaminhamentos dos profissionais da saúde e da rede de
proteção que acompanha as crianças e adolescentes.
A hipersexualização dos corpos femininos, as estruturas do sistema patriarcal e os
papéis arraigados sobre as mulheres fortalecem as representações sociais de sua relação de
subalternidade, fomentando e banalizando as situações de violência sexual, especialmente na
adolescência. Nesse sentido, busca-se desenvolver uma reflexão teórica, tendo como suporte
o respaldo jurídico em relação ao estupro de vulnerável.
1. BASES TEÓRICAS E JURÍDICAS SOBRE O ESTUPRO DE VULNERÁVEL E A
VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS ADOLESCENTES
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a adolescência é o período
compreendido entre os 12 e 18 anos. Essa fase é complexa e repleta de diversas descobertas
que norteiam e contribuem para o processo de construção da identidade dos adolescentes.
Por este motivo, o transcurso de experimentações que os adolescentes vivenciam pode
implicar no envolvimento pelo novo e pelas possibilidades que a vida quase adulta
proporciona.
Essas experimentações se devem pelo rito de passagem para adolescência, que
simboliza abster-se da condição de criança, que normalmente é deslegitimada em alguns
aspectos, devido à baixa idade, para se encaminharem a condição de jovem e futuro adulto.
Essa transição tem correspondência direta com as responsabilidades que os adolescentes
terão, mas principalmente no olhar alheio sobre a legitimação de seus saberes, e, por
conseguinte, de sua identidade. Portanto, cabe destacar que essa transição, marcada pelas
modificações de identidade, é um processo conturbado e repleto de novas descobertas.
4
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. (BRASIL,
2009, p. 4)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
223
O HUSM, sendo o maior hospital da região central do estado do Rio Grande do Sul
por abranger duas grandes regiões/coordenadorias5 de saúde, é referência no atendimento de
gravidezes de alto risco. Dessa forma, as gravidezes, de mulheres territorializadas nessas
coordenadorias, em que existe algum tipo de risco, no binômio mãe-bebê, são encaminhadas
via rede de saúde para a maternidade do HUSM.
Atualmente, frente à desvinculação de maternidades de risco habitual, no interior do
estado, o HUSM passou a ser a única referência para estas duas regiões de saúde na
assistência ao parto. Ou seja, o HUSM sendo especializado em atendimento de alto risco,
passou a absorver as demandas de parto de risco habitual, elevando o número de pacientes
adolescentes dos municípios da região.
Justamente por abranger a região central, as mulheres que acessam os serviços
disponíveis no hospital, em sua grande maioria, são oriundas de regiões que majoritariamente
têm como fonte de renda e emprego o trabalho no campo. A baixa escolaridade, a pobreza e,
principalmente, o distanciamento das mulheres dos serviços de saúde, corroboram para que
essas sejam mais suscetíveis aos mais variados tipos de violência, dentre elas, o estupro
(BRASIL, 2004).
Tendo em vista sua condição de trabalhadoras rurais e as modificações no mundo do
trabalho apoiadas no desenvolvimento da tecnologia, os jovens, filhos de trabalhadores
rurais, muitas vezes, optam por não dar continuidade ao trabalho exercido pelos pais na lida
do campo, buscando alternativas nas cidades como, por exemplo, melhores oportunidades de
estudos e de trabalho. Porém, mesmo que essas oportunidades estejam dispostas nas cidades,
e que seja um desejo dos adolescentes, a centralidade da família ainda assume um papel
fundamental na vida dos adolescentes.
A família ainda é central na vida das mulheres, principalmente no contexto rural, pois
até hoje tem sido atribuído às mulheres o papel de cuidadoras e a premissa de que apenas
alcançam o status de mulher quando se tornam mães. Mesmo com a modernização do mundo
do trabalho e a maior facilidade de ingresso na educação pública, que se constituem como
“As Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS) abrangidas pelo HUSM são compostas pelos seguintes
municípios: Agudo, Cacequi, Capão do Cipó, Dilermando de Aguiar, Dona Francisca, Faxinal do Soturno,
Formigueiro, Itaara, Itacurubi, Ivorá, Jaguari, Jari, Júlio de Castilhos, Mata, Nova Esperança do Sul, Nova
Palma, Paraíso do Sul, Pinhal Grande, Quevedos, Restinga Seca, Santa Maria, Santiago, São Francisco de Assis,
São João do Polêsine, São Martinho da Serra, São Pedro do Sul, São Sepé, São Vicente do Sul, Silveira Martins,
Toropi, Unistalda e Vila Nova do Sul, sendo referente a 4º CRS, e os municípios de Alegrete, Barra do Quaraí,
Itaqui, Maçambará, Manoel Viana, Quaraí, Rosário do Sul, Santa Margarida do Sul, Santana do Livramento,
São Gabriel e Uruguaiana compõem a 10º CRS.”
5
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
224
oportunidades de crescimento pessoal e desenvolvimento da vida laboral, a maternidade
compulsória6 ainda é um dos entraves na vida das mulheres.
Haja vista essas afirmações, deve-se ponderar que, em sua grande maioria, as
adolescentes, que se encontram na faixa etária dos 12 aos 14 anos, compõem um número
relevante de usuárias das maternidades públicas, assim como, na maternidade do HUSM
Segundo o informativo sobre gravidez do Ministério da Saúde, “[...] no Brasil, um em
cada cinco bebês nasce de uma mãe com idade entre 10 e 19 anos [...]” (BRASIL, 2019, p.
2). Existem mais mães adolescentes do que pais adolescentes, isso se deve pelos
relacionamentos com expressiva disparidade de idade, que podem influenciar na coerção das
adolescentes pelos parceiros mais velhos.
Evidencia-se, dessa forma, que quando inseridas em relacionamentos com homens
mais velhos, as adolescentes possuem menor poder de decisão frente ao direito de seus
corpos, pela concepção arcaica de que o homem é o pilar da relação e também quem dá a
última palavra. Essa submissão conferida às adolescentes, em especial as que são oriundas
do espaço rural, se deve pela forma como são ludibriadas pela ideia de que, quando constroem
família com homens mais velhos, essas passam a assumir responsabilidades de adultos, pois
a maternidade ainda hoje confere às mulheres o status de mulher de fato.
Existem poucos estudos acerca da temática das gravidezes oriundas de estupros de
vulneráveis, porém uma pesquisa recente acerca do tema intitulada “Estupro e gravidez de
meninas de até 13 anos no Brasil: características e implicações na saúde gestacional, parto e
nascimento” (SOUTO et al, 2017), traz questões importantes a serem consideradas. Realizouse um comparativo do banco de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação
(SINAN) e do Sistema de Informações de Nascidos Vivos (SINASC), por meio do qual se
verificou um perfil das gravidezes fruto de estupro de vulnerável. Os números reportados
sobre tipificação dessa violência tinham cor e classe, visto que em sua grande maioria, estas
adolescentes estão na faixa dos 13 anos, são solteiras, negras e situadas no Nordeste
brasileiro.
As implicações de uma gravidez não desejada, fruto de um estupro, ocasionam na
vida das adolescentes muitos impasses que interferem até mesmo na saúde mental das
vítimas, já que as violências contra crianças e adolescentes representam grave ameaça aos
“A gravidez coercitiva, isto é, a ‘maternidade compulsória’, nos termos de Siegel, representa um regime
injusto de controle punitivo com potenciais efeitos disruptivos ao projeto de vida das mulheres” (PSOL, 2017,
p.39).
6
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
225
direitos humanos e à saúde desse grupo etário, especialmente no que tange aos direitos
sexuais e reprodutivos.
O estudo de Souto et al (2017) ainda ressalta que as adolescentes, nos casos de estupro
de vulnerável, ficam mais expostas às infecções sexualmente transmissíveis (como sífilis,
hepatites e ao vírus da imunodeficiência humana), justamente por não compreenderem as
implicações das relações sexuais desprotegidas, e não terem poder de negociação com seus
parceiros adultos. Este fator, constitui-se em aspecto relevante e é um agravante para saúde
materno-infantil, uma vez que a gravidez não planejada ou desejada repercute no início tardio
da assistência pré-natal; aumento de número de cesáreas em primíparas; riscos de partos
prematuros; e tratamento de ISTs na adolescente e seu filho recém-nascido.
Outro aspecto relevante diz respeito à rede de apoio e proteção que estas adolescentes
terão durante a gestação, parto e nascimento. Sabe-se que o planejamento em relação a ter ou
não um filho, na vida de todas as mulheres, implica na forma que estas estão organizadas em
relação aos estudos, mercado de trabalho e independência financeira. As adolescentes, neste
sentido, estando a sua maioria em idade escolar, dependem financeiramente da família para
sua subsistência.
Nos casos de gravidezes não desejadas ou planejadas, e, especialmente, nos casos de
estupro, o estudo refere que a maioria abandona a escola, por necessidades relacionadas aos
cuidados com recém-nascido, particularmente, nas famílias oriundas das camadas populares.
Em relação aos parceiros, o estudo traz que não há dados suficientes nas notificações
dos dados do SINAN para inferir a idade, cor, escolaridade ou participação na vida destas
adolescentes após a descoberta da gestação, parto ou nascimento. Sabe-se que em camadas
oriundas de parcelas mais vulneráveis da população ainda há a necessidade de que estas
adolescentes se vinculem a figura masculina devido às questões culturais e estigmas sociais
latentes no imaginário social de que, a mulher com filho, necessita da figura do homem ao
seu lado, especialmente pela constituição do modelo de família burguesa nuclear parental
socialmente imposto. (SOUTO et al, 2017).
A maioria das adolescentes do referido estudo definem-se como solteiras,
especialmente por considerar-se que no Brasil, o Código Civil somente permite o casamento
em decorrência da gestação, nos adolescentes com idade superior ou igual a 16 anos. Este
aspecto torna-se ainda mais perverso por considerar a autorização dos pais como aspecto
relevante para que o casamento infantil ocorra, ressaltando que a gravidez e o nascimento do
filho conferem à adolescente, mesmo que de forma simbólica ou compulsória, a ascensão
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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social esperada e a independência do seio familiar, substituindo os laços com os pais, pela
dependência afetiva ou financeira do parceiro.
A união decorrente de pessoas com idade inferior a 18 anos de idade é definida pela
Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CRC), a qual o Brasil é
signatário, como uma das mais graves violação dos direitos humanos, pois traz questões
relacionadas à saúde materna e infantil; atrasos educacionais (especialmente em relação às
mulheres), dificuldades de mobilidade social, exposição a violências múltiplas pelos
parceiros sexuais (inclusive na idade adulta). Ou seja, a gravidez na adolescência, conforme
o Ministério da Saúde, é considerado fator de risco, e em muitos casos, como elemento
desestruturador da vida destas adolescentes.
Sendo a adolescência e juventude etapas fundamentais do desenvolvimento humano,
necessitando de especial proteção em relação aos direitos humanos, o Estatuto da Criança e
Adolescente (ECA), constitui-se como marco importante para defesa destes direitos,
especialmente no que diz respeito à saúde em seu conceito amplo, como prevê a Constituição
Federal de 1988. No que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, a adolescência de
forma especial, ainda é negligenciada pela falta de efetividade dos serviços de saúde,
educação e assistência social. Isso é ainda mais evidente em relação à sexualidade desta
parcela da população, seja pela limitação dos profissionais ou pela dificuldade de transpor as
barreiras referentes ao conservadorismo cultural que via de regra, nega a sexualidade na
adolescência.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstravam, no
ano de 2012, que o início da atividade sexual precoce no Brasil é uma realidade que não pode
ser desconsiderada, demonstrando que (13,7%) das adolescentes menores de 13 anos já
haviam realizado atividade sexual, sendo que (9,6%) eram crianças com idade inferior a 12
anos.
No entanto, todas as adolescentes com idade inferior a 14 anos, que praticam atividade
sexual, sejam com adultos ou outros adolescentes, se incluem no que é tipificado em lei como
estupro de vulnerável, independentemente de a relação ser consentida ou não. Conforme o
artigo Art. 3o do Decreto de lei nº 2.848, de 1940 do Código Penal, o estupro de vulnerável
é tipificado em lei como aquele em que se “pratica conjunção carnal ou qualquer ato
libidinoso com menor de 14 anos, ou praticar na presença de alguém menor de 14 (catorze)
anos, ou induzi-lo a presenciar, conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a fim de satisfazer
lascívia própria ou de outrem, além de, submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra
forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la,
impedir ou dificultar que a abandone.” (BRASIL, 2009, p. 09). Cabe salientar que nesse
processo de transição para a vida adulta, principalmente quando se relacionando com adultos,
as adolescentes são mais suscetíveis às violências.
Segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres,
entende-se por violência contra as mulheres:
[...] a violência doméstica (que pode ser psicológica, sexual, física, moral e
patrimonial), a violência sexual, o abuso e à exploração sexual de mulheres
adolescentes/jovens, o assédio sexual no trabalho, o assédio moral, o tráfico
de mulheres e a violência institucional [...] (BRASIL, 2011, p. 21).
Para se pensar, a violência sexual contra as mulheres, e, em especial o estupro de
vulnerável e suas implicações no desenvolvimento da vida das adolescentes, é necessário ter
em vista de que forma a sociedade compreende tal fato, especialmente tratando-se de estupro
de vulnerável que envolve relações consentidas pelas adolescentes. Para o senso comum, o
estupro está vinculado apenas à atividade sexual sem consentimento de alguma das partes,
em sua grande maioria as mulheres, e que acontece, teoricamente, por algum desconhecido.
Nesse sentido, quando se pensa sobre esse crime tem-se a ideia de que ele se expressa
somente dessa forma. Por outro lado, pode-se inferir que a realidade sobre os casos de
violência contra a mulher, quando o assunto é o estupro, é muito diversificada. Conforme
dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre os anos de
2011 e 2014, a taxa de estupros de crianças e adolescentes por indivíduos que compunham o
seu ciclo familiar é de (73%), ao passo que (8,8%) dos crimes foram cometidos por
companheiros ou ex-companheiros.
Nesse mesmo contexto, deve-se destacar que a taxa de estupros reportados ao SINAN
é muito distante do número real de estupros praticados no Brasil. Pode-se inferir que o baixo
número de subnotificações se deve à dificuldade de denunciar, pelo despreparo das
delegacias frente ao caso, pelo medo de represálias e exposição, pelo não entendimento de
que o estupro aconteceu e, especialmente, pelo fato das mulheres se sentirem desamparadas.
É importante também referir que o fato de que as adolescentes do sexo feminino são
as que mais sofrem violência sexual está vinculado à precoce iniciação sexual e,
principalmente, à relação de subalternidade conferida às mulheres em relacionamentos
heteronormativos. Assim, a baixa idade e o relacionamento com homens mais velhos implica
diretamente na baixo poder de decisão do uso ou não de métodos contraceptivos nas relações
de poder e nos papéis definidos historicamente pelas mulheres na sociedade capitalista.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Em grande parte, pelos aspectos já delimitados, o estupro de vulnerável pode acarretar
em uma gravidez não planejada, seja pelo medo das vítimas em denunciar e buscar auxílio
nos serviços de referência, seja pela não compreensão da existência de um crime, pois, muitas
vezes, as próprias adolescentes referem ter consentido a relação. No caso de gravidezes fruto
de estupros, as vítimas têm direito ao aborto legal disponibilizado pelo Sistema Único de
Saúde (SUS).
Nos casos de estupro de vulnerável, porém, por mais que o aborto seja legal, em
alguns casos não existe o interesse da vítima em interromper o processo de gravidez, em
função da vinculação afetiva com o abusador ou ainda por falta de preparo dos profissionais
que atendem essas adolescentes na assistência ao pré-natal, por desconhecimento da lei e dos
direitos da criança e do adolescente.
Essas dificuldades se devem à cultura do estupro que é reforçada diariamente,
hipersexualizando jovens meninas e construindo de forma atravessada a ideia de que, apesar
da pouca idade, estas seriam mais maduras e, por conseguinte, seriam responsáveis pelas suas
escolhas.
A cultura do estupro no Brasil está vinculada à história de colonização do país:
A cultura do estupro no Brasil não pode ser desvinculada de nosso passado
colonial e escravocrata. As mulheres negras, escravas, eram consideradas
“coisas”, propriedades dos donos das fazendas e eram sistematicamente
estupradas, além de sofrerem diversas outras violências. Eram
responsabilizadas pelas mulheres brancas e pelos homens brancos pela
suposta sedução do “senhor”. O comportamento violento dos senhores
brancos, donos das escravas e escravos, não era questionado. A
hipersexualização das mulheres negras advém dessa criação para justificar
o estupro. Assim, o sexismo e o racismo fundamentam a cultura do estupro
no Brasil. Não é por outra razão que as mulheres negras são as que mais
sofrem com a violência doméstica e sexual em nosso país (CAMPOS, et al,
2017, p. 899).
Os resquícios escravocratas na sociedade brasileira ainda se manifestam diariamente,
inclusive quando analisado o número de notificações no SINAN, onde (77,2%) dos casos de
estupro de adolescentes com até 13 anos têm como vítimas mulheres negras (SOUTO, 2019).
O que traz ao centro da questão, que os traços escravocratas e colonizadores do Brasil
expõem diversas crianças e adolescentes negras a violência sexual diariamente, e ainda, que
as expressões da questão social, objeto de trabalho do Assistente Social, são expressivamente
marcantes na vida das mulheres negras no Brasil.
Na sequência, apresenta-se de que forma se configura o trabalho do Assistente Social
diante das situações de estupro de vulnerável.
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reprodutivos V.4.
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2. O TRABALHO DO(A) ASSISTENTE SOCIAL FRENTE ÀS DEMANDAS DE
ESTUPRO DE VULNERÁVEL
Na maternidade do HUSM o atendimento do(a) assistente social é oriundo das
solicitações da equipe de saúde, da livre demanda dos usuários ou, ainda, da busca ativa nas
situações em que pode haver necessidade de intervenção desse profissional. Normalmente,
essas solicitações se devem por questões diversas, como as gestações na adolescência, prénatais incompletos, uso e abuso de drogas na gestação, multiparidade, gestações não
planejadas e indesejadas, desejo das mulheres de encaminhar a criança para família substituta
ou ampliada, gestantes ou puérperas com detecção de doenças sexualmente transmissíveis
durante o pré-natal ou parto, situação de violência (sexual, física, psicológica, institucional)
e famílias com recém nascidos internados em unidade de terapia intensiva. O profissional de
Serviço Social ainda atua em equipe multiprofissional e intervém diretamente no
planejamento da alta hospitalar, além das situações nas quais se apresentam os mais diversos
tipos de violências contra as mulheres.
Dentre essas demandas, levando em consideração o perfil das usuárias do serviço,
que em número expressivo são adolescentes entre a faixa etária dos 12 aos 19 anos, parte
significativa de solicitações para o Serviço Social são de pareceres voltados à condição das
gestantes e puérperas adolescentes. Nesta fase especial do desenvolvimento, poderão existir
situações de violação de direitos, especialmente, em relação aos direitos sexuais e
reprodutivos. O papel do assistente social nos atendimentos de adolescentes também está
voltado para avaliar a rede de apoio e proteção disponível para a mãe e sua criança, garantido
que a família e os cuidadores desempenhem papéis protetivos em relação a esse binômio.
Nos casos em que se verifica situação de violação de direitos, o assistente social, além
de sensibilizar a adolescente e a família, articula a rede de proteção e realiza as pactuações
necessárias para corresponsabilização da rede em relação aos acompanhamentos necessários
no território daquela adolescente
O Código de Ética do Serviço Social tem como alguns de seus princípios, o
reconhecimento da liberdade como valor central, a defesa intransigente dos direitos humanos,
a recusa do arbítrio e do autoritarismo, e a ampliação e consolidação da cidadania,
considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos civis,
sociais e políticos das classes trabalhadoras (CFESS, 2012).
Com base nesse instrumento que norteia o fazer profissional do(a) assistente social,
compreende-se a necessidade da atuação desses profissionais como forma de garantir aos
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reprodutivos V.4.
230
usuários o acesso às políticas sociais que visem a emancipação humana e autonomia dos
sujeitos.
Nessa perspectiva, os direitos sexuais e reprodutivos são inerentes à cidadania plena:
Na perspectiva feminista aqui adotada, os direitos reprodutivos dizem
respeito à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva. Os direitos
sexuais dizem respeito à igualdade e à liberdade no exercício da
sexualidade. O que significa tratar sexualidade e reprodução como
dimensões da cidadania e conseqüentemente da vida democrática. (ÁVILA,
2003, p. 466).
Esse processo de consciência em relação ao corpo, desejos e direitos, ainda está muito
distante da realidade das mulheres, especialmente, das adolescentes, como já foi exposto
anteriormente. Dessa forma, em seus relacionamentos afetivos as jovens mulheres
desconhecem seu corpo, seus direitos e acabam inibindo suas vontades frente aos parceiros.
Existe uma grande dificuldade de construir uma relação linear e igualitária na qual as
mulheres sejam ouvidas e consigam se posicionar sobre seus desejos e aspirações para o
futuro.
Assim, as mulheres não possuem espaço de expressão dentro das relações
heteronormativas, isso porque, pela condição de gênero e, por consequência, pela condição
de subalternidade, as mulheres não tem papel de decisão dentro desses relacionamentos,
sendo que, a palavra final ainda é a do homem. Nesse sentido, torna-se imprescindível a
construção de um espaço acolhedor onde as mulheres possam se abrir e dialogar sobre suas
perspectivas e vontades, para fomentar uma análise sobre suas vivências.
Essa realidade aponta para a necessidade de investimento em ações de educação
sexual que tenham por base o direito à informação e uma análise crítica da condição social
das mulheres, levando em conta os papéis de gênero historicamente construídos e impostos
a essas. Tais ações precisam considerar a realidade dessas mulheres frente à sexualidade, em
suas especificidades, sem ignorar seus desejos, e, principalmente, suas relações. Não se pode
mais permanecer no modelo engessado e ultrapassado da relação entre mulher, sexo e
gravidez.
Dessa forma, é preciso construir e disseminar conhecimento que dialogue com a
realidade em que as mulheres se encontram, levando em consideração o sistema patriarcal,
dando assim o primeiro passo para a ruptura com esse sistema, que mata, desvaloriza e não
respeita a mulher.
Nas situações em que se apresenta um caso de estupro de vulnerável, é muito
importante que se desenvolva o vínculo com a usuária respeitando suas decisões, mas
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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principalmente, que se faça da intervenção um momento de reflexão e construção de saberes.
Torna-se necessário apreender mais sobre a realidade vivenciada pela usuária, tendo em vista
sua condição adolescente, sem perder de vista seus direitos.
Sobre a conduta socioeducativa do assistente social, o documento que estabelece “Os
Parâmetros para Atuação do Assistente Social na Saúde” dispõe:
As ações socioeducativas e/ou educação em saúde não devem pautar-se
pelo fornecimento de informações e/ou esclarecimentos que levem a
simples adesão do usuário, reforçando a perspectiva de subalternização e
controle dos mesmos. Devem ter como intencionalidade a dimensão da
libertação na construção de uma nova cultura e enfatizar a participação dos
usuários no conhecimento crítico da sua realidade e potencializar os
sujeitos para a construção de estratégias coletivas (CFESS, 2010, p. 55).
Dessa forma, a intervenção voltada para a construção coletiva de saberes deve
apreender a questão gênero, não somente como fruto da relação entre homens e mulheres,
mas também pela ótica de que essa se estrutura com base em um sistema de dominação e
exploração sócio-sexual que demanda mais das mulheres.
Portanto, não se pode desvincular o trabalho do(a) assistente social da ordem
macroestrutural, isso significa que as ações e intervenções propostas e executadas pelo
Serviço Social não devem se esgotar no atendimento de questões emergenciais para
“resolver” demandas pontuais. Essa intervenção precisa sempre questionar a lógica do capital
e, no seu interior, o sistema patriarcal, tendo em vista seus desdobramentos na realidade dos
usuários atendidos.
Nessa perspectiva, é preciso que o fazer do assistente social seja despido das crenças
individuais para que se objetive na intervenção a não moralização dos usuários, pautando-se
nos conhecimentos técnicos da profissão, uso adequado dos instrumentos de trabalho, e,
sobretudo, no código de ética profissional. O propósito é desvelar as situações de violação
de direitos da população atendida, cujo papel pedagógico é central para orientar e munir as
equipes multiprofissionais de conhecimento acerca deste tema para que possam ampliar o
olhar frente às situações de violência contra criança e adolescentes no espaço em que estão
inseridos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse sentido, entende-se que há uma necessidade expressiva frente à construção de
saberes coletivos acerca das mais diversas expressões da violência contra as mulheres, em
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232
especial sobre o estupro de vulnerável, para que seja possível desenvolver, junto das
mulheres, a emancipação humana.
A respeito do trabalho do assistente social, é essencial que os(as) profissionais
busquem sempre desenvolver ações socioeducativas, com base nos instrumentais da
profissão, visando a compreensão da realidade vivenciada pelas mulheres, inseridas no
sistema patriarcal-capitalista, objetivando superá-lo e construir a justiça social. É preciso ter
em vista o modo como as configurações do capitalismo frente à questão social e suas
expressões de gênero influenciam a vida das mulheres.
O atendimento na alta-complexidade muitas vezes revela as mais diversas expressões
da questão social que perpassam a vida do usuário. A multi demanda das usuárias é um
reflexo da vulnerabilidade social do contexto em que elas estão inseridas.
Por este motivo, o trabalho do(a) assistente social é tão importante no serviço em
questão, pois é somente com a intencionalidade do fazer profissional do(a) assistente social
e com a postura ética que se torna possível apreender quais são os fatores que desencadearam
as demandas dos usuários.
Existem muitas barreiras que dificultam o estabelecimento do vínculo entre o usuário
e o serviço, dentre eles a figura do profissional “policial” que teoricamente estaria ali para
punir. Essa visão por parte dos usuários sobre o Serviço Social se constrói com base na falta
de informação dos usuários sobre qual é o sentido do trabalho profissional. Portanto, o
profissional deve explicitar qual é a sua função e qual é o seu objetivo no atendimento,
tornando o usuário parte do processo para que se construa o sentimento de pertencimento.
O Serviço Social é uma profissão que trabalha com a subjetividade e as vontades do
usuário. Diferente do profissional do período pré-reconceituação que trabalhava com o
objetivo de organizar a desordem, o profissional atualmente precisa compreender que as
realidades vividas pelos indivíduos se diferenciam.
Conclui-se, portanto que, existe a necessidade de desenvolver políticas que
contribuam para o processo de resistência e afirmação do segmento feminino, visando a
construção de sua autonomia, entendendo que este processo, e a leitura e intervenção frente
à questão de gênero deve abarcar também a construção de saberes para os homens, levando
em consideração a construção machista dos papéis de gênero e o que é predestinado aos
homens e mulheres.
REFERÊNCIAS
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
233
ÁVILA, Maria Betânia. Direitos sexuais e reprodutivos: desafios para as políticas de
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234
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2019.
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UM OLHAR DA GESTALT-TERAPIA SOBRE O TRAUMA DO ABUSO E
VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA DA MULHER
Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva1
Nádia Krüger2
RESUMO
O presente artigo se caracteriza como um ensaio acadêmico que tem como objetivo explorar
o manejo da Gestalt-terapia frente à queixa de abuso sexual na infância da mulher. O número
crescente de casos de mulheres vítimas deste tipo de violência na infância ou adolescência e
a restrição de materiais envolvendo a temática através de uma visão gestáltica foi o motivador
desta pesquisa. Sendo assim, a partir de uma perspectiva teórica e metodológica gestáltica,
busca-se compreender como a Gestalt-terapia lida com o tema do abuso sexual na infância e
adolescência, e descrever como a fenomenologia e método dialógico, conceitos chaves desta
abordagem, se fazem presentes no manejo com mulheres vítimas de violência sexual.
Conclui-se que as marcas, muitas vezes traumáticas, deixadas pelos episódios de violência
se estendem ao longo da vida como formas disfuncionais de adaptação e autorregulação que,
cristalizadas, não assumem novas formas. A Gestalt-terapia, portanto, se apresenta
primeiramente como um lugar de acolhimento e respeito para, com o processo terapêutico,
trabalhar os bloqueios de contato e os ajustamentos disfuncionais geradores de sofrimento
psíquico, ajustando criativamente para concluir os ciclos de contato e fechar as gestalten
abertas pelas marcas e traumas dos episódios de abuso sexual.
Palavras-chave: Gestalt-terapia. Abuso sexual. Manejo.
INTRODUÇÃO
É crescente o número de casos de mulheres que buscam a psicoterapia e que relatam
já ter sofrido algum tipo de abuso e violência sexual. O interesse pelo tema surgiu justamente
pelo grande número de mulheres brasileiras vítimas desse tipo de violência durante a infância
e/ou adolescência3 e pela restrição dos materiais bibliográficos sobre essa temática, já que,
apesar da busca pela psicoterapia por essas mulheres ser crescente, ainda há pouco material
que relaciona a prática clínica da Gestalt-terapia com o assunto.
1
Psicóloga, psicoterapeuta. Graduada pela Associação Catarinense de Ensino (2013), especializanda em
Gestalt-terapia pelo Centro de Estudos de Gestalt-terapia de Santa Catarina (CEG-SC).
2
Psicóloga, graduada pela Associação Catarinense de Ensino (1990). Especialização em Gestalt-terapia pelo
CEG-PR (1995), Arteterapeuta pós-graduada pelo Alquimy Art-SP/INPG (2007). Formação em Psicologia
Transpessoal pela Unipaz-PR (2019). Psicoterapeuta de adultos e adolescentes desde 1990. Supervisora clínica.
Professora do Curso de Formação em Gestalt-terapia (CEG-SC) desde 2003.
3
Segundo dados da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência (Abrapia),
registra-se um total de 2.349 denúncias de abuso e exploração de menores, referentes ao período de fevereiro
de 1997 à janeiro de 2003. O Brasil registrou ainda 1 estupro a cada 11 minutos em 2015. São os Dados do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
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reprodutivos V.4.
236
Diante desse cenário, foi possível reconhecer uma relação entre episódios de abuso
sexual na infância ou adolescência e ajustamentos disfuncionais na fase adulta. O manejo
desses ajustamentos pela abordagem da Gestalt-terapia se tornou, portanto, o tema central
deste ensaio. A hipótese levantada é a de que, ao manejar em psicoterapia os ajustamentos
disfuncionais da pessoa vítima de abuso sexual, abre-se o caminho para a ressignificação do
trauma gerado pela violência. A pesquisa referencial teve como objetivo sustentar
teoricamente a hipótese, à luz da abordagem supracitada.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (2002, p. 149), a violência sexual é
qualquer ato sexual ou tentativa de obtenção de ato sexual por violência ou coerção,
comentários ou investidas sexuais indesejados ou diretamente contra a sexualidade de uma
pessoa, independentemente da relação com a vítima. Para Jesus (2006), em casos de abuso
existe uma relação de poder que é desigual. Nos atendimentos psicoterapêuticos com
mulheres vítimas desse tipo de violência, é possível perceber que a maioria dos casos de
abuso aconteceram na infância, alguns permanecendo até a adolescência e que os abusadores,
na maioria das vezes, eram membros da família.
Com isso, entende-se essa relação de poder como desigual, já que sendo membros da
família, com frequência, a vítima tem uma relação de confiança e dependência com o
abusador, além de normalmente serem pessoas mais velhas, contribuindo para a relação
“respeite os mais velhos”, como uma submissão (inclusive de diferenças na força física, em
se comparando o corpo de uma criança com o corpo de um adulto). Melo e Dutra (2008)
complementam que a figura dos adultos representa para a criança alguém socialmente
responsável e autorizado a exercer poder. Sendo assim, a criança ou o adolescente, na maioria
das vezes, confiam e obedecem a seus abusadores.
O enfoque deste trabalho é explorar como é o manejo do gestalt-terapeuta frente à
queixa de abuso sexual. A Gestalt-terapia, segundo Yontef (1998), é definida por três
princípios: ser fenomenológica, basear-se no existencialismo dialógico e conceituar-se na
visão de mundo baseada no holismo e na teoria de campo. Sendo assim, partindo destes
pressupostos, o manejo do terapeuta frente a esta demanda deverá ser baseado na exploração
fenomenológica do acontecimento, além de cumprir seu papel de estar junto com seu cliente,
como pessoa, permitindo e favorecendo sua alteridade (GINGER, A.; GINGER, S., 1995).
O objetivo do artigo é, portanto, abordar este assunto a partir de uma perspectiva teórica e
metodológica gestáltica, compreendendo como a Gestalt-terapia lida com o tema do abuso
sexual na infância e adolescência, e descrever como a fenomenologia e método dialógico se
fazem presentes no manejo com mulheres que foram vítimas de violência sexual.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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1. DO(S) EVENTO(S) AO TRAUMA
Percebe-se, a partir dos escritos de alguns autores - citados a seguir -, que os episódios
de abuso sexual normalmente não são acompanhados de violência, ou seja, não caracterizam
um estupro. Segundo Kristensen, Flores e Gomes (2001, p. 110),
Abuso sexual pode ser operacionalmente definido como o envolvimento de
crianças e adolescentes dependentes e evolutivamente imaturos em
atividades sexuais que eles não compreendem verdadeiramente, para as
quais não são capazes de dar seu consentimento informado, e que violam
os tabus sexuais dos papéis familiares.
A violência acaba aparecendo no sentido de se violar algo. Há uma indução e coerção:
a coerção não costuma aparecer como força física - recorrente nos casos de estupro -, mas
como violação, visto que afetos previamente estabelecidos (pessoas próximas), brincadeiras
e carinho não raro estão envolvidos. A ausência de violência física, entretanto, não significa
a falta de consequências psíquicas negativas. Já que o fato de existir um estímulo externo que
não corresponde ao grau de evolução interna e às possibilidades de integração física e
psíquica da vítima já é em si uma violência, neste caso, psicológica (CALDATTO, 2003).
Para Sousa (2017), em consequência de uma sociedade patriarcal, o ato sexual ainda
é, em muitos casos, considerado um serviço imposto à mulher.
O agressor parte da ideia de que o não é um sim que ainda não foi revertido,
e de que, no fundo, a mulher quer aquilo tanto quanto ele; que precisa
apenas de algum outro estímulo a mais como drogas, álcool ou força física
para ceder (SOUSA, 2017, p. 21).
Granzotto (2018) fala do conceito de mulher objetificada e como as mulheres
introjetaram esse olhar objetificante dos homens. Ainda segundo essa psicóloga, a violência
contra a mulher vem sendo invisibilizada e naturalizada, nos levando a pensar que um abuso
pode ser considerado um hábito socialmente legitimado, herança do pensamento machista
imperado na sociedade brasileira (informação verbal)4. A naturalização do assunto nos leva
ao conceito de “cultura do estupro”, que segundo Sousa (2017) pode ser entendido como uma
determinada prática social de cultura caracterizada, entre outras coisas, por ser algo feito de
maneira corriqueira.
Essa mesma cultura do estupro ensina que os homens devem aproveitar
toda e qualquer oportunidade de consumação sexual, e, que, muitas vezes,
4
Palestra dada Rosane Lorena Granzotto no XVI Encontro Nacional de Gestalt-terapia & XIII Congresso
Brasileiro da Abordagem Gestáltica, em Curitiba, em julho de 2018.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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as mulheres que dizem não apenas o dizem porque são ensinadas a não dizer
sim na primeira vez, e que cabe a eles ‘transformar’ aquele não em um sim.
(SOUSA, 2017, p. 13).
Quando se fala em abuso sexual envolvendo membros da mesma família, pode-se
pensar que essa “cultura” se intensifica ainda mais. Segundo Miller (1995), a cultura do abuso
ou estupro vem também para nos lembrar que o abuso sexual em si diz respeito ao exercício
de poder por pessoas ocupando posições de autoridade (pai, chefe, professor, etc) sobre os
que delas dependem para proteção, orientação e até sobrevivência. Os abusadores buscam a
satisfação para si mesmos, abusando daqueles que deles dependem.
Pensando na concepção dos eventos e possíveis consequências, de acordo com Mello
(2008), as crianças vítimas de abuso sexual geralmente terão, na construção de suas autoimagens, visões negativas, carregadas de culpa, sofrimento e dor. Consequentemente, muitas
desenvolvem percepções distorcidas acerca de si mesmas. Sendo assim, ficam evidentes os
efeitos da violência pois há uma violação, um desrespeito ao outro e ainda a possibilidade do
desenvolvimento de um trauma complexo5. O aparecimento da violência pode também se dar
após o(s) episódio(s) de abuso, quando aparecem as ameaças do abusador para que o ato se
mantenha em sigilo. Segundo Kristensen, Flores e Gomes (2001), além do medo da reação
dos pais e da reação de outras pessoas, outro fator que contribui para a manutenção do
segredo é o medo da reação do abusador. Isto porque, normalmente, o abusador sabe que está
fazendo algo fora da norma e por isso não quer ser descoberto. Além de oprimir, ameaçar,
chantagear e fazer todo tipo de coação que deixa a vítima tão amedrontada, que a impede de
denunciar o abuso.
Isso leva à compreensão de que a maioria das mulheres vítimas de abuso sexual
trazem somente o assunto à tona já na vida adulta. Primeiro, a elaboração do ocorrido pode
demorar. Dar-se conta de que foi um abuso nem sempre é algo rápido. E, segundo, pelas
ameaças que geralmente são feitas por quem a abusou, além das consequências que a vítima,
na maioria das vezes, acredita que terá. Para Melo e Dutra (2008), percebe-se que em alguns
casos a criança assume a responsabilidade pelo ocorrido, já que o abusador faz a vítima
acreditar que ela mesma foi a responsável pela violência que sofreu, por tê-lo provocado para
o ato ou por ter “consentido” em realizá-lo. Além do sentimento conflitante de amor ainda
existente por quem a abusou. Viola et al. (2011, p.57) enfatizam que:
5
Segundo Viola et al., 2011, as reações e consequências ao trauma diferem quanto aos tipos de eventos
traumáticos. Um trauma complexo seriam as respostas ao trauma de início precoce, de ocorrências múltiplas e,
às vezes, de natureza invasiva e interpessoal (maus-tratos na infância, negligência infantil, violência doméstica,
etc.)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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(…) indivíduos com histórico de abuso na infância raramente são expostos
a apenas um único evento traumático, pois geralmente o abusador é alguém
próximo da vítima, o que acaba por dificultar uma possível denúncia. Sabese também que, em se tratando de violência doméstica, o trauma pode ser
mantido em segredo por longo tempo, prejudicando a identificação de
alguma síndrome pós-traumática.
É possível pensar também que a vítima pode viver com a insegurança de perder o
“amor” do abusador, que na maioria dos casos são membros da família. Kristensen, Flores e
Gomes (2001, p. 136) afirmam nesse sentido que “revelar ou não revelar o abuso para outra
pessoa (expressão) relacionava-se com a avaliação (percepção) das consequências da
revelação”.
2. O TRAUMA DO ABUSO SEXUAL À LUZ DA GESTALT-TERAPIA
Partindo do princípio de que o abuso sexual pode ser um evento traumático ou gerar
um trauma complexo, faz-se uma leitura gestáltica do tema. Segundo Perls, Hefferline e
Goodman (1997), o trauma pode ser visto como situações inacabadas que podem gerar
experiências sensoriais marcantes. Por situações inacabadas pode-se entender como
determinada situação do passado que ainda faz parte de alguma forma do presente daquela
pessoa, bloqueando o fluxo de sua vida em determinada esfera (MESQUITA, 2011). Tendo
como exemplo a experiência de uma mulher que tenha sido abusada na infância e/ou
adolescência, a experiência na qual a pessoa se sentiu impotente e dominada pelo abusador
pode não ser digerida nem assimilada organismicamente6. Isto faz com que esta experiência
permaneça na memória como uma situação mal resolvida ou inacabada, funcionando como
algo introjetado, que não foi assimilado e que contamina as vivências do presente, gerando
percepções distorcidas da realidade atual (MELO, 2007).
O trauma pode também interferir no processo de autorregulação7 e, por consequência,
no início do ciclo de contato, pois contamina as sensações e as percepções. O ciclo de
satisfações de necessidades, ou ciclo de contato, é um importante pressuposto para a Gestaltterapia, tornando-se inclusive um dos seus focos de trabalho. Tal ciclo refere-se ao processo
6
Para a Gestalt-terapia o homem é visto como um organismo unificado, não se acredita haver divisão entre
mente e corpo. Esta perspectiva holística visa a manutenção e o desenvolvimento de um bem-estar harmonioso.
Sendo assim, quando se fala em assimilação não se diz respeito somente à assimilação mental. Pensamentos e
ações são feitas da mesma matéria, sendo as ações físicas motoras inter-relacionadas às ações mentais. Uma
parte não assimilada pode ser capaz de afetar o todo, assim como o “todo" pode afetar as “partes” (FREITAS,
2016).
7
Na Gestalt-terapia e segundo Goldstein (1995), a autorregulação organísmica é vista como uma forma do
organismo de interagir com o mundo, nesta interação o organismo pode se atualizar ou regular-se, respeitando
a sua natureza, do melhor modo possível.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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de formação e destruição de figuras ou necessidades. “O homem saudável identifica sem
esforço a necessidade dominante no momento, sabe fazer escolhas para satisfazê-las e está
assim disponível para a emergência de uma nova necessidade (…)” (GINGER, A.; GINGER,
S., 1995, p. 129). No caso de uma pessoa que tenha passado por uma experiência traumática,
esse ciclo pode ficar interrompido e por consequência existir uma dificuldade em identificar
ou satisfazer alguma necessidade.
A fronteira de contato, ou seja, a fronteira entre a pessoa e o mundo, também sofre
com as memórias traumáticas, pois torna-se rígida. Isto é, na tentativa de proteger-se de
outras situações traumáticas, a pessoa pode fechar-se para viver outras relações e situações
afetivas. Além disso, o contato, afetado pela experiência traumática, fica sujeito a
ajustamentos disfuncionais, já que podem ficar voltados para o movimento de fuga, luta ou
paralisia (BIANCHI; KUBLIKOWSKI, 2018). Na visão gestáltica, o homem vive em uma
tentativa de ajustar-se ou autorregular-se de forma tal que suas gestalten ou necessidades
possam ser fechadas para que outras possam surgir, completando assim o ciclo natural da
vida (PERUZZO, 2011). Um novo recurso ou uma nova saída que a pessoa vai encontrar
para satisfazer ou completar uma necessidade é chamada na Gestalt-terapia de ajustamento
criativo. Quando a pessoa “(…) passa a generalizar a forma de se ajustar a muitas situações
do seu dia a dia, estes ajustamentos deixam de ajudá-la a adaptar o mundo as suas
necessidades e passam a ser disfuncionais, ou seja, prejudicar a sua interação
organismo/meio” (PERUZZO, 2011, p. 21).
Além da mulher lidar com o abuso sexual como um evento traumático e
possivelmente como algo inacabado, concorda-se com Granzotto (2018), que entende que a
partir do momento em que há uma perda ou aniquilação das representações com as quais se
estava identificada, isso acarretará em sofrimento (informação verbal)8, levando-se em conta
que “a neurose é uma fixação no passado que não muda” (PERLS; HEFFERLINE;
GOODMAN, 1997, p. 181). Como situação inacabada, há um esforço do organismo para
satisfazer sua necessidade, buscando o completamento da figura. O caminho de trabalho da
clínica gestáltica desenvolve-se por meio do trabalho dialógico, que favorece à pessoa ou ao
cliente o processo de autorregulação e ajustamentos criativos saudáveis e não mais
disfuncionais. (BIANCHI; KUBLIKOWSKI, 2018).
3. AS MARCAS DO ABUSO
8
Palestra dada por Rosane Lorena Granzotto no XVI Encontro Nacional de Gestalt-terapia & XIII Congresso
Brasileiro da Abordagem Gestáltica, em Curitiba, em julho de 2018.
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reprodutivos V.4.
241
Além de pensar no trauma e no sofrimento psíquico como consequência do(s)
abuso(s) sofrido(s) na infância, Montgomery (2005) discorre sobre o tema trazendo
informações sobre os sentimentos ambíguos no abuso. O mesmo afirma que a criança, no seu
desenvolvimento saudável, busca o prazer. Por exemplo, no brincar ao invés de fazer tarefas,
no preferir chocolate à sopa. Em se tratando do abuso, não é incomum que ao ser tocada, a
mesma também sinta prazer, sexual ou não, “(…) quando o abuso se dá dentro da família, é
mascarado de carinho fraternal e mimos, o que desperta na criança sentimentos ambíguos.”
(MONTGOMERY, 2005, p. 27). Além disso, o vínculo entre vítima e abusador vai se
tornando sexualizado, contendo ao mesmo tempo elementos positivo-gratificantes e
elementos danosos para a criança (PADILHA; GOMIDE, 2004). Sendo assim, não é
incomum surgir uma ambivalência de sentimentos em relação ao abusador e também aos
pais. Montgomery (2005) revela em seu livro alguns relatos de mulheres vítimas de abuso:
“(…) - eu tinha 9 anos - e resolvi contar tudo para minha mãe. Lembro-me
que fiquei muito assustada. Porém, minha mãe, além de não acreditar, me
deu uma surra para parar de mentir. Em alguns momentos, eu mesma
duvidava do que acontecia comigo, achava que minha mãe tinha razão - que
era coisa da minha cabeça (Montgomery, 2005, p. 44).
A confusão de sentimentos em relação ao abusador pode gerar uma dificuldade no
desenvolvimento do afeto, amor e confiança na vida adulta. Padilha e Gomide (2004) trazem
que a necessidade de afeto da criança acaba sendo suprida de forma sexualizada, ou seja,
Com o acúmulo de experiências de abuso, a vítima em sua confusão entre
cuidado emocional e experiência sexual pode apresentar comportamento
sexualizado, quando na verdade quer cuidado emocional. Além disso,
desenvolve uma dificuldade em confiar nas pessoas, sejam próximas ou não
(Padilha; Gomide, 2004, p. 54).
Para a Gestalt-terapia, não podemos considerar um organismo dissociado do
seu campo de inserção (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1997), ou seja, para
compreendermos o indivíduo se faz necessário olhar para o campo em que este está inserido.
Considerando isto, não se pode excluir o fato de que, se o meio em que a mulher, antes
menina, estava inserida era de ambiguidades de sentimentos e de sexualização exacerbada e
precoce, constituir-se mulher não se dará sem os efeitos destas experiências.
4. O MANEJO FRENTE À QUEIXA
Considera-se a Gestalt-terapia uma abordagem que busca em sua essência traçar um
conhecimento aprofundado da dinâmica psíquica humana decorrente de suas vivências
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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internas e externas, explorando junto ao cliente os efeitos destas vivências na fixação de
formas de interromper o contato com o mundo e com o si mesmo (MELO, 2007).
Sobre o manejo de situações traumáticas em uma psicoterapia embasada na Gestaltterapia, Bianchi e Kublikowski (2018, p. 257) trazem que:
Pode-se perceber que a clínica gestáltica dispõe de instrumentos para
manejo clínico em vítimas de trauma infantil uma vez que trabalha com a
restauração do processo autorregulador do organismo, busca a qualidade
relacional permitindo o cuidado com as questões de apego e vínculo e
facilita o aprimoramento da função criativa.
Sendo assim, é nesse sentido que trabalha a psicoterapia gestáltica. O terapeuta, em
conjunto com sua cliente que traz esse tipo de queixa, irá explorar ao longo do processo
terapêutico quais - e se existem - efeitos dos episódios de abuso e qual a ligação do(s)
acontecimento(s) com seu adoecimento psíquico.
Conforme escrito anteriormente, busca-se neste trabalho a compreensão de como a
fenomenologia e o método dialógico se fazem presentes no manejo da psicoterapia com
vítimas de violência sexual. Entende-se que uma psicoterapia dialógica acolhe o indivíduo
de forma singular e dentro do seu contexto relacional. Por isso, exige respostas únicas para
situações que também são únicas para cada um. Por dialógico não se quer dizer baseada
somente no diálogo ou fala, mas como uma forma de abordar o cliente.
Hycner e Jacobs (1997, p.29) definem como dialógico “(…) o contexto relacional
total em que a singularidade de cada pessoa é valorizada; relações diretas, mútuas e abertas
entre as pessoas são enfatizadas, e a plenitude e presença do espírito humano são honradas e
abraçadas.” Acredita-se que a valorização da singularidade da pessoa e de sua experiência
abre espaço para superação de resistências e expansão de seus limites de crescimento. Sendo
assim, à medida que terapeuta e cliente trabalham nos vários estágios da terapia, que pode
passar por momentos de hesitação do cliente, esse pode começar a se sentir confirmado, “essa
pessoa não se ressente mais da falta de recursos emocionais, nem se sente tão ameaçada e
resistente que não possa entrar em uma relação plena.” (HYCNER; JACOBS, 1997, p. 48).
Precedendo o método dialógico, a Gestalt-terapia aborda o seu cliente por meio da
compreensão fenomenológica, que “se caracteriza pelo uso de uma linguagem descritiva, que
se opõe à linguagem interpretativa e prescritiva.” (AGUIAR, 2005, p.187). Uma atitude
fenomenológica implica o terapeuta colocar de lado todo e qualquer pré-julgamento acerca
de seu cliente e do que o mesmo relata em sessão. Isto é, assim como na relação dialógica,
valoriza-se a singularidade das experiências do cliente. Nesse sentido, é possível fazer uma
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reprodutivos V.4.
243
correlação entre o método dialógico e a fenomenologia. Para Yontef (1976, apud HYCNER;
JACOBS, 1997), a atitude fenomenológica e dialógica do terapeuta propicia a awareness do
cliente, ou seja, possibilita que este responda às situações de forma apropriada às suas
necessidades e possibilidades. Reconhecer isto é aceitar-se sem a necessidade de julgar ou
condenar sua experiência.
Desta forma, na prática clínica, o manejo da Gestalt-terapia frente à queixa de abuso
sexual será na tentativa de ajudar a cliente a perceber, dentro de suas possibilidades, de que
forma ela assimilou ou não a(s) experiência(s) traumática(s), e de que modo essa(s)
experiência(s) estão permeando seus bloqueios de contato. De acordo com Melo (2007, p.
73):
o objetivo é fazer com que a pessoa possa atuar diferente, de forma mais
ativa e agressiva, diante daquela mesma situação, à qual ela teve que se
submeter passivamente, por medo de ferir ou ser ferida. (…) Espera-se que
os introjetos tóxicos e as situações que ficaram inacabadas e, por isto, não
puderam ser superadas nem esquecidas, possam, finalmente, ser digeridas,
assimiladas e integradas à totalidade do Self, promovendo, assim, a
reorganização e crescimento da pessoa.
Diante disso, acredita-se que a forma como a clínica gestáltica lida com seus
clientes possibilita a ressignificação de situações traumáticas, tais como as situações de abuso
sexual na infância ou adolescência possibilitando a eles uma nova forma de se relacionar com
os outros e com o mundo sem o sofrimento vivido com as experiências de violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como objetivo discutir o manejo da Gestalt-terapia frente a queixa
de abuso e violência sexual na infância, apresentando os recursos teóricos e clínicos de que
a abordagem dispõe para possibilitar ao cliente uma nova forma de assimilação dos episódios
de violência. Para tal, foram abordados três princípios da Gestalt-terapia: fenomenologia,
existencialismo dialógico e teoria de campo, mais especificamente o que se refere ao contato.
Com base nos autores citados ao longo do presente artigo, podemos entender a relação
dos episódios de violência com as respostas organísmicas das vítimas. Recorrentemente em
ambientes familiares e promovidos por pessoas da família, os abusos e atos de violência
geram uma pluralidade de sensações e emoções, muitas delas ambivalentes, que dificultam a
assimilação por parte da criança, não raro, por longos períodos, podendo se estender até a
vida adulta. A impossibilidade de assimilação é o que chamamos de trauma.
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reprodutivos V.4.
244
O trauma e as marcas deixadas pelos episódios de violência se estendem ao longo da
vida como formas disfuncionais de adaptação e autorregulação que, cristalizadas, não
assumem novas configurações. Tais adaptações disfuncionais podem ser então entendidas
como o conceito de doença na visão da Gestalt-terapia. O terapeuta juntamente com o cliente,
em uma clínica gestáltica e a partir de seus princípios, podem promover a ressignificação
desses traumas e dessas marcas e em consequência possibilitar respostas saudáveis e
funcionais para a cliente.
A Gestalt-terapia, portanto, se apresenta principalmente como um lugar de
acolhimento e respeito para, com o processo terapêutico, trabalhar os bloqueios de contato e
os ajustamentos disfuncionais geradores de sofrimento psíquico, transformando-se
criativamente para concluir os ciclos de contato e fechar as gestalten abertas pelas marcas e
traumas dos episódios de abuso e violência sexual.
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reprodutivos V.4.
247
ESTERILIZAÇÃO COMPULSÓRIA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR: O
CONTROLE DE NATALIDADE E A VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL
DA MULHER
Miriam Olivia Knopik Ferraz1
Ariê Scherreier Ferneda2
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento das políticas populacionais,
do controle de natalidade, bem como do planejamento familiar para, então, identificar as
causas que dão azo à perpetração de violências contra as mulheres, tolhendo-lhes a autonomia
individual e seus direitos sexuais e reprodutivos. Não obstante, o estudo é realizado por meio
de revisão bibliográfica, do método descritivo, bem como através da análise de um caso
paradigma: Janaina Aparecida Quirino, a qual foi vítima de uma ação arbitrária praticada
pelo Poder Judiciário por ser considerada como pessoa vulnerável financeira e socialmente.
A vítima foi esterilizada contra sua própria vontade, sob argumentos injustificados, logo após
um procedimento de parto. Tendo isso em vista, pretende-se, partindo-se da análise do caso,
demonstrar os instrumentos e motivações explícitos e implícitos de ações que visam controlar
a natalidade no país, mesmo que, para isso, violências sejam praticadas em face de mulheres.
Ressalta-se, por fim, a necessidade de se repensar a origem dos problemas enfrentados: ao
invés de promover a esterilização, por que não optar por métodos alternativos de
contracepção ou mesmo pela adoção de outras medidas protetivas?
Palavras-chave: Violência. Autonomia. Natalidade. Esterilização. Mulher.
INTRODUÇÃO
Imagine-se a situação de uma mulher gestante que, em decorrência da arbitrariedade
do Poder Judiciário, é submetida a um procedimento de laqueadura tubária (esterilização)
mesmo contra a sua própria vontade.
Esta foi a realidade de muitas mulheres e, recentemente, a de Janaina Aparecida
Quirino, a qual figurou como requerida em uma Ação Civil Pública interposta pelo Ministério
Público de Mococa (São Paulo), com o intuito de que fosse submetida, compulsoriamente, a
1
Advogada. Doutoranda e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (bolsista
PROSUP). Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional
(ABDConst). Pós-graduanda Legal Tech: Direito, Inovação e Start Ups pela Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais. Editora Adjunta da Revista da ABDConst. Membro Núcleo de Estudos de Pesquisas em
Tributação, Complexidade e Desenvolvimento e do Grupo de pesquisa Análise Econômica do Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Membro da Comissão de Igualdade Racial e da Verdade da
Escravidão Negra da OAB/PR. m.okf@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4312339156293623
2
Estudante. Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Integrante do Grupo de
Estudos de Análise Econômica do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Pesquisadora de
Iniciação
Científica
Voluntária
2019-2020.
ariefernedaxx@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3222637526954534
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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um procedimento de laqueadura, devido ao fato de ser considerada como uma pessoa que
vive de forma desregrada, usuária de substâncias e de álcool.
A cirurgia foi realizada em 2018, logo após o parto de Janaina, ainda que pendente
um recurso de apelação, o qual, por ocasião de seu julgamento, entendeu por decretar a
extinção do processo diante das ilegalidades que ocorreram durante a demanda. Porém, já
não adiantava mais: o procedimento havia sido realizado.
Tendo em vista as diversas violações de direitos perpetradas pelo próprio Poder
Judiciário, o presente estudo busca analisar o desenvolvimento das políticas populacionais,
do controle de natalidade, bem como do planejamento familiar. Após, busca-se identificar as
causas que dão azo à perpetração de violências contras as mulheres, de modo a desconsiderar
a sua autonomia individual e seus direitos sexuais e reprodutivos.
Assim, o artigo se subdivide em duas partes, desenvolvidas a partir do método
descritivo e de revisão bibliográfica e de caso. Na primeira, serão analisadas as origens das
políticas e concepções acerca do controle de natalidade, das políticas populacionais, bem
como do planejamento familiar. No segundo momento, o caso da Janaina Aparecida Quirino
é utilizado como exemplo claro das falhas dos programas de planejamento familiar, os quais
são repletos de ineficiências, uma vez que permeados pela desinformação e, como será
abordado, pela discriminação de alguns grupos de pessoas.
Desse modo, busca-se uma reflexão sobre a forma como as políticas populacionais
são implementadas com base no planejamento familiar. Há, portanto, evidente necessidade
de se repensar o controle de natalidade, não mais como forma de erradicação da pobreza e
promoção do desenvolvimento socioeconômico de uma população. A origem dos problemas
socioeconômicos enfrentados não se remedia com a esterilização de mulheres, mas com
informações e, principalmente, com respeito aos direitos sexuais e reprodutivos.
1. O CONTROLE DE NATALIDADE, AS POLÍTICAS POPULACIONAIS E O
PLANEJAMENTO FAMILIAR
O tema a respeito do controle de natalidade e o aumento populacional há muito
preocupa a sociedade e direta ou indiretamente se relaciona com os recursos que se possui a
disposição. O debate sobre as políticas populacionais, por sua vez, é cercado de tabus e
eivado de conotações ideológicas.
Inicialmente, as argumentações sobre população e desenvolvimento iniciaram de
maneira otimista à época do iluminismo (século XVIII), na qual os pensadores eram
partidários da ideia de progresso (ARRUDA; PILETTI, 2000, p. 230). Em 1776, o
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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economista Adam Smith (1983, p. 56) sinalou que “o marco mais decisivo da prosperidade
de qualquer país é o aumento no número de seus habitantes”.
Em oposição aos debates progressistas, a voz destoante veio do pastor Thomas Robert
Malthus. Nesse sentido, as discussões de cunho pessimista possuem sua origem, em essência,
na escassez de recursos. Isto é, se a população aumenta, consequentemente, os recursos
diminuem, inviabilizando, assim, qualquer tipo de progresso social (ALVES, 2014, p. 220).
A partir das ideias de Malthus, portanto, que a teoria populacional ganhou força e
ainda é fundamento para diversas abordagens utilizadas atualmente. Por meio desta teoria,
em 1798, em pleno contexto da Revolução Industrial em que houve uma grande alteração no
caráter do trabalho (ARRUDA, PILETTI, 2000, p. 239), Malthus apontou a população como
culpada pelos seus próprios males, considerada como o principal obstáculo ao
desenvolvimento econômico e social (ALVES, 2004, p. 22).
Nesse sentido, o pastor propôs que a produção de alimentos cresceria de forma
aritmética (1, 2, 3, 4...), enquanto o crescimento populacional ocorreria de forma geométrica
(1, 2, 4, 8...), de modo a alcançar a discrepância entre a demanda de alimentos, devido à
ampliação da população e a oferta daqueles (MALTHUS, 1959, p. 7-8).
Como consequência, surge a “necessidade” de redução da natalidade, uma vez que,
expandindo-se a população para além dos limites da subsistência, a fome, a miséria e os
vícios passariam a pressionar a sociedade. Desse modo, a redução poderia ocorrer de modo
natural, por meio de guerras, epidemias e fome (ALENCAR, 1973, p. 178).
Contrapondo a posição de Malthus, no século XIX, Karl Marx afirmou que o
capitalismo seria capaz de gerar bens e serviços em progressão superior ao crescimento
demográfico. Igualmente, o excesso da população seria uma estratégia criada para a criação
de um estoque de seres humanos destituídos dos meios de produção e à disposição da
burguesia.
Por outro lado, as discussões a respeito da população e do desenvolvimento foram
retomadas de modo ainda mais intenso com o advento da transição demográfica, a qual é
formulada à luz da relação entre o crescimento populacional e o desenvolvimento
socioeconômico (VASCONCELOS; GOMES, 2012, p. 540). O objetivo da transição é, em
suma, promover a passagem de elevadas para reduzidas taxas de natalidade e mortalidade.
Trata-se de um fenômeno estrutural importante e fortemente condicionado pelas
condições históricas e sociais de um determina país onde se realiza (BRITO, 2008, p. 6). Ou
seja, a transição realizada em um país subdesenvolvido não promoveria grandes
transformações econômicas.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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É nesse contexto que surge a teoria neomalthusiana, a qual atrelou o controle de
natalidade a questões de saúde, preocupando-se, inclusive, com o bom nascimento e a boa
educação (CABELEIRA, 2012, p. 83). Destacou-se, portanto, a diferença entre fazer amor e
fazer filhos. Houve, ainda, a criação de teses para tratar especificamente da copulação
preventiva e da esterilização voluntária, uma vez que defendia-se a estabilidade populacional
pela redução das taxas de fecundidade (CABELEIRA, 2012, p. 84; ALES, 2014, p. 221).
A concepção neomalthusiana, por outro lado, ecoou ao longo dos tempos, tanto é
assim que no contexto da Guerra Fria foi amplamente utilizada nas disputas ideológicas. Para
os países capitalistas havia necessidade de reduzir a fecundidade para promoção do
desenvolvimento e erradicação da pobreza. Em contrapartida, nos países do Terceiro Mundo
e na União Soviética defendia-se a prioridade do fortalecimento das políticas de apoio ao
desenvolvimento “em contraposição ao controle da natalidade e ao planejamento familiar”
(ALVES, 2014, p. 222).
Inobstante, destaca-se o exemplo do governo chinês, anteriormente comunista, que
condenava qualquer método de controle de natalidade. Entretanto, em 1979, sob o governo
de Deng Xiaoping, adotou-se uma política malthusiana consistente na requisição aos casais
chineses (da etnia Han, majoritária no país) a terem apenas um filho.
Ademais, referida política era severa, exigindo-se certificado de filho-único,
incentivos para utilização de contraceptivos, esterilização, aborto e punição para os
transgressores (LI, 1995).
Por outro lado, com o fim da Guerra Fria realizou-se no Cairo, em 1994, a
Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD), na qual se ressaltou a
defesa dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos. Na oportunidade, restou definido
que os direitos reprodutivos consistem na liberdade de escolha das pessoas para definir como,
quando e quantos filhos desejam ter (ALVES, 2014, p. 224).
Feitas as considerações iniciais a respeito do desenvolvimento dos ideais de políticas
populacionais, salienta-se, por oportuno, que, no Brasil, as concepções a respeito do
planejamento familiar, controle de natalidade e política populacional foram consideradas
como sinônimas.
Ocorre que a política populacional consiste na conjugação de três elementos:
mortalidade, natalidade e migração, e representa um “conjunto de medidas destinadas a
modificar o estado de uma população de acordo com interesses sociais determinados”
(SILVA, 1986, p. 923).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
251
Não obstante, referidas políticas são consideradas como as intenções do Estado e de
instituições variadas com o objetivo de alterar as tendências demográficas de uma população,
ressaltando que há um conteúdo social e ideológico na adoção dessas políticas (CAMARGO,
1980, p. 86).
Nesse sentido, propõem-se a subdivisão das políticas populacionais de acordo com
suas abrangências, caráter, meios e níveis da seguinte forma: i) Sobre a dinâmica
demográfica: mortalidade/esperança de vida; natalidade/fecundidade/fertilidade; migração
nacional e internacional e nupcialidade; ii) Sobre o ritmo de crescimento: expansionista
(natalista), reducionista (controlista) e neutra (laissez-faire); iii) Sobre o nível de aplicação:
individual, familiar (casal) e institucional; iv. Sobre o caráter das políticas: pública e privada;
v) Sobre a transparência dos objetivos: implícitas e explícitas; vi) Sobre a finalidade dos
propósitos: intencionais/antecipadas e não-intencionais/não-antecipadas; vii) Sobre a
tempestividade das ações: proativa(prevenir), reativa (remediar); viii) Sobre o caráter de
implantação: democrática/consensual e autoritária/coercitiva (ALVES, 2006, p. 24).
Por sua vez, o controle de natalidade entendida como uma imposição estatal e como
uma ideologia é uma forma coercitiva de “retirar direitos e atribuir à população problemas
que não são dela” (ALVES, 2004, p. 22). O controle implica intervenção impositiva estatal
e, nas palavras de Bresser Pereira (1978, p. 45), “poucos temas são mais carregados de
conotações ideológicas do que o controle da população”.
Em relação ao planejamento familiar, trata-se de uma regulação através da qual as
pessoas estabelecem o tamanho de sua família por meio de orientações e apoio. Igualmente,
com o avanço das conquistas feministas, o planejamento familiar foi inserido no contexto da
saúde integral da mulher (ALVES, 2004, p. 31).
O Planejamento Familiar, nesse sentido, é entendido como um conjunto de ações que
busca o controle de fecundidade (BRASIL, 1996). Os métodos e as orientações, por sua vez,
buscam facilitar a escolha e a utilização de determinado planejamento familiar que garanta
direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher.
Nada obstante, referidas ações buscam fortalecer os direitos sexuais e reprodutivos
dos indivíduos e se pautam em ações clínicas, preventivas, educativas, oferta de informações
e dos meios e técnicas para regulação da fecundidade, além de fornecer orientações quanto à
segurança e eficácia do uso de métodos contraceptivos.
Por outro lado, cabe pontuar que, no Brasil, as primeiras políticas sociais voltadas à
questão da natalidade/fecundidade foram no governo Vargas (1930-1945), as quais possuíam
efetivamente objetivos natalistas. Exemplo disto pode ser observado por meio do Decreto
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
252
Federal n. 20.291/1932, que estabelecia a vedação ao médico de prática que tivesse por
objetivo impedir a concepção ou interromper a gestação.
Igualmente, verifica-se a mesma conotação através da Lei das Contravenções Penais,
a qual proibia o uso de substância que provocasse o aborto ou evitasse gravidez. Do mesmo
modo, a Constituição de 1937 estabelecia, junto ao seu art. 124, que “as famílias numerosas
serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos” (ROCHA, 1987).
Ainda, denota-se que desde o século XIX uma política natalista foi adotada como
cultura nacional, o que foi reforçado no governo militar de 1964-1970, a partir do qual foram
criadas políticas para o crescimento demográfico e preenchimento de regiões “vazias”
(Amazonas e Planalto Central) (CANESQUI, 1985, p. 3).
Nesse sentido, a elite brasileira e o governo não vislumbravam o crescimento
populacional como um empecilho a economia. Acreditava-se, por outro lado, que existia uma
“sinergia entre dinâmicas populacionais e econômicas elevadas” (ALVES, 2006, p. 23).
Até então, o Brasil não possuía uma política voltada à disciplina da dinâmica
demográfica, o que acabou gerando políticas de planejamento familiar, nos anos de 1966 a
1975, preconizadas pela Sociedade Bem-estar da Família (BENFAM), a qual passou a
oferecer serviços relacionados ao controle de fecundidade (MEDICI; BELTRÃO, 1996, p.
13).
Ressalta-se, ainda, que durante o governo Geisel (1974-1979), optou-se por uma
política mais desenvolvimentista atrelada ao planejamento familiar. Iniciou-se, então, uma
segregação: enquanto as parcelas mais ricas da população possuíam acesso à regulação e à
orientação, as mais pobres não (ALVES, 2006, p. 23).
Ademais, importante se destacar que o Programa de Assistência Integral à Saúde da
Mulher (PAISM), elaborado em 1984, representou um grande avanço. Este programa
posicionou o Brasil em situação efetivamente neutra na discussão dos natalistas e
controlistas, bem como incluía ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e
recuperação, abrangendo a assistência à mulher em clínica ginecológica, em planejamento
familiar, além de outras necessidades identificadas a partir do perfil populacional das
mulheres, cujos serviços assaram a ser ofertados pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
(BRASIL, 2004, p. 17).
Inobstante isso, a construção do planejamento familiar ocorreu de modo mais
concreto com o advento da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o art. 226, §7º, da
CRFB de 1988, dispõe que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
253
ao Estado “propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas” (BRASIL, 1988).
Destaca-se que, ainda que o tema da “esterilização feminina” não tenha sido integrado
ao texto Constitucional, este foi muito discutido, em especial, a partir dos casos de
“esterilização em massa”, os quais foram deflagrados em 1991 e precederam as discussões a
respeito da regulamentação de políticas de planejamento familiar.
Instaurada em 1992, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito tinha como objeto
investigar a incidência da esterilização em massa de mulheres no Brasil e fundamentou-se
nas seguintes denúncias: a esterilização era oferecida como a principal e única forma de
contracepção, “dentro de uma orientação de controle de natalidade”; havia a falta de
informação sobre contracepção e o processo reprodutivo; a situação de miséria e falta de
esclarecimentos para as mulheres que se submetiam a cirurgia; grande número de
arrependimentos; predominância de mulheres negras; indícios de que o atestado de
esterilização estava sendo exigido para a obtenção de vagas de trabalho (BRASIL, 1991).
Em 1996, revelou-se que a esterilização feminina correspondia a 57% do uso de
anticonceptivos artificiais, devido à ausência de conhecimento sobre alternativas de
contracepção e desconhecimento sobre os riscos, sequelas e irreversibilidade dos
procedimentos de esterilização.
Destaca-se, ainda, que dentre as pessoas que realizaram o depoimento na CPMI estava
Sônia Beltrão que alegava ter sido esterilizada sem o seu consentimento em um hospital do
Rio de janeiro (BRASIL, 1991). Ademais, algumas das conclusões tomadas ao final das
investigações auxiliaram a regulamentação da política de planejamento familiar no Brasil.
Dentre as considerações, aponta-se: o controle de fertilidade no Brasil era feito pela
BENFAM e o Centro de Pesquisas e Assistência Integral à Mulher e à Criança (CPAIMC),
os quais eram subsidiados por recursos e interesses estrangeiros, realizando um efetivo
controle de natalidade; necessidade de ampliação do PAISM no SUS para conter, inclusive,
os interesses internacionais; altas reduções da fecundidade no Brasil na década de 1980
decorriam da utilização de pílula e da esterilização e; defendeu-se a regulamentação do art.
226, §7º da CRFB/1988 sobre o planejamento familiar (BRASIL, 1991).
Tendo em vista a investigação e as constatações realizadas, a Lei do Planejamento
Familiar, publicada em 1996, foi editada com o intuito de regular o §7º do art. 226 da
Constituição Federal de 1988. Busca-se, através dela, promover ações de “regulação da
fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela
mulher, pelo homem ou pelo casal” (BRASIL, 1996). Ainda, faz-se um importante realce ao
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
254
art. 10 do texto legal, em que o tema da esterilização é tratado de modo a impor alguns
requisitos para sua efetivação, os quais serão analisados no tópico seguinte.
Em 2005, por outro lado, foi divulgada a “Política Nacional de Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos” em que se focalizou a atuação na ampliação de métodos
anticoncepcionais reversíveis; ampliação do acesso à esterilização cirúrgica e a introdução
da reprodução humana assistida no SUS (BRASIL, 2005, p. 16-17).
Nesse sentido, é possível compreender a abordagem sobre o controle de natalidade,
no Brasil, é feita por meio da política de Planejamento Familiar, enquanto política pública,
que possui, em tese, um direcionamento individual e familiar.
Ressalta-se, ainda, que no presente estudo, busca-se analisar as práticas implícitas de
controle de natalidade com conotação discriminatória, aplicada às mulheres em situação
vulnerável, cuja esterilização é realizada claramente com o intuito de reduzir a fecundidade
para supostamente erradicar problemas sociais. Retorna-se, assim, à teoria malthusiana: a
população é culpada pelas próprias mazelas.
2. ESTERILIZAÇÃO COERCITIVA E A VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA
INDIVIDUAL DA MULHER: UMA ANÁLISE DO CASO JANAINA APARECIDA
QUIRINO
Dentre os métodos autorizados e utilizados para promoção do planejamento familiar,
encontra-se a esterilização voluntária, a qual é permitida em determinadas situações e desde
que atendidos os seguintes requisitos: i) em homens e mulheres dotados de capacidade civil
plena e desde que maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos
vivos; ii) observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato
cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação
da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar
a esterilização precoce; iii) risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto,
testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos (art. 10, I e II, da Lei n.
9.263/1996).
Para que se realize a esterilização, é necessário que haja manifestação de vontade em
documento escrito e firmado; devem ser fornecidas informações a respeito dos riscos da
cirurgia, possíveis efeitos colaterais, dificuldades de sua reversão, bem como a respeito das
opções de contracepção reversíveis existentes (art. 10, §1º, da Lei n. 9.263/1996).
Entretanto, contrariando disposições expressas quanto à possibilidade e autorização
da esterilização, o Ministério Público, em 30/05/2018, propôs uma Ação Civil Pública (ACP)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
255
em face de Janaina Aparecida Quirino. A ACP foi proposta com o intuito de atuar em defesa
dos interesses individuais indisponíveis, cujo fundamento justificou a legitimidade do órgão
ministerial (BRASIL, 2017).
A requerida da demanda, considerada como hipossuficiente, era à época dos fatos,
usuária contumaz de álcool e substâncias ilícitas. De acordo com o representante do Parquet,
Janaina sempre se recusou a aderir aos tratamentos ambulatoriais aos quais foi submetida por
diversas vezes. Mãe de cinco filhos, os quais já estiveram sujeitos ao procedimento de
acolhimento institucional, foi considerada incapaz de prover as necessidades básicas de sua
prole, além de colocá-los em potencial risco em razão do uso de álcool e drogas (BRASIL,
2017).
Sendo assim, Janaina foi submetida ao procedimento de esterilização (laqueadura
tubária), com o objetivo de evitar novas gestações indesejadas e irresponsáveis, tendo em
vista que, segundo o Ministério Público, a requerida possui uma vida desregrada e apresenta
comportamento de risco. Isto é, a esterilização compulsória “resolveria” o fato de Janaina
utilizar substâncias ilícitas, levar uma vida desregrada, sem residência fixa, possuir
comportamento de risco, ou mesmo contrair doenças venéreas.
Entretanto, a partir da análise dos autos, constatou-se que o Departamento Municipal
de Saúde de Mococa (local onde Janaina residia) emitiu parecer afirmando que a paciente
demonstrou interesse em realizar a cirurgia de esterilização, porém, não possuía condições
de dar prosseguimento ao procedimento de laqueadura (sem motivação especificada).
Ainda assim, o pedido específico do Parquet consistiu na:
A concessão da tutela de urgência para que o requerido, MUNICÍPIO DE
MOCOCA, seja obrigado a providenciar em favor de JANAÍNA
APARECIDA QUIRINO a laqueadura tubária pleiteada, precedida do
indispensável laudo médico, nos termos do artigo 10, inciso II, da Lei nº
9.263/96, devendo fazê-lo mesmo contra a vontade desta, sob pena de multa
diária em valor não inferior a R$500,00 (quinhentos reais) (SÃO PAULO,
2018, p. 5-6).
Destaca-se ainda, a fundamentação do Ministério Público:
O direito à saúde é indisponível e está intimamente relacionado à dignidade
da pessoa humana e à própria vida. [...] Assim, não resta alternativa ao
Ministério Público senão o ajuizamento da presente ação para compelir o
MUNICÍPIO DE MOCOCA a realizar a laqueadura tubária em JANAÍNA,
bem como para submetê-la a tal procedimento mesmo contra a sua vontade,
tudo em conformidade com o disposto na Lei nº 9.263/96 e preceitos
constitucionais que consagram a saúde como dever do Estado e direito de
todos. Logo, trata-se de direito inserto no chamado 'mínimo existencial',
cuja garantia é obrigação e responsabilidade do Estado, mormente à luz do
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
256
princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da Constituição
Federal, consoante seu artigo 1º, inciso III (SÃO PAULO, 2018, p. 5-6).
Nesse sentido, o órgão ministerial salientou que apenas a esterilização seria eficaz
para salvaguardar a sua vida, a sua integridade física, bem como a de eventuais outros filhos
que poderiam nascer e ser expostos a riscos em virtude do comportamento destrutivo da mãe.
Ainda, vincula a esterilização (a laqueadura tubária) como diretamente relacionado ao direito
à saúde, e somente com uma abordagem nesse sentido, garantira-se o mínimo existencial.
O MPSP pediu a concessão de tutela provisória de urgência, acostando alguns
documentos, inclusive um relatório informativo dirigido ao juiz, em que uma assistente social
do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) descrevia que Janaína
possuía sinais de embriaguez e não cumpria as orientações da equipe, e também não aderia
aos serviços oferecidos pela rede de saúde. No mesmo relatório é informado que as três
crianças mais novas estavam “acolhidas”, podendo indicar medida de proteção do tipo
acolhimento institucional3 (SÃO PAULO, 2018, p. 9-10).
Em outro relatório de agentes de saúde, há a narrativa de uma entrevista com Janaína,
em que esta informa não ter discutido com equipe de saúde sobre procedimentos e que
também não foi iniciada a laqueadura. Entretanto, a equipe negou a realização dessa
entrevista, afirmando possuírem registro do processo e que Janaína possuía perda de
memória, ambas as alegações não foram comprovadas em documentos juntados aos autos.
Ademais, concluíram que Janaína não teria condições de realizar a laqueadura,
mesmo diante da manifestação de seu interesse na cirurgia (SÃO PAULO, 2018, p. 11-12).
Em conclusão a assistente social sugeriu a internação compulsória para tratamento da
dependência química, uma vez que Janaína se mostrava resistente ao tratamento
ambulatorial, e assim, colocava e risco potencial a sua vida e de seus filhos. (SÃO PAULO,
2018, p. 13-16). Após, foi prolatada decisão (07/06/2017) determinando-se a avaliação
psicológica de Janaína, uma vez que havia manifestado interesse pela laqueadura. Entretanto,
como demonstrado anteriormente, no relatório de acompanhamento em que ela manifestou
esse interesse, a profissional responsável opinava no sentido de que ela não teria conduções
de se submeter a cirurgia. (SÃO PAULO, 2018, p. 9).
Conforme a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente): “Art. 98. As medidas de proteção à
criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou
violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou
responsável; III - em razão de sua conduta. [...] Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98,
a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: [...] VII - acolhimento
institucional”.
3
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
257
Em 26 de junho de 2017 o laudo psicológico informou que Janaína, “sóbria e com
discurso colaborativo” já havia perdido o poder familiar sobre os quatro filhos mais novos, e
ela teria manifestado o interesse em fazer a laqueadura tubária, mas que havia desistido
devido a demora e complexidade da triagem e eventuais perdas de interesse quando sob o
efeito de álcool. (SÃO PAULO, 2018, p. 25). Neste segundo relatório, destaca-se que Janaína
declarou seu interesse em retomar os tratamentos contra o vício ao passo que seu
companheiro não (SÃO PAULO, 2018, p. 26). Encerrou a Psicóloga Judiciária anotando que
Sendo assim, considerando os direitos sexuais e reprodutivos femininos, e
o desejo consciente de Sra. Janaína em realizar a laqueadura, somado a sua
declaração em que não se adaptou a outros métodos contraceptivos,
opinamos favoravelmente a realização da cirurgia de laqueadura (SÃO
PAULO, 2018, p. 27).
Janaína foi orientada a declarar seu desejo referente à realização da cirurgia de
laqueadura no Cartório da Comarca de Mococa (SÃO PAULO, 2018, p. 28). O juiz da 2ª
Vara do Foro e Mococa, São Paulo (27/06/2017) deferiu parcialmente a tutela antecipada
requerida, no sentido de condenar o Município de Mococa a realizar a cirurgia de
esterilização de Janaína, estabelecendo prazo de 30 dias, sob pena de multa diária, como
destacado anteriormente, com fundamento no direito à saúde. (SÃO PAULO, 2018, p 3031). Janaina foi citada em 03/07/2017 por oficial de justiça (SÃO PAULO, 2018, p. 43).
Entretanto, em 01/08/2017 foi emitido outro relatório informando que Janaína não
havia comparecido a consulta ginecológica, possuía aspecto desnutrido e fazia uso diário de
álcool. (SÃO PAULO, 2018, p. 46). O MPSP reiterou o caráter compulsório da laqueadura,
reafirmando que o prazo já havia se esgotado e o Município deveria cumprir a ordem judicial
no prazo de 48 horas, com majoração da multa (SÃO PAULO, 2018, p.50), o que foi acolhido
pelo juízo em 15/08/2017 (SÃO PAULO, 2018, p. 51).
O Município juntou aos autos novo relatório, agora pela Coordenadora do CAPS
local, em 30/08/2017 informando que Janaína havia sido acolhida para tratamento (contra
dependência química) e foi constatado que se encontrava em estado gravídico. (SÃO
PAULO, 2018, p.63).
A tutela de urgência foi suspendida em 04/09/2017 (SÃO PAULO, 2018, p. 68), após,
precluiu o prazo para Janaína se manifestar. Destaca-se que a única notificação realizada foi
a citação. Em 06/09/2017 o MPSP reiterou o pedido, e requereu que fosse enviado ofício ao
departamento de saúde municipal para que fosse informada a provável data do parto (SÃO
PAULO, 2018, p. 72-74).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
258
Em 21/09/2017, o Município de Mococa peticionou com o objetivo de produzir
provas da incapacidade da ré, e requerendo, somente naquele momento, a nomeação de
curador especial dativo. (SÃO PAULO, 2018, p. 80-82). Sobre esse ponto, cita-se a
manifestação do MPSP em 25/09/2017:
[...] o presente feito já apresenta elementos seguros e satisfatórios acerca do
estado de saúde física e psíquica da requerida, à vista dos relatórios fls.
09/17 – oriundos do CREAS, Departamento de Saúde, CAPS-AD e do setor
social (assistente social) deste juízo – bem como do laudo do estudo
psicológico realizado pelo setor técnico deste juízo (fls. 24/28), os quais
denotam não se tratar a requerida de pessoa incapaz, muito embora não
possua quaisquer condições de fornecer os cuidados necessários à futura
prole (SÃO PAULO, 2018, p. 90).
Em 05/10/2017 foi publicada a sentença, e o magistrado de primeiro grau entendeu
que os documentos acostados aos autos eram suficientes para afastar a incapacidade de
Janaína, não havendo assim decisão ou pedido de curatela em seu favor (SÃO PAULO, 2018,
p. 92). Ainda, o juiz entendeu ser cabível o julgamento antecipado da lide, sem a necessidade
de dilação probatória e assim, julgou procedente a demanda (SÃO PAULO, 2018, p. 94).
A sentença possui como fundamento: “[na] obrigação das [sic] pessoas políticas
assegurarem [sic] a efetividade do direito à saúde do cidadão” (SÃO PAULO, 2018, p. 94),
e que “por mais que o Município nada tenha trazido aos autos, eventual alegação quanto ao
‘princípio da reserva do financeiramente possível’ não poderia ser considerada” [sic] (SÃO
PAULO, 2018, p. 95). Nesse sentido, condenou o Município de Mococa a realizar a
laqueadura sobre Janaína, logo após o parto, sob pena de multa diária (SÃO PAULO, 2018,
p. 95).
O Município apresentou suas razões ao recurso de apelação, no dia 07/11/2017 (SÃO
PAULO, 2018, p. 97-98), e dentro do prazo o MPSP apresentou suas contrarrazões.
Entretanto, antes de a apelação ser recebida pelo Tribunal, na data de 08/11/2017 foi juntado
aos autos relatório, requerido pelo MPSP, de visita de equipes de saúde à casa de Janaína
informando que ela estava com saúde ruim (infecção urinária), consumindo álcool e outras
substâncias. No referido relatório, recomendou-se sua internação compulsória para tratar da
dependência química e também para a laqueadura (SÃO PAULO, 2018, p.114-115).
MPSP também informou no processo que Janaína estava presa preventivamente por
decisão do mesmo juiz, por suspeita de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2016).
Nesta oportunidade, o MPSP requereu a expedição de ofício ao estabelecimento onde estava
a ré custodiada para que fosse determinada a realização de laqueadura compulsória quando
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
259
nascesse seu filho (SÃO PAULO, 2018, p. 118). Este pedido foi deferido em 28/11/2017
(SÃO PAULO, 2018, p. 119).
No dia 14/03/2018, data em que ocorreu o relatório do Tribunal, a diretora Técnica
da Penitenciária encaminhou ofício ao juízo informando a realização do parto e da laqueadura
em 14/02/2018 “em atendimento ao requerido que determina a realização de tal
procedimento” (SÃO PAULO, 2018, p. 146).
Destaca-se, ainda, que, por ocasião da interposição de recurso de apelação do
Município, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a extinção do processo diante das
ilegalidades que ocorreram durante a demanda (SÃO PAULO, 2018). A anulação em sede
recursal, no entanto, não teve os efeitos pretendidos, pois o procedimento já havia sido
realizado.
Salienta-se, por oportuno, que o presente trabalho não se presta à análise dos impactos
sociais ou econômicos de uma pessoa hipossuficiente e usuária de droga possuir uma vida
desregrada e engravidar de modo indesejado e/ou irresponsável.
Não são emitidos juízos de valor, mas atenta-se, exclusivamente, à análise da violação
da dignidade da mulher e de sua autonomia individual de optar pela realização da
esterilização, nos termos da Lei n. 9.263/1996. O caso paradigma utilizado é o da Janaina
Aparecida Quirino, porém, não se excluem outras mulheres que foram, eventualmente,
submetidas ao mesmo tratamento.
Nesse sentido, a partir de situações como a narrada acima, percebe-se evidente
violação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, os quais são parte integrante dos
direitos humanos. Estes direitos, por sua vez, “abrangem o exercício da vivência da
sexualidade sem constrangimento, da maternidade voluntária e da contracepção
autodecidida” (LEMOS, 2014, p. 245).
Ademais, é possível traçar um espectro de atuação do controle de natalidade de
margem, que é realizado pelas instituições, mas não é posto como uma política pública,
embora possua reflexos diretamente relacionados com as vivências das populações.
Compreender os seus fundamentos é essencial para entender como o Estado, por meio da
margem, realiza o controle de natalidade.
Nada obstante, decisões como no caso de Janaína demonstram a materialização de
políticas realizas pelo Estado e/ou seus representantes de forma invisível, mas com claras
intenções de modificação demográfica, focalizada na população pobre. Evidencia-se então a
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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prática de violências por governos aos grupos minoritários4 e vulneráveis, como mulheres,
negros, pessoas com deficiência e em situação socioeconômica desfavorável, os outsiders5
que “são sujeitos sem lugar e excluídos do tempo; relegados à margem e ao esquecimento”
(BREPOHL; GONÇALVES; GABARDO, 2018, p. 321-361).
Demonstra-se, nesse sentido, a materialização do preconceito. Como Bobbio aponta
algumas diferenciações, a primeira diz respeito aos individuais e aos coletivos. Os primeiros
são conceituados como superstições e crenças, maldições, que não teriam um impacto
efetivo, diferente dos coletivos que são compartilhados por um grupo social inteiro e
principalmente, a sua periculosidade está no fato de gerar uma distorção na forma como um
grupo julga o outro, conceituando grupos rivais (BOBBIO, 2002, p. 105-106).
Nessa perspectiva é o que se observa no caso apontado anteriormente, a
predominância de julgamentos não racionais sobre corpos femininos, de classes baixas e,
também, em alguns casos, de negras.
O Brasil não possui um caos demográfico ou ausência de recursos que justifique um
controle sob esses parâmetros, e ainda, há uma redução progressiva no número de filhos por
mulher. O processo de declínio da fecundidade, com o destaque a partir dos anos 80, esteve
presente em todas as regiões e estratos sociais, entretanto, essa queda não foi acompanhada
de alterações significativas na situação de pobreza e desigualdade sociais, a concentração de
renda somente se acentuou (BRASIL, 2005).
Entretanto, em 2013 o próprio Ministério da Saúde realizou um relatório informativo
para, dentre outros objetivos, avaliar a aplicação da respectiva política. Constata-se no
relatório que as ações têm sido focadas na saúde reprodutiva da mulher adulta, em específico
no ciclo gravídico-puerperal e à prevenção do câncer de colo de útero e de mama. Ou seja,
há poucas atuações e pesquisas com o objetivo de inserir os homens no processo e, também,
a própria compreensão da saúde sexual em diferentes momentos do ciclo de vida. (BRASIL,
2013, p. 9-10) Há efetivamente a construção de uma política pluralista e não baseada no
preconceito?
É possível vislumbrar duas concepções de “minorias”: a primeira diz respeito ao elemento numérico e
quantitativo, ou seja, é uma minoria (pequena parcela) da população; segunda é a de minorias segundo o
discurso jurídico e algumas concepções políticas, e assim, entendidas também como “minorias sociais”
representariam a parcela da população que é discriminada e possui pouco poder de voz. São exemplos dessas
minorias as mulheres, negros, as pessoas LGBTI, pessoas com deficiência, entre outros. (VIANA, 2016, P.27,28
e 29)
5
Como apontam Marion Brepohl, Marcos Gonçalves e Emerson Gabardo (2018, p. 321-361) esta expressão de
identificação social foi consagrada por Norbert Elias (2000).
4
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
261
O Estado deve buscar catalisar as identidades, de modo a construir por meio das
visões plurais e diversas que se possui uma “identidade coletiva”. Entretanto, quando se
realiza a interpretação constitucional, esta não pode se fundar em argumentos irracionais da
vontade popular hegemônica que impõem a restrição aos direitos fundamentais.
(GABARDO, 2017, p. 66) Ressalta-se que atualmente deve-se considerar também o
movimento dialógico entre governantes e governados, o accoutability, enquanto mecanismo
de controle, o qual ganha força e espaço nas estruturações políticas.6
Verifica-se, ademais, que a conduta do Poder Judiciário atentou contra o próprio
planejamento familiar, o qual exige prévia educação e informação a respeito das opções e
mecanismos de controle de fecundidade (GAMA, 2011, p. 523). A utilização dos métodos e
mecanismos de planejamento familiar deve ocorrer de forma livre, prezando pela autonomia
individual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do presente estudo foi possível analisar a estruturação e desenvolvimento das
políticas populacionais e do controle de natalidade que, em alguns momentos históricos
estavam repletas de conotação ideológica. Notou-se, ainda, que com as transformações
sociais, estruturais e institucionais permitiram o início da transição demográfica, uma vez
que, a partir da queda da taxa de mortalidade, surgiu a necessidade de regulação da
fecundidade.
Disponibilizaram-se, então, métodos contraceptivos e demais ações capazes de
orientar a aludida regulação, os quais buscam facilitar a escolha e utilização de determinado
planejamento familiar, de modo a garantir direitos iguais de constituição, limitação ou
aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
Ademais, constatou-se que referidas ações buscam fortalecer os direitos sexuais e
reprodutivos dos indivíduos e se pautam em ações clínicas, preventivas, educativas, visando
segurança e eficácia do uso de métodos contraceptivos.
Trata-se, portanto, de orientações e não de técnicas impostas compulsoriamente.
Preza-se pela liberdade de escolha dos métodos e o Estado não pode obrigar a sua adoção;
tanto é assim que a esterilização, permitida na Lei do Planejamento Familiar, dispõe que esta
é voluntária.
6
Para o aprofundamento do tema do controle social, consulte: (CABRAL; PIO, 2017, p. 214-239)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
262
Em contrapartida, no caso de Janaina Aparecida Quirino, o que se verificou foi um
verdadeiro atentado discriminatório e violador de sua dignidade enquanto mulher. Julgada
por homens com clara postura controlista e contrária à posição predominante no Brasil
(natalista/neutra), foi submetida a um procedimento de esterilização compulsória, pois já
possuía uma quantidade “expressiva” de filhos, vivia de modo desregrado e fazia uso de
substâncias ilícitas e de álcool. No entanto, ressalta-se que não existe motivo hábil para tolher
a autonomia individual e praticar violências compulsórias em face de uma pessoa
atestadamente capaz.
Destaca-se, por fim, que a solução para o diálogo sobre a questão da natalidade não é
a imposição de um controle e sim, a estruturação de uma política de planejamento familiar
efetiva, já que, na sociedade brasileira a questão da reprodução está permeada pela
desinformação.
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reprodutivos V.4.
265
ESTERILIZAÇÕES FORÇADAS EM MULHERES: UMA ANÁLISE ACERCA DA
(IN)GERÊNCIA DOS CORPOS NO CAMPO BIOPOLÍTICO
Luana Marina dos Santos 1
Bruna Marques da Silva 2
RESUMO
A partir do método hipotético-dedutivo, com levantamento documental, bibliográfico e
estudo de caso, esta pesquisa busca identificar em que medida a prática de esterilização
forçada em mulheres comporta uma dimensão de gestão biopolítica voltada à não aplicação
de dispositivos normativos pelo Estado. O estudo concentra-se, de forma principal, na análise
do caso de Janaína Aparecida Quirino, tanto sob a perspectiva do marco normativo
internacional e interno brasileiro sobre o tema, bem como à luz dos aportes teóricos sobre
poder e biopolítica. A título de resultados, a pesquisa aponta que, por meio da dimensão
biopolítica, o Estado logra êxito em instituir mecanismos de controle que se tornam aptos a
privar determinados grupos de exercerem e gozarem plenamente seus direitos fundamentais
formalmente garantidos.
Palavras-chave: Biopolítica. Direitos humanos. Direitos reprodutivos. Esterilização
forçada.
INTRODUÇÃO
Sob a ótica de Foucault, o poder desenvolvido sobre a vida dos indivíduos no final do
século XVIII, focalizado na intervenção de um controle regulador da população nas gerências
estatais, pode ser traduzido ao que o autor nomina como biopolítica. Por se ocupar da
regulação da vida, dos nascimentos, da mortalidade, da saúde e de outras condições variantes,
a biopolítica se atém propriamente ao que constitui a vida humana. Os aparatos do Estado,
sob esta perspectiva, são notados como próprias instituições de poder, uma vez que
comportam o condão de assegurar o mantimento das relações econômicas de produção,
desenvolvimento e demais garantias funcionais à sociedade e à população.
Entretanto, este mesmo panorama também operou como ferramenta de segregação e
hierarquização social, instituindo relações de dominação e efeitos de hegemonia. Nesse
sentido, o sexo foi configurado como uma circunstância que adquiriu relevante importância
neste “jogo político”, uma vez que passou a ser utilizado como um dos eixos de controle da
1
Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – Unisinos. Bolsista CAPES/PROEX. E-mail: luanamarinads@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2816121103061181.
2
Mestranda em Direito Público pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio
dos Sinos – Unisinos. Bolsista CNPq. Integrante do Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da UNISINOS. Email: bmrqs@outlook.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4384388529123644.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
266
população, estando ativamente presente nos procedimentos reguladores populacionais.
Combinado ao objetivo de disciplinar o corpo, uma das linhas da política do sexo que incidiu
especificamente sobre a mulher representou, dentre suas faces, o sexo no corpo feminino
como uma condição tipicamente orientadora das funções de reprodução.
Discorrer sobre direitos reprodutivos, tendo em conta esse pano de fundo, implica
refletir sobre o fato de que sua operacionalização, no que se refere ao ordenamento jurídico,
não deixa de ser atravessada por encargos históricos de fenômenos culturais, políticos e
sociais. Discorrer, ainda, sobre a esterilização forçada em mulheres – que pode ser
considerada como uma violação aos direitos reprodutivos – acarreta examinar os campos
jurídicos e as normativas que se ocupam da regulação desse método na forma voluntária.
Distintos campos do conhecimento analisam, sob suas próprias lentes, a travessia da
invisibilização feminina à posição de detentora de garantias e direitos específicos. O lugar
comum entre essas perspectivas, entretanto, refere que a subjugação do gênero feminino,
ainda que em menor ou modificado nível, permanece.
Desse modo, a partir da análise do caso de Janaína Aparecida Quirino, tanto sob a
perspectiva do marco normativo internacional e interno brasileiro sobre o tema, bem como à
luz dos aportes teóricos sobre poder e biopolítica, este estudo objetiva verificar se – por uma
iniciativa de uma instituição pública e autorizada por órgão jurídico estatal – a esterilização
considerada forçada ocorrida em Janaína comporta uma dimensão de gestão biopolítica na
(in)aplicação de dispositivos normativos. A pesquisa justifica-se pelo histórico de práticas de
esterilizações forçadas em mulheres em países em vias de desenvolvimento, como o Brasil,
bem como diante da ampla repercussão nacional e internacional sobre o caso questão. O
método utilizado reside no hipotético-dedutivo, com levantamento bibliográfico e
documental sobre os temas, contando com estudo de caso.
Para tanto, a pesquisa divide-se em três momentos. Inicialmente, serão retomados
conceitos sobre o instituto da biopolítica e seus desdobramentos, sob a ótica de Foucault,
bem como da análise contemporânea sobre a biopolítica, sustentada por Agamben. Após,
serão revistados os direitos reprodutivos, a regulação e tutela do método de esterilização
cirúrgica voluntária e a caracterização de esterilizações forçadas em mulheres, na perspectiva
do marco normativo internacional e interno brasileiro. Por fim, a partir da análise do caso de
Janaína Aparecida Quirino, será verificado como a biopolítica pode ser desvelada das
dissonâncias entre a resolução jurídica do caso analisado e a legislação assegurada pelo
âmbito nacional e internacional.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
267
1. A VIDA ENQUANTO FENÔMENO: UMA BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO
BIOPOLÍTICO EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS
O termo “biopolítica”, instituído por Foucault (1999), ao descortinar as relações de
poder3 imbuídas nos mais variados âmbitos sociais, trouxe à luz um poder normalizador que
já não se exercia mais sobre os corpos individuais, mas sobre os corpos-espécie. Na análise
quanto às relações de poder tangenciadas pelas práticas disciplinares, Foucault (1999) mostra
que o Estado procurava atuar vigiando e controlando o cotidiano dos indivíduos, a fim de
otimizar a produção destes e explorar suas capacidades e potencialidades, principalmente
quando voltadas para o acúmulo do capital. Assim, através do desdobramento dessas
verificações, Foucault (1999) aponta que a biopolítica traz, no âmago do conceito, um estágio
de poder que é posterior às práticas disciplinares, ou seja, não mais se alicerça em um período
onde os corpos de uma sociedade eram controlados por meio de instituições como o hospital,
a escola e a prisão. Assim, com a entrada da “biopolítica”, disciplinar as condutas individuais
não seria o suficiente: o necessário estaria no ato de inaugurar um gerenciamento planificado
da vida destas pessoas.
A biopolítica, portanto, concentrada na vida enquanto fenômeno, procura atuar como
um instrumento de gerenciamento de corpos da população como um todo. Se houve uma vez
em que o poder disciplinar se orientava sobreposto à individualização dos corpos, com o
instituto da biopolítica, “[...] os alvos do exercício do poder do Estado passam a ser os efeitos
e processos gerados pela vida em conjunto”. (AYUB, 2015, p. 68). Compreende esclarecer,
neste ponto, que o termo instituído por Foucault – e por tantos outros pensadores – procura
designar a maneira pelo qual o poder tende a governar o mecanismo de vida dos indivíduos,
atentando-se à gestão da saúde, da alimentação, da natalidade, que configuram processos
individuais que passam a ser gerados no seio da população. Estes pequenos fragmentos da
vida política, minuciosamente calculados através de estatísticas globais, são capazes de
permitir que o Estado coloque como passivo o corpo da própria população. Desse modo, não
se trata mais do poder que detém o domínio somente sobre a morte do indivíduo, mas,
3
O conceito de poder utilizado neste estudo é o cunhado por Foucault (1999). Para este, poder é tratado como
uma intersecção, que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida em geral, consolidada através de simples atos
reiterados no próprio cotidiano dos indivíduos. Intercedido à biopolítica, o poder materializa-se mediante a
atuação do biopoder, através de biopoderes locais, que fragmentam e censuram o processo biológico dos seres,
exercido mediante centros de transmissão que se conectam e circulam dentro do próprio seio da população. Não
se trata, portanto, de um poder estagnado, que apenas cria e recria através de comandos de uma única lei e/ou
ser, mas de um poder que circula e transmuta de forma reiterada, a partir de métodos fragmentados e espalhados
por todos os campos da vida humana.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
268
também, de uma gerência que detém o poder da vida, o “fazer viver e deixar morrer”.
Conforme Foucault,
[...] as guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido;
travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são elevadas
à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se
tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e
da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte
de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo,
quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva,
tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram em função
da questão nua e crua da sobrevivência. (FOUCAULT, 2008, p. 302).
Com a instituição da biopolítica, o Estado procurou buscar mecanismos que pudessem
normalizar e regulamentar a população, a fim de otimizar a sua produtividade. Nesse sentido,
criaram-se políticas saneadoras microscópicas, destinadas a produzir uma população por
meio da qual o Estado lograsse êxito em controlar suas riquezas e suas condições de
subsistência, ultrapassando a barreira de garantias e proibições legais, atentando-se,
inclusive, à ordem dos próprios afazeres dos indivíduos. Ocorre que o Estado, por vezes, em
razão desta necessidade de controle, que objetiva principalmente normalizar uma população
na busca de otimizar a sua produtividade, acaba aplicando um controle desmedido, que aliena
o indivíduo da cena política e não lhe assegura direitos fundamentais. (PELBART, 2003).
Com efeito, é possível compreender que a biopolítica, mediante controles de
dominação que procuram, insistentemente, instaurar uma manutenção de vigilância acerca
dos afazeres do homem, acaba refletindo e atuando de forma contrária à própria vida. Em
razão dessa tentativa de conduzir a vida dos cidadãos, mediante táticas baseadas em um
controle desmedido, os pressupostos basilares de uma vida digna são inviabilizados, o que
reflete uma biopolítica com caráter negativo, dada a gravidade que alguns indivíduos acabam
suportando em razão da ausência de determinadas garantias. (FOUCAULT, 2008). Assim,
de acordo com o estudo acerca do instituto da biopolítica, é possível auferir que o controle
do Estado sobre os indivíduos não se dá, unicamente, mediante à prática de discursos e de
ideologias previamente instituídas por determinado partido político, tampouco ocorre
somente em razão do poder de polícia e da aplicação de leis. O controle de que trata a
biopolítica, além de ser a soma de todas estas práticas, também ocorre, principalmente, no
corpo biológico somático do próprio sujeito, fazendo com que o Estado se preocupe com o
avanço de estudos da medicina, na área da saúde e, ainda, com métodos reprodutivos que
visem estabelecer um certo determinismo sob o agir daquele indivíduo. (FOUCAULT, 2008).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
269
Partindo da compreensão de que o instituto da biopolítica opera, muitas vezes, através
de meios obscuros, infiltrando-se discretamente nos comportamentos cotidianos dos
indivíduos, pode-se entender que este instituto, na medida em que busca instaurar uma certa
padronização de comportamentos, regulando previamente os caminhos da vida social, possui,
mesmo que subliminarmente, indícios de um fascismo regular. Isso porque se infiltra
cuidadosamente na vida dos indivíduos, criando e ditando discursos previamente instituídos
pela máquina Estatal, a fim de otimizar e manter o controle de uma população que, por sua
vez, dificilmente consegue desprender-se ou, até mesmo, perceber este controle
governamental, mormente porque se encontra induzida pelas exigências de competitividade
do mercado e de uma sociedade que luta pelo espaço econômico. (AGAMBEN, 2004).
Como resultado de práticas de poder, algumas formas de controle exacerbadas deixam
de priorizar garantias e direitos fundamentais, ceifando liberdades através de jogos escusos
que impedem a percepção direta de seus subordinados. A biopolítica, neste ponto, inverteu
relativamente sua definição primária. Não se trata mais, unicamente, de uma política voltada
ao “deixar viver”, mas também de uma política voltada ao “fazer morrer”, pois os indivíduos
acabam sendo vistos, unicamente, como máquinas capazes de produzir riquezas, e não como
sujeitos dotados de liberdades e garantias individuais. (WERMUTH; SANTOS, 2017).
Muito embora a biopolítica contribua para o aumento da expectativa da vida humana,
é cediço afirmar que o instituto mudou a perspectiva do modo de fazer política, por acarretar
a emergência de mudanças estruturais que engessam a vida pública dos homens, no que se
refere ao seu aparelho de produção, utilizando-se de uma série de operações voltadas a extrair
e dominar os corpos destes indivíduos, para, finalmente, adestrá-los e, consequentemente,
exclui-los e individualizá-los. A partir dessa compreensão, resta possível visualizar que a
faceta reguladora da biopolítica, na contemporaneidade, instrumentaliza a vida como objeto
natural, quando esta se mostra útil para os meios de produção, e a descarta quando não
cumpre seu papel social, evidenciando, neste viés, que a decisão sobre o valor da vida não é
apenas pressuposto de estados totalitários, mas que também se faz presente, mesmo que de
maneira indireta, em estados democráticos. Desse modo, cabe salientar que:
[...] o totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a
instauração por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também
de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um
estado de emergência permanente (ainda que, eventualmente, não
declarado), tornou-se uma das práticas essenciais dos estados
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
270
contemporâneos, inclusive dos chamados democráticos. (AGAMBEN,
2004, p. 13)
Não é uma tarefa fácil analisar questões referentes à liberdade em um contexto de
controle governamental, sobretudo porque, mesmo que de maneira indireta e sutil, o controle
sempre está lá, exercendo sua autoridade e sua regulamentação sobre os indivíduos. Entender
que a necessidade de controle do Estado está latente e buscando, cada vez mais, gerenciar os
afazeres da vida humana, é pressuposto inicial para entender que a vida humana, em um
contexto biopolítico, se torna, por vezes, descartável aos olhos da dominação Estatal.
(SCHMITT, 2015). Nesta ótica, é necessário identificar que nem todo indivíduo é capaz de
se inserir na vida pública, ou seja, nem todo cidadão, em uma sociedade contemporânea,
dinâmica e pluralista, dotada de vontades, de cores e de desejos multifacetados, consegue se
adequar ao contexto biopolítico operacionalizado pelo mercado de capital. O sistema, que
em um primeiro momento foi visto como uma espécie de proteção aos interesses do
indivíduo, atualmente também pode ser identificado como um sistema de aniquilamento, uma
vez que, de certa forma, acaba permitindo a eliminação de categorias que, por qualquer
motivo, acabam não se integrando ao sistema político adotado.
As estratégias de regulamentação do corpo social inseridas em um contexto
biopolítico não são capazes de se adequar às vontades daqueles povos que resistem em
assumir uma vida subordinada aos controles de determinada governabilidade. O Estado, com
tamanho poder de controle e governança, é capaz de inclinar a seleção de quem terá mais
chances de viver em um contexto institucionalizado, baseando sua escolha em fatores como
cor, raça, poder aquisitivo e inserção do mercado econômico, ditando regras e preceitos
particularmente definidos. A legitimidade de uma lei, em um Estado biopolítico, acaba sendo
facilmente adulterada entre determinados membros de uma sociedade. Para certos grupos,
não inseridos diretamente no contexto biopolítico, algumas medidas acabam sendo
facilmente flexibilizadas, de modo que aquilo que fora previamente pactuado, no que diz
respeito a direitos e garantias fundamentais, não lhes seja garantido, pelo fato de que o poder
instituído cria e recria sua própria forma de elaboração e aplicação de leis em relação àqueles
sujeitos que se encontram excluídos da vida pública. (AGAMBEN, 2004). Compreender os
contornos da biopolítica e a perspectiva em que a estrutura social está inserida é o primeiro
passo para entender que as leis, em um contexto biopolítico, poder ter vigência e
aplicabilidade particularmente definidas.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
271
2. A ESTERILIZAÇÃO CIRÚRGICA EM MULHERES NAS NORMATIVAS
INTERNA E INTERNACIONAL: ENTRE GARANTIAS E (IN)EFICÁCIAS
Tanto os direitos sexuais quanto os direitos reprodutivos concentram garantias que
dizem respeito ao exercício e vivência sexual do ser humano, bem como de sua capacidade
reprodutiva. Ainda que não plenamente dissociáveis, mas complementares, Ramos (2018)
refere que os direitos sexuais e reprodutivos se diferenciam, principalmente, quanto ao
elemento cerne protegido: “[...] os direitos sexuais são mais amplos e não estão sempre
identificados com a reprodução humana (nem todo o ato sexual visa procriação), e sim com
a vida com prazer”. (RAMOS, 2018, p. 900). Entretanto, para o autor, ambos os direitos
assemelham-se em características, possuindo: a) dimensão positiva, que versa sobre a esfera
da autonomia dos indivíduos; b) dimensão negativa, pautada na proibição da violência e
discriminação em relação à sexualidade, orientação sexual e gênero; c) proteção direta, pela
normativa regulatória tipificada; e d) proteção indireta, por interpretação de forma ampliada
de direitos como direito à igualdade ou direito à saúde, que estão dispostos genericamente.
(RAMOS, 2018).
Nas palavras de Ramos (2018, p. 900), os direitos reprodutivos abrangem “[...] o
direito de exercer a reprodução, sem sofrer discriminação, temor ou violência [...]”; o direito
de acesso à informação a respeito de métodos, meios e técnicas contraceptivas; e, ainda, o
direito de escolher livremente e de modo informado sobre ter ou não ter filhos e sobre as
circunstâncias que envolveriam esta opção. Nesse sentido, é possível aduzir que a
esterilização cirúrgica está concentrada nos direitos reprodutivos, ainda que, possivelmente,
encontre respaldo nos direitos sexuais4. Lima afirma, com sustento em Raposo, que os
direitos reprodutivos conectam as temáticas referentes ao “[...] direito ao aborto legal e o
direito a tratamento de fertilidade, o direito a uma saúde reprodutiva de qualidade e o direito
ao acesso a métodos contraceptivos, o direito de realizar procedimento de esterilização,
dentre outros”. (RAPOSO apud LIMA, 2014, p. 335).
Segundo Correa e Ávila, o termo “direitos reprodutivos” foi consolidado na
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994,
tendo sido tratado juntamente com o que se denominou saúde reprodutiva. A associação que
foi realizada entre o direito à saúde e os direitos reprodutivos culminou na categoria de saúde
reprodutiva, que para Ramos (2018, p. 902) corresponde a “[...] um estado completo de bemestar físico, mental e social e não apenas como a simples ausência de doença ou enfermidade,
4
A fundamentação quanto aos conceitos de direitos sexuais e reprodutivos não comporta o objeto principal
deste estudo.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
272
em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e suas funções e processos”. No
mesmo paralelo, a Recomendação Geral nº 14, de 2000, elaborada pelo Comitê sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, refere, de acordo com Oliveira (2010)
e no sentido do que aduz a Organização Mundial da Saúde, que o direito à saúde também
abrange que o Estado tome medidas efetivas para implementar à saúde propriamente dita,
ofereça informações quanto à saúde propriamente dita, quanto “[...] não ser submetido a
experimentos médicos sem consentimento nem à esterilização forçada”. (OLIVEIRA, 2010,
p. 94).
Além disso, a nomenclatura “direitos reprodutivos” voltou a ser reiterada pela IV
Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas, realizada em Pequim, em 1995
(CORREA; ÁVILA, 2003), que consagrou a dimensão dos direitos humanos das mulheres,
em especial, os direitos sexuais e reprodutivos. Correa e Ávila, nesse sentido, não deixam de
mencionar a importância do movimento feminista contemporâneo nos desdobramentos dos
direitos reprodutivos e sexuais e na luta para traduzi-los aos sistemas jurídicos. (COSTA;
ÁVILA, 2003). Segundo Ramos, os direitos sexuais e reprodutivos são um marco para os
direitos das mulheres, que incluem “[...] os seus direitos a ter controle sobre as questões
relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente
a respeito dessas questões, livre de coerções, discriminação e violência [...]”. (RAMOS,
2018, p. 902). O procedimento de esterilização cirúrgica, portanto, sedimentado no âmbito
dos direitos reprodutivos, é atravessado pelos direitos humanos: à vida; integridade pessoal
e tratamento humano; liberdade de expressão, principalmente no âmbito de acesso à
informação; proteção à família; igualdade e não discriminação. (ORGANIZACIÓN DE LOS
ESTADOS AMERICANOS, 2011).
No âmbito internacional, o Brasil, além de estar submetido ao Sistema Global (ONU)
e ser signatário de diversos tratados internacionais além do Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos5, está igualmente vinculado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos
(OEA)6. Como país originário da OEA, o Brasil ratificou os dois principais instrumentos
normativos do sistema interamericano: a Declaração Americana de Direitos e Deveres do
Homem e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica),
5
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: Decreto Legislativo nº 226/1991; Protocolo Facultativo ao
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: Decreto Legislativo nº 311/2009; Convenção sobre a
eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher: Decreto nº 4.377/2002, entre outros.
6
Este sistema regional, por estar limitado à proteção e garantia dos direitos humanos nos espaço-geográfico
onde o Brasil está inserido, apresenta maior eficácia na promoção e no olhar atento às realidades que assolam
os estados-membros americanos. Desse modo, o marco normativo internacional que será analisado será o
vinculado ao sistema interamericano de direitos humanos.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
273
este último, na condição de tratado internacional, vincula juridicamente o Brasil à jurisdição
internacional, e foi integrado à legislação nacional por meio do Decreto nº 678/1992. Através
da Convenção Americana de Direitos Humanos, o direito à vida (art. 4º) e a integridade
pessoal (art. 5º) abrangem a necessidade de proteção à saúde a todos os indivíduos por parte
do Estado. Já o direito à liberdade de expressão (art. 13), que comporta o direito de expressar,
buscar e receber informações, é o direito que claramente obriga o Estado a difundir
informações sobre a saúde sexual e reprodutiva, e, uma vez não materializado de forma eficaz
a todos os indivíduos, pode constituir violação de outros direitos como a igualdade (art. 24),
não discriminação (art. 1º e 24) e proteção à família (art. 17). (ORGANIZACIÓN DE LOS
ESTADOS AMERICANOS, 2011; ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,
2016).
Outra normativa importante à matéria dos direitos reprodutivos é a Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de
Belém do Pará), principalmente no tocante aos artigos 3º, 4º, 7º, 8º e 9º. Da mesma forma,
foi incorporada à legislação nacional, através do Decreto nº 1.973/1996. Segundo a Comissão
Interamericana de Direito Humanos e de acordo com o texto normativo da referida
Convenção, a violência contra a mulher também pode ser materializada diante da ausência
de informação quanto à prática de uma esterilização que foi realizada sem consentimento,
juntamente com todas as consequências físicas e psicológicas. (ORGANIZACIÓN DE LOS
ESTADOS AMERICANOS, 2011). Além disso, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, no julgamento do caso I.V. Vs. Bolívia. Exceções Preliminares, Mérito,
Reparações e Custas. Sentença de 30 de novembro de 2016. Série C Nº 329, argumentou que
a ocorrência de esterilizações forçadas constitui uma violação expressa ao direito da mulher
de viver livre de toda a forma de violência, disposto no artigo 7º Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).
(ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2016).
A questão da debilidade informacional é amplamente registrada pelo Sistema
Interamericano de Direitos Humanos. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, as mulheres representam a parcela da população mais afetada pelos obstáculos que
compreendem os direitos reprodutivos. Dada as suas vulnerabilidades, mulheres pobres,
indígenas e/ou afrodescendentes, ou que habitam zonas rurais, migrantes e de exclusão social
são ainda mais atingidas. A violação de direitos pode ser tão considerável, no que tange à
discriminação por gênero, e, principalmente, ao acesso à informação, que uma das
consequências deste contexto é a própria esterilização praticada sem o devido consentimento.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
274
Diante da debilidade informacional, frágil condição social, e, em alguns casos, de recursos
que viciam ou dificultam a manifestação livre de vontade, algumas mulheres são impelidas
a aderir à esterilização. A Comissão refere, ainda, que a necessidade de que o Estado forneça
ou garanta as informações quanto à saúde reprodutiva também abarca a responsabilidade de
que as decisões tomadas pelas mulheres sejam livres de toda e qualquer forma de coerção,
principalmente pelo fato de que os métodos de esterilização, tanto feminina quanto
masculina, são considerados pela Organização Mundial da Saúde como os únicos
permanentes. Assim, caso a esterilização ocorra sem o consentimento do indivíduo
submetido, o Estado pode vir a ser responsabilizado perante à jurisdição internacional.
(ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS, 2011; ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS AMERICANOS, 2016).
Vale esclarecer que, no que tange ao consentimento à esterilização cirúrgica de
mulheres, ainda segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o julgamento do
caso I.V. Vs. Bolívia. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 30
de novembro de 2016. Série C Nº 329 ainda enfatizou que este deve contar com, basicamente,
dois elementos: a) caráter prévio, ou seja, sempre ser concedido antes de qualquer ato médico.
As exceções, que se concentram nos casos em que o consentimento não possa ser realizado
pela pessoa, nas circunstâncias de urgência ou emergência de atuação médica ou grave dano
contra à vida do paciente, não se aplicam à esterilização de laqueadura tubária, já que o
propósito desta intervenção cirúrgica é, tão somente, prevenir uma futura gravidez; b)
consentimento livre, voluntário, pessoal da mulher, ausentes mecanismos de coerção,
pressão, ameaça e desinformação. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,
2016). Outro ponto extremamente crucial é que o consentimento, para que seja considerado
livre, não pode ser solicitado à mulher quando esta “[...] não se encontre em condições de
tomar uma decisão plenamente informada, por encontrar-se em situações de estresse e
vulnerabilidade, entre outros, como durante ou imediatamente depois do parto ou de uma
cesárea”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2016, p. 149).
No que que diz respeito à normativa do direito interno, além dos mesmos direitos
humanos estarem na Constituição Federal como direitos fundamentais, o método da
esterilização cirúrgica em mulheres tem tipificação expressa na Lei nº 9.263 de 1996,
regulando o §7º do art. 226 da Constituição Federal, que versa sobre o planejamento familiar.
(BRASIL. 1988). Da leitura da redação do art. 10 da referida Lei, é possível verificar que a
esterilização voluntária é tratada como exceção no ordenamento jurídico, já que o dispositivo
legal elenca taxativamente as hipóteses em que a intervenção cirúrgica é assegurada. Dentre
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
275
os requisitos, o inciso I e II referem quem pode se submeter à esterilização e as circunstâncias
em que podem ocorrer. Registra-se, ainda, que no caso de mulheres na vigência da sociedade
conjugal, o consentimento expresso deve ser de ambos, conforme disposição do art. 10 §5º
da Lei nº 9.263/96, que regulamenta o Planejamento Familiar. A Corte, entretanto,
consignou, que como a esterilização feminina diz respeito à decisão da mulher de ter filhos
ou não, “[...] apenas a paciente está autorizada a oferecer o consentimento, e não terceiros,
de modo que não se deverá solicitar a autorização do companheiro/marido, nem de nenhuma
outra pessoa para a realização de uma esterilização;” (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS
AMERICANOS, 2016, p. 149).
Contudo, para o fim deste estudo, cabe salientar que a lei impõe, no §2º e § 3º do art.
10, que: a) a esterilização cirúrgica não ocorrerá, na mulher, durante os períodos de parto ou
aborto, “exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores”;
b) a manifestação de vontade não será considerada se expressa durante “ocorrência de
alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados
emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente.” Ademais, a
realização da esterilização cirúrgica, em desacordo com os requisitos do art. 10, implica em
sanção penal de reclusão, de acordo com o art. 15 da Lei supracitada e § único. (BRASIL,
1996). Verifica-se, neste ponto, que ambas as circunstâncias são dotadas de relevância para
auferir, principalmente, o consentimento voluntário e livre da mulher. Todavia, se a mera
tipificação formal da norma não implica necessariamente sua materialidade, que possíveis
contornos se somam a essa problemática?
3.
CASO
JANAÍNA
APARECIDA
QUIRINO:
UMA
ANÁLISE
SOB
A
PERSPECTIVA NEGATIVA DA GESTÃO BIOPOLÍTICA
Os posicionamentos internacional e nacional quanto à esterilização cirúrgica em
mulheres, principalmente no que tange à realização do procedimento sem consentimento,
fazem-se primordiais para análise de recente caso ocorrido no Brasil, o qual ganhou
repercussão mundial dada suas peculiaridades7. Através de uma Ação Civil Pública ajuizada
pelo Ministério Público em face do Município de Mococa/SP e Janaína Aparecida Quirino,
a ré foi submetida a esterilização voluntária sem consentimento válido, realizada logo após
o parto de seu 8º filho e previamente ao julgamento de recurso interposto pelo Município de
Mococa/SP, que, por sua vez, obteve êxito em reformar na íntegra a sentença que concedia a
7
A Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou-se publicamente sobre o caso, afirmando que, o caso
em apreço, tratava-se de esterilização forçada. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2018).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
276
ocorrência do procedimento8. Dentre as razões postulatórias, o Ministério Público
argumentou que Janaína apresentava quadro de dependência química; demonstrava recusa
em aderir aos tratamentos disponibilizados pelo Estado; não dispunha de condições para arcar
com o sustento de outros filhos, além dos que já possuía; não possuía condições para avaliar
as consequências de outra gestação; e tinha sido orientada pelos serviços de saúde e
assistência social quanto ao procedimento e seus desdobramentos, já tendo expressado,
algumas vezes, aquiescência. (SÃO PAULO, 2018a).
Da análise do feito, é possível verificar que o processo não contou com nenhuma
manifestação de Janaína, a fim de averiguar o seu consentimento quanto à realização da
laqueadura tubária. O “consentimento” que foi levado em consideração para determinar a
esterilização – irreversível, conforme já referido – foi um documento de aquiescência,
firmada por Janaína, em 2015, juntado pelo Ministério Público. (SÃO PAULO, 2018a). Ora,
com base no contexto e fatores que envolviam Janaína, descritos pela própria instituição
pública na inicial, seria viável considerar tal documento como um consentimento voluntário
válido, nos termos das orientações dos órgãos internacionais e dos requisitos da própria
legislação brasileira? Segundo o acórdão proferido pela 8ª Câmara, há dúvida razoável
quanto ao consentimento da requerida, haja vista que, segundo o que se extrai dos autos,
Janaína não possuía condições físicas e/ou psíquicas para expressar sua volição com
segurança. (SÃO PAULO, 2018b). Ademais, mesmo que houvesse consentimento válido, de
acordo com a legislação, a laqueadura tubária não poderia ter sido realizada no momento do
parto de Janaína, já que um dos requisitos contidos na legislação brasileira e nas orientações
internacionais é que a laqueadura não seja realizada no período puerperal e nem no mesmo
no próprio ato de partos normais e/ou cesárea.
Tão somente da leitura da sustentação do Ministério Público já se verifica a
insubsistência da inicial no que se refere à posição internacional e às disposições legais
brasileiras sobre o procedimento de esterilização feminina. O próprio acórdão da 8ª Câmara
de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo sustentou que petição inicial “[...] não
tem condescendência constitucional, que institui regime democrático e de direito [...]”,
fundado na dignidade humana e no respeito à liberdade individual. Somado a isso, a decisão
de primeiro grau, da mesma forma, não estava em conformidade com o ordenamento jurídico.
8
O acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao recurso interposto pelo Município de
Mococa/SP. Além de ter acolhido a preliminar de ilegitimidade passiva, considerando ausência de interesse
processual do Ministério Público, a decisão sustentou que o pedido era ilícito e que houve cerceamento de
defesa. (SÃO PAULO, 2017b).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
277
E, através do exercício do duplo grau de jurisdição, foi reformada na totalidade – ainda que
a destempo –. Ademais, para a 8ª Turma, a decisão do juízo, em realidade, deferiu medida
que se caracteriza como esterilização eugênica, já que “[...] a esterilização pedida nos autos
não é a de natalidade, pois não tem caráter geral e impessoal, mas considera as qualidades
subjetivas da paciente de aspectos financeiros, social, educacional, e eventuais vícios”. O
acórdão registrou, ainda, que o caso compõe um preconceito social e político contra
determinada parcela vulnerável da população. (SÃO PAULO, 2018b, p. 1). Longe de estar
dentro dos valores principiológicos das normativas internacional e interna – e das próprias
tipificações legais expressas – o caso Janaína Quirino aponta uma aproximação, ainda que
subliminarmente, a outros vieses.
Conforme já referido, na dimensão biopolítica, as práticas reguladoras do controle
dos corpos abarcaram a “política do sexo”, que, dentre suas linhas, agrega a “histerização”
da mulher. Segundo Foucault (1998, p. 87-88), essa esfera “[…] exigió una medicalización
minuciosa de su cuerpo y su sexo, se llevó a cabo en nombre de la responsabilidad que les
cabría respecto de la salud de sus hijos, de la solidez de la institución familiar y de la
salvación de la sociedad”. Mais que isso, a definição do sexo no âmbito do controle regulador
o abrange, inclusive, como algo que, por si, constitui o corpo da mulher, e que se orienta
inteiramente “[…] a las funciones de reproducción y perturbándolo sin cesar en virtud de los
efectos de esas mismas funciones”. (FOUCAULT, 1998, p. 87-88). Assim sendo, verifica-se
que, além das demais circunstâncias que caracterizam a atuação da biopolítica já referidas,
esse instituto concentra, no campo das práticas reguladoras, um fator que recai
especificamente tanto sobre a mulher quanto sobre a configuração do funcionamento de seu
sexo, já que o atrela, primordialmente, ao sistema reprodutivo (FOUCAULT, 1998),
resultando uma produção de modos de pensar e agir sobre estes pontos específicos.
Ainda que adstrito ao direito posto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por
exemplo, reconhece que a liberdade e autonomia das mulheres conta com uma limitação
histórica que muito é fundada em razão de estereótipos de gênero, e em relação à matéria
reprodutiva e sexual isso acentua-se: “[...] as mulheres são vistas como o ente reprodutivo
por excelência”, diante da outorga social, político e cultural de predomínio masculino na
tomada decisões, inclusive quanto a seus próprios corpos. (ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS AMERICANOS, 2016). Conforme argumenta Meyer (2004, p. 95) “[...] as
mulheres seguem sendo posicionadas e interpeladas, nessa área, prioritariamente, como
mães, parceiras conjugais e como “reprodutoras” e “nutrizes” biológicas e culturais da
espécie”. De certa forma, poder-se-ia dizer que os demais atributos sociais que envolvem a
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
278
situação social e política de Janaína Quirino não correspondiam adequadamente a essa matriz
classificatória, e, mais que isso, sua função reprodutora não parecia estar moldada à pretensão
das práticas reguladoras, o que, num contexto biopolítico, poderia ensejar maiores
incidências.
Se o Estado biopolítico comporta a capacidade de atuar seletivamente, e se a
legitimidade das normas legais pode sofrer alterações em relação a determinados membros
da sociedade, com base em fatores sociais específicos, é possível verificar que as mulheres
que não “pertencem” ao contexto institucional de governamentalidade, conforme já
sustentado, encontram-se mais distantes da extensão da aplicabilidade normativa assegurada.
(AGAMBEN, 2004). Além disso, aproveitando a própria fundamentação do Tribunal de
Justiça de São Paulo sobre o caso – que o aproximou dos mecanismos de esterilização
eugênica – vale salientar que, nas palavras de Kern (2015), com sustento em Foucault, a
eugenia pode ser caracterizada como uma das manifestações do biopoder – poder que está
adstrito ao instituto da biopolítica –, e, mais que isso, como uma estratégia biopolítica que
recaía sobre a população. Como eugenia negativa, o autor sustenta que essa dimensão “[...]
visava impedir a reprodução de indivíduos e grupos considerados degenerados e, portanto,
indesejados”. (KERN, 2015, p. 13). Por fim, registra-se as palavras da própria Janaína, em
entrevista concedida ao Jornal da EPTV, exibido em 22 de junho de 2018, ao ser questionada
sobre o seu consentimento firmado no único documento que sustentou a determinação da
realização da laqueadura tubária, e permanente impossibilidade de reproduzir: “[...] eu não
sei ler direito, aí eu assinei, só que ele não leu, não mandou eu ler e não mandou ninguém
ler. Pode ser esse papel que ele levou assinado que eu tinha aceitado a laqueadura, mas eu
não aceitei”. (GLOBO PLAY, 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises realizadas permitiram refletir que, por meio da dimensão biopolítica, o
Estado, ao instituir mecanismos de controle de maneira indireta, oculta e subversiva, pode
acabar relativizando o protagonismo da garantia formal prevista nos ordenamentos legais,
privando determinados grupos de exercerem e gozarem plenamente de garantias e direitos
fundamentais.
Considerando as análises realizadas, verificou-se que o caso de Janaína Aparecida
Quirino se tornou um exemplo prático de uma ingerência dos corpos no cerne da biopolítica
estatal. O poder do Estado exerceu-se de modo antagônico às premissas legais, produzindo
efeitos de deformidades na garantia e eficácia de direitos. Ainda, é possível verificar que este
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
279
mesmo poder, exercido sobre o corpo da mulher, traduziu uma estratégia biopolítica, por
meio da qual o valor da vida humana foi medido levando em consideração características
individuais do sujeito, relativizando seus direitos políticos e o próprio exercício de livre
arbítrio, válido e seguro.
Tem-se, nesta perspectiva, uma vida que passa a ser, de um lado, politicamente
irrelevante no sentido da própria autonomia, e, de outro, relevante para a atuação dos
mecanismos de controle: ainda que tacitamente, a regulação da população pairou sobre
Janaína, principalmente em relação à sua (não)reprodução. É imperioso que se atente aos
novos contornos de uma biopolítica que a remonta discriminadora, que coloca sob suspeita
extremos de excesso e de individualização, a fim de que a consciência sobre controles que
medem e desmedem o valor da vida humana seja possível.
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282
HOMICÍDIO CONJUGAL MASCULINO E FEMINICÍDIO ÍNTIMO: DIÁLOGOS
EPISTEMOLÓGICOS SOBRE AS VIOLÊNCIAS LETAIS NA INTIMIDADE
João Fillipe Horr 1
Bruna Adames2
Lucienne Martins Borges3
RESUMO
Quando comparado às outras formas letais de violência, o homicídio conjugal se diferencia
por ocorrer numa relação em que houve investimentos afetivos, culturalmente localizados e
singularmente vividos, entre autor e vítima. Assim, este capítulo trata-se de uma revisão
narrativa de literatura que teve como objetivo debater a produção científica das violências
letais na conjugalidade, particularmente os resultados provenientes das pesquisas sobre os
homicídios conjugais, nas suas possíveis relações com as críticas das teorias feministas e da
categoria de análise do feminicídio íntimo. Do ponto de vista das pesquisas, identificou-se a
pluralidade de categorias de análise com relação a violência letal na intimidade, com
diferentes matrizes epistemológicas. Dos estudos sobre homicídios conjugais, há consenso
sobre a importância de variáveis sociodemográficas, psicossociais e de indícios precursores
ao ato na compreensão do fenômeno, com diferenças nas vertentes preditivas de fatores de
risco e da compreensão clínica da passagem ao ato. As principais críticas apontadas pelas
teorias feministas são discutidas, principalmente quanto a implicação política na construção
das pesquisas, no reconhecimento do patriarcado como dimensão cultural e o psicologismo
de teorias sustentadas no saber clínico. Argumenta-se que a noção de virilidade e sua relação
com a masculinidade, nos homicídios conjugais cometidos por homens em relações
heterossexuais, expressa a continuidade cultural do patriarcado, como forma de negociação
pautada na posse e controle nas relações íntimas. As possíveis relações entre essas
perspectivas, nas demarcações epistemológicas, são debatidas no campo das tomadas de
decisão e prevenção em políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher.
Palavras-chave: Homicídio conjugal masculino. Feminicídio Íntimo. Violências letais na
intimidade. Políticas Públicas.
1
Psicólogo. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC (2015). Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC E-mail: jf.horr@gmail.com. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7233120878512131.
2
Psicóloga. Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário de Brusque- UNIFEBE (2017). Mestranda em
Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
Bolsista
CAPES.
E-mail:
brunaadames.psicologia@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/4058230467438695.
3
Psicóloga. Docente da École de travail social et de criminologie (Université Laval) e da Universidade Federal
de Santa Catarina – UFSC. Pós-Doutorado. Université du Québec à Montréal, uqam, Canadá (2015). Email:
lucienne.borges@ufsc.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3388192539897247.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
283
INTRODUÇÃO
Este capítulo se propõe a debater a produção científica das violências letais que
ocorrem nas relações íntimas, particularmente os resultados provenientes das pesquisas sobre
homicídios nos contextos norte-americano e europeu, nas suas possíveis relações com os
estudos feministas e da categoria de análise do feminicídio íntimo. O debate terminológico
nas violências letais contra as mulheres é um problema contemporâneo, com implicações
teóricas, metodológicas e desdobramentos na aplicabilidade das intervenções psicossociais
com enfoques preventivos (ELLIS; STUCKLESS; SMITH, 2015). Neste capítulo,
pretendemos por meio de uma revisão narrativa de literatura, apresentar alguns dos principais
resultados e reflexões provenientes das pesquisas sobre fatores associados e variáveis
predominantes nas situações de homicídios conjugais. A revisão narrativa assume uma
posição epistemológica diante de determinada problemática, ao guiar a coleta de materiais e
as análises de acordo com a pertinência em produzir reflexões para a pergunta de pesquisa
(VOSGERAU; ROMANOWSKI, 2014). Nossa problemática principal é estabelecer as
possíveis relações entre territórios epistemológicos distintos, isto é, os estudos sobre
homicídios e as reflexões das teorias feministas acerca do feminicídio, com objetivo de
produzir tensionamentos e diálogos no campo da pesquisa e aplicação de políticas públicas.
Para isso, consideramos as referências principais utilizadas nos estudos de homicídios
conjugais localizados no contexto norte-americano (estadunidense e canadense) e francês,
sustentando nossa análise na reflexão sobre algumas críticas pertinentes das teorias
feministas sobre esta categoria de análise, a saber: a) de ordem terminológica e conceitual
em relação a ausência da motivação e compreensão de gênero no conceito de “homicídio”;
b) de compreensão científica, em relação a tendência psicologista das pesquisas em produzir
resultados que justificam o autor do crime como um sujeito mentalmente adoecido e mais
precisamente, tomado por uma violenta emoção ou paixão; e c) de compreensão política e
aplicabilidade na prevenção dos atos letais, especialmente devido as mudanças jurídicas que
tornam o feminicídio como crime hediondo no contexto brasileiro.
1. DESENVOLVIMENTO
1.1 A categoria ‘Homicídio Conjugal’: delimitação do fenômeno, sua prevalência e
impactos psicossociais
A violência letal contra um cônjuge ou ex-cônjuge é considerada como um gesto
extremo e destrutivo em relação ao outro dentro das relações íntimas e uma grave violação
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
284
dos Direitos Humanos (ALVAZZI DEL FRATE, 2011; STOCK et al., 2013). Estima-se que
um a cada sete homicídios no mundo seja cometido por alguém com quem se estabeleceu
uma relação íntima, somado aos assassinatos em guerras, narcotráfico e acidentes (STOCKL
et al., 2013).
Quando comparado às outras formas letais de violência, o homicídio conjugal se
diferencia por ocorrer numa relação em que houve investimentos afetivos e sexuais,
culturalmente localizados e singularmente vividos, entre autor e vítima. No campo científico,
é um conceito que expressa diferentes territórios epistemológicos, como: o homicídio entre
parceiros íntimos (concepção dos estudos epidemiológicos, principalmente de origem norteamericana); homicídio conjugal (concepção do paradigma da passagem ao ato na psiquiatria
forense, proveniente dos estudos francófonos); feminicídio íntimo (concepção proveniente
dos estudos feministas, específico para o campo das relações íntimas). Esses conceitos, ao
expressarem diferentes epistemologias, centralizam suas análises em variáveis distintas do
fenômeno (a relação entre autor e vítima, por exemplo, ou fatores relevantes da saúde mental
de autores em pelo menos um ano antes), ou do próprio eixo de compreensão do mesmo (na
compreensão feminista, como uma escalonada final das múltiplas violências legitimadas pelo
sistema patriarcal, ou enfoques de fatores de risco disparadores do ato homicida, como na
epidemiologia norte-americana).
Por exemplo, por meio da categoria ‘homicídio conjugal’, vamos agrupar diferentes
tipologias de conjugalidade, como as relações íntimas heterossexuais ou homoafetivas. Mas
quando analisamos as prevalências, é possível identificar que mulheres possuem seis vezes
mais chances de serem assassinadas por seus parceiros e ex-parceiros em relações
heterossexuais, quando comparadas a relações íntimas homoafetivas (STOCKL et al., 2013).
Ao aprofundar as análises, os riscos de atuação homicida possuem diferenças entre o gênero
dos autores e na motivação da violência letal (MARTINS-BORGES, 2011). Em relações
heterossexuais, a motivação de homens que matam suas parceiras é frequentemente
relacionada aos ciúmes excessivos, o rompimento da relação por parte da parceira e a traição,
real ou imaginada, enquanto que mulheres matam seus parceiros quando experimentam a
ameaça contra si e aos filhos (MARTINS-BORGES, 2011).
Mapeamentos realizados no Canadá, nos Estados Unidos e na Inglaterra, no início
dos anos 2000, indicaram que a proporção de pelo menos 30% das mortes de mulheres foi
cometida pelos seus parceiros ou ex-parceiros, o que garantiu legitimidade na construção de
pesquisas e políticas que focam na avaliação de risco como prevenção do gesto homicida
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
285
(BOURGET; GAGNÉ, 2012). As pesquisas também destacam as diferenças entre os
continentes em relação à prevalência de homicídios por parceiros ou ex-parceiros em relação
às mulheres, sendo a Ásia com as maiores taxas (58%), seguido por países de alta renda4
(41,2%) e as Américas (40,5%) (STOCKL et al., 2013). Já para os homens enquanto vítimas,
apesar de números inferiores quando comparados aos homicídios de mulheres, os países de
alta renda (6%), região africana (4,1%) e os países de média de renda da Europa (3,6%)
representam as maiores taxas.
Outro elemento pertinente são as prevalências dentro dos países, com números que
diferem de acordo com a regionalidade e pelos próprios sistemas de notificação da violência
letal, o que exige a necessidade de estudos mais aprofundados (STOCKL et al., 2013). Um
dos aspectos regionais discutidos na produção científica são as diferenças entre áreas urbanas
e rurais, como demonstrou Jennings e Piquero (2008) em relação ao aumento do número de
homicídios conjugais cometidos entre 1980 e 1999 nos estados rurais dos Estados Unidos
quando comparado aos centros urbanos. Argumenta-se que a falta de acesso a serviços
socioassistenciais relacionados ao atendimento de pessoas em situação de violência conjugal
e a falta de envolvimento comunitário na dinâmica da violência seriam fatores de risco nesses
cenários.
Ainda sobre a prevalência dos homicídios conjugais cometidos por homens, destacase a associação do fenômeno com as atuações do homicídio seguido de suicídio (BOURGET;
GAGNÉ, 2012). Matthews e colaboradores (2008) investigaram, numa amostra de 3793
homicídios conjugais na África do Sul, uma representatividade de 19,4% de casos seguidos
de suicídio em até três anos depois do homicídio, totalizando 261 casos. Liem e Roberts
(2009), ao investigar uma amostra de 341 casos de homicídios conjugais cometidos por
homens entre 1991 e 2000 nos Países Baixos, identificou que 44 homens tentaram contra a
própria vida após o ato, sendo 30 suicídios consumados. Dentro da violência letal na
intimidade, os estudos, principalmente em países europeus, indicam que os casos de
homicídios seguidos de suicídio podem acontecer diante da ruptura do relacionamento, mas
também pactuados, principalmente em casais mais velhos e com problemas de saúde
(DOBASH; DOBASH, 2015; LIEM; ROBERTS, 2009). Estes eventos trágicos de atuação
4
De acordo com os autores, os países de alta renda foram selecionados a partir da lista no Banco Mundial,
sendo eles: Andorra, Austrália, Áustria, Canadá, Croácia, Chipre, República Tcheca, Dinamarca, Inglaterra e
País de Gales, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Hungria, Islândia, Irlanda, Israel, Itália, Japão,
Lichtenstein, Luxemburgo, Malta, Mônaco, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, Escócia,
Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça e Estados Unidos da América.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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286
letal podem ainda, estar ligados com filicídio (assassinato dos filhos) e o familicídio
(assassinato de mais de um membro da família) (WEBSDALE, 2010).
Estima-se que o homicídio conjugal é a sétima maior causa de assassinato de
mulheres nos Estados Unidos, gerando um custo de até 1 bilhão de dólares (STOCK, 2013).
Não obstante a brutalidade do gesto homicida e da sua relação com o homicídio seguido de
suicídio, pesquisas também demonstram o impacto psicossocial nas famílias. Pesquisas
recentes indicam a presença de sintomas traumáticos, tanto para vítimas de tentativas de
homicídio, quanto para os filhos e filhas de autores e vítimas, que são as primeiras a encontrar
o corpo, bem como podem presenciar a cena do homicídio (ALISIC et al., 2017).
Um termo também utilizado atualmente na produção científica, tanto internacional
quanto nacional, é o de femicídio ou feminicídio. Esse conceito, constituído no campo da
sociologia crítica e do feminismo, explica os atos homicidas contra as mulheres como um
crime de ódio pela condição de ser mulher (ALVAZZI DEL FRATE, 2011; MENEGUEL;
PORTELLA, 2017). Especialmente no conceito de feminicídio, existe uma demarcação
política e teoricamente interseccional com as estruturas de classe, gênero e raça, que
constituem a condição das mulheres em diferentes contextos sustentados pela lógica
patriarcal.
No contexto brasileiro, esse conceito será importante, devido as mudanças jurídicas
operadas a partir da Lei 13.104/2015 (BRASIL, 2015), a Lei do Feminicídio. Esta lei garantiu
novas estratégias de notificação, punição aos autores e de possíveis pesquisas sobre os
assassinatos de mulheres. Sustenta-se, aqui neste capítulo que é também o ponto de encontro
possível entre as pesquisas acerca do homicídio conjugal e os estudos sobre o feminicídio no
território brasileiro. Ao observar os dados sobre as mortes de mulheres no contexto brasileiro,
é possível perceber a condição de grave risco de homicídio das mulheres (WEISELFISZ,
2015; SOUZA et al., 2017). Segundo o último levantamento sobre o assassinato de mulheres
do Mapa da Violência (WEISELFISZ, 2015), no período de 1980-2013, 106.093 mulheres
foram assassinadas, colocando o país como o 5º. mais violento no mundo em relação as
mulheres. Desses homicídios, foi possível identificar que 33,2% foram cometidos por
parceiros ou ex-parceiros da vítima.
Romio (2017), por meio da sua tese de doutorado, construiu uma tipologia acerca dos
feminicídios cometidos no Brasil, dentre eles o feminicídio doméstico. Assume-se que o
feminicídio doméstico representa o assassinato de mulheres dentro do universo privado, por
um agressor próximo da unidade familiar. Não há distinção na tese acerca do tipo de relação
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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estabelecida com o agressor, mas de acordo com a autora, no período de 2009 a 2014, foram
registrados 7.707 óbitos de mulheres no universo doméstico. Dentre esses casos, as mulheres
entre 15 a 49 anos foram as mais vitimadas, representando 46% da amostra pesquisada.
O conceito de feminicídio trouxe a implicação do Estado para a agenda de pesquisa e
intervenções jurídico-legais em relação às violências letais contra as mulheres no contexto
brasileiro. No entanto, um limite importante na produção científica nacional, especificamente
nos homicídios conjugais, é a compreensão dos fatores associados e das variáveis presentes
nessas atuações violentas. Apesar de não haver consenso entre os pesquisadores sobre as
terminologias adequadas da violência letal cometida na intimidade (ELLIS; STUCKLESS;
SMITH, 2015), há sinergia na produção científica acerca da pertinência de variáveis
sociodemográficas, psicossociais, criminológicas e clínicas em relação ao homicídio
conjugal nas pesquisas internacionais (BOURGET; GAGNÉ, 2012; ERIKSSON;
MAZEROLLE, 2013).
Pesquisadores brasileiros têm investigado os homicídios conjugais e homicídios
seguidos de suicídio, na busca de estimar a sua prevalência, os fatores de risco associados e
possíveis estratégias de avaliação de risco letal na intimidade (MARTINS-BORGES;
BARROS, 2016; MEDEIROS; TAVARES, 2015; SÁ; WERLANG; 2007). Martins-Borges,
Lodetti e Girardi (2014), ao mapear processos criminais já julgados, identificaram 29 casos
de homicídios conjugais cometidos na cidade de Florianópolis, entre 2000 e 2010. A análise
dos processos indicou que a maioria dos autores foram homens, em que a separação, as
medidas de represália e vingança foram a principal motivação dos atos, além da presença da
violência conjugal e a condição de estar separados como variáveis precursoras predominantes
nos casos.
Por meio de uma pesquisa exploratória e comparativa, Martins-Borges, Lodetti,
Machado e Tridapalli (2016) analisaram notícias de jornais de grande circulação de Santa
Catarina e São Paulo, mapeando, respectivamente, 34 e 110 casos de homicídios conjugais
midiatizados. As informações veiculadas corroboraram com dados das pesquisas
internacionais sobre o tema, como a predominância de autores homens, a separação e o ciúme
como principal motivador em mais da metade dos casos, e a presença de indícios precursores
como por exemplo, a violência conjugal.
Um dos poucos estudos exploratórios publicados no Brasil sobre o homicídio seguido
de suicídio foi realizado por Sá e Werlang (2007) ao mapear 14 casos, no período de 1996 a
2004 na cidade de Porto Alegre, por meio de fontes jornalísticas e inquéritos policiais, além
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
288
de entrevistas semiestruturadas com parentes e amigos das vítimas. As principais vítimas
tinham ou haviam tido relacionamento íntimo com o autor do crime (cometido apenas por
homens na amostra), sendo principalmente a ex-parceira, namorada ou esposa (8 casos) e o
homicídio ocorreu principalmente durante ou no primeiro ano após a separação. As autoras,
por meio de entrevistas com parentes e conhecidos, corroboraram com as pesquisas do campo
em relação a características como o ciúme, a agressividade e os sintomas depressivos
observados nos autores do HS.
Em relação às pesquisas sobre a avaliação de risco do homicídio conjugal, Medeiros
e Tavares (2015) construíram um protocolo de níveis de gravidade de violência conjugal a
partir da análise de validação de itens na perspectiva de profissionais da saúde e do judiciário.
O protocolo foi elaborado a partir dos principais instrumentos de avaliação de risco e
preditores associados aos homicídios conjugais. O instrumento está em etapa de
implementação recente nos sistemas de justiça do Distrito Federal (MINISTÉRIO PÚBLICO
DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS, 2018). Essas pesquisas demonstram
iniciativas em compreender a realidade brasileira acerca das violências letais na intimidade.
No entanto, é necessário, considerando as recentes mudanças jurídicas e dos sistemas de
notificação da violência, construir um diálogo entre as pesquisas acerca do feminicídio e do
homicídio conjugal, preservando suas diferenças, na construção de pesquisas e ações
preventivas.
1.2 Homicídio Conjugal Masculino ou Feminicídio Íntimo: impasse dos nomes e efeitos
na prevenção
O conceito de feminicídio, utilizado na última década em países da América Latina,
reflete politicamente a implicação dos Estados-Nação na responsabilidade dos atos letais em
relação às mulheres (PATH, 2008). Por definição, as condições da ação letal contra as
mulheres devem ser motivadas (pelos autores da violência) e investigadas (pelas autoridades
da Justiça e da Segurança Pública) pela sua condição de ser, existir e se posicionar como
mulher. Essas violências letais incluem uma diversidade de tipologias conceituais
relacionadas à relação que a vítima estabelecia com o autor da violência letal, bem como
mortes como efeitos de práticas misóginas. De acordo com o relatório PATH (2008), com
relação aos autores da violência letal, o feminicídio deve ser utilizado quando: a) íntimo - o
autor é um homem em relações de intimidade e parentesco (parceiro atual, ex-parceiro e
outros familiares como irmãos, pais, tios etc.); b) não íntimo - quando não relacionados a
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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relações familiares (conhecidos e ou estranhos à vítima); c) perpetrado por mulher - quando
uma mulher pratica a violência letal (nesse sentido, coadunadas com a lógica patriarcal,
dentro de crimes de honra, por exemplo); d) quando é cometido por desconhecidos da vítima
- conflitos armados, ataques de gangue e outras violências generificadas em relação à vítima
mulher.
Ao considerar a implicação do Estado, o feminicídio também destaca as mortes
consequentes das políticas (ou ausência dessas) frente às práticas misóginas, como:
negligência, fome, mortalidade materna, mutilação da genitália feminina, mortes
relacionadas ao tratamento do HIV etc. É importante destacar que, na compreensão da morte
pela condição de ser mulher, Russel (1992) indicava o ódio, o prazer e o sentimento de posse
como base motivacional por parte dos autores violentos em relação a mulher.
Percebe-se, então, que a categoria feminicídio é ampla, considerando uma diversidade
de atos letais contra as mulheres. Argumenta-se, aqui, que a função política dessa categoria
produz efeitos de visibilidade de uma variedade de fenômenos importantes, com impacto nos
sistemas de notificação e jurisdição dos casos concretos, mas não caracteriza os fatores e
variáveis associadas, como o homicídio conjugal, especificamente nas características e
especificidades da relação entre autor e vítima. Isso se sustenta em dois argumentos: a) a
relação de continuidade entre o relacionamento íntimo violento e o homicídio conjugal
enquanto desfecho não é consenso na produção científica sobre o tema, o que exige a
produção de reflexões sobre o tema e na tomada de decisão de políticas públicas; e b) a
atuação letal na intimidade, ainda que atuada principalmente por homens heterossexuais
contra suas respectivas parceiras, não se restringe à orientação sexual, o que exige a
exploração de outras variáveis e teorias como, por exemplo, associadas aos relacionamentos
homoafetivos.
Ellis, Stuckless e Smith (2015), ao revisar as terminologias das violências letais na
intimidade, argumentam de um ponto de vista pragmático sobre a necessidade de refletir
sobre a validade, a utilidade e a confiabilidade dos usos terminológicos por parte dos
pesquisadores no campo. Elas trazem que, a partir da década de 1980, autores de referência
da área de pesquisa, como Jacqueline Campbell, passam a utilizar o conceito de “feminicídio
entre parceiros íntimos” (reitera-se, o mesmo utilizado pelas autoras), que incluem tanto
homens quanto mulheres como perpetradores do ato, pelo fato da vítima ser mulher. O
argumento das autoras se sustenta pela facilidade das estratégias de notificação dos casos de
homicídio.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
290
No entanto, uma das reflexões pertinentes na revisão das autoras se dá nas
implicações da distinção entre os objetos de pesquisa e intervenção da violência conjugal e
do homicídio conjugal. Na compreensão feminista, o feminicídio íntimo se dá num
continuum da violência de gênero, como um desfecho fatal nos ciclos da violência conjugal
(RUSSEL, 1992). No argumento de Ellis, Stuckless e Smith (2015), isso tem efeitos
importantes no campo da prevenção da violência letal, já que o público-alvo das intervenções
preventivas podem ser mulheres que buscam dispositivos de acolhimento para situações de
violência, bem como homens notificados como autores de violência em relação a parceira ou
ex-parceira.
Mas não há consenso sobre a associação entre violência conjugal e homicídio
conjugal, mesmo sendo um preditor associado nas pesquisas sobre o tema (CAMAN et al.,
2017; ELLIS, 2017; MARTINS-BORGES, 2011). Autores que definem o homicídio
conjugal como uma categoria distinta da violência conjugal justificam o argumento devido
às amostras em pesquisas em que não há indícios ou notificações de violência conjugal prévia
(CAMAN et al., 2017; DOBASH; DOBASH, 2015). Nesses casos, bem como naqueles em
que há presença da violência conjugal na dinâmica relacional, a separação e perda de controle
com relação a parceira foram as principais motivadoras do ato, alinhadas às ameaças contra
o outro e a própria vida (ELLIS, 2017). Como fator de alto risco para atuação letal, a
separação, o ciúme e a ameaça para si e ao outro se tornam variáveis fundamentais no campo
da prevenção. Isso parece também transcorrer nos casos de homicídio seguido de suicídio,
comumente relacionados ao homicídio conjugal (LIEM; ROBERTS, 2009).
A ameaça ou separação efetiva como indício precursor ao ato também aparece em
estudos acerca dos relacionamentos íntimos homoafetivos (GANNONI; CUSSEN, 2014;
GLASS et al., 2004). Os autores supracitados identificaram, ao analisar 9 casos de mulheres
que mataram suas companheiras, a motivação ao ato no período de término da relação íntima
ou já separadas. Gannoni e Cussen (2014) identificaram, numa amostra de homicídios
cometidos em relacionamentos homoafetivos na Austrália, a predominância de brigas
conjugais nas circunstâncias prévias ao ato, bem como a separação e os ciúmes como
motivadoras do ato.
Portanto, a compreensão de que a violência letal na intimidade representa uma
escalonada final da violência conjugal é um tema controverso e que não possui consenso na
produção científica sobre o tema. Outro argumento é que, proporcionalmente, a violência
conjugal é um fenômeno mais frequente, quando comparada aos homicídios, o que não
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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justifica uma relação casuística precisa (CAMAN et al., 2017). Da mesma forma, a expressão
polimorfa da violência nas relações íntimas (por exemplo, as agressões físicas, as múltiplas
violências psicológicas, a violência sexual e comportamentos de controle e posse), na
dinâmica cíclica de autores e vítimas, exige uma aproximação complexa e não reducionista
por parte de pesquisadores e profissionais do campo (MARTINS-BORGES, MAYORCA;
LIVRAMENTO, 2011).
A convergência, então, da produção científica sobre o homicídio conjugal e os
contextos de produção dos feminicídios no Brasil é necessária para a construção de
estratégias de prevenção, com possíveis autores e vítimas nas políticas públicas. No entanto,
um limite se dá, inevitavelmente, na compreensão epistemológica das abordagens na
delimitação do fenômeno. Enquanto os estudos sobre o homicídio conjugal produzem teorias
baseadas em preditores do ato, num modelo ainda sustentado na neutralidade científica
possível (ELLIS, 2017) ou no paradigma da passagem ao ato (MILLAUD, 1998), as teorias
de gênero estão politicamente implicadas, sustentando como tronco comum a todas as
violências letais (seja nas relações heterossexuais ou homoafetivas) a lógica do patriarcado
como explicação principal às atuações (WILSON; DALY, 1994).
Esse paradoxo epistemológico aqui presente não é exclusivo no campo da violência
letal na intimidade, mas das reflexões suscitadas por estudos sobre a violência (BOWMAN
et al., 2015; HAMBY, 2011; RIFIOTIS, 2015). Bowman et al. (2015), ao refletirem sobre a
primeira onda de estudos sobre a violência, impulsionada pela Organização Mundial da
Saúde (OMS), expôs a necessidade da complementaridade de estudos epidemiológicos e
empíricos sobre manifestações das violências com estudos de caso, ensaios e estudos
etnográficos, especialmente aqueles que destoam das regularidades amostrais. De acordo
com o autor, os cenários da violência exigem dos pesquisadores o aprofundamento das
vivências e lugares dos sujeitos envolvidos e suas respectivas interações consideradas
violentas. O desafio teórico contemporâneo é construir modelos que possam interrogar ou
explicar as relações entre fenômenos e a variabilidade da violência, e que resgate uma
perspectiva relacional da violência e a interseccionalidade com gênero, etnia, classe e outros
elementos culturais e simbólicos. Esses desafios têm traduzido os esforços dos pesquisadores
deste capítulo em demonstrar possíveis encontros das reflexões feministas, com uma
compreensão clínica das variáveis identificadas em homicídios conjugais cometidos por
homens.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
292
1.3 Virilidade, clínica e atuação letal: pistas para o encontro das categorias na pesquisa
Argumentamos, neste capítulo, que o campo de aplicação e pesquisa da categoria de
homicídio conjugal demonstra fatores associados e variáveis que nos dão indícios de
dinâmicas de conflito e sofrimento nas relações de intimidade. No entanto, uma aproximação
universalista do fenômeno, pela lógica de produção de preditores, pouco aprofunda os
cenários e contextos vivenciados pelos sujeitos. Neste sentido, a tradição francófona dos
estudos buscou reconhecer a imbricação entre clínica e violência nas suas dimensões
psíquicas e sociais, mas que necessita ser convocada também pelas reflexões feministas
acerca do feminicídio no contexto brasileiro. Compreender as variáveis presentes em homens
que atuam letalmente contra suas parceiras implica, inevitavelmente, tecê-las no contexto
sociocultural em que homens se constituem, marcados pela hierarquização das
masculinidades e a égide da virilidade (SOBOTA; HOUEL; MERCADER; 2009).
Sustentar uma compreensão clínica da violência convoca a segunda crítica dos
estudos feministas em relação ao conceito de homicídio conjugal. Meneghel e Portela (2017)
são enfáticas nas críticas de pesquisas que buscam delimitar características de autores da
violência letal:
Grande parte dos homens que assassinam as esposas não difere de seus
pares na sociedade e são considerados “comuns e convencionais”, o que é
ainda mais perigoso, porque há uma tendência de atribuir o delito a uma
explosão de cólera, ou um motivo “passional” impossível de ser previsto e
prevenido. Por esse motivo, considerar o feminicídio como uma explosão
passional ou atribui-lo à doença do agressor, significa retirar a conotação
social e de gênero do crime, reduzindo-o à esfera individual (MENEGUEL;
PORTELA, 2017, p. 3081).
No Brasil, a jurisprudência dos casos em que homens matavam suas parceiras foi (e
ainda o é, em algumas circunstâncias) profundamente marcada pelo argumento jurídico da
“violenta emoção’ e da legítima defesa da honra (ELUF, 2007). Nas reflexões de Arreguy
(2011), o primeiro Código Penal, construído durante o período histórico do Brasil Colônia,
não só perdoava a pena prisional aos autores de homicídios conjugais, como diferenciava a
pena de acordo com o lugar social dos autores, diferenciando escravos e donos de senzala.
No ordenamento jurídico, a violenta emoção é um atenuante de pena, através do artigo 65,
III, do Código Penal. Emoção e paixão, no discurso jurídico, não excluem a imputabilidade,
mas a atenuam, e se referem a estados que afetam o ‘equilíbrio psíquico do agente’.
É plausível que o movimento feminista brasileiro tenha ressalvas acerca de estudos
que possam trazer subsídios argumentativos e discursividades para esse tipo de defesa dos
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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autores nos contextos judiciais. No entanto, sabe-se que a própria penalização dos sujeitos
nos cenários jurídicos traduz a história do colonialismo europeu do nosso país, marcado pela
seletividade penal da população afrodescendente e pobre, nas intersecções de classe, gênero
e etnia com objetivo de produção de um sujeito ‘potencialmente perigoso’. Portanto, a
constituição do nosso sistema penal pode ser metaforizada, nas palavras de Góes (2017),
como um abolicionismo penal que necessita de diversas chaves teóricas e analíticas, que não
podem ser esgotadas neste texto.
Além do ordenamento jurídico brasileiro, complexo por si só, é a própria noção de
sujeito perigoso que precisa ser discutida na compreensão clínica dos atos letais. Alguns
estudos sobre o homicídio conjugal, principalmente na tradição francófona que tem como
Maurice Bezenech uma das suas principais influências, de fato tematizam a relação entre
transtornos mentais diagnosticados e atos de violência. Esta tradição, pautada na psiquiatria
forense e no paradigma da passagem ao ato, representou um percurso importante nos estudos
dos homicídios intrafamiliares, especialmente na relação entre psicose e atos homicidas
(principalmente em filicídios e familicídios), bem como a presença da impulsividade e a
agressividade como fatores de risco em homens que cometeram homicídio conjugal
(BENEZECH, 2016; BOURGEOIS; BENEZECH, 2001). Porém, a psiquiatra forense,
calcada na noção de periculosidade, também pode evocar um modelo biomédico e moralista
acerca da violência, na crença de uma possível predição exata do comportamento violento
em determinados sujeitos com transtorno mental (DELGADO, 2012).
Uma perspectiva universalista e biomédica sobre a violência retira tanto seu caráter
dinâmico e conflitivo dos sujeitos que a expressam, quanto político e cultural nos seus
contextos de ocorrência, exigindo o posicionamento dos pesquisadores do campo (BUREAU
et al., 2001; DELGADO, 2012). Autores de perspectiva psicanalítica, por meio do conceito
de passagem ao ato5 tem fornecido subsídios importantes para a compreensão da atuação
letal, que ultrapassam e criticam a caracterologia da personalidade perigosa (ARREGUY,
2011; RAOULT, 2006; MILLAUD, 1998; SOBOTA; HOUEL; MERCADER; 2009).
No campo da pesquisa e intervenção, a compreensão clínica de autores de homicídios
conjugais pode ser argumentada pela via dos indícios precursores à atuação letal. Os indícios
5
O conceito de passagem ao ato, na psicanálise, se sustenta na noção de agieren (atuação) construída por Freud.
No processo analítico, a atuação corresponde ao processo do agir inconsciente como forma de negociação com
o conflito intrapsíquico e evitação da elaboração pelo discurso, podendo acontecer dentro ou fora do contexto
terapêutico. Na relação entre Psicanálise e Direito, a passagem ao ato tornou-se um conceito explicativo de
condutas criminais, principalmente por parte da Psiquiatria Forense, que discutimos ao longo do capítulo
(Raoult, 2006).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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precursores são manifestações comportamentais e sintomáticas circunstanciadas há pelo
menos um ano, que expressam um sofrimento psíquico (e não necessariamente elaborado
pelo sujeito), tradicionalmente vinculadas aos estudos de autópsia psicológica do suicídio
(WERLANG, 2007). No campo da psicanálise, a passagem ao ato será a base de compreensão
dos atos auto e heteroagressivos (RAOULT, 2006).
Como indícios precursores aos homicídios conjugais, podemos identificar os relatos
de ameaça à vida da parceira ou dos filhos, os comportamentos de perseguição à parceira
(nos contextos domiciliares e laborais); a verbalização de ideias autodestrutivas, as tentativas
prévias de suicídio e homicídio; os sintomas depressivos durante ou após a separação, e mais
raramente, a presença de sintomas psicóticos (WEBSDALE, 2010). Pesquisas qualitativas
realizadas com homens autores de homicídio conjugal destacam como os indícios
precursores desvelam dinâmicas relacionais problemáticas, como a dependência afetiva em
relação à parceira, a dificuldade de elaboração das emoções e a necessidade de controle do
outro (ADAMS, 2009; DUBASH; DUBASH, 2015).
Quanto a dimensão psicopatológica, cabe reiterar ainda, que há poucas evidências
empíricas de quadros clínicos efetivamente associados aos autores de homicídio conjugal,
com resultados esparsos que indicam a presença de comportamentos impulsivos e destrutivos
associados a transtornos de personalidade borderline (DUTTON, 1999) e episódios
depressivos em casos de homicídio seguido de suicídio (LIEM; ROBERTS, 2009). Com isso,
pode-se afirmar que, de fato, a atuação letal na intimidade não é cometida por um “tipo de
caráter”.
No entanto, isso não exclui a perspectiva clínica, ao reconhecer a presença de indícios
precursores importantes para a prevenção, bem como estratégias de negociação da angústia
que, ao convergir com fatores de risco, podem eclodir ao ato letal (LEFBREVE, 2006). Esses
fatores de risco podem advir de cenários sociais e demográficos, como a exclusão social, o
desemprego e o acesso à armas de fogo (ERIKSSON; MAZZEROLLE, 2013), bem como
cenários situacionais e psicossociais, como tentativas prévias de ataque letal, as estratégias
de negociação diante da ameaça de separação por parte da parceira ou a separação efetiva,
muitas vezes associada a presença de um novo parceiro por parte da vítima (KIVISTO, 2015;
SHEEHAN et al., 2014).
Uma perspectiva clínica da atuação letal deve se implicar numa perspectiva dinâmica
e conflitiva acerca dos atos violentos, demonstrando circuitos pulsionais de negociação da
angústia dos autores situados num contexto sociocultural, evitando assim um psicologismo.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Se a passagem ao ato expressa uma resposta diante de uma angústia, culturalmente
demarcada e atuada em agressividade em relação ao outro ou a si mesmo, uma compreensão
clínica buscará responder aos sentidos de continuidade e ruptura da experiência do sujeito
que eclodiu no ato (RAOULT, 2006).
Sobota, Houel e Mercader (2009, p. 41), ao investigar o registro da passionalidade
dos homicídios conjugais, desvelam o sentido de continuidade e ruptura em contextos
culturalmente machistas:
[...] a virilidade é medida pelo padrão de violência que se pode cometer
contra os outros, ela domina, e particularmente as mulheres, em nome do
exercício, a demonstração ou o restabelecimento da dominação. [...] essa
suposta capacidade do homem viril de controlar seus afetos é antes uma
repressão, baseia-se em um endurecimento do comportamento emocional
que o empobrece e enfraquece, e é, portanto, uma verdadeira "normopatia"
viril.
A diferença entre a masculinidade e a virilidade se tornam ferramentas conceituais e
clínicas, com implicação no campo das intervenções preventivas e psicossociais. Uma cultura
da virilidade pode ser encarada pela clínica como uma constelação de sentidos e significados
que garantem a continuidade e proteção contra a angústia do homem na identificação com a
feminilidade (SOBOTA; HOUEL; MERCADER, 2009), e é justamente na ruptura dessas
condições de posse e controle que a violência letal pode se instaurar.
As possibilidades de articulação de uma clínica da atuação letal e o campo da
prevenção será o enfoque da terceira crítica dos estudos feministas, e nesse sentido, tem
implicações no planejamento de intervenções psicossociais. A recente promulgação da Lei
do Feminicídio torna os assassinatos de mulheres, quando caracterizados por motivação de
gênero, como crimes hediondos. Portanto, apesar de possuírem atenuantes, são crimes
inafiançáveis, não sustentados pelo argumento da legítima defesa da honra por parte dos
autores.
Dada a recente instauração normativa e jurídica, as pesquisas brasileiras estão
avançando para demonstrar o impacto na prevenção das violências letais contra as mulheres.
Algumas pesquisas já indicam as mudanças operadas na notificação da violência e,
principalmente, nas narrativas jurídicas sobre os eventos do feminicídio. É o que nos mostra
Machado et al. (2015, p. 50) sobre como os discursos da acusação e defesa contribuem para
a construção de personagens no campo judiciário:
Diversamente, a imagem do homem violento colabora para a mobilização
do conceito de periculosidade, precipuamente explorada pela acusação,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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embasando a manutenção de custódias cautelares e a aplicação de penas
maiores. A monstruosidade e as perversões sexuais são enfatizadas, sendo
notáveis nesses processos a ocorrência de alguns pedidos de instauração de
insanidade mental pela própria defesa, que poderiam redundar na aplicação
da medida de segurança, o que não veio a ocorrer em nenhum dos processos
estudados. Nesse padrão, a mulher vítima, merecedora de proteção do
sistema de justiça criminal, é a boa mãe e esposa, recatada e trabalhadora.
A desconstrução de um sujeito perigoso, anormal e monstruoso é uma via importante
para o projeto político que sustenta as intervenções psicossociais dentro dos estudos
feministas. Na clínica da atuação, o que se destaca é que o sujeito juridicamente perigoso é
antes ameaçado no campo intersubjetivo, agredindo o outro como resposta às dissonâncias
do seu mundo interno (MILLAUD, 1998). Essas dissonâncias de continuidade e ruptura de
uma lógica do mundo interno possuem raízes culturais, simbólicas e, sem dúvida,
interpessoais no campo da intimidade (SOBOTA; HOUEL; MERCADER, 2009). Portanto,
se interessa ao campo da clínica, na sua interface com os estudos culturais e feministas,
produzir efeitos na prevenção dos homicídios conjugais, possíveis autores e vítimas deverão
ser alvo das intervenções psicossociais. É o que demonstra Reckdenwald e Parker (2010) ao
construir um estudo nos Estados Unidos, com objetivo de identificar se a redução da
exposição à violência conjugal para mulheres reduziu as taxas de homicídios conjugais, com
resultados importantes no campo da prevenção.
De acordo com as autoras, a disponibilidade de serviços legais diminuiu as chances
principalmente de homens serem assassinados por suas parceiras, na medida em que elas
possuíam recursos para sair da situação de violência conjugal. No entanto, o encaminhamento
para abrigos de proteção às mulheres aumentaram as chances de essas serem assassinadas
por seus parceiros, o que sustenta a hipótese de medida de represália e vingança. Com isso,
as autoras concluíram que se a proteção do serviço não é o suficiente, aumenta-se as chances
de homicídios conjugais perpetrados contra as mulheres, principalmente porque a etapa da
separação é um dos indicadores de risco mais graves na atuação letal.
Pesquisas também indicam que a judicialização, ou seja, a punição por meio da prisão
preventiva dos autores de violência, possuem resultados heteróclitos na prevenção da atuação
letal, tanto positivos quanto negativos na contenção do ato (CAMAN et al., 2017). Caman et
al. (2017), ao analisar as características de homicídios conjugais cometidos por homens e
mulheres, identificaram também uma redução das taxas de homens enquanto vítimas, mas
uma estabilidade nos assassinatos de mulheres. Esses resultados demonstram que
intervenções apenas baseadas no atendimento às potenciais mulheres vítimas não
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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necessariamente produzem efeitos de prevenção da atuação letal dessas. Os mecanismos
punitivos prévios ao ato, como a prisão preventiva, também podem produzir efeitos
iatrogênicos, por meio de represália e vingança em relação à vítima. Nesse sentido, as
intervenções psicossociais devem indicar acolhimento e proteção às vítimas, bem como
construir dispositivos de intervenções psicossociais que integrem os possíveis homens
autores de violência letal (WEBSDALE, 2010).
Se as conquistas dos movimentos feministas, sustentadas nas políticas de igualdade
de gênero, promovem e ainda lutam por condições dignas das mulheres nas sociedades
patriarcais, o mesmo movimento parece ter acompanhado uma condição ameaçadora da
continuidade simbólica viril dos homens. Sendo assim, as pesquisas acerca da violência letal
vão se deparar inevitavelmente com uma atuação que reflete as profundas mudanças nos
papéis culturalmente organizados de mulheres e homens (SOBOTA; HOUEL; MERCADER,
2009).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo surgiu da nossa necessidade enquanto estudiosos da temática de
violência letal, pertencentes ao campo dos estudos do homicídio conjugal, em demonstrar os
possíveis diálogos da clínica da violência com as reflexões suscitadas pelas críticas
feministas. De um ponto de vista teórico e prático, partimos do lugar de compreensão sobre
as situações de violência dentro da sua dinâmica relacional vivenciadas pelos sujeitos,
marcados simbolicamente pela continuidade da lógica patriarcal dentro das relações íntimas.
Do ponto de vista das pesquisas, identificamos a pluralidade de categorias de análise
em relação a violência letal na intimidade. Essas categorias acabam por refletir diferentes
matrizes epistemológicas, que se aproximam deste objeto por vieses explicativos: a
compreensão de fatores associados às violências e seu poder preditivo, numa perspectiva
epidemiológica (homicídios por parceiros íntimos); a compreensão das variáveis
psicossociais e de indícios precursores ao ato homicida, numa perspectiva clínica (homicídio
conjugal); e a compreensão da continuidade entre as violências experimentadas por mulheres
na cultura patriarcal e a escalonada no ato letal, numa perspectiva de gênero (feminicídio
íntimo). No campo das políticas públicas, das estratégias de enfrentamento da violência e das
tomadas de decisão, estas leituras permitem que possamos delimitar a questão das mortes de
mulheres dentro das relações íntimas como um tema urgente e atual. O Brasil expressa
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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números alarmantes em relação às mortes de mulheres, sendo pelo menos um terço delas
cometidas por um parceiro ou ex-parceiro da vítima.
Mesmo diante das mudanças jurídicas e normativas em relação a violência contra a
mulher no Brasil, as pesquisas que demonstram a efetividade das políticas de enfrentamento
ainda são incipientes. Num cenário de recrudescimento das políticas socioassistenciais, de
saúde e de segurança pública, enxergamos cotidianamente a banalização das mortes de
mulheres por meio das notícias de jornais, enquanto instituições de pesquisa são
desacreditadas pelo poder público. Nesse sentido, buscamos nosso diálogo também com a
produção científica internacional sobre as ações preventivas nas situações de homicídios na
intimidade, que demonstram a importância de serviços socioassistenciais sensíveis à
temática, para a avaliação de risco nas situações de violência. É necessário pensar também
em estratégias que possam fortalecer a rede de proteção das mulheres, e de intervenções para
com os possíveis homens autores de violência. Este argumento se sustenta pelos resultados
de pesquisas, em contextos estadunidenses e europeus, que indicaram uma redução das taxas
de homens assassinados por suas parceiras, mas uma relativa estabilidade dos homicídios de
mulheres, mesmo com a disponibilidade de serviços socioassistenciais para elas.
Argumentou-se que o termo homicídio conjugal, na sua matriz francófona, traz
elementos da psiquiatria forense, mas que deve se distanciar da noção de periculosidade para
uma compreensão clínica do ato letal. Por não dissociar clínica e cultura, dialoga com as
críticas feministas, especialmente o conceito de feminicídio íntimo no contexto brasileiro,
que permite trazer as raízes socioculturais que garantem a continuidade simbólica de homens
e mulheres nas relações íntimas. Essa decisão epistemológica alinha-se aos impasses
contemporâneos dos estudos sobre a violência (BOWMAN et al., 2015).
Cabe destacar que, ao situar as críticas feministas em relação a categoria de
‘homicídio’, não discutimos aqui as possíveis relações com as epistemologias feministas.
Reservamos o debate às principais críticas, principalmente da suposta neutralidade científica
existente nos estudos de fatores associados ao fenômeno e do viés clínico, que pode
corroborar com o psicologismo de estruturas de poder e dominação. Na perspectiva dos
autores deste capítulo, acreditamos que o debate contemporâneo do feminismo interseccional
pode ser uma chave analítica importante na compreensão de fenômenos complexos como a
violência, que mereceriam outro lugar de reflexão.
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FEMINICÍDIO DE GESTANTES NOTIFICADOS NO SINAN NA REGIÃO SUL
DO BRASIL
Mariane Vanderlinde da Silva1
Elza Berger Salema Coelho2
Thays Berger Conceição3
Carolina Carvalho Bolsoni4
RESUMO
O feminicídio configura-se na forma extrema de violência praticada contra mulheres,
agravando-se quando praticado contra gestantes. Investiga o perfil sociodemográfico das
gestantes que sofreram feminicídio na região Sul do Brasil. Trata-se de um estudo transversal
de abordagem quantitativa e análise descritiva, realizado a partir das informações contidas
nas Fichas de Notificação compulsória de violência contra mulheres localizadas na base de
dados do Sistema Nacional de Notificações (SINAN). Utilizou-se o programa estatístico
Stata, versão 13.0, para analisar as violências notificadas. Os dados estão apresentados na
forma de tabelas, em frequência absoluta e relativa. Os levantamentos do presente estudo
apontam que 26 gestantes na região Sul foram notificadas no SINAN com óbito. Santa
Catarina apresenta o maior número de óbitos (12, 46,1%). A maioria das gestantes era de
cor/raça branca, jovens, com 5 a 11 anos de escolaridade. Metade dos óbitos ocorrera no 1º
trimestre da gestação, sendo a maioria delas casadas ou em união estável. A residência foi o
principal local dos óbitos, que aconteceram majoritariamente com uso de arma de fogo,
seguido de objeto pérfurocortante. O principal agressor foi o parceiro íntimo. Um caso foi
notificado como homicídio e 2 foram suicídio. Constatou-se a importância de garantir o
acesso aos serviços de saúde com acompanhamento de profissionais atentos aos sinais de
violência e aptos a investigar por meio de perguntas sobre a realidade sociocultural das
usuárias. Assim, caso seja identificada uma situação de violência, os devidos
encaminhamentos devem ser providos, a fim de prevenir o feminicídio.
Palavras-chave: Feminicídio. Violência contra a mulher. Gestante.
INTRODUÇÃO
A violência contra a mulher não é um fato recente, desde os primórdios da
humanidade as mulheres vêm sendo vítimas de agressões, que muitas vezes, evoluem para
óbito. Este é a expressão máxima da violência contra a mulher e define-se como
1
Assistente Social. Especialista em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Residente na Alta Complexidade no programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde no Hospital
Universitário (HU/UFSC). marianevanderlinde@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4349432549254295
2
Enfermeira. Doutora em Filosofia da Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professora adjunta na Universidade Federal de Santa Catarina. elzacoelho@gmail.com Lattes:
http://lattes.cnpq.br/3980247753451491
3
Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
thaysberger@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/8067887275425001
4
Enfermeira. Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
carolziinha.flor@gmail.com@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/6654871617906798
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
304
Feminicídio. Ultrapassando o âmbito das relações íntimas entre homens e mulheres e
compreendendo um vasto conjunto de situações e não apenas as ocorridas no ambiente
doméstico ou familiar, o feminicídio inclui mortes provocadas por mutilação, estupro,
espancamento, as imolações de noivas e viúvas na Índia e os crimes de honra em alguns
países da América Latina e do Oriente Médio (MENEGHEL ET PORTELLA, 2017).
Tais circunstâncias permitem classificar o feminicídio em 4 tipologias: a) íntimo, é o
tipo mais frequente, em que o homicida mantinha ou manteve com a vítima relacionamento
íntimo ou familiar; b) sexual, ocorre nos casos em que a vítima não possui ligação qualquer
com o agressor, mas sua morte foi precedida de violência sexual, no caso de estupro seguido
de morte; c) corporativo, por sua vez, dar-se-á em casos de vingança ou disciplinamento,
através do crime organizado, como se verifica no tráfico internacional de seres humanos; e,
por fim, d) infantil, aquele imputado às crianças e adolescentes do sexo feminino através de
maus-tratos dos familiares ou das pessoas que tem o dever legal de protegê-las (SEGATO,
2006; ROMERO, 2014).
No Brasil, resultado do aumento da preocupação com o fenômeno da violência de
gênero contra mulheres, a Lei do Feminicídio foi sancionada em 2015, e é previsto como
circunstância qualificadora do crime de homicídio, incluindo-o no rol dos crimes hediondos
(BRASIL, 2015).
Mesmo com avanços no setor judiciário em prol da defesa das mulheres os dados
epidemiológicos ainda são alarmantes. O Mapa da Violência (2015) revelou que, entre 1980
e 2013, 106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato, em 2013, foram 4.762 casos
registrados no Brasil, ou seja, aproximadamente 13 homicídios femininos diários. Em 2015,
a taxa de feminicídios no Brasil foi de 4,8 por 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo
(ONU, 2016). Em 2017, o Brasil concentrou 40% dos feminicídios da América Latina
(CEPAL/ONU, 2018). Em 2018, o número de registros de feminicídios aumenta em 12%,
sendo uma mulher morta a cada 2 horas no país (Monitor da Violência, 2019). A taxa de
homicídios femininos global foi de 2,3 mortes para cada 100 mil mulheres em 2017. No
Brasil a taxa foi superior 74% à média mundial (MONITOR DA VIOLÊNCIA, 2017).
Na Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 - foram registrados pelo 27
feminicídios, 51 homicídios, 547 tentativas de feminicídios e 118 tentativas de homicídios,
no período de janeiro a julho de 2018. Os relatos de violência chegaram a 79.661, sendo os
maiores números referentes à violência física (37.396) e violência psicológica (26.527)
segundo Ministério dos Direitos Humanos (2018). Chama atenção que apenas na primeira
semana de janeiro de 2019 foram registradas 21 mortes e 11 tentativas de assassinatos de
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
305
mulheres em diversos estados brasileiros (BRASIL DE FATO, 2017). É alarmante que em
uma semana de 2019 (21 mortes registradas) tenha se alcançado quase o mesmo número de
casos registrados em seis meses no ano de 2018 (27 casos registrados).
A situação é agravada quando a mulher vítima da violência está grávida, colocando
também em risco a vida do bebê. As gestantes apresentam três vezes mais risco de sofrer
homicídios do que aquelas que não sofrem violência durante esse período (MCFARLANE,
1995), portanto, estar grávida e sofrer violência durante a gestação, é um fator de risco para
ser vítima de feminicídio.
Diferente das mortes por causas médicas, como hemorragia e tromboembolismo, o
homicídio não possui relação fisiológica com a gravidez. Dessa forma, alguns homicídios,
principalmente causados por parceiro íntimo, poderiam não ter ocorrido se a vítima não
estivesse grávida. Dessa forma, a prevenção do homicídio por parceiro íntimo teria um efeito
maior na redução da taxa de mortalidade associada a gravidez (CHENG et HORON, 2010).
O homicídio foi identificado como a principal causa de morte de gestantes no Estados
Unidos. Krulewitch et al. apud Lin et Gill (2011), afirmam que adolescentes gestantes tem
três vezes mais chances de serem vítimas de homicídios. Um estudo no Moçambique revelou
que a violência era a quarta maior causa de morte materna em um hospital; e na Índia, 16%
da mortalidade materna era atribuída a violência por parceiro íntimo (OMS, 2012).
A partir de então com a sancionalização da Lei do Feminícidio em 2015, houve um
aumento das notificações de mortalidade feminina por violência de gênero, alimentando as
bases de dados e passando a configurar uma questão epidemiológica (ROMIO, 2017). Devido
à magnitude do feminicídio, este estudo pretende contribuir com o fornecimento de dados
epidemiológicos e reflexões, a fim de auxiliar estudantes e profissionais de saúde na
compreensão desse fenômeno. Dessa forma, o estudo pretende conhecer o perfil
sociodemográfico de gestantes vítimas de feminicídio e de que forma esses atos acontecem
na região sul do Brasil.
1. MÉTODO
Trata-se de um estudo transversal de abordagem quantitativa e análise descritiva,
realizado a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Violências e
Acidentes (SINAN VIVA), gerenciado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério
da Saúde, e implantado em 2007, com a vigilância das violências doméstica, sexual e/ou
outras violências. É alimentado por profissionais dos serviços públicos e privados de saúde,
por meio da ficha de notificação e investigação dos casos de violências. Este estudo utilizou
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reprodutivos V.4.
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os dados inseridos no SINAN VIVA Contínuo, baseando-se nas notificações de violência
contra mulheres grávidas adultas de 20 a 59 anos que foram a óbito em decorrência da
violência, na região Sul do Brasil, abrangendo os Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
Grande do Sul, no período de 2009 a 2014.
As variáveis sociodemográficas pesquisadas foram: faixa etária, raça/cor,
escolaridade, trimestre da gestação, situação conjugal e deficiência ou transtorno; já as de
caracterização do feminicídio foram: local da ocorrência, meio de agressão, relação com o
autor da violência e tipo de violência.
Utilizou-se o programa estatístico Stata, versão 13.0, para analisar os dados
apresentados na forma de tabelas, em frequência absoluta e relativa.
As notificações foram fornecidas pela Secretaria de Vigilância em Saúde/
Departamento de Análise de Situações de Saúde/ Coordenação Geral de Doenças e Agravos
Não Transmissíveis e por se tratar de um banco de dados secundários, não houve necessidade
da submissão ao comitê de ética, conforme Resolução CNS nº 466/2012.
2. RESULTADOS
Quanto ao perfil sociodemográfico das gestantes com óbito em decorrência da
violência de gênero, verifica-se que de um total de 26 vítimas de feminicídio na região sul,
Santa Catarina é o Estado com maior número de mortes (46,1%), seguido do Rio Grande do
Sul (30,8%) e por último Paraná (23,1%). Quanto à cor/raça predominante é a branca (84%),
seguida de parda (12%) e negra (4%). As mulheres mais atingidas por esse tipo de violência
são de faixa etária mais baixa, de 20 a 29 anos correspondem a 57,7% dos casos, seguido das
mulheres de 30 a 39 anos que correspondem a 34,6%, num total de 92%.
Quanto à escolaridade, 82,4% das mulheres tinham entre 5 a 11 anos. Em 50% dos
casos o feminicídio ocorreu em mulheres no 1º trimestre da gestação com declínio conforme
avanço do período gestacional. Quanto a situação conjugal, 63,2% eram casadas ou viviam
em união estável. Ter alguma deficiência ou transtorno correspondeu a 16,7% das
notificações (tabela 1).
Tabela 1 - Características das gestantes com óbito
2009 a 2014
Variáveis n (=)
Estado (26)
Paraná
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
Raça/cor (25)
em decorrência da violência. Região Sul, Brasil,
n (%)
6 (23,1)
12 (46,1)
8 (30,8)
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Branca
21 (84,0)
Negra
1 (4,0)
Parda
3 (12,0)
Faixa etária (26)
20-29
15 (57,7)
30-39
9 (34.6)
40-49
2 (7,7)
50-59
Escolaridade* (17)
0-4
3 (17,6)
5-8
7 (41,2)
9-11
7 (41,2)
Trimestre da Gestação (26)
1º Trimestre
13 (50,0)
2 º Trimestre
7 (26,9)
3 º Trimestre
4 (15,4)
Idade gestacional ignorada
2 (7,7)
Situação conjugal (20)
Solteira
6 (31,6)
Casada
12 (63,2)
Separada
1 (5,2)
1 (16,7)
Deficiência ou transtorno
Fonte: Base de dados do Sistema Nacional de Notificações (SINAN) do Ministério da Saúde.
*Anos de estudo
De acordo com as informações sobre as características da ocorrência do feminicídio
o local predominante foi a residência (65,4%). O meio de agressão mais utilizado ocorreu
com arma de fogo (29,2%), seguido de objeto pérfuro-cortante (26,1%).
O principal agressor é o parceiro íntimo (35,6%). Um caso foi notificado como
homicídio (33,3%) e das 26 gestantes que morreram em decorrência da violência 2 foram por
suicídio (66,7%).
Tabela 2 - Características da violência do feminicídio. Região Sul, Brasil, 2009 a 2014
Variáveis n (=)
n (%)
Local ocorrência n (26)
Residência
17 (65,4)
Via Pública
4 (15,4)
Outros
5 (19,2)
Meio de agressão n (30)
Força corporal
4 (17,4)
Enforcamento
4 (17,4)
Objeto contundente
1 (4,4)
Objeto pérfuro-cortante
6 (26,1)
Substância/Objeto quente
1 (4,2)
Envenenamento
3 (13,1)
Arma de Fogo
7 (29,2)
Ameaça
1 (4,4)
Outros
3 (13,6)
Relação da vítima/agressor
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Parceiro íntimo
5 (35,6)
Desconhecido
2 (14,3)
Própria pessoa
4 (28,6)
Outros tipos de violência
Homicídio
1 (33,3)
Suicídio
2 (66,7)
Fonte: Base de dados do Sistema Nacional de Notificações (SINAM) do Ministério da Saúde.
3. DISCUSSÃO
Os levantamentos do presente estudo apontam que 26 gestantes na região Sul foram
notificadas no SINAN com óbito. Santa Catarina apresenta o maior número de mortes de
mulheres de cor/raça predominantemente branca, jovens, em idade reprodutiva, com 5 a 11
anos de escolaridade. Metade dos óbitos ocorreram no 1º trimestre da gestação, sendo a
maioria das mulheres casadas ou em união estável. A residência foi o principal local que
ocorreram os óbitos, que aconteceram majoritariamente com arma de fogo, seguido de objeto
pérfuro-cortante, ocorrendo violência física na maioria dos casos. O principal agressor é o
parceiro íntimo. Sendo um caso notificado como homicídio e 2 como suicídio.
A predominância da cor/raça branca, pode ser explicada pelo histórico dos imigrantes
que colonizaram a região sul, boa parte originários de países europeus como Itália, Alemanha
e Portugal (MUNDO EDUCAÇÃO, 2019). A maioria das gestantes tem de 5 a 11 anos de
escolaridade, o que segundo PNAD (2016) representa um número elevado comparado a
outros estados e demonstra a realidade da região Sul (8,3 anos) do país que tem nível de
escolaridade abaixo apenas da região Sudeste (8,8 anos).
Conforme o monitor da violência, a taxa de feminicídios teve número crescente no
decorrer dos anos, principalmente após a criação da Lei do Feminicídio nª 13.104, de 9 de
março de 2015. Em 2018, a taxa em Santa Catarina foi de 1,2%, no Paraná foi de 1,1% e no
Rio Grande do Sul foi a maior, com 2,0% por 100 mil mulheres (Monitor da Violência, 2018).
Quanto à taxa de homicídio de mulheres em 2013, o Paraná teve a maior taxa de 6%, seguido
do Rio Grande do Sul com 5% e Santa Catarina 4%.
A maioria dos crimes aconteceram nos primeiros trimestres da gestação, sendo 63,2%
das gestantes casadas e o autor da violência corresponde majoritariamente ao parceiro íntimo
da gestante. Conforme a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS, 2018), a violência
física ou sexual praticada pelo próprio parceiro, motivada por questões de gênero, afeta quase
60% das mulheres em alguns países das Américas. “No Brasil, em torno de 17% das mulheres
de 15 a 49 anos serão vítimas desse tipo de abuso em algum momento das suas vidas” (OPAS,
2018, p.1).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
309
Das 26 gestantes, 24 foram assassinadas e duas cometeram suicídio. Das 24 que
sofreram feminicídio 17 ocorreram na residência, lugar onde a mulher deveria estar segura.
Dentro de casa, o risco de sofrer violência aumenta, pois é onde a mulher se encontra muitas
vezes sozinha com o agressor, sem possibilidade de fugir ou pedir ajuda.
Segundo Patrícia Galvão (2013), em pesquisa com a população apontou que 85%
dos entrevistados acham que as mulheres que denunciam seus parceiros ou ex-parceiros
quando agredidas correm mais risco de serem assassinadas. A própria pesquisa aponta que o
silêncio, porém, tampouco é apontado como um caminho seguro: pois quando as agressões
contra a esposa/companheira ocorrem com frequência podem terminar em assassinato. Ou
seja, o risco de morte por violência doméstica pode ser iminente.
As mulheres gestantes perderam a sua vida e de seus filhos com meios de agressão
diversos e violentos para não dizer cruéis, 7 casos com uso de arma de fogo, 6 com objeto
pérfuro-cortante, as demais por força corporal, enforcamento e ainda envenenamento. Esses
dados demonstram que 84,3% das gestantes foram vítimas por violência física. Isso
demonstra a fragilidade da mulher frente a seu agressor.
Segundo Lin et Gill (2011), a porcentagem de crimes cometidos por parceiros íntimos
que não utilizaram arma de fogo, pode indicar que houve impulsividade e que o autor utilizou
o que havia disponível e pode indicar crimes de ódio ou por motivos fúteis. No Estados
Unidos, homicídio causado por arma de fogo também foi mais frequente do que por outras
causas. Isso pode ser explicado pelo fato de que a legislação em muitos estados (34 de 50)
permite o porte de armas.
No Brasil, com o decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo o Estado está
oferecendo um instrumento mais eficiente para que homens agressores cometam feminicídio.
Facilitando o acesso ao cidadão adquirir armas de fogo, potencializam a letalidade da
violência que, “como os dados mostram, não se resume aos “bandidos” que integram as
facções criminosas. O feminicida, não raro, preenche todos os requisitos do estereótipo do
cidadão de bem” (Monitor da Violência, 2019, p.1).
Estudos norte-americanos (LIN et GILL, 2011) apontam que a mortalidade materna
causada por injúrias, como homicídios e outros tipos, tem contribuido para elevar a taxa de
mortalidade materna. O homicídio de gestantes aumentou tanto relacionado a questões
médicas como júridicas, constado aumento do número de certidões de óbitos e de crimes no
sistema de justiça.
Até 1993, a mortalidade materna era defina pela Organização Mundial de Saúde
(OMS-CID-9) por mortes ocorridas por complicações naturais da gravidez e do período de
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
310
pós-parto, como hemorragias ou embolismo pulmonar; mortes relacionadas a causas não
naturais, como homicídio, suicídio e injúrias acidentais eram excluídas. Atualmente na
Classificação Internacional de Doenças (CID-10), foram realizadas mudanças na
classificação e na codificação das mortes maternas, com relação às mortes indiretas e o
momento das mortes relativas à gravidez, passando a incluir mortes maternas tardias e
relacionadas à gravidez (LIN et GILL, 2011).
De acordo com Munevar (2012) apud Meneghel e Portella (2017), é preciso realizar
as ações de nomear, visibilizar e conceituar as mortes violentas de mulheres, o que constitui
o exercício material do direito a ter direitos. Essas ações fazem parte das estratégias para
sensibilizar as instituições e sociedade sobre a ocorrência do feminicídio e a sua permanência
na sociedade, combater a impunidade penal, promover os direitos das mulheres e estimular
a adoção de políticas de prevenção à violência baseada no gênero.
Para tentar coibir a violência, o governo brasileiro, recorreu ao uso da tecnologia,
lançando um aplicativo para mulheres que estão sob medidas protetivas. A ferramenta facilita
o acionamento da polícia em caso de violência doméstica. O governo também “vem criando
políticas públicas para a conscientização social a respeito do assunto, e buscando melhorar o
atendimento nos órgãos de proteção à mulher, para que sejam amparadas e recebam a
proteção necessária das investidas de agressores” (Monitor da Violência, 2019). Além disso,
é necessário que o governo invista na capacitação de servidores, no treinamento de policiais,
na educação de crianças e jovens, e também no empoderamento e aumento da participação
das mulheres no mercado de trabalho (CNJ, 2019).
O suicídio e o homicídio contribuem para a taxa de mortalidade de mulheres jovens
em idade reprodutiva no EUA, representando a quarta e quinta principais causas de morte.
Conforme estudo, mulheres jovens, negras e com baixa escolaridade representam alto risco
de homicídio associado à gravidez, enquanto o suicídio associado à gravidez é mais comum
em mulheres de faixa etária mais elevada e de raça/cor branca. Evidencia, ainda, que o risco
de homicídio durante a gravidez/pós-parto é elevado, enquanto o risco de suicídio é reduzido
(WALLACE ET AL., 2016).
De acordo com o Wallace, Hoyert, Williams et Mendola. (2016), é impossível
determinar se as mortes violentas associadas à gravidez não teriam ocorrido se não houvesse
gravidez, entretanto, o número significante de violências por parceiro íntimo e casos de
homicídio e suicídio associados à gravidez, sugere que pode ser um estressante adicional em
situações de vulnerabilidade, ou que essas mortes podem ser o fim de um ciclo de violências
física e sexual que se encerra na gravidez.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
311
A gravidez é uma oportunidade para identificar mulheres que se encontram em risco
de homicídio e suicídio, principalmente aquelas que não acessariam os serviços de saúde e
de assistência social. No momento da consulta, os profissionais devem investigar, por meio
de perguntas sobre a realidade sociocultural da usuária, sem emitir julgamentos ou juízos de
valor. Assim, caso seja identificado uma situação de violência, os devidos encaminhamentos
devem ser providos, a fim de prevenir o feminicídio.
Pesquisa da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP, 2013) revela que
os operadores de Justiça ainda aplicam pouco a Lei Maria da Penha nos casos de homicídio
de mulheres. Entre 2006 a 2011, apenas 33% das peças do processo de homicídio de mulheres
mencionaram a lei, ou seja, “o sistema já falhou em proteger a mulher, o que restaria seria
agravar a pena ou ao menos mencionar isso, mas nem simbolicamente o problema da
violência de gênero aparece em muitos casos” (GALVÃO, 2016, p.1).
A lei do feminicídio prevê que a pena pode ser aumentada em 1/3 (um terço) até a
metade caso o crime tenha sido praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao
parto; contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com
deficiência; e na presença de descendente ou ascendente da vítima (BRASIL, 2015).
A criação da lei justifica-se devido à importância de tipificar o feminicídio e assim
reconhecer que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres, expondo a fratura
da desigualdade de gênero que persiste na sociedade. Bem como, “por combater a
impunidade, evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas
anacrônicas e moralmente inaceitáveis, como o de terem cometido crime passional”
(BRASIL, 2013). Segundo Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada (IPEA, 2015), a Lei
fez diminuir em cerca de 10% a taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das
residências das vítimas.
São necessárias também políticas de prevenção e reeducação, porque a Lei sozinha
não extingue o crime. Nesse sentido, a responsabilidade do Estado, e também da sociedade,
é trabalhar na implementação dos serviços como políticas de educação, uma rede intersetorial
de atendimento em Saúde, Assistência Social, Segurança Pública e Justiça.” Implementando
Defensorias das Mulheres, Varas de Enfrentamento à Violência Intrafamiliar e contra as
Mulheres, casas abrigo e serviços de atenção psicossocial. (GALVÃO, 2016, p.1) Sendo
realizada uma abordagem integral, multidisciplinar, transversal e capilarizada, desenvolvidas
de forma articulada e colaborativa entre os poderes da República e os entes federativos
(ONU, 2016).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
312
Segundo Galvão (2016), pesquisas identificaram que preconceitos históricos e
culturais, naturalizados socialmente, podem alimentar a inversão da culpa nos casos de
violência contra as mulheres, inclusive feminicídios. Esses sistemas discriminatórios fazem
com que mulheres não busquem ajuda para sair da situação de violência, ou que, quando
buscam não sejam devidamente acolhidas. “Além de perpetuar a cultura da violência, esta
inversão alimenta a impunidade e, consequentemente, a tolerância social ao assassinato de
mulheres” (GALVÃO, 2016, p.1).
Os diferentes aspectos das condições de vida, de acesso a serviços públicos e as
condições socioeconômicas influenciam nos resultados apresentados nesse estudo. É
importante considerar que essas diferenças podem estar associadas a características dos
estados relacionados a investimentos em políticas públicas de incentivo às denúncias de
violência contra a mulher, a maior disponibilidade de serviços de referência às mulheres e
suas famílias, a investimentos em campanhas de divulgação que possibilitem maior
visibilidade desse agravo, e também a mudança de valores e à conscientização por parte da
mulher acerca de seus direitos. Esses fatores podem propiciar melhoria nas notificações dos
casos e das formas de monitoramento da violência contra a mulher, prevenindo o feminicídio
(SGOBERO et al., 2015).
Segundo Sgobero, Monteschio, Zurita, Oliveira et Mathias (2015), a violência
raramente inicia-se durante a gestação, já que com frequência configura-se um padrão regular
e sistemático de relacionamento do casal. Por isso, é de suma importância que os
profissionais de saúde busquem identificar situações de violência, incluindo a investigação
na rotina de internação e atendimentos, especialmente quanto às gestantes que iniciaram
acompanhamento mais tardiamente e/ou tiveram um número reduzido de consultas prénatais. A instrumentalização dos profissionais da saúde quanto ao conhecimento dos fatores
que se associam à ocorrência da violência, permite que eles identifiquem essas características
na mulher e sua família e priorizem um atendimento mais próximo, com equipe
multiprofissional e realizem uma abordagem interdisciplinar, a fim de elaborar uma
assistência direcionada e específica para encaminhamentos necessários no sentido de
proteger a gestante.
Aponta-se como relevante a análise realizada sobre os dados do SINAN porque sua
tipificação permite que uma morte por violência seja registrada por suas características
clínicas, sem a necessidade de tipificação de natureza criminal. É de extrema importância
produzir estatísticas que respondam às questões específicas das violações contra mulheres,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
313
pois é possível traçar políticas públicas e qualificar serviços de atenção à mulher vítima de
violência que pode diminuir o número de vitimização por esta causa (ROMIO, 2017).
Além de contribuir para a coleta de estatísticas, o setor de saúde pode desempenhar
um papel importante na resposta às violências contra as mulheres. Profissionais podem
fornecer atendimento imediato e reduzir os danos, garantindo apoio e encaminhamento para
outros setores, incluindo serviços legais e sociais (OPAS, 2018).
A partir desse estudo foi possível constatar a importância de os profissionais dos
serviços realizarem a notificação e registro completo dos dados no SINAN, visto que ainda
é insuficiente, limitando o estudo. Bem como é necessário aprimoramento na coleta de dados
e ampliação dos registros das agressões e mortes violentas de mulheres, para que os dados
exponham o problema com mais clareza a fim de contemplar as políticas públicas e que haja
ampliação da cobertura do registro no território nacional de forma integrada dos sistemas.
Dessa forma, é possível planejar políticas públicas intersetoriais voltadas à prevenção e
proteção de mulheres em situação de violência, bem como capacitar profissionais para
atuarem de forma multiprofissional e interdisciplinar à essas mulheres, visando garantir o
direito à saúde integral e prevenindo mortes evitáveis.
REFERÊNCIAS
ANIS/SENASP. O impacto dos laudos periciais no julgamento de homicídio de
mulheres em contexto de violência doméstica ou familiar no distrito federal. 2013.
Disponível em: https://assets-compromissoeatitudeipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2013/03/ANIS_-_LAUDOS_PERICIAIS.pdf Acesso em:
05 mai. 2019.
BRASIL, Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº
2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, para prever o feminicídio como
circunstancia qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de
julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Brasília.
2015.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20152018/2015/Lei/L13104.htm . Acesso em: 07 de abr. de 2019.
BRASIL, Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013 (da CPMI – Violência contra a mulher
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ESTUPRO COMO ARMA DE GUERRA: ESTUDO SOBRE A GUERRA DA EXIUGOSLÁVIA
Fernanda Moura Muniz1
RESUMO
O presente artigo busca mostrar como e por que razão o estupro das mulheres foi utilizado
como principal estratégia bélica no conflito ocorrido na república da Bósnia-Herzegovina
durante a guerra da ex-Iugoslávia. Nesse sentido, através da análise do conflito em questão,
marcado pelo nacionalismo étnico, demonstrar-se-á a relação existente entre as divergências
étnicas e as violações sexuais massivas e sistemáticas perpetradas. Para tanto, será preciso
analisar a significação da violação sexual das mulheres dentro de uma sociedade
hierarquicamente marcada, a fim de que seja possível explicar o motivo pelo qual o estupro
dos corpos femininos se tornou a principal arma de guerra.
Palavras-chave: Violação. Guerra. Ex-Iugoslávia. Mulheres.
INTRODUÇÃO
O corpo das mulheres, sobrecarregado pela subjugação social, apresenta-se como
palco para as manifestações de poder, sendo alvo de intensas violências e discriminações ao
longo da história. Ao adentrar o contexto de guerra, que evidencia o lado mais sombrio e
cruel dos seres humanos, a violência estrutural direcionada às mulheres alcança outra
dimensão e passa a ter um sentido ainda mais profundo. Nesse sentido, a violação sexual
perpetrada contra as mulheres foi ressignificada após a 2.ª Guerra Mundial – principalmente
nos conflitos armados ocorridos em Ruanda e na ex-Iugoslávia –, na medida em que passou
a ocupar o papel central da estratégia bélica, sendo utilizada como verdadeira arma de guerra.
O presente estudo, de natureza, em boa parte, explicativa, pretende analisar qual a
razão e de que maneira o estupro dos corpos femininos se tornou o centro da estratégia de
guerra, tomando o conflito separatista ocorrido na ex-Iugoslávia – mais especificamente o
que se deu no território atualmente pertencente à Bósnia-Herzegovina – como referência,
abordagem essa importante por permitir que se chegue à compreensão das raízes sobre as
quais se assenta a violência sexual contra as mulheres, premissa fundamental para que se
possa construir uma solução para um problema tão visceral, quanto atual.
A metodologia utilizada se escora em três pilares, a saber: (i) vinte dias de vivência
na Bósnia-Herzegovina estudando a história e os crimes cometidos durante a guerra,
conhecendo em visitas a museus da guerra por todo o país, os instrumentos utilizados para a
1
Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais, Universidade de Lisboa, 2020.
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prática das violações sexuais e analisando os depoimentos prestados pelas vítimas; (ii) estudo
das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional – criado exclusivamente para julgar
os crimes cometidos durante o conflito separatista da ex-Iugoslávia – nos processos
instaurados contra os principais acusados de estupro na região e período em questão; e (iii)
investigação bibliográfica de autores representativos sobre a temática ora analisada.
Para tanto, abordar-se-á a significação do estupro das mulheres nos âmbitos privado
e público, a ressignificação do fenômeno bélico e o contexto histórico social existente na
Bósnia-Herzegovina quando da deflagração do conflito separatista, para, então, se proceder
à análise do sentido das violações sexuais contra as mulheres no cenário de extrema
xenofobia entre os grupos étnicos, demonstrando-se de que maneira esses estupros foram
utilizados como a principal estratégia de guerra. Por fim, discorrer-se-á acerca da posição
adotada pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc, de modo a se apontar o conceito de estupro
utilizado e quais as possibilidades de enquadramento jurídico-penal dessas condutas à luz de
seu Estatuto.
1. O SIGNIFICADO DA VIOLAÇÃO DO CORPO DAS MULHERES NOS ÂMBITOS
PÚBLICO E PRIVADO
A estrutura social – que organiza a sociedade em feminino e masculino2 – é
historicamente marcada por relações de poder desiguais, conduzindo, em consequência, à
dominação e subordinação das mulheres pelos homens3. O alicerce de tal estrutura se assenta
em uma relação hierárquica de poder na qual as mulheres se encontram em estado de
submissão e inferioridade em relação aos homens, aprisionadas a “um destino
naturalisticamente determinado” (BELEZA, 2010, p. 74). Isso acontece porque a sociedade
é condicionada à perspectiva de gênero, fazendo com que haja papéis socialmente
adjudicados para homens e mulheres, o que conduz a um desnível de poder e à superioridade
masculina em detrimento do gênero feminino. Essa relação de poder limitante faz com que
as mulheres não sejam elevadas à dignidade de pessoa, mas vistas e tratadas como patrimônio
do homem (BEAUVOIR, 1960).
Se no espaço público os corpos das mulheres não são vistos como delas, fazendo com
que os homens se sintam no direito – e até na obrigação – de dirigir-lhes palavras obscenas
2
Nesse sentido, Simone de Beauvoir afirma que diante dessa alteridade o homem é o absoluto e a mulher é
sempre o outro. (BEAUVOIR, 1960)
3
Como se verifica no preâmbulo da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à
Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica de 11 de maio de 2011.
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ou tocar-lhes, no espaço privado esses mesmos corpos são vistos como propriedade da figura
paterna, do marido, companheiro ou qualquer pessoa do gênero masculino com quem
possuam relação de intimidade. Dessa forma, sendo as mulheres alienadas de si mesmas, o
que representa a violação sexual de seus corpos?
Para responder a essa pergunta, é preciso entender que o estupro é um subproduto
dessa estrutura que tem por base a inferioridade feminina, não se tratando, portanto, de uma
violência individual, mas estrutural, pois há uma relação direta entre essa transgressão sexual
e todas as estruturas de poder existentes em uma sociedade (DAVIS, 2017).
Nesse sentido, o estupro do corpo do outro é uma manifestação de poder, uma vez
que representa “o aniquilamento da vontade da vítima, cuja redução é justamente significada
pela perda de controle sobre o comportamento do seu corpo e o agenciamento do mesmo pela
vontade do agressor” (SEGATO, 2016, p. 38, tradução nossa), trazendo em si num único ato
a dominação física e psíquica do dominado. Sendo a violação sexual a máxima expressão da
sobreposição de uma vontade sobre a outra, o estupro das mulheres traduz uma forma de
demonstrar e reforçar o poder estrutural patriarcal existente, marcando o domínio masculino
nas entranhas do corpo feminino.
Não por outra razão, o estupro das mulheres não tem prioritariamente o objetivo de
satisfazer a lascívia sexual, caracterizando-se, em verdade, em um instrumento de controle e
domínio, de modo que – na maioria das vezes – não é cometido por um desejo incontrolado
do agressor (ANDRADE, 2005). Isto significa que, de forma preponderante, os estupros não
representam um desvio individual, não sendo os agressores sexuais anômalos sociais ou
portadores de perturbação mental; ao contrário, são, no mais das vezes, indivíduos
perfeitamente inseridos na estrutura social existente, que atuam de forma oportunista,
utilizando-se de uma relação de poder antecedente que concede inteligibilidade às suas ações
(SEGATO, 2016).
Embora a violação sexual seja um elemento da opressão sistemática sofrida pelas
mulheres, traduzindo-se em uma forma de expressão do poder enraizado socialmente, a sua
significação possui contornos específicos relacionados ao espaço em que praticada, se
privado ou público, pois, apesar de partir do mesmo prisma – estrutura social de domínio
masculino –, há certas características que lhes são peculiares.
O seio familiar – entendido como qualquer espaço em que ocorra relação de
intimidade – é o ambiente mais íntimo dos seres humanos e, paradoxalmente, o local em que
se revelam intensas violências contra as mulheres. Isso porque, além de ser um ambiente
privado (portanto, mais fácil de ocultar o que ali acontece), tem como base estruturante,
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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diante da sociedade patriarcal, a dominação masculina. Se a esfera privada é um local de
domínio masculino, as mulheres abrigadas nesse espaço também se tornam, em
consequência, parte da zona de controle dos homens, sendo, por isso, o espaço privadofamiliar o principal local de incidência da violação sexual contra as mulheres (ANDRADE,
2005). Dessa forma, a esfera íntima é elementar no controle social – e na opressão – das
mulheres, exercendo um papel crucial para reforçar e manter a sua subjugação.
Isto posto, quando a violação sexual das mulheres acontece nesse ambiente – em que
agressor pertence ao espaço doméstico da vítima – a mensagem que se transmite é a de
“constatação de um domínio já existente” (SEGATO, 2016, p. 43, tradução nossa), pois o
corpo da mulher já é entendido como propriedade do ofensor. Assim sendo, “ao abrigo do
espaço doméstico o homem abusa das mulheres que se encontram sob sua dependência
porque pode fazê-lo, isto é, porque estas já fazem parte do território que controla” (SEGATO,
2016, p. 23, tradução nossa). Portanto, a significação do estupro na esfera privada é de que o
ofensor expressa seu poder e domínio – com base na estrutura patriarcal – advinda da relação
de intimidade pretérita com aquela vítima específica.
Por outro lado, quando a violação sexual das mulheres acontece no espaço público –
em que o agressor não pertence ao espaço doméstico da vítima e sequer a conhece – não há
que se falar que aquela vítima específica é parte território de controle daquele ofensor. No
entanto, por ser homem, o agressor tem poder para fazê-lo, e o faz como forma de demonstrar
publicamente a sua capacidade de domínio. Mas para além de instrumento de domínio, o
estupro perpetrado nesse contexto é também uma forma de reforçar os papéis hierárquicos
dentro da estrutura social, evidenciando por meio daquele ato o controle absoluto da vontade
da vítima ao expressar, ao mesmo tempo, a inferioridade do agredido e a supremacia do
agressor.
Desse modo, a violação sexual das mulheres tem um caráter duplamente expressivo,
transmitindo, no eixo vertical, uma mensagem moralizadora para a vítima, de que “é o destino
da mulher ser contida, censurada, disciplinada e reduzida” (SEGATO, 2016, p. 40, tradução
nossa), e, por outro lado, no eixo horizontal, uma mensagem para a comunidade que reforça
a virilidade do ofensor como pertencente à sociedade masculinamente hierarquizada
(SEGATO, 2016).
Como efeito dessa mesma estrutura, a sexualidade feminina é impregnada de
moralidade – muitas vezes conectada também com crenças religiosas – advinda da alienação
do corpo feminino, de modo que, se for um estranho a tocar-lhe, ainda que forçosamente, a
moral da mulher estuprada e do proprietário daquele corpo – podendo ser entendido como o
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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marido, a família ou a coletividade a qual ela pertença – passa a estar infectada. Conclui-se,
assim, que a violação sexual perpetrada por um estranho que não tem o domínio direto
daquele corpo atinge não apenas a integridade física e psíquica da vítima, mas também a sua
moral e a de todos os seus associados.
2. A GUERRA E A VIOLAÇÃO DAS MULHERES
Tratando-se a guerra de fenômeno ocorrido em espaço público, a violação sexual das
mulheres sempre esteve presente nos conflitos armados, tendo, contudo, experimentado
significativo processo de transformação após a 2.ª Guerra Mundial. Para que se possa
compreender de que maneira se deu tal processo, analisaremos, inicialmente, as
características da violação das mulheres em ambiente de conflito armado e a ressignificação
do fenómeno bélico, para, após, adentramos especificamente no confronto ocorrido na exIugoslávia, no qual essa nova significação se mostrou presente de forma nítida.
2.1 A ressignificação ocorrida após a 2ª Guerra Mundial
Realidade vivida pelas mulheres ao longo da história – uma vez que a sua raiz é a
própria estrutura social patriarcal –, a violação sexual foi fenômeno presente também nas
duas Guerras Mundiais, conflitos nos quais diversos abusos sexuais foram perpetrados contra
mulheres de diferentes nacionalidades e idades (ODIO BENITO, 1998). No entanto, após a
2.ª Guerra Mundial, o fenômeno passou por processo de ressignificação, vindo a adquirir
outra dimensão, podendo se verificar tais mudanças, por exemplo, nos conflitos ocorridos na
ex-Iugoslávia e em Ruanda – os quais representaram um paradigma de transformação nos
métodos bélicos (SEGATO, 2016).
Tal mudança ocorreu pelo fenômeno de paramilitarização4 da guerra, a qual passou a
ser “controlada por corporações armadas com a participação de estados e paraestatais”
(SEGATO, 2016, p. 57, tradução nossa), tornando-se informalizada, tendo em vista que o
conflito que antes ocorria entre Estados-nação, passou a contar com a participação ativa de
grupos privados. Em consequência, a violência passou a não ser mais utilizada para derrotar
diretamente o inimigo, mas como instrumento de expressão da derrota, para simbolizar a
destruição e mostrar soberania frente ao opositor, desmoralizando-o por meio da imposição
4
Como exemplo de tal fenômeno, durante a guerra da Jugoslávia - na república da Bósnia-Herzegovina - José
A. Lindgren Alves expõe que grande parte dos campos de violação, massacres e suplícios eram mantidos por
paramilitares sérvios. Por outro lado, a parte muçulmana de Saravejo também estava sob controle de diversos
grupos paramilitares, “que tentavam à força dominar áreas cada vez maiores, como forma de auferir lucros com
o conflito” (ALVES, 2013, p. 115, apud AGUILAR, 2003, p. 91).
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da crueldade, da ausência de limites na prática de atrocidades e do apelo ao horror, uma vez
que, com a ressignificação, uma guerra que resultasse apenas em extermínio não constituiria
vitória, tornando-se necessário exibir o poder de morte do dominador aos que permanecessem
vivos (SEGATO, 2016).
Sendo a prática de uma crueldade discricionária do dominador a forma crucial de
evidenciar sua soberania, representando não só a vitória física, mas também a derrota
psicológica e moral do inimigo, a violência se tornou um fim em si mesmo. Com isso, a
população civil passou a ser o principal alvo do ataque dos grupos de conflito5, sendo
relevante notar que o número de vítimas não militares subiu de cerca de 48% (quarenta e oito
por cento) na 2.ª Guerra Mundial, para aproximadamente 90% (noventa por cento) – em sua
maioria mulheres e crianças – na guerra da ex-Iugoslávia (ODIO BENITO, 1998). Ademais,
sendo os corpos da população civil neutros frente à guerra, pois sequer participavam
ativamente do combate, a truculência a eles direcionada atingia toda a comunidade da qual
faziam parte, ao mesmo tempo em que evidenciava o fracasso dos que deveriam protegê-los
(em respeito à lógica estrutural de cada grupo).
Nesse novo cenário, em que a imposição de dor, a profanação, humilhação e o
desmantelamento do inimigo se transformaram no objetivo maior da guerra, o estupro, que
antes ocorria como um complemento do conflito armado, muitas vezes interpretado –
erroneamente – como um delito de menor importância ou mesmo efeito colateral da batalha
(ODIO BENITO, 1998), passou a ocupar um papel central na estratégia bélica.
2.2 A violação sexual das mulheres ocorrida no (atual) território da Bósnia-Herzegovina
durante a guerra da ex-Iugoslávia
Tendo em vista que as violações sexuais das mulheres ocorridas no território da
Bósnia-Herzegovina estão intrinsecamente conectadas com a composição étnico-religiosa da
região e com as divergências entre os grupos – que motivaram o início da guerra e a
desintegração da Iugoslávia –, mostra-se necessário contextualizar brevemente o referido
conflito.
5
Maria Villellas Ariño demonstra em diferentes conflitos como os corpos da população civil foram utilizados
como principal alvo da violência, exemplificando com a utilização de minas contra pessoas na Angola e no
Camboja, os atentados suicidas nos ônibus em Israel, as mutilações ocorridas durante o conflito armado em
Serra Leoa, entre outros. (VILLELLAS ARIÑO, 2010)
Especificamente no conflito da Bósnia, um bom exemplo dessa ressignificação se deu através do cerco de
Saravejo realizado pelas tropas sérvias que durou quase quatro anos, no qual a população – em sua maioria civil
– teve seus recursos básicos cortados e era constantemente bombardeada (ALVES, 2013).
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Antes da desintegração, o território da ex-Iugoslávia possuía uma delimitação
artificial de suas fronteiras, sendo composto por seis repúblicas: Eslovênia, Croácia, BósniaHerzegovina, Montenegro, Macedonia e Sérvia – incluindo as regiões autónomas de
Vojvodina e Kosovo (IVANA ACOSTA; GASTÓN PEREZ, 2011). No final da 2.ª Guerra
Mundial, a região passou a ser denominada de República Federal Socialista da Iugoslávia6,
a qual, em decorrência da sua configuração, consistia em um verdadeiro mosaico de etnias e
religiões, das quais as principais eram o cristianismo ortodoxo, o catolicismo e o islamismo.
O fim da Guerra-Fria e a queda do socialismo coincidiram com um período de intensa
crise política e econômica, o que gerou uma proliferação de partidos políticos a exaltar a
diferença entre os grupos7 e a defender a independência ou maiores poderes para algumas
repúblicas dentro da federação. A partir disso, os partidos começaram a fomentar o
nacionalismo dentro das federações, estimulando a desconfiança e o sentimento de medo
entre os diferentes grupos étnicos. Nesse período, a região foi dominada por um sentimento
generalizado de insegurança, levando ao desmembramento da Eslovénia e da Croácia –
acusados pela Sérvia de separatistas –, marcando o início da guerra em junho de 1991
(AGUILAR; MATHIAS, 2012).
Todavia, o conflito mais grave na desintegração da Iugoslávia ocorreu na república
da Bósnia-Herzegovina, tendo início em abril de 1992 e perdurando até novembro de 1995.
Multi-étnico, o território em questão era composto majoritariamente por três grupos de
crenças religiosas diferentes: os muçulmanos8 ou bosníacos (Islamismo), os sérvios
(ortodoxismo) e os croatas (catolicismo)9. Após um plebiscito na república, a independência
da Bósnia-Herzegovina foi aprovada por maioria dos muçulmanos e croatas, o que provocou
uma revolta dos sérvios que lá habitavam, desencadeando o conflito no território.
Em consequência da guerra instalada, motivada por nacionalismo étnico das
diferentes comunidades (ALVES, 2013), milhares de mulheres da Bósnia – croatas, sérvias
e muçulmanas – foram vítimas de violações e agressões sexuais realizadas majoritariamente
por membros de grupos inimigos. Tais estupros ocorreram em diversas regiões do território
6
Inicialmente denominava-se República Federativa Popular da Jugoslávia, mas em 1963 foi alterado para
República Federal Socialista da Jugoslávia (AGUILAR; MATHIAS, 2012).
7
Nesse sentido: “It was with the help of the state media, national radio and TV and the newspapers with the
largest circulation and greatest privileges, that people got convinced that they could no longer live together that
they were threatened by their neighbours with whom they had had perfect relations for decades.” (MIRKOVIC,
1998, p. 37)
8
Nota-se que apesar do termo “muçulmano” ser uma denominação religiosa, na Iugoslávia foi atrelado às
pessoas que eram da religião ilsâmica e tinham nacionalidade bosníaca.
9
Em média, os muçulmanos representavam 43,5% (quarenta e três vírgula cinco por cento), os sérvios 31,2%
(trinta e um vírgula dois por cento) e os croatas 17,4% (dezesete vírgula quatro por centro) da população que
habitava a Bósnia (MARKO, 2000).
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e foram cometidos por todos os lados da guerra, embora em sua maioria e de forma massiva
por sérvios. Os perpetradores geralmente pertenciam a um grupo étnico diferente da vítima
e eram, no mais das vezes, figuras de autoridade – policiais, paramilitares, guardas de campo,
comandantes, soldados. Segundo a Anistia Internacional, as violações sexuais
frequentemente aconteciam na frente de outras pessoas, que podiam ser parentes da vítima –
principalmente do sexo masculino10 – ou membros do grupo do estuprador, buscando reforçar
a humilhação da mulher violada (AMNESTY INTERNACIONAL, 1993).
Contudo, tendo em vista que sobre a base das características da violência sexual
exercida pelos sérvios havia uma política generalizada de limpeza étnica e perseguição aos
não sérvios, as principais vítimas dos estupros na guerra foram civis não sérvias, em sua
maioria muçulmanas. As violações sexuais perpetradas pelos sérvios foram realizadas em
um estilo sistemático e utilizando métodos similares: estupros em massa (vários indivíduos
com a mesma vítima), estupros nos campos de detenção, estupros públicos, uso de métodos
brutais conjuntamente com outras violações de direito internacional humanitário11. Nesse
sentido, as violações sexuais foram praticadas de forma que os grupos tivessem
conhecimento – e o demonstrassem – da ausência de limites, fato esse que propiciou o estupro
de muitas mulheres até perderem a consciência12 ou virem a morrer (MACKINNON, 1998).
Como consequência da campanha de limpeza étnica, as violações sexuais dos sérvios
também objetivavam expulsar a população não sérvia de seus territórios, compelindo-a a sair
por meio do constrangimento e humilhação praticados contra as vítimas estupradas e a
comunidade a que elas pertenciam13. Por outro lado, muitos desses estupros tinham como
propósito a gravidez forçada, havendo relatos da existência de campos de detenção dedicados
exclusivamente a provocar nascimentos de crianças sérvias14. Nessas oportunidades, as
mulheres violentadas eram presas e vigiadas – a fim de que não pudessem realizar o aborto
10
É possível verificar nesse trecho retirado do caso N.º IT-00-39-T julgado pelo TPIJ, que o marido foi obrigado
a assistir a mulher sendo violada, “On 4 July 1992, in the same police station, the witness was forced by Popić
to watch the rape of his own wife by a Serb man from the Munja unit of the Red Berets assisted by two other
armed Red Berets.” (TPIJ, 2006, p. 241).
11
Nesse sentido, segundo o Tribunal: “Sexual assaults occurred in several regions of Bosnia and Herzegovina,
in a systematic fashion and using recurring methods (e.g. gang rape, sexual assault in camps, use of brutal
means, together with other violations of international humanitarian law)”. (TPIJ, 1996, p. 35).
12
Verifica-se no caso “IT-00-39-T” que uma vítima foi violada por dez soldados sérvios no campo de detenção
até que perdesse a consciência. (TPIJ, 2006, p. 233).
13
Nesse sentido, segundo o Tribunal: “They were performed together with an effort to displace civilians and
such as to increase the shame and humiliation of the victims and of the community they belonged to in order to
force them to leave”. (TPIJ, 1996, p. 35).
14
Segundo o Tribunal: “Some camps were specially devoted to rape, with aim of forcing the birth of Serbian
offspring, the women often being interned until it was too late for them to undergo an abortion” (TPIJ, 1996, p.
35).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
324
– sendo liberadas quando transcorrido tempo supostamente suficiente para evitar a
interrupção da gravidez (REHN; SIRELAF, 2002).
Ademais, as mulheres estupradas também eram frequentemente submetidas à
prostituição forçada e às vezes vendidas pelos estupradores. Há, ainda, relatos de mulheres
que foram sequestradas pelos perpetradores em casa e, além de serem constantemente
estupradas por soldados sérvios, tinham que realizar tarefas domésticas15 a fim de servi-los.
Outrossim, as violações sexuais eram mescladas com diferentes formas de perversão – como
obrigar as vítimas a dançarem nuas em uma mesa enquanto soldados sérvios assistiam e
apontavam-lhes armas16– e também eram realizadas, no mais das vezes, em conjunto com
agressões verbais, a fim de aumentar a hostilização das vítimas17 e reforçar a supremacia
étnica do estuprador.
A Anistia Internacional (AMNESTY INTERNACIONAL, 1993) identificou três
situações principais em que eram praticadas as violações e os abusos sexuais no território da
Bósnia-Herzegovina durante o conflito, sendo a primeira delas ocorrida quando a autoridade
– policiais, paramilitares, entre outros – que estava controlando determinada área se utilizava
do seu poder para cometer tal forma de violência. Nessa situação, os estupradores exploravam
o clima de medo e a vulnerabilidade das mulheres, que se justificava, muitas vezes, pela
ausência do marido ou de algum parente do sexo masculino, para cometer os estupros
(AMNESTY INTERNACIONAL, 1993). As violações sexuais podiam ocorrer no local onde
se encontravam as mulheres ou em outro lugar para o qual eram levadas temporariamente a
fim de que fossem estupradas massivamente.
A segunda situação identificada pela Anistia Internacional consistia nos estupros
realizados pelas autoridades nos campos de detenção em que as mulheres se encontravam
detidas, os quais não teriam a finalidade específica de viabilizar a prática dos abusos sexuais.
Por sua vez, a terceira situação identificada pela Anistia Internacional foi a ocorrência de
violações sexuais executadas nos denominados “campos de estupro”, estabelecimentos que
tinham como objetivo único e exclusivo propiciar a violação sexual e o abuso das mulheres
aprisionadas. Outrossim, os estupradores – na maioria soldados – recebiam ordens para e
Segundo o testemunho de “FWS-87”, “They were also forced to do household chores like washing, cooking,
laundering and cleaning”. (TPIJ, 2001a, p. 35).
16
Sobre a dança nua é possível verificar no “IT-96-23T” que as vítimas foram forçadas a retirar a roupa e dançar
nuas na mesa enquanto o acusado observava. (TPIJ, 2001a, p. 246).
17
Veja-se, a esse respeito, que no julgamento de Dragoljub Kunarac, a vítima “FWS-183” afirmou em seu
depoimento que após ser violentada por ele e mais outro soldado, Kunarac havia falado aos risos que agora ela
carregava um bebê sérvio e não poderia saber quem era o pai (TPIJ, 2001a, p. 207).
15
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
325
qurealizassem as violações sexuais18, ou seja, os comandantes dos campos e oficiais tinham
conhecimento dos acontecimentos, quando não participavam do ato (ODIO BENITO, 1998).
Por outro lado, ainda segundo Odio Benito, nos campos de detenção os estupros também
eram perpetrados por civis, que adentravam os locais e violavam sexualmente as mulheres
com a permissão e incentivo da autoridade presente.
Conclui-se, portanto, que os estupros ocorridos no conflito ocorrido na BósniaHerzegovina tinham fundamentalmente um caráter étnico, no qual os estupradores se
utilizavam dessa violência para autoafirmar o grupo a que pertenciam frente aos demais.
3. O QUE REPRESENTA A VIOLAÇÃO SEXUAL DO CORPO DA MULHER
COMO ESTRATÉGIA DE GUERRA
“Toda experiência de guerra é, antes de tudo, experiência do corpo” (AUDOINROUZEAU, 2009, p. 365), pois os corpos protagonizam as duas esferas antagónicas
existentes em um cenário bélico, na medida em que, de um lado, aplicam a violência, e, de
outro, é através deles que essa mesma violência é sofrida (AUDOIN-ROUZEAU, 2009).
Com a ressignificação do cenário bélico, houve um redirecionamento do
protagonismo dessa violência, que antes se dava majoritariamente contra os corpos dos
combatentes. A nova dimensão contextual da guerra, na qual se pretende afirmar o poder dos
grupos utilizando-se de métodos cruéis, transformou a violência contra os corpos da
população civil no meio ideal para alcançar a desmoralização e destruição do inimigo. A
violação sexual desses corpos, por sua vez, consegue alcançar numa única ação vários
resultados, pois representa a destruição física, psicológica e moral do violado, além de
reforçar o poder de domínio do agressor. Mas por que os corpos femininos foram os
principais alvos dos estupros, que, na guerra da ex-Iugoslávia, passaram a ocupar uma
posição central na estratégia bélica?
Em primeiro lugar, diante de uma dimensão individual, a violação sexual contra a
mulher traduz a supremacia masculina por meio da submissão feminina, causando nas
vítimas o sentimento de pânico e impotência diante do inimigo. No entanto, ao estuprar as
mulheres, que representam um corpo neutro frente à guerra, a truculência e a crueldade
direcionadas a elas atingem também toda a comunidade a qual elas pertencem (SEGATO,
2016). Há, ainda, uma dimensão coletiva das violações, tendo em vista que não eram
18
Segundo a Newsweek, um soldado sérvio declarou que eles eram ordenados a violar as mulheres, a fim de
que a moral no grupo fosse mais alta. (Newsweek Staff, 1993)
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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realizadas apenas pela misoginia, possuindo, em verdade, motivações étnicas explícitas19, ou
seja, tratava-se de “violação étnica como uma política oficial de guerra” (MACKINNON,
1998, p. 96, tradução nossa). A violência hostil dirigida às mulheres tinha razões xenófobas,
sendo o estupro do corpo feminino o meio utilizado para atingir o grupo étnico a que ela
pertencia, traduzindo a máxima objetificação da mulher. Nesse horizonte de análise, o prazer
sexual do perpetrador sequer estava em causa nas violações sexuais massivas, dado que a
instrumentalização da mulher era tão evidente, que seus corpos passaram a ser o principal
palco de expressão da xenofobia.
Com efeito, o desejo de anular o inimigo – partindo de motivações xenófobas –
manifestava-se no corpo da mulher essencialmente de duas formas. De um modo mais
evidente, a mulher representava o instrumento pelo qual a campanha de limpeza étnica dos
sérvios podia se realizar, ou seja, através das violações era possível gerar bebês sérvios,
viabilizando, assim, a construção de um estado puramente sérvio (MACKINNON, 1998). De
outro modo, ancorando-se diretamente na estrutura patriarcal – que aliena a mulher do seu
próprio corpo, considerando-o propriedade masculina (e da comunidade) –, não apenas a
humilhação e o poder transmitidos no estupro por meio da sobreposição de uma vontade
sobre a outra atingiam toda a comunidade, como ainda o controle exercido pelo violador
diretamente sobre a vítima se estendia para todo o grupo étnico ao qual ela pertencia.
Assentando-se na mesma estrutura, a violação sexual da mulher – que sequer era
combatente na guerra – evidenciava que os homens pertencentes ao grupo étnico delas
falharam no papel de proteção que se espera do gênero masculino, isto é, na defesa de suas
propriedades, o que por si só representa o seu completo fracasso e humilhação. Nesse sentido,
o estupro da mulher trazia em si a realimentação do próprio patriarcado, fazendo com que a
guerra invadisse o espaço doméstico e destruísse os laços de confiança do tecido social
(SEGATO, 2016), na medida em que reforçava a ideia de que a violência contra mulheres –
pilar da sociedade – representaria a falência do dever masculino de proteção.
Ainda nesse horizonte, é preciso ter em vista que a sexualidade da mulher é dotada
de moralidade, havendo, por se tratar de grupos étnicos-religiosos, um controle ainda maior
sobre o corpo e reprodução femininos. Nesse prisma, além de representar um desrespeito às
regras sociais e religiosas impostas sobre o corpo das mulheres, sua violação sexual no
19
Como exemplo da motivação étnica verbalmente explícita, é possivel notar através do trecho retirado do caso
n.º IT-96-23T: “During one rape, Kunarac expressed with verbal and physical aggression his view that rapes
against Muslim women were one of the many ways in which the Serbs could assert their superiority and victory
over the Muslims.” (TPIJ, 2001a, p. 234).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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contexto de guerra traduz um verdadeiro assassinato moral dos homens daquele grupo
(agravado pela espetacularização das violações), isto é, além de extravasar os limites sociais
e religiosos existentes sobre a mulher, o estupro no contexto de guerra ultrapassa as fronteiras
físicas e atinge diretamente a honra, que sequer é da mulher, mas do homem que a possui e
da comunidade da qual ela faz parte.
Paradoxalmente – mas respeitando a lógica do patriarcado – as mulheres estupradas
sofriam o estigma desse estupro, de modo que é comum que sejam culpadas pelas violências
perpetradas nos seus corpos e, consequentemente, transformadas em motivo de vergonha
para a família, quando não rejeitadas20 (REHN; SIRLEAF, 2002). A rejeição podia, ainda,
se agravar se era pressuposto que a mulher fosse virgem diante dos padrões sociais, culturais
e religiosos da sua comunidade, pois o estupro significava que a vítima fora desvirtuada antes
do casamento. Nesse sentido, mesmo se tratando de um ato cometido contra a sua vontade, a
mulher vítima dificilmente conseguiria se casar, ficando sempre à margem da sociedade
(REHN; SIRLEAF, 2002), considerando que o matrimônio para os grupos étnicos religiosos
em questão – e também para a sociedade em geral – é imprescindível para que as mulheres
alcancem alguma posição social.
Dessa forma, quanto mais perto a sexualidade feminina estiver da virtude, maior será
a rejeição da mulher estuprada, e, consequentemente, mais facilmente os estupradores
alcançarão seu objetivo de desestruturar a comunidade inimiga. A violação sexual, nesses
casos, representa um verdadeiro ato de profanação (SEGATO, 2016), traduzindo-se em uma
forma de destruição do tecido social – por meio da destruição dos laços familiares – da
comunidade através da aniquilação daquilo que é sagrado e fundamental para manter a sua
conformação. Isso porque, na estrutura patriarcal existente, a mulher representa o eixo central
que sustenta todo o tecido social, de modo que o estupro do seu corpo importa em uma forma
eficiente de dissolver e destruir toda a comunidade. Portanto, a estratégia de guerra consistia
em identificar o centro de gravidade do tecido social para atacá-lo, a fim de destruir a
comunidade de uma “maneira mais eficiente, direta e rápida, e sem gastar tanta bala”
(SEGATO, 2016, p. 162, tradução nossa).
Conclui-se, por todo o exposto, que o estupro da mulher passou a representar um
papel central e estratégico nas novas técnicas de guerra, tendo em vista que, se escorando no
reconhecimento da existência da estrutura do patriarcado na sociedade (SEGATO, 2016),
Nota-se também que as poucas mulheres estupradas que não conseguiram – ou não quiseram – abortar o bebê
fruto da violação, “experimentaram a rejeição da família e o isolamento social” (Rehn; Sirleaf, 2002, p. 39,
tradução nossa).
20
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reprodutivos V.4.
328
explora tal alicerce para derrotar toda a comunidade tida como inimiga por meio da violência
sexual perpetrada, de modo que toda a degradação física, psicológica e moral sofrida
diretamente pelas mulheres estupradas reflete em seu grupo, levando à morte – muitas vezes
em vida – dessas vítimas e, consequentemente, de toda a comunidade na qual estão inseridas.
4. A VIOLAÇÃO NA PERSPECTIVA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL
DA EX-IUGOSLÁVIA
Criado unicamente com o objetivo de julgar pessoas acusadas da prática de violações
graves ao direito internacional humanitário no território da ex-Iugoslávia desde 1991,
conforme previsto no art. 1º de seu Estatuto21, o Tribunal Penal Internacional22 para a antiga
Iugoslávia – doravante denominado TPIJ ou Tribunal –. Teve a sua competência estabelecida
em razão da matéria sob análise23.
Após uma revisão das legislações nacionais, o Tribunal entendeu no caso “Prosecutor
v. Furundzija” que os elementos para que se caracterizasse o estupro consistiam em
penetração sexual, ainda que leve, na vagina ou ânus da vítima pelo pênis do perpetrador ou
por qualquer objeto utilizado; ou na boca da vítima pelo pênis do perpetrador através da
coerção, da força ou da ameaça de força contra a vítima ou terceira pessoa (TPIJ, 1998, p.73).
Apesar da posição adotada ter se adequado às circunstâncias do caso supracitado,
posteriormente o Tribunal entendeu no caso “Prosecutor v. Kunarac et. al” que o estupro
atingia a autonomia sexual, de modo que não seria necessário que se provasse o uso da força
ou coerção, se fosse demonstrado que, diante das circunstâncias do caso concreto, não existiu
– ou era impossível existir – consentimento genuíno da vítima (TPIJ, 2001a, p.152-157).
A partir da análise da jurisprudência do Tribunal acerca dos estupros ocorridos na
guerra da ex-Iugoslávia, a Anistia Internacional (2011) apontou – de forma não exaustiva –
diversas circunstâncias verificáveis em ambiente conflagrado capazes de impedir o
consentimento da vítima ao ato sexual, sendo a utilização da força – ou a sua ameaça – a
mais evidente delas, uma vez que a própria coação no contexto de um conflito armado pode
se manifestar de diversas maneiras. Nesse sentido, o medo da violência é uma das formas
21
O Estatuto do Tribunal Internacional para Julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves ao Direito
Internacional Humanitário Cometidas no Território da Ex-Jugoslávia desde 1991 encontra -se disponível em <
http://www.ministeriopublico.pt/>.
22
O TPIJ foi criado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas através da Resolução 827 de 25 de Maio
de 1993.
23
Assim é que, conforme previsto em seu Estatuto, competiu ao Tribunal o processamento e julgamento de
violações graves às convenções de Genebra de 1949 (art. 2.º), às leis ou aos costumes de guerra (art. 3.º), bem
como a prática de genocídio (art. 4.º) e de crimes contra a humanidade (art. 5.º).
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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mais sutis de coação, eis que faz com que a vulnerabilidade seja tamanha, que a vítima acaba
por se submeter ao ato sexual sem expressar resistência, de modo a evitar maiores ameaças
ou até o emprego de força física.
Além disso, como expõe a Anistia Internacional (2011), a extorsão, a intimidação ou
outras formas de coação que ataquem diretamente o medo e o desespero da vítima –
incluindo-se nesse particular a realização de acordos de cunho sexual nos quais esta não teria
condições de impor resistência –, também impossibilitariam o livre consentimento24.
Ademais, a própria detenção, por si só, sobretudo quando ilegal – hipótese em que a
vulnerabilidade da vítima é ainda maior – gera um ambiente intrinsecamente coercitivo,
fazendo com que a coação se manifeste de forma mais nítida25.
Ademais, de acordo com a jurisprudência, a ausência de liberdade de consentimento
não se restringiria às hipóteses em que a vítima se encontrava detida, podendo, ainda, se
verificar quando o agente estivesse em qualquer posição de controle sobre ela – advinda do
poder político, militar ou não – e, abusando desse poder, a coagisse à prática de atos sexuais
(AMNESTY INTERNACIONAL, 2011). Por fim, considerando que na guerra da exIugoslávia muitos civis podiam adentrar os campos de detenção para violar as vítimas
(AMNESTY INTERNACIONAL, 2011), nota-se que não é preciso que o violador crie o
ambiente coercitivo para que se configure o estupro, bastando, para tanto, que dele se
aproveite, obtendo vantagens proporcionadas pela vulnerabilidade existente em tais esferas
para praticar os atos sexuais.
Por outro lado, embora o estupro só estivesse previsto expressamente no âmbito dos
crimes contra a humanidade26 (art. 5.º, al. g) do Estatuto), o Tribunal, se utilizando de um
consenso jurisprudencial, considerou em diferentes situações que os abusos sexuais ocorridos
na guerra da ex-Iugoslávia se amoldariam a outras normas do Estatuto, podendo ser
entendidos, dependendo da hipótese, como crime de guerra27, forma de tortura28 e/ou, ainda,
A título de ilustração de tal entendimento, pode-se citar o caso “IT-98-30/1-T”, em que o acusado negociara
a prática de relação sexual com a vítima, oferecendo-lhe, como contrapartida, água, comida e melhores
condições para seu marido. Analisando a referida conduta, o Tribunal entendeu tratar-se de violação, ante a
ausência de consentimento genuíno (TPIJ, 2001b)
25
A esse respeito, o Tribunal entendeu, no caso “IT-96-23-T.”, que as circunstâncias das vítimas nas detenções
eram tão coercitivas que o consentimento sequer era possível (TPIJ, 2001a).
26
Estabeleceu o Tribunal que as violações praticadas contra a população civil no âmbito de um conflito armado
como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra civis – ou ao menos dentro dessa lógica – poderiam
caracterizar crime contra a humanidade.
27
Entendeu o Tribunal que, embora não estivessem expressamente previstas no art. 3º de seu Estatuto, as
violações contra a mulher praticadas no âmbito do conflito armado da ex-Iugoslávia, dada a sua natureza e
característica, preenchiam os requisitos necessários para que pudessem ser caracterizadas como crime de guerra.
28
O Tribunal entendeu que as violações poderiam ser caracterizadas como uma forma de tortura se restasse
comprovado terem sido motivadas por um propósito proibido, hipótese essa que, ao ver do Tribunal,
24
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
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meio para a prática de genocídio29. Analisando diversos casos trazidos a seu conhecimento,
o Tribunal entendeu que no contexto da guerra da ex-Iugoslávia, marcado por nacionalismo
étnico e discriminação, as violações das mulheres representavam uma forma de hostilizar e
discriminar os grupos aos quais elas pertenciam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Realidade cotidiana na vida das mulheres em uma estrutura hierárquica social que
conduz à dominação e subordinação do gênero feminino pelo masculino, a violência atinge
a sua máxima expressão na violação sexual, pois, enquanto manifestação do poder e
supremacia, o estupro das mulheres é um elemento da opressão sistemática, no qual,
alienadas de si mesmas, as vítimas suportam nos seus próprios corpos a marca do domínio
masculino, sendo, em razão disso, uma violência estrutural.
Diferentemente da esfera privada, em que o perpetrador já se sente proprietário da
mulher, a violação na esfera pública também é uma forma de reforçar os papéis dentro da
hierarquia, uma vez que, não sendo considerado dono direto daquele corpo, o estuprador
demonstra que tem poder estrutural para praticar tal ato, reforçando sua virilidade.
Quando ocorrida durante a guerra e, em especial, contra corpos neutros, não
combatentes, a violação sexual das mulheres – prática que demonstra a impotência feminina
e a supremacia masculina – leva o sentimento de medo e impotência para toda a comunidade.
Ademais, o estupro ocorrido em contexto armado – ambiente no qual o homem manifesta
seu lado mais hostil – possui um significado ainda mais profundo, sobretudo depois da
ressignificação do cenário bélico ocorrida após a 2.ª Guerra Mundial. A partir dessa
transformação, o conflito, que antes se dava entre Estados, passou a acontecer também com
a participação de grupos privados, e seu objetivo se concentrou em destruir e humilhar o
inimigo de forma a mostrar a supremacia absoluta do grupo vencedor.
Motivada por divergências étnicas, a guerra ocorrida na ex-Iugoslávia –
principalmente na república da Bósnia-Herzegovina – foi um dos paradigmas do novo
cenário bélico, no qual os grupos conflitantes demonstravam poder por meio da extrema
violência perpetrada, tendo a população civil como principal alvo.
dificilmente deixaria de ocorrer no contexto da guerra da ex-Iugoslávia, marcada por violações praticadas com
fundamento étnico e religioso, e que geraram intensa dor física e mental – agravadas pelas condições sociais e
culturais existentes – às mulheres vítimas.
29
Nesse sentido, o Tribunal reconheceu que atos que colocassem em prática a campanha de limpeza étnica ou
que fossem realizados de modo a violar o próprio fundamento do grupo étnico – o que incluiria a maioria das
violações – poderiam ser caracterizados como genocídio.
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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Diante do novo paradigma de guerra, a violação sexual dos corpos femininos passou
a assumir papel central na estratégia bélica, convertendo-se no principal método dos grupos
exibirem seu poder, pois, escorando-se na estrutura patriarcal existente – em que a mulher é
propriedade do homem e o pilar da comunidade –, ao atingi-la de forma tão degradante e
violenta, se estaria desestabilizando o próprio tecido social do qual ela faz parte.
Ademais, sendo os estupros no conflito em análise também cometidos como forma
de expressar xenofobia, a hostilidade dirigida às mulheres apresentava-se como um método
de anulação do inimigo étnico de duas formas: de um lado, as mulheres representavam um
instrumento de realização da campanha de limpeza étnica dos sérvios, tendo em vista que,
através da gravidez forçada, viabilizavam a construção de um estado puramente sérvio; de
outro, sendo a mulher considerada propriedade masculina, a violação do seu corpo
representava a anulação do inimigo, refletindo-se os efeitos desse ato de domínio em toda a
comunidade a que ela pertencia.
Ainda na mesma lógica estrutural, a violação sexual das mulheres representa o
fracasso dos homens de seu grupo no dever de proteção que lhes é socialmente imposto.
Além disso, sendo a sexualidade feminina impregnada pela moralidade, notadamente no seio
de grupos étnico-religiosos, o estupro dos seus corpos representa um assassinato moral dos
homens membros de sua comunidade, atingindo a honra de toda a coletividade. Seguindo a
mesma lógica, o estigma da violação sexual muitas vezes fazia com que as mulheres fossem
excluídas dos seus próprios grupos, levando à destruição do tecido social do qual faziam
parte.
Constata-se, portanto, que, através da identificação da mulher como pilar social, a
violação sexual feminina no conflito ocorrido na república na Bósnia-Herzegovina se
mostrou a principal estratégia de guerra, tendo em vista que a degradação física, psicológica
e moral sentida pelas mulheres refletia em toda sua comunidade, de modo a levar à plena
desestruturação – e até destruição – desses grupos.
Criado em decorrência dos horrores ocorridos na guerra da ex-Iugoslávia, o Tribunal
Penal Internacional ad hoc, reconheceu se tratar o conflito armado de ambiente naturalmente
coercitivo, intensificado pelas perseguições étnicas, e estabeleceu que, para que se caracterize
o estupro, não é necessário mostrar o emprego efetivo da coerção, da força ou da ameaça de
força, tendo em vista que o próprio ambiente coercitivo impossibilitaria – na maioria das
vezes – que as mulheres obstassem os atos sexuais. Diante das características dos abusos
sexuais perpetrados e do contexto da guerra, o Tribunal entendeu que as violações poderiam
Coleção Não há lugar seguro: estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e
reprodutivos V.4.
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ser tipificadas à luz de seu Estatuto como genocídio, crime de guerra, crime contra a
humanidade e/ou forma de tortura.
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CRÉDITOS
ORGANIZADORAS
GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS
POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS
SALETE SILVA SOMMARIVA
MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL
CAPA
ATHENA DE OLIVEIRA NOGUEIRA BASTOS
ILUSTRAÇÃO DA CAPA
BRUNA VETTORI
PROJETO EDITORIAL E
DESENVOLVIMENTO
POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS