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Mulheres Negras nas Artes Visuais: modos de resistência às imagens coloniais de controle Black Women in the Visual Arts: Modes of resistance to colonial controlling images Fernanda Carrera Professora da Escola de Comunicação - Universidade Federal do Rio de Janeiro ECO/UFRJ, do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Feederal Fluminense (PPGCOM/UFF) e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). Doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Líder do LIDD - Laboratório de Identidades Digitais e Diversidade (UFRJ). Daniel Meirinho Professor do departamento de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa (UNL) e mestre em Comunicação e Artes pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Submetido em 13 de Agosto de 2020 Aceito em 01 de Dezembro de 2020 RESUMO Este artigo busca identificar padrões contemporâneos de resistência a imagens de controle nas artes visuais, entendendo que o corpo negro serviu, sob violenta apropriação, à construção da modernidade e de suas estéticas coloniais. Mulheres negras, sobretudo, são reduzidas a imagens de controle que restringem suas existências, em um contínuo processo de fortalecimento de dinâmicas de opressão de gênero e raça. No entanto, ao perceber a emergência de iniciativas artísticas que resistem a estas reduções de subjetividade, este trabalho identifica modos de produção estéticos imersos no projeto decolonial, questionando os modos de fazer arte sob a inscrição e/ou projeção do corpo negro feminino. São identificados três modos de resistência às imagens de controle – 1) enfrentamentos à submissão, 2) Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 55 ressignificação das ausências e 3) reivindicação da autonomia sexual –, com o intuito de contribuir para o olhar epistemológico sobre estas manifestações artísticas e seus impactos comunicacionais. PALAVRAS-CHAVE: mulheres negras; artes visuais; imagens de controle; estética decolonia. ABSTRACT This article seeks to identify contemporary patterns of resistance to controlling images in the visual arts, understanding that the black body served, under violent appropriation, to the construction of modernity and its colonial aesthetics. Black women, above all, are reduced to controlling images that restrict their existence, in a continuous process of strengthening the dynamics of oppression of gender and race. However, as it perceives the emergence of artistic initiatives that resist these reductions of subjectivity, this work identifies modes of aesthetic production immersed in the decolonial project, questioning the ways of making art under the inscription and/or projection of the female black body. Three modes of resistance to the controlling images are identified - confronting submission, resignifying absences and claiming sexual autonomy - with the intention of contributing to the epistemological view of these artistic manifestations and their communicational impacts. KEYWORDS: black women; visual arts; controlling images; decolonial aesthetic. RESUMEN Este artículo busca identificar los patrones contemporáneos de resistencia a las imágenes de control en las artes visuales, entendiendo que el cuerpo negro sirvió, bajo la apropiación violenta, a la construcción de la modernidad y su estética colonial. Las mujeres negras, sobre todo, se ven reducidas a imágenes de control que restringen su existencia, en un proceso continuo de fortalecimiento de las dinámicas de opresión de género y raza. Sin embargo, al percibir la aparición de iniciativas artísticas que se resisten a estas reducciones de la subjetividad, este trabajo identifica modos de producción estética inmersos en el proyecto descolonial, cuestionando las formas de hacer arte bajo la inscripción y/o proyección del cuerpo negro femenino. Se identifican tres modos de resistencia a las imágenes de control -confrontar la sumisión, resignificar las ausencias y reivindicar la autonomía sexual- con la intención de contribuir a la visión epistemológica de estas manifestaciones artísticas y sus impactos comunicacionales. PALABRAS CLAVE: mujeres negras; artes visuales; imágenes de control; estética decolonial. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 56 Introdução No discurso colonial, o corpo colonizado, feminino e negro é visto e representado destituído de vontades e subjetividades, como um corpo-objeto especialmente silenciado (hooks, 1995), próprio de uma economia de prazer e desejo. No entanto, este corpo, fixado em certas identidades configuradas em sentidos de dominação, também constrói seu agenciamento em narrativas de resistência, erigindo debates que transcendem a superfície da representação e da materialidade discursiva, rompendo com os padrões cerceadores de sua existência e expandindo seus lugares em arranjos que vão além da codificação econômica e simbólica que marca as relações de gênero e raça no colonialismo. As imagens artísticas, muito tempo classificadas como linguagens inofensivas, passam a estruturar, nos países que sofreram com o colonialismo e a exploração do trabalho escravo, um deslocamento potente de significados. Elas assumem um lugar relevante na reconstrução dos elementos simbólicos criados na matriz colonial de poder (Mignolo, 2010). A forma de hierarquizar indivíduos, comportamentos e culturas, em máquina de produção de diferenças a partir da ideia de branquitude e de uma ideologia racial, faz do corpo na arte contemporânea diaspórica negra uma ferramenta bélica que tenciona experiências, redefine territórios de segregação e questiona o sistema de classificação social que advém do racismo (Sodré, 2018). As artes visuais, portanto, se pensadas a partir de sua inscrição histórica, são aparatos imagéticos infalíveis para a compreensão das matrizes sociais de construção hierárquica de poder. Propostas decoloniais de mulheres negras na arte constroem modos de ressignificação estética e comunicacional em uma perspectiva que procura transcender a colonialidade: esta face obscura constitutiva da modernidade (Quijano, 2002) que permanece em operação. Nesse sentido, ao reconhecer o passado colonial das narrativas imagéticas propostas nas Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 57 artes visuais, este trabalho visa identificar os olhares de oposição e resistência que surgem em corpos assujeitados a dinâmicas de opressão interseccionais. Artistas visuais negras propõem novas narrativas sobre si mesmas, em um processo de retomada do poder sobre suas existências, de reivindicação pela representação das suas vivências e das suas histórias marcadas na materialidade artística, por tanto tempo, pelo olhar frio da alteridade. Rosana Paulino, Priscila Rezende, Renata Felinto, Aline Motta e Gê Viana são algumas destas artistas contemporâneas que constroem sua trajetória a partir do embate, seja pela ocupação de espaços artísticos legitimados, seja pelas narrativas propostas em suas obras com perspectivas coloniais sobre o corpo negro e feminino. Faz-aqui, portanto, um percurso sobre os processos de representação nas artes visuais, no domínio da raça e do gênero, que são problematizados em produtos artísticos da contemporaneidade, buscando responder: quais modos de resistência são criados em prol de narrativas artísticas decoloniais sobre o corpo da mulher negra? Entendendo o passado colonial das artes visuais e as inscrições recorrentes em “imagens de controle” (Collins, 2002), que historicamente definiram a mulher negra em lugares de subalternidade, de que forma artistas negras brasileiras produzem deslocamentos sensíveis a respeito do corpo feminino negro? Propõe-se, portanto, olhar para estas manifestações artísticas a partir de três modos fundamentais de resistência – 1) enfrentamentos à submissão, 2) ressignificação das ausências e 3) reivindicação da autonomia sexual – que surgem como resposta ao discurso colonial de controle, mas também como força propulsora de potência para a produção de novos sentidos do existir. 1. Da representação racial e colonialidade às estéticas decoloniais nas artes visuais O passado colonialista e escravocrata sedimentou um imaginário social repleto de estereótipos raciais, inscrevendo a população negra brasileira num paradigma de inferioridade e invisibilidade. O sujeito negro visualmente retratado como indivíduo exotizado, animalizado, agressivo, violento e sexualizado serviu Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 58 como estratégia narrativa que justificaria sua subordinação, especialmente na construção do imaginário político, em uma cultura visual de representações diaspóricas negativas (Gilroy, 2007). Estas associações se conectam à necessidade de encadeamentos estabelecidos entre uma modernidade eurocêntrica (Quijano, 2002) e as práticas de representações e epistemologias classificatórias. Refletir a construção destas visualidades que inscreveram os corpos negros racializados é identificar a construção deste lugar de subalternidade, especialmente nas suas relações de gênero (Nogueira, 1998). Nesse sentido, os argumentos colonialistas passam também pela produção visual (Gilroy, 2007), mostrando ser inegável o elo histórico entre a cadeia de produção de imagens pictóricas coloniais e o lugar distorcido e estigmatizado, sobretudo, do corpo e da subjetividade da mulher negra. No Brasil, as imagens raciais, tanto midiáticas como nas artes visuais, apontam para um campo de disputa que confronta representação e discursividade e que se mobiliza na construção, enquadramento e manutenção de um ideário simbólico da identidade negra. A construção do racismo, contido nas reproduções visuais, obedece a esse ideário político que situa e objetifica os corpos negros, iniciando-se e fundamentando-se a partir das tentativas de tipificações antropológicas, cuja construção visual buscou estruturar um imaginário de um sujeito que necessita ser explorado e catalogado, tal como a flora e a fauna local “sem qualquer traço de personalidade ou individualidade, servindo apenas como imagem documental dos exemplares encontrados no território” (Picancio, Dos Santos, Boone, 2020, p. 102). A respeito do corpo negro feminino, pode-se dizer que o mapeamento visual que se inicia com a arte renascentista representacional brasileira (Araújo, 1988) é consolidado pela percepção de representações subalternizantes – por exemplo, 1) nas fotografias dos tipos humanos de Augusto Stahl; 2) nas amas de leite de Alberto Henschel; e 3) nas imagens das negras livres vendedoras de rua de Marc Ferrez –, atribuindo uma rede de significações para um corpo indesejável e inaceitável, em contraste com o parâmetro legítimo da branquitude (Nogueira, 1998). Desde as pinturas de catalogação colonial de Frans Post e Albert Eckhout, Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 59 bem como o cotidiano escravocrata das ruas de Jean Baptiste Debret ou ainda na defesa de uma política de miscigenação do movimento eugenista de Modesto Brocos (Lotierzo, 2017), problematizar a alteridade e a singularidade feminina negra na produção artística tem sido objeto de estudos e reflexões sistematizados de diversas autoras (Tvardovskas, 2013; Simioni, 2010; Lotierzo, 2017; Freitas, 2019; Geraldo, 2016; Nogueira, 1998). Ademais, se a participação do homem negro como figura ativa e protagonista do campo artístico foi invisibilizada na história da arte, o anonimato da mulher artista negra não chegou a ser interesse artístico ou acadêmico brasileiro (Araújo, 1988). No âmbito do gênero, o papel doméstico de servidão quase elimina a figura artística feminina das vanguardas artísticas brasileiras como na produção do Barroco mineiro ou da visão antropofágica modernista paulista. Quando estiveram presentes, como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, estas mulheres, então, reivindicariam uma arte genuinamente brasileira a partir de uma visão elitista e branca. O legado da escravidão, como visto no papel social da “mã e preta” da obra A Negra, de Tarsila do Amaral, é uma tentativa de reinvindicação do patrimônio da cultura afro-brasileira, que tentou ser lido como nostálgico e afetivo a partir de um olhar aristocrático marcado pelo ambiente patriarcal de uma elite branca, progressista e republicana. As manifestações afro-brasileiras e indígenas, portanto, foram elementos devorados e transformados, mas a partir de mãos brancas e, sobretudo, masculinas. A constante associação dos “sujeitos femininos” à fantasia mitológica da sexualização da “mulata”, na obra dos pintores modernistas Di Cavalcanti e Cândido Portinari, não passou de tentativas de dar evidência à situação de vulnerabilidade social da mulher negra brasileira, influenciada pelas vanguardas artísticas europeias (Conduru, 2007). Muitos traços de subalternidade, alegoria e fetichismo sobre o corpo negro foram deixados nas obras dessa elite branca artística brasileira, a partir de um olhar colonialista interno (Quijano, 2002) que possibilitou um alargamento das relações de dominação racial e distinção social. Nesse sentido, o lugar social da mulher negra no modernismo não passa de uma transferência do cenário de representação, influenciado pelos grupos Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 60 independentistas e abolicionistas que tentavam construir uma identidade nacional efetiva. A imagem da mulher livre na rua “representada como vendedora, quitandeira, florista, fruteira” (Picancio, Dos Santos, Boone, 2020, p. 105) pouco difere da escrava trabalhadora do campo e de servidão doméstica. Essa exploração “da sua condição associada ao trabalho físico” (Conduru, 2007, p. 106) ou da mulata, aparentemente positiva, esconde nas entrelinhas a imagem sexualizada e objetificada de uma feminilidade única, tentando amenizar os fatores raciais para torná-la símbolo a ser exportado pelo modernismo brasileiro. Esse cenário, então, começa a ser repensado por meio da participação mais expressiva de mulheres negras artistas nas últimas décadas do século XX, com uma geração de sujeitos que se inscrevem a partir de suas experiências, alterando gradualmente a figura feminina negra nas artes contemporâneas brasileiras. Por décadas, associada ao universo sincrético religioso, ancestral, cultural e estético, a arte afro-brasileira utiliza uma estratégia territorial alargada de presença de artistas negros (Munanga, 2019). Essa produção é demarcada por um conjunto de práticas estéticas que rompem com a colonialidade discursiva e vão além da temporalidade do seu rótulo de vínculo com a contemporaneidade. As experiências, portanto, de oposição e contraponto, passaram a reconfigurar os elementos do imaginário afrodiaspórico, reconfigurando a dita arte ritual e religiosa (Munanga, 2019). Artistas como Rubem Valentim, Heitor dos Prazeres, Mestre Didi, Emanuel Araújo e Abdias do Nascimento abandonam o anonimato e a clandestinidade das casas de culto e ampliam o conceito das artes “populares”. São estas produções que demarcam a experiência de uma corporeidade ancestral, histórica e cultural de resistências e confrontamentos, mas até então androcêntrica. Nesse contexto, a complexidade e a riqueza temática de artistas contemporâneas como Rosana Paulino, Sônia Gomes, Eneida Sanches e Lídia Lisboa vêm se consolidando no cenário artístico nacional e internacional, com participações em espaços - como bienais e exposições - de legitimação e validação artística. Esse caminho é reforçado e constrói densidade agora com o trabalho de jovens artistas visuais, como Renata Felinto, Michelle Mattiuzzi, Priscila Rezende, Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 61 Aline Motta, Ana Lira, Gê Viana, Marcela Bomfim, Silvana Mendes, Denise Carmargo, entre outras. Suas experiências estéticas de resistência, a partir de corpos diaspóricos, passaram a ocupar os espaços expositivos e de reconhecimento em instituições de arte no início do século XXI, amplificando as discussões em torno do racismo contemporâneo. Dentro de uma ótica de representação que subverte as imagens alegóricas da mulher negra, a negritude é abordada em sua complexidade, na tentativa de fusão entre artistas e suas obras. Nesse sentido, não somente são percebidas como experiências temáticas, mas, sobretudo, se constroem como propostas performáticas que expandem suas condições de subalternidade em uma estrutura narrativa de linguagem opositiva e fabulatória (De Barros e Freitas, 2018). 2. Imagens de controle, artes visuais e mulheres negras Reconhecer o espaço artístico, portanto, como um dos lugares de “frustação da subjetividade” (Bueno, 2020) das mulheres, como lócus de legitimação da perspectiva colonial, é entendê-lo a partir da delimitação das possibilidades de existência de mulheres brancas e, sobretudo, da marcação desumanizante de mulheres negras. O olhar sobre o processo histórico das artes visuais, então, percebe um contínuo fortalecimento de ferramentas imagéticas cerceadoras, traduzidas e pensadas aqui por meio do aparato conceitual “imagens de controle”, de Patricia Hill Collins (2002). Collins propõe a noção de imagens de controle como uma categorização dos discursos circulantes no imaginário social a respeito de mulheres negras, entendendo-os como artifícios designados para fazer as injustiças sociais, sobretudo em torno de gênero, raça e classe, aparentarem normais, naturais e inevitáveis. A serviço do processo colonizatório, que não se encerra nas marcações do acontecimento histórico de descolonização, as imagens de controle são modos de ver e representar as mulheres negras e fixá-las em narrativas comportamentais restritivas e objetificadoras. Estas imagens, impregnadas nas representações dos seus corpos, moldam a percepção dos outros sobre quem são, mas também Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 62 assombram e tentam contornar os limites psicológicos das suas subjetividades: “as imagens de controle fazem parte de uma ideologia generalizada de dominação” (Bueno, 2020, p. 73). Mais do que idealizações envoltas em estereótipos, as imagens de controle servem à estrutura de poder da colonialidade (Quijano, 2002), uma vez que fazem perdurar pressupostos subalternizantes a respeito do corpo negro, determinando sua existência em uma constante objetificação como forma de demarcação da diferença. Retirando suas possibilidades de vivência enquanto sujeito, resta ser o objeto necessitado de manipulação, domesticação e controle, antes que sua natureza selvagem ameace a consolidação da cultura. Imagens de controle, portanto, servem aos variados sistemas de opressão que atravessam os corpos subalternizados e que compõem a grande estrutura de poder chamada “matriz de dominação” (Collins, 2002, p. 99). Refletindo no âmbito do pensamento feminista negro, o conceito de imagens de controle tenta identificar as simbologias comuns associadas às mulheres negras e seus comportamentos sociais, reunindo perspectivas artísticas, midiáticas e advindas da oralidade. Collins cartografa tanto as imagens continuadas de representação, quanto suas mutações ao longo do tempo, evidenciando o caráter volátil e flexível de imagens que, de formas diferenciadas, dizem o mesmo. “Mammy”; “matriarca”, “jezebel”, “black lady”, “welfare mother” e “hoochie” reúnem, segundo a autora, estas subjetividades cristalizadas das mulheres negras, entre consolidações e atualizações de um mesmo processo de subjugação. Nas artes visuais, então, algumas destas imagens também encontram um lugar de legitimação e reforço, uma vez que se configuram, especialmente, pela demarcação da diferença em relação ao corpo da mulher branca. Debruça-se aqui, portanto, sobre as imagens Jezebel, Mammy e Matriarca. A ideia de um corpo hipersexualizado, depravado e disponível, que compõe a imagem de controle “Jezebel”, emerge da tentativa de racionalização dos estupros de escravas por homens brancos (Carneiro, 1995; Davis, 2016), assim como ajuda a fortalecer o ideal de pureza sexual atribuído às mulheres brancas. Nesse sentido, esta imagem dialoga com a representação brasileira da “mulata”, Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 63 que seriam “burros de carga do sexo (...) expressão das relações patriarcais racistas” (Gonzalez, 1988, p. 139). Ou seja, atribuir à sexualidade da mulher negra um caráter desviante e útil é considerar a existência de uma “verdadeira feminilidade”, essencialmente constituída pelas virtudes da pureza, piedade, subserviência e domesticidade e, também, fundamental para a manutenção da escravidão enquanto sistema, como afirma Collins (2002, p. 72): “controlling images of Black womanhood also functioned to mask social relations that affected all women”1. Nesse sentido, em conexão com a perspectiva de Bhabha (1992, p. 195): “o estereótipo, como forma de convicção múltipla e dividida, requer uma cadeia contínua e repetitiva de outros estereótipos”. Nesse sentido, a animalização da Vênus de Hotentote e a sexualização das “mulatas” de Di Cavalcanti se alicerçam pelo seu contraponto: a composição angelical e santa das Madonnas na arte cristã e da trajetória artística da Vênus, recatada, delicada, pura, como nas esculturas gregas e no Nascimento de Vênus, de Botticelli. O escárnio à Sarah Baartman, aliás, e a escolha por demarcar sua diferença na nomenclatura “de Hotentote” revela a atribuição de uma autenticidade quebrada: a Vênus genuína é branca e tem características físicas condizentes com sua branquitude; a Vênus de Hotentote já carrega em seu nome a zombaria pela sua origem africana. Se, portanto, a trajetória artística de representação visual das mulheres negras reforça a imagem de controle da Jezebel, acessível à manipulação e uso, também contribui para a composição do imaginário sobre a sexualidade da mulher branca, que se mostra, sob pudor e culpa, à serviço do olhar masculino. A imagem de controle Mammy, pensada no contexto estadunidense, dialoga diretamente com a mãe preta brasileira, pensada por Gonzalez (1988). Mammy e mãe preta são conceitos de uma mesma figura idealizada e esperada pela branquitude: resignação, simpatia, amorosidade e acolhimento em uma mulher negra que ama seus “filhos brancos” e é considerada como “pertencente à família”. A mãe preta é a mulher ideal porque não se revolta contra as opressões do sistema “imagens de controle da feminilidade negra também funcionaram para mascarar as relações sociais que afetavam todas as mulheres” (tradução nossa) 1 Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 64 escravagista a que está submetida, isto é “still knows her ‘place’ as obedient servant. She has accepted her subordination” (Collins, 2002, p. 73)2. É fundamental para esta imagem de controle que esta mulher negra não tenha história, seja assexuada e não seja reconhecida pela sua existência fora do ambiente doméstico de exploração laboral: “a função desse estereótipo reside em negar o agenciamento das mulheres negras, ou seja, a sua existência histórica” (Cardoso, 2014, p. 975). Nas artes visuais, a figura da Mammy é comum e frequentemente utilizada como o elemento necessário à construção do contexto de exaltação do sujeito branco em evidência. Pode-se tomar como exemplo obras como “Olympia”, de Manet, a “babá com o menino Eugen Keller”, do fotógrafo Alberto Henschel, e o retrato “Babá brincando com criança em Petrópolis, de Jorge Henrique Papf. Estas são algumas das inúmeras imagens que serviram à construção deste imaginário sobre a subjetividade das mulheres negras em torno do ideal da submissão e da passividade. Em “Olympia”, é potente o silenciamento da narrativa da mulher negra, que aparece na imagem de fato apagada e confundida com o fundo preto do quadro, já que ali, só interessaria o seu ato de servidão representado pela entrega das flores. A mammy, a mãe preta e a ama de leite são modos de enunciação para a mesma imagem de controle: aquela que emerge somente em prol do sujeito branco. A imagem de controle da Mammy é reforçada pela imagem da “matriarca”. De acordo com Collins (2002), enquanto a mammy opera no contexto familiar da sociedade branca, a matriarca é a sua atuação materna em lares negros. Oposta àquela imagem da afetuosidade em prol dos seus “filhos brancos”, a matriarca seria agressiva com seus filhos negros, assim como castradora da masculinidade dos homens com quem se relaciona: “assim como a mammy representa a ‘boa’ mãe negra, a matriarca simboliza a mãe negra ‘má’” (Bueno, 2020, p. 88). A matriarca perde o ideal de feminilidade, não consegue demonstrar afeto pelos seus filhos negros e é rejeitada pelos homens, uma vez que não representa a mulher ideal submissa. Ou seja, “from the dominant group’s perspective, the matriarch 2 ainda reconhece seu ‘lugar’ como serva obediente. Ela aceitou sua subordinação" (tradução nossa). Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 65 represented a failed mammy (Collins, 2002, p. 75)3. A tela “Mãe Preta”, de Lucílio de Albuquerque mostra a dualidade desta mulher negra que, ao ser forçada a alimentar e cuidar da criança branca, perde o contato e o afeto com seus filhos negros. Embora Collins (2002) tenha pensado o conceito de imagens de controle a partir do contexto estadunidense, a aproximação histórica da dinâmica escravocrata que dominou os dois países permite que estas imagens sejam perceptíveis também na conjuntura brasileira. Se nas imagens circulantes, tanto no domínio artístico quanto midiático, é possível perceber a mammy na figura da mãe preta e a Jezebel na direta aproximação com a ideia da “mulata”, a matriarca, por sua vez, é figura constantemente representada em conteúdos imagéticos brasileiros como a mulher negra agressiva, mas sobretudo solitária, como as “mães” de Cândido Portinari e seus filhos em situação de precariedade. No entanto, estas três imagens de controle compõem o recorte teórico-metodológico aqui proposto justamente porque parecem representar o arcabouço imagético sobre o qual narrativas de resistência se constroem na arte contemporânea. Dentre as imagens de controle propostas por Collins (2002), Mammy, Matriarca e Jezebel, talvez pelas suas potências enquanto representações históricas das mulheres negras, são as imagens mais comumente confrontadas pelos produtos e pelas performances artísticas brasileiras em torno de narrativas decoloniais. Nesse sentido, são aparatos imagéticos relevantes para se pensar as configurações estéticas e políticas da contemporaneidade. 3. Modos de resistência às imagens de controle nas artes visuais contemporâneas Pode-se dizer que, se há debruçamento sobre as narrativas artísticas contemporâneas a respeito e a partir de mulheres negras, há, como resultado, identificação de deslocamentos sensoriais e estéticos potentes no contexto das 3 “da perspectiva do grupo dominante, a matriarca representou uma mãe fracassada” (tradução nossa) Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 66 imagens de controle. Propõe-se aqui apontar iniciativas de artistas que conseguem, por meio de suas obras e performances, assim como pela inscrição de seus corpos no espaço artístico legitimado, construir modos de resistência a perspectivas imagéticas consolidadas sobre as subjetividades de mulheres negras. Na tentativa de delinear estas ações artísticas de contraponto na arte contemporânea brasileira, são apresentados três modos de resistência às imagens de controle coloniais: 1) enfrentamentos à submissão, 2) ressignificação das ausências e 3) reivindicação da autonomia sexual. 3.1 Enfrentamentos à submissão da Mammy A série de bordados Bastidores (1997), da artista visual paulista Rosana Paulino, apresenta seis imagens de mulheres negras com suas bocas, olhos, testa e garganta costurados naquilo que a artista chama de “suturas”’, que impõem uma deformação no tecido social, transparecendo o silenciamento e a trajetória de violência sofrida pela mulher negra na sociedade e na história da arte (Simioni, 2010). As fotografias extraídas de álbuns fotográficos reais de sua família e impressas em tecido são personagens feridas, em um ato performático de bordar, sugerindo marcas das violências sofridas ainda hoje no universo doméstico: “restalhe um corpo bruto, anulado dos sentidos e da linguagem” (Geraldo, 2016, p. 619). Paulino representa a condição negra feminina reprimida de participar ativamente do contexto social, com boca fechada, controlada, e olhos vendados, continuamente relegada aos bastidores e “afastada do espaço público” (Tvardovskas, 2013, p. 8). Em Bastidores, Paulino reflete, portanto, sobre a violência do processo de domesticação da mulher negra, impedida de existir senão sob as lógicas da anulação, da subserviência e do controle. As características de delicadeza do bordado, historicamente ligado ao feminino, são apresentadas em contraponto à opressão, à dor e ao trauma da violência doméstica em uma esfera solitária no ambiente privado. As referências às técnicas artesanais de domínio do bordado relacionam-se à história pessoal da artista, ao passo que promovem a releitura do ambiente íntimo e doméstico Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 67 comum às experiências das mulheres na casa (Tvardovskas, 2013). A forma como as linhas incidem de forma cirúrgica nos corpos das mulheres negras possibilita um deslocamento simbólico incômodo, através da significação de uma memória colonial e escravagista de figuras femininas apagadas e amordaçadas. “Impedidas de ver, pensar, falar ou gritar” (Simioni, 2010, p.13), elas representam mulheres oprimidas pela obediência e submissão compulsórias da imagem de controle Mammy (ver figura 1). FIG. 1: Bastidores (1997), Rosana Paulino. Fonte: Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM. Em outra série, intitulada Ama de leite (2005-2008), Paulino explora com desenhos, esculturas e instalações a representação da imagem da Mammy aos olhos de Collins (2002). A obra investiga as ligações simbióticas entre a figura feminina negra e seus vínculos íntimos, atravessados pelos valores afetivos entre o bebê que a ela não pertence e sua situação de submissão. Dá visibilidade, assim, à ocupação de um local social servil simbolizado pela “passagem, no imaginário social, dos papeis de ama de leite à babá, da mucama à empregada doméstica ocupado, ainda hoje, pelas mulheres negras na sociedade brasileira” (Paulino, 2011, p. 58). A artista propõe, portanto, uma representação da perda da subjetividade da mulher negra, que vê sequestrada sua condição de maternidade em benefício do cuidado de crianças brancas (ver figura 2). Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 68 FIG. 2: Série Ama de Leite (2005-2008), Rosana Paulino. Fonte: Divulgação. Em diálogo com este enfrentamento de Rosana Paulino à Mammy, a artista visual Priscila Rezende questiona, também a partir de si mesma, esta domesticação do corpo da mulher negra aos moldes do desejo branco. Sua obra Barganha (2014) é uma performance que inscreve seu corpo, mercantilizado, em uma caminhada pela Central de Abastecimento de Minas Gerais, na cidade de Contagem. Etiquetas de preço são coladas ao seu corpo e, gradativamente, diminuem o valor atribuído em alusão ao verso “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, popularizado em A Carne, cantada por Elza Soares (ver figura 3). A comercialização do corpo feminino negro em frases pronunciadas pela anunciante faz sua performance de confronto ser uma ferramenta de resistência simbólica contra os imaginários raciais e os estereótipos negativos historicamente associados à mulher negra, isto é, um “corpo de fácil acesso, vendável, desfrutável, desprovido de sua privacidade e controle, como um corpo livre [...] emancipado, que recusa tais Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 69 representações” (Rezende, 2017, p. 74)4. FIG. 3: Performance Barganha (2014), Contagem (MG), Priscila Rezende. Fotos: Marcelo Baioto. Nas produções artísticas de Rezende e Paulino, portanto, as problemáticas de raça e gênero interseccionam-se e podem ser lidas a partir das teorias decoloniais estéticas (Mignolo, 2010), questionando e propondo outras narrativas às imagens de controle conhecidas na história da arte visual. De modo específico, as obras Bastidores, Ama de Leite e Barganha recuperam e ressignificam as relações constitutivas e significados originais, amplificando-os para uma discussão crítica feminista contemporânea. As metáforas passam pelo questionamento da situação da mulher negra, não apenas em sua condição e posição social, mas sobre seu corpo domesticado e controlado. Nesse sentido, são um embate explícito à imagem de controle Mammy que, agora reconhecida, pode ser posta em um processo de destruição simbólica. 3.2 Ressignificação das ausências na Matriarca Na série Embalando Mateus ao som de um hardcore (2017), a artista Renata Felinto convoca o ditado popular “quem pariu Mateus que o embale”, indagando o sonho da maternidade para a branquitude e a violenta sobrecarga naturalizada que Catá logo Negros Indı́cios: performance vı́deo fotografia. Caixa Cultural. Sã o Paulo, 2017. Curadoria: Roberto Conduru. 4 Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 70 impacta as vidas de mulheres negras e periféricas, comumente sozinhas (ver figura 4). A instalação realizada na exposição Os da minha rua: Poéticas de r/existência de artistas afro-brasileiros (2018) é composta por recibos e notas fiscais recolhidos durante um ano de todos os gastos com a criação de duas crianças, sem nenhum auxílio do progenitor. Esses recortes e documentos cobrem um berço como uma estampa de tecido utilizado nos enxovais de bebês. Um varal de fotografias com colagens digitais recorda frases que mulheres, nas condições de mães sozinhas, já escutaram devido as suas realidades. Felinto busca evidenciar que o custo da maternidade passa por aspectos psicológicos, afetivos e emocionais que, despercebidos socialmente, afetam visceralmente tanto a maternagem quanto a construção subjetiva da mãe negra. FIG. 4: Série Embalando Mateus ao som de um hardcore (2017), Renata Felinto. Fonte: Divulgação Nesse sentido, a obra de Renata Felinto expõe a expectativa que recai sobre o corpo feminino negro que, explorado pela maternagem no espaço branco, se vê em extrema vulnerabilidade para atender às suas necessidades de maternidade negra. Rejeitada pela presença masculina ou impedida de viver seus afetos pelas políticas de encarceramento da população negra, a mãe negra é sobrecarregada de Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 71 responsabilidades materiais e de sobrevivência, resistindo às intempéries de um corpo subalternizado cuja principal negação é a vivência dos predicados da partilha e da afetividade. Nesse sentido, expor os recibos que compõem a sua narrativa de subsistência é localizar a potência e a origem da Matriarca como imagem de controle de um fracasso inevitável e fatal para mulheres negras. Essa impossibilidade afetiva é reconstruída pela artista Aline Motta, na obra Pontes sobre Abismos (2017). Através de linguagens que passam por uma videoinstalação e uma exposição fotográfica, as imagens se propõem a reterritorializar e montar uma possível ponte que conecta a genealogia familiar com relatos de histórias orais, documentos, arquivos familiares e exames de DNA (Freitas, 2019). A rota invertida do tráfico de escravos recria os laços afroatlânticos entre Rio de Janeiro, Portugal e Serra Leoa, em busca das origens e arquivos familiares da artista, motivada pela revelação feita por sua avó de nunca haver conhecido o pai (ver figura 5). A obra conecta-se à concepção de Nyong’o (2019) em torno de uma afrofabulação performativa e expressiva, que propõe uma reformulação fabulatória das memórias e histórias de duas mulheres negras: sua bisavó Doralice e sua mãe Mariana Francisca. De acordo com Freitas (2019), as narrativas familiares são recriadas a partir de uma certidão de nascimento assinada pelo tio materno da criança, subentendendo trajetória de abandono paterno. As fotografias percorrem, então, os territórios e águas da Europa, América do Sul e África, na tentativa de permitir um deslocamento e uma movimentação à memória que passa a estar viva a partir de relatos orais familiares. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 72 FIG. 5: Pontes sobre Abismos (2017), Aline Motta. Fonte: Divulgação Motta relata, portanto, o encontro de aparições do seu bisavô Enzo, até então desconhecido, nas colunas sociais e de esporte dos jornais da época. A descoberta dos seus rastros e registros são apagados e riscados na edição do vídeo em uma ação de reformulação do arquivo familiar que não se move para um reencontro, “invertendo a dominância do homem branco para as mulheres negras” (Freitas, 2019, s/p). Essa postura quebra uma cadeia de dependência e subserviência da família negra, que fortalece seus laços afetivos e raciais pela expulsão do homem branco e das suas narrativas de abandono. Para Freitas (2019), ao resgatar sua história familiar, Motta reforça sua afetividade em torno das narrativas maternais negras, devolvendo às mulheres da sua família o controle sobre si mesmas e sobre os afetos que escolhem construir, como também é visto em sua obra Filha Natural (2018/2019). Nesse sentido, ao reconhecer os lugares de partida que atribuem à Matriarca narrativas excludentes de isolamento, propõe autonomia a um corpo emocional em ressignificação. 3.3 Reivindicação da autonomia sexual perdida em Jezebel Se a retomada da autonomia afetiva surge em narrativas artísticas contemporâneas em contraponto à imagem de controle da Matriarca, há também reivindicação pela emancipação da sexualidade do corpo negro feminino. Ao reconhecer o discurso colonial de controle da Jezebel como ferramenta de hipersexualização da mulher negra, exposta ao desejo e utilização do homem branco, artistas contemporâneas retomam a propriedade dos seus corpos e Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 73 sexualidades, questionando os limites imagéticos impostos tanto no seio social quanto nas artes. Em sua performance Vem...pra ser infeliz (2017), Priscila Rezende exemplifica este conjunto de práticas decoloniais na arte contemporânea, uma vez que explora o tema da fetichização da mulher negra através da representação estereotipada da imagem midiática da Globeleza, ironizada no título (ver figura 6). FIG. 6: Performance Vem... pra ser infeliz (2017), Belo Horizonte (MG), Priscila Rezende. Foto: Luiza Palhares Priscila exibe seu corpo seminu com adereços característicos do carnaval carioca, usando uma máscara de flandres, objeto de tortura usado durante o período escravocrata. Ao som de enredos de escolas de samba tradicionais do carnaval do Rio de Janeiro, a artista samba ininterruptamente até a exaustão, lembrando a simbologia da passista, símbolo do carnaval. As palavras de cunho pejorativo coladas ao seu corpo, em um ritual propagandístico da sexualização da mulher negra, compõem a imagem exportada pelo modernismo e consolidada midiaticamente. O corpo exausto movimenta e sustenta palavras que representam os estereó tipos raciais, expressando os limites dos seus movimentos e o cansaço, em uma metáfora sobre os limites dos papéis sociais e dos olhares sobre si. A nudez negra em sua obra assume um eixo estruturante da crítica à ordem política colonialista, na qual corpos femininos negros foram e continuam sendo usados como instrumentos concretos e simbólicos de dominação e práticas de poder Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 74 coloniais. A nudez como forma de demarcar a disponibilidade também está presente na performance Purificação II (2014), da mesma artista (ver figura 7). O corpo à disposição para ser nomeado, tocado e inscrito é o mesmo historicamente apropriado pelo racismo do sistema colonialista (Quijano, 2002). Priscila Rezende oferta seu corpo, silenciado com uma tarja na boca, para que o público preencha com palavras pejorativas que a sociedade brasileira utiliza para se referir à mulher negra, expondo associações à devassidão, animalização e disponibilidade sexual. No fim, após o preenchimento, o corpo da artista é lavado em água corrente como um processo de limpeza e purificação. Nesse sentido, a artista deixa evidente a percepção dos limites do seu corpo em uma sociedade desigual em raça e gênero, propondo processos artísticos que estabelecem novos olhares sobre o corpo da mulher negra. FIG. 7: Performance Purificação II (2014), Belo Horizonte (MG), Priscila Rezende. Foto: Felipe Messias A artista visual maranhanse Gê Viana também aborda em seus trabalhos temáticas amplas dentro da perspectiva de resistência e permanência de corpos de mulheres negras, dando visibilidade à mulher lésbica, periférica e afroindígena. Nesse sentido, ao reivindicar a existência de outras sexualidades que não aquela em subserviência ao homem branco – representada pela imagem de controle da Jezebel –, a artista reconhece que a mulher negra comumente é masculinizada e Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 75 “deemed ‘freaky’ if she desires sex with other women” (Collins, 2002, p. 83)5. Retomar o poder sobre seu corpo afetivo e sua sexualidade é um modo de propor ações decoloniais artísticas que potencializam a existência das mulheres, sobretudo aquelas racializadas. A série de fotomontagens Sapatonas (2018), então, extrapola o espaço institucional da arte em imagens coladas nos muros dos espaços urbanos e rurais com algumas sobreposições de casais lésbicos negros e indígenas, através da exposição de corpos em atos de afetividade em público (ver figura 8). Seus lambelambes geram ressignificação e visibilidade para pessoas e sexualidades que estão em constante processo de apagamento, bem como provocam reflexões provocativas entre presente e passado em uma crítica em torno da necessidade emergencial de efetivação de mudanças concretas para grupos LGBTQIA+. Nesse sentido, a obra de Gê Viana aproxima a questão amplificada de mulher lésbica também vista no trabalho ativista do corpo bélico, central, polissêmico e decolonial da artista paulista Musa Michelle Mattiuzzi6. A obra Sapatona, portanto, é uma ode ao corpo da mulher racializada em liberdade: “corpos que se cruzam, se saram, que querem estar bem nesse mundo e, a todo momento, estar vivos e amando” (Viana, 2020, p. 169). FIG. 8: Série Sapatonas (2018), Gê Viana. Fonte: Divulgação Sendo assim, artistas contemporâneas que afrontam a Jezebel desafiam 5 6 “considerada ‘aberração’ se deseja sexo com outras mulheres” (tradução nossa) Experimentado o Vermelho em Dilúvio (2016); Merci beaucoup, blanco! (2012) Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 76 o status quo que operam na ordem de um sistema de representação de cunho colonial sob a égide de políticas de dominação em suas expressões racistas, de gênero e sexualidade, uma vez em que a presença das afetividades lésbicas sempre foram negadas, brutalizadas e esforçadamente não reconhecidas no imaginário do papel social fetichista da mulher negra na sociedade brasileira patriarcal. A força de suas imagens-performances ressignifica através de uma afirmação biográfica do corpo negro feminino, como pensamento fronteiriço perpassado por padrões de sexualidade marcados pela colonialidade, criando, assim, uma consciência migrante dos indivíduos que habitam as fronteiras e rotas de dispersão e, consequentemente, condições para uma estética decolonial feminista. 4. Enfim, o Axexê das imagens coloniais de controle De maneira distinta e autoral, as artistas contemporâneas aqui citadas formam um grupo de sujeitos subalternizados historicamente que reivindicam a morte de seus cerceamentos e o fortalecimento de narrativas próprias sobre suas subjetividades. Nesse sentido, a estética decolonial nas artes visuais é construída por fragmentos de modos de resistência, sejam eles construídos pelas materialidades das obras, sejam eles produzidos pela simples inscrição do corpo e das vivências das artistas, cuja existência, em sua completude, não pôde florescer. Nesse sentido, a partir de suas iniciativas, há o questionamento estético do olhar historicamente e artisticamente branco sobre a mulher negra, renegando seu espaço e sua autonomia subjetiva. Imagens que controlam a existência feminina e negra, que atribuem submissão, animalização, agressividade e uso, são contestadas de forma potente, demandando por um renascimento da mulher, do seu corpo e da sua alma negra. Performances e produtos artísticos contemporâneos, portanto, se reúnem para compor um grande ritual de decolonialidade, propondo o enterro do olhar alheio, branco e masculino sobre as narrativas da mulher negra. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 77 FIG. 9: Performance Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam serem amadas (2017), Renata Felinto. Fonte: Divulgação A performance Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam serem amadas (2017), da artista Renata Felinto, é, portanto, a obra que representa esta ritualização do nascimento de práticas e experiências estéticas decoloniais para artistas negras (ver figura 9). A cerimônia fúnebre (axexê) tem o objetivo de um “desfazimento” ou dessacralização da pessoa iniciada dentro do candomblé nagô, no sentido de liberação do Orixá protetor do corpo matéria. É realizado um enterro da espiritualidade coletiva de mulheres negras que foram amas de leite no Brasil escravocrata a partir da pintura A Negra (1923), de Tarsila do Amaral, em uma crítica ao culto feito por décadas na história da arte brasileira aos modelos modernistas que carregam em si a gênese racista das elites escravocratas e a gentileza branca de representação. A performance amplia um ritual afetivo à vidas raptadas e violentadas de mulheres negras que mereciam serem amadas em corpo e almas. O funeral segue os rituais ancestrais ao enterrar os estereótipos e estigmas construídos e fortalecidos a partir do uso das imagens de controle (Collins, 2002) de figuras negras, adornando de forma decorativa as casas das famílias tradicionais das elites brasileiras como expressão de arte, adoração ao exótico e ostentação financeira. Em um movimento antropofágico inverso, a artista propõe simbolicamente a devolução à terra, em um processo de reterritorialização por sujeitos que partilham saberes, resistências e crenças na transformação. Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 78 Considerações finais Ao tocar o campo das artes visuais, a perspectiva feminista negra rompe a lógica discursiva e o olhar androcêntrico de representação e inscrição presente nas imagens de controle. Entre o tensionamento que caracteriza uma obrigação realista e inadiável de retratar as problemáticas que envolvem a mulher negra e o direito de fabular, estas artistas negras contemporâneas expressam suas propostas performáticas quebrando as grades do silenciamento colonial. Rosana Paulino, Priscila Rezende, Renata Felinto, Aline Motta e Gê Viana constroem, portanto, embates discursivos, narrativos e estéticos, viabilizando a arte negra contemporânea feminista como um escape de formas e políticas visuais de representação identitária já sedimentadas no imaginário brasileiro. Ao reconhecer que são diversas, portanto, as manifestações deste modo de fazer artístico contemporâneo, que se fundamenta pela resistência a narrativas da colonialidade, aqui são elencados e descritos aqueles que questionam a imagem das mulheres negras nas artes visuais. O conceito de imagens de controle, aqui pensado como aparato teórico-metodológico, serve à compreensão dos pontos de partida destas manifestações, que comunicam suas resistências a modos de cerceamento já cristalizados no todo imagético atribuído ao corpo negro feminino. Entende-se que, a partir do reconhecimento destes limites subjetivos, estas mulheres articulam as experiências de trauma, vigilância e violência, redefinindo os territórios de segregação por meio de um corpo negro feminino bélico. A luta, portanto, deste corpo negro por tanto tempo animalizado, não serve à associação da hostilidade, mas à reivindicação, inclusive, pela sua delicadeza e afetividade. Mulheres negras artistas, então, constroem um universo artístico de potência que pode ser encarado como material comunicacional e histórico, revelando a força das imagens e da arte para a compreensão dos tensionamentos, das negociações e das retomadas de sentido na sociedade e na cultura. Se, aqui, foram expostos três modos de resistência a três imagens de controle (Mammy, Jezebel e Matriarca) sedimentadas na realidade social, a partir do questionamento à domesticação, à sexualização e ao abandono, outras imagens, pensadas por Dossiê Crise, Feminismo e Comunicação – https://revistaecopos.eco.ufrj.br/ ISSN 2175-8689 – v. 23, n. 3, 2020 DOI: 10.29146/eco-pos.v23i3.27572 79 Collins (2002), podem ser postas sob escrutínio, sobretudo aquelas que associam mulheres negras à pobreza e à dependência do Estado (Welfare Mother). Nesse sentido, este trabalho propõe este debate, entendendo que a reterritorializacão simbólica deste corpo negro feminino, através de suas práticas artísticas, políticas e comunicacionais, possibilita uma integração de memórias e saberes no alargamento da dimensão epistemológica da arte, da comunicação e da estética. Referências bibliográficas ARAÚJO, Emanoel (Org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. 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