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Nobuyoshi Chinen O PAPEL DO NEGRO E O NEGRO NO PAPEL Representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros Universidade de São Paulo – São Paulo Escola de Comunicação e Artes Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação 2013 Nobuyoshi Chinen O PAPEL DO NEGRO E O NEGRO NO PAPEL Representação e representatividade dos afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros Tese apresentada ao Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Ciências da Comunicação Orientador Prof. Dr. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro Universidade de São Paulo – São Paulo Escola de Comunicações e Artes Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação 2013 Tira da série Chiclete com banana, de Angeli, publicada no jornal Folha de S. Paulo Este trabalho é dedicado à Toyomi. Por sua paciência, compreensão e apoio durante todos esses anos. E por embarcar, incondicionalmente, junto comigo em todos os meus sonhos, por mais absurdos que sejam. AGRADECIMENTOS À Joyce e ao Willy, que certamente prefeririam um belo patrimônio, mas que herdarão do pai uma coleção de gibis, meu único tesouro. A todos os meus familiares que sempre me apoiaram: tios, tias, cunhados, cunhadas, meu sogro Seijun, minha sogra Chiyo. Aos primos e primas; sobrinhos e sobrinhas, enfim todo o pessoal. Um agradecimento especial para minha mãe Setsuko, aos meus irmãos Hiro e Yuko, e ao Maru-san, meu padrasto. No âmbito acadêmico, ao Prof. Dr. Waldomiro Vergueiro, de quem tenho a honra de ser orientando, um privilégio que só aumenta a responsabilidade por este trabalho. Às Profas. Dras. Sonia Luyten e Dilma de Melo Silva que confiaram na minha capacidade e que, na banca de qualificação de Mestrado, recomendaram o Doutorado direto. Aos meus colegas de estudos de quadrinhos Geisa Fernandes, Paulo Ramos, Roberto Elísio dos Santos, Gazy Andraus e Elydio dos Santos Neto e demais companheiros do Observatório e outras jornadas de quadrinhos. Às professoras Deise Marques e Eleida Camargo, à aluna Priscila Ramos e à bibliotecária Silvana Almeida pelo valioso incentivo para a elaboração desta tese. Aos desenhistas, roteiristas e editores com quem tive contato e que contribuíram com depoimentos, informações e dicas, em especial, Franco de Rosa e Gonçalo Jr. Finalmente, a todos os autores de quadrinhos sem os quais não existiriam essas obras maravilhosas que fazem a alegria e o prazer de nós leitores/pesquisadores. RESUMO Este trabalho trata da presença, em termos quantitativos e qualitativos, de personagens afrodescendentes nas histórias em quadrinhos brasileiras. A pesquisa consistiu em levantamento histórico desses personagens na literatura especializada e em jornais, revistas e outras publicações impressas. Também foi feita análise da representação visual dos personagens para verificar o quanto existe de preconceito ou de estereotipização nessa caracterização. Palavras-chave: quadrinhos, humor gráfico, negro, cultura afrobrasileira, identidade ABSTRACT This thesis analyzes the presence of african descendants in Brazilian comics, in quantitative and qualitative aspects. The research found historical information about those characters in specialized books, newspapers, comic books and other publications. It includes an analysis of visual representation of black characters with the purpose of verify prejudices and stereotypes ocurrencies in such representation. Key-words: comics, afro-brazilian culture, black character, identity SUMÁRIO INTRODUÇÃO .............................................................................................3 CAPÍTULO 1. REALIDADE DO NEGRO NO BRASIL 1.1.Formação da população negra no país.............................................11 1.2. As condições da viagem.....................................................................14 1.3. Escravos trazidos para o Brasil ........................................................16 1.4. O fluxo de imigrantes.........................................................................20 1.5. Situação socioeconômica do afrodescendente no Brasil.............22 1.6. Preconceito histórico...........................................................................29 1.7. Preconceito por omissão. A ausência dos negros na história do Brasil............................................................................................................32 1.8. Racismo persistente............................................................................35 CAPÍTULO 2. IMAGEM DO NEGRO NA EXPRESSÃO GRÁFICA 2.1. Estereótipos e preconceito..................................................................39 2.2. Distorções com bases científicas.......................................................42 2.3. A origem da figuração cômica do negro...........................................47 2.4. Iconografia do negro no Brasil...........................................................52 CAPÍTULO 3. AFRO-BRASILEIROS NO HUMOR GRÁFICO 3.1. Caricatura como origem dos quadrinhos.........................................79 3.2. O humor gráfico no Brasil...................................................................85 CAPÍTULO 4. O NEGRO NOS QUADRINHOS BRASILEIROS 4.1. Os paradoxos do Gibi e do Pererê...................................................103 4.2. À procura do negro nos quadrinhos .............................................105 4.3. Escopo da pesquisa – limitação do corpus.....................................112 4.4. Os primeiros negros nos quadrinhos brasileiros...........................116 4.5. Edição Maravilhosa e as adaptações literárias...............................131 4.6. Década de 1960, surge Mauricio de Sousa......................................147 4.7. A produção da década de 1970........................................................153 4.8. Novas tiras nos anos 1980................................................................166 4.9. A efervescência das revistas mix dos anos 80................................171 4.10. Os desafios dos anos 1990..............................................................187 1 4.11. Os desafios dos anos 1990..............................................................187 4.12. Quadrinhos no novo milênio.........................................................194 4.13. Ricos e famosos...................................................................................215 4.14. A valorização dos negros e afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros....................................................................................................229 4.15. O Annus mirabilis de 2011...............................................................249 CONCLUSÃO............................................................................................261 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................265 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR.......................................................272 LISTA DE FIGURAS.................................................................................. 273 INTRODUÇÃO 3 Segundo o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, pessoas que se declaram pretas e pardas compõem mais de 50% da população brasileira. Considerando-se que somos cerca de 190 milhões de habitantes, são quase 100 milhões de afrodescendentes vivendo hoje no Brasil. Sendo tantos, seria razoável que fossem representados nos meios de comunicação e nos produtos culturais, o que inclui as histórias em quadrinhos, com certa proporcionalidade. Ainda que não chegassem aos 50%, mas pelo menos 30. Quem sabe 20. No entanto, ao tentar lembrar o nome de algum personagem negro nos quadrinhos, pouquíssimos vêem à mente. Dessa inquietação, da percepção de que a quantidade de personagens afro-brasileiros parecia perturbadoramente baixa, é que nasceu o presente trabalho. A princípio, fora escolhido como tema para um texto, nunca finalizado, para um curso livre de histórias em quadrinhos realizado no Centro Cultural de São Paulo, em 2005. Os professores Sonia Luyten e Waldomiro Vergueiro eram os responsáveis pelo módulo teórico do curso e a intenção era que os alunos produzissem um artigo que poderia eventualmente ser publicado. O propósito de transformar um estudo sobre negros nos quadrinhos como trabalho de pós-graduação veio apenas alguns anos depois, reforçada por uma real intenção de empreender uma pesquisa focada em temática brasileira. A empreitada exigiu a definição de alguns pontos, pois algumas das produções dentro do tema escolhido transitam ou se manifestam no estreito limite entre o humor e o preconceito. Entre a graça e a discriminação. Mesmo tendo como princípio manter uma isenção e um afastamento na análise de personagens séries e autores, não havia como deixar de levar em conta os fatores históricos e sociais que derivaram nessa ou aquela representação, já que essa é resultado direto de tais fatores. O que define uma etnia, para além de suas características mais evidentes, como aspecto físico e cor de pele, é o conjunto de valores, crenças, comportamentos e outros requisitos que formam a sua cultura. Em uma linguagem como as histórias em quadrinhos, que reúne o elemento gráfico (desenho) e o narrativo (roteiro, diálogos), a inserção de um personagem implica não apenas uma representação de seu aspecto físico, mas também de sua personalidade, constituída, 5 naturalmente, por características individuais, mas que sofre influência da cultura de seu meio e de sua formação. Um estudo como o que se propõe este projeto, portanto, não teria sentido sem uma análise dos aspectos culturais e sociais tanto do segmento-objeto, os personagens negros, quanto das condições em que eles foram criados e publicados. Objeto da pesquisa O estudo teve como foco, prioritariamente, o material em quadrinhos com personagens negros e a bibliografia especializada no assunto. Apesar da intenção da análise ter sido definir um valor referencial significativo que permitisse confirmar se essa presença corresponde ou não à proporção de pessoas negras, ou definidas como tal, em relação à população total do Brasil, tal tarefa se mostrou inviável pela impossibilidade de se levantar o número total de publicações em quadrinhos. Um estudo que vise a avaliar a presença do negro nos quadrinhos é uma proposta inédita no Brasil. Eventuais iniciativas no campo acadêmico, caso existam, tiveram repercussão muito limitada ou nula, visto que, em rastreamento feito para verificar trabalhos na mesma linha, não foi encontrado nenhum que pudesse ser considerado similar. Tampouco foi localizada menção bibliográfica de obra com essa abordagem. Mesmo estudos sobre a representação do negro, ou seja, que tenham o intuito de analisar a sua caracterização sob o viés semiológico em outras manifestações artísticas, são pouco numerosos. Os livros teóricos de referência pesquisados, de modo geral, se restringem a citar os personagens negros, sem se aprofundar na sua “biografia” nem na análise semiológica de sua caracterização. Em termos acadêmicos, os poucos trabalhos existentes são mais voltados à obra de um autor em particular. Igualmente raros são os livros que seguem essa mesma linha. O catálogo Cem Anos e Mais de Bibliografia sobre o Negro no Brasil, organizado por Kabengele Munanga (2002), traz uma ampla compilação de títulos sobre a temática negra, composta por uma lista extensa de livros, teses e artigos abrangendo diferentes especialidades desde o artístico e cultural até o científico, social e antropológico. São mencionados diversos livros sobre o negro na literatura, no cinema, nas telenovelas e até no cordel, mas a 6 correlação entre negros e quadrinhos limita-se a um artigo de autoria de Carlos Eugênio Baptista (Patati), publicado na revista Kawé, editado pela Universidade Santa Cruz. Os quadrinhos vêm merecendo uma atenção crescente por parte dos estudiosos da comunicação. No entanto, parte significativa dos trabalhos mais recentes elege, como tema, assuntos relacionados aos super-heróis ou ao gênero mangá (quadrinhos japoneses), o que se justifica por uma razão de mercado, visto que há uma predominância de títulos dessas especialidades à venda. No entanto, tais escolhas privilegiam “escolas” estrangeiras em detrimento de temas brasileiros. Dessa forma, o presente estudo visa a contribuir para o estudo dos quadrinhos nacionais, contribuindo para diminuir a carência de trabalhos nessa área. Objetivo e metodologia Este estudo teve o objetivo de interpretar e compreender as formas como os negros ou seus descendentes, que compõem uma parte tão significativa da população brasileira, são representados nas histórias em quadrinhos. Para isso, a pesquisa constou de uma etapa que visou avaliar e analisar a presença do negro nos quadrinhos brasileiros no aspecto qualitativo, ou seja, a maneira como ele é caracterizado, e no aspecto quantitativo, para verificar se a quantidade de personagens negros era significativa. A presente pesquisa partiu da hipótese de que em mais de 140 anos de quadrinhos no Brasil, a presença de personagens negros tem sido, historicamente, baixa, ou seja, o seu número tem sido pouco expressivo em relação à proporção que a parcela negra ou afrodescendente ocupa na população brasileira e que os poucos personagens negros existentes são, na maioria dos casos, caracterizados de forma estereotipada e preconceituosa. No âmbito acadêmico, a presente proposta de estudo é inédita no Brasil, por sua abrangência e enfoque. Em pesquisa preliminar, foram localizados apenas alguns poucos estudos que abordam o negro como personagem de quadrinhos ou que analisam algum autor negro de histórias em quadrinhos. Para a compilação dos personagens, séries e publicações que 7 se enquadrem no escopo desse projeto, foi utilizada a técnica de amostragem não probabilística de amostras intencionais com pesquisa direcionada, a partir do levantamento feito em livros teóricos e de referência, teses, artigos e matérias de revistas e jornais, além de sites de personagens negros. O acervo pesquisado foi constituído de exemplares das revistas O Tico-Tico e Gazeta Infantil, das primeiras décadas do século XX; Chiclete com Banana, Geraldão e Piratas do Tietê, publicadas nos anos 1980 pela Editora Circo; além de publicações esparsas, editadas entre a década de 1940 e o ano de 2011 e os arquivos de jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. A partir das informações obtidas nas fases de observação, foram compilados os dados referentes aos personagens, em ordem cronológica, abrangendo o período de 30 de janeiro de 1869, data de lançamento de Nhô Quim, de Angelo Agostini, considerada a primeira série em quadrinhos do Brasil até 31 de dezembro de 2011, eleito pela ONU como Ano Internacional do Afrodescendente. Exceção foi feita em casos mais específicos, que permitiam uma abordagem própria que extrapolasse a classificação por datas, como o de personagens de quadrinhos baseados em personalidades artísticas ou esportivas. Para se estabelecer o contexto em que se construiu a imagem do afrodescendente nos quadrinhos brasileiros, foram incluídos capítulos sobre o papel histórico-social do negro no Brasil, sua iconografia e sua presença em peças de humor gráfico, que antecederam a criação das histórias em quadrinhos. 8 CAPÍTULO 1. REALIDADE DO NEGRO NO BRASIL 9 1.1.Formação da população negra no país Para permitir uma análise quantitativa, visando a estabelecer a proporção de personagens negros nos quadrinhos, é preciso conhecer dados demográficos a respeito da participação de afrodescendentes no total da população brasileira e como essa participação em termos numéricos se deu no decorrer da história. No aspecto quantitativo, as informações a respeito da população brasileira foram extraídas do mais recente censo oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, realizado em 2010. Segundo o critério adotado pela instituição, o quesito cor ou raça é classificado em seis categorias: branca, preta, amarela, parda, indígena e sem declaração. Para efeitos do presente estudo serão considerados afrodescendentes aqueles que se declaram pretos ou pardos. É importante notar que pela metodologia utilizada na aplicação dos questionários do IBGE, essa informação é fornecida espontaneamente pelo respondente, ou seja, é um dado autodeclarado sem interferência do recenseador. Segundo os resultados desse recenseamento (IBGE, 2010), o Brasil tem uma população de 190.755.799 habitantes. Desse total, 14.517.961 se declararam como sendo de cor preta e 82.277.333 de cor parda, compondo assim 50,74 % da população, ou seja, os afrodescendentes constituem mais da metade dos habitantes do País. Assim, caso existisse uma relação direta entre a população negra e parda e sua representação nos quadrinhos brasileiro, seria necessário que mais da metade dos personagens das histórias em quadrinhos brasileiras também fosse afrodescendente. Se atualmente pretos e pardos são mais de 50% dos habitantes do País, é relevante conhecer como essa formação se deu. Com o intuito de se compreender como se constituiu a população afrodescendente no Brasil, fazia-se necessário buscar a origem do processo de migração desse segmento e como se deu o fluxo migratório. Existe uma literatura abundante a respeito do tema, o que suscitou um trabalho preliminar: a seleção de alguns títulos que servissem de referência para o capítulo. O critério se pautou pela abrangência de informações e atualidade, considerando que nos últimos anos têm surgido novas fontes e linhas de pesquisa que permitem estabelecer um painel mais nítido da história da escravidão e, consequentemente, da presença no negro no Brasil. 11 Na falta de registros históricos e informações diretas, os autores se valeram de diários, anotações de venda e compra e outras fontes indiretas. Por causa dessa carência de informações definitivas, há divergências algumas vezes significativas relativas a números e datas, inclusive quanto à quantidade de africanos cativos que foram trazidos para o Brasil na época da escravidão. A escolha das obras procurou contemplar estudos efetuados a partir de diferentes fontes e épocas. O primeiro deles foi o realizado por Mattoso (2003), publicado pela primeira vez em 1982, que apesar de se concentrar principalmente no tráfico negreiro na Bahia, traça um panorama geral da escravidão no Brasil. Outro trabalho, conduzido por Luna e Klein (2010), baseou-se num grande volume de estudos sobre escravidão efetuados no Brasil a partir dos anos 1970. Os autores também consultaram importantes registros públicos de vários estados, mas principalmente de São Paulo e Minas Gerais, considerados os mais completos. Florentino (2005) foca sua pesquisa no Rio de Janeiro, entre os séculos XVII e XIX, mas traz dados relativos ao tráfico de escravos de modo geral que contribuem para a composição de um quadro mais geral, da situação do negro no Brasil. Focado na situação dos negros em São Paulo, na época da pósabolição, o estudo de Domingues (2003) não se restringiu a esse período nem limitação geográfica e forneceu subsídios para analisar historicamente a escravidão como instituição oficial. Como material complementar, também foi utilizado o recente trabalho de Rideker (2011) que, embora, não trate especificamente do fluxo de africanos para o Brasil, detém-se a esmiuçar a condição em que se deu a captura e o transporte dos negros para fins de tráfico nas Américas. Esse trabalho ajuda a compreender as dimensões econômicas do comércio de mão de obra escrava e as implicações políticas e sociais de tal empreendimento. Também foi consultado o livro de Schwarcz (2001), que faz uma síntese bastante útil para o entendimento do tráfico de escravos e suas consequências para o fortalecimento de atitudes racistas no Brasil. Informações relativas aos primeiros registros da presença de negros em solo brasileiro foram extraídas do livro sobre a contribuição dos afrodescendentes para a música brasileira de Tinhorão (2008). Embora 12 o foco dessa obra esteja na música, é uma pesquisa histórica validada por extensa documentação bibliográfica. Do trabalho de Costa (2008) também foram extraídas informações que ratificam e confirmam o quadro geral da situação dos afrobrasileiros na época da abolição. O estudo de Mattoso abrange os primórdios da escravidão africana e relata desde as primeiras navegações marítimas portuguesas como ponto de partida da expansão desse país na exploração de outros territórios. Segundo a autora, “na Europa da Idade Média, os mouros do Norte da África eram escravizados para a execução de serviços domésticos e, em 1500, o número de escravos negros existentes no Velho Mundo não passava de 25 mil.” (MATTOSO, 2003, p. 18) A exploração intensiva de mão de obra escrava africana pelos europeus teve início com o plantio de cana de açúcar nas ilhas da Costa Ocidental portuguesa. A princípio, os cativos eram trazidos para os portos de Lisboa e Sevilha, e daí distribuídos para o oeste do Mediterrâneo. Com isso, os negros passaram a ter presença significativa nas principais cidades da região, mesmo assim, as cidades da Costa Meridional portuguesa nunca chegaram a representar mais do que 15% da população. “Afirmou-se que em 1573 havia em todo o território português mais de 40 mil escravos, dos quais um número elevado compunha-se de negros da África subsaariana, que serviam principalmente em domicílios urbanos.” (MATTOSO, 2003, p. 20) Entre transcrição de relatos, deduções e especulações, Tinhorão (2008, p. 16-19) sugere que já nas caravelas de Pedro Álvares Cabral, em sua viagem de descobrimento do Brasil, datada de 1500, havia africanos a bordo, como componentes da tripulação, ainda que nada a respeito tenha sido escrito pelos escrivães da expedição. Tinhorão (2008, p. 16) cita documento divulgado por Varhagen como a primeira notícia documentadamente comprovada da vinda de um escravo africano ao Brasil, ocorrida no navio Bretoa, que aportou numa ilha do litoral de Cabo Frio para recolher toras de pau-brasil. Tinhorão também cita o padre Serafim Leite, em cujo livro História da Companhia de Jesus no Brasil, encontra-se a informação de que os primeiros escravos teriam vindo ao Brasil junto com Martim Afonso de Souza, em 1532, com o início do cultivo da cana no país. No entanto, ainda segundo Tinhorão, é somente em 1549, que se inicia o tráfico negreiro para o 13 Brasil, com a decisão de Portugal de colonizá-lo por meio da ocupação produtiva. A importação em massa de escravos africanos começou em 1570. Até essa data, o Nordeste brasileiro possuía poucos negros, mas já em meados dos anos 1580, só em Pernambuco registravam-se 2 mil cativos, equivalente a um terço da força de trabalho ocupada na produção açucareira da capitania. Década após década, a porcentagem de africanos na população aumentou. Em 1600, quase metade dos cativos era de africanos, e a colônia recebera, até então, aproximadamente 50 mil escravos da África. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 39) 1.2. As condições da viagem Os cativos eram provenientes de várias localidades do continente africano e, segundo Rediker (2011, p. 86) em 1700, a África Ocidental e África Centro-Ocidental tinham uma população de cerca de 25 milhões de pessoas, que viviam numa complexa gama de sociedades tributárias e baseadas em redes de parentesco, ao longo de milhares de quilômetros de costa, estendendo-se da Senegâmbia até Angola. Em meados do século XVI, a capacidade dos navios holandeses era de 450 a 1.000 toneladas; já os navios portugueses eram menores e mais bem organizados. Os portugueses transportavam 500 cativos numa caravela, enquanto os holandeses não embarcavam mais de 300 num navio grande. Um pequeno bergatim português podia transportar até 200 escravos, um navio grande até 700. De acordo com Mattoso (2003, p. 47), o percurso de Angola a Pernambuco durava, em média, 35 dias, até a Bahia; demorava 40 e para o Rio de Janeiro, cerca de 50. No entanto, se os ventos eram desfavoráveis e o navio diminuía seu ritmo e velocidade, a viagem era mais demorada e podia demandar bem mais tempo. Há relatos de travessias que duraram três, quatro, cinco meses, e nesses casos os víveres escasseavam e se acabavam, criando-se, naturalmente, um forte clima de tensão a bordo: Os homens estavam empilhados no porão à cunha, acorrentados por medo de que se revoltem e matem todos os brancos a bordo. Às mulheres reservava-se a segunda meia-ponte, as grávidas ocupavam a cabine da popa. As crianças apinhavam-se na primeira ponte como arenques num barril. Se tinham sono, caíam uns sobre os outros. Havia sentinas para satisfazer as necessidades naturais, mas como muitos temiam perder seus lugares, aliviavam- 14 se onde estavam, em especial os homens, cruelmente comprimidos uns contra os outros. O calor e o mau cheiro tornavam-se insuportáveis. (MATTOSO, 2003, p. 47) As condições de transporte eram tão precárias que se calcula que a taxa média de mortalidade era de 15 a 20%. Na verdade, os estudos quantitativos são quase inteiramente inexistentes e há poucas informações. No entanto, é possível estabelecer certas ordens de grandeza para os séculos XVI e XVII, baseadas em casos isolados, e para os séculos XVIII e XIX, com a ajuda de estudos exemplares, porém limitados a alguns anos. A redução de seres humanos a mera propriedade acarretava não apenas a morte social, mas ainda a morte física, que também era muito comum no navio negreiro – por mais que comerciantes e capitães tentassem preservar a vida de seus escravos, para vendê-los nas Américas, e a de seus marujos, para usar o seu trabalho e por uma questão de segurança. Os comerciantes levavam em conta a morte no planejamento social de cada uma das viagens. Escravos e marujos podiam morrer, e essas mortes não passavam de simples números do mundo dos negócios. “Pensadores militares modernos classificariam essas mortes como ‘efeitos colaterais’; para os comerciantes e capitães elas eram ‘perda’ de carga e de mão de obra”. (REDIKER, 2011, p. 345) Segundo Mattoso (2003, p. 48), em 1569, Frei Tomé de Macedo cita o caso de uma nave que transportava 500 cativos. Somente numa noite morreram 120, ou seja, um quarto do carregamento (24%). Em 1625, o governador de Angola, João Correia de Souza, envia ao Brasil cinco navios, cada um deles com uma carga de escravos. De uma carga total de 1.211 cativos somente 628 sobrevivem à travessia (49,2%). E outros 68 morrem imediatamente após o desembarque. Das 195 “peças” do primeiro navio, sobraram 25 negros, velhos e doentes, 55 velhas e trinta jovens e crianças. Uma taxa de mortalidade tão elevada é comum? (MATTOSO, 2003, p. 48) Segundo Rediker (2011, p. 13) muitas pessoas capturadas na África morreram antes mesmo de embarcar, quando andavam em grupos e comboios, embora a falta de registros torne impossível estabelecer os dados com precisão. Calcula-se que, dependendo da época e do lugar, uma parcela de cativos, que pode variar de 10 a 50%, perdeu a vida entre o ponto em que foram capturados e o embarque no navio negreiro. Uma estimativa conservadora de 15% – que inclui os que morreram em trânsito e enquanto confinados nos barracões e feitorias 15 da costa – permite supor mais de 1,8 milhões de mortes na África. Outros 15% (ou mais, dependendo da região) haveriam de morrer durante o primeiro ano de trabalho no Novo Mundo: Entre todas as etapas – captura na África, Passagem do Meio, início da exploração na América –, cerca de 5 milhões de homens, mulheres e crianças morreram. Outra maneira de considerar a perda de vidas é afirmar que se escravizaram cerca de 14 milhões de pessoas para se obter um ‘rendimento’ de 9 milhões de trabalhadores escravos atlânticos com sobrevida maior. (REDIKER, 2011, p. 13) 1.3. Escravos trazidos para o Brasil Os números relativos ao tráfico de escravos são conflitantes e variam de acordo com a fonte consultada. Segundo Mattoso (2003, p. 53) entre 1502 e 1860, mais de 9 milhões e meio de africanos foram transportados para as Américas, e o Brasil figura como o maior importador de homens de cor. Da segunda metade do século XVI até 1859, data que assinala a abolição do tráfico brasileiro, o número de cativos importados é avaliado entre 3,5 milhões e 3,6 milhões. Para essa autora, essas cifras baseiam-se em dados incompletos, mas têm unanimidade entre os que atualmente se voltam para o problema. Dessa forma, o Brasil teria, importado 38% dos escravos trazidos da África para o Novo Mundo. Rediker apresenta números mais expressivos e para ele, no decurso de quase 400 anos de tráfico de escravos, entre o fim do século XV e o fim do XIX, 12,4 milhões de pessoas foram embarcadas em navios negreiros e transportadas pela chamada Passagem do Meio, cruzando o Atlântico rumo a centenas de pontos de distribuição espalhados ao longo de milhares de quilômetros. Durante o terrível trajeto, 1,8 milhão delas morreram e tiveram seus corpos lançados ao mar, para proveito dos tubarões que seguiam os navios. A maior parte dos 10,6 milhões que sobreviveram foi despejada “nas entranhas sangrentas de um sistema de plantation assassino, ao qual esses cativos resistiram de todas as formas imagináveis” (REDIKER, 2011, p. 3). Entre as duas cifras, situam-se Luna e Klein (2010, p. 25) para quem “a América tornou-se o grande mercado para 10,5 milhões de cativos que se estima terem ali desembarcado no decorrer dos cinco séculos seguintes, e foi no Novo Mundo que a escravidão africana mais se expandiu sob o domínio europeu. Até a década de 1830, mais africanos do que europeus haviam atravessado o Atlântico, e estima-se que em 16 1750, mais de três quartos dos que emigraram para a América eram escravos africanos.” Desse total, 4,9 milhões de africanos migraram para a costa brasileira (LUNA; KLEIN, 2010, p. 23). Luna e Klein (2010, p. 176) estimam que 65% de todos os africanos emigrados eram do sexo masculino. Além da presença predominante de homens, o tráfico também se caracterizou pela parcela pequena de crianças, que compuseram 22% das pessoas transportadas.Todos esses desequilíbrios de idade e sexo entre os migrantes africanos tiveram impacto direto sobre o crescimento e declínio das populações cativas afro-brasileiras. Ainda de acordo com essa fonte, no século XVIII ocorreu o recorde da importação: 6,2 milhões de escravos foram transportados para a América Colonial e durante esse período e todas as grandes potências dos tempos modernos engajaram-se no tráfico e nele, assumiram um papel dominante. No início, o tráfico de cativos da África era realizado em um ritmo relativamente lento. Humanos escravizados eram apenas dentre outras mercadorias exportadas da África para a Europa e a América nos primeiros dois séculos e meio do contato pelo Atlântico. Só em princípios do século XVIII os escravos tornaram-se o mais importante item de “exportação” da África. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 172) Há um contexto econômico muito forte que passa a justificar o aumento do comércio de escravos. Como o tráfico revela-se fonte de lucros importantes, ele se autofinancia tanto mais facilmente quanto responde a uma procura sempre maior de mão de obra. Nação alguma quer abandonar essa fonte de lucros e cada qual pretende empalmar todo o tráfico em seu benefício exclusivo, nos marcos de um sistema colonial ajustado ao espírito da época. (MATTOSO, 2003, p. 19-20) Logo na chegada, os africanos eram submetidos ao processo de descaracterização, não só por receberem, à sua revelia, um novo nome cristão, mas nos termos a eles destinados e na verificação de sua nova condição (SCHWARCZ, 2001, p. 39). Como bem pessoal, o escravo podia ser alugado, leiloado, penhorado ou hipotecado, assim como as demais posses de seu proprietário. Nos inventários, por exemplo, os cativos apareciam sem distinção ao lado dos animais, ambos classificados sob a rubrica de bens semoventes, que se distinguiam dos bens móveis e imóveis. 17 Desterrados de seu continente, separados de seus laços de relação pessoal, ignorantes da língua e dos costumes, os recém-chegados se transformavam em boçais. Entendido como propriedade, uma peça ou coisa, o escravo perdia sua origem e sua personalidade. Servus non habent personam: ‘o escravo não tem pessoa’, é um sujeito sem corpo, sem antepassados, nomes ou bens próprios. (SCHWARCZ, 2001, p. 39) Havia, naturalmente, aqueles que encontravam justificativas além das econômicas para defender o tráfico negreiro. “Para esses, a compra de escravos era um ato humanitário, visto que os que não eram comprados eram rotineiramente massacrados por seus selvagens raptores africanos. Os escravagistas ingleses estavam salvando vidas!” (REDIKER, 2011, p. 334) O fluxo de escravos para o continente americano se deu de forma crescente no decorrer das décadas, mas em alguns locais isso aconteceu de forma mais intensa. Segundo Luna e Klein (2010, p. 40), de 1630 e 1640 o Brasil recebeu mais escravos do que toda a América espanhola, tendência que seria mantida até o século XIX. Provavelmente, já em 1710 havia cerca de 20 mil homens livres e igual número de escravos; em 1717, o número de escravos aumentara para 35 mil e, no início da década seguinte ultrapassou os 50 mil”... “Na época do censo de 1776 foram registrados 266 mil pessoas de cor, das quais 157 eram escravos e a notável quantidade de 109 mil eram livres. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 50). Entre 1790 e 1830, cerca de setecentos mil cabindas, rebolos, monjolos, minas, cassanges, quiloas, moçambiques e demais haviam desembarcado no porto do Rio de Janeiro, certamente, o maior ponto de recepção e distribuição de escravos da época. Embora o tráfico quase cessasse no início dos anos 30, o contrabando logo se tornou tão comum a ponto de, nos anos 40, as importações alcançarem patamares iguais ou superiores aos de antes. É possível que no início da década de 1840 fossem escravos dois entre cada três habitantes da Corte e que africanos afrodescendentes – cativos e forros –, juntos, somassem mais de 90% da população de toda a província do Rio de Janeiro. (FLORENTINO e MACHADO em FLORENTINO, 2005, p. 373) Em Minas, em 1786, quando havia aproximadamente 174 mil escravos na capitania, o número de pessoas livres de cor já ultrapassava 123 mil. O crescimento da população de pessoas livres prosseguiu mais acentuadamente que o da população cativa. Na primeira década do século XIX, as pessoas livres de cor ultrapassaram numericamente 18 os escravos e se tornaram o maior grupo na população provincial em rápido crescimento. Essa tendência continuou século XIX adentro, apesar da contínua expansão da população escrava. Embora o governo português criticasse o crescimento dessa classe e protestasse que ele se baseava no roubo de ouro e outros minérios, pouco podia fazer para deter a expansão” (LUNA; KLEIN, 2010, p. 65) De acordo com o primeiro censo de 1872, o acelerado crescimento da população livre de cor no século XIX fez dela o maior grupo populacional do império. Apesar dessa multiplicação da população livre negra, a agricultura de exportação, na maioria das regiões, permaneceu baseada principalmente na mão de obra escrava até o fim da escravidão (LUNA; KLEIN, 2010, p. 91). “Estima-se que, na última década do século XVIII, chegassem aos portos brasileiros, sobretudo Rio de Janeiro e Salvador, 28 mil escravos por ano. Na primeira década do século seguinte, a entrada anual aumentaria para 34 mil cativos e se manteria crescente a cada década até os anos 1830. O Brasil continha também uma florescente população de pessoas livres de cor, que na época chegava a quase 500 mil indivíduos. Portanto, inquestionavelmente, o Brasil abrigava em 1800, a maior população de africanos e afrodescendentes de todas as colônias europeias do Novo Mundo, e era o maior sistema escravista das Américas” (LUNA; KLEIN, 2010, p. 82). Em todo o Brasil em 1800 havia quase um milhão de escravos. Portanto, encontrava-se no Brasil a maior concentração de cativos de origem africana de todas as colônias americanas e, provavelmente, também a maior diversificação no uso econômico da mão de obra escrava do hemisfério ocidental (LUNA; KLEIN, 2010, p. 81). Do breve período decorrido desde o censo de 1872 até a matrícula de escravos em 1887, a população cativa total sofreu uma queda de 780 mil pessoas, ou seja, 52% em relação ao 1,5 milhão de cativos existentes em 1872. Mesmo nas prósperas zonas cafeeiras do Sudeste, a população escrava perdeu um quarto do seu tamanho em relação a 1872, enquanto na região Nordeste e nas províncias meridionais a diminuição foi ainda mais acentuada. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 319) Entre 1822 e 1888, o país transformou-se sob muitos aspectos. A população livre passou de aproximadamente 2 milhões, em 1822, para 8,5 milhões, em 1872, e para quase 14 milhões, em 1888. A população 19 escrava, por sua vez, foi de pouco mais de 1 milhão, em 1822; para cerca de 1,5 milhão, em 1872, caindo a pouco mais de 700 mil, em 1887. (COSTA, 2008, p. 62) Supôs-se de início que os ibéricos, mais preocupados com questões de economia, simplesmente libertassem seus escravos velhos e doentes. Entretanto, isso não é verdade. Todos os estudos de grandes amostras de registros de alforrias do Brasil – e nesse tema ele é o país mais bem estudado – mostram que, de modo geral, as pessoas alforriadas eram sobretudo jovens, crioulas e majoritariamente do sexo feminino; o subconjunto dos que compraram a própria liberdade continha maior parcela de homens e africanos do que dos que foram alforriados gratuitamente. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 275) Inquestionavelmente, a parcela da população brasileira de crescimento mais rápido foi a das pessoas livres de cor. Como as mulheres jovens em idade fértil constituíam o principal grupo alforriado, era inevitável que uma parte importante do crescimento dessa classe se devesse à migração da condição social de escravo para livre. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 191) A predominância das pessoas livres de cor no total da população negra aumentou a cada ano. Na época do primeiro censo nacional em 1872, havia 4,2 milhões de pessoas livres de cor em comparação com 1,5 milhão de cativos. As pessoas livres de cor eram mais numerosas que os 3,8 milhões de brancos e representavam 42% dos 10 milhões de brasileiros. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 274) Os cativos chegaram a representar de dois quintos a metade do total de habitantes da Corte, no curso do século XIX. A Corte tinha em 1851, por exemplo, a maior concentração urbana de escravos existente no mundo ocidental desde o fim do Império Romano: 110 mil, de um total de 266 mil. (SCHWARCZ, 2001, p. 41) Desde o fim do tráfico de escravos em meados do século XIX, o número total de cativos, cujo máximo fora de 1,7 milhão, entrou em declínio. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 118) 1.4. O fluxo de imigrantes Até os anos 1870, o imigrante europeu pouco representava na economia cafeeira. O verdadeiro aumento da imigração é posterior à Lei do Ventre Livre e é, até certo ponto, decorrente dela. Entre 1875 e 20 1886, entraram na província de São Paulo quatro vezes mais imigrantes do que nos quarenta anos anteriores. Foi, no entanto, nos dois últimos anos anteriores à abolição que a imigração italiana realmente tomou impulso. Em 1886 e 1887 mais de 100 mil imigrantes, em sua maioria italianos e portugueses, chegaram à província de São Paulo. Entre 1888 e 1900, São Paulo receberia 800 mil imigrantes – número superior à população escrava em todo o país no ano de 1887. (COSTA, 2008, p. 71) Na década após a abolição, chegaram da Europa cerca de 1,3 milhão de imigrantes, dos quais 60% eram italianos. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 337) A mão de obra escrava originária da África havia chegado a São Paulo somente após a abolição do tráfico negreiro, em 1830, e ao mesmo tempo que uma forte corrente de imigração europeia. Quanto mais avança pelo século XIX, tanto mais São Paulo torna-se uma cidade de brancos: em 1804, 46,31% da população é de brancos; em 1818, 48,85%; em 1886, 79%. Em 1940, São Paulo tem uma população de 1.326.261 habitantes, dos quais 1.203.111, ou seja, 90,71%, são brancos. Na mesma data, Salvador conta com apenas 33% de brancos. (MATTOSO, 2003, p. 230) Entre 1890 e 1929, entraram em São Paulo 2.316.729 imigrantes brancos. A europeização demográfica da cidade chegou ao ponto de, em 1897, haver dois italianos para cada brasileiro. (DOMINGUES, 2004, p. 264) O que impeliu cafeicultores paulistas a recorrer a trabalhadores estrangeiros não foi o preconceito racial, como muitas afirmaram, e sim o fato de que essa mão de obra era, em última análise, mais barata do que a afro-brasileira. Essa volumosa imigração de mão de obra excedente de europeus e asiáticos também teve um impacto sobre as oportunidades de trabalho dos ex-escravos: os imigrantes recémchegados, por terem mais instrução, tomaram o lugar dos cativos recém-libertados e de muitos outros trabalhadores rurais livres nos mercados de trabalho especializado e semiespecializado. Por isso, muitos ex-escravos continuaram ocupados na economia informal, a maioria na agricultura de subsistência. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 335) A riqueza dos cafeicultores, advinda das condições de mercado e de seu poder na política local, permitiu-lhes forçar o governo a usar receitas públicas para subsidiar a imigração de famílias italianas e de outros países europeus. Primeiro o governo provincial paulista, e 21 depois o governo federal após a proclamação da República em 1889, subsidiaram a vinda de aproximadamente 900 mil imigrantes para trabalharem em fazendas de café Segundo a teoria do branqueamento, a miscigenação produzia naturalmente uma população mais clara, em razão de dois fatores: primeiro, o branco era biologicamente superior ao negro; segundo, as pessoas tendiam a procurar parceiros mais claros para se casar. A união de casais mistos desencadearia o surgimento de uma população mestiça, sempre disposta a tornar-se mais branca, tanto cultural como fisicamente. Essa teoria foi exposta por João Batista de Lacerda (18461915), médico, antropólogo e diretor do Museu Nacional. O cientista brasileiro previa que no curso de mais um século a “raça” negra desapareceria do Brasil. (DOMINGUES, 2004, p. 255) A invisibilidade adquiriu contornos de política oficial do Estado. Nos censos de 1900 e 1920 não foi incluído o item cor da população. Recusando-se a classificar racialmente a população nos documentos oficiais, imaginava-se concluído o branqueamento da população. (DOMINGUES, 2004, p. 262) A invisibilidade foi uma prática colocada a serviço do branqueamento em duplo sentido. Primeiro, produziu um certo olhar que negava a existência do negro, como forma de resolver a impossibilidade de banilo totalmente da sociedade: “não é que o negro não seja visto, mas sim que ele é visto como não existente”. Segundo: ao ocultar a presença do negro publicamente, mais facilmente se operava uma espécie de lei do silêncio em torno da questão racial. (DOMINGUES, 2004, p. 263) 1.5. Situação socioeconômica do afrodescendente no Brasil Uma vez compreendido o processo de formação do contingente da população afrodescendente em termos quantitativos, o segundo passo foi avaliar o papel dos negros na sociedade brasileira. Se para a análise quantitativa, ou seja, sob o ponto de vista da representatividade, dados numéricos e estatísticos são suficientes, para o estudo da representação do negro nos quadrinhos é preciso recorrer a um referencial teórico mais analítico. Mais uma vez, não houve a intenção de esgotar todas as situações possíveis, mas definir um panorama geral que pudesse ser abrangente o suficiente para que fosse representativo dos papéis exercidos pelos negros. A intenção foi compreender como tais papéis 22 influenciaram na construção da imagem dos negros nos quadrinhos. Para um melhor entendimento de como os afro-brasileiros ocuparam seus espaços dentro da sociedade brasileira antes e após a abolição da escravidão, recorreu-se a duas obras que defendem pontos de vistas opostos. Uma é Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre (1950) cuja primeira edição data de 1933. A outra é A integração do negro na sociedade de classe, de Florestan Fernandes (2008) publicado originalmente em 1964. A partir da confrontação da análise que esses dois autores fizeram de fenômenos correlacionados, foi possível uma compreensão mais abalizada da participação dos afro-brasileiros na formação da sociedade. Para os aspectos históricos recorreu-se uma vez mais a Domingues (2003), Mattoso (2003), Luna e Klein (2010). Desde que começaram a ser trazidos para o Brasil, os negros tiveram sonegados direitos comuns dos cidadãos. E mesmo para os que conseguiam a alforria, leis locais e metropolitanas se estendiam contra os direitos das pessoas livres de cor. Eram proibidos de exercer cargos públicos até mesmo na administração municipal, embora nas áreas de mineração essa regra não fosse aplicada com rigor. Existiam leis que chegavam a proibir às mulheres de cor usar roupas e joias como as ostentadas pelas mulheres brancas. Por muitos anos, a punição era diferente conforme o criminoso fosse branco ou negro alforriado para delitos de gravidade equivalente. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 273) O acesso dos escravos à educação escolar foi totalmente proibido no Brasil e mesmo os libertos não tinham direito de frequentar aulas. (MATTOSO, 2003, p. 113) Mesmo após o fim do domínio português no Brasil, em 1822, as políticas públicas continuavam norteadas pelo viés discriminatório. Em 5 de dezembro de 1824, a Constituição brasileira, em lei complementar, proibia o negro e o leproso de frequentarem escolas. (DOMINGUES, 2004, p. 31) Tal proibição foi mantida durante toda a época da escravidão e persistiu até a segunda metade do século XIX, em plena desagregação do sistema servil. As pessoas que eventualmente resolvessem ensinar a leitura e a escrita a escravos podiam ser punidas por transgredir a lei. Mattoso atribui a isso fato de o escravo brasileiro não ter deixado uma história, diferentemente dos Estados Unidos onde há vários 23 testemunhos escritos por escravos relatando sua condição. Mesmo com a promulgação do decreto 1.331A de 17 de fevereiro de 1854 que instituía a obrigatoriedade da escola primária para crianças maiores de sete anos e a gratuidade das escolas primárias e secundárias da Corte, os negros foram discriminados, pois trazia duas ressalvas: nas escolas públicas não seriam admitidas crianças com moléstias contagiosas e nem escravas e não havia previsão de instrução para adultos. Essa reforma educacional, portanto, já previa mecanismos de exclusão dos negros escravos, adultos e crianças (SILVA; ARAÚJO, 2005, p. 68) Além disso, é importante, nesse sentido, lembrar-se da resolução promulgada em 14 de dezembro de 1890, pelo então presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, Ruy Barbosa, mandando destruir os vestígios da escravidão pela queima de todos os papéis e livros que atestavam a presença do “elemento servil”. Tal ato, longe de redimir o país da violência praticada contra os escravos, legitima uma “atitude tão violenta quanto a escravidão” (FONSECA, 2006, p. 97) Supôs-se de início que os ibéricos, mais preocupados com questões de economia, simplesmente libertassem seus escravos velhos e doentes. Entretanto, isso não é verdade. Todos os estudos de grandes amostras de registros de alforrias do Brasil – e nesse tema ele é o país mais bem estudado – mostram que, de modo geral, as pessoas alforriadas eram sobretudo jovens, crioulas e majoritariamente do sexo feminino; o subconjunto dos que compraram a própria liberdade continha maior parcela de homens e africanos do que dos que foram alforriados gratuitamente. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 275) Uma vez alforriados, os ex-escravos ingressavam no mais baixo estrato da sociedade. Até os cativos com ocupação especializada entravam na população livre com suas economias esgotadas pela transação da autocompra. Em geral essas mesmas pessoas compravam a liberdade de seu cônjuge e filhos, e com isso hipotecavam economias futuras no processo e manumissão. Apenas em raros casos os senhor garantia aos filhos de seu ex-cativo alguma renda e apoio na vida de liberto. Essa pobreza generalizada é a razão por que as pessoas livres de cor no Brasil, assim como em todas as sociedades americanas, tipicamente apresentaram as mais altas taxas de mortalidade e doenças entre as populações livres. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 289) 24 A cor eliminava as chances do negro de participar do processo seletivo de algumas empresas, isto é, impedia o negro de se candidatar a uma vaga. Ele tentava superar a barreira de uma política de marginalização racial. A rejeição do negro no mercado de trabalho formal não estava fundada, muitas vezes, em critérios técnicos, mas basicamente em critério racial. (DOMINGUES, 2004, p.128) Todas essas medidas oficiais ajudam a reforçar a impressão de que os afro-brasileiros só tiveram restrições e seu papel na formação da sociedade foi totalmente nulo. Contra essa noção, Freyre (1950) dedica o segundo volume inteiro de sua extensa e famosa obra. Ao descrever os colonizadores portugueses (FREYRE, 1950, p. 101) afirma que estes estavam mais habituados ao calor do que os europeus do norte e se adaptaram bem ao Brasil, característica que facilitou a ocorrência de um processo de hibridização que superou a dificuldade do clima. A sociedade colonial brasileira, notadamente na Bahia e em Pernambuco desenvolveu-se patriarcal e aristocrática, à sombra das grandes plantações de açúcar (FREYRE, 1950, p. 115) e foi a família e não o Estado nem o indivíduo ou uma corporação, o grande fator colonizador no Brasil. (FREYRE, 1950, p. 117). Por esse motivo, Freyre dedica boa parte de sua obra a analisar as relações no âmbito das famílias de proprietários rurais, os senhores de engenhos, e o trânsito entre a casa sede da propriedade e o galpão onde os negros tinham como habitação. No norte do país, o colonizador foi senhor de terras mais vasta e de dono de homens mais numerosos que em qualquer outra parte da América e, sendo essencialmente plebeu, criou para si uma espécie de aristocracia ao fundar o que Freyre chama de “a maior civilização moderna dos trópicos”. (FREYRE, 1950, p. 357) Segundo Freyre, os portugueses não tinham um sentimento ou sequer uma consciência de superioridade de raça, comum entre os colonizadores ingleses. Em vez disso, apoiou-se na pureza da fé. Portanto era mais grave ser um herege do que pertencer a outra raça. Freyre relativiza a crueldade do sistema escravocrata e, de certa forma, até defende que os portugueses o tivessem adotado com tanta disposição. Para o sociólogo, “seria injusto acusar o português de ter manchado com instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra 25 grandiosa de colonização tropical. O meio e a circunstância exigiram o escravo”. (FREYRE, 1950, p. 436). Segundo a visão de Freyre não havia alternativa para se colonizar terras tão vastas e comenta que devido à comprovada eficácia e superioridade do método usado no Brasil, cogitava-se em adotá-los nas demais colônias portuguesas. No decorrer dos capítulos citados, Freyre cita como as escravas negras cumpriram diversos papéis sexuais como objetos em que os senhores de engenho saciavam seus desejos e os filhos dos patrões tinham sua iniciação, criando um ambiente de promiscuidade em que o sexo era o fator de “integração” entre os da casa grande e os da senzala. Fazer sexo com o maior número possível de negras tinha, inclusive, a finalidade econômica de gerar mais filhos e aumentar o plantel de escravos de sua propriedade. Por outro lado, Freyre defende que essa convivência foi responsável por criar laços de intimidade que ultrapassavam o mero contato sexual. Muitas escravas serviam de esposas, ainda que ilegítimas, para uma população em que os homens eram maioria. Os filhos das donas da casa grande eram criados e amamentados pelas negras domésticas. Para essa lide eram selecionadas as mais bonitas e de índole mais gentil e Freyre cita até as etnias preferidas por terem tais características. Ressalta ainda que o Brasil não se restringiu a importar da África mão de obra para o trabalho nos cafezais e canaviais. “Vieram da África, ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher; técnicos para as minas; artífices em ferro; negro entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres; sacerdotes e tiradores de reza maometanos”. Os pretos também foram os músicos da época colonial e período imperial e desempenharam funções como acrobatas de circo, dentistas, barbeiros e até mestres de meninos (FREYRE, 1950, p. 680). Nos comentários à sexualidade dos negros que, segundo Freyre, seria exacerbada, ele defende que não era o negro um libertino, mas o negro escravo a serviço do interesse econômico e da volúpia dos senhores. (FREYRE, 1950, p. 534) Em diversos pontos do texto o autor pontua a tolerância de parte a parte nas relações de convívio. Para o estudioso, até a proximidade de Bahia e Pernambuco da Costa africana para dar um caráter “todo 26 especial de intimidade”. “Uma intimidade mais fraternal que com as colônias inglesas”. (FREYRE, 1950, p. 527). Mais adiante, afirma que graças ao cristianismo mais permissivo, que tolerava santos negros e participação dos cativos nos cultos, houve uma profunda confraternização de valores e sentimentos entre brancos e negros (FREYRE, 1950, p. 596). Essa visão atenuada de como ocorreu o processo de formação da sociedade rural brasileira acabou por disseminar uma noção de que teria acontecido sem conflitos ou maiores resistências, com acomodação de todas as partes envolvidas, incluídos aí os indígenas, a quem Freyre também dedica parte do seu livro. No interesse de preservar essa visão otimisma e positiva, ela foi incentivada pelo próprio Estado a quem era fundamental manter a imagem de uma nação forte, íntegra e sem litígios ou preconceitos. Defendia-se, então, que o Brasil era uma verdadeira democracia racial. Segundo Guimarães (2002, p. 138) essa expressão teria sido cunhada pelo francês Roger Bastide, em artigo publicado no jornal Diário de S. Paulo, de 31 de março de 1944, como uma tradução livre das ideias de Gilberto Freyre sobre a democracia brasileira. A ideia de que o Brasil era um país sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a quaisquer cargos ou posições elevadas em prestígio e riqueza, chegou a ser disseminada nos Estados Unidos e Europa. Isso alimentou uma construção mítica de uma sociedade sem preconceitos e discriminações raciais. (GUIMARÃES, 2002, p. 138) O autor que mais contribuiu para derrubar o mito da democracia racial foi o sociólogo Florestan Fernandes. Em sua obra A integração do negro na sociedade de classes, ele demonstra a fragilidade do conceito apresentando a situação dos afrodescendentes após a abolição da escravidão. Se para Freyre os negros já estavam incorporados à família dos senhores de engenho por laços de sexo e convivência. Fernandes não considera as coisas dessa forma. Para ele, a integração dos negros não deu de forma tão tranquila nem sem conflito. Em primeiro lugar, a abolição teria chegado em um momento em que, ao contrário do que se poderia imaginar, muitos donos de terras seriam beneficiados, pois “livravam-se das obrigações onerosas ou incômodas, que os prendiam 27 aos remanescentes da escravidão” (FERNANDES, 2008, p. 31). Expulsos das fazendas onde foram substituídos por levas de trabalhadores trazidos da Europa e Oriente, os antigos escravos se deslocavam para os centros urbanos em busca de oportunidades de sobrevivência. Com o afluxo de mão de obra europeia cada vez em maior quantidade, os antigos escravos sofreram uma concorrência que lhes foi muito prejudicial, pois nas funções em que poderiam se empregar como trabalhadores remunerados, era dada preferência ao imigrante, principalmente o italiano que se sujeitava a executar tarefas consideradas degradantes como engraxar sapatos e vender jornais. Dessa forma, acabaram sendo “eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio de miudezas e serviços” (FERNANDES, 2008, p. 41). Fernandes é enfático ao afirmar que “para a análise da posição do negro e do mulato na ordem econômica e social emergente, é fato que eles foram excluídos , como categoria social, das tendências modernas de expansão do capitalismo em São Paulo” (FERNANDES, 2008, p. 72). A preferência pelos imigrantes criou uma situação paradoxal em que “o ‘estranho’ se sentia mais em sua casa do que os naturais do país” (FERNANDES, 2008, p. 149). Para o sociólogo a condição de exclusão do negro teve impacto em vários aspectos entre os quais a desagregação e desestruturação familiar, a opção pela criminalidade e até o alcoolismo. Fernandes conclui que o homem de cor se viu impotente diante de formas sociais que não sabia reconhecer, explicar e, de portanto, se submeter. Em capítulo em que trata especificamente do mito da democracia racial, Fernandes (2008, p. 304) questiona a ideia de que o padrão de relações ente brancos e negros vigente na época da escravidão pudesse se conformar aos fundamentos ético-jurídicos do regime republicano. O mito teria sido construído aos poucos, pela interpretação de que a escravidão brasileira tinha uma forma suave e humana, mas, embora não existissem mecanismos explícitos que configurassem nitidamente obstáculos à ascensão social dos negros, as barreiras não visíveis e não declaradas, serviam sempre ao propósito da manutenção das condições de superioridade dos brancos. 28 1.6. Preconceito histórico Para se obter uma compreensão maior das razões pelas quais os afro-brasileiros tiveram uma trajetória marcada pela submissão e a exploração julgou-se pertinente buscar os argumentos utilizados para explicar seu alegado grau de inferioridade em relação aos brancos. A única resposta possível foi o preconceito racial para o qual, no decorrer da história, sempre foram criadas justificativas baseadas em fundamentos religiosos e, posteriormente, científicos. Em todos os casos, nenhuma das argumentações se mostrou verdadeira. Segundo Graves Jr. (2001) as teorias raciais, que defendem diferenças inatas entre os diferentes povos, é consequência de desenvolvimentos históricos relativamente recentes. Embora já desde a antiguidade já se reconhecessem que os seres humanos eram fisicamente distintos uns dos outros e formassem culturas também desiguais, a civilização ocidental não desenvolveu imediatamente suporte ideológico para classificação das raças nem escalas de variação de caráter e temperamento baseado em divisões raciais. O nascimento da ideologia racial coincide com o surgimento de instituições sociais que passaram a explorar as diferenças biológicas humanas para obter ganhos financeiros (GRAVES JR., 2001, p. 3). Segundo Graves Jr., o conceito de raça implica a existência de algumas propriedades hereditárias significativas partilhadas por um grupo de pessoas que não ocorrem em outros grupos. As ciências biológicas há muito tempo vêm se interessando pela identificação e quantificação das variações dentro de uma espécie e desenvolveu ferramentas relativamente precisas para examinar as características hereditárias presentes nos organismos. No entanto, nenhum dos atributos físicos que foram historicamente usados para definir as raças humanas como cor de pele, tipo de cabelo, estatura, grupo sanguíneo ou prevalência de determinado tipo de doença corresponde sem ambiguidade a um determinado grupo racial construído. (GRAVES JR., 2001, p. 5) Existem várias combinações possíveis de características que podem variar de acordo com a localização geográfica, embora, não do modo como muitas pessoas imaginam. Povos de locais diferentes podem ter traços físicos parecidos. O grande problema resulta do fato que a maioria das pessoas normalmente associa as variações físicas, que 29 são visíveis, com variações menos observáveis como inteligência, motivação e moralidade, levando a um conceito de raça que não corresponde à variação que existe na natureza. Desse modo, raça não é um dado ou fenômeno biológico, mas uma construção social. (GRAVES JR., 2001, p. 5) Durante muitos séculos, para justificar o racismo e a inferiorização dos africanos foi usada uma passagem da bíblia (Genesis 6-10) na qual, Noé teria amaldiçoado seu filho Cam por este ter advertido o pai embriagado, quando ele estava com as partes íntima à mostra. Noé teria dito a Cam que ele e seus descendentes seriam servos dos outros servos. Graves Jr. explica, porém, que em nenhum ponto da bíblia consta que Cam seria negro, pelo contrário, em todas as menções sobre a descendência de Noé e sua família, sempre se faz referência a povos do Oriente Médio, sem nenhuma alusão a habitantes das regiões subsaarianas. Somente no Talmude, escrito entre os séculos II e VI da Era Cristã, é que foi especificado que a linhagem que provinha de Cam seria de negros. A condição de inferioridade do africano, para efeitos de sua relação com os europeus, tem início antes mesmo de se iniciar o comércio de escravos. A partir de 1514-1521, as Ordenações Manuelinas (legislação portuguesa) passaram a discriminar três novos grupos: cristão-novo, cigano e indígena. Em 1603, essas leis passaram a discriminar também os grupos negro e mulato. Assim, é no início do século XVI que surge uma “discriminação legalizada e específica contra negros e mulatos por causa da ligação estreita entre a escravatura humana e o sangue negro”. Dessa forma, foram segregados racialmente e considerados inábeis para determinados cargos civis, religiosos e militares, esses segmentos ficaram relegados a uma posição de subalternidade na estrutura tanto da sociedade portuguesa quanto da sociedade colonial brasileira. (DOMINGUES, 2004, p. 28) Tais orientações regeram o pensamento das populações europeias, para quem a escravidão do africano passou a ser aceitável e até natural. Uma vez em solo brasileiro, leis locais e metropolitanas eram claramente discriminatórias mesmo após o escravo obter sua alforria. Era-lhes negado o direito de exercer cargos públicos até mesmo na administração municipal, embora nas áreas de mineração essa regra não fosse aplicada com rigor. 30 Depois da abolição, a cor negra passou a ser vista como uma identidade negativa por estar associada justamente ao trabalho escravo e o “embranquecimento” era considerado pré-requisito para a mobilidade bem-sucedida. Esses conceitos prevaleceram e fizeram parte da visão cognitiva de todas as sociedades americanas até boa parte do século XX. O que distinguia o Brasil não era tanto a ausência de preconceito, mas as sutis diferenciações que o preconceito criava. A classe era um determinante tão poderoso que em geral os atributos de classe influenciavam a definição de cor, independentemente das características fenotípicas do indivíduo. Muitos advogados negros eram definidos como mulatos, e mulatos, como brancos. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 339) Em todos os casos, porém, a minoria liberta nas sociedades predominantemente escravistas enfrentou hostilidades de seus vizinhos e ex-senhores brancos, e em nenhuma delas houve a possibilidade de existirem simultaneamente a liberdade e a aceitação. O racismo foi parte de todos os sistemas americanos onde viveram escravos africanos, e não desapareceu quando negros e mulatos tornaram-se cidadãos livres e competidores econômicos e sociais. (LUNA; KLEIN, 2010, p. 272) A educação escolar do escravo, por exemplo, que já era totalmente proibida no Brasil, foi estendida aos próprios forros que não tinham direito de frequentar aulas. Esta proibição será mantida durante toda a época da escravidão, mesmo durante a segunda metade do século XIX, em plena desagregação do sistema servil. Senhores e curas que resolvem ensinar a leitura e a escrita a escravos transgridem as regras estabelecidas e são poucos. (MATTOSO, 2003, p. 113) Mesmo após o fim do domínio português no Brasil, em 1822, as políticas públicas continuaram norteadas pelo viés discriminatório. O paradigma do branqueamento só adquiriu vulto no final do século XIX, mas a transformação do negro em branco, segundo Andreas Hofbauer, é um “ideário que tem acompanhado, desde seus primórdios, a história do Brasil”. No livro Ensaio sobre os melhoramentos de Portugal e do Brasil, publicado em 1821, Francisco Soares Franco (1772-1844), médico e filósofo, apresentava uma série de propostas para o Brasil superar suas dificuldades internas e encontrar o caminho do desenvolvimento social e econômico. No terreno racial, o projeto era transformar o branqueamento em política de Estado (DOMINGUES, 2004, p. 38) 31 1.7. Preconceito por omissão. A ausência dos negros na história do Brasil Em Injustiças de Clio, o sociólogo Clóvis Moura já havia constatado a omissão de menções aos negros na historiografia nacional (MOURA, 1990). A princípio, o autor faz uma minuciosa análise da obra de alguns dos mais importantes e influentes historiadores brasileiros, até as primeiras décadas do século XX, e demonstra como sua visão da história estava comprometida com a ideologia dominante e, portanto, subordinada aos interesses das classes dominantes. Moura cita, entre outros, o Frei Vicente de Salvador, Rocha Pita, Varnhagen, Handelman e Oliveira Viana, considerados estudiosos clássicos e referência na historiografia nacional. Em todos, detecta um intencional desprezo pelo papel dos negros na construção do Brasil como nação e em determinados casos, chega a apontar um viés nitidamente discriminatório. Para ele, a “historiografia era cooptada para justificar o modo de produção escravista, a sua necessidade econômica e a impossibilidade de se apresentar outro modo de produção capaz de substituí-lo”(MOURA, 1990, p. 31). Tal característica é mais flagrante durante o século XIX, e, ainda segundo o autor, se deve ao fato de que em sua maioria, os historiógrafos do período ocupavam cargos oficiais junto a órgãos e comissões mantidos pelo Governo Imperial. O primeiro dos estudiosos mencionados por Moura é Frei Vicente do Salvador, que escreveu História do Brasil em 1627, mas que só foi descoberto em 1881. Nas palavras de Moura: Nas referências aos negros, além de subestimá-los, não demonstra simpatia pelos mesmos, afirmando a necessidade de tomarem providências ‘principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses que cada dia se lhes rebelam e andam salteando pelos caminhos e se não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os buscam e os trazem presos a seus senhores’. (MOURA, 1990, p. 42) No livro do frei Vicente, os negros sempre eram tratados de forma coletiva e anônima, como se fossem uma “grande massa amorfa e sem nome”. E, nas raras vezes em que aparecem, como na parte em que se trata das Invasões Holandesas, os negros estão do lado “do inimigo”, ou seja, dos holandeses. Outro nome que tem sua obra comentada por Moura é Sebastião da Rocha Pita, a quem atribui total omissão em relação aos negros. Só há referências a eles no período da segunda Invasão Holandesa e dá um tratamento até elogioso aos que participaram da resistência 32 portuguesa aos invasores, mas cita apenas superficialmente o nome de Henrique Dias. Rocha Pita foi o primeiro cronista da República de Palmares. A princípio enaltece a iniciativa de rebelião durante o domínio dos holandeses, mas depois que estes foram expulsos, os quilombolas eram vistos como ameaça ao país e, portanto, aos interesses de Portugal. Com isso, a figura do bandeirante Domingos Jorge Velho, que consegue derrotar e aniquilar Palmares, ganha status de herói. Moura também se detém a esmiuçar a obra de Francisco Adolfo Varnhagen descrito como o autor “da maior obra historiográfica individual de todo o período colonial do Brasil” (MOURA, 1990, p. 93), mas que também tem uma visão conservadora da escravidão defendendo-a como instituição normal e moral. Aliás, Varnhagen se vale de antecedentes históricos e apela até para o Evangelho para justificar e apoiar o sistema escravocrata. Varnhagen especula que “os escravos africanos foram trazidos ao Brasil desde sua primitiva colonização; e naturalmente muitos vieram, com seus senhores a bordo dos primeiros navios que aqui aportaram, compreendendo os da armada de Cabral.” (MOURA, 1990, p. 104) Varhagen também comentou sobre Palmares e cita Zumbi como sendo o líder do quilombo, mas exalta o papel de Domingos Jorge Velho com simpatia, sem se referir ao heroísmo dos palmarinos ou a morte heroica de Zumbi. O historiador relata a Revolta dos Alfaiates, mas condena os objetivos e métodos de ação. No recente livro Três vezes Zumbi (FRANÇA; FERREIRA, 2012), os autores se propõem a fazer uma síntese de tudo o que já foi documentado sobre Zumbi e o Quilombo dos Palmares. Eles pesquisaram em todas as fontes mais conhecidas e confrontaram as versões entre si e tentaram extrair o que de verdade existe de fato sobre a controvertida figura daquele que teria sido o líder final do Quilombo de Palmares. Como resultado da pesquisa, o livro apresenta três representações principais de Zumbi. Há divergências, inclusive, sobre a existência de um único líder com esse nome ou se a denominação “zumbi” é um termo genérico que se refere ao líder militar, uma espécie de patente como capitão ou general. Segundo França e Ferreira (2012) a maioria dos relatos sobre Zumbi se baseia nos escritos de Rocha Pita que, embora tenha dedicado 33 poucas páginas ao quilombo dos Palmares, em sua obra História da América portuguesa, de 1730, serviu de base para relatos posteriores e prevaleceu como versão histórica até o começo do período republicano. Os mesmos autores comentam sobre as outras versões históricas de Zumbi, inclusive a mais disseminada recentemente, a de Décio Freitas, que em seu Palmares: a guerra dos escravos, escrito em 1971, informa que Zumbi se chamava Francisco e teria sido criado por um padre, tendo, portanto, recebido educação formal. Acrescenta ainda que ao se tornar adulto fugiu para Palmares para se transformar em um guerreiro. França e Ferreira afirmam que Freitas alegava ter tido acesso a documentos que, no entanto, nunca foram encontrados. O fato é que, independente de ter existido ou não, Zumbi constitui um modelo idealizado de herói e é em homenagem a ele que se instituiu o Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado no dia 20 de novembro, pretensa data de sua morte, no ano de 1695. O levantamento de Moura cita também historiadores estrangeiros como os ingleses Southey e Armitage e o alemão Handelmann, autores de livros sobre História do Brasil e que, invariavelmente, tratavam os negros como seres inferiores. Por fim, Moura também cita Euclides da Cunha e Oliveira Vianna. O primeiro utiliza o racismo cientificista para justificar a condição de inferioridade dos negros enquanto para o segundo “negros e índios, por serem membros de ‘raças bárbaras’, estavam destinados a trabalhar e obedecer e os brancos dominadores, por serem de uma raça pura e superior, destinados a impor, por um mandato biológico.” (MOURA, 1990, p. 11) Em face de todos esses problemas apontados, é natural que o primeiro caminho para se valorizar o papel do negro na sociedade seja resgatar sua importância histórica e tirar da situação que o próprio Clóvis Moura chama de “penumbra histórica” ao qual foi condenado pelos livros oficiais. Com o intuito de resgatar a importância que negros e mulatos tiveram em alguns dos episódios-chave da história brasileira, alguns autores empreenderam uma releitura e transformaram essa reinterpretação em quadrinhos. Como já explicado, essa história foi construída e disseminada segundo o ângulo da classe dominante e, portanto, conhecer essa face oculta demandou uma nova interpretação dos fatos. Essa tarefa também é complexa e carece de registros confiáveis. 34 1.8. Racismo persistente Segundo Schwarcz (2001, p. 77) em 1988, foi realizada uma pesquisa em São Paulo com o objetivo de entender de que maneira, cem anos após a Abolição, os brasileiros definiam o racismo vigente no Brasil. Os resultados da investigação foram simples e reveladores: enquanto 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito, 98% disseram conhecer, sim, pessoas e situações que revelavam a existência de discriminação racial no país. Ao mesmo tempo, quando inquiridos sobre o grau de relação com aqueles que denominavam racistas, os entrevistados indicaram com frequência parentes próximos, namorados e amigos íntimos. A conclusão informal da pesquisa era, assim, que todo brasileiro parece se sentir como uma “ilha de democracia racial”, cercado de racistas por todos os lados. Esse não é um resultado isolado. Em 25 de julho de 1995, o jornal Folha de S. Paulo divulgou uma pesquisa sobre o mesmo tema realizada pelo Instituto Datafolha, cujos números finais são semelhantes. Apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver discriminação de cor contra negros no país, só 10% reconhecem ter preconceito. No entanto, de forma indireta, 87% revelam possuir algum preconceito, ao enunciarem ou concordarem com frases e ditos de conteúdo racista. Transformada em livro organizado por Turra e Venturi (1995), a pesquisa detalha em diversos gráficos e tabelas, a forma como o preconceito perpassa as relações entre brancos e negros no que a pesquisa chama de racismo cordial. Mais de dez anos depois, o Instituto Datafolha retomou o tema e em 2008, realizou nova pesquisa, cujos resultados foram publicados na edição de 23 de novembro de 2008, do jornal Folha de S. Paulo. A data, significativamente, foi escolhida para coincidir com o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro. Os resultados, dessa vez, concluem que houve uma diminuição do preconceito, mas permanece a incongruência, pois apenas 3% das pessoas declararam preconceituosas , enquanto 91% considera que os brancos discriminam os negros. A pesquisa de 2008 também atualizou dados demográficos, comparando a população negra com a branca. Mesmo ressaltando algumas melhorias nos indicadores, o Índice de Desenvolvimento Humano - IDH, usado pela Organização das Nações Unidas - ONU, 35 entre pretos e pardos é de 0,753 e entre brancos, 0,838. Segundo o IBGE, afrodescendentes compõem 68,1% dos 10% dos brasileiros mais pobres, enquanto entre os 10% mais ricos, constituem apenas 21,9%. 36 CAPÍTULO 2. IMAGEM DO NEGRO NA EXPRESSÃO GRÁFICA 37 2.1. Estereótipos e preconceito Ao se fazer o levantamento qualitativo dos negros dos quadrinhos, além do papel desempenhado por esses personagens, buscou-se interpretar como era feita essa representação também no aspecto visual. Par isso foi necessário recorrer a referenciais para definir alguns conceitos indispensáveis para tal análise. Somente com base nesses conceitos seria possível classificar o tipo de caracterização em positiva ou negativa. Um desses conceitos é a padronização visual de certos atributos físicos que definimos através dos estereótipos. Para Mazzara (1999) estereótipo é “um conjunto coerente e bastante rígido de crenças negativas que um certo grupo compartilha em relação a outro grupo ou categoria social”. Obviamente, numa forma de expressão que é ao mesmo tempo um meio de comunicação de massa, como os quadrinhos, a intenção é fazer com que o leitor rapidamente identifique o personagem retratado, sem precisar de maiores explicações. Na necessidade de apresentar um negro, um oriental, um judeu, somente por meio de traços, modos e sotaques, a simplificação e a estilização acabam sendo uma exigência da limitação das técnicas de reprodução gráfica. Mas essa generalização, muitas vezes, esbarra no arriscado limite que é tornar-se ofensivo. Nesse aspecto, O que marca a diferença é o grau de intensidade de ambos os processos: na ausência de outra informação, um certo grau de generalização permite formular previsões; um grau excessivo impede de captar as matizações individuais ou talvez a absoluta falta de correspondência entre o indivíduo real e o que é traçado pelo estereótipo; é necessário um mínimo de coerência e estabilidade para que o estereótipo seja útil na interpretação dos outros. (MAZZARA, 1999, p. 29) Mazzara (1999, p. 14) afirma que o estereótipo, longe de ser uma representação neutra e meramente facilitadora, constitui o próprio núcleo cognitivo do preconceito ao sustentar e perpetuar uma imagem negativa a respeito de um grupo. Outro autor serviu como referência para explicar como, com o passar do tempo, os estereótipos passam a ser aceitos por uma coletividade e acabam se tornando estigmas de uma determinada classe ou etnia. 39 Para esse autor, A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias. Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com “outras pessoas” previstas sem atenção ou reflexão particular. (GOFFMAN, 1988, p. 11) Como se pode apreender dessa conceituação de Goffman, as pessoas ditas “normais” criam uma expectativa em relação a todas as outras pessoas, levando em conta uma série de atributos que as caracterizariam. Em síntese, estabelecem estereótipos que ajudam a construir uma imagem mental de alguém antes mesmo de conhecê-lo. Quando essa imagem, que constitui a identidade social virtual, não corresponde à identidade social real, cria-se o estigma. De acordo com Silva (2000), identidade e diferença são construções que dependem da linguagem para se definir. A forma como são usados símbolos e palavras inclui ou exclui os indivíduos dentro de determinados conceitos e categorias: ... aquilo que dizemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüísticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou reforçar a identidade que supostamente apenas estamos descrevendo. Assim por exemplo, quando utilizamos uma palavra racista como “negrão” para nos referir a uma pessoa negra do sexo masculino, não estamos simplesmente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa. Estamos na verdade, inserindo-nos em um sistema lingüístico mais amplo que contribui para reforçar a negatividade atribuída à identidade “negra”. (SILVA, 2000, p. 93) Bonazzi (1980) demonstra como, ao longo da história, o discurso da classe dominante foi disseminado de forma tão intensiva para atender a seus interesses, que muitos fatos eram aceitos como verdade absoluta quando, de fato, careciam de legitimidade. Tudo o que tem sido construído como sendo a imagem do negro se deve a esse predomínio da sociedade branca. No processo de construção de sua identidade, o indivíduo adota o referencial de que dispõe, pois sendo o modelo dominante e consensual, passa a ser o ideal buscado, mesmo que não corresponda à sua realidade. Esse é um problema particularmente grave quando se trata de crianças e adolescentes, cuja elaboração da personalidade pode entrar em choque com os padrões de cor, credo ou valores de seu grupo. Cabe acrescentar que o humor sempre esteve presente nos quadri- 40 nhos, desde a sua origem e muitos dos códigos utilizados na figuração cômica estão baseados na distorção fisionômica, no exagero e nos estereótipos. Bergson enumera os diferentes modelos de comicidade. O primeiro deles é o das formas, o visual. O autor comenta, com total naturalidade, que rimos dos negros porque parecem um branco com uma máscara ou o rosto sujo de fuligem: E por que se ri de um negro? Pergunta difícil, parece, pois psicólogos como Hecker, Kraepelin e Lipps a formularam e responderam de maneiras diferentes. Não sei, porém, se ela não foi respondida certo dia diante de mim, por um simples cocheiro, que tachava de “mal lavado” o cliente negro sentado em sua carruagem. Mal lavado! Um rosto negro seria, portanto, para nossa imaginação, um rosto lambuzado de tinta ou de fuligem. E, conseqüentemente, um nariz vermelho só pode ser um nariz sobre o qual foi passada uma camada de vermelhão. Portanto, o disfarce passou algo de sua virtude cômica para outros casos em que não há disfarce, mas poderia haver. (BERGSON, 2004, p. 30) Freud dedicou especial atenção ao estudo das piadas com o intuito de estudar o prazer provocado pelo riso. Em seu livro Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, ele analisa uma série de anedotas e procura explicar como é construído o efeito cômico em cada um dos exemplos. Na parte em que busca analisar as razões pelas quais esse efeito é obtido, contextualiza: Embora, quando crianças, ainda sejamos dotados de uma poderosa disposição herdada para a hostilidade, logo aprendemos por uma civilização pessoal superior, que o uso de uma linguagem abusiva é indigno; e mesmo onde a luta pela luta permaneceu permissível, aumentou extraordinariamente o número de métodos de luta cujo emprego é vedado. Já que somos obrigados a renunciar à expressão da hostilidade pela ação - refreada pela desapaixonada terceira pessoa em cujo interesse deve-se preservar a segurança pessoal - desenvolvemos, como no caso da agressividade sexual, uma nova técnica de invectiva que objetiva o aliciamento dessa terceira pessoa contra nosso inimigo. Tornando nosso inimigo pequeno, inferior, desprezível ou cômico, conseguimos, por linhas transversas, o prazer de vencê-lo - fato que a terceira pessoa, que não dispendeu nenhum esforço, testemunha por seu riso. (FREUD, 1905, s/p) Para Freud, rir do outro é, portanto, a maneira civilizada de agredi-lo, uma vez que a sociedade e seus códigos morais impedem o indivíduo de se manifestar como bem entender. A possibilidade de rir da autoridade, do inimigo, do mais fraco é fonte de prazer que explica o sucesso das sátiras, das caricaturas de políticos e de muitas séries de quadrinhos. Nesse aspecto, é interessante recorrer a algumas obras teóricas que 41 definem os mecanismos por meio dos quais as caricaturas constroem situações de humor e crítica. Na definição de Fonseca (1999, p. 17) caricatura é a representação plástica ou gráfica de uma pessoa, tipo, ação ou ideia interpretada voluntariamente de forma distorcida sob seu aspecto ridículo ou grotesco. É um desenho que, pelo traço, pela seleção criteriosa de detalhes, acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa ou de um fato. Geralmente é produzida tendo em vista a publicação e com destino a um público para quem o modelo original, pessoa ou acontecimento é conhecido. Melot (1975) defende que um dos itens primordiais é a esquematização, ou seja, a redução da forma, a supressão de tudo o que seja inútil. O caricaturista se aplica a eliminar todos os elementos que possam distrair do efeito cômico em si. É a redução às formas abusivamente simples. Redução ao mínimo suficiente apenas para ser reconhecido. Para Melot, a esquematização é um processo bem determinado que, ao contrário de ser subjetivo é perfeitamente convencional (MELOT, 1975, p. 37). Nesse sentido, Melot cita o trabalho de Rodolphe Töpffer Essai de physiognomonie. Nesse livro, cujo conteúdo foi reproduzido por Groensteen e Peeters (1994), Töpffer, discorre sobre as vantagens da narrativa ilustrada e do desenho esquemático e explica como os conceitos da fisiognomonia ajudam a caracterizar um personagem apenas com as linhas de seu rosto. Simples traços que definem o ângulo da boca, o contorno do nariz, a projeção do queixo etc. seriam para Töpffer o suficiente para fazer o leitor compreender as intenções do desenhista, mesmo que este seja limitado artisticamente. Gombrich (1986, p. 294-299) dedica parte do capítulo sobre caricatura a comentar sobre a contribuição de Essai de physiognomie para a teorização das técnicas de expressão gráficas do humor e, indo um pouco além, atribui a Francis Grose a primazia de escrever um livro que ensinava técnicas de caricatura: Rules for drawing caricaturas, de 1788. 2.2. Distorções com bases científicas A fisiognomonia foi uma das pseudociências que procuravam asso- 42 ciar traços do rosto com a personalidade das pessoas. Segundo Merlot, diversas obras sobre fisiognomonia foram publicadas e se tornaram referência para os defensores do racismo como Camper, para justificar algumas características associadas a determinados indivíduos, etnias ou grupos sociais. Dois dos autores citados por Merlot (1975: 45-46) são Giambattista Della Porta e Jean Caspar Lavater, respectivamente autores das obras De humana physignomonia e Cabinet physiognomonique. Porter (2005) também discorre sobre a fisiognomonia e inclui aspectos históricos dessa especialidade. Segundo ele, já em catálogos de publicações de bibliotecas medievais, datados do século XII, já eram comuns tratados sobre o assunto. (PORTER, 2005: 74). O autor comenta sobre os principais trabalhos relativos à fisiognomonia e os autores mais conhecidos como Charles Le Brun e o já citado Della Porta. Harris (2003) recorre a um amplo acervo de imagens produzidas em 150 anos para analisar as representações de imagens desabonadoras aos negros. Essas imagens negativas têm obviamente poder político e ideológico e ajudam a impor certas estruturas no mundo físico. Elas constroem, confirmam e afirmam identidades. (HARRIS, 2003. p. 14). Termos e expressões têm a força de rotular com o intuito de discriminar e diminuir. Harris (20) cita que, segundo os estudiosos Hammond e Jablow, a gíria “nigger” (escurinho), usada pejorativamente para se referir aos negros, foi cunhada originalmente pelos britânicos para ofender os povos indianos. Essa expressão foi disseminada na África e só então passou a ser usada nos Estados Unidos. Antes do tráfico negreiro (HARRIS, 2003, p. 21), os países europeus mantinham comércio regular de diversos itens. Eram transações de igual para igual entre parceiros de negócios em um relativo equilíbrio. No entanto, a dependência das metrópoles europeias de matérias primas cultivadas em suas colônias passou a exigir o uso intensivo de mão de obra. Com o início da escravidão em massa, o comércio de seres humanos passou a ser o item mais lucrativo nesse intercâmbio entre África e Europa. Para institucionalizar esse comércio e justificálo eticamente, criou-se a necessidade da dominação do branco sobre o negro e, consequentemente a inferiorização desde em termos raciais. (HARRIS, 2003, p. 21). 43 Na primeira metade do século XIX os argumentos religiosos até então utilizados para justificar a submissão do negro deram lugar a teorias pseudocientíficas que buscavam hierarquizar as diferentes raças, classificando-as em graus de evolução intelectual, fisiológica e mental. (HARRIS, p. 24) Um dos estudos mais disseminados nesse sentido foi o realizado pelo professor de anatomia Petrus Camper, na Universidade de Groningen, na Holanda em 1845. (HARRIS, 2003, p. 25) Figura 1 – Modelos de Camper Camper produziu um modelo evolucionista baseado na diferença da estrutura do crânio. Segundo esse modelo, o padrão clássico da ca- 44 beça grega representava o ápice da evolução em comparação com o de outras raças que seriam menos evoluídas. Durante anos, o modelo de Camper foi usado por defensores da ideologia racista para justificar sua estratificação racial e social. Além de Camper, outros cientistas tentaram classificar a espécie humana em estratos com graus diferentes de evolução. (HARRIS, 2003, p. 27) Johann Friedrich Blumenbach anatomista alemão, apresentou seu trabalho em Göttingen em 1775 em que divide a humanidade em cinco raças. Blumenbach foi responsável por utilizar o termo caucasiano para a raça branca. Apesar de ser um cientista que aparentemente não tinha motivações racistas, seu trabalho foi muito usado por outras pessoas com motivações políticas, econômicas e sociais. Harris (2003, p. 27) reproduz outras ilustrações que tentam comparar as faces de pessoas negras a características animais. Uma delas, extraída de um dicionário português do século XIX, analisa o ângulo de inclinação da fronte, como nos estudos de Camper. Figura 2 – Diferentes ângulos denotariam graus distintos de evolução Uma outra ilustração presente no livro de Harris (2003, p. 29) publicada originalmente na revista Scribner’s Monthly, em julho de 1872, é ainda mais explícita e direta ao apontar “semelhanças” entre traços fisionômicos de algumas etnias negras e os de macacos. 45 Figura 3 – Semelhanças forçadas entre negros e macacos Outra pseudociência que exerceu influência junto àqueles que acreditavam existir argumentos científicos para justificar as diferenças raciais foi a frenologia, que, segundo Rafter (2009, p. 20) foi criada pelo alemão Franz Josef Gall, mas se tornou popular com a publicação de livros de seu discípulo, o austríaco Johann Gaspar Spurzheim. A frenologia defende o conceito de que o cérebro humano é dividido em várias áreas ou órgãos, cada um deles responsável por uma característica de personalidade. Assim, um órgão é responsável pela combatividade, outro, pela destrutibilidade. Quanto mais desenvolvida essa capacidade, maior o tamanho da área correspondente no cérebro. Ao estabelecer uma correlação entre o volume e sua função, a frenologia forneceu argumentos para aqueles que acreditavam poder mensurar a capacidade de raciocínio de um indivíduo ou grupo étnico a partir das medidas do crânio. Harris (2003, p. 29-30) cita que alguns estudos procuravam associar características fenotípicas dos negros como pele escura, cabelos crespos, lábios mais grossos e narizes largos como sendo indicadores de degeneração mental e moral. 46 2.3. A origem da figuração cômica do negro Para estabelecer a origem da representação gráfica que se tornou o estereótipo do negro nos desenhos humorísticos, é possível traçar uma linha evolutiva que começa com os primeiros artistas itinerantes que se apresentavam em salões de bailes e praças públicas: os menestréis. A figura do menestrel remonta a tempos mais longínquos, mas no caso específico do presente estudo, se refere ao papel de bufão, do comediante tolo e desengonçado interpretado por negros. Diversos quadros do século XIX mostram os negros como músicos, dançarinos e cantores, como criados, sempre provendo diversão e entretenimento para os brancos. (HARRIS, 2003, p. 45) A partir dessa figura, Harris traça um histórico que situa a figura do menestrel, o negro como entertainer na sociedade americana do século XIX. Tão popular que artistas brancos passaram a se apresentar às plateias com o rosto pintado de preto e uma área branca ao redor da boca para exagerar o contorno dos lábios. Sob essa caracterização, o menestrel passou a representar o cômico marginal (HARRIS, 2003, p. 51) e se tornou uma imagem popular nos Estados Unidos reconhecida tanto por pessoas da elite branca quanto pela classe operária. Figura 4 – Cartaz de show de menestrel Muitas das configurações e ideias sobre os negros eram sintetizadas pela figura do menestrel. 47 Os menestréis ajudaram a massificar e reforçar estereótipos raciais sobre os negros ao satirizar seu modo de vestir, suas maneiras e seu linguajar incorreto. A popularidade desses artistas criou situações insólitas como artistas negros tendo de se anunciar como negros autênticos por causa do grande número de atores brancos que se pintavam de preto. Várias das imagens pejorativas dos negros institucionalizadas pelos menestréis inspiraram e estão na origem da forma visual como eles são representados na cultura popular e contribuíram para uma percepção distorcida dos negros que os brancos passariam a ter. Em meados do século XIX, a imagem dos menestréis também começou a ser veiculada regularmente na mídia impressa em traços mais simplificados ou exagerados. Por essa época, praticamente toda representação gráfica de afro-americanos possuía um viés racista, uma construção que objetivava reforçar a superioridade do branco sobre o negro. (HARRIS, 2003, p. 53). Figura 5 – Caricaturas de negros utilizadas em cartaz do começo do século XX Harris se detém a analisar algumas das primeiras charges a representar negros na imprensa americana e detecta padrões que irão persistir nas caricaturas de afro-americanos. Harris escolheu para sua se- 48 leção a revista ilustrada Harper’s Weekly, lançada em 1857, que com frequência trazia gravuras com personagens negros. Para o autor, charges como a publicada em 14 de março de 1874, de autoria de Thomas Nast demonstram a influência da representação dos menestréis como olhos esbugalhados e lábios exageradamente grossos, como faziam os menestréis com sua maquiagem. (HARRIS, 2003, p. 60) Figura 6 – Influência da figura dos menestréis na caricatura de Thomas Nast Essa opinião é compartilhada por Worham (2004) para quem as “caricaturas exageravam as diferenças étnicas e raciais para garantir que um irlandês seja sempre um irlandês e um crioulo se pareça sempre como tal”. O autor, que em sua obra faz uma comparação entre os personagens negros da literatura do período posterior à Guerra Civil, e as representações gráficas dos afro-americanos na imprensa da época, comenta que as caricaturas étnicas de negros do final do século XIX têm como precursores os rostos pintados dos menestréis mais de 50 anos antes. (WORHAM, 2004, p. 82) Harris chama a atenção para a expressiva tiragem da Harper’s Weekly que chegava a ter 120 mil exemplares , com picos excepcionais 49 de até três vezes mais, para ressaltar a popularidade da publicação e a consequente influência na criação de uma imagem depreciativa dos negros junto ao público. (HARRIS, 2003, p. 61) Outro exemplo citado por Harris (2003, p. 63) é a série de gravuras cômicas chamadas Darktown, impressas em 1880 pela editora Currier e Ives. Em uma delas, que representa um grupo de negros jogando futebol, o desenhista Eytinge, levou ao extremo os lábios distorcidos, os olhos espantados e as pernas em forma de incômodos caniços. Figura 7 – O traço dos menestréis também na gravura de Eytinge Harris afirma que as gravuras da editora tinham tiragens de até 73 mil cópias e eram distribuídas para outros países e presume que possam ter afetado percepções e gostos mundo afora. O autor observa que esse tipo de imagens depreciativas de negros não foram inventadas por Eytinge e comenta que Karen Dalton indica que essa tradição já existia desde o final da década de 1820, mas o sucesso das gravuras da Currier e Ives foi determinante para popularizar esse tipo de representação humorística dos negros. Na inexistência de um levantamento semelhante feito no Brasil, não foi possível determinar a origem do tipo de representação do afrodescendente nos quadrinhos de artistas nacionais. No entanto, pesquisas decorrentes da execução do presente trabalho permitem afirmar que houve influência do modo de representar dos norte-americanos. 50 Como exemplo, foram selecionadas algumas imagens extraídas do livro de Strömberg (2003) que reproduzem personagens de quadrinhos norte-americanos, nitidamente inspirados na figura dos menestréis, e outras criadas no Brasil. Figura 8 – Personagens dos quadrinhos americanos inspirados nos menestréis Nos quadros acima estão reproduzidos os personagens de Musical Mose, de George Herriman, à esquerda, e de Felix, tha cat, de Otto Mesmer, à direita. A primeira é datada de 1902 e a segunda, de 1925. É possível encontrar traços de semelhança com os personagens brasileiros Azeitona, de Luiz Sá, e Giby, de J. Carlos, reproduzidos abaixo: Figura 9 – Personagens negros de quadrinhos brasileiros A cabeça como uma bola ou uma elipse preta, olhos esbugalhados e lábios exageradamente grossos estão presentes nessas figuras. Vários dos personagens afrodescendentes apresentaram essa mesma configuração, perpetuando um estereótipo que vigorou durante décadas. Um modelo representativo que só veio a se alterar na segunda metade do século XX. 51 2.4. Iconografia do negro no Brasil Registros visuais que retratassem os habitantes do Brasil em seus primórdios são extremamente raros, até o advento da imprensa no país, fato que só ocorreu em 1808, com a transferência da Família Real Portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro e a autorização para criação da Imprensa Régia. Até então, as oficinas gráficas eram proibidas de funcionar em território nacional e as poucas iniciativas isoladas foram reprimidas. (AZÊDO, 2009, p. 4), A representação gráfica de pessoas afrodescendentes só foi possível graças aos artistas que integraram as diferentes missões científicas que aqui aportaram desde o século XVII e que tiveram seu auge no século XIX. Para traçar uma trajetória da iconografia do negro desde o início da constituição do Brasil como país foram analisadas as obras dos principais artistas que acompanharam as missões de levantamento artístico e científico que aqui estiveram, patrocinadas por governos estrangeiros. Nesse percurso, tentou-se entender como se deu a consolidação de um modelo de representação visual que viria a predominar no decorrer do século XIX e início do XX, quando surgem os quadrinhos. Duas compilações são particularmente interessantes nesse aspecto. A primeira delas é A travessia da Calunga Grande (MOURA, 2000). Como o próprio subtítulo Três séculos de imagens sobre o negro no Brasil (1637-1899) sugere, trata-se de uma obra ambiciosa, concebida para comemorar os 500 anos do descobrimento do Brasil e faz um abrangente levantamento da iconografia dos africanos e seus descendentes a partir das primeiras representações, ainda anteriores a 1500 até as vésperas do século XX. O extenso volume segue a ordem cronológica o que permite situar as imagens dentro de um amplo painel histórico e avaliar a evolução do modo como os artistas, principalmente os visitantes estrangeiros, viam o Brasil e seus habitantes. A segunda é O olhar europeu, (KOSSOY; CARNEIRO, 2002) que tem como subtítulo O negro na iconografia brasileira do século XIX. O título também deixa claro que o estudo teve a intenção de apresentar a visão que artistas vindos de fora tinham da nossa realidade e da nossa sociedade. Abrange um período mais curto, mas diferentemente do livro de Moura, é dividido por classificação temática, com um breve 52 texto introdutório que ajuda a entender o contexto em que as imagens foram criadas. Outra forte característica dessa obra é a inclusão de um número maior de fotos, técnica cujo uso foi disseminado a partir de meados do século XIX. Por isso, ainda que muitas das imagens desse livro estejam presentes em A travessia da Calunga Grande, foi muito útil confrontar, comparar e, na maioria dos casos, corroborar as informações constantes em um e outro. Um terceiro título Modos de ser, modos de ser, de Sela (2008) também traz contribuições relevantes para a interpretação da imagem do negro, notadamente pela produção dos viajantes europeus que visitaram o Brasil na primeira metade do século XIX, período também abordado por Kossoy e Carneiro. Já em seu primeiro capítulo, a autora expõe a intenção de analisar os quadros que trazem imagens de afrodescendentes sob a luz das principais teorias raciais em voga na época em que foram pintados. Dessa forma, além das imagens em si, o livro reproduz alguns comentários dos viajantes a respeito do que viram e presenciaram. Esses três livros permitem conhecer um amplo espectro da imagem de africanos e seus descendentes desde a primeira imagem conhecida até o final do século XIX, mas para que a pesquisa fosse realizada de forma o mais completa possível, foram consultados também títulos que reúnem a obra de alguns dos principais artistas que se dedicaram a pintar e desenhar o cotidiano da sociedade brasileira em períodos distintos e cujas obras têm servido como referência para a compreensão da formação do Brasil como nação. Sela também reproduz algumas imagens presentes nas obras anteriores e incluí outras mais, no entanto, por serem em tamanho reduzido e em baixa qualidade de visualização, os textos analíticos é que foram particularmente úteis. A compilação da obra completa de artistas como Albert Eckhout, Frans Post, Jean Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas, disponíveis em edições de luxo recentemente publicadas, propiciou uma consulta a um conjunto expressivo de imagens e dados que reforçam e complementam as obras de Moura, de Kossoy e Carneiro e de Sela. Além desses títulos, foram utilizadas esparsamente outras fontes secundárias que forneceram informações isoladas sobre algum artista ou determinada obra. Não é intenção deste capítulo repetir e redundar os citados trabalhos, 53 que já têm o mérito de atingir de forma muito competente os objetivos a que se propuseram. O propósito foi fazer uma avaliação das imagens registradas e pontuar aquelas que parecem ter sido determinantes para estabelecer um modelo da representação dos negros nas artes visuais e, posteriormente, no humor gráfico e na imprensa de modo geral. A análise tomou os devidos cuidados para evitar as recorrentes armadilhas de interpretação, pois como bem alertam Kossoy e Carneiro em um dos capítulos de sua obra: A iconografia segue sendo o grande desafio. Tida como ‘ilustração’ aos textos, como colocado de início, ela tem-se prestado silenciosamente, ao longo do tempo, como referência ‘artística’ dos fatos passados. A imagens, entretanto, nos informam e nos despistam pela ambiguidade com que o real se vê nelas registrado. O intérprete se verá sempre diante de códigos técnicos, culturais e estéticos a serem decifrados. (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 211) Com isso, os autores querem dizer que nenhuma imagem é isenta e imune à intervenção de seu criador. Por mais que um artista pretenda retratar com o máximo de fidelidade a realidade ao seu redor, seus trabalhos sempre trarão a marca de sua bagagem cultural e sua ideologia, ainda mais se tratando de profissionais contratados por autoridades cujos interesses econômico e político não poderiam ser contrariados. Posturas etnocentristas e preconceituosas podem ser detectadas nos textos da literatura de viagens. E tais preconceitos transparecem, por vezes, revestidos de um verniz paternalista. As obras dos viajantes europeus, apesar de imprescindíveis para os estudos históricos, em face do manancial de informações e da abrangência temática que encerram, são todavia, impregnadas de juízos de valor. O mesmo se dá em relação à expressão plástica e nem poderia ser de outra forma. (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 211) Os pintores e arquitetos das primeiras missões científicas, invariavelmente, tinham a intenção de fazer um inventário da fauna e flora local e de registrar o cotidiano da sociedade brasileira. A maioria com destaque para os aspectos pitoresco e exótico das paisagens e dos costumes de uma região tropical considerada um paraíso para alguns e um inferno para outros. “Nesta trajetória do negro enquanto modelo de representação, pôde-se constatar que estamos diante de cenas construídas onde o negro se viu embelezado por uns e animalizado por outros.” (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 213) 54 Todos esses artistas foram contratados para produzir imagens realistas, numa época em que o processo fotográfico ainda não havia sido inventado, eles eram incumbidos de retratar da forma mais fiel possível a realidade que viam a seu redor, por isso, em tese, a representação de negros não sofria distorções. No entanto, ainda segundo Kossoy e Carneiro, tais registros reafirmavam as diferenças visíveis que caracterizavam a população de origem africana. “Na condição de observadores e representantes das nações colonizadoras, interpretaram – através de seus filtros ideológicos – as diversidades culturais, sem entretanto, questioná-las.” (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 27) Dentre os pioneiros, destacam-se os holandeses Frans Post (16121680) e Albert Eckhout (1610-1666), que estiveram no Brasil durante o período de domínio holandês em Pernambuco (1637 a 1644), como integrantes da comitiva oficial de Mauricio de Nassau, nomeado governador da Holanda em território brasileiro e que se estabeleceu em Recife. Os dois artistas produziram as primeiras imagens de negros no país. Para Brienen (2010, p. 27) “supõe-se que Eckhout fora designado para pintar retratos e naturezas-mortas, enquanto que a Post couberam as imagens de paisagens e os estudos topográficos”. Segundo Moura (2000) o quadro mais antigo existente retratando negros no Brasil chama-se Vista de Itamaracá, e foi pintado por Frans Post em 1637, ano de sua chegada ao Brasil (LAGO, 2009, p. 86). A pintura mostra dois homens brancos e dois escravos negros, caminhando às margens de um rio. Figura 10 – O primeiro quadro a retratar pessoas negras no Brasil, por Post 55 O segundo quadro de Post, Carro de bois, é de 1638 e também traz dois negros conduzindo um carro de bois (LAGO, 2009, p. 90) Figura 11 – Nos quadros de Post, os rostos das pessoas são indistinguíveis De 1637 até 1644, período em que esteve no Brasil, estima-se que Post tenha pintado 18 quadros no país, dos quais foram conservados apenas sete. (LAGO, 2009, p. 85). A passagem pelo Brasil marcou toda a carreira do pintor que, de volta a seu país de origem, produziu diversas telas, divididas em quatro fases, a partir dos esboços feitos no Brasil. Algumas delas, como Engenho de mandioca, de 1651, e Festejo no arraial, de 1653, exploram a temática dos engenhos de açúcar e dos seus trabalhadores escravos (LAGO, 2009, p. 115). Figura 12 – Festejo no arraial, de 1653, feito por Post após regresso à Holanda 56 Post compunha seus quadros com paisagens que cobriam cenários mais amplos. Esse fator, aliado ao tamanho dos quadros, nenhum desses com mais de um metro de largura, fazia com que o elemento humano muitas vezes possuísse dimensões diminutas de forma que é impossível distinguir rostos e identificar as faces de seus personagens. Como sua intenção era ressaltar as características geográficas dos locais retratados, Post não teve a preocupação de capturar semblantes e expressões. Segundo Brienen (2010, p. 101) “as paisagens pintadas por Frans Post no Brasil, que retratam, em geral, corpos marrons sem individualidade, trabalhando diligentemente nas plantações e nos engenhos, ou descansando pacificamente às margens dos rios”. Diferentemente de Post, a especialidade de Albert Eckhout eram as naturezas mortas e os retratos, executados em grandes dimensões. Esse artista também permaneceu no Brasil de 1637 a 1644 e pintou diversos quadros e entre os mais conhecidos se encontra a série de retratos em tamanho natural (cerca de 2,80m x 1,70m) e que compõem a chamada Coleção Etnográfica. São retratos de habitantes do Brasil de diversos grupos entre os quais indígenas e negros e elementos mestiços das diferentes etnias. Figura 13 – Homem negro (esq.) e Mulher negra, de Eckhout 57 O Homem africano, datado de 1641, e Mulher africana, também de 1641, são os quadros mais antigos da série. Trata-se, sem dúvida, de africanos pelos traços, cor da pele e vestimentas, mas por suas poses e adereços, não aparentam se tratar de escravos. Além disso, na composição do quadro do homem há elementos como a vegetação e até uma presa de elefante, estranhos à paisagem brasileira, o que levantou dúvidas quanto ao local em que Eckhout teria retratado seus modelos. Brienen (2009, p. 98) esclarece essa questão ao exibir as reproduções do livro Thierbuch, escrito e ilustrado por Zacharias Wagener (1614-1668), por volta de 1641. Figura 14 – Imagens incluídas no Thierbuch, de Wagener Nessa obra, que relata a passagem de Wagener pelo Brasil, onde chegou a ocupar cargo de confiança na equipe de Mauricio de Nassau, existem cópias dos quadros de Eckhout em estágios iniciais o que permite deduzir que os retratos foram, de fato, feitos por Eckhout no Brasil a partir de modelos vivos, e, posteriormente, acrescentados acessórios para dar um tom de exotismo ao conjunto, talvez com o objetivo de atender à audiência europeia por imagens dessa natureza. Outro quadro da Coleção Etnográfica, datado de 1643, retrata um mulato. Dessa forma, essa seria, provavelmente, a primeira representação de um afrodescendente nascido no Brasil. 58 Figura 15 – O Mulato, de Eckhout Três quadros retratando negros, dignitários representantes de nações africanas em visita à corte holandesa, trajados com luxo costumam ser associados a Eckhout e chegaram a fazer parte da exposição de obras do pintor holandês realizada no Brasil em 2002, mas sua autoria ainda não foi autenticada. No catálogo da mostra, Berlowicz (2002, p. 33) cita os retratos e comenta que a autoria tanto pode ser atribuída a Eckhout quanto a Jasper Becx (? - ?), pintor holandês que lhe foi contemporâneo. Brienen (2009, p. 317) inclui as pinturas em seu levantamento que abrange toda a obra de Eckhout, no entanto, observa que é possível, embora improvável que essas pinturas sejam desse artista. Figura 16 – Quadros atribuídos a Eckhout 59 O alemão Zacharias Wagener já morava no Brasil desde 1634, como soldado da Companhia das Índias Ocidentais (MOURA, 2000, p. 20). Com a vinda do conde Mauricio de Nassau ao país, passou a servi-lo como assistente e teve contato com os artistas e técnicos que acompanhavam o governante. A importância de Wagener para a historiografia, ainda que de forma deturpada, foi a iniciativa de produzir e editar o Thierbuch que traz uma “visão geral sobre a fauna, flora e os habitantes da ‘remota e mui famosa terra do Brasil’” (BERLOWICZ, 2002, p. 168). O livro é ricamente ilustrado e muitas das imagens são copiadas dos estudos e pinturas feitas por Eckhout e outros artistas que integraram a comitiva de Mauricio de Nassau. O Thierbuch foi publicado entre 1641 e 1643, data anterior ao retorno de Eckhout à Holanda. Ou seja, as cópias feitas por Wagener vieram a público antes das pinturas de Eckhout que as inspiraram. Tal fato gerou a suspeita de que Eckhout é quem teria copiado os desenhos de Wagener. Essa hipótese é citada por Moura (2000, p. 21) e creditada ao etnólogo Curt Nimuendaju. No entanto, parece não ter fundamento, uma vez que Wagener inclui em seu Thierbuch imagens copiadas de Georg Marcgraf, naturalista e desenhista alemão que também integrou a comitiva de Nassau. Além disso, existe um estudo em esboço, de autoria de Eckhout, de uma mulher que se veste com o mesmo saiote azul e branco e a faixa vermelha na cintura que aparecem no quadro Mulher africana. Figura 17 – Estudo de mulher africana feito por Eckhout 60 Segundo Brienen (2010), Wagener desenhou suas figuras com “traços faciais crus e físico mais troncudo, e são em geral menos elegantes do que as equivalentes nas pinturas de Eckhout: mas é difícil dizer se isso foi feito deliberadamente para torná-las menos atraentes, demonstrando uma visão racista ou se decorre simplesmente de suas deficiências artísticas”. Wagener não se restringiu a reproduzir pinturas de outros artistas e criou algumas obras próprias. Seu quadro Negertanz, sem data, é uma aquarela que segundo Moura (2000, p. 21) “é talvez, de acordo com René Ribeiro, o primeiro registro iconográfico que documenta as características religiosas dos batuques”, na pintura, porém, os negros aparecem de uma forma bastante estilizada, quase caricatural, diferentemente da maneira como Post e Eckhout costumavam fazer. Teria, portanto, precedido em cerca de 200 anos a representação de personagens negros que se tornaria comum na imprensa ilustrada do século XIX. Figura 18 – Desenho de Wagener que poderia ser classificado como caricatura Moura cita diversos outros trabalhos que retrataram pessoas negras no século XVII. A maioria sem autoria conhecida, com exceção de Johann Nieuhoff (1618-1672), que veio ao Brasil em 1640 e é autor de uma gravura que mostra uma cena de festa e dança entre os escravos, datada de 1682 e que certamente se refere ao ano de sua publicação e não de sua realização. 61 Figura 19 – Os negros de Nieuhof em traços estilizados Segundo Moura, o século XVIII “corresponde a um momento histórico de total fechamento e inacessibilidade da colônia aos viajantes estrangeiros, em decorrência das políticas adotadas pelo governo ultramarino, em extremo cioso de proteger dos contrabandistas as minas de ouro e diamantes” (MOURA, 2000, p. 21). Para Moura “as restrições à presença dos estrangeiros só aumentam o interesse da preciosa iconografia de Carlos Julião”, capitão de mineiros da Artilharia da Corte do Rio de Janeiro, que retratou os escravos em diversas atividades, em gravuras produzidas em 1776. Julião (17401811) deixou um conjunto de 43 aquarelas de sua autoria, 21 delas com imagens de negros. Nesses trabalhos já se nota uma estilização na representação das pessoas e uma simplificação dos traços. Figura 20 – Estilização no desenho de traços simples de Carlos Julião 62 No século XIX, com a vinda de D. João VI e sua corte, é promovida a abertura dos portos do Brasil, iniciando um fluxo de estrangeiros de uma forma inédita. Negociantes, diplomatas, militares, naturalistas, cartógrafos, viajantes, pintores, aquarelistas e desenhistas, quase todos de passagem pelo Brasil, alguns poucos aqui residindo temporária ou definitivamente ao longo do século XIX, nos legaram a documentação que constitui a maioria desta catalogação das imagens do negro (comparar as 1.063 imagens do século XIX com as 115 do século XVI e as 63 do século XVIII). (MOURA, 2000, p. 22-23) Não é à toa, portanto, que o século XIX também seja o mais rico em termos de figuras que representam os africanos e seus descendentes e é nesse período histórico que se situam as imagens reproduzidas em Kossoy e Carneiro (2002) e em Sela (2008), muitas das quais também constam do livro de Moura (2000). A diferença maior é no projeto editorial, pois o primeiro é dividido por temas, o de Sela segue um viés mais ideológico e é mais detalhista, enquanto Moura optou por um painel cronológico. Também ocorrem algumas divergências quanto a dados sobre a ilustração apresentada. Já nos primeiros anos do século XIX tem-se o registro, ausente tanto em Kossoy e Carneiro quanto em Sela ou em Moura, de uma pintura em que aparece um afrodescendente de autoria do artista João Pedro, também chamado de O mulato, citado por Bahls e Buso (2009, p. 22). Figura 21 – Aguateiro de Paranaguá, de João Pedro, o Mulato 63 Foram encontradas oito ilustrações coloridas, executadas entre 1807 e 1819, atribuídas a esse autor sobre quem não há mais informações, a não ser o fato de ter nascido em Curitiba, dado curioso, pois naquela época, não era dos centros mais desenvolvidos e era difícil adquirir material de pintura ou mesmo ter aulas de desenho. As primeiras imagens datadas do século XIX, presentes no livro de Moura, são as diversas aquarelas do pintor Joaquim Candido Guillobel (1796-1844), todas realizadas entre 1812 e 1829. Militar português de origem belga, retratou em suas 71 figurinhas em aquarela, o cotidiano de negros e negras das cidades do Rio de Janeiro e São Luís. Segundo Moura, “seu trabalho teria sido apreciado por Debret”, artista francês, autor de um conjunto de pinturas e gravuras retratando negros em meados do século XIX. Figura 22 – Negros nos traços exagerados de Guillobel Nessas figuras, chama a atenção o nível de estilização que o aproxima de um traço caricatural que, àquela época, já era corrente na Europa. A partir das pinturas de Guillobel, Henry Chamberlain, de 1819, produziu uma série de desenhos inserindo as figuras de negros “em cenários urbanos por ele criados, em composições um tanto forçadas, desajeitadas mesmo” (MOURA, 2000, p. 25). Segundo Sela, Chamberlain reproduziu em seu livro de viagem várias das imagens de Guillobel retratando negros e acrescentou-lhes “legendas explicativas, descrições de seus trajes, instrumentos, ações e estatutos sociais”. 64 Nas pinturas de Chamberlain, a representação do rosto dos negros já atingiu um grau de estilização muito grande, não muito distante do que seria amplamente utilizado no humor gráfico, a partir do fim do século XIX. Figura 23 – Chamberlain representou os negros de forma caricatural Embora os citados artistas tenham deixado importantes registros de sua percepção sobre os negros no Brasil, os nomes mais notáveis nesse campo podem ser considerados os do inglês Thomas Ender (17931875), o francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e o alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), integrantes de missões oficiais de seus respectivos países, foram responsáveis por uma grande quantidade de ilustrações que retratam afrodescendentes e que permite vislumbrar um painel abrangente da presença dos negros no século XIX, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país. Debret chegou ao Brasil em 1816 como membro da Missão Artística Francesa, liderada por Joaquin Lebreton. Em 1817, foi organizada uma missão científica (austro-bávara) para pesquisar e conhecer o Brasil, aproveitando as núpcias do príncipe D.Pedro de Bragança com a arquiduquesa da Áustria, Dona Leopoldina, princesa e filha do de Francisco II, imperador da Áustria. Ender foi o encarregado de desenhar as paisagens, nessa comitiva em que também vieram o botânico Karl Friedrich Philipp Von Martius e o zoólogo Johann Baptist Spitz. Rugendas esteve no país de 1822 a 1829, na missão científica chefiada 65 pelo Barão George Heinrich von Langsdorff. De estilos distintos, cada um foi responsável por uma volumosa produção que inclui pinturas, desenhos e gravuras que retratam a sociedade da época. De sua permanência no Brasil, Ender deixou cerca de 800 imagens, entre pinturas e gravuras, algumas das quais mostrando os cenários urbanos do Rio de Janeiro e as pessoas que circulavam por esses locais. Figura 24 – Cena da Rua Direita, no Rio de Janeiro, de autoria de Ender Figura 25 – Os negros diante do Mercado Municipal do Rio de Janeiro, de Ender 66 Debret produziu uma longa série de imagens entre gravuras e aquarelas, sobre a capital Rio de Janeiro e seus habitantes. Muitas delas se tornaram ícones do período colonial. Figura 26 – Debret retratou o cotidiano dos escravos no Rio de Janeiro A maioria de seus retratos segue um estilo realista, mas na gravura do velho negro tocando berimbau 1834-1839, os traços fisionômicos são bastante estilizados. Figura 27 – Traços caricaturais presentes nas aquarelas de Debret 67 Essa característica de humor nos trabalhos de Debret não passou despercebida, tanto que o francês é o único dos chamados desenhistas viajantes a merecer destaque na História da Caricatura do Brasil, de Herman Lima (1963) e é citado também nos livros sobre caricatura de Fonseca (1999, p. 208) e Magno (2012, p. 454-455). Lima cita outros artistas como Chamberlain e Biard, na categoria de Costumistas, que ele define como “fixador de aspectos e tipos representativos de regiões mais ou menos exóticas... inclinado a acentuar os traços e a nota pitoresca de suas composições”. No entanto, é o trabalho de Debret que ele se detém a analis ar com mais atenção: Todo grande costumista é desse modo, pelo menos um caricaturista em potencial. Não é preciso ir muito longe, para comprová-lo, pois temos bem à mão a evidência caricatural de tantas gravuras brasileiras de J.B. Debret, por mais alheio que esse admirável costumista pudesse estar a qualquer espírito de sátira (LIMA, 1963, p. 1659). Rugendas com sua série de retratos em litogravura foi o que mais se preocupou em retratar de forma idealizada e elegante as diferentes formas de rostos e expressões. Figura 28 – Os negros de Rugendas exibem corpos esbeltos e rostos atraentes 68 Rugendas, aliás, parecia fazer questão de ressaltar a beleza dos traços, a altivez dos gestos e a anatomia bem proporcionada de alguns de seus retratados. Figura 29 – Rugendas e a exaltação da beleza e da sensualidade da mulher negra Segundo Carneiro, o artista alemão buscava transmitir uma pretensa amenidade do sistema escravocrata no que tange ao trabalho na plantação. O clima é teatral e o enredo é romantizado pelos detalhes que compõem o cenário e a pose dos personagens. O artista humaniza a escravidão ao mesmo tempo que destaca as formas físicas e a sensualidade do negro, fascinado que estava pela imagem do ‘outro’. (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 73) Mesmo ao representar o interior do porão de um navio negreiro, Rugendas tratou de amenizar o cenário exibe escravos deitados, expressões serenas e até a imagem singela de uma mãe com seu filho ao colo. 69 Figura 30 – Porão de navio de transporte de escravos, em gravura de Rugendas Em contraste, uma imagem de autoria desconhecida, exibe as condições mais realistas em que os cativos faziam a travessia do Atlântico. Figura 31 – Representação mais realista de um navio negreiro, por autor anônimo Uma das imagens mais impressionantes que retratam o transporte de escravos é um esquema mostrando como os negros embarcados eram distribuídos de modo a obter o melhor aproveitamento possível do espaço para caber o máximo de “carga” útil. 70 Figura 32 – Esquema de um navio negreiro, baseado em situação real Segundo Rediker (2011, p. 314-325), essa imagem foi reproduzida inúmeras vezes em panfletos distribuídos nas principais locais onde ocorria o tráfico de escravos e foi um importante recurso utilizado por abolicionistas ingleses para sensibilizar a opinião pública sobre o sofrimento infligido aos negros já desde a sua retirada à força de sua terra natal. Tanto Debret quanto Rugendas produziram retratos com o intuito de registrar as diversas etnias que compunham a massa da população escrava do Brasil. Ambos fizeram séries de desenhos que retratavam os diferentes povos e suas distintas origens no continente africano. Figura 33 – Debret e as diferentes etnias africanas em rostos e penteados variados 71 Figura 34 – Estudo de Rugendas da fisionomia de negros de diversas origens Enquanto Debret explorou diferenças de traços e expressões faciais, em Rugendas há uma certa uniformidade nos rostos com pouca variação nas feições, em que se destacam o mesmo tipo de olhos. A gravura Die Baducca, de Johann Baptist Spix e Karl Friedrich Philipp Von Martius, aparece com data de 1817 (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 152) e como sendo de 1823-1831 (MOURA, 2000, p. 370). Essa litografia, retratando uma festa entre os escravos sob o olhar vigilante de um soldado do império, poderia muito bem ter sido produzida para um jornal humorístico. Figura 35 – Cenas de dança e lascívia no traço caricatural de Spix e Von Martius O traço caricatural começa a se fazer presente em alguns trabalhos, provavelmente pela influência das publicações já correntes na Europa, 72 em revistas como as francesas La Caricature, lançada em 1830, e Le Charivari, que estreou em 1832. Ambas as publicações foram editadas pelo caricaturista Charles Philipon (FONSECA, 1999, p. 69). Essa característica é ressaltada por Magno (2012), em seu livro sobre caricatura, ao incluir um capítulo dedicado a imagens produzidas por viajantes estrangeiros. O livro Sketches of portuguese life, manners, costume and characters, editado em Londres, em 1826, de autoria de um artista que assinava com as iniciais A.P.D.G. contém imagens que possuem um nível de estilização que pode ser considerado caricatural, prenunciando um modelo que seria seguido pela imprensa humorística por todo o século XIX. Uma delas, atribuída ao próprio A.P.D.G. e reproduzida em Lima (1963, p. 413) e em Magno (2012, p. 447) é a gravura denominada Courtday at Rio, satiriza a cerimônia de beija-mão ao Rei D. João VI. Figura 36 – Na gravura de A.P.D.G., um oficial negro beija a mão de Dom João VI Gustavo Barroso, autor do ensaio A Caricatura Inglesa no Museu Histórico, citado por Lima (1963), detecta nessa imagem um personagem afrodescendente. No trono maior, acha-se sentado D. João VI, caricaturalmente representado na cabeça disforme em relação ao corpo. Vestido como Príncipe Real, faz repousar a perna esquerda, certamente reumática sobre o tamborete redondo, forrado a seda carmesim. Dá indiferentemente a polpuda mão a beijar a um oficial ajoelhado, em cujos cabelos e fisionomia evidentemente se deslumbram sinais de mestiçagem africana. (LIMA,1963, p. 414). Outra litogravura presente no livro de A.P.D.G. é particularmente 73 interessante. Denominada Comerciante Mineiro Regateando, ela aparece no livro de Moura como sendo de C.C.M (MOURA, 2000, p. 433). A mesma imagem, mas com autoria atribuída a W. Read é reproduzida no livro de Magno (2012:448) e no de Kossoy e Carneiro (2002, p. 59). Para esses últimos, “há um enfoque explicitamente preconceituoso pela forma como representa os escravos, animalizados em sua compleição física: recurso adotado pela autor para marcar a distância entre o negro e o branco civilizado, padrão ideal de raça e cultura.” (KOSSOY; CARNEIRO, 2002, p. 55). Sela (2008, p. 199) também se detém a comentar cada uma das gravuras de A.P.D.G. e afirma que “a preocupação com a ‘autenticidade’ de sua obra não poupou o autor de nela imprimir um tom mordaz e caricatural”. Figura 37 – Imagem de W. Read os negros têm traços grotescos e caricaturais Outro artista estrangeiro que se distanciou do padrão realista de representação para retratar os negros foi Paul Harro-Harring (17981870) do qual, tanto Kossoy e Carneiro (2002) quanto Moura (2000) e Magno (2012) reproduzem algumas ilustrações feitas em aguada. Harring, aventureiro e abolicionista dinamarquês, veio ao Brasil em 1840, para verificar as condições de vida dos escravos e produzir material para ser publicado no semanário abolicionista inglês The African Colonizer (HARRING, 1996, p. 5) De sua permanência no país, produziu um conjunto de 24 aguadas. Seus desenhos, envolvendo senhores e cativos, incluindo a exploração da força de trabalho e maus 74 tratos, representam cenas de trabalho e lazer, a vida nas ruas tipos sociais, indumentárias e paisagens posteriormente reunidas no livro Tropical sketches from Brazil. Figura 38 – Traço humorístico usado em favor da denúncia, por Harro-Harring Outro abolicionista inglês que esteve no Brasil e de quem Magno reproduz algumas aquarelas foi o inglês Augustus Earle (1793-1838) que, segundo Pedro da Cunha Menezes tem “a capacidade de capturar o momento e o humor crítico é de fato sensação despertada no observador na maioria de suas estampas cariocas” (MAGNO, 2012, p. 453). Figura 39 – Earle usou o traço de humor para expor a crueldade da escravidão 75 Um terceiro artista que utilizou o humor não como instrumento de denúncia como os anteriores, mas como forma de criticar os costumes e comportamentos dos brasileiros foi Auguste François Biard (17981882), também representado na obra de Magno. Figura 40 – Biard: crítica à sociedade sob a forma de caricatura A partir de meados do século XIX, o desenvolvimento da fotografia e a possibilidade de se fazer registros fieis da realidade, tornou obsoleto o trabalho dos ilustradores contratados para essa tarefa. Esse fator coincidiu com a expansão das artes gráficas que, por essa época, fizeram surgir diversos títulos entre os quais muitos jornais ilustrados. Os desenhistas viajantes, que haviam cumprido um significativo papel na caracterização das paisagens do Brasil, tanto quanto de seus habitantes, flora e fauna começam a perder espaço. A partir de então, surge um novo tipo de representação visual, predominante nas charges e caricaturas que começam a ser usadas para criticar as autoridades e personalidades políticas ou figuras da sociedade, em ilustrações publicadas em jornais de grande popularidade. 76 CAPÍTULO 3. AFRO-BRASILEIROS NO HUMOR GRÁFICO 77 3.1. Caricatura como origem dos quadrinhos A proposta de se analisar a forma como os negros vêm sendo representados graficamente por pintores e ilustradores, no decorrer da história, não poderia deixar de incluir o modo como eles figuram no humor gráfico, em publicações ilustradas que cronologicamente antecederam os quadrinhos e os influenciaram. Diversos livros que se propõem a traçar um relato histórico das histórias em quadrinhos fazem uma correlação direta entre essa linguagem e o humor gráfico, notadamente, suas manifestações mais comuns que são a charge e a caricatura, consideradas predecessoras dos quadrinhos por vários autores. Existe uma espécie de linha evolutiva em que não há um limite muito claro entre uma arte e outra. Sintoma dessa ausência de fronteiras é a própria data que os norte-americanos defendem como sendo o marco de nascimento dos quadrinhos. Para autores como Waugh (1947) e Robinson (2011), a série Yellow Kid, de Richard Outcault (1863-1928), só é considerada quadrinhos a partir de 16 de fevereiro de 1896. No entanto, esse mesmo personagem já aparecia com regularidade nas charges de Outcault publicadas no jornal New York World desde 1894 (BLACKBEARD, 1995, p. 26). A maior parte da produção de Yellow Kid consistiu em um painel único. Somente no fim de 1896, a série adotaria eventualmente o formato de cenas em sequência, uma das características que diferenciariam as histórias em quadrinhos das charges. Nomes como os dos ingleses William Hogarth (1697-1764), Thomas Rowlandson (1756-1824) e George Cruikshank (1792-1878) e James Gillray (1757-1827); do alemão Wilhelm Busch (1832-1908) e do suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846) são recorrentemente citados como profissionais da caricatura e precursores dos quadrinhos por estudiosos de vários países. 79 Figura 41 – Traço caricato de Cruikshank, que já utilizava balões de diálogo Entre os pesquisadores americanos, as referências ao humor gráfico é muito presente, e esses artistas são sempre citados como predecessores ou de uma fase considerada anterior à consolidação dos quadrinhos como linguagem. Waugh (1974, p. 3) menciona Hogarth e Rowlandson no capítulo de introdução de sua obra e observa que este já criara no século XVIII, um personagem popular, de publicação contínua chamado Dr. Syntax. Sobre Hogarth, diz que já utilizava uma espécie de balão para conter as falas. No entanto, o autor ressalta que essas antigas experimentações estão longe de ser consideradas quadrinhos no sentido moderno. Para Waugh, definitivamente, os quadrinhos nasceram no dia 16 de fevereiro de 1896 com Yellow Kid, quando o protagonista, um adolescente calvo e de orelhas de abano, tem sua camisola pintada de amarelo, o que viria a batizar o personagem e a série. 80 Figura 42 – Painel de Yellow Kid, de 18 de fevereiro de 1896 Essa opinião é partilhada por Becker (1959), que chega a reproduzir textualmente o trecho de Waugh sobre a origem dos quadrinhos. Esse autor, também menciona Hogarth e Rowlandson e esclarece que os impressos com as charges de ambos já circulavam na América por volta de 1760 (BECKER, 1959, p. 3). Robinson (2011, p. 31-39), que igualmente defende a primazia de Yellow Kid, é outro autor que se dedica a discorrer sobre o uso da caricatura como instrumento de sátira social. Além de Hogarth e Rowlandson, ele cita Gillray que havia produzido milhares de gravuras e teria sido o primeiro autor a se dedicar às caricaturas como atividade principal. Para Robinson (2011, p. 33), ao adotar como formato uma abordagem simples de ilustração, Gillray forjou um dos atributos essenciais da moderna linguagem dos quadrinhos. Ainda segundo Robinson, Gillray e Rowlandson foram os maiores responsáveis por incrementar o uso de balões para as falas. 81 Figura 43 – Sequencialidade, balões e figuras estilizadas, em Gillray Estudiosos europeus também concordam com as constatações dos americanos. O francês Lacassin (1971) se detém um pouco mais na obra de Hogarth cujo trabalho teria sido admirado pelo suíço Rodolphe Töpffer, considerado o pai das histórias em quadrinhos (KUNZLE, 2007) Figura 44 – Imagem de Wiliam Hogarth Outro francês vai mais além: Blanchard (1974) dedica 174 das 304 82 páginas de seu livro aos primórdios dos quadrinhos e se preocupa, inclusive, em explicar os processos de impressão e as condições técnicas que permitiram os avanços das imagens em sequência até as primeiras histórias em quadrinhos em si. Entre os britânicos, com ainda mais ênfase, os nomes dos caricaturistas ingleses merecem destaque. Perry e Aldridge (1971, p. 31) são categóricos ao comentar sobre Hogarth e Rowlandson como introdutores de uma técnica narrativa que influenciou a linguagem dos quadrinhos. Figura 45 – Imagem que precedeu as histórias em quadrinhos, de Rowlandson Sabin (1996, p. 12) repete o mesmo rol de ilustradores, mas é o único a fazer uma relevante consideração. Para ele, não apenas o desenvolvimento tecnológico, que permitiu reproduzir diretamente do desenho a traço, mas também o ambiente econômico de uma Inglaterra em plena revolução industrial permitiram a redução dos custos de impressão e tornaram as publicações mais acessíveis ao público. Na Espanha, Gasca (1966, p. 24-29) traça um breve panorama do humor gráfico que precedeu a origem dos quadrinhos, incluindo menção a Hogarth. Já Martín (1978) e Conde (2001), igualmente citam a produção de humor gráfico dentro de um contexto a partir do qual surgiriam as histórias em quadrinhos, mas preferem prestigiar os autores conterrâneos, mencionando que publicações espanholas de caricatura já circulavam na segunda metade do século XIX. (CONDE, 2001, p. 9-10). 83 Mesmo entre os estudiosos brasileiros, é comum introduzir o assunto quadrinhos mencionando o humor gráfico como importante predecessor. Moya (1971), em uma das obras pioneiras a estudar os quadrinhos no Brasil, também credita aos caricaturistas europeus a criação de narrativas ilustradas que serviram como gérmen das histórias em quadrinhos e pontua que foi o boom da imprensa americana que viabilizou sua disseminação. Vergueiro (2008) é até mais explícito ao reconhecer a influência estrangeira, embora sem mencionar nomes. Las historietas, conocidas em português como histórias em quadrinhos o solamente quadrinhos, han tenido um desarrollo muy peculiar en Brasil, recibiendo influencias de diferentes partes del mundo. Em el siglo 19, el humor gráfico fue significativamente cultivado em diversos periódicos brasileños, consiguiendo vários artistas que se destacaron en la caricatura. (VERGUEIRO, 2008, p. 7). A correlação entre humor gráfico e quadrinhos também é constatada por Ramos (VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p. 187-189) que, sem fazer menção a autores estrangeiros, cita Angelo Agostini como um dos pioneiros. Teixeira chega a estabelecer uma comparação no modo como se deu a evolução e especifica em que meios isso ocorreu. Por outro lado, ao contrário da charge, que nasce dentro de veículo próprio, as revistas ilustradas da Monarquia, migrando posteriormente, para os jornais na República Velha, os cartuns nascem originalmente nos jornais no início dessa mesma República. Nesse sentido, eles antecedem as HQs, que nascem como cartuns e depois migram para veículos próprios e de circulação especializada. (TEIXEIRA, 2005, p. 107) Sem levar em conta as diversas manifestações de arte sequencial com um ou outro dos elementos que atualmente costumam compor uma história em quadrinhos (balões, onomatopeias, linhas cinéticas etc.) para efeito de conceituação, um dos requisitos que caracterizam os quadrinhos são o fato de serem reproduzidos para consumo de um maior número de leitores, e isso só se tornou possível com o surgimento das publicações como jornais, folhetos e panfletos. Foi nesses meios que, desde o século XVIII e com mais intensidade a partir de meados do século XIX, foram estabelecidos os estilos de desenho que passaram a ser adotados por artistas, normalmente em trabalhos humorísticos, posteriormente incorporados aos quadrinhos. Isso é compreensível 84 pois muitos dos primeiros quadrinistas começaram sua carreira como ilustradores de charges e cartuns como os americanos Frederick Burr Opper (1857-1937), Rudolph Dirks (1877-1968), Richard Outcault e o italiano Angelo Agostini, a quem é atribuída a primeira história em quadrinhos do Brasil. Estabelecida a linha evolutiva, é razoável supor que muitos dos elementos do humor gráfico, manifestado sob a forma de charges e caricaturas, foram decisivos para definir os conceitos das histórias em quadrinhos, a começar pela representação simplificada da figura humana e dos elementos de cenário. Esse processo de simplificação, que Melot (1975, p. 37) chama de esquematização, consiste exatamente no despojamento da figura ao seu essencial, reduzindo ao mínimo possível para que seja reconhecível. No entanto, ao contrário do que possa parecer, trata-se de uma mudança que exigiu um longo aprendizado por parte dos artistas e também de quem aprecia uma obra de arte. Segundo Gombrich (1986), em capítulo dedicado à caricatura, a simplificação dos traços foi uma evolução tanto no estilo dos pintores quanto na capacidade do público de apreciar uma obra de arte. Verificou-se, além disso, que uma vez estabelecidos os necessários contextos mentais entre os observadores, a inclusão minuciosa de todas as sugestões ou indicações seria não só uma redundância, mas um estorvo. Um efeito podia valer por muitos, desde que não houvesse na obra contradição flagrante capaz de impedir que a ilusão desejada tomasse forma. (GOMBRICH, 1986, p. 291). Gombrich chega a citar os bons resultados obtidos por artistas como Al Capp e Walt Disney ao criar seus desenhos e atribui duas condições para seu sucesso: a experiência de gerações de artistas com o efeito de pinturas e a disposição do público em aceitar o grotesco e o simplificado, em parte porque a falta de elaboração garante a ausência de indicações contraditórias e facilita a assimilação da informação. 3.2. O humor gráfico no Brasil A vinda de Família Real portuguesa representou um grande avanço em termo de atividades culturais e artísticas no Brasil. Uma lei de março de 1720 proibia a impressão no país e uma carta régia de 26 de abril de 1730 proibia o correio por terra. Era uma maneira de evitar que os colonos se organizassem e pudessem desestabilizar os 85 negócios da Coroa Portuguesa (CAVALCANTI, 2005, p.33). O surgimento das primeiras editoras, graças ao fim da proibição de gráficas no país e o deslocamento do centro político de Lisboa para o Rio de Janeiro aumentou o interesse pelos acontecimentos locais e gerou o ambiente propício ao lançamento de diversas publicações voltadas ao público num amplo leque de interesses políticos e sociais. O levantamento da representação dos afrodescendentes nas charges e caricaturas , restringiu-se às publicações brasileiras do século XIX, mais precisamente o período do Segundo Império, de 1840 a 1889. O critério para se limitar o intervalo dessa pesquisa foi o advento da imprensa ilustrada no Brasil, em algumas das maiores cidades, e a data em que as histórias em quadrinhos começavam a se consolidar de forma mais sistemática. Além das obras dedicadas ao estudo da caricatura, foram consultados livros que abordaram as revistas ilustradas, veículos por excelência das caricaturas e charges publicadas no período. Lima (1963) é o autor da principal fonte consultada e constituiu uma leitura das mais úteis. A despeito de ter sido editada há 40 anos, seu texto abrange mais de um século de produção de charges e caricaturas no Brasil e ainda se mantém como uma das mais completas referências no assunto. São quatro volumes repletos de reproduções de ilustrações e de fotos de autores, compondo um total de quase 1.800 páginas. Uma segunda fonte primordial foi o livro de Cavalcanti (2005) que traz um retrospecto bastante amplo do humor gráfico brasileiro e levanta hipóteses até então inéditas sobre as primeiras caricaturas produzidas no país. Do livro de Moura (2000), bastante utilizado no capítulo referente à iconografia dos afrodescendentes no Brasil, também foram extraídos alguns exemplos de caricatura de pessoas negras. Fonseca (1999), Lago (1999) e Lemos (2001) foram outras fontes que ajudaram a compreender a importância do humor gráfico na evolução da imprensa no Brasil. Apesar de ter sido publicado quando a pesquisa já se encontrava em estado avançado, um trabalho mais recente e que trouxe significativas contribuições para o presente estudo foi o de Magno (2012), uma obra totalmente dedicada à caricatura no Brasil e que enfoca, justamente, o período em análise. 86 Muitas das imagens aparecem reproduzidas em mais de uma obra, o que reforça o papel que alguns artistas tiveram no panorama geral da caricatura através da história. Em todos os livros consultados, são poucas as caricaturas que representam pessoas negras. A maioria delas de autoria de dois dos mais importantes nomes do humor gráfico do século XIX: Henrique Fleuiss e Angelo Agostini, não por acaso, defensores da abolição da escravidão. Especificamente sobre a obra de Angelo Agostini, foram consultadas duas biografias escritas por Maringoni (2011) e Balaban (2009), uma coletânea de fac-símiles do jornal Diabo Coxo (CAMARGO, 2005) e um livro sobre seus trabalhos contra a escravidão, de autoria de Modenesi (2012). Como fontes complementares, recorreu-se aos trabalhos dedicados ao estudo da imprensa ilustrada no Brasil. Os principais livros são voltados à produção no Rio de Janeiro, então capital federal e centro dos acontecimentos políticos. No entanto, também foram consultadas obras focadas nas publicações editadas em outras localidades como Recife, Curitiba e São Paulo. É importante notar que nas principais cidades, começam a circular, a partir de meados do século XIX, diversas publicações motivadas pelo clima político vivido pelo país. Para Saliba, em seu estudo sobre o humor brasileiro dos primórdios do século XX: O século XIX foi aquele que viu nascer as revistas humorísticas, estimuladas pelos avanços nas técnicas de impressão e reprodução que possibilitaram o aumento nas tiragens e o consequente aumento do público leitor. Esta associação entre humor e imprensa, especialmente destacada nos países europeus, também ocorreu nos principais centros urbanos brasileiros, embora tenha sido um pouco mais tardia, já que os processos de modernização da imprensa no Brasil foram mais lentos e concentraram-se nas três últimas décadas do século XIX. (SALIBA, 2002, p. 38) Entre os impressos que surgem, destacam-se os jornais ilustrados, o veículo perfeito para o embate entre as forças conservadoras que defendiam a monarquia e os progressistas que eram a favor da república. No meio dessa discussão, um dos temas que mais ganharam força, até por simbolizar o interesse dos dois campos opostos, foi a campanha pela abolição dos escravos. Segundo Cavalcanti (2005, p. 36) O Carcundão, lançado em Pernambuco, em 1831, teria sido a primeira publicação a estampar 87 uma ilustração humorística no Brasil cuja autoria, infelizmente, permanece desconhecida. Figura 46 – Caricatura publicada em O Carcundão Já para Magno (2012, p. 40) a primazia coube ao jornal O Maribondo, também de Pernambuco, que em 25 de julho de 1822, antes, portanto, do Brasil se tornar independente, publicou acima do seu cabeçalho o desenho, de autor anônimo, de um corcunda sendo atacado por um enxame de maribondos. Figura 47 – Publicada em O Maribondo, esta seria a primeira caricatura brasileira 88 Recife, aparentemente, foi um importante centro de publicações de revistas com o lançamento de vários periódicos. Ataíde e Andrade em sua coletânea de charges publicadas em Pernambuco, no século XIX afirmam que Nesta pesquisa, foi selecionada para publicação o semanário A América Ilustrada (1872-1886). No entanto, é numerosa e fascinante a produção de periódicos que privilegiam a charge como crítica social. Em Pernambuco, destacam-se entre outros: A Troça (1890), Arion (1890-1891), A Cigarra (1872), A Careta (1869-1870), A Exposição (1887), Brasil Ilustrado (1874), O Badalo (1898), Diabo a Quatro (18751877), O Etna (1881-1882), O Estabanado (1875), Ilustração Pernambucana (1872-1874), João Fernandes (1886-1887), Mephistopheles (1882), O Pierrot (1892), O Patusco (1886), Revista Ilustrada (1889), O Sylphorama (1892), O Polichinelo – Ilustração Crítica (1891-1895), O Fantoche (1891) etc.” (ATAÍDE; ANDRADE, 1999, p. 10-11) A primeira revista e trazer caricaturas com regularidade foi lançada no Rio de Janeiro: Lanterna Mágica, em 1844, editada por Manoel de Araújo Porto Alegre (1806-1879). Sant’Anna, no entanto, contesta essa informação já que a Lanterna trazia uma única caricatura encartada por edição, e faz uma distinção do que seria um jornal ilustrado. Para essa autora, A Ilustração Brasileira foi o primeiro órgão impresso no Brasil que conseguiu reunir, em uma só publicação, todos os elementos necessários para ultrapassar a fronteira das puras tentativas e atingiu o patamar de órgão ilustrado e/ ou de ilustração, visto que nenhuma publicação brasileira anterior deu tamanho destaque e foco especial ao “modelo de ilustração’” (SANT’ANNA, 2011, p. 71). Em sua obra, Sant’Anna faz um levantamento das principais publicações desse tipo editadas no Rio de Janeiro, com destaque para Ilustração Brasileira, Brasil Ilustrado e Semana Ilustrada. Na obra organizada por Knauss (2011) o tema são as revistas ilustradas editadas no período do segundo império no Rio de Janeiro. Apesar de não se restringir às publicações de humor, mas também as que tratavam de moda, paisagem e até botânica, dois nomes mereceram menções mais detalhadas: os dos caricaturistas Henrique Fleuiss e Angelo Agostini. Sobre a imprensa paulistana, Janovitch (2006, p. 35) observa que começou tardiamente em relação a outras cidades brasileiras e que enquanto no Rio de Janeiro já se publicavam jornais humorísticos ilustrados em 1844, os humorísticos de São Paulo eram só de textos satíricos e não traziam ilustrações. Segundo essa autora, somente em 89 1864, a cidade ganharia sua primeira publicação ilustrada: O Diabo Coxo, do jornalista Luís Gama e ilustrado por Angelo Agostini. Em 1866 surgiria O Cabrião, que também contou com a participação de Agostini. Mais tarde vieram Polichinello (1876), Coaracy (1875), Platéa (1888). O jornal Diário de São Paulo, lançado em 1865, também é citado por Janovich como sendo “o primeiro jornal cotidiano ilustrado da cidade”. Outro estado sobre o qual existe uma pesquisa das publicações ilustradas do século XIX é o Paraná. Carneiro (1975) lista os títulos de O Barbeiro, de 1870; Revista do Paraná, de 1887, Galeria Ilustrada, de 1888 e O Guarany, de 1891. Em todo o material pesquisado, não há muitas caricaturas de negros, o que pode ser explicado pelo fato de a maioria dos desenhistas eleger como alvos de suas críticas os políticos, autoridades e personalidades da época. Embora Cavalcanti e Magno defendam que existem produções caricaturais produzidas anteriormente, de acordo com Lima (1963, p. 72) a primeira caricatura brasileira seria de Manoel de Araújo Porto Alegre, artista citado também por outros autores, entre os quais Lago e Fonseca como o primeiro caricaturista do Brasil. Publicada em anúncio datado de 13 de dezembro de 1837, a imagem satiriza o jornalista Justiniano José da Rocha, acusando-o de ser um profissional corrupto. De qualquer forma, mesmo não tendo o pioneirismo na publicação, foi, sem dúvida, a primeira a ter sua autoria identificada e também a primeira caricatura de um personagem real. Rocha é retratado na gravura como o personagem que recebe um saco de dinheiro e em forma de graffiti, em perfil e de frente, na parede à direita da imagem. Apesar de ter estudado na França, Rocha era filho de escrava o que significa que na primeira caricatura de autor conhecido, publicada no Brasil, um dos personagens é afrodescendente. 90 Figura 48 – Caricatura de autoria de Manoel Araújo Porto-Alegre Outro artista incluído entre os pioneiros da caricatura no Brasil é o português Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905), que esteve no Brasil entre os anos de 1875 e 1879. Algumas de suas litografias traziam negros caricaturizados, dentre as quais se destacam as suas versões satíricas da viagem de D. Pedro II a Portugal. Figura 49 – Raphael Bordallo Pinheiro satiriza a viagem de D. Pedro II a Portugal Rafael Mendes de Carvalho (1817-1870) produziu uma série de 91 estampas nas quais se incluem a que mostra um escravo sendo castigado em consequência dos excessos cometidos por causa do entrudo, tipo de festejo em que os negros comemoravam o carnaval. Figura 50 – Rafael Mendes de Carvalho e a crueldade contra os escravos Outro artista dedicado a defender a causa dos negros e criticar a escravidão foi V. Mola.Embora tenha deixado um número razoável de charges impressas, é um artista sobre o qual não se dispõe de nenhum dado biográfico. Figura 51– Caricatura de V. Mola publicada em 1867 no jornal O Arlequim Em seu trabalho sobre a caricatura em Pernambuco no século XIX, Ataíde e Andrade incluem um capítulo dedicado ao tema racismo. O 92 livro reproduz várias imagens publicadas no jornal América Ilustrada. Um dos painéis, sem autoria definida, publicado em 1879, mostra negros e chineses em representações estereotipadas. Figura 52 – Chineses e índios retratados como preguiçosos O mesmo livro traz uma caricatura datada de 1872, de autoria de Antônio Vera Cruz (1858-?) que critica a frequência com que ocorrem incêndios no Recife. O bombeiro negro exibe traços caricaturais exagerados e extremamente estereotipados. Figura 53 – Traços exagerados no desenho de Vera Cruz João Pinheiro Guimarães (?- 1879) empreendeu carreira como caricaturista em publicações como Ba-ta-clan e O Mosquito. Segundo Magno (2012:182) nessa publicação Pinheiro Guimarães “se faz notar 93 pela simpatia com que desenha tipos negros”. Figura 54 – Caricaturas de negros no traço de Pinheiros Guimarães Dois outros caricaturistas têm seus trabalhos reproduzidos por Moura (2000). Um deles é Flumen Junius (?-1905), ilustrador e poeta que colaborou para algumas das principais publicações do Rio de Janeiro como a Semana Ilustrada, O Mosquito e o Bazar Volante. O desenho tem traços exagerados, mas o alvo da crítica parece ser mais a atitude pedante da madame retratada do que os negros como raça. Figura 55 – Traço exagerado na representação da senhora negra 94 O outro desenho é de autoria de José Cândido Faria (1849-1911). Fundador de O Mosquito em 1869, também colaborou em diversos outros periódicos. No jornal Vida Fluminense foi o substituto de Angelo Agostini na série Nhô Quim. É citado por Magno (2012, p. 218) como sendo um dos maiores caricaturistas brasileiros e que chegou a empreender carreira internacional, tendo trabalhado em Buenos Aires e Paris, onde se tornou um dos primeiros artistas de cartazes para a nascente indústria do cinema. Na charge em que critica a displicência da polícia, a representação do soldado negro é bem estereotipada. Figura 56 – A sátira está nos traços e no comportamento, de Faria Em contraste com os traços exageradamente deformados com que os africanos e descendentes são representados em todos esses trabalhos anteriores, Henrique Fleuiss e Angelo Agostini, dois dos mais destacados caricaturistas a atuar no Brasil, retratavam os personagens negros de uma forma mais sutil. O alemão Henrique Fleuiss (1823-1882) foi um dos mais prolíficos caricaturistas a atuar no Brasil no século XIX. Segundo Magno (2012, p. 148) foi o responsável por “firmar as bases da imprensa humorística no Brasil ao lançar o periódico Semana Ilustrada, primeira publicação que se manteve de forma regular e duradoura (16 anos) no campo editorial brasileiro, de 1860 a 1876”. Para essa publicação Fleuiss criou o personagem Dr. Semana, presença constante em suas charges, uma espécie de alter ego do autor, que tinha como assistente um rapaz negro chamado Moleque. 95 Fleuiss era monarquista, o que não impedia de nutrir simpatias pela causa abolicionista. Moleque era representado algumas vezes com parentes e com a esposa e era desenhado num traço menos exagerado do que o do próprio Dr. Semana cuja cabeça era muito desproporcional ao corpo, uma das técnicas bastante utilizadas para causar deformação nas caricaturas. Figura 57 – Personagens negros nas charges de Fleuiss Uma das capas da Semana Illustrada, traz o Dr. Semana chega a entregar uma carta de alforria ao Moleque que, surpreendentemente, a recusa, provavelmente por gozar de uma situação bem cômoda em sua relação com seu patrão/ proprietário. Figura 58 – Moleque recusa a carta de alforria que o Dr. Semana quer lhe dar 96 Agostini foi um dos mais combativos defensores da abolição da escravidão. Modenesi (2012) explora bem essa faceta do desenhista e defende que o convencimento das elites letradas para a causa abolicionista envolveu um processo educativo que incluiu as charges e caricaturas cujo acesso mais amplo entre os leitores ajudou a formar uma opinião favorável da sociedade em relação à abolição da escravidão. Em uma de suas charges mais conhecidas e reproduzida em diversos livros (LIMA, 1963, p. 208), (MOURA, 2000, p. 573) (LEMOS, 2001, p. 8), (CAVALCANTI, 2005, p. 79), (BALABAN, 2009, p. 105/211), (MARINGONI, 2011, p. 80), (MAGNO, 2012, p. 201), originalmente publicada no jornal Vida Fluminense em junho de 1870, Agostini expõe a contradição de um sistema que tratava como herói o soldado negro alforriado que, ao retornar da Guerra do Paraguai, vê sua mãe escrava sendo chicotada. O rosto do personagem negro é representado quase como um retrato, sem nenhuma deformação ou exagero nos traços. Esta charge, na verdade, tanto pelo tema quanto pelo tratamento visual tem um tom muito mais dramático do que humorístico. Figura 59 – Agostini e suas denúncias contra a escravidão Em outra ocasião, ao mostrar o escravo negro ao lado de D. Pedro II sendo barrado no Congresso Internacional realizado na Europa, 97 Agostini fazia uma crítica ao sistema escravocrata. Na representação do rapaz negro não há uma deformação na fisionomia. Apenas uma desproporção em seu tamanho em relação aos outros dois personagens. Figura 60 – Dom Pedro barrado no salão das nações civilizadas Tanto Fleuiss quanto Agostini têm uma peculiaridade na execução de suas caricaturas, a deformação normalmente é na proporção da cabeça com o resto do corpo quando muitos artistas preferem exagerar nas dimensões do nariz, do queixo ou das orelhas. Na maioria das vezes, Agostini faz um retrato desenhado do personagem, em muitos casos bastante fiel, e sem exagerar ou sequer alterar os traços fisionômicos. Uma rara exceção foi localizada em todas as fontes pesquisadas foi uma charge publicada originalmente em 1864, no número 9 de Diabo Coxo. Figura 61 – Traços exagerados, em Agostini 98 Isso pode ser explicado pelo fato de Agostini ter sido um ferrenho abolicionista e que se solidarizava com a situação dos cativos. No entanto, ser contrário às condições desumanas a que os escravos eram submetidos não significava automaticamente nutrir simpatia pelos negros, a quem considerava membros de uma raça inferior. Também nesse caso, há um exemplo de caracterização exagerada das feições de personagens africanos. Figura 62 – Agostini critica a aparência dos negros e carrega nos traços O mesmo tratamento gráfico estereotipado, Agostini aplicou ao desenhar algumas charges que criticavam negros e asiáticos para exaltar os trabalhadores europeus nas lavouras brasileiras. Figura 63 – Negro e chinês ganham traços exagerados 99 No entanto, em outra charge de mesmo teor, as fisionomias são retratadas num estilo mais realista, sem muitos exageros nos traços. Figura 64 – Negro e asiático no traço realista de Agostini A experiência adquirida na execução de charges e caricaturas habilitou os profissionais que atuavam nessas artes a ousar e dominar um novo tipo de narrativa gráfica. Ao transportar suas técnicas para a nova linguagem dos quadrinhos, esses artistas consolidaram uma forma de representar cenários, objetos e, principalmente, pessoas, definindo um padrão que viria a vigorar durante várias décadas e, em alguns casos, persiste até hoje. 100 CAPÍTULO 4. O NEGRO NOS QUADRINHOS BRASILEIROS 101 4.1. Os paradoxos do Gibi e do Pererê Antes de abordar os tópicos referentes à pesquisa dos afrodescendentes nos quadrinhos um ponto que merece atenção sobre a condição do negro nos quadrinhos é a ocorrência de uma situação bastante peculiar, marcada por dois paradoxos. O primeiro paradoxo é que o termo “gibi”, que se tornou sinônimo de revista em quadrinhos no Brasil, no sentido original significa menino ou moleque negro, definição consignada em dicionários como o Aurélio e o Houaiss. Cláudio Roberto Basílio, no ensaio “O Negro nas HQs” (HQMANIA, 2005), já havia levantado a questão do “paradoxo do gibi”. A disseminação do termo remonta a junho de 1939, quando estreou a revista Gibi, editada pela mesma empresa do jornal O Globo, de propriedade de Roberto Marinho, que também mantinha nas bancas o tabloide de quadrinhos Globo Juvenil. A princípio o Gibi era bissemanal, ou seja, era publicado duas vezes por semana, e logo passou a trissemanal. Conforme Chinen (in SANTOS et alli, 2012, p. 43-53) foi somente com o lançamento do Gibi Mensal, versão que continha histórias completas em vez de séries em continuidade, que a revista, que já fazia sucesso, se tornou um fenômeno de público. Ao todo, o Gibi tradicional teve 1.842 números e durou até 1954. Gibi Mensal foi publicado até 1961, quando foi às bancas sua última edição, a de número 249. Desde o seu lançamento e em todas as versões que teve, o Gibi era representado por um mascote, um menino negro, que aparecia em muitas das capas e nos anúncios da revista, comunicando concursos, novos personagens, almanaques e edições especiais. Figura 65 – Aparição do Gibi na capa da edição de estreia, de 1939 103 O irônico é que, mesmo tendo figurado como um dos principais títulos do gênero por mais de 10 anos, nem por isso teve presença garantida nas páginas internas da publicação que ele próprio batizava. Nos anos 1970, quando a Rio Gráfica e Editora, do Grupo Globo, lançou o Gibi Semanal, numa tentativa de resgatar o sucesso de décadas atrás, o mesmo personagem do Gibi voltou a figurar nas capas, em versão atualizada. Novamente, apenas como mascote, sem aparecer como personagem em nenhuma história. Figura 66 – O mascote em versão dos anos 1970 O segundo paradoxo é que o Pererê, historicamente o mais bem sucedido personagem negro das histórias em quadrinhos, não é um ser, humano ou animal, mas uma entidade mitológica, pertencente ao folclore brasileiro. Ou seja, o negro mais famoso dos quadrinhos brasileiros é alguém que não existe, que não serve de modelo ou ideal ao leitor negro. O próprio autor do Pererê, o cartunista mineiro Ziraldo, criou um episódio “O Pererê Existe?”, de 1960, em que o personagem, numa crise de identidade, questiona-se quanto à sua própria existência, conforme citado por Cirne (1973). O Pererê foi um dos poucos personagens negros a ter uma revista própria, lançada em 1960 pela Editora O Cruzeiro. No traço característico de Ziraldo, Pererê vive suas aventuras na Mata do Fundão, em companhia dos amigos: o índio Tininim, a onça Galileu, o macaco Alan, o jabuti Moacir, o tatu Pedro Vieira e o coelho Geraldinho. A série conta com outros personagens negros: a garota Boneca de Piche, por quem Pererê é apaixonado; o fazendeiro Seu Nereu, pai de Boneca; a cozinheira Mãe Docelina e Rufino, que também é pretendente de Boneca de Piche. 104 A revista Pererê, teve 43 números e deixou de circular em 1964, no entanto, a série continuaria sendo produzida ou reeditada nos anos seguintes para publicação em álbuns e, durante um breve período nos anos 1980, em gibis de formato pequeno, pela Editora Abril. Figura 67 – Pererê e alguns dos seus amigos 4.2. À procura do negro nos quadrinhos O levantamento dos personagens existentes nas histórias em quadrinhos brasileiras exigiu uma pesquisa em duas partes. A primeira delas em fontes secundárias, formadas por livros teóricos, de ensaios e de estudos sobre quadrinhos e humor gráfico, para verificar a menção de personagens e séries com personagens afrodescendentes. A segunda etapa envolveu um estudo das fontes primárias com acesso às histórias em quadrinhos em si ou reproduções equivalentes. Essa segunda fase incluiu gibis, jornais e álbuns impressos. A não inclusão da produção em meio eletrônico será posteriormente justificada. Entre os livros estrangeiros de referência, a maioria faz menção a heróis negros, desde a pioneira obra de Waugh (1947). Reitberger e Fuchs (1971) são os primeiros a dedicar um capítulo a questões consideradas polêmicas, pelo menos para a época, como drogas e racismo, citando séries de quadrinhos que abordavam a temática da 105 luta pela igualdade de direitos pelos negros, assunto muito em voga quando da publicação do livro. Embora não se foquem exatamente em personagens negros, Dorfman e Jofré (1978) fazem uma ampla análise da dominação branca sobre as populações dos estados colonizados e citam algumas séries produzidas no Chile, durante o período do governo socialista de Salvador Allende, fazendo menção a uma personagem africana. Appel e Appel (1994) não produzem, propriamente, uma obra sobre quadrinhos, mas sobre charges e cartuns, apesar de mencionarem algumas séries consideradas como histórias em quadrinhos. Ainda que seus autores, já na introdução, façam questão de estabelecer uma distinção entre a situação dos imigrantes e do negro, ambos constituem categorias segregadas e vítimas de estereótipos nos meios de comunicação do final do século XIX e início do séc. XX, como ilustram vários exemplos reproduzidos no livro. Wright (2003) apresenta um rico estudo sobre a evolução da indústria dos quadrinhos nos Estados Unidos e sua influência na formação da juventude americana. No capítulo referente à década de 1950, há destaque para as revistas da EC Comics, que abordavam questões como racismo e direitos civis. O enfoque dado pelos autores daquela editora pode ser detectado como uma virada no modo como o negro passou a ser representado nos quadrinhos americanos. Brown (2001) é autor de um dos cinco títulos encontrados na pesquisa bibliográfica estrangeira exclusivamente dedicados aos quadrinhos negros, mais especificamente sobre a editora americana Milestone que, durante o começo da década de 1990, publicou, em conjunto com a editora DC Comics, revistas de super-heróis afroamericanos, especialmente criados para esse segmento étnico dos Estados Unidos. Apesar de fugir ao escopo do trabalho ora proposto, o livro tem comentários que colaboram para formar um modelo de análise para os personagens negros que deve ser, obviamente, adaptado para a realidade brasileira. Foster III (2005) reúne ensaios e transcrições de entrevistas sobre os negros nos quadrinhos americanos, com destaque para listas resumidas dos principais autores e personagens. O autor, professor universitário, faz um intenso trabalho de divulgação e criou uma exposição educativa itinerante sobre a imagem do negro nos quadrinhos. 106 Na coletânea organizada por Duffy e Jennings (2010), há uma amostra dos trabalhos de artistas afroamericanos independentes intercalados por breves textos que buscam contextualizar e classificar, em diferentes correntes, os estilos e propostas apresentados. Em um segundo livro dedicado exclusivamente a super-heróis negros, Nama (2011) se detém a analisar com mais profundidade personagens das duas principais editoras americanas de quadrinhos: a Marvel e a DC Comics. Dos cinco títulos estrangeiros dedicados exclusivamente aos personagens afrodescendentes nos quadrinhos, o de Strömberg (2003) é o mais completo e interessante livro de referência cuja estrutura serviu de inspiração para este trabalho. O autor selecionou cenas em que aparecem personagens negros através da história; em ordem cronológica, fez uma avaliação da forma como se dá essa figuração. Não há, no livro, nenhuma preocupação em determinar dados quantitativos, mas a análise da maneira como os negros são representados tem teor e propósito semelhantes ao do presente projeto. Pesquisa realizada em livros de referência e enciclopédias nacionais sobre quadrinhos, localizou apenas alguns poucos estudos que abordam o negro como personagem de quadrinhos ou que analisam algum autor negro de histórias em quadrinhos. O material teórico produzido no Brasil, de modo geral, se restringe a citar os personagens negros, sem se aprofundar no papel que desempenham na trama nem na análise semiológica de sua caracterização. As exceções são o livro de Pimentel (1989) e alguns artigos científicos apresentados em simpósios e congressos de comunicação como o Intercom e a Rede Alcar. Em um dos primeiros estudos nacionais sobre os quadrinhos Cirne (1971), realiza uma extensa análise do Pererê, de Ziraldo, apresentando desde considerações sobre o elemento folclórico que deu origem ao protagonista a uma descrição de cada personagem da série, passando por uma avaliação do contexto político e social do período em que Pererê foi lançado. Outro trabalho pioneiro e provavelmente o título mais conhecido da área, Shazam, organizado por Moya (1972), enquadra-se na categoria de obra mais generalista e traz um interessante capítulo sobre os quadrinhos brasileiros, em que se faz menção a personagens negros e inclui informações sobre o surgimento da revista Gibi. 107 Outro livro de Cirne (1975) dedica um capítulo ao Pererê, utilizando uma das histórias com o personagem para analisar a narrativa dos quadrinhos e como se estabelece a relação espaço-tempo, nessa linguagem. Já uma obra que tem um conteúdo mais abrangente sobre os quadrinhos brasileiros é o livro de Silva (1976), que comenta sobre o advento e o período áureo da revista Gibi, entre outras informações preciosas. O livro é um dos poucos a discorrer sobre A Gazeta infantil, também conhecida como A Gazetinha, fundada em 1929, sendo uma das primeiras revistas infantis paulistanas a publicar quadrinhos. Cavalcanti (1977) foi autor da primeira tentativa de se criar uma enciclopédia de personagens de quadrinhos publicada no Brasil e serviu de referência necessária para apoiar a pesquisa inicial de personagens. Cirne (1982) inclui o capítulo “O negro nas estórias em quadrinhos”, o único dedicado ao assunto encontrado no conjunto de obras nacionais consultadas. É um capítulo curto, mas elucidativo, em que o autor lamenta a escassez de personagens negros e enumera apenas meia dúzia deles. Para o autor: No Brasil, o que nos parece bastante grave para um país que oficialmente não reconhece o preconceito racial, os heróis negros são exceções, nem sempre honrosas (vide Pelezinho, de Mauricio de Sousa). A verdade é que a nossa galeria de personagens negros é bastante pequena: Benjamim (Luís Loureiro), Lamparina (J. Carlos), Azeitona (Luiz Sá), Pererê (Ziraldo), Preto-que-Ri (Henfil) – e mais um ou outro exemplo. (CIRNE, 1982, p. 54) O livro traz, ainda, um capítulo sobre Pererê, analisado como exemplo de brasilidade nos quadrinhos. Pimentel (1989) é outro estudioso que se dedica ao Pererê, reforçando a popularidade desse personagem entre o público. A análise do autor se dá sob os pontos de vista ideológico e semiológico, elementos que, de certa forma, são indissociáveis, pois o significado de um signo é fortemente influenciado pelo contexto ideológico no qual está inserido. A Enciclopédia dos Quadrinhos, de Goida e Kleinert (2012), classifica seus verbetes por autor é a única obra do gênero editada no Brasil, consistindo fonte obrigatória como ponto de partida da pesquisa de autores/personagens nacionais. Cirne (1990) traça um amplo painel da história dos quadrinhos no 108 Brasil em um dos estudos mais completos já empreendidos abordando desde a origem até os autores independentes. Mais uma vez, o autor dedica um capítulo inteiro para discorrer sobre o Pererê. Para o levantamento dos principais personagens, o livro de Moya (1993) é outra obra indispensável, notadamente, os capítulos mais longos, em que o autor fornece informações interessantes sobre o contexto em que surgiram alguns personagens. Literatura em Quadrinhos no Brasil, a única obra que reúne Álvaro de Moya e Moacy Cirne (2002), dois dos mais prolíficos pesquisadores de quadrinhos no país, além de Otacílio D’Assunção e Naumin Aizen, profissionais com ampla vivência em edição de quadrinhos, é uma obra de referência muito útil por tratar basicamente da produção da editora EBAL, com relevantes dados sobre séries e autores nacionais. A EBAL foi uma das que mais publicaram quadrinhos genuinamente brasileiros, a partir de adaptações de episódios da história do Brasil ou de obras da literatura nacional. (VERGUEIRO, in VERGUEIRO e SANTOS, 2011, p. 23-24) O trabalho de Rosa (2002) é fruto de uma tese sobre a revista O Tico-tico, um abrangente estudo que conta a história da famosa revista infantil que, iniciada em 1905, circulou até a década de 60. Foi a primeira revista a publicar histórias em quadrinhos no Brasil, muitas delas de autores nacionais, e algumas com personagens negros, entre os quais se destacam Benjamin, Lamparina e Azeitona. Em Quadrinhos Dourados, Diamantino da SILVA (2003) refina a linha de pesquisa de seu trabalho anterior e faz um sucinto relato sobre as revistas em quadrinhos no Brasil, com foco nos anos 1930 e 40, época que abrange o período de nascimento e circulação do Gibi, uma das publicações abordadas pelo autor. Na coletânea de artigos originalmente publicados na revista Abigraf, (MOYA, 2003), há material diversificado sobre autores, séries e publicações. Um dos capítulos é sobre o Gibi e, além de contar como a publicação surgiu, traz um curioso texto em que é explicada a origem do nome da publicação, que se tornaria sinônimo de revista em quadrinhos no Brasil. Vale também citar Xavier (2004) que, curiosamente, é autora de um detalhado estudo sobre o personagem Spawn. Trata-se de um superherói negro, analisado sob o aspecto da religiosidade e da mitologia. 109 Rama e Vergueiro (2004) organizaram uma obra que tece firmes argumentações a favor da utilização dos quadrinhos como material de apoio ao ensino. No capítulo dedicado ao uso das histórias em quadrinhos nas aulas de História, o autor, Alexandre Barbosa, cita a questão do racismo/colonialismo como exemplo de tema a ser abordado. Ainda que inconscientemente, toda história em quadrinhos reflete valores, visões de mundo, ideologias. O autor pode tanto expressar uma posição estritamente pessoal (o chamado ‘trabalho de autor’) quanto, no caso de uma história em quadrinhos criada sob encomenda, reproduzir um discurso que reflita o posicionamento a editora ou companhia para a qual trabalha. As tiras de jornal do Fantasma, herói mascarado criado pelos norte-americanos Lee Falk (roteirista) e Ray Moore (desenhista), publicadas pela primeira vez em 1936, foram tidas por alguns críticos como defensoras da ideia racista de “superioridade do homem branco”, e do colonialismo na África e na Ásia. Por outro lado, também encontramos tentativas de produzir representações mais favoráveis das minorias étnicas, especialmente das comunidades negras ou de origem africana. (BARBOSA in RAMA e VERGUEIRO, 2004, p. 114-115) Gonçalo Jr., (2004) apresenta um relato minucioso e muito interessante sobre a formação da indústria das revistas em quadrinhos no Brasil, narrando a trajetória de algumas das principais editoras do País e apresentando detalhes dos bastidores do surgimento de importantes publicações, entre elas, o Gibi. Guedes (2005) é autor de uma obra pioneira, dedicada aos super-heróis brasileiros. O autor faz um completo levantamento de personagens desse gênero que teve muitas tentativas, mas que raramente resultaram em algum sucesso. O livro tem importância como referência, sendo dos raros trabalhos inteiramente dedicados a personagens nacionais. Entretanto, embora proliferem personagens cujos nomes incorporam a palavra negro, como em Raio Negro, Lagarto Negro e Estrela Negra, não há menção de que se tratem de personagens negros. Organizado pelos pesquisadores Vergueiro e Santos, o livro O Ticotico: centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil (2005), publicado em comemoração aos 100 anos de lançamento da revista infantil O Tico-tico, faz um inventário bastante completo da publicação, em capítulos que enumeram as séries em quadrinhos e autores, que 110 passaram pelas páginas da revista. Dentre os personagens publicados se destacam dois negros: Benjamin, o companheiro de Chiquinho, o personagem de maior sucesso da revista, e Azeitona, que com Recoreco e Bolão, formava o trio criado por Luiz Sá e que teve grande repercussão. Ainda em comemoração ao centenário d’O Tico-Tico, foram lançadas duas obras teóricas: as de Azevedo (2005) e de Niskier (2006). A primeira faz uma apresentação resumida do que foi O Tico-Tico e traz uma boa quantidade de imagens em cores. Já o livro organizado por Niskier reproduz o formato dos almanaques d’O Tico-Tico, inclusive no acabamento da lombada, com aplicação de reforço em material mais resistente. O livro traz ensaios de vários autores, entre os quais, os já citados Moacy Cirne e Zita de Paula Rosa. Toda produzida em cores, a obra traz rico material ilustrado com histórias em quadrinhos, brincadeiras e até anúncios. Em ambos, as menções aos personagens negros se restringem a Benjamin, Azeitona e Lamparina. Vergueiro (in VERGUEIRO; SANTOS, 2011, p. 94-112), em capítulo dedicado aos super-heróis brasileiros, traça uma síntese dos principais personagens desse gênero produzidos no Brasil e se detém mais especificamente no personagem Raio Negro, de Gedeone Malagola. Apesar do nome, o herói não é afrodescendente nem aborda questões da cultura negra. Outras fontes secundárias pesquisadas foram matérias e artigos esparsos publicados em revistas e jornais com notícias sobre lançamentos, resenhas de publicações e comentários sobre séries e personagens. Foram consultados tanto os periódicos dedicados aos quadrinhos (revistas, jornais e fanzines) quanto as seções de cultura e artes de alguns jornais paulistanos de maior circulação. De um acervo com aproximadamente 2.000 recortes abrangendo o período de 1975 até 2011, não havia muita informação que pudesse ser relevante para a pesquisa, mas um ou outro dado, principalmente os relativos a datas de publicações, pôde ser aproveitado. Por fim, a pesquisa preparatória incluiu o acesso e monitoramento das atualizações diárias, no período compreendido entre janeiro de 2007 e dezembro de 2011, de alguns sites especializados em histórias em quadrinhos notadamente o UniversoHQ (UNIVERSOHQ, 2012), ImpulsoHQ (IMPULSOHQ, 2012), Blog dos Quadrinhos 111 (BLOGDOSQUADRINHOS, 2012) e Omelete (OMELETE, 2012). Do material especificamente voltado ao tema negro nos quadrinhos, uma série de matérias sobre Negros nos quadrinhos, publicado no site HQManiacs (HQMANIACS, 2012), em 2005 foi o único texto que, de algum modo, trouxe contribuições para o conteúdo do projeto. De autoria de Claudio Roberto Basílio, que assina como Brodie Bruce, é dividido em cinco partes, quatro delas voltadas basicamente à produção americana e apenas um apêndice que aborda personagens nacionais. Ressalte-se, no entanto, que o meio virtual foi de fundamental importância para ficar a par de lançamentos ou consulta a dados sobre publicações mais antigas, nesse particular, o site Gibi Raro (GIBI RARO, 2012) foi de inestimável auxílio. Ainda que muito limitada, a relação preliminar de personagens e publicações obtida nessa consulta bibliográfica serviu de base para o levantamento mais completo que foi realizado direto nas fontes primárias. 4.3. Escopo da pesquisa – limitação do corpus Um levantamento absolutamente completo de todos os personagens negros existentes nos quadrinhos publicados no Brasil constitui tarefa de enorme dificuldade e o tempo necessário para tal empreitada seria muito extenso. Ainda assim, mesmo que houvesse prazo e meios necessários, o maior obstáculo seria o acesso às publicações primárias. As revistas em quadrinhos raramente foram objeto de preservação, sendo tratadas como material de consumo descartável e que, uma vez lidas, poderiam circular entre várias pessoas, mas raras delas com a intenção de manter e conservar a edição. São poucos os acervos públicos em bibliotecas, hemerotecas e coleções disponíveis para consulta e nenhum deles possui a totalidade do que já foi publicado em quadrinhos no país. Os motivos para essa falta de material para pesquisa também podem ser atribuídos às próprias editoras, muitas delas de pequeno porte e existência efêmera, que não se preocuparam em manter exemplares guardados. Mesmo as editoras maiores e que durante anos tinham nos quadrinhos a sua principal fonte de renda não souberam ou não puderam conservar as suas coleções, como no caso da EBAL, cuja biblioteca de publicações 112 era das nas volumosas. Fechada na década de 1990, a editora carioca teve seu acervo transferido para a Biblioteca Nacional. (CIRNE e alii, 2002, p. 9) Na cidade de São Paulo, estão localizadas algumas boas coleções de histórias em quadrinhos de acesso público. A Gibiteca Henfil, situada dentro do Centro Cultural São Paulo, dispõe de um grande número de revistas. Felizmente, a parte mais rara e, por isso, mais preciosa, fica guardada em área específica que não é liberada ao público e é preciso ser pesquisador para consultá-la. A Biblioteca da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) também possui um rico acervo que inclui a coleção completa da Gazeta Infantil, suplemento do jornal A Gazeta e que durante 10 anos publicou diversas séries em quadrinhos. A Biblioteca Infantil Monteiro Lobato, que integra a rede municipal de bibliotecas da cidade de São Paulo, mantém alguns raros exemplares da revista O Tico-Tico, datadas da primeira década do século XX. Essas edições ficam protegidas em compartimento seguro e só podem ser consultadas com autorização prévia, que só é obtida para fins de estudo. Outro acervo muito útil é o da Editora Globo que transferiu para sua sede em São Paulo o arquivo de revistas montado desde a década de 1930, que ficava no Rio de Janeiro. O Centro de Documentação (CEDOC) da editora dispõe da coleção completa das pioneiras publicações Globo Juvenil e Gibi e diversos outros títulos em quadrinhos como Fantasma, Mandrake e Jerônimo. A recente iniciativa dos dois principais jornais editados em São Paulo (O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo) de digitalizar todo o seu acervo e torná-lo disponível para consulta on line também facilitou o acesso a dados relativos aos personagens das seções de quadrinhos bem como a matérias e reportagens sobre o assunto. Também merece destaque a disponibilização dos exemplares digitalizados, de uma das coleções mais completas existentes no Brasil de O Tico-Tico, no site da Biblioteca Nacional, a partir do segundo semestre de 2012. Até então, essa versão eletrônica só era acessível na própria biblioteca. Além dessas fontes, a pesquisa recorreu a acervos pessoais e à aquisição de títulos que foram sendo incorporados à medida que os 113 títulos iam sendo descobertos. Outro aspecto considerado para delimitação do corpus da pesquisa foi de que não existe uma unanimidade a respeito de uma definição de histórias em quadrinhos. Vários estudiosos tentaram propor uma descrição para essa linguagem de forma que pudesse abranger suas características fundamentais e desfazer a confusão entre quadrinhos, cartum e charge. O limite entre essas manifestações não é muito claro e correntemente os autores transitam por essas três formas sem se preocupar muito com a denominação que possam dar a seus trabalhos. Scott McCloud (2005, p. 4-9) parte da definição Arte Sequencial sugerida por Will Eisner e, depois de chegar ao conceito mais completo de “imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador”, acaba retornando ao termo inicial. Fato é que os quadrinhos, como os conhecemos atualmente, da forma como se disseminaram pelo mundo, com algumas variações, ainda são o fruto de uma evolução do humor gráfico e da imprensa de grande circulação. Um progresso decorrente de avanços tecnológicos e na forma de enxergar o mundo em movimento, que ocorreu de modo mais intensificado a partir de meados do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos. Portanto, o conceito utilizado para a presente pesquisa toma como marco inicial as criações concebidas para ser veiculadas por jornais e lidas por um grande número de leitores. O fator assinalado também é útil para delimitar o escopo da pesquisa apenas às histórias em quadrinhos impressas, apesar de um volume imenso ser produzido para veiculação via meios eletrônicos, notadamente os sites e blogs na internet. Ressalte-se que esse tipo de material vem ganhando expressão com o aumento da população com acesso à rede mundial, mas justamente pela maior facilidade em se criar e colocar no ar, torna ainda mais difícil fazer o monitoramento de uma quantidade cada vez maior, que é postada indiscriminadamente. Outra razão para se desconsiderar do presente estudo os quadrinhos lançados em formato digital é que, no meio eletrônico, ainda é muito difícil mediar a relação de consumo entre o autor ou detentor dos direitos e o leitor da mesma maneira que acontece com revistas e jornais impressos, não sendo, portanto, viável avaliar se determinada 114 série ou personagem teve repercussão ou não. E caso tenha tido é impreciso mensurar como se deu esse acesso. Já quanto ao meio impresso, a aquisição pressupõe uma decisão de compra, a não ser quando a revista ou livro é oferecido gratuitamente, o que não ocorreu na maioria dos títulos analisados. E o fato de ser pago já é um indicativo maior de interesse, preferência ou tendência. A princípio, a intenção era incluir somente títulos que tiveram circulação em bancas ou foram vendidos em livrarias, pois a intervenção de um editor implicava um critério mínimo de seleção qualitativa, ainda que numa visão que privilegiava a inserção de um produto no mercado. No entanto, a partir da constatação de que parte significativa e muito interessante da produção em quadrinhos se deu no circuito independente, principalmente no período posterior a 2005, o escopo foi ampliado para abranger, quando possível, também esse material. O critério para a inclusão de uma série ou uma história avulsa no rol de quadrinhos com personagens/temática negros procurou priorizar aquelas em que os negros desempenham um papel de destaque no decorrer da trama, de preferência como personagem-título. Foram descartadas da classificação as meras aparições sem importância no desenrolar da narrativa ou que se façam presentes apenas para compor figuração. As exceções a essa regra ocorreram quando o enredo trata de temas relativos à realidade dos negros ou à cultura afro-brasileira, mas que por algum motivo, deram mais destaque a personagens brancos. O presente estudo procurou abranger a produção brasileira de quadrinhos desde o seu princípio, assumindo-se como marco inicial a publicação da série Nhô Quim, de Angelo Agostini, de 1869, até o dia 31 de dezembro de 2011, conforme Cagnin (in CALAZANS, 1997, p. 26). Essa última data foi fixada em razão de 2011 ter sido escolhido pela Organização das Nações Unidas, em sua Assembleia Geral de 18 de dezembro de 2009, como Ano Internacional do Afrodescendente (UNESCO, 2011). Dada a visibilidade e a repercussão que o tema deveria alcançar, vislumbrava-se um grande número de publicações referentes ao assunto, entre livros, ensaios e histórias em quadrinhos. 115 4.4. Os primeiros negros nos quadrinhos brasileiros Ainda que Angelo Agostini (1843-1910) devesse ser considerado um precursor dos quadrinhos, junto com Rodolphe Töpffer (17991846) e Wilhelm Bush (1832-1908), pois seus trabalhos têm mais a ver com um tipo de texto ilustrado praticado desde as primeiras décadas do século XIX como as images d’Epinal e não exatamente com histórias em quadrinhos, (BLANCHARD, 1974, p.66-68). Alguns pesquisadores brasileiros como Antônio Luís Cagnin (in CALAZANS, 1997), defendem que o que ele fazia deve ser considerado história em quadrinhos, tanto que oficialmente, adotou-se 30 de janeiro como sendo o Dia do Quadrinhos Brasileiros, em homenagem à data de lançamento da série Nhô Quim, de autoria de Agostini, cuja estreia ocorreu no ano de 1869, no jornal Vida Fluminense. O problema dessa data é que o próprio Agostini já havia testado o formato de história desenhada em sequência no painel “As cobranças”, no jornal O Cabrião, de 1867, conforme Moya e D’Assunção (in CIRNE et alii, 2002, p. 41). Figura 68 - Agostini já explorava a arte sequencial, dois anos antes de Nhô Quim Mesmo antes disso, o francês radicado no Rio de Janeiro Sebastien Auguste Sisson havia publicado no jornal Brasil Ilustrado, de 15 de outubro de 1855, uma página em narrativa sequenciada intitulada O namoro, quadros ao vivo (MATTAR, 2003, p. 42). 116 Figura 69 - Narrativa desenhada em sequência por Sisson, de 1855 O argumento em defesa do pioneirismo de Nhô Quim, de Agostini, é que a série trazia, de forma inédita, um personagem fixo e uma continuidade entre as narrativas de uma semana e a da edição seguinte. No entanto, esses dois requisitos não são elementos obrigatórios nem caracterizam, por si, uma história em quadrinhos. Estas são observações necessárias para que se compreenda o grau de dificuldade de se definir o exato conceito de história em quadrinhos e, a partir dele, estabelecer a data em que essa linguagem surgiu em nosso país. Aceitando-se Nhô Quim como sendo a primeira história em quadrinhos brasileira, já no primeiro quadro, publicado em 30 de janeiro de 1869, aparece um personagem negro: Benedito, criado do protagonista, que o acompanhará até a estação onde este embarcará no trem que irá levá-lo a suas peripécias ao Rio de Janeiro. Dessa forma, Benedito pode ser considerado o primeiro personagem negro dos quadrinhos brasileiros, presente já na primeira vinheta. 117 Figura 70 – Benedito, o primeiro personagem negro dos quadrinhos brasileiros Segundo Athos Eichler Cardoso, Agostini manteve na sua série o mesmo tom crítico que marcou a maioria dos seus trabalhos. Em As Aventuras de Nhô-Quim, aproveitava-se das desventuras de um caipira rico, ingênuo, trapalhão e exilado na Corte pela família para tecer uma sucessão de críticas aos problemas urbanos, modismos, costumes sociais e políticos da época. Comerciantes, imigrantes, artistas, prostitutas de luxo, candidatos, eleitores, autoridades e até um ou outro jornalista e caricaturista, desafeto de Agostini, é censurado nessa série de incidentes jocosos. (CARDOSO, 200, p. 23) O traço de Agostini para essa série é mais estilizado e simples do que outros trabalhos posteriores, como as Aventuras de Zé Caipora, publicado de 1883 a 1886 na Revista Ilustrada, em que há uma preocupação maior em termos estéticos e um tratamento mais detalhado de sombras e volumes. Os personagens em Nhô Quim, portanto, são mais caricatos e Benedito segue esse padrão. No entanto, não há em seus traços fisionômicos algo muito exagerado ou que se aproxime do estereótipo de representação dos negros que viria a se impor como padrão nos anos seguintes nos quadrinhos nacionais, e isso, numa época em que a escravidão ainda era vigente. 118 Figura 71 - Traço mais elaborado de Agostini na série Zé Caipora, de 1883 No total, As Aventuras de Nhô Quim teve 14 capítulos. Os nove primeiros foram desenhados por Agostini e os demais levam a assinatura de Faria, que vem a ser o chargista Candido Aragonês de Faria, num traço muito parecido com o do autor original. No decorrer da história, outros personagens negros aparecem na série. No capítulo II, duas lavadeiras são derrubadas pela carruagem descontrolada conduzida por Nhô Quim. Mais adiante, no capítulo VI, há três negros: Micaela, Chico e Dona Joana, que compõem a criadagem da família XPTO, a quem Nhô Quim tinha ido fazer uma visita. 119 Figura 72 - Micaela, Chico e Dona Joana, personagens negros da série Nhô Quim São também da casa dos XPTO os negros que aparecem no capítulo XII: Serafim, Úrsula e Joaninha. Esta, por sinal, sofrerá assédio de Nhô Quim, que tentará agarrá-la, no capítulo XIII. Figura 73 - Úrsula, a criada assediada por Nhô Quim Finalmente, no capítulo XIV, o último publicado, que, no entanto, não trouxe a conclusão da história, aparece mais um negro, companheiro de brinde do personagem principal. Benedito, o criado de quem Nhô Quim se perdera logo no começo da trama, só surgiria novamente no capítulo XI, já na fase desenhada por Faria, porém, de costas, numa cena em que Nhô Quim, da calçada da rua, vê seu criado passar muito 120 rápido, sentado na traseira de um coche. O mesmo Agostini, confirmando sua simpatia pela causa abolicionista, publicou a História de Pai João, uma narrativa quadrinizada que visava explicar para a criançada a Lei Áurea. Essa história saiu no número 3 de O Tico-Tico. Figura 74 – A escravidão em história ilustrada por Agostini, na revista O Tico-Tico Apesar de ter sido o primeiro, Benedito não mereceu, portanto, mais do que poucas aparições, diferentemente de Giby, outro negro, que estrearia no dia 16 de outubro de 1907, em O Tico-Tico. (CARDOSO, 2009, p. 149). Esta revista, lançada em 11 de outubro de 1905 pela editora de O Malho, é considerada a primeira publicação brasileira voltada especificamente ao público infantil e a trazer regularmente histórias em quadrinhos. Também foi um fenômeno raro de longevidade e circulou durante mais de 55 anos e atingiu a marca de 2.096 números. A revista teve grande popularidade e, além das edições semanais, saíram diversos almanaques anuais e edições especiais. (VERGUEIRO; SANTOS, 2005, p. 154-158) Giby era criado da família do personagem Juquinha, também nome da série. Desenhado por J. Carlos (1884-1950), um dos mais prolíficos e talentosos artistas gráficos e caricaturistas de todos os tempos, Giby já possuía todas as características estereotipadas que 121 viriam a marcar a maioria, senão a totalidade, das representações de negros nos quadrinhos e nas charges de modo geral. No rosto: lábios extremamente grossos a ponto de abarcar toda a parte inferior da cabeça, olhos saltados e orelhas proeminentes. O corpo era esguio e seus braços, desproporcionalmente longos. Figura 75 – Giby, primeiro personagem negro de destaque nos quadrinhos Anteriormente, na página do Juquinha, da edição de 11 de julho de 1906 d’O Tico-Tico, já haviam figurado duas crianças negras: Sebastiana e Benedicto, filhos de Florência, a cozinheira da família do menino protagonista. Ambos também têm traços bem exagerados. Figura 76 – Sebastiana e Benedicto, antecessores de Giby, na série Juquinha Nas aventuras, Giby era sempre o cúmplice das travessuras do menino-patrão, embora, pelo porte e modos, fosse mais velho que ele. Juquinha teve grande sucesso e o personagem chegou a ganhar revista própria, que foi publicada entre 1912 e 1913. (CARDOSO, 2009, p. 23) No mesmo O Tico-Tico, estrearia em 1915, o menino negro Benjamin (ROSA, 2002, p. 99). 122 Figura 77 – Benjamin foi o primeiro personagem negro de grande sucesso Parceiro de aventuras de Chiquinho,formava a dupla mais popular da publicação, durante suas mais de cinco décadas de existência. Chiquinho era uma cópia decalcada de Buster Brown, do americano Richard Felton Outcault (1863-1928). Figura 78 – Buster Brown e seu cachorro Tige, de Richard Felton Outcault Na versão original, Buster não tinha um amigo para dividir suas travessuras, contava apenas com a companhia do cachorro Tige, que no Brasil foi batizado de Jagunço. A criação de Benjamin é creditada a Luís Loureiro, o primeiro de muitos artistas a desenhar a série entre os 123 quais estão A. Rocha, Alfredo Storni, Paulo Afonso. Embora não haja provas nesse sentido, o garoto negro pode ter sido inspirado em outra criação de Outcault, Lil Mose, um garoto negro criado em 1900 e que batizava uma série cujo elenco era todo composto de outros negros. . Figura 79 – Lil’ Mose’s pode ter sido a inspiração para o Benjamin É razoável supor que os desenhistas brasileiros também tivessem conhecimento dessa série, pois, apesar de datada de um período anterior a Buster Brown, ambas foram lançadas pelo jornal New York Herald, nos Estados Unidos. (ROBINSON, 2011. p. 29) Assim como Giby, seu antecessor, Benjamin era o serviçal da casa do menino branco com quem brincava, mas sempre em desvantagem. Sua função era de criar situações engraçadas decorrentes de sua ignorância ou falta de modos. Também nas páginas d’O Tico-Tico, estrearia em 1924, mais uma personagem de J. Carlos, a menina negra Lamparina. Este talvez seja o caso mais notório de uma representação negativa da imagem do negro nos quadrinhos brasileiros. Lamparina tem um aspecto de um animal, com os braços arrastados ao longo do corpo nas proporções de um chimpanzé. A roupa que veste é semelhante a uma peça rústica feita de pele de onça ou outro felino selvagem, comum nas representações de aborígenes africanos feitas pelo cinema e os desenhos animados da época. Muito por esse motivo, esse tipo de tratamento não causava nenhuma indignação ao público, pelo contrário, criava um efeito humorístico compatível com os padrões então vigentes. Além 124 de fisicamente grotesca, Lamparina também era intelectualmente desprovida. Por ingenuidade ou falta de inteligência mesmo, a personagem vivia se envolvendo em enrascadas e a maioria das situações cômicas da série explorava justamente essas características. Figura 80 – Lamparina, de J. Carlos, o negro com aspecto selvagem A protagonista não era a única personagem negra da série que tinha outros coadjuvantes negros, todos representados de forma semelhante. Apesar desse viés preconceituoso com que o autor criou a personagem, é inegável que J. Carlos não foi negligente em exibir sua técnica elaborada e na composição visual das histórias. Pelo contrário, algumas das páginas tinham uma sequência cinematográfica, dotadas de elementos de fantasia com belíssimos cenários e usos de cores, confirmando o justo conceito de que goza até hoje como um dos principais artistas gráficos que o país já teve e que mereceu de Herman Lima as seguintes palavras: Ninguém exerceu com maior dignidade profissional a sua arte do que esse incomparável desenhista, cujas criações, da mais bela e escorreita execução e do mais fino gosto, aliados à graça do motivo e à elegância do traço, encheram durante quase meio século as páginas das nossas melhores revistas ilustradas (LIMA, 1963, p. 1072). 125 Em 1930, surgiria, ainda nas páginas de O Tico-Tico uma das séries de maior sucesso e repercussão da revista. O trio Reco-reco, Bolão e Azeitona, criação de Luiz Sá (1907-1979). Figura 81 – Azeitona e seus companheiros Reco-reco e Bolão Os garotos vivem aprontando traquinagens, um modelo de comportamento herdado de uma das primeiras séries de quadrinhos americanas que já em 1897, com The Katzenjammer Kids, de Rudolph Dirks, praticamente inaugurou o gênero de crianças peraltas e hiperativas (WAUGH, 1974 [1947], p. 10). Luiz criaria ainda outros personagens negros: o menino Gogô e Maria Fumaça (FUNARTE, 1981). Gogô compunha par com uma girafa de nome Gigi e, como a maioria dos personagens negros de desenho animado americanos, tinha olhos bem grandes e lábios exagerados. Uma curiosidade é que ele é bem parecido com o ratinho Mickey dos primeiros tempos, inclusive na indumentária: apenas um calção com suspensório. Só lhe faltam as orelhas. As histórias de uma página sempre tinham um humor leve e ingênuo. Foi publicado em livro infantil em 1942. 126 Figura 82 – O garoto Gogô e sua girafa Gigi Maria Fumaça era uma menina negra, empregada doméstica cujos traços também eram extremamente estereotipados. O humor da série se calcava muito na ingenuidade e na ignorância de Maria. A série foi publicada na revista Cirandinha, no começo da década de 1950. Figura 83 – Maria Fumaça, outra das criações de Luiz Sá 127 Outra série a trazer uma personagem negra foi Paulino e Albina, que estreou em 1935 nas páginas da Gazeta Infantil, também conhecida como Gazetinha. O garoto Paulino é branco e Albina uma menina negra cuja representação é quase a de uma silhueta com pequenas áreas brancas para os lábios e os olhos. Figura 84 – Albino e a menina Paulina, de Belmonte A despeito da estilização em traços estereotipados, a série foi criada por Belmonte, outro que com toda justiça figura entre os maiores artistas do humor gráfico do Brasil. Belmonte (1897-1947), cujo nome verdadeiro era Benedito Carneiro Bastos Barreto, foi exímio caricaturista e grande parte do sua produção se deu na época da Segunda Guerra Mundial. Suas charges do período são consideradas o melhor de sua extensa carreira e seus trabalhos chegaram a ser publicados em revistas do exterior como a Rire, da França, e Judge, dos Estados Unidos. (CARVALL, 1996, p. 11). Bem menos famoso que Benjamin ou Azeitona, Zé Pretinho foi outro personagem negro a ganhar as páginas de O Tico-Tico. A única referência disponível é que chegou a constar da capa de uma edição de setembro de 1939 e não foi possível determinar a autoria e se aquela era 128 a única aparição do personagem. Seu traço também era estereotipado e a não ser pelo boné, era muito semelhante aos demais personagens negros da época. Figura 85 – Zé Pretinho, personagem menos conhecido de O Tico-Tico A partir da década de 1940 são mais escassas as criações de personagens negros. De modo geral, os quadrinhos nacionais começaram a perder espaço para as produções de fora, notadamente dos Estados Unidos. Com o advento de publicações como o Suplemento Juvenil, O Globo Juvenil e, posteriormente, O Mirim e Lobinho, muitos personagens americanos começaram a fazer sucesso entre o público infanto-juvenil. Todo esse movimento de invasão dos quadrinhos estrangeiros teve como ponto culminante o lançamento da revista Gibi. Em sua primeira versão, a revista, lançada em 12 de abril de 1939, tinha um formato meio tabloide, e saía duas vezes por semana: às quartas e aos domingos. Depois, com o sucesso obtido, passou a sair também às sextas-feiras. Em dezembro de 1939, foi lançado o Gibi Mensal, num formato menor, mais páginas e, em vez das histórias em continuidade, trazia episódios completos. 129 Em sua totalidade, as séries eram traduções de material produzido nos Estados Unidos, onde há alguns anos, o formato de comic book virara uma febre entre o público adolescente. Essas revistas publicavam material exclusivamente feito para elas, rompendo a prática vigente até então de republicar coletâneas de tiras que já haviam saído em jornais. (CHINEN in SANTOS et alii, 2012, p. 49) Mesmo com a enxurrada de histórias em quadrinhos americanas, alguns autores nacionais conseguiram algum destaque, mas, com exceção dos que já existiam, os personagens negros que já eram raros, escassearam de vez. O predomínio da produção estrangeira sempre foi um entrave para os autores nacionais. As séries americanas, distribuídas a centenas e, em alguns casos, milhares de periódicos somente nos Estados Unidos, já haviam dado o lucro planejado, por isso eram vendidas a preços muito baixos para editoras e jornais do resto do mundo. Como explica Vergueiro: ... apesar da popularidade dos quadrinhos no país, é também importante ressaltar que a predominância de produtos oriundos da indústria de quadrinhos norteamericana representou, de várias formas, grandes obstáculos para a sobrevivência tanto da arte como dos próprios autores de quadrinhos no Brasil. Isto aconteceu principalmente porque as histórias em quadrinhos norte-americanas, ao tratar de tremas globalizados, encontram muito pouca resistência para a sua aceitação e disseminação em outros países. No Brasil não ocorreu de forma diferente. Além disso, os fatores econômicos também favoreceram a predominância dos quadrinhos norte-americanos no nosso país, uma vez que eles aqui chegavam parcialmente pagos em seu país de origem... (VERGUEIRO, 2011, p. 37) Em poucas ocasiões, houve momentos em que o mercado brasileiro comportou uma produção nacional digna de merecer esse nome. Um deles foram as décadas de 1950-60, com a implantação de um código de ética nos Estados Unidos que tirou de circulação títulos que traziam histórias de terror, violência e sexo, os três temas que mais faziam sucesso entre a garotada e que, portanto, geravam mais vendas. Com a suspensão da importação desse material que também tinha êxito no Brasil, abriram-se oportunidades para autores nacionais que, em pouco tempo trataram de atender à demanda e preencher essa brecha de mercado. Nesse período, diversas editoras de pequeno porte começaram a surgir, principalmente em São Paulo, para explorar o 130 florescente segmento de revistas em quadrinhos de terror. Num levantamento feito por Rudolf Piper, revela que somente entre 1952 e 1969 foram lançados 90 títulos de histórias em quadrinhos de terror. Piper informa, ainda que 1978, data daquele levantamento, do total de 1.417 gibis lançados no Brasil, 167, ou seja, 12% eram de terror. (PIPER, 1978, p. 7-8). Já as grandes editoras, preocupadas com o movimento contra os quadrinhos que já atingia alguns setores também no Brasil, passaram a investir em títulos que pudessem associar os quadrinhos à religião, à literatura clássica ou a temas históricos. (GONÇALO JR., 2004, p. 260) 4.5. Edição Maravilhosa e as adaptações literárias As primeiras tentativas de adaptação de romances no Brasil foi iniciada em 1948, pela editora Brasil América (EBAL) com a publicação da Edição Maravilhosa, com títulos traduzidos da coleção americana Classics Illustrated. Invariavelmente citada como exemplo desse tipo de publicação, esta série, como o próprio nome denota, se propunha a publicar os grandes clássicos da literatura em forma de quadrinhos e foi lançada em outubro de 1941 pela editora Gilberton Publications. A coleção nasceu com o nome de Classic Comics e o primeiro título foi Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas. (DUIN, 1998, p. 87). Figura 86 – Coleção Classics Illustrated, inspirou a Edição Maravilhosa, da EBAL 131 Em 1947 a série mudou o nome para Classics Illustrated e durou até 1971 com 169 títulos lançados, além de outros tantos publicados em outras séries derivadas da principal. O sucesso da iniciativa pode ser avaliado pelo número de suas vendas. A maioria tinha tiragem inicial de 200.000 exemplares, o que na época nem era considerado tão expressivo, e as reimpressões eram de 100.000. (DUIN, 1998. P.87-88). Outro indicador da boa aceitação foram as várias edições traduzidas para outros idiomas como espanhol, francês e português. Os títulos mais populares eram continuamente republicados e o que teve mais reedições foi Ivanhoe com 24. A qualidade das adaptações era bastante inconstante pela variedade de artistas encarregados dos desenhos. As adaptações nem sempre eram fieis à obra original, e algumas chegavam a alterar o final da história. Em 1989, cerca de 20 anos depois de interrompida, a coleção foi retomada pela editora First Comics, com novas produções realizadas por grandes nomes dos quadrinhos de então como Gahan Wilson, Bill Sienkewicz e Kyle Baker. No entanto, a série teve pouca repercussão e foi novamente cancelada dois anos depois. (GOULART, 2004, p. 89-90) No Brasil, a EBAL procurou seguir a ordem da edição original e começou lançando Os três mosqueteiros. Com o sucesso obtido, a editora se animou a lançar adaptações de obras nacionais e a primeira delas foi O guarani, de José de Alencar (1829-1877), na Edição Maravilhosa número 24, encomendada ao ilustrador André Le Blanc. Figura 87 – Primeiro romance brasileiro da coleção Edição Maravilhosa 132 Alencar, aparentemente, gozava da predileção do editor pois, com Iracema (número 31), O tronco do ipê (número 46) e Ubirajara (número 57) foi o único autor nacional a figurar na coleção até que a edição 71, trouxe a adaptação de A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882). (GIBI RARO, 2011) A iniciativa não era apenas uma empreitada comercial. Por trás dela, havia a intenção de dar um ar de respeitabilidade aos quadrinhos que, naquela época, sofriam uma campanha contra a sua publicação por parte de educadores. A intenção era mostrar que os quadrinhos não se restringiam a histórias de terror e violência, mas poderiam ser uma etapa intermediária que levaria o jovem leitor aos clássicos em si. (GONÇALO JR., 2004, p. 260) Esse propósito ficava patente logo no fim das histórias. No rodapé da última página, sempre havia um box com uma mensagem recomendando a leitura do texto original. Figura 88– Ao fim da história, a recomendação para ler a obra original A coleção Edição Maravilhosa, teve quatro séries, a primeira foi a mais bem sucedida com um total de 200 títulos, dos quais, 60 eram adaptações de livros de escritores brasileiros ou portugueses. Dessas obras literárias, 9 trazem, de alguma forma, personagens negros ou exploram temas relativos à cultura ou à condição dos negros no Brasil. (GIBI RARO, 2011). 133 Dalcastagné (2005, p. 13-71), fez um levantamento dos personagens negros em romances nacionais escritos e editados entre 1990 e 2004. O universo pesquisado abrangeu 248 obras, a partir da lista das principais editoras em atividade no Brasil. O resultado foi que apenas 7,9% do total dos personagens são negros, dos quais apenas 5,8 têm papel de protagonistas. Comparativamente, a média encontrada entre os títulos da coleção Edição Maravilhosa pode parecer animadora, pois os que apresentam algum personagem negro constituem 15% das adaptações de obras nacionais. No entanto, é preciso observar que em poucos deles os negros são protagonistas. Na quase totalidade, são os brancos que estão no centro da trama e mesmo quando o assunto é a libertação dos escravos há uma ênfase no papel das heroínas brancas piedosas e na nobreza de espírito de jovens abnegados que lutam contra as convenções e defendem o direito dos negros, dando a impressão de que sem a ajuda deles, os cativos jamais conquistariam a liberdade. Esse paternalismo reforça a crença de que os negros seriam incapazes de se organizar uma rebelião e conquistar sozinhos a liberdade e autonomia. Na análise do papel e do pensamento dos abolicionistas, Maringoni sintetiza as ideias de Joaquim Nabuco, um dos mais destacados defensores da abolição da escravidão no Brasil. o negro não tem consciência e nem voz. Precisa de alguém para defendê-lo. É natural que quem o faça seja um branco, culto e influente. Mesmo assim, o negro não pode participar das mobilizações que visem mudar sua sina, sob pena de termos um cenário imprevisível. (MARINGONI, 2011, p. 182). Acontecimentos como o Quilombo de Palmares, que demorou várias décadas para ser vencido, comprovam que essa era uma noção equivocada. (FRANÇA; FERREIRA, 2012, p. 36-47) Dentre os títulos lançados da Edição Maravilhosa, o primeiro a tratar de um tema ligado aos negros foi o número 92, de setembro de 1954, uma adaptação de A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1825-1884), ilustrada por José Geraldo. 134 Figura 89 – Adaptação do romance Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães Isaura herdara os traços elegantes e finos da mãe, uma bela mulata, e sua pele é branca como a do pai, um português. Dona de uma beleza encantadora, a escrava é alvo de uma paixão obsessiva por parte de seu proprietário, o cruel fazendeiro Leôncio que, rejeitado por Isaura e na impossibilidade de conquistá-la, fará de tudo para ela sofra. Curiosamente, embora se trate de uma história ambientada no período anterior à abolição e tenha como mote o conflito entre classe dominante x escravos, quase não há personagens negros e, quando aparecem, têm papel de meros coadjuvantes. Os únicos que pelo menos são citados pelo nome são a invejosa escrava Rosa e o pajem André. A adaptação para os quadrinhos teve desenhos de José Geraldo Barreto, mais conhecido no meio quadrinístico por ter sido um dos principais articuladores do movimento pela nacionalização dos quadrinhos nos anos 1960. (GONÇALO JR., 2004, p. 350-357) O número 110 da coleção, de setembro de 1955, foi a adaptação de A marcha, romance da abolição, de Afonso Schmidt (1890-1964), desenhada por Alvaro Moya, que viria a se tornar um dos pioneiros nos estudos dos quadrinhos no Brasil. 135 Figura 90 – Romance abolicionista A Marcha, de Afonso Schmidt O livro, escrito em 1942, narra a trajetória de Laerte, jovem filho de fazendeiro e sua conversão aos ideiais abolicionistas, levado por Dona Lu, por quem irá se casar. O romance tem como pano de fundo os principais movimentos da época, com menção a pessoas reais como Luís Gama e culmina com a tal marcha que une escravos fugidos de fazendas do interior paulista rumo ao quilombo Jabaquara, na cidade de santos, no litoral paulista. No percurso, eles enfrentam a fome, o cansaço e a resistência da polícia. Muitos morrem e apenas 20 escravos conseguem chegar ao seu destino. Na versão em quadrinhos, os principais personagens negros são Preto Pio, um escravo forte e valente que exerce uma espécie de liderança entre os escravos, o africano Muge, de idade mais avançada e Salústio, que havia sido criado e educado junto com Laerte. Na adaptação para os quadrinhos, houve uma preocupação muito grande em manter informações contidas no original o que tornou a quantidade de texto escrito excessiva em relação aos desenhos. 136 Em fevereiro de 1957, a Edição Maravilhosa número 142 trouxe a quadrinização de O tigre da abolição, romance de Osvaldo Orico (19001981), com arte de Gil Coimbra e Ivan Wasth Rodrigues, sobre a vida de José do Patrocínio. Figura 91 – Biografia de José do Patrocínio, adaptada para os quadrinhos Foi a primeira biografia de uma personalidade negra publicada na coleção, dando destaque para seu importante papel como articulador dentro do movimento abolicionista até a grande conquista que foi a assinatura da lei Áurea. Em março de 1957, edição número 144, foi lançado um outro romance de tom abolicionista: Sinhá Moça, de Maria Dezonne Pacheco Fernandes (1910-1998). 137 Figura 92 – Sinhá Moça, mais um romance abolicionista adaptado A edição quadrinizada teve desenhos de André Le Blanc, um dos mais frequentes colaboradores da EBAL e que mais tarde desenvolveria uma intensa carreira internacional como colaborador de Will Eisner na série The Spirit (ANDELMAN, 2005, p. 92) e de Sy Barry, em Fantasma (GOIDA, 2012, p. 275). O romance, escrito em 1950 havia sido adaptado para o cinema em 1953 pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com Anselmo Duarte e Eliane Lage nos papéis principais. (1) Nos quadrinhos, os personagens foram nitidamente inspirados nos traços dos atores do filme. A história se concentra na bondade da protagonista e no seu papel como defensora dos escravos contra os desmandos dos escravocratas, entre os quais, seu pai, o coronel Ferreira, um fazendeiro conservador. Tudo, no entanto, serve como pano de fundo para aproximar Sinhá Moça e Rodolfo que compõem o par romântico da história. Os personagens negros mais importantes são Virgínia, o garoto Bastião e Justino, todos escravos na fazenda de 138 Araruna, de propriedade do coronel Ferreira. Justino lidera um levante e acaba matando o coronel, crime pelo qual poderia ser condenado à forca. A própria Sinhá, junto com Rodolfo e outros abolicionistas, faz intensa campanha e consegue converter a pena de morte em prisão. A edição 152, de julho de 1957, foi Terras do sem fim, romance de Jorge Amado, que teria outros dois títulos adaptados para os quadrinhos. Os desenhos foram executados por Ramón Llampayas. Figura 93 – Primeira obra de Jorge Amado a ganhar versão em quadrinhos Além de José do Patrocínio, outra personalidade afrodescendente a ter uma biografia em quadrinhos incluída na edição Maravilhosa foi o escritor Lima Barreto. Número 162 da coleção, lançada em dezembro de 1957. 139 Figura 94 – A biografia do escritor negro Lima Barreto Outro romance de Jorge Amado, São Jorge dos Ilhéus, foi adaptado para os quadrinhos em dezembro de 1958, na Edição Maravilhosa número 174. Figura 95 – Segundo romance de Jorge Amado adaptado para os quadrinhos 140 José Lins do Rego, cujos romances Menino de Engenho e Banguê já haviam sido adaptados, teve um terceiro título, O Moleque Ricardo, também transformado em álbum da coleção. Figura 96 – Adaptação da obra de José Lins do Rego Jorge Amado teve um terceiro título transformado em história em quadrinhos. Mar Morto foi a edição Maravilhosa número 186. Figura 97 – Mais um romance de Jorge Amado em versão para quadrinhos 141 Todos os livros que geraram as adaptações foram escritos e publicados originalmente entre as últimas décadas do século XIX até meados do XX e denotam o contexto histórico em que transcorrem as tramas. Por outro lado, a coleção Edição Maravilhosa foi lançada num período de forte nacionalismo em que o Brasil passava por intenso processo de industrialização. O governo de Juscelino Kubitschek tinha planos de desenvolver o país com investimentos em grandes empreendimentos e esse espírito ufanista acabou se refletindo nos produtos culturais da época. Grandes heróis, grandiosas narrativas romanceadas e temas épicos com bom potencial didático eram deliberadamente escolhidos pelo editor. Muitos anos após o encerramento da coleção Edição Maravilhosa, da EBAL, as editoras começaram a adaptar obras literárias em forma de álbuns em quadrinhos e em alguns desses livros os personagens negros tinham papéis de protagonista ou de importância significativa na trama. Vale notar que em anos recentes, tem ocorrido uma verdadeira onda de adaptações de livros clássicos da literatura brasileira para os quadrinhos, mais especificamente, a partir do ano de 2006. Vergueiro e Ramos (2009, p. 37) apontam uma razão fundamental para a ocorrência desse fenômeno: o Programa Nacional de Bibliotecas Escolares PNBE, do Ministério da Educação, que seleciona títulos para aquisição e distribuição para bibliotecas e escolas públicas de todo o país. Ruy Trindade, antecedendo essa onda de adaptações, lançou em 1995 o álbum Capitães de areia e, em 1998, Os pastores da noite, ambos romances de Jorge Amado. Artista plástico nascido em Salvador, na Bahia, Trindade exerceu diversas atividades ligadas à ilustração, desenho e decoração. Para incentivar a leitura, criou um projeto que tinha como objetivo adaptar romances para os quadrinhos, preservando o texto da obra. Com esse propósito fez adaptações tão diversas quanto Dom Casmurro, de Machado de Assis, o livro infantil Tibicuera, de Érico Veríssimo e A Revolução dos bichos, de George Orwell, mas os primeiros títulos que produziu foram as duas obras de Jorge Amado. Como em outras obras desse escritor baiano, a influência da cultura afro-brasileira, notadamente, os elementos da religiosidade e do cotidiano da Bahia estão fortemente representados. A proposta do 142 autor, em se manter o mais fiel possível à obra original, faz com que as páginas fiquem demasiadamente carregadas de texto, tornando a leitura um pouco cansativa. Figura 98 – Obras de Jorge Amado adaptadas por Ruy Trindade Outro romance de Jorge Amado adaptado para os quadrinhos foi Jubiabá, numa cuidadosa versão realizada em 2009, por João Spacca. Nessas histórias de época, Spacca costuma ser extremamente cuidadoso quando à composição dos cenários e na representação dos figurinos dos personagens, fruto de uma pesquisa detalhada e estudos iconográficos precisos. Esse mesmo rigor, Spacca imprimiu às cenas de Jubiabá. Os principais personagens do álbum são negros como Antônio Balduíno, Rosenda e o pai de santo Jubiabá. 143 Figura 99 – Adaptação de Spacca para o romance de Jorge Amado Balduíno, um negro alto, forte e bonito, tenta se profissionalizar como boxeador e consegue um relativo sucesso, mas enfrenta uma vida meio que marginal. Não faltam cenas de celebrações, rituais religiosos do candomblé e as típicas baianas de saias rendadas. Figura 100 – Rituais afro-brasileiros retratados no álbum de Spacca 144 A EBAL chegou a preparar a edição do romance Jubiabá na coleção Edição Maravilhosa, mas não chegou a publicar. Existe até mesmo uma capa finalizada, (CIRNE, 2002, p. 115) mas a obra, infelizmente, nunca foi lançada. Ainda em 2009, a editora Ática, dentro da coleção Clássicos Brasileiros em HQ, lançou O cortiço, com roteiro de Ivan Jaf e desenhos de Rodrigo Rosa. Figura 101 – A obra de Aluísio Azevedo na adaptação de Rodrigo Rosa e Ivan Jaf Os livros dessa coleção são assumidamente elaborados para uso como material paradidático e adotados pelas escolas tanto que trazem como encarte um Suplemento de Leitura com questões e sugestões de exercícios baseados na leitura do álbum. Em O cortiço, o personagem central é João Romão, proprietário do tal cortiço onde habitam várias famílias de diferentes origens. As personagens femininas de maior destaque são negras como Bertoleza, a forte empregada de João Romão e Rita Baiana, descrita no romance como uma mulata sensual e sedutora. Um aspecto interessante é que logo no início há menção a um tema ligado à escravidão. Bertoleza é informada que sua alforria fora adquirida, mas era apenas um golpe, pois João Romão lhe desviara o dinheiro. 145 Figura 102 – Bertoleza, de traços grotescos, e Rita Baiana, mulata bonita e sensual Outro título que verte para os quadrinhos uma obra literária é Clara dos Anjos, de Lima Barreto, adaptado pelo roteirista Wander Antunes e desenhos de Lelis, lançado em 2011 pelo selo Quadrinhos na Cia. O texto original foi escrito como um conto e mais tarde seu autor fez uma nova versão mais longa que só foi publicada postumamente. A história é centrada em Clara, uma bonita mulata, filha de um músico e ela também boa compositora. Apesar dos alertas de conhecidos, ela acaba se envolvendo e se entregando ao mulherengo e cafajeste Cassi Jones, seu pai é um funcionário de boas relações e, mas a mãe é extremamente protetora e defende seu filho das muitas mulheres que invariavelmente o procuram para que ele assuma a paternidade ou se case para salvar. Durante toda a narrativa a relação entre as pessoas mais simples e os mais abastados é nitidamente pontuada pela hierarquização, pela diferença de valores, como nas modernas novelas da TV em que a alta classe parece desprovida de escrúpulo ou moralidade e os mais pobres são os mais honestos. No entanto, é o conflito racial que permeia do começo ao fim. Jones é branco e mesmo malandro consegue se manter confortável em sua rede de proteção social. Já as moças de quem ele se aproveita estão sujeitas simplesmente à desonra e ao abandono. Clara, que mesmo sendo de família humilde alcançou um certo grau de instrução chega a alimentar a ilusão de que receberia o apoio dos pais de Jones, mas a mãe dele é peremptória e repele qualquer 146 possibilidade de que seu filho venha a se unir a uma negra. Figura 103 – Preconceito manifesto na obra de Lima Barreto A frase de Clara, ao sair desolada da casa de Jones é sintomática: “Mãe! A gente nesse mundo não vale nada.” Uma conclusão que durante décadas poderia sintetizar a condição dos negros na sociedade brasileira e que Lima Barreto, escritor negro, tinha consciência de ser real. 4.6. Década de 1960, surge Mauricio de Sousa No final da década de 1950, começa a despontar um jovem talento que, mais tarde viria a se tornar o maior autor de quadrinhos do país: Mauricio de Sousa. Desde sua estreia, Mauricio desenvolveu vários personagens como Horácio, Jotalhão, Nico Demo, Os Sousa, Penadinho, Chico Bento e Papa Capim que, normalmente, apareciam em séries cujos universos eram isolados, pois não mantinham relação entre si, mas se tornou famoso com a Turma da Mônica, cujo núcleo central é formado por quatro personagens: a própria Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali. No entanto, em termos cronológicos, seu primeiro personagem foi Bidu, o cãozinho azul do garoto Franjinha, que estreara com seu dono em 1959 no jornal Folha da Manhã. No mesmo ano, a editora Continental lançou a revista do Bidu, cujas histórias, além do cachorro e seu dono trazem como personagens vários garotos nenhum deles com nome. Entre eles o único menino negro de todo o grupo e que, deduz-se, seja 147 Jeremias, personagem que atualmente integra a Turma da Mônica. O rosto dele era representado basicamente como uma elipse preta com duas outras brancas menores servindo de olhos. Com o passar dos anos, seu traço foi sendo aprimorado e o tom de pele clareado para uma cor marrom. Utilizando como critério a frequência que os personagens aparecem nas histórias e o papel que desempenham no contexto do universo geral da Turma da Mônica, Jeremias pode ser considerado um personagem menos que secundário, ele é terciário, pois os primários são os quatro principais já citados; entre os secundários estão Anjinho, Franjinha, Zé Luís e até alguns mais recentes como Do Contra e Nimbus. Só depois, aparecem Titi, Xaveco, Jeremias e outros. Um dado curioso é que a capa da edição especial comemorativa dos 50 anos do Bidu, publicado em 2009, é uma atualização da capa da revista número 1, da editora Continental, no entanto, metade dos personagens que compunha a cena original foi substituída. Nessa versão, um grupo de cinco garotos, entre os quais Jeremias e Franjinha, se banha em um lago e, no primeiro plano, Bidu vai embora com as suas roupas. Na capa mais recente, três dos garotos foram trocados por Mônica, Cebolinha e Magali. Figura 104 – Jeremias, na capa da edição de 1959, e na da versão de 2009 148 Jeremias ganhou destaque por ocasião da eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos. Durante a campanha eleitoral, Obama citava o líder negro Martin Luther King como uma referência. Num lance de oportunismo, a equipe do estúdio de Mauricio de Sousa criou uma história, publicada na edição 30 de Cebolinha, de junho de 2009, na qual o clube dos meninos da Vila Limoeiro promove uma eleição para escolher quem irá dirigi-lo numa disputa entre Cebolinha, atual presidente, e Jeremias, que se oferece como postulante ao cargo. À semelhança do candidato americano, Jeremias cita as palavras do famoso discurso de Martin Luther King: “eu tenho um sonho”. No fim, ele vence a eleição por 11 votos a 2. Figura 105 – Jeremias, candidato a presidente do clubinho da Turma Mauricio sempre foi muito cioso e cuidadoso com sua obra e raramente permitiu que temas mais polêmicos fossem abordados nas suas histórias, a não ser no material para publicação em jornais, destinado a um público mais adulto. Nas revistas, há uma preocupação em manter uma neutralidade em relação à realidade, com exceção de uma ou outra crítica ao comportamento dos adultos e, no caso do Chico Bento, a oposição entre os valores, pretensamente mais genuínos 149 e sinceros dos habitantes da roça, comparados com os daqueles que moram na cidade. Mesmo assim, ocasionalmente, alguma história tratava de assuntos que causavam reflexão. Na edição 15 da revista Mônica, de julho de 1971, foi publicada a história Os azuis. Nela, Mônica, numa certa manhã, sem mais nem menos, acorda e todas as pessoas de seu convívio têm a pele azulada. Esse fato faz com que as outras pessoas, inclusive seus amiguinhos da inseparável turma, evitem o seu contato. Figura 106 – Alusão ao preconceito de cor em história da turma da Mônica A história é um manifesto contra a discriminação de raça e cor, numa época em que o movimento negro começava a ganhar força no Brasil, simbolizada pela música Black is Beautiful, de Zé Rodrix, cantada pela cantora Elis Regina. Uma influência tardia do movimento pelos direitos civis que agitou os Estados Unidos nos anos 1960 e culminou com a derrubada de leis como a que proibia aos negros o acesso a determinados locais como escolas e espaços públicos. Na América do Norte, o racismo era política de estado e estava amparado em leis segregacionistas. Foi somente após muito conflito e intensas 150 reivindicações que os afroamericanos passaram a usufruir de uma série de direitos. No Brasil sempre proliferou o conceito de democracia racial, passando a falsa percepção de que o racismo não existia. (SCHWARCZ, 2001, p. 34) Embora nunca tenha dado maior destaque a Jeremias, único negro da turminha, Mauricio criou outros personagens negros baseados em pessoas reais: Pelé e Ronaldinho Gaúcho, que serão abordados posteriormente. O grande sucesso do jogador Pelé, que teve brilhante atuação na Copa do Mundo de Futebol de 1958, na Suécia, competição em que o Brasil conquistou seu primeiro título, fez com que seu nome se tornasse conhecido mundo afora. Na carona dessa fama, o nome passou a ser usado indistintamente para apelidar meninos negros de modo geral. Em 1960, numa das edições da revista Contos de fadas, da editora La Selva, surgiu a série Pelé e Pelado, criada pelo roteirista Milton Júlio e o desenhista Pedro Seguí. Pelé, obviamente, era um rapaz negro, e Pelado, um garoto careca. Figura 107 – Pelé e Pelado, dupla cômica da década de 1960 151 Os dois viviam tentando expedientes para se dar bem, mas acabavam se enrolando em aventuras e confusões, em situações humorísticas. Os personagens foram publicados em pelo menos três das edições da revista Contos de Fadas. A La Selva mantinha a coleção Cômico Colegial que abrangia vários títulos publicados alternadamente. Alguns eram dedicados a um único personagem como O Espírito, que trazia as aventuras de The Spirit, de Will Eisner, que na época não era mais editado nos Estados Unidos e andava meio esquecido pelo público. Outro título era O Gatilho, com histórias de faroeste, e até o super-herói Super Mouse chegou a ter a sua revista. Contos de fadas era o título reservado para histórias infantis dentro da coleção Cômico Colegial. O mesmo Milton Júlio que roteirizava Pelé e Pelado era responsável pela criação de outro personagem negro que saiu na Contos de fadas número 54: o menino Tião, com desenhos de L. C. Salgueiro. O mesmo garoto aparece como coadjuvante em outras histórias como Frank e Bolão e Bolacha. Figura 108 – Tião, em história solo, publicada na revista Contos de Fadas 152 Duduca e Jambolão, de Orlando Pizzi,de 1963, é uma série muito parecida com Pelé e Pelado. A dupla chegou a ter revista própria pelas editoras Taika/ Outubro. Figura 109 – Duduca e Jambolão, mais uma dupla cômica nos quadrinhos 4.7. A produção da década de 1970 Nos anos 1970, um grupo de editoras pertencente a membros de uma mesma família começou a publicar diversos títulos em quadrinhos. A família Fittipaldi dos irmãos Savério e Bartolo criou as editoras Saber, Paladino e Superplá, mas aparentemente recorriam aos mesmos profissionais para produzir, editar e finalizar as suas revistas. Muitos heróis publicados por outras editoras ganharam versões em formato livro. Elas possuíam lombada quadrada, papel mais espesso e capa cartonada, mas em seu conteúdo em nada diferiam de uma revista comum e eram vendidas nos mesmos canais: as bancas de revista. Isso era possível porque as agências distribuidoras de material para publicação, os syndicates, vendiam os direitos de publicação e cediam 153 a exclusividade por formato: para jornal, para revista, para livro e nem sempre a mesma série ou personagem era fornecido para uma única editora publicar. Um caso que se tornou conhecido foi o episódio do casamento do personagem Fantasma, de Lee Falk, em 1977. Diferentes jornais detinham o direito de publicação das tiras diárias. Enquanto em São Paulo, o personagem saía na Folha da Tarde, do mesmo grupo da Folha de S. Paulo, no Rio de Janeiro era O Globo que o publicava. Para o formato revista, quem tinha os direitos era a Rio Gráfica, do mesmo grupo do jornal O Globo. No entanto, para edição em formato de livro, era a EBAL, de Adolfo Aizen o detentor da permissão. O casamento do Fantasma já havia sido publicado nos jornais e nas revistas, formato no qual o personagem tinha imenso sucesso. Aproveitando que o casamento era um dos momentos históricos do Fantasma, a Rio Gráfica decidiu publicar um álbum de luxo, colorido e com capa dura para marcar esse importante evento, só que para isso precisou pedir a cessão dos direitos à EBAL, que autorizou sem maiores problemas. Era uma ironia do destino pois, 40 anos antes, Roberto Marinho havia tomado esse e outros personagens do King Features Syndicate que eram publicados pelas revistas de Aizen. (SILVA, 2004, pg. 71) Tecnicamente, as revistas da Saber, Paladino e Superplá eram livros, por isso, os syndicates permitiram a publicação de títulos como Fantasma, Mandrake, Flash Gordon e Príncipe Valente ainda que os direitos para publicação em revista no Brasil pertencessem à Rio Gráfica e Editora. Com isso, durante algum tempo conviveram em banca diferentes publicações do mesmo personagem. Um dado curioso é que o Recruta Zero, publicado em revista própria pela Rio Gráfica e, pela Saber no formato livro, mas com o nome do personagem modificado para Zé o Soldado Raso. Originalmente, em inglês, ele se chama Beetle Bailey e Zero é o nome do personagem que no Brasil foi batizado de Dentinho. A série teve um grande êxito entre os leitores brasileiros a tal ponto que na falta de material americano para ser traduzido, a Rio Gráfica recorreu a artistas nacionais para produzir histórias localmente. Um 154 desses ilustradores, Primaggio Mantovi, que era funcionário contratado pela Rio Gráfica, desenhou várias histórias e ilustrou capas do recruta Zero, mas que também fez alguns trabalhos como freelancer, entre os quais, os desenhos de Zé, o Soldado Raso para a editora Saber. O sucesso de Zero influenciou na criação de um dos poucos personagens brasileiros da editora Superplá a ter revista própria e um dos raros casos de um personagem negro a ser o título de uma publicação de quadrinhos: o Praça Atrapalhado. Figura 110 – Praça Atrapalhado teve revista própria com 13 edições Visivelmente inspirado nas aventuras de Zero, o Praça foi criação de Eduardo Pereira (Edú) e estreou no primeiro número do tabloide Super Plá, tentativa de resgatar o sucesso de antigas publicações de quadrinhos como o Suplemento Juvenil e Globo Juvenil, mas com uma qualidade gráfica superior. Esse mesmo formato foi adotado alguns anos depois no lançamento do Gibi Semanal, da Rio Gráfica. O tabloide Super Plá durou apenas poucos números. Edú era o ilustrador responsável por muitas das capas da editora Super Plá e também criou um personagem calcado no estereótipo do 155 português com tamancas, suspensório e um imenso bigode, além de um personagem hippie. Estes, no entanto, apareciam em cartuns de painel único e não foram explorados como personagens de histórias em quadrinhos. Já o Praça Atrapalhado figurou em pelo menos 13 edições. As primeiras editadas pela Super Plá e as últimas pela Saber. Os primeiros números tinham 64 páginas e traziam uma ou duas histórias do personagem que ocupava a primeira metade da revista/ livro. A segunda parte era dividida entre anedotas apenas em texto escrito e tiras de jornal de personagens diversos variando desde séries pouco conhecidas até as mais famosas como Pinduca, de Carl Anderson e Doonesbury, de Garry Trudeau. O Praça Atrapalhado tinha a mesma estrutura de humor do Recruta Zero, mas, enquanto a série americana contava com um time de personagens bem variados, a nacional tinha um elenco bem mais limitado. O Praça, cujo nome não era mencionado nas histórias, vivia se metendo em enrascadas e sofrendo nas mãos de um irritadiço sargento. O humor era baseado nas gags visuais com exageros, metáforas e muita ação. Nisso também há semelhanças com a série americana. O gibi tem o mérito de ter um personagem negro como protagonista e, embora sua função seja subalterna dentro da hierarquia militar, isso não representa uma inferiorização motivada por sua cor. Não se encontram elementos que denotem discriminação e, até, pelo contrário, em muitas das situações, ele acaba se saindo bem. Na representação visual, há os exageros normais presentes nas séries humorísticas nas quais prevalece o traço caricatural, mas isso ocorre com todos os personagens mostrados na série. Após o golpe de estado que derrubou o presidente João Goulart, ocorrido em 31 de março de 1964, o Brasil viveu sob uma ditadura militar que impôs um regime de rígido controle governamental. A produção cultural e a imprensa do Brasil ficaram sujeitos à censura oficial, com a promulgação do Decreto 1.077, de 26 de janeiro de 1970, cuja responsabilidade ficara a cargo de um órgão específico, o Serviço de Censura e Divisões Públicas (SCDP) do Departamento de Polícia Federal. (GONÇALO JR., 2010, p. 155). Em 1968, com a implementação de várias medidas restritivas, a situação ficou ainda mais tensa com o combate a grupos de esquerda com perseguições políticas, desaparecimento de pessoas e o registro de tortura e morte 156 provocados pela repressão. (MAFFEIS NETTO in CARUSO, 2003, p. 25). Nesse período, o humor gráfico foi um dos focos de resistência ao regime e a charge e o cartum eram utilizados como ferramentas para atacar o governo e denunciar a situação de desajuste social e econômico provocado por uma política econômica equivocada baseada no forte endividamento e que se agravou com a Crise do Petróleo no início dos anos 1970. Nesse panorama, ganhou relevância o Salão de Humor de Piracicaba que, ao reunir e promover os trabalhos em charges, cartuns e quadrinhos, servia como um catalisador das críticas quase sempre embutidas nas entrelinhas ou de forma subentendida. (MAFFEIS NETTO in CARUSO, 2003, p. 25-29). Na área econômica, o Brasil passava por um período de euforia propiciado por taxas de crescimento do PIB impressionantes, que chegavam a dois dígitos. Essa fase, conhecida de Milagre Econômico, foi possível por uma política baseada no alto endividamento que, com a crise mundial do Petróleo em 1973, se mostrou prejudicial, principalmente, para as camadas mais pobres da população que, não tendo ainda usufruído das vantagens do boom econômico, sentiu os rigores de uma inflação galopante. Nesse cenário surgem autores como Henfil e Edgar Vasques que fazem pesadas críticas à situação econômico-social do país e têm em sua produção alguns personagens negros. Henfil foi um dos mais mordazes cartunistas do Brasil e mesmo tendo feito parte de uma geração notabilizada por combater a ditadura, foi o mais engajado politicamente. Seus personagens mais conhecidos são os Fradins, dupla de freis franciscanos em tudo opostos. Um é alto e magro, o outro baixinho e atarracado. O primeiro é o típico religioso, atencioso, cordato, conciliador. Já o segundo é desaforado, grosso, provocador e perigosamente sincero. Enquanto o Baixim é visceral, instintivo e impulsivo, ou seja, puro id; o magro é a civilização, o politicamente correto, nosso superego. Os Fradins foram criados em 1964 para a revista Alterosa, mas já a partir de 1969 começaram a ser publicados no Pasquim, estreando já no número 2 do jornal. (MORAES, 1996, p. 103). Os personagens ganharam revista própria chamada Fradim, no singular, lançada em 1971, mas só passou a ser publicada com periodicidade mais regular a partir do número 2, 157 de setembro de 1973. Durou 31 números, sendo o último lançado em dezembro de 1980. Nessa revista, os Fradins dividiam espaço com outras criações de Henfil com destaque para Zeferino e sua turma: o Bode Orelana e Graúna, um pássaro preto passional. A cada edição, Henfil elegia um assunto deliberadamente delicado para mostrar o embate do comportamento dos dois fradinhos e atiçar a opinião pública: homossexualidade, menstruação, machismo etc. No número 16 , de janeiro/fevereiro de 1977, o tema foi racismo, mais especificamente, contra negros. Figura 111 – Edição da revista Fradim que abordava o racismo A partir de situações cotidianas, Henfil desmascarava a hipocrisia da sociedade ao exibir as reações carregadas de preconceito. Figura 112 – Henfil usava o cotidiano para denunciar o preconceito 158 Figura 113 – As raízes do preconceito, na visão de Henfil Além de tratar abertamente de questões polêmicas, Henfil criou alguns personagens negros antológicos. Um deles era o Preto que Ri, na aparência, uma versão negra do Baixim, mas que por ingenuidade ou nervosismo ria descontroladamente a cada adversidade, como se fosse uma piada, a ponto de provocar situações insólitas. Figura 114 – O Preto-que-ri, de Henfil 159 Outro negro, moldado como um malandro da Lapa com terno branco folgado, chapéu e flor na lapela é o parceiro do personagem Orelhão, um operário da construção civil. Figura 115 – Orelhão e seu parceiro o negro sem nome A conversa entre ambos sempre gira em torno dos problemas do país, o caos político e as dificuldade financeiras da classe trabalhadora. Observadores atentos da vida urbana, seus comentários são sempre ácidos, pertinentes e engraçados. Finalmente, há um personagem que causou grande polêmica na época: o Caboco Mamadô, que estreou no número 129 do Pasquim, em dezembro de 1971. Um velho macumbeiro que mandava para o Cemitério dos Mortos Vivos todos aqueles que, de alguma forma, colaboravam com o regime militar. Figura 116 – Cabôco Mamadô e seu cemitério dos mortos vivos 160 Era uma maneira de o desenhista deixar bem claro que quem não era contra o governo era a favor de tudo o que ele representava de mau: censura, perseguição, tortura e repressão. Por meio do Cabôco, Henfil condenou à condição de zumbi algumas das personalidades da época como Pelé, Paulo Gracindo e Marília Pêra. A mais comentada foi Elis Regina, que havia se apresentado na abertura da Olimpíada do Exército, em 1972, cantando o Hino Nacional, ato que para Henfil não admitia perdão. (MORAES, 1996: 128) Esse era o estilo de Henfil, um autor passional e emotivo, intransigente em sua oposição ferrenha à ditadura e que em seu extremismo era capaz de magoar até pessoas de seu convívio. No mesmo tom de crítica ao regime vigente e às desigualdades sociais, Edgar Vasques criou a série Rango, um catador, que mora em um lixão e vive dos restos que consegue recolher. Figura 117 – Rango e sua turma do lixão, de Edgar Vasques Num ambiente de total carência, Rango divide espaço com outros moradores entre os quais o seu filho pequeno, um personagem com feições indígenas e trajes andinos que pode tanto ser um peruano ou boliviano. Um idoso, continuamente bêbado e dois negros (um adulto e um menino). Figura 118 – Prévio e o menino Jejum, personagens negros da série Rango 161 Rango e seu filho são os únicos do grupo que aparentemente, mantêm um laço familiar. Um caso raro, pois os marginalizados normalmente estão em condição de abandono e dificilmente vivem com parentes nessas condições precárias. O menino negro se chama Jejum e o adulto Prévio. Ambos são desenhados com lábios exageradamente grossos, típico das representações mais estereotipadas, mas isso também é válido para todos os demais personagens o que descaracteriza eventuais propensões a acusações de racismo. Aliás, ao contrário: por meio da série Rango, Vasques faz uma contundente crítica social e política, e em algumas tiras há menção a fatos econômicos e personalidades do noticiário econômico da época como o ex-ministro Delfim Netto. Rango foi criado em 1970 para a Grilus, revista do Diretório Acadêmico da Faculdade de arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas ganhou as páginas de diversos veículos e chegou a ser distribuído nacionalmente pela agência Funarte. Vasques foi o primeiro autor publicado pela editora L&PM, formada por amigos do autor, em 1974. As tiras ganharam posteriormente compilações em livrinhos no formato horizontal e até como álbuns de capa cartonada, todos pela mesma L&PM. No início da década de 1970, um jovem cartunista de traço rebelde e ainda imaturo começou a colaborar com o jornal Folha de S. Paulo. Arnaldo Angeli Filho estreou nas páginas do suplemento infantil a Folhinha com a série Feijão, no dia 14 de abril de 1974. O personagem que dá nome à série é um menino negro que sempre está sozinho e não profere uma única palavra. De índole gentil e otimista, Feijão não hesita em doar a um mendigo cego todo o dinheiro que havia ganhado com muito esforço. Foram publicadas apenas três histórias do personagem, no formato de painéis de página inteira. Na segunda delas, o menino está diante de uma estátua, busto erigido em homenagem a quem, se presume, seja uma importante personalidade. Sem sentir a mínima identificação e empatia com o suposto herói Feijão pinta a estátua de preto e aí sim, fica feliz. 162 Figura 119 - Feijão, o primeiro personagem de quadrinhos de Angeli Difícil afirmar se o autor teve, na ocasião, a intenção de denunciar a ausência de heróis negros homenageados e nos quais as crianças afrodecendentes pudessem se espelhar. Esse é um ponto crucial apontado por alguns autores. O título do livro de William Foster III (2005), Looking for a face like mine, sintetiza a sensação de frustração de uma criança que, imersa num mundo de imagens que tem como padrão estético uma imagem que não é a dela, e nunca ou quase nunca vê um personagem em que possa se refletir e, mais ainda, se projetar. Brown (2001, p. 3-4) cita uma campanha veiculada nos anos 1970 nos Estados Unidos pela Black-Owned Communications Alliance (BOCA) que alertava para esse assunto. No livro é reproduzido um cartaz dessa campanha que mostra um garoto negro se olhando no espelho, mas a imagem que vê refletida é o do protótipo padrão de um personagem branco. 163 Figura 120 – Campanha pelo aumento da presença dos negros na mídia A editora Abril, num lance de extrema ousadia, lançou, em 1974, a Crás para tentar promover histórias em quadrinhos produzidas por autores nacionais. Nos dois primeiros números, a revista tinha formato grande e era impressa em cores em papel de qualidade. Depois passou ao convencional formatinho, mas a experiência durou poucas edições. A proposta da revista era servir de balão de ensaio para artistas brasileiros, alguns dos quais colaboradores do quadro da própria editora Abril, que trabalhavam como roteiristas e desenhistas para as séries americanas publicadas pela empresa, notadamente, os personagens de Walt Disney. A intenção era abrir espaço para essa produção nacional e, eventualmente, lançar títulos específicos ao material que tivesse maior aceitação. Efetivamente, embora tenha sido um grande sucesso de crítica, o projeto não convenceu o público e das séries publicadas na Crás, apenas Satanésio, de Ruy Perotti, chegou a ser lançada em revista própria que teve quatro edições. Na última página da número 2, saiu a única série a ter um personagem negro como titular: a tira chamada Lelé, uma clara alusão ao jogador Pelé, a começar pelo nome do protagonista e pela sua habilidade no futebol. 164 Figura 121 – Referências óbvias a Pelé no personagem de Igayara O rei do futebol serviria ainda de inspiração para a história Rei Morto Rei Posto, de Arnaldo, publicada na revista Ficção Quadrinhos Brasileiros, em 1978, edição especial da revista de literatura Ficção. Figura 122 – Pelé sofre um atentado para dar lugar ao Mickey Mouse 165 4.8. Novas tiras nos anos 1980 O cartunista Angeli que continuava colaborando com o jornal Folha de S. Paulo por um bom período principalmente com charges e cartuns, tornou-se editor da seção de humor gráfico Vira Lata, página de humor do suplemento de cultura Folhetim, da Folha, no formato tabloide. Uma vez por semana, a página trazia charges e histórias em quadrinhos de diversos autores como Luscar, Nilson e da dupla Laerte e Glauco com quem anos depois comporia o grupo Los tres amigos. Nessa seção, no dia 15 de março de 1981, ele inicia a série Chiclete com Banana, no formato de painel com seis quadrinhos, diferente portanto, das tiras diárias. O primeiro personagem eram Tudo Blue, um músico mais interessado na sua arte do que na situação política do país. Figura 123 – Moçamba, um dos primeiros personagens da série Chiclete com Banana Seu amigo, o negro Moçamba, era percussionista e só queria saber de cantar e dançar. Em contraponto, havia o radical de esquerda Meia Oito. A figura feminina do grupo era Rita Pop, fã incondicional de Caetano Veloso. Esses personagens formavam o núcleo central da série que, com a extinção da seção Vira Lata, continuou sendo publicada semanalmente no caderno de variedades Ilustrada, mas, separada da seção de quadrinhos. Somente no dia 6 de janeiro de 1983, Chiclete 166 com banana foi reduzido ao formato de tira e passou a ser publicado diariamente, junto com as demais séries. Bob Cuspe, primeiro personagem da série a fazer sucesso, só estrearia no dia 23 de abril de 1983 e Rê Bordosa viria apenas em 4 de abril de 1984. Foi principalmente com esses dois personagens que Angeli veio a se consagrar como um dos mais conhecidos quadrinistas de sua geração. Outros mais foram incorporados ao elenco como Bibelô, Walter Ego, Rhala Rikota, Mara Tara, formando uma galeria de anti-heróis tipicamente urbanos que com humor e sarcasmo fazia rir do comportamento de certas tribos e seus membros. Nos anos 1980, as tiras de jornal ainda ocupavam um espaço importante nos jornais e em decorrência da situação econômica do país surgiram outras séries na mesma linha de Rango, que extraíam humor das situações vividas pelos menos favorecidos. Uma delas é a Casa Grande sem sala, que circulou em meados da década, do cartunista Ykenga, nome artístico de Bonifácio Rodrigues de Mattos. Ambientada numa favela típica carioca, que naquele tempo ainda não havia sido tomada pelo crime organizado e o tráfico pesado de drogas. Dentre os principais personagens dois são negros: o garoto Joãozinho Tresoitão e o Vovô Oba. Figura 124 – Série Casa grande sem sala, de Ykenga 167 Como em Rango, as histórias giram em torno das dificuldades de sobrevivência de Joãozinho e de Maria Zinha, dois menores abandonados e o convívio com valores questionáveis, no caso do estreito limite entre a marginalidade e a criminalidade, em contraste com a vida de conforto de personagens como o playboy Tédio Boy. Outra série a explorar a periferia, mas com uma visão menos ingênua e mais violenta é a Dr. Baixada, de Luscar, que estreou no Jornal do Brasil em outubro de 1982. Colaborador de longa data da revista Mad, tem um desenho que lembra o estilo do veterano Fortuna. O Dr. Baixada é uma espécie de justiceiro que não hesita em sacar seu revólver. O próprio nome do personagem faz referência Baixada Fluminense, região da Zona Norte do Rio de Janeiro que ficou famosa por seus elevados índices de criminalidade, na década de 1980. A região foi considerada a mais violenta do mundo com uma taxa de 95,6 pessoas assassinadas por cada 100.000 habitantes. Entre os vizinhos do Dr. Baixada, havia um garoto negro chamado Piva. Figura 125 – Piva, o garoto negro da série Dr. Baixada, de Luscar O menino age conforme as regras não escritas para poder se livrar de determinada situação, uma estratégia de sobrevivência numa realidade de violência extrema e descontrole das autoridades. Aliás, essa é a mensagem que fica ao se ler a série que acaba funcionando como um protesto pela falência dos órgãos públicos. Inicialmente publicada em jornais uma coletânea da série foi publicada em livro pela Circo Editorial, em 1986. 168 Também muito semelhante a Rango e Dr. Baixada, era a série Pivete, uma criação de Edmar Viana, cartunista do Rio Grande do Norte. A série surgiu em 1980 e foi publicada em tiras durante três anos no jornal Tribuna do Norte e eventualmente no A União, da Paraíba. O personagem lembra outras séries de denúncia social como Zeferino, de Henfil, cujo traço parece ter inspirado Viana, e Rango, de Edgar Vasques. Temas como fome, pobreza, marginalidade e desigualdade são explorados. Pivete, como o próprio nome explicita é um menino, mas em algumas situações tem atitudes e reações de um adulto. Figura 126 – O menino negro Pivete, de Edmar Viana Nela, o protagonista é um moleque negro que em companhia de seus amiguinhos, luta pela sobrevivência. A série ganhou, em 2010, uma versão em álbum, editada pela Marca de Fantasia. As séries Rango, Casa Grande Sem Sala e Dr. Baixada chegaram a ser distribuídas pela Agência Funarte, uma tentativa de replicar o modelo americano de syndicate no Brasil. A agência foi instituída em 1985, durante a gestão do cartunista Ziraldo como presidente da Fundação Nacional de Arte (Funarte), órgão do Ministério da Cultura, como forma de incentivar a produção de quadrinhos e sua publicação pelos jornais. Além dos títulos citados, também constavam do catálogo da agência as tiras Negrim do Pastoreio, de Nilson. Como o próprio nome da série faz supor, o personagem principal era um menino negro, mas ao contrário do que lhe serviu de inspiração, vivia conflitos da realidade contemporânea. (FUNARTE, s/d) 169 Figura 127 – Figura do folclore transposta para a atualidade Na sequência entre os dias 30 de janeiro e 5 de fevereiro de 1988 da série Now sem Rumo, do cartunista Lor, publicada no jornal O Estado de S. Paulo, aparece om personagem El Negro, líder dos guerrilheiros Sem-ar, com traços exagerados e representação estereotipada, seguindo o estilo humorístico do autor para os demais personagens. Figura 128 – Personagem afrodescendente na série Now sem rumo, de Lor Coincidentemente, na mesma época e no mesmo jornal, Maringoni introduz em sua tira, Romeu o Descasado, uma sequência com o personagem negro Zé da Prancha, com direito a nome na chamada da primeira vinheta. Publicadas de 26 de janeiro a 4 de fevereiro de 1988 as tiras mostra situações de discriminação vividas por Zé, um 170 surfista negro que é chamado de diversos apelidos preconceituosos e que, mesmo tendo vencido um campeonato, é preterido por um atleta branco para figurar em uma campanha publicitária para esse segmento. Figura 129 – Preconceito explícito na tira Romeu, o descasado de Maringoni Além das diversas iniciativas de se emplacar séries em tiras para os jornais, vale destacar que a publicação em revista era uma solução mais acessível principalmente para autores iniciantes. Na década de 1980 havia vários títulos de coletâneas, com diversos autores diferentes, chamadas genericamente de publicações mix. 4.9. A efervescência das revistas mix dos anos 80 Os anos 1960-70 haviam sido marcados pela ditadura militar que governou o país e a forte repressão aos meios de comunicação pela implantação da censura prévia. Todos os programas de TV, revistas e jornais passavam pelo crivo da censura e alguns episódios desse 171 período tornaram-se emblemáticos, como a publicação de receitas culinárias e versos de Camões, no jornal O Estado de S. Paulo, no espaço em que havia notícias sobre o governo e que a censura mandara cortar. Em tempos em que ainda não existiam os programas de computador para edição eletrônica das publicações, a substituição das matérias era uma operação trabalhosa. As páginas dos jornais eram literalmente montadas, pois os textos eram compostos tipograficamente e as fotos também precisavam estar no tamanho correto para se encaixar no espaço previsto. Atualmente, é possível aumentar ou diminuir o espaço entre as letras ou entre as linhas de forma quase imperceptível ao leitor comum, mas naquela época, qualquer alteração demandava um novo cálculo do espaço, recortes de fotos e colunas de texto, isso tudo a tempo de fechar a edição para impressão. Ainda mais dramático era quando o Governo decidia que um assunto era impróprio depois de uma edição ter sido impressa e até distribuída. O jornal O Pasquim teve algumas de suas edições apreendidas em banca, com todos os exemplares recolhidos e destinados à destruição. Editoras que produziam material adulto, algumas das quais possuíam títulos com quadrinhos eróticos como a Edrel, sofreram a tal ponto com os cortes exigidos pelos censores e a demora na autorização de determinada edição tornaram inviável a manutenção do negócio e tiveram de fechar as portas. Em meados dos anos 1980, o regime militar perdia força e iniciou-se no país um processo gradual de abertura política que ia, aos poucos, afrouxando a censura que tão duramente havia atingido alguns setores da imprensa. Um dos primeiros sinais foi a liberação de revistas de nu frontal até então totalmente proibidas. (GONÇALO JR., 2010). As mais conhecidas e que de certa forma serviram de modelo para outras foram as revistas da editora Circo, capitaneada por Toninho Mendes, que vinha de uma ampla carreira como designer gráfico e diagramador em importantes publicações do período como a semanal IstoÉ e a revista alternativa Versus. Embora os títulos Chiclete com banana e Geraldão priorizassem os trabalhos de Angeli e Glauco, respectivamente, normalmente eles costumavam dividir espaço com outros autores convidados que contribuíam com histórias avulsas ou 172 seriadas. A série Piratas do Tietê, de Laerte, por exemplo, que ganharia revista própria em maio de 1990, nasceu na Chiclete com banana número 9, de abril/maio de 1987. Com o lançamento da revista Circo, essa diversidade de colaboradores foi sendo ampliada e passou a ser a característica da publicação, inspirada em revistas mix estrangeiras, principalmente europeias como as francesas A Suivre, a espanhola El Víbora e a italiana Frigidaire. Todas tinham caráter mais autoral e exploravam temas adultos ligados à sexualidade, drogas e violência, considerados tabus. Da mesma geração de Angeli, mas com um traço mais elaborado e um humor mais intelectualizado é o cartunista Laerte. Ele fora um dos fundadores da Balão, publicação de quadrinhos editada dentro da USP por alunos dos cursos de Arte e de Arquitetura. A revista foi precursora de diversas outras que começaram a surgir no cenário independente. Nos anos 1980, Laerte começou a publicar a tira Condomínio, no jornal O Estado de S. Paulo e distribuída pela agência Funarte. Embora Laerte seja um exímio construtor de situações cômicas e domine como poucos o ritmo e a narrativa das tiras diárias, o melhor de seu talento vem à tona em suas histórias de maior fôlego, com seis, sete ou oito páginas e que foram publicadas, inicialmente, nas revistas da editora Circo. Anteriormente, Laerte já publicara histórias de mais de uma página em seus primeiros trabalhos na revista Balão, mas ainda de maneira incipiente e experimental. Foi por iniciativa do editor Toninho Mendes que, tanto Laerte quanto Glauco e Angeli, começaram a exercitar esse formato de histórias de mais páginas de modo mais regular. Com mais espaço para explorar as possibilidades narrativas dos quadrinhos, Laerte produzia seus trabalhos mais marcantes para as publicações da Circo. Primeiro na Chiclete com banana, depois na Geraldão e na Circo até finalmente ganhar uma revista própria, a Piratas do Tietê, que estreou em 1990 e durou 14 números. A propósito, os Piratas são responsáveis por algumas histórias memoráveis, como aquele em que o bando de saqueadores faz amizade com o Batman, que saiu na Chiclete com banana 21, de novembro/dezembro de 1989; ou 173 quando encontra o poeta Fernando Pessoa navegando pelas águas do Rio Tietê, publicada na Circo número 5, de agosto de 1987. Em outras duas histórias para revistas da Circo, Laerte aborda o tema dos negros. Na revista Geraldão número 7, de junho de 1988, foi publicada Ilha Grande & Senzala, de Laerte, cujo título é uma nítida paródia ao clássico de Gilberto Freyre. Figura 130 – A discriminação, dos tempos da escravidão à atualidade A história faz uma síntese do percurso do negro brasileiro: extraído à força de seu cotidiano na África, cerca de 400 anos atrás, até a realidade presente, em que persiste sendo vítima de um ostensivo tratamento preconceituoso, no caso, por parte das forças policiais. Em A insustentável leveza do ser, definida por Moacy Cirne, um dos pioneiros na pesquisa de quadrinhos no Brasil, como sendo uma “obra-prima inquestionável da arte narrativa brasileira” (CIRNE, 1990, p. 82), 174 Figura 131 – O jogo de aparências na história que é uma obra-prima da narrativa Laerte monta um jogo de aparências em que nada ou ninguém é o que parece ser. Nem mesmo o mundo. O final antecipa em vários anos uma das últimas cenas do filme o Show de Truman, estrelado por Jim Carrey, no qual o personagem título vive num grandioso reality show durante mais de 30 anos. Contemporaneamente à Circo, outras editoras lançaram títulos com coletâneas de histórias de diferentes autores. A maioria dessas publicações teve curta duração, mas reuniu o trabalho de profissionais de diferentes gêneros e estilos. Nos moldes da Circo, surgiram outras publicações como a Divina Comédia, da Press Editorial, a Porrada, da Vidente; a MegaZine, da Ortiz; 175 a Mil Perigos, da Dealer; a KYX’93, da TD; todas publicadas entre o final da década de 1980 e início da de 1990. Em 1987, a Press Editorial lançou a revista Bundha. Em outras circunstâncias poderia ser considerada um marco a ser comemorado, pois depois de muitos anos, desde Pererê, Moleque Sacy, Duduca e Jambolão, todas três da década de 1960, mais o Praça Atrapalhado, do começo da década de 1970, um personagem negro não era destaque como título de revista em quadrinhos. Criado pelo cartunista Newton Foot, que já tinha publicado a série Afagos Amargos, em tiras no jornal O Estado de S. Paulo, Bundha havia sido criada para o fanzine Brigite, editado por alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). O personagem é um nativo de uma selva não identificada, mas que carrega todos os clichês dos selvagens africanos correntes no início do século XX. Nesse aspecto, representa um retrocesso na imagem dos negros nos quadrinhos. Figura 132 – Trocadilhos e clichês no personagem Bundha Na aparência, lembra a Lamparina de J. Carlos com seus traços simiescos e modo de expressar primário. As aventuras do personagem são simples e ligeiras com um humor que explora até a exaustão as possibilidades de trocadilho e piadas de duplo sentido com o nome do 176 personagem. Construções como “Bundha não é mole”, “Bundha fica de fora” e outras do gênero são recorrentes no desfecho das situações e parecem ser o único recurso humorístico, uma vez que os roteiros são concebidos para atender a essa finalidade. Muitas vezes a graça resvala no crítico limite do bom gosto: em uma das aventuras, ao ser questionado sobre sua profissão, Bundha responde ser artista e “fazer esculturas em barro”. O jogo de palavras é ainda mais reforçado com a inserção de Tanga, parceiro e amigo de Bundha, a quem costuma “dar cobertura”. Esse segundo personagem negro, também não foge aos clichês, mas ao invés de um selvagem, é caracterizado como o típico malandro dos anos 40, a que não faltam o chapéu e a gravata borboleta, indumentária semelhante à trajada pelo Zé Carioca, de Disney, dos primeiros tempos. Figura 133 – Tanga é o companheiro de Bundha O humor escatológico da série é símbolo de um período peculiar da cultura brasileira. Com o fim da ditadura militar e da censura aos veículos de comunicação, ocorrida em meados dos anos 1980, havia um clima de receptividade para piadas que faziam uso de palavrões ou com conotação sexual. Artistas e roteiristas pareciam ter uma necessidade de extravasar duas décadas de repressão e acabavam 177 criando peças carregadas de palavrões numa época em que o humor politicamente correto ainda não era vigente. A figura do negro primitivo ou estereotipado parece ser uma predileção do autor, pois é uma constante no trabalho de Newton Foot. Em outras duas de suas criações aparecem personagens com o mesmo tratamento visual: Mazombo, história avulsa publicada na revista Níquel Náusea nº 15 de outubro de 1991 tem a mesma ambientação em um ponto longínquo de uma África selvagem e inexplorada. Figura 134 – Mazombo, outro personagem com caracterização estereotipada Numa tentativa de associar os quadrinhos à paixão nacional que é o futebol, a editora Cedibra lançou a revista Futebol e Raça, com textos de Luiz Aguiar e ilustrações de Mozart Couto. Cada número trazia duas histórias sem vínculo, aliás, até o estilo com que eram desenhadas era diferente. Para narrativas cômicas era caricatural, para enredos mais dramáticos, o traço era realista. 178 Figura 135 – Realismo na caracterização de personagens de Futebol e Raça Em ambos os casos, Mozart Couto, conseguia bons resultados. As tramas giravam em torno dos bastidores do futebol: intrigas, concentração e contratações. Alguns dos personagens eram jogadores negros. Uma das séries tinha como protagonista o massagista negro Raça. Em certos aspectos, parecia ser óbvio que uma publicação que juntasse a linguagem dos quadrinhos ao futebol fosse angariar uma multidão de fãs, mas embora as histórias fossem bem elaboradas e a arte de Couto competente, a revista teve pouquíssima duração. Na mesma onda do esporte, mas explorando uma linha mais voltada ao público infantil, surgiu em 1990 a Sport Gang, publicação em forma de tabloide com as histórias de um time formado por crianças de diferentes etnias. 179 Figura 136 – Neneco, o representante negro na equipe multiétnica Com argumentos de José Alberto Lovetro (JAL) e arte de Octávio Cariello, foi criada numa época em que já havia a preocupação em dar representatividade a todos os segmentos da população. Assim, a gangue tinha entre seus componentes um descendente de orientais, Niko Niko, campeão de karatê; o loirinho Cestinha, praticante de basquete; o ciclista Billy Cross; as meninas Isis Kate, skatista, e Mari, jogadora de vôlei. Neneco, o garoto negro da turma, era adepto do futebol. Pela amostra, pode-se deduzir que a intenção era agradar as tribos de todos os esportes. A iniciativa, que começou com grande repercussão, não teve, porém, vida longa. A revista Divina Comédia, da editora Press, sem data de capa, circulou no final dos anos 1980 e uma das histórias era Macunim, uma interpretação bastante livre de Macunaíma. Na história em quadrinhos, criada por McXalba (provavelmente um apelido do desenhista Xalberto) e Franco, o famoso mulato “herói sem caráter” de Mario de Andrade banha-se na fonte do Sumé e se torna branco e sai em perseguição ao Piramão. A narrativa toda é uma alegoria e faz menção à política pública de concessão de verbas para a cultura. 180 Figura 137 – Macunim, recriação livre de Macunaíma, de Mario de Andrade Na história Berta, de Mosquil, há uma influência da linha clara, estilo de desenho predominante entre os artistas belgas e que define um tipo de traço limpo, sem sombras nem meios tons, como o de Hergé, criador de Tintim. A história foi publicada na revista Porrada Erótica, cujo número 1 não informa a data. Figura 138 – Retorno aos estereótipos, na história de Mosquil 181 Outra revista mix foi a MegaZine, da editora Ortiz, de 1988, em cujas páginas saíram as aventuras do personagem Nonô das Candongas, de Mariano, mais um típico malandro carioca que tenta se dar bem, mas que sempre acaba se prejudicando. O mundo em que Nonô circula é o da marginalidade, as arenas de briga de galo, o dos pequenos golpes na tentativa de melhorar de vida sem muito esforço. Nonô das Candongas estreou no número 4 da revista. Figura 139 – Nonô das Candongas, o malandro que nem sempre se dá bem Com roteiros de Patati e desenhos de Alan Alex, a história Mocidade independente saiu na edição número 9 da revista MegaZine, de outubro de 1989. Narra a história do negro Nicanor que abandonado pela mulata Clotilde sofre um atentado, mas consegue se vingar. Figura 140 – O relato de um crime passional em Mocidade Independente 182 No número 2 de outra revista mix, a KYX’93, da editora TD, lançada em 1989, foi publicada Isso aqui é um pedacinho do Brasil, Iaiá, uma história avulsa, assinada por Maringoni. As primeiras cenas, de página inteira mostram um rapaz mulato, trajando uma roupa que o caracteriza como um passista/sambista de filme americano: camiseta listrada, chapéu palheta e um tamborim na mão. O personagem canta a música Brasil Pandeiro e dança e rebola com energia ao ritmo da canção, mas ao virar a página revela-se sua real função: o de carregador de malas para o turista estrangeiro. Uma crítica à folclorização do elemento negro associado ao samba, junto com o futebol, os maiores estereótipos com que o Brasil é representado no exterior. Figura 141 – Maringoni mostra ao mulato carioca qual é o seu lugar Também nos quadrinhos independentes, os personagens negros eram pouco presentes. Uma rara exceção foi o personagem Pagode, de Floreal, que figurou em pelo menos uma das edições na revista Mofo, de 1987. O personagem era um office-boy que vivia as agruras de um emprego mal remunerado, um cotidiano sofrido, mas que todo fim de semana se divertia numa roda de samba. A caracterização do personagem era bem estereotipada, com os lábios projetados 183 para frente e um topete igualmente protuberante, mas em defesa do autor, é importante ressaltar que além de ter criado um protagonista simpático, como no caso de Luiz Sá, todos os seus demais personagens tinham traços exagerados. Figura 142 – Pagode, o Office-boy que adora um samba Em meados da década de 1980, as algumas editoras começaram a testar um formato diferenciado, mais bem produzido e destinado a venda em livrarias: os álbuns de luxo. A origem desse fenômeno, que pode ser associado ao advento das graphic novels americanas e à opção de deixar de investir em edições mais caras e, portanto, voltadas a um público mais adulto e de maior poder aquisitivo. As primeiras a apostar maciçamente no formato de álbuns foram a Martins Fontes e a L&PM. Enquanto a primeira concentrou-se em importar material estrangeiro, principalmente o europeu, a segunda investiu num catálogo misto, publicando também autores nacionais. Os álbuns não eram exatamente uma novidade. Já havia vários anos, a Record que publicava Tintim, e a Cedibra, com Asterix, adotavam o mesmo modelo comum na França. A própria Martins Fontes, com 184 Lucky Luke e Umpapá, também tinha experiência com esse formato. A novidade era a forma sistemática e a frequência com que os álbuns começaram a aparecer no mercado. Em 1983, a L&PM lançou o álbum As origens do Capitão Bandeira, de Paulo Caruso e Rafic Jorge Farah. Malandro típico carioca veste-se de terno branco com um chapéu panamá. Suas aventuras mesclam elementos típicos das praias cariocas, rituais e oferendas de candomblé e referências ao interior do Brasil. O personagem havia sido lançado na revista independente Balão. Figura 143 – Personagem nasceu no fanzine Balão e ganhou álbum de luxo Editoras de fora do circuito convencional dos quadrinhos também fizeram investidas nesse segmento. Uma delas, a Marco Zero, lançou em 1986, o álbum Nos tempos de Madame Satã. 185 Figura 144 – Personagem real da marginalidade carioca vira quadrinhos A obra, com roteiro de Luiz Antonio Aguiar e desenhos do veterano Julio Shimamoto, era uma ficção histórica, baseada num personagem real. Madame Satã era o nome com que era conhecido João Francisco dos Santos, malandro, negro, carioca e homossexual, que viveu na Lapa na década de 1940. Por suas atividades e modo de ser, ele convivia com a marginália da localidade e recorria a delitos de menor ou maior gravidade para se manter. Por conta de um deles, o assassinato de um desafeto durante uma briga, foi para na prisão. Na história do álbum, Satã é tirado da cadeia por Gregório Fortunato, segurança pessoal do Presidente Getúlio Vargas, para participar de uma chantagem envolvendo um diplomata, numa ação orquestrada pelo próprio Vargas. A trama, totalmente ficcional, tem alguns elementos extraídos da realidade. O mesmo personagem foi retomado em 2002 no álbum Cassino, lançado pela Opera Graphica. 186 4.11. Os desafios dos anos 1990 Após a abertura política e o fim da censura, alguns temas não explorados pelos quadrinhos passam a se tornar frequentes. Diversas histórias com personagens negros enfocam a violência urbana e a criminalidade. Em julho de 1991, foi lançada a revista Mil Perigos, da editora Dealer, mais um título que trazia histórias de autores variados. Na número 3, de setembro de 1991, saiu Bom dia, madame! De Eddy Gomez e Paulo Alves. Figura 145 – Grupo de assaltantes negros na história Bom dia madame Trata-se de uma história que narra um assalto muito violento perpetrado pela personagem Guita, uma garota com traços afrodescendentes e um grupo de três homens e um menino negros a uma casa cuja moradora é uma jovem branca. Há uma ameaça de estupro que só não se concretiza por causa do ciúme entre Guita e 187 um dos ladrões que ameaçaram estuprar a vítima, supostamente, seu namorado. Na edição seguinte, de outubro de 1991, ocorre a estreia do personagem negro Nonô Jacaré, com roteiros de Patati e desenhos de Alan Alex. Nonô é motorista de táxi e suas aventuras envolvem o caos e a violência urbana da cidade do Rio de Janeiro. Na primeira aventura Trânsito de guerra, Nonô sai em perseguição a um motorista de ônibus que havia atropelado um garoto e fugira sem prestar socorro. Hesita em entregá-lo aos populares que querem linchar o atropelador, por isso apanha da multidão enfurecida. No fim, Nonô consegue escapar da confusão e vai curar suas dores nos braços de uma linda negra enquanto o motorista morre linchado. No segundo episódio, Gringo, publicado no número 5, o herói se envolve numa trama que inclui chantagem entre pastores estrangeiros de igrejas protestantes e consegue reverter uma situação desastrosa. Figura 146 – Nonô Jacaré e o cotidiano de violência do Rio de Janeiro 188 No dia 18 fevereiro de 1991, o jornal Folha de S. Paulo lança um projeto inovador: a página semanal Quadrões, dentro da Ilustrada, caderno de variedades e cultura. Segundo Mario Cesar Carvalho, editor do caderno na época “são uma alternativa ao humor infantiloide que toma conta de cinema e TV. É uma aposta na HQ com QI” (Folha de São Paulo, 18/2/1991. Ilustrada, p. 1). Naquele dia, a nova seção do jornal passava a abrigar seis séries. Três eram estrangeiras: a clássica Krazy Kat, do norte-americano George Herriman; Life in hell, do também americano Matt Groening e Assim não, assim sim! Do belga Joost Swarte. As outras três, de autores brasileiros: a já conhecida Los três amigos, do trio Laerte, Angeli e Glauco; e as novidades Grandes personagens da nossa história, de Marcelo Tas e Luiz Stein; e Nacional & Popular, de Marcos Smirkoff, Maracy e Tony. Cada uma delas compunha um formato quadrado, variando de um ou vários painéis, de forma que as seis dividiam o espaço de uma página inteira. Esta última série, era inspirada na dupla de comediantes Oscarito e Grande Otelo, que havia feito muito sucesso nos anos 1950, ou seja, tinha como protagonistas um personagem branco e outro negro. Segundo Rogério Campos, um dos jornalistas que redigiram os textos de apresentação das novas séries “Nacional, na definição dos autores, é um almofadinha empoado e Popular é aquele que confunde tudo e fala o que vem à cabeça. As aventuras da dupla vão da violação do túmulo do samba a James Joyce” (Folha de São Paulo, 18/2/1991. Ilustrada, p. 10). Os roteiros de Maracy eram uma mistura de referências e, embora os personagens remetessem a tempos antigos, os desenhos feitos em computador, uma inovação para aquela época, seguiam uma estética bem contemporânea, com os desenhos de Smirkoff e arte-final de Tony. 189 Figura 147 – Série inspirada nos atores Grande Otelo e Oscarito Desde a série Pelé, de Mauricio de Sousa, que estreara em 1976, um personagem negro não batizava uma tira de jornal de grande circulação no Brasil. Newton Foot, mais uma vez retoma a caracterização estereotipada de negros em história avulsa publicada na revista Lúcifer nº 2, datada de março/abril de 1995. A dupla Joel Madrugada & Nega Maluca são os protagonistas de uma trama policial ambientada nos anos 1940 em tom de chanchada. O clima de nostalgia é reforçado pelo estilo de desenho que faz referência a J. Carlos e a figura de Joel Madrugada, caricatura do compositor e radialista Lamartine Babo. A Nega Maluca segue o modelo de olhos esbugalhados e lábios extremamente exagerados já utilizado por Foot em Bundha e Mazombo. 190 Figura 148 – Nega Maluca, nostalgia no tema e no traço Em julho de 1998, foi lançada a revista Cybercomix, uma tentativa de integrar o conteúdo impresso com quadrinhos na internet, daí o título com referência à cibernética. O leitor era convidado a conhecer material complementar no site da revista, numa das pioneiras manifestações do gênero no Brasil. Vários artistas com trabalhos já consagrados como Laerte e Adão Iturrusgarai, participaram da publicação. Uma das séries que estrearam na Cybercomix foi Tião Collins, um bom vivant, que seduzia lindas mulheres, mesmo as comprometidas e por causa delas se envolvia em confusões. Os autores eram Maracy e Líbero Malavoglia, este criador do personagem Viralata, junto com Paulo Garfunkel. 191 Figura 149 - Tião Collins, mulato e malandro Para manter sua série Chiclete com banana sempre atualizada e dinâmica, Angeli continuamente cria novos personagens que lhe permitem explorar novas e variadas situações. Na década de 1990, uma dessas criações era uma garota afrodescendente. A adolescente Tantra, que vive suas desventuras sempre ao lado da amiga Luke, é uma típica jovem que se sente meio deslocada em seu meio e seus amigos. Vive os complexos e inseguranças naturais dessa fase com suas espinhas no rosto e sua bunda grande. No entanto, parte do humor das situações é justamente derivada dessas dificuldades. 192 Figura 150 – Tantra, a adolescente afrodescendente Laerte, por sua vez, criou em 1997, a série Suriá, a menina do circo, feita de encomenda para a Folhinha, suplemento infantil do jornal Folha de S. Paulo. 193 Figura 151 – Suriá e seu pai, personagens afrodescendentes É uma das poucas séries a ter como protagonista uma menina negra. Suriá cresce no ambiente circense, cercada por amigos inusitados como um elefante e os palhaços. O universo lúdico e mágico de Suriá é interrompido pelas intervenções de seus pais, preocupados em educar bem a sua filha. Além de Suriá, há um outro personagem negro, o seu pai, que também se apresenta em números de acrobacia. A série ganhou dois álbuns de coletâneas publicados pela Devir/Jacaranda. 4.12. Quadrinhos no novo milênio As revistas mix, que haviam feito sucesso nos anos 1980 e se tornaram escassas na década seguinte, ainda tiveram uma única tentativa de sobrevivência em banca com a revista Canalha. Na edição de número 3, de junho/julho de 2001, foi publicada uma história curta, de autoria de Spacca, chamada provocadoramente de Casa Grande e Senzala. Ela mostra um casal de classe média alta que vive um casamento aparentemente conservador, mas que na intimidade pratica hábitos pouco normais. A esposa presenteia o marido com uma escrava, uma garota negra pronta para satisfazer todos os seus desejos, o que o deixa atônito, mas bastante entusiasmado. A última cena, num grande painel de página inteira mostra a senhora/patroa enjaulada sendo sodomizada por um negro forte e belo numa inversão de papéis em que reside o mote da narrativa. 194 Figura 152 – A dominação da patroa branca pelo negro A partir dos anos 2000, duas fortes tendências no mercado de quadrinhos começam a se desenhar: os álbuns em quadrinhos para venda em livrarias e o aumento da produção independente. As editoras resolveram apostar no formato de álbum, que não chegava a ser nenhuma novidade, mas que foi uma solução cada vez mais adotada, a ponto de as livrarias criarem novas seções, com prateleiras dedicadas aos quadrinhos, algo que há poucos anos não existia. A qualidade dos álbuns é bastante variada. Podem ser simplesmente revistas rodadas em papel de melhor qualidade com capa cartonada, até publicações de luxo, impressas em papel couchê, lombada quadrada, capa dura e até sobrecapa. O álbum Estórias Gerais, lançado em 2001 e reeditado em 2012, tem roteiro de Wellington Srbek e desenhos de Flavio Colin. De forma romanceada narra acontecimentos cotidianos no interior do Brasil, nos idos da década de 1930. No texto de introdução, o autor explica que assumidamente, se inspirou em Grande Sertões Veredas, de Guimarães Rosa e elaborou uma série de episódios curtos que vão se sucedendo e se amarrando para formar uma trama complexa e bem 195 urdida. Basicamente, os fatos acontecem no período em que grupos de bandoleiros como os jagunços e cangaceiros saem pelo sertão para saquear as cidades. Em dois dos relatos há personagens negros. Na primeira delas, um garoto negro é humilhado pelo filho do patrão que o trata como se fosse um animal. Mais tarde, ambos se encontrarão frente a frente: o filho de coronel como oficial militar e o menino negro como um dos membros do grupo de salteadores. Um outro episódio, explica como o tal negrinho se bandeou para o lado dos bandidos, após traiçoeiramente ter sido acusado de roubar um cavalo que havia ganhado no jogo de baralho de forma legítima, pelos ex-proprietários do animal. Um outro personagem negro é um “preto velho” que faz o papel de contador de histórias para um jovem jornalista que saiu a campo para escrever sobre o bando de cangaceiros. Uma narrativa muito bem construída enriquecida pelo traço personalíssimo de Colin. Figura 153 – A liberdade possível para o menino negro Em 2003, a editora Opera Graphica lançou o álbum Sangue Bom, um trabalho conjunto do roteirista Patati, com desenhos de Solano Lopez 196 e Allan Alex. A trama é centrada no cotidiano de uma comunidade carioca onde mora o garoto Genilson, um menino negro que trabalha para o tráfico. Figura 154 – Garoto negro se envolve no submundo do tráfico de drogas A história tem muitas cenas de violência e tensão e culmina na invasão da favela pela polícia. A curiosidade fica por conta do fato que Solano Lopez foi um dos mais importantes quadrinistas argentinos. Foi o ilustrador do épico Eternauta, com roteiros de Hector Oesterheld, considerada a maior história em quadrinhos da Argentina. Solano Lopez morou por alguns anos no Brasil e manteve no país um estúdio para coordenar a produção de quadrinhos exportados para a Europa. Foi nessa época que colaborou com Sangue Bom. A realidade da periferia urbana, onde o tráfico de drogas e o crime organizado fazem parte da vida das pessoas, ganhou visibilidade no noticiário e virou assunto para obras de ficção. A temática da violência urbana, centrada nas comunidades mais carentes será recorrente em 197 muitas obras do começo do século XXI tanto no cinema, consagrado pelo sucesso do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, quanto nos quadrinhos. Uma espécie de glamorização da marginalidade e do ambiente em torno dos que controlam o tráfico de drogas nessas áreas. Nessa linha, o escritor Ferréz escreveu o roteiro de Os inimigos não mandam flores, história em quadrinhos publicada em álbum pela Pixel, em 2006, com desenhos de Alexandre Mayo. Figura 155 – A violenta realidade da periferia, numa trama de vingança A história começa com um bandido, um negro corpulento chamado Pipo, sendo interrogado por policiais para confessar um crime. A partir daí, a narrativa vai sofrendo uma inversão de papéis e culmina numa cena de muita violência, que aliás, não é incomum a moradores das regiões mais afastadas do centro, habituados a trocas de tiros e acertos de conta sem que fique muito claro quem é polícia e quem é ladrão. Ferréz é um dos expoentes do que no editorial é definido por Rodrigo Fonseca como “neo-realismo literário brasileiro” (FERRÉZ, 2006), narrando com crueza a realidade dessas regiões. 198 Também versando sobre violência, mas de outra natureza e em um cenário mais urbano, Copacabana, álbum com roteiro de S. Lobo e desenhos de Odyr lançado em 2009 pela Desiderata, aborda o universo da prostituição e do tráfico de drogas. Diana, uma moça mulata, é uma garota de programa que vive os dramas e os riscos de sua atividade. É humilhada e explorada, mas em seu cotidiano de possibilidades limitadas não vê opção e involuntariamente, acaba se envolvendo com criminosos violentos. Figura 156 – Diana é a garota de programa protagonista de Copacabana Um dos trabalhos do cartunista Elmano também pode ser enquadrado na categoria de violência urbana. Os marginais, lançado em 2009 pela editora Marca de Fantasia, é uma aventura que envolve a ascensão de Bituca, um guarda-costas no submundo do crime, mas que tem a carreira abalada por uma paixão que ele não pode manifestar. Há intrigas, traições e disputas por dinheiro e o fim trágico é o ápice de uma narrativa marcada pela violência que permeia o cotidiano de quem vive em áreas sob controle do tráfico. 199 Figura 157 – Violência e tráfico de drogas Elmano teve diversas histórias publicadas em revistas de terror nas décadas de 1980 e 90, principalmente a Calafrio, da D-Arte e a Spektro, da editora Vecchi. Para esta publicação criou a série Silas verdugo, o Homem do Patuá. Em 2010, muitos anos após o encerramento da Spektro, a editora Marca de Fantasia lançou uma revista contando a origem do personagem que não é negro, mas conquistou seus poderes graças a um patuá que o pai de santo Makubo lhe dera de presente. 200 Figura 158 – Makubo invocando os poderes do Pai Zambi para proteger Silas Em meados dos anos 2000, a produção independente começa a despontar como alternativa de publicação para muitos artistas. O fim dos títulos mix de banca acabou por deixar sem opção muitos dos que queriam produzir quadrinhos. Para a maioria, a solução foi pagar os custos de impressão do próprio bolso e tentar a comercialização direta por meios variados como os correios, a venda de mão em mão ou em pontos de venda improvisados em eventos e locais de grande circulação de público-alvo. 201 Alguns trabalhos eram inspirados na concepção, estética e narrativa dos super-heróis americanos, caminho natural para quem cresceu e foi influenciado por esse tipo de leitura. Dessa forma, surgiram alguns super-heróis nacionais inteiramente calcados nas características físicas de personagens como Super-homem e Homem-aranha. Super-herói moldado em entidade do candomblé, Ogum é um dos integrantes da equipe Defensores da Pátria, na publicação de mesmo nome lançada em 2007. O grupo foi criado pelo roteirista Alex Mir, com desenho de Diógenes Esteves como uma equipe similar à Liga da Justiça, da DC Comics, ou Os Vingadores, da Marvel, mas a inspiração maior parecem ter sido os X-Men. Assim como os times das editoras americanas reúnem os principais heróis das respectivas editoras juntando o melhor das qualidades de cada componente , os Defensores agrega representantes de diversas partes do Brasil: Transmutadora é do Rio Grande do Sul; Portal, do Mato Grosso do Sul; Aruanã veio do Amazonas; Calibre é do Rio de Janeiro. Ogum é nativo da Bahia. Srbek, o sexto componente, é mineiro e uma clara homenagem ao roteirista Wellington Srbek. O grupo é liderado por Edgar Rocha, uma espécie de professor Xavier, mentor dos X-men. Figura 159 – Elementos do candomblé no super-herói Ogum 202 Outro exemplo de super-herói inspirado nessa corrente é o Escorpião de Prata. Criado por Eloyr Pacheco e Will, em 2007, é um justiceiro que combate uma perigosa quadrilha de bandidos. Toni é um estudante negro que faz um trabalho social como instrutor de capoeira para crianças carentes e que tenta reabilitar a memória do avô, que morreu acusado de ser um delinquente, mas que havia sido falsamente incriminado. Para isso, ele se transforma no Escorpião de Prata e utiliza o mesmo chicote elétrico, que pertencera ao seu avô, para combater gangues de traficantes e malfeitores. Em depoimento concedido ao autor, Pacheco explica que já havia pensado num herói negro e já tinha escolhido o nome do personagem, mas ainda não tinha se decidido pelo visual. Figura 160 – Escorpião de prata, super-herói negro brasileiro Um dia, voltando para casa de ônibus, viu entrar um rapaz negro forte, cabelos rastafári, usando coincidentemente, uma corrente com um pingente em forma de escorpião. Estava criado a super-herói. O personagem surgiu em uma aventura avulsa na revista Sideralman. 203 Depois foi publicado também nas revistas Projeto Continuum e Tempestade Cerebral. Teve duas edições especiais com título próprio publicadas em janeiro de 2011 e janeiro de 2012, com histórias desenhadas por diversos artistas. Will, o desenhista autor da concepção visual do Escorpião de Prata, também foi responsável pela arte de outro personagem negro: Zulu, criação de Walter Klattu. Figura 161– Misticismo, ritos africanos e aventura inspirada em Conan A história, com roteiro de Gian Danton, foi publicada no primeiro número da A Quadrinhos, de julho de 2010, e é uma aventura que mistura elementos da mitologia grega e cristã numa saga nos moldes de Conan. Embora essa descrição pareça um festival de coisas desconexas, a narrativa é densa e interessante. Zulu e Palios seriam os filhos do patriarca Salomão. Os irmãos são em tudo opostos e a bondade e o heroísmo de Zulu têm contrapartida na ganância e maldade de Palios. A história se desenvolve mostrando como esse antagonismo vai ganhando proporções épicas e como, no final, Zulu consegue derrotar a poderosa Medusa, que transforma todos os que a miram em estátua. 204 Ainda na área das publicações independentes, em 2008, foi lançada a série Depois da meia-noite, de Laudo Ferreira e Omar Viñole, em seis episódios divididos em três revistas em formato pequeno. Na história policial, a polícia persegue um ousado serial killer Meia-noite, numa trama tensa e cheia de reviravoltas. A dupla de policiais encarregada do caso e formada por Verônica, viciada em heroína, e o agente Negro Raposo. Figura 162 – Trama policial tem personagem negro Em 2008, Angeli irá criar seus personagens negros mais significativos, os Little Black Skrots, versão negra dos Skrotinhos que, por sua vez, foram inspirados pelos Sobrinhos do Capitão (Katzenjammer Kids), de Rudolph Dirks. Os dois gêmeos, herdeiros diretos do sarcasmo do Baixim, de Henfil, vivem aprontando e provocando as pessoas com seu modo direto e franco de dizer as coisas, sem se importar se vão ou não causar mágoas e frustrações. A mesma verve e o grau de inconveniência são mantidos na versão negra dos dois irmãos que se comprazem em sacanear suas vítimas. 205 Figura 163 – Os Little Black Skots brincam com o preconceito Várias das situações são calcadas em manifestações de racismo e no exagero dos estereótipos. Quase sempre, as situações criticam o outro lado do racismo que é o preconceito às avessas e a incoerência entre o discurso e comportamento de uma certa parcela da sociedade que, embora se diga não preconceituosa, tem atitudes que contradizem suas palavras. Numa época em que impera o politicamente correto, eles desancam com os comportamentos hipócritas de uma sociedade nitidamente preconceituosa. O álbum NoiteLuz, de 2008, marca a estreia de Marcelo D’Salete em álbum solo lançado pela Via Lettera, após participação em alguns números da revista coletiva Front. O livro é composto por segmentos de história que vão se confluindo e dando sentido umas às outras. Em todas, personagens urbanos vítimas da exploração, da violência e de uma certa desesperança. 206 Figura 164 – Histórias urbanas retratadas com crueza e desesperança Aú o capoeirista foi lançado, em 2008, em forma de álbum de luxo: capa dura plastificada, miolo em papel couchê de boa qualidade e impressão colorida também de alto padrão. Na forma, assemelhase aos melhores produtos europeus, principalmente os editados na França e na Bélgica, aliás, ainda que o autor não seja adepto da linha clara, estilo disseminado pelo sucesso de Tintin, de Hergé, o traço lembra muito o de alguns desenhistas franceses. Figura 165 – Aú, cultura afro-brasileira em estilo europeu de quadrinhos 207 Flávio Luiz concebeu Aú como um herói adolescente, sem superpoderes, mas dono de grande astúcia e agilidade, outra similaridade com Tintin. No lugar de um cachorro da raça fox terrier como Milu, o jovem baiano tem como mascote e companheiro de aventuras um sagui chamado Licuri. Diferentemente, porém, do personagem belga, Aú é exímio lutador de capoeira. Vivendo no Pelourinho, tradicional bairro central de Salvador, ele incorpora elementos da cultura afro-brasileira bastante presentes entre a população da capital baiana. Dessa forma, os ambientes pelos quais o personagem circula, sua referências estão impregnados dessas referências. Seus amigos de roda de capoeira são todos negros e os vilões são brancos. Isso não significa uma divisão racial maniqueísta, pois o capanga do líder dos bandidos é negro e a mocinha vítima dos malfeitores e por quem Aú arrisca sua própria vida para salvar uma turista loira, por sinal, francesa. Além de elementos da cultura e da arte afro-brasileira, algumas histórias em quadrinhos inspiram-se no folclore e nas narrativas ancestrais. Os relatos orais sempre deram origem a ricas narrativas que foram se perpetuando de geração em geração formando o repertório que compõe a mitologia popular. Num país de raízes eminentemente rurais, a mitificação de fenômenos ou a explicação sobrenatural de alguns acontecimentos acabou por disseminar criaturas amedrontadoras. Uma das mais conhecidas entidades do folclore nacional é a mula sem cabeça. Em álbum publicado pela Via Lettera em 2009, Alex Mir, Laudo e Omar Viñole, parceiros de vários outros trabalhos, recontam a lenda da mula que saía em galope assustando as pessoas ao soltar fogo pelas ventas. 208 Figura 166 – Narrativa popular com elementos de sobrenatural em quadrinhos Na reinterpretação dessa versão em quadrinhos, há um personagem negro, que serve como narrador da história, mas que também tem um papel importante na trama para desvendar o mistério da mula sem cabeça. Outra publicação que explora elementos do folclore brasileiro é Salomão Ventura Caçador de Lendas, uma revista independente de Giorgio Galli Neto. Nessa história o autor revisita algumas das lendas do folclore brasileiro trazendo para um cenário mais moderno personagens míticos como o Saci Pererê. 209 Figura 167 – Saci, de entidade folclórica a personagem de terror Ao contrário do simpático e amistoso Pererê de Ziraldo, o Saci com que Salomão Ventura se depara é um ser monstruoso que vem do mundo das trevas para vingar os indefesos, no caso, um menino que vivia sendo espancado pelo pai. No entanto, seus métodos são ultraviolentos e Salomão precisa intervir para reestabelecer a ordem natural das coisas. Segundo consta da contracapa do primeiro número, editado em 2010, a intenção era dedicar uma edição para cada entidade folclórica, o que, fatalmente, incluiria uma história com o Neguinho do Pastoreio, mas até a data de 31 de dezembro de 2011 o projeto não passou da publicação de estreia. Geuvar de Oliveira é autor de Mugambi, uma densa trama policial de ficção científica. O título é o nome do personagem principal, um clone enviado do futuro para salvar as pessoas de um ataque de uma 210 fera gerada por mutação. A trama se passa no estado do Tocantins da atualidade, mas Mugambi veio de um futuro distante 25.660. Nesse futuro, só existem pessoas negras pois todos os brancos foram extintos por uma doença criada por acidente em laboratório. Figura 168 – Trama de ficção científica que se passa em Tocantins Também em 2010 foi lançado o álbum Crônicas de Pindahyba, com textos e desenhos de Hilton Mercadante. A história se passa no século XVIII e narra as aventuras de três homens: o pajé Aratupá, Ubaldo e Azuma. Um índio, um branco e um negro combatendo as injustiças e a exploração de aventureiros que caçavam índios para escravizar. No álbum é contada a origem de cada um dos três. A história é recheada de referências geográficas e a episódios históricos, Azuma, inclusive, conta como fora trazido da África como escravo e de suas fugas até conhecer seus dois companheiros de aventuras. 211 Figura 169 – Azuma, um dos personagens de Crônicas de Pindahyba Na revista ADP, uma publicação independente lançada em novembro de 2010, Diego Gerlach narra os momentos cruciais de um movimento revolucionário contra o domínio do Fantasma, clássico personagem de Lee Falk, cuja estreia se deu em 1936. Na história de Gerlach, um grupo de rebeldes prende e tortura o Fantasma para tirálo do comando das forças policiais que controlam a floresta. Figura 170 – Negros contra o colonialismo personificado pelo Fantasma Os revoltosos se opõem ao colonialismo e à falta de autonomia impostos pela presença do Fantasma em seu país e a ingerência do 212 herói em assuntos que deveriam ser debatidos e resolvidos pelas próprias populações locais. Há várias décadas o papel do Fantasma já era motivo de intensos debates sobre a intervenção do homem branco nos destinos das nações africanas. Ernesto G. Laura (LAURA in CALISI, 1965) chegou a publicar um ensaio criticando o Fantasma e argumentando que ele era o símbolo do colonialismo e como tal era um péssimo exemplo de leitura para os mais jovens. O álbum Os Zeladores, de Anderson Almeida (McGuache) e Nathan Cornes é um belo trabalho, lançado em 2010, que mistura estética pop com entidades da umbanda como Zé Pilintra. Figura 171 – Uma saga que envolve elementos da umbanda O carioca André Diniz começou sua carreira nos quadrinhos como roteirista e, de uns tempos para cá, passou a atuar também como desenhista com a peculiaridade de adotar em estilo inspirado no grafismo e nos elementos da arte africana. Seu álbum de estreia como desenhista foi Chico Rei, de 2007 pela editora Franco, uma adaptação da história baseada em fatos reais sobre um escravo que após conseguir comprar a liberdade do filho e a sua própria, dedica todos os seus esforços para alforriar outros escravos de sua comunidade. 213 Figura 172 – Personagem real que foi herói ao alforriar vários escravos Esse primeiro trabalho já denota um pouco do que ele viria a desenvolver como artista e também sua dedicação a temas voltados a personagens negros. No trabalho seguinte, Quilombo Orum Aiê, lançado em 2010 pelo selo Galera, há uma transformação radical do traço e a história toda é focada na cultura afro-brasileira, a começar pelo título. Figura 173 – A fuga de escravos em busca do quilombo dos sonhos 214 A trama de passa na Bahia, no ano de 1835, na época em que ocorre uma rebelião de escravos. Um grupo deles, liderado por Vinicius, consegue fugir do cerco policial à cidade e sai pelo sertão à procura de um lugar que Vinicius, em sua infância, ouvia o pai falar como sendo um local paradisíaco e onde todos os homens eram livres. No caminho, há momentos alternados de tensão, desavenças, desconfianças e colaboração. O grupo, no entanto, embora cada vez mais reduzido, segue adiante. A trama mistura elementos de história, religião africana e referências ao islamismo, praticado pelos malês, numa narrativa bem conduzida pelo competente roteiro de Diniz cujo traço de uma estilização extrema, se mostra apropriado e compatível para a história contada. 4.13. Ricos e famosos Na categoria de celebridades negras que se transformaram em personagens de quadrinhos é preciso ressaltar que é relativamente comum pessoas famosas com grande exposição nos veículos de comunicação explorarem essa fama para além dos meios que as consagraram. É uma forma de capitalizar o potencial de sua boa imagem junto ao público, sem nenhum propósito específico quanto a valorizar alguma etnia, disseminar um tipo de discurso ou reforçar determinada identidade. Normalmente são decisões comerciais, apenas oportunidades de expansão de mercado pela oferta de mais itens que estampam a imagem de uma personalidade conhecida. Funcionam como o que em marketing é chamado de extensão de marca ou como um licensing, técnica que se utiliza do prestígio de uma pessoa ou um grupo de pessoas para vender produtos que, a princípio, não têm nada a ver com o motivo pelo qual aquele titular se tornou famoso. Dentre essas celebridades incluem-se tanto artistas do cinema e da televisão quanto esportistas, desde que estes também se tornaram sujeitos à um elevado grau de exposição midiática. Até a década de 1990, quando a venda de quadrinhos se dava predominantemente em bancas e o formato mais usual era o de revistas em formato pequeno, era bastante comum que celebridades da TV – como os apresentadores Xuxa, Angélica, Faustão e Gugu – ou esportistas, como o piloto Ayrton Senna, ganhassem versões em quadrinhos. 215 Figura 174 – Celebridades dos esportes e da TV na versão em quadrinhos Essa prática, que hoje pode ser classificado como uma modalidade de transposição ou tradução transmidiática, pois se trata de transferir o discurso de uma linguagem para uma outra, não chega a ser nenhuma novidade. Grupos de rock como The Beatles viraram personagens de quadrinhos, nos anos 1960 e até o lutador de boxe Muhammad Ali chegou a lutar com ninguém menos que o Super-homem, numa edição especial publicada em 1978 e reeditada em 2010, no Brasil. Já nos seus primórdios, os quadrinhos se aproveitavam de personalidades consagradas no cinema. Carlitos, o famoso personagem que usa um chapéu como e bengala, que estreou no filme Kid Auto Race at Venice, de 1914, ganhou sua primeira adaptação para os quadrinhos já em 1915, publicado no jornal Chicago Herald (HOLTZ, 2012). Outros comediantes do cinema mudo, como Harold Lloyd e a dupla Laurel e Hardy (O Gordo e o Magro), bastante populares nas primeiras décadas do século XX, também foram transformados em personagens de quadrinhos (CLARK; CLARK, 1991, p. 31). Outro fato comum era 216 que personagens criados para desenho animado ganhassem versão em quadrinhos e vice-versa. No primeiro caso estão Mickey Mouse, de 1928, e Betty Boop, de 1930. No segundo, Sobrinhos do Capitão (1897) e o Little Nemo (1905), este, aliás, criado por um dos pioneiros da animação o americano Winsor McCay. Diferentemente dos casos em que em que as celebridades são transformadas em personagens de quadrinhos pelo que são, há personagens vividos nas telas que ganham vida nos quadrinhos, ou seja, não é a pessoa em si, mas o personagem que ela caracteriza. Carlitos, por exemplo, é o nome do personagem criado e interpretado pelo ator inglês Charles Chaplin. Uma das fases dos quadrinhos mundiais em que essa prática foi particularmente prolífica foi na época dos heróis de faroeste das matinês dos anos 1940-50. Os mocinhos de bang-bang Gene Autry, Roy Rogers e Rocky Lane, astros de séries cinematográficas, foram adaptados para os quadrinhos com grande sucesso, aumentando ainda mais a popularidade dos personagens (HORN, 1978). Todos eles eram personagens ficcionais, mas que ganharam um rosto personificado pelos artistas que desempenhavam tais papéis. No Brasil, o fenômeno mais próximo foi a série Jerônimo, o herói do sertão. Criado por Moysés Weltman, o personagem era o astro principal de uma serialização para o rádio. Acompanhado de seu fiel assistente, o menino negro, Moleque Sacy, Jerônimo vivia as aventuras de um típico cowboy americano, transposto para um território ao qual o público brasileiro estava mais familiarizado. No entanto, o sertão de Jerônimo era semelhante ás paisagens do velho oeste norte-americano. Como verdadeiro justiceiro, Jerônimo combatia a exploração e a ganância dos fazendeiros, sempre caracterizados como vilões exploradores. Em 1957, a editora Rio Gráfica lançou o gibi de Jerônimo, com desenhos de Edmundo Rodrigues e de Flavio Colin, que durou 93 números. Moleque Sacy, por sua vez, mereceu quatro edições especiais (GIBI RARO, 2012). 217 Figura 175 – Jerônimo e seu fiel companheiro Moleque Sacy Outra série em quadrinhos igualmente ambientada no sertão brasileiro foi Juvêncio, o justiceiro. À semelhança de Jerônimo, o herói também tinha um assistente negro e começou a carreira nas ondas de rádio, a Piratininga, em 1968. As revistas com adaptação para os quadrinhos foram lançadas pela editora Prelúdio. Nos anos 50 com a popularização das chanchadas no cinema nacional, alguns artistas se tornaram muito conhecidos do público. O ator negro Grande Otelo que fazia par com Oscarito, protagonizou um grande número de produções e sua carreira se estendeu à telinha onde atuou em papéis cômicos e dramáticos. Grande Otelo foi o primeiro ator negro brasileiro a ganhar papéis de destaque no cinema. Nascido em 18 de outubro de 1918, Sebastião Bernardes de Sousa Prata ganharia o nome artístico inspirado no personagem título da famosa peça de Shakespeare. Atuou em 118 filmes entre os quais Macunaíma, Fitzcarraldo e muitos outros. Também teve uma carreira na televisão em novelas e participações em programas 218 humorísticos. No entanto, a fase em que se tornou mais conhecido foi a década de 1940, quando formou a parceria com o ator Oscarito em comédias produzidas pela companhia cinematográfica Atlântida. Em 1957, a dupla virou personagens de quadrinhos, em revista própria, dentro da coleção Seleções Juvenis da editora La Selva, com roteiros de Flavio de Souza e desenhos de Messias de Mello. Figura 176 – Dupla de sucesso no cinema repete a dose nos quadrinhos Para ampliar o efeito cômico, os traços caricaturais eram bem exagerados, mas guardavam certa semelhança com os atores retratados. As tramas eram obviamente humorísticas e tinham conotação preconceituosa, a se julgar por uma das capas, na qual, uma macaca enjaulada parece estar apaixonada ou pelo menos se afeiçoado por Grande Otelo. Em uma das aventuras, a dupla vai parar em uma ilha habitada por uma tribo de nativos negros. Todos são representados de forma estereotipada, feições simiescas e costumes selvagens. Tanto que pretendem usar os dois protagonistas para fazer um sacrifício humano. No fim, a história literalmente acaba em samba, para alívio de Oscarito e Grande Otelo. 219 Figura 177 – Negros selvagens capturam Oscarito e Grande Otelo Outro comediante negro, Mussum (Carlos Alberto Bernardes Gomes) integrante do grupo Os Trapalhões, também teve vida nos quadrinhos. Inicialmente, Mussum fazia parte dos Originais do Samba, grupo musical que teve grande sucesso nos anos 1970, com um estilo de samba semelhante aos que hoje fazem os grupos de pagode. Depois de despontar com sucessos como “Pela dona do Primeiro andar” e “Do lado direito da rua direita”, Mussum passou a atuar como convidado do grupo formado por Renato Aragão, Dedé Santana e, posteriormente, Zacarias, formando uma das trupes humorísticas de maior sucesso da TV e do cinema brasileiros. lideravam o programa de humor Os Insociáveis. Mussum se juntou à formação em 1973. Mas o sucesso nacional ocorreria após 1977, quando a Globo contratou o trio e incluiu Zacarias (JOLY; FRANCO, 2007). O programa ocupava o horário nobre nas noites de domingo da Rede Globo, logo antes do Fantástico, então o líder de audiência da 220 emissora. Com o sucesso na TV, os Trapalhões também conquistaram um grande êxito no cinema e seus filmes, lançados no ritmo de um por ano, foram durante décadas recordistas de público e até hoje constam das listas de maiores bilheterias da história do cinema brasileiro. Nos esquetes encenados na TV ou em algumas cenas de seus filmes, havia piadas que exploravam o preconceito de toda ordem. Numa época em que não vigoravam os códigos de conduta do politicamente correto, os Trapalhões faziam humor com conotação racista, preconceito com nordestinos, com orientais, com gays, gordos, velhos etc. Essa, aliás, era a fórmula mais comum utilizada pelo grupo: a piada construída pela exploração do diferente. Segundo Vergueiro e Fernandes: O humor dos Trapalhões reflete e interfere na realidade de seu tempo, nas formas de ver o mundo e nas representações dominantes. Visualmente ele é vigoroso, quase violento, além de fortemente influenciado pela performance circense. Verbalmente, as gagas são provocativas, zombam das diferenças, difamam os excluídos, ridicularizam as minorias, embora eles mesmos, os protagonistas, façam parte desses segmentos. Hoje predominam outros comportamentos e esse tipo de humor teria dificuldade para ser aceito. (VERGUEIRO; FERNANDES, 2009). Em 1976, quando os Trapalhões iniciavam a ascensão para o ponto mais alto de sua carreira, a editora Bloch lançou um gibi com os personagens. Como é comum ocorrer nas produções de caráter mais comercial, não havia um autor único para o gibi. Normalmente, a editora contratava um estúdio e recorria ao artista mais disponível ou cujo traço fosse mais adequado ao tema a ser explorado. Segundo Joly e Franco (2005, p. 69) esse estúdio era o de Ely Barbosa que contava com artistas como Carlos Cárcamo, Eduardo Vetillo e Waldir Odorisso em sua equipe. Ainda segundo essa fonte, em seu auge, no começo da década de 1980, as revistas tinham uma tiragem média de 3,1 milhões de exemplares (JOLY; FRANCO, 2005, p. 71). Um dado curioso é que nas primeiras edições, as figuras dos quatro atores, no traço do desenhista Mario Lima, buscavam um nível de personalização até elevado. Embora fossem caricaturas, as feições dos personagens guardavam razoável semelhança com os artistas retratados. 221 Figura 178 – Na primeira fase, os Trapalhões eram caricaturizados nos gibis Já numa outra fase de produção, os ilustradores que assumiram a série optaram por uma estilização máxima, simplificando os traços e contornos. Dessa forma, Mussum passou a ser representado como nas figuras de negro predominantes no começo do século XX: uma elipse preta, dois círculos brancos no lugar dos olhos e lábios exageradamente largos. Figura 179 – Traços esquematizados e estereotipados, numa segunda etapa Essa simplificação representava um retrocesso na maneira de se desenhar negros e descaracterizava totalmente as versões anteriores dos personagens. Não há indicação de crédito individual dos artistas 222 na publicação, mas consta o logotipo do Estúdio CRC, de Carlos Chagas, Roberto Azevedo e Claudio Almeida, o mesmo que chegou a produzir versões satíricas de novelas para a revista Klik, da EBAL, uma cópia da revista MAD, da editora Vecchi, que naquela época fazia muito sucesso. Em 1988, a editora Abril lançou uma nova versão dos Trapalhões com os personagens em estilo infantil. Figura 180 – Versão infantil do grupo As histórias eram concebidas pelo Estúdio de Cesar Sandoval, também autor da Turma do Arrepio, e chegou a ter vários títulos como Trapalhões, Almanaque dos Trapalhões e Aventuras dos Trapalhões, além de várias edições especiais. Na mesma categoria de celebridades, há também as personalidades ligadas ao esporte, notadamente o futebol, que se transformaram em personagens de quadrinhos. Até os anos 1960, o meio de difusão dos jogos era, por excelência, o rádio. A disseminação dos rádios portáteis transistorizados, produzidos e exportados em grande escala pelo Japão, permitiu a formação de um imenso público, em todos os cantos do país. Esse veículo consagrou um estilo de narrar e habituou os torcedores a acompanhar e a vibrar pelos seus times com os ouvidos encostados nos radinhos de pilha. Com o início das transmissões de 223 jogos ao vivo pela TV, a partir da década de 1970, os jogadores de maior destaque passaram a ganhar uma grande exposição de sua imagem. O precursor dessa era foi Pelé, considerado o maior jogador de futebol de todos os tempos e eleito o atleta do século XX, ele também se beneficiou de uma época em que o esporte de transformou em um dos mais impressionantes fenômenos de massa e a Copa de Mundo de futebol é considerado o evento global de maior público dedicado a um único esporte. A última edição, realizada em 2010 na África do Sul, teve uma audiência calculada em 3,2 bilhões de espectadores. Na época em que Pelé esteve em atividade, esses números não eram tão grandiosos, mas já prenunciavam o potencial que essa modalidade tinha como grande mobilizador de multidões e, obviamente, de verbas. Pelé ganhou uma versão em quadrinhos quando já havia deixado de jogar por times brasileiros. Em 1975, contratado pelo time americano New York Cosmos, Pelé, entre outros craques internacionais como Beckenbauer e Johan Cruyff, foi um dos responsáveis por introduzir o futebol, que os americanos chamam de soccer, nos Estados Unidos. Figura consagrada e cultuada internacionalmente, Pelé ganhou ainda mais notoriedade durante essa fase profissional. A série Pelé, criada pelos estúdios de Mauricio de Sousa, já então, o maior produtor de quadrinhos do Brasil, estreou em 1976, como tiras diárias. Em São Paulo, foi veiculada pelo jornal Folha de S. Paulo. Figura 181 – Pelé em sua versão para os quadrinhos Em agosto do ano seguinte, o personagem ganhou revista própria pela editora Abril, na época a maior editora de quadrinhos do país e que já publicava as outras duas revistas de Mauricio: Mônica e Cebolinha. 224 Figura 182 – Edição comemorativa da revista Pelezinho Embora o próprio Pelé preferisse uma versão mostrando o jogador já adulto, o personagem que aparece nos quadrinhos não é o atleta profissional e famoso, mas o menino do interior, que, ainda que dono de uma habilidade incomum com a bola, vive uma infância cercada de uma ingenuidade e uma pureza idealizadas. O campinho é de terra e seus amigos vivem as dificuldades de uma infância pobre, porém, digna. Na vida real, Pelé sempre se manteve numa posição de neutralidade e nunca manifestou abertamente seu engajamento em relação à causa negra. Nos quadrinhos, é interessante notar a presença de outros personagens negros: os seus amiguinhos Bonga e Canabrava. Nesse universo idealizado, não há menção a episódios de preconceito ou discriminação, mas a caracterização dos personagens segue o estereótipo comum das caricaturas étnicas. Samira, por exemplo, uma das meninas da turma do Pelezinho, é descendente de sírios ou libaneses e vive preparando seus quibes, que são um prato típico da comunidade árabe, e na representação gráfica da menina 225 o nariz é exagerado. O mesmo ocorre com a oriental Neusinha, de ancestrais japoneses e que tem os olhos bem puxadinhos. Os negros da série são invariavelmente representados com lábios avantajados e, em pelo menos uma das tiras, esse atributo é motivo de humor. O que é mais importante nesses personagens é que eles fazem referência a companheiros de infância de Pelé. Na série, a propósito, aparece Dondinho, pai de Pelé, logo nas primeiras histórias. Figura 183 – Seu Dondinho, o pai de Pelé, também virou personagem Antecipando em quase 20 anos a ideia de “envelhecer” seus personagens para torná-los adolescentes, em vez de crianças na faixa dos 6 ou 7 anos, como ocorreu com a turma da Mônica em 2008, Mauricio de Sousa criou uma nova versão do Pelezinho, para dar um ritmo mais moderno às aventuras. No entanto, essa nova fase, anunciada em 1990, quando Mauricio já havia se transferido para a editora Globo, não chegou a ser produzida, pois não houve renovação de contrato com Pelé (Mundo dos Super-heróis, Ed. 27, p. 33). Outro craque do futebol também transformado em quadrinhos pelo Estúdio Mauricio de Sousa foi Ronaldinho Gaúcho. Sua revista estreou em 2006, época em que o atleta estava no auge de sua carreira futebolística, logo após ter sido eleito duas vezes seguidas como Melhor Jogador do Mundo, em 2004 e 2005, em premiação promovida pela FIFA. De maneira semelhante às histórias de Pelezinho, as de Ronaldinho são ambientadas na infância do jogador, com destaque para seus familiares: a irmã Deise, seus pais e seu irmão, além dos amiguinhos. As aventuras muitas vezes saem do âmbito do futebol, mas quase sempre exploram as habilidades do garoto com a bola nos pés. 226 Figura 184 – Ronaldinho Gaúcho e duas outras crianças negras Uma história de Ronaldinho Gaúcho publicada no número 24, de dezembro de 2008, chegou a criar uma certa polêmica por causa da personagem Deise, que, ao se ver no espelho com o cabelo desarrumado, se comparava a um mico leão. Alguns leitores viram um componente de racismo nesse episódio por tratar com preconceito um tipo de cabelo mais comum em pessoas afrodescendentes. Involuntariamente, Mauricio tocou numa questão particularmente delicada que é a da autoimagem e da valorização de um padrão de beleza em detrimento de outro, aspectos que devem ser trabalhados na educação das crianças na construção de sua própria identidade. Os exemplos de Grande Otelo, Pelé e Ronaldinho reforçam a percepção de que, na formação da sociedade brasileira, os negros foram relegados a determinados papéis em algumas áreas, dentro das quais lhes era permitido obter algum destaque (SCHWARCZ, 2008). Uma dessas áreas é o entretenimento, principalmente, o ligado ao aspecto cômico, o humor físico, de pantomimas, gestos e expressões caricaturais e menos intelectualizado. Outra área são os esportes, onde é valorizado o vigor físico, o corpo e a virilidade, atributos normalmente 227 associados a atividades que demandam menos capacidade intelectual. Nessa categoria de celebridades transformadas em personagens em quadrinhos há um caso que merece um destaque: a representação de Milton Nascimento no álbum Histórias do Clube da Esquina, de Laudo Ferreira e Omar Viñole está mais para um tributo em homenagem a uma notável geração de músicos do que um produto criado para capitalizar com base no licenciamento. O álbum, lançado em 2011, é baseado no livro Os sonhos não envelhecem, escrito por Marcio Borges, um dos “sócios” do Clube da Esquina. A história em quadrinhos traz a trajetória de um grupo de amigos que tendo a música por afinidade, acabou fazendo sucesso nacional e internacionalmente: além de Milton, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes, Fernando Brant. A narrativa relata como eles se conheceram, o que faziam antes de se tornarem famosos e alguns episódios pitorescos vividos pelos personagens. A história por trás de cada música e o que serviu de inspiração para compor. Momentos-chave na história da MPB estão revelados e, numa aparição rápida, também são retratados dois outros importantes artistas negros com destaque na história da música brasileira: a cantora Clementina de Jesus e o percussionista Naná Vasconcelos. Os personagens do Clube da Esquina são retratados de forma caricatural, apesar de guardar muita semelhança com as pessoas reais que lhes serviram de modelo. Os cenários, a arquitetura e os elementos de cena mantém um bom grau de realismo, denotando um apuro na pesquisa para a elaboração da história. Figura 185 – Homenagem a músicos negros consagrados 228 Na mesma categoria de celebridade musical, a professora e pesquisadora Angela Nenzy iniciou um projeto de valorização dos sambistas negros com a publicação de histórias em quadrinhos contando a biografia de alguns compositores cariocas. A primeira das edições foi lançada em 1997 e era dedicada a seu marido, o compositor Wilson Moreira. A história, com roteiros da própria Angela e desenhos do cartunista negro Ykenga chegou a ser produzida e distribuída, mas os planos não foram adiante e a intenção de editar biografias de outros sambistas como Nei Lopes, não se concretizaram. Figura 186 – Biografia do sambista Wison Moreira 4.14. A valorização dos negros e afrodescendentes nos quadrinhos brasileiros Uma das formas de valorizar os personagens negros é ressaltar ou resgatar a sua participação em eventos históricos do Brasil. O heroísmo, a coragem e a liderança, características normalmente exaltadas nesse tipo de representação, são valores com os quais os leitores admiram e com os quais se identificam. Segundo Moura (1990) a historiografia brasileira continua e sistematicamente omitiu o papel dos negros em episódios determinantes que ajudaram a formar o país como nação independente. Um dos heróis afrodescendentes de maior destaque na história brasileira é Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares. 229 No decorrer da história do Brasil, a figura de Zumbi passou por várias interpretações, ao sabor dos interesses políticos vigentes ou do símbolo ao qual mais convinha associar o seu nome. A história de Zumbi teve várias versões em quadrinhos, A primeira delas, publicada em 1955, teve roteiro do conhecido sociólogo Clóvis Moura e desenhos de Alvaro de Moya. Na história, a saga de Zumbi é narrada em tom épico e, apesar de abordar desde a origem do Quilombo dos Palmares, concentra-se principalmente no período em que Zumbi assume o controle da comunidade, no lugar de Ganga Zumba. Moya teve a preocupação de retratar seu personagem de forma heroica e todos os personagens negros são representados como sendo fortes e corajosos. Os brancos, ao contrário, são ardilosos e desumanos. No texto de introdução, Clóvis Moura explica quais foram suas fontes para elaboração do roteiro e antecipa, de forma resumida, o conteúdo da trama. Figura 187 – Zumbi na versão de Clóvis Moura e Alvaro de Moya Essa história foi reeditada em 1995, pela Prefeitura de Betim, cidade da Grande Belo Horizonte, em Minas Gerais, por ocasião dos 300 anos de Zumbi e para essa edição, Moura escreveu um texto adicional em que ressalta que utilizava a denominação República de Palmares, 230 em vez de Quilombo, para caracterizar o caráter de autonomia e organização política que a comunidade havia alcançado antes de sua destruição. Uma segunda versão de Zumbi em quadrinhos, de autoria de Jô Oliveira, saiu em 1977, na edição especial Versus Quadrinhos, um almanaque que reuniu sete histórias de diferentes artistas. Figura 188 – Zumbi no estilo xilográfico de Jô Oliveira Oliveira já havia empreendido carreira como ilustrador na Europa. Com formação em artes gráfica na Hungria, ele desenvolveu um estilo bastante particular, acrescentando efeitos que simulavam a xilogravura usada na literatura de cordel em seus desenhos. Outra de suas peculiaridades é a de priorizar temas regionais com bases históricas, ligados ao folclore e à cultura popular, muito pertinentes a seu estilo artístico. No Zumbi de Oliveira o enredo é basicamente o mesmo da versão de Moura e Moya, mas de forma mais sucinta. Em 1984, o escritor Krisnas (Antonio Carlos Gomes) e o ilustrador Togo (Gerson Theodoro) produziram uma nova versão de Zumbi para a editora Roswitha Kempf. 231 Figura 189 – Zumbi na versão de Krisnas A história começa contando o início do tráfico negreiro sob as bênçãos do papa Gregório IV e do monopólio outorgado a Portugal para esse comércio. Depois de discorrer sobre os diferentes povos que habitavam a África, há um relato sobre a escravidão no Brasil e só então a narrativa passa a falar de Palmares e de Zumbi. Nessa revista já é apresentada a versão de que Zumbi tinha sido adotado pelo padre Antonio Melo e batizado de Francisco. Após ter recebido educação e instrução até os 15 anos, Francisco resolve fugir para juntar-se ao seu povo e disposto a liderar o quilombo. Apesar de desenhos pouco elaborados, a narrativa é bem eficiente e flui de forma adequada. O mesmo Krisnas é autor do roteiro de A saga de Palmares: Zumbi, desenhado por Allan Alex, uma nova interpretação da história de Zumbi, publicada em 2003 pela editora Marques Saraiva. 232 Figura 190 – O Zumbi tem visual que lembra Conan, o bárbaro O álbum é uma edição bem executada, impressa em cores em papel de qualidade e capa cartonada e plastificada. Dos títulos dedicados a Zumbi é, sem dúvida, o mais vistoso e bem produzido. O roteiro é uma espécie de versão aprimorada do álbum anterior, mas com mudanças significativas principalmente no aspecto visual. Zumbi é retratado quase como um super-herói e lembra o personagem Conan pela anatomia de músculos hiperdesenvolvidos. A edição conta com dois textos muito interessantes. Um de introdução de autoria de Joel Rufino dos Santos, historiador com trabalhos importantes sobre a imagem do negro nos meios de comunicação. O outro, no fim do livro, escrito pelo compositor Nei Lopes. Existem, ainda, duas versões de Zumbi em quadrinhos destinadas ao público infantil, ambas lançadas em 2009. Palmares a luta pela liberdade, de Eduardo Vetillo, faz parte de uma coleção de adaptações feitas pelo autor para a editora Cortez. 233 Figura 191 – O Zumbo de Vetillo tem finalidades didáticas Na sua versão, o relato é feito sob o ponto de vista de Moah, jovem negro capturado para ser vendido no Brasil como escravo, mas que junto com um companheiro, Demba, consegue fugir do navio antes do desembarque em Recife. Os dois alcançam a costa e depois de longa caminhada, são acolhidos em Palmares, às vésperas do ataque final que destruiria o quilombo. Muitos morrem, outros conseguem fugir, inclusive Moah, que se esconde na mata e a quem teria sido incumbida a tarefa de contar a história de Palmares às futuras gerações. Já o álbum Resistência e coragem, a história de Zumbi é uma criação de Antonio Cedraz, artista baiano que tem um trabalho interessante de quadrinhos para crianças com a Turma do Xaxado. 234 Figura 192 – Versão infantil de Zumbi inclui elementos ficcionais e folclóricos A trama é bem simples e mistura texto ilustrado com história em quadrinhos e é nitidamente concebido como material com finalidades paradidáticas. Em maio de 2002, por iniciativa de um vereador de Campinas, foi lançada uma revista especial sobre Zumbi, com ilustrações de Bira Dantas. O gibi, com nome de Resistência, é um panfleto com finalidades políticas de conscientizar a população para a questão do preconceito racial e sua publicação teve o apoio de diversos sindicatos, órgãos públicos e organizações sociais. Figura 193 – Gibi sobre Zumbi distribuído com finalidades políticas 235 Invariavelmente, as histórias em quadrinhos de Zumbi terminam com uma mensagem de que embora ele tenha morrido, seu ideal de liberdade permaneceu vivo. A imolação, a morte como ritual acaba por transformar o guerreiro em mártir para os afro-brasileiros, que morreu, mas não se entregou ao inimigo. Figura 194 – Negros, índios e portugueses contra o inimigo comum Foi uma das raras vezes em que portugueses, indígenas e afrodescendentes lutaram lado a lado, pois, em contraste, a maioria dos movimentos a que os negros estiveram ligados foram de libertação ou rebeliões contra o Governo de Portugal. Algumas dessas versões foram feitas por Mauricio Pestana, cartunista reconhecido por seu engajamento com os movimentos negros cuja obra é pautada pelo combate ao preconceito e a igualdade de direitos, é autor de uma coleção de títulos em quadrinhos dedicados às revoltas e rebeliões que contaram com a participação ativa de afro-brasileiros. Em parceria com a Escola Olodum, instituição mantida pelo Bloco Afro Olodum, Pestana fez a quadrinização de três acontecimentos nos quais os negros foram protagonistas. O primeiro desses trabalhos foi Revolta dos Búzios, de 2006, também conhecida como Revolta dos Alfaiates, foi um dos mais importantes movimentos ocorridos contra a Coroa Portuguesa. 236 Figura 195 – Os principais envolvidos na Revolta dos Alfaiates eram negros Em 1798, um grupo de jovens negros liderou um movimento pela libertação dos escravos e a igualdade de direitos. Entre os revoltosos se destacaram João de Deus do Nascimento, Manoel Faustino dos Santos, Luiz Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, Ana Romana e Maria do Nascimento. Por contar com apoio dos soldados e dos alfaiates, ocupações normalmente exercidas por negros, o levante também ficou conhecido como Revolta dos Alfaiates. A rebelião foi sufocada, os principais envolvidos enforcados e seus nomes amaldiçoados até a terceira geração. Uma segunda publicação de Pestana, lançada em 2009, teve como tema a Revolta do Malês, ocorrida também na Bahia, no ano de 1835. O nome se refere aos escravos africanos que professavam o islamismo. Eram pessoas letradas que tinham por hábito a leitura do Corão e 237 tinham uma maior capacidade de articulação entre os seus adeptos. Figura 196 – Uma revolta liderada por escravos muçulmanos Mesmo entre os próprios afrodescendentes no Brasil eles eram discriminados e, ainda assim conseguiram se organizar para formar um grupo de 600 pessoas para libertar outros negros muçulmanos, entre os quais Alufá e Ahuma. Antes, porém, que o contingente todo saísse às ruas, eles foram reprimidos pelas forças policiais resultando em cerca de 70 negros e 10 soldados mortos. Foi a mais violenta repressão contra os escravos ocorrida até então. A Revolta da Chibata, de 2010, foi o terceiro álbum que Pestana produziu para o Olodum. Embora não se enquadre na mesma categoria de rebeliões que buscavam a libertação de negros cativos, o motim da tripulação dos principais navios de guerra brasileiros, liderada por João Cândido teve origem em uma prática herdada dos tempos da escravidão: as punições dos marinheiros com chibatadas. 238 Figura 197 – A versão de Pestana para a Revolta da Chibata Na época do acontecimento, 1910, a marujada era formada majoritariamente por negros e mulatos enquanto os oficiais costumavam ser brancos, das famílias mais tradicionais. Embora a intenção não tenha sido derrubar o governo ou causar uma inversão nas tropas, a ameaça que representavam os couraçados na baía de Guanabara com os canhões apontados para a capital do país, foi encarada como um ato grave de insubordinação. Apesar da anistia concedida, os amotinados foram traídos e presos por outra acusação. Nesse trabalho, Pestana se valeu de referências fotográficas baseadas em material abundante da época, pois na ocasião tudo foi bem noticiado pela imprensa. Outra história criada por Pestana, mas sem vínculo com o Olodum, foi o álbum Revolução Constitucionalista de 1932 em quadrinhos, de 2009. A narrativa mostra mais um episódio histórico em que os negros tiveram um importante papel, com a participação de cerca de 11 mil afrodescendentes entre os soldados, havendo até um batalhão só de negros a Legião Negra. 239 Figura 198 - A participação dos negros na Revolução de 1932 Nos quatro álbuns, aparecem dois personagens negros. Uma menina e um garoto com cabelo rastafári e touca em estilo jamaicano. Ambos atuam como narradores das histórias como se fossem os mestres de cerimônia apresentando os fatos. A presença desses personagens reforça o caráter didático do material. Há que se notar que com exceção da revolta da Chibata que aconteceu no Rio de Janeiro, as demais histórias foram editadas e publicadas por instituições dos estados onde ocorreram os movimentos e tiveram o apoio de entidades locais. No caso de Revolta dos Búzios e Revolta do Malês, ambas ocorridas na Bahia, a edição foi de responsabilidade da Escola Olodum, vinculada à Associação Carnavalesca Bloco Afro Olodum, sediada em Salvador. O álbum da Revolução de 1932, acontecimento de relevância restrita aos paulistas, foi publicado pela Imprensa Oficial do estado de São Paulo. De modo semelhante, o álbum Balaiada, a guerra do Maranhão, também de 2009, foi realizado com apoio do governo desse estado. 240 Figura 199 – Rituais de candomblé retratados na história sobre a Balaiada Com roteiro de Iramir Araujo e arte de Ronilson Freire e Beto Nicácio, conta a história da revolta de 1838. O movimento era liderado pelo vaqueiro Raimundo Gomes, o mulato Balaio e o negro Cosme. Este, segundo o relato do livro, seria dotado de poderes sobrenaturais. A história conta desde os preparativos da conspiração, as negociações e artimanhas para conter os revoltosos, o confronto entre as partes em luta, até a repressão final, liderada pelo futuro Duque de Caxias. Além do álbum de Pestana, a Revolta da Chibata inspirou a obra Chibata!, com roteiro de Olinto Gadelha e arte de Hemeterio, lançada em 2008 pela editora Conrad. A dupla se baseou, principalmente, no livro A revolta da chibata, de Edmar Morel, jornalista responsável por resgatar a memória de João Cândido, líder do motim, ao descobrir que ele estava ainda estava vivo, mas passava por dificuldades. Morel, inclusive, é um dos personagens do álbum que traz um relato mais completo e minucioso, com partes romanceadas, em contraste com a concisão e objetividade do trabalho de Pestana. Trata-se de um trabalho muito bem elaborado, com um tratamento gráfico que valoriza a os desenhos detalhados de Hemeterio. 241 Figura 200 – A liderança do negro João Cândido na Revolta da Chibata Também no aspecto de valorização histórica, merece menção o pequeno livro História da Bahia em quadrinhos, de Flavio Caetano da Silva e Rogério Rios. Publicado em 1999, narra as transformações históricas vividas por esse estado, ressaltando elementos da cultura negra como a culinária, a capoeira e os rituais do candomblé, tão presentes entre a população baiana. Figura 201 – Valorização da culltura negra na história da Bahia 242 4.14. O negro na sociedade brasileira de acordo com os quadrinhos Em 1981, a editora EBAL, lançou a versão em quadrinhos de Casa Grande & Senzala, a obra mais conhecida do sociólogo Gilberto Freyre. A adaptação do texto coube a Estêvão Pinto e os desenhos ficaram a cargo de Ivan Wasth Rodrigues. O livro de Freyre é um clássico traduzido para diversos idiomas com edições publicadas na Argentina, Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália, Venezuela, Polônia, Hungria e Portugal e seu grande mérito é ter formulado uma história da formação da sociedade brasileira com a contribuição das três raças (brancos, negros e índios) em termos de costumes, crendices, hábitos, alimentos e linguagem. Para Freyre, houve uma integração quase que natural, sem atritos ou grandes conflitos entre as diferentes culturas e populações. A adaptação para os quadrinhos, feita de forma muito elegante e bem elaborada, procurou sintetizar o conteúdo do livro, mas mantendo a fidelidade nos seus propósitos e conclusões. Figura 202 – A função do negro na sociedade, segundo Gilberto Freyre 243 Essa visão romântica e idealizada, defendida por Freyre que perdurou durante alguns anos, foi posteriormente contestada por outros pesquisadores que detectaram em Casa Grande & Senzala um viés conservador e omisso em relação aos graves conflitos que acabaram deixando negros e índios à margem do processo de desenvolvimento do país, privilegiando os brancos. Essa nova visão tem entre seus representantes mais notórios o sociólogo Florestan Fernandes, autor de A integração do negro na sociedade de classes. Alguns trabalhos em quadrinhos procuram ressaltar o papel do negro na sociedade e sua trajetória, com o intuito de conscientizar os leitores para as injustiças sofridas pelos afrodescendentes. Em 1982, a editora Mazza iniciou a publicação da série Esta história eu não conhecia, revistas em quadrinhos que exploravam temas como a discriminação racial e a situação da mulher, entre outros, para chamar a atenção para esses problemas. Os roteiros eram elaborados por vários autores e os desenhos ficavam a cargo de Benedito Ramos Machado. Figura 203 – Quadrinhos para a conscientização 244 Mauricio Pestana, autor dos álbuns sobre as revoltas, tem um histórico de engajamento na causa negra e lançou vários álbuns de cartuns e charges denunciando o preconceito e a desigualdade de oportunidades entre negros e brancos. Seu álbum Violência histórica, lançado em 2002 pela Opera Graphica, mostra como os negros vem sofrendo com a violência, desde a embarcação forçada nos navios negreiros há 400 anos, até as abordagens policiais na atualidade. Figura 204 – Vítimas dos maus tratos desde a escravidão Um dos sinais que denotam historicamente a desvalorização dos negros na sociedade é o quase total desconhecimento sobre a cultura afro-brasileira, devido à ausência de conteúdos relativos a esse campo no ensino oficial. Com o intuito de diminuir essa lacuna, o Governo Federal editou a lei 10.639, de 2003, que determina a obrigatoriedade do ensino de cultura africana e afro-brasileira nas escolas de educação fundamental. A lei foi atualizada em 2008 pela Lei 11.645, com ampliação de conteúdo de forma a contemplar também o ensino de 245 cultura indígena. Um dos problemas apontados por críticos dessas leis é que não estabelece o prazo e as condições em que esse conteúdo deve ser ministrado. A lei não deixa claro se deve ser criada uma nova disciplina exclusiva a esses tópicos ou se devem ser incorporados a diferentes matérias. Dessa forma, as aulas de História deveriam incluir referências à África; as de língua portuguesa, a influência dos idiomas africanos na composição do vocabulário brasileiro e assim por diante. As leis também não preveem mecanismos que garantam a sua efetiva aplicação nem sanções em caso de seu descumprimento. Algumas entidades têm se mobilizado para orientar os docentes quanto a essas questões. O Núcleo de Apoio à Pesquisa em Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da Universidade de São Paulo (NEINB), publicou uma coleção de 10 livros que ajudam o professor a lidar com questões de diferenças culturais e étnicas em sala de aula. São títulos dedicados a orientar os docentes a lidar com situações de preconceito ou de segregação entre as crianças e infundir noções de respeito às diferenças. A Coordenadoria dos Assuntos da População Negra (CONE), vinculada à Secretaria Municipal de Participação e Parceria da Prefeitura de São Paulo também promoveu fóruns sobre o ensino de cultura africana nos cursos superiores, com o objetivo de debater o assunto com os professores. Esses encontros geraram publicações que trazem informações sobre experiências bem sucedidas de ensino de cultura africana e sugestões de medidas que podem ser adotadas. Há uma carência de livros sobre a história africana e da influência dos negros na sociedade brasileira voltados à utilização no ensino fundamental. Algumas editoras já se mobilizaram e começaram a produzir material de apoio ao ensino da cultura afro-brasileira para crianças e jovens, alguns deles em quadrinhos. Um trabalho assumidamente criado para elevar a auto-estima das crianças afrodescendentes foi a revista Luana e sua turma, lançada em 2000, pela editora Toque de Midas. A personagem principal é Luana, uma menina negra de oito anos, que joga capoeira e tem um berimbau com o poder de transportá-la no tempo e no espaço. Graças a esse dom mágico, Luana consegue viajar pela história e se encontrar com Zumbi. Sua turminha é composta por 246 crianças de várias etnias, visando promover a diversidade racia. As histórias seguem o padrão visual e de roteiros da Turma da Mônica e congêneres, mas incorpora elementos da cultura negra como a umbanda e a capoeira. A série foi criada por Aroldo Macedo, fundador da revista Raça, voltada para temas de interesse do público negro. Os roteiros eram do jornalista Oswaldo Faustino, Dejair da Mata e Júlio Emílio Braz. A concepção visual dos personagens foi de Artur Garcia, mas diversos ilustradores desenharam as histórias, entre os quais: Alexandre Silva, Domingos de Souza, Fernando Cirino, Sérgio Morettini e Miguel Mendes Reis. Até 2008, haviam sido editados 18 números da revista que seguia um ciclo de lançamentos de seis em seis números. Assim, entre 2000 e 2001 foram lançados as edições de 1 a 6, em 2005, de 7 a 12 e, em em 2008, de 13 a 18. As revistas chegaram a ser adquiridas pelas Secretarias de Educação de Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Niterói e distribuídas para as escolas. Figura 205 - Luana, criada para elevar a autoestima das crianças afrodescendentes Arte marcial afro-brasileira, a capoeira é o tema do livro em quadrinhos Histórias de tio Alípio e Kauê: O beabá do berimbau, de Marcio 247 Folha. Baseado em extensa pesquisa, o autor construiu uma narrativa que envolve referências a personagens reais, lendas africanas e relatos ficcionais tendo como fio condutor a capoeira que, segundo a história teve papel importante como símbolo de resistência e de preservação da cultura africana. O livro é uma edição independente que contou com o apoio do Programa VAI, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo e em sua parte final contém um texto como material de apoio à leitura e que faz menção à Lei 10.639 ao explicar como O beabá do berimbau pode servir de ferramenta de ensino de cultura afro-brasileira. Figura 206 – O papel da capoeira na história da resistência negra à opressão Também no escopo da lei 10.639, foi lançado em 2010 o álbum AfroHQ. Idealizado por Amaro Braga, o livro faz uma viagem pela história da contribuição negra para a cultura brasileira. Desde as crendices africanas, alimentos, instrumentos e ritmos musicais até a participação em revoltas pela independência. A concepção original e o roteiro de AfroHQ também são de Braga e os desenhos e colorização ficaram a cargo de Danielle Jaimes e Roberta Cirne. O próprio autor, no texto de introdução, relata que a Lei 10.639 foi 248 a inspiração para a produção do álbum e que a ideia era “ narra os principais fatos que envolvem a história da presença africana no Brasil e suas contribuições para nossa formação” (BRAGA, 2010, p. 7). Figura 207 – A cultura afro-brasileira valorizada em seus diferentes aspectos 4.15. O Annus mirabilis de 2011 O ano de 2011, escolhido para delimitar o escopo do presente estudo, de fato acabou se mostrando prolífico na produção de quadrinhos ficcionais com temáticas voltadas à cultura negra ou com personagens negros como protagonistas. Um dado curioso é que embora a quase totalidade seja constituída de álbuns para comercialização em livrarias, houve até um caso de série para jornal, fato que há tempos não ocorria. Um primeiro destaque foi Graffiti, um conto urbano de autoria de Benson Chin, Breno Ferreira, Thiago A. M. S. e Leandro Luigi Del Manto. 249 Figura 208 - Gangues urbanas disputam espaço em Graffiti O álbum enfoca o universo dos grafiteiros e dos catadores de sucata. Em 2011 também foi lançado o álbum do personagem Rap Dez, criado em 2006 por Márcio Baraldi para a Viração, uma revista voltada aos jovens. Figura 209 - O rapper Rap Dez trata os assuntos sociais para os jovens Diferentemente de outras publicações destinadas a esse público, que costumam abordar ídolos pop, moda e comportamento, a viração tem 250 uma linha editorial focada em questões sociais e políticas. A revista tem o propósito de informar os adolescentes sobre fatos e questões de relevância para a realidade atual incluindo educação, política e questões de gênero e etnia. Rap Dez, como o nome sugere, é um rapper, por esse motivo, as falas do personagem são sempre rimadas, em versos que seguem o ritmo do rap. Suas histórias ocupam uma página inteira em cada uma das edições da Viração e todas falam de temas concernentes à realidade social das periferias. Muitas delas são feitas a partir da colaboração dos leitores, o que torna a série uma experiência original. Em Rap Dez, o estilo de traço mais rápido, sem maiores requintes visuais, combina com o despojamento da revista. Marcelo Fontana, André Leal, Antônio Cedraz e Neara Nascimento são os autores de São Jorge da Mata Escura, que saiu por uma editora independente. Figura 210 - São Jorge da Mata Escura, trama que envolve sincretismo religioso A trama mescla elementos do sincretismo religioso muito presente entre os afro-brasileiros, com especial importância para os baianos. O São Jorge cultuado pelos adeptos do candomblé é, na verdade, 251 Oxóssi. Três crianças, dois meninos e uma menina, crescem juntos, mas cada um acaba seguindo seu caminho. Crescidos, eles mantém o relacionamento, mas não é exatamente uma amizade, pois, Jarcisley desde pequeno sentia inveja de Jorge, por quem Bárbara sempre demonstrou mais carinho e atenção. A partir desse núcleo, a história mostra como o convívio com a criminalidade se torna uma opção natural para alguns. Enquanto Jarcisley se bandeou definitivamente para o lado dos bandidos e traficantes, Jorge é o bom rapaz, Bárbara fica indecisa entre o conforto e o status propiciado pelo contato com os marginais e uma certa queda por Jorge. As páginas iniciais da história, que retratam a infância dos personagens é desenhada por Antônio Cedraz, autor da Turma do Xaxado, série infantil bastante conhecida na Bahia e que tem boa repercussão no mercado nacional. Também na linha da exposição à criminalidade cotidiana, Cidadão invisível, com roteiro de Ivan Jaf e desenhos de Eduardo Fergato e baseado no livro Cidadão de Papel, do jornalista Gilberto Dimenstein. Figura 211 – Pessoas se tornam invisíveis para a sociedade O álbum conta a trajetória de Naco, um garoto negro de 12 anos morador de rua que vive no tênue limite entre a sobrevivência e a tentação de cair na criminalidade. Na definição do autor, invisíveis são 252 todos aqueles que vivem às margens do poder público, dos programas oficiais de assistência e que são ignorados, inclusive, por aqueles que passam e não os veem, ou fingem não ver. Dois outros personagens: um velho morador de rua e um travesti, igualmente marginalizados e, portanto, invisíveis, fazem todos os esforços para tirar o menino do mau caminho. A princípio, Naco reluta e prefere dispensar os conselhos e a ajuda, até que uma tentativa de assalto mal sucedida obriga o garoto a fazer uma menina e sua mãe como reféns. Para representar um adolescente em situação de rua, optou-se por um menino negro. Em 2011, foi publicado o álbum Orixás, do Orum ao Ayê, de Alex Mir, Caio Majado e Omar Viñole, da editora Marco Zero, uma saga reunindo alguns relatos mitológicos ligados aos cultos e entidades do candomblé. Figura 212 – Os mitos africanos adaptados para os quadrinhos São cinco capítulos encadeados que dão a versão mitológica da origem do universo e do ser humano. A história que conta a divisão do céu e da terra foi refeita para compor melhor o conjunto de histórias. O álbum surgiu da pesquisa feita por Mir para a construção do seu personagem Ogum. Após empreender estudos mais aprofundados 253 sobre o candomblé e suas principais divindades, junto com seus parceiros Majado e Viñole, fez a história A separação do céu e da terra, baseada no mito africano iorubá da criação do mundo. Publicada na edição 15 da revista Orixás, a série foi concebida para ter vários capítulos, que acabaram não sendo publicados. É interessante notar que, embora os personagens sejam todos negros, a maioria dos elementos visuais incorpora a estética euroamericana. A arquitetura dos palácios onde vivem os orixás é inspirada no classicismo grego, talvez numa tentativa de associar com o panteão de deuses do Olimpo. Mesmo a anatomia anabolizada dos heróis aproxima-os das formas do super-heróis americanos do que do biótipo mais esguio dos africanos. André Diniz que vinha evoluindo um traço peculiar, já está em pleno domínio de seu estilo gráfico, quando empreende em 2011 uma nova obra, dessa vez mais ambiciosa e complexa: a adaptação para os quadrinhos do poema Cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves. Figura 213 – A defesa da abolição dos escravos na obra de Castro Alves Expoente da literatura abolicionista, o poeta, também foi autor de Navio Negreiro, outro clássico que denuncia a crueldade e a injustiça 254 do sistema escravocrata. Cachoeira permite a Diniz voltar ao tema da escravidão e a busca pela liberdade, anteriormente explorado em Quilombo Orum Aiê. O maior desafio nas adaptações de textos poéticos é que, diferentemente da prosa, há certos componente que precisam ser preservados como a métrica ou as rimas o que pode resultar em imagens redundantes em relação ao que o texto diz. Mesmo no caso de versos livres, é necessário respeitar o ritmo narrativo da obra original. No fim de 2011, mais um lançamento de André Diniz. Morro da Favela é a quadrinização do livro autobiográfico do fotógrafo Mauricio Hora. Figura 214 - Morro da favela narra o gênese do crime organizado no Rio O personagem, obviamente, é negro como Mauricio, mas Diniz não teve a preocupação de retratá-lo fielmente, mas deu continuidade a seu estilo. O garoto Mauricio cresce na Favela numa época em que o tráfico de drogas e o crime organizado ainda não haviam dominado as comunidades. É justamente do período de transição em que a favela se torna um local violento e menos ingênuo, que fala o álbum. O pai de Mauricio cometia pequenos delitos e por conta disso, há passagens que mostram visitas ao pai na prisão e as amizades que 255 acabou fazendo nessas idas. De certo modo, é um relato sob o ponto de vista ingênuo e até romântico de um garoto que posteriormente irá testemunhar a escalada da violência. Além de Mauricio, há outros personagens negros. Marcelo D’Salete é outro autor que teve novo álbum individual lançado em 2011. Encruzilhada, da editora Barba Negra, é uma coletânea de histórias avulsas que têm como fio condutor situações de conflito. Um desses relatos mostra um casal de garotos que se apossam de uma jaqueta que uma pessoa esqueceu na cadeira. O segurança do local nota a movimentação e vai atrás do menino. A narrativa é conduzida de modo a levar a crer que o segurança irá resolve o assunto de forma truculenta e fatal, mas o desfecho é totalmente diferente. Outro episódio conta a história de um homem torturado por seguranças de um supermercado, ao ser flagrado tentando entrar no seu próprio carro. Figura 215 - Episódio real de racismo transposto para os quadrinhos O fato aconteceu de verdade e configura um episódio de preconceito, pois, os seguranças acharam que o senhor negro estava tentando roubar o veículo. No dia 7 de agosto de 2009, um funcionário da Universidade de São Paulo estava entrando no seu Ecosport, 256 parado no estacionamento do Carrefour, enquanto aguardava sua esposa fazer as compras, quando foi abordado pelos seguranças do estabelecimento e conduzido a uma sala reservada onde foi submetido a tortura. Embora negasse repetidamente que estivesse roubando o veículo e alegasse ser o proprietário, seus apelos não foram ouvidos. Ele foi e agredido violentamente, a ponto de lhe quebrarem alguns dentes. Ao ler a notícia sobre esse fato no jornal, D’Salete achou que não podia ficar indiferente e precisava se manifestar sobre esse infeliz ocorrido e deixar registrada sua indignação (Revista da Folha, 25/9 a 1º/10/2011, p. 50). Em outubro de 2011, começa a ser distribuída a revista Insólitas aventuras, uma produção independente com roteiro de Guilherme de Sousa e arte de Daniel Bacellar. O gibi contém apenas uma história chamada Intruso e é um aventura de ficção científica em que a protagonista J. Júpiter, uma astronauta negra, sofre o ataque de um ser alienígena e é salva por um robô com quem ela acaba transando, uma solução que já foi explorada anteriormente por Jean Claude Forest em Barbarella, nos anos 60, e por Paul Gillon, na graphic novel A sobrevivente, de 1985. O visual da personagem, que usa um penteado black power também remete ao passado e lembra a estética dos anos 70. Figura 216 – J. Júpiter, a protagonista negra de uma aventura espacial 257 A maioria dos trabalhos produzidos entre o final dos anos 1990 até 2011, data definida como limite do presente estudo, foi publicada em revistas ou sob a forma de álbum. Há muito tempo, desde Nacional e Popular, em 1989, não ocorria a estreia de uma nova série em quadrinhos tendo como protagonista um personagem negro em jornal de grande circulação. Deus, essa gostosa, de Rafael Campos Rocha, foi a surpreendente exceção a essa regra. Figura 217 – O embate entre deus e deus, essa gostosa Em vários aspectos essa história em quadrinhos tem atributos diferenciados. O próprio formato não é o de tira diária, mas painéis de vários quadros. O local em que é publicado também não é a seção de quadrinhos normalmente consagrada às séries de autores como Laerte, Angeli e Fernando Gonsales. Deus é publicado no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo. O episódio de estreia aliás, ocupou toda a capa do caderno, em 13 de fevereiro de 2011. Rompendo com o modelo idealizado há séculos de um deus branco e masculino, deus é uma mulher, negra e liberal. Fã do jogador argentino Messi, tem entre seus maiores amigos justamente Satã que, na verdade, é incapaz de fazer o mal. 258 A série não tem uma publicação regular e um episódio novo sai, em média, a cada duas semanas. Uma proposta transgressora no conceito e, principalmente, na forma, deus representa de forma definitiva a mudança de papel que os personagens negros nos quadrinhos adquiriram nos últimos tempos. De escravos e criados coadjuvantes a toda-poderosa criadora do universo, os personagens negros nos quadrinhos trilharam um percurso longo, penoso e conturbado até conquistar um lugar de protagonismo. Ainda que em termos quantitativos a representatividade ainda possa estar muito aquém de representar na mesma proporção a presença de negros e afrodescendentes na população brasileira, é inquestionável a mudança ocorrida nas últimas duas décadas. Embora continuem ocorrendo situações de discriminação e racismo, tais acontecimentos ganham repercussão e são prontamente repudiados por grande parte da opinião pública, condição bem diferente do tempo em que termos pejorativos e até ofensivos eram ostensivamente utilizados sem o menor constrangimento em diversos meios de comunicação de massa. 259 Conclusão A escolha de um tema de pesquisa pressupõe alguma afinidade com o assunto, mesmo que seja apenas por curiosidade ou simpatia. No entanto, embora esses atributos ajudem a manter um permanente interesse por uma longa jornada de apreensão e registro de conhecimento, eles não são o suficiente para que o autor tenha sucesso. Há uma série de fatores e condições que podem vir a influenciar os resultados do trabalho tanto negativa quanto positivamente. O primeiro problema enfrentado no presente trabalho foi a impossibilidade de se pesquisar a totalidade da produção de quadrinhos no Brasil nos 140 anos que a pesquisa pretendeu abranger. Não existe um acervo tão completo e acessível para consulta e, mesmo que existisse, não haveria tempo suficiente nem método que pudesse tornar mais ágil tal empreitada. Revistas em quadrinhos são materiais de consumo para ser descartado e, salvo em raríssimas exceções, não houve a preocupação em preservá-los, a exemplo do que sempre ocorreu com os livros. Portanto, a existência de acervos de publicações antigas em quadrinhos só é possível graças a colecionadores, cuja disposição para franquear suas raridades a terceiros é muito remota. No caso do presente estudo, uma confluência de fatores foi fundamental para colaborar a enriquecer seu conteúdo. Primeiro, foi a recente decisão dos dois principais jornais impressos de São Paulo de tornar possível o acesso por internet a todo o seu acervo. E, posteriormente, a Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, também colocou em seu site, uma das mais completas coleções da revista O Tico-Tico, uma bem-vinda medida que tornou disponíveis exemplares muito raros. Essas iniciativas facilitaram em muito a coleta de dados. Uma simples tarefa de conferir a publicação de uma série ou de uma sequência de tiras demandava um trabalho extenuante que começava com o deslocamento até a sede do periódico e a solicitação dos exemplares, normalmente encadernados em livros enormes e pesados. Depois, a etapa da pesquisa em si, que implicava folhear exemplar por exemplar, manuseando originais amarelados e frágeis, para muitas vezes concluir que a tira procurada estava em outro volume, o que implicava nova solicitação e novas buscas. O acesso aos exemplares digitais foi, em al- 261 guns casos, crucial para se determinar datas e confirmar informações. O pesquisador também precisa contar com uma dose de sorte, estar no lugar certo no momento certo. Para felicidade do autor do presente trabalho, no período da pesquisa foram publicadas diversas obras em quadrinhos com personagens afro-brasileiros. Isso possibilitou incluir uma quantidade que ajudou a robustecer o número de obras com esse perfil, o que não teria sido possível há cinco ou seis anos. Embora não estivesse previsto no planejamento original, foi fortuita e muito apropriada a definição do ano de 2011 como limite da pesquisa, pois a escolha dessa data para se comemorar o Ano do Afrodescendente pela ONU deu grande destaque à cultura africana e motivou a produção de muitos materiais sobre os negros, inclusive na forma de quadrinhos. A própria dinâmica do processo de pesquisa foi revelando novas possibilidades e novos caminhos, a partir da descoberta de um dado perdido, da menção a um personagem esquecido. Todo e qualquer vestígio foi importante e devidamente verificado. A pesquisa levou a publicações raras ou distribuídas de forma muito regionalizada e de difícil obtenção, na tentativa de não deixar nenhum personagem com alguma relevância de fora. Obviamente, isso não assegura que todos os personagens negros tenham sido localizados e, certamente, alguns deles serão “descobertos” tão logo este trabalho tenha sido concluído. Por sua vez, os resultados da pesquisa foram, de certo modo, surpreendentes como, por exemplo, constatar que na primeira vinheta da primeira história em quadrinhos do Brasil, já estava presente um personagem negro. Ou que um dos primeiros personagens da série Chiclete com banana, de Angeli, uma das mais longevas e mais conhecidas ainda em publicação teve como um de seus primeiros personagens era negro. Ainda na etapa de contextualização dos quadrinhos com personagens negros, foram consultadas obras nacionais e estrangeiras para se detectar a origem do modelo de representação dos afrodescendentes. Pelo menos duas obras norte-americanas afirmam que o modo como os negros são desenhados em caricaturas e charges do século XIX não derivam de nenhum personagem negro específico, mas, ironicamente, de um branco caracterizado como negro: os menestréis, artistas e mú- 262 sicos que pintavam o rosto com tinta preta e contornavam ao redor dos lábios uma grande área branca. Embora não haja uma relação direta entre os desenhos feitos por brasileiros e os americanos, características comuns presentes em um e outro permitem constatar que essa influência é recorrente em ambos, e que se manteve por décadas. A pesquisa permitiu também constatar que, historicamente, há poucos personagens negros nos quadrinhos brasileiros e que são ainda mais escassas histórias nas quais eles são os protagonistas, ou nas quais não desempenham um papel subalterno. Como reflexo da própria condição dos afro-brasileiros, a forma como os escravos africanos foram trazidos para o continente americano e a marginalização a que foram impelidos após a abolição da escravatura, nos quadrinhos, os negros foram sempre muito mal representados ou sequer apareciam, talvez em sintonia com a política de branqueamento da sociedade, em voga na virada do século XIX para o XX. O levantamento feito década a década demonstrou que, dos primeiros exemplos, datados do fim do século XIX e começo do XX, e até a década de 1970, prevaleceu um modelo de representação estereotipado e preconceituoso, aparentemente aceito pelos leitores, uma vez que se desconhecem manifestações públicas de repúdio ou que tenham causado maior comoção. Ao contrário, a sucessiva criação de personagens que seguiam o mesmo padrão visual permite deduzir que esta era motivada pela aceitação e pelo sucesso que esse tipo de representação fazia. Nos casos mais extremos, há uma associação direta da imagem do personagem negro com características animalescas, remetendo às antigas teorias pseudocientíficas, que tentavam atribuir, aos afrodescendentes, um grau inferior na escala evolutiva biológica. O exemplo mais explícito é Lamparina, criada por J. Carlos. Tal prática foi recorrente na produção brasileira. Mesmo quando não houve intenção de se depreciar o negro ou equipará-lo a animais, são numerosos os casos em que a representação visual exagerada aproximava-o da figura de um macaco, reforçando, uma vez mais o estereótipo e a discriminação. O estudo verificou, no entanto, que, nos últimos anos, houve uma inegável mudança nesse quadro e iniciativas pontuais ganharam espa- 263 ço com o intuito de trazer personagens negros para o primeiro plano e criar identificação com os leitores afro-brasileiros. Essa mudança de modelo pode ser explicada pela própria evolução da sociedade, pela mobilização dos negros na luta pela igualdade de direitos e oportunidades, pela ascensão de um grande contingente de afrodescendentes a patamares mais elevados na escala social, econômica e profissional. Além desses fatores, há as iniciativas oficiais como a lei 10.639, que instituiu a obrigatoriedade de conteúdo sobre cultura afro-brasileira em escolas de ensino básico, o que contribui para valorizar os negros e suas realizações históricas. Em síntese, da análise de centenas de publicações e milhares de páginas de revistas, álbuns e jornais, pode se afirmar que, embora os negros nos quadrinhos tenham sido pouco e mal representados ao longo dos anos, em tempos mais recentes vem se consolidando uma nova tendência que denota uma valorização dos personagens, mais compatível com o papel que os afrodescendentes vêm adquirindo. Essa nova realidade, de mais respeito à diversidade e tolerância ao outro, faz vislumbrar uma sociedade mais justa e menos desigual. Isso não significa que estejamos totalmente livres de episódios de racismo, como aqueles com que muitas vezes já nos deparamos em jornais. Tudo isso nos leva a acreditar que uma melhor representação dos negros nos quadrinhos não é apenas uma mera solução editorial. Como qualquer linguagem, os quadrinhos são fruto do universo que gravita ao seu redor. Eles podem melhorar ou manter da mesma forma o ambiente em que são publicados. Esta pesquisa leva a acreditar que os quadrinhos brasileiros, no que diz respeito à representação dos negros e afrodescendentes, decidiram escolher a primeira opção. 264 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 265 266 ANDELMAN, Bob. Will Eisner. A Spirited Life. Milwaukie, M Press, 2005. APPEL, John et APPEL, Selma. Comics de imigração na América. São Paulo: Perspectiva, 1994. ATAÍDE, Graça; ANDRADE, Rosário. História (nem sempre) bem-humorada de Pernambuco Vol. 1 . Recife: Bagaço, 1999. AZÊDO, Maurício. Nosso jornalismo desde 1808. Jornal da ABI número 347 novembro de 2009. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Impr.ensa, 2009. AZEVEDO, Ezequiel. O Tico Tico: Cem Anos de Revista. São Paulo: Via Lettera, 2005. BAHLS, Aparecida Vaz da Silva; BUSO, Mariane Cristina. Factos da actualidade: charges e caricaturas em Curitiba 1900-1950. Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 2009. BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888). 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