UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
UNIFESP
ANAIS DO ENCONTRO INTERNACIONAL DE
PESQUISADORES EM ARTE ORIENTAL
ORIENTE-SE: AMPLIANDO FRONTEIRAS
Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Michiko Okano
(Orgs.)
São Paulo
21, 22 e 23 de maio 2014
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem
os meios empregados, sem citação da fonte e créditos devidos.
O conteúdo e a redação dos artigos é de responsabilidade de seus autores.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca do EFLCH / UNIFESP, Guarulhos, SP
E56a
Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental (2014 : São Paulo, SP)
Anais [recurso eletrônico] / Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte
Oriental : oriente-se : ampliando fronteiras; org. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi, Michiko
Okano. - Dados eletrônicos - São Paulo: UNIFESP, 2014.
990.p.; il.
Disponível em: www.outrosorientes.com
ISBN: 978-85-66540-08-6
Inclui bibliografias
1. História da Arte; 2. Arte Asiática; 3. Arte Oriental; 4.Arte Japonesa; 5. Arte
Indiana; 6. Arte Chinesa; 7. Arte Tibetana; 8. Arte Coreana; 9. Arte Islâmica; 10. Arte
Cinema Asiático; 11. Teatro; 12. Dança; I. Aldrovandi, Cibele Elisa Viegas II. Okano,
Michiko III. Título
CDD
709
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
Reitora: Profa. Dra. Soraya Soubhi Smaili
Vice-Reitora: Profa. Dra. Valeria Petri
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Diretor: Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez
Vice Diretora: Profa. Dra. Marineide de Oliveira Gomes
Departamento de História da Arte
Chefe: Profa. Dra. Marina Soler Jorge
Vice-chefe: Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes
Grupo de Pesquisa Outros Orientes:
Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Prof. Dr. Afonso Medeiros
Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
Profa. Dra. Michiko Okano
Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas
Programa de Pós-Graduação em História da Arte
Coordenadora: Profa. Dra. Angela Brandão
Vice-coordenador: Prof. Dr. José Geraldo Costa Grillo
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Organização e Realização
Universidade Federal de São Paulo/Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/
Programa de Pós-Graduação em História da Arte
Grupo de Pesquisa Outros Orientes:
Profa. Dra. Cibele Elisa ViegasAldrovandi
Prof. Dr. Afonso Medeiros
Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
Profa. Dra. Michiko Okano
Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas
Coordenação Geral
Profa. Dra. Michiko Okano
Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Vice-coordenação: Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
Comissão Organizadora
Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Prof. Dr. Afonso Medeiros
Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
Profa. Dra. Michiko Okano
Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas
Comissão Científica
Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici
Profa. Dra. Cecília Mello
Dra. Cecília Noriko Ito Saito
Profa. Dra. Christine Greiner
Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Prof. Dr. Jens Michael Baumgarten
Prof. Dr. Afonso Medeiros
Profa. Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro
Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt
Profa. Dra. Michiko Okano
Profa. Dra. Patrícia Souza de Faria
Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas
Prof. Dr. Tai Hsuan An
5
Equipe Técnica
Evento/Recepção
Vinícius de Assis (coordenação)
Ana Paula dos Santos Salvat
Beatriz Faria Santos
Bianca Mayumi Saijo
Bruno Pereira
Carolina Ciolin
César Kenzo Nakashima
Felipe Ikehara
Gabriela Tamy Gushiken
Vinícius Angelon Scopin
Marco Antonio Baena Fernandes Filho
Evento/Monitoria
Karina Ayumi Ekami Takiguti
Mariany Toriyama Nakamura
Simonia Fukue Nakagawa
Evento/ Fotografia
Karina Ayumi Ekami Takiguti
Marco Antonio Baena Fernandes Filho
Vinícius de Assis
Evento/Filmagem
Marina Machado Ferreira
Rodrigo Fernandes
Simonia Fukue Nakagawa
Evento/Apoio a palestrantes
Lúcia Abreu Machado
Yukie Hori
Design gráfico e identidade visual
Yukie Hori
Livreto/Editoração
Simonia Fukue Nakagawa
Yukie Hori
Livreto/Revisão
Lúcia Abreu Machado
Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama
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Livreto/Fotos
Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Maria Fernanda Lochschmidt
Michiko Okano
Yukie Hori
Site
Mariany Toriyama Nakamura
Yukie Hori
Assessoria Financeira
Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama
Anais
Organização
Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Michiko Okano
Editoração/Revisão Final
Cibele Elisa Viegas Aldrovandi
Editoração/Revisão
Karina Ayumi Ekami Takiguti
Mariany Toriyama Nakamura
Yukie Hori
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Apoio Financeiro e Institucional
Patrocínio
CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
Apoio Institucional
Consulado Geral do Japão
Consulado Geral da Índia
Advantage Austria
Parceria
Pinacoteca do Estado de São Paulo
FAP Unifesp
Colaboração
Korin
Shefa
Agradecimentos
Cristiane de Mello Shirayama – Bibliotecária Unifesp
Magda Guimarães – Bibliotecária Masp
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ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTE ORIENTAL
ORIENTE-SE: AMPLIANDO-SE FRONTEIRAS
APRESENTAÇÃO
O Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental, pioneiro nos
estudos de Arte Asiática e aberto a pesquisadores com chamadas por edital no
Brasil, tem como objetivo discutir, a partir das recentes revisões historiográficas, a
produção artístico-cultural do Oriente, principalmente do Japão, da China e da Índia,
bem como de sua circulação e recepção em diferentes geografias.
Organizado pelo Programa de Pós-Graduação de História da Arte da
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Guarulhos, e o Grupo de
Pesquisa Outros Orientes, esse encontro pretende reunir os pesquisadores de arte
oriental do país, juntamente com os especialistas internacionais e nacionais
convidados, visando uma inovação no entendimento da Arte e da História da Arte,
geralmente ainda circunscritas ao Ocidente em nosso país. A importância do Evento
reside na necessidade de uma compreensão mais equilibrada entre a História da
Arte Ocidental e Oriental, algo que já ocorre em muitos outros países. Propõe-se, a
partir da ampliação das fronteiras Oriente/Ocidente, questionar os paradigmas que
fundamentaram essas áreas de pesquisa por um longo período, apostando na
compreensão do mundo global que reconhece a fecundidade das diferenciações
culturais e concebe a pluralidade de suas manifestações.
O Grupo de Pesquisa Outros Orientes, dedicado ao estudo da Arte Oriental
no Brasil, tem como histórico, primeiramente, a realização do fórum “Oriente-se:
Estado da Questão”, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2012, na Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Nesse evento, foram apresentados artigos sobre Arte Asiática de
nove pesquisadores convidados.
Em 2013, foi realizado o simpósio “Entre Orientes e Ocidentes” no 22°
Encontro da ANPAP (Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas),
organizado pela Universidade Federal do Pará, de 16 a 20 de outubro, no qual 14
pesquisadores apresentaram seus textos sobre a Arte do Oriente.
Este evento, de espectro internacional, ”Oriente-se: Ampliando Fronteiras”,
tem a intenção de proporcionar o acesso às pesquisas recentes da área bem como
o conhecimento mútuo, o intercâmbio entre os pesquisadores nacionais e
estrangeiros e, sobretudo, uma gradativa consolidação dos estudos da Arte Asiática
em nosso país.
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PROGRAMAÇÃO
Quarta-feira, 21 de maio | Teatro Marcos Lindenberg Rua Botucatu, 862
09:00 - 09:30
Inscrição
09:30 - 10:30
Abertura
10:30 - 11:30
PALESTRA INAUGURAL • PROF. PARTHA MITTER
Os equívocos interpretativos do Ocidente sobre a arte sacra Indiana
11:30 - 12:30
PALESTRA • PROFA. SILVIA SELIGSON
Esplendores da arte oriental na sociedade Mexicana
12:30 – 14:00
Almoço
14:00 - 14:30
Abertura da Sessão de Comunicação
Afonso Medeiros | Japonismo, mas “non Troppo”: a história da arte como campo
privilegiado da dissimulação etnocêntrica
14:30 - 16:30
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES
Arte: Tradição/Transformação
16:30 - 18:00
18:00 - 18:30
18:30 - 20:00
FERNANDO CARLOS CHAMAS | O vazio na arte Zen-Budista
KATIA MARIA PAIM POZZER | Memória cultural na gênese da arte islâmica
RAFAEL TADASHI MIYASHIRO | Linha e expressão na caligrafia japonesa
MARIA FERNANDA LOCHSCHMIDT | O exercício da cópia na arte chinesa
NEIDE HISSAE NAGAE | Yamato-e e waka - A pluralidade da arte japonesa
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES
Arte: Tradição/Transformação
KARINA AYUMI EKAMI TAKIGUTI | A imagem da máfia: uma análise sobre as
tatuagens da yakuza
YUKIE HORI | A cor e a linha nos jardins em estilo karesansui
ANA PAULA DOS SANTOS SALVAT | O display e as questões culturais: o caso
dos guerreiros de Xi’an
MARCO ANTONIO BAENA FERNANDES FILHO | As exposições de Zhāng Dàqiān
no Brasil: fragmentos de uma aproximação incompreendida
VINÍCIUS DE ASSIS | 30 dias em dharamsala: residência com um pintor tibetano
Intervalo
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES
Arte: Moderno/Contemporâneo
LUIS CARLOS BARROSO DE SOUSA GIRÃO | A narrativa pictórica na “Trilogia da
margem” de suzy lee
SIMONIA FUKUE NAKAGAWA | Basara em: shôjo e shônen mangá
LAÍS MIWA HIGA | sobre mãos e coisas que (não) existem mais: arte e memória
no regime visual da comunidade okinawana em são Paulo
PAULO ANDRÉ GOMES SOARES | O canto da cigarra: mono no aware na obra de
hirokazu Koreeda
JUILY JYOTSNA SEIXAS MANGHIRMALANI | Bollywood, identidade cultural e
representação
20:00 - 21:00
PALESTRA • PROFA. MARIA ANTÓNIA P. DE MATOS
As mais antigas porcelanas encomendadas pelos europeus à China
Quinta-feira, 22 de maio | Pinacoteca do Estado de são Paulo Praça da luz, 2
10:00 - 12:30
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES
Arte: Diálogos/Circulações
ANA TAGLIARI / SARKIS SERGIO KALOUSTIAN | Jardim japonês e Usonian
house: proximidades conceituais
ANGELA BRANDÃO | um Oriente para Tarsila do Amaral
CIBELE ELISA VIEGAS ALDROVANDI | De outras imagens: uma topografia
imagético-discursiva do Mahāparinirvāṇa do Buda no Sudeste Asiático
MARCOS HORÁCIO GOMES DIAS | O gosto orientalizante na arte mineira do
século XvIII
MICHIKO OKANO | A estética kawaii: Origem e diálogo
JENS BAUMGARTEN | Circulação da arte colonial no Brasil e nas filipinas: uma
abordagem para uma análise comparative
12:30 - 14:00
Almoço
14:00 - 16:00
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES
Arte: Cinema
CECILIA MELLO | Cinema, espaço e intermidialidade em Em Busca da Vida de Jia
Zhang-Ke
MARÍLIA AIKO KUBOTA | A escrita na pele ou a marca da morte na literatura e no
cinema japonês
MARI SUGAI | O cotidiano familiar em Seguindo em frente
LÚCIA RAMOS MONTEIRO | Ruínas em deslocamento. Still life (2005), de Jia
Zhang-Ke, os filmes de barragem e a resposta da arte chinesa à hidrelétrica das
três gargantas
GUSTAVO HENRIQUE LIMA FERREIRA | Diferentes faces da arte nos filmes de
Takeshi Kitano
16:00 - 17:30
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES
Arte: Diálogos/Circulações
MARIA APARECIDA CORDEIRO KATSURAYAMA | A influência da arte japonesa
na representação da espacialidade impressionista
VICTOR RAPHAEL RENTE VIDAL | Mira Schendel e a pintura chinesa
BRUNO PEREIRA DE ARAÚJO | Na face oculta da lua: o Japão de Claude LéviStrauss - Alguns comentários
REGIANE AKEMI ISHII | O corpo e a câmera em Tóquio – Dois viajantes: Chris
Marker e Wim Wenders
CAROLINA CARMINI MARIANO LUCIO | Rupturas e continuidades – As
percepções da produção de artistas japoneses e nipo-brasileiros a partir das quatro
exposições
17:30 - 18:00
Intervalo
18:00 - 19:00
Apresentação de Pôsteres
19:00 - 20:00
PALESTRA • PROF. HIROTOSHI SAKAGUCHI
A abertura do Japão: mudanças provenientes da ocidentalização e a atualidade da
arte japonesa
20:00 - 21:00
PALESTRA • PROF. AKIRA TAKAGISHI
Estudos do emaki: passado, presente e futuro
Sexta-feira, 23 de maio | Pinacoteca do Estado de são Paulo Praça da luz, 2
10:00 - 12:30
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES
Arte: Corpo/Expressão
CASSIANO SYDOW QUILLICI | O “grupo de Arte Ponkã” e a vanguarda teatral
paulista da década de 80
MATTEO BONFITTO JUNIOR | A dimensão tácita como eixo do trabalho do ator
nos teatros orientais
ÂNGELA MAYUMI NAGAI | Nô Brasil: aspectos da tradição hoje
JORGE LÚZIO MATOS SILVA | O legado das esculturas e templos védicos em
composições estéticas da dança clássica indiana
SAULO DE AZEVEDO FREIRE | Quando a flecha atinge a si mesmo – A arte zen
do kyûdô como campo de mediações de contatos interculturais entre Oriente e
Ocidente
12:00 - 13:30
Almoço
13:30 - 15:30
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES
Arte: Moderno/Contemporâneo
15:30 - 16:00
16:00 - 17:00
17:00 - 18:00
ANA AMÉLIA CORAZZA GENIOLI | Encontros na obra de Lee Ufan
ROSANA PEREIRA DE FREITAS | sobre a arte de prever o futuro
MARIANY TORIYAMA NAKAMURA | Arte e cultura pop nipo-brasileira: A estética
e o fazer artístico em tempos de interação e participação, formas de sociabilidade
na sociedade da informação
ERIKA KOBAYASHI | Coletivo de artistas moyashis: novos olhares sobre a
cultura japonesa
CÍNTIA MARIZA DO AMARAL MOREIRA | Tradição e modernismo europeu e
chinês em retratos de fan Tchunpi: uma introdução
Intervalo
PALESTRAS DE ENCERRAMENTO
PROFA. MADALENA HASHIMOTO CORDARO
A transição de uma era em sua mais florida expressão
PROF. JOSÉ ROBERTO TEIXEIRA LEITE
Acerca de Chinoiseries
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 9!
PROGRAMAÇÃO................................................................................................................................. 10!
PALESTRAS ........................................................................................................................................ 17!
WESTERN MISREPRESENTATIONS OF INDIAN SACRED ART - Partha Mitter ............. 18!
DESTELLOS DEL ARTE ORIENTAL EN LA SOCIEDAD MEXICANA - Silvia Seligson .... 30!
AS MAIS ANTIGAS PORCELANAS ENCOMENDADAS PELOS EUROPEUS À CHINA Maria Antónia P. de Matos.................................................................................................. 48!
THE OPENING UP OF JAPAN: CHANGES BROUGHT ABOUT BY THE
WESTERNIZATION OF JAPANESE FINE ART, AND THE PRESENT DAY SITUATION Hirotoshi Sakaguchi............................................................................................................ 78!
EMAKI STUDIES: PAST, PRESENT, AND FUTURE - Akira Takagishi ............................. 88!
A TRANSIÇÃO DE UMA ERA EM SUA MAIS FLORIDA EXPRESSÃO - Madalena
Hashimoto Cordaro ........................................................................................................... 103!
ACERCA DE CHINOISERIES - José Roberto Teixeira Leite........................................... 119!
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES SENIORES .................................................... 128!
JAPONISMO, MAS “NON TROPPO”: A HISTÓRIA DA ARTE COMO CAMPO
PRIVILEGIADO DA DISSIMULAÇÃO ETNOCÊNTRICA - Afonso Medeiros ................... 129!
O VAZIO NA ARTE ZEN-BUDISTA - Fernando Carlos Chamas...................................... 141!
MEMÓRIA CULTURAL NA GÊNESE DA ARTE ISLÂMICA - Katia Maria Paim Pozzer .. 156!
LINHA E EXPRESSÃO NA CALIGRAFIA JAPONESA - Rafael Tadashi Miyashiro ........ 168!
O EXERCÍCIO DA CÓPIA NA ARTE CHINESA - Maria Fernanda Lochschmidt ............ 186!
YAMATO-E E WAKA - A PLURALIDADE DA ARTE JAPONESA - Neide Hissae Nagae . 200!
JARDIM JAPONÊS E USONIAN HOUSE - Ana Tagliari / Sarkis Sergio Kaloustian...... 217!
UM ORIENTE PARA TARSILA DO AMARAL - Angela Brandão ...................................... 237!
DE OUTRAS IMAGENS: UMA TOPOGRAFIA IMAGÉTICO-DISCURSIVA DO
MAHĀPARINIRVĀṆA DO BUDA NO SUDESTE ASIÁTICO - Cibele Elisa Viegas
Aldrovandi.......................................................................................................................... 253
O GOSTO ORIENTALIZANTE NA ARTE MINEIRA DO SÉCULO XVIII - Marcos Horácio
Gomes Dias........................................................................................................................ 273!
A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO - Michiko Okano...................................... 288!
CIRCULAÇÃO DA ARTE COLONIAL NO BRASIL E NAS FILIPINAS: UMA ABORDAGEM
PARA UMA ANÁLISE COMPARATIVA - Jens Baumgarten ............................................ 308!
CINEMA, ESPAÇO E INTERMIDIALIDADE EM EM BUSCA DA VIDA DE JIA ZHANG-KE Cecilia Mello....................................................................................................................... 323!
A ESCRITA NA PELE OU A MARCA DA MORTE NA LITERATURA E NO CINEMA
JAPONÊS - Marília Aiko Kubota ....................................................................................... 338!
O COTIDIANO FAMILIAR EM SEGUINDO EM FRENTE - Mari Sugai ............................ 348!
RUÍNAS EM DESLOCAMENTO. STILL LIFE (2005), DE JIA ZHANG-KE, OS FILMES DE
BARRAGEM E A RESPOSTA DA ARTE CHINESA À HIDRELÉTRICA DAS TRÊS
GARGANTAS - Lúcia Ramos Monteiro ............................................................................ 362!
DIFERENTES FACES DA ARTE NOS FILMES DE TAKESHI KITANO - Gustavo Henrique
Lima Ferreira...................................................................................................................... 382!
O “GRUPO DE ARTE PONKÔ E A VANGUARDA TEATRAL PAULISTA DA DÉCADA DE
80 - Cassiano Sydow Quillici............................................................................................ 402!
A DIMENSÃO TÁCITA COMO EIXO DO TRABALHO DO ATORNOS TEATROS
ORIENTAIS - Matteo Bonfitto Junior................................................................................ 416!
NÔ BRASIL: ASPECTOS DA TRADIÇÃO HOJE - Ângela Mayumi Nagai ....................... 428!
O LEGADO DAS ESCULTURAS E TEMPLOS VÉDICOS EM COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS
DA DANÇA CLÁSSICA INDIANA - Jorge Lúzio Matos Silva ........................................... 447!
QUANDO A FLECHA ATINGE A SI MESMO – A ARTE ZEN DO KYUDÔ COMO CAMPO
DE MEDIAÇÕES DE CONTATOS INTERCULTURAIS ENTRE ORIENTE E OCIDENTE Saulo De Azevedo Freire .................................................................................................. 463!
ENCONTROS NA OBRA DE LEE UFAN - Ana Amélia Corrazza Genioli........................ 479!
SOBRE A ARTE DE PREVER O FUTURO - Rosana Pereira de Freitas ......................... 490!
ARTE E CULTURA POP NIPO-BRASILEIRA: A ESTÉTICA E O FAZER ARTÍSTICO EM
TEMPOS DE INTERAÇÃO E PARTICIPAÇÃO, FORMAS DE SOCIABILIDADE NA
SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO - Mariany Toriyama Nakamura ................................... 507!
COLETIVO DE ARTISTAS MOYASHIS: NOVOS OLHARES SOBRE A CULTURA
JAPONESA - Erika Kobayashi .......................................................................................... 526!
TRADIÇÃO E MODERNISMO EUROPEU E CHINÊS EM RETRATOS DE FAN TCHUNPI:
UMA INTRODUÇÃO - Cíntia Mariza do Amaral Moreira ................................................ 542!
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES JUNIORES .................................................... 553!
A IMAGEM DA MÁFIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS TATUAGENS DA YAKUZA - Karina
Ayumi Ekami Takiguti ....................................................................................................... 554!
A COR E A LINHA NOS JARDINS EM ESTILO KARESANSUI - Yukie Hori .................... 572!
O DISPLAY E AS QUESTÕES CULTURAIS: O CASO DOS GUERREIROS DE XI´AN - Ana
Paula dos Santos Salvat ................................................................................................... 588!
AS EXPOSIÇÔES DE ZHĀNG DÀQIĀN NO BRASIL: FRAGMENTOS DE UMA
APROXIMAÇÂO INCOMPREENDIDA - Marco Antonio Baena Fernandes Filho........... 601!
30 DIAS EM DHARAMSALA: RESIDÊNCIA COM UM PINTOR TIBETANO - Vinícius de
Assis ................................................................................................................................... 620!
INFLUÊNCIA DA ARTE JAPONESA NA REPRESENTAÇÃO DA ESPACIALIDADE
IMPRESSIONISTA - Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama ....................................... 638!
MIRA SCHENDEL E A PINTURA CHINESA - Victor Raphael Rente Vidal ..................... 654!
NA FACE OCULTA DA LUA: O JAPÃO DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS – ALGUNS
COMENTÁRIOS - Bruno Pereira de Araújo ..................................................................... 673!
SOBRE MÃOS E COISAS QUE (NÃO) EXISTEM MAIS: ARTE E MEMÓRIA NO REGIME
VISUAL DA COMUNIDADE OKINAWANA EM SÃO PAULO - Laís Miwa Higa ................ 684!
RUPTURAS E CONTINUIDADES: AS PERCEPÇÕES DA PRODUÇÃO DE ARTISTAS
JAPONESES E NIPO-BRASILEIROS A PARTIR DE QUATRO EXPOSIÇÕES - Carolina
Carmini Mariano Lucio...................................................................................................... 703!
A NARRATIVA PICTÓRICA NA “TRILOGIA DA MARGEM” DE SUZY LEE Luis Carlos
Barroso de Sousa Girão ................................................................................................... 720!
BASARA EM: SHÔJO E SHÔNEN MANGÁ - Simonia Fukue Nakagawa ....................... 733!
O CORPO E A CÂMERA EM TÓQUIO – DOIS VIAJANTES: CHRIS MARKER E WIM
WENDERS - Regiane Akemi Ishii ..................................................................................... 747!
O CANTO DA CIGARRA: MONO NO AWARE NA OBRA DE HIROKAZU KOREEDA Paulo André Gomes Soares ............................................................................................. 756!
BOLLYWOOD, IDENTIDADE CULTURAL E REPRESENTAÇÃO - Juily Jyotsna Seixas
Manghirmalani ................................................................................................................... 766!
PÔSTERES ........................................................................................................................................ 786
A CRIAÇÃO NO UNIVERSO DO RYÛKYÛ BUYÔ: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
ÉTNICA INDIVIDUAL - Alexandre Cardoso Oshiro ......................................................... 787!
A FUNÇÃO DAS TRADIÇÕES TEATRAIS ORIENTAIS NO TRABALHO DE CRIAÇÃO DO
THÉÂTRE DU SOLEIL - Aline de Almeida Olmos............................................................ 804!
A ARQUITETURA JAPONESA DEPOIS DO TSUNAMI - Lorea Ariadna Ruiz Gómez .... 821!
FU BAOSHI E UMA ANÁLISE DA PINTURA MODERNA - Beatriz Faria Santos............. 831!
A MEMÓRIA MATERIAL DO INTERCÂMBIO CHINA-PORTUGAL NA ARTE SACRA
PAULISTA: CAPELA DE SANTO ANTÔNIO EM SÃO ROQUE E IGREJA DE NOSSA
SENHORA DO ROSÁRIO NO EMBU DAS ARTES - Beatriz Vicente de Azevedo.......... 848!
ơw!ƪ: A HISTÓRIA DO SUPORTE - Camila Ferreira Iquiene da Silva ..................... 859!
O IMAGINÁRIO NA EDUCAÇÃO CLÁSSICA INDO-TIBETANA - Daniel Confortin ......... 869!
HISTÓRIA DAS TÉCNICAS DA ARTE DO CHARÃO NO JAPÃO - Francis Jean Yves
Marie ................................................................................................................................... 888!
UM OCIDENTE ORIENTAL - Hannah Basilio Ferreira da Cunha ................................... 909!
AS METÁFORAS DO VENTO EM HAYAO MIYAZAKI - Kamilla Medeiros do
Nascimento ........................................................................................................................ 920!
CHÁ: A EXPERIÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM A CULTURA ORIENTAL Rebeca
Chiarini Alcântara.............................................................................................................. 931!
ANÁLISE DE PERCURSO E ESTUDO DE RELAÇÕES ENTRE ORIENTE E OCIDENTE
NO ACERVO DA FUNDAÇÃO CULTURAL EMA GORDON KLABIN EM SÃO PAULO – SP
Vinícius Angelon Scopin .................................................................................................. 949!
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE UMA EXPOSIÇÃO DE ARTE JAPONESA NO RIO DE
JANEIRO EM 1921 - Vinicius Moraes Aguiar / Arthur Valle ........................................... 965!
ARTES SACRAS DO BUDISMO TIBETANO – HISTÓRIA, SÍMBOLOS E PRÁTICA –
Tifanni Hollack Gyatso...................................................................................................... 975!
PALESTRAS
WESTERN MISREPRESENTATIONS OF INDIAN SACRED ART
OS EQUÍVOCOS INTERPRETATIVOS DO OCIDENTE
SOBRE A ARTE SACRA INDIANA
Partha Mitter
Emeritus Professor
University of Sussex and Wolfson College, Oxford
ABSTRACT: My talk will be based on my work, Much Maligned Monsters, History of
European Reactions to Indian art, which traces the evolution of western misrepresentations
of Indian art from their roots in the Middle Ages. Even today, judged by western standards,
the many-armed Hindu gods are viewed as monsters, in other words irrational. The origins of
such clash of Indian and European taste go back to the fabulous tradition of Indian monsters
inherited from the Greeks, and to the Christian tradition of demons of the Apocalypse and
hell imagery. The early European travellers to India often saw monsters where artists had
intended gods. When they published descriptions of Hindu gods, they preferred to quote
what they had read in Pliny rather than trust their own sight. These stereotypes of monsters
fill the pages of travels accounts and masquerade as Indian gods. The stereotypes were
partly the result of ignorance of Hinduism. The talk will end in the late seventeenth century,
when at last the monster stereotype was discarded as Hindu gods began to get back their
true forms. With the rise of British Rule, colonial archaeology helped consolidate the
knowledge of ancient Indian monuments that laid the foundation of Indian art history.
However, even with such impressive accumulation of knowledge there remained the problem
of understanding, whose origins go back to late medieval period.
Keywords: Indian art, Hindu gods; Western stereotypes; Early European travellers; Culture
clash.
RESUMO: Minha palestra será baseada no meu livro Much Maligned Monsters, History of
European Reactions to Indian Art [Monstros Muito Malignos – a História das Reações
Europeias à Arte Indiana], que traça a sucessão de equívocos interpretativos sobre a Arte
Indiana desde as suas raízes, na Idade Média. Mesmo hoje, julgado pelos padrões
ocidentais, os deuses hindus de braços múltiplos são vistos como monstros, em outras
palavras, irracionais. As origens deste choque entre o gosto indiano e europeu remonta à
fabulosa tradição de monstros indianos herdada dos gregos, e à tradição cristã de demônios
da imaginária do Apocalipse e do inferno. Os primeiros viajantes europeus na Índia
frequentemente viram monstros onde os artistas pretenderam divindades. Ao publicarem
descrições dos deuses hindus, eles preferiram citar o que haviam lido em Plínio, ao invés de
confiarem em seus próprios olhos. Esses estereótipos de monstros preenchem as páginas
das narrativas de viagem, disfarçados como deuses indianos. Esses estereótipos foram em
parte o resultado do desconhecimento sobre o Hinduísmo. A palestra se encerra no final do
século XVII, quando finalmente o estereótipo do monstro foi descartado à medida que os
deuses hindus começaram a tomar suas verdadeiras formas. Com o estabelecimento do
Governo Britânico, a arqueologia colonial ajudou a consolidar o conhecimento dos antigos
monumentos indianos que formaram as bases da História da Arte Indiana. No entanto,
mesmo com esse acúmulo impressionante de conhecimento o problema de entendimento
persistiu, cujas origens remontam ao período medieval tardio.
Palavras-chave: Arte indiana; deuses hindus; estereótipos ocidentais; primeiros viajantes
europeus; choque entre culturas.
18
The English conquest of India in the 18th century laid the foundations of
colonial archaeology, which systematically documented the remains of ancient Indian
Buddhist and Hindu art.
It prompted the creation of an Indian art history by the end of the 19th century.
The man who wrote the first history of Indian art and architecture was James
Fergusson. He famously said that the main feature of Indian art was that it was
written in decay, unlike western art, which continuously progressed until it reached its
apogee in his period, namely, the Victorian era (see FERGUSSON, 1876, p. 34;
MITTER, 2003, p. 264). Fergusson claimed to trace the decay from the early simple
Buddhist art of Sanchi and Amaravati their florid ornamentation and complicated
designs of Hindu temples of the later period. However, the main European antipathy
was directed towards the many-armed and many-headed Hindu gods.
Two leading 19th century thinkers, the German philosopher Hegel and the
English art critic Ruskin put this succinctly. Hegel puts his own gloss on the
monstrous gods:
Particular shapes are drawn out into colossal and grotesque proportions in
order that they may, as forms of sense, attain to universality… as in figures
with many heads, arms, and so on, by means of which this art strains to
compass the breadth and universality of the significance it assumes.
(HEGEL, 1920, p. 53 ff. apud. MITTER, 2003, p. 214)
Ruskin laments the absence of nature in Indian art:
It is quite true that the art of India is delicate and refined. But it has one
curious character distinguishing it from all other art of equal merit in design –
it never represents a natural fact… if it represents any living creature, it
represents that creature under some distorted and monstrous form… it will
not draw a man, but an eight-armed monster. (RUSKIN, 1905, p. 265 apud.
MITTER, 2003, p. 245)
The art historian Vincent Smith generously awarded ancient Indian art a
respectable second rank among world art, but it could hardly compare with the
perfection of a Classical Apollo or an Aphrodite (MITTER, 2003, 268). Until very
recently, judged by western classical standards, the many-armed Hindu gods and
goddesses were seen as monsters, in other words, irrational, contra naturam.
While colonial knowledge of ancient Buddhist and Hindu art and architecture
was impressive, proper aesthetic appreciation of ancient Indian art remained
19
inadequate. Why? To understand this curious anomaly we need to go back to the
first European explorations of the non-western world. The 13th-century Italian
merchant Marco Polo was one of the first western explorers of Asia. He also helped
arouse European curiosity about the manners and customs of the peoples of East.
He lived many years in China, and made only a brief visit to South India. His
description of Indian religious customs was nonetheless a refreshing change from the
earlier fabulous stories that circulated in the Middle Ages. However, one passage in
Polo deserves our close attention. It describes an idolatrous practice in South India:
They have certain abbeys in which there are gods and goddesses to whom
young girls are consecrated (…). And when the nuns of a convent desire to
make a feast to their god they send for the consecrated maidens who dance
and sing before the idol with great festivity. (MITTER, 2003, p. 4)
We do not know if Polo saw actual Indian temple dancers or was simply
repeating what he had heard. This passage however inspired a great medieval artist,
the Boucicaut Master, to try his hand at an exotic painting. This painting, The Dance
of the Slaves of God, occurs in the famous 14th-century manuscript, Le Livre des
Merveilles, a prize possession of the Bibliothèque Nationale in Paris. Now, if the
caption had not informed you, surely you would find it impossible to recognize it as a
painting of Indian temple dancers dancing before a Hindu deity. There is hardly any
resemblance between these European nuns and Indian temple dancers, and the
statue placed on a platform between two classical columns bear little relation to a
Hindu goddess (In medieval times all pagan gods were placed on classical columns
as a shorthand device for non-Christian, that is Greco-Roman gods).
So what is going on here? The famous art historian E. H. Gombrich had
alerted us to a curious phenomenon. In the Liber Chronicarum, better known as the
Nuremberg Chronicle (1493), the illustrator Michael Wolgemut wanted to represent
different cities of the world such Damascus, Mantua and Milan. Unless we are
prepared to accept that all these cities looked the same, the phenomenon needs
some explanation. What Wolgemut did here was to select from his storehouse of
stereotypes an appropriate cliché for a city and then apply it to all these cities.
Gombrich calls this the adapted stereotype, which made sense to the medieval
reader when captions were added! (GOMBRICH, 1960, p. 60).
20
This medieval tendency of using a pre-existing schema to represent an object
was also common to the Boucicaut Master whom I just mentioned. It is however an
extreme form of a universal principle. Whenever we attempt to understand something
unfamiliar we go from the known to the unknown. The human mind can only process
information by classifying it under a known category, such as here in the case of
Marco Polo: the Christian nuns standing for Indian temple dancers. In art, a preexisting schema serves as a starting point, which may be adapted in the light of the
actual subject. However, when that starting-point is too far removed from the subject
itself, as in the case of the dancing nuns of Coromandel, the representation bears no
relation to the object represented. We are unconvinced by the stereotyped image
here because we have better access to facts. Boucicaut followed Marco Polo’s text
faithfully but could not translate the literary description into a visual image
convincingly, as he had no first-hand experience of India. Thus the incongruity of the
Indian nuns dancing before this idol hits us today with some force (MITTER, 2003, p.
3-5).
Boucicaut’s nuns were an exception. Far more widespread were the
stereotypes of monsters that fill the pages of travels accounts and masquerade as
Indian gods. In fact, the roots of such ideas went back to the medieval period, and to
the Greco-Roman tradition it had inherited. In the Middle Ages, India had been
reduced to a fabulous name. Here was located the earthly paradise and here lived
monsters described lovingly by the Greeks and faithfully compiled by the Roman
historian Pliny the Younger. Stories of monopods, cynocaephali, martikhora and
many-armed creatures formed the collective fantasy of the educated. Rudolf
Wittkower’s path-breaking essay, The Marvels of the East: A Study in the History of
Monsters, shows that many of these monsters were of Indian origin. He comments
that the Greeks “rationalized [their instinctive] fears in another, non-religious form by
the invention of monstrous races and animals which they imagined to live at a great
distance in the East, above all in India” (WITTKOWER, 1942, p. 159-197).
Pliny’s monsters were anomalous creatures but utterly harmless. The situation
changed around 1000 CE when terrifying images of monsters and demons were
imagined during the fearful days of the first Millennium, which collapsed conceptions
of hell, demonology and the Antichrist of the Apocalypse. By the late Middle Ages an
21
elaborate and in many ways frightening imagery of demons and hell had grown up,
consisting of elements from diverse sources. The classical monsters and the
Christian demons converged at some stage in medieval history. The meeting of the
classical and the Christian tradition was made easier by St. Augustine. He asserted
that pagan gods were mortal just like other creatures and subject to the same Divine
Will which they were powerless to contravene. In short, classical monsters and gods,
Biblical demons and Indian gods were all indiscriminately lumped together with
congenital malformations under the all-embracing class of monster. In this twilight
region it is difficult to say with certainty where the line was drawn between the world
of facts and that of the imagination.
Significantly, the Nuremberg Chronicle includes among its monsters, an
anomalous multiple-armed creature, which was really a garbled version of a Hindu
god (WITTKOWER, 1942, p. 9).
The representation of Hindu gods as monsters had an amazing persistence.
When the first travellers arrived in India in the 14th and 15th centuries, they preferred
to trust what they had read in Pliny rather than the actual deities they saw with their
own eyes. This clash of classical and Indian taste is important of course. But perhaps
even more important is the religious dimension to early western responses to Indian
art. First of all, the Indian art that the travellers saw was profoundly religious, namely,
Hindu temple sculpture and architecture. Secondly, early European interest in Hindu
sacred art is not surprising at all, given the fact that this was the age of faith in the
West. Scepticism and scientific rationality that we have come to take for granted is
only as old as the Victorians, or perhaps even later.
The reaction to Hindu gods demonstrate the clash of two major faiths,
Christianity and Hinduism: one a religion of the book that believed in unity, uniformity
and suppression of dissent, while the other was a form of pluralism that embraced a
bewildering variety of views and beliefs accumulated over millennia. From the
moment, early explorers set foot in India, after a long and hazardous land or sea
journey, they were faced with the problem of making sense of what they identified as
the vast theatre of idolatry that was India. For, if, as the early Church Fathers had
admonished, and the Bible confirmed, that monotheism was God's precious gift to
22
Adam, how was it that he had left such a large region of the globe in the dire abyss of
idolatry? Idolatry fascinated as well as perplexed the first visitors.
Early reports, which contributed to the growing image of the Hindus, their
religion and their religious art, were at once, fragmented, and disparate, and yet so
sensational that they were extensively published in a number of European languages,
widely read and endlessly discussed by the educated. The full extent of idolatry,
practiced by pagans the world over, only slowly dawned on the Europeans. Initially,
travellers felt confident (with some justification) that Indians had been converted to
Christianity by St Thomas, and they would prove to be valuable allies against the
Moors or Muslims, who were threatening western Christendom. There is the story of
the Portuguese explorer Vasco da Gama's arrival in South India in 1498 and his
misinterpretation of a Hindu temple. I quote it here:
In Calicut, they took us to a large church built of stone. Inside the chapel was
a small image, which they said represented our lady. Major da Gama and we
said prayers, the priests sprinkled water and white earth. Many saints were
painted on the walls. (VELHO, 1995, p. 52.4)
Only later did the Portuguese discover to their fury that the Brahmin priests
were celebrating the worship of the local goddess, Mari Ammai.
One of the undoubted gains of the early European travellers was their firsthand experience of India and its people. Yet they could not help constantly recalling
medieval legends they often knew by heart. Brahmins, named the naked
philosophers or gymnosophists by the ancient Greeks, for instance, demonstrated in
their simple lives all the traits of the Christian saint and philosopher. The legend was
confirmed by the medieval text, Alexander Romance, which described how the
Brahmins had taught Alexander the folly of pride and worldly riches in a typical Indian
fashion that has continued to hold westerners in its grip (ROSS, 1963; DREW, 1987,
p. 145-182).
For the early travellers, the country was virtually a terra incognita. Hence one
can appreciate the enormous problems they faced. From the outset, there were
persistent attempts to fit the new material on Indian idolatry into the familiar mould of
Biblical literature – the accommodation of the unfamiliar into a familiar mind-set.
Naturally, they took as their guide the memorable passages in Pliny or the Alexander
23
Romance. The English compiler of voyages, Reverend Samuel Purchas, for instance,
devotes long chapters of a weighty volume to travellers to the East from the ancient
times to his own period (PURCHAS, 1613; HODGEN, 1964, p. 171, 215-218, 235238, and passim.).
Western perceptions of alien religions, more than any other aspect of culture,
take us to the very heart of the problem of translating concepts and values of one
system into another very different one. When we engage in the act of translating, we
in fact search for equivalents that may make sense. But the problem was that
Christianity and Hinduism represented two entirely different world-views. From their
perspective, European travellers faced a central problem of faith: were the Hindus
monotheistic or polytheistic? One may argue that this is not the sort of question that
engages the Hindus. The binary opposition between monotheism and polytheism - if
God is not one then he must be many – only makes sense in Christianity. In
monotheism, God's divinity is absolute, and he necessarily represents the Other, and
is in sum, what humans are not. Thus monotheism must have polytheism as its
binary opposite in order to make sense.
The Indian religious universe is very different in its relativism. It is populated
with living beings, hierarchically ordered, from the lowest to the highest, and joined in
a unifying chain of reincarnation. From this perspective, the supreme God in
Hinduism is a transcendental one but at the same time he can descend on earth and
relate to the devotee on a human level. Thus divinity in Hinduism can exist on a
number of levels, ultimately reaching the supreme godhead.
The problem of making sense of idolatry arose among Christians initially in
connection with the gods of ancient Greece and Rome, as I mentioned. The question
posed was: how did the error of idolatry arise in view of God's gift of monotheism to
mankind? Europeans were influenced by the following prevailing views about nonChristians: a) Christianity, the most ancient religion, taught monotheism to pagans; b)
pagans let this knowledge lapse; c) pagan cults were caricatures of the holy
sacrament and; d) the higher forms of paganism prefigured the arrival of the
evangelists, notably, the Greek philosopher Plato or the Indian Brahmins (see
Schmidt, 1988, p. 13-91).1
24
Given this framework, European visitors to India set about recovering the
‘monotheism’ concealed behind the garbled forms of Hindu polytheism. (In so doing,
they became aware of the syncretistic tendency of Hinduism to reconcile and unify
different belief systems.) One of the best-known early visitors to India was the Italian
gentleman traveller, Ludovico di Varthema, in the 16th century. He concluded from his
visit that even though the Hindus had received the revelation, they nonetheless
persisted in worshipping many false gods. According to him, the Indians
acknowledged one god, who created heaven and earth. But they also held that, as
god did not wish to take on the task of judging, he sent his spirit, namely, the devil, to
dispense justice. Having established the ultimate terms of Hindu monotheism to his
satisfaction, Varthema (1510) then devoted most of his attention to the demon
worship of Calicut, based, as he claimed, on observation. Here is the famous
passage:
In the midst of the chapel of the king of Calicut sits a devil made of metal on
a seat in the flame of fire; he has four horns, four teeth and wears a triple
crown like that worn by the Pope, and most terrible eyes. The said devil
holds a soul in his mouth with the right hand, and with the other seizes a
2
soul by the waist. (VARTHEMA, 1510 apud. MITTER, 2003, p. 19)
This was no Hindu god, but a conflation of different images of Anti-Christ in the
Middle Ages. Varthema (1510) claims that he had visited the chapel of the king of
Calicut; why then did he use medieval stereotypes to describe a Hindu god? We
know that he wished to translate an unfamiliar image into a language understood by
his contemporaries. But at this time, knowledge about Hinduism was rudimentary. So
Varthema was forced to fall back upon his inherited values. And these values in turn
were determined by his Christian background, which considered all non-Christian
religions as inspired by the devil. His German illustrator, Georg Breu knew at once
what Varthema (1515) was talking about and turned to several European traditions
for this engraving. The towering figure of Satan devouring sinners, while his
attendant creatures torture the damned, reminds us of the great fresco by Francesco
Traini at the Campo Santo in Pisa. The triple papal crown alludes to Popes in hell;
the most notable one is in The Inferno, the first part of Dante’s great poem, the Divine
Comedy. The reference to three crowns, four teeth and four horns plays on numbers,
reminding us of the dragon of the Apocalypse (see VARTHEMA, 1515, p. i, iii).
25
Varthema (1510; 1515) popularized the tradition of demon worship in India, a
tradition continued right down to the 17th century. The Dutchman, J. H. van
Linschoten, who stayed briefly in India at the end of the 16th century, took part in the
Inquisition in Portuguese Goa. He accepted that the Hindus acknowledged one god,
but that this knowledge was perverted by devil worship. Finally, Linschoten offered
the prayer that God grant the Hindus enlightenment, because “they are like us in all
other respects, made after god's image and He will release them from Satan's
bondage” (BURNELL, 1885, p. 289; MITTER, 2003, p. 21-22). Predictably, for his
description of the Hindu gods, he turned to Varthema's celebrated devil of Calicut.
Varthema's description was also used by Linschoten's engraver, Baptista á
Doetechum, who placed this monster in the actual setting of the temple at Elephanta,
which is an island off the coast of Bombay (modern Mumbai). The illustration gives a
panoramic view of two non-Christian faiths, Hinduism and Islam. On the right, one
sees a version of a Muslim mosque while on the left is the rock-cut temple of
Elephanta with Varthema’s Deumo presiding over the scene. The English traveller Sir
Thomas Herbert thought it appropriate to illustrate Hinduism in his travel account and
he duly used the stereotype made popular by Varthema. The other image of an
Indian monster god is enshrined in Sebastian Münster’s famous Cosmographia
Universalis (MITTER, 2003, p. 22-27).
The 17th century marks a turning point that opened the way towards a more
objective study of Hinduism. This is anticipated in a very different tradition that used a
classical framework to explain Hinduism. The circle of humanists that included the
great painter Rubens and the mythographer Lorenzo Pignoria consisted of foremost
intellectuals and collectors of exotic objects, and expressed a genuine curiosity about
other religions. In 1615, Pignoria republished Vincenzo Cartari's standard work,
Images of the Gods, in which he included a Hindu god, this time not a monster, but
based on authentic sources. Interestingly, Pignoria traced the origins of the Hindu
god Ganesha in Egyptian idolatry. In fact, his circle had the ambition of formulating a
universal theory of religion based on a comparative study of pagan religions. This
Ganesha was a composite image, based on two sources: the information was sent by
the Jesuits located in Goa between the years 1553 and 1560. One information was
about the elephant-headed Hindu god. The other was on the great four-headed Shiva
26
figure in the rock-cut temple of Elephanta. It is possibly the most famous Indian
image in the West since the 16th century (CARTARI, 1615, pl. xlviii).
By the time we reach the year 1651, we encounter an event that was to have a
profound effect on the western worldview of other cultures. That year Abraham
Rogerius's posthumous work, The Open Door to the Mysteries of Hinduism, was
published (ROGERIUS, 1917). It was greeted by contemporary scholars with
enthusiasm. Although the Dutch pastor did not live to see the warm reception of his
work, he had every reason to feel satisfied. Nothing perhaps expresses better the
elation of having at last cracked the 'secret code' of pagan mysteries than Rogerius'
title, The Open Door. A spirit of scientific enquiry informs the text, which is a
painstaking investigation of Hindu doctrines and practices. The title page itself finally
sheds the monster stereotype of Varthema (1510), offering a general view of
Hinduism, though the actual drawing is rather poor.
The publishing trend continued with the appearance in 1672 of Philip
Baldaeus' A True and Exact Description of the most celebrated coasts of Malabar
and Coromandel, containing a full and sober account of Hinduism (BALDAEUS,
1672). Baldaeus claims his work to be superior to that of previous authors in its
reliability and there is no doubt about the quality of the text. What is in question is his
authorship. There is evidence that the text was by the Jesuit priest Jacopo Fenicio,
who had meticulously interviewed Brahmins for his sources (FENICIO, 1933). This
text was in the possession of the Dutch artist, Philip Angel, who had illustrated it with
actual Indian paintings. Angel had presented it to the governor of Batavia in order to
ingratiate himself with him. Baldaeus was tutor to the governor's son, and he quietly
took possession of it. Baldaeus subsequently published it in his own name – a blatant
case of plagiarism. Here are two examples from the work – an Indian miniature from
Angel’s manuscript of the famous battle in the epic, Ramayana, and the Dutch
illustrator of Baldaeus reworking the Indian original (MITTER, 2003, p. 57-58).
I would like to end this talk by going back a few years to 1667, and to the most
famous work on idolatry, China Illustrata, written by Athanasius Kircher. He was the
papal librarian and belonged to Pignoria's circle of comparative mythologists, who
traced the origin of all religions back to Egypt. Kircher's brand of cultural diffusionism,
with its mixture of encyclopaedic learning and superhuman industry, with a slight lack
27
of common sense, has often been ridiculed. But his importance lies in being one of
the first to try and make sense of non-Christian religions, instead of dismissing them
as forces of darkness. India fascinated Kircher and he had a long section on it,
including an early though garbled account of the importance of Buddhism in Asia. His
German compatriot, father Heinrich Roth, who was based in India, supplied him with
texts and images of Indian religions. Kircher provides among others an illustration to
the Purushasukta cosmological myth from Book 10 of the oldest Hindu religious text,
the Rig Veda. The myth describes how the four great castes emerged from the
different parts of the body of the creator god, Brahman (MITTER, 2003, p. 55-57, 6061; GODWIN, 1979).
With Rogerius, Baldaeus and Kircher we reach the end of this long period from
the end of the Middle Ages to the threshold of change that took place in the 18th
century with the establishment of British rule in India. At last the monster stereotype
was discarded and Hindu gods began to receive back their own true forms. The
incidental details also became more convincing. However, it was still another eight
years before archaeological researches of the British Empire would be able
disseminate faithful images of Hindu gods, and accurate studies of Indian antiquities.
But that did not necessarily lead to a greater understanding of Hindu sculpture and
architecture, which has continued to pose problems of appreciation for the western
art historian. One may say that even with greater knowledge, the stereotypes of
Indian monster gods remained as exemplified by Hegel and Ruskin.
Notes
1
See on the debate on polytheism from Patristic literature to the end of the Middle Ages that influenced
European thought until the modern times and affected the early travellers, Schmidt, F. (1988, p. 13-91).
2
The Itinerario de Ludovico di Varthema Bolognese was published in Rome in 1510.
Bibliographical References
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(Amsterdam, 1672). A Collection of Voyages and Travels, III. CHURCHILL, A &
CHURCHILL, J. (trads.). London, 1703.
BURNELL, A. C. The Voyage of J. H. van Linschoten, I. London, 1885.
CARTARI, V. Le vere e nove imagini degli dei degli antichi, II. Padua, 1615.
DREW, J. India and the Romantic Imagination. Delhi, Oxford Universty Press, 1987.
FENICIO, J. Livro da seita dos Indios orientais. Uppsala, 1933.
28
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Murray, 1876.
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London, Thames & Hudson, 1979.
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Representation. London, Phaidon, 1960.
HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Ästhetik (Werke 10), English translation by P. B.
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Oxford, Clarendon Press, 1977; Chicago, Chicago University Press paperback, 1992. New
edition, New Delhi, Oxford University Press, 2013.
PURCHAS, S. Purchas His Pilgrimage, or relations of the world and the religions
observed in all ages and places discovered… London, 1613.
ROGERIUS, A. De Open-Deure tot het verborgen Heydendom. W. Caland (ed.).
Gravenhage, Nijhof, 1917.
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RUSKIN, J. “Lecture 1, “Conventional Art”, The Two Paths”. In: E. T. Cook & A. Wedderburn,
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SCHMIDT, F. “Introduction: les polythéismes: dégénérescence ou progrès?”. In:
L’Impensable polythéisme: Etudes d’historiographie religieuse. SCHMIDT, F. (ed.).
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VARTHEMA (BARTHEMA), L. de. Itinerario de Ludovico di Varthema Bolognese. Rome,
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________________________. Die Ritterlich und Lobwirdig Raisz. Augsburg, 1515.
VELHO, A. A journal of the First Voyage of Vasco da Gama 1497-1499. RAVENSTEIN, E.
G. (trad. & ed.). Madras, 1995.
WITTKOWER, R. “Marvels of the East: A Study in the History of Monsters”, Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, Vol.5 (1942), pp. 159-197.
Partha Mitter
Professor Emérito de História da Arte na University of Sussex, membro do Wolfson College,
Oxford e membro honorário do Victoria & Albert Museum, em Londres. Formado pela
London University foi orientando de E. H. Gombrich, no doutorado. Especializado em Arte
Indiana e a sua recepção no Ocidente, suas pesquisas mais recentes tratam da interface
entre Oriente e Ocidente e das questões que envolvem as trocas culturais na era da
globalização.
29
DESTELLOS DEL ARTE ORIENTAL EN LA SOCIEDAD MEXICANA
ESPLENDORES DA ARTE ORIENTAL NA SOCIEDADE MEXICANA
Silvia Seligson
Museo Nacional de las Culturas
RESUMEN: Los objetos que los pueblos del Este asiático han creado a lo largo de su
milenaria historia son resultado de sus necesidades y aspiraciones fundamentales. En ellos
plasmaron sus ideas a través de símbolos que intrigan a otros pueblos. Con el pasar del
tiempo dichos objetos han sido apreciados y coleccionados como obras de arte. Esta
conferencia nos acerca a ese mundo pletórico de simbolismo, a través de las piezas
exhibidas en las salas permanentes dedicadas a China, Corea y Japón del Museo Nacional
de las Culturas. Destacaremos la relevancia del Museo y de su acervo, al ser la única
institución en México dedicada exclusivamente a las culturas del mundo, como por sus
antecedentes históricos y sociales. Mencionaremos las actividades que realiza, bajo un
nuevo enfoque: presentar las culturas asiáticas de manera integrada a través de temas
específicos que evidencian tanto sus manifestaciones artísticas, como la elegancia y
complejidad de sus costumbres y creencias tradicionales. Este enfoque pretende mostrar la
diversidad cultural e histórica (hasta inicios del siglo XX) de China, Corea y Japón,
semejanzas y peculiaridades en un contexto que trascienda las fronteras nacionales
actuales, contribuyendo así a profundizar el conocimiento y la apreciación de la unidaddiversidad estructurado en temas comparativos.
Palabras clave: Colecciones; Arte; Culturas Este de Asia; Diversidad.
RESUMO: Os objetos que os povos do leste Asiático criaram ao longo de sua história
milenar são resultado de suas necessidades e aspirações fundamentais. Ali, eles
combinaram suas ideias por meio de símbolos que intrigam outros povos. Com o passar do
tempo, esses objetos foram apreciados e colecionados como obras de arte. Esta
conferência nos aproxima desse mundo pletórico do simbolismo, através das peças exibidas
nas salas permanentes dedicadas à China, Coreia e Japão do Museu Nacional das Culturas.
Destacaremos a relevância do Museu e de seu acervo, por ser a única instituição no México
dedicada exclusivamente às culturas do mundo, bem como a seus antecedentes históricos e
sociais. Mencionaremos as atividades que ali se realizam, sob um novo enfoque: apresentar
as culturas asiáticas de maneira integrada através de temas específicos que evideciam tanto
suas manifestações artísticas, como a elegância e complexidade de seus costumes e
crenças tradicionais. Este enfoque pretende mostrar a diversidade cultural e histórica (até o
início do século XX) da China, Coreia e Japão, as semelhanças e peculiaridades em um
contexto que transcende as fronteiras nacionais atuais contribuindo, assim, para o
aprofundamento do conhecimento e da apreciação da unidade e diversidade estruturados
em temas comparativos.
Palavras-chave: Coleções; Arte; Culturas; Leste da Ásia; Diversidade.
El Museo Nacional de las Culturas es la única institución en México dedicada
exclusivamente a las culturas del mundo. Comprende una amplia colección de
objetos procedentes de civilizaciones antiguas y de pueblos de diversas culturas y
30
áreas geográficas. El edificio que aloja al museo, ubicado en el centro histórico de la
ciudad de México, data de principios del siglo XVIII (1734), siendo entonces y
durante la época colonial la Casa Real de Moneda donde se acuñaban las monedas
de plata proveniente de las minas virreinales o novohispanas. En 1865, tras la
independencia de México de España, se fundó en dicho recinto el primer “Museo
Público de Historia, Arqueología e Historia Natural” con un conjunto de piezas
dispersas pero representativas de símbolos históricos y culturales de la identidad
nacional, “los fundamentos de la nación por vía de los valores comunes preservando
los testimonios de un pasado remoto o cercano” (MANRIQUE, 1993, p.16)1.
El actual Museo Nacional de las Culturas se estableció a fines de 1965 con
los objetos donados por coleccionistas privados y por los gobiernos de otros países
como gesto de hermandad y amistad con México. En sus salas es posible apreciar la
historia y riqueza cultural de pueblos milenarios de todo el mundo2.
Una de sus funciones principales ha sido relacionar los contenidos de sus
exposiciones con los de cursos de historia universal impartidos en las escuelas3.
Desde 2009 el museo está inmerso en un proceso de renovación tanto
arquitectónica como académica y/o educativa. Los investigadores y curadores
comparten la opinión de exponer las piezas, más que guiadas por un orden
cronológico, ordenadas por otros referentes que tengan que ver con las
circunstancias particulares de los individuos que las crearon, ubicando las piezas en
su contexto con una temática que ofrezca al visitante información alternativa que
enriquezca su visión de la realidad, que fomente la reflexión (SINGER, 2002). Con
este nuevo enfoque se busca resaltar los objetos exhibidos como vectores de
identidad, valores y significados, tanto a nivel colectivo como individual, utilitario y
simbólico; cambios que representan sin duda un gran reto para el museo, debido en
parte al limitado presupuesto que el gobierno otorga al rubro de recreación y cultura4,
como a las características de sus colecciones: una amplia variedad de más de
14,000 objetos recabados, seleccionados y catalogados con base en la idea
tradicional de un acervo total o enciclopédico y fragmentado de acuerdo a las ramas
de la Antropología, constituyendo así “ una especie de partición precisa…como si la
materia museable (sic) fuera una especie de queso que se corte en tajadas
precisas”(MANRIQUE, 1993, p.21). En la curaduría renovada de las salas dedicadas
31
a las culturas del Este de Asia, se ha intentado plasmar la diversidad cultural e
histórica (hasta inicios del siglo XX) a través de los siguientes temas comparativos:
concepción de la muerte, creencias religiosas y ceremonias tradicionales,
intercambios comerciales, aportaciones culturales, así como aspectos de su impacto
en la sociedad mexicana.
Introducción
China: El Reino del Centro
China, uno de los países más grandes y poblados del mundo, vio nacer una
civilización asombrosa cuyos orígenes se pierden al paso de los milenios. Pero
siempre ha conservado la continuidad cultural que todavía hoy la distingue. De la
cosmovisión del pueblo chino se desprendieron sus creencias y símbolos, reflejados
en el taoísmo y el confucianismo. Las ideas del mundo divino y natural, la vida y la
muerte, la veneración a los ancestros, entre otras múltiples concepciones, han sido
fuente de inspiración e inagotable creatividad. Hace más de 5,000 años, esa
ideología conformó la base de lo que los chinos aún consideran su máximo signo de
civilización: la escritura; fundamento para el desarrollo de inventos y avances
tecnológicos, plasmados en artes tradicionales que abarcan desde el neolítico tardío
(hacia 4,000 a.C.), hasta fines del periodo imperial en 1911; entre ellas destacan la
pintura, la poesía, la caligrafía, la escultura, la música y la danza. El jade, el bronce,
la seda y la porcelana, entre otros, fueron materia prima de impulso creativo y que
motivó a los chinos a recorrer el mundo y transmitir e influir con su legado cultural no
sólo a pueblos vecinos, también a otros lejanos5
Corea: Tierra de la Calma Matutina
La cultura milenaria de Corea traza su origen legendario al momento en que
Dangun, nieto del dios del Cielo, fundó el estado arcaico de Go-Joseon (Ko-Choson)
en 2,333 a.C., de donde deriva el calificativo que la hace ser conocida como “la tierra
de la calma matutina”. Debido a su ubicación geográfica en el este de Asia, a lo
largo de su historia Corea fue vulnerable a invasiones y a la influencia cultural de sus
vecinos. Sin embargo, esas circunstancias favorecieron, a la vez, el desarrollo de
32
una cultura peculiar y un estilo artístico propio. En las manifestaciones artísticas de
los coreanos priva un sentimiento de libertad, del ritmo natural de la vida; sobresalen
sus aspiraciones espirituales y estéticas, así como su profundo sentido de identidad
nacional, plasmadas en ofrendas funerarias, pinturas, documentos, indumentaria,
instrumentos musicales y porcelanas6.
Japón: Tierra del Sol Naciente
El equilibrio contrastante entre el aislamiento y el contacto con el mundo
exterior ha modelado a la compleja sociedad japonesa. La cercanía del archipiélago
japonés con el continente asiático contribuyó a la adopción de elementos culturales
de China y Corea. Pero, a la vez, su ubicación geográfica y su condición de isla
coadyuvaron al florecimiento de una cultura propia. Sus ritmos históricos rompen con
los procesos de desarrollo de otras sociedades: la manufactura de objetos de
cerámica tuvo lugar diez milenios antes del surgimiento de la agricultura en Japón,
sus primeros registros escritos datan del siglo VI d.C. y el feudalismo se prolongó
hasta mediados del siglo XIX.
En el contexto de una combatividad impetuosa y una notable sensibilidad
estética, la cultura tradicional enfatiza la unión de lo utilitario, lo bello y lo espiritual.
Ese contrastante Japón fue cuna de fieros samurai y de un mundo altamente
refinado, regido por códigos de comportamiento en armonía con la naturaleza. El
aprecio de lo sencillo, exaltado por el budismo zen, ha caracterizado las artes del
pincel, la ceremonia del té, las artes marciales y el teatro clásico Noh; éstas
expresiones, unidas a las creencias shintoístas autóctonas, crean una cosmovisión
que ha dejado una huella permanente en la textura de la vida de los japoneses y que,
además, ha determinado tendencias filosóficas y estéticas en el mundo
contemporáneo7.
33
Concepción de la muerte
Desde tiempos antiguos los chinos creyeron en la continuidad de la vida
después de la muerte. Por ello, proporcionaban a los difuntos todos los objetos de
uso cotidiano y ritual necesarios en el otro mundo, mostraban en cantidad y calidad
su jerarquía y posición social. Las ofrendas incluyen recipientes de cerámica, jade y
bronce, otras son figurillas de animales y personas que con el tiempo sustituyeron a
los familiares, músicos, sirvientes y guerreros enterrados para acompañar al difunto.
Las esculturas más espectaculares son las del famoso ejército de terracota de
tamaño natural halladas en las fosas que rodean la tumba del primer emperador, Qin
Shihuangdi (221-206 a.C.)8 .
El jade fue ampliamente usado en los ritos funerarios desde el Neolítico tardío
(5,200–3,000 a.C.) hasta fines del periodo imperial en 1911. Se consideraba fuente
de energía vital o qi, símbolo de poder e inmortalidad. Se cosían fragmentos de este
material en las mortajas y, para los soberanos, se confeccionaban trajes completos9 .
Los artesanos produjeron una amplia gama de objetos de bronce durante la
Edad de Bronce (2,100 a.C.- 300 a.C.); destacan los recipientes rituales con más de
cincuenta formas diferentes, clasificadas según su función y el tipo de ofrendas que
contenían para honrar a dioses y ancestros, cuya veneración ha sido desde
entonces una característica de la cultura china. Los motivos ornamentales de los
recipientes representan a las deidades mediante signos y efigies de animales
míticos y totémicos, ya sea de manera realista o estilizada. Algunos poseen
inscripciones que se refieren a acontecimientos o circunstancias de su elaboración.
Generalmente se localizan en el interior con la intención de que tanto vivos como
difuntos las leyeran al consumirse las ofrendas.
Según las creencias autóctonas de Corea, la muerte significa el retorno a la
fuente de la existencia, el regreso al hogar para disfrutar de una vida eterna. El
cuerpo del difunto es concebido como la semilla que dará un fruto, por lo que la
muerte es la oportunidad de tener una nueva vida; además, es el proceso mediante
el cual el ancestro se perpetúa en sus descendientes y, de esa manera, vive
eternamente. Lo anterior se refleja en las tumbas coreanas. Como ejemplo, en
34
tiempos remotos, cuando moría un niño, su cadáver era amortajado y colgado de la
rama de un árbol, a semejanza del capullo de una crisálida cuya vida latente dará
lugar a una mariposa. Otras tumbas constituían en grandes montículos de tierra que
evocaban a las montañas donde se hacían ritos propiciatorios. En Gyeongju, la
capital del Reino de Shilla, se han conservado 155 túmulos de la realeza -cuyas
dimensiones varían entre 30 y 80 metros- que datan de los siglos V y VI d.C. En el
interior se hallaron suntuosas ofrendas de oro: coronas, cinturones, collares y aretes.
La corona es emblema de la autoridad suprema del rey. Según las creencias
chamánicas su aro ondulado representa el océano del inframundo, tres
prolongaciones simbolizan el árbol cósmico y las otras dos semejan los cuernos del
venado sagrado asociado con el movimiento del sol. Sus laminillas y pendientes de
jade son amuletos que aluden a la fertilidad y longevidad.
Las tumbas de los soberanos de la dinastía Joseon (1392-1910) estaban
rodeadas por un muro semejante a un capullo y edificadas en sitios basados en la
geomancia, o sea, rodeados por colinas para bloquear los vientos, una corriente de
agua para mantener el flujo continuo de la energía vital de la tierra e hileras de
cipreses y pinos, por ser concebidos como símbolos de larga vida. Estos sepulcros
tenían una estructura similar a la de los palacios: un pabellón principal para las
ceremonias, amplia explanada, área residencial o cámara funeraria cubierta por un
gran montículo rodeado de esculturas de granito de funcionarios de la corte y
animales protectores. Poseen una estela con el nombre póstumo, el registro de los
méritos del difunto y un altar de piedra en honor del dios de la montaña.
Las creencias tradicionales japonesas sobre la muerte suponen que el alma
deja el cuerpo y se marcha al País de la Sombra, lugar impuro del cual es liberada
mediante ritos oficiados por sus deudos. Hecho esto, el alma parte hacia el ámbito
donde se reúne con sus ancestros para, luego, retornar a esta vida y renacer en
alguno de sus descendientes. El otro mundo es concebido como un reflejo del
nuestro, pero ahí el orden espacial y temporal se encuentra invertido.
A finales del período Yayoi (hacia 300 a.C. a 250 d.C.) se erigieron los
primeros montículos funerarios para los líderes religiosos y políticos de los clanes.
En los siguientes tres siglos el número y tamaño de dichos túmulos –kofun- se
incrementó cuando el clan Yamato consolidó la dinastía imperial que persiste hasta
35
la actualidad. Se caracterizan por estar rodeados con figuras huecas de arcilla
denominadas haniwa que representan a los seres y objetos más apreciados por el
difunto. Algunas evidencian el contacto con China y Corea, así como el deseo de la
nobleza japonesa de vestir y comportarse como sus contrapartes asiáticas. En la
cima del montículo se colocaba una haniwa en forma de casa; hoy persiste la
costumbre de cubrir las tumbas con una “casa para el espíritu” elaborada con papel,
madera y flores.
Creencias y costumbres tradicionales
En China
Taoísmo. Sistema místico, filosófico y religioso que se originó en creencias
milenarias chinas acerca de la vida, la muerte, el carácter humano, la sociedad, la
naturaleza, los dioses y espíritus, así como en las enseñanzas del Maestro Laozi
(siglo VI a.C.), quien escribió el Tao Te King, Libro del Camino y la Virtud. El Tao
remite a lo indefinido e infinito. Representa el camino del ser humano y el principio
que rige el universo en cambio permanente, cuya base son las fuerzas Yin y Yang:
los opuestos complementarios en equilibrio dinámico, creados por el Uno Supremo o
Taiji que influye en todo lo existente: relaciones entre las estaciones, los puntos
cardinales, los astros y los planetas, las notas musicales, los colores, olores y
sabores, las partes del cuerpo humano y la actitud moral. Deriva con el tiempo en
una vertiente del taoísmo como religión popular que hasta la actualidad se
manifiesta en ceremonias familiares y festivales anuales. Destaca el festival QingMing -“Claro y Brillante”- que se celebra en abril en memoria de los difuntos y
ancestros10.
Confucianismo. Kongfuzi o Confucio (551-479 a.C.) es uno de los personajes
más sobresalientes de China y de la humanidad. Consideraba que era posible
alcanzar la sabiduría mediante el conocimiento interior, la devoción al Mandato del
Cielo -poder cósmico, espiritual y moral- y la veneración a los ancestros. Concebía el
ritual y la música como vías ideales para cultivar la virtud, la armonía y la
comunicación con los difuntos y el universo.
36
Las enseñanzas del Maestro fueron recopiladas en la obra Lun Yu
(Conversaciones o Analectas) que, junto con otros textos antiguos sobre ceremonias,
historia y literatura comentados por él, son conocidos como los Clásicos del
Confucianismo y han sido por milenios las lecturas básicas de la educación china.
Más que una religión, el confucianismo es una filosofía cuyos valores son fuente de
inspiración y ejemplo de las relaciones entre individuos en todos los niveles: familiar,
comunitario y nacional.
La residencia de Confucio en la ciudad de Qufu se convirtió posteriormente en
un templo consagrado a su culto; es un imponente conjunto de edificios11 donde se
han celebrado anualmente ceremonias oficiales acompañadas con milenarios
instrumentos de percusión para venerarlo.
En la cosmovisión china la música es vínculo entre el Cielo y la Tierra. Existen
72 instrumentos diferentes (atribuidos al legendario emperador Fuxi) y se dividen en
ocho categorías según su sonido y material. La música también tiene papel
predominante en la famosa Ópera de Beijing, espectáculo chino por antonomasia;
combina drama, canto, mímica, acrobacia y danza basado en las enseñanzas de
Confucio, acontecimientos históricos o anécdotas tradicionales. Carece de
escenografía y la atención se centra en los actores quienes se maquillan a sí
mismos; el laborioso maquillaje es un arte que expresa la identidad y el
temperamento del personaje.
En Corea
El musok, conocido como chamanismo coreano, es la religión nativa cuyo
origen se remonta a casi 5,000 años. Se basa en la creencia en dioses y espíritus de
la naturaleza, del cielo y de personajes legendarios e históricos, representados en
pinturas sagradas. Los chamanes –mudang- invocan a las deidades con colorida
indumentaria y transmiten sus mensajes a través de rituales –kut–, acompañados de
instrumentos musicales de percusión.
El budismo fue introducido a Corea a través de China en el período de los
Tres Reinos (siglos IV-VII) y alcanzó su apogeo con la dinastía Goryeo (918-1392),
37
al decretarlo la religión oficial. Se consideró que, al igual que el musok, otorgaría
buena suerte y protección contra conflictos internos e invasión externa. Con el
patrocinio de los gobernantes se edificaron templos y monasterios, así como
esculturas de gran calidad artística, algunas de ellas integran elementos de ambas
religiones. Los monjes coreanos difundieron las doctrinas de las escuelas budistas y
compilaron, comentaron, transcribieron e imprimieron una amplia variedad de
textos12, desarrollando un distintivo estilo coreano.
Durante la consolidación política y económica de los Tres Reinos, las
enseñanzas de Confucio sentaron las bases del orden social; sin embargo, su mayor
impacto en la sociedad fue durante la dinastía Joseon (1392-1910), al reemplazar al
budismo como religión nacional. A través del neoconfucianismo los gobernantes
instauraron un firme régimen centralizado. Concebían el servicio público por encima
de los intereses privados y su ética se fundamentó en las relaciones de autoridad y
obediencia, desde el Estado hasta la familia. Una estricta jerarquía rigió la vida
cotidiana y tuvo amplias repercusiones en la educación, el arte y la ciencia. Los
materiales, estilos y colores de la indumentaria estaban codificados según la rígida
jerarquía confuciana, por lo que variaban de acuerdo a la posición social, rango,
estado civil, sexo y edad. Así, la sencilla ropa opaca de los plebeyos contrastaba con
la espléndida y colorida vestimenta de seda de la aristocracia.
La vivienda tradicional coreana, hanok, constaba de dos espacios: el del
frente reservado para los hombres y el del fondo destinado a las mujeres. El de
estas últimas acondicionado a sus necesidades, labores domésticas y habilidades
del bordado que se convirtió en un excelso arte, evidente en el colchón y asiento de
seda13. Otro elemento imprescindible en su habitación era el biombo con motivos de
flores y aves acordes con las estaciones del año y evocadores de armonía conyugal.
En cambio, en la habitación masculina prevalecían elementos de las artes del pincel
distintivas del erudito: poesía, caligrafía y pintura. Temas y estilos pictóricos
respondían a objetivos gubernamentales de promoción de la educación, lealtad a la
autoridad y veneración a los ancestros.
Igualmente, para el fortalecimiento de la identidad nacional, los eruditos
recorrieron el país para pintar detallados paisajes y escenas cotidianas. Con una
visión crítica, crearon obras de gran vitalidad, dinamismo e ironía. A la vez, surgieron
38
manifestaciones artísticas populares en una amplia gama de danzas-drama con
máscaras que, además de ofrecer entretenimiento y diversión, tenían significados
mágicos y religiosos. Sus intérpretes –únicamente hombres- portaban expresivas
máscaras para mostrar mediante la crítica, sátira e ironía la manera en que el
oprimido pueblo percibía la situación social prevaleciente durante la dinastía Joseon.
En Japón
El conjunto de creencias y tradiciones nativas japonesas, entre ellas la
veneración a los ancestros, a seres mitológicos e históricos y a fenómenos naturales,
se conoce como shinto (“la senda de los dioses”, “el camino a casa”). Comprende un
vasto conjunto de deidades denominadas kami, seres animados e inanimados. Los
santuarios shintoístas son construcciones sencillas -similares a las casas rurales
tradicionales- donde el entorno natural forma parte del recinto. Ahí se realizan
festivales anuales y ceremonias del ciclo de vida y agrícola. Los campesinos
acostumbran elaborar figuras de animales asociados con el cultivo del arroz y
tablillas alusivas a sus deidades y plegarias. La ceremonia nupcial tradicional es
shintoísta y tiene como principal rito el brindis que alude a la unión de dos familias.
El atuendo de la novia consta de varios kimonos cuyos colores y motivos simbolizan
pureza, elegancia, nuevo inicio, felicidad y larga vida.
Al igual que en las otras sociedades asiáticas agrícolas, las estaciones y los
principales acontecimientos de la vida están marcados por ceremonias y festividades
relacionadas con el cultivo del arroz y se rigen por el calendario lunar; así, la
primavera inicia tras los festejos del año nuevo. Entre los festivales japoneses más
tradicionales está Tango no sekk. Se acostumbra montar un altar con muñecos que
representan a guerreros legendarios e históricos junto con objetos relacionados con
sus hazañas. Su finalidad es transmitir el ejemplar comportamiento del samurai
quien, a los cinco años de edad, recibía de su padre el sable que usaría como adulto.
Se festeja a nivel nacional el 5 de mayo como el Día de los niños varones, mientras
que el Día de las niñas –Hina Matsuri- se celebra el 3 de marzo colocando un altar
con muñecos alusivos a los miembros de la corte imperial del periodo Heian (7941185), auge de la cultura clásica japonesa.
39
El budismo fue introducido a Japón a través de Corea e instaurado como
religión oficial entre los siglos VI y VIII. Fue entonces que se incorporaron elementos
de la cultura china en todos los ámbitos, desde la organización política, económica y
social, hasta las costumbres y expresiones artísticas; entre ellos algunas ceremonias
budistas en la música y danza de la corte. Los japoneses adoptaron la escritura
china, con la que registraron sus primeros documentos históricos, y la caligrafía, que
se convirtió también en un objeto de culto. La habilidad para escribir con signos
chinos –kanji- y componer poemas fue característica de la elite educada.
Un siglo después, floreció una cultura distintiva con la creación de un sistema
complementario para escribir el japonés, consistente en silabarios o kana que fueron
medios de expresión para las damas de la corte. Describieron el lujo, refinamiento
artístico y social que caracterizaron a la nobleza del periodo Heian14. Surgió también
un estilo de pintura secular -yamato-e, y un formato que permite combinar textos e
ilustraciones con la finalidad de narrar acontecimientos diversos en rollos
horizontales llamados emakimono; fueron al poco tiempo un medio adecuado para
difundir las enseñanzas budistas e ilustrar pasajes de obras literarias y célebres
batallas.
En el largo período del régimen feudal (1185-1868), el sistema político y social
se fundamentó en la lealtad entre el señor y sus vasallos. Se elevó la posición de los
guerreros, denominados samurai o “servidores”, regidos por un código de
comportamiento basado en el confucianismo, creencias nativas y del budismo zen,
que enfatizaba la austeridad, autodisciplina y meditación. El “alma” del samurai era
su sable, en su elaboración se requería de la habilidad de diferentes artesanos, el
forjado implicaba un largo proceso para obtener hojas de insuperable calidad, de
acuerdo a las cambiantes tácticas de combate en los siglos de lucha por la
hegemonía. Con la centralización del poder y pacificación del país en el periodo Edo
(1603-1867), la atención se canalizó a ornamentar las vainas y empuñaduras
concebidas, por ende, como obras de arte.
Los monjes del budismo zen impulsaron el cultivo y el hábito de beber el té,
propiciando así la llamada ceremonia del té, el florecimiento de las artes marciales,
la pintura monocroma sumi-e y el teatro Noh. Todos sus aspectos reflejan la estética
zen y sus principios: apreciación de lo natural, lo cotidiano y simple. Lo sugerido,
40
pequeño, sencillo y asimétrico es más valorado que lo evidente, grandioso y artificial.
En el drama lírico denominado teatro Noh, los actores, con meticulosos movimientos
y pausadas danzas, representan historias trágicas cuyos personajes son fantasmas
de memorias pasadas; la suntuosidad de su indumentaria contrasta con la
escenografía limitada a ilustrar un estilizado pino, símbolo de los dioses.
Algunas aportaciones
De China
Nos encontramos aquí ante una amplia gama de invenciones tanto utilitarias
como de gran belleza que motivaron a los chinos a recorrer el mundo y transmitir su
legado cultural. El cultivo de la seda y su manufactura, la elaboración del papel, la
imprenta y las artes relacionadas con la escritura, así como las técnicas para crear
objetos de gran valor artístico en bronce, jade y porcelana, entre otros inventos.
Los primeros pictogramas datan del cuarto milenio a.C., grabados en huesos
de animales, después en objetos de bronce, piedra hasta el desarrollo de la escritura
que adquirió un valor estético a través de la caligrafía. La pintura es considerada la
más prominente de las expresiones artísticas. Su belleza contenido espiritual y
perfección técnica se aprecia en la representación de paisajes con la figura humana
en armonía con la imponente naturaleza que no se ilustra de manera realista, la
esencia del objeto para el autor es un microcosmos. Los poetas encontraron
inspiración en esas imágenes y escribieron en ellas sus poemas, conjuntando así en
una sola obra las tres Artes del Pincel. Resulta interesante mencionar que el
aprendizaje del manejo del pincel comienza con el dibujo de rocas, árboles y bambú,
que tienen una importancia equiparable a la del cuerpo humano en el arte occidental.
Ejemplos sobresalientes de la gran influencia de dichos inventos en la
humanidad son la llamada “Ruta de la Seda” y los viajes transpacíficos de la célebre
Nao de China. La Ruta de la Seda fue establecida por los chinos a mediados del
siglo II a. C. a través de Asia Central hasta llegar al Imperio Romano. Llegó a cubrir
más de 7,500 kilómetros y propició el intercambio no solo de mercancías tan
apreciadas como la seda y los caballos pura sangre, sino también estilos artísticos y
creencias religiosas como el budismo. El milenario proceso de elaboración de la
41
seda fue secreto monopolizado por China hasta aproximadamente el siglo VI d.C. en
que se difundió primero a Corea, Japón, el sudeste asiático y a Medio Oriente y
después de ahí a Europa. La seda fue valorada como moneda común de
intercambio y por la belleza de sus coloridos y variados bordados. Suzhou, “la
ciudad acuática y de jardines del Este de China”, ha sido la cuna del arte del
bordado desde hace 2,600 años; ahí se elaboraba la indumentaria de la corte
imperial con motivos alusivos a su autoridad y poder: un par de dragones emblema
del emperador, la perla flamígera, el disco solar y las montañas15.
El término “porcelana” refiere a toda pieza elaborada con caolín (arcilla blanca
refractaria cuyo nombre proviene de la montaña Gaoling donde abunda) y horneada
a más de 1300° C. Mil años antes de que la técnica se conociera en Europa, en
China ya se producían y perfeccionaban piezas de porcelana. Con sus innovadoras
técnicas de impresión, grabado, incisión y dibujo, los artesanos crearon, a partir del
siglo XIV, una amplia gama de formas, estilos y motivos, algunos inspirados en los
antiguos recipientes de bronces o en modelos occidentales y otros más novedosos,
e incluso lograron trasladar a la porcelana imágenes de pinturas y caligrafías con la
misma calidad obtenida en la seda o en el papel. Para fines del siglo XVIII,
produjeron piezas destinadas a la exportación, con frecuencia de calidad inferior a
las nacionales.
Desde el siglo XI floreció el comercio marítimo de China a lo largo de puertos
costeros en el este y sudeste asiático. A finales del siglo XVI, con el establecimiento
de la ruta del Galeón de Manila o Nao de China, su influencia comercial se extendió
por Occidente. Hasta 1815 se mantuvo un tráfico ininterrumpido entre Filipinas y la
Nueva España, a donde llegaban provenientes de China y otros sitios de Oriente (la
India, Japón y las “islas de las especias”) innumerables productos: madejas de hilos
y de seda cruda, telas y prendas de sedas lisas o bordadas – entre las que destacan
los famosos mantones – porcelanas, esculturas de jade y marfil, así como arcones y
escritorios de “maderas exóticas” laqueadas. En Manila, los sangleyes – chinos
establecidos en ese puerto– abastecían a las embarcaciones e intercambiaban sus
mercancías por la plata de las minas novohispanas.
Los siglos de intercambio con Asia dejaron huella en la sociedad mexicana,
tanto en usos y costumbres, como en la elaboración de objetos de inspiración
42
oriental; un ejemplo de ello es la cerámica producida en la ciudad de Puebla durante
el siglo XVII, conocida como Talavera. Recibió un importante influjo de la admirada
porcelana china al grado que el gremio de artesanos poblanos incluyó en su
reglamento de 1653 un inciso exhortando a los ceramistas a imitarla en sus formas,
motivos, colores y acabados.
Otro ejemplo son los mal llamados “mantones de Manila”, ya que se dice que
tienen alma árabe y cuerpo chino 16 Los novohispanos copiaron los motivos
ornamentales de los mantones chinos, traídos por el Galeón de Manila, en sedas
policromas embellecidas con hilos de seda, oro y plata. Son sobresalientes en
México los trajes de las juchitecas y tehuanas que portan en la Fiesta de la Vela del
Istmo de Tehuantepec.
De Corea
Destacan las piezas de porcelanas de color verde celadón con tonalidades
evocadoras del jade, estilizadas formas y elegantes motivos ornamentales. La
innovadora técnica de incrustación llamada sanggam, que ya usaban en los objetos
de madera laqueada, ha sido muy apreciada mundialmente, incluso en China y
Japón. También perfeccionaron instrumentos astronómicos y meteorológicos, como
relojes de sol y de agua, esferas armilares, mapas y cartas astronómicas, debido en
parte a la importancia otorgada por el gobierno, principalmente del rey Sejong “El
Grande” (1418-1450) a necesidades prácticas de elaborar calendarios agrícolas y
mejorar la vida de la población. Cabe mencionar que su interés por educar al pueblo,
crear súbditos leales y reforzar las virtudes confucianas, dio por resultado la creación
del alfabeto coreano Hangeul, un eficiente sistema que ha facilitado el estudio del
idioma coreano y que incluso ha sido adoptado por pueblos que tienen su propia
lengua pero carecen de escritura17
De Japón
Se desconoce la fecha exacta en que empezaron a manufacturase objetos
laqueados en Japón pero sorprende lo pronto que surgió como un arte tan distintivo.
43
Lograron suma perfección y calidad con diversas técnicas como el grabado,
incrustación de diversos metales y primordialmente en el método empleando polvo u
hoja de oro, conocido con el término genérico maki-e, “pintura esparcida o rociada”.
Esta técnica es conocida en México como “maque”, de gran influencia desde la
época virreinal en sitios como Chiapa de Corzo, Pátzcuaro y Olinalá. El impacto es
evidente en el perfilado de oro, la incrustación y el rayado.
Los biombos son objetos originarios de China pero la palabra “biombo” deriva
del japonés byo-bu, “detener el viento”. Utilizados en principio como paneles para
dividir los espacios, obtener privacidad y proteger de corrientes de aire, florecieron
en el período Edo en una asombrosa variedad estilística y temática. Los artistas
aplicaron hoja de oro para fondos y ornamentaciones usando los mismos métodos
que en objetos de laca creando así obras apreciadas como valiosos obsequios. De
hecho, así llegaron a la Nueva España en el siglo XVII y a partir de entonces
tuvieron gran influencia en las manufacturas locales.
En los centros urbanos y mercantiles del periodo Edo, surgió una cultura
popular con manifestaciones literarias, teatrales y pictóricas denominada ukiyo,
“mundo flotante”, por concebirse como efímera y placentera. Este mundo fue
plasmado en xilografías con temáticas de mujeres cortesanas o geisha, personajes y
actores del teatro Kabuki y famosos paisajes. En su elaboración participaban
pintores, grabadores e impresores, quienes desarrollaron técnicas orientadas a
producir vistosas xilografías policromas, nishiki-e (“estampas de brocado”) que
tuvieron gran demanda tanto en el exterior18 como en el mercado local donde incluso
se utilizaron para anunciar las representaciones del teatro Kabuki, atractivo y célebre
espectáculo que se distingue por sus imponentes escenografías y dinamismo, a
diferencia del austero teatro Noh limitado a la aristocracia. Sus obras constan de
varios actos basados en temas de la vida cotidiana o legendarios e históricos con los
samurai como protagonistas; incluyen danzas acompañadas por instrumentos
musicales, entre ellos el shamisen de origen chino. La indumentaria de los actores
(únicamente hombres) no solo dictaba la moda de la época sino que influyó en el
atuendo nacional contemporáneo.
La porcelana empezó a producirse en Japón a inicios del siglo XVII por los
coreanos establecidos en la región japonesa de Arita, quienes además introdujeron
44
el horno de múltiples cámaras. Las piezas resultantes se conocen como Imari,
nombre del puerto donde se embarcaban al resto del país y a ultramar. Los
mercaderes holandeses llevaron a Japón la porcelana china de las dinastías Ming y
Qing, que sirvió de modelo a los ceramistas japoneses para crear obras nuevas que
tuvieron gran demanda en el exterior. Algunos diseños respondieron a la idea
europea de “lo exótico”; otros, más refinados y con características propias, dieron
origen a las porcelanas blancas con azul cobalto y policromas con aplicaciones de
oro.
CUADRO CRONOLÓGICO
CHINA
Dinastía Shang
(1760-1100 a.C.)
Dinastía Zhou
(1100-249 a.C.)
Dinastía Qin (221-206 a.C.)
Dinastía Han
(206 a.C-220 d.C.)
Fragmentación del Imperio
(220-589)
Dinastía Sui (589-618)
COREA
Gojoseon
(2333-185 a.C.)
Edad Bronce
(1100-300 a.C.)
JAPÓN
Periodo Jomon
(c.7500-250 a.C.)
Gestación de los Reinos
Shilla, Goguryeo, Baekje
(18 a.C.-300 d.C.)
Periodo de los Tres Reinos
(300-668)
Periodo Yayoi
(250 a.C.- 250 d.C.)
Periodo Kofun (250-552)
Periodo Asuka (552-710)
Dinastía Tang (618-906)
Shilla Unificado (668-935)
Periodo Nara (710-794)
Dinastía Song (960-1279)
Dinastía Yuan (1279-1368)
Dinastía Ming (1368-1644)
Dinastía Goryeo (935-1392)
Periodo Heian (794-1185)
P. Kamakura (1185-1333)
P. Muromachi (1333-1573)
P. Azuchi-Momoyama
(1573-1603)
P.
Edo o Tokugawa
(1603-1867)
P.
Meiji (1868-1912)
Dinastía Qing (1644-1911)
Dinastía Joseon
(1392–1910)
Notas
1
Su acervo se incrementó paulatinamente por lo que fue necesario crear nuevos espacios: El Museo de
Historia Natural (1909), El Museo Nacional de Historia (1944) en el Castillo de Chapultepec -que había sido hasta
entonces la residencia de los presidentes mexicanos- y el renombrado Museo Nacional de Antropología e
Historia en 1964.
2
Hasta fines del 2009: Mesoamérica y los Andes, aborígenes de Norte América, Mesopotamia, Egipto,
Israel, Grecia y Roma, Europa Oriental, África, Medio Oriente, Sudeste de Asia, China, Corea y Japón; así como
Oceanía, cuya sala cuenta con objetos de la colección particular del célebre antropólogo Bronislaw Malinowski,
45
donada por su viuda, la pintora Valleta Swann, quien colaboró con él en sus estudios sobre los mercados
campesinos mexicanos en 1940-1941.
3
La materia de Historia Universal es impartida a los alumnos del quinto año de primaria y del tercer año
de secundaria en las escuelas mexicanas, e incluye visitas de requisito al Museo. Estos estudiantes constituyen
el 42% del total de visitantes anuales (un promedio de 263,800 en años recientes:2005-2009)., 37% son
estudiantes de otras escuelas y universidades y el 21% restante público en general, entre ellos 6% extranjeros.
4
En 2006 representó solamente el 0.4% del PNB y el 4.6% otorgado para educación (INEGI).
5
Recientemente, gracias a la generosa donación que hizo en 2010 el gobierno de la República
Popular China al pueblo de México con motivo del Bicentenario de la Independencia y Centenario de la
Revolución, el Museo Nacional de las Culturas enriqueció su importante colección. Las piezas donadas son
réplicas del tesoro artístico del pueblo chino y fueron elaboradas por reconocidos artesanos bajo la supervisión
del Ministerio de Cultura, con los mismos materiales y técnicas que las originales. Por lo tanto, son obras de
extraordinaria factura que sólo difieren de las originales por la fecha en que se produjeron.
6
Aproximadamente el 75% de las piezas exhibidas, varias de ellas excelentes réplicas de obras
maestras decretadas “Tesoros Nacionales”, fueron donadas en 2000 por la Fundación Corea y el Museo
Folklórico de Corea.
7
Algunos objetos exhibidos son también réplicas de “Tesoros Nacionales” donados por el gobierno
japonés.
8
Este mausoleo fue designado Patrimonio de la Humanidad en 1987; mientras que el proyecto de
rescate, restauración e investigación a cargo de un grupo chino multidisciplinario, recibió el Premio Príncipe de
Asturias en Ciencias Sociales en 2010.
9
Un ejemplo sobresaliente es el traje del príncipe Liu Sheng (Dinastía Han del Oeste -206 a.C.-8 d.C.)
Su traje-mortaja con forma de armadura fue concebido como protección contra los espíritus malignos y la
descomposición del cuerpo. Se compone de doce secciones hechas con 2,498 placas de jade unidas con hilo de
oro.
10
Este festival fue ilustrado en la famosa y emblemática pintura El festival Qing-Ming a la orilla del Río
de Zhang Zeduan (1085-1145) donde se aprecian con gran detalle las actividades previas al festival en Kaifeng,
capital de la dinastía Song del Norte (960-1127) un período de gran desarrollo urbano y comercial en China.
Existen numerosas representaciones de esta enorme– de más de 5 metros de longitud- obra de arte.
11
El pabellón Dacheng sobresale por sus inigualables diez columnas de piedra esculpida con motivos
de dragón y es exhibido en la Sala del museo en un modelo en madera labrada de excelente factura.
12
Entre ellos es sobresaliente Tripitaka, “Las Tres Canastas” que contienen enseñanzas de Buda,
comentarios y reglas monásticas. Estos textos se imprimieron en el siglo XI pero los 5,048 volúmenes resultantes
fueron destruidos en 1231 por los mongoles al invadir Corea. Entre1235 y 1251, se reeditaron usando 81,258
planchas de madera grabadas en ambas caras; son valoradas por la exactitud del contenido, elegante caligrafía
y calidad del grabado. Se resguardan desde entonces en el templo Haein-sa, ambos Patrimonio de la
Humanidad.
13
Sus motivos ornamentales aluden a los populares diez símbolos de larga vida de origen chino taoísta:
venados, grullas, tortugas, hongos de la inmortalidad, pinos, montañas, rocas, nubes, cascadas y la roja esfera
del Sol. Los colores también son emblemáticos: el blanco corresponde a la modestia y pureza, el rojo a la
felicidad y buena suerte, el azul a la constancia, el amarillo al centro del universo y el negro al infinito y a la
creación.
14
Es sobresaliente la novela Genji Monogatari, obra maestra de la literatura universal escrita por la
dama Murasaki Shikibu a principios del siglo XI. Con evocador lenguaje, intercalado con poemas que acentúan lo
estético de la narración, describe con detalle los acontecimientos cotidianos y oficiales de la corte Heian.
15
Actualmente se produce ahí una quinta parte de la exportación total mundial de bordados en
indumentaria u objetos decorativos. La técnica “mágica” o bordado de doble cara, es la más sobresaliente y
laboriosa ya que sobre la tela de base se borda con finísimos hilos la misma imagen o imágenes diferentes
dando la impresión de ser pintadas debido a la calidad y vivacidad de sus matices.
16
Tras la reconquista del territorio español, los Reyes Católicos prohibieron a las mujeres árabes llevar
el rostro tapado, por lo que optaron por usar un chal, costumbre que copiaron las cristianas y de ahí esta prenda
evolucionó hacia las mantillas españolas. El chal era de uso común entre las chinas desde la dinastía Tang (618907) y con el pasar del tiempo crearon diversos estilos bordados que se exportaron después a Manila.
17
Por ejemplo, las etnias Cia-Cia de Indonesia y Aymara de Bolivia. Cfr. Korea.net Newsletter, 30 de
julio de 2010 y 4 de mayo de 2011.
18
Las primeras xilografías llegaron hacia 1815 a Europa a través de los holandeses, quienes las usaron
para envolver las mercancías japonesas que exportaban por el puerto de Nagasaki; por lo tanto, no fueron
entonces apreciadas por sus méritos artísticos, sino hasta que se presentaron en las Exposiciones
Internacionales de Londres (1862) y París (1867).
46
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Memoria del 2° Encuentro Nacional ICOM-CECA. Zacatecas, Museo de Guadalupe, 26 al 29
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Mtra. Silvia Seligson
Antropóloga Social egresada de la Facultad de Filosofía y Letras/Instituto de Investigaciones
Antropológicas. Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Actualmente elabora
su tesis doctoral sobre religión e identidad de Corea. Investigadora y curadora de China,
Corea y Japón. Museo Nacional de las Culturas, Instituto Nacional de Antropología e
Historia (INAH) en México, desde 1986 a la fecha. Ha publicado varios textos e impartido
cursos sobre estas culturas del Este de Asia, Arte Prehispánico, Religiones Comparadas y
Arte Budista.
47
AS MAIS ANTIGAS PORCELANAS ENCOMENDADAS PELOS EUROPEUS
À CHINA
Maria Antónia Pinto de Matos
Museu Nacional do Azulejo
Contexto Histórico
As viagens marítimas dos portugueses nos séculos XV e XVI mudaram
radicalmente a relação da Europa com os remotos mundos asiáticos e as porcelanas
tomaram verdadeiramente o caminho do Velho Continente.
Embora houvesse relatos que consagravam a imagem mítica da China rica e
magnificente idealizada durante a Idade Média, as informações inéditas recolhidas
em primeira mão pelos portugueses sobre novas terras e novas gentes, os seus
modos de viver, as suas formas de pensamento e as suas criações requintadas e
originais, revolucionaram a visão tradicional do mundo e tornaram mais tangível as
míticas civilizações orientais que alimentaram o imaginário colectivo medieval. As
mercadorias exóticas, como as especiarias, as drogas, as sedas e as porcelanas,
passaram a estar mais acessíveis.
Entre as novidades absolutas recolhidas pelos portugueses nos portos do
Industão encontrava-se a China, que cedo começou a gerar expectativas mercantis1.
Em 1499, quando Vasco da Gama regressou da sua viagem de descoberta
do caminho marítimo para a Índia (1497-1499), entre os vários produtos asiáticos
apresentados na corte exibiu porcelanas compradas em Calecut2. Em 1501, Pedro
Álvares Cabral, que quando se dirigia para a Índia descobriu o Brasil, também
ofereceu ao rei fermosas porcelanas que havia recebido do capitão de uma nau de
Cambaia, algures entre Cananor e Melinde3. Em 1502, o chamado planisfério de
Cantino, de origem portuguesa, apresentava pela primeira vez uma imagem
minimamente realista de muitas regiões asiáticas, onde figurava a terra dos chins, de
onde vinham pérolas e almizquer e porçolanas finas e outras muitas mercadorias, e
é o primeiro documento em que a porcelana aparece associada a uma região
concreta, que é simultaneamente o seu lugar de fabrico.
48
E as porcelanas terão agradado tanto a El-rei D. Manuel I que, em 1507,
solicitou a D. Francisco de Almeida, o primeiro Vice-rei da Índia, que lhe enviasse
sempre em cada viagem (...) das porcelanas fynas e booas e em booa cantydade e
nas melhores por que se poderem aver (...)4. Este é talvez o primeiro testemunho de
uma encomenda real ou um incentivo à encomenda de porcelana.
Em 1508, o monarca português concedeu um Regimento a Diogo Lopes de
Sequeira, a quem encarregara da primeira viagem de exploração da Península
Malaia, com instruções precisas de carácter mercantil, antropológico, defesa, entre
outros, onde espelha o seu interesse pelo Império do Meio: pregumtarees pollos
chiins e de que parte vêem e de cam lomge e de quamto vem a Mallaca ou aos
lugares em que trautam e as mercadarias que trazem e quamtas naoos delles vem
cada anno e pellas feyçõees de suas naoos e se tornam no anno em que vêem e se
teem feitores ou casas em Mallaca ou em outra allguma terra e se sam mercaores
riquos”5.
No ano seguinte, Sequeira contactou com mercadores chineses em Malaca
que descreve serem hommens allvos e bem despostos, com maneiras polidas e
vestidos à europeia, com quem chegou a partilhar um repasto durante o qual se
bebeu muyto vinho de pallma bramco em porçellanas6.
Em 1511, Afonso de Albuquerque conquista Malaca e, em 1512, informa que
a China era grande consumidora de pimenta e exportava enormes quantidades de
sedas, porcelanas, almíscar, ruibardo, aljôfar, cânfora e pedra-ume.
Nesse mesmo ano, Albuquerque enviou um chim a Lisboa e, em 1513,
mandou a primeira expedição à China, tendo o capitão Jorge Álvares, o primeiro
português que foi à China, chegado à ilha de Tamão, também designada ilha da
veniaga 7 , nas imediações de Cantão. Dois anos mais tarde, Rafael Perestrelo
empreendeu a mesma viagem a bordo de embarcações malaias, tal como o primeiro.
Ambas as viagens se revelaram um sucesso, atingindo o valor da carga de produtos
de luxo asiáticos lucros vinte vezes superiores ao montante investido inicialmente. A
viagem da China revelou-se tão rentável como a Carreira da Índia, que ligava
Cochim a Lisboa, que além de morosa exigia vultuosos investimentos.
49
Estas duas lucrativas expedições ao Império do Meio tiveram também
importantes consequências bem patentes no aparecimento dos primeiros tratados
geográficos portugueses sobre o Oriente onde a China assume lugar de destaque: a
Suma Oriental (1512-1515) e o Livro do que viu e ouviu no Oriente (1516), de Tomé
Pires, boticário real e eminente orientalista, e Duarte Barbosa, funcionário da feitoria
de Cananor, respectivamente. Pires revela as primeiras imagens de alguns aspectos
da vida chinesa, de âmbito político, administrativo, cívico e mercantil, dando-nos a
dimensão e variedade de porcelanas “Vem se em jumcos a Malaca com
mercadarias, e trazem seda bramca e damascos e sitins de cores, e brocados à sua
gisa, muito alljofar, imfinidade de porcelanas de muitas sortes, cobre, pedra hume,
allmisquer, cofres de folhajens de ouro, avanos rricos e muitas outras cousas que
não sam em memória”8.
A obra de Duarte Barbosa confirma as informações de Pires, acrescenta
outras inéditas e, entre os produtos chineses, descreve o fabrico da porcelana
Fazem em a dita terra muitas porcelanas, que é muito grande mercadoria para toda
a parte, as quais se fazem de búzios moídos, e de cascas de ovos e de claras e de
outros materiais do que fazem uma massa que lançam a curtir debaixo da terra por
espaço de tempo, a qual massa têm por grande herança e tesouro, porque assim
como se vai chegando o tempo de a haverem da lavrar, assim vale mais; depois de
chegado o tempo a lavram de muitas maneiras e feições, delas grosseiras e finas.
Depois que são feitas as peças, as vidram e pintam.9.
Como preconizado no projecto imperial de Afonso de Albuquerque, que previa
o estabelecimento de bases portuguesas em locais estratégicos do Oceano Índico
ligadas entre si por poderosas armadas, e muito semelhante ao que fora posto em
prática em algumas regiões do Golfo Pérsico, da costa ocidental da Índia e da
extremidade da Península Malaia, as notícias sobre as potencialidades da China
levaram D. Manuel I a delinear um ambicioso plano de fixação no litoral chinês,
baseado na implantação de fortalezas. Esta estratégia procurava, por um lado, que
Portugal se apropriasse de uma parcela importante do movimento comercial
estabelecido entre o litoral meridional chinês e as principais cidades portuárias do
Sudeste Asiático e, por outro, antecipava-se às pretensões espanholas de
intervenção política e comercial no Extremo Oriente10.
50
O primeiro passo do projecto manuelino foi a organização de uma embaixada
à China, saindo do Tejo, em 1515, uma grande armada destinada à China
capitaneada por Fernão Peres de Andrade, que em 1517, deixa Malaca levando
como embaixador Tomé Pires. A expedição portuguesa, ocorrida em 1517-1518,
revelou-se um enorme sucesso comercial, mas um grande fracasso diplomático
devido à conjugação de vários factores adversos: as queixas do filho do sultão de
Malaca, vassalo do imperador chinês, que acusou a embaixada portuguesa de ter
por finalidade a organização e a conquista daquele país; o facto de os portugueses
se terem apresentado como siameses para contornar o preceito que proibia a
recepção de embaixadas oriundas de países desconhecidos; as cartas diplomáticas
de D. Manuel I abordavam o imperador da China em pé de igualdade segundo o
costume europeu; e, além da imagem de comerciantes gananciosos e guerreiros
sanguinários, os portugueses eram também acusados de raptores de mulheres e
canibais.
Tomé Pires chegou a Pequim em 1520-1521, não foi recebido pelo imperador
Zhengde (1506-1521), regressou sob escolta a Cantão com os seus companheiros,
tendo desaparecido em condições mal esclarecidas. A política encetada pelos
portugueses noutras regiões asiáticas revelou-se completamente desajustada na
China.
Para o insucesso desta missão e degradação das relações oficiais sinoportuguesas contribuíram também a atitude violenta de Simão de Andrade contra os
chineses, e as suas infracções à lei, ao recusar-se a pagar tributos, bem como a
chegada a Tamão, em 1522, da frota comandada por Afonso Lopes Coutinho, cujo
propósito era restabelecer as relações entre os dois países, mas que resultou numa
batalha naval entre os dois povos e a morte e a prisão para muitos portugueses.
Em consequência disso, as relações entre portugueses e chineses foram
legalmente inexistentes até 1554, data da assinatura do acordo de Leonel de Sousa
com as autoridades cantonenses, para oficializar as relações de paz e comércio. Os
mercadores lusos eram obrigados a recuar para regiões mais meridionais
frequentadas pelos juncos cantonenses e de Fujian – Zangzhou, Quanzhou e
Liampo – onde estabeleceram um comércio activo, ilegal e clandestino, graças à
cumplicidade das autoridades locais. Paralelamente os chins foram desencorajados
51
a rumar a terras estrangeiras. Em 1530, o porto de Cantão foi aberto aos
estrangeiros, salvo aos portugueses que, porém, continuaram as suas actividades
clandestinas.
Apesar de todos os incidentes, no âmbito da porcelana salientamos uma carta
de 1522, escrita na Índia, sobretudo sobre o trato, em que se declara que os navios
que forem à China traram de lá hos retornos desta maneira: a terça parte em ouro, e
outro terço em seda branqua e alljofar pera Cambaya, e outro terço em porcellanas
e damascos, he pregadura e pelouros de ferro c[our]o e cousas d allmazem que
forem necassarias.11.
Em virtude dos interesses comerciais em jogo, no final da década de 1520
pareceu notar-se uma aproximação, como se infere das cartas do capitão de Malaca,
Jorge Cabral, para el-rei D. João III. A primeira, datada de 10 de Setembro de 1527,
refere a vinda de dois juncos de Chimcheo, reino sogeito a el Rei da china, e (…)
também lhe ncomendey algumas peças louçãas pera vosa A. Se vierem eu as
levarei12, constituindo um documento de extraordinária importância na história da
porcelana, muito provavelmente o primeiro na Europa a fazer alusão a uma
encomenda. A segunda carta de 5 de Setembro de 1528 dá conta, entre outros
assuntos, da seriedade dos chineses que voltaram com as peças que lhe haviam
sido pagas antecipadamente o ano passado emcomend[e]y a hum capitão dos
chyns que aquy veyo que me mandasse lla fazer algumas peças pera V. A. Elle mas
trouxe mas não são tais como eu desejava / quaes são as tera V. A. Quando eu for e
peraquy sabera que são os chyns çertos em malaca poys se comfia delles fazenda e
tornão co ella13.
Os portugueses regressaram aos portos da China a partir de 1533 e em 1542
ou 1543, os portugueses atingiram pela primeira vez o Japão, facto que teve
repercussões extraordinárias no futuro das relações luso-chinesas. O Japão vivia um
clima de guerra, que dera origem à criação de muitos bandos armados, os wako,
que faziam incursões ao litoral chinês, levando ao corte de relações diplomáticas
entre as autoridades de Pequim e a Terra do Sol Nascente e à interdição de
relações comerciais, impedindo o abastecimento da seda chinesa tão desejada
pelos japoneses e a entrada da cobiçada prata japonesa no Celeste Império. Os
mercadores
portugueses
aperceberam-se
rapidamente
das
extraordinárias
52
possibilidades mercantis criadas por tal situação, impondo-se num curto espaço de
tempo como intermediários indispensáveis no tráfico sino-japonês. A partir dos anos
1544-1545, as viagens dos portugueses ao Japão intensificaram-se, dando origem a
um lucrativo comércio triangular, unindo a praça portuguesa de Malaca aos portos
chineses e estes aos do Japão, com base na troca da pimenta da Insulíndia pela
seda chinesa e desta pela prata japonesa, que era de novo trocada por seda e
assim
sucessivamente.
Além
destes
produtos
dominantes,
eram
ainda
transaccionados enxofre, salitre, azougue, almíscar, armas e abanos, entre outros14.
Deste grande movimento de homens e navios que rumaram periodicamente
aos portos da China e do Japão, resultaram a fundação em 1557 de um
estabelecimento português no litoral cantonense, Macau, e a proliferação de relatos
manuscritos
rigorosos
e
circunstanciados
sobre
regiões
asiáticas
antes
desconhecidas. Sete anos depois, o desenvolvimento de Macau era fulgurante, e,
em 1583, adquirira já um estatuto de relativa autonomia perante o governo de
Cantão, elegendo inclusivamente o seu próprio Senado, que haveria de reger os
destinos da povoação até à nomeação do primeiro capitão geral, no século XVII15.
Macau manteve durante largos anos o exclusivo dos contactos com a China, os
seus mercadores eram os únicos a ter acesso às feiras de Cantão, e os jesuítas
destinados às missões chinesas tinham obrigatoriamente que passar pelo território.
Apesar de as embarcações chinesas demandarem também às Filipinas e alguns
outros portos da Insulíndia, era através deste entreposto lusitano que as principais
mercadorias de origem sínica eram encaminhadas para a Europa, a partir da Índia,
através da rota do Cabo.
À semelhança da importância assumida no âmbito do trato, e posteriormente
no campo religioso, Macau tornou-se o lugar privilegiado de recolha de informações
sobre a China, as quais foram objecto de intensa produção textual, incontornável
para conhecer o mundo sínico daquela época. Os primeiros relatos respondiam
essencialmente a questões de carácter prático: comércio, política, defesa. Depois
começaram a acrescentar outro género de questões no âmbito dos usos e costumes,
crenças, práticas religiosas e sociais, organização política, formas de administração,
ordenamento urbano, etc.16, dando uma imagem o mais global e rigorosa possível do
53
Celeste Império, que os portugueses descrevem em tom apologético, considerandoa uma sociedade modelo, excepto no que se refere ao aspecto religioso.
Em meados da centúria de Quinhentos, começaram a aparecer numerosas
relações, tratados, cartas, itinerários redigidos por mercadores e religiosos, que
haviam visitado a China, de que destacaremos a título de exemplo Algumas coisas
sabidas da China (1553-1563), de Galiote Pereira, que esteve lá prisioneiro durante
alguns anos, tendo ficado muito impressionado com a extensão do território e a
organização administrativa e judicial, passando por outros sectores da realidade
sínica. Deixou-nos inclusivamente um apontamento importante sobre o local de
fabrico da porcelana: Ha outra província que se chama Quianssi e he esta tambem o
nome da principal cidade e cabeça das outras. E he ai que se faz toda a porsolana
fina de Çulljo pera sima, sem se fazer em nenhuma outra parte, e de Çullio em todas
as cidades da China. E como esta cidade de Qiansi esteja mais perto de Liampo que
do Chincheo e não de Cantão, ha sempre em Liampo muita porselana e barata, e
come ate aqui os Portugueses sabião tão pouco desta terra, avião muitos que
cuidavão e afirmavão que se fazião em Liampo, mas esta he a verdade.17
Entre muitas obras de vulto da literatura portuguesa ultramarina onde a
admiração e o interesse pela China estão bem patentes, merecem especial realce
no que diz respeito à história da porcelana o Tractado em que se contam muito por
estenso as cousas da China, com suas particiularidades e assi do reino de Ormuz,
da autoria do dominicano Frei Gaspar da Cruz, impressa em Évora por André de
Burgos, em 1569-1570, primeira obra impressa na Europa, exclusivamente dedicada
à China.
O processo de conhecimento e idealização da civilização chinesa culminou na
publicação da Frei Gaspar, além de traçar uma vasta panorâmica da China aborda
ainda as relações luso-chinesas desde a conquista de Malaca e acrescenta
aspectos não registados pelos outros observadores, como o uso da escrita chinesa,
a antiguidade da tipografia, a descrição da Grande Muralha, o uso do chá, a
compressão do pé feminino, o poder quase indiscriminado dos mandarins, a pesca
com corvos marinhos, e é o primeiro a deixar uma descrição do fabrico da porcelana,
liberta das fantasias que rodeavam este mistério chinês: “O material da porcelana é
uma pedra branca e mole, e alguma é vermelha, que não é tão fina, ou para melhor
54
dizer, é um barro rijo, o qual depois de bem pisado e moído é deitado em tanques de
água, os quais eles têm muito bem feitos de pedra de cantaria, e alguns engessados,
e são muito limpos. E depois de bem envolto [o barro] na água, da nata que fica de
cima fazem as porcelanas muito finas; e assim quanto mais abaixo, tanto são mais
grossas, e da borra do barro fazem umas muito grossas e baixas de que se serve a
gente pobre da China. Fazem-nas primeiro deste barro, da maneira que os oleiros
fazem outra qualquer louça; depois de feitas as enxugam ao sol. Depois de enxutas
lhe[s] põem a pintura que querem de tinta de anil, que é tão fina como se vê. Depois
de enxutas estas pinturas, põem-lhe o vidro, e vidradas cozem-nas”.18
Frei Gaspar da Cruz informa-nos também que há porcelana de barro comum
que se usa por toda a China e toda a Índia, e menciona que “há muita porcelana
grossa e outra muito fina. E há alguma que não é lícito vender-se comummente,
porque só usam dela os regedores por ser vermelha e verde, e dourada e amarela.
Vende-se alguma desta, e muito pouca e muito escondida 19 . Assim, o autor
português coloca o leitor ao corrente de um problema de contrabando: a exportação
de peças amarelas destinadas à corte, um tema que continua a ser objecto de
estudo para os especialistas da actualidade que se interrogam se toda a porcelana
era exportável.
A instalação da missão jesuíta na terra dos chins veio alargar e aprofundar o
conhecimento europeu sobre o Império do Meio, de que De Missione Legatorum
Iaponensium, da responsabilidade do padre Duarte de Sande e impresso em Macau
em 1590, é um excelente exemplo. Este Tratado, que relata a viagem de quatro
jovens embaixadores japoneses à Europa, inclui um vasto capítulo onde são
registadas algumas novidades recolhidas por Ricci. Entre as várias tipos de
mercadorias em que a terra da China está mais bem provida do que qualquer outro
reino20, mereceram especial atenção o ouro, a prata, entre muitos metais em que a
China é rica, a seda, as especiarias e o fabrico da porcelana e as diferentes
tipologias delas feitas: Tratemos agora dessa substância barrenta ou moldável a que
vulgarmente se chama porcelana, que é completamente branca e que deve ser
considerada como o melhor material do género que há no mundo, com o qual se
fabricam muito engenhosamente vasilhas de todos os géneros. Digo que é o melhor
barro do mundo por três razões a saber: a sua pureza, a sua beleza e a sua
55
resistência. […] Esta substância não é extraída em toda a China, mas apenas numa
das quinze províncias, em Qiansi, onde muitos trabalhadores são empregados
continuamente nessa tarefa. Não fabricam com ela apenas peças pequenas, como
taças, pratos e saleiros, jarros e outros que tais, mas também vasilhas e jarrões
enormes em grande quantidade, muito fina e habilidosamente lavrados, os quais, em
virtude do perigo e dificuldades envolvidos no seu manuseamento, não são
transportados para fora do reino, mas são usados apenas no interior dele, e
especialmente na corte do rei. A beleza deste material é muito realçada pela
variedade de pinturas, as quais são feitas em certas cores, aplicadas logo após o
fabrico, às quais se mistura ouro, o que faz as ditas vasilhas parecerem ainda mais
belas.21
Outro aspecto importante não escapou aos observadores, o apreço
despertado pela porcelana e os países para onde era exportada: É admirável o
apreço que os Portugueses têm por estas peças, uma vez que, com enormes
dificuldades, as transportam não só para o Japon e para a Índia, mas também para
vários países da Europa.22
A porcelana no comércio português
Desde a chegada dos portugueses ao Oriente, tanto na documentação avulsa
como na produção textual relativas à epopeia portuguesa ultramarina, a porcelana
está sempre presente não apenas como valioso presente, mas também em
quantidades significativas.
A porcelana, contrariamente à pimenta que constituía monopólio da coroa, era
uma mercadoria do comércio menor praticado por particulares na Índia e, a título de
liberdades23, uma forma recorrente, além do soldo, para angariar homens de armas
para as armadas d’El-rei na Índia e servir nas coisas que o capitão-mor lhes
ordenava. Isto é, eles podiam comprar livremente alguns produtos, entre os quais
porcelanas, até uma determinada quantidade. Logo após a conquista de Malaca, a
porcelana foi uma das mercadorias traficada na ordem das dezenas de milhar pelos
portugueses no comércio inter-asiático, como aconteceu nas viagens ao Pegu24 e
utilizada aqui como presente para as autoridades locais 25 , para se obterem
56
vantagens e estabelecer condições favoráveis para o nosso comércio naquelas
paragens, como a redução dos direitos alfandegários aos navios lusos26.
A porcelana era também abundante em Lisboa desde o início da centúria de
Quinhentos, como se infere da documentação avulsa, de que citaremos alguns
exemplos27. O alvará de 27 de Julho de 1511, de El-rei D. Manuel I, ordena aos
contadores que levem em conta e despesa ao tesoureiro das especiarias da Casa
da Índia, João de Sá, duzentas e sete porcelanas, um cofre dourado e uma colcha
de pano branco, que despendeu por mando da rainha28, e as seiscentas e noventa e
duas porcelanas, entre outros produtos exóticos e pedras preciosas e semipreciosas, recebidas pelo mesmo João de Sá nos armazéns reais entre Fevereiro de
1511 e Abril de 151429. Em 25 de Setembro de 1517, outro alvará do monarca
manda que os contadores levem em conta, novamente a João de Sá, quarenta e
sete porcelanas, vinte papos de almíscar e duas arrobas de bejoim30.
Na segunda metade do século XVI, a chegada de porcelanas a Lisboa
deveria ser enorme e já deveria fazer parte do quotidiano das classes superiores,
pois, em 1555, a rainha D. Catarina comprou trezentos e vinte peças de porcelana
para a sua mesa, pela substancial soma de 22.420 reais, pagando 1400 reais por
cada corja31.
Também no inventário post mortem de D. Teodósio I (c. 1510-1563), 5º
Duque de Bragança, um espelho da riqueza e opulência da Casa de Bragança no
século XVI, datado de 1563, constam 400 peças que cremos tratar-se de porcelana
da China, embora o local de fabrico não seja referido, no valor de 47,300 reis, e 78
objectos designados por persolanas (procelanas, percelonas, perçolanas) no valor
de 12.600 reis, que se encontravam armazenados na casa dos vidros e persolanas
do palácio de Vila Viçosa, na casinha dos vidros da Senhora D. Catarina e algumas
oferecidas por D. Constantino de Bragança, 7º Vice-rei da Índia e 20º Governador,
na casa dos vidros e porcelanas da duquesa viúva D. Brites, no mesmo palácio.
Nesse mesmo ano de 1563, o uso da porcelana ao serviço da mesa era uma
realidade, como se confirma pelas críticas do dominicano D. Frei Bartolomeu dos
Mártires, no decorrer de um jantar com o Papa Pio IV, durante o concílio de Trento,
ao ver a luxuosa baixela de prata sobre os aparadores papais “Temos (...) em
57
Portugal um género de baixela que, com ser barro, se aventaja tanto à prata em
graça e limpeza, que aconselhara eu a todos os príncipes (...) que não usaram outro
serviço e desterraram de suas mesas a prata. Chamamos-lhes em Portugal
porcelanas, vêm da Índia, fazem-se na China. É o barro tão fino e transparente que
as brancas deixam atrás os cristais e alabastros, e as que são variadas de azul
enleiam os olhos representando uma composição de alabastro e safiras. O que têm
de quebradiço recompensam com a barateza. Podem-se estimar dos maiores
píncipes por delícia e curiosidade, e por tal se têm em Portugal”32.
Percebendo a crítica velada do Arcebispo, o Sumo Pontífice solicitou-lhe que,
quando voltasse a Portugal, lhe enviasse dessas porcelanas para substituir as
pratas. Por diligência do embaixador foi remetido de Lisboa para Roma grande
número e variedade de peças.
Em 1565, ocorreu em Lisboa o casamento por procuração de Maria de
Portugal, filha do Infante D. Duarte (irmão de D. João III) e de D. Isabel de Bragança,
com Alexandre Farnèse, durante o qual tiveram lugar vários banquetes onde foram
degustadas iguarias e bebidas oriundas de todos os cantos do Império português.
No repasto oferecido pelo tio da noiva, D. Constantino de Bragança, em 11 de
Setembro de 1565, foi servido à mesa parte em prata e parte em pratos e outro
vasilhame de porcelana preciosíssima mais considerada do que a própria prata e o
próprio ouro sendo certo que alguns desses vasos foram muito admirados pela sua
grandeza e beleza. Havia também uma credência fornecida de prataria dourada e
uma outra de belos vasos da Índia quase tudo como jóias tidas em alta estima por
aqueles que entendem o seu valor, com toalhas e guardanapos de finíssimo
damasco” 33. Ao ser usada em tão importante ocasião fica claramente demonstrado
o apreço e o alto estatuto em que era tida a porcelana chinesa em Portugal.
Em 1603, quando as potências estrangeiras eram uma ameaça constante aos
interesses dos portugueses em terra e mar do Oriente, também uma das três
baixelas usadas nas festas do casamento de D. Teodósio II, duque de Bragança,
com D. Ana de Velasco, filha do duque de Frias e 7º Condestável de Castela, em
Vila Viçosa, era de porcelana34.
58
À semelhança do que acontecia no reino, em Goa toda a louça de mesa
usada no Hospital do Rey Nosso Senhor era de porcelana da China35.
A abundância de porcelana subjacente a estes exemplos é confirmada pela
sua presença em inventários e testamentos, até da aristocracia e burguesia de
província. A documentação confirma ainda que chegavam de forma mais ou menos
contínua ao reino cargas significativas de mercadorias exóticas e porcelanas, até
meados do século XVII, fazendo de Lisboa uma cidade muito admirada pelos
estrangeiros que a visitavam. No relato anónimo da viagem dos embaixadores Tron
e Lippomani, enviados a Lisboa em 1582 pela Republica de Veneza, para
cumprimentar Filipe II pela conquista de Portugal, ao falar da bela Rua Nova “ornada
de uma infinidade de lojas cheias de diversas mercadorias (...) Entre ellas ha quatro
ou seis que vendem objectos trasidos da India como porcellanas finissimas de varios
feitios, conchas, cocos lavrados de diversos modos, caixinhas guarnecidas de
madreperola (...)”36
Cerca de quarenta anos mais tarde, o padre Nicolau de Oliveira, em 1620,
afirmava que existiam dezassete mercadores de porcelanas chinesas e que
“chegavam muitos conjuntos de porcelanas, em muitas das naus dois ou três mil
conjuntos, cada um com vinte peças”37, o que correspondia a 40.000 ou 60.000
exemplares.
Além da documentação sobre estas grandes cargas que alimentavam o
mercado português e as feitorias lusas na Europa, há testemunhos indesmentíveis
do volume desse comércio e da qualidade das porcelanas que nos chegavam da
China. Entre estes o mais impressionante é o conjunto do convento de Santos,
transformado numa luxuosa residência pelo mercador Fernão Lourenço que a cedeu
a D. Manuel I, tornando-se a partir de 1501 residência real até ao desaparecimento
do jovem rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, em 1578. Este palácio (hoje residência
do Embaixador de França em Lisboa), propriedade das “Comendadeiras de Santos”,
foi vendido pela sua abadessa em 1589 a D. Luís de Lancastre, venda regularizada
apenas em 1626 em benefício de seu filho D. Francisco Luís. No decorrer do século
XVII, especialmente no tempo de D. José Luís de Lancastre, entre 1664 e 1687, a
ala do século XVI do palácio foi submetida a importantes obras, datando
provavelmente desta época a instalação do tecto da pequena “Casa da
59
Porçolanas”38. Esta colecção, que a partir do reinado de Zhengde se desenvolveu
em paralelo com a de Ardebil Shrine, reflecte a evolução da porcelana de
exportação com uma continuidade sem falhas durante uma centena de anos. Ela
constitui a única colecção que pode testemunhar as primeiras fases da chegada das
porcelanas azuis e brancas à Europa Ocidental.
Esta colecção, única e rara, compreende essencialmente porcelanas chinesas
azuis e brancas do século XVI e inícios do século XVII, um pequeno número da
segunda metade do século XVII e alguns pratos, poucos, do século XVIII, sem
dúvida peças de substituição de outras que terão caído. Este conjunto invulgar conta
261 pratos de alta qualidade técnica e decorativa, fruto das melhores criações das
eras da Zhengde (1506-1521), Jiajing (1522-1566), Longqing (1567-1572) e Wanli
(1573-1619).
Além de pratos existem também algumas peças de forma: um gomil azul e
branco com um modelo raro, mas clássico do período Jiajing, com medalhões
relevados deixados em biscuit, com decoração vazada e dourada, encastrado num
pendente da madeira dourada suspenso do topo da pirâmide; um outro gomil,
grande e pesado, primorosamente decorado com Xi Wang Mu; duas taças, os três
últimos em depósito no Museu Guimet; dois potes e ainda três grandes pratos de
porcelana de Zhangzhou, mais conhecida por “ Swatow”.
Além da colecção do Palácio de Santos, Portugal alberga outro conjunto
incontornável: cerca de cinco mil fragmentos escavados no mosteiro das monjas
Clarissas de Santa-Clara-a-Velha, em Coimbra39. Eles constituem um importante
testemunho da produção chinesa desde finais do século XV / inícios do século XVI
até 1667, ano em que a comunidade monacal teve que abandonar o mosteiro
medieval, vítima das cheias do rio Mondego, para se instalar num novo mosteiro
sobre o vizinho Monte da Esperança. Com os fragmentos encontrados foi possível
reconstruir cerca de 200 peças, das quais dois exemplares documentam o início do
comércio no dealbar da centúria de Quinhentos, cerca de 80% das peças
encontradas – 120 taças e 47 pratos – foram manufacturadas nos reinados de
Jiajing (1522-1566) e de Longqing (1567-1572). Embora a maioria dos fragmentos
sejam de porcelana branca decorada a azul sob o vidrado o conjunto também
incorpora uma taça com decoração kinrande e outra totalmente revestida de esmalte
60
amarelo. Este monocromo, designado “amarelo imperial” e portador da marca do
reinado de Jiajing muito bem caligrafada, integra o grupo restrito de peças imperiais
que conseguiram escapar do palácio e um pequeno número de cerca de dezassete
objectos comummente designado por kraak-porselein, de finais do século XVI/inícios
do século XVII.
A qualidade e a quantidade das porcelanas carregadas pelas naus que
asseguravam a Carreira da Índia, podem ser atestadas por alguns exemplares e
milhares de fragmentos que 500 anos depois continuam a dar à costa junto dos
sítios onde ocorreram naufrágios de navios portugueses na África do Sul: São João
(1552) em Port Edward, São Bento (1554) na entrada do estuário da ribeira Msikaba,
Santo Alberto (1593) em Sunrise-on-Sea, Espírito Santo (1608) em Haga-Haga e
São Gonçalo (1630) na baía de Plettenberg40.
Muito mais eloquente e significativas são as cerca de 1500 peças, das quais
501 intactas ou semi intactas, recuperadas junto ao Forte de São Sebastião, na Ilha
de Moçambique, que constituem a mais antiga e maior carga de porcelana chinesa
de exportação conhecida de um navio europeu, muito provavelmente o Espadarte,
que ali naufragou em 155841. Este conjunto, hoje parcialmente exposto no Museu de
Marinha, na Ilha de Moçambique, é maioritariamente de porcelana branca decorada
a azul-cobalto vivo sob o vidrado com figuras humanas e motivos inspirados na
natureza, no bestiário mágico e na mitologia, muitos deles desenhos taoistas que
reflectem os interesses do imperador Jiajing. As tipologias mais representadas são
os pratos e as taças, mas também se encontra um gomil e algumas caixas.
De todas as peças, o prato decorado com uma lebre branca reveste-se de
uma importância particular por ostentar uma marca cíclica com data correspondente
a 1553 no calendário moderno, o que nos permite datar a carga dos anos 1550.
A porcelana, presente privilegiado
Além de servirem nas mesas dos Grandes, as porcelanas, consideradas
ainda um objecto raro e precioso na Europa, constituíram também deste o início de
Quinhentos um presente privilegiado da coroa portuguesa para as outras cortes
europeias e para a Igreja, como se infere da presença de alguns artigos brancos e
61
brancos decorados de azul constantes do inventário de 1504 de Isabel, a Católica, e
ainda “uma grande porcelana azul e branca, do tamanho de uma bacia de barba, a
qual foi enviada como presente pela Senhora rainha de Portugal numa caixa de
madeira branca”42; das ofertas de doze porcelanas aos conventos de protecção real
da Madre de Deus, Santa Maria da Pena e Nossa Senhora de Belém (Jerónimos), o
primeiro em 1511 e os dois últimos em 151243. D. Manuel mandou dar a sua mulher,
a rainha D. Maria, pelo édito de 22 de Junho de 1513, “todo o almizquere e ambar,
beyxoim, panos”, 156 de “pequenas e grandes porcelanas”, que montou ao quarto
de Sua Alteza das naus que vieram da Índia nesse mesmo ano44.
Também seu filho e sucessor, o rei D. João III, e a sua mulher D. Catarina de
Áustria ofereceram ao núncio papal em Portugal, de 1550 a 1553, Pompeo
Zambeccari, uma taça azul e branca, do reinado de Jiajing (1522-1566), com uma
montagem de prata dourada, provavelmente feita por um dos prateiros ao serviço da
rainha, com a inscrição em latim “Pompeius Zambecarius Sulmonensis – Nuntius –
Ad Regem – Lusitan.M-D.L.IIII” (Pompeo Zambeccari, de Sulmona, Núncio no Reino
de Portugal, 1554), hoje propriedade do Museu Civico de Bolonha.
O cardeal D. Henrique (r. 1578-1580), que assumiu o trono português após o
desaparecimento de seu sobrinho el-rei D. Sebastião em Alcácer Quibir (1578),
enviou, em 1580, um magnificente presente ao Xerife de Marrocos para resgatar o
jovem monarca português. Aquele incluía, além de um catere de ouro e prata, um
pavilhão de tafetá e outros adereços para o catere, búzios, mesas e escritórios, dois
caixotes com duzentas e setenta peças de porcelana chinesa, de várias tipologias e
decorações, em que a maioria, parece, seria policroma e com muito ouro45.
O arquiduque Alberto de Áustria, vice-rei de Portugal de 1583 a 1593, deve
ter enviado para o Castelo de Ambras objectos asiáticos de uma qualidade superior,
dos quais constavam mais de 250 porcelanas azuis e brancas da dinastia Ming e 30
taças kinrande, etc. 46 Também de Portugal eram as 99 porcelanas chinesas
inventariadas depois da morte de Isabel de Áustria (1554-1592).
Mais tarde, após a restauração da independência e a subida ao trono de D.
João IV, o monarca enviou os seus embaixadores às diversas cortes europeias,
portadores de presentes de que destacamos o da rainha Cristina da Suécia, emérita
62
coleccionadora
e
grande
apreciadora
de
porcelanas,
constituído
por
um
impressionante par de talhas azuis e brancas, decoradas com o motivo dos “cem
gamos”, com 72cm de altura, feitas no reinado de Wanli (1573-1619), que se
encontra actualmente no Museu Östasiatiska, Estocolmo.
As primeiras encomendas
Testemunhando a primeira fase das relações sino-portuguesas existe um
grupo de cerca de 150-200 porcelanas decoradas a azul-cobalto sob o vidrado, que
constituem as mais antigas encomendas personalizadas conhecidas feitas por
europeus à China47.
Estes objectos, os primeiros a ostentarem decoração e ou forma europeias,
comprovam o pioneirismo dos portugueses em tão profícuo comércio. Constituindo
um dos mais interessantes e originais conjuntos de porcelanas destinadas ao
comércio externo, tais peças encontram-se hoje disseminadas por várias colecções
públicas e privadas em Portugal e no estrangeiro.
Elas foram encomendadas, primeiro, através dos chineses que frequentavam
Malaca, e, posteriormente, através de Macau. Para o efeito, os portugueses
forneceram desenhos e talvez gravuras com os motivos que gostariam de reproduzir
sobre as peças, bem como um ou outro objecto para servir de protótipo à forma
desejada.
Embora achados arqueológicos provenientes da escavação da residência real
em Lucera, na Puglie, indiquem que a porcelana chinesa alcançou a Europa antes
do século XIV48 e a mais antiga referência a porcelana numa colecção europeia
pareça ocorrer no testamento da rainha Maria de Nápoles e Sicília em 132349, das
porcelanas que terão chegado ao Velho Continente antes de 1500, só três são
conhecidas. De entre elas, o mais antigo é o vaso “Gaignières-Fonthill”, uma garrafa
qingbai, c. 1300-1320, que terá sido adquirida em 1338 por Luís, o Grande, rei da
Hungria, quando da vinda de uma embaixada enviada pela Comunidade Cristã
Nestoriana da China ao Papa Bento XII. Em 1381, recebeu uma montagem de prata
dourada e esmaltes com as armas da Hungria, que a transformou em gomil.
63
Posteriormente foi oferecido pelo rei da Hungria, a Carlos III de Anjou-Sicília, quando
da sua ascensão ao trono de Nápoles em 1381. Esta peça, hoje no National
Museum of Ireland, Dublin, pertenceu, entre outros proprietários, ao duque de Berry
(inventário de 1416), ao Delfim (inventário real de 1689), e a William Beckford em
Fonthill Abbey, ao Hamilton Palace, em cuja venda, em 1882, a peça apareceu já
desprovida da sua preciosa montagem.
A segunda peça é uma taça, de céladon, provavelmente de Longquan, de fim
do século XIV - início do século XV, transformada em cálice por uma montagem de
prata dourada com o brasão de Phillip von Katzenelnbogen, antes de se tornar
conde de Dietz em 1453. A taça, que segundo um inventário de 1594 foi trazida do
Oriente por um dos condes de Katzenelnbogen – provavelmente adquirida em Acre
por Philipp, o Velho, conde de Katzenelnbogen, durante a sua peregrinação à Terra
Santa entre 14 de Julho de 1433 e 3 de Maio de 1434 – encontra-se actualmente no
Hessisches Landesmuseum, Staatliche Kunstsammlungen, Kassel50.
O terceiro objecto é um prato de céladon, de Longquan, oferecido pelo sultão
do Egipto Qā´it Bāy a Lourenço de Medicis em 1487, hoje no Palácio Pitti, Florença51.
Além de qingbai e céladons também era certa a presença de porcelana azul e
branca do século XV, como a reproduzida na pintura da autoria de Giovanni Bellini e
Ticiano O Banquete dos Deuses, c. 1514-1529.
As porcelanas mais antigas para o mercado português juntam à decoração
tipicamente chinesa – animais mitológicos mais comuns, emblemática budista e
taoista, cenas quotidianas – as armas reais portuguesas, sempre em posição
invertida e, por vezes, muito deturpadas, indiciando que foram copiadas de um
desenho incipiente, a esfera armilar e o monograma IHS, as iniciais do nome de
Jesus em grego. Um encontro de dois mundos, onde os elementos se apresentam
justapostos sem verdadeira comunicação.
Durante os reinados de D. João II (1481-1495) e D. Manuel I (1495-1521)
ocorreu a primeira emergência do absolutismo régio português e uma nítida
evidenciação do poder do Rei, com as consequentes modificações ao nível da
imagética mental e da iconografia régia52. Todo o poder instituído gera a sua própria
imagem, que procura ser instrumento de legitimação e de reforço desse poder.
64
Ora D. Manuel, que era duque de Beja, subiu ao trono após sete mortes de
personalidades que o precediam no direito à sucessão, pelo que tinha que se afirmar
perante uma corte habituada a vê-lo como duque. Assim, todas as iniciativas do seu
reinado, nas quais se inclui toda a produção cultural, foram marcadas por símbolos
tradicionais do poder régio português e outros que o significam a ele próprio53.
A esfera armilar foi a divisa concedida a D. Manuel por seu cunhado e
antecessor, El-rei D. João II, coisa que pareceu de mistério e profecia, porque lhe
deu a esperança de sua real sucessão54.
A partir de 1504, D. Manuel associou sistematicamente ao escudo de Portugal
as duas esferas que passam a constituir a sua divisa. A representação da esfera
armilar, como nas gravuras das Ordenações Manuelinas, que substituíram o corpus
legislativo afonsino, apresenta, por vezes, uma faixa com a empresa: Spera in Deo
et fac bonitatem (Confia em Deus e pratica o Bem).
A associação do poder de Deus ao poder régio faz-se normalmente pela
presença de dois ou mais anjos ladeando o escudo, onde desempenham um duplo
papel o de figuras heráldicas correspondentes aos reis de armas e figuras celestes.
Por vezes, há notações directas da presença divina: um anjo único: S. Miguel, o anjo
de Portugal; Deus-Pai que surge no céu; o tema régio dos evangelistas S. João e S.
Lucas; o rosto de Cristo e o monograma IHS.
Por isso, não é de admirar que os símbolos do poder real e a presença divina
apareçam associados também sobre as primeiras porcelanas encomendadas para o
mercado português, certamente com destino à corte, já que só o rei podia usar a sua
divisa e era grande apreciador das finíssimas porcelanas. Dada a decoração do
tardoz, enrolamento com grandes flores com tratamento muito similar ao das peças
de finais do século XV e início do século XVI, e à proximidade do escudo de Portugal
encimado por coroa aberta, com a representação do escudo de Portugal no tempo
de D. Manuel I, tudo indica que foram manufacturadas no decorrer do reinado de
Zhengde (1506-1521) e do seu contemporâneo português o rei D. Manuel I. Do
mesmo período e para o mesmo monarca serão o gomil com as armas reais, em
posição invertida, do Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque55, gomis com duas
esferas armilares, uma sobre cada face: dois com a marca de Zhengde, da colecção
65
RA e da Fundação Dr. Ricardo Espírito Santo Silva56 , e os outros dois, um na
Fundação Medeiros e Almeida e outro numa colecção particular, ambos com marca
apócrifa de Xuande (1426-1435) e com forma e decoração diferentes dos primeiros57.
Ainda dos inícios das relações entre Portugal e a China, existem garrafas em que o
bojo é apenas decorado com quatro esferas armilares no Pusat Museum de
Jacarta58, na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, e na Colecção RA.
Os dois símbolos do poder real – conjunto escudo e coroa e esfera armilar - e
a presença divina no tema régio, através do monograma do Santo Nome de Jesus –
IHS, estão também presentes num conjunto de pratos covos que associam alguns
dos motivos mais populares da gramática decorativa chinesa como o dragão entre
nuvens e vagas, duas fénix a voar sobre enrolamento de lótus e medalhões com
paisagens naïf com porco ou ave e outros motivos de acompanhamento, em
colecções públicas e privadas como na Fundação Medeiros e Almeida e Fundação
Carmona e Costa, ambos em Lisboa, na Colecção RA e numa colecção particular
portuguesa 59 . Em alguns exemplares as armas reais e a esfera armilar estão
toscamente representados, não respeitando sequer os elementos heráldicos, o que
realça a hipótese de terem sido copiados por mão de decorador-ceramista de um
pequeno forno de província, com incompreensão do desenho, ou por este ser rude
ou ter chegado danificado ao seu destino.
66
Do período de Jiajing (1522-1566), primeira metade do século XVI, são os
três gomis conhecidos portadores das iniciais IHS entrelaçadas de forma original e
encimadas pelo sinal de abreviatura, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga,
da Fundação Carmona e Costa, ambos em Lisboa, e de uma colecção particular.
Dos anos de 1540 são o interessante conjunto de taças decoradas com os
mesmos símbolos e a inscrição em latim: “AVE MARIA GRATIA PLENA”. A
presença da esfera armilar em peças manufacturadas já com D. João III no trono do
reino de Portugal, deveria, pela lógica, ter o mesmo destino das outras divisas: cair
em desuso. Mas a esfera armilar, símbolo universalmente conhecido, manteve-se na
imagem régia da Leitura Nova e também em peças de porcelana chinesa. Nos
frontispícios joaninos da Leitura Nova a esfera armilar apresenta um arco exterior
suplementar, que serve de ligação com o suporte. Além disso, as esferas surgem
envolvidas por um outro lema: SPES MEA IN DEO MEO”, próprio do novo rei60.
Encontramos dois tipos de taças, uma com bordo evertido com o tema dos leões a
brincar com bola de brocado no fundo e a inscrição em volta do bordo, no interior, na
Fundação Medeiros e Almeida 61 e na Fundação Carmona e Costa 62, ambas em
Lisboa, e duas taças, uma na Colecção RA e outra no Peabody Museum, Salem,
com bordo direito e legenda exterior, em que as armas reais portuguesas estão
representadas um pouco mais rudemente e a dificuldade na cópia da legenda é mais
notória. De entre estes quatro objectos, os dois primeiros são similares na forma e
na decoração exterior a uma taça do Topkapi Saray Museum de Istambul63, que
repete o escudo no interior e a legenda “EM TEMPO DE PERO DE FARIA DE 1541”,
inscrição retomada sobre duas escudelas: uma ornamentada com uma cavalgada, o
exemplar do Museu Rainha Dona Leonor, Beja64, e outra com o tema das crianças a
brincar e as armas da família portuguesa dos Abreus, do Museu Duca di Martina, em
Nápoles65. Os três objectos exibem a mais antiga inscrição e também a mais antiga
data conhecida sobre peças de fabrico chinês para o mercado europeu. A legenda
aqui presente, não é indicadora de que as mesmas tenham sido encomendadas pelo
capitão de Malaca, mas sim que a encomenda ocorreu durante o segundo mandato,
entre 1537 e1543, de Pêro de Faria como capitão de Malaca, praça que ajudou a
conquistar em 1511, ao lado de Afonso de Albuquerque e de António de Abreu, o
descobridor das ilhas Molucas, Banda e Timor.
67
Estas peças juntamente com as nove garrafas portadoras de decoração vária
com motivos florais, elementos aquáticos e gamos numa paisagem, e a inscrição
“ISTO MANDOU FAZER JORGE ALVRZ [ÁLVARES] NA ERA DE 1552 REINA”, são
a prova da existência de um comércio clandestino entre os portugueses e os
chineses, apesar do corte de relações oficiais entre os dois países no período
compreendido entre 1522-1554. Jorge Álvares era sócio do mercador escritor
Fernão Mendes Pinto, membro do comércio luso-sínico-nipónico e autor em Malaca,
em finais de 1547, da primeira obra em língua portuguesa sobre o Japão –
Informação das cousas do Japão – oferecida a seu amigo S. Francisco Xavier.
Ainda do reinado de Jiajing, existem dois gomis, um na Fundação Medeiros e
Almeida, Lisboa66, e outro no Victoria and Albert Museum, Londres67, reflexo de uma
síntese harmoniosa de influências: a chinesa, a islâmica e a portuguesa, decorados
com o brasão de armas atribuído a António Peixoto, um navegador português que,
juntamente com António da Mota e Francisco Zeimoto atingiu o Japão em 15421543. Estes objectos, com a marca de Jiajing, mostram um brasão copiado
68
fantasiosamente em que o elmo foi transformado em barrete e o paquife em
folhagem.
Do reinado de Wanli (1573-1619) datam os três pratos, kraakporselein
(Museu do Caramulo, Portugal 68 , Museu Guimet, Paris 69 , e British Museum,
Londres70), e o kendi em forma de elefante (Topkapi Saray Museum)71, de cerca de
1575-1600, com um brasão de armas das famílias Melo ou Almeida, atribuído a D.
João de Almeida, capitão-mor da viagem em Macau em 1571 e 1572 e 1581 e 1582,
e um prato exclusivamente decorado com as armas de Matias de Albuquerque,
capitão de Malaca e Ormuz e 16º Vice-rei da Índia, entre 1591-1597, do Museu
Nacional de Arte Antiga, Lisboa72. O facto de um fragmento de porcelana com a
mesma decoração ter sido encontrado em Ormuz, hoje no Museu de Colónia, indicia
que terão sido encomendados quando Matias de Albuquerque era capitão daquela
praça.
Da mesma época, manufacturadas entre cerca de 1590-1610, existe uma
série de garrafas com as armas identificadas com as das famílias portuguesas Vilas
Boas e Faria ou Vaz, que pecam por omissão de alguns elementos e por
aumentarem outros. Apesar de poder ter sido um dos vários elementos destas
69
famílias o seu comanditário, o nome mais consensual tem sido o de Álvaro Vilas
Boas, Cavaleiro e Comendador da Ordem de Santiago da Espada, que foi à Índia
dezoito vezes.
Ainda fruto de uma encomenda personalizada e prova de que, apesar da
guerra civil no território sínico e da concorrência das grandes potências estrangeiras,
os portugueses continuaram ininterruptamente o seu comércio de porcelana, é a
bilha com forma portuguesa e as armas das famílias lusas: Pinto, Pereira, Guedes e
Pimentel, propriedade da Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, manufacturada
no decorrer do reinado de Chongzhen (1628-1644), o último exemplar conhecido a
encerrar a dinastia Ming73.
Exemplos de uma encomenda muito singular, são os pratos do tecto da sala
das porcelanas do palácio de Santos74 e do Peabody Museum e as taças decoradas
com um brasão, contendo hidra alada com sete cabeças, duas das quais
transformadas em cabeças de homem e mulher, ornamentado com filactera
70
portadora da inscrição “SAPIENTI NIHIL NOVUM” (“Para o sábio não existe nada de
novo). Há autores que defendem que estas peças, de cerca de 1575-1585, são
provavelmente de encomenda portuguesa75 , ainda que uma taça com a mesma
decoração apareça representada numa pintura holandesa da autoria de W. C. Heda,
datada de cerca de 1638, talvez devido à presença da hidra de sete cabeças, uma
das quais transformada em cabeça de diabo, na decoração da fachada do Colégio
de São Paulo em Macau.
Existe ainda um prato e uma taça com decoração compartimentada típica da
kraakporselein que ostenta as armas da família espanhola Cordero, ou
eventualmente da família portuguesa Cordeiro, que teve a sua origem remota
naquela. Esta peça pode ter sido objecto de uma encomenda espanhola, pois à
semelhança dos portugueses os espanhóis também operavam no Oriente. Em 21de
Novembro de 1564, partia a expedição de Miguel López de Legazpi, do porto de La
Navidad (Nova Espanha) que haveria de chegar à Ilha de Cebú, em Abril de 1565,
fundou Manila em 1571 no arquipélago das Filipinas, dando início à profícua Rota do
Oriente (1565-1815). Os produtos orientais que antes eram exportados de Lisboa
para a Europa seriam, a partir de agora, também trazidos pelos galeões de Manila
que ligavam Manila a Acapulco. Esta não seria apenas uma rota comercial, mas
também um agente cultural. Dos têxteis, especiarias, mobiliário, marfins, jade, lacas,
jóias, chá, entre muitos outros produtos orientais, poucos eram os que seriam
embarcados em Veracruz para Sevilha ou, a partir de 1717, para Cadiz. Com o
intuito de acabar com o monopólio da Nova Espanha sobre o comércio asiático e
com medo de perder as Filipinas pelo seu valor estratégico, Carlos III (1716-1788)
criaria a Rota do Ocidente, para a partir de Espanha controlar as relações comerciais
com o Oriente.
A partir da abertura da rota do galeão de Manila ou Nao da China, a
porcelana passou a ser um dos produtos mais procurados, como atestam os
fragmentos escavados em Manila ou cidade do México, as peças e fragmentos
encontrados nos sítios onde naufragaram os galeões que se dirigiam para Acapulco
- San Felipe (1576), San Agustín (1595), San Diego (1600), Santa Margarida (1601),
Nuestra Señora de la Concepción (1638) - e ainda nos barcos que navegavam de
Veracruz para España como Nuestra Señora da Atocha (1622) e Nuestra Señora de
71
la Limpia Y Pura Concepción (1641), carregados com porcelana, incluindo kraakporselein e porcelana de exportação Zhangzhou, na esmagadora maioria azul e
branca.
À semelhança dos portugueses, os espanhóis após a sua chegada às
Filipinas não se contentaram com a porcelana disponível no mercado, procedendo
à encomenda de objectos personalizados com brasões de armas, moda que só
cerca de cem anos mais tarde seria retomada pelas outras potências europeias.
Para o monarca espanhol foram encomendadas garrafas com as armas de
Leão e Castela, inspiradas num cantil de peregrino. Não é de excluir a hipótese de
ambos os objectos terem sido encomendados por via portuguesa, visto a partir de
1580 Filipe II cingir as duas coroas. Este monarca também devia apreciar muito a
porcelana, pois o inventário dos seus bens móveis faz referência a 1803 objectos de
porcelana, em que um dos cântaros apresenta “un escudo de las armas reales en el
cuerpo”76, mencionando quatro garrafas uma pintada de cores e três azuis e brancas,
mas não indica que qualquer delas fosse armoriada. A maioria das peças destinavase à mesa, onde predominava, por ordem decrescente, os pratos (920), escudillas
e albornias decorados principalmente a azul, mas também as havia de cores,
brancas e douradas.
Antes um prato com armas individuais de Garcia Hurtado de Mendoza, 4º
marquês de Canhete, e de sua mulher Teresa de Castro Portugal Y de la Cueva,
possivelmente a mais antiga encomenda para o mercado espanhol, datável de cerca
de 1590-1600 Rocio Díaz, 2010, pp. 87-91), nº 3)
Na senda das porcelanas que imortalizavam as armas do reino, a divisa de
El-rei D. Manuel I, o IHS, os feitos e armas de homens de armas e mercadores em
terras e mares do Oriente também as Ordens religiosas e a Companhia de Jesus
encomendaram peças que evocam a missionação.
Durante as primeiras décadas do século XVI, operavam no terreno evangélico
na Índia “os sacerdotes de armada”, assim designados segundo as fontes coevas.
Eram constituídos essencialmente por franciscanos e tinham como principais
funções: confessar as tripulações, assistir os enfermos, dar o conforto da estrema
72
unção aos moribundos, dizer missa nos portos de escala, incitar os soldados
portugueses, ou combater o seu lado”77.
Tal como aconteceu em África e posteriormente no Brasil a evangelização na
Índia não tinha um verdadeiro espírito missionário, baseado num programa
“coerente, concertado e autónomo de evangelização” 78 . Salvo raras excepções,
eram sobretudo os estratos mais baixos da população que aderiam ao cristianismo.
A situação modificou-se substancialmente com a entrada em cena dos padres
da Companhia de Jesus vocacionados para a cristianização do Oriente, para quem a
China ganhou especial importância..
Nos seus últimos anos de vida, entre 1549 e 1551, Francisco Xavier, o
“Apóstolo das Índias”, planeou a conquista espiritual do Celeste Império, sonho que
não chegou a concretizar, tendo morrido em 1552 em Sanchoão, na baía de Cantão,
às portas da China. Só em 1582, os padres residentes em Macau conseguiram
autorização dos mandarins cantonenses para a abertura da sua primeira missão em
solo do Império, estabelecendo-se em Zhaoqing, importante cidade da província de
Guangdong, e dando início à obra missionária do Celeste Império.
A Companhia manteve-se sozinha na cristianização da China até 1631,
exclusivo quebrado com a vinda dos dominicanos, dos franciscanos, dois anos mais
tarde, dos Agostinhos em 1680, e, por último, dos padres das Missões estrangeiras
de Paris, desligados do Padroado Português e ligados à Congregação da
Propaganda Fide79.
Não é de admirar que ao interesse pela porcelana, presente na obra e cartas
dos padres da Companhia, se associassem algumas encomendas especialmente
concebidas para o serviço religioso e quotidiano dos jesuítas. São disso exemplo os
três potes, hoje na Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa80, British Museum,
Londres81, e numa colecção particular, com profusa decoração e seis medalhões,
dois com o emblema da Companhia, e quatro com as iniciais “S” e “P” de São Paulo,
nome dos seus colégios, de cerca de 1620-1644.
73
Por serem os únicos a operar na China ou porque há uma tendência em
atribuir aos jesuítas os objectos decorados com o IHS e outros motivos religiosos,
feitos no século XVI e início no século XVII, os padres da Companhia são apontados
como comitentes dos pequenos potes com cabeças de querubim e os Instrumentos
da Paixão.
À semelhança dos jesuítas, outras Ordens Religiosas, nomeadamente os
agostinhos, franciscanos e dominicanos, encomendaram na China alguns objectos.
Entre esses contam-se alguns potes com a insígnia da Ordem dos Eremitas de
Santo Agostinho (OESA) e um erudito programa iconológico e uma garrafa, de cerca
de 1620-1644, pintada com elementos que evocam a Paixão, a Morte e
Ressurreição de Cristo, entendida por alguns autores como uma encomenda dos
dominicanos devido à presença do cão com a tocha acesa, símbolo da fé. A
atribuição do mercado de destino de ambas as peças não é igualmente linear.
Notas
1
Para uma história geral sobre o assunto, ver Loureiro, Rui Manuel, Fidalgos, Missionários e
Mandarins. Portugal e a China no século XVI, Lisboa, Fundação Oriente, 2000
2
Correia, Gaspar, Lendas da Índia, Porto, Lello & Irmão, ed. 1975, vol. I, p. 141
3
Idem, ibidem, p. 226.
74
4
IAN/TT, Cartas dos Vice-Reis da Índia, doc. 168
IAN /TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 6, nº 82
6
Loureiro, Rui Manuel, “Portugal em demanda da China: viagens e mercadorias,imagens e
vivências”, in Azul e Branco da China. Porcelana ao tempo dos Descobrimentos. Colecção Amaral
Cabral, catálogo de exposição, Lisboa, IPM, 1997, p. 14
7
Veniaga ou beniaga, mercadejar, comerciar
8
Loureiro, Rui Manuel, O Manuscrito de Lisboa da “Suma Oriental” de Tomé Pires.
(Contribuição para uma edição crítica), Macau, Instituto Português do Oriente, 1996, p. 146
9
Barbosa, Duarte, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente (1517), manuscrito
da Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 11008, Lisboa, Edição Publicações Alfa, ed. 1989ed. 1989, p.
156
10
Loureiro, 1997, p. 17
11
IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 3ª, maço 8, doc. 1.
12
IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 22, doc. 80; publicada em Loureiro, Rui Manuel,
A China na Cultura Portuguesa do século XVI. Notícias, imagens e vivências, 2 vols. (dissertação de
doutoramento na Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa, 1994, vol. 2.
13
IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 41, doc. 29; publicada em Loureiro, 1994, vol. 2.
14
Loureiro, ibidem, p. 20
15
Idem, ibidem, p. 22
16
Idem, “Portugal às portas da China. Breve história de uma relação exemplar”, in Caminhos
da Porcelana. Dinastia Ming e Qing / The Porcelain Route. Ming and Qing Dynasties, Lisboa,
Fundação Oriente, 1998, p. 34
17
D’Intino, Raffaela, Enformação das Cousas da China – Textos do Século XVI, Lisboa,
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 19891989, p. 102
18
Cruz, Frei Gaspar da, Tratado das Coisas da China (Évora, 1569-70), Introdução,
modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, ed. 1997, p. 150
19
Idem, ibidem, p. 149-150.
20
Um Tratado sobre o Reino da China dos Padres Duarte Sande e Alessandro Valignano
(Macau, 1590), introdução, versão portuguesa e notas de Rui Manuel Loureiro, Macau, Instituto
Cultural de Macau, 1992, p. 40
21
Idem, ibidem, p. 44
22
Idem, ibidem, p. 47
23
Matos, Artur Teodoro de, Na Rota da Índia. Estudos de História da Expansão Portuguesa,
Colecção Documentos e Ensaios, n.o 8, Lisboa, Instituto Cultural de Macau, 1994, p. 15
24
Thomaz, Luís Filipe Ferreira, De Malaca a Pegu. Viagens de um Feitor Português (15121515), Lisboa, Instituto de Alta Cultura Centro de Estudos Históricos, Anexo à Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 1966, p. 72
25
Idem, ibidem, p. 164
26
Idem, ibidem, p. 303
27
Para uma visão geral sobre o assunto, ver Pinto de Matos, Maria Antónia, “Chinese
Porcelain in Portuguese Written Sources”, in Oriental Art, vol. XLVIII, n.o 5, 2002-2003, pp.36-40; e
Idem, Cerâmica da China. Colecção RA / The RA Collection of Chinese Ceramics. A Collector’s vision,
Londres, Jorge Welsh Books, 2011, pp.123-139
28
IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 10, doc. 69
29
Freire, FREIRE, Anselmo Braancamp, “Cartas de Quitação del Rei D. Manuel”,
Archivo Historico Portuguez, vol. IV, 1906, p. 75
30
IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 13, doc. 10
31
IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 96, doc. 147. Gschvend, Annemarie Jordan, “O
Fascínio de Cipango. Artes Decorativas e Lacas da Ásia Oriental em Portugal, Espanha e Áustria
(1511-1598)”, catálogo da exposição Os Construtores do Oriente Português, Porto, p. 206.
32
Sousa, Frei Luís, A vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, Lisboa, 1984, pp. 256-257.
33
Bertini, Giuseppe, Le Nozze Di Alessandro Farnese. Feste alle corti di Lisbonna e Bruxelles,
Milão, Skira, 1997, p. 86.
34
Ferrão, Bernardo, Mobiliário Português, dos Primórdios ao Maneirismo. Anexos, Porto,
Lello e Irmão, 1990 volume IV, p. 228
35
Voyage de Pyrard de Laval aux Indes orientales (1601-1611), prefácio de Geneviève
Bouchon, organização do texto e notas de Xavier de Castro, 2 vols, Paris, Ed. Chandeigne, 1998, p.
532.
36
Herculano, Alexandre, “Viagem dos Cavaleiros Tron e Lipomani”, Opúsculos, Lisboa, Viúva
5
75
Bertrand, 18861886, vol. VI, p. 120
37
Oliveira, P.e Nicolau de, Livro das Grandezas de Lisboa, 1.a edição 1620, Lisboa, Colecção
Conhecer Lisboa – Vega, 1991, p. 462.
38
Para um estudo completo, ver Lion-Goldschmidt, Daisy, “Les porcelaines chinoises du
Palais de Santos”, in Arts Asiatiques, T. XXXIX, Paris, Annales des Musées Guimet et Cernuschi,
nova edição, 1988 (1.a edição, 1984)
39
Para uma visão geral sobre o assunto, ver Santos, Paulo César, “The Chinese Porcelain of
Santa Clara-a-Velha, Coimbra:Fragments of a Collection”, in Oriental Art, vol. XLIX, n.o 3, 2003-04, pp.
24-31
40
Esterhuizen, Laura Valerie, “Chinese Ming Blue and White Porcelain Recovered from 16th and 17th
Century Portuguese Shipwrecks on the South African Coast”, in Taoci, N.o 1, Paris, Outubro 2000, pp.
93-99; e Idem, “History written in porcelain sherds. The São João and the São Bento two 16th
Portuguese shipwrecks”, in Taoci, N.o 2, Paris, Dezembro de 2001, pp. 111-116
41
Aguarda-se a publicação do estudo integral da carga por Mensun Bound, director da
escavação.
42
Archivio general de Simancas, Contaduria mayor, primera época, legajo 178, folio 42, citado por
Desroches, Jean-Paul, “Les porcelaines”, in Le San Diego. Un trésor sous la mer, catálogo de
exposição, Paris, Réunion des musées nationaux e Association française d’action artistique, 1994, pp.
308-309.
43
Pinto de Matos, Maria Antónia, “Chinese Porcelain in Portuguese Written Sources”, in
Oriental Art, vol. XLVIII, n.o 5, 2002-2003, p. 37
44
IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 13, doc. 10.
45
Sousa, D. António Caetano de, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa,
nova edição revista por M. Lopes de Almeida e César Pegado, Coimbra, Atlântida – Livraria Editora,
Lda., 19481948, vol. III, pp. 525-526
46
Gschwend, Annemarie Jordan, “O Fascínio de Cipango. Artes Decorativas e Lacas da Ásia
Oriental em Portugal, Espanha e Áustria (1511-1598)”, catálogo da exposição Os Construtores do
Oriente Português, Porto, 19981998, pp. 218-219
47
Para uma visão geral sobre o assunto, ver Pinto de Matos, Maria Antónia, “Porcelanas de
Encomenda. Histórias de um Intercâmbio Cultural entre Portugal e a China”, in Oceanos, n.o 14,
Lisboa, CNCDP, 1993, pp. 40-56; Idem, Caminhos da Porcelana. Dinastia Ming e Qing / The
Porcelain Route: Ming and Qing Dynasties, Lisboa, Fundação Oriente, 1998; Idem, “Macao and
Porcelain for the Portugues Market”, in Oriental Art, vol. XLVI n.o 3, 2000, pp. 66-75: Idem, Cerâmica
da China. Colecção RA / The RA Collection of Chinese Ceramics. A Collector’ vision, Londres, Jorge
Welsh books, 2011, pp. 123-205
48
Massing, Jean Michel, “Gaignières-Fonthill Vase” e “Katzenelnbogen bowl”, in Circa 1492
Art in the age of Exploration, Washington, National Gallery of Art, 1991, p. 131, no 15
49
Idem, ibidem
50
Idem, ibidem, p. 132, nº 16
51
Morena, Francesco, Dalle Indie orientali alla corte de Toscana. Collezioni di arte cinese e
giapponese a Palazzo Pitti, Ministero per i Beni e le Attività Culturali – Soprintendenza Speciale per il
Pólo Museale Fiorentino, Florença,Giunti, 2005, p. 22-23 e 121, no 1
52
Alves, Ana Maria, Iconologia do Poder Real no Período Manuelino. À procura de uma
linguagem perdida, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 13
53
Idem, ibidem, p. 15
54
Resende, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1973, pp. 70-71
55
Le Corbeiller, Clare Le, China Trade Porcelain: patterns of exchange. Additionsto the
Helena Woolworth McCann collection in the Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Metropolitan
55
Museum of Art, 1974, p. 12, no ;
Corbeiller Clare Le, e Frelinghuysen, Alice Cooney, The
Metropolitan Museum of Art Bulletin, Inverno de 2003, p. 6, no 1
56
Pinto de Matos, 2011, pp.144-147, no 57. Idem, in Antunes, Mary Salgado Lobo,
Porcelanas e Vidros, Lisboa, FRESS, 1999, pp. 45-47.
57
Idem, “Porcelanas de Encomenda. Histórias de um Intercâmbio Cultural entre Portugal e a
China”, in
Oceanos, n.o 14, Lisboa, CNCDP, 1993, p. 41; Idem, Maria Antónia e al., Caminhos da Porcelana.
Dinastia Ming e Qing / The Porcelain Route: Ming and Qing Dynasties, Lisboa, Fundação Oriente,
1998, pp. 134-135, no 1
58
Abu Ridho, Oriental Ceramics. The World’s Great Collections, vol. 3, Museum Pusat Jakarta,
76
Tóquio, Nova Iorque, São Francisco, Kodansha America, 1982, no 201; França, António Pinto da,
Portuguese Influence in Indonesia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 25
os
59
Pinto de Matos e al., 1998, pp. 136-143, n 2-5
60
Alves, 1985, p. 134
61
Pinto de Matos, 1993, p. 43
62
Pinto de Matos e Salgado, Mary, Porcelana Chinesa da Fundação Carmona e Costa,
Lisboa, Assírio e Alvim, 2002, pp. 38-43, no 3
63
Krahl, Regina, (John Ayers, ed.), Chinese Ceramics in the Topkapi SarayMuseum Istanbul,
Londres, Philip Wilson Publishers, 1986, vol.II, pp. 589-590, no812
64
Pinto de Matos, Maria Antónia, “Porcelanas de Encomenda. Histórias de um Intercâmbio
Cultural entre Portugal e a China”, in Oceanos, n.o 14, Lisboa, CNCDP, 1993, p. 42
65
Caterina, Lucia, Catalogo della porcellana cinese de tipo bianco e blu, Roma, Museo
Nazionale della Ceramica “Duca di Martina” di Napoli, 1986, p. 6, no 3, 3a e 3b
66
Pinto de Matos, ibidem, p. 47
67
Kerr, Rose “Chinese porcelain in early European Collections”, in Encounters. The meeting of Asia
and Europe 1500-1800, Londres, V&A Publications, 2004, p. 225, no 17.3
68
Pinto de Matos, ibidem, p. 49
69
Desroches, ean-Paul, “Gomil”, in Do Tejo aos Mares da China: Uma Epopeia Portuguesa,
catálogo de exposição, Paris, Réunion des Musées Nacionaux, 1992, p. 99, no 44
70
Harrison-Hall, Jessica, Ming Ceramics in the British Museum, Londres, The British Museum
Press, 2001, p. 313, no11:103
71
Krahl, ibidem, vol. II, p.730 , no 1295
72
Pinto de Matos, 1993, ibidem, p. 48
73
Pinto de Matos e Salgado, 2002, pp. 50-53, no 5
74
Lion-Goldschmidt, 1988 (nova edição), pp. 44-45, fig. 80, 81 e 82
75
Gray, Basil, “A Chinese blue and white bowl with Western emblems”, in British Museum
Quarterly, Vol. XXII, nos. 3-4, 1960, pp. 81; Harrison-Hall, 2001, pp. 300-301, no 11:63
76
Sánchez Cantón, F. J., Archivo Documental Español publicado por la Real Academia de la
Historia, Tomo XI, Inventarios Reales Bienes Muebles que pertenecieron a Felipe II. Edição,
Introdução e Índices por F. J. Sánchez Cantón, vol. II, Madrid, Archivo Documental Español, 19561959 vol. II, 1956-1959, p. 265
77
Alves, Jorge Manuel dos Santos, Portugal e a Missionação no Século XVI. O Oriente e o
Brasil. Edição bilingue português-inglês, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p. 18
78
Idem, ibidem, p. 17
79
Idem, ibidem, p. 76
80
Pinto de Matos, Maria Antónia, A Casa das Porcelanas. Cerâmica Chinesa da Casa Museu
Dr. Anastácio Gonçalves, Londres/Lisboa, Philip Wilson Publishers Ltd., 1996 , pp.138-139 , no63
81
Harrison-Hall, 2001, p.379, no 12:73
Maria Antónia Pinto de Matos
Diretora do Museu Nacional do Azulejo desde 2008, conservadora e assessora do Museu
Nacional de Arte Antiga (2005/2008). Foi diretora da Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves
(1994/2005); diretora do Instituto Português de Museus (1996/1997) e chefe de divisão de
museus na mesma instituição (1992/1994). Licenciada em História, é autora de importantes
publicações sobre coleções portuguesas e brasileiras de porcelanas como Companhia das
Índias.
77
THE OPENING UP OF JAPAN: CHANGES BROUGHT ABOUT BY THE WESTERNIZATION
OF JAPANESE FINE ART, AND THE PRESENT DAY SITUATION
Hirotoshi Sakaguchi
Professor, Tokyo University of the Arts
My
! name is Hirotoshi Sakaguchi, and I'm Japanese.!
I currently teach at Tokyo University of the Arts'
!Painting Department.!
Thanks to Professor Okano's kind invitation, I'm here
in Sao Paulo for the first time ever. Today, I'm truly
happy to be able to exchange opinions with all of
you on the topic of oriental art.!
!
First of all, I'd like to tell you that I'm not a dedicated
researcher on the topic of Asian Art History, so I'll be
addressing the matter from my very own standpoint,
which is that of a contemporary artist. I believe that
as we take a look at the following images together,
we will be able to make light of the way in which
Japan has recre-ated and updated its Art by
reflecting about its own!history.!
img. 1
Repeatedly, in the long history of Japan, there have been times of sudden influx of foreign
technology and ways of thinking, followed by times when there was almost no exchange with
overseas countries. The Japanese, living in an island nation that is physically separated from the
continent, have been able to promptly absorb newly introduced elements belonging to foreign
cultures, having a special talent to rapidly transform them into cultural elements infused with a
peculiarity that could be thought of as uniquely Japanese, and seamlessly integrating them in the
context of a permanent quest to perfect esthetic experience in their daily life.!
Now, let us take a simple historical look at the influx of foreign
culture. Looking into the country's pre-historical era, we could trace
back the origin of Japan to the period between the 2nd and the 5th
century CE, the point in which the introduction of rice cultivation
techniques began to shape a particular way of life.(Image 1) Then,
during the first half of the 6th century, we had a second event of
great importance, which was the introduction of Buddhism. That
process was accompanied all the way into the late 7th century by
the adoption of the social structural patterns of T'ang dynasty's
China, which also influenced the development of a great deal of
Asian nations, and which we refer to in Japanese as ritsuryou. That
process brought with itself the introduction and further development
of many highly influential technical processes, specially those of
architectural construction and metal casting. At the same time,!the
contemporary flourishing of the 'Silk Road' trade route also had a
img. 2
very strong influence in Japan, as is evident in many examples of Buddhist Art and the craft of
everyday objects of the time. (Image 2)
78
I would like us now to take a look at the old's longest standing
wooden structures: Horyuji, a group of Japanese Buddhist temples
dating back to the 7th century. By looking at the murals of its walls,
we can unmistakably perceive the influence of the paintings on
India's Ajanta caves as well as those of the Mogao caves in China,
all of it channeled through a style that was very well informed of
T'ang China's tendencies of the time. (Image 3-1,3-2)G!
!
Now, allow me to jump much forward, to the year 1468, and let us
take a look at the work of Sesshu, who had spent two years in
early Ming dynasty China studying the ways of ink painting
(suibokuga) (Image 4)!
!
Then, we have this folding screen from 1580, known as the
Nanbam Byobu, the work of the painter Kano Naizen. In it, we can
see a portrayal of Momoyama era's reaction to the country's first
contacts with foreign traders sailing in from Portugal.(Image 5)!
!
img.3-1., 3-2!
!
!
!
!
!
!
!
!
!
img. 4
img. 5!
!
Here, on the other hand, is one of the earliest
examples of western style oil painting produced
in Japan, by the hand of whom is known as the
country's first 'oil painter', Edo period born
Takahashi Yuichi (1828-1897), who had
actually never visited the west, but whose
technique in this work, simply and aptly titled
"Salmon", nevertheless achieved surprisingly
realistic effects.
(Image 6-1,6-2)!
img. 6-1
img. 6-2
79
During the Edo period (1600 - 1868), which transpired under
a warless national isolation brought about by policies such as
the strict prohibition of Christianity, people enjoyed stable
everyday lives, and boasted world-class education and
technology. Concurrently, craft-related subcultures became
extremely popular and widespread among all classes, and
cultural manifestations like kabuki theater, ukiyo-e woodblock
prints, and other specifically Japanese crafts took on highly
developed forms. Under the influence of the affluent middle
classes and the growth of Japan's largest cities, Art saw a
clear departure from the chiefly religious themes of the past,
transitioning into secular themes characterized by highly
sophisticated and stylized representations of the gritty
particularities of city life, suffused with a sense of humor that
permeated as well the renovated visual portrayal of fantastic
folk tales. (Image 7)
img. 7
!
Around the middle of the 19th century, Japanese ne arts (in
particular ukiyo-e prints and a variety of handicrafts, including!
textiles, ceramics and many others) attracted a great deal of
attention at both the Second Paris International Exposition (1867)
and the Vienna International Exposition (1873), thus
spearheading the global art movements of Japonism and Art
Nouveau. There was also a strong influence on avant-garde
artists of the time, such as Van Gogh and Monet. (Image 8-1,8-2)
If I were to simply sum up Japan's 'modern' phase, I would say it
began on 1868 with the Meiji Restoration and finished in 1945
with the surrender at the end of the Second World War. I believe
everything that has been done from 1945 until today, can be
safely described as 'Contemporary'.!
'Art' (as defined by the Japanese word Bijutsu) was a concept
extrapolated from the west, and expressly introduced in Japan by
the government as part of the modernization agenda of the Meiji
Administration, that also happened to establish the Tokyo School
of Fine Arts (Tokyo Bijutsu Gakkou) which much later merged
with other similar public institutions to become the national
university at which I teach, which is called, as I said at the
beginning, Tokyo University of the Arts (Tokyo Geijutsu Daigaku).!
!
!
!
!
!
!
img. 8-1, 8-2
The original Tokyo School of Fine Arts was created by the Meiji
government with the aim of instilling in Japanese people an
imported way of feeling and looking at things, right down to the
adoption of the western way of drawing, painting and sculpting.
(Image 9)!
img. 9
80
In 1876, ninth year of the Meiji era, in order for the government to advance modernization in the
fields of city planning and architecture the Technical Fine Arts School was opened, and a proper
Western ne-arts education curriculum was taught by foreign lecturers such as Antonio
Fontanesi. "Fine art" of the Western type was introduced, and European painting techniques,
such as perspective, were disseminated.
!
img. 10!
However after the initial period of modernization, Japanese
national pride gained strength, and the ideal of western
painting was challenge after a re-appraisal of the excellence
of Japanese ne arts was campaigned by Ernest Fenollosa
and Tenshin Okakura, who were at the time teaching at
Tokyo School of Fine Arts, the predecessor of the present
Tokyo University of the Arts. A few years later, Kiyoteru
Kuroda and others of his generation returned to Japan after
studying abroad in France and later became professors of
the Tokyo School of Fine Arts, brought with themselves
images of the newest movements in turn of the century
Western painting, thus expanding the rigid stance that had!
by then solidified in the academic environment. (Image 10)
!
During the same temporal frame, after returning from studying abroad in Europe, a member of
the Kyoto circle of painters, traditionally trained artist Seihou Takeuchi, became a co-founder of
a new ethnic art category: ‘Nihonga’(Japanese Painting).
!
img. 11!
!
!
In 1907, the first Ministry of Education organized ‘Bunten’
exhibition inviting applicants from the public was held, and works
of Japanese painting, oil painting, and sculpture were exhibited
at the same place for the first time ever.!
Next from the Taisho era to the prewar Showa period,
cosmopolitan Western ne art aesthetics (Rodin, Cezanne, Van
Gogh, Gauguin) and literature were introduced, in the magazine
Shirakaba ("White Birch”) which was started in 1910.!
During the expansion of national power symbolized by the
victory of the Russo-Japanese War, a counter current to this
could be seen amongst young artists, whose interest in fauvism,
cubism, etc. was a search for free forms of expression in which
naturalistic avant-garde painting symbolized freedom and
individuality. (Image 11) The bilateral character of the currents,
which reflected the blockade situation of times, such as control
of art, and
war, depression, etc. by national power,
!
simultaneously became the feature.
In the 1930s, the restriction and suppression of free art
activities became remarkable. The number of artists
serving in the war also increased in number and ne-arts
organization was dispersed. Under wartime, for the
national will-to-fight upsurge, many painters, including
Tsuguharu Fujita, painted battle pictures and cooperated
in war e orts. (Image 12)
img. 12
81
img. 13!
After defeat in 1945 and the collapse of an era's values, artists earnestly examined the past and
groped for a future of Japan to be aimed at. It is still being questioned now how the experience
of atomic bombs, pollution, earthquakes, and nuclear power plant disasters could be overcome.
(Image 13)!
In the 1970s in the middle of
the frantic urbanization and
computerization typical of
the "Japanese miracle" high
economic growth period,
Otaku (nerd) culture was
born. Art expression taken
from the domain of popular
mass media technologyrelated subcultures (comics,
anime, games, personal
computers,
SF,
special
effects, doll figures) rapidly
flourished, and has spread
out into the world as its
incredibly
complex
and
particular
categories
continue to develop up to
this dayMImage 14N
img. 14
As a consequence of all of
the
process
that
I've
outlined so far, and many
others, current day Japan is
a society fueled by a very
and complex patchwork of
highly eclectic cultural elements, assimilated into our culture in an unique way that constantly
gives birth to highly original products whose wide-spread international appeal allows Japan to
compete with foreign countries in matters of contemporary art, fashion, architecture, etc.!
Before we go any further into our overview of Contemporary Art in Japan, I would like to briefly
introduce my own work through a few images.
82
img.15
img.16
img.18-1
img.19-1
After studying painting at Tokyo University of the Arts from 1969 until
1975, (Image 15) I relocated to Germany and spent the period between
1976 and 1983 studying at Munich's Academy of Fine Arts. It was during
that period in which I initially began my departure from academic drawing
and conventional painting. I was inspired by the spirit of the times to
undertake a search for a much freer way of expressionǣImage 16ǤStill
at that moment, just like in Japan, one could still see how Germany had
taken the toll of losing the war. Yet at the same time, I was appalled at
the way the students freely expressed their thoughts, even in front of their
teachers. It was thus, that I received a strong direct influence from
Germany's contemporary Art movement, including figures active at that
time like Joseph Beuys and Sigmar Polke. I studied ways of approaching
media like sculpture, painting, architecture or installation, always from the
conceptual standpoint of drawing. Upon returning to Japan, I mainly
developed the work towards a practice which integrated painting and
installations with large scale projects planned for open air venuesMImage
17-1, 17-2NHGAt the same time, I've always had a big interest in looking at
the way in which the relationships between inner and outer space and the
body are dealt with in Japanese Gardens and Japanese Tea Room
Architecture.
Another very strong interest
that informs my work is the
way in which Ink Painting
(suibokuga) deals with space
within
the
theme
of
landscapes,
capturing
vastness through the smart
use of very reduced elements.
(Image18-1,
18-2)
Upon
becoming a teacher at my
alma mater in 1991, I
had the chance to experiment with
img.18 Environmental Art and Social
-2
Projects (Image19-1, 19-2) while
also committing myself strongly to
activities that fostered international
exchange, including exchange
exhibitions, collaborations with
sister schools, and of course
tutoring a fair share of foreign
students of many nationalities.
Having given you a brief outlook of
my interests and my work, let us
proceed to this lecture's part
concerning post war contemporary
Japanese Art.
img.19-2
img.19-3
83
A good starting point I believe, would be to present a group of very important artists and curators
who have so far participated in the different editions of the Sao Paulo Biennale since 1951.!
img. 20!
!
img. 21!
img. 22!
img. 23!
+"GShikouGMunakata who participated in 1951 (Top Prize) A woodblock printmakerGwith a
very
strong admiration for Van Gogh G(Image 20)!
!
&AGTaro Okamoto who participated in 1953 With a very strong influence from the mexican
muralistsGKSun
TowerL1970G(Image 21)!
!
<GKaoru Yamaguchi who participated in 1957, a Japanese Artist with a penchant for
imaginary
landscapes.G!
!
' 6GTadashi Sugimata who participated in 1961 an abstract painter
E)-AGJiro Takamatsu who participated in 1973GPainter of white shadows
=GTetsumi Kudo who participated in 1977G(Image 22)!
7%DGKishio Suga who participated in 1981 A member of Mono-haG(Image 23)G
img. 24-1
img. 24-2
img. 25-1
img. 25-2
,
GTadanori Yoko who participated in 1985 a proponent of Pop PaintingG(Image 24-1,24-2)
.GTadashi Kawamata who participated in 1987 presenting an installation made out of wood!
(Image 25-1,25-2)!
*.G Masato Kobayashi who
participated in 1996GA PainterG(Image
26)GG
?@1G Michihiro ShimabukuroGwho
participated in 2006GWorks by traveling
worldwide performing and doing
installations and video work all aimed
img. 26
img. 27
G at finding new ways of communication.
(Image 27)!
From the side of the curators, I'd like to mention three people, Nakahara Yusuke JC2
A Ichiro HaryuJand (B:# Homei Tono!
84
Next, a brief overlook of the most important Contemporary Art movements and some of their
members:!
img. 28!
!
img. 27-1!
img. 28
img.30-1
!
img.31-1
img. 27-2!
●K 8>LGutai (Concrete) was a movement mainly formed
in the kanas (western) region of Japan, and whose activities
mainly took place in the period between1952-1972. Their
objective was to cut links with the tradition of modern painting,
and revive primitive unthought of ways of expression.
Yoshihara in particular, rallied their ranks under with messages
like "We won't imitate any humans! Let's make things that have
never been yet!" their work is a very good example of an
informalist ethos combined with a very Japanese approach.
They achieved international notoriety and their legacy is
currently being reexamined in Japan and abroad.
img. Their members were: 09GJiroGYoshiharaK L
29!
the
! leaderG(Image 28)!
3!GAtsukoGTanaka A female painterG(Image 27-1,27-2)
5FDGKazuoGShiraga who invented a unique way of
working, which consisted of placing his canvases and paints on
the floor while suspending himself with a rope from the ceiling
and treating the surface with his bare feet. (Image 28)
/.GSadamasaGMotonaga (Image 29)
img.30-2!
● K Neo Dada Organizers L a movement
founded in 1960 which had a very short
duration of about 6 months, but which
spawned a mass migration of many of its
members to New York City where some
are still active today.
$ 4 G Ushio Shinohara, who experimented with corrugated cardboard
sculptures depicting subject matter like motorcycles, and also developed a
unique way of painting by boxing. Many of you might have heard of him, as he
was recently the focus of a popular documentary. (Image 30-1,30-2) ;
Shusaku Arakawa whose work includes poetic painting derived from diagrambased motifs, and other media such as architecture and landscape art. (Image
31)!
85
86
Hirotoshi Sakaguchi
Professor de pintura a óleo da Faculdade de Belas Artes da Tokyo University of the Arts,
desde 1991. Como artista realizou várias exposições individuais na Alemanha e nas
cidades de Tóquio e Fukuoka, no Japão e participou de exposições coletivas em várias
cidades japonesas e países estrangeiros como na Austrália, China, Alemanha e França.
87
EMAKI STUDIES: PAST, PRESENT, AND FUTURE
ESTUDOS DO EMAKI: PASSADO, PRESENTE E FUTURO
Akira Takagishi
The University of Tokyo
ABSTRACT: Illustrated handscrolls, or emaki, have a history spanning over a thousand
years and have held a special place in Japanese painting history since their inception in the
eighth century. The handscroll format, in which a length of silk or paper is wound around a
dowel and unrolled from right to left, creates an additional temporal dimension ideally suited
to the depiction of narrative. Their subject matter ranges from courtly tales to stories of the
miraculous origins of temples and shrines, to illustrated biographies of eminent monks, war
tales and beyond. During the twelfth to sixteenth centuries artists came up with many
conceptual innovations, a situation we might loosely compare to the dynamic changes in the
graphic visuality of today’s manga and anime. Emaki also provide valuable information about
the societies that produced them that cannot be gleaned from documentary sources. This
presentation introduces the historical development of emaki and outlines the ways emaki
have been taken up in recent scholarship in the fields of art history, history, literature, and
Buddhist studies. It aims to contribute to the foundation of a distinct field of “emaki studies”
with an ambitious global vision that includes the comparative study of western illuminated
manuscripts.
Keywords: narrative painting; handscroll; emaki; Japanese art history; comparative art
history.
RESUMO: Pinturas em rolo ilustradas ou emaki possuem uma história que se estende por
mais de mil anos e tem um lugar especial na história da pintura japonesa desde o seu início,
no século VIII. A pintura de seda ou papel, cuja sua largura se apresenta em rolo, é
desenrolada da direita para a esquerda e cria uma dimensão temporal adicional, combinada
de modo ideal com a descrição da narrativa. Seus temas abrangem desde contos da corte
até estórias de origem milagrosa de templos e santuários para ilustrar biografias de monges
eminentes, contos de guerra e do além. Durante o século XII até XVI artistas introduziram
muitas inovações conceituais que podem ser, de modo amplo, comparadas às dinâmicas
mudanças na visualidade gráfica do mangá e animê atuais. O emaki representa a essência
da sociedade histórica que o produziu, algo que não é possível de ser detectado num
material documental. A palestra irá introduzir o desenvolvimento histórico do emaki e
descrever modos pelos quais o emaki tem sido abordado em recentes pesquisas nos
campos de história da arte, história e literatura japonesas e estudos budistas. Pretende-se
contribuir para a fundação de um campo distinto de “estudos do emaki”, com uma visão
global ambiciosa que inclui o estudo comparativo com as iluminuras manuscritas ocidentais.
Palavras-chave: pintura narrativa; pintura em rolo; emaki; história da arte japonesa; história
comparada da arte.
1 Inception: Emaki during the Eighth to Twelfth Centuries
Today I would like to introduce a special genre within Japanese art history, the
illustrated handscroll, or “emaki” in Japanese. As objects emaki represent a
88
distillation of the historical societies that produced them, and as such they transcend
the usual boundaries of “art” as we are usually accustomed to thinking about it,
providing valuable information on the lives and livelihoods of people of the past that
cannot be gleaned from documentary sources. This makes emaki a rich resource for
historians working in a range of fields in addition to art history. This presentation will
introduce the historical and stylistic development of Japanese emaki and outline the
ways in which emaki have been taken up in recent scholarship in the fields of art
history, Japanese history, Japanese literature, and Buddhist studies.
Many aspects of life in ancient Japan were strongly influenced by the culture
of her larger continental neighbor, China. In the sixth century, Buddhism arrived in
Japan from China via the Korean peninsula, and with it came Chinese characters,
paper, and writing utensils. The Buddhist scriptures (or sutras) were written on sheets
of paper in columns of Chinese characters, top to bottom and left to right. The
individual sheets were joined together to form long handscrolls. The illustrated
handscroll, or emaki, developed out of this format when paintings were added to the
text. On average emaki are about 35cm high and range from 10 to 20 meters in
length. Many emaki in fact comprise sets of several scrolls. The largest extant set of
emaki today consists of a total of forty-eight scrolls that cumulatively measure over a
kilometer in length.
The oldest surviving emaki is known as the Illustrated Sutra of Cause and
Effect (E-inga kyō) and dates to the eighth century. It tells the story of the early life of
Siddhârtha, the prince who renounced the world and eventually became the Buddha.
The bottom half of the scroll is devoted to the text, while the top half is taken up with
the accompanying images. At this stage in its development, the format of the emaki
closely followed that of Tang dynasty sutras and Buddhist paintings.
At the end of the eighth century a system of governance was established with
the emperor and an aristocratic court at its center, located in what is present-day
Kyoto (then known as Heian-kyō). This period in Japanese history is known as the
Heian period and continued until the end of the twelfth century. Over the four
hundred years of the Heian period the Kyoto aristocrats devoted themselves to
cultural and scholastic pursuits. While they continued to be influenced by continental
culture and imports from Song China, it was during the Heian period that the
89
foundations for what is today perceived as truly “Japanese” culture were laid. This
included the development of the native hiragana syllabary, the waka poetic form, and
yamato-e, or classical Japanese-style (as opposed to Chinese style) painting, all of
which came into being during the course of the ninth century.
The Tale of Genji, often called the world’s first novel, was composed by Lady
Murasaki Shikibu in the early eleventh century and includes a several episodes that
indicate the appreciation of emaki was an integral part of courtly life. Murasaki offers
a number of precisely worded evaluations of various emaki that cumulatively suggest
emaki had evolved into a highly sophisticated art form by this time. However,
unfortunately, not a single emaki dating from the ninth to eleventh centuries is extant
today.
The courtly cultural efflorescence of the Heian period peaked at the end of the
twelfth century, just as the aristocrats’ hold on power began to weaken under threat
from the emerging warrior class. The latter half of the twelfth century was dominated
by wars and battles, and in the midst of the instability of these conflicts, the court
turned inwards, focusing ever more attention on cultural pursuits. Some of the most
celebrated emaki were produced at precisely this time, including the Genji
monogatari emaki (Illustrated Scrolls of the Tale of Genji) the subject of which is
courtly love; the Ban Dainagon emaki (Illustrated Scrolls of Grand Counselor Ban)
which tells the story of a political conflict between urban-dwelling aristocrats, and the
Shigisan engi emaki (The Miraculous Origins of Mount Shigi), which depicts the
miraculous origins of a temple on Mount Shigi.
During the eleventh and twelfth centuries the Song emperors in China
amassed enormous collections of artworks. This practice was imported to Japan
where during the twelfth century the emperor and court also collected works of art
and built treasure houses in which to store them. The collection of emaki amassed by
Emperor GoShirakawa (1127–1192) and stored in a specially constructed storehouse
known as the “Lotus Treasury,” was pre-eminent among these collections. The
foundations of aristocratic society in late twelfth century Kyoto were shaken by the
emergence of the warrior class, and it was against this background of profound
political instability that Emperor GoShirakawa commissioned a number of remarkable
emaki that addressed the state of the world and the human condition for his
90
collection. GoShirakawa’s aim appears to have been to somehow shore up the
increasingly insecure position of the emperor in the realm by commissioning and
dedicating these scrolls.
One of these scrolls was the Nenjū gyōji emaki (Illustrated Scrolls of Annual
Events), a set of scrolls that illustrated the annual program of ritual and festive events
held in the capital. The depiction of these gorgeous spectacles simultaneously
communicated the harmonious state of the realm under the leadership of the ideal
ruler, the emperor. The Yamai zōshi (Scrolls of Diseases and Deformities) depicted
those afflicted with strange diseases and the physically and mentally challenged in
the city of Kyoto and its surrounding areas; the Jigoku zōshi (Hell Scroll) and the Gaki
zōshi (Scroll of Hungry Ghosts) depicted the hellish fates to which wrongdoers were
consigned after death. Collectively these scrolls pictorialized both the idealized real
world and the path of evil as explained in the Buddhist scriptures, and effectively cast
GoShirakawa as ruler of both this world and the next.
The twelfth century is of particular significance in Japanese art history as it
represents the apex of 300 years of intense cultural activity centered among the
aristocrats of Kyoto who, while absorbing the latest objects and styles imported from
Song China, refined and Japanized them to create what we now perceive as
classical Japanese culture writ large. This is also true in the field of emaki production
as ever more sophisticated techniques were developed to create powerful narrative
visualizations of cherished stories. The late twelfth century emaki known as Shigisan
engi emaki (The Miraculous Origins of Mount Shigi) is a prime example of the high
levels of sophistication reached in late twelfth century narrative painting in Japan.
This three-scroll set is a designated National Treasure and is one of the best known
of all Japanese paintings.
2 The Miraculous Origins of Mount Shigi and Myōren
Mount Shigi is located about 20 kilometers from Nara and there is a temple
known as Chōgosonshiji at its summit. The protagonist of the scrolls is a monk
named Myōren who was active on Mount Shigi during the tenth century. Myōren
possessed super-human powers and he performs various miracles in the course of
91
the story, thanks to which the temple developed from a small mountain retreat into a
thriving religious establishment. The scrolls simultaneously tell both the story of
Myōren’s life and the miraculous founding of the temple and are therefore classifiable
under the categories of both “sacred biography” and “miraculous origins.” It is
important to note that while the scrolls were created in the late twelfth century, the
story itself—in which objects that are brought to Mount Shigi are transformed into the
relics that substantiated the miraculous stories surrounding the temple’s origins—
harks back more than 250 years to the beginning of the tenth century.
None of the relics of Chōgosonshiji temple originated on the mountain. All
were miraculously “transported” to Mount Shigi from distant places. The focal point of
the scrolls is Myōren, who never takes a step off the mountain, and the main themes
are the movement or transportation of objects, deities, and persons to Mount Shigi.
The first of the three scrolls tells the story of the miracle of the “flying granary”
(tobi kura in Japanese). In the second scroll, Myōren succeeds in healing the
emperor who has fallen sick sixty kilometers away in Kyoto. The third scroll tells the
story of how Myōren’s older sister, from whom he had been separated since
childhood, set out on four hundred kilometer-long journey to find him, and of their
miraculous reunion at Mount Shigi.
The Flying Granary Scroll
The first scroll is known as the flying granary (tobi kura) scroll, or alternatively
as the Yamazaki Landlord scroll (Yamazaki chōja no maki in Japanese). This scroll is
unusual among illustrated handscrolls in that it contains no written text. However, a
very similar story is recorded in a twelfth century anthology of Buddhist vernacular
tales, allowing scholars access to the narrative framework of the story despite the
fact that the scroll itself lacks a written text.
The date is 900 A.D. and the stage is residence of a wealthy landlord in
Yamazaki in the suburbs of Kyoto. Yamazaki is located on the Yodo River, which
links Kyoto with the Inland Sea, and it flourished as a way-station for river traffic
making this journey. The family and employees of the landowner are startled as the
92
granary in which rice is stored in the landowner’s compound suddenly begins to
shake. The granary is made of wood and the shaking motion is conveyed by the
falling ceramic roof-tiles. Then a golden bowl of about a meter in diameter suddenly
bursts out of the granary. This magical flying bowl had in fact been sent by Myōren
from Mount Shigi to the landlord’s compound, as it had been on numerous occasions
before, to request rice as alms. Although in the past the landlord had always
complied, for some reason this time the bowl’s request irked him and he had thrown it
into the granary where the rice was stored and locked the door.
After escaping from the granary, the bowl then lifts the granary off its
foundations and begins to fly off slowly into the sky with it. The local inhabitants
follow its progress along the river in open-mouthed surprise. If you look carefully you
can see the fine ink lines used to depict the flow of the river. Since historically rice
was the equal of today’s hard currency, the storehouse effectively represents the
entirety of the landlord’s assets. The landlord, facing financial ruin, mounts a black
horse and follows the flying bowl and granary accompanied by a group of his men.
Given the geographical distance covered in the story, the bowl seems to be traveling
at about 10 kilometers an hour.
After about half a day, both the granary and the landlord arrive at Mount Shigi,
about 50 kilometers to the south of Yamazaki. The bowl stops only when it reaches
Myōren’s secluded mountain hut. The landlord apologizes to Myōren for not having
donated the requested rice and asks him to return the granary and the rice stored
within it. You can see the granary shown just to the side of Myōren’s hut. Myōren
escorts the landlord and his party to the granary and tells them that he will return the
rice, but not the wooden granary itself. He then orders the landlord’s men to load the
rice bales inside the granary onto the golden bowl. At this time rice was stored
packed in straw bags to preserve it, and a single bale weighed around 60 kilograms.
Once the bales are loaded the golden bowl sets off into the sky again and the rice
bales follow it one after the other, like a flock of geese. This time it is the mountain
deer that are startled by this strange phenomenon and they are shown looking up at
the sky in surprise.
We then return to the landlord’s compound. One of his men has rushed back
to warn the household of the imminent return of the rice bales. The landlord’s wife
93
and the women working in the kitchen are taken by surprise at the return of the
golden bowl, followed by the rice bales. The skill of the artist is particularly evident in
the visualization of Myōren’s powers via the depiction of the flying granary and rice
bales. In the end, after all this movement of people and objects, what remains on
Mount Shigi is the empty granary.
The Scroll of the Healing of the Emperor in the Engi era (901–923)
The second scroll tells the story of how Myōren cured the emperor of illness.
The reign of the Emperor Daigo (885–930) in the early tenth century, approximately a
hundred years after the capital had been moved to Kyoto, was characterized by
political stability and as such was recalled as a golden era by later generations.
The scroll begins with a section of text, as the majority of handscrolls do. The
Emperor Daigo is taken ill and all the most powerful priests at the most powerful
temples in the capital Kyoto are engaged to pray for his recovery, but the emperor
shows noimprovement. Rumors of Myōren’s powers had reached Kyoto by this time
following the flying granary incident, and an imperial messenger is dispatched from
the capital to Mount Shigi. The messenger is the figure in the green robe with the red
sleeves.
The messenger arrives at Mount Shigi, sixty kilometers to the south of the
capital, and meets with Myōren, whereupon he requests that Myōren come to the
capital to cure the emperor. But Myōren refuses to go to Kyoto saying that he will not
leave the mountain, but that he will pray for the emperor’s recovery from Mount Shigi.
The messenger asks how they will know, when the emperor recovers, that his
recovery was due to Myōren’s prayers and not to anyone else’s. Myōren replies that
if the emperor recovers after seeing a child-deity covered in swords in a dream, they
will know that his recovery was due to Myōren’s prayers. The messenger then returns
to the capital and reports this to the emperor’s retainers. As the emperor was
considered to be a divine being, it was taboo to depict his figure explicitly. In this
painting the emperor is lying sick behind the blinds.
94
Three days pass and the emperor see the sword-boy in a dream, just as
Myōren predicted, and he recovers from his illness. In the painting the depiction of
the sword-boy arriving at the imperial palace is followed by the depiction of his flight
through the sky. The extreme speed of his arrival expressed here in the swiftly
revolving wheel is symptomatic of his power as a Buddhist deity. The cloud on which
he arrives has a long tail, like a jet trail, which reaches all the way back to Mount
Shigi. Finally, a messenger is dispatched from the capital to thank Myōren. The
messenger communicates the emperor’s gratitude and offers him a large estate, but
Myōren refuses as he has no interest in notoriety or money.
In the course of the second scroll, the imperial messenger makes two return
journeys to Mount Shigi from Kyoto, and in between the sword-boy flies from Mount
Shigi to the capital; no objects are left on the mountain in this scroll.
The Nun’s Scroll
The protagonist of the third scroll is Myōren’s older sister, who has become a
nun. Myōren was the son of a wealthy provincial family of Shinano. At the age of
about twelve or thirteen, he declared his intention to become a monk, left his parents
and sister in Shinano, and set off for Nara. In Nara he practiced the requisite religious
devotions and studies for ordination at Tōdaiji, the temple where the enormous Great
Buddha already mentioned was installed. Some tens of years subsequently passed
during which time Myōren was unable to contact his family.
Myōren’s sister, now an elderly nun, decides that she wishes to see her
younger brother again and sets out on a journey to discover his whereabouts. She
travels the more than four hundred kilometers from Shinano to Nara and asks the
heads of each village she passes through on her way for news of her brother, but no
information is forthcoming. At the end of what must have been a journey of several
weeks, the elderly nun arrives in Nara and goes to Tōdaiji to pray before the Great
Buddha.
Japanese of the day believed very strongly in the power of dreams and visions,
and the practice evolved of spending the night in the precincts of a temple in the
95
hope of receiving a revelation or vision from the deity of the temple. The nun decides
to spend the night praying to the Great Buddha that she and her brother might be
reunited. The nun appears several times in the painting of this episode which covers
the span of the night, from her arrival, to sleeping, to having the anticipated dream,
and finally her departure the next morning. The Great Buddha sends the nun a
dream in which Myōren’s whereabouts are revealed. The nun receives instructions to
go to the holy mountain wreathed in purple clouds to the south-west of Nara. When
the nun sets off in a south-westerly direction, sure enough she finds Mount Shigi,
wrapped in purple clouds. Today the pigments are abraded and appear brown, but
originally they would have been purple.
When the nun arrives at Myōren’s hut she calls out to him, and the painting
illustrates the emotionally charged reunion of brother and sister. Myōren’s sister then
gives him a sweater she had made for him back in Shinano. The sister remains on
Mount Shigi thereafter, caring for Myōren.
The story ends here in the handscroll. However, there is something painted
right at the end which demands our attention, namely the roof of the granary which
flew to Mount Shigi in the first scroll. This device returns the end of the story to the
beginning again, creating a circular narrative structure. In the course of the third scroll
Myōren’s sister and the sweater are brought to Mount Shigi.
The Movement of Objects, Deities, and People and the Generation of Relics
Around the year 900 two objects, a granary and a sweater, were transported
to Mount Shigi. In the third scroll of this set, dating to around 1170, it says that
Myōren wore the sweater his sister had made for him until it was quite worn out and
that when he could no longer wear it, it was stored in the granary. Pilgrims to Mount
Shigi subsequently began taking fragments of the sweater home with them as
protective charms. Eventually, the wooden granary also began to crumble and
people also began to take small pieces of wood. It is said that the main icon of the
temple is made from wood from the flying granary.
96
This is the story told in the handscroll known as the “Miraculous Origins of
Mount Shigi,” in which the monk Myōren performs numerous miracles without taking
a single step off the holy mountain. It also depicts the process by which the
movement of objects, deities, and people accumulated to generate actual relics, and
an intangible sacred biography of the mountain and the temple founded there by
Myōren. This sacred site is located at a distance from both Nara and Kyoto, but the
various this-worldly and other-worldly powers of the successful landlord, the emperor
in the capital, the devoted nun, and the monumental Great Buddha of Tōdaiji in Nara
all contribute to the narrative accretions which resulted in the generation of the relics
which substantiate the sacrality of the site. This makes for an interesting comparison
with the forms and functions of Christian art.
The patron of this set of three scrolls was without doubt a person of great
influence in twelfth century Kyoto, quite possibly the emperor himself. The scrolls
depict the landscape of the Kyoto-Nara region and the era of ideal imperial reign
around the year 900. Not a single figure in the scrolls is motivated by evil intentions.
In the twelfth century though, imperial power was waning and society was
destabilized by battles between various emerging non-imperial powers, a situation
that surely contrasted sharply with the idealized view of the tenth century. According
to the scenario in which the twelfth century emperor commissioned the painting of
this beautiful handscroll telling this charismatic story and then donated the scrolls to
the temple on Mount Shigi, where it would have kept company with the sweater in the
granary, the act of commissioning the handscroll itself constitutes a prayer for both
the well-being of the realm, and of the current emperor himself. We might then say in
closing that each of the three scrolls takes as its subject one of the three most
important elements of life in this world: the first scroll deals with money, the second
with health, and the third with love.
3 Development: Emaki during the Thirteenth to Sixteenth Centuries
The power of the warrior classes ultimately superseded that of the aristocrats
at the close of the twelfth century and the period between the thirteenth and sixteenth
centuries is known as the “chūsei” or medieval era in Japanese history. During this
period there were three major power blocs: aristocrats, temples, and warriors. The
97
aristocrats and temples, established in the Kyoto and Nara regions since the ancient
period, continued to hold sway in these areas and scholastic and cultural pursuits
remained their domain. The newly-emerged warriors by contrast were dominant in
the provinces, and they continued to increase their influence though expansion of
their economic and political capital. With the establishment of the position of shogun,
or supreme military ruler, in the fifteenth century, the warriors also gained an
important stake in the sphere of cultural production, traditionally the preserve of the
court and aristocracy.
Emaki continued to be produced in large numbers during the medieval period,
and many extremely high quality emaki were created in the thirteenth and fourteenth
centuries. The range of narrative genres also increased to include emaki that
depicted battles (kassen emaki) and illustrated biographies of eminent monks
(kōsōden emaki) for example.
Buddhism in Japan reached a great turning point in the twelfth to thirteenth
centuries. Until this point Japanese Buddhism had been largely scholastic in nature,
a quality that appealed to the aristocratic elite that supported it. This type of
Buddhism had gradually filtered down to reach the commoner classes, where despite
pressure from the established Buddhist sects and their supporters, a new type of
Buddhism began to emerge. The new sects were based on greatly simplified
practices and led by individual charismatic monks who attracted large numbers of
followers. Once these leaders had established sects with groups of followers, the
practice developed of creating illustrated biographies of the founding priest. The
Hōnen Shōnin eden (Illustrated Life of Hōnen) which dates to the early fourteenth
century depicts the life of the priest Hōnen (1133–1212), founder of the Jōdōshū
(Pure Land) sect and is an enormous work, complete in forty-eight scrolls. According
to Hōnen, anyone could achieve rebirth in Amida’s paradise simply by chanting the
Buddha’s name, or nenbutsu. This made Jōdōshū Buddhism attractive not only to the
illiterate masses, but also to members of the aristocracy too and it gained large
numbers of followers among both groups. The large number of scrolls in the set was
not only designed to glorify Hōnen, but also as a symbolic representation of the
power of the simple practices of Jōdōshū Buddhism to save large numbers of people.
98
The itinerant monk Ippen (1234–1289) also preached the practice of reciting
the Buddha’s name to achieve salvation. He traveled all over Japan preaching the
so-called odori nenbutsu, a practice according to which believers danced while
chanting. Ippen’s unique method of proselytizing is depicted in the Ippen Hijiri-e
(Illustrated Life of Ippen), dated 1299. The activities of both Hōnen and Ippen invite
comparison with those of their counterparts in medieval Europe.
The kassen emaki, or handscroll illustrating battle scenes, is a representative
medieval genre. There are records of kassen emaki being produced in the late
twelfth century in GoShirakawa’s salon, and with the rise of the warrior class in the
early thirteenth century, the production of kassen emaki also increased. The Mōko
shūrai emaki (Illustrated Account of the Mongol Invasion) is a well-known example of
this type of scroll that depicts the late thirteenth century attempted invasion of Japan
by the Mongols. The scroll depicts the arrival of the foreign-looking warriors in a great
armada and clearly contrasts them with the Japanese warriors, who wear domestic
armor. It is clear that the scrolls were painted to record an historic event, and that the
warrior class who had fought the Mongols commissioned the scrolls as a means of
demanding recognition and reward from the military government for their actions to
prevent the invasion. This scroll demonstrates how emaki also came to be used as a
means of recording history during the warrior ascendancy.
By the mid-fourteenth century, the warrior class had established a warrior
government in Kyoto called the “Muromachi bakfuku.” During the thirteenth century
the military administration had been relegated to Kamakura in the far East of the
country. But with the establishment of the Muromachi bakufu in Kyoto, the three
power blocs—the warriors, aristocrats, and the temples—were now operating in the
same geographical locale in the center of the archipelago. All three groups lent and
borrowed emaki amongst themselves, and similarly, all three also commissioned new
emaki. The Yuzū nenbutsu emaki (Illustrated Handscroll of the Legends of the Yuzū
Nenbutsu Sect) takes as its subject the practice of chanting the name of the Buddha
in order to achieve salvation. The Muromachi shogunate sponsored its production in
print form and copies circulated widely throughout the country. The emperor,
aristocrats, and daimyo also collaborated to produce a luxury version of the scroll,
brushing the calligraphy themselves. The fundamental impulse behind the creation of
99
both types of Yuzū nenbutsu emaki was the generation of merit for the spirit of the
shogun’s deceased father. These scrolls represent the marriage of aristocratic and
warrior culture in the fifteenth century.
The demand for emaki exploded in the sixteenth century with the emergence
of an affluent merchant class in Kyoto who also aspired to possession of the cultural
cachet represented by emaki connoisseurship and ownership. This led to a great
expansion in the consumer base for emaki, and subsequently also to the
development of the new genre of the “small scroll.” These scrolls were executed in a
distinctive artless style and were produced in great numbers during the sixteenth and
seventeenth centuries.
4 Re-evaluation: Emaki during the Seventeenth to Nineteenth Centuries
Until relatively recently only emaki produced prior to the sixteenth century
were considered significant works of art. This attitude led to a lacuna in research on
emaki that post-date the sixteenth century. However, many emaki in European and
North American museums and libraries date to the seventeenth and eighteenth
centuries and in recent years they have become the subject of enquiry by literature
specialists in particular. The 250 years of the Edo period, which spanned 1603–1867
were peaceful. The military government headquarters was in the city of Edo (presentday Tokyo) and the three hundred or so provinces were administered by warrior class
daimyo houses. Most daimyo, sometimes translated as “feudal lords,” had risen
thanks to their military prowess during the tumultuous sixteenth century. In the peace
of the seventeenth century, they turned to the acquisition of cultural expertise, and
emaki caught their attention. Daimyo all over the country began to collect old emaki,
and to commission new ones. The seventeenth century also saw a boom in the
publishing industry and the circulation of relatively cheap illustrated printed books.
Against this background, emaki quickly acquired a new status as super luxury
illustrated “books.”
100
5 Emaki: Present and Future
As I hope this short introduction to Japanese emaki has shown, emaki have
been aspirational objects for the powerful throughout their one thousand year history,
spanning the eight through eighteenth centuries. Despite the great length over which
their stories literally unfold, once rolled they are compact enough to comfortably fit in
one hand, a fact which also contributed to their suitability as treasured dedicatory or
collectors’ items. In recent years historians have also begun to take note of emaki,
making use of the data they contain about people’s lives. This approach is dubbed
the kaiga shiryō ron in Japanese, indicating the use of paintings (kaiga) as historical
sources (shiryō). One of the characteristics of emaki is the vivid depiction of people
and their surroundings, gestures, behaviors, furniture, architecture, and townscapes
and so on that although only tangentially connected to the main narrative, are
nevertheless carefully depicted in the scroll paintings. Of course, these are paintings,
not historical records, and they are governed by their own visual rhetoric and fictions
born out of narrative necessity. For example, interior scenes are depicted according
to the visual idiom known as fukinuki yatai (or blown-off roof) that allows the viewer a
privileged view inside a room. Night scenes are indicated not by a darkening of the
sky, but by the inclusion of oil lamps within the scene. Copying was also an important
aspect of emaki production and idioms were often carried forward from specific
paintings. Nevertheless, it is possible to discern historical aspects of people’s real
lives if a proper understanding of these visual devices is kept in mind when
examining the details of emaki paintings. The information that historians—who have
overwhelmingly used textual sources to write histories—have gleaned from the
examination of emaki has enlivened and enhanced our understanding of the past.
The emaki is a peculiarly Japanese phenomenon, but the basic premise of
turning a story into a narrative painting, and the elaboration of the main narrative
thrust with images of people and their daily lives, has of course long been practiced
in the Christian, Islamic, and many other cultural spheres. Going forward I believe it is
of great importance that we examine such narrative painting traditions to discover
their origins, patrons, relationship to religious beliefs, collecting patterns, and
compositional modes in a framework that transcends regional and intellectual
boundaries. This is because all such narrative paintings are based on the richly
productive tension of textual and visual expression. The value of the cultural heritage
101
referred to here as “emaki” is not limited by the disciplinary boundaries of art history,
nor those of what is defined as “Japanese culture.” The nature of emaki-related
research should, I believe, continue to attempt to reflect the remarkable boundarycrossing capacities of the objects themselves. From this point of view, “emaki studies”
as such has only just begun.
References
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Japanese Art. Chicago: Center for the Art of East Asia, University of Chicago and Art Media
Resources, 2013. p. 74 –85
Akira Takagishi
Professor do Departamento de História da Arte da Universidade de Tóquio e pesquisador de
História da Arte japonesa, sobretudo das pinturas medievais. Foi professor visitante na
Universidade de Hiedelbreg, Alemanha, em 2010 e curador do Museu Yamato Bunkakan de
2004 a 2005. Publicou livros tais como The Enchantment of Illustrated Handscrolls of the
Muromachi Period: Rebirth and Creativity, Tokyo: Yoshikawa Kobunkan, 2008 e Power and
Painting in Muromachi Japan: A Study of the Early Tosa School, Kyoto: Kyoto University
Press, 2004.
102
A TRANSIÇÃO DE UMA ERA EM SUA MAIS FLORIDA EXPRESSÃO
Madalena Hashimoto Cordaro
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo
Resumo: No dia 15 de abril de 2014 iniciou-se uma exposição no Museu Afro-Brasileiro,
intitulada “A arte do Ukiyo-e: a tradição da gravura japonesa”, na qual haviam trípticos em
excelente estado de xilogravuras produzidas em sua maior parte na década de 1860, que
bem merecem o nome pela qual eram conhecidas: “pintura-brocado” (nishiki-e NjŹ), por
sua complexidade em cor, trama e superfície. Às portas da transição de poder político dos
samurais Tokugawa para os adeptos do Imperador Meiji, e de tremendas transformações
sociais contemporâneas, as 43 estampas da coleção Roberto Okinaka se caracterizam por
rara coesão em representar uma mescla de vistas-famosas meisho-e ĄŹ, figuras-bonitas
de profissionais do amor bijinga ƁZŞ e de atores yakusha-e íƅŹ, usos-e-costumes
fûzokuga ǚhŞ, centralizadas nas elegantes modas do período Heian (794-1185), em
especial na figura emblemático do príncipe Hikaru GenjiqŌķ, protagonista das Narrativas
de Genji ŌķŔƫ, na grande voga de imagens que formaram um gênero em si, “pinturasde-Genji” (Genji-e ŌķŹ). Os pintores Toyohara Kunichika Ʊ (1835-1900), Utagawa
Kunisada II T^Ţı×Ʋ (1823-80), Utagawa Yoshitora ı×ƐƜ (ativo c. 1836-82),
Utagawa Kuniaki ı×đ (1835-1880), Utagawa Yoshiiku ı×Ɛâ (1833-1904), Utagawa
Fusutane ăŭ (at. 1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi ĚÎƐà (1835-92), Utagawa Hiroshige
II T ^ Ţ ı × ã LJ (1826-69) e Utagawa Yoshitsuya ı × Ɛ Ǝ (1822-1866) estão
representados na exposição, e suas obras propiciam uma reflexão sobre o caráter também
escapista de fins do xogunato, contemporâneo a estampas de violência e de assassinatos,
torturas, animais assustadores e vorazes, fantasmas e monstros, turbilhões e vinganças.
Serão analisadas as tópicas e retóricas concernentes, numa tentativa de interpretação de
cenas de “luxo, calma e volúpia” possíveis em um momento de extrema ebulição.
Palavras-chaves: ukiyo-e, família pictórica Utagawa, bakumatsu, genji-e, política e ideologia
visual.
Abstract: A show was opened at the Museu Afro-Brasileiro in April 15th., this year, with the
title: “The art of Ukiyo-e: Japanese print tradition” in which excellent shape triptych of
woodprints, most of them executed in the 1860s, well deserve the name by which they are
know: “brocade-painting” (nishiki-e 8,), as they are very complex in color, texture and
surface. Produced in a period of politic power transition from the Tokugawa samurais to the
Emperor Meiji allies, the 43 prints from Roberto Okinaka collection show indeed rare
cohesion. They represent a mixture of famous-views meisho-e ,, beautiful-figures of
love professionals bijinga -) and of actors yakusha-e .,, gender-painting fûzokuga
9) , all centralized in elegant fashions of Heian period (794-1185), especially in the
emblematic figure of Hikaru Genji '%, protagonist from The Tale of Genji '%(4, a
massive blockbuster gender in the period, known as “Genji-paintings” (Genji-e '%,). The
painters Toyohara Kunichika 5 (1835-1900), Utagawa Kunisada II *$6
(1823-1880), Utagawa Yoshitora $01 (act. 1836-1882), Utagawa Kuniaki $
(1835-1880), Utagawa Yoshiiku $0 (1833-1904), Utagawa Fusutane $+ (at.
1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi "0 (1835-1892), Utagawa Hiroshige II *$
7 (1826-1869) and Utagawa Yoshitsuya $0/ (1822-1866) are represented in the show.
Their prints make us think about a dream-like characteristic present in the shogunate end era,
103
very different but at the same time very contemporary of other prints showing violence,
murders and tortures, scaring voracious animals, ghosts and monsters, turmoil and revenges.
The prints are analyzed as existing topics and rhetoric, in a tentative of interpreting them as a
representations of “luxury, calm and voluptuousness” still possible in an extremely boiling era.
Keywords: ukiyo-e, painting family Utagawa, bakumatsu, genji-e, politics and visual ideology.
O período Kaei ĺ Ĝ (1848-55) tem sido pouco estudado no Japão,
obliterado pelas notáveis reformas que os anos da chamada Reforma Tenpô (183044) ensejaram por suas medidas draconianas de busca de parcimônia e decoro que
resultaram em proibições de luxo e consumo geral de supérfluos, em busca de um
equilíbrio necessário nas finanças do xogunato. Tal pressão se exerce, é claro,
sobre os samurais de extração mais modesta, mas principalmente sobre a
crescentemente opulenta classe dos citadinos, em especial os que exerciam a
atividade mercantilista. Nesse contexto, o pintor Utagawa Kunisada I ı×Ʋ
(1786-1865) teve de fugir para Shizuoka, tendo sido proibida momentaneamente a
manufatura de pinturas-brocado (nishiki-e NjŹ), o nome contemporâneo da estampa
ora conhecida como ukiyo-e ŅMŹ (“pinturas do mundo flutuante”). (MITAMURA,
2008: 429)
Chama a atenção o historiador MINAMI (1998: 143) que os períodos que se
seguem à Reforma Tenpô são fundamentais para a transição à modernidade, pois
mostram reações às reformas preconizadas e abrem caminho a novas formas de
organização e expressão. De fato, ocorrendo um arrefecimento nas rédeas
repressivas do período Tenpô, Kunisada retorna à cidade de Edo e tem próspera
atividade, tamanha que seu modo Utagawa de representação se tornou dominante
em todo o meio visual do mundo flutuante. Além disso, compreendem-se os anos de
1853 a 1867 como tendo sido fundamentais no declínio da burocracia dos samurais
Tokugawa e da ascensão de uma nova ordem social e política centralizada no
Imperador: é o chamado período bakumatsu ÞĞ, ou “descerrar da cortina”, i.e. “fim
do xogunato”, e todas as suas implicações econômicas; é o período em que ukiyo-e
se reafirma como mercadoria por excelência e se populariza em todas as searas.
Embora reconhecida no ocidente como “arte”, a xilogravura japonesa era a
tecnologia de informação de seu tempo, e, como tal, servia a mais díspares fins
104
(educação, entretenimento, informação, até fruição artística social mais ou menos
representativa). Se são divulgados hoje ícones de atores do teatro kabuki e de
figuras-bonitas de áreas-de-prazeres, vistas-famosas e cenas do cotidiano, por outro
lado são pouco levados em conta numerosíssimos exemplares xilográficos híbridos
ou pouco cuidadosos do ponto de vista da estética, como os guias de viagem, uma
variedade de jogos de montar e colorir, convites oficiais e domésticos, mapas,
notícias de grupos restritos, notações de dança e música, livros e impressos em
geral).
MINAMI verifica a reputação das estampas ukiyo-e no referido período Kaei
ĺĜ (1848-55) e, perscrutando uma brochura de um comerciante da época
intitulada “Diário da Casa Fujioka”, encontra a informação de que uma imagem de
Utagawa Kuniyoshi ı× Ɛ (1797-1861), um tríptico com “faces-semelhantes”
(niga-o bǘ) de atores com corpos de tartarugas resultou em grande vendagem:
3.000 cópias. Quem se debruça sobre as estampas de Kuniyoshi notará que sua
produção é imensa, ou talvez seja mais apropriado anotar que o estúdio Utagawa,
do qual ele foi fundador e líder por muitos anos, foi pródigo em produzir estampas e
pinturas com as tópicas de figuras-bonitas, vistas-famosas, atores-de-kabuki,
pássaros-e-flores, samurais-de-teatro, faces-semelhantes-de-atores. Os pintores
treinados no estúdio recebiam seus nomes de acordo com reconhecidos graus de
excelência, e se especializavam em um ou outro gênero. Assim, os nomes-gô
Kuniyoshi, Kunisada, Hiroshige e outros se outorgam a diferentes pintores conforme
tópicas e modos, numa continuidade não necessariamente consanguínea nem muito
menos permanente. A produção, como se nota hoje pelo imenso número de
estampas que ainda sobrevivem, foi pródiga, e a repetição com ligeiras variações
sem grandes discriminações de autorias dificulta ainda hoje sua classificação e
atribuição de autorias. Acrescente-se o fato de que a reedição das matrizes de
madeira nunca foi controlada, nem o foi o desmantelamento de livros, séries, álbuns
ou, em caminho inverso, a montagem de estampas soltas ou de retiradas de outros
contextos.
Assim se deu com as estampas presentes na exposição do Museu AfroBrasileiro (Parque do Ibirapuera, São Paulo), da Coleção Roberto Okinaka:
montadas em rolo de pintura por algum diletante no Japão, que exerceu seu olho
105
crítico e fez um recorte temático e estético das estampas de seu tempo, foi revertida
de volta para seu estado original de tríptico, aqui no Brasil, mais de um século
depois. Entretanto, o desconhecido diletante que concebeu a justaposição das
imagens obedeceu a ponto de vista certeiro: as estampas tratam de “calma, luxo e
volúpia”, para tomar emprestada expressão de um quadro de 1904 de Henri Matisse,
em referência ao lirismo romântico de Baudelaire em “Convite à viagem”. Os pintores
pertencentes ao supremo domínio do modo de pintura-brocado (nishiki-e NjŹ):
[Utagawa] Toyohara Kunichika Ʊ (1835-1900), Utagawa Kunisada II T^Ţı
×Ʋ (1823-1880), Utagawa Yoshitora ı×ƐƜ (ativo c. 1836-1882), Utagawa
Kuniaki ı×đ (1835-1880), Utagawa [Ochiai] Yoshiiku ı×Ɛâ (1833-1904),
Utagawa Fusutane ăŭ (at. 1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi ĚÎƐà (1835-1892)
[também aprendiz de Utagawa Kuniyoshi] , Utagawa [Ando] Hiroshige II T^Ţı×
ãLJ (1826-69) e Utagawa Yoshitsuya ı×ƐƎ (1822-1866) estão representados
em suas florações mais vistosas, tomando por objeto essa figura esguia do cortesão
dos cortesãos do período Heian (794-1185), elegante, com o topo do cabelo raspado,
um penteado típico do período Edo, um praticante das artes da música, do arranjo
floral, da poesia, da caligrafia, do jogo de sugoroku, de passeios ao luar e ao
amanhecer, do incenso, do tabaco, das folhas de bordo e das flores de cerejeira, do
saquê e do sashimi, em seus entretenimentos em luxuosos interiores, ou em
excursões a rios e mares, ou em visitas a áreas-de-prazeres e locais-famosos, a
testemunhar as damas do amor domesticado e mercantilizado a desfilar em pompa
e circunstância, seguidas de suas auxiliares mirins e serviçais também partícipes no
jogo. Mesmo ausente a figura elegante do amante maior, os elementos do refinado
gosto que a caracterizam encontram-se enfatizados.
Chama a atenção a fatura das imagens, produto mais que eficiente de um
trabalho colaborativo conjunto que, ao mesmo tempo que torna excelente a imagem,
também a pasteuriza. Assim é que as autorias se conformam em sutileza de
construção e retórica mais propriamente do que em certa individualidade na
execução de uma gradação, de um padrão têxtil, de um elemento de perspectiva.
Justamente este excesso, esta presteza, esta minúcia já foram motivo de objeções
na aceitação de tais pintores, que foram tidos, quando de sua introdução na Europa,
como “decadentes”. A revalorização é recente, e estudos cada vez mais
106
aprofundados de suas obras têm sido levados a cabo nos últimos dez anos, em
especial as obras de Kunichika e Yoshitoshi.
O convite que os magníficos trípticos e o pentáptico da exposição em foco
nos fazem, através de seu caleidoscópico colorido, é para a fruição da poesia de
antanho, com os tecidos mais pródigos e as mais intrincadas texturas, com os
ornamentos mais engenhosos, com a elegância mais harmônica que caracterizam a
idealização do período da corte de Heian, quando ocorreu a primeira individuação
cultural japonesa. Como lemos não só nas Narrativas de Genji [Genji monogatari Ō
ķŔƫ] da dama da Consorte Imperial Shôshi, Murasaki Shikibu, mas também em O
livro do travesseiro [Makurano sôshi ĤƓ¹] da dama da Consorte Imperial Teishi,
Sei Shônagon, sua contemporânea, o vestuário ocupa grau muito alto, como se nota
no verbete por nós levantado (2013: 555):
Dama do Vestuário: kôi ĘƠ, servidora palaciana de posição inferior à da
Dama Imperial (nyôgo), era encarregada do vestuário do Imperador; o termo
kôi nomeia também a referente seção da Ala Feminina subordinada ao
Setor de Costura e Vestuário (nuino tsukasa ſ).
Em muito similar à obsessão por vestuário da época da rainha Maria
Antonieta da França, também extremamente opulento em sua expressão, a
diferença fundamental consiste justamente em sua compreensão enquanto signo de
um sistema hierárquico, importado do continente asiático, sempre em coadunação
com sazonalidade e sensibilidade estética. Lembre-se, também, que a Dama do
Vestuário em geral também participa do leito imperial e aí encontra-se também uma
das chaves para a superposição de damas da corte por cortesãs, sempre
sofredoramente acessíveis aos elegantes Genjis de antanho e contemporâneos.
Com a pax Tokugawa, novos modos de tingimento tornam acessíveis aos
citadinos um imaginário de imagens que se intercruzam com irreverência e chegam
a construir uma superposição considerada “exagerada”, “decadente”, por olhos mais
ávidos de uma concepção compreendida como “essencialista”, numa idealização de
certa característica orientalizante. Sobretudo ornamentais, as estampas não raro
lembram as pinturas da Belle Époque europeia de fins do século XIX (nas pinturas
de James Tissot, 1836-1902), e, é claro, as variações tonais de luzes em superfícies
aquosas (Édouard Manet, 1832-1883) ou rugosas e ásperas (os fenos de Claude
107
Monet, 1840-1926) ou nas brumas próximas ao rio Tâmisa (James Abbott McNeill
Whistler, 1834-1903), estas mais derivadas das vistas-famosas de Utagawa [Ando]
Hiroshige I (1797-1858).
E poesia maior não se encontraria fora de obras que já se haviam tornado
cânones para os japoneses: as Narrativas de Genji ŌķŔƫ, as Narrativas de Ise `
Ŕƫ, as coletâneas dos poetas imortais. MITAMURA chama a atenção para o fato
de que, após o período Tenpô, por ter sido proibida a produção de pinturas de atores
e cortesãs, torna-se grande moda substituí-los por “análogos” de Genji, no que ficou
conhecido como mitate-e Ƨ ů Ź
(pintura símile, substituição, paródia),
representação que os eleva e ao mesmo tempo divulga estilos de vestuários,
interiores e atividades elegantes, principalmente sob os pincéis de Kuniyoshi,
Kunisada II e Kunichika. E, além disso:
(...) A moda de estampas de Genji e de sua intensa apreciação não é
resultado apenas de uma volta simples a uma cultura dissipadora e
hedonista de fins do xogunato. Ao mesmo tempo em que se trata de uma
cultura dissipadora, brilhante e bela, enquanto mensagem política também
foi uma mídia que fez aflorar de modo abrasador um sentimento ainda
inconsciente na população de “reverência ao Imperador”, que se tornaria
basilar para a realização da Reforma Meiji. (MITAMURA, 2008: 435).
Analisadas deste ponto de vista, as estampas de “calma, luxo e volúpia”,
então, perdem seu caráter escapista e romântico de busca de outra Citera em outros
tempos mais harmoniosos, ou então fazem desvanecer seu subterfúgio de serem
elevados à condição de homens e mulheres melhores, para se tornarem, então, no
dizer de MITAMURA, índices mesmo da “reverência ao senhor” (sonnô ÆŖ),
preceito confucionista de origem chinesa que, em fins do xogunato, encontra-se
encarnado no Imperador.
As “pinturas-brocado” que tinham como tema o Brilhante Príncipe do período
Heian eram também chamadas de Azuma-Genji e supostamente representavam a
casa xogunal (Azuma ¶/Ģ, leste, refere a Sede do xogunato). Na verdade, a
referência se aplica ao local de sua maior produção, os rincões do leste. Entretanto,
no período Meiji sua ideologia se volta a reproduzir a Casa Imperial, segundo a
análise de MITAMURA.
108
A autora lembra, ainda, um incidente fundamental que aponta essa
identificação da figura de Hikaru Genji nas estampas com a Casa Imperial: uma
estampa de Kunisada (sob assinatura de Toyokuni III), de 1861, da série Fûryû
Azuma Genji ǚń¶Ōķ (O elegante Genji do leste) apresenta um mitate Ƨů
de Genji em encontro amoroso de um rapaz de 15 anos [em substituição ao xógum
Tokugawa Iemochi ï × Ã ƒ , 1846-1866] com uma princesa de 16 anos [em
substituição à princesa Kazu-no-miya Kôka Âǎ¸, filha mais nova do imperador
Kômei »đ] (2008: 443). Certamente, seus contemporâneos compreenderam a
alusão direta da realidade, uma tentativa de sobrevida do xogunato ao se relacionar
maritalmente com a nobreza, reconstruída através das figuras de antanho, mas já
com forte introdução de elementos de construção visual estrangeiras: perspectiva
linear com acentuado ponto de fuga, elementos de arquitetura ocidental, objetos
estranhos como telescópios, espelhos, lentes, espaços de saturação e intensa
agitação, tentativa de representação luz e sombra, e, sobretudo, pigmentos à base
de anilinas vibrantes, em oposição às nuances sombrias dos tons vegetais e
minerais sóbrios da tradição.
É digno de nota que a representação do nobre Genji segue sempre o mesmo
padrão: face alongada, feições delicadas, penteado de samurai do período Edo
motoyui pŸ, com o alto da cabeça raspado [muitas vezes coberto por lenço
púrpura, a cor simbólica da Casa Imperial, mas altamente em voga nas áreas-deprazeres], figura esguia, vestuário suntuosíssimo – por vezes até mais ornamentado
do que de suas companheiras –, em atividades sempre elegantes: apreciando a lua,
as flores de cerejeira, os vagalumes, a neve, ou compondo poemas, tocando a flauta
ou o koto, jogando sugoroku, fazendo arranjo floral ou preparando o chá, adentrando
as áreas-de-prazeres, adentrado no que se assemelha aos recônditos do palácio
xogunal [ooku °²]. Em uma palavra: uma representação que pouco se distingue de
uma figura feminina. Assim é, pois, que, quando traduzimos bijinga ƁZŞ, o
fazemos por “figura-bonita” e não por “mulher bela” ou “beldade”, pois o gênero não
é limitado ao gênero feminino; compreende também o refinado cortesão de Heian,
compreende o ator maduro em papel feminino, compreende o jovem enquanto ator
ou simplesmente belo. De fato, em termos taoístas, a cultura de Heian é yin,
princípio feminino, e como tal foi compreendida também pelos habitantes de Edo.
109
As figuras-bonitas de fins do xogunato, à diferença das clássicas de Kitagawa
Utamaro ®×ıǠ (c. 1753-1806) ou Kikugawa Eisen ƕ×īĿ (?-1848), para
somente referir alguns, seriam substitutas das damas da corte de Heian e
dissimulariam sua condição mercantilista de amor pago, de corpos precificados, de
tempo trocado por dívidas parentais: o glamour idealizado nas estampas da
presente Coleção Roberto Okinaka mostra os aspectos exteriores com rica profusão
de detalhes: o número de pentes kushi į, ornamentos kanzashi Ųe presilhas kôgai
Ű executados com técnicas específicas de laca, incrustação de metais e pós
iridescentes de conchas, no intrincado penteado a indicar hierarquia em um
dificilmente galgado sistema de valorização de suas habilidades, a superposição de
ricos quimonos a elas presenteados por proeminentes clientes, a decoração interior
de suas habitações próprias ou tomadas de empréstimo.
Quando do primeiro momento do japonismo na Europa, são estes mesmos
acessórios, objetos de laca, cerâmica, bibelôs de variedade estirpe (para quem não
acha “utilidade” em caixas de laca para escrita, seus pinceis e acessórios) os alvos
principais do consumo e do interesse colecionista da gente boa do lugar. A minúcia,
a perspicácia, a insistência, o humor, a observação, a minudência dos gestos e da
fatura ainda hoje são evidenciados nas coleções de netsuke Ĭ], escultura em
miniatura que serve de fecho ao elegante citadino em suas caixas de remédios ou
de tabaco [inrô ų]. É a força do shokunin ƆZ, categoria genérica de carpinteiros,
ceramistas, tecelões, tingidores de tecidos, entalhadores, impressores, pequenos
manufatureiros de papeis, pinceis, pedras de tinta, objetos de madeira, marfim,
metais, pedras, cordas.
As figuras-bonitas de fins do xogunato presentes na Coleção Roberto Okinaka
são possessão das áreas-de-prazeres, modelos infinitesimais de técnicas de
entretenimento
amoroso
que
fazem
da
sedução
estética
o
caminho
do
depauperamento dos opulentos, os samurais, os comerciantes, os jovens futuros
herdeiros de fortunas. Trilham seu caminham com verve e orgulho (ikiji üĸ£), com
charme, sedução e gosto (iki
), com conhecimento e reconhecimento das artes e
dos meios (tsû ǀ). No período Edo, tão apreciados foram os caminhos do amor
(kôshoku ´ƍ), que retomam os da corte imperial de que Genji é mestre contumaz
110
nos modos de atração e interesse (irogonomi ƍ´), que até hoje fascinam e
embaralham emoções, sentimentos, falsidades e obrigatoriedades em relação a uma
sociedade estratificada em um ambiente mercantilmente demolidor de fronteiras, as
áreas-de-prazeres (kuruwa ç) e de teatro (shibai ƏÉ). Embora nem todas as
relações tenham sido guiadas somente por sutileza, é claro, e muitas estampas e
escritos literários alhures bem o comprovam.
Quando estudamos historicamente o desenvolvimento das representações
das cortesãs, dançarinas, gueixas e toda a hierarquia de profissionais ou diletantes
das artes amatórias, notamos um direcionamento rumo à sofisticação e ao luxo
presentes nas estampas da Coleção Roberto Okinaka: belos quimonos bordados de
ouro, tingidos, estampados, tramados ou pintados em notáveis motivos florais,
geométricos ou minuciosamente padronizados, de mangas longas ou curtas, em
superposição de quatro ou cinco camadas que seguem a sazonalidade e a pretensa
idade de suas proprietárias, com camadas de auxiliares e em desfile cerimonial em
meio a florações de cerejeiras ou ameixeiras, quanto mais excessivas mais
inebriantes. Dessa forma, revela-se a mestria que os entalhadores e impressores
alcançaram, a serviço do patrono mais generoso em propagandear seus produtos,
seja restaurantes, tecidos ou vestuário, seja suas preciosas cortesãs mesmas.
Revela-se, sobretudo, a introdução de elementos ocidentais crescentemente
acessíveis e engenhosamente superpostos aos elementos visuais da tradição: a
perspectiva se constrói também pelas gradações-uma-linha [hitosuji bokashi Iű'
], o volume se percebe pelas gradações-em-aplicação [atenashi bokashi ê
'
]. Se elementos há da tradição da corte imperial (braseiros, mesinhas
portáteis chinesas, cortinados, corredores internos e externos, passarelas, pontes
internas e varandas), os da contemporaneidade de Edo predominam: as cidades, as
áreas-de-prazeres, os palcos-de-teatro, os barcos com ou sem cobertura, sobretudo
as estampas, os ornamentos, os tecidos, a expressão facial e corporal das figurasbonitas.
Chama a atenção, também, que nas estampas em que Genji aparece, em
geral ele é o único homem, fantasia erótica de grande poder sobre a classe
dominante masculina, a seguir o conceito imperial de “um imperador, muitas
consortes” que perpetua a continuidade da Casa. E, acrescente-se, que domina o
111
sistema mercantilista das fruições pretensamente pagas aos comerciantes que
administram
as
áreas-de-prazeres,
aos
editores
que
contratam
pintores,
entalhadores, impressores, escritores, calígrafos, casas distribuidoras e meninos
ambulantes para encher as cidades e as vilas de material impresso.
A partir dos anos 10 da era Meiji (1878), analisa também MITAMURA (2008:
444), a representação feminizada e frágil do Imperador, entretanto, já não era mais
desejável, e a sua identificação com a protagonista das pinturas-de-Genji vai
cessando, em busca de uma imagem militar, mais propensa à era futura do Império
do Japão [Teikoku Nihon Ûďğ].
Mas não somente a imagem imperial não se coaduna mais com paráfrases e
substitutos para burlar os olhos da vigilância do xogunato, que já não mais existem,
como também já nos anos de 1850, como está registrado no referido “Diário da Casa
Fujioka” por MINAMI (1998: 143), apenas 37% das estampas tratavam de figurasbonitas, atores, flores-e-pássaros, faces-semelhantes, samurais, com predominância
de vistas-famosas. Nesse sentido, a afirmação de MITAMURA se encontra
fragilizada, pois embora profícua a produção de estampas-de-Genji, mais numerosas
ainda o foram as de outro gênero.
A vasta produção de estampas ukiyo-e se encontra no grupo fûshiga ǚ~Ş,
pinturas satíricas: 62,9%, dentre as quais 12% aludem diretamente ao fim do
xogunato (MINAMI, 1998: 143). Em estampas políticas, ainda que substitutos [mitate
Ƨů] de samurais de antanho, como as que representam as peças de época
(jidai-geki ĕ^), ou metamorfoseadas de fantasmas, monstros, aparentemente
inofensivos peixes, tartarugas oníricas ou gatos híbridos, sapos mágicos, a sátira
invade com sua retórica e corrosão as novas figuras do período de transição
guerreiro para uma representatividade sob a égide imperial, imposta por novos
ventos dos navios negros do americano Comodoro Perry.
Também aqui, nas pinturas satíricas, ocorre o direcionamento a uma
visualidade mais obliterada de flores, cores, objetos, ações, figuras-bonitas, vistasfamosas, primeiros-planos, perspectivas ao longe, como nas pinturas-de-Genji, o
que confirma, mais uma vez, a reputação de “decadentes” que tais produtores de
112
imagens tiveram aos olhos ocidentais, ainda que grandemente apreciados por seus
contemporâneos locais.
Não deve ser esquecido, também, que embora as pinturas-de-Genji tenham
se tornado extremamente numerosas a partir da colaboração artística do texto de
Ryûtei Tanehiko ĩYŭì (1783-1842) e do pincel de Utagawa Kunisada ı×Ʋ
(1786-1864) na obra Nise Murasaki inaka Genji mŷśƋŌķ (Genji das províncias
da falsa Murasaki), publicada em 38 volumes, entre os anos de 1829 a 1842, as
Narrativas de Genji da verdadeira Murasaki Shikibu (i.e., suas cópias remanescentes,
é evidente) nunca cessaram de ser revisitadas nos períodos subsequentes, até as
contemporâneas histórias em quadrinhos, animações e versões cinematográficas. E
não poderia deixar de ser diferente quando os citadinos de Edo tomam a dianteira
no cenário cultural do período dominado politicamente pelos samurais da Casa
Tokugawa. Conforme trajetória pesquisada por Keiko NAKAMACHI (2008: 171-210),
vemos que, no período Edo, desde o primeiro pintor com nome conhecido,
Hishikawa Moronobu (?-1694), já traz em obra de 1683, Bijin-e tsukushi ƁZŹ
(Coleção de pinturas de figuras-bonitas), uma representação de personagem do
volume Wakana jô ƑƖGK (Brotos novos / I), a Terceira Princesa, então jovem
esposa oficial do brilhante Genji, na célebre cena em que é vista de soslaio por
Kashiwagi, que lhes será fatal. Digno de nota é que, de todas as cenas e de todos
os amores vividos por Genji, a figura melancólica dessa Terceira Princesa tenha sido,
no período Edo, a escolhida em maior número de cenas: descuidada pelo protetor,
solitária e desajeitada no competitivo mundo das damas da corte imperial, ela se
torna motivo da grande atenção para seu quase contemporâneo em idade e com ele
tem o suposto filho do já quarentão Genji, e é esse filho ilícito quem se tornará
imperador. Imagens sem conta representam cortesãs de diferentes extrações em
diferentes períodos e espaços, ladeadas, acompanhadas, atrapalhadas ou atraídas
por um gato, e quem sabe, sabe que é o gato da ligação colateral da esposa oficial
de Genji.
Através das pesquisas mais recentes, de fato, atribui-se a alusão [mitate Ƨů
] exata a essa passagem da obra de Murasaki Shikibu, pois é o gato que torna
possível o afastamento do cortinado atrás do qual se escondia a Terceira Princesa e
113
faz com que o jovem Kashiwagi a pudesse vislumbrar (kaimami §ǍƧ, “ver entre
frestas”, é a técnica mais efetiva dos pares amorosos) e, em assim fazendo, ficar
obcecado por ela. Que Moronobu tenha eleito uma desenxabida figura de cerca de
quinze anos, que nas Narrativas de Genji sequer provoca compaixão, para
representar uma das figuras-bonitas de seu álbum leva-nos a refletir sobre a lógica
irreverente dos citadinos de Edo, que parecem, assim, se refletirem num universo de
ponta-cabeça e valorizam o pequeno, o insignificante, o desajeitado.
Após Moronobu, Sugimura Jihei Ġġľß (ativo 1680-1700) faz no ano
seguinte Genji ukiyo fukusa-e ŌķŅMƢŵŹ (Pinturas de lencinhos do mundo
flutuante de Genji) e já atualiza o universo do período Heian em sete séculos, em
xilogravuras monocromáticas.
Okumura Masanobu ²ġiji (1686-1764), trabalha durante os anos 1711 a
1716 em imagens que popularizam os episódios em que Genji se exila em Suma,
gerando cenas incontáveis de passeios de barcos sobre mares azuis, e a heroína
Ukifune nos anos 1740, também trágica, que atira seu corpo ao mar após ser amada
por dois rivais. As águas, tão importantes para a escoar os produtos das províncias
para as cidades, também se tornam local de apreciação, veraneio, romance e
tragédia. E se ligam indissociavelmente ao elegante Genji e aos entretenimentos nos
rios que cruzam a cidade de Edo.
Mas sem dúvida, é unanimidade para todos os pesquisadores do período Edo,
que foi o trabalho de Suzuki Harunobu ljĝĒi (?-1770) o responsável por uma
elevação do vulgar (zoku h) típico dos comuns ao elegante prerrogativo dos nobres
(ga ǒ ), através de um complexo sistema de substituições, alusões, jogos de
palavras, trocadilhos visuais, metáforas e metonímias (mitate Ƨů), e coloca os
episódios relativos a Genji no repertório citadino. Após Harunobu, mesmo alusões
distantes se tornam relacionados a Genji, em especial os célebres “aromas-de-Genji”
(genji-kô Ō ķ Ǜ ), espécie de brasões que referem grupos de incensos. A
sensibilidade sensual dos citadinos de Edo se apropria também do sentido olfativo.
Aponta NAKAMACHI (2008: 202) que a figura retórica do yatsushi -
(“disfarce”, “rebaixamento”) se torna indistinguível com mitate Ƨů a partir de
114
extensas estampas produzidas por Isoda Koryûsai ŧśWŋǢũ (1735-1790) nas
séries dos anos 1760 e 1770: Yatsushi Genji -Ōķ (Genji disfarçado) e Fûryû
yatsushi Genji ǚ ń - Ō ķ (Genji elegantemente disfarçado), ou seja, os
citadinos identificam-se como Genjis eles mesmos, ainda que pobremente vestidos.
Parece-nos importante ressaltar, em relação à afirmação citada anteriormente
de que, “enquanto mensagem política [a estampa com pinturas-de-Genji] também foi
uma mídia que fez aflorar de modo abrasador um sentimento ainda inconsciente na
população de reverência ao Imperador, que se tornaria basilar para a realização da
Reforma Meiji (MITAMURA, 2008: 435, grifo nosso), nota-se que o repertório
clássico é perene, sempre vivo na cultura japonesa, embora possa ser por vezes
obliterado por guerras internas ou externas ou momentos de grande penúria e
ebulição. A atual floração das produções em mídias modernas que retomam,
recontam e transformam as Narrativas de Genji certamente não revela nenhum
sentimento inconsciente mais genérico e, neste aspecto concordamos com
NAKAMACHI: “A conexão entre Narrativas de Genji e ukiyo-e diferiram grandemente,
dependendo do período, do artista, e dos consumidores.” (2008: 202)
E assim parece estar sendo ainda na contemporaneidade.
Referências Bibliográficas
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Estado de São Paulo, 2008. [Textos de Célia Oi, Kobayashi Ayako, Saito Takamasa,
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115
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SHÔNAGON, Sei. O livro do travesseiro. Tradução: Wakisaka, G; Ota, J.; Hashimoto, L.;
Yoshida, L. N.; Hashimoto Cordaro, M. São Paulo, editora 34, 2013.
As imagens dos trípticos e pentáptico ukiyo-e da Coleção Roberto Okinaka foram
fotografadas por Henrique Luz; em exibição no Museu Afro-Brasileiro, de 15/04 a
15/06/2013.
UTAGAWA YOSHITORA ı×ƐƜ (ativo c. 1836-1882)
Conjunto das figuras bonitas em profusão dourada
Zensei bijin-zoroe ršƁZĈ
Nishiki-e Gomaitsuzuki NjŹVĦŻ, pintura-brocado pentáptico, 1864
Comentário: São as cinco maiores cortesãs de Yoshiwara com seu séquito de meninas kamuro:
Karashi ¬, Ôgura Yorokobi Èj, Usumurasaki ƙŷ, Shikimyô ċµ, Inaba ŮƘ e seus auxiliares,
que carregam sombrinhas e instrumentos musicais.
116
TOYOHARA KUNICHIKA Ʊ (1835-1900)
O Príncipe Genji e as Oito Vistas de Ômi
Genji-no-kimi Ômi hakkei-no zu ŌķPƾĻsĖP
Nishiki-e sanmaitsuzuki NjŹJĦŻ, pintura-brocado, tríptico, 1863
Comentário: Junção de tópicas vistas-famosas e pinturas-de-Genji, a estampa mostra uma
panorâmica, com os oito apreciados lugares devidamente identificados ao fundo, em modo
monocromático aproximado ao suibokuga chinês, e, em primeiro plano, no barco de veraneio, a
profusão colorística de quimonos, penteados e adereços da moda do período Edo, em prática poética
(note-se a pedra de tinta sumi sendo preparada pela dama em quimono externo geométrico) ao cair
da lua. A estação é o verão.
TOYOHARA KUNICHIKA Ʊ (1835-1900)
Madrugada no bairro verde dos prazeres
Sonota riki kuruwa-no akatsuki vśżçdžė
Nishiki-e sanmaitsuzuki NjŹJĦŻ, pintura-brocado, tríptico.
Comentário: Os bairros verdes assim chamados, eram referências às áreas-de-prazeres, por seu
índice de folhas de salgueiro-chorão, como se vê à esquerda da estampa, hábito praticado desde o
século XII. Vê-se a figura esguia de Genji na figura central do primeiro plano, com um lencinho
púrpura sobre sua cabeça raspada, adentrando Yoshiwara. Note-se os índices noturnos já bem
ocidentalizados.
117
UTAGAWA KUNIAKI ı×đ (1835-1880)
Comentário: cena na área de prazeres Yoshiwara, com suas cortesãs devidamente nomeadas, entre
elas, as célebres Kumoi e Kaoru. Notem-se, ao fundo, as paredes corrediças ornamentadas com
motivos de Genji-kô ŌķǛ, fragrâncias refinadas de competição praticada por nobres de antanho.
Madalena Hashimoto Cordaro
Professora Associada na FFLCH/USP. Pesquisa a arte visual japonesa em confluência com
sua literatura, em especial as do período Edo (1603-1868). Entre suas publicações
encontram-se: Sei Shônagon O Livro do Travesseiro (org., co-trad., pref., anexos, notas;
Editora 34, 2013) Ukiyo-e Pinturas do Mundo Flutuante (IMS, 2008, 2 vols), Pintura e
Escritura do Mundo Flutuante: Hishikawa Moronobu e ukiyo-e, Ihara Saikaku (Hedra,
2002).
118
ACERCA DE CHINOISERIES
José Roberto Teixeira Leite
UNICAMP
RESUMO: A palestra discorre sobre a moda das chinoiseries, que toma conta da Europa, de
meados do século XVII até fins do XVIII, evocando a longínqua China em vestimentas,
tapeçarias, porcelanas, lacas, paisagismo, letras, música, teatro, etc. O texto estende-se
sobre sua repercussão no Brasil, onde, por ora, o conceito de chinoiserie se confunde com
influência chinesa, e traz à tona a autoria portuguesa das chinesices presentes em igrejas
mineiras. O pesquisador desmitifica a possibilidade dessas obras mineiras terem sido feitas
por chineses que foram trazidos ao Brasil em condição de escravos durante a colônia,
mesmo porque o termo chinoiserie não é aplicável a objetos feitos pelos próprios chineses,
mas sim por europeus ou habitantes de suas colônias. Trata-se, portanto, da arte
achinesada, epidérmica interpretação ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte
da aparência.
Palavras-chave: chinoiserie, chinesices, Brasil, China, período colonial.
ABSTRACT: This lecture discusses upon the fashion of chinoiseries that took over Europe
from the middle of the 17th century until the end of the 18th century, evoking distant China in
clothes, tapestries, porcelains, lacquer ware, landscape gardening, literature, music, theatre,
among others. That fashion had repercussions in Brazil, where occasionally the concept of
chinoiserie is mistaken with Chinese influence in artistic production. One of the questions
raised is if indeed the authors of the Chinese style mannerism found in the decoration of
Minas Gerais churches were Portuguese artisans. The researcher demystifies feasibilities
that the Chinese style works of art were in fact produced by Chinese brought to Brazil as
slaves in colonial times, given that the concept of chinoiserie is not applicable to objects
done by Chinese artisans, but by Europeans or the inhabitants of their colonies. It concludes
that what is seen in Minas Gerais churches is just a Chinese-like type of art, or a Western
epidermic interpretation of the complex Far-Eastern aesthetics: the art of appearances.
Keywords: chinoiserie, chinese style mannerism, Brazil, China, colonial period.
Durante os cento e tantos anos que vão dos meados do Séc. XVII até quase
fins do Séc. XVIII a Europa resolveu achinesar-se, curvando-se à moda das
chinoiseries – que só arrefeceria, sem se extinguir de todo, depois que as
escavações em Spalato, Pompeia e Herculano, bem como os livros de Winckelmann,
Lessing e outros, ao renovar o interesse pela Antiguidade Clássica determinaram o
que se convencionou chamar de Retour à l´Antique.
Foi na vigência desse período que nos bailes de máscaras Louis XIV de
França se fantasiava metade de persa, metade de chinês, enquanto Monsieur seu
irmão brilhava nas vestes de Grand Seigneur Chinois; que manufaturas como as de
119
Beauvais, Aubusson, Berlim e Soho lançaram sucessivas séries de tapeçarias com
motivos chineses, algumas baseadas em ilustrações de livros de viajantes, outras a
partir de cartões desenhados especialmente por artistas como François Boucher;
que o marchand de tableaux Edmé-François Gersaint, amigo do célebre Antoine
Watteau (que para ele pintou em 1721 L´Enseigne de Gersaint), decidiu trocar o
nome de sua galeria Au Grand Monarche para À la Pagode, passando a
comercializar, além de telas dos Velhos Mestres e dos emergentes pintores rococós,
porcelanas e outra obras de arte extremo-orientais; momento em que Augusto II o
Forte, rei da Polônia e eleitor da Saxônia, entregava-se com igual paixão a seus dois
hobbies favoritos: fazer filhos (dizem que mais de 300!) e colecionar porcelanas, tão
fanático por essas últimas que certa ocasião teria trocado um regimento inteiro de
cavalarianos por 48 vasos; em que o Cardeal Richelieu se gabava de suas 400
valiosíssimas porcelanas chinesas, reis e príncipes se disputavam qual deles
possuía o mais rico gabinete de porcelanas, Clemente Augusto, príncipe-bispo de
Colônia, fazia-se transportar pelas ruas da cidade em vistoso palanquim e a Rainha
Louisa Ulrika da Suécia ganhava de presente de aniversário uma perfeita
reprodução de pavilhão chinês, cujas chaves lhe foram entregues pelo principezinho
seu filho em trajes de mandarim, e em cuja festiva inauguração, concluída por um
balé pseudo-chinês, todos estavam vestidos à chinesa e até lhe prestaram um
simulacro de kotow; época em que os quatro irmãos Martin, visando emular com a
laca, aplicavam a mesas, cômodas, caixas de relógios e até carruagens um tipo
especial de verniz que lhes conserva o nome, vernis martin, enquanto Thomas
Chippendale introduzia, na edição de 1754 do seu Gentleman and Cabinet-Maker´s
Directory, um suplemento com 160 modelos de cadeiras, cômodas, mesas, estantes
e penteadeiras ao gosto soi-disant chinês, muito adequados, segundo o texto, para
mobiliar o quarto de vestir de uma dama; época, em suma, em que tudo tinha de ser
chinês, ou no mínimo parecer chinês.
Nascida na Corte de Louis XIV, de onde se espraiou por todo o Continente –
da França à Rússia, da Inglaterra à Suécia, da Holanda à Espanha e a Portugal –, e
daí ao Novo Mundo, a mania pela China e por tudo quanto a ela se referisse ou
relacionasse direta ou indiretamente não brotou da noite para o dia: pelo contrário,
germinou ao longo de séculos a partir das descrições das maravilhas, coisas
fantásticas ou fabulosas da misteriosa Cathay feitas por Giovanni dal Carpine,
120
Odorico da Pordenone, Marco Polo ou John de Mandeville, esse último considerado
com inteira justiça o maior mentiroso do mundo, e sem falar nos portugueses Tomé
Pires, Galiote Pereira e Fernão Mendes Pinto, foi reforçada pelos livros e escritos de
Johan Nieuhof (nosso velho conhecido do Brasil Holandês), Olfert Dapper ou
Athanasius Kircher, e recebeu decisivo estímulo na quantidade descomunal de
sedas e demais têxteis, porcelanas – mais de 10 milhões de peças –, lacas, marfins,
leques, papeis de parede, móveis, jades, bronzes, colchas, paraventos, biombos e
todo tipo de objeto exótico ou curioso trazido do Extremo Oriente primeiro pelas
naus da Carreira das Índias portuguesa, e em seguida pelas embarcações das
Companhias das Índias, em especial os da inglesa (fundada em 1600), da
holandesa (de 1602) e da francesa (de 1664).
A profusão desses objetos chineses ou mais amplamente extremo-orientais,
de preço compreensivelmente elevado e por conseguinte somente acessíveis a bem
poucos, acabou por despertar nos artífices e artistas europeus o desejo de lhes
copiar ou reproduzir as técnicas, formas e decoração. Assim, imitações em faiança
de porcelana chinesa começaram a ser manufaturadas em Delft, Dresden, Nevers,
Rouen, Bristol, Faenza e em dezenas de outras cidades, antes de que por volta de
1709, em Meissen, Augusto o Forte lograsse com que Böttger, seu alquimista
transformado à força em oleiro, é verdade que se beneficiando das pesquisas
pioneiros do esquecido Tschirnhaus, finalmente identificasse a matéria-prima que
faltava para a obtenção da verdadeira porcelana, ao que se diz após observar como
sua peruca enrijecera, depois de polvilhada com uma argila abundante na Saxônia,
e que outra coisa não era senão caulim.
De Meissen em poucos anos o segredo da fabricação da porcelana propagouse a Viena, Ansbach, Nymphemburg, Frankenthal, St. Cloud, Chantilly, Sevres,
Chelsea, Bow, Derby, Worcester e inúmeras outras localidades, em todas as quais
se chegou a produzir porcelana de alta qualidade, muitas exibindo na decoração
padrões chineses de nuvens e montanhas, bambus, peônias, lótus, pássaros, peixes,
borboletas, morcegos, insetos, cenas mandarinescas e mesmo uns poucos motivos
originais, como o Willow Pattern, criado por volta de 1790 por Thomas Minton a partir
de uma romântica historieta pretensamente chinesa.
121
Também no campo do paisagismo repercutiu fortemente o impacto da China
sobre os europeus, levando-os a modificar seu modo de conceber e projetar jardins
e a preferir ao formalismo dos jardins de tipo francês – simétricos, regulares,
dominados pelo geometrismo e pela linha reta, como se pode ver no projeto de Le
Nôtre para Versalhes – a irregularidade e total liberdade visíveis nos jardins chineses,
nos quais predominava aquele “arranjo desordenado” que, à falta de denominação
melhor, ficaria conhecido na Europa como sharawadgi – vocábulo alegadamente de
origem chinesa, mas ao que tudo indica inventado por William Temple, no livro Upon
the Gardens of Epicurus, de 1685:
Os chineses desprezam proporção, simetria e uniformidade. Sua enorme
capacidade de imaginação é aplicada na concepção de figuras em que uma
grande beleza seja capaz de surpreender o olhar, mas sem qualquer ordem
ou disposição das diferentes partes, que devem ser facilmente percebidas e
apreciadas. E embora dificilmente tenhamos a mínima noção do que seja
esse tipo de beleza, eles possuem uma palavra para defini-la: sempre que
ela os impacta num primeiro relance, eles dizem que seu Sharawadgi é belo,
admirável, ou qualquer outra expressão de apreço.
As 36 estampas do Padre Matteo Ripa representando vistas dos jardins
imperiais de Jehol, que circularam em 1724 em Londres; a minuciosa descrição
desses mesmos jardins, Yuan Ming Yuan, pelo padre-pintor Jean-Denis Attiret, em
carta de 1743 depois incluída entre as Lettres édifiantes et curieuses remetidas da
China por missionários jesuítas; e os escritos de William Chambers em louvor dos
jardins chineses, que ele conhecera nas três viagens que entre 1742 e 1749
realizara ao País do Meio como funcionário da Companhia Sueca das Indias
Orientais, ocasião em que também obteve informações sobre os mesmos junto ao
pintor Lepqua, contribuíram de modo preponderante para que parques e jardins à
maneira chinesa, “feitos com tanta arte que neles a arte sequer aparece” (como
escreveu Attiret), surgissem primeiro na Inglaterra, e depois por toda a Europa - do
Golfo da Finlândia à Sicília, no dizer de Dawn Jacobsen –, informais,
cuidadosamente desordenados, aqui e ali interrompidos por grutas, lagos, pontes,
pagodes, casas de chá ou pavilhões, construções essas das quais foram ou
continuam sendo exemplos significativos o grande pagode dos Kew Gardens, de
William Chambers, inspirado no Pagode de Porcelana de Nanquim; Pagodenburg,
mandado construir entre 1716 e 1719 por Max Emmanuel, Eleitor da Baviera; Kina,
em Drottingholm, na Suécia (que substituiu em 1763 a frágil estrutura em madeira
ofertada dez anos antes à Rainha Louisa Ulrika, como vimos há pouco); e a Vila
122
Chinesa de Catarina II, erguida em 1762 nos arredores de São Petersburgo,
abrangendo casas, um teatro (destruído em 1941), um observatório (jamais
concluído), pontes, etc.
Mas a moda das chinoiseries não se limitaria às porcelanas, aos jardins ou à
decoração de interiores: propagou-se às letras, à música e ao teatro, do que é
exemplo a História do Príncipe Calaf e da Princesa da China, publicada em Paris em
começos do Séc. XVIII numa coletânea de contos de origem persa traduzidos por
Pétis de la Croix. É a história da gélida Princesa Turandot (cujo nome, persa,
significa a Filha de Turan), a qual, odiando os homens mas forçada a casar-se por
exigência dinástica, jurou que só o faria com quem decifrasse três enigmas por ela
propostos, sendo decapitados os que falhassem.
Turandot, como se sabe, é afinal vencida pelo sagaz príncipe tártaro Calaf.
Musicada em 1729 por Le Sage, transformada em 1762 por Carlo Gozzi numa
fábula tragicômica chinesa em cinco atos, a história desde então serviu de tema a
inúmeras peças de teatro e orquestrais, a lieder e a pelo menos uma dúzia de
óperas, das quais a mais conhecida é de longe Turandot, de Giacomo Puccini, na
qual o célebre compositor teria incluído antigos fragmentos musicais chineses, e que
deixou inconclusa ao morrer em 1924. Aliás, também constituem um tipo especial de
chinoiserie literária obras como L´Orphelin de la Chine, peça em cinco atos, levada à
cena em 1755, na qual Voltaire retoma um drama escrito na vigência da Dinastia
Yuan, que por sua vez fazia referência a uma história verídica ocorrida séculos antes,
ou como The Citizen of the World, livro de 1762 no qual Oliver Smith, para criticar
sem ser molestado a Inglaterra de seu tempo, inventa um personagem chinês, Lien
Chi Altangi, que numa série de cartas remetidas de Londres a Fum Hoam, um amigo
que ficara em Pequim, descreve suas impressões, muitas desfavoráveis, outras
jocosas, sobre suas experiências naquele país.
Também no Brasil tivemos no devido tempo chinoiseries, assunto já por nós
enfocado com mais vagares em livro de 1999, A China no Brasil. Nessa obra, aliás,
tentamos distinguir entre chinoiserie e autêntica influência chinesa, a nosso ver
detectável, por exemplo, nos Cristos da sacristia da Igreja da Ordem Terceira do
Carmo, em Cachoeira na Bahia, ou nos quatro leões funerários da igreja jesuíta do
Embu, os quais, segundo Germain Bazin, um escultor da época Tang não renegaria.
123
Em nenhuma outra região brasileira, mais que em Minas Gerais, são tão numerosos
os exemplos de pintura decorativa de temática ou em imitação chinesas, o que levou
a originar a versão fantasiosa, até hoje arraigada no povo, segundo a qual artistas
chineses teriam ali trabalhado.
É fato real, aliás surpreendente, a presença de escravos chineses em Minas,
nos começos do Séc. XVIII; não consta, porém, que houvesse artistas entre eles. De
qualquer modo, o que se percebe nessas pinturas à primeira vista orientais que
adornam certas igrejas mineiras (pois em Minas, curiosamente, é nas igrejas que se
encontra esse tipo de decoração tão nitidamente profana), é que não se trata de
modo algum de arte chinesa, mas de arte achinesada, epidérmica interpretação
ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte de aparência, mas não de
essência chinesa, chinesice em suma. Impossível levar a sério que tais pinturas
mineiras com chinesices indiquem a atividade, na região, de artistas oriundos de
Macau, atraídos, como meio mundo, pelo ouro das Gerais. É no entanto o que
pensam autores como Silva Teles:
Essas pinturas de influência oriental – chinesices, como são denominadas,
foram elaboradas, certamente, aqui mesmo, no Brasil, por artistas ou
artesãos vindos das feitorias portuguesas das índias ou da China, tentados
pela ocorrência dos achados de ouro na área das Minas.
Conhece-se até ao momento o nome de um único artista ativo em Minas
Gerais oriundo das possessões lusitanas na Ásia: certo Jacinto Ribeiro, que vemos
executando pinturas na Vila do Carmo (a atual Mariana) em 1711, e que em 1744
continuava trabalhando, agora como santeiro, em Itabira do Campo. Segundo um
termo de admoestação passado a 24 de fevereiro de 1721, Jacinto era “homem
solteiro que vive de sua arte de pintor, natural da Índia”.
Foi o ponto de partida para que, no estudo que dedicou à pintura colonial
mineira, Rodrigo Melo Franco de Andrade atribuísse a esse artista a autoria das
pinturas com chinesices da Capela de Nossa Senhora do Ó em Sabará, que se
achava em construção em 1717:
Pretende-se aqui atribuir-lhe a autoria da pintura da preciosa capela
sabarense, porque a introdução das chinoiseries naquele tempo, por volta
de 1720, constituiu um elemento tão exótico que torna muito mais provável
caber a sua autoria a um artista originário do Oriente do que a qualquer dos
demais pintores em atividade em Minas durante o mesmo período.
124
Não podemos infelizmente concordar com a atribuição proposta pelo
eminente primeiro diretor do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, a começar pelo fato de que chinoiserie é invenção de europeus, que por
conseguinte só pode ser feita por artista não chinês, visto como por definição é a
visão fantasiosa que os europeus tinham da China, ou do que pretendiam que ela
fosse. Também é impossível aceitar a data de 1720 como a de execução das
pinturas com chinesices de Nossa Senhora do Ó, quando é sabido que as
chinoiseries surgiram na França mais ou menos pela mesma época, obra de
Watteau e de outros artistas. O fato é que as pinturas da “capelinha chinesa” de
Sabará são bem mais tardias, até porque seria descabido imaginar que Minas
tivesse tido pinturas com chinoiseries no mesmíssimo momento em que a França, e
antes até de que ocorressem no restante da Europa, sabido como em Portugal esse
tipo de ornamentação só começou a ser praticado pelos meados do Séc. XVIII.
Num ensaio pioneiro publicado em 1951, Eugénie Miller Brajnikov sustenta
que a introdução de chinoiseries na pintura colonial mineira pode ter derivado da
consulta a repertórios de ornatos como Oeuvres de fleurs, ornaments, cartouches,
figures et sujets chinois, publicado em 1776 por Jean Pillement, artista francês que
viveu em Portugal de 1780 a 1785. Ao que saibamos, não há registro de que esse
ou qualquer outro repertório do tipo tenha circulado em Minas, mas é fora de dúvida
que, se compararmos todas essas cenas de pássaros, mandarins, flores, pagodes e
paisagens orientais que soem ocorrer na pintura de chinesices mineira com as cenas
e paisagens orientais que os compõem, são evidentes as coincidências formais
entre eles.
É no arco-cruzeiro de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, que se encontram as
mais conhecidas pinturas com chinesices de Minas e possivelmente de todo o Brasil
– sete painéis, sendo seis verticais, com um sétimo horizontal encimando o escudo.
Mas na mesma cidade, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, existem duas
portas com chinesices em imitação de laca, uma das quais há ainda hoje quem
sustente ter sido feita na China e presenteada à igreja pelo rei de Portugal – outra
lenda sem qualquer compromisso com a realidade, já que tanto a técnica quanto a
temática que nelas se observa apontam para uma origem provavelmente local.
125
Passando a Mariana, há admiráveis chinesices em ouro sobre vermelho no
respaldar do cadeiral da capela-mor da Matriz da Conceição: são letrados e
mandarins, e mesmo alguns europeus, em variadas poses e atitudes, ao ar livre ou
sob pavilhões, caçando, perambulando por jardins ou entre flores e pássaros, sob
guarda-sóis ou a cavalo, tudo externado em inusual vivacidade. Tal pintura, que
guarda algum parentesco com as de Sabará, é atribuída pelo mesmo Rodrigo Melo
Franco de Andrade a Manoel José Rebelo de Souza, de Braga, chegado a Minas
por volta de 1750 e que em 1760 se desincumbia da pintura do teto da matriz
marianense – uma data que também consta no respaldar.
Outras pinturas com chinesices são imputáveis a Rebelo: as duas caixas do
órgão da Matriz de Nossa Senhora da Conceição em Catas Altas do Mato Dentro, na
qual ele documentadamente trabalhou em 1760, e as da Igreja de Santa Ifigênia em
Ouro Preto. De fato, em todas essas obras pode-se detectar a fatura larga e
despreocupada desse artista, que fazia uso de pinceladas soltas e de uma paleta à
base de pretos e cinzas responsáveis por aquelas formas “tendenciosamente
abstracionistas” que impressionaram Rodrigo, e que a nosso ver evocam
remotamente
as
que
ocorrem
nos
biombos
namban
do
estilo
saikaiha
(ceu/mar/onda) de começos do Séc. XVII, representando os contatos comerciais
entre japoneses e portugueses em Nagasaqui, por ocasião das naus de trato.
Pinturas com chinesices existem também em igrejas de outras cidades
mineiras, como Ouro Branco, Barão de Cocais, São João del Rey ou Tiradentes, e
também foram aplicadas a oratórios domésticos, como se vê nas duas portas de um
deles, conservado no Museu da Inconfidência em Ouro Preto, procedente da
Fazenda do Rio do Peixe em São José da Lagoa, Nova Era.
Fora do âmbito das igrejas, são raríssimos os exemplos de pinturas com
chinesices em residências mineiras do Séc. XVIII. A pesquisadora Eugénie Miller
Brajnikov, já atrás citada, julgou vê-las em três antigas casas de moradia de
Conceição do Mato Dentro – em duas, numa decoração à base de flores e pássaros
que só muito vagamente podem lembrar a China, mas na terceira, situada à Praça
Dom Joaquim e onde hoje funciona uma escola, nos quatro grupos de figuras
vestidas à ocidental que se equilibram sobre o que parecem ser nuvens, certamente
de atmosfera chinesa, e com alguma boa vontade lembrando representações dos
126
Oito
Imortais
Taoístas.
Essas
pinturas,
que
segundo
aquela
estudiosa
representariam cenas da vida dos portugueses na China, são atribuídas por Enrico
Schaeffer a Silvestre de Almeida Lopes (ativo entre 1764 e 1796), mas devem datar
já de começos do Séc. XIX.
José Roberto Teixeira Leite
Formado em Direito, dirigiu sua vida profissional para o jornalismo como crítico de arte.
Lecionou em distintas universidades fluminenses e paulistas. Foi diretor do Museu Nacional
de Belas Artes de 1961 a 1964. Fecundo escritor, competente pesquisador, escreveu mais
de vinte livros, em sua grande maioria sobre arte e artistas, entre eles: “A China no Brasil” e
“As Companhias das Índias e a porcelana chinesa de encomenda”. Membro de distintas
associações e conselhos de arte.
!
127
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES SENIORES
128
JAPONISMO, MAS “NON TROPPO”: A HISTÓRIA DA ARTE COMO CAMPO
PRIVILEGIADO DA DISSIMULAÇÃO ETNOCÊNTRICA.
Afonso Medeiros - UFPA
RESUMO: Arte e cultura orientais influenciam e são influenciadas pela arte e pela cultura
ocidentais há séculos. Mais do que um exercício de alteridade, esses diálogos interculturais
constituem-se mais precisamente, no campo da História da Arte, num modo mal dissimulado
de manutenção do status quo dos valores estéticos da cultura europeia. Esse status quo,
constituído como epistemologia desde a gênese da disciplina (seja como história do artista
ou como história dos estilos), perdura praticamente intacto até a contemporaneidade.
Tomando como exemplo o japonismo que vem atravessando a cultura europeia há quase
dois séculos e mais recentemente a cultura norte-americana, este ensaio discute a
sobrevivência da História da Arte como disciplina pretensamente geral e irrestrita, mas que
ainda opera a partir de grades conceituais rígidas e excludentes, na contra-mão das
questões suscitadas pela arte e pela cultura contemporâneas e sem deixar-se infectar pelo
modo de ser das artes não europeias, particularmente pelas orientais. Edward Said (1996),
Kakuzo Okakura (1993) e Inaga Shigemi (2011) são alguns dos estudiosos que oferecem
problematizações instigantes para o escopo deste trabalho.
Palavras-chave: história da arte; arte oriental; epistemologia.
ABSTRACT: Oriental art and culture influence and are influenced by Western art and culture
for centuries. More than an exercise of otherness, these intercultural dialogues constitute
more precisely, in the field of History of Art, a thinly veiled way of maintaining the status quo
of the aesthetic values of European culture. This status quo, constituted as epistemology
since the genesis of the discipline (either as the artist's history or as history of styles) lasts
almost intact until nowadays. Taking as an example the japanism, which has come across
the European culture for almost two centuries and more recently comes across the American
culture, this essay discusses the survival of the history of art as a supposedly general and
unrestricted discipline, which still operates with rigid and exclusionary conceptual grids,
against the issues raised by contemporary art and culture, without being infected by the way
of being a non-European art, particularly by the oriental ones. Edward Said (1996), Kakuzö
Okakura (1993) and Inaga Shigemi (2011) are some of the scholars who offer exciting
problematizations for the scope of this work.
Keywords: history of art, Oriental art; epistemology.
Okakura Kakuzō (1862-1913), nascido em Yokohama, em uma família
originária de Fukui, foi um dos mais proeminentes pensadores e críticos sobre as
relações culturais entre o Oriente e o Ocidente. Aos 15 anos, Okakura entrou no
bacharelado em Artes da Universidade Imperial de Tokyo (então uma instituição de
língua inglesa), onde encontrou pela primeira vez e estudou com Ernest Fenollosa –
ambos foram ferrenhos defensores da arte e da estética japonesa num momento em
que o Japão passava por um intenso período de influência ocidental na economia,
129
na indústria e na cultura. Em 1890, foi um dos principais fundadores da Escola de
Belas-Artes de Tokyo (Tokyō Bijutsu Gakkō), tornando-se seu diretor no ano
seguinte. Depois, fundou o Instituto Japonês de Arte junto com Hashimoto Gahō e
Yokoyama Taikan. Cosmopolita, Okakura viajou pela Europa, pelos Estados Unidos,
pela China e pela Índia. Em 1910, tornou-se o primeiro diretor do departamento de
arte asiática do Museu de Belas-Artes de Boston. Direta ou indiretamente, suas
ideias impactaram importantes intelectuais, como Martin Heidegger (1889-1976),
Ezra Pound (1885-1972) e Rabindranath Tagore (1861-1941).
Em O livro do chá, publicado em inglês em 1906, Okakura começa sua
explanação observando de forma contundente as mútuas incompreensões culturais
entre Ocidente e Oriente. De alguma maneira, nós que nos dedicamos à arte oriental
num pais tão equidistante (geográfica e culturalmente) tanto do Oriente quanto do
Ocidente, ainda nos encontramos envolvidos com as mesmas questões que o autor
apontou na introdução de sua obra mais conhecida e que, no nosso caso, poderiam
ser sintetizadas da seguinte maneira: o Oriente como periferia do Ocidente no
campo da globalidade, o Hemisfério Sul como periferia do Hemisfério Norte no
campo político-cultural e a Arte como periferia da Ciência no campo do
conhecimento acadêmico. Nesse cenário, qual o sentido de realizarmos esse
Colóquio sobre Arte Oriental? Trataremos de arte oriental com as ferramentas
teóricas e epistemológicas que a mesma nos oferecem a partir de seu contexto ou,
ao contrário, tentaremos enquadrá-la na formatação histórica e metodológica da arte
europeia? Que condições teríamos, efetivamente, de promover inserções e revisões
na história geral da arte a partir do ponto de vista das estéticas das culturas
orientais? Existem, de um lado e de outro, perspectivas conceituais capazes de
iluminarem reciprocamente produções artísticas histórica e culturalmente tão
peculiares?
Esclareça-se desde já que, para muitos intelectuais e acadêmicos
(contemporâneos ou nem tanto) com os quais estamos acostumados a lidar, a ideia
de “ocidente” restringe-se à Europa e aos Estados Unidos; “oriente” é praticamente o
oriente contíguo à Europa – com exceção dos norte-americanos que, grosso modo,
consideram o oriente como o “extremo oriente” (China e Japão). No imaginário
intelectual dos ocidentais do Hemisfério Norte, a América Latina, a África e boa parte
130
da Ásia e da Oceania fazem parte de uma espécie de limbo político, econômico e
cultural. Além disso, não se pode perder de vista as muitas armadilhas da
generalização indiscriminada; o ocidente europeu não é uma cultura homogênea:
pelo menos duas grandes tradições digladiam-se até hoje, a latina e a anglosaxônica, não só no território político, mas também na língua, na filosofia, na arte e
na religião. Da mesma maneira, a China do Norte, mais afeita ao confucionismo e a
China do Sul, espaço privilegiado do taoísmo, não são irmãs siamesas. Entretanto,
mesmo que a custa de tantas barbaridades, esses dois grandes espaços
geográficos respectivamente cultivam na atualidade alguma noção de tradições
comuns,
auto-configurando-se
como
matrizes
daquilo
que
modernamente
entendemos como Ocidente e Oriente. Ressalvas feitas, vamos ao que interessa.
Este é um evento que objetiva reunir sistematicamente os pesquisadores e os
mais recentes estudos sobre arte oriental no Brasil e, de uma maneira ou de outra,
as questões expressas anteriormente devem perpassar um evento com esse perfil e
natureza. Sua realização atesta, por si só, a necessidade de revisão dos marcos
epistemológicos da História da Arte, visto que discutíamos, durante sua organização,
que tipos de limitações (ou se deveria haver limitações) na concepção de arte e de
artista a serem consideradas para aprovação ou não das comunicações submetidas
a este 2º Colóquio sobre Arte Oriental.
Na História da Arte, dependendo da filiação disciplinar e epistemológica de
seus profissionais, costuma-se estabelecer duas paternidades e gêneses distintas:
1) a de Giorgio Vasari (1511-1574), com a publicação de As vidas dos mais
excelentes pintores, escultores e arquitetos (Le vite de’ piú eccelenti pittori, scultori e
architettori) em 1550 (com uma segunda edição revisada em 1568); 2) e a de Johan
Joachim Winckelmann (1717-1768), a partir da escrita de Reflexões sobre a arte
antiga (em 1755) e da publicação de História da Arte Antiga (Geschichte der Kunst
dês Alterthums) em 1764. É fato que o artista Vasari não tinha a intenção de fundar
uma disciplina, mas estabeleceu, coerente com sua atividade, a ideia de que a
história da arte é essencialmente a história do artista e de suas criações.
Winckelmann, historiador e arqueólogo, deu início à concepção de história da arte
como história dos estilos naquele século (o XVIII) que já foi chamado de “o século da
131
filosofia e da critica estética”. Em ambos, abordagens exclusivas sobre artistas e
formas de arte europeias e o encantamento pela herança Greco-romana.
Sob essa perspectiva atravessada primeiro pelo Humanismo e depois pelo
Iluminismo, a História da Arte nasce como história da arte europeia e, mais
especificamente, com uma concepção naturalista, figurativa, autoral e mimética da
obra de arte, tendo a arte grega clássica como paradigma inconteste. Assim sendo,
a arte das culturas que não comungavam com esses princípios estéticos dificilmente
seriam aceitas imediatamente no rol das mais altas criações estéticas da
humanidade, o que, de fato, só foi possível tardia, parcial e paulatinamente,
sobretudo a partir das influências que as artes não europeias foram imprimindo na
arte do Velho Continente desde meados do século XIX. Ainda assim, foram as artes
das culturas próximas do Mediterrâneo as primeiras a serem levadas a sério pelos
historiadores e arqueólogos europeus.
Foi a partir das grandes navegações, mas, sobretudo a partir do século XVIII,
que a Europa começou a acumular obras de outras culturas, seja como botim de
guerra, seja como confisco puro e simples disfarçado de estudos históricos,
científicos e arqueológicos, privilegiados pelo fato de que muitas sociedades de
onde esses objetos foram roubados não davam o devido valor estético ou histórico a
esses produtos de sua própria cultura. O acúmulo de objetos de outras culturas em
solo europeu, além de constituir a glória atual de seus museus, facilitou o interesse
multicultural de estudiosos de várias disciplinas, mas, por um outro lado, arrancados
de seus contextos e concepções originais, impediu que se investigasse profunda e
amplamente as concepções de arte de culturas não europeias. Dessa maneira, no
auge da fúria colonialista de franceses, ingleses, espanhóis, portugueses e
holandeses, foram extirpadas as possibilidades de constituição da história da arte
como disciplina ampla, geral e irrestrita, visto que a própria concepção de arte e de
artista foram limitadas geográfica e conceitualmente.
De qualquer maneira, a História da Arte, na forma que a conhecemos hoje e
sem demérito para os antigos tratados sobre arte no Oriente e no Ocidente, é uma
área de conhecimento configurada em solo europeu, atravessada pelas concepções
de pintura, escultura e arquitetura como produtos estéticos refinados de uma
civilização cujas raízes remontavam à Grécia e à Roma e às civilizações que foram
132
consideradas geográfica e culturalmente adjacentes à cultura europeia (como a
egípcia, a mesopotâmica, a assíria e a babilônica) e com as quais estabeleceu
trocas e tráficos centenários. O apreço de historiadores da arte pelas artes africanas,
do extremo oriente e ameríndias só se desenvolveu no século XX, sobretudo a partir
do olhar diferenciado de artistas vanguardistas e antropólogos, mas o etnocentrismo
na história da arte já estava instalado em suas entranhas há, pelo menos, três
séculos.
Edward Said, em seu já clássico Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente (1990) assinala que:
O Oriente era quase uma invenção europeia, e fora desde a Antiguidade um
lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas,
de experiências notáveis. [...] O Oriente não está apenas adjacente à
Europa; é também onde estão localizadas as maiores e mais antigas
colônias europeias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente
cultural e uma das suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro.
Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua
imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada
desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da
civilização e da cultura materiais da Europa. O oriente expressa e
representa esse papel, cultural e até mesmo ideologicamente, como um
modo de discurso com o apoio de instituições, vocabulário, erudição,
imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais. (SAID, 1990, pp.
13-14)
Aos olhos europeus, o Oriente Médio não é um Outro meramente imaginado,
idealizado ou mitologizado, mas um tipo de discurso que, a partir das materialidades
da própria civilização europeia, se erige como narrativa que configura uma
identidade cultural calcada no contraste e na diferença que minimiza, barbariza e
inferioriza a produção estética do Outro. Esse discurso, também constituído pelo
aparato acadêmico, fez com que a Europa “inventasse” o Oriente em seus próprios
termos, diríamos, para sua própria auto-estima. Entretanto, esse processo não pode
ser reduzido a um maniqueísmo entre perdas e ganhos, pois a cultura não é um
campo de transplante puro e simples: por mais atroz e violenta que seja a imposição
de sua visão de mundo, o colonizador sempre é infectado pela cultura do colonizado
que através de sutis estratégias de resistência, acaba impondo uma rede complexa
de trocas e assimilações.
A percepção de Said é demolidora e se ajusta perfeitamente ao campo da
história da arte, na medida em que esta contribuiu sobremaneira para a constituição
133
de um imaginário europeu sobre o Oriente: bastaria citarmos, de passagem, apenas
algumas obras de Eugène Delacroix (1798-1863) e Dominique Ingres (1780-1867). A
favor dos artistas europeus, torna-se necessário acrescentar que eles não só
ajudaram a construir um imaginário sobre o Oriente, mas também sobre um suposto
passado glorioso nas civilizações helênica e latina. Ou seja, a História da Arte surgiu
no momento em que não só se constituía o modelo especular do Outro, mas se
revisava e enfatizava as raízes da própria cultura europeia. Esse contexto –
insistimos – fez com que a História da Arte já fosse etnocêntrica desde o berço e se
constituísse como poderosa máquina de propaganda da civilização europeia.
Se a arte do Oriente Médio, tão próxima geográfica e culturalmente da arte
europeia teve esse tipo de tratamento na História da Arte desde seu nascedouro, o
que seria do restante da arte Oriental?
L’art japonais (1883) de Louis Gonse (1846-1921), L’Histoire de l’art du Japon
(1890, com editoria de Okakura Kakuzō) e Hokusai (1896) de Edmond de Gouncort
(1822-1896), foram os primeiros relatos mais consistentes sobre arte oriental em
solo europeu. Um relato mais amplo, feito a partir do contato direto do autor com a
cultura japonesa e consultando artistas e estudiosos especialistas só aconteceu
quando da publicação em dois volumes (1912) do monumental Epochs of Chinese
and Japanese art de Ernest Fenollosa (1853-1908) e, mesmo assim, com várias
lacunas e imprecisões históricas. Se as primeiras publicações de autores franceses
foram resultado do japonisme que atravessou feito febre a cultura francesa da
segunda metade do século XIX, a obra de Fenollosa é resultado, paradoxalmente,
do esforço (também feito febre) de europeização da cultura japonesa empreendido
pelas autoridades locais – Fenollosa chegou ao Japão contratado para lecionar
filosofia na Universidade Imperial de Tokyo e tornou-se Comissário das Belas Artes
do Governo Japonês.
Se não fundaram, aquelas obras contribuíram para a reconfiguração dos
estudos do extremo oriente na história da arte e foram saudadas como clássicas,
como obras de eruditos que, dessa maneira, emprestavam à própria disciplina um
“verniz global”. A partir de então, os museus europeus de arte ampliaram
consideravelmente seus acervos e sedimentaram os departamentos de arte oriental
desses mesmos museus. Com essas obras e esses fatos e passados mais de cem
134
anos, seria de se esperar que a arte asiática assumisse algum protagonismo na
história da arte, com vários de seus artistas e movimentos tornando-se
paradigmáticos na história dos processos e dos produtos artístico-estéticos da
humanidade. Mas não foi isso o que aconteceu, posto que a disciplina já havia
diferenciado arte de artesanato, artista de artesão, colocando a pintura e a escultura
de caráter naturalista no pináculo da produção artística mundial e, assim,
constituindo um conceito de arte calcado na materialidade da produção estética e
simbólica. Nesse momento em que a própria história da arte poderia ter reformulado
seus métodos e objetos, ampliando seu suposto caráter global, boa parte da arte
oriental foi considerada mero produto exótico de culturas idem orbitando o núcleo
indisfarçavelmente etnocêntrico da história da arte – mais um daqueles momentos
em que o discurso sobre o Outro, calcado na diferenciação excludente, serviu para
blindar a identidade e a auto-estima. Apesar disso, exceções devem ser
assinaladas: o já citado Okokura Kakuzō e o francês Henri Focillon (1881-1943)
“tentaram estabelecer uma história da arte universal através da síntese de estudos
sobre Oriente e Ocidente durante a época cosmopolita entre as duas grandes
guerras” (INAGA, 2011, p. 61).
Inaga Shigemi, professor-pesquisador do International Research Center for
Japanese Studies em Kyoto, mestre pela Universidade de Tokyo e doutor pela
Universidade Paris VII, em seu A História da arte é globalizada? (2011), assinala
uma questão fundamental para a universalização da história da arte:
Ainda assim, não deve ser negligenciado que no seu Livro do Chá (1906),
Okakura manifesta claramente a sua má vontade em apresentar e apreciar
arte oriental de maneira ocidental. Invocando escrituras taoístas e conceitos
zen-budistas, Okakura tenta persuadir os leitores ocidentais que o culto
oriental à estética espiritual e à beleza imaterial está em forte oposição à
beleza física e material do Ocidente. Ele argumenta que o vazio da casa de
chá é incompatível com a panóplia-exibição das coleções dos museus
ocidentais, e a prática da cerimônia do chá não pode ser facilmente
assimilável à apreciação ocidental de arte, que coloca uma ênfase
excessiva na arte visual em detrimento dos outros quatro sentidos. Okakura
também insiste no fato de que na história da arte asiática, as belas artes
dificilmente podem ser distintas de arte e de artesanato, e ele sem sucesso,
criou o termo Kogei (artes refinadas) de modo a cobrir todos os tipos de
criação artística manual. Assim, uma resistência teórica à inerente falácia
que tentava globalizar a história da arte foi, manifestadamente, formulada
pelo pioneiro da história da arte oriental no início do século XX. (INAGA,
2011, pp. 61-62)
135
Na mesma época em que Kakuzō Okakura viveu e discutiu sobre arte oriental
e ocidental, no Japão assumiu-se definitivamente o termo “bijutsu” como tradução de
“belas-artes”, em detrimento do termo “geijutsu”, mais amplo e tradicional para definir
as artes japonesas e esse fato contribuiu para a invisibilidade internacional dos
princípios estéticos da arte oriental em geral e da japonesa em particular. De fato,
Okakura tinha razão em enfatizar que a arte oriental impõe princípios práticos,
teóricos e estéticos que não se coadunam com a prática, a teoria e a estética das
artes plásticas verificadas na Europa entre os séculos XV e XIX. Aqui se observa
uma impossibilidade de aplicação de uma única perspectiva teórica (no caso, a
europeia) na história universal da arte. Para que esta fosse globalizada, teria sido
necessário que o modo de ser das artes orientais infectassem a própria teoria da
arte, a concepção mesma de arte e de seus produtos, ampliando horizontes,
métodos e objetos. Mas não foi isso o que aconteceu. Para ficarmos em apenas três
exemplos, a Cerimônia do Chá, o Jardim Japonês e a Arte da Caligrafia nunca
aparecem nos compêndios canônicos da história da arte e são justamente estas
formas de arte que oferecem, talvez, os mais importantes aportes teóricos e
estéticos orientais para uma história geral da arte, imprescindíveis inclusive para as
concepções modernas e contemporâneas da produção artística. Eis um exemplo,
dado pelo próprio Okakura:
Na arte a importância desse mesmo princípio [o do vazio no taoísmo] é
ilustrada pelo valor da sugestão: deixando alguma coisa por ser dita
expressamente, o artista dá ao observador uma oportunidade de completar
a ideia original, e assim uma grande obra de arte vos atrai a atenção até vos
tornardes de fato uma parte dela: aí está um vazio para que nele entreis e o
enchais inteiro com vossa emoção estética. (OKAKURA, 1993, pp. 40-41)
Alguém conhece alguma teoria da recepção na arte ocidental nessa mesma
época (1906) tão afeita ao caráter de obra aberta da arte contemporânea quanto
essa defendida por Okakura a partir da arte sino-japonesa? Sugestão, imperfeição e
complementaridade da fruição são três princípios estéticos fundamentais que
perpassam algumas das artes japonesas há séculos. Mais contemporâneo do que
isso, impossível!
Em pleno século XX, a História e a Arte, ambas enquanto disciplinas/cursos
gerais academicamente constituídas, ofereceram uma nova chance para a
mundialização efetiva da História da Arte. No campo da História, a verdadeira
136
revolução causada pela Escola dos Annales, inaugurada por Marc Bloch (18861944) e Lucien Febvre (1878-1956), obrigou a disciplina a ampliar seus métodos e
objetos debruçando-se sobre as contribuições de outras disciplinas como a
Sociologia e a Antropologia e que fez com que Peter Burke assim definisse essa
revolução:
Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto
menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de
suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações
históricas. Abre-se, em consequência, o leque de possibilidades do fazer
historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a
necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os conceitos e
os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão do homem.
Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a individualidade, como
em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas análises no
econômico e no social; não se esquecia de que as estruturas sempre têm
algo a dizer a respeito do comportamento do homem; e como Burckhardt,
afirmava-se que o homem não se confinava a um corpo a ser mantido, mas
também um espírito que criava e sentia diferentemente, em situações
diferençadas. (BURKE, 2010, p. 8)
“Fazer uma outra história”, “abrir o leque do fazer historiográfico” e “permitir
ao historiador ampliar sua visão de homem”: eis os motes que ainda hoje podem
fazer implodir o renitente etnocentrismo da história da arte. Ignorar as produções
estéticas do Oriente não é só um modo de abrir mão de uma perspectiva
multiculturalista na história das produções artístico-estéticas da humanidade, mas
sobretudo uma relutância inexplicável em ampliar a visão do homem. Se
historiadores da arte não percebem nas artes produzidas para além das fronteiras
ocidentais um sopro de modernidade e/ou instrumentos e métodos capazes de
arejarem a disciplina é porque, infelizmente, muitos deles (e não só os europeus)
não estão dispostos a saírem de seus confortáveis nichos para ampliarem horizontes
e perceberem “Quanto vazio ao redor desses bibelôs raros e de época, quanto
espaço entre eles para outras objetivações ainda não imaginadas!” (VEYNE, 2008, p.
247). Talvez, as “objetivações não imaginadas” que Paul Veyne indica necessitem
de um olhar muito além do ofício do historiador tradicional da arte acostumado com
o campo restrito da história do artista, dos estilos e das vanguardas.
No campo da Arte, a revolução aconteceu ao longo de quase todo o século
XX, a partir das iconoclastias assumidas pelas vanguardas históricas e penetrando
até a arte contemporânea, com efeitos teórico-críticos tanto diacrônicos quanto
sincrônicos. Num arco histórico que Philadelpho Menezes (2001) chamou
137
pertinentemente de “a crise do passado” entre a modernidade e a metamodernidade,
muitos dos princípios estéticos da arte europeia, por força inclusive da influência
decisiva de artes não europeias (uma história ainda mal contada), foram dinamitados.
A debacle da figuração de caráter naturalista, a emergência do processo em
detrimento do produto, a estética do cotidiano preferencialmente às “grandes
narrativas”, a assunção do corpo pornográfico em contraposição ao corpo erótico, a
apropriação, o deslocamento, o pastiche, a performance, a arte pública e a afronta
aos museus e aos salões de arte: tudo isso que as artes europeias e norteamericanas modernas e contemporâneas assumiram como “novidade” podem ser
observadas nas artes orientais e não europeias há séculos. Se essas questões
fizeram com que se reconstituíssem os marcos teóricos da arte, elas não foram
pensadas como contribuições extra-ocidentais e transversais para a teoria e a
historiografia da arte, perpetuando um ciclo endogenético há muito estabelecido,
mas que não se sustenta na implosão de fronteiras proporcionada pela própria arte.
Somente uma visão hegemônica renitentemente etnocentrista, aliada à ignorância
pura e simples e ao monolinguísmo de muitos especialistas pode explicar o fato de
que a arte europeia e sua historiografia, se comparadas às muitas formas de artes
da Ásia, da África, da Oceania e da América Latina, atingiram tardiamente o estatuto
da modernidade, inclusive no sentido que Charles Baudelaire (1821-1867) deu ao
termo.
Mas o fato é que a história geral da arte continua sendo contada por europeus,
enquanto que o trabalho de historiadores da arte de outras plagas permanece como
uma órbita periférica confinada nos departamentos de estudos orientais, ou de
estudos culturais, ou de estudos visuais tanto das universidades europeias quanto
das norte-americanas, das brasileiras e das japonesas. Pior do que identificar e
admitir a sanha autocentralizadora do colonizador, é reproduzir acriticamente seu
discurso, aplicando-o indiscriminadamente às formas de artes de quaisquer culturas.
Na historiografia moderna e contemporânea da arte ainda não houve uma
revolução similar à da Escola dos Annales e, muito menos, algo parecido com as
revoluções estéticas orientais ou das artes modernas e contemporâneas. Nessa
perspectiva, é necessário afirmar que o “fim da história da arte” (Hans Belting, 2006;
Arthur Danto, 2003) e a “superação da estética” (Peter Osborne, 2010),
138
supostamente perpetradas pelas artes contemporâneas, são visões de crise da arte
euro-norte-americana a partir do contexto cultural do final do século XX, mas não
são necessariamente crises das artes de outras latitudes. A arte, como todo e
qualquer fato humano, é rara e avessa a generalizações excludentes.
A favor do diálogo imprescindível à constituição do conhecimento em termos
acadêmicos, devemos dizer que há, sim, princípios e perspectivas da história da arte
ocidental que podem servir de instrumentos para percepções e concepções de arte
mais amplas e dialógicas. Porém, na mesma medida e com a mesma ousadia e
desfaçatez, devemos expor e defender as imprescindíveis contribuições da arte
oriental para a compreensão alargada e multifacetada de seres humanos e de
mundos. Em síntese, a questão reside no fato de que a percepção aberta do espaço
da constituição cultural do Outro nos leva por caminhos complexos e paradoxais de
espelhamentos e estranhamentos. Mas não temos outra alternativa, se o que nos
move é o respeito sincero pela humanidade.
Referências
BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia.
São Paulo: Editora da UNESP, 2010.
DANTO, Arthur C. Después del fin del arte: el arte contemporâneo y el linde de la historia.
Buenos Aires: Paidós, 2003.
FENOLLOSA, Ernest F. Epochs of Chinese and Japanese art. New York: ICG Muse Inc.,
2000.
MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade.
São Paulo: Experimento, 2001.
OKAKURA, Kakuzo. O livro do chá. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.
OSBORNE, Peter. El arte más allá de la estética: ensayos filosóficos sobre arte
contemporâneo. Murcia: Cendeac, 2010.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
SHIGEMI, Inaga. A história da arte é globalizada? Um comentário crítico de um ponto de
vista do extremo Oriente. In: GREINER, Christine e SOUZA, Marco (orgs.). Imagens do
Japão: pesquisas, intervenções, poéticas, provocações. São Paulo: Annablume, 2011.
VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foulcault revoluciona a história. Brasília:
Editora UNB, 2008.
139
Afonso Medeiros
É professor associado de Estética, Teoria e História da Arte da Faculdade de Artes Visuais e
do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Atualmente, é
presidente da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e
coordenador do PPGArtes da UFPA.
140
O VAZIO NA ARTE ZEN-BUDISTA
Fernando Carlos Chamas - USP
RESUMO: A história do Japão é marcada por dois períodos de isolacionismo. A introdução
do Zen no Japão, século XII, coincidiu com o segundo período. No seu primeiro, durante o
período Heian (794-1185), os artistas japoneses puderam explorar a visão nativa sobre sua
arte, que reagia contra as influencias do continente, mas fortemente influenciada pelo
budismo esotérico financiado pela aristocracia e seus valores. No segundo, a difusão do Zen
e da sua arte se voltam para os valores dos xogunatos. Em meio às dificuldades dos seus
períodos iniciais de guerras civis, os artistas japoneses buscaram valores estéticos opostos
aos exageros iniciais da arte budista, e se empenharam em valores existenciais tanto Zen
quanto nativos, assim gerando uma arte e influenciando outras não exclusivamente do Zen.
Mesmo assim, normalmente estas artes são geralmente e popularmente reconhecidas no
ocidente como Visão Estética do Zen.
Palavras-chave: ensō; artes-plásticas; Budismo; Japão.
ABSTRACT: Japan's history is marked by two periods of isolationism. The introduction of
Zen in Japan, 12th century, coincided with second period. On your first, during the Heian
period (794-1185), Japanese artists were able to explore the vision about their native art, that
reacted against the influences of the continent, but they were heavily influenced by esoteric
Buddhism supported by the aristocracy and its values. In the second isolationism, the spread
of Zen and its art turn to the values of shogunates. Amid the difficulties of initial periods with
civil wars, Japanese artists looked for aesthetic values opposite to the early exaggerations of
Buddhist art and themselves engaged in a search by existential values both Zen as native,
thus generating an art and influencing others not exclusively of Zen. Even so, usually these
arts are recognized generally and popularly in the West like Zen Aesthetic Vision.
Keywords: ensō; plastic arts; Buddhism; Japan
Entre os objetos que podem ser vistos com os olhos há os que existem e os
que não existem no mundo real. Quando o objeto existe, ocorre chamarmos
de “realismo” (o adjetivo/qualificativo é realiste) esse “desenho ao natural”,
ou de “descrição objetiva”. Mesmo podendo ver com os olhos um objeto que
é um produto da força da imaginação ou da alucinação visual ou do sonho,
quando ele não existe no mundo real, considera-se esse desenho como surreéalisme. [...]. Vê-las como um espetáculo existencial (realismo) ou como
uma “imagem” da fantasia (surrealismo) depende de o apreciador acreditar
ou não em Buda. (KATŌ, 2012, p.227)
1. Introdução
Notando a imagem tipicamente do Zen colocada no site deste evento, um
círculo feito com um pincel à nanquim, não poderia ignorar o momento de discuti-la
como um dos momentos marcantes da expressão visual Zen japonesa. É um
141
desenho que obviamente me apareceu durante minha pesquisa sobre a arte budista,
por referência ao seu ensinamento mais difícil, o Vazio, que no mestrado ainda não
era o momento de discuti-la, seja pela história do Zen seja pela discussão realismo x
surrealismo pela leitura visual oriental. Segui o mesmo ritmo de compreensão, das
origens da história da arte budista e dos próprios ensinamentos do Buda histórico,
Siddharta Gautama. O significado desses ensinamentos atingiu, na arte, um veio de
abstração, expressionismo e simplicidade. Agora sim posso dar continuidade ao
estudo e mesmo compreender a reviravolta da arte budista para a arte Zen, ainda
que insistente sobre o Vazio. Sobretudo se o Zen pode ser tomado como um
resultado arquetípico oriental e também para todos os que buscam este tipo de
pureza enquanto forma de expressão, nesse caso, então, não sendo uma
exclusividade do Zen. É a arte que domina o estilo Zen, e não ao contrário.
Não é difícil deduzir que a arte budista atingiria altos graus de abstração,
simplesmente por acreditar ou não em Buda. Talvez isso seja uma verdade para a
história da arte religiosa, e que, neste caso, também tem seu viés anti-iconográfico.
Ninguém poderá afirmar que Buda era contra a arte. Segundo a lenda, ele apenas
disse que não queria ser retratado para ser adorado como imagem. Mesmo que ele
não tivesse dito nada sobre isso, não é difícil nem fantasioso deduzir que pensasse
assim, como um verdadeiro mestre, acredito. Seu ensinamento sobre a ilusão da
realidade material e da personalidade é fundamental, e isso obviamente incluía o
seu corpo físico que envelheceu e morreu doente como homem comum. Se seu
poder espiritual pudesse manter o seu corpo saudável e jovem até os dias de hoje,
nenhum mestre se atreveria a fomentar tal apego ao corpo, sobretudo numa época
de reis que buscavam a longevidade. Depois de muita insistência, Buda parece ter
permitido o seu retrato, por reconhecer essa necessidade visual humana e também
porque seria inevitável, como arte ou religião. Mesmo porque seu modo de ensinar
foi poético e se utilizava de imagens simples. No Sutra de Lótus Buda afirma que
sua verdade é insondável. Para isso utilizou várias histórias com relações causais, o
poder imagético das parábolas, o que futuramente originará kōan(s) 1 e haicais. Mas
o Corpo de um Buda teria implicações artísticas complexas e sur (reais). Enquanto
os restos mortais do seu corpo físico seriam disputados para serem guardados como
relíquias em pagodes, seu corpo espiritual é tido, sumariamente, como a própria
manifestação do Dharma, a Lei cósmica, onde a verdade do Vazio é a natureza de
142
Buda. Assim, a arte de fazer imagens de Buda tomou dimensões expressivas
multiculturais até o extremo oriente, de modo que se pode dizer que a imagem de
Buda teve uma bem sucedida adaptação étnica, “tornou-se amarela”, e que o Japão
possui uma população de imagens budistas e algumas cidades com mais templos
que habitações comuns. Num primeiro momento, o budismo dominou a arte, mas
depois é a arte japonesa que dominará seus princípios no momento da repercussão
Zen.
2. O Zen-Budismo
Seguir os mesmo passos da arte budista para sua compreensão significa
também que, do ponto de vista histórico japonês, podemos destacar três fazes de
influência do budismo ao considerar o tempo de vida de Buda, seus ensinamentos, e
o tempo que as formas de budismo levavam para chegar ao Japão. Devemos
sempre lembrar que o budismo demorou mil anos para chegar ao Japão e
atravessou meio mundo através de monges e traduções - dos sutras que estavam
sendo ainda escritos - do sânscrito para o chinês e desse ou do sânscrito para o
japonês. Houve sim também um grande interesse político chinês, coreano e japonês
onde a mensagem visual, como em outras civilizações, teve um papel fundamental,
o que a iconografia budista tinha de sobra. Podemos destacar três ondas dessa arte
e suas influências baseadas na época de um ensinamento específico durante o
tempo de vida de Buda e no tempo de difusão das mesmas até o Japão que, pela
distância da Índia e em dez séculos, não chegaram concomitantemente.
Há uma primeira fase de intensa atividade missionária tendo a arte como um
dos seus principais métodos de propagação, antes de qualquer monge e qualquer
sutra, estimulando ainda mais a mística ao redor de Buda pela força presencial da
escultura. Essa faceta mística, em parte vinha da Índia, e depois se somando aos
xamanismos locais. Depois, a arte advinda dos ensinamentos sobre reencarnação e
paraíso, respectivamente sobre a Roda da Vida (Samsara) e Terra Pura. E no fim da
vida humana de Buda, uma terceira fase da arte baseada no ensinamento primordial,
que não podia ser dito pela suposta lógica das palavras, o Zen. Ao seu tempo, essas
influências chegavam ao Japão, da mesma forma causando três tipos de reação que
aconteceram entre os séculos V ao VII, do VII ao X e por volta do XIII.
143
O Japão foi inundado não só por imagens diretamente ligadas a Buda, mas
também por toda a mitologia hindu e chinesa, que pelo ponto de vista budista,
converteu-se ao budismo e decidiu proteger os Budas, os budistas e os
ensinamentos, que são as três joias do budismo. Foram recebidos cautelosamente
como deuses estrangeiros que poderiam ou não entrar em conflito com os deuses
nativos, os Kami, do xintoísmo. Isso de deu entre os séculos V ao VII.
Mas os japoneses receberiam um impacto maior e para sempre marcante em
suas vidas. A ideia da vida após a morte e seus paraísos e infernos. Seus deuses2
também poderiam estar presos à Samsara, e o karma decidiria para onde a alma iria
após a morte, não retornando à natureza como um Kami ou qualquer outra energia,
mas em algum mundo de sofrimento que só poderia ser superado ou pela
Iluminação, aparentemente impossível, ou pela crença mais acessível em outros
Budas que construíram Terras Puras (os paraísos budistas) para todos aqueles que
cressem nele e desejassem buscar a Iluminação sem os sofrimentos diversos das
reencarnações. Isso se deu entre os séculos VII ao X. Isto teve uma rica concepção
inicial altamente aristocrática na construção de palácios, templos e jardins, mas
depois mais popular e baseada na devoção.
O terceiro impacto, porém, relativizou completamente todos os exageros
anteriores em relação ao budismo e sua arte, apresentando-se sem nenhuma
pretensão de se tornar uma religião, ainda que com linhagens concretas. Mesmo se
tornando uma grande influência e formando muitos monges e três escolas que
existem até hoje (Rinzai, Soto e Obaku), há uma resistência oriental e ocidental de
colocar-lhe um ~ismo, ou mesmo reduzi-lo a uma religião ou filosofia pelos moldes
científicos ocidentais. Não existe “zen-ismo”, e talvez seja mais bem entendido como
“disciplina” no oriente, e uma “ciência da mente” pelo ocidente. É o ser humano
colocado em sua mais simples e original posição em relação à natureza, um ser da
natureza com a singularidade de, neste mundo humano, pensar, criar e poder atingir
a Iluminação. A criação artística foi tanto um meio de salvação quanto uma nostalgia
pelo mundo de beleza criado pela aristocracia que refinado aos seus ideais
principais serviriam também à refinação da alma.
Sem dúvida, essa profunda relação com a natureza foi muito bem vista pela
tradição japonesa, repleta de lugares sagrados, e numa época de classes,
144
teoricamente reduzindo todos a um denominador comum de simplicidade,
serenidade e relativização da vida sem um monoteísmo. Os ensinamentos budistas
são revistos e desmistificados. Um sincretismo anterior entre Budas e kami(s) antes
do Zen, não foi uma solução teológica tão agradável como seria a proposta da arte
Zen, onde os Budas se dissolviam na harmonia da natureza. Primeiramente, o Zen
adotou as técnicas da pintura à nanquim, ainda que seus princípios influenciassem
outras artes. Isso se deu por volta do século XIII.
Esta terceira reação japonesa ainda pode ser vista como uma única reação
ao Zen, já que este se difundiu sob uma perspectiva original do Budismo, mas ainda
sim baseada em atingir o estado de Buda, sendo quase redundante o uso do termo
Zen-Budismo, mas muito mais adequado do que zenísmo.
3. O interesse pelo Zen
Enquanto o budismo mais esotérico foi de interesse mais dos monges e dos
serviços desses à aristocracia, o Zen gerou um interesse mais amplo, não menos
severo. Os ideais iniciais de compaixão ao qual o budismo da corrente mahayana se
gabava em relação ao budismo não esotérico, o theravada, são revistos na prática
em épocas difíceis. Historicamente, seu interesse cresceu numa época em que a
aristocracia estava enfraquecida com a ascensão dos governos militares, os
xogunatos, que também se interessaram pelo Zen, seja para criar uma cultura
diferente daquela da aristocracia, seja para criar momentos de sentido da vida em
meio às guerras e à pobreza geral. Podiam se dedicar ao arranjo floral (ikebana),
aos jardins de pedra e à cerimônia do chá (chadō), por exemplos, com o objetivo de
contemplar a natureza, o que exigia uma disciplina que se adequava aos ideais dos
samurais. Estas artes, então praticadas como disciplinas, são associações muito
posteriores à origem do Zen, praticamente independentes de qualquer religião e
podem também serem mais bem compreendidas se vistas apenas como arte.
Dizendo ao contrário, dizer que aquelas artes levam à Iluminação objetivada pelo
Zen é uma associação posterior e desnecessária, mesmo porque incita uma
hegemonia religiosa sobre a arte, para o Zen um capricho inaceitável. Nesse
começo, as artes ditas Zen podem ser aquelas realizadas por monges de mosteiros
Zen e por aqueles que viram em algumas artes mais tradicionais um fundamento
145
Zen e a necessidade de produzir nesse sentido, da mesma forma que acontece hoje.
Com o tempo e com essa própria empatia profunda com o modo mais tradicional de
vida japonesa, o caráter Zen também foi se estabelecendo como uma forma de
expressão e consequentemente uma forma de arte que pode ser chamada de artezen e algo como um estereótipo oriental, senão, um patrimônio humano.
Por hora, me limito a mostrar a expressão Zen apenas no círculo à nanquim.
Ele engloba todos os elementos que outras artes ditas nascidas do espírito Zen
possuem por significar, a princípio, entrega do artista ao fenômeno criativo.
Às vezes prefiro colocar a palavra “zen” com inicial minúscula na falta de uma
palavra adjetiva que exprima um interesse inclusive ocidental que não é
especificamente pela tradição Zen. Por um conjunto de motivos subjetivos, a
evolução, difusão e popularização de um estereótipo Zen dos gostos orientais,
japoneses e minimalistas podem constituir uma teoria estética chamada de
designzen.
A citação inicial do pesquisador Katō Shūichi coloca a nativa impressão
japonesa da realidade que, sob forte influência budista e visão nativa, difere um
pouco da descrição objetiva da realidade. Tende ao romantismo, ao subjetivismo e à
fuga da realidade. O sentido de energia deve estar desarmado. O budismo insiste
em que o mundo visível é mera aparência e só se torna importante quando
percebemos que através dele se expressa a verdade eterna do Vazio. Esse é
criativo, pois tudo vem do nada. Para o ocidente, vazio e nada parecem negativos,
mas está mais próximo de uma natureza incompreensível. Se tudo é nada, o
refinamento da subjetividade é fundamental. A importância da subjetividade artística
culturalmente arraigada parece realmente estar acima de qualquer crença além das
soluções harmoniosas às questões práticas do dia-a-dia e da inevitável realidade
das necessidades humanas.
[...], o intelecto oriental atribui uma importância particular ao fator subjetivo e,
de modo especial, à primeira impressão intuitiva ou à disposição psíquica.
Esse fato é sublinhado pela frase: ‘Todas as manifestações são, na
realidade, nossas próprias representações, surgidas espontaneamente no
espírito’. (JUNG, 1986, p. 40).
Surge a pintura “realista” de paisagens e retratos de mestres ao lado da
pintura com o mínimo de traços essenciais à nanquim, o suiboku. Há paisagens
146
bastante realistas até com objetivos topográficos dos donos de terras, mas tendem a
ser subjetivas no sentido de perspectivas panorâmicas muito amplas, se possível do
alto da mais alta montanha, com imagens de rochas, árvores, habitações e pessoas
minúsculas, nessa graduação quase atingindo o imperceptível. A composição geral
dá ênfase ao espaço vazio, comumente percebido como o céu e “até sob os pés”.
Os estados da água em nuvens e névoas fazem as imagens mais detalhadas irem
se dissolvendo num vazio, ou se materializando a partir dele, o que se pode pensar
que é o desejo romântico em retratar a efemeridade. A representação da neblina da
manhã ou do entardecer encobrindo uma floresta torna-se peculiaridade da diluição
do nanquim e exige um grande domínio do artista, dando-lhe notoriedade. Pela
capacidade de captar a impressão de um momento, o nanquim serviu a um
impressionismo oriental e foi mais além no estudo da luz, sombra e cores. Dentro da
tradição oriental, retratar a natureza é retratar lugares sagrados. No Japão, o
cuidado com a natureza sempre teve dimensões religiosas nativas, e é difícil,
mesmo hoje no Japão, não sentir o verdadeiro sentido de lugar sagrado. A natureza
não é algo separado do homem e não está lá para ser dominada, mas para que o
homem tenha consciência de sua relação com a natureza e se entregue ao domínio
criativo, segundo a retórica Zen da Iluminação. O círculo é um modo como essa
perfeita relação se manifesta no campo das artes Zen.
Essa tal perfeição também foi sincretizada pelo ideal de perfeição japonês. A
partir de obras pode-se afirmar que as pinturas chinesas iniciais de paisagens, que
influenciaram o Japão, ao mesmo tempo em que a influência Zen acontecia, são
bastante realistas. A cultura japonesa, no século XIII, que absorvia a cultura
continental, se isolou, como no século IX, e reinterpretou o perfeccionismo chinês,
valorizando aspectos rústicos enquanto imperfeições desejáveis de qualquer
processo artístico, pois é assim que viam a natureza, perfeita com sua constante
inconstância. É um estilo querido como wabi-sabi (fGÄ “quietude-simplicidade”),
resumidamente sendo um estilo que “nega a perfeição”, fukinsei (L¥č), ou é a
perfeição da assimetria, da irregularidade, da impermanência. Esse estilo também
atinge a representação do ser humano de forma caricatural, contra a relação de
perfeição simétrica-espiritual das estátuas budistas esotéricas.
147
Não obstante a influência Greco-romana para as primeiras esculturas
budistas na Índia e do próprio naturalismo indiano, os artistas orientais tenderam
para outros ideais de beleza, não menos abstratos ou perfeccionistas, mas com a
complexidade cultural da crença em energias corporais, principalmente do
hinduísmo e do taoismo. Na arte Zen isso continua de modo caricatural, mesmo
porque se afasta de um ideal aristocrático de perfeição, e o homem possui uma aura
de plenitude e pureza, numa taberna, entre o povo, ou numa floresta, isolado, mas
isto sé dá só depois que o “círculo acontece”.
Há dois tipos básicos de representação dos seres humanos na arte Zen. Em
um, os seres humanos aparecem pequenos como frágeis formigas diante de uma
natureza imensurável. Não há como saber se eles já são sábios ou sábios o
bastante para reconhecerem sua impressionante pequenez pensante. Noutro tipo, o
sábio é visto mais de perto e subjetivamente mostra sua grandiosidade simplicidade
contemplativa em meio a natureza, ainda pegando ou não emprestado alguma
simbologia budista de forma caricatural.
O limite entre o exprimível e o inexprimível é dado pelo traço tênue de
nanquim, mais ou menos diluído para os (e pelos) espaços vazios que “definem” o
desenho ou expressam o Vazio da realidade, como que se desmaterializando as
formas, não a arte. Não vejo como a não-arte ou a não-expressão, a não ser sob o
caro conceito oriental da não-ação, em resumo, a ação que independe do ego. O
Vazio da realidade é uma concepção budista, sunyata, cada vez mais atual na
própria ciência, e me interessa citá-la. Visto que na cultura japonesa a ciência faz
parte da sua cultura, a verdade científica do Vazio da matéria terá consequencias
mais profundas.
Enquanto os budistas, especialmente os tibetanos, dizem que toda a
realidade material percebida é vazia, e é a ilusão da mente que nos engana, a
ciência está chegando a conclusões surpreendentes. Não se trata se a matéria
existe ou não. Ela existe quando se observa, mas é, essencialmente, uma
manifestação de ondas de subpartículas ilocalizáveis. As subpartículas que formam
os átomos surgem e somem a uma velocidade superior a da luz e, na verdade,
somos apenas uma aparição aparentemente estável, somente mantida pela ilusão
mental. É o vazio altamente criativo da visualidade.
148
Para o Zen, porém, estas ideias nunca foram teóricas, pois há um meio de se
vislumbrar essa realidade vazia pela a Iluminação ou despertar espiritual (sânsc.:
budh; jap.: satori). A Iluminação muda o observador dessa realidade. O Zen tem
muito da atitude mental do budismo tibetano, sobretudo no que diz respeito ao sono
e ao sonho. Um Iluminado é aquele que desperta e percebe que todos os outros
estão dormindo e completamente imersos nos seus sonhos e pesadelos que são
suas realidades. O mestre nos fala enquanto dormimos, nos orientando a controlar o
ego e seus desejos para que não soframos tanto e acordemos. Não há outro modo
de ensinar além de criar imagens com relações causais inteligíveis ao intelecto
adormecido. Considero essa pequena explicação necessária para complementar as
explicações a seguir.
Finalmente voltando a um dos desenhos clássicos do Zen, o ensō é o círculo.
Ele pode significar muitas coisas, só pelo fato de ser um círculo, um arquétipo
primordial, assim como uma mandala, outro tema complexo neste momento
irrealizável.
Sua extrema “simplicidade” pode ser mais bem compreendida dentro de um
contexto, um pequeno conjunto de ilustrações didáticas que mostram o caminho da
Iluminação. Não colocarei aqui as dez ilustrações originais com suas notas. Nas
ilustrações 1 a 6 há um homem que percebe que há um caminho para a
compreensão da existência na qual ele se inclui e que os passos iniciais implicam na
domesticação do Ego representado por um boi selvagem. Assim que o boi é
completamente amansado, o homem monta nele e volta para sua casa. O sol, ou a
lua que ele parece observar, já se parece com o ensō. Para Nietzsche, sem dúvida
representaria o Eterno Retorno (ewig wiederkehren, em jap.: eigōkaiki ĺÝ), os
ciclos repetitivos da vida que nos fazem estar sempre presos a um número limitado
de fatos, o que realmente convém à concepção cíclica do tempo no oriente de uma
forma muito menos dramática do que dentro da filosofia ocidental.
O ensō ({ţ) aqui representa um passo da experiência da transformação da
visão e a total compreensão de que o Vazio da realidade é a natureza de Buda. Este
desenho expressa o momento da iluminação, o instante do não-tempo, o aqui do
não-espaço, o nada do todo. Este comentário sobre o ensō é pessoal, e não exclui
149
outros comentários mais poéticos, que partem de uma experiência do não-pensar,
da não-ação, o mesmo paradoxo em que um kōan (“enigma Zen”) nos coloca.
(1) Três ilustrações do caminho Zen. Os mestres Zen discutem o desenvolvimento de seus
estudantes com ilustrações do pensamento Zen. Estas três ilustrações 7-8-9, de dez no total, se
referem, respectivamente, 7. ao fim da visão dualista; 8. à experiência do vazio essencial de todas as
coisas e 9. Voltando à Fonte: “Se se pensar que o oitavo estágio é um aspecto estático da Verdade
absoluta, poder-se-á dizer que o nono estágio traz uma nova apreciação dinâmica do mundo. A
natureza não é meramente vazia ou sagrada, ela é. Se visto claramente, qualquer aspecto do mundo
pode servir como um perfeito espelho para nos mostrar a nós mesmos” (FADIMAN, 1979, pp. 300-2).
Esse círculo bem representa uma das primeiras manifestações da caligrafia
desenvolvida por monges Zen para mostrar o estado puro da mente do calígrafo e
uma ação física e artística espontânea: Bokuseki («ƿ: traços à nanquim), também
conhecido como estilo zenga ( ū Ş : “traços Zen”). Existem ensō(s) de muitos
mestres Zen.
150
São numerosos os trabalhos extraordinários de caligrafia dos monges Zen,
e, entre eles, há mesmo aqueles que podem ser vistos como pinturas
abstratas de nanquim. Os chineses estimavam as obras sho [escrita] dos
calígrafos, e não colocavam as caligrafias bokuseki dos monges Zen acima
delas, mas a maioria da caligrafia chinesa que o Japão importou era
bokuseki. Esse fato mostra real e vividamente certa tendência comum dos
artistas japoneses, na pintura e na caligrafia. (KATŌ, 2012, p. 229).
O traço do círculo começa forte e denso como a imagem da ilustração anterior,
e termina fino como a imagem mais abstrata ao estilo incorrigível do nanquim. Ele
vai se esvaindo ao mesmo tempo em que o pincel vai lentamente se levantando sem
tocar no início do traço. Na prática manual, é realmente um desafio fazer o mesmo
com a mesma “perfeição rústica”, como se fosse um rascunho, e mesma sincronia
entre tempo e pressão do pincel sobre a base. Há ensō com dois traços. O círculo
também pode parecer fechado. Sobre isso pode haver uma concepção pessoal do
espaço aberto ou fechado, ainda que limitado, semelhante ao simbolismo do pote
vazio: este representa a personalidade que, quando se quebra, percebe-se que não
havia diferença entre o dentro e o fora. Outra observação necessária: este círculo
não é um ideograma e não representa uma palavra, embora lhe associemos a um
conceito abstrato. É realizado num momento de fluxo livre do espírito do mestre, de
não ação.
Se o artista insistir em fazer o que fez ontem, nada consegue. Por quê? Por
que ao insistir, o artista já está obstruindo o fluxo livre do espírito. [...]
Rapidamente, as profundezas e as alturas surgem, tudo bem expresso pelo
uso do pincel, e a disposição dos objetos também é perfeita, até melhor que
o cenário real. Isso ocorre porque a ideia suprema [do universo] foi expressa
ali (TSUNG-CH’IEN, Shen. De Chieh-chou Hsüeh Hua P’ien). In (YUTANG,
1967, p. 2004.).
A natureza ou o mundo natural e seu poder são representados até que
acontece a experiência da Iluminação. Depois o Vazio, e depois a natureza continua
como era antes. O observador mudou. Uma vez que essa “experiência” é individual,
incompreensível e inexprimível, resta-nos desbravar sua expressão plástica que
aponta para aquela experiência individual. Como é andar desperto entre pessoas
que não sabem que estão sonhando? Isso foi tema do filme A Origem, a seu modo
cinematográfico americano e invasivo, mas antes significa um “potencial criativo
ilimitado”, quando um mestre, sem ego, pode realmente manipular a realidade das
imagens visualizadas pelos ainda “não-despertos”, ou mesmo a atenção que se lhes
dá, de forma individual ou coletiva.
151
A natureza, enquanto cenário mais primitivo da mente, não poderia de deixar
de ser o modelo inicial da pintura Zen. Semelhante ao princípio taoísta inicial de que
o Céu é dotado de senso moral, a contemplação da natureza é o exercício que traz
o sentimento mais próximo de um princípio moral quando a consciência despertou
no ser humano. E ela é clara e calmante, oposta à escuridão e ao medo.
Deste modo, o Zen promove a observação da natureza e a encontrar nisso o
prazer de se deixar levar a um estado mais consciente, meditativo e criativo. O
afastamento do mundo e a renúncia aos prazeres associados à vida terrena não
deve ser uma “via de fuga da realidade”, embora se observe, atualmente, um tom
pejorativo de alienação e passividade doentia, mesmo para o sentido de “vazio”.
Longe disso, na última ilustração da mesma série acima, o Iluminado volta ao mundo.
(2) Entrando na praça do mercado com mãos serviçais. “Este é o estágio final, o estágio do
3
bodhisattva que está livre para se associar com todos os outros seres e ajudá-los sem limitações. O
mercado se refere ao mundo secular, em contraste com o mundo solitário do templo Zen ou retiro de
contemplação. Ele quer compartilhar de todos os divertimentos e atividades do mundo, não por
desejos ou ligações pessoais, mas a fim de ensinar os outros. “O portão de sua casinha está fechado
e mesmo os mais sábios não podem encontrá-lo”. Seu panorama mental desapareceu por fim. Segue
o seu próprio caminho não tentando seguir os passos de antigos sábios. Carregando uma cabaça (de
vinho), passeia pelo mercado; apoiado em seu bordão, volta para a casa. Ele guia os estalajadeiros e
peixeiros no caminho de Buda”. O mestre Zen, que “sabe” que tudo é Buda, pode agora voltar às
atividade dos estágios iniciais com uma perspectiva diferente. (FADIMAN, 1979, p. 303)
Esta imagem é o estereótipo popular do homem-zen, calmo, sossegado, sem
crise. Não vale a pena sofrer. Enquanto arquétipo, não é coisa desconhecida no
ocidente, lembrando dois exemplos: o “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau
a Alberto Caeiro de Fernando Pessoa. As características da poesia de Caeiro
servem de exemplo clássico ao panorama Zen ocidental, ainda que as convenções
sociais sejam repudiadas. O “guardador de rebanhos” é antimetafísico, nunca
152
introspectivo e rendido à ordem natural das coisas cujo único sentido é existir, e
Deus está apenas nessa simplicidade. Aproximando-se do cristianismo, há muito da
controversa entrega à “não-ação” em Mateus 6: 26-29: “Olhai para as aves do céu,
[...]. Olhai para os lírios do campo...[...]”. Como na arte, é uma opção resumirmos
esta sensação como sendo Zen, não obstante com raízes largas no oriente.
Os sábios do Tao e do Zen [...] eram verdadeiros artistas da vida, e o Tao é
a arte de viver, a arte do wu wei, da ação através da não-ação. A pessoa é
o artista, seus instrumentos, ou seja a tela, o pincel, tom e a espátula são
seu corpo, seus sentidos e seus sentimentos. A vida com as suas ações é a
arte executada e deixar acontecer as coisas torna-se a obra. (FISCHER,
1999, p. 117)
Na pintura abaixo, o título da obra poderia ser apenas “mestre dormindo”, mas
a chamaria de também de ensō. O ser humano, enfim, é um ensō, dormindo,
Desperto (Iluminado), talvez sonhando...
(3) Zhuangzi sonhando que era uma borboleta (Ɣ¯Ɲ). Data e autor desconhecidos. Ou “Uma
4
borboleta sonhando que era Zhuangzi”, segundo Thomas Cleary.
4. Observações finais
Tomando os princípios do Zen como meios para uma interpretação inicial das
artes tradicionais do Japão, considera-se que suas concepções podem se expressar
de várias formas com diferentes meios diretamente ou não ligados ao Zen. Aqui, por
exemplo, apenas se focou o ensō na pintura à nanquim valorizada pelo Zen em
traços essenciais, simples e espontâneos. Transpõe-se um valor já dado à caligrafia
para a caricatura humana e à abstração sob a concepção de Vazio da realidade.
Deve ficar claro que embora o Zen possa até ser proprietária original de alguns
princípios artísticos, a importância japonesa dada ao sentido do Vazio, ajuda a
153
compreender o Zen, sua arte no Japão e algumas de suas peculiaridades em várias
artes.
Notas
1
Kōan é uma palavra ou frase que desafia a lógica e condicionamentos adquiridos por hábitos mentais
repetitivos. Estes hábitos foram, num primeiro momento, importantes para a adaptabilidade e sobrevivência, mas
também pesa no processo da imaginação e no inconsciente individual e coletivo. Os kōan devem quebrar uma
forma habitual de pensar e permitir a soltura da mente para estados mais sutis e não objetivando em si a
resposta ou a solução para o kōan. Os sagrados ensinamentos e a poesia são um.
2
Normalmente se evita misturar os deuses do hinduísmo com os deuses do xintoísmo, e que só
aqueles estariam presos à Samsara. Embora se igualem como deuses de temperamento humano, para as
aristocracias asiáticas, descendentes dos seus deuses, foi mais adequado vê-los como Budas ou simplesmente
ignorar qualquer discussão teológica sobre isso.
3
Bodhisattva em sânscrito (bosatsu, em japonês) significa “corpo iluminado pela compaixão absoluta”.
Na hierarquia budista, é um estágio anterior à iluminação para então ser um Buda. Popularmente, há este tipo de
representação extremamente simplória com uma grande barriga e com uma cabaça de vinho dependurada nos
ombros.
4
Thomas Cleary (nascido em 1949) é um prolífico autor e tradutor de clássicos budistas, taoístas,
confucionistas e muçulmanos, e da Arte Chinesa. Ele vive em Oakland, Califórnia, Estados Unidos.
Referências Bibliográficas
Livro
Katō, Shuichi. Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. Trad. Neide Nagae e Fernando
Chamas. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião Oriental. São Paulo: Licença editorial para o
Círculo do Livro por cortesia da Editora Vozes da Obra Oestliche Religion, a segunda parte
de Zur Psychologie estlicher und östlicher religion de 1963.Trad. Pe. Dom Mateus Ramalho
Rocha, O.S.B. Petrópolis: Vozes, 1986.
YUTANG, Lin. The Chinese Theory of Art. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1967.
FISCHER, Theo. Wu Wei, A Arte de viver o Tao. Trad. Ulrike Pfeiffer. São Paulo: Árvore da
Terra, 1999.
FADIMAN, James e FRAGER, Robert. Teorias da Personalidade. Coord. Da trad. Odette
de Godoy Pinheiro. Trad. Camila Pedral Sampaio, Sybil Sofdié. Parte II: Introdução às
Teorias Orientais da Personalidade: Zen-budismo, pp. 286-315. São Paulo: Harper & Row
do Brasil, 1979.
Dissertação
CHAMAS, Fernando Carlos. A Escultura Budista Japonesa. A Arte da Iluminação,
Tomos I e II. Orientação da Profa. Dra. Madalena Hashimoto Cordaro. Dissertação de
Mestrado no Programa em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em
<http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8157/tde-09112007-150941/>. Acesso em: 24
jan. 2014.
Imagens
(1-2) (FADIMAN, 1979, pp. 300-3).
(3) Zhuangzi sonhando que era uma borboleta (Ɣ¯Ɲ).
154
Ficheiro: Zhuangzi-Butterfly-Dream.jpg. Altura: 296 pixels. Largura: 384 pixels,
tamanho: 42 kB, tipo MIME: image/jpeg. 96 dpi. 24 BIT. Compactado.
Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Zhuangzi-Butterfly-Dream.jpg>. Acesso
em: 30 jan. 2014.
Fernando Carlos Chamas
Graduação em Letras e Mestrado em Escultura Budista Japonesa no Programa de Língua,
Literatura e Cultura Japonesa pela FFLCH-USP, com a orientação da Profa. Dra. Madalena
Hashimoto, e Doutorando em Arte Zen-Budista no Programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais pela ECA-USP, com a orientação do Prof. Dr. Marco Giannotti.
155
MEMÓRIA CULTURAL NA GÊNESE DA ARTE ISLÂMICA
Katia Maria Paim Pozzer - UFRGS
RESUMO: A presente comunicação tem por objetivo discutir a transmissão da memória
cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições
mesopotâmicas na região do Oriente Próximo, delimitada aos seus principais componentes
arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, englobando os seus componentes
formais e iconográficos. Partimos do pressuposto de que a arte islâmica está enraizada em
tradições culturais que remontam à babilônios e assírios e que estes fatores renovam-se e
permanecem ativos como princípios desta arte. O estudo da transmissão das informações
estéticas por meio de conexões culturais de longo curso fundado por Aby Warburg vê que a
transmissão de elementos de intensidade expressiva, juntamente com a linguagem das
supertições, da estética, das convicções e da dinâmica cultural, conformam o fundo literário,
artístico e religioso de cada cultura e de como isso é vivido em um dado ambiente cultural. É
a partir desta concepção que iremos empreender a análise das formas da arte e da
arquitetura islâmica no ambiente do Oriente Próximo, isto é, de uma história da memória
cultural da região.
Palavras-chave: História da Arte Oriental, Arte Islâmica, Arte do Oriente Próximo, Memória
Cultural.
RÉSUMÉE: Cette communication vise à discuter la transmission de la mémoire culturelle
dans la genèse et le développement de l'art islamique, en vue des traditions
mésopotamiennes dans la région du Proche-Orient, bordé de ses principaux éléments
architecturaux: mosquée, madrasa et palais, englobant leur composantes formelles et
iconographiques. Nous supposons que l'art islamique est enracinée dans les traditions
culturelles remontant aux Babyloniens et les Assyriens, et que ces facteurs sont renouvelés
et restent comme principes actifs de cet art. L'étude de la transmission de l'information
esthétique par des liens culturels fondées sur de longues distances par Aby Warburg voit
que la transmission des éléments d'intensité expressive, avec le langage de superstitions, de
l'esthétique, de la croyance et de la dynamique culturelle, forment le fond littéraire, artistique
et religieux de chaque culture et comment elle est vécue dans un environnement culturel
particulier. C'est à partir de ce concept que nous allons entreprendre l'analyse des formes de
l'art et de l'architecture dans l'environnement islamique du Proche-Orient, c'est à dire, une
histoire de la mémoire culturelle de la région.
Mots-clés: Histoire de l'Art Oriental, Art Islamique, Art du Proche Orient, Mémoire Culturelle.
A presente comunicação visa apresentar as linhas gerais do projeto de
pesquisa em fase inicial e que tem por objetivo investigar a transmissão da memória
cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições
mesopotâmicas na região do Oriente Próximo. A temática proposta é fruto de nossa
formação em História Antiga Oriental e das últimas pesquisas que vimos realizando
no campo da história da arte oriental, a saber, da relação entre a guerra e a religião
156
nos relevos parietais assírios (séculos VII-VI AEC). Partimos do pressuposto de que
a arte islâmica está enraizada em tradições culturais que remontam à babilônios e
assírios, e que estes fatores renovam-se e permanecem ativos como princípios
desta arte.
O estudo tem, ainda, como objetivo, a produção de material didático, visual e
escrito, para o ensino de graduação e pós-graduação destes temas. Visa também a
constituição de uma iconoteca e sua disponibilização, bem como a produção de
textos, em língua portuguesa, para o estudo desta temática como uma forma de
contribuir para preencher uma lacuna editorial neste campo do conhecimento no
país.
As imagens existem sobre suporte material, são produtos históricos de seu
tempo, feitos de matéria e transmitidos como patrimônios, acervos e linguagens. A
memória cultural é compreendida como memória estética, sendo realizada em uma
linguagem na qual há carga expressiva depositada nos artefatos, que, por sua vez,
produzem tradições idiomáticas. Quando afirmamos que arte é mimese, que cultura
é imitação, pressupomos que existem modelos e transformações, que a memória
cultural islâmica mimetisa formas e conceitos mesopotâmicos e romanos, entre
outros, e que esta transmissão mimética da informação é formadora de tradições
culturais.
O passado é uma construção social marcada pela necessidade de sentido e
de referências de um dado presente. O passado não existe no estado natural, ele é
uma criação da cultura. Cultura e sociedade são as condições fundamentais da
humanidade para a produção de identidade, seja ela individual ou coletiva, e esta
identidade é reflexiva, pois ela se dá através da comunicação e da interação com o
outro. Na medida que a identidade pessoal se forma na relação do indivíduo com o
outro, é necessário que exista um mundo de sentido simbólico comum, que é a
própria cultura. Mas para o homem se adaptar ao mundo de sentido simbólico da
cultura, com suas regras e significações, deve existir um distanciamento entre o
mundo e si próprio. Assmann (2010, p. 123-4) afirma que: "A cultura institucionaliza
esta distância", e cita Warburg: "O estabelecimento consciente de uma distância
entre si mesmo e o mundo exterior pode ser caracterizada como o ato fundamental
da civilização humana".
157
Como assinala o teórico alemão Jan Assmann (1995, p. 132), formulador do
conceito de memória cultural:
O conceito de memória cultural compreende o corpo reaproveitável de
textos, imagens e rituais específicos de cada sociedade em cada época,
cujo cultivo serve para establizar e conduzir a auto-imagem daquela
sociedade. Sobre tal conhecimento coletivo em sua maior parte do passado,
cada grupo baseia sua consciência de unidade e particularidade.
Podemos estender essas condições culturais da imagem também ao mundo
islâmico, com destaque para os elementos arquitetônicos que, localizados em
templos e palácios, supõem rituais que envolvem os processos dinâmicos do tempo
e que implicam em perceber a natureza do discurso, compreendendo a
fenomenologia da imagem dentro dessa cultura.
Nessa fenomenologia, que enuncia e produz imagens, temos o poder
religioso e político, de reis guerreiros associados ao divino, como sujeitos desse
discurso monumental e com a autoridade para realizar o disciplinamento dos corpos
e dos espaços. Foucault (1984, p. 154) explicita essa questão quando afirma que:
uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto
dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas),
mas para permitir um controle interior (...); a de uma arquitetura que seria
um operador para a transformação dos indivíduos, (...) e reconduzir até eles
os efeitos do poder.
Na cultura islâmica, o espaço é produzido para que a mente seja dirigida para
a cidade de Meca; criam-se artifícios de ordenamento para que o "centro do mundo"
presida o espaço e esse efeito demiúrgico terrificante dos poderes sagrados e de
seu mediador, o rei, se concentra na estrutura arquitetônica.
O estudo da memória cultural ou da transmissão das informações estéticas
por meio de conexões culturais de longo curso fundado por Aby Warburg vê que a
transmissão de elementos de intensidade expressiva, juntamente com a linguagem
das supertições, da estética, das convicções, e da dinâmica cultural, conformam o
fundo literário, artístico e religioso de cada cultura e de como isso é vivido em um
dado ambiente cultural (Didi-Huberman, 2013). Para Warburg (2013), há uma longa
história iconográfica que adquiriu formas de um poder explicativo superior e essas
formas são transformadas no tempo e no espaço. Existem vários cenários nos quais
um signo ou um símbolo, um conceito, uma ciência, um conhecimento são
158
transformados por cada civilização. Em sua teoria da memória cultural, Warburg
(2013, p. 453) diz que a forma específica que concentra esse poder manifesto é o
que ele chama de pathosformeln, formas carregadas de paixão ou expressividade.
Um dos elementos que ele investiga é a construção de gestos, fórmulas e símbolos
que, por sua qualidade expressiva, se tornam componentes que carregam afetos,
ideias fundamentais para a arte e que irão explicar os principais cânones da
expressão artística, como a melancolia, o amor, a potência, a vida amorosa, objetos
piedosos, poder, etc. Estas formas são também indícios de cosmologias complexas,
expressando as linguagens e a condição histórica das culturas. Estes modelos são
aperfeiçoados em uma linguagem cuja principal finalidade é realizar este poder
expressivo, tornando este ícone inteligível indiferentemente do idioma, da época e
do local. O que se refere ao ícone aqui se aplica às estruturas espaciais e seus
ornamentos, igualmente relevantes como expressão estética da cultura.
Para Warburg, o que interessa é como o idioma da arte se elaborou ao longo
dos milênios, como ele se constituiu enquanto linguagem, repertório de temas e de
índices, e de como esses ícones se estabeleceram como forma de energia
expressiva. Na sua grande obra, não finalizada, o Atlas Mnemosyne, ele passou a
aproximar imagens, identificando fractais que estabeleciam uma similaridade e, a
partir disso, ele abria uma enquete: se houvesse similaridade visual, haveria uma
chance explicativa. Warburg (2010, p. 23) identificou no Painel 1 do Atlas
Mnemosyne as concepções orientais mesopotâmicas como a raiz profunda de um
legado cultural que ele chamou de "Projeção do cosmos sobre uma parte do corpo
para fazer vaticínios. Astrologia oficial babilônica. Prática originária do Oriente".
John Lundquist (2000, p. 74), em seu estudo sobre o legado babilônico na
arte europeia, mais especificamente sobre o estilo românico na escultura,
reconheceu que:
Temas sumero-babilônicos como heráldicas com pares de animais
entrelaçados, grifos e outros monstros (...) aparecem em inúmeras obras
arquitetônicas, sobretudo nas catedrais românicas. (...) A rota de
transmissão deste motivos é através dos texteis islâmicos que adotaram
motivos vindos da arte sassânida, os quais reutilizaram os originais sumerobabilônicos. Os escultores românicos receberam estas influências de
Bizâncio e da Síria e as reinterpretaram a partir de designs texteis em
relevos esculpidos.
159
Zainab Bahrani (2003, p. 121) afirma que o sistema de representação assíriobabilônico é concebido como uma cadeia pluridimensional de aparências possíveis,
isto é, a representação é entendida como uma parte do real. Para assírios e
babilônicos, a narrativa verbal e a narrativa visual não estão separadas, seu
significado está imbricado e possuem uma relação de interdependência em um
mesmo sistema simbólico. Assim, a arte islâmica, tributária da cultura antigo-oriental,
pode ser estudada como uma faceta de um amplo sistema simbólico. Neste sentido,
o presente projeto de pesquisa pretende contribuir para a existência de estudos
neste campo do conhecimento (Cline; Graham, 2012).
Breedekamp e Diers, no prefácio à edição dos estudos de Aby Warburg (2012,
p. xviii) afirmam que "A iconologia de cunho warburguiano parte da forma das obras
de arte e da migração dos motivos pictóricos, mas desenvolve a compreensão
dessas figurações no contexto de uma combinação precisa e ampla da história da
cultura". É a partir desta concepção que iremos empreender a análise das formas da
arte e da arquitetura islâmica no ambiente do Oriente Próximo, isto é, de uma
história da memória cultural da região, em seus principais componentes
arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, em suas linguagens e efeitos
sociais históricos.
Em sua obra La Mémoire Culturelle, Jan Assmann (2010) discute a questão
da construção social do passado e retoma as teses de Maurice Halbwachs, que
defendia que a memória dependia de pressupostos sociais, nos quais a memória
individual só poderia se conservar dentro de um contexto de memória coletiva. Isto é,
que a coletividade determina a memória de seus membros, ou seja, que a memória
de um indivíduo se elabora dentro de um processo de comunicação entre os grupos
sociais. Maurice Halbwachs (1925, p. 240) explica que as ideias devem tomar uma
forma sensível antes de chegar à memória e que existe uma ligação inextricável
entre conceito e imagem:
Todo personagem e todo fato histórico, quando ele penetra nesta memória
e se transpõe em um ensinamento, em uma noção, em um símbolo; ele
recebe um sentido; ele torna-se um elemento do sistema de ideias da
sociedade. E deste confronto entre os conceitos e as experiências nasce o
que chamamos de figuras-lembranças. Elas se caracterizam mais
especificamente por três coisas: a relação concreta ao tempo e ao espaço,
a relação concreta a um grupo e a reconstrutividade como processo
autônomo.
160
Assim, estas figuras-lembranças, que podem se referir tanto a formas icônicas
quanto a narrativas, têm materialidade em um espaço e um tempo determinados,
mas não se restringem a um espaço geográfico e histórico estabelecido. No domínio
espacial, podemos incluir o mundo dos objetos, a cultura material que nos cerca,
bem como as estruturas arquitetônicas, os códigos urbanísticos e todas as formas
de ordenar e disciplinar a expressão do poder no espaço e nos corpos mobilizados
por estas estruturas. Já a temporalidade pode ser aquela ligada ao calendário de
festas civis ou religiosas, especialmente, no caso islâmico, a oração e a
peregrinação, que impõem calendários diários e de vida dirigidos ao centro
geográfico e cultural da fé, Meca, e a suas conexões locais, as mesquitas. Ademais,
nas mesquitas há um cenário mimético que inclui o local em uma referência maior, o
universo das mesquitas e dos grandes centros de peregrinação. Nisto tudo há
fenômenos que refletem um tempo vivido coletivamente e se realizam como
memória cultural expressa em acervos de arte e arquitetura. Um sistema simbólico
comum permite a formação da identidade coletiva, isto é, a consciência de
pertencimento a um grupo social, que depende de um saber e de uma memória
comuns. É possível incluir neste sistema simbólico não só a linguagem, mas também
"ritos, motivos e ornamentos, monumentos, imagens. Tudo pode tornar-se signo
para codificar este caráter comum." (Assmann, 2010, p. 125).
Além disso, é necessário entender a produção material da arte como
resultado de trabalho, como na produção de artefatos, de manipulação de matéria,
do uso de linguagens, de formas de mecenato, de aquisição, de transmissão, de
valorização e conservação da arte. Enfim, é preciso entender todo o ciclo que
produz materialmente o fenômeno da arte.
O principal objetivo deste projeto é investigar a transmissão da memória
cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições
mesopotâmicas no território muçulmano da Mesopotâmia, da Síria-Palestina, do
Egito, da Ásia Menor, da Pérsia até o Indus, delimitada aos seus principais
componentes arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, englobando todos
os seus componentes formais e iconográficos. O recorte cronológico do estudo está
situado entre os grandes impérios mesopotâmicos da Babilônia e da Assíria até o
século XV, que marca o advento do império otomano. (Grabar, 2008, p. 18).
161
O primeiro ponto para uma investigação warburguiana da história da cultura é
entender quais são os elementos constitutivos mais relevantes no espaço, nas
linguagens, na tradição científica, artística e religiosa. Isso permite que se encontre
os fenômenos de troca formativos em todas as artes do Oriente Próximo. É preciso
identificar como cada patrimônio é transformado e levado a uma determinada forma,
com um sentido completamente diferente daquele que foi criado. Assim é preciso
realizar uma análise comparativa e uma análise formal de ícones presentes na
gênese e no desenvolvimento da arte islâmica.
Para a análise das imagens utilizaremos, de forma complementar, a
metodologia proposta na obra de Erwin Panofsky (1995, p. 19), cujo postulado divide
o processo de análise visual em iconografia e iconologia, com três operações
distintas: descrição pré-iconográfica; análise iconográfica e interpretação iconológica.
Entendemos iconografia como o estudo do tema ou assunto, e iconologia como o
estudo do significado do objeto. A iconografia é o tema e o significado das obras de
arte em contraposição a sua forma e iconologia é o estudo de ícones ou de
simbolismo na representação visual.
As operações de pesquisa descritas abaixo devem ser realizadas em um
mesmo processo orgânico e indivisível (Panofsky, 2007, p. 64-65):
1ª operação: realização da descrição pré-iconográfica, isto é, a enumeração
dos motivos artísticos para cada temática. Devem-se analisar séries de imagens e
não imagens isoladas. Motivos artísticos são as formas puras (linha, cor, volume)
que representam objetos naturais (seres humanos, animais, plantas, casas,
ferramentas, etc.).
2ª operação: realização da análise iconográfica, ou seja, identificação de
imagens, estórias e alegorias. Isto é, a combinação de motivos artísticos com
assuntos/temas e conceitos. Motivos artísticos portadores de significados são
imagens, e as combinações de imagens criam estórias e alegorias. Neste passo,
devem-se identificar estas combinações, descrevê-las e classificá-las.
3ª operação: realização da interpretação iconológica, ou seja, a descoberta e
a interpretação dos valores simbólicos nas imagens. A iconologia é uma iconografia
162
que se torna interpretativa. Devemos nos familiarizar com aquilo que os autores das
representações liam e sabiam, e isto deve ser feito a partir de fontes literárias.
Mas, Panosfky (2007, p. 63) alerta que é preciso corrigir nossa experiência e
nosso conhecimento para cada etapa, compreendendo que, sob diferentes
condições históricas, objetos e fatos foram expressos de uma determinada maneira
(história dos estilos); que temas e conceitos foram expressos por objetos e fatos
(história dos tipos); e que as tendências gerais e essenciais da mente humana foram
expressas por temas específicos e conceitos (história dos símbolos).
As fontes documentais utilizadas neste estudo serão obtidas através de
publicações da área, referenciadas e/ou disponibilizadas nos sites de importantes
museus em diversos continentes. Além destes, contamos com o acervo fotográfico
pessoal constituído nos últimos anos em visitas técnicas a museus, reservas
técnicas e sítios arqueológicos.
Para
exemplificarmos
os
primeiros
indícios
dessa
herança
cultural
apresentamos a seguir dois elementos: um, arquitetônico; outro, motivo decorativo,
presentes na arquitetura e na arte islâmica, mas oriundos de tradições artísticas
anteriores, a saber, mesopotâmica e romana.
Fig. 1 - Plano Hipostilo da Mesquita do Profeta Maomé
Construída em 710/AH 91.
Medina, Arábia Saudita.
163
Fig. 2 - Plano da Fortaleza Romana
Construída no início século I EC.
El-Kastal, Arábia Saudita.
Fig. 3 - Rosácea
Detalhe da Via Processional de Babilônia
7m de altura; 196m de comprimento.
605-562 AEC. Nabucodonossor II
Tijolos vitrificados.
Museu do Pérgamo, Berlim, Alemanha.
164
Fig. 4 - Rosácea
Palácio Qasr al-Hayr al-Gharbî.
Elemento de friso de uma sala do andar superior.
Primeiro terço do VIII séc.
Madeira esculpida e pintada.
H: 0,280m; L: 0,230m; Esp: 0,60m.
Museu de Damasco, Síria.
A figura 1 apresenta o plano hipostilo da primeira mesquita construída sob as
bases da antiga residência de Maomé na cidade de Meca, assim como o plano da
fortaleza romana inscrita na figura 2. Ambos os prédios são orientados nos pontos
cardeais e têm plano quadrangular com pátio interno. Temos aqui um exemplo de
ordenação do espaço com similitudes a serem exploradas.
O segundo exemplo trata de motivo decorativo floral, tido como um clássico
na arte do período islâmico. Na figura 3 temos um detalhe das rosáceas em tijolos
esmaltados presentes na Porta de Ištar e na Via Processional de Babilônia, cujos
imponentes vestígios arqueológicos encontram-se no Vorderasiatisches Museum, no
complexo muséal do Pérgamo, em Berlim. E este mesmo motivo aparece (figura 4),
com grande semelhança, em um detalhe do friso de uma das salas do Palácio Qasr
al-Hayr al-Gharbî, que teria sido contruído pelo califa al-Walid (705-715 EC) da
dinastia omíada, no deserto sírio.
Neste sentido entendemos que o estudo de ícones, símbolos e estruturas
presentes na arte islâmica é representativo de uma memória coletiva, de uma
memória cultural que necessita ser explicitada, desvendada e que assim, possa
explicar sua gênese e seu desenvolvimento.
165
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Katia Maria Paim Pozzer
Concluiu o doutorado em História - Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne) em 1996 e o
Pós-doutorado na Université de Paris X - Nanterre em 2011. É Professor Adjunto do Curso
de História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2011 atuou como
Pesquisador Visitante no Grupo de Pesquisa Histoire et ARchéologie de l’Orient Cunéiforme
(HAROC), na Maison René-Ginouvès, Arqueologia e Etnologia - CNRS, Université de Paris I
- Panthéon-Sorbonne e Université de Paris Ouest-Nanterre - La Défense, na França. Atua
na área de História da Arte Antiga e Medieval, com ênfase em História Arte Oriental e
História Antiga Oriental. http://lattes.cnpq.br/9408053472324588
167
LINHA E EXPRESSÃO NA CALIGRAFIA JAPONESA
Rafael Tadashi Miyashiro - UNICAMP
RESUMO: Entre os vários clichés relacionados à cultura japonesa, o que relaciona um
suposto “zen” à escrita talvez seja o mais presente. Imaginamos a caligrafia como algo que
remete à plenitude, à iluminação, a algo estático.No entanto, a caligrafia japonesa –
conhecida como shodô e sho, especialmente – supera, em muito tal imagem: ela é dinâmica,
viva e é uma arte da linha. Foi especialmente depois da II Guerra Mundial, no Japão, que
calígrafos começaram a explorar o significado dessa linha, experimentando materiais,
repensando a tradição, e propondo outros rumos, no que ficou conhecido como a caligrafia
de vanguarda, o zen’ei’sho. Possivelmente, o legado principal desse movimento foi o de
reafirmar a caligrafia japonesa como expressão pessoal e artística. Este artigo procura
relacionar as contribuições do zen’ei’sho, contextualizando-o, para, depois procurar, na
caligrafia japonesa praticada em São Paulo, resquícios e influências desse movimento no
trabalho dos seus praticantes.
Palavras-chave: caligrafia japonesa, shodô, sho, expressão, linha
ABSTRACT: Among cliché imaginary that involves Japanese culture, the one relates “zen”
to its writing is the most common. We imagine calligraphy as something that is filled with
fullness, enlightment, stillness. However Japanese calligraphy – known as sho and shodô –
is bigger than this: it is dynamic, alive and an art of line. In Japan, specially after the World
War II, calligraphers start seeking the meaning of line, making experimental works, rethinking
tradition e proposing other paths, in what has been known as zen’ei’sho. The main legacy of
this trend seems to be the rethinking of Japanese calligraphy as personal and artistic
expression. This paper intends to look at zen’ei’sho, by contextualizing it to, later, seek in
Japanese calligraphy practiced in São Paulo its vestiges and influences in their practicing.
Keywords: Japanese calligraphy, shodō, sho, expression, line
Considerado como o país que concentra o maior número de descendentes de
japoneses vivendo fora do Japão, o Brasil presenciou nos últimos anos uma
popularização de eventos ligados à cultura japonesa, em cidades que concentram
esses descendentes, como São Paulo. Nessa cidade, por exemplo, o número de
festivais e festas ligados à cultura nipônica são altos, promovidos por associações
que reúnem japoneses e descendentes com diferentes interesses: kenjinkai,
associações de comerciantes, organizações nipo-brasileiras etc1. Chama atenção,
também, que haja interesse por essa cultura por não-descendentes, que não apenas
frequentam esses eventos, mas também propagam e difundem os domínios do
manga, da culinária japonesa, do butoh, da cerimônia do chá etc. A cultura japonesa
168
tornou-se pop, rompendo os domínios étnicos e misturando-se a outros interesses
na cultura brasileira.
Ao mesmo tempo em que esse interesse é admirável, a presença de certos
clichês ligados ao Japão é visível em alguns espaços onde essa cultura nipônica se
manifesta. Um rápido passeio pelo bairro étnico Liberdade, em São Paulo, revela o
comércio de camisetas e chaveiros escritos em japonês, com dizeres como
“felicidade”, “pureza”, “amor”, associando à escrita japonesa estados e sentimentos
de bem-estar. Estar “zen”, é uma frase bastante utilizada, e pode significar estar em
um estado de “graça” e “iluminação”, em que não se é afetado por nada.
Frequentemente, esse “zen” se associa à cultura japonesa e ao seu imaginário,
cristalizando um sentido que não corresponde a sua natureza.
O zen é uma das seitas (escolas) do budismo. Ele foi introduzido no Japão,
vindo da China, no final do século XII, depois de várias tentativas frustradas de
incursão, por monges que tinham estudado na China. O termo zen deriva do verbo
zazen, que significa meditar. Através do zazen alcança-se o satori (iluminação) e
vale ressaltar que o modo de pensar do zen se opõe ao pensamento ocidental
dominante, racional e dualista: “Exclusão e limitação (características do pensamento
dualista) restringem a liberdade e a unidade” (WESTGEEST, 1997, p. 12). A relação
com a natureza é valorizada, pois a consciência de si mesmo se expande à ideia de
que o ser humano também é parte da natureza (IBIDEM, 1997).
É possível que algumas imagens presentes no imaginário coletivo, como a
conhecida reverência às pessoas (no contato social e nos esportes de combate, por
exemplo), uma suposta boa educação relacionada à etnia nipônica, ou mesmo
aquelas propagadas pela mídia (como o professor de artes marciais no filme Karate
Kid, de John G. Avildsen, feito em 1984), ajudem a manter essa ideia do “zen” da
imaginário com a cultura japonesa.
Isso obscurece, no entanto, a ligação mais profunda que as artes podem ter
com o zen. Helen Westgeest (1997), cita algumas conexões entre o zen e as artes: o
vazio e o nada; o dinamismo; o espaço ao redor e indefinido; a experiência direta do
aqui e agora; e o não-dualismo e o universal. Na caligrafia japonesa algumas dessas
características são bastante presentes, e, pode-se dizer, foram incorporadas ao
169
longo dos séculos, sem que haja qualquer menção explícita ao zen. Por exemplo, a
caligrafia japonesa valoriza o momento presente, é uma arte que não admite o
retoque, considerando este intervalo único e singular – seu praticante deve estar
comprometido com o seu fazer, consciente do seu corpo e das relações que esse
trava com o ambiente, junto com pincel, tinta, papel e o espaço em que está sendo
feito, em relações que são complementares, mas nunca dualistas. A não dualidade
também está presente nas relações entre linha e espaço: a linha ativa o branco,
valorizando a composição e o branco dá profundidade à linha.
Uma arte com essas características nunca poderia ser estática, pois a
caligrafia depende do modo como o praticante lida com elas. Percebe-se que cada
um, com suas singularidades e idiossincrasias, dará um toque pessoal à(s)
palavra(s) que escreve. “Há uma crença no Japão e na China que a caligrafia de
uma pessoa reflete ou revela a sua personalidade (isto é conhecido sho wa hito nari,
literalmente ‘a caligrafia é como a pessoa” (NAKAMURA, 2007, p. 83). Se a caligrafia
é a pessoa, isso fica visível, especialmente, pela estrutura da sua linha.
Essa linha não acontece naturalmente: são necessários anos de prática, em
que o calígrafo vai corporificando o conhecimento da caligrafia, nos estudos de
clássicos conhecido como rinsho, e se fundindo à própria história da caligrafia,
desenvolvendo seu trabalho, sua linha. Mas é ela – a linha expressiva – que foi a
grande protagonista da história da caligrafia japonesa no século XX, sendo
revisitada, repensada, ruminada e ampliada. Ela foi o grande motor que transformou
o mundo do shodô, especialmente a partir do Pós-Guerra.
Linha e expressão na caligrafia
A reverência à linha é remota – vem da caligrafia chinesa, e pode ser
encontrada em escritos antigos chineses, tais como os ensinamentos atribuídos a
Lady Wei2, professora de Wang Hsi-chi3, no século IV:
A escrita de alguém que tem a força do pincel “tem osso”e a escrita de
quem não tem a força “tem carne”. A escrita que tem osso com pouca carne
é chamada de “muscular”; a escrita que tem carne e pouco osso é chamada
banha de porco. A escrita que tem muita força e é rica em músculo é
4
sagrada; a escrita sem força e sem músculo é doente . Cada uma é usada
de acordo com a situação (DRISCOL e TODA, 1934: 45).
170
Na interpretação desse texto, Christine Flint Sato (2001) diz que a linha
deveria ser vista como algo tridimensional, escultural, tendo propriedades do corpo
humano que revelam uma estrutura que não é apenas superfície, mas profunda, em
diversas camadas, como osso, músculo, carne e pele. Essa linha, com essa
profundidade, corta o branco do papel, interagindo com ele. A linha energiza o
branco (ibidem, 2001, p. 24) e também é responsável por conduzir o trabalho de
caligrafia:
[…] o calígrafo se preocupa principalmente com o ritmo da linha. É através
desse ritmo que a energia da linha é controlada. Enquanto o trabalho está
sendo feito, o ritmo minuciosamente penetra os movimentos do
corpo/braço/pincel. Torna-se uma base inconsciente interior que o permite
escrever com liberdade. A caligrafia não é uma repetição mecânica ou
viciada de pinceladas, mas um conjunto que é vivo e que responde aos
impulsos criativos do calígrafo no momento (IBIDEM, 1999, p.12).
Foi a busca dessa caligrafia “viva”, expressiva, que pautou a caligrafia
japonesa na primeira metade do século XX. Entre o século XIX e XX, o Japão
passou por profundas transformações econômicas e sociais, sobretudo no período
Meiji (1868-1912) – em que seus portos foram abertos para o comércio com nações
estrangeiras, depois de anos de reclusão, e ocorreu um interesse pelo “de fora”, com
expedições ao redor do mundo – e com políticas com o intuito de modernizar o
Japão. Isso gerou discussões tendo como objeto a validade da cultura japonesa
tradicional e suas manifestações, como a caligrafia, e sua relação com a
modernidade.
É importante contextualizar essa prática nesses anos: a caligrafia do fim do
século XIX e início do XX é aquela que começa a viver o seu declínio enquanto uma
arte “utilitária”, perdendo sua relevância ao lápis e às canetas, e a sistemas de
impressão como a tipografia, por exemplo, provocando uma questão quanto a sua
identidade (Nakamura, 2006, p.55). Também é nesse período que o mundo da
caligrafia – shodôkai, em japonês – atual começou a tomar forma: lentamente vão se
organizando as exposições de caligrafia, bem como, na década de 1920, começam
a ser criadas as primeiras associações de caligrafia (Ibidem, 2006), dois alicerces
fundamentais no seu presente.
Hidai Tenrai (1872-1939) é figura chave no período. Sua visão de caligrafia
diferia daquela dominante na caligrafia, na qual os alunos aprendem a partir do
171
tehon
(modelo)
do
sensei.
Esse
calígrafo
permitia
que
seus
discípulos
reproduzissem a caligrafia diretamente a partir dos clássicos e acreditava que a linha
caligráfica deveria ter força e ser interpretada. Ele cunhou o termo hitsu i, o “espírito
do pincel”. Era através desse espírito, pelo qual o calígrafo se expressava, que se
via se o trabalho funcionava ou não (Sato, 2001, p. 20). Tenrai acolheu discípulos
nos anos finais da sua vida, e vários deles tiveram um papel de destaque no pósGuerra, estabelecendo a caligrafia japonesa moderna.
Para Hidai e seus discípulos, a caligrafia era um meio de expressão pessoal
através da linha. Isso significava que, mais importante que a leitura de uma caligrafia
era a sua expressão.
O período após a Segunda Guerra Mundial é um tempo em que as
discussões sobre a caligrafia, como a legibilidade e a expressão, estiveram bem
acirradas. Dois exemplos são frequentemente citados quando se reflete sobre o
gendaisho, a caligrafia moderna: o trabalho Den no variation “variação do raio”,
mostrado numa exposição de arte de 1946; e o de Ueda Sokyu, Ai.
Lembrando o conselho de seu pai que deveria voltar aos clássicos sempre
que estivesse preso com novas ideias, [Hidai] Nankoku subitamente
lembrou de caracteres chineses antigos listados no dicionário de Ku-Wen.
Ainda que essas linhas ou pinceladas tenham origem em palavras, elas não
podem ser identificadas como tal. [...] Não foi exibido em nenhuma
exposição de caligrafia [apenas numa exposição de artes], mas atraiu uma
considerável atenção dos calígrafos. Levantou uma discussão a se o
trabalho deveria ser considerado caligrafia ou não (NAKAMURA, 2006: 67).
172
Figura'01:'Den'no'Variation'(1945)'e,'ao'lado,'em'negativo,'exemplos'dos'caracteres'antigos'da'palavra'
den.'(Fonte:'Nakamura,'2006).'
Já o trabalho de Ueda Sokyu foi submetido à Exposição Nitten em 19515. O
júri da exposição recusou o trabalho, alegando que, embora o título fosse Ai, “amor”,
o trabalho lembrava shin, “mercadoria”, e deveria ser nomeado como tal. Ueda se
recusou, pois, na verdade, a inspiração vinha de ver o neto aprendendo a engatinhar.
Embora o Nitten se fechasse a trabalhos de vertente mais moderna, uma
outra exposição, surgida em 1948, patrocinada pelo Jornal Mainichi, no entanto,
acolheu esses trabalhos, e constitui, até hoje, um importante espaço de divulgação
da caligrafia japonesa contemporânea.
Cabe notar que os exemplos dados mostram ideogramas que se afastaram
da sua representação mais trivial, flertando com a arte abstrata, num estilo que hoje
é conhecido como zen’ei’sho, ou caligrafia de vanguarda moderna; mas
desenvolveram-se outros estilos, como o kana com tamanho maior; a representação
de textos modernos kindai’shibun’sho, em oposição aos poemas clássicos e sua
forma de representação tradicional; o ichiji’sho, escrita expressiva de poucos
caracteres; e o dai’ji’sho, cujos formatos tem grande dimensão.
A exploração de materiais como a tinta se intensificou, como o uso da tinta
tamboku, a princípio reservada para o luto, em trabalhos de expressão artística. Hoje
é comum o uso de tinta, para treinamento, vendida pronta, em garrafas – mas essa
é uma invenção moderna, que veio depois do Pós-Guerra, devido à necessidade
dos calígrafos em terem uma quantidade de tinta razoável já pronta para seus
trabalhos.
Diante de tantas transformações, essa caligrafia mais expressiva também se
assumiu com outro nome:
É simbólico também que, após séculos chamando a caligrafia japonesa de
shodô ou o caminho da caligrafia, no estilo do estudo formalizado criado no
Japão durante o período medieval, a caligrafia tenha se tornado sho, ou
simplesmente caligrafia (TAMIYA, 1998 [não paginado]).
A caligrafia de vanguarda continuou se desenvolvendo com os anos, flertando
com a arte abstrata, a experimentação e o uso de materiais alternativos. Houve
diálogo com artistas como Pierre Alechinsky, do Grupo CoBRA, e a experimentação
de materiais e formatos. A calígrafa Shinoda Toko (nascida em 1913), por exemplo,
173
é neta de um famoso calígrafo de carimbos na Era Meiji e aprendeu caligrafia com
seu pai – o que poderia indicar a continuidade de uma linha tradicional da caligrafia.
Mas ela conta que, a partir de um forte desejo interno, aos 15 anos, depois de nove
anos de prática disciplinada, era necessário sair do caminho tradicional:
Eu me cansei disso e decidi tentar meu próprio estilo. Meu pai sempre
ralhou comigo por ser levada e sair do rumo tradicional, mas eu tive que
fazer isso [...] .
Isso é [o ideograma] kawa ×, o caractere caligráfico aceito para rio [...]. Mas
eu queria usar mais do que três linhas para mostrar a força do rio [...] O
kawa simples da linguagem tradicional não era o suficiente para mim. Eu
queria achar um novo símbolo para expressar a palavra rio [...] o sentimento
do vento soprando levemente (KENRICK, 2003).
Ao mesmo tempo em que ensinava caligrafia tradicional, Toko se dedicou a
trabalhos pessoais (GRAY, 1983). Durante a 2ª Guerra Mundial, ela se aproximou do
abstrato e, no Pós-Guerra, morou em Nova York por dois anos (KENRICK, op. Cit.).
Seu trabalho é bastante versátil e ampliou as fronteiras de suportes da caligrafia: há
uma mistura de caligrafia com gravura, mas também encontram-se padronagens de
cortinas de teatro, relevos em cerâmica para prédios, entre outros. (ibidem). Em
2013, houve uma grande exposição no Musee Tomo Japão em comemoração ao
seu centenário de nascimento6.
Outro calígrafo importante no período Pós-Guerra foi o Inoue Yu’ichi,
conhecido pela força expressiva de suas performances de caligrafia. Em 1955,
Yu’ichi registra em seu diário o desejo de sair de um shodôkai estagnado, criando
um caminho próprio:
Torne seu corpo e alma num pincel... NÃO a tudo! Pro inferno com isso!
Trace com toda sua força – qualquer coisa, de qualquer modo! Espalhe a
sua tinta ennamel e deixe escrever com força! Respingue todos aqueles
enganadores que adiam a caligrafia com um C maiúsculo... Eu vou cavar
meu caminho, vou abrir meu caminho. A ruptura é total. (INOUE, 1955
citado por HOLMBERG, 1998).
Seu registro é forte e radical: seu trabalho caminha nas fronteiras da caligrafia,
mas de um modo distinto ao de Shinoda Toko, tanto pela presença do corpo em seu
trabalho, como pelo estilo da sua linha. Na década de 50, registros fotográficos
desse calígrafo munido de um grande pincel, mostram um trabalho bastante visceral.
Já num vídeo de Yu'ichi fazendo caligrafia, bem mais velho, décadas depois, vê-se
que a presença física que se vê nas fotos ainda está lá, mas de forma diferente. O
174
calígrafo utiliza um pincel grande e traça um ideograma num papel de grande
dimensão. Os corpos nos dois registros propõe ritmos distintos, embora seja
evidente que as linhas, nos dois casos, são expressivas. As imagens de Inoue
Yu'ichi mais velho parecem indicar serenidade e, ao mesmo tempo, percebe-se a
presença da força interior que o conduzia quando jovem. Entretanto, tais imagens,
ainda que separadas no tempo por décadas, propõe um projeto artístico em
continuidade.
Figura 02: Inoue Yu'ichi em dois momentos. Na parte superior, no calor da vanguarda, escrevendo o
ideograma "osso" (Munroe, 1994); embaixo, o calígrafo, já com mais idade, realizando uma
demonstração em vídeo sobre seu trabalho (Youtube, 2008).
Décadas depois do início do shodô moderno, há críticas que mencionam que,
embora a caligrafia moderna tenha indicado novos rumos, ela, com o tempo, se
cristalizou, tanto pelas estrutura das exposições de caligrafia (além do Mainichi,
outra grande exposição de caligrafia é aquela promovida pelo Jornal Yomiuri),
quanto pelas associações ligadas a essas exposições, e que reúnem outras
associações menores, numa estrutura guarda-chuva. Cotas de trabalhos sendo
negociadas e concordadas em exposições; prêmios recebidos em função da ligação
do participante com determinado sensei; a manutenção de estilos consagrados, em
detrimento à busca de estilos individuais; são alguns dos problemas apontados por
Fuyubi Nakamura em sua tese de doutorado sobre caligrafia japonesa (Nakamura,
2006).
175
Christine Flint Sato aponta como parte do problema da estagnação o sistema
de ensino:
Parte do problema reside no modelo do Leste Asiático de aprendizado, que
é baseado em copiar velhos mestres, geralmente através do modelo do
professor. Em teoria, o primeiro estágio é o da duplicação, o próximo da
interpretação, levando finalmente à composição livre. A reprodução de
exemplos por mestres antigos e pelo do professor é parte do processo e é
por conta do estudante que ele desenvolva seu próprio estilo. No entanto, a
pressão social é forte, e é impossível mostrar trabalhos muito diferentes
quando se exibe em grupo. Apenas alguns calígrafos se separam para
exibir independentemente, e menos ainda escolhem trabalhar sozinhos [...].
Um fator que é mais prejudicial à criatividade particular do calígrafo é o
método de treinamento e o sistema de escola de caligrafia hierárquico. Isto
limitou a segunda e terceira geração de calígrafos de vanguarda. Trabalham
no estilo da escola à qual pertencem.
É irônico que muitas das ideias da livre expressão que os líderes desses
grupos expuseram não se reflitam mesmo no trabalho dos pupilos (SATO,
2002: 29-30).
Isso não significa que a caligrafia japonesa esteja de todo estagnada. Mesmo
em participantes de exposições como a do Mainichi, como o sensei Morimoto
Ryûseki7, há uma visão bastante crítica ao shodôkai e um incentivo à busca da
individualidade do calígrafo – cada um tem uma força e um caráter diferente, e,
portanto, interpreta e aplica-os de forma distinta na escrita. Comentando-se sobre o
kindaishibunsho, ele frisou que a primeira condição para a escrita nesse estilo é ter a
consciência que a escrita será feita com a sua palavra (letra), ressaltando algo
bastante pessoal. Convém acrescentar que, fora da estrutura do Mainichi e Yomiuri,
também há calígrafos independentes e semi-independentes que procuram manterse fora dos domínios das grandes organizações de caligrafia, ou, ao menos, não tão
dependentes da sua estrutura, porque também exibem fora do circuito das grandes
exposições. Esses calígrafos têm, como na vanguarda moderna, procurado expandir
o significado do fazer caligráfico, e, com isso, tem feito trabalhos que exploram
novos materiais e formatos ou que apenas buscam uma expressão livre
descomprometida com rígidas estruturas8. Tsubasa Kimura, calígrafa de Kyoto, é
uma delas. Seu trabalho inclui, além de obras em papel, instalações e intervenções
no ambiente.
A caligrafia moderna não foi ignorada dentro da história da caligrafia. Parece
que o legado mais importante foi a revalorização da linha, reforçando a relação
linha–expressão pessoal – que já existia em tratados antigos chineses, como o de
176
Lady Wei, e em alguns trabalhos do monges zen budistas. Na discussão da
expressão versus o legibilidade, a caligrafia aproveitou para repensar e explorar o
seu campo de atuação e sua essência, através de trabalhos como os de Hidai
Nankoku e Ueda Sokyû. O trabalho com o corpo, evidente com Inoue Yu’ichi e sua
caligrafia, juntamente com a particularidade do “momento único” da escrita, lembra o
caráter performático que a caligrafia pode proporcionar. A visão peculiar de Shinoda
Toko ressalta o quanto o gesto caligráfico está embutido na subjetividade de quem
escreve, ligado aos seus desejos mais profundos. Sendo shodô o caminho da
escrita, é interessante pensar nos caminhos paralelos dessa escrita, nas suas
bifurcações: por exemplo, quando este caminho se estende para o outro lado do
mundo e inicia um novo caminho, como acontece no Brasil, especialmente devido à
imigração japonesa no século XX.
De imediato, é possível dizer que a caligrafia aqui não pode se dar nas
mesmas condições que no Japão, tanto em número de espaços que ensinam
caligrafia, quanto nas exposições que a promovem. Tampouco o acesso a materiais
e à bibliografia é abundante como no Japão. Um fato marcante é que, se no Japão a
caligrafia é uma das artes tradicionais devido à sua relação com a história e à cultura
nipônica, no Brasil ela é praticada por poucos, e pode ser considerada uma arte de
resistência, que procura sobreviver e manter seu patrimônio imaterial em território
brasileiro. O que parece unir essas duas caligrafias separadas geograficamente, no
entanto, é a possibiliidade de ser a expressão viva de quem escreve, como se pode
ver em seguida.
No Brasil, em São Paulo: expressão e linha
Embora a caligrafia japonesa estivesse presente na vida de imigrantes
japoneses no século XX no Brasil, como se vê em alguns relatos9, é possível situar
na década de 1970, em São Paulo, o momento em que há um grande interesse na
prática da caligrafia japonesa, estimulado pela exposição de 1975 ocorrida no MASP
(Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). Essas pessoas criaram
Associação Shodô do Brasil, conhecida como Shodô Aikokai, organização que está
ativa até hoje (Wakamatsu, 2004; Miyashiro, 2009). Embora seja a mais antiga
associação de caligrafia em São Paulo, vale mencionar que a caligrafia é ensinada
177
em outros espaços em São Paulo, como associações de província, ateliês
particulares, associações de anciões, escolas, entre outros.
As reuniões do Shodô Aikokai acontecem duas vezes mensalmente,
momento em que praticantes e os sensei se juntam para fazer caligrafia. Atualmente,
há cerca de 30 pessoas, cujas idades, perfis e interesses variam. Nota-se uma faixa
mais jovem de praticantes, com perfis ligados especialmente às artes e do design, o
que confirma um interesse já levantado em Miyashiro (2009), quanto a sobrevivência
do shodô em São Paulo estar vinculada à divulgação dessa arte para pessoas das
áreas do design e das artes.
São três os sensei nessa associação10, sendo que dois deles tem seu grau
reconhecido através do sistema de caligrafia ligado ao Mainichi Shodô Ten
(Exposição Mainichi de Shodô): Etsuko Ishikawa e Takashi Wakamatsu1112 , que
possuem mais de 30 anos de prática caligráfica cada um. Fora o trabalho no Aikokai,
ambos os sensei tem seus grupos particulares de caligrafia, ligados à Associação de
Caligrafia Hokushin, presidida pelo sensei Morimoto Ryuseki, mencionado
anteriormente. Através dessa relação é que são dados os dan, graus que avaliam a
prática de cada um, e que é possível participar da Exposição Mainichi.
Sendo um imigrante, o Sensei Wakamatsu retomou a prática do shodô no
Brasil por incentivo da sua primeira esposa, já falecida, que era praticante. Seu
contato inicial com a caligrafia havia sido na escola, no Japão, onde fez a maior
parte dos seus estudos. Da mesma forma, a sensei Ishikawa veio do Japão e
completou seus estudos no Brasil, mas só retomou a caligrafia depois de adulta.
Embora apresentem um contexto parecido (a imigração, a volta à caligrafia depois
de anos), ambos tem trabalhos completamente diferentes, visíveis nas imagens
abaixo.
178
Figura 03: Demonstração de caligrafia: à esquerda, o sensei Takashi Wakamatsu; e, à direita, a
sensei Etsuko Ishikawa (fonte: Rafael Tadashi Miyashiro).
As linhas tem força, mas são bem diferentes. No caso do sensei Wakamatsu,
que tem preferência por estilos antigos, como Reisho e Tensho, a linha é expressiva,
tem força e sua forma é definida. Em seus trabalhos percebe-se uma atualização
contemporânea da caligrafia: há a referência do estilo antigo (o reconhecimento do
mesmo), mas com uma linha que não é simples reprodução de modelos; para
trabalhos para exposições, o sensei muitas vezes escolhe tamanhos grandes
(trabalhos com mais de 1,20m de altura, que dialogam com os formatos grandes da
caligrafia moderna). Observando gravações em vídeo13 de demonstrações de shodô,
vê-se que o corpo do sensei permanece quase estático, canalizando toda a força do
corpo para o braço que escreve sobre o papel. Já em gravações da sensei Etsuko
Ishikawa, vê-se que ela trabalha com o corpo movimentando-se frequentemente – o
que pode-se perceber na posição dos pés, que se alternam, no percurso que o
pincel faz ao escrever os ideogramas, na força de suas linhas verticais e horizontais,
no controle de linhas que tem variação de espessura, em efeitos como o kasure, em
que a tinta fica “falhada” e nas micro pausas que acontecem durante o gesto.
Quanto a esse estilo pessoal, diz a sensei:
[...] de repente surgiu, um dia... de repente, passou a idéia na minha cabeça
e minha mão já estava fazendo o movimento. Eu não tinha nem planejado...
Fazer um trabalho pequeno é um sacrifício, mas agora, trabalho grande, de
179
repente eu estou pulando... sai da cama, pega o pincel e, de repente,
escreve... dá vontade de chutar a tinta na parede! (ISHIKAWA, 2008)
Não à toa, essa sensei define a caligrafia como “ [é] vida... é expressão!”
(ibidem). Quando se viu no vídeo, sua expressão foi de alegria e comentou: “estou
dançando [...] Nossa... eu estou fazendo sho! [risos] um pouquinho exagerado [riso]”
(ibidem). Em seguida, disse:
[...] o corpo movimenta. O shodô não se faz apenas com a ponta do dedo.
Na verdade o maior prazer, para mim [...] é quando faço trabalho grande.
Quando faço treinamento, tenho consciência de que é estou treinando para
fazer um trabalho futuro. Kana, eu nunca entrei... porque não dá pra fazer
uma “grande aventura”. (ISHIKAWA, 2008)
Embora se apresentem de forma distinta, parece haver um diálogo entre a
caligrafia de Inoue Yu’ichi quando jovem e a de Etsuko Ishikawa no que tange ao
corpo. A consciência corporal parece estar mais presente, e se tira proveito disso
para a produção de linhas mais violentas. Ao mesmo tempo, força e serenidade
parecem se complementar na caligrafia de Inoue Yu’Ichi já mais velho e a de
Takashi Wakamatsu.
Essa linha peculiar de cada um é construída no gesto caligráfico, envolvendo
as relações travadas entre o corpo, o ambiente e os “quatro tesouros da caligrafia”:
tinta sumi, papel kami, pincel fude e o recipiente de tinta suzuri. Esses “tesouros”
tem várias propriedades, que podem diferir bastante dependendo do material
utilizado, como os pelos do pincel. Diferentes pelos de animais permitirão efeitos
distintos: alguns são macios, e serão mais difíceis de controlar; já os de pelo duro,
serão marcados pela sua precisão. Dependendo da pedra do suzuri, a tinta que é
friccionada nele se apresentará de formas distintas, ou mesmo a qualidade da pedra
ditará o ritmo em que o sumi vai tomando forma, a partir do bastão e da água e da
fricção do primeiro sobre a pedrao. Os papéis, que são feitos de fibras distintas,
também permitirão maior ou menos grau de absorção, que influenciará diretamente
na palavra escrita sobre o papel. O uso dos materiais está diretamente ligado à
escolha subjetiva do calígrafo, e pode se revelar em detalhes sutis como a cor, já
que não existe apenas uma tonalidade de sumi.
Tradicionalmente, um trabalho de caligrafia clássico, que tem como suporte o
papel, apresenta dois tons: o preto da linha, feito pela tinta sumi, de carvão, e o
branco do papel hanshi, papel oriental altamente absorvente. Existe um terceiro tom,
180
o vermelho, que é tanto usado no carimbo inkan, a “assinatura” do trabalho, que
confere autenticidade e completude, quanto na correção da prática dos alunos da
caligrafia; mas o vermelho, em ambos os casos, não corresponde, no caso do shodô
sobre papel, a uma opção estética no traçado das linhas.
Earnshaw (1996, p. 103) menciona quatro tipos de tinta sumi: preto puro,
preto com uma folha de ouro ou alguma substância dentro dela, cinza e um cinza
escuro que produz um efeito “borrado” nas bordas da linha traçada.
Em entrevista realizada durante uma das aulas em maio de 2007 na
Associação Shodô do Brasil, em São Paulo, a sensei Ishikawa mencionou 7
tonalidades de cinza, criadas a partir do preto do carvão tradicional. O sensei
Wakamatsu, na mesma data e local, por outro lado, descreveu as tintas tintas
tamboku:
A tinta de carvão preta tem várias cores.. dentro do preto, por exemplo,
coloca-se azul, geralmente marrom ou azul. Tem o preto, mas tem no fundo
o azul, o marrom. Além disso, também tem a tinta que chamamos tamboku,
que é uma tinta “mais leve”... [seu uso] depende do professor. Não dá para
falar qual é melhor.
No seu trabalho pessoal, o sensei declara a sua preferência:
Para mim, eu prefiro a tinta leve. A tinta preta dá muita força. Por isso que
para mostrar a força do pincel, para dar aquela impressão forte, é melhor
usar a tinta preta. Mas para mim, mesmo para letras grandes [trabalhos de
grande dimensão], acho que precisa ter uma sensibilidade maior. E a tinta
leve, quando escrevem quando cruza a linha, sai uma linha branca. Fica
muito delicado esse cruzamento. É muito interessante. Por isso eu uso essa
tinta leve.
Isso não significa que o sensei não use a tinta preta intensa. Há trabalhos
grandes que essa tinta aparece, muito provavelmente por ele ter achado que o
caractere pedia tal tratamento. Já a sensei Ishikawa fala da sua opção, relacionando
força, expressão e cor:
Eu gosto mais da tonalidade forte. O [estilo] kaisho, que é a forma mais
tradicional, correta, exige tonalidade forte.
181
Considerações finais
Pode-se perceber que a linha caligráfica de ambos os sensei reflete suas
visões pessoais de caligrafia, com suas escolhas, desejos e forma própria do corpo
escrever. Quando Lady Wei menciona as qualidades da linha, que devem ter osso,
carne, músculo, trata-se de um entendimento profundo de que uma linha nunca é
algo chapado – ela possui vários níveis que marcam a sua profundidade, inclusive
na sua relação cromática. A caligrafia de vanguarda, no Japão, entendeu e levou
isso ao extremo, fazendo a caligrafia ser, mais que uma linha que escreve
ideogramas, uma arte de linhas que expressam o que o seu ser, o que o calígrafo
quer.
Por estarem ligados à estrutura de caligrafia do Mainichi, os sensei Takashi
Wakamatsu e Etsuko Ishikawa certamente foram influenciados, mesmo que
indiretamente, por toda herança do Mainichi Shodô Ten, tanto nos aspectos
positivos quanto negativos: pelo fato de ser uma das maiores exposições de
caligrafia no Japão; pela estrutura, que pode se revelar estagnada em alguns
pontos; mas também por ter sido uma exposição que aceitou ser ousada num
momento decisivo da caligrafia moderna, acolhendo seus trabalhos.
Vale mencionar, no entanto, que, por estarem fora do Japão, ao mesmo
tempo, eles podem usufruir de uma liberdade maior dentro do Brasil. Para expor um
trabalho em São Paulo, até mesmo por terem grau de sensei, eles podem fazer
qualquer trabalho sem interferência de uma autoridade hierárquica maior do Japão.
Se em seus trabalhos não se encontram grandes discussões sobre até que ponto
um ideograma, a princípio, não é reconhecível, como na vanguarda, isso talvez se
deva a uma visão pessoal deles: eles expressam aquilo que querem, da forma como
querem. Não é necessário exigir deles um passo a mais, que talvez não
expressasse seu ser.
Mas um ponto oportuno a se colocar aqui diz respeito as suas
responsabilidades como sensei na promoção e difusão da caligrafia japonesa. Como
no Japão, existe uma relação mestre-discípulo, de certa forma, dentro do Aikokai. E
é interessante pensar no que essa relação produzirá de frutos no futuro.
182
No último ano, 2013-2014, mais frequentemente, tem havido uma dinâmica
em que os praticantes buscam expressar de forma pessoal um determinado
caractere. Na parte final da aula, os trabalhos são colocados lado a lado e os sensei
expõem críticas, comentando o que ficou bom e o que poderia ser melhorado. O que
eles têm frisado é uma busca de expressão pessoal e o que faz uma boa caligrafia.
Não existe uma “conformação” ao trabalho de cada um, mas sim estímulo. Isso se
afasta, a princípio, do que parece ser um problema apontado como estagnação no
Japão, e pode propor potências a serem descobertas ou desenvolvidas. É possível
que a incentivada expressão pessoal nessas dinâmicas, e nas aulas como um todo,
proponham novos olhares aos participantes, e talvez, daí, surjam possibilidades de
um caminho próprio da caligrafia japonesa em São Paulo.
Figura 04: Os sensei Takashi Wakamatsu e Etsuko Ishikawa fazendo colocações sobre o trabalho
criativo dos alunos no Shodô Aikokai (fonte: Rafael Tadashi Miyashiro).
Notas
1
Uma
rápida
pesquisa
na
internet
mostra
essa
diversidade.
Websites
como
http://editorajbc.com.br/agenda/ mostram alguns exemplos.
2
Em japonês: Eifujin.
3
Em japonês: Ogishi, considerado um dos melhores calígrafos da caligrafia chinesa.
4
Em japonês, também se fala de uma “escrita magra”.
5
Nitten continua, até hoje, uma exposição tradicional de artes japonesas.
6
Em: http://www.japantimes.co.jp/culture/2013/05/22/arts/power-and-mastery-of-the-blank-space-tokoshinoda/#.UzjNo14mA3A
7
Essa conversa aconteceu de modo informal, durante a visita do sensei Morimoto em São Paulo, por
ocasião da exposição no MASP “Mestres do Sho Contemporâneo”.
8
Para maiores detalhes, ver as diversas publicações de SATO e NAKAMURA, nas referências
bibliográficas.
9
Ver Miyashiro (2009) para maiores detalhes.
183
10
Já fizeram parte do Shodô Aikokai diversos sensei, inclusive aquele que é reconhecido como o
grande calígrafo de São Paulo, o falecido sensei Watanabe – grande incentivador do estilo de shodô alfabético,
que trabalha técnicas de caligrafia japonesa com caracteres romanos.
11
A ordem dos nomes foi padronizada como: sobrenome e nome para japoneses vivendo no Japão; e
nome e sobrenome para japoneses que vivem no Brasil, como no caso dos sensei.
12
Monica Jury Terada é a mais nova sensei, sendo de geração mais jovem que a dos outros sensei
mencionados.
13
Esta e as demais demonstrações de vídeo utilizadas neste artigo se encontram em
https://www.youtube.com/watch?v=Y6UlSPT9dxw. Acesso em 31/03/2014.
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Entrevistas
Ishikawa, Etsuko. Etsuko Ishikawa: conversa, 30/05/2007..
184
______. Etsuko, Etsuko Ishikawa: entrevista. Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro. São
Paulo: 27/05/2007, formato digital de vídeo e áudio. 10’., 27 de maio, 2007.
______. Etsuko, Etsuko Ishikawa: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro.
São Paulo: 07/06/2008, formato digital de vídeo e áudio. 35’.
Miyashiro, Rafael Tadashi. Diário de Campo. São Paulo: 2008.
Teruda, Monica Jury. Monica Jury Teruda: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi
Miyashiro. São Paulo: 25/05/2008, formato digital de vídeo e áudio. 15’.
Wakamatsu, Takashi. Takashi Wakamatsu: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi
Miyashiro. São Paulo: 08/06/2008, formato digital de vídeo e áudio. 10’.
_____, Takashi. Takashi Wakamatsu: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro.
São Paulo: 13/07/2008, formato digital de vídeo e áudio. 20’.
Vídeo
Youtube. Calligrapht Abstract Expressionism. Disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=tFsa1sL3YJo&index=6&list=LL1LBte6T0z1rpYqEZuoNWAA. Acesso em
31/08/2008 [retirado do ar].
Rafael Tadashi Miyashiro.
É mestre em Artes pelo PPG-Arte/Unicamp e doutorando do PPG-Artes Visuais/Unicamp,
sob orientação da profa. Dra. Anna Paula Silva Gouveia. Tem experiência na área do design
gráfico e é docente no curso de Design na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
185
O EXERCÍCIO DA CÓPIA NA ARTE CHINESA
Maria Fernanda Lochschmidt - Pesquisadora Autônoma
RESUMO: Copiar na arte chinesa possui conotações muito distintas às do Ocidente. Na
China, a reprodução ou imitação de um objeto por um artista persegue na maioria dos casos
a conservação de tradições, assumindo assim matizes positivos em vez de negativos. Em
uma cultura milenar que reverencia o passado, a cópia torna-se um importante instrumento
de conservação estrutural através de gerações. Este trabalho tem os seguintes objetivos:
analisar o exercício da cópia como um conceito presente em textos chineses antigos sobre
estética; pretende nomear algumas das diferentes funções que a reprodução de objetos de
arte cumpriu na longa História da Arte chinesa – como autoafirmação artística, conservação
de tradições chinesas sob domínio estrangeiro, aumento da oferta de obras de arte em
épocas de auge do colecionismo, legitimação de poder, entre outros – e, finalmente, elucidar
recentes estudos realizados e publicados sobre a matéria no Ocidente.
Palavras-chave: cópia, História da Arte chinesa, Xie He, pintura chinesa, colecionismo.
ABSTRACT: Copying has very different connotations in China and in the West. In China, the
reproduction or imitation of an object by an artist has in most cases the intent of preserving
traditions, thus taking positive rather than negative implications. In an ancient culture which
reveres the past, the copy becomes an important instrument for structural conservation
across generations. This paper has the following objectives: to analyze copying as a concept
in ancient Chinese texts on aesthetics; to name some of the different functions that the
reproduction of art objects has fulfilled in the long history of Chinese art – such as artistic
self-assertion, conservation of Chinese traditions under foreign rule, to increase the supply of
works of art in peak times of art collecting, legitimization of power, among others – and finally
to elucidate recent studies conducted and published about the subject in the West.
Keywords: copy, History of Chinese Art, Xie He, Chinese painting, art collecting.
Nos primórdios da História da Arte chinesa, quando ambas as artes, a
caligrafia e a pintura, começam a ser apreciadas e colecionadas por indivíduos, o
exercício da cópia no processo criativo, já era reconhecido nos mais antigos textos
sobre estética. Eles datam do período dos Três Reinos 3Ee Seis Dinastias =^
(220 - 581), época que se segue à queda da dinastia Han ŏě(206 a.C. - 220 d.C.)
e que se caracteriza pela fragmentação do território chinês e pela tensão política
reinante.
Não encontrando mais respostas no confucionismo, filosofia que havia
conduzido os Han durante quatro séculos, os intelectuais e artistas chineses voltamse ao taoísmo e ao budismo em busca de inspiração.
186
É nessa época que o pintor e teorético de Nanjing X, Xie He ƯƷ (ativo ca.
500-535 d.C.), escreve “Os Seis Princípios Estéticos que tornam uma pintura
valiosa”, hui hua liu fa ƀ ş u ŀ , que são os textos chineses sobre estética
completos mais antigos que se conhecem.
Os ”princípios” podem ser traduzidos como cânones, leis ou elementos pelos
quais as pinturas e os pintores podem ser julgados. Sua influência na crítica de arte
chinesa perdurou e eles continuam sendo referência no presente. Os “princípios”
constituem a formulação inicial de toda reflexão sobre a pintura chinesa (KNEIB,
1999, p. 449). Sua importância pivotal na teoria da arte reside na quantidade de
autores que estudaram esses cânones, tanto no Oriente como no Ocidente, dandolhes distintas interpretações e diferentes traduções para o inglês. O texto de Xie He
ƯƷ é relativamente curto: não ultrapassa 2000 ideogramas.
Os Seis Princípios são:
1 – “Animação pelo espírito de consonância”, ou “ritmo harmônico do alento,
vitalidade” (KNEIB, 1999, p. 449) “Harmonia espiritual” (SULLIVAN, 2008, p. 102).
Este primeiro princípio é, como acontece com muitos conceitos na História da
Arte chinesa, impreciso, dando lugar a múltiplas interpretações.
Segundo Alexander Soper, o pintor deve perceber o qi &, a essência, o sopro,
a força cósmica vital dos seres animados e inanimados, e transportá-lo a sua pintura
(SICKMAN e SOPER, 1971, p. 112). De sua parte, o observador deve poder
percebê-lo imediatamente.
A capacidade acima referida, de perceber a essência vital das coisas e
transportá-la por meio de um pincel à seda ou papel, é uma qualidade relativa à
genialidade do artista e não pode ser adquirida pelo aprendizado técnico.
Trata-se de uma qualidade fundamental na História da Arte chinesa, pois
separa o artista letrado do artesão.
187
2 – “Método estrutural no uso do pincel”. Esta regra deriva da caligrafia
chinesa e se refere ao movimento do braço e da mão, à coreografia corporal no ato
da pintura.
3 - “Fidelidade ao objeto ao retratar as formas”. No caso, refere-se ao
desenho e pode ser interpretado como uma maneira de realismo na representação.
4 - “Conformidade com o objeto ao aplicar as cores”. Na época, as pinturas
chinesas eram quase sem exceção coloridas. A pintura monocromática debuta
séculos depois.
5 - “Planejamento adequado ao colocar os elementos temáticos na pintura”.
Neste princípio, a preocupação era com a composição.
6 - “Transmissão da experiência do passado realizando cópias”. Este princípio
deve ser entendido como uma recomendação feita por Xie He ƯƷ aos artistas, a
utilizarem a cópia como elemento de aprendizagem (SICKMAN e SOPER, 1971, p.
113). O pintor deve copiar os mestres do passado a fim de compreender a execução
de grandes obras de arte. O exercício da cópia demanda grande observação do
objeto.
Somente após compreender o estilo e método de mestres da antiguidade, o
pintor pode proceder na evolução de seu estilo. Este cânone parte da ideia de que a
arte não é um esforço humano isolado, mas está relacionada com a tradição e o
diálogo cultural contínuo.
A prática da cópia na pintura e na caligrafia como método de aprendizagem
consta em textos sobre estética ainda anteriores aos “Seis Princípios” de Xie He Ư
Ʒ.
Gu Kaizhi ǙýQ (344-406), autor de uma das mais antigas pinturas chinesas
sobreviventes – “Admoestações à Donzela da Corte”, hoje no British Museum –
explica em seu “Tratado de Pintura” lun hua Ʈş os procedimentos técnicos da
cópia a aprendizes, através da própria experiência. Detalhadamente, Gu refere-se
ao modo de uso e colocação da seda ou do papel para efetuar cópias; explica como
188
manejar o pincel e adverte sobre a utilização de cores ao desenhar montanhas,
figuras, bambus, pinhos, etc. no ato da reprodução (BUSH e SHIH, 1985, p. 32-35).
Copiar como método de aprendizagem nem sempre foi encorajado. Durante a
dinastia Tang ě (618-907), a era mais cosmopolita da história chinesa, a arte
torna-se exuberante, realista, refletindo o vigor da sociedade e do governo
aristocrático e expansionista. O Império do Meio, cujo maior símbolo é a Grande
Muralha, estava na era Tang ě aberto a estímulos externos. Nos textos sobre
estética da época, a tendência era pintar em conformidade com as aparências. Isto é,
a partir da observação visual e não de um modelo.
Zhang Yanyuan éǃ (815-877) foi um pintor da província de Shanxi ÌƦ e
autor de vários textos sobre arte e caligrafia, entre eles “Pintores famosos através da
história” li dai ming hua ji
^şƩ. Em seu estilo próprio de escrever, Zhang
combina fatos históricos com crítica de arte. Para ele, a originalidade e a criatividade
devem ser privilegiadas, opondo-se à estereotipação da pintura. No que concerne à
transmissão de técnicas do passado, Zhang desencoraja a transmissão (de técnica)
pela cópia, reprodução ou imitação (BUSH e SHIH, 1985, p. 53-55).
Durante a dinastia Song ¿ě (960-1297), a China retorna aos ensinamentos
de Confúcioº¹(551-479 a.C.) fazendo do neo-confucionismo sua ortodoxia de
estado. O maior arquiteto do neo-confucionismo, que combina princípios do
confucionismo com o budismo e taoísmo, foi Su Shih: ƛƻ (1037-1101).
Su foi o primeiro a definir as diferenças entre o pintor letrado e o pintor
artesão ou profissional. Baseado em ideias taoístas e do budismo zen, mantinha que
o poder de total concentração no momento de pintar e a criação espontânea eram
mais importantes do que praticar técnicas de pintura (BUSH e SHIH, 1985, p. 193).
Su Shih ƛƻ advogava contra a reprodução de aparências visuais na pintura, e a
favor de colocar a representação pictórica nos limites da imaginação do artista e do
observador (BUSH, 2012, p. 26-27).
O famoso imperador Song, Huizong ò À , (1082-1135), poeta, calígrafo,
músico, colecionador e conhecedor de arte, criador da Academia Imperial de Pintura,
189
a Han Lin Hua Yuan ƃĥşǏ, foi um prolífico pintor e copista de obras antigas de
artistas famosos. Segundo fontes bibliográficas, deixou “cerca de mil pinturas” de
motivos auspiciosos. Grande parte dessas pinturas, as próprias e de sua coleção,
foram perdidas. Em 1126, a capital Kaifeng njÅ foi invadida pelos Jin tártaros e
Huizong òÀ, levado prisioneiro, falece em cativeiro em 1135.
Segundo crônicas da época, que relatam sobre a vida do imperador artista,
bastava o soberano produzir uma pintura, para que imediatamente membros da
Academia se apurassem em copiá-la no estilo ortodoxo palaciano e, se tivessem
sorte, teriam suas obras inscritas pela mão imperial (SULLIVAN, 2008, p. 187).
Entre as pinturas ainda existentes atribuídas a Huizong òÀ encontra-se o
rolo horizontal “Damas da corte preparando a seda recém-tecida”, de começo do
século XII, hoje no Museu de Belas Artes de Boston. Trata-se de uma meticulosa
interpretação de uma pintura de Zhang Xuan éƗ (713-755), onde os finos traços e
as cores elegantes refletem o gosto imperial na reprodução. Zhang Xuan éƗ era
um pintor da dinastia Tang ě(618-907), que após ganhar duas cópias de suas
obras da mão do imperador Huizong TI, tornou-se indispensável para o estudo da
pintura daquela época, principalmente pela organização composicional (WU, 1997, p.
76).
Figura 1: Detalhe do rolo horizontal de Huizong òÀ, (1082 -1135), cópia de “Damas da Corte
preparando a seda recém-tecida”, de Zhang Xuan éƗ (713-755).
37,1 por 145 cm, tinta, cores e ouro sobre seda, Museu de Belas Artes de Boston
Fonte: Three Thousand Years of Chinese Painting, 1997, p. 78 / Japanese and Chinese Special Fund
190
No final do século XII, os mongóis sob o comando de Ghengis Khan (11621227), conquistam grande parte da Ásia. O neto do Grande Khan, Khubilai öôŒ
(1215-1294) conquista a China, recebe o Mandato do Céu e inaugura a dinastia
Yuan pě(1297-1368). O domínio mongol fez com que muitos intelectuais chineses
optassem por viver em reclusão, recusando-se a servir seus governantes bárbaros.
Uma exceção foi o pintor e calígrafo, descendente da família imperial Song ¿,
Zhao Mengfu Ƹ¼
(1254-1322), quem decide servir a corte de Kubilai Khan öôŒ
(1215-1294) a fim de perpetuar a tradição chinesa. Seu estilo, tanto na caligrafia
como na pintura, derivava de modelos arcaicos que demonstram a clara intenção de
preservar a continuidade cultural em vez de deixá-la minguar nas mãos dos
invasores.
Em suas pinturas de paisagem, Zhao reviveu as tradições do passado criando
seu próprio estilo através da cópia de pinturas antigas (BUSH, 2012, p. 118-119).
Durante a era Ming °đ (1368-1644), o poder é restaurado aos chineses Han
k e a sociedade vive quase três séculos de paz e prosperidade. Com a melhoria
das vias de comunicação e o incremento do comércio, surge em meados do século
XVI uma nova classe social afluente: a dos comerciantes.
Esta nova classe social, de donos de grandes fortunas, gerou novos patronos
e colecionadores de arte, os quais não pouparam recursos para adquirir
antiguidades, obras de arte e contratar artistas.
Tradicionalmente, segundo os preceitos do confucionismo, um pintor letrado
não vendia suas pinturas, mas as ofertava.
Já os pintores profissionais, tidos na China como artesãos, pintavam por
encomenda e muitos deles eram copistas profissionais.
O pagamento ao pintor profissional era feito com dinheiro, oferecendo
antiguidades ou simplesmente através da hospitalidade, recebendo alojamento,
comida e amenidades (CAHILL, 1994, p. 65).
191
Qiu Ying 6z (1494-1552), um dos Quatro Mestres da dinastia Ming °đ,
passou vários períodos de sua vida profissional trabalhando como pintor residente
para distintos patrões, copiando álbuns de pinturas antigas (CAHILL, 1994, p. 67).
Um caso mais extremo foi o do famoso mestre de Suzhou ƛØ, Zhou Chen D
x (1460-1535), que foi forçado a passar dois meses em NanjingX, na residência
do poderoso ministro Yan Song Õ (1480-1567), provavelmente copiando antigas
pinturas de sua coleção e produzindo pinturas de paisagens (CAHILL, 1994, p. 67).
Em meados da dinastia Ming °đ (1368-1644) diminui o patronato imperial
das artes em duas capitais, Beijing X e Nanjing X. O período coincide com o
surgimento de um importante grupo de artistas e intelectuais na cidade de Suchow
ƛØ, entre os quais estava Zhu Yunming Ũođ (1461-1527).
Zhu e seu círculo seguiam a tradição caligráfica da dinastia Song do Norte
¿ě (960-1127), que se distinguia por um estilo direto e natural, opondo-se ao estilo
ornamentado da corte. No entanto, diferentemente de seus antecessores da era
Song ¿ě, que desenvolveram seu estilo como expressão de individualismo, Zhu e
seus seguidores utilizaram estilo como meio de engajamento filosófico e político,
praticando sua arte como forma de educação moral.
De acordo com a doutrina confucionista, quando a reforma política é
necessária e as oportunidades dos intelectuais de se engajar são limitadas, resta
como única solução de melhoria a responsabilidade do próprio intelectual de cultivar
seu caráter.
Em muitos de seus textos, Zhu expõe sobre questões sociais e políticas
rejeitando a ortodoxia neo-confucionista.
Em sua mais famosa peça caligráfica de 1515, o rolo horizontal intitulado
“Copiando o Clássico Amarelo de Wang Xizhi”, Zhu exemplifica sua busca pela
tradição clássica.
192
Zhu passou toda sua vida de calígrafo copiando “O Clássico da Corte
Amarela” Huang Ting Jing
åź, datada 356, de Wang Xizhi ŖƂQ (307-365), o
pai da caligrafia no Oriente.
A cópia mais antiga realizada por ele da qual se tem conhecimento, foi
realizada em 1486.
Zhu continuou copiando a obra mestre até chegar à cópia ideal, realizada em
1515 (WEN, 1996, p. 381).
Figura 2: Zhu Yunming Ũođ (1461-1527), cópia de “O Clássico da Corte Amarela” Huang Ting Jing
åź de Wang Xizhi ŖƂQ (307-365). Datação: ca. 1515.
Detalhe do rolo, tinta sobre papel, (21,3 por 73,2 cm). Museu Nacional do Palácio, Taipé.
Fonte: Possessing the Past, 1996, p. 380 / NPM
193
Em 1644 os Manchus, povo seminômade do nordeste da China, tomam a
capital Beijing X e gradualmente a integridade do território chinês, fundando a
dinastia Qing Ňě (1644-1911).
A pesar de terem adotado os princípios da civilização chinesa e trazido bem
estar material e paz ao povo chinês, os Manchus precisaram criar estratégias para
obterem aceitação popular. Uma delas foi a divulgação da própria imagem.
É notável a quantidade de retratos oficiais e privados que foram produzidos,
principalmente de dois imperadores, Kangxi æœ (1662-1722) e Qianlong 5
(1736-1795).
No Museu do Palácio, em Beijing X , existem quatro retratos muito
semelhantes do imperador Qianlong Rǐ. Nas quatro versões, quase idênticas, ele
é retratado sentado em frente a um biombo, sendo atendido por um servidor, em
ambientação típica reservada a estudiosos, mestres e intelectuais chineses de
antigamente, rodeado de antiguidades.’
Uma delas é provavelmente da autoria do pintor profissional da corte Yao
Wenhan ·Čő (ativo 1739-1756), e as outras três são anônimas (STEUBER, 2012,
p. 161-164).
Elas são uma interpretação de um protótipo que mostra um letrado chinês,
também sentado diante de um biombo, sendo servido por seu criado e rodeado de
antiguidades, exemplificando e idealizando a imagem de um intelectual chinês.
O protótipo é uma pintura anônima da dinastia Song ¿ě(960-1297), parte
do acervo do Museu Nacional do Palácio em Taipé , que pertenceu ao
imperador Qianlong Rǐ.
As versões de Beijing X são interpretações do protótipo de Taipé , e
seriam apenas quatro das muitas réplicas que devem ter sido produzidas para
divulgar a imagem do imperador como letrado e seguidor dos preceitos
confucionistas. Imagem que serviria para legitimar sua posição como filho do céu
diante da sociedade chinesa.
194
Figura 3: Pintor anônimo, dinastia Song ¿ě (960-1297), “Letrado”, tinta e cores sobre seda, (29,0
por 27,8 cm) Museu Nacional do Palácio, Taipé
Fonte: Art and Culture of the Sung Dynasty, 2000, p. 180 / NPM
Figura 4: Yao Wenhan, ·Čő (ativo 1739-1756), detalhe do rolo “Qianlong como letrado”, tinta e
cores sobre papel (46,5 por 198 cm), Museu do Palácio, Beijing
Fonte: Original Intentions, 2012, p. 162 / Palace Museum Beijing
195
Figura 5: Três versões de “Qianlong como letrado”
Acima: pintor anônimo da corte (ca. 1740-1750), tinta e cores sobre papel (77,0 por 142,2 cm)
Museu do Palácio, Beijing
Esquerda: pintor anônimo da corte, tinta e cores sobre papel (76,5 por 147,2 cm)
Museu do Palácio, Beijing
Direita: pintor anônimo da corte, tinta e cores sobre papel (193,0 por 243,5 cm)
Museu do Palácio, Beijing
Fonte: Original Intentions, 2012, p. 162 e 163 / Palace Museum Beijing
Na China existem ao menos três tipos de técnicas para reproduzir pinturas.
Uma denomina-se mó Į, que é realizada pelo traçado feito diretamente em contato
com a obra a ser copiada. A outra se chama lin Ɖ, que é quando o pintor copia a
obra que está à sua frente, e a terceira é fang ǝ, que é a interpretação livre de uma
obra por um artista (SICKMAN e SOPER, 1971, p. 228).
Sobre a técnica mó Į , realizada pelo traçado direto sobre a obra, o
historiador de arte, poeta, calígrafo e pintor Zhang Yanyuan éǃ (815- ca. 877) da
dinastia Tang ě (618-907) comenta:
[...] quando se encontra um rolo de pintura excepcionalmente fino, aqueles
que a copiam pelo traçado ajudarão a entesourá-lo. Pois após guardar o
original, a cópia poderá ser mantida como documentação da mesma (BUSH
e SHIH, 1985, p. 71; tradução nossa).
196
A autenticação e atribuição de uma pintura chinesa ocorrem através de
assinaturas, colofões, inscrições e também pelo reconhecimento do estilo.
Por sua vez, a identificação de um estilo é feito pelo estudo de obras do
mesmo autor e suas similaridades, e através de elementos ou conjunto de
elementos que tipificam um período (SULLIVAN, 2008, p. 175)
O “connoisseurship”, ou a capacidade de reconhecer a mão de um artista,
saber se uma obra é um original ou uma cópia, discernir de que período data, etc.
são tarefas realizadas por um especialista, isto é, um conhecedor.
A qualidade de “connoisseurship” é muito valorizada e respeitada na China, e
é considerada uma arte em si já há séculos.
Possuir experiência e sensibilidade visual, conhecer obras e textos antigos
sobre estética, etc. eram e são requisitos fundamentais para ascender à condição de
“connoisseur”.
O poeta e pintor Yao Tsui ! (535-602), ao expor sobre a apreciação e
crítica pictórica mantinha que
[...] somente uma pessoa com profunda percepção e experiência pode
julgar uma obra, senão, como pode ela distinguir entre o fino e o vulgar,
vencer armadilhas e ciladas para finalmente poder alcançar a verdade?[...]
(BUSH e SHIH, 1985, p. 41; tradução nossa).
O historiador de arte Zhang Yanyuan éǃ (815- ca. 877) mantinha que
“...de fato, a menos que uma pessoa seja dotada de um espírito acima do comum,
grande conhecimento, sensibilidade superior e caráter afável, senão, como pode-se
começar a falar em "connoisseurship"?" (BUSH, 2012, p. 49)
E agrega:
Hoje, muitos daqueles que têm conhecimento sobre caligrafia sabem sobre
pintura também e, desde tempos antigos, os que as colecionam são
numerosos. Por isso, alguns dos que colecionam não chegam a ser
“connoisseurs”; outros chegam a ser “connoisseurs”, mas nunca chegam a
gozar daquilo que vêm; há ainda outros que aprendem a observar e gozar
de suas aquisições, mas são incapazes de realizar as montagens das
obras; e finalmente, há aqueles que sabem como realizar montagens de
pinturas, mas são totalmente ignorantes para classificá-las. Todas essas
são falhas do amante da arte [...] (BUSH e SHIH, 1985, p. 73; tradução
nossa).
197
No caso da caligrafia, considerada a mais nobre das artes na China, o
reconhecimento de obras valiosas e a prática da cópia também estão bem
documentados.
Zhang Huaiguan éĀ
, calígrafo e crítico de caligrafia da dinastia Tang (618-
907), em seu livro “Discussões sobre Caligrafia” ęƮ, trata das dificuldades de ser
um “connoisseur”. Zhang queixa-se de que alguns críticos de caligrafia careciam de
conhecimento literário e de habilidade para a arte, e, portanto eram incapazes de
compreender e descrever peças caligráficas (BUSH, 2012, p. 49).
O poeta, calígrafo e oficial do governo da era Song (960-1297) Huang Tingjian
å©(1045-1294) mantinha que:
[...] ao estudar caligrafia, pode-se chegar pela cópia à semelhança formal de
peças importantes. No entanto, somente ao apreciar de perto peças
caligráficas antigas, chega-se a um estado de completa elevação do espírito.
Quando estamos diante de peças excepcionais, não devemos nunca
desviar a nossa atenção, a fim de podermos alcançar o ponto de completa
elevação espiritual. Quando mestres de outrora estudavam caligrafia, eles
não copiavam com exatidão outros modelos, senão que os colocavam na
parede e os observavam em completa absorção, para depois, ao colocarem
o pincel sobre o papel, poderem estar de acordo com suas ideias [...] (BUSH
e SHIH, 1985, p. 205; tradução nossa).
Concluindo, o peso da tradição na China e o acúmulo de reconhecidas obrasprimas em séculos de História da Arte criaram padrões e modelos dos quais os
pintores e calígrafos não podiam escapar.
Com isso, o exercício da cópia tornou-se parte da vida artística e veio a
cumprir funções das mais diversas e edificantes na arte chinesa. Para citar algumas,
aprendizagem, conservação de estilos, preservação da tradição, documentação,
legitimação de poder, entre outros.
Sua prática foi sempre vista sem criticismo e aceita como um dos pilares de
preservação cultural.
O conceito de obra falsa realizada pela cópia existiu e existe. A diferença
radica na intenção de quem a manipula.
198
Referências Bibliográficas
BUSH, Susan e SHIH, Hsio-yen, Early Chinese Texts on Painting, Cambridge,
Massachusetts: Harvard University Press, 1985
BUSH, Susan, The Chinese Literati Painting, Su Shih (1037-1101) to Tung Ch'i-ch'ang
(1555-1636), HARVARD UNIVERSITY ASIA CENTER, Hong Kong, 2012
CAHILL, James, The Painter's Practice, How Artists Lived and Worked in Traditional
China, Bampton Lectures in America, Columbia University Press, Nova Yorque, 1994
KNEIB, André, Arts et Histoire de Chine, Volume 2, Presses de l'Université Sorbonne,
Paris, 1999
STEUBER, Jason, Original Intentions, Essays on Production, Reproduction, and
Interpretation in the Arts of China (Cofrin Asian Art Series), University Press of Florida, 2012
SULLIVAN, Michael, The Arts of China, University of California Press, 2008
WU, Hung, Three Thousand Years of Chinese Painting, Yale University Press, New
Haven, Connecticut, 1997
WEN, C. Fong, Possessing the Past, Treasures from the National Palace Museum,
Taipei, catálogo da exposição do Museu Nacional do Palácio no Museu Metropolitan de
Nova Yorque, 1996
Maria Fernanda Lochschmidt
É pesquisadora autônoma brasileira, residiu em Pequim de 1986 a 1989, em Taipé de 1995
a 2002, onde foi orientadora no Museu Nacional do Palácio por quatro anos e onde teve
programa próprio de rádio em espanhol sobre arte e cultura chinesa na Rádio Taipé
Internacional. É formada em História da Arte pela Universidade de Viena (Mag. phil.)
199
YAMATO-E E WAKA - A PLURALIDADE DA ARTE JAPONESA
Neide Hissae Nagae - USP
RESUMO: Utilizando exemplos de obras como Sanjûrokunin kashû, a Antologia de
poemas dos 36 poetas divinos, produzida no início do século XII, classificada como Tesouro
Nacional do Japão, e baseando-nos em estudiosos como NAKANO; HIRATA & SANO
(1990) e IENAGA (1972, 1982), propomos a apresentação de um tipo de arte japonesa que
integra poesia, pintura, caligrafia e artesanato. Tendo começado como poemas em biombos
decorativos, essa forma artística evoluiu para pinturas que ilustravam as quatro estações do
ano (shiki-e), as atividades mensais (tsukinami-e) e lugares pitorescos (meisho-e),
compondo o universo da pintura japonesa conhecida como yamato-e, que frutificou nos
famosos emakimono (pintura em rolo), como Genji monogatari emaki (Pintura em rolo das
Narrativas de Genji).
Palavras-chaves: yamato-e; Sanjûrokunin kashû; poesia, caligrafia e pintura japonesa.
ABSTRACT: Using examples of works like Sanjûrokunin kashû, the Anthology of Poems of
the 36 Divine Poets, produced in the early twelfth century, classified as a National Treasure
of Japan, and based on scholars as NAKANO; HIRATA & SANO (1990) and IENAGA (1972,
1982), we propose the introduction of a type of Japanese art that integrates poetry, painting,
calligraphy and craft. Having started as poems on decorative folding screens, this artistic
expression has evolved into paintings that illustrated the four seasons (shiki-e), monthly
activities (tsukinami-e) and scenic places (meisho-e), composing the universe of Japanese
paintings known as yamato-e, which bore fruit in the famous emakimono (scroll paintings),
like Genji monogatari emaki (Scroll Painting Narratives of Genji).
Keywords: yamato-e; Sanjûrokunin kashû; poetry, calligraphy and Japanese painting.
Sobre a obra
A obra Sanjûrokunin kashû (Antologia de poemas waka dos 36 poetas
divinos), de data desconhecida, é considerada Tesouro Nacional do Japão desde
meados do século XX. Trata-se de uma compilação das antologias poéticas
particulares dos 36 poetas mais famosos escolhidos por Fujiwarano Kintô (966-1041),
estudioso de poemas waka.
Os exemplares transmitidos até o presente são conhecidos pelos nomes de
Nishi Honganji bon, Kasen kashû bon, Gunshû ruijû bon, entre outros. O primeiro
deles é uma cópia do início do século XII da antologia poética e foi o escolhido para
este trabalho por ser a compilação mais antiga que se tem das coletâneas
particulares desses poetas e pelo seu admirável teor de elaboração. A começar por
200
dicionários como Kôjien e enciclopédias como Britannica, essa obra é apontada
como possuidora de um elevado valor artístico que vai além do poético literário.
Yotsutsuji (1990) explica que foram utilizados mais de 60 tipos diferentes de
papéis elaborados por uma técnica altamente sofisticada. Com plasticidade
artesanal, uns apresentam cor única, outros cores de combinações diversas,
podendo apresentar aplicações de pó ou folhas laminadas de ouro e prata em
quantidade e tamanhos variados e apresentar pinturas. Segundo o estudioso,
transmite-se que a coletânea foi elaborada em comemoração aos 60 anos do
Imperador Shirakawa completados em 1112. Em 1549 foi outorgada pelo Imperador
Gonara (1496-1557) a Shônyo (1516-1554), monge responsável da décima geração
do Templo Honganji, sede da religião Jôdo Shinshû, e, originariamente, era
composta por 39 cadernos com poemas das coletâneas particulares dos 36 poetas.
Dividindo as coletâneas de acordo com os 20 exímios calígrafos1 que as compilaram,
a distribuição apresentada por Yotsutsuji (1990, p. 205) é a seguinte:
1. Hitomaro I e II; Tsurayuki I
2. Tsurayuki II; Shitagô e Nakatsukasa
3. Mitsune
4. Ise; Tomonori; Saigû Nyôgo
5. Yakamochi; Yoshinobu I e II
6. Akahito e Komachi (suposição)
7. Narihira, Sosei e Kanesuke (suposição)
8. Henjô; Yorimoto; Toshiyuki
9. Sarumaru; Atsutada e Koremori
10. Asatada; Kintada
11. Takamitsu; Nakabumi
12. Tadamine
13. Shigeyuki; Kiyomasa
14. Muneyuki; Ko Oogimi
15. Saneakira
16. Okikaze
17. Motosuke
18. Motozane
19. Tadami
20. Kanemori
Segundo a enciclopédia Britannica, os poetas Kakinomotono Hitomaro Īğ
ZǟǣZǠǤ , Ôtomono Yakamochi
°aÃĆe Yamabeno Akahito ÌDžƶZ
estão entre os mais antigos e constam na coletânea de poemas japoneses
Man’yôshû organizada no século VIII; o Monge Henjô nIJǁē, Ariwarano Narihira
201
¢ĭß e Onono Komachi ÇLjÇŝ são os três dos seis poetas divinos da dos
séculos VIII e IX; Kino Tsurayuki ŴƳQ, Ôshikôchino Mitsune |Ľzƹú, Ise `,
Monge Sosei ŶøŀÜ, Kino Tomonori Ŵ, Sarumaru ŕO°±, Fujiwarano
Kanesuke ƚyƼ, Mibuno Tadamine ŚõÍ, Fujiwarano Toshiyuki ƚĉƞ,
Minamoto no Muneyuki Ō À U , Fujiwarano Okikaze ƚ Ɗ ǚ e Sakanoueno
Korenori ¤KĔ são os poetas da época em que se organizou a primeira antologia
de poemas waka Kokin wakashû, editada por ordem imperial e concluída no início
do século X; Fujiwarano Atsutada ƚĊõ, Minamotono Kintada Ōtõ, Fujiwarano
Kiyotada ƚŇIJ, Ônakatomino Yorimoto °NƈǗ¨, Mibuno Tadami ŚõƧ,
Minamotono Saneakira Ōiđ, Fujiwarano Asatada ƚěõ, Fujiwarano Motozane
ƚpŤ, Minamotono Shitagô Ōǖ, Nakatsukasa N, Saigûno Nyôgo Ď³î,
Tairano Kanemori ßyš, Kiyoharano Motosuke ŇpƼ e Ônakatomino Yoshinobu
°NƈƇÁ são poetas da época da antologia oficial de poemas waka Gosen
wakashû organizada em meados do século X; Fujiwarano Nakafumi ƚ_Č,
Fujiwarano Takamitsu ƚǜq, Kodaino Kimi Ç° e Minamotono Shigeyuki ŌLJ
Q são poetas da época da antologia oficial de poemas waka Shûi wakashû,
organizada no início do século XI. Essas antologias oficiais e particulares e as
classificações em poetas divinos, por exemplo, mostram a importância da poesia na
vida dos japoneses da época.
Alguns dos poetas do Sanjûrokunin kashû possuem mais de uma coletânea
nessa obra. A quantidade de poemas não é uniforme e algumas chegam a ter 6500
poemas (SASAKI, 2007). Como sintetiza o dicionário Kôjien trata-se de uma obra
valiosa, tanto do ponto de vista da qualidade do papel pela sua riqueza e beleza,
como da caligrafia em fonogramas kana do final da Era Heian (794-1185).
Desse modo, encontramos reunidas em uma só obra, as belezas da pintura
yamato-e, da arte da caligrafia, do papel artesanal decorativo e dos poemas waka.
Assim, para apreciar a antologia dos 36 poetas divinos Sanjûrokunin kashû,
discorreremos um pouco sobre cada uma dessas formas artísticas.
202
Antes, porém, cabe lembrar que existe uma obra facilmente confundível pela
semelhança de nome e de conteúdo, igualmente valiosa, conhecida como
Sanjûrokkasen emaki (Pinturas em rolo dos 36 poetas divinos), que traz um retrato
de poetas e poetizas renomados da época, cada qual, acompanhado por uma
sinopse de seu histórico e um poema de sua autoria. Havia muitas obras
semelhantes, e a mais renomada é a que pertenceu à antiga Família Satake.
Conforme Nakamura (1968, p. 108), “essa obra era composta por 2 volumes e foi
pintada por Fujiwarano Nobuzane, famoso artífice, hábil em retratos nise-e, e
caligrafado por Gokyôgoku Yoshitsune / Fujiwarano (Kyûjô) Yoshitsune”. Atualmente,
contudo, encontra-se dividida nas partes correspondentes a cada poeta e os
fragmentos são mantidos por diferentes famílias. As diversas poses, expressões,
coloridos das vestimentas, desenhos minuciosos, imagem equilibrada, mostram o
refinamento dessa obra (NAKAMURA, 1968) além, obviamente, da beleza da
caligrafia, do poema waka e do papel decorativo e outros materiais utilizados.
Podemos citar como exemplo a figura da dama Saigûno Nyôgo (929-985) na
versão Agedatami bon2 de meados do século XIII com 27,9cmX 51,14cm, acervo do
Freer Galery of Art de Washington. Com uma cortina ao lado e diante de uma caixa
com material para caligrafia, Saigûno Nyôgo está compondo um poema vestida com
o quimono de gala com várias sobreposições, conhecido como kasaneuchigi, em
que o tecido de cima é estampado e o forro é de seda de colorido forte (a figura da
dama é semelhante ao do Satake bon no qual ela também está sobre o tatame mas
não é possível atestar qual o mais antigo). Conhecida como famosa poetiza da
época, seu pai era o príncipe Shikibukyô Shigeakira Shin'nô e sua mãe, Kanshi, filha
de Fujiwarano Tadahira. Tornou-se Saigû em 936 e vai a Ise em 938, mas deixa o
ofício em 946 devido à morte da mãe. Em 948, torna-se dama da corte e no ano
seguinte vira dama (nyôgo) do Imperador Murakami, passando, então, a ser
chamada de Shôkyôden Nyôgo. Falece em 985 aos 57 anos de idade. É autora da
obra Saigûno Nyôgo Onshû (Coletânea da Dama Saigû) escrita em terceira pessoa,
sem divisão temática (budate) ao estilo de uma narrativa monogatari, com poemas
requintados, mas que mostram um sentimento bastante profundo, como o que
segue:
203
ř!ǕÒ!ģǚǀ$/d2!Ž.0Ƭ&}+6
Leitura:
Kotononeni/
minenomatsukaze/
kayourashi/
izurenooyori/
shirabesomeken
Sentido: O vento dos picos ressoam nas cordas do koto. Qual delas teria
iniciado essa bela melodia!
Essa composição corresponde ao poema 45 no tema Diversos do Tomo VIII
da antologia oficial Shûi wakashû, a terceira das vinte e uma antologias oficiais de
poemas waka. Isto é, faz parte de um imenso acervo de poemas compostos pelos
japoneses desde os tempos mais remotos até os dias de hoje.
O poema waka, também conhecido como yamato uta, assim passou a ser
identificado em contraposição ao kanshi, poema chinês, chamado de kara uta, e
representa o valor das características japonesas que ficaram ofuscadas pelo brilho
da cultura chinesa continental importada. Após o encerramento das expedições ao
continente chinês em 894, iniciadas em 607, o Japão passou a desenvolver e
aprimorar suas características autóctones, e houve o florescimento dos poemas e
outros gêneros literários graças ao advento dos fonogramas kana, desenvolvidos a
partir dos ideogramas chineses. A riqueza dos poemas waka, que se consolidam na
forma de 31 fonogramas, é resultados desse longo processo histórico, assim como
as demais produções artísticas e culturais como o yamato-e.
Sobre a pintura japonesa yamato-e
Ao explicar o que é yamato-e, a estudiosa Senno Kaori (1960), aponta a
imprecisão do termo e diz que a palavra provavelmente realizada com o som
de yamato-e, grafada com os ideogramaskŹ surgiu nos registros escritos mais no
final do século X e foi sofrendo modificações com o passar do tempo. Por isso, ela
utiliza a definição dada por Akiyama Terukazu em 19643 e que o definiu de modo
científico por volta de 19414 e 19425 tendo por parâmetro o conceito de Heian, ou
seja, pinturas com motivos japoneses em contraposição a kara-e, pinturas com
motivos chineses. Também designava as pinturas feitas em shôji e biombos com
uma dimensão bem maior que os quadros e encadernações. Após a introdução das
204
pinturas monocromáticas chinesas na Era Chûsei (1185-1603) e os ensaios
japoneses que imitavam os quadros chineses, estes são chamados de kara-e,
enquanto yamato-e mudava de sentido passando a designar todas as pinturas
japonesas desde Heian e assumindo essa imprecisão. Senno utiliza yamato-e no
sentido utilizado no período Heian e explica que na época shôji designava não
apenas as portas corrediças que deixavam passar a claridade tendo as esquadrias
quadriculadas forradas com papel japonês. Designavam também as corrediças
forradas com papel mais grosso conhecido como fusuma e outros utensílios
divisórios portáteis que ficavam em pé, geralmente feitos de madeira forrados com
tecido ou madeira. Os biombos, por sua vez, diz Senno, não diferem tanto do que a
palavra designa hoje. Compostos por duas ou mais pranchas, também serviam para
divisão de ambientes. Dobráveis, podiam ser guardados quando necessário, sendo
utensílios indispensáveis para as pessoas de Heian. Assim, yamato-e está presente
nas representações dos eventos anuais, dos costumes e das mudanças da natureza,
tanto em biombos e shôji, como em leques e nos papéis coloridos shikishi. Essas
pinturas japonesas temáticas ficaram conhecidas como tsukinami-e (pintura de cada
mês) ou como shiki-e (pinturas das estações). Esta última, conforme explica a
enciclopédia Britannica, constituiu a base das produções japonesas até o período
pré-moderno, unificando a temática da constituição das pinturas em rolo, das
pinturas monocromáticas e das pinturas dos biombos com temas da natureza,
tradicionalmente, montanha, água, flor e pássaro. Essas pinturas são produzidas
com função decorativa em utensílios cotidianos da aristocracia da época, cuja base
eram a madeira e o papel washi.
Sobre washi, o papel japonês
Matsuda Koichi (1994), apresentando o papel japonês washi, lembra que o
papel foi transmitido ao Japão cerca de 500 anos depois de ter sido inventado na
China. Desenvolveu-se entre o final do século VI e início do século VII pelas mãos
de técnicos coreanos que usaram o linho para produzir o papel manualmente.
Passou a ser muito utilizado desde o século IX, como se pode atestar pela várias
obras literárias e registros escritos e pelos utensílios domésticos da aristocracia
japonesa feitos à base de papel. Como diz o estudioso na Introdução, “washi é um
205
papel tipicamente japonês que vem sendo produzidos há quase 1300 anos. Sua
principal característica é a fabricação manual, a partir de fibras de floema de
vegetais como kozo, gampi e mitsumata” (MATSUDA, 1994, p. IX). Ele registra que
em 907 o governo japonês tinha capacidade para produzir vinte mil folhas de papel
por ano e 42 províncias pagavam seus impostos com papel e cita a obra
Sanjûrokunin kashû como uma mostra do apogeu da produção do papel japonês.
Enquanto mitsumata era utilizado para o papel moeda, kôzo foi utilizado para os
papéis de shôji, guarda-chuva, xilogravura e ganpi para papéis finos, resistentes,
bonitos e lustrosos, utilizados para a compilação de sutras e na época Heian, muito
apreciados pelas mulheres da corte imperial quando coloridos para serem utilizados
como lenços (Britannica). Washi, por sua vez, é uma denominação que surgiu na
Era Meiji (1867-1912) para designar a técnica manual de fabricação de papel em
contraposição ao papel ocidental produzido por máquinas, mas que hoje já não se
distinguem pela técnica.
Segundo a enciclopédia Britannica, além do papel “branco”, existia o papel
colorido shikishi. Ele é mais espesso, apresenta tamanhos e formatos variados,
geralmente em cores que vão do branco ao creme. Pode, ainda, ter outras cores, ser
decorado com desenhos, enriquecido com chamuscados ou laminados de metais
como ouro, prata, bronze ou zinco e outros materiais de base vegetal ou animal
como pelos e penas. É utilizado como um cartão ou quadro para se escrever
poemas, pinturas e recordações. Em geral, seguem uma medida padrão de 19,4 cm
X 17 cm; 18,2cm X 16cm e 9 cm X 9 cm. Há, ainda, os de 27,2 cm X 24,2 cm que
são usados tanto para caligrafia quanto para pintura. Ogura shikishi que se diz ter
sido escrito por Fujiwarano Sadaie, ou Teika como ficou conhecido, é considerado o
mais antigo. Embora coberto de incertezas, acredita-se que a obra conhecida como
Hyakunin isshu (Um poema de cem poetas) corresponda a esses shikishi, segundo
os registros constantes em Meigetsuki, o diário de Teika, vai desde 1180 até 1235.
LAMARRE (2000) denominou a superfície do papel utilizada para caligrafar e
pintar de “paperscape” literalmente um papel-cenário a exemplo de landscape e
naturescape produzindo uma combinação fantástica como num trabalho de
patchwork. De fato, essa técnica milenar continua sendo utilizada em cartões,
envelopes, quadros de caligrafia e outros objetos decorativos feitos em papel,
206
atualmente produzidos em computador, mas ainda causando uma sensação de
trabalho manual elaborado de modo artesanal.
Sobre a caligrafia
Juntamente com a invenção do papel no período Han posterior (Gokan 20220) da China, a melhoria dos pincéis propiciaram o desenvolvimento da técnica de
caligrafia a pincel a qual prosperou com Wang Xi-zhi (Ôgishi 303-361,) e Wang Xianzhi (Ôkenji 344-386), na época de Wei (Gi) e Jin (Shin) e foi transmitido ao Japão. A
enciclopédia Mypedia define a caligrafia como uma arte plástica que utiliza as letras
e que se desenvolveu na China, Coreia e Japão. E neste último, após a criação dos
fonogramas kana, surgiu Onono Michikaze ou Tôfû (894-964) que criou a caligrafia
em estilo japonês, mais suave e balanceada e que deu origem a escolas como a
Kyôgoku, Shôren’in e Sesonji.
A exemplo da chinesa, a caligrafia japonesa utiliza pincel e tinta nanquim, o
que propicia formas e estilos de escritas diferentes de acordo com o emprego do
pincel. Em linhas gerais, a forma kaisho executa os traços das letras um a um,
obtendo-se um resultado semelhante às letras impressas; a forma gyôsho resulta em
uma escrita mais solta, em que a passagem de um traço para outro é acompanhado
por um leve arrastar do pincel e a forma sôsho, por sua vez, é produzida por um
deslizar do pincel nos traçados imprimindo maior ou menor pressão nos traços.
Resulta em letras desmanchadas pelo modo suave e veloz de deslizar o pincel na
hora da escrita.
Sobre o poema de Shigeyuki
Dentre as contempladas pelos catálogos de artes, escolhemos para esta
apresentação a obra que traz o poema da coletânea particular de Minamotono
Shigeyuki (?999-1003?) na coletânea Sanjûrokunin kashû dos 36 poetas divinos. A
enciclopédia de famosos poemas waka e haiku Meika meiku jiten apresenta 67
poemas seus selecionados para as Antologias Oficiais a partir do Shûi wakashû, a
207
terceira, organizada no início do século XI, supostamente pelo Imperador Kazan e os
poetas que o serviam.
Conforme os levantamentos realizados por SHIMADA (1968), listamos abaixo
os poemas de Shigueyuki constantes nas coletâneas oficiais, com sua numeração,
seguida pelo número recebido em sua coletânea particular entre parênteses, quando
for o caso:
Shûi wakashû - 14 poemas: 4 (221), 81 (241), 83 (239), 223 (287), 262 (300),
349 (132), 385 (não tem), 412 (extraído do primeiro poema do rolo Fuji VI), 591 (3),
705 (não tem), 938 (301), 1072 (244), 1304 (212), 1097 (não tem);
Goshûi wakashû - 15 poemas: 168 (242), 216 (264), 219 (Livro da 2ª
linhagem 210), 447 (147), 515 (218), 597 (103), 598 (não tem), 685 (306), 828 (305),
973 (87), 977 (205), 1062 (140), 1117 (138), 1129 (4), 1153 (144);
Kin’yô wakashû - 3 poemas na primeira versão: 101, 334, 390; 3 poemas na
terceira e última versão: 1, 269 e 338;
Shika wakashû - 2 poemas: 6 (225) e 210 (303);
Shin kokin wakashû - 11 poemas: 28 (106), 119 (67),120 (123), 553
(275) ,612 (247), 644 (54), 864 (315),1013 (308), 1216 (245),1218 (não tem),1351
(28);
Shin chokusen wakashû - 1 poema: 76 (não tem);
Shoku goshûi wakashû - 5 poemas: 44 (223), 256 (263), 646 (não tem), 742
(302), 1259 (29);
Shoku Kokin Wakashû - 1 poema:1248 (269);
Gyokuyô wakashû - 11poemas: 218 (232), 1112 (34), 1230 (36), 1640 (270),
1654 (268), 1655 (272), 1843 (191), 1874 (112), 1949 (266), 2100 (314), 2101 (294);
Shoku goshûi wakashû - 2 poemas: 142 (228) e 1223 (Shigeyuki no Musumeshû);
Shin senzai wakashû - 1 poema: 551 (24);
Shin shûi wakashû - 3 poemas: 146 (não tem), 848 (211), 1894 (203);
208
Shin goshûi wakashû, 1 poema: 647 (não tem);
Shin shoku kokin wakashû - 2 poemas: 82 (230) e 387 (34).
Shigeyuki também faz parte dos poetas que compõem a obra Ogura
hyakunin isshu (Um poema de cem poetas de Ogura), organizado por Teika, a qual
consolidou-se como cartas de jogos poéticos para deleite ou competições. Seu
poema é o de número 48, o mesmo que consta no Tomo 7 da Antologia Oficial
Shika wakashû:
ǚ5)ÏŁ!
Leitura:
kazeoitami/
!2!)Ŧ,!÷$3
iwautsunamino/
onorenomi/
kudaketemono/
omoukokorokana
Sentido: Fico a pensar na onda que se quebra nas rochas / e em mim que se
quebra de amor
Desse modo, é possível observar a presença marcante dos poemas de
Shigeyuki no cenário poético da época, o que lhe fez merecer a inclusão entre os 36
poetas considerados mais renomados por Fujiwarano Kintô e consequentemente, ter
a sua coletânea particular incluída no Sanjûrokunin kashû. Conforme listou
SHIMADA (1968), o poema que apresentamos é o último da coletânea de Shigeyuki
e recebe o número 323:
4
"1%, *,2ĝ" ,
,(/ %1
Leitura:
edawakanu/haruniaedomo/mumoregiwa/moemomasarade/toshihenurukana
Significado: Deparo-me com a primavera nos ramos não novos e a árvore
petrificada brota com esplendor. Ah, mais um ano se passou!
SHIMADA (1968) acredita que essa coletânea particular tenha sido
organizada logo após a morte de Shigeyuki ou por pelo próprio em vida. Existem
cinco versões com outras ramificações, entre as quais figura a principal e mais
completa. É a coletânea de propriedade do templo Nishi Honganji com 323 poemas
209
e que pertenceria à linhagem 1 denominada de Nishi Honganji bon 36 nin shû kei
por Komachiya Teruhiko (1973). A segunda linhagem é conhecida como Shôho ban
Kasen Kashû bon kei - Coleção de Poemas dos Exímios Poetas da edição da Era
Shôho (1645-1648) com 279 poemas, dentre os quais 5 são exclusivos. Como,
porém, a sua constituição é a mesma do Nishi Honganji bon, sabe-se que faltam
alguns. A terceira linhagem, chamada de Shoryôbu zôhon (501/161) que é
preservada pela Kunaichô, (Imperial Household Agency - órgão burocrático que
administra tudo que se refere aos assuntos nacionais ligados à corte imperial e às
atividades nacionais do Imperador, incluindo os livros e os túmulos), possui 214
poemas, dentre as quais três exclusivas em relação ao Nishi Honganji bon, duas
delas comuns a Kasen kashû bon. A quarta linhagem é a mesma Shoryôbu zôhon
(501/271) com 151 poemas, com dois poemas exclusivos. Apresenta a mesma
forma do livro da terceira linhagem, mas além de faltarem alguns poemas, há
misturas com a coletânea de Sei Shônagon. A quinta linhagem é a que se transmitiu
como caligrafia de Yukinari, de propriedade do Museu Tokugawa. Mesmo assim,
pensa-se que a Coletânea de Poemas de Shigeyuki é oriunda de um único original e
que o Nishi Honganji bon tenha preservado um formato próximo do original. E, como
se sabe pela Coletânea de Caligrafias de Yukinari, a antologia Hyakushu (Cem
poemas) parece ter existido de modo independente.
Shigeyuki era bisneto do Imperador Seiwa e tornou-se governador da
Província de Rikuô, onde veio a falecer. Na segunda metade de sua vida andou
pelas regiões de Kyûshu e Ôshû e tornou-se um poeta viajante, tendo entre suas
composições notáveis as que cantam lugares pitorescos. A antologia Hyakushu
(Cem poemas), oferecida ao Imperador Reizen em meados da Era Heian quando lhe
prestou serviços, é a mais antiga. Shigeyuki recebe o número 138 no Shikashû
taisei (Grande coletânea das antologias particulares), e seus poemas são
registrados da página 667 à 676.
Apreciações da combinação artística do fragmento
Os poemas, sem dúvida, são o ponto de partida da coletânea de poemas dos
36 poetas Sanjûrokunin kashû, como demonstra o seu nome, e, dada a relevância
da poesia na vida da aristocracia da época, os próprios poemas bastariam para
210
compor o conteúdo de uma obra comemorativa do aniversário de 60 anos de um
Imperador. No entanto, o requinte estético da época permitiu a criação de uma obra
magnífica que, ao poema waka, associou a arte da caligrafia e o yamato-e. A sua
classificação como Tesouro Nacional demonstra o valor de todas essas artes e
técnicas resultantes do desenrolar histórico e estético que tentamos aqui expor,
utilizando, como exemplo, o fragmento de Minamotono Shigeyuki6.
Seu poema é caligrafado artisticamente em tinta nanquim sobre um papel
artesanal com 20 cm de altura e 31,4 cm de largura. Para que se possa ter uma
ideia geral sobre a combinação variada desses elementos artísticos, o poema foi
transcrito abaixo, conforme a sua disposição na obra, seguido pelo registro do nome
da coletânea de Shigeyuki. Cabe lembrar que a transcrição segue o original que
deve ser lido verticalmente da direita para a esquerda.
Logo abaixo, segue um esboço gráfico simplificado da obra com seus
principais recortes e coloridos descortinando a pintura yamato-e do barco, mais ao
centro. As folhagens dos ramos, os pigmentos menores decorativos em tonalidades
de prata ou em tinta nanquim e que lembram pequenas aves e rochedos em meio a
outros barcos menores não foram contemplados, mas podem ser conferidos por
meio da imagem da obra referenciada.
Fig. 1: Transcrição do poema de Shigeyuki.
211
7
Fig. 2: Esboço do papel artesanal sobre o qual está o poema de Shigeyuki
O poema de Shigeyuki pode ser visualizado sobreposto na reprodução do
esboço do papel artesanal. Como se pode observar, ele não aparece dividido em
versos de 5, 7, 5, 7, 7 fonogramas, que seriam mais comuns. Dada a dificuldade de
reproduzir a escrita na vertical com sua respectiva transliteração para o português,
transcrevemos o poema na horizontal para que se observe sua distribuição em sete
linhas disformes, com trechos mais longos e mais curtos, e ao final, na 8ª. linha, o
nome da coletânea particular do poeta.
1I. linha
2I. linha
4
"1%, haruniaedomo
*,2mumore
3I. linha
ĝ"giwa
4I. linha
5I. linha
6ª. linha
7ª. linha
8I. linha
edawakanu
,
,(/moemomasarade
%toshihe
1
nurukana
ŌLJQǓ MinamotonoShigeyukishû
Assim, o poema e o nome da coletânea de Shigeyuki em letras
desmanchadas estilisticamente pela caligrafia misturam-se às pequenas ilustrações,
aos fragmentos decorativos e aos ramos verdes que Yotsutsuji (1990, 205)
considera como caniços de água ou junco (Phragmites communis), um tipo de
212
vegetação que se desenvolve o ano inteiro em lugares úmidos, como na beira de
rios e lagos.
O poema começa com uma ideia de divisão expressa pelos ramos de uma
vegetação esparsa, mas suave como a primavera. A partir desses ramos pincelados
com leveza na parte central do “quadro” em uma discreta cor verde é possível
entrever um barco de madeira clara que repousa sobre uma margem de areia. O
quadro é composto com uma temática da natureza, a primavera, como as
costumeiras divisões das coletâneas de poemas waka. E a primavera é a estação
que dá início a um novo ciclo, tornando clara a passagem do tempo, a conclusão de
um ciclo que se foi.
O barco está ali, de uma maneira abstrata, podendo significar a chegada ou a
partida. O tempo tem um poder surpreendente. Até a árvore petrificada, seca, que
parecia sem vida, representada por uma lâmina de metal, em cor escura, na parte
inferior extrema do quadro, bem ao centro, contém em si o poder de fazer despontar
novos brotos, cheios de energia, bastando para isso que se dê tempo ao tempo.
Nada é o que parece ser, tudo está em constante mutação e também comporta
significados múltiplos. Num quadro concreto, uma abstração extrema.
O cenário é sugestivo, como se da árvore escura surgissem os ramos em
verde claro que se estendem sobre o barco e essa paisagem se descortinasse com
a energia emanada da árvore e que divide o quadro. A água com seus redemoinhos
quase imperceptíveis abre-se para dar passagem ao cenário criado por essa energia,
ou seria o gelo que cobre a água começando a derreter para dar passagem à
primavera? A brancura que se abre de baixo para cima tendo a parte escura como
divisória ao centro, cria um contraste, quase um estranhamento. Essa mancha
escura que lembra uma pedra, faz supor que o tronco da árvore esteja fincado na
terra com seus galhos estendidos de modo a que não possamos vê-los a não ser
por suas extremidades de onde surgem os brotos que pendem sobre o barco,
proporcionando uma vista aérea.
As cores dão um toque de transição do inverno para a primavera, mas ainda
incipiente pelo tom de surpresa presente no poema quanto à passagem do tempo.
Um cenário com predominância no pastel do inverno, apesar da folhagem em verde
213
de tonalidade bem clara e a parte quase negra que parece representar o tronco de
uma árvore, como foi mencionado acima.
O quadro, por sua vez, apresenta uma assimetria como um todo,
característica já bem conhecida da cultura japonesa (KATO, 2011), e que constitui
um dos padrões de beleza e harmonia.
Considerações finais
O Japão, após os primeiros contatos com a China e a introdução dos
conhecimentos adquiridos do continente asiático, desenvolve uma cultura peculiar
como resultado da somatória de características próprias, que será continuada
mesmo com o declínio da sociedade aristocrática que atingiu um crescente grau de
sofisticação. Obras como o Diário de Tosa de 935, de autoria de Kino Tsurayuki,
renomado poeta da corte, por exemplo, recebeu uma versão pintada tão logo se
tornou conhecida. Isso mostra que essa prática era, de certa forma, comum na
época. As 21 coletâneas oficiais e inúmeras outras particulares, acrescidas das
obras em prosa das quais costumam fazer parte vários poemas, mostram a
presença da poesia waka na vida da aristocracia da época e que perdura até hoje
entre o povo japonês.
As já mencionadas cartas de Ogura hyakunin isshu, contendo um poema de
cem poetas, são exemplos de uma união da beleza da pintura, da caligrafia e do
poema. O famoso artista Ogata Korin (1658-1716) também criou um conjunto dessas
cartas integrando a pintura e a poesia e produziu outras combinações de caligrafia e
cerâmica com seu irmão Ogata Kenzan (1663-1743), igualmente renomado, numa
demonstração de um pensamento integrador das artes.
Se as pinturas e poemas caligrafados decoravam as moradas da aristocracia
desde Heian, atualmente, a vida cotidiana dos japoneses, é um reflexo dessa rica
mistura. Uma herança em certa medida vinda da China, que foi adquirindo um
colorido cada vez mais japonês, passando por tradições outras, e fazendo aflorar
suas peculiaridades. Tal riqueza pode ser observada na cultura japonesa, como
214
tentamos explorar por meio do fragmento que destaca o poema de Shigeyuki entre
os 36 poetas divinos nessa obra preservada pelo Templo Nishi Honganji.
Foi possível constatar, assim, que a pintura yamato-e daquela época não
buscava uma independência artística como ocorreu com a pintura japonesa na
posteridade, muito pelo contrário, apresentava uma forte tendência para uma arte
integrada unida com a literatura, para tentarem complementar-se mutuamente
(IENAGA,1982). E o resultado dessas artes integradas podem ser vistas atualmente
aplicadas aos recursos gráficos e impressos cada vez mais avançados.
Notas
1
Embora não haja certezas absolutas, pelas comparações feitas entre várias obras caligrafadas
existentes, supõe-se que o caderno 1 tenha sido caligrafado por Fujiwarano Sadazane, o 2º. por Fujiwarano
Sadanobu e o 3º. Pela dama Fujiwarano Dôshi, e os demais, embora desconhecidos, deveriam ter sido
calígrafos que serviram ao Imperador Shirakawa (YOTSUTSUJI, 1990).
2
disponível
em
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Saigu_Nyogo.JPG
acesso
em: 10 fev.2014.
3
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4
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5
AKIYAMA, T. Heian jidai no kara-e to yamato-e II, Bijutsu kenkyû, Tokyo, V.121, p.8-24, 1942
6
disponível
em
http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:36poets_collection_SHIGEYU
KI.JPG acesso em: 10 fev. 2014
7
Esboço feito pela autora deste artigo, acompanhando possíveis recortes visualizados na obra
Sanjûrokunin kashû Shigeyuki.
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bijutsu zenshû 8: Ôchô emaki to sôshoku kyô. Tokyo: Kodansha, 1990P. 205.
Neide Hissae Nagae
Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é docente e pesquisadora do
Departamento de Letras Orientais da mesma instituição, atuando em nível de Graduação e
Pós-Graduação. Suas áreas de interesse são Literatura Japonesa, Tradução e Pensamento
Japonês.
.
216
JARDIM JAPONÊS E USONIAN HOUSE
PROXIMIDADES CONCEITUAIS
Ana Tagliari - Universidade Anhembi Morumbi
Sarkis Sergio Kaloustian - Universidade Anhembi Morumbi
RESUMO: A primeira vista parece complexo estabelecer relações entre o Jardim Japonês e
o projeto da casa comum americana, a Usonian House (década de 1930) de Frank Lloyd
Wright, representação do modo de habitar moderno ocidental, com influência inclusive na
morada paulistana. No entanto, esta relação se apresenta muito próxima quando
analisamos os conceitos que os fundamentam. Princípios de percepção espacial e visual,
simplicidade, harmonia com o local permeiam a construção destes projetos. É importante
entender a essência, atributos e princípios subjacentes aos projetos, e não apenas sua
aparência. O importante não é apenas o visto, mas sim, o imaginado. A partir disso nesta
pesquisa procurou-se delinear as principais características do projeto e concepção de uma
Usonian House e do Jardim Japonês, para que desta maneira fosse possível tecer uma
relação de analogia conceitual entre espaço e forma. Selecionamos o Jardim da Cerimônia
do Chá e três Usonian Houses para análise. A análise realizada por desenhos, fotos e textos
é fundamentada a partir dos conceitos e princípios que permeiam estes projetos. São eles:
Organização Geométrica/Assimetria, Visuais, Acessos e circulação, Espaços
(percurso/tempo), Cores, Elementos construtivos, Materiais naturais e iluminação.
Palavras-chave: Jardim Japonês, Jardim da cerimônia do chá, Frank Lloyd Wright, Usonian
House, Análise gráfica.
ABSTRACT: At first sight it seems complex to create relationships between the Japanese
Garden and the common American house design, the Frank Lloyd Wright Usonian House
(1930s), representation of the Western way of modern life. However, this relationship
appears very close when we analyze the concepts that underlie them. Principles of spatial
and visual perception, simplicity and harmony with the local permeate the construction of
these projects. It is important to understand the essence, attributes and principles behind the
projects, not just their appearance. What is important is not only seen, but the imagined.
From this research it was sought to delineate the main features of the project and design a
Usonian House and Japanese Garden, so this way it was possible to make a relation of
conceptual analogy between space and form. The Tea Ceremony Garden and three Usonian
Houses were selected for the analysis, which were created by drawings, photos and text,
based on the concepts and principles underlying these projects. They are: Geometric
Organization / Asymmetry , Visual , Access and circulation spaces ( track / time ) , Colors ,
constructive elements , natural materials and lighting.
Keywords: Japanese Garden, Tea ceremony Garden, Frank Lloyd Wright, Usonian House,
Graphic Analysis.
1. Introdução
“Na sala da cerimônia do chá, é deixado ao convidado, para sua imaginação,
completar o efeito total em relação consigo mesmo”. (Kakuzo Okakura, The
Book of Tea, 1906, p.69).
217
O Jardim Japonês é conhecido, entre outras características, por criar nas
pessoas que o apreciam, diferentes sensações. Os espaços interferem na
percepção de cada indivíduo, como numa reflexão sobre a própria existência no
mundo. Nada é casual ou banal. Todos os elementos, espaços, formas, visuais,
materiais e estímulos aos sentidos são cuidadosamente pensados de maneira a
criar condições para o individuo pensar, refletir, valorizar e imaginar.
Frank Lloyd Wright, arquiteto norte-americano do século XX, criou as Usonian
Houses na década de 1930. O projeto desta casa unifamiliar era uma representação
do modo de viver moderno, da era industrial, aos olhos de Wright.
Esta representação moderna de habitar desenhada por Wright apresentou
conceitos de percepção do espaço no tempo, de valorização espiritual, de cuidado
com a natureza e os materiais, advindos de seu conhecimento e admiração pela
cultura, arte e arquitetura japonesa. O arquiteto propôs uma mudança no projeto
residencial norte-americano, buscando a apreciação e valorização de cada espaço e
elemento da arquitetura. A casa de Wright não era uma máquina de morar, mas sim
um espaço sensível para celebração, reflexão e engrandecimento da existência
humana.
Esta pesquisa propõe um estudo original da relação entre o projeto da
Usonian House e do Jardim Japonês da cerimônia do chá, procurando relações
conceituais entre os projetos. Apesar de a primeira vista parecerem um tanto
distantes, as relações se tornam muito evidentes a partir da leitura de textos escritos
por Wright, seus críticos, clientes e pesquisadores, além da análise de seus projetos.
Selecionamos o Jardim da Cerimônia do Chá e três projetos de Usonian
House para o estudo. Este texto reúne por meio de desenhos e textos, as análises
que revelam tais relações de proximidade conceitual.
Primeiramente apresentamos considerações sobre o Jardim Japonês, depois
sobre Frank Lloyd Wright e sua relação com o Japão, e posteriormente as análises.
218
2. O Jardim japonês
De modo geral a ideia ou a imagem de jardim japonês remete a uma
paisagem em miniatura com pouca ou nenhuma vegetação e algumas pedras sobre
uma base de areia ou cascalho. Esses jardins não impressionam pela magnificência
ou tamanho e sim, procuram mais o silêncio, a pureza da forma, a delicadeza e a
perfeição cuidadosa nos detalhes. O importante não é o visto, mas sim o imaginado.
Os tipos de jardim japonês revelam diferenças quanto à sua concepção
espacial e aos materiais usados em sua criação. Quase sempre são naturais ou
simbólicos em relação à natureza contrapondo-se à linguagem geométrica dos
jardins ocidentais.
Na cultura japonêsa, Wabi e Sabi, são duas formas de expressão estética do
despojamento material nos objetos e no espaço e que se revelam fisicamente em
muitos aspectos do jardim e do quarto da cerimônia do chá.
Wabi, termo mais geral que faz referência a uma vida associada ao
despojamento, insuficiência ou imperfeição, mas mais ainda, uma postura de uma
mente tranquila adquirida no percurso sequencial do espaço de entrada da
cerimônia do chá.
Sabi, termo mais específico, referenciando objetos individuais e o ambiente
num conceito de evocação despretensiosa e seu poder de extrair sensações de uma
produção artística. Aparece na literatura e no desenho dos jardins, mais
explicitamente no jardim da cerimônia do chá.
No século VI o Budismo foi trazido da Índia e da China, via Coréia, e trouxe
consigo uma visão de cosmos que influenciou profundamente a arte do jardim
japonês. O intercambio com a China através de nobres e monges introduziu a rica
cultura da dinastia Tang, dentre ela, cenários de marinhas que foram então
reproduzidas nos jardins. O pensamento Budista foi a força do desenvolvimento da
arte dos jardins. Na metade do período Heian (794-1185), o movimento Budista Jodo
(Terra pura) ganha força no Japão. A Terra pura, localizada nos limites do oeste do
219
Universo Budista era composta de belos pavilhões com vistas para espaçosos lagos,
perenemente cheios de lótus.
Nesse primeiro momento dos jardins baseados no pensamento Jodo, entre os
séculos VIII a XI, os desenhos eram relativamente simples, geralmente um amplo
lago com lótus, centralizado em frente ao edifício principal do templo. A partir do
século XIII, seu tamanho foi sendo reduzido e entre os séculos XV e XVI o jardim
seco prevaleceu agora pela presença do Zen Budismo. A doutrina Zen foi a base
filosófica e estética do segundo momento da transformação do jardim japonês,
trazida da China pelos monges Eisai (1141-1215) e Dôgen (1200-1253). Na era
Muromachi (1392-1568) a filosofia Zen influencia o desenho dos jardins com o
conceito de um (nada ou expressão do vazio) pensamento simbólico para atingir o
satori (estado de iluminação) ideal único do Zen.
O próprio caráter despojado da arquitetura xintoísta, com o uso de seus
materiais na forma natural colaborou numa atitude de adoção suave dos ideais Zen
cuja influência nas artes foi magistral, e nos jardins trouxe refinamento, simplificação,
diminuição da escala e representação simbólica da natureza. A maioria dos
pesquisadores categoriza os jardins japoneses em cinco tipos, baseados pelo modo
de arranjo espacial, da área ocupada e pelo uso prioritário dos elementos que os
caracterizam: 1) Jardim de passeio com lago: Pertencem a este tipo os jardins que
devem ser percorridos pelos visitantes e que ocupam grandes áreas em terrenos
com vários desníveis contendo lagos e ilhas, pontes, riachos com cascata em
miniatura, arranjos variados de rochas, e caminhos direcionados no sentido da
descoberta de cenários inesperados. 2) Jardim de contemplação: Sua estrutura é
similar ao jardim de passeio com lago sendo, porém menor em escala. Permite o
percurso em volta de um lago, mas com igual ênfase na possibilidade de ser
observado de um ponto fixo, geralmente ao longo de uma varanda de um edifício. 3)
Jardim de paisagem seca: Pertencem a este tipo os famosos jardins de composições
de rocha, areia e musgo, muito mais sugerindo do que imitando uma paisagem real.
São pequenos e contidos em limites formados por muros ou divisas de terrenos e
usam poucas plantas, normalmente azáleas e camélias em formas abstratas. É o
jardim de tratamento abstrato, cujo caráter não iconográfico traz uma extrema
dissociação da realidade, induzindo a apreciação estética em busca de diversos
220
graus de simbolismo. 4) Jardim Mínimo: É o jardim secreto em espaços restritos que
permitem apenas a construção de um jardim com muito poucos elementos. Aparece
dentro do pequeno espaço livre da residência do morador, no jardim público de
alguns templos, em restaurantes mais luxuosos e na área interna de pousadas
tradicionais de Kyoto (Ryokan). 5) Jardim da Cerimônia do Chá: O chá era admirado
pelas suas propriedades medicinais, e foi apreciado mais tarde pelos adeptos do
Zen por seu poder estimulante para manter a disciplina mental durante longas horas
de meditação. Shukó fundamentou os principais ideais artísticos e mais tarde Senno-Rykyú(1520-1591) estabeleceu e codificou os cânones e as formas estéticas da
cerimônia do chá, bem como do desenho do jardim ou Roji (caminho ao ar livre) que
consideramos aqui como um estilo de jardim de identidade própria.
Apesar de não ser um jardim no sentido tradicional é o jardim-espaço que
forma o conjunto jardim-quarto da cerimônia do chá. É uma “amostra de jardim”
chamado “Roji” palavra rica em significados que vão desde uma descrição do
espaço físico (espaço aberto) até uma ideia filosófica(jornada de purificação). O
"Roji" aparece na Era Momoyama (final do séc16) como apoio a cerimônia do chá.
Do início e até a metade da Era Edo (do século XVII ao século XVIII) o jardim da
cerimônia foi definitivamente estabelecido como um tipo.
A experiência sequencial do espaço e seu tratamento plástico são primordiais
na consideração do espaço japonês e da construção do jardim. Essa ideia tem uma
magistral aplicação no percurso do jardim do Roji. A experiência da cerimônia do chá
em seu processo de limpeza espiritual e preparo da mente serena, feitas no
pequeno e contido espaço externo antes de adentrar o minúsculo quarto da
cerimônia em si, reflete este aspecto da experiência do espaço mais do que seu
caráter descritivo objetivo.
Sua função é a de um breve percurso desde o espaço externo em direção à
pequena construção onde ocorre a cerimônia do chá (Chashitsu). Nesse percurso
que é mais mental do que físico está o esforço estético dos mestres no tratamento
espacial para induzir o sentimento de “wabi”. A maioria dos mestres da cerimônia do
chá e que fundamentaram os cânones do Roji eram monges e não artesãos nem
arquitetos no sentido moderno dos termos.
221
Os principais elementos cênicos e práticos de uso deste jardim são os
caminhos de pedras, a bacia de água para a lavagem das mãos, as lanternas de
pedra, as pequenas cercas e a vegetação existente segue um estilo simples e sóbrio.
Princípios espaciais do jardim japonês no percurso da cerimônia do chá (Roji)
Assimetria: É o princípio fundamental da organização espacial, o que evita
toda a simetria que não é natural. Sua aplicação prática jamais permite qualquer tipo
de alinhamento retilínio, ortogonal, seja em planta ou elevação. Esse princípio cria
toda a tensão espacial presente nos arranjos de rochas e nas massas de arbustos e
árvores.
Surpresa Visual: A princípio, um cenário é propositalmente escondido do
observador através de elementos que não permitem a sua visualização direta. Esses
elementos podem ser um muro ou uma cerca de bambu trançado, uma massa
vegetal, um caminho de pedras irregulares que forçam o observador a olhar para
baixo, cuidando de seus passos, e no momento seguinte, com o corpo em repouso,
aparece a surpresa. Uma paisagem maravilhosa explode em nossos olhos
literalmente suspendendo a respiração.
Paisagem emprestada: Uma das mais notáveis formas de manipulação
espacial do jardim japonês, mas que não aparece em todos os jardins da cerimônia
do chá, principalmente naqueles que tem área menor e são mais enclausurados
espacialmente. Essa técnica permite que as linhas visuais vazem rumo ao horizonte
além dos limites naturais dos terrenos dos jardins, seja por cima de muros baixos ou
vazios entre maciços arbóreos. Isso traz uma expansão brutal no tamanho da
paisagem, criando vários planos paralelos de elementos dos jardins.
Vias e caminhos: Tem a função estrutural de direcionar os percursos e guiar
os passos de forma controlada no tempo. Seu material primordial são as pedras
planas ou irregulares. Os diferentes arranjos no piso, seja por sua proposital
regularidade ou não, provocam os comportamentos de percurso ou de parada e
atenção. Assim determinadas áreas de parada num percurso, permitem a
contemplação de determinadas vistas escolhidas.
222
3. Frank Lloyd Wright e o Japão
A formação cultural e profissional de Wright é derivada de diferentes vertentes,
desde educadores, escritores e poetas, até artistas e profissionais atuantes de sua
época. A cultura e a arte japonesa influenciaram conceitualmente, de maneira
intensa, sua obra artística.
Importantes autores, como Peter Collins, Bruno Zevi, Giulio C. Argan, Vincent
Scully entre outros, afirmam que há uma grande influência da arte e arquitetura
japonesa na obra de Wright. As características mais evidentes são: a relação
harmoniosa com a natureza, a percepção filosófica dos espaços, a simplicidade,
modulação e o uso honesto dos materiais. No entanto, como veremos, algumas
características mais conceituais e filosóficas podem ser identificadas e relacionadas.
Wright confirmava que a semelhança entre a sua arquitetura e a oriental
residia no aspecto orgânico e admitiu ter aprendido o processo de simplificação e
eliminação do insignificante analisando as gravuras japonesas: “(…) Gravuras
japoneses (...) me ensinaram muito. A eliminação do insignificante, um processo de
simplificação na arte (…)”. (WRIGHT, 1943, p. 194). Sua admiração pela arquitetura
e arte japonesa existia antes mesmo de sua primeira visita ao Japão em 1905. Seu
conhecimento era advindo principalmente de estudos como publicações de Edward
Morse (Japanese Homes and Their Surrondings, 1886) e nas pesquisas e palestras
de Ernest Fenollosa em Chicago (NUTE, 2000).
Além de seus estudos sobre arte japonesa, Wright viveu durante os anos de
1915-1922 no país, devido ao projeto e construção do Hotel Imperial em Tóquio.
Neste período Wright projetou e construiu algumas residências no Japão como em
1917 para Aisaku Hayashi, em Tóquio e para Arinobu Fukuhara, em Hakone. Em
1918 para Tazaemon Yamamura, em Ashiya.
O projeto residencial Usonian: Simplicidade
Grande parte da obra construída de Wright são residências, chegando à
quase 80% de seu conjunto. Este conjunto é dividido em três fases: As Prairie
Houses (1900-1914), as Textile Block Houses (1917-1927) e as Usonian Houses
223
(1936-1959), considerada a sua mais madura e rica. Selecionamos três obras
construídas significativas da fase Usonian: Herbert Jacobs I (1936), Loren Pope
(1939) e Stanley Rosenbaum (1939)
As residências Usonian tiveram como características principais o fato de
serem pequenas, moduladas e econômicas. Após a Grande Depressão norteamericana (1929), Wright se dedicou ao projeto e construção dessas casas com
baixo custo até 1959, ano de sua morte. Estas residências demonstram muito do
que Wright acreditava como sociedade e cidade mais democrática. A sigla
USONIAN, supostamente criada por Wright, significava algo norte-americano. United
States of North I America (Estados Unidos da América).
Na busca de economia e simplicidade Wright, em seu livro The Natural House
(1954) definiu em seus escritos diretrizes principais a serem seguidas na concepção
das Usonian (WRIGHT, 1954, p.78): Eliminação de todos os elementos e espaços
considerados supérfluos tais como garagem, telhado, sótão e porão; Criação de uma
cozinha integrada com o setor social e espaço para refeições, o workspace, mais
prática e funcional, onde seu volume une a área molhada de maneira a racionalizar
e economizar na construção; Uso de materiais naturais de acordo com sua natureza
sem revestimentos ou pinturas; Mobiliário, iluminação, aquecimento e ornamentos
integrados ao edifício; Definição do programa em apenas um pavimento. Ao analisar
as residências Usonian notamos a coerência constante do arquiteto em aplicar
sistematicamente tais conceitos e princípios escritos por ele.
Construções leves de madeira, a concepção das Usonian também refletem
muito a experiência de Wright de ter vivido seis anos no Japão (1916-1922). Wright
afirma em seus escritos que a residências japonesas representavam um exemplo
supremo de eliminação do insignificante, limpeza e simplicidade. Segundo o
arquiteto não havia nada sem significado numa residência japonesa (WRIGHT, 1943,
p.196). Além disso, Wright projetava a residência com previsão de alterações futuras
como a adição de mais cômodos, resumida na sua teoria da cauda do girino
(WRIGHT, 1954, p.167), onde a casa cresce de acordo com as necessidades da
família. Segundo o arquiteto, a arquitetura orgânica não é algo terminado, mas sim
em constantes transformações e progressos (1943, p.196).
224
A nova maneira de implantar o edifício, voltado para o interior do lote,
proporcionou um maior aproveitamento do terreno. Wright posiciona a casa próximo
da rua deixando livre o terreno na sua parte posterior. A fachada principal não
representa tanta importância, ao passo que a fachada posterior é a mais significativa
da casa, que se volta para o jardim. Além disso, na maioria dos casos o projeto é
resolvido em apenas um pavimento e sua implantação parece abraçar o jardim.
Kevin Nute (2000) analisou algumas relações projetuais e conceituais entre
uma casa tradicional japonesa e as Usonian Houses de Wright. Na casa tradicional
japonesa a alcova é um espaço considerado especial e simbólico. Este tesouro,
como Wright se refere à alcova (WRIGHT, 1943, p. 199) (tokonoma), é marcado pela
simplicidade e limpeza formal, assim como Wright concebe as lareiras.
As residências norte-americanas tinham a tradição da construção em madeira,
da mesma maneira do que a japonesa. No entanto a grande diferença residia no fato
de que nos Estados Unidos os espaços interiores da casa eram divididos e
separados rigidamente. No caso da arquitetura japonesa as divisões eram feitas por
diferentes alturas de pisos, alturas de pé-direito ou divisórias leves com telas de
correr, o que permitia a abertura e integração de vários espaços num só. A diferença
de alturas de pé-direito é uma característica marcante das obras de Wright,
especialmente na sua fase das Usonian. Wright cria diferentes alturas de lajes de
modo a provocar sensações às pessoas na passagem entre os ambientes internos e
ao mesmo tempo proporcionar um movimento externo dos planos horizontais.
Ao eliminar o telhado, não apenas por motivos econômicos, mas e por
considerá-lo um espaço inútil (WRIGHT, 1954, P.82), Wright cria lajes em diferentes
alturas, propiciando ao mesmo tempo variações de pé-direito, dilatações e
contrações do espaço. Além disso, cria beirais extensos para proporcionar ao
habitante a sensação de abrigo, desempenhando a mesma função que o antigo
telhado exercia.
Wright aponta que não há necessidade de paredes em todo o perímetro,
deixando espaço para vidros. A parte mais alta da parede pode ser de vidro para
que penetre luz natural de forma a não tirar a privacidade, mas proporcionando
visibilidade para quem está no interior e orientando a vista para o céu, característica
225
das casas tradicionais japonesas. A transição entre o espaço interior e exterior,
propiciado pela varanda, é outra característica da casa japonesa presente nas obras
residenciais de Wright, principalmente na fase das Usonian. A casa japonesa não
possui uma rígida demarcação entre interior e exterior, a integração da casa com o
jardim é algo que acontece naturalmente: “Na casa japonesa, não há clara
demarcação entre interior e o exterior”. (YAGI, 1982. p.9). Esta característica
encantou Wright (1943, P.197) que afirmou: “Para o prazer dos eventos não se pode
dizer onde o jardim termina e onde ele começa”.
A ideia da modulação dos tatames da casa japonesa (aproximadamente
0,90mX1,80m - 3X6 pés) pode ter influenciado Wright na modulação de suas
residências Usonian na busca da limpeza, simplicidade e economia. Os materiais
empregados nesta fase respeitam os módulos e os sub-módulos, tanto em planta
como em elevação.
Wright sempre afirmou que a mania de grandeza (grandomania)1, presente na
cultura norte-americana não o atraia. Ele considerava uma cultura de imitação,
pobre em originalidade, que pretendia parecer quem na verdade não era.
Acreditamos que o encanto pela cultura japonesa foi devido a ideia de simplicidade
elegante, mais conhecido pelo termo sabi, que era o contrário desta cultura de
imitação e excessos. Segundo Wright (1954, p. 187) “Uma das características
essenciais da arquitetura orgânica é uma simplicidade natural”.
4. Análises e discussões
Apresentamos as análises individuais do Jardim da Cerimônia do Chá e das
Usonian Houses para posteriormente estabelecer relações entre os projetos. Os
itens de análise são: Organização Geométrica/Assimetria, Visuais, Acessos e
circulação, Espaços (percurso/tempo), Cores, Elementos construtivos, Materiais
naturais e iluminação.
226
Análise do jardim (Roji)
Figura 1: Implantação geral de um Jardim da cerimônia do chá com diagramas indicando a sequência
do percurso. Fonte: Desenho Sarkis Kaloustian, 2014.
Análise do espaço (percurso/tempo) no Roji, que pode ser decomposto em
cinco etapas ou partes.
1. A porta de entrada coberta, (rojiguchi) com muros altos ao redor, a partir de
onde se abandona a complexidade do mundo externo e se inicia o caminho rumo à
simplicidade e à calma da cerimônia do chá. Depois de entrar os convidados
sentam- se num pequeno banco coberto (soto koshikake) onde se agrupam e
descansam.
2. A partir desse ponto iniciam o percurso até o portão do meio (mukaetsuke), onde o anfitrião os aguarda e recebe. Este portão é simbólico, pois é feito
de uma simples grelha de bambu, mas que marca claramente outro nível de
penetração no espírito da cerimônia.
Figura 2: A colagem de fotos mostra as visuais e o percurso desde a entrada até o espaço de espera,
e depois até o portão do meio. Fonte das imagens: Sarkis Kaloustian,1990.
227
Sequencia: Vista da rua / acesso pelo portão coberto / vista geral do roji / banco coberto de espera/
caminho de pedras / portão do meio
3. O portão simboliza a entrada do abrigo dos eremitas nas montanhas.
Seu estilo é simples, e bem como em sua pequena cobertura, pode ser de
materiais variados, bambu, madeira, galhos, telhas. Esse percurso no pequeno
jardim é direcionado pelas pedras planas sequenciais. Sua razão prática é a de
se caminhar sem molhar os pés. Estas pedras não são para serem admiradas e
seu arranjo serve para valorizar a delicadeza e a maciez do musgo ao seu redor.
4. A partir desse ponto e sempre pisando no caminho de pedras os
convidados chegam ao arranjo da bacia de pedra (tsukubai, lugar onde se inclina),
que existe em todas as casas da cerimônia do chá, sempre perto da entrada. É
o elemento mais importante do jardim e que fica entre a porta do meio e a casa.
A sua função não é apenas a de lavar as mãos e a boca simplesmente, mas nesse
ritual está vinculado um sentido de purificação espiritual. Simboliza o peregrino que
se abaixa para se purificar em algum riacho perto de um templo nas montanhas.
5. A última fronteira é a pequena e baixa porta de entrada da casa de
chá (Nijiri-guchi), que é uma pausa para concentração e preparação para o
espaço interno. Essa porta é propositalmente dimensionada e posicionada a fim
de obrigar o visitante a se dobrar para entrar, assim determinando que todos são
igualmente humildes. Uma vez dentro, o suave cheiro de incenso recepciona os
convidados que assim estão mentalmente preparados para o momento.
O primeiro quarto de chá foi construído pelo shogun Ashikaya Yoshimasa
(séc.XV) na Vila Ginkakuji (Era Muromachi, 1392-1568). A rusticidade e a
simplicidade de seus materiais, madeira e bambu em seu estado natural, vem da
inspiração dos casebres das montanhas e vilas de pescadores. Usa pilares
naturais curvos, paredes de argamassa, forros de bambu, telhados de palha de
duas águas, janelas de grelha de bambu, e possui claraboia. É elevada em
relação ao solo para mantê-la longe da umidade.
A ênfase na assimetria dos materiais naturais contrasta com a precisão do
desenho do piso, cuja área de quatro tatames e meio (cada tatame mede 1,90m x
228
0,95m) tornou se um padrão mínimo para as necessidades de movimento
humano, de no máximo cinco convidados na cerimônia do chá.
Possui um nicho (tokonoma) na parede frontal aos convidados, com a
função de apreciação de uma pintura, caligrafia e arranjo de flores. Esse arranjo é
sempre sutil e jamais chamativo por formas e cores. Sua origem é a do altar
despojado dos templos Zen, um local de meditação. As janelas são em número
elevado, o que permite dosar a iluminação exata com uma luz discreta.
Figura 3: A colagem de fotos mostra as visuais e o percurso desde a espera, até a casa da cerimônia
do chá. Fonte das imagens: Sarkis Kaloustian, 1990.
Sequencia: Bacia de pedra para lavagem das mãos / A casa da cerimónia do chá vista através do
portão do meio / Casa da Cerimônia do chá / Entrada baixa(nijiriguchi) / Espaço interno e detalhes
arquitetônicos.
Análise das Usonian Houses
Os projetos analisados são Usonian com planta em “L”, que caracteriza a
primeira versão de Usonian proposta por Wright em 1936, com a residência Jacobs.
No entanto, a relação também pode ser lida nas Usonian com planta linear como a
residência Baird, de 1940, ou a Winckler, de 1938.
The Natural House, livro publicado por Wright em 1954, revela de maneira
detalhada o projeto e concepção das Usonian Houses. Neste livro Wright dedica um
capítulo para tratar da relação da sua Arquitetura Orgânica e o Oriente. O arquiteto
também revela (1954, p. 220) que recebeu de presente o livro de Kakuzo Okakura
“The Book of Tea” (O Livro do Chá), do Embaixador do Japão nos Estados Unidos.
Lendo o livro, Wright afirmou: “A realidade de um espaço estava para ser descoberta
no espaço configurado entre coberturas e paredes, não na cobertura e nas paredes
propriamente ditas”. Ou seja, o espaço era o mais importante para o arquiteto. Um
aprendizado do Oriente para sua arquitetura orgânica.
229
Figura 4: Diagramas resultantes das análises dos espaços das Usonian analisadas. Percurso e
visuais. Planta, corte, elevação e axonométrica interna.
Sequencia: 1-Vista da rua / 2-acesso /3- percurso em espaço estreito e baixo / 4-descoberta do
espaço aberto após /5- visual da lareira. Fonte: Desenhos Ana Tagliari, 2014.
A partir do conhecimento da admiração de Wright pelo livro de Okakura,
buscamos relacionar afirmações contidas no livro com as análises realizadas.
Figura 5: A colagem de fotos mostra as visuais e caminhos na descoberta das Usonian estudadas.
Fonte das imagens: PFEIFFER, 1991.
Sequencia: Vista da rua / acesso / descoberta do espaço aberto após percurso em espaço estreito e
baixo / lareira / alguns detalhes.
Nesta pesquisa identificamos relações entre os espaços das Usonian e o
conjunto do Jardim da cerimônia do chá, incluindo também relações com a casa
para a cerimônia.
230
A sala da cerimônia do chá não impressiona em aparência. É menor do que
a menor das casas japonesas, enquanto os materiais utilizados na sua
construção são planejados para sugerir ausência de refinamento. No
entanto, devemos nos lembrar de que tudo isso é resultado de um profundo
planejamento artístico (...). (OKAKURA, 1906, p.56)
Esta afirmação de Kakuzo Okakura referente à sala da cerimônia do chá
poderia ser utilizada para apresentar uma Usonian. Sua aparência é relativamente
simples e não impressiona por seu tamanho ou grandiosidade. É relativamente
pequena com espaços com pé-direito baixo. Os materiais naturais utilizados são
deixados ao natural de maneira simples e sem ostentação. Sua combinação, no
entanto, revela um refinamento de uma obra artística não casual. Na Usonian cada
espaço é projetado para causar sensações nas pessoas. O percurso é tão
importante quanto as visuais. Os sentidos, as visuais e os elementos da arquitetura
e da natureza formam um conjunto expressivo. Pontuamos a seguir os itens
analisados.
1 – A aparência da casa vista da rua é simples e despojada. Com janelas
altas (clerestório) para preservar a privacidade das pessoas. Não há um projeto
chamativo de fachada. Wright procura não ser óbvio, banal ou previsível. A
composição é assimétrica, característica adotada também no conjunto do Jardim da
cerimônia do chá, como observou Kakuzo Okakura: “(...) a arte do extremo oriente
evitou propositalmente a simetria como expressão de algo não completo, mas em
construção. Uniformidade do projeto era considerada fatal para a clareza da
imaginação”. (OKAKURA, 1906, p.69)
2 – Onde é o acesso? A afirmação abaixo de Kakuzo Okakura sobre o
caminho (roji) que a pessoa deve percorrer no jardim da cerimônia do chá até chegar
a casa da cerimônia, é muito adequada na análise da Usonian: “O roji foi planejado
para quebrar a conexão com o mundo externo, e produzir uma sensação nova
favorável ao prazer da estética da sala de cerimônia do chá propriamente dita”.
(OKAKURA, 1906, p. 59).
O arquiteto não banaliza a localização da entrada da casa. Wright não é óbvio
e cria um acesso discreto, geralmente localizado em um plano vertical não paralelo a
rua. O percurso é importante para apreciar e entender o espaço. Neste caso o
percurso já se inicia na procura e descoberta do acesso da casa. O pé-direito e mais
231
baixo, a porta é pequena, ao entrar o espaço é estreito, relativamente escuro, com
iluminação necessária apenas para se locomover lentamente. Um percurso se inicia
para descoberta do coração da casa, onde se localiza a lareira.
3 – “A simplicidade da sala de cerimônia do chá e sua liberdade do vulgar faz
isto verdadeiramente um santuário longe das banalidades do mundo externo”.
(OKAKURA, 1906, p.71).
O espaço central da casa. O espaço social integrado com a cozinha e
também visualmente com o espaço externo, contínuo e fluido. Banhado por luz
natural, com pé-direito mais alto. Os materiais deixados ao natural criam um espaço
despojado e livre de ostentação, muito diferente das casas norte-americanas do
mesmo período.
O arquiteto (WRIGHT, 1954, p.167) afirmou que a arquitetura orgânica não é
algo terminado, mas sim em constantes crescimentos e transformações, por meio da
dinâmica das pessoas. Okakura (1906, p.69) observa que a casa da cerimônia do
chá: “Verdadeira beleza poderia ser descoberta apenas com alguém que
completasse o incompleto. A virilidade da vida e arte reside nas possibilidades do
crescimento”.
Nas Usonian não há a sensação de um espaço estático e enclausurado.
Wright define amplos campos de visão, internos e externos, e cria um espaço
complexo, caracterizado pela sua Arquitetura Orgânica e seus princípios de
simplicidade, integridade, continuidade e plasticidade. Wright tinha o domínio dos
espaços criados e dos campos visuais que seriam provocados a partir de ambientes
de permanência, como, por exemplo, a visão a partir da mesa da “sala de jantar”
(JACOBS, 1978, p.26).
4 - A lareira, considerada o núcleo central, o coração da residência, não se
localiza de frente para o acesso da residência. Deve-se percorrer um espaço,
gradativamente, até atingir o ambiente principal, o núcleo, onde está a lareira. A
concepção da planta parte “de dentro para fora” (from within outward). O centro
irradiador é a lareira.
232
Na fase Usonian, Wright posiciona a lareira no centro articulador da casa,
numa disposição assimétrica, tanto com relação ao conjunto como do espaço em
que se encontra. A forma da lareira segue essa assimetria, proporcionando uma
simplicidade extrema na sua composição dos materiais deixados ao natural. Wright
acreditava que a lareira nunca deveria ser a protagonista, pois o fogo sempre o seria.
Na casa da cerimônia do chá, a preparação do chá pelo monge é o
acontecimento mais importante do espaço. Os convidados devem entrar com roupas
discretas, sem fazer barulhos ou movimentos chamativos. O único som que deve ser
ouvido e apreciado é o da água (Na Usonian é o fogo). Borbulhando para a
preparação do chá:
(...) os convidados devem entrar um por um em silêncio (...). O anfitrião não
entra a sala até que todos os convidados estejam sentados e a paz reina
sem que nada quebre o silêncio exceto o som da água fervento na chaleira
de ferro. (OKAKURA, 1906, p.62)
5 – Algumas combinações de materiais forma o “ornamento orgânico” nas
casas de Wright. Uma característica da casa da cerimônia do chá, observada por
Okakura, pode também ter uma interpretação na Usonian:
“A coluna do tokonoma deve ser de um tipo diferente de madeira das outras
colunas, num tipo diferente de madeira das outras colunas, no sentido de quebrar
qualquer sugestão de monotonia na sala”. (OKAKURA, 1906, p. 70)
A combinação dos materiais naturais, normalmente madeira e tijolo, revelam a
qualidade do tratamento artístico dos elementos construtivos. Os elementos
arquitetônicos como piso, forro, janelas, mobiliário, são dispostos de maneira a criar
combinações variadas sem repetição óbvia, unindo cores e texturas diferentes. As
cores costumam ser advindas dos materiais utilizados como marrom e amarelo, do
tijolo e da madeira dependendo do tipo (vermelha ou amarela). Não há cores
aplicadas nos materiais naturais. Cores primárias como vermelho, amarelo ou azul
são adotadas apenas em algum detalhe como na tapeçaria ou no estofado do
mobiliário.
A justaposição de diferentes materiais naturais permite evidenciar texturas e
características inerentes de cada material, fazendo com que isso se torne o
233
ornamento inerente à estrutura, como algo que acontece naturalmente e revela a
beleza natural do material.
Wright desenvolve um projeto único, onde mobiliário, iluminação e
ornamentos fazem parte do conjunto. A iluminação é desenhada embutida para ser
discreta e difusa. O arquiteto afirmou em seu livro “The Natural House” (1954) que a
iluminação artificial é quase tão importante quanto a natural e deve ser parte
integrante da casa (do projeto). Wright diz que esta iluminação deve estar
“escondida” e embutida, pois seu efeito será muito mais natural. Luzes externas
brandas também são importantes para valorizar a construção.
Conclusões finais
A partir das análises realizadas pudemos observar as relações conceituais
entre o Jardim Japonês e o projeto das Usonian Houses de Frank Lloyd Wright,
baseado numa interpretação original fundamentada em escritos, desenhos e fotos.
A assimetria, presente em todo o conjunto do Jardim da Cerimônia do chá, é
uma característica marcante das Usonian Houses. Atributo geométrico que contribui
para evitar o óbvio, a repetição e o previsível, criando condições para que as
pessoas exercitem a imaginação. O acesso, percurso, visuais, além da surpresa
visual e da paisagem emprestada, que são cuidadosamente pensados para criar
sensações e percepções nas pessoas que apreciam e vivenciam o espaço destes
projetos, tanto no Jardim do Chá, como na Usonian. O acesso discreto, que conduz
a um espaço onde o individuo deve se locomover com atenção, levando à visuais e
espaços que despertam sensações e descobertas. Os materiais utilizados revelam o
despojamento e simplicidade. A combinação entre os materiais mostram a riqueza
do trabalho artístico, com simplicidade. As cores neutras advindas da natureza dos
materiais contribuem para não desviar a atenção das pessoas que passam por um
momento de limpeza mental e simplicidade. A iluminação branda também contribui
para a criação de um ambiente sereno e calmo.
Acreditamos na existência da relação conceitual intensa entre os projetos das
Usonian Houses e os espaços do Jardim da Cerimônia do chá. Espaços de
234
enriquecimento do espírito humano, distante da banalização e do óbvio, enaltecendo
o trabalho artístico e profundamente sensível. Uma celebração do espaço e da
percepção humana.
Notas
1
Wright cita este termo ao se referir a um pensamento que dominava a maioria dos cidadãos dos
Estados Unidos. Grandomania significa uma “mania de grandeza”, principalmente imitando estilos clássicos
europeus que nada combinavam com o modo de vida dos norte-americanos do século XX.
Referências Bibliográficas
DURSTON, Diane. Kyoto Seven Paths to the Heart of the City. Tokyo: Kodansha, 1987
ITOH, Teiji, The Gardens of Japan. Tokyo: Kodansha, 1984
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Editora K, 2010.
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OKAKURA, Kakuzo. The Book of tea. New York: Stone Bridges Press, 2006. (Primeira
edição de 1906 publicada por G.P. Putham’s Sons, New York).
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POPE, Loren. “The Love Affair of a Man and His House” (1939/1948). House Beautiful 90,
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SERGEANT, J. Frank Lloyd Wright’s Usonian Houses: the case for organic architecture.
New York: Watson-Guptill Publications, 1976.
TAFEL, E. Years with Frank Lloyd Wright: apprentice to Genius. New York: Dover
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TAGLIARI, Ana. Frank Lloyd Wright: princípio, espaço e forma na arquitetura residencial.
São Paulo: Annablume Editora, 2011.
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YAMASHIRO, José. História da Cultura Japonesa. São Paulo: Ibrasa, 1986
ZEVI, Bruno. Towards an Organic Architecture. London: Faber & Faber Limited, 1949.
Ana Tagliari
Arquiteta (FAU Mackenzie), 2002, Mestre (IA UNICAMP), 2008 e Doutora (FAUUSP), 2012.
A dissertação de mestrado sobre a obra residencial de Frank Lloyd Wright foi agraciada com
o Prêmio Franklin Delano Roosevelt de Ciências Sociais da Embaixada do EUA, em 2009.
É autora do livro “Frank Lloyd Wright. Princípio, Espaço e Forma na Arquitetura Residencial”
(Annablume, 2011), que recebeu Menção Honrosa na Premiação IAB SP, 2011.
235
Sarkis Sergio Kaloustian
Mestre pela Universidade de Kyoto, Japão (1990), onde viveu por quatro anos. Graduado
em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (1979). Autor do livro “Jardim
Japonês - A Magia dos Jardins de Kyoto” (2010). Docente da Universidade Anhembi
Morumbi com vinte e dois anos de experiência de ensino nas áreas de Arquitetura e
Urbanismo, Artes, Design do Produto, Comunicação Visual, e Publicidade e Propaganda.
OBS. Tradução das citações dos autores.
236
UM ORIENTE PARA TARSILA DO AMARAL
Angela Brandão - UNIFESP
RESUMO: Alguns artigos escritos por Tarsila do Amaral para o Diário de São Paulo nos
anos 1930 dão margem a entender que a artista compreendia-se, enquanto desenhista,
como escriba. Comentaria, aqui, que “na China o desenho pertencia às artes da caligrafia
(...) porque escrever os caracteres complicados daqueles idiomas, por meio de tinta da
China e pincéis finíssimos, é desenhar.” Em outro artigo, a pintora mostrava seu interesse
pelo tema da invenção da escrita: “Um simples traço pequeno foi desenvolvido por Fo-Hi, na
formação de trigramas combinados de modos diversos aos quais se juntaram mais tarde
pequenas figuras mais ou menos realísticas dos objetos, formando o hieróglifo chinês”.
Estaria interessada no processo de simplificação dos objetos através dos ideogramas, como
forma de representação do mundo por meio de sinais abreviados? É tentador combinar as
palavras da artista sobre o processo de codificação do mundo no sistema de escrita
ideogramática – a representação feita por desenhos inteiramente terminados ou por uma
taquigrafia, em que só se desenhava parte do objeto – com seus desenhos, como uma
interpretação muito própria da ideia de Oriente e um esforço para a criação de códigos fixos
que representam uma síntese da modernidade e de suas contradições.
Palavras-chave: Tarsila do Amaral; escrita oriental; desenho.
ABSTRACT: Some articles by Tarsila do Amaral for the Diário de São Paulo in tne 1930th
permit us to understand that the artist recognized herself, as drawer, like a scriber. She
wrote: “in China draw belonged to calligraphic art (…) because writing the complicated
character from those idioms, by using Chinese ink and very thin brushes is to draw”. In
another article, the painter demonstrated her interest on the invention of writing: “one single
trace developed by Fo-Hi, in the constitution of trigrams combined in different ways that were
joined, later, with little figures more or less realistic from the objects, forming the Chinese
hieroglyph”. Would be Tarsila interested on the process of simplifying objects through
ideograms, as a method of representing the world by abbreviated signs? It is a temptation to
compare the artist’ words about the process of codifying things through the system of
ideogram writing – the representation done by objects fully finished drawings or through a
shorthand, in which we draw only part of the object – and her drawings, like a very
particularly interpretation of the idea of Orient an like an effort to create fixes codes that
represented a synthesis of the modernity and its contradictions.
Keywords: Tarsila do Amaral; Oriental characters; draw.
Epígrafe
Os limites espaciais do Ocidente nunca foram precisos: construção histórica,
mais do que geográfica, campo de cruzamentos e transposições culturais, mais do
que de fronteiras. Se as origens da ideia de Ocidente mergulham em civilizações
antigas, como a egípcia e a mesopotâmica, cujas características teriam se
estampado sobre o desenvolvimento da civilização grega, seus parâmetros
237
históricos são igualmente imprecisos. O historiador italiano, Arnaldo Momigliano, ao
escrever sobre os limites da helenização como interação cultural das civilizações
grega, romana, céltica, judaica e persa, propôs que os encontros entre Ocidente e
Oriente sempre se fizeram, são mundos em oposição e em comunicação. Em suas
palavras: “Da relação entre Ocidente e Oriente viveu a humanidade (...) desta
relação vive a humanidade ainda hoje [sem grifo no original]” (MOMIGLIANO,
1990, pp. 9-18).
Caligrafia oriental e arte moderna
Parte da arte moderna resultou das experiências de transposições da arte não
ocidental para o trabalho dos artistas ocidentais – ou pelo menos de uma ideia que
os artistas ocidentais modernos construíram acerca do Oriente e do não-ocidental.
Esta visão era também uma seleção e uma transformação de formas transpostas e
adaptadas ao que se queria entender como Oriental.
Henri Matisse (1869-1954), em 1952, escrevera em uma carta a um jovem
artista, afirmando que, se nas escolas europeias se aprendia o desenho imitativo, os
orientais procuravam, ao desenhar uma árvore, a “sensação de subir”. Ao invés de
detalhar, era preciso, para ele, encontrar a sensação do objeto na totalidade, na
posição exigida pelos sentimentos retidos na memória. (MATISSE, 1972, pp.156,
157.)
De modo semelhante, a influência dos traços da escrita oriental se faria
presente na obra de Wassily Kandinsky (1866-1944).
O quadro ricas pretas I (1913) mostra um jogo igualmente dissolvido de
sonoridades de cores fugazes e de sinais gráficos que aí se gravam. A
oposição entre os traços e cores ardentes variadas e a execução dos sinais
gráficos é aqui expressa ainda mais nitidamente, lembrando as caligrafias
japonesas que Kandinsky admirou em toda a sua vida.” (DÜCHTIN, 1994, p.
48)
A escrita oriental, ideogramática, baseada em gestos precisos de nanquim
sobre papel, inspirou uma série de reflexões para a arte moderna. Sob a perspectiva
do surrealismo, como expressão de um automatismo psíquico no universo da obra
de Joan Miró (1893-1983), a escrita oriental assumiu um caráter de modelo de
síntese e de gesto criador e revelador.
238
O uso abundante de arabescos sugere uma inclinação pela arte
decorativa oriental. De fato, neste período – década de 1910, Miró sentiase impressionado com a divertida expressividade e a riqueza formal da
ornamentação japonesa; a quando das duas exposições dos
expressionistas, realizadas em Barcelona durante a guerra, pudera estudar
a influência da arte oriental na pintura francesa. A art nouveau também
recorria a motivos ornamentais de todas as culturas do mundo. Mas havia
um excessivo romantismo, ou seja, literatura, nesse regresso ao passado,
nesta eterna busca gauguinesca do paraíso perdido em que o espírito da
Europa anterior à guerra, farta de tanto debate, procurava refúgio. Por volta
de 1918, contudo, o mundo parecia estar curado destes anelos românticos.
Miró, que conhecia bem a decoração profusamente colorida, graças à arte
popular catalã, viu nestes símbolos o vigor do primitivo. (...) A arte do oriente
não se limita ao ornamento exuberante, inclui também uma tessitura
delicada e florida da pintura miniatural. (...) o uso de motivos orientais na
obra de Miró assume também um novo significado. Este processo
permitiu-lhe apresentar o velho e familiar de um modo novo e vibrante.
(ERBEN, 1997, pp. 161,162)
O interesse pela arte oriental, sobretudo no que se refere à arte da escrita, foi
revelado por Miró: “Acontece por vezes que ilustro os meus quadros com frases
poéticas e vice-versa – os Chineses, esses grandes seigneurs do espírito não faziam
exatamente o mesmo?”, (Apud. ERBEN,1997. p. 214.) Ou, ainda, Miró escreveu
numa carta a Michel Leiris, datada de 1924, que o artista japonês Hokusai “queria
tornar perceptível uma linha ou um ponto, simplesmente”. Miró tentava criar em seus
quadros o mesmo efeito que o haicai japonês, a quintessência de uma percepção
recente e breve. Sua arte manifestava, desde o anos 1920, este desejo caligráfico.
(MINK, 1994).
A escrita oriental parecia ter algo em comum com os símbolos adotados pelos
quadros de Miró. Duas exposições do pintor catalão, uma em Tóquio e outra em
Kyoto, em 1966, inspiraram-no ainda mais em direção à arte japonesa da caligrafia.
Em 1967, Miró criou uma série de litografias chamadas Haiku – uma indicação clara
de sua abertura à influência japonesa. Os títulos dos quadros desse período são
igualmente influenciados pela poesia japonesa. Mas sua “concepção da pintura
como uma espécie de poesia visual não tem nada de novo e não nasceram após
seu contato com a arte do extremo Oriente. De fato, são um traço típico de sua obra
desde os anos 20.” (ERBEN, 1997, p. 224).
O interesse em torno da grafia oriental, entre outros, presente na abstração
de Kandinsky ou nas criações de Miró, possivelmente influenciaram as obras de
pintores a partir dos anos 1950, como Franz Kline (1910-1962) ou Mark Tobey
(1890-1976).
239
Desenhos de Tarsila do Amaral e a poesia de seu tempo
A poesia de Blaise Cendrars (1887-1961) foi comumente comparada aos
desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973) – não somente aqueles que ilustram o
livro do poeta franco-suíço, Feuilles de Route, mas com os desenhos de Tarsila de
modo geral – pelo mesmo desejo de síntese, pela anotação rápida da realidade
imediata e fugidia. Tem-se em Feuilles de Route, como nos desenhos de Tarsila, a
impressão de um diário de viagem muito breve, onde a natureza e a arquitetura se
aproximam de formas geométricas: “casas cúbicas”, “árvores esféricas” ou
“montanhas triangulares”. É, talvez, a mesma percepção compacta da paisagem e
das vistas que se tem por meio dos desenhos de Tarsila (CENDRARS, 1925).
O poeta escreveria em 1951, em seu livro Brasil: Vieram os Homens:
Em vez de fotografias que eu não podia tirar (...) disparava imagens
verbais instantâneas graças ao dom que possuo de imprimir e de não
dizer tudo à descrição, bilhetes postais mentais (...) Se tivesse viajado
de avião nunca teria sido levado a fazer fotografia verbal e a endereçar
estas imagens aos meus amigos sob a forma de poemas despojados (...)
[sem grifo no original] (CENDRARS, 1996)
Pareciam evidentes tanto a associação entre poesia e imagem, quanto a
satisfação pela capacidade de produzir poemas breves. Insistia, Cendrars, neste
aspecto por meio de expressões como “imagens verbais instantâneas”, “bilhetes” ou
“poemas despojados”. Entende-se, daí, o mesmo sentido instantâneo dos desenhosbilhetes que Tarsila do Amaral realizou em todas suas viagens, a mesma intenção
de fornecer imagens/mensagens rápidas apreendidas durante o percurso, “poemas
escritos em trânsito”.
Nos anos setenta, Alexandre Eulálio entenderia, em Etc...,etc... (Um livro
100% brasileiro), que a partir da visita do poeta franco-suíço, nos anos 1920, o Brasil
se tornava “a encarnação definitiva do mito da viagem”: “ele [Cendrars] jamais se
restringe a uma reprodução literal da matriz. Trata-se antes da síntese radiográfica,
versão livre de uma realidade que nos textos de Cendrars se reincorpora com
surpreendente agudeza (...) deformar para formar o traço justo, o seu retrato do
Brasil é fiel à essência, não ao pormenor” (EULÁLIO, 1976, pp.32-33).
240
Na introdução ao livro de poesias de Oswald de Andrade, Pau Brasil, Paulo
Prado escrevera que para os novos temas, para o “pluralismo cinemático de nossa
época”, “época apressada de rápidas realizações, a tendência é toda para a
expressão rude e nua da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e
sintética”, para a expressão da “concisão lapidar” do haicai japonês, em
“minutos de poesia” [sem grifo no original] (PRADO, P. in ANDRADE, O. 1925,
pp.7,8,10). Esta nova forma poética, de síntese, coincidia com o estilo dos desenhos
de Tarsila e com as orientações que recebera, provavelmente, de um de seus
professores no cubismo, em Paris, André Lhote (1885-1962).
Para André Lhote, o desenho era a organização harmoniosa de “signos
representativos sobre o papel”. Mais do que os povos primitivos, os Orientais
reduzem, segundo ele, o modelo para substituí-lo ao ornamento ou ao signo, nos
quais são abolidos todos os detalhes. “Aqui, as coisas são reduzidas ao ornamento
absoluto unicamente pelo traço, a cor é demasiado pura para suportar a imitação em
relevo do que quer que seja: é por isso que os objetos são significados ao invés de
serem imitados”. Observava, ainda Lhote, que os japoneses, quando crianças,
aprendiam a desenhar utilizando formas geométricas e acostumavam-se, assim, a
ver a realidade geometricamente. Como num jogo, círculos, retângulos, triângulos
eram dados de antemão para que, justapostos, formassem figuras de homens e
animais. Como as crianças orientais, os jovens pintores deveriam, segundo Lhote,
habituar-se a “considerar como inseparáveis a geometria e a verdade e a apresentar
toda representação da realidade como um jogo”, adotando uma “escrita plástica
geometrizada”, reduzindo as coisas ao signo puro. O “espírito de síntese” percebe as
coisas apenas de modo geral, produzindo imagens da “sensação global”, das “linhas
dominantes”. (LHOTE, 1948, p.76 ). Para citá-lo diretamente:
O paisagista deve reter apenas, ao observar o mundo, suas direções
dominantes que são levadas para o esboço, partindo de cada canto do
quadro e sem se preocupar com os pontos onde se localizarão os objetos.
Estas direções: galhos, linhas do terreno, tetos das casas, linhas de sombra
ou brilhos de luz, acumular-se-ão em um sentido dado (...) O pequeno jogo
dos japoneses (...) obrigando aos principiantes a sentir a natureza através
de formas com uma unidade de estrutura, obrigava-os também a conceber
a disposição das formas somente através de uma rede rítmica
simples[sem grifo no original] (LHOTE, 1948, p78-79)
Eram, portanto, poesia ou desenho concisos, de acordo com as orientações
de André Lhote e como manifestado na introdução de Paulo Prado para a Poesia
241
Pau Brasil, próprios para expressar “a nossa época apressada”. As relações entre a
obra de Tarsila do Amaral, especialmente de seus desenhos, e a literatura, foi
bastante averiguada e compreendida. É preciso ir um pouco adiante e procurar
entender até que ponto os desenhos de Tarsila podem ser entendidos também como
uma forma de escritura.
Tarsila do Amaral e o desenho como ideograma oriental
Michel Leiris escrevera que o primeiro problema insolúvel, para a crítica de
arte, seria definir o limite no qual a escrita se faz caligrafia e por que um X é
caligráfico, enquanto um Y não o é, em suas palavras: “Premier problème – irrésolu
et peut-être insoluble – de la critique d’art: déterminer le point où l’écriture se fait
calligraphie. Pourquoi X est-il calligraphe, alors que Y ne l’est pas?” (LEIRIS, 1971)
Mário de Andrade havia refletido sobre a natureza do desenho como uma
forma de escrita. O desenho seria, para ele, uma manifestação sutil e transitória,
uma “fala”, “mais caligrafia que arte plástica”. O desenho implicava, segundo Mário
de Andrade, num desenvolvimento intelectual maior que não é encontrado nem
mesmo entre povos que conheçam os processos primários da pintura. Assim como
as pinturas primitivas do corpo, os desenhos possuem uma “essência caligráfica”.
São, portanto, “para serem lidos como poesias, haicais, sonetos. Mesmo croquis,
esboços, como desenhos completos”. E ainda, o desenho é “a definição para a
compreensão intelectual. É como um provérbio, uma frase feita, emprega processos
essenciais da manifestação poética, é da natureza descrevedora e raciocinante da
prosa” (ANDRADE, M. 1975, pp. 69-77).
Ideias como essas a respeito do caráter caligráfico da arte do desenho podem
ter conotações sugestivas para compreendermos os desenhos de Tarsila do Amaral
como ideogramas. Da mesma forma, André Lhote, havia escrito ainda em 1910 as
seguintes observações: “O ritmo na arte é a dança das linhas. Os acadêmicos,
tomados de paixão pelo contorno exato, não podem ter ideia desta embriaguez
plástica à qual os músculos, as rugas e os ossos não podem resistir; os únicos que
podem senti-lo são aqueles entre cujas mãos um lápis se torna o prolongamento
balanceado de si mesmos, delírio espontâneo, escrita inspirada [sem grifo no
242
original]”. Como já se viu antes, André Lhote apontava, em seu Tratado da
Paisagem, uma semelhança entre o desenho e a escrita. Os japoneses, realizavam,
idealmente este cruzamento entre a escrita e leitura geométrica da realidade. A arte
de desenhar equivaleria, neste ponto, “à adoção de uma escritura plástica
geométrica”, à redução das coisas a seu signo puro (LHOTE, 1948, pp.58-59).
A prática do desenho pertenceria, sob esse ponto de vista, a um campo
intermediário entre a arte e a escritura. Lembra-se que em grego desenho e escrita
têm a mesma raiz etimológica. O desenhista seria, assim, uma espécie de escriba,
assim como o escritor empregaria signos. Seria de difícil determinação o ponto em
que a escrita se faz caligrafia e em que o desenho se faz escritura, como queria
Michel Leiris (LEIRIS, 1975, s/p. e GROWE e FRANZ, 1984, p. 24).
No que se refere aos desenhos de Tarsila, Aracy Amaral já revelara sua
relação com a escrita. Ao comentar sobre os desenhos da artista para o livro de
Blaise Cendrars, Feuilles de Route, a autora escreveria:
ilustrado por Tarsila, cujo domínio da linha plenamente adquirido a partir de
1923 já lhe permitia, não apenas a estilização, como a simplificação, numa
redução máxima de elementos gráficos quase que ideogramáticos. Nãodiscursos, os desenhos realizados, sobretudo na viagem a Minas – e desse
tempo em diante nos anos vinte – são registros rápidos, telegráficos, que se
casam admiravelmente com o conjunto de poemas da viagem de Cendrars
ao Brasil, sua poesia, por sua vez, plena de referências sobrepostas, numa
construção rítmica.[sem grifo no original] (AMARAL, A. 1975, pp. 157-158)
Comentaria, ainda Aracy, ao introduzir o livro de desenhos de Tarsila do
Amaral, que o hábito do desenho havia se tornado, para a artista, como a “palavra
escrivinhada, às pressas pelo poeta”, porque Tarsila “escreve desenhando, fala pela
imagem” (AMARAL, A. 1971, s/p). Esta mesma autora lembraria, no catálogo da
exposição da artista, em 1969, que Tarsila abandonara suas incursões na poesia,
deixara de escrever poemas à medida em que se agilizava sua capacidade no
desenho, como se a necessidade de expressão escrita e poética tivesse sido
canalizada para o desenho. No ano seguinte, Aracy ainda comentava que, nos
desenhos de Tarsila, bichos, vegetais e pedras se confundiam “no fluir linear de sua
escrita gráfica horizontal e organizada”. (AMARAL, A. 1970)
Na biografia de Tarsila do Amaral, escrita por Nádia Battella Gotlib, pode-se
ler que a admiração que a pintora tinha pelas palavras a havia levado a escrever
243
poemas cujas “imagens traduzem gestos da artista plástica, que aí verseja
desenhando linha e fazendo traço”. Refere-se e cita o poema Tédio de Tarsila:
“Linha reta, infinita, onde a vista erradia/ Em vão busca tactear um relevo que
agrade.../ Vago traço de união entre o erro e a verdade, (...)” . Etc. Neste poema,
para a biógrafa, haveria evidentes elementos plásticos, de onde se poderia concluir
a relação intensa entre palavra e imagem presente no procedimento criativo de
Tarsila, tanto na escrita quanto no desenho (GOTLIB, 1978, pp. 37-39)1.
Flávio de Carvalho observou, na homenagem a Tarsila feita através da
Revista Acadêmica de 1940, que a arte desta pintora respondia a quatro períodos. A
pré-pintura, a poesia, a fase sombria e o período cor de rosa. O período da poesia
corresponderia à fase pau-brasil, quando a “poesia invade fortemente sua vida, a
sua arte”, a poesia da simplicidade (CARVALHO, 1946).
Frederico Morais via, ao contrário, que em certos trabalhos gráficos de Tarsila
“tudo vira desenho, a linha, o vazio, a palavra e até a assinatura”, o T.24 com
“precisão e elegância” (MORAIS, 1985, p.3). Mais uma vez, escrita e desenho se
confundem.
Mas
todas
estas
observações
seriam
desnecessárias
se
apenas
observássemos com atenção alguns dos desenhos de Tarsila do Amaral, como
Acrópole II, Vista de Rodes ou Vista de Ouro Preto. É muito provável que as
intenções de produzir imagens de síntese contivessem para a artista uma reflexão
sobre desenho como escrita.
Alguns de seus artigos para o Diário de São Paulo2, nos anos 1930, dão
margem a entender que a própria artista compreendesse seu trabalho, enquanto
desenhista, como uma espécie de exercício de escriba. Ao tratar, por exemplo, da
Pintura na Arte Japonesa, Tarsila comentaria a arte de Kano Massanobu, de
princípio do século XVI, com as seguintes palavras:
Fundou uma escola nova, baseada nos processos caligráficos dos antigos
mestres chineses, adaptando-os ao verdadeiro estilo japonês. Deve-se
notar que na China o desenho pertencia às artes da caligrafia e que,
mesmo atualmente, todo chinês e todo japonês culto sabe desenhar, porque
escrever os caracteres complicados daqueles idiomas, por meio de tinta da
China e pincéis finíssimos, é desenhar. Mas agora, que o Japão inunda os
mercados europeus e americanos canetas tinteiros [sic], ainda continuam a
escrever com pincéis. (...)
244
O espírito, a graça, a pureza da linha são os característicos da pintura
japonesa. A linha é o que pode haver de mais convencional, já que ela não
existe na natureza. A esse respeito, lembro-me da insistência de Robert
Delaunay, o pintor da Torre Eiffel, em fazer pintura sem linhas. Delaunay,
quando o vi pela última vez, há quatro anos, andava obcecado por essa
ideia, mas os seus painéis decorativos de turbilhões de cores luminosas
sem pretensão a naturalismo, não puderam entretanto evitar o
convencionalismo.
Os
pintores
japoneses
não
evitam
esse
convencionalismo e servem-se dele francamente como o seu melhor meio
de expressão. E está me parecendo que pintar ou desenhar sem linhas,
como quer Delaunay, é o mesmo que falar sem palavras [sem grifo no
3
original] (TARSILA, T., 1937, p.6) .
O elogio à linha não é o único aspecto importante deste artigo sobre arte
oriental para esclarecer o próprio trabalho da artista. Chama a atenção seu interesse
em aproximar desenho e palavra. A palavra que, para ela, “entre todos os sinais de
exteriorização do pensamento, tem a supremacia”. A palavra representava, de
acordo com Tarsila, a “expressão máxima do pensamento” ao lado das outras
formas de linguagem: “o gesto, os processos gráficos abrangendo todos os sinais
escritos – números, hieróglifos, artes do desenho, música4 (TARSILA,T., 1937, p.6)”.
No artigo seguinte, sobre a Escrita, a pintora mostrava seu interesse pelo
tema da invenção da escrita.
Depois do gesto, o primeiro sinal de exteriorização do pensamento, depois
da palavra, a mais completa destas exteriorizações, vem a escrita,
abrangendo genericamente todos os processos gráficos.
Os cálculos de raciocínio se fazem apoiados na palavra mental, articulada
ou escrita, sendo esta última a melhor das formas.
No desenvolver de um pensamento complexo, instintivamente lançamos
mão de anotações para não perder o fim das ideias. Já que a simples
palavra mental ou articulada se tornam, nesse caso, insignificantes. Esse
processo é o único eficaz para a maioria dos espíritos, só podendo ser
dispensado por uma alta elite intelectual. O homem em geral prefere
concretizar o pensamento: pela palavra escrita, retratá-lo em formas
sensíveis para depois o aperfeiçoar. O grande serviço que a escrita
presta ao pensamento vista da maneira lenta por que é executada,
obrigando o homem a medir, pesar e afirmar o que escreve, enquanto a
palavra articulada retrata o pensamento num instantâneo não fixado. Muitos
povos têm reivindicado para a invenção da escrita. Os chineses atribuíramna ao imperador Fo-Hi, o filho do arco-íris nascido 3.300 anos antes da
nossa era. Conquanto seja um filho luminoso do a existência de Fo-Hi está
comprovada por documentos, e a China dá-lhe categoricamente a primazia
da invenção na escrita composta de simples traços combinados de
diversas maneiras para substituírem as cordas nodoadas que então se
usavam como processos mnemônicos para as leis e fatos históricos. (...)
Numa tal exuberância criadora, não era de admirar que inventasse também,
por meio da escrita, a maneira de perpetuar sua memória.
Os historiadores na maioria estão de acordo em que a arte de escrever se
deve aos egípcios.
245
A escrita na sua trajetória tem três fases bem definidas. A figurativa, ou
hieroglífica, representando aspectos e ideias por meio de figuras; a fase
transitória ou simbólica, com a representação convencional de ideias e
objetos; a fase alfabética pura ou fonética, adaptada pela matéria dos
povos atuais com a representação fonética da voz humana. À fase figurativa
ou hieroglífica pertencem os primeiros hieróglifos egípcios e os primeiros
sinais da escrita chinesa. A fase transitória ou simbólica representa os
hieróglifos egípcios chamados hieráticos, a escrita chinesa atual, a japonesa
e algumas outras. A fase fonética compreende todas as escritas baseadas
no alfabeto. Um simples traço pequeno foi desenvolvido por Fo-Hi, na
formação de trigramas combinados de modos diversos aos quais se
juntaram mais tarde pequenas figuras mais ou menos realísticas dos
objetos, formando o hieróglifo chinês. Depois se reuniram duas ou
mais figuras para exprimir uma ideia. Assim, a ideia de luz era
representada por um sol e uma lua, um homem sobre uma montanha
significava um eremita; uma orelha e uma porta, o verbo ouvir; uma
boca e um pássaro, cantar; um olho junto à água, chorar; a imagem de
um coração, a abstração dos sentimentos. [sem grifo no original](...)
5
(AMARAL, T. 1937, p.6)
Tarsila publicou, portanto, uma série de três artigos, nestes anos, depois de já
ter publicado o estudo sobre a pintura japonesa, tratando do tema da palavra, da
escrita e dos hieróglifos, mostrando-se muito interessada em compreender estes
sistemas gráficos de expressão, especialmente os sistemas orientais. Estaria
preocupada, talvez, com o processo de simplificação dos objetos através dos
ideogramas, como forma de representação do mundo por meio de sinais abreviados.
Tarsila do Amaral não era, certamente, como vimos, a única artista de vanguarda a
interessar-se pela arte e pela escrita oriental. Os hieróglifos egípcios, porém, lhe
pareciam igualmente um tema pertinente nesta série de artigos:
A pedra de Rosetta foi a pedra de toque animadora que levou o cientista
Champolion, o jovem, a estudar e a decifrar os hieróglifos egípcios. (...) Os
gregos e os romanos, habituados à escrita fonética, desorientaram-se
diante do sistema gráficos dos egípcios, constituído pelos sinais figurativos
ou hieroglíficos com a representação dos objetos desenhados e pelos sinais
simbólicos com a representação convencional desses objetos (...)
Champolion demonstrou que no tempo da dominação grega e da tomada do
Egito o sistema gráfico compreendia um certo número de figuras de valor
puramente fonético, por meio dessas figuras os nomes dos soberanos
gregos e romanos foram gravados hieroglificamente em alguns
monumentos do Egito e de estilo egípcio. Afirma também que o verdadeiro
alfabeto egípcio vem das épocas mais antigas da história deste povo. No
Précis du Systhème Hieroglifique, publicado em 1824, ele determina quais
os sinais hieroglíficos que não pertencem ao alfabeto fonético e divide esta
escrita através da forma natural dos sinais em três modalidades.
Primeiramente a hieroglífica propriamente dita, que se compõe de sinais
representativos do mundo físico, objetos, animais, plantas, árvores,
cuja representação é feita por desenhos a traço ou inteiramente
terminados e mesmo coloridos. A segunda modalidade é a hierática, uma
verdadeira taquigrafia da hieroglífica, assim, só se desenhava uma
parte do objeto em vez de desenhá-lo inteiro. A terceira modalidade é a
demótica ou popular, igual à precedente porém reduzida. Era empregada
relativamente à vida comum.
246
Quanto ao valor dos sinais são eles figurativos, simbólicos e fonéticos. Os
figurativos exprimem simplesmente a ideia do objeto desenhado: um
boi representa simplesmente um boi. Os sinais simbólicos exprimem
uma ideia metafísica através da imagem que tenha analogia direta ou
indireta com a ideia que se queira expressar. Os sinais fonéticos
exprimem os sons da língua falada. Todos estes sinais aparecem
conjuntamente na mesma inscrição e longe de complicar, facilitam a
6
interpretação [sem grifo no original].(TARSILA, 1937, p.6)
É tentador combinar as palavras da artista sobre o processo de codificação do
mundo no sistema de escrita hieroglífica – a representação feita por desenhos
inteiramente terminados ou por uma taquigrafia, em que só se desenhava parte do
objeto – com sua produção de desenhos em forma de sínteses das cidades pelas
quais viajou.
Se aceitamos como válida esta combinação, trata-se de entender os
desenhos de Tarsila do Amaral como uma espécie de invenção de escrita, um
esforço para a criação de códigos fixos – como o templo grego reduzido a traços
ligeiros ou a igreja barroca sintetizada em poucos elementos geométricos.
Estas ideias coincidem com o que foi proposto por Haroldo de Campos, ainda
no final dos anos1960, de que a obra de Tarsila seja “uma leitura estrutural da
visualidade brasileira: reduzindo tudo a poucos e simples elementos básicos (...)
codifica em chave cubista nossa paisagem ambiental e humana”. Para este autor, a
redescoberta do Brasil por parte de Tarsila era mesmo esta releitura de modo
seletivo. Por esta releitura, a artista “vivenciava a realidade” que seria “decodificada”
para ser “recodificada” na tela. O “mundo icônico” de Tarsila era, para Haroldo de
Campos, constituído de “elementos privilegiados”, “figuras demarcadas e lúcidas”. O
caráter de síntese na obra de Tarsila e a produção de “códigos visuais”, com valor
simbólico estaria, contudo, fundamentado, a seu ver, pelas cores “geometrizadas
nas casinhas que modulam o cenário tarsiliano, são também índices (...) qualidade
concreta” (CAMPOS, 1969 apud AMARAL, A. 1975, pp. 484-485).
Carlos Zílio confirmou, com outras palavras, a ideia de Haroldo de Campos,
em A querela do Brasil, ao explicar o sistema de Tarsila. Adotou, portanto, a ideia de
que se tem, em sua obra, a constituição de signos (ZILIO, 1982, p.82). Para o crítico
Mário Barata, Tarsila conseguiu justamente “codificar os elementos da visualidade
brasileira numa síntese mental-imagística” que coincidia com o seu “sintetismo
247
plástico”. Através do cubismo de Léger, para ele, a artista construiu uma “visão
codificada, nova, pura e modernista do Brasil” (BARATA, 1969).
Mas, desde o catálogo da exposição de 1929, um dos textos reunidos já
apontava que Tarsila tentava “domar a aspereza de certos símbolos naturais da
nossa terra, estilizando-os para uma futura arte decorativa genuinamente nossa.
Em sua tela que representa a baía de Guanabara, nota-se essa preocupação digna
de ser incentivada. O Pão de Açúcar, ali já passou por várias transformações sem
perder as suas linhas mestras (...) Ora, essa maneira criadora de estilizar os
motivos de arte brasileira vai proporcionar a esta terra um novo campo de pintura
[sem grifo no original]” (SILVEIRA, 1929, pp. 44-45)
A compreensão que se teve, já em 1929, a respeito da capacidade de estilizar
os símbolos nacionais, transformando-os sem perder suas linhas principais, tomando
aqui como exemplo o Pão de Açúcar que ilustra a Poesia Pau-Brasil, deveria valer
também para a criação de um outro símbolo – transformado e estilizado nos
desenhos da viagem a Minas Gerais de 1924: a igreja barroca. A visibilidade do
passado produzida pela pintora modernista proporcionou a criação de imagens
sintetizadas que serão repetidas – como códigos fixos. Tarsila teria criado, assim,
uma espécie de escrita, onde uma das palavras era a igreja de duas torres e de
frontão curvo, como um ideograma, um “hieróglifo taquigráfico” elaborado em seus
desenhos e recorrente em seus quadros.
Henri Matisse diria que “a importância de um artista mede-se pela quantidade
de novos sinais que tiver introduzido na linguagem plástica”. E ainda: “Um sinal para
cada coisa. É um progresso do artista no conhecimento e na expressão do mundo,
uma economia de tempo, a indicação mais sumária do caráter de uma coisa. O sinal.
(...) Com sinais pode compor-se de uma maneira livre e ornamental.” (MATISSE,
p.197)
É curioso observar a maneira inesperada como o “código da uma igreja
barroca” aparece, por exemplo, em quadros como EFCB, de 1924 ou no Vendedor
de Frutas, de 1925, onde se pode observar o modo como se extrai da realidade e se
transforma a fachada da igreja colonial, erguendo-a como um símbolo que se
248
sobressai na vista da cidade histórica, no desenho e na obra final de Lagoa Santa,
ambos de 1924.
Uma vez tendo sido possível entender os desenhos de Tarsila do Amaral
como uma espécie de escrita e de criação ideogramática, estabelece-se por um
outro caminho a permeabilidade entre arte e literatura, entre imagem e texto. Tendo
sido entendido o desenho – os ligeiros traços sobre o papel – como hieróglifos ou
ideogramas, o que dizer do imenso vazio que o circunda? Sendo o desenho a
“palavra”, o vazio do papel ganha o sentido de silêncio. O branco, ou o nada, do
papel como silêncio já faz parte do problema da disposição gráfica da escrita poética.
O espaço “em branco” ao redor do texto poético pode ser percebido como uma
moldura de silêncio em contraste com a palavra escrita.
Poderiam ser lembradas, mais uma vez, as palavras de Henri Matisse acerca
do desenho e do papel branco sobre o qual não apenas se apoia, mas dialoga:
“modifico diferentes partes do meu papel branco, sem tocar nelas, mas por
vizinhanças”. Ou lembrando, outra vez, a arte oriental, escreveu: “Tinha já observado
que nos trabalhos dos orientais o desenho dos vazios deixados à volta das folhas
contava tanto como o próprio desenho das folhas.” (MATISSE, 1972, pp. 154, 158).
É interessante sempre levar em conta o exemplo significativo do desenho de
Constantinopla feito por Tarsila do Amaral sobre papel celofane, que faz parte da
Coleção de Artes Plásticas Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo (IEB-USP), pois aqui a ideia de papel como vazio é
ainda mais literal. A tinta alcalino-ferrosa destrói cada vez mais o suporte em
celofane, fazendo do desenho uma peça “programada” para autodestruir-se e
desaparecer. Toda definição de detalhes foi abolida, nas vistas desenhadas por
Tarsila, em nome de uma unidade que sugere continuidade entre espaço e tempo,
sugere a desmaterialização da paisagem.
Repete-se que se o desenho é a escrita, o “não-desenho”, o vazio do papel, é
o silêncio. Oswald de Andrade havia se referido, poeticamente, à obra de Tarsila
como “silêncio emoldurado” (ANDRADE, O. 1924)7.
Observemos, finalmente, um último desenho: “Cidade com Bondinho”,
também pertencente ao IEB-USP. Com uma dezena de traços verticais e horizontais,
249
a pintora sintetizava, provavelmente, um aspecto da cidade de São Paulo como
paisagem em transformação. Ao mesmo tempo em que se reconheceu a obra de
Tarsila como uma adequação estética à modernização de São Paulo, leva-se em
conta também a dose de nostalgia e bucolismo que contém (SEVCENKO, 1992). O
pequeno desenho de Tarsila refletia esta ambiguidade. Por um lado registrava a
estrutura metálica em vertical e o bonde elétrico, portanto uma paisagem marcada
pelas transformações industriais; por outro, conservava, com bucolismo e nostalgia,
uma frágil arquitetura colonial no canto direito inferior do papel. Poderíamos
compreender este desenho como um ideograma para a modernidade e uma
apropriação de elementos da caligrafia oriental, uma interpretação muito própria da
ideia de Oriente.
Tarsila teria inventado um certo Oriente pelos caminhos da arte moderna
ocidental e por suas “viagens”, por assim dizer, pela leitura de seus “17 elefantes”,
como ela carinhosamente se referia os 17 volumes de seu inseparável “Grand
dicitionnaire universel du XIXème siècle”, aficionada por dicionários e enciclopédias
(BRANDINI, 2008, p.30). O Oriente extremo que a pintora do Abaporu jamais
conhecera, já que suas viagens a levaram somente até Moscou e ao Oriente Médio.
No entanto, em seus desenhos e artigos, Tarsila do Amaral foi capaz de inventar seu
próprio Oriente, pois, talvez, os ideogramas orientais representariam para ela e para
a arte moderna, de um modo mais geral, a síntese e a gestualidade desejadas,
assim como um aparente espontaneísmo que tanto o desenho como a escrita
oriental supostamente permitiriam.
Notas
1
A autora lembra que Tarsila publicou, pelo que se sabe, cinco poemas (Artista, Harmonia, Panteísta,
Tédio e Alegria), numa revista do ginásio Oswaldo Cruz, Castália, entre 1918 e 1920. A biógrafa estabelece a
relação desses escritos com a criação plástica e com a obra de Gilka Machado.
2
A transcrição completa do conjunto de crônicas e escritos de Tarsial do Amaral pode ser lida em
BRANDINI, Laura Tadei. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Campinas-SP, Editora da
UNICAMP, 2008. Ver também AMARAL, A. Tarsila Cronista. São Paulo: Edusp, 2001.
3
AMARAL, Tarsila. A Pintura na Arte Japonesa. Diário de São Paulo, 12 jan., 1937, p.6
4
AMARAL, Tarsila. A Palavra. In Diário de São Paulo: 23, mar. 1937, p.6.
5
AMARAL, Tarsila. A Escrita. In Diário de São Paulo. 31, mar. 1937, p.6
6
AMARAL, Tarsila. Hieróglifos. Diário de São Paulo, 7 abr., 1937, p.6
7
ANDRADE, Oswald. Atelier. In Pau-Brasil. Paris: Sans-Pareil, 1925.
250
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BRANDINI, Laura Tadei. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Campinas-SP,
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251
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Angela Brandão
Cursou História na Universidade Federal do Paraná, Especialização em Arte e Cultura
Barroca na Universidade Federal de Ouro Preto e Mestrado em História da Arte e da Cultura
na UNICAMP. Doutora em História da Arte pela Universidade de Granada, Espanha, com a
tese “A Invenção do Barroco pelo Modernismo Brasileiro” (2002). É professora no
Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UNIFESP.
252
DE OUTRAS IMAGENS: UMA TOPOGRAFIA IMAGÉTICO-DISCURSIVA DO
MAHĀPARINIRVĀṆA DO BUDA NO SUDESTE ASIÁTICO
Cibele E. V. Aldrovandi – MASP e USP
RESUMO: A presente comunicação discorre sobre alguns aspectos do desenvolvimento do
repertório imagético-discursivo associado ao Mahāparinirvāṇado Buda Śākyamuni com
ênfase no Sudeste da Ásia – abordando-o a partir de conceitos como heterotopia, hibridismo
e terceiro-espaço. A gênese e o desenvolvimento inicial dessa representação de caráter
narrativo ocorreu na região de Gandhāra, no noroeste da Índia, e remonta aos séculos I ao
III d.C. Esse esquema formal, que representa os momentos finais e a transcendência
suprema do Buda histórico – originalmente com figuras em lamentação ao seu redor –,
tornou-se canônico e propagou-se ao longo dos séculos nas demais regiões asiáticas sob a
égide do budismo. No entanto, uma peculiaridade observada no Sudeste Asiático – objeto
da presente investigação –, é a transformação da imagem canônica do Mahāparinirvāṇa,
naquela do Buda Reclinado sem o lamento. As evidências apontam para uma hibridização
hindu-búdica – entre as representações do deus Viṣṇu Anantaśayana e do Mahāparinirvāṇa
do Buda –, que será discutida sob a ótica de um deslocamento heterotópico e transcendente
da representação imagética, associado ao contexto discursivo de indianização daquela
região.
Palavras-chave: Mahāparinirvāṇa, budismo, hinduísmo, hibridismo imagético-discursivo.
ABSTRACT: This presentation discusses some aspects of the development of an imagetic
and discursive repertoire associated with the Mahāparinirvāṇa of the Buddha Śākyamuni
with emphasis on Southeast Asia – which will be approached through concepts such as
heterotopy, hybridity and thirdspace. The genesis and early development of this
representation, of a narrative character, occurred in the region of Gandhāra in northwest
India, and dates back to the I to III centuries AD. This formal scheme, which represents the
final moments and the ultimate transcendence of the historical Buddha – originally with
mourning figures around him – became canonical and has spread over the centuries in other
Asian regions under the Buddhist aegis. However, a peculiarity observed in Southeast Asia –
the main subject of this investigation – is the transformation of the canonical image of the
Mahāparinirvāṇa into that of the Reclining Buddha without any mourning figures. Evidence
points to a Hindu-Buddhist hybridization between the representations of the god Viṣṇu
Anantaśayana and the Mahāparinirvāṇa of the Buddha – which will be discussed here from
the perspective of a heterotopic and transcendent displacement of the imagetic
representation, associated with the discursive context of Indianization in that region.
Keywords: Mahāparinirvāṇa, Buddhism, Hinduism, imagetic and discursive hybridism.
I. Introdução
Esta comunicação é uma oportunidade de retomar uma questão que
permanece latente há alguns anos, qual seja, a de refletir sobre alguns aspectos do
desenvolvimento do repertório imagético-discursivo associado ao Mahāparinirvāṇa
do Buda Śākyamuni encontrado no Sudeste da Ásia (SEA). Em particular, sobre
253
uma peculiaridade observada naquela região: a transformação da representação
canônica do Mahāparinirvāṇa – cuja gênese esteve associada à escola de Gandhāra,
no noroeste da Índia, entre os séculos I-III d.C., sob a égide da dinastia Kushan –,
naquela do Buda Reclinado e sem o lamento ao seu redor.
Além disso, pretendemos dar início à investigação de uma possível
hibridização hindu-búdica – entre as representações do deus Viṣṇu Anantaśayana e
aquelas do Mahāparinirvāṇa do Buda –, que procuramos discutir sob a ótica de um
deslocamento heterotópico e transcendente da representação imagética. Para tanto,
utilizaremos conceitos como heterotopia (FOUCAULT, 1984), hibridismo e terceiro
espaço (BHABHA, 1994; SOJA, 1996) – com vistas a verificar e buscar compreender
alguns mecanismos manifestos na transposicão dessas representações imagéticas,
para além do território indiano, em direção ao SEA.
A referência direta à palestra de Foucault – “Des espaces autres” [“Of other
spaces” (De outros espaços); proferida em 1967 e publicada em 1984 e 1986] –,
presente no título deste artigo, é utilizada aqui como uma maneira de se estender o
conceito de heterotopia, ali desenvolvido, às imagens e, assim, buscar compreender
os deslocamentos, transformações, inseminações e contaminações que um
repertório imagético está sujeito ao longo de seu percurso, em particular, quando
transposto para outros lugares ou regiões, que funcionam em condições de
alteridade e, portanto, de outras imagens.
A heterotopia foi um termo utilizado originalmente pela medicina para
designar um tipo de tecido específico que se desenvolve em outro lugar, algo
deslocado, não necessariamente um tecido doente ou maligno mas, simplesmente,
que surge em um outro lugar, que não o usual (v. LAX, 1998, p. 114). Foucault
(1984), por sua vez, se apropriou do conceito utilizando-o em termos espaciais,
Mas, de todos esse sítios, interessam-me mais aqueles que têm a
propriedade curiosa de se relacionar com todos os outros sítios, mas de
uma forma que suspeita, neutraliza, ou inverte a rede de relações por si
designadas, espelhadas e refletidas. Espaços que se encadeiam uns nos
outros mas, no entanto, contradizem todos os outros (...). Existem também,
provavelmente em todas as culturas, em toda civilização, lugares reais –
lugares que existem e que são formados na própria fundação da sociedade
– que são algo como contra-sítios, uma espécie de utopia efetivamente
criada na qual os lugares reais, todos os demais lugares que podem ser
encontrados dentro da cultura, são simultaneamente representados,
contestados e invertidos. Lugares desse tipo estão fora de todos os lugares,
254
embora seja possível indicar sua localização na realidade. Em razão desses
lugares serem absolutamente diferentes de todos os outros locais que eles
refletem e discutem, eu os chamarei, por contraponto às utopias,
heterotopias. (FOUCAULT, 1986, p. 24-25; tradução nossa)
Desde a época em que a palestra de Foucault foi proferida, até os dias atuais,
muito se discutiu a respeito das heterotopias. Esse conceito foi amplamente utilizado
pela geografia e em diferentes abordagens nas mais diversas disciplinas1. Ao
mesmo tempo, também se desenvolveu uma literatura crítica sobre esse conceito
com interpretações, muitas vezes conflitantes, acerca daquilo que Foucault teria
realmente afirmado. Alguns autores consideraram sua abordagem estruturalista
falaciosa, incompleta e até mesmo incoerente (v. SOJA, 1996, p.162). No entanto, a
narrativa proposta por Foucault celebra, como vemos no excerto supracitado, as
descontinuidades, os desvios, as inversões, as contestações, as ambivalências e as
contradições presentes em certos espaços.
Algo semelhante pode ser pensado, por extenção de sentido, sobre as
imagens. Dessa forma, a heterotopia é, aqui, pensada em relação às
representações imagéticas que – assim como os espaços –, ao serem deslocadas
passam a acumular mais camadas de significação que, por sua vez, criam diferentes
relações com outras imagens e espaços. Certamente, bem mais numerosas que
aquelas aparentemente encontradas em sua superfície ou seu contexto inicial. A
heterotopia imagética, nesse sentido, refere-se às outras representações que
passam a refletir significados duplos ou, mesmo, múltiplos – imagens iminentemente
polissêmicas e, em alguns casos, polinômicas (v. TULADHAR-DOUGLAS, 2005,
p.60). Isto porque, quando deslocadas de seu contexto geográfico original,
apresentam elementos residuais, descontinuidades, inversões e, em certos casos,
se encontram imbuídas de contradições e ambiguidades. Esses repertórios de
imagens diferentes podem ser estudadas sistematicamente sob a ótica cultural e
social e, de alguma forma, vir a desafiar ou contestar determinadas imagens e
espaços tradicionalmente conhecidos.
Além de fazer uso do conceito de heterotopia e dos princípios por ele
engendrados, também procuramos incorporar, neste artigo, outras abordagens que
nos pareceram válidas na investigação desse deslocamento pelo qual as
representações do Mahāparinirvāṇa do Buda passaram, ao serem transpostas para
as diferentes regiões do SEA. Isto porque, uma vez inseridos em outros contextos,
255
um repertório imagético – heterotópico – apresenta graus variados de hibridismo e,
como bem observou Bhabha em uma entrevista a Rutherford,
O próprio ato da tradução cultural (tanto como representação e como
reprodução) nega o essencialismo de um original anterior ou cultura original,
assim todas as formas de cultura estão continuamente em processo de
hibridismo. Mas, para mim, a importância do hibridismo não é a de ser
capaz de traçar dois momentos originais dos quais um terceiro emerge,
hibridismo para mim é o ‘terceiro-espaço’ que permite o surgimento de
outras posições. Esse terceiro-espaço desloca as histórias que as
constituem e estabelece novas estruturas de autoridade, novas iniciativas
políticas. (BHABHA, in RUTHERFORD, 1990, p. 211; tradução e grifo
nossos)
Esse hibridismo cultural, concebido por Bhabha (1990; 1994), pode provocar
o surgimento de forças de representação cultural desiguais no chamado terceiroespaço (BHABHA, 1994, p. 55) e, muitas vezes, ambivalentes, em razão da
intervenção da alteridade nesse processo tradutório.
Mas a importância do hibridismo é que ele carrega os traços daqueles
sentimentos e práticas que o informam, como uma tradução, de modo que o
hibridismo une os traços de certos outros significados ou discursos. Ele não
lhes dá autoridade de serem anteriores no sentido de serem originais: eles
são anteriores apenas no sentido de serem precedentes. O processo de
hibridismo cultural faz surgir algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma
nova era de negociação e representação. (BHABHA, in RUTHERFORD,
1990, p. 211; tradução nossa)
Pois, “a organização, o uso e o significado do espaço são um produto da
tradução, da transformação e da experiência social” (SOJA, 1980, p. 210). Esse
conceito de terceiro-espaço, foi aplicado por Soja (1996) – a partir da trialética
espacial de Lefébvre (1974), surgindo como, “um-Outro modo de compreender e agir
para mudar a espacialidade da vida humana, um modo distinto de consciência
espacial crítica [...], que surge no reequilíbrio trialético entre espacialidadehistoricidade-socialidade” (SOJA, 1996, p. 57; tradução nossa). A partir dessa tríplice
dimensão – o espaço, o tempo e o ser social – é possível analizar as transformações
contínuas das práticas sociais. Esse instrumento conceitual inclusivo, cujo
movimento se expande para além das dualidades, cria uma “trialética acumulativa
que se abre radicalmente à alteridade, à ampliação contínua do conhecimento
espacial” (SOJA, 1996, p. 61), a partir, justamente, da heterotopologia de Foucault
(1967), mas também daquela em Said (1978), que podem, por sua vez, ser
aplicadas a qualquer período e região (v. FRANK, 2009 p. 72).
256
O terceiro-espaço é concedido, portanto, como um conceito transcendente
que está sempre em expansão para incluir “um-Outro” e possibilitar a contestação e
renegociação das fronteiras e da identidade cultural, tendo como referência a ideia
de que todo processo ou dinâmica de des-territorialização significa uma reterritorialização em novas bases – de entrecruzamento, alteridade, oposição,
simbiose, fissura e sutura – ou ainda uma multiterritorialização (SOJA, 1996, p. 131et seq.). Assim, os territórios geográficos que se interpenetram são também espaços
ideológicos, historicamente construídos e, por isso, também imersos em suas
estruturas de poder. O que, por sua vez, valida e legitima os processos de abertura
simbólica oriundos desse entrecruzamento de fronteiras e das dialogias daí
resultantes, uma vez que esses são diálogos múltiplos. As possíveis narrativas
contidas num repertório imagético heterotópico podem, portanto, ser vislumbradas
nesse terceiro-espaço – híbrido, de fronteira e multiterritorializado – revelando-se,
como veremos, em muitos sentidos, não apenas ambi-, mas multivalentes.
II. Heterotopias Imagéticas
1. Os Antecedentes do Mahāparinirvāṇa em Gandhāra
O repertório imagético associado ao Mahāparinirvāṇa do Buda foi o objeto
central de nossa análise durante o doutorado (v. ALDROVANDI, 2006) e seu
desenvolvimento
inicial2,
na
região
de
Gandhāra,
possuiu
um
caráter
preponderantemente narrativo e doutrinário, centrado nos momentos finais da
biografia do fundador do budismo. Nele, as representações forneceram recorrências
que indicam um paralelismo estreito com os cânones budistas como aqueles
presentes no Mahāparinibbāṇasutta [MHP], mas, ao mesmo tempo, ali também se
encontram desvios e ambiguidades muito interessantes.
Nos exemplares do Mahāparinirvāṇa provenientes de Gandhāra, criados em
revelos
para
adornar
estupas
e
monastérios,
o
Buda
Śākyamuni
está
invariavelmente deitado sobre seu lado direito, com o braço direito flexionado sob o
corpo enquanto a cabeça, com auréola, repousa sobre a mão direita, tendo a palma
voltada para cima, sobre um ou mais travesseiros. O cabelo, preso no alto, forma o
uṣṇīṣa típico. O braço esquerdo está disposto ao longo do corpo, e a mão esquerda
está geralmente recoberta pelo manto que termina em pregas na altura dos pés. As
pernas paralelas, aparecem levemente flexionadas; o panejamento do manto pode
257
apresentar pregas ao longo do corpo, que seguem o esquema formal das figuras em
pé, como se o Buda não estivesse deitado. O leito fúnebre, semelhante a uma klíne
grega, pode estar recoberto por um tecido que pende entre as pernas torneadas e
um ou dois colchões, simples ou decorados, assim como os travesseiros,
dependendo do grau de detalhamento da cena; em alguns casos, pode haver um
pequeno apoio para os pés na frente do leito. O Buda está cercado por seus
discípulos e devotos leigos, alguns em posturas explícitas de lamentação, outros em
gestos reverentes, num esquema formal que remete às cenas de próthesis gregas.
Entre os discípulos identificados estão: Subhadra, o último convertido pelo Buda;
Ānanda, seu discípulo mais próximo e que lamenta pesarosamente; Anuruddha, um
monge ancião; Vajrapāṇi, que não é mencionado nas fontes textuais associadas ao
MHP, e se tornou o protetor do Dharma budista; Mahākāśyapa, um célebre asceta
bramânico convertido, que geralmente conversa com um ājīvika; e Upavana, um
monge que segura um abanador de moscas (camara), mais raro nessa iconografia.
Vajrapāṇi
Mahākāśyapa
Anuruddha
Ānanda
Subhadra
Figura 1. Cena do Mahāparinirvāṇa do Buda Śākyamuni, Gandhāra, séculos II-III d.C.,
xisto cinza, 23,8 X 35 X 8,4 cm (Fonte: © Trustees of the British Museum).
Atrás e nas laterais do leito fúnebre aparecem figuras com turbantes e
ornamentos, geralmente identificadas como os nobres Malla de Kuśināgara; na
maior parte das vezes são figuras masculinas, muitas delas em postura de
lamentação. Outras figuras, mais raras, representadas no entorno da cena incluem
divindades, como os deuses védico-bramânicos Brahmā e Indra, ou seres celestiais.
Nas cenas em que as árvores śāl gêmeas aparecem, elas são representadas nas
laterais do leito fúnebre (v. ALDROVANDI, 2006, p. 387 et seq.).
Essa padronização imagética, com o Buda deitado e cercado por figuras em
lamentação, se estabeleceu como um modelo tradicional de representação desse
episódio e tornou-secanônico, fornecendo a base do esquema formal para as
258
demais regiões asiáticas para onde o Budismo se propagou. A ênfase temática nas
outras escolas artísticas – indianas e estrangeiras –, esteve associada quase que
exclusivamente à cena principal do Mahāparinirvāṇa, diferente de Gandhāra, onde o
repertório desse ciclo da biografia do Buda possuiu uma diversidade narrativa
consideravelmente maior.
2. Heterotopias do Mahāparinirvāṇa no Sudeste Asiático
Uma parte desse repertório imagético ainda se encontra nos próprios sítios
arqueológicos ou nos templos e nos estupas, onde ainda são objeto de devoção
popular contemporânea. As representações que permanecem in situ são geralmente
aquelas de tamanho monumental, cujas evidências arqueológicas indicam um
desenvolvido a partir do século V d.C., um fenômeno que esteve diretamente
associado à divinização da persona do Buda.
O
que
se
revela
fundamental
nas
represetações
colossais
do
Mahāparinirvāṇa, nos períodos subseqüentes, é que os discípulos antes esculpidos
junto ao Buda foram se reduzindo, quer em quantidade, quer em proporção.
Possivelmente, porque o esquema formal presente nos relevos narrativos, naquela
época, já era suficientemente conhecido. Essa banalização da representação pode
ter favorecido a gênese da tipologia colossal que propunha uma mudança
fundamental no foco de atenção visual e, consequentemente, na práxis ritual budista.
Também se observa que o padrão iconográfico de lamentação, presente na grande
maioria das representações de Gandhāra, cedeu lugar, paulatinamente, a um tipo
diferenciado de ritual: são os devotos vivos que realizam as reverências diante da
figura monumental do Buda, no Mahāparinirvāṇa. Assim, o visitante toma parte da
ação ritual ao redor da imagem, realizando o pradākṣiṇa – circum-ambulação – e lhe
rendendo homenagens ou, talvez, lamentando a partida do Iluminado, algo que
ocorre até os dias atuais (v. ALDROVANDI 2006, p. 441 et seq.). Trata-se de uma
importante mudança no paradigma representacional pois, a monumentalização
alterou a forma como o devoto se relacionava com a imagem adorada, criando o que
podemos chamar de, um meta-discurso imagético.
Entre o repertório imagético das demais regiões asiáticas, as representações
do Buda Reclinado se destacam numericamente. Nelas, o Iluminado aparece
259
deitado, seu cotovelo na maior parte das vezes está apoiado no solo e o braço,
fletido, apóia a cabeça na mão direita cujo rosto, sereno, esboça um leve sorriso.
Essa é uma representação bastante recorrente e popular no SEA, onde substituiu o
modelo canônico do Buda envolto em lamentação. Muitos exemplares têm tamanho
humano natural, mas grande parte das imagens costuma ser monumental, com
vários metros de comprimento, as mais recentes chegam a alcançar 70m. Quando
há alguma imagem ao redor do Buda, são monges em postura reverente,
geralmente com as mãos postas, em añjalimudrā.
Figura 2. Imagem do Buda reclinado com devotos ao fundo em añjalimudrā. Pedra com vestígios
de douramento. Wat Arun, Bangkok, Tailândia (Fonte: AISO, 2007).
No conjunto de imagens levantado até o momento, que soma 36 exemplares,
a representação mais antiga do Mahāparinirvāṇa no SEA aparece em um relevo de
Borobudur, na Indonésia, atribuído ao século IX d.C. Os exemplares subsequentes
aparecem em Pegu, atual Myanmar; e em Prasat Hin Phimai, um antigo templo
bramânico de origem Khmer, na atual Tailândia, ambos do século X d.C. e de
caráter monumental. Os séculos seguintes, especialmente do XI ao XIII d.C.,
preservaram uma grande quantidade de representações, em suportes distintos
(relevos biográficos, estatuetas, plaquetas votivas e esculturas monumentais, muitas
delas em grutas), nas antigas regiões que hoje são parte de Myanmar, Tailândia e
Camboja.
A
partir
desse
período,
o
crescimento
da
recorrência
dessas
representações é evidente, possivelmente associado à ascendência dos Theravāda,
e se estende também ao Laos e ao Vietnã.
A ênfase na figura do Buda Śākyamuni está de acordo com as crenças típicas
do budismo Theravāda, embora as datas da chegada desse ramo budista ao SEA
sejam imprecisas, geralmente, atribuídas ao século V d.C., com os sthaviravāda;
somente nos séculos XII-XIV d.C. há registros associados aos theravādin singaleses
260
(v. LAVY, 2012, p. 59). Um monge tailandês da University of Pune nos informou, em
2004, que entre os Theravāda, essa representação do Buda Reclinado é geralmente
associada ao momento em que o Buda proferiu seu último sermão [MHP VI.5-10],
pouco antes de entrar nos estágios sucessivos de meditação e atingir o parinirvāṇa
(informação oral; v. ALDROVANDI, 2006, p. 441, 779-780).
Durante
esse
deslocamento
heterotópico
da
representação
do
Mahāparinirvāṇa para o SEA, o lamento foi suprimido pois naquela nova topografia,
ele perdeu seu sentido sociocultural. Ao mesmo tempo, a ênfase discursiva sobre a
morte do Buda cedeu lugar, gradualmente, à uma discursividade sobre a sua
Transcendência (ALDROVANDI, 2006, p. 463-464).
III. Heterotopias Sagradas
As análises sobre o espaço ampliaram-se consideravelmente nas últimas
décadas, tendo abarcado também questões relativas aos locais sagrados, que
ocupam, muitas vezes, um lugar preponderante na tecitura do espaço secular. Tais
lugares estão mutuamente imbridados, de modo complexo, dinâmico e relacional,
sendo passíveis de decodificação por meio da investigação de suas diferentes
dimensões, propriedades e aspectos, todos eles multidimensionais (v. KNOTT, 2005,
p. 153-154, 161). Além disso, é preciso lembrar que o repertório imagético aqui
tratado está diretamente associado a esses espaços sagrados. Num estudo sobre
topografia sagrada, Deeg (2007) verificou que embora a cultura material – incluídas,
aí, as imagens – tenha um aspecto espacial, ela só é capaz de se referir à topografia
sagrada na qual certos eventos ocorreram. Em outras palavras, “a ligação entre a
narrativa – o convite para imaginar visualmente o espaço – e o lugar concreto é,
frequentemente, a peregrinação, que surge como a forma mais física e ulterior de
contato com o espaço” (DEEG, 2007, p.147; tradução nossa).
Essa demarcação de certos lugares e espaços com algum tipo de associação
religiosa, reflete fatores históricos ou topográficos, que encorajam a peregrinação até
tais locais (v. PARK, 1994, p. 258) – o que, como vimos, nos coloca diante de um
deslocamento heterotópico. Além disso, estudos de caso demonstram que uma
determinada região, lugar ou sítio não está necessariamente restrito à geografia
sagrada de uma única religião (DEEG, 2007, p. 149).
261
A situação indiana é um processo de constante empréstimo e recuperação
de um poço de ‘memória cultural’ comum, que pode ser claramente
observado em ação nas narrativas das diferentes tradições. Como essas
narrativas eram mais cedo ou mais tarde – senão sempre – associadas a
alguma topografia concreta, a construção do espaço sagrado foi
frequentemente uma questão de mapeamento do espaço comum – ou, na
terminologia de Smith (1978), território – o que significa que uma narrativa
foi atribuída a um determinado sítio, quer seja ela a mesma, ou diferente
daquela respectiva tradição religiosa. (Deeg, 2007, p. 150; tradução nossa)
Em épocas mais recuadas, as práticas religiosas não eram necessariamente
excludentes, as crenças podiam ser naturalmente amalgamadas (v. BAPTISTE e
ZÉPHIR, 2005, p. 38). A peregrinação ocupa um lugar central tanto no budismo
quanto no hinduísmo3 (v. PARK, 1994, p. 273 et seq.). Nesse caso, as narrativas
lendárias têm uma agenda comum bastante clara: o mapeamento desse espaço
sagrado compartilhado.
As imagens do Mahāparinirvāṇa se inserem perfeitamente nesse contexto,
uma vez que, no budismo, os lugares de peregrinação foram estabelecidos e
demarcados pela narrativa canônica. No Mahāparinibbāṇasutta [V, 16-32], texto de
tradição pāli, o Buda recomenda que os locais dos principais eventos de sua vida e
os locais em que suas relíquias seriam depositadas fossem, a partir de então,
visitados (v. ALDROVANDI, 2006, p. 766 et seq.). Esses lugares de peregrinação
criaram
uma
topografia
sagrada
que,
com
o
passar
do
tempo,
se
multiterritorializaram em diferentes regiões da Ásia. Assim, a narrativa da vida do
fundador do budismo foi projetada para a paisagem e visitar esses lugares significa
afirmar essa realidade sagrada criando um grau mais elevado de participação
soteriológica: a geração de mérito – puṇya (v. DEEG, 2007, p. 148), algo que ocorre
entre os budistas até os dias atuais. Os locais de peregrinação hindus – tīrtha –, por
sua vez, são descritos nas narrativas sobre os deuses presentes nos Purāṇa (v.
HOLT, 2004, p.15). Na paisagem sagrada hindu, Viṣṇu e Śiva figuram entre os
principais deuses associados à peregrinação.
A cronologia e as vias da chegada do bramanismo e do budismo ao SEA
ainda são incertas (v. JUSSEP, 2004, p.12 et seq.), mas os estudiosos estão de
acordo quanto à primazia inicial do bramanismo. Em relação ao budismo, o
peregrino chinês, Fa-hsien, não encontrou, no século V d.C., formas de budismo
muito desenvolvidas na Indonésia, mas I Tsing, no final do século VII d.C., registrou
uma paisagem bastante diferente e chegou a passar meses estudando num
262
importante centro budista em Srivijaya (v. REICHLE, 2007, p. 15-16). A maneira pela
qual essas fronteiras sagradas se ampliam, se alargam, se redefinem e, muitas
vezes, se contaminam e se reacomodam, faz pensar até que ponto isso também
permanece visível no campo imagético, legitimando outras forças socioculturais
envolvidas em uma dinâmica espácio-temporal específica. No caso do SEA, esse
deslocamento do budismo e do hinduísmo para outro espaço pode, portanto, ser
analisado em termos de uma heterotopografia sagrada.
IV. Heterotopias Discursivas e o Sudeste da Ásia
A questão do deslocamento heterotópico de um repertório imagético entre a
Índia e os antigos reinos indianizados do SEA –, nos interessa também porque,
justamente, nos faz refletir a partir de uma direção pouco usual. Se a maior parte da
literatura e teoria crítica pós-colonial – desenvolvida por expoentes indianos
contemporâneos (v. MITTER, 1977; SPIVAK, 1988 ; BHABHA, 1994) – esteve
acostumada a descrever e refletir sob a ótica do colonizador ocidental e o colonizado
oriental, no caso aqui tratado, o suposto poderiocolonizador é o da própria Índia.
Nesse sentido, a presente investigação pretende também, em um momento futuro,
compreender de que forma a transformação do repertório imagético do
Mahāparinirvāṇa é capaz de nos esclarecer sobre as estratégias de dominação
política empreendidas pela potência regional da época – a Índia pré-colonial –, e em
que medida essa visão esteve associada ao contexto discursivo de indianização
daquela região que foi, durante muito tempo, formatado a partir dos discursos
acadêmicos coloniais.
Os estudos mais antigos existentes sobre a arte do SEA repetiram durante
décadas uma mesma fórmula: a de que a indianização daquela região foi pacífica e
teve um caráter associado primariamente ao comércio. Como vemos, nesse, entre
tantos outros exemplos existentes,
A penetração da cultura indiana nos países do Sudeste Asiático apresenta
um caráter duplo muito excepcional na história mundial. Não somente ela
ocorreu de maneira totalmente pacífica, mas a tradição indiana também não
conservou outras provas, do que narrativas lendárias ou míticas, alusões
literárias e, por vezes, epigráficas. De tal maneira que foram necessários
estudos contemporâneos e modernos para que a Índia se desse conta do
papel que teve além-mar. (...) A implantação da civilização indiana não foi o
resultado nem de uma colonização política, nem de uma conquista
deliberada. Ela se deu a partir de uma série de empreendimentos de
263
comerciantes, aventureiros, de letrados e monges que, utilizando os
enclaves indianos fundados a partir do século I [d.C.], propagaram a cultura
altamente refinada da Índia entre as populações, nas quais o estilo de vida
se adaptava perfeitamente às doutrinas bramânicas e budistas.
(AUBOYER,1968, p. 154; tradução e grifos nossos)
Muitos outros autores da mesma época compartilhavam dessa visão
colonialista e difusionista que foi perpetuada nas décadas seguintes: a de uma terra
inóspita – o Sudeste Asiático – pronta a receber a cultura e a arte de uma civilização
mais desenvolvida, i.e., estamos mais uma vez diante do já conhecido discurso
acadêmico etnocêntrico ocidental que, nesse caso, ironicamente, é transplantado
como uma verdade histórica à Índia pré-colonial. Nele, a Índia, um país
supostamente pacífico e tolerante, teria sido responsável pela influência fundamental
e unilateral sobre essa região vizinha, a ponto de ter legado suas duas principais
religiões – o bramanismo e o budismo – de modo pacífico e perene. Nesse discurso,
a ideia da conquista pacífica e de cunho cultural e religioso é recorrente,
Sobretudo, a indianização se traduziu pela adoção do sânscrito como língua
oficial e sagrada, a introdução das religiões indianas, o budismo e o
bramanismo, com seus mitos, filosofias, suas tradições; e a implantação de
uma estrutura política aparentada àquela que existiu na Índia antiga. No
domínio da arte, a inspiração devida à Índia foi um fator determinante (…),
como se essas regiões não tivessem possuído arte que lhes fossem
próprias. (AUBOYER, 1968, p. 156; tradução e grifo nossos)
Por vezes, como vemos, esse discurso obsessivo é também contraditório ou
oscilante, demonstrando um certo receio, zeloso, que busca equilibrar ou reconciliar
a visão etnocêntrica subliminar embutida nas entrelinhas (AUBOYER, 1968, p. 157).
O desconhecimento acerca das regiões e das culturas que compunham a topografia
do SEA tornou-o um lugar ideal para se deslocar e, assim, impor essa discursividade
colonial própria da época em que viveram esses historiadores da arte ocidentais.
Apenas recentemente é que esse tipo de visão começou a ser questionada e
encontramos abordagens mais equilibradas acerca do assunto, mais voltadas ao
contexto sociopolítico de desenvolvimento do SEA, do que propriamente com a ideia
de indianização da iconografia e dos estilos (v. BROWN, 1992; LAVY, 2003). Como
bem lembrou Mitter (2001, p. 9), a arte não surge porque é imposta por um agente
externo, mas em razão das necessidades internas de uma sociedade. Isso vale para
a matriz cultural indiana, tanto quanto para as culturas do SEA.
As análises vêm demostrando que as esculturas e a escrita se transformaram
de modo semelhante e paralelo no contexto do SEA. A datação das imagens mais
264
antigas de afiliação hindu são ainda controversas, alguns autores propõem os
séculos IV e V d.C., enquanto os demais preferem datas mais tardias, entre os
séculos VI e VIId.C. Os exemplares budistas mais antigos que se preservaram
costumam ser datados do século VII d.C em diante. As inscrições mais antigas em
sânscrito encontradas datam de c. 400 d.C. (v. BROWN, 1992, p. 40-41; 2000, p. 10;
GRIFFITHS, 2014, p. 53; LAVY, 2014, 153). Atualmente, as pesquisas revelaram
que a extensão da chamada indianização da antiga região de Champa (atual Vietnã)
pode ser posta em cheque ao se analisarem as inscrições sânscritas, pois
o“hibridismo e solecismo denotam um conhecimento imperfeito da língua e,
provavelmente,
um
conhecimento
superficial
da
cultura
indiana
devido,
possivelmente, à vontade de assimilar as religiões indianas às crenças e práticas
locais” (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.38). Interessante notar também que o
surgimento das inscrições sânscritas associadas aos complexos religiosos é
contemporâneo ao surgimento daquelas encontradas em solo indiano (séc. IV-VI). A
mais antiga delas, descreve um patrono khmer em peregrinação para fazer um pūjā
ao deus Śiva. O que se observa, portanto, são soberanos dos reinos indianizados
participando efetivamente do desenvolvimento das práticas bramânicas e budistas e
não meros depositários da práxis religiosa indiana (cf. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.
146).
Para explicar o desenvolvimento imagético no SEA, Brown (1992, p. 42, 45)
propôs uma mudança do paradigma da cópia e modelo indianos. Sua análise
estabeleceu que a iconografia e o estilo das esculturas mais antigas ali encontradas
já eram tipicamente um desenvolvimento interno. Esses tipos e estilos se encontram
em áreas muitas vezes bastante distantes e não apresentam regionalizações
específicas, ou seja, agrupamentos trans-regionais e uma paisagem política
flutuante é algo evidenciado em vários estudos recentes (v. BAPTISTE e ZÉPHIR,
2005, p.145). Para Brown (1992, p. 49), os estilos do SEA se desenvolveram a partir
de estilos autóctones e não de um conjunto heterogêneo de estilos indianos e esses
reinos antigos tinham um contato muito próximo entre si. Os modelos indianos foram
modificados imediatamente após sua chegada, sem um período longo de cópia e
experimentação. Outros elementos importantes para compreender o registro
escultórico fragmentário em pedra e bronze do SEA são as esculturas em madeira,
que não se preservaram, mas que são parte de um substrato ignorado pelos estudos
265
mais antigos (v. BROWN, 1992, p. 50). No entanto, dada a imprecisão das
cronologias e as incertezas acerca das relações entre o Sul e o Sudeste Asiáticos,
os desenvolvimentos iconográficos ainda não estão suficientemente esclarecidos
pelos estudiosos para determinar uma sequência mais precisa da imagética no SEA.
A maior parte dos autores, entretanto, os considera de caráter autóctone e não
externo (v. LAVY, 2014, p. 166, 169). Se tomarmos as palavras de Bhabha, na
entrevista que deu a Rutherford (1990, p. 209), sabemos que,
A suposição de que, em algum nível, todas as formas de diversidade
cultural podem ser entendidas com base em um conceito universal
específico (...), pode ser tão perigoso quanto limitante ao se tentar
compreender o modo como as práticas culturais constroem seus próprios
sistemas de significado e organização social. (BHABHA, in RUTHERFORD,
1990, p. 209-210; tradução nossa)
Assim, o hibridismo, a diferença e a ambivalência, discutidos no início deste
artigo, são alguns dos elementos fundamentais para conseguirmos compreender os
modos como os povos colonizados interagiram com o colonizador. Essa questão
certamente merecerá ser aprofundada em uma oportunidade futura, mas é preciso
agora retornar às imagens do Mahāparinirvāṇa para analisar até que ponto a
chamada indianização do SEA pode ter favorecido, ou não, uma outra questão
relacionada ao hibridismo das imagens do Mahāparinirvāṇa.
V. Hibridismo e Terceiro-Espaço Imagéticos
Viṣṇu Anantaśayana e o Mahāparinirvāṇa do Buda
Durante a investigação do deslocamento heterotópico da imagem do
Mahāparinirvāṇa do Buda para o Sudeste Asiático, nos defrontamos com uma
questão que talvez permita elucidar algumas das razões possivelmente relacionadas
às
mudanças
na
representação
desse
repertório
imagético,
mencionadas
anteriormente. Uma outra camada nessa estratigrafia discursivo-imagética, pode
estar associada à hibridização da imagem budista do Mahāparinirvāṇa à do deus
Viṣṇu, em sua forma Anantaśayana.
Anantaśayana é a célebre forma do deus Viṣṇu em que ele está reclinado
sobre o deus-serpente e o oceano cósmico, associada à criação do Universo. A
palavra sânscrita ananta, é um epíteto de Viṣṇu – que significa eterno, infinito –, pelo
qual ele é designado durante a criação simbólica do universo, reclinado sobre as
266
águas primordiais. A palavra śayana, por sua vez, significa reclinado, adormecido ou
descansando. Mas, ananta, também é o nome do deus-serpente de mil cabeças
(śeṣa, ou ādiśeṣa) – que representa a eternidade e as águas primordiais –, sobre a
qual Viṣṇu está reclinado. Os vários níveis simbólicos contidos nesse simples
composto (ananta-śayana) são típicos e recorrentes na língua sânscrita. As fontes
narrativas, como
o
Viṣṇudharmottarapurāṇa,
descrevem
esse
episódio
da
cosmogonia bramânica (v. LUBOTSKY, 1996, p. 74).4 O mito cosmológico da criação
do universo parece ter sido popular durante o século VII no Camboja e em Champa.
Muitos linteis ilustram esse tema com Viṣṇu Anantaśayana na arte Khmer préangkoriana, há exemplares de Champa com apenas 2 braços (v. BAPTISTE e
ZÉPHIR, 2005, p. 183, 185, 328).
Para tentar compreender esse fenômeno, iremos nos debruçar brevemente
sobre um elemento intrigante presente numa narrativa histórica sobre o Camboja,
escrita por um general chinês – Zhou Daguan (c. 1270-1350), que visitou aquela
região em 1296 e permaneceu durante onze meses em Yaśodharapura, a atual
cidade de Angkor –, registrado em suas Memórias dos Costumes do Camboja,
traduzidas por Pelliot (1902) e, mais tarde, por Harris (2007). Num excerto, logo no
início do texto, o general descreve a grande cidade fortificada, suas muralhas, torres
e portões (gopura) de ouro e as estátuas do Buda. Uma dessas estátuas nos
chamou a atenção, pois o militar chinês a descreveu como um Buda reclinado de
bronze. Na tradução de Pelliot, temos:
O Lago oriental se encontra a dez li a leste dos muros, ele pode ter cem li
de perímetro; ele contêm uma torre de pedra e pequenas casas de pedra.
Dentro da torre está um Buda reclinado de bronze, cujo umbigo deixa
constantemente fluir água (DAGUAN, in PELLIOT, 1902, p.144; tradução
5
nossa)
A passagem é interessante por vários de motivos, um deles, certamente,
porque indica que o general tinha conhecimento acerca das esculturas do Buda
reclinado. A tradução de Harris (2007, p. 48), por sua vez, fornece informações
semelhantes.6 Os estudos mais recentes, entretanto, vêm demonstrando que existe,
aqui, uma possibilidade de ter havido um equívoco do general a respeito dessa
identificação. As evidências indicam que a escultura que esteve no centro do lago
era, provavelmente, do deus Viṣṇu e não a de um Buda, como descrito por Zhou
Daguan. Nada, como observou Harris (2007, p. 97, n.16) indica que ali tenha havido
267
um Buda, pois o que foi encontrado foram os fragmentos de uma escultura
monumental de bronze, do deus Viṣṇu Anantaśayana. Essa imagem foi escavada
por arqueólogos franceses, em 1936, com a ajuda de um camponês, do outro lado
de Angkor Thom, próximo ao templo Mebon Oeste, no Baray oeste e, atualmente, se
encontra no Museu Nacional de Phnom Penh (v. GLAIZE, 1963, p. 270; JESSUP,
2004, p. 126-127). Dois outros estudiosos (FREEMAN e JACQUES, 1999, p. 188) já
haviam sugerido que a escultura monumental de Viṣṇu reclinado poderia ter sido
aquela mencionadacomo um Buda, no século XIII d.C., pelo general Zhou Daguan.
Um estudo mais recente reconstituiu a escultura do deus Viṣṇu por meio de
um programa de modelagem digital em 3D, a partir dos fragmentos existentes e de
estudos iconográficos comparativos com outras imagens Khmer de Viṣṇu
Anantaśayana (FENELEY et al., 2008). De acordo com as onservaçõesdestes
últimos pesquisadores, o camponês teria dito à equipe francesa que ele sonhara
com o Buda e, no sonho, ele lhe pedira para “libertá-lo do lugar em que estava
enterrado sob terra e pedras”. O rapaz também lhes trouxe um dedo de bronze e os
levou até a plataforma do templo no centro do Baray oeste. Ali, 1m abaixo da
superfície, eles encontraram fragmentos da escultura de Viṣṇu, não a de um Buda. O
próprio arqueólogo pensou, inicialmente, tratar-se de um Buda colossal, mas ao
encontrar o torso com 4 braços, pode identificá-lo como uma imagem do deus hindu
(v. FENELEY et al., 2008, p. 74-75). Os resultados da modelagem 3D indicam que a
escultura teve mais de 5m de comprimento, com o deus Viṣṇu reclinado sobre seu
lado direito, suas pernas ligeiramente dobradas e os pés sobre o colo de Lakṣmī,
que estabilizava a escultura – elementos típicos das esculturas Khmer dos séculos X
e XI d.C. A análise estilística revelou que a escultura está associada ao estilo
Baphuon, do final do século XI e XII d.C. Uma observação interessante desses
estudiosos menciona ainda que as imagens Khmer mais antigas de Viṣṇu
Anantaśayana, dos séculos VIII e IX d.C., sem a deusa aos seus pés, são raras e
apresentam, as pernas retas e os dois pés juntos (FENELEY et al., 2008, p. 77, 80).
268
Viṣṇu reclinado de bronze, Mebon Oeste, Angkor, Camboja, final do século XI d.C.,
medindo 122 X 222 X 72.5 cm, Museu Nacional de Phnom Penh (In: JESSUP, 2004, p. 126-7).
Esse
possível
equívoco
do
general
chinês
tem
implicações
muito
interessantes e converge, coincidentemente, com o mesmo engano do camponês
cambojano que ajudou o arqueólogo francês a encontrar o suposto Buda que era, na
verdade, um Viṣṇu. No entanto, o que nos interessa aqui é que, nesse caso, não se
trata de uma mera adaptação ou transposição de um esquema formal de uma
imagem reclinada, para outra, pois ambas as narrativas, tanto budista quanto hindu,
mencionam figuras reclinadas. Aqui, a ambiguidade e o hibridismo ocorrem, nos
parece, em uma outra dimensão, num terceiro-espaço, criando um metadiscurso
visual – uma meta-imagética – apropriado ao milieu do SEA.
Existe, ainda, um precedente que nos parece fundamental para compreensão
desse possível hibridismo entre a imagem budista e hindu aqui analisadas. Trata-se
da absorção da figura do Buda pelos vaiṣṇavas que, no século VIII, passou a ser
considerado o nono avatar (skt. avatara) do deus Viṣṇu [v. Viṣṇupurāṇa, 4.18] entre
algumas afiliações hindus (v. NICHOLSON 2010, p. 97; HOLT, 2004, p. 15, 18;
TULADHAR-DOUGLAS, 2005, p.61). Essa assimilação do Buda ao milieu hindu é
extremamente interessante e, ao mesmo tempo, ambígua – já que o Buda era
originalmente um śramaṇa com tendências fundamentalmente distintas às do
bramanismo. Isso coincide, historicamente, com a substituição do Buda como
divindade suprema nas cortes indianas por deuses hindus, que se tornaram, nessa
época, divindades imperiais dentro dos sistemas cosmopolíticos indianos (v. INDEN,
1998, p. 55, 67; HOLT, 2004, p.12). A interdependência estreita entre estado e
religião constituiu um traço dominante na Índia e em muitas regiões do SEA (v.
BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.65; DUNCAN, 1990, p. 17-20, 24-25). Nesse sentido,
269
as formas híbridas de deuses hindus, conjugavam numa só representação diferentes
concepções de soberania muitas vezes, também, ambíguas (v. LAVY, 2003: 22).
VI. Considerações Finais
A lógica recorrente por trás das adaptações e empréstimos entre divindades
budistas e hindus sempre teve caráter de subordinação, uma procurando apropriarse de outra para reafirmar a superioridade da primeira, o mesmo costumou ocorrer
entre os diferentes ramos do hinduísmo (GELLNER 1997, p. 283-284). Essa
habilidade de uma imagem possuir, simultaneamente, múltiplas identidades sempre
desafiou os acadêmicos ocidentais. Existem, no mundo hindu e budista muitos
exemplos em que, ao invés da confrontação, uma colaboração implícita entre
diferentes afiliações religiosas passou a ser orquestrada, a partir de determinado
momento. Quando confrontados por outra tradição, vaiṣṇavas, śaivas e budistas
empregam estratégias próprias e híbridas (TULADHAR-DOUGLAS, 2005, p. 57, 60).
Assim é possível adorar deuses de outros cultos sem a necessidade de conversão.
A paisagem é certamente muito mais complexa do que aquela apresentada pelas
explicações superficiais geralmente pautadas por discursos ocidentalizados sobre as
religiões e divindades budistas e hindus (GELLNER 1997, p. 286). Esta é uma
pesquisa em desenvolvimento e, portanto, fornece e discute os principais elementos
a partir dos quais esse repertório imagético heterotópico vêm sendo pensado. Seu
potencial reside no aprofundamente da análise das imagens do Mahāparinirvāṇa nas
antigas topologias do Sudeste Asiático, assim como, na verificação da sua
associação à imagem do deus Viṣṇu, em sua forma Anantaśayana. Somente desse
modo, as questões que envolvem os deslocamentos discursivos desse conjunto
imagético, ainda pouco conhecidas e estudadas, poderão ser trazidas à luz.
Notas
1
Owens (2002),no estudo do sítio budista de Swayambhunath no Vale do Katmandu, examina as forças
e intersecções de diferentes interesses que modificam esse espaço.
2
A questão das supostas representações anicônicas iniciais do Mahāparinirvāṇa – relevos com estupas
–, não será discutida aqui por questões de limite de espaço.
3
Embora problemática e cunhada na época colonial, utilizaremos a palavra hinduísmo para nos referir
aos ramos do bramanismo a partir da era Gupta, nos séculos IV-VI d.C., no caso, aqui,especialmente de afiliação
vaiṣṇava e śaiva. Para períodos anteriores, usaremos a denominação bramânica, ou védico-bramânica.
4
De acordo com essa fonte, a serpente Śeṣa deve estar deitada sobre as águas e o “deus dos deuses”,
com quatro braços, deve estar adormecido. Um dos pés do deus deve estar sobre o colo de Lakṣmī, sua esposa,
o outro sobre a cauda da serpente. Uma mão deve estar esticada sobre o joelho, outra deve estar próxima do
270
umbigo, a terceira deve apoiar sua cabeça e a quarta deve segurar um buque de flores santāna. Sobre o lótus,
que emerge do lago em seu umbigo, contendo toda a Terra, deve estar o deus Brahmā, que cria, então, o
mundo. Viṣṇu Anantaśayana, nessa fonte textual, é chamado Padmanābha – aquele com o lótus emergindo do
umbigo (cf. LUBOTSKY 1996, p. 74).
5
“Le Lac oriental se trouve à dix li à l'Est des murs, il peut avoir cent li de tour; il contient tour de pierre et
maisonnettes de pierre. Dans la tour est un Buddha couché en bronze, dont le nombril laisse con stamment
couler de l'eau” (PELLIOT, 1902, p.144).
6
“Ten li east of the city wall lies the East Lake [East Baray]. It is about a hundred li in circumference. In
the middle of it there is a stone tower with stone chambers. In the middle of the tower is a bronze reclining
Buddha with water constantly flowing from its navel” [Dez li a leste do muro da cidade fica o Lago Leste (Baray
leste). Ele tem cerca de cem li de circunferência. No meio dele há uma torre de pedra com câmaras de pedra. No
centro da torre está um Buda reclinado de bronze com água fluindo constantemente de seu umbigo]. (DAGUAN,
in HARRIS, 2007, p. 48; tradução nossa)
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Cibele E. V. Aldrovandi
Arqueóloga e Historiadora da Arte, especialista em Sul da Ásia. Atualmente é coordenadora
e curadora-adjunta da Coleção Asiática, no MASP. Desenvolveu sua última pesquisa de
Pós-Doutorado no DLCV-FFLCH-USP, na Área de Língua e Literatura Sânscrita. Desde
1999, realiza pesquisas junto a instituições estrangeiras e desde 2008 é membro da
Association for Asian Studies, EUA, onde apresenta suas pesquisas regularmente.
272
O GOSTO ORIENTALIZANTE NA ARTE MINEIRA DO SÉCULO XVIII
Marcos Horácio Gomes Dias - UNIFAI e USJT
RESUMO: No século XVIII, o gosto pelo exotismo e o interesse pelas outras partes do
mundo, aliado ao comércio com a Ásia, criou uma moda voltada para os temas orientais e
chineses. De lá eram trazidos tecidos, especiarias, porcelanas e móveis, bem como uma
produção europeia que imitava aqueles motivos segundo a sua própria visão do Oriente. As
vestimentas e túnicas do Oriente próximo cobriam os personagens religiosos do Antigo e do
Novo Testamento. Na decoração interior de igrejas e capelas, encontramos elementos que
trabalham com motivos que imitam a laca chinesa, nas cores dourado e vermelho. Essas
obras retratam casais em passeio, cenas de caça, fontes e ruínas como aquelas
representadas pela porcelana chinesa. Em uma análise mais apurada, percebe-se que
essas obras, na verdade, revelam como os olhos ocidentais entendiam a vida distante dos
povos asiáticos. De uma maneira própria, os artistas mineiros apresentavam temas da
etiqueta de corte europeia disfarçados pelo gosto oriental. A presença desses elementos na
distante colônia revela como a moda do oriente se expandiu durante o século XVIII e revela
Portugal com uma rede de comércio intensa com estes países.
Palavras-chave: Minas Gerais; Barroco; Rococó; Orientalismo, Chinoiseries.
ABSTRACT: In the eighteenth century, the preference for the exoticism and interest in other
parts of the world, attached to the trade with Asia, created a fashion toward the Eastern and
Chinese themes. Lots of fabrics, spices, porcelains and furniture were brought from there,
besides a European production that imitated these themes, according to their own view.
Vestments and tunics of the Near East covered all religious characters of the Old an the New
Testament as well. Also, we can find in the interior decoration of the churches and
chapels elements that reproduce the Chinese lacquer in gold and red colors. Additionally,
these masterpieces show couples walking around, hunting scenes, fountains and ruins like
the ones reproduced in the Chinese porcelain. In a deep analysis, it can be perceived
through these masterpieces/them the Western/Ocidental eyes for the most distant Asian
countries. Otherwise, the "mineiros" artists represent these themes of etiquette of the
European court disguised by an oriental taste.The presence of these elements, in a general
way, reveals how the fashion of the East had been spread during the eighteenth century, and
shows Portugal with a strong network of trade with these countries.
Key words: Minas Gerais, Baroque, Rococó, Orientalism, Chinoiseries.
Introdução
A arte em Minas Gerais, no século XVIII, caracteriza-se por dois grandes
estilos: Barroco e Rococó. Mesmo não sendo reconhecidos por essa nomenclatura
pelos próprios contemporâneos, podemos agrupá-los em algumas características
comuns. O Barroco, fruto da Contrarreforma religiosa e do Absolutismo monárquico,
preza pelas formas substanciosas, decoração rebuscada, igrejas suntuosas e
profusão de imagens. Revela, por meio de um discurso teatral, o poder grandioso do
273
papa e dos reis da Europa, ameaçados que estavam pela Reforma Protestante e
pela ascensão da burguesia. O Rococó, em um período posterior, garante leveza
para a arte e respira a atmosfera do IIuminismo francês. Para a racionalidade do
século XVIII, o Barroco tradicional seria considerado de mau gosto e não
corresponderia mais ao espírito das luzes da época. Essa arte atenderia ao gosto
dos pequenos salões da nobreza e se notabilizaria pelo uso do dourado sobre o
branco.
Esses dois estilos contam com uma série de obras e peças decorativas que
parecem resumir toda a informação possível e necessária para reconhecer o
discurso da época: brasões, escudos, armas militares, lanças, trombetas, capas,
coroas, cetros etc. Essas imagens podem ser personificações de figuras nobres,
tradicionais, mitológicas e simbólicas que são resgatadas conforme o costume da
representação religiosa, bem ao gosto dos mineiros do momento. Imagens que
lembrassem o oriente eram importantes, na medida em que ambientavam as
histórias sagradas e traziam legitimidade ao discurso religioso.
Minas Gerais e o Oriente Próximo
Para localizar os fatos dessas narrativas históricas e sagradas, o artista
mineiro compunha fundos de cena que retratavam paisagens distantes e rostos
exóticos. Para a geografia do Antigo Testamento e da Terra Santa pintavam
desertos, seres fantasiosos e palmeiras. Temos personagens com costumes árabes:
túnicas
amarradas
na
cintura,
capas
e
turbantes.
Esses
costumes
são
representantes do imaginário europeu e da construção que os ocidentais faziam do
oriente próximo.
Na arte mineira, os trajes e os chapéus dos velhos sacerdotes, a escrita
hebraica e os candelabros ajudavam a compor os cenários das pinturas que faziam
referência a Abraão, à Isaac, às tribos de Judá, aos profetas etc. Os artistas da
capitania retratavam esses personagens com trajes e vestimentas orientalizantes
que faziam menção ao Oriente Próximo, ou mesmo, ao norte da África. Aleijadinho é
um desses mestres que usavam desses elementos na composição de suas obras.
274
A fonte inicial para essa rica iconografia encontrava-se no livro do Gênesis. O
primeiro livro do Antigo Testamento narra a história desde quando “Deus criou o céu
e a terra” até a morte de José, filho do patriarca Jacó. Essa narrativa retrata a
história das origens da nação hebreia, a vida dos patriarcas hebreus como Abraão,
Isaac e Jacó. Acoplada a essa tradição iconográfica, temos aquelas imagens
relativas aos Dez Mandamentos, representadas também como a tábua de Moisés, e
aos eventos que anunciam a sua aparição. Sua referência encontra-se no Êxodo,
livro que narra a partida dos judeus do Egito e sua chegada ao Monte Sinai. Esse
livro registra os eventos ocorridos entre a morte de José, no Egito, e a ereção do
Tabernáculo do Sinai pelos israelitas.1 Seguindo essa narrativa iconográfica, a arte
em Minas Gerais ressaltava, ainda, a figura de juízes, reis e profetas da nação
judaica.
Na composição dessas pinturas referentes ao Antigo Testamento, os pintores
mineiros, geralmente, optavam por representar figuras vestidas com o talit (xale de
oração), objetos como o hanukká (candelabro de oito braços usado em celebrações)
e as costumeiras tábuas com os dez mandamentos. O Rei David, diferente dos
outros personagens, é sempre representado como um monarca europeu.
A imagem que os indivíduos da época tinham sobre o oriente pode ser vista
na casa de fundição de Sabará, atual Museu do Ouro. A Ásia é representada por
dois homens com costumes árabes: túnica branca amarrada na cintura, capa
vermelha, turbante e bigode. Os personagens estão entre vestígios arquitetônicos e
colunas que mostram a antiguidade do continente. Sobre uma base de formato
quadrangular, geralmente usada como suporte de estátuas, encontra-se um globo,
que é a invocação do poder absoluto sobre um território determinado2, ideia que os
ocidentais europeus tinham dos Estados despóticos do Oriente. 3 Em uma placa
arquitetônica, vemos esculpido um turbante encimado por uma meia-lua, símbolo
dos “infiéis” de tradição islâmica. A Ásia lembra os árabes e a corte persa, que
também encantou os europeus como lugar de luxo e fonte de especiarias.
275
Figura 01: Ásia, Museu do Ouro, Sabará (séc. XVIII).
Fonte: Foto do autor.
Esses são os modelos para os profetas de Congonhas. Segundo Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira, os modelos para as roupas exóticas utilizadas por
Aleijadinho nos profetas estão ligados à pintura flamenga do final da Idade Média.
Esses modelos foram introduzidos em Portugal no período de D. Manuel I (1495 –
1521). Segundo a autora:
Foi, por conseguinte na Europa do Norte, e especialmente na região de
Fladres, que se estabeleceu o tema da caracterização dos profetas,
patriarcas e outros personagens bíblicos de procedência ‘oriental’ com
vestimentas exóticas e complicadas, incluindo longos casacos e mantos
debruados de faixas bordadas, complementados por barretes em forma de
turbantes à ‘moda turca’. Sim, porque os turcos, sem dúvida os mais
próximos vizinhos orientais da Europa e seus mais temidos adversários,
sempre exerceram um certo fascínio na imaginação e conseqüentemente
na criação artística européia, tanto no que se refere à literatura quanto às
artes visuais (OLIVEIRA, 1984, p. 56).
276
Figura 02: Profeta Jeremias, Aleijadinho (séc. XIX)
Basílica de Bom Jesus dos Matosinhos em Congonhas.
Fonte: Foto do autor.
As biografias desses profetas que inspiraram a arte mineira são uma
lembrança do passado remoto da religião cristã, ao mesmo tempo em que são
usadas como admoestação aos fiéis da época. Guardando as devidas proporções, a
iniquidade dos homens do oriente próximo poderia ser uma alegoria da iniquidade
do homem europeu ou colonial, fato esse que deveria ser evitado. A redenção
deveria acontecer e a ira de Deus precisava ser aplacada. Os governantes e os
homens comuns deveriam se lembrar das palavras sagradas.4
Para os personagens do Novo Testamento, por sua vez, temos um cenário
codificado pelo drama e pela tragédia. Essas obras buscavam o passado grecoromano ao retratar vestígios arquitetônicos e colunas que mostravam a antiguidade.
Esse é o momento de legitimação do mundo cristão e o afastamento da barbárie
oriental representada pelo Antigo Testamento.
Jesus Cristo seria o personagem principal que significaria a passagem para
um novo mundo europeu que tem no Papa, em Roma, seu grande sucessor. Os
Reis Magos seriam legítimos representantes da extensão desse mundo que, agora,
se curva à verdadeira civilização.
277
São três magos ou sábios (Baltazar, Gaspar e Melquior) que vieram do
oriente para adorar o Menino Jesus. Vindos do oriente, são retratados de maneira
europeia e reservam um lugar para o personagem negro. Sempre estão
acompanhados por objetos ou animais representativos de uma região exótica. Os
artistas tentavam exprimir nesses três personagens a totalidade do mundo
conhecido,
variando
suas
características
e
tornando-os
universalmente
demonstrativos. A iconografia dos Reis Magos dialogava, desde o século XVI, com
os descobrimentos, que aumentavam as partes do mundo a serem representadas.
Esse tema serviu para a exaltação dos feitos da Igreja pelo mundo e para referenciar
o poder de reis e príncipes.5 Podemos encontrá-los em igrejas, palácios, festas de
recepção, cortejos, etc.6 Essas imagens faziam parte de um universo que dialogava
com os grandes mapas que estavam sendo realizados no momento. Esses mapas
também estavam a serviço dos Estados Nacionais, que queriam delimitar suas
posses e riquezas. Os conhecimentos em relação à astronomia, cartografia e
geografia eram fundamentais e diziam respeito aos Estados absolutos.7
Os reis magos eram apresentados na iconografia mineira em trajes régios e
em cenas do presépio, ajoelhados ou em pé diante da manjedoura. Trazem como
atributos um pote e uma urna8. Essa iconografia é utilizada, portanto, para reforçar a
ideia da extensão da figura de Jesus pelo mundo, o poder geográfico da Igreja e a
conversão de figuras importantes, como os reis pagãos.
Posteriormente, as figuras bíblicas que conviveram com Jesus Cristo, e os
santos que se fazem a partir daí, usam roupas da antiguidade clássica ou são
vestidos à moda europeia do momento, acompanhando as últimas tendências das
cortes absolutistas. Mesmo assim, o oriente próximo continua uma inspiração para
os artistas do momento. Maria seria a própria representação de mistura de
referências e estilos que buscavam no oriente suas referências. Como nobre, é
caracterizada pela graça e refinamento dos gestos. Representada dessa maneira, a
Virgem Maria acaba por ser tornar uma alegoria. Germain Bazin diz que:
Animada pelas múltiplas expressões da vida, a Virgem do Ocidente é uma
mulher. Herdeira da tendência grega ao tipo, mas estilizada pelo fluxo dessa
corrente profunda que do velho Oriente remonta à superfície, a arte
bizantina submete a Virgem a coações canônicas que fazem dela um ícone,
vestimenta formal de um conceito” (BAZIN, 1989, p. 130).
278
As próprias narrativas biográficas desses personagens sagrados fariam
referências a essa geografia. Não podemos esquecer a influência do mundo
bizantino que, por sua vez, trazia uma série de informações sobre oriente antigo e
sobre as culturas que o povoaram. A devoção à Sant’Anna e a São Joaquim é um
dos exemplos. Partindo do oriente, remonta ao século VI. No ocidente, sua devoção
inicia-se por volta do século VIII, momento em que suas relíquias foram levadas da
Terra Santa à Constantinopla (c.710 d.C.)9. Nesse sentido, é muito importante citar
as representações dos doutores da Igreja Grega ou Oriental. Quando buscamos a
história da Igreja, vemos que um dos atos mais influentes do Imperador Constantino
foi a decisão de mudar a capital do Império Romano para Constantinopla em 330
d.C. Essa cidade tornou-se um importante foco intelectual e religioso do cristianismo
oriental. Enquanto isso, o cristianismo ocidental foi se centralizando na figura do
papa, em Roma. Os principais centros do cristianismo no oriente eram
Constantinopla, Jerusalém, Antioquia e Alexandria. Esses centros tinham uma vida
intelectual e espiritual vibrantes, na qual foram presididos concílios e discussões
importantes sobre a fé e os dogmas da religião.10 Com o tempo, esses centros
seriam alvo da expansão do Islamismo11. O maior desafio do artista mineiro, na
representação dos personagens que participaram desse momento da história da
Igreja, era fazer alguma referência a essa geografia de forma a deixar clara e
verossímil essa narrativa. Eles representavam, geralmente, basílicas ou paisagens
áridas como contextualização.
Minas Gerais e a arte chinesa
Minas Gerais caracteriza-se, na realidade, pela arte rococó. Podemos
perceber que o clima de fantasia proporcionado por esse estilo pode ser vislumbrado
também pelo gosto pela Commedia Dell’Arte italiana, com palhaços e arlequins. O
Rococó apropria-se, ainda, de muitos temas da literatura, como o Arcadismo e as
mais diversas fábulas. O Arcadismo foi o gosto literário que deixou clara a posição
da velha classe aristocrática frente às mudanças do mundo ocidental e à ascensão
da burguesia12. Nele, pastores de ares nobres e senhoras elegantes desfrutavam da
natureza, evocando o ócio e o saber viver da aristocracia. Esses personagens
seriam a própria imagem da educação e da civilização do tempo13 . Esse gosto
279
aparece em obras de artistas franceses, como Jean Honoré Fragonard, François
Boucher, Antoine Watteau e Jean-Marc Nattier14 e destacou-se por uma produção
de retratos que privilegiava a representação de uma postura nobre e aristocrata de
forma mais elegante do que a forma artística anterior 15 . O gosto orientalizante
também foi uma marca do estilo16 e pavilhões e torres chinesas foram construídas
nos palácios de toda a Europa17.
O gosto pelo exotismo e o interesse pelas outras partes do mundo, aliado ao
aumento do comércio com a Ásia, criou uma moda voltada para os temas chineses e
orientais reconhecida como “chinoiseries”18. De lá eram trazidos tecidos, especiarias,
porcelanas e móveis, além de uma produção europeia que imitava aqueles motivos
segundo a sua própria visão do oriente.19
O interesse por produtos orientais lançava os europeus na busca do segredo
da laca e da porcelana. Com o passar do tempo, tratados são escritos com
ilustrações explicando os métodos de execução ou imitação da arte chinesa.
Esmaltava-se as superfícies e depois aplicava pincel com motivos dourados ou
imitava-se azulejos, em cores azuis e brancas, adornando com motivos orientais. 20
Alguns pintores usam do tema e o retratam à sua moda. Dalva abrantes
comenta sobre Boucher:
A China para esse pintor é um país bonito e elegante, as pessoas passam o
tempo como os europeus [...]. Interessante notarmos que as mulheres
sempre têm a expressão das faces europeias [...]. Os homens são mais
chineses, as pessoas estão geralmente conversando como nas obras
rococó, tête-a tête, com etiqueta de corte, cena típica da aristocracia
francesa. (ABRANTES, 1992, p. 120).
O gosto nobre influencia mesmo a produção dos orientais que, para satisfazer
a demanda europeia, incluíam cenas de caça e de passeios em tecidos e porcelanas,
retratando a própria visão que os ocidentais tinham deles. 21
Portugal já se destaca, no século XVIII, pela produção de sua porcelana. A
porcelana oriental já era conhecida pelos portugueses antes do interesse por suas
peças em outros países europeus. Devido à facilidade que tinha de acesso aos
materiais orientais, Portugal conhece muito cedo o gosto pela louça decorada com
temas chineses. No período pombalino, temos o funcionamento da Fábrica do Rato
em Lisboa, que produz louças, pratos ou pequenas estatuetas que representam
280
casais apaixonados, moças no campo ou animais domésticos. 22 Os temas de
produção estão ligados, geralmente, à vida cortesã e a lembranças do mundo do
oriente.
A própria ciência europeia estava interessada nas terras orientais. A ciência,
aliada a essa maior interatividade com as outras partes do mundo e o seu caráter
investigativo de querer compilar toda a sabedoria da época, classificava as espécies
animais e vegetais, usando desenhos e lâminas de agudíssima precisão. Essa
técnica é levada para a arte decorativa, que reproduz em objetos e manufaturados
as plantas e flores, que são os motivos principais de sua ornamentação. O rococó
faz uso da concha orgânica e assimétrica, num arranjo que perde em volumetria, se
comparada ao barroco, e marca definitivamente o estilo. Nesse sentido, o gosto pelo
orientalismo estava ligado ao gosto pelos temas galantes e de sedução baseados na
convivência dos salões europeus. João Adolfo Hansen fala sobre a difusão de temas
amorosos durante esse período:
O tema, aliás, torna-se lugar-comum nas discussões cortesãs e na poesia
lírica da época, quando proliferam os Diálogos sobre o amor, fundindo o
neoplatonismo florentino, a tradição medieval do amor-cortês, a caridade
paulina, o culto medieval da Virgem, as místicas do Oriente, como o sufismo
etc. (HANSEN, 1986, p. 79).
A partir de imagens pretensamente orientais, os artistas reafirmavam os
mesmos temas das cenas galantes europeias e trabalham com cores similares aos
chineses: vermelho e dourado. Essas cenas retratavam com olhos ocidentais a vida
distante dos povos asiáticos. A moda do oriente se expandiu, dessa forma, durante o
período rococó e colocava Portugal em uma intensa rede de comércio com estes
países.
No caso das Igrejas mineiras, o maior exemplo é a igreja de Nossa Senhora
do Ó em Sabará. Esse templo já retrata, em sua arquitetura em forma de pagode
chinês, em plena fase barroca inicial da capitania, o gosto pela moda chinesa, que
iria imperar nas décadas seguintes.
281
Figura 03: Interior da Igreja de Nossa Senhora do Ó
Sabará.
Fonte: Foto do autor.
No interior dos templos, os temas religiosos estão localizados nas partes altas
dos tetos, paredes e altares, deixando as partes baixas reservadas para as pinturas
com um conteúdo “não religioso”. Essa última pode representar imagens de cunho
galante frívolo, cenas chinesas ou painéis sobre as estações do ano23. Como já dito,
anteriormente, podemos encontrar essas imagens na igreja de Nossa Senhora do Ó
em Sabará, na igreja do Pe. Faria em Ouro Preto, na igreja de Santa Ifigênia, em
Ouro Preto, no cadeiral da Igreja da Sé, de Mariana, e no antigo para-vento da igreja
de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana24. A iconografia tridentina coloca, em seu
devido lugar, a heresia e o profano.
Segundo Dias:
As cenas galantes aparecem nas paredes laterais da capela-mor, fazendo
parte de toda a teatralização composta a partir do altar. A pintura ilusionista
parietal serve como ornamento e espaço reservado para determinadas
iconografias. Muitas vezes, são imagens de representação arquitetônica,
como a pintura de imitação de azulejos, podendo apresentar imagens de
dogmas e mistérios relativos à fé. A pintura arquitetural surge numa
hierarquização dos espaços e está inserida num contexto em que os altares
das igrejas são organizados de forma emblemática, como as páginas de um
livro, que na medida em que é lido faz revelar seus segredos e mensagens.
As cenas galantes aí têm seu lugar específico, pois apresentam-se num
plano baixo, sinal da superioridade religiosa sobre as coisas do mundo;
seguram o peso e estão inferiorizadas diante dos símbolos sacros” (Dias,
2000, p. 177).
282
Figura 04: Cadeiral da Sé de Mariana (séc. XVIII).
Fonte: Foto do autor.
A capela do Padre Faria, em Ouro Preto, apresenta cenas de caça numa
pintura de perfeita imitação de azulejo. A igreja da Sé de Mariana apresenta cenas
de caça e passeios, com fontes e ruínas, numa pintura que imita a laca chinesa nas
cores dourado e vermelho. A Igreja de Santa Ifigênia, em Ouro Preto, apresenta uma
pintura que lembra aquela encontrada no cadeiral da Sé de Mariana, nas cores azul
e branca, também numa tentativa de imitação de azulejo. Poderíamos observar,
ainda, as pinturas de gosto oriental com temas galantes e paisagísticos que se
encontravam no para-vento da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, e
que foram queimadas no incêndio de 20 de janeiro de 1999.
Nas pinturas de gosto orientalizante de Minas Gerais a luz é absoluta e
espraiada, a perspectiva não produz profundidade, as figuras estão estáticas e com
pouco movimento nos corpos. Os contornos são nítidos, o que realça a graciosidade
dos personagens e permite a percepção da natureza. Nelas podemos ver casais
andando aos pares, mulheres com sombrinhas, cenas de caça e ruínas em jardins.
No caso da pintura parietal, segue as formas da azulejaria e da “chinoiserie”. A
disposição dos elementos apresenta-se de forma chinesa e as cores usadas são o
283
vermelho e o dourado, que imitam a laca, e o azul e o branco, que imitam os
azulejos.
Figura 05: Para-vento da igreja do Carmo em Mariana (séc. XVIII).
Fonte: Foto do autor.
Esse repertório percorre, ainda, espaços mais distantes e de usos exclusivos
como sacristias e consistórios. Os diversos serviços que esses cômodos podiam
oferecer representavam um espaço privilegiado para a sociabilidade de religiosos,
irmãos, crentes e pessoas comuns. As sacristias, por exemplo, eram de extrema
importância, no Brasil colonial, pois eram locais de convivência social e de
importantes resoluções da comunidade.2526
Como dito acima, as chinesices das igrejas mineiras também representavam
cenas da nobreza europeia em estilo orientalizante, assim como na própria Europa27.
Minas Gerais, fazendo parte do império colonial português, consome produtos
vindos do oriente e se depara com tecidos e porcelanas que os próprios orientais
adaptavam ao gosto Ocidental para poder satisfazer o consumo europeu28. A China
representada pelos mineiros era, na realidade, uma sociedade europeia travestida
pelas cores do Oriente e servia à elite colonial mineira como ponto de ligação aos
seus pares na Europa.
Considerações Finais
Esses temas caíam bem ao gosto do homem ocidental nesse momento da
colonização em Minas Gerais. A história desses personagens é uma referência
constante às monarquias e aos governos do Oriente Médio. Para os europeus do
século XVIII, a Ásia contemporânea seria uma terra de governos despóticos e
supersticiosos. A filosofia política da ilustração não cansava de caracterizá-los dessa
284
maneira. Para Montesquieu, por exemplo, o poder despótico seria uma espécie de
monarquia no qual todas as ordens da sociedade seriam abolidas e os indivíduos
ficariam sob o julgo de um só governante. Esse soberano absoluto teria em suas
mãos todos os poderes e governaria por meio do terror. Montesquieu, em O espírito
das leis, identificava o governo despótico com os governos que existiam no Oriente.
A arte utilizava-se, então, de modelos iconográficos para reproduzir o discurso
político teológico da época, explicando aquilo que era considerado infiel, anticristão
e sinônimo de má política. O cristianismo de Roma teria se deslocado para a Europa
por ser o lugar da civilização e da verdadeira religião. A partir da ignorância religiosa
das populações, servia ainda para educar o observador nos preceitos de uma ordem
estabelecida. A arte direcionava a visão e o corpo do observador, apresentando uma
estrutura numérica, geométrica e racional.
Como fascínio e repugnância andavam juntos no campo da arte, o
orientalismo garantia também o vocabulário suntuário das obras em Minas Gerais. A
pintura imitava a laca chinesa, tecidos preciosos (seda bordada, adamascado,
brocado), azulejos embutidos, mármores policromados, ouro, prata e fios preciosos.
O orientalismo em Minas Gerais pertencia, assim, a um universo muito amplo que
abrangia a literatura, a pintura, a porcelana, os azulejos, as formas de convívio etc.
Sua presença garantia para a elite colonial um elo com o gosto artístico europeu e,
por isso, estava visualmente marcada em vários pontos da arte mineira do período.
Notas
1
“Impelidos pela fome ou pela falta de segurança, clãs semíticos foram, com seus rebanhos, para o
Egito e se estabeleceram pelo menos na região do Delta do Nilo. A sua permanência aí deve-se ter prolongado
bastante, já que as crianças nascidas nesse período receberam nomes egípcios. A mais conhecida dessas
crianças é a que desempenhou mais tarde um papel determinante na formação do povo de Israel, isto é, Moisés,
o qual, embora tendo nome egípcio, pertencia, segundo Ex 2,1, à tribo de Levi. As relações entre os egípcios e
esses clãs semíticos foram perturbadas quando um faraó obrigou a estes últimos a trabalharem na construção
das cidades de Pitom e Ramsés (Ex 1, 11), situadas no Delta oriental e mencionadas nos textos egípcios do
século XIII a. C.” In. ISRAEL E JUDÁ, 1985, p. 35.
2
CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 472.
3
Montesquieu, em O espírito das leis, identifica o governo despótico, algumas vezes, com os governos
que existiam no oriente.
4
BOTTÉRO, 1993, p. 108.
5
Devemos levar em consideração, neste contexto, que a Oceania nunca foi considerada na
representação das partes do mundo.
6
Podemos encontrar tais representações espalhadas pela Europa, dando destaque ao forro da nave da
Igreja de Santo Inácio em Roma, onde o padre Pozzo homenageou a obra missionária dos jesuítas, e aos
afrescos de Tiepolo. Em Portugal podem ser vistos em Lisboa, no salão do Palácio Centeno e na varanda da
Quinta dos Inglesinhos; em Franca de Xira, no Palácio dos Sacotos, de cerca de 1745; e em Évora, em uma sala
285
de aula da antiga Universidade, datado de 1747. No Brasil, encontramos no forro da portaria do Convento de
São Francisco, no forro da nave da igreja de Conceição da Praia e nas pinturas laterais sob o coro da igreja de
Nossa Senhora da Palma, em Salvador. Em Minas Gerais, podemos encontrar em algumas residências
particulares.
O número quatro está assim relacionado a uma divisão do mundo em partes, nas quais um meridiano e
um paralelo dividem a Terra em quatro setores. “Em todos os continentes, chefes e reis são chamados:
Senhores dos quatros mares...dos quatro sóis...das quatro partes do mundo...etc.: o que pode significar, ao
mesmo tempo, a extensão da superfície de seu poder e a totalidade desse poder sobre todos os atos de seus
súditos”. In. CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 759.
7
Essa temática é também identificada com a tradição do espetáculo teatral do Barroco, percebida na
fonte de Bernini, que se encontra na Piazza Navona em Roma. Na fonte, estão quatro rios: o Ganges, o Rio da
Prata, o Danúbio e o Nilo, que, segundo alguns historiadores, seriam a alegoria dos quatro rios do paraíso. Estes
teriam uma nascente única, representada pela rocha do centro da fonte de onde saem os jorros d’água. São
ainda uma alusão à extensão do poderio da igreja pelos quatro cantos do mundo, assim como a pintura que se
encontra no teto da igreja de Gesú, também em Roma, que mostra a expansão dos jesuítas pelos quatro
continentes. As esculturas que representam os rios apresentam atributos e características que as identificam
com a região a que pertencem. A escultura que representa o Nilo, por exemplo, tem como atributo um crocodilo
que se agita na parte baixa da fonte. A cabeça da escultura que representa o Rio da Prata tem feições negroides,
numa alusão ao que eles entendiam dos primitivos habitantes do novo mundo. In. SCHAMA, 1996, p. 302-7.
8
MAIA, 1990, p. 66. Podemos ver essas representações na igreja de Nossa Senhora do Ò, em Sabará,
onde temos no altar-mor a representação do Nascimento de Jesus, da Visitação, da Criação de Jesus e dos Reis
Magos.
9
LODI, 2001, p.273-275.
10
GOUGH, 1961, p. 100-115.
11
HOURANI, 2006, p. 121.
12
CÂNDIDO, 1967, p.61.
13
BOSI, 1970, p. 58.
14
MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO, 1978, p 46-54.
15
BAZIN, 1993, p. 213.
16
PIMENTEL, 1987, p. 358-61.
17
ABRANTES, 1992, p. 120.
18
PIMENTEL, 1987, p. 358-60.
19
PIMENTEL, 1987, p. 358-60.
20
PIMENTEL, 1987, p. 360-1.
21
DEL PRIORE, 1996, p. 212-26
22
PEREIRA, 1989, p.183-184.
23
Esta ordem não é, necessariamente, seguida. Em muitas igrejas, podemos ver, nos mesmos espaços,
representações de temas sacros. Quando o tema é profano, ocupa especialmente esses lugares.
24
As pinturas, de gosto oriental, temas galantes e paisagísticos, que se encontravam no pára-vento da
igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, foram queimadas no incêndio de 20 de janeiro de 1999.
25
Podemos encontrar um desses exemplos na igreja da Ordem Terceira de São Francisco em São João
Del Rei.
26
BIANCARDI, 1981, p. 32-4.
27
ESQUITA, s.d., p.118-9.
28
DEL PRIORE, 1996, p. 212-26.
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SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Marcos Horácio Gomes Dias
Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012), possui
graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1995), pós-graduação em
Arte e Cultura Barroca pela Universidade Federal de Ouro Preto (1999) e mestrado em
História Social pela Universidade de São Paulo (2000). Atualmente é professor da
Universidade São Judas Tadeu (USJT) e do Centro Universitário Assunção (Unifai).
287
A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO
Michiko Okano - UNIFESP
RESUMO: Apresenta-se um estudo do conceito estético japonês kawaii, hoje conhecido
internacionalmente pelos mangás, animês e games que circulam por diversos países.
Ilustradores como Takehisa Yumeji e Nakahara Jun’ichi foram os primeiros a desenvolver tal
estética no período moderno. Na contemporaneidade, ela foi transposta para as artes
plásticas por artistas japoneses como Murakami Takashi, Nara Yoshitomo ou Takano Aya.
Os ilustradores, no início do século XX, tinham mais liberdade no seu processo criativo que
os artistas plásticos hoje e, influenciados pela cultura ocidental, passaram a produzir
meninas delicadas e graciosas, com os olhos cada vez maiores. Os contemporâneos
ficaram mais circunscritos à estética dessas ilustrações, que fazem parte da sua vivência
juvenil, e representam-na diretamente. No Brasil, pode-se estabelecer um diálogo entre o
kawaii e alguns artistas, como Rogério Degaki e outros que trabalham com grafite, como
Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz. Esse intercâmbio é um dos objetos da discussão que
será apresentada a seguir.
Palavras-chaves: kawaii, artista moderno japonês, artista contemporâneo japonês, artista
brasileiro.
ABSTRACT: This study refers to the Japanese art of kawaii, internationally known as manga,
anime and games that are popular in many countries throughout the world. The Illustrators
Takehisa Yumeji and Nakahara Jun’ichi were the first ones to develop the kawaii style.
Contemporary Japanese artists like Murakami Takashi, Nara Yoshitomo and Takano Aya
treated this aesthetic style as fine art. Illustrators, at the beginning of 20th century, enjoyed
more freedom in their creative process than contemporary artists and, influenced by Western
tastes, developed the delicate and cute girls with eyes bigger and bigger. In the universe of
manga, the contemporary artists work directly in the kawaii style in their anime and games,
as it was an important part of their youth. In Brazil, we can establish a dialogue between
kawaii and the story has been adopted and inherited by some artists, especially those who
work with graffiti, such as Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz and Rogério Degaki. This
exchange is one of the subjects of the discussion that will be presented bellow.
Keywords: kawaii, Japanese modern artist, Japanese contemporary artist, Brazilian artist
A palavra kawaii, proveniente do universo da cultura pop japonesa (mangá,
animê, cosplay e game) é hoje conhecida por muitos brasileiros, principalmente
pelos jovens. Kawaii faz referência às coisas fofas e bonitinhas, como Hello Kitty,
Pokémon e meninas de olhos geralmente grandes, com gestos e ações infantis,
entre outros elementos. Tal estética é hoje um símbolo nacional e está sendo
adotada como estratégia cultural pelo governo japonês, que pretende divulgá-la em
âmbito global.
288
Algumas brasileiras aderem a essa tendência, seguindo a Moda Lolita,
originária do Japão do final da década de 1970 para o início de 1980. Trata-se da
evocação da beleza de meninas vestidas como bonequinhas, cujas roupas têm
babados, fitas e estampas de doces, animais, flores e frutas. As cores variam de
acordo com o sub-estilo adotado: sweet, gothic, classical, princess, punk, natural ou
walori (à moda japonesa). Temos uma Embaixadora Kawaii do Brasil, título
concedido, em 2013, à Lolita brasileira Akemi Matsuda, pela Japan Lolita
Association.
A investigação da origem da palavra kawaii, mostra que ela não surgiu nestas
últimas décadas no Japão, mas tem raízes mais profundas. Apesar da sua
procedência ser japonesa e de ter o seu desenvolvimento dentro do território
nipônico, tal estética tornou-se, a partir da Era Moderna japonesa, um produto
híbrido de circulação e de conexão entre ideias e conceitos estéticos do Oriente e do
Ocidente.
Essa hibridização pode corroborar a aceitação dessa estética no Ocidente,
como aconteceu com a famosa xilogravura A Grande Onda de Kanagawa, de
Katsushika Hokusai, a qual incorporou a técnica ocidental de pintura (luz e sombra,
perspectiva linear), o que permitiu uma identificação maior dos estrangeiros com a
obra.
Uma vez que essa estética híbrida circula para os outros países, e sabendo
que os signos se modificam de acordo com as novas relações estabelecidas com o
contexto, procura-se estudar, neste texto, ainda que em estágio incipiente, algumas
similaridades e diferenças encontradas nas representações visuais do kawaii no
território brasileiro.
Origem do kawaii
O termo kawaii é antigo, originário da palavra kawayushi ou kawowayushi,
cujo registro pode ser encontrado na literatura Konjaku monogatari (Narrativas do
presente e do passado) do século XII, final da era Heian. Contudo, Kawayushi tinha
outra semântica, diferente da que conhecemos hoje: significava ter pena, ter vontade
de fechar os olhos por estar diante de uma situação dolorosa1. A palavra kawayushi
foi substituída, após a Segunda Guerra Mundial, por kawayui, que mais tarde se
289
transformou em kawaii, como a conhecemos atualmente. O vocábulo que era
utilizado com o significado atual do kawaii era utsukushii (utsukushiki). A literatura
clássica japonesa da era Heian (794-1185), Makura no Sôshi (Livro de Cabeceira ou
Livro do Travesseiro), de Sei Shônagon, ilustra esse uso de “utuskushiki”:
Utsukushiki mono – Coisas que são graciosas
Coisas que são graciosas. Rosto de criança desenhado em um melão.
Pardalzinho que vem saltitando, ao imitarmos guinchos de rato. É muito
graciosa a criança de dois, três anos, que engatinha rapidamente e, com
vivacidade, descobre um pequeno cisco no chão, pega-o com seus dedos
muito encantadores e mostra-o a cada um dos adultos. É graciosa também
a menina de cabelo cortado rente aos ombros como o das monjas, que,
para ver alguma coisa, inclina o rosto ao invés de afastá-lo quando este lhe
cobre os olhos. (SHÔNAGON, 2013, p. 7)
Como vemos, utsukushiki é utilizado com a semântica de coisas graciosas
que se relacionam ao tamanho reduzido, como pássaros e crianças, referindo-se aos
seus gestos e às suas aparências. Essas características de ser “pequeno” e “infantil”
são apontadas na descrição do conceito de kawaii dos pesquisadores japoneses
estudados (Ôtsuka, Miyadai, Yomota).
Segundo Cordaro e Wakisaka, emanam do livro de Sei Shônagon, que
descreve o cotidiano da vida da corte do século XI, “a ética e a estética que
doravante se tornarão basilares da cultura japonesa, naturalmente filtradas por uma
autora que possuía um olhar, digamos assim, múltiplo e multifocal” (SHÔNAGON,
2013), o que demonstra que o utsukushii, isto é, o atual kawaii é um elemento
estético fundamental da cultura japonesa existente desde a era Heian.
O kawaii tem, portanto, raízes profundas na sociedade japonesa, o que nos
permite classificá-lo em três fases: a primeira, é a tradicional, sobre a qual acabamos
de discorrer; a segunda é o seu desenvolvimento no período moderno, quando a
sociedade japonesa, da era Meiji (1868-1912) até início da era Taishô (1912-1926),
recebe intensa influência ocidental; e a terceira é o kawaii contemporâneo, que
nasce na década de 1970.
Kawaii moderno e suas representações
Contrastando com a era Edo (1603-1868), quando o Japão fechou os seus
portos para as nações estrangeiras, com exceção da Holanda e da China, a era
290
Meiji é marcada pela abertura do país ao Ocidente, com a gradual absorção da
cultura e da estética ocidentais.
Foi nesse contexto de intenso acesso à cultura externa que ocorreu a
segunda fase do kawaii, na qual ele foi representado pelas ilustrações de artistas
como Takehisa Yumeji (1884-1934), Nakahara Jun’ichi (1904-1986), Matsumoto
Katsuji (1913-1983) e Mizumori Ado2. Essa representação foi divulgada, sobretudo,
pelas revistas femininas.
A categoria kawaii é analisada pelo sociólogo japonês Miyadai Shinji (2007, p.
120-122) por meio de três variáveis: o ergonômico, o romântico e o gracioso. A
primeira faz referência à leveza, maciez e brancura resultantes da busca de algo
ergonômica e sensitivamente carinhoso, representado, por exemplo, pelos bichos de
pelúcia. A segunda tem relação com a romantização de si e do que está ao redor por
meio de uma visão subjetiva, como o desejo de construir “um universo envolvido
pelo amor”. O último aspecto, o gracioso, faz parte do que é infantil, inocente, puro,
alegre e dinâmico.
O romântico pode ser correlacionado com o conceito de kawaii elaborado pelo
pesquisador japonês Yomoi Inuhiko (2006), que define essa estética como algo que
tem um sentimento de nostalgia, frágil e efêmero, ao passo que a questão do
“gracioso” corresponde, na visão do mesmo autor, a algo vulnerável que provoca um
desejo de proteção ou remete à utopia construída pela inocência e a imaturidade.
Ao cruzar esses conceitos desenvolvidos por Miyadai e Yomota, podemos
sinalizar que Takeshita Yumeji e Nakahara Jun’ichi trabalham, principalmente, com a
variável do romântico – as figuras por eles retratadas são frágeis e possuem ar de
nostalgia – e que Matsumoto Katsuji e Mizumori Ado elegem o gracioso como
representação das suas imagens – na maioria shôjo, isto é, meninas com ar infantil,
imaturas, fofinhas e bonitinhas. Matsumoto adota o gracioso infantil, diferentemente
de Mizumori, que vai além e introduz o erótico gracioso nos seus desenhos.
Takehisa Yumeji foi um dos pioneiros a criar a estética kawaii moderna. Ele
recebeu influências ocidentais como art nouveau, que foram trazidas, no início do
século XX, por artistas recém-chegados da Europa como Kuroda Seiki e o renomado
escritor Natsume Sôseki. “As mulheres bonitas estilo Yumeji”, são típicas das obras
291
de Takehisa, e ainda guardava alguns vestígios da estética das “mulheres bonitas”
de ukiyo-e, com seus corpos e rostos alongados, vestidas de kimono, com delicada
sinuosidade própria das mulheres japonesas da era anterior, mas com a grande
diferença de que, para ele, a sua obra não existiria sem o desenho de observação
(ISHIKAWA, 2010, p. 13), que é um método ocidental de elaborar a pintura.
Os rostos brancos das mulheres contêm uma maior expressividade, com
olhos e bocas mais pronunciados e os braços, também esbranquiçados, são longos.
Os traços são mais soltos e há a ênfase do desenho do rosto em perfil, raro nas
épocas precedentes, e mostra a lateralidade do pescoço, que transmite uma
delicada sensualidade.
É importante observar que Yumeji não teve uma educação artística
acadêmica e, provavelmente por esse motivo, sentiu-se mais livre para receber a
influência ocidental. No entanto, nota-se também a aprendizagem da pintura
tradicional nihonga3 por intermédio de sua mulher, Kishi Tamaki, viúva de um artista
desse estilo, que se tornou seu modelo enquanto durou o relacionamento. Vê-se,
desse modo, um amálgama entre os elementos ocidentais e japoneses representado
nas suas criações.
Fig.1 Obras de Takehisa Yumeji (lado esquerdo), Nakahara Jun’ichi (centro superior), Matsumoto
4
Katsuji (lado direito superior) e Mizumoro Ado (lado esquerdo inferior).
O início da carreira de Takehisa data de 1908, no caso de Nakahara Jun’ichi,
isso ocorreu mais tarde, em 1932, por meio das ilustrações da capa da revista
feminina Shôjo no tomo (Amiga da mocinha).
292
As meninas de Nakahara são melancólicas, poéticas, imbuídas de uma
elegância e refinamento citadinos (Fig.1). Os olhos grandes são reforçados por cílios
pronunciados, ora em representações de garotas japonesas, ora ocidentais, modelo
que se tornou fonte de inspiração dos mangás atuais. As pupilas estão quase
sempre direcionadas para cima, conferindo um ar sonhador às figuras, cuja
composição da delicadeza se completa com queixos pontiagudos, sobrancelhas
finas e levemente arqueadas, bocas pequenas em biquinhos e faces rosadas.
Foi também Nakahara quem introduziu a moda de roupas ocidentais por meio
de ilustrações, ensinando também como uma moça deveria comportar-se em
algumas ocasiões específicas, ensinando modos de andar, de sentar-se na cadeira,
no tatame, de descer as escadas, etc. A sua afinidade com o Ocidente pode também
ser notada na descrição que o artista faz da arquitetura de interiores europeus, cujo
detalhamento só pode ser explicado pelo fato de ele ter convivido, desde a sua
infância, com um jesuíta europeu, pois seu pai era cristão.
A figura de shôjo (menina) evidenciada por Nakahara corresponde a uma fase
intermediária em que a mulher não é nem criança, nem adulta:
Modo de se sentar: a forma correta de se sentar é juntar a parte superior
dos joelhos e deixar ambas as pernas encostadas. Pode ser frontal, mas é
uma pose bonita e delicada inclinar um pouco as pernas, mantendo-as
5
coladas uma à outra. (UCHIDA, 2013, p. 82)
Para as shôjo japonesas, as cores kawaii são as que mais combinam.
6
(UCHIDA, 2013, p. 83)
Essa valorização da fase shôjo é explicada pelo pesquisador e crítico social
Ôtsuka Eiji (1997), no seu livro Shôjo minzokugaku (Etnologia da shôjo). O autor
afirma que shôjo é um produto inventado pela sociedade moderna, porque, antes
disso, havia apenas as meninas sexualmente imaturas que passavam, a partir do
momento da menstruação, a ser mulheres maduras prontas para assumirem o papel
de reprodutoras e de força de trabalho. Essa obra esclarece, ainda, que essa fase
intermediária, em que as meninas deveriam ser conservadas e “sem uso”, como um
objeto de troca futura, foi criada pela sociedade de consumo. Para tanto, a educação
da era Meiji trazia, como ideal da sociedade moderna, a formação de uma “boa
esposa e mãe inteligente” (ryôsai kemboƌ¶Ƶĵ).
293
Dessa perspectiva, shôjo, cujo comportamento era criado pelas normas
publicadas na revista feminina, configurou-se como uma jovem que, apesar de ter
corpo de adulta, e, portanto, ser capaz de procriar, era colocada fora da linha de
produção, em compasso de espera.
No entanto, esses sonhos interromperam-se com a entrada do Japão na
Segunda Guerra Mundial, quando as meninas tiveram de repetir “não desejaremos
nada, até a vitória” ǣHoshigarimasen, katsumade wa İ
0(6(").
Introduz-se, então, outro tempo de espera para as shôjo, desta vez por razões
diferentes.
Na época pós-guerra, Matsumoto Katsuji e Mizumoto Ado foram os
formadores das figuras femininas representativas da estética em estudo.
Matsumoto ficou conhecido, sobretudo, pela criação da personagem de
mangá intitulado Kurumi-tchan (Fig.1), que apesar de ter estreado em 1938, teve a
sua continuidade pós-guerra, de 1949 até 1954. Trata-se de uma menina com idade
inferior às outras kawaii, mais infantil, cuja alegria, simpatia, energia e amorosidade
conquistavam as fãs. Apresenta uma cabeça enorme em relação ao corpo e um
rosto mais largo, proporções do corpo de uma criança, uma boca grande, olhos
redondos e um laço grande em volta dos cabelos.
Mizumori Ado é uma artista múltipla – cantora, atriz, ilustradora – e destacase por introduzir o kawaii erótico, o que era tabu até então. Em suas obras, as shôjo
vêem-se representadas na proporção de menina, com uma cabeça que ocupa um
terço do comprimento do corpo, mas com sapatos de salto alto e nádegas
arrebitadas. Podem ser retratadas dando um beijo, sempre de modo gracioso.
(Fig.1) O desenho torna-se mais caricatural, os olhos mais simplificados, as bocas
ora rasgando o rosto, ora em biquinhos. Em uma de suas obras, temos a aparição
conjunta da menina com um menino.
De acordo com Miyadai (2007), a subcultura japonesa pode ser subdividida
em quatro períodos: o primeiro começou no final da era Meiji, chegando ao início da
era Taishô, até 1950, e corresponde, no nosso caso, à fase de Takehisa Yumeji e
Nakahara Jun’ichi. Nessa época, as meninas deveriam ser “inocentes, corretas e
alegres“ (ŇIJđ1), traços que correspondem ao momento em que se
294
buscava um padrão perfeito, idealizado, e, portanto, inexistente. Segundo o mesmo
autor, estabeleceu-se, assim, o modelo da “experiência substitutiva”, no qual o leitor,
ao apreciar as obras, se colocava no lugar do personagem.
O segundo período, que compreendeu de 1950 até 1970, era o tempo em que
não se procurava mais o restabelecimento da ordem, mas um coletivo de jovens que
se revoltavam contra os adultos. Originou-se, assim, um “modelo relacionável”, por
meio do qual os jovens podiam sentir-se unidos e as relações construídas eram
extremamente próximas à vida real. As personagens, portanto, teriam de ser
facilmente reconhecíveis como pessoas reais existentes ao seu redor. Se, na
primeira fase, a relação entre a mãe e a filha era enfatizada, nesta segunda, é o
coletivo de jovens que convivem nas escolas que se destaca.
A grande diferença entre a expressão do kawaii nesses dois períodos é o fato
de o corpo de shôjo tornar-se sexualizado como denotam os personagens kawaii
eróticos de Mizumori.
Kawaii contemporâneo e suas representações
Seguindo a divisão da subcultura japonesa realizada por Miyadai, o terceiro
período (de 1973 até os dias atuais) corresponde à dissolução de um código comum
marcado pela dualidade adulto/jovem e surge a busca exclusiva do “eu”, da “minha
felicidade” ou do “meu amor”. Adota-se o “modelo identificável”: as leitoras
identificam-se com as personagens de mangás e animês, que são similares a elas,
incompreendidas pela sociedade. Na quarta fase (de 1983 até os dias atuais), que
convive com a terceira, tem-se uma complexidade do “modelo relacional”, no qual
surge o fenômeno otaku9, em que a sexualidade é introduzida e o mundo
apocalíptico é frequentemente representado.
Talvez possamos entender essa busca do “eu” da terceira fase concebida por
Miyadai, na formação de tribos urbanas como Lolitas, cosplays, gyarus: essas
identificações têm ocorrido muito mais em grupo de afinidades, muitas vezes
extremas. Nesses grupos, as meninas encontrariam uma compreensão mútua nas
pessoas a eles pertencentes. Uma vez que se trata de um coletivo que parte da
busca individual, é distinto daquele da segunda fase, que almejava o ideal de um
grupo.
295
É justamente neste terceiro período, no início da década de 1970, que há a
emergência do termo kawaii contemporâneo que, vinculado à sociedade de
consumo, cria fancy goods (produtos da fantasia) inspirados em mangás e animês.
Tais artefatos serviriam para construir um ambiente de fantasia, geralmente nos
quartos das meninas, para que elas, com corpos de mulher, mas sem possuir tal
função social, possam viver enclausuradas até chegar o momento de se tornarem
adultas, conforme Ôtsuka, ou na busca do “eu”, do “meu amor” e da “minha
felicidade” segundo Miyadai.
Houve até mesmo o surgimento de caracteres redondos com ar infantil
escritos na horizontal, criados pelas jovens que escreviam poemas para si mesmas,
os quais eram trocados entre elas.
As revistas femininas representativas dessa estética na década de 1970 eram
an-an e non-non. Em maio de 1975, um artigo da revista an-an introduzia o novo
conceito de kawaii:
Brinque! Kawaii! Procure um tema jovem! A gente quer sentir, mas as
roupas parecem ser de mulheres velhas! É a hora de expressar quem você
realmente é. Seja o que for, coordenar um tema muito jovem é ser kawaii.
Tente usar coisas como uma combinação francesa e, para acessório, uma
pulseira pequena e graciosa. Mas veja! Vc vai parecer mais kawaii se você
não usar materiais exclusivos de alta qualidade. Um plástico com aparência
graciosa e madeira compensada parecerá mais jovem. (KINSELLA, 1995, p.
229)
Da mesma forma que a revista Shôjo no tomo ditava as normas para ser
kawaii nas eras Meiji e Taishô, as revistas femininas continuaram, na década de
1970, a informar o que deveria ser feito para se ter uma aparência kawaii. No
entanto, o enfoque não é mais no modo pelo qual as meninas deveriam se
comportar, mas, sobretudo, no consumo das roupas e dos acessórios como um meio
para alcançar a felicidade.
A relação direta entre a estética e o consumo é detectada pela socióloga
pesquisadora da subcultura japonesa, Sharon Kinsella: “kawaii pareceu ser
acessível exclusivamente pelo consumo”, fato este que tem suas origens em dois
fatores: o aumento de renda das jovens na década de 1980 e a inventividade da
indústria japonesa em fornecer produtos de valores razoáveis para fazer parte da
cultura kawaii (KINSELLA, 1995, p. 245). Acrescenta a antropóloga americana
especializada em sociedade contemporânea japonesa, Anne Allison (2004, p. 41).:
296
“Kawaii não se tornou apenas uma mercadoria, mas também equivalente ao próprio
consumo”.
Kinsella ainda esclarece a função do kawaii na sociedade de consumo: “o que
o processo capitalista despersonaliza, um bom design kawaii repersonaliza”
(KINSELLA, 1995, p. 228). A difusão do kawaii pode ser mais bem visualizada em
diversas áreas da sociedade japonesa, como em companhias e bancos de renome
como Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo, Sanwa, etc., e até em lojas de pachinko (jogos
eletrônicos) que são, geralmente, administradas pela máfia japonesa yakuza.
Dentsu, uma das maiores companhias publicitárias japonesas, explica o
motivo pelo qual os símbolos kawaii são apropriados para expressar a identidade
pessoal, corporativa, grupal ou nacional: é porque “une a sociedade pela raiz”.
(DENTSU, apud ALLISON, 2004, p. 40). Verifica-se, assim, a importância dessa
cultura no seio da sociedade japonesa.
A infantilização dos adultos é outro tema que pode justificar essa preferência
japonesa. Para Kinsella, a fase adulta para os japoneses não é vista como
propiciadora de liberdade e independência, mas como repleta de responsabilidades
para com a sociedade e a família, como sinônimo de obrigação, restrição e falta de
tempo livre. Conforme a autora, as manifestações japonesas e ocidentais se diferem:
A moda kawaii foi uma espécie de rebelião ou rejeição da cooperação com
o valor social estabelecido e a realidade. Foi mais uma modesta, uma
pequena rebelião do que uma manifestação consciente, agressiva e
sexualmente provocativa, típica da cultura jovem ocidental. (KINSELLA,
1995, p. 243)
Esse
desejo
de
permanecer
na
adolescência
pode
ser
também
correlacionado com o que o historiador Igarashi Yoshikuni (2011, p. 81) chama de
“narrativa fundadora do pós-guerra japonês”, associada à derrota japonesa na
Segunda Guerra Mundial, episódio que foi o deflagrador da “conversão do Japão de
um Estado militarista para um Estado pacífico”. Essa narrativa faz do Japão um
personagem que se coloca em posição de submissão e consequente infantilização
perante os Estados Unidos. A correlação entre a história japonesa e o modo de ser
kawaii da fase contemporânea teria assim, uma ligação direta, refletindo naquilo que
alguns consideram como a base da cultura japonesa atual.
297
Tal estética representativa da infantilização é objeto da obra de alguns artistas
como Murakami Takashi (1962-) Takano Aya (1976-) e Nara Yoshitomo (1959-). Em
seus trabalhos pode-se perceber a complexidade sinalizada por Miyadai no quarto
período kawaii, em que esse estilo se manifesta ambíguo e híbrido, como no kawaii
sexual que, diferentemente daquele erótico, fundamentalmente gracioso, é a mistura
de menina e de adulta, na sua qualidade de ser sexual.
Visível em obras como Hiropon de Murakami, a menina parece personagem
de animê, com um corpo alongado, pernas compridas e um busto avantajado no
qual o biquíni mal consegue esconder os seios. Hiropon, com olhos enormes de
personagem de mangá e cabelos volumosos, ora azuis, ora cor de rosa, derrama
leite pelos seios, que se transforma em uma corda para pular: é a representação do
kawaii sexual.
É precisamente a cultura otaku7 que motiva Murakami na produção de suas
obras:
(...) a cultura otaku é o fato mais importante no Japão pós-guerra,
entendendo por otaku algo similar à pop art, mas algo particularmente
japonês e específico, possível de ser criado numa situação econômica
pobre, combinado à sexualidade. (...) uma sexualidade que os otakus
possuem internamente e tentam expressar em mangá ou animê (Entrevista
de Murakami Takashi, no Japanorama). 8
Mestre e doutor em nihonga5, Murakami é um artista que traduz elementos da
arte tradicional japonesa, quer seja da escola Rinpa, do ukiyo-e ou da Kanô, de
modo contemporâneo, misturando-os com elementos da arte pop japonesa,
sobretudo do animê e do figure. Ele afirma que o mangá foi importante por constituir
um modo de “entretenimento razoável numa situação economicamente difícil”12, e,
portanto, acessível a todos. Cunhou o termo Superflat, que faz referência à bidimensionalidade da arte japonesa, bem como à planificação rasa da sociedade de
consumo nipônica.
Takano Aya é discípula de Murakami, pertencente à companhia Kaikai Kiki, a
qual dirige. Takano é uma artista tímida, sorridente, graciosa e cria meninas com
olhos enormes que, muitas vezes, se assemelham a buracos no rosto que parecem
não olhar a lugar nenhum. Algumas delas mostram o corpo apenas com calcinha ou
nu e outras, em relação sexual. Seus corpos são retos e sem seios, de pré298
adolescentes. Elas voam, convivem com animais, localizam-se na cidade ou num
mundo fantástico e num tempo futuro.
A estética kawaii presente nas obras de Takano é, portanto, fundamentada
numa ambivalência em que coexistem a graciosidade do corpo de menina e atitudes
adultas, estranhas e obscenas, como fazer malabarismos nuas no céu ou
passearem nuas com os cachorros pela cidade. O romantismo que a sua obra
emana confronta-se com a apresentação crua dos corpos assexuados das garotas.
A mesma ambivalência pode ser encontrada nas obras de Nara Yoshitomo,
que reside, desde 1988, na Alemanha. Sua expressão do kawaii retrata menininhas
que possuem um corpo cujas proporções infantis divergem da forte e adulta
expressão do seu rosto. Os seus olhos são grandes, em algumas pinturas sobem
diagonalmente, como se elas estivessem bravas ou revoltadas e, em outras,
apresentam certo ar de mistério ou pavor. O artista declara que a sua obra vem da
memória da infância e é espelho da sua pessoa: a revolta, a solidão são
representações dele mesmo e que, se existe uma mensagem, ela é direcionada a
ele próprio.9
O kawaii é representado nesses artistas contemporâneos japoneses de modo
ambivalente, misturado a elementos conflitantes como sexo, pavor, ira e revolta, que
transpõem a graciosidade da era moderna para chegar a uma estética híbrida. No
caso de Nara, é a infantilidade que se associa à ira e, em Takano e Murakami, a
graça e a sexualidade, com a diferença de que a primeira adota o corpo de uma
menina pré-adolescente e o segundo, o de uma mulher adulta.
A circulação do kawaii contemporâneo
Se o Japão foi conhecido mundialmente, desde a década de 1970 até 1990,
pelo seu processo econômico na produção de eletrônicos de alta qualidade, como
Sony e Toyota, com o subsequente estouro da bolha econômica e da recessão, o
crescimento da indústria de jogos eletrônicos foi uma das poucas histórias de
sucesso após 1990 e a estética Kawaii faz parte dessa manufatura que hoje atinge
vários países do mundo.
299
Trata-se do fenômeno que um jornalista americano denominou GNC (Gross
National Cool), léxico do “cool”, “Japanese cool”, que se tornou “(...) rapidamente
referência de como os produtos de diversão japoneses são vendidos com sucesso,
fora do país” (ALLISON, 2007, p. 1), revelando-se também uma estratégia política do
governo japonês para disseminar a sua cultura no exterior.
Com essa mesma orientação política, Aoki Misato, Fujioka Shizuka e Kimura
Yu foram nomeadas Embaixadoras Kawaii entre fevereiro 2009 e março de 2010
pelo Ministério de Relações Exteriores do Japão e visitaram também o Brasil. Quatro
anos depois, a brasileira Akemi Matsuda seria nomeada Embaixadora Kawaii do
Brasil.
Da mesma forma que se estabelece um diálogo entre as Lolitas japonesas e
as brasileiras, alguns artistas brasileiros conversam com os artistas contemporâneos
japoneses no uso da estética kawaii nas suas obras.
Foram pesquisadas as obras de quatro artistas: os descendentes nipobrasileiros Érica Mizutani e Rogério Degaki, e os não descendentes Nina Pandolfo e
Toz. Não à toa, os três, exceto Degaki, têm a arte do grafite como elemento comum
nas suas obras, provando que o espaço dominante é a área da subcultura.
Erica trabalha com ilustração em aquarela e ponta seca, tela, parede e design
de produtos como bolsas e agendas. As meninas do universo de pintura da Erica
possuem, geralmente, uma veste ora preta cheia de pelos animalescos, ora de flores
e folhas, em tons aquarelados e suaves, que as envolvem da cabeça até o joelho e
escondem as linhas do seu corpo.
É comum elas calçarem botas pretas e meias listradas branco e preto. Os
rostos são brancos com olhos redondos e bochechas marcadas por uma bola
vermelha e a boca pequena, quase um traço. Os cenários em que as meninas se
situam são, muitas vezes, fantásticos, repletos de árvores, flores estilizadas,
cogumelos voadores, nuvens, lua povoada de minhocas, em contextos e atitudes
inusitados e graciosos, como uma menina que puxa a corrente da chuva que se
prende a uma nuvem (Rain Yourself) ou que segura uma vara que prende o regador
que rega a si mesma (Love Yourself) (Fig. 2) etc.
300
Existem sonho e romance revelados nas suas obras e as graciosas meninas
são capazes de fazer chover, de molhar a Terra ou a Lua, de voar e de balançaremse no cosmos. Em uma entrevista realizada em março de 2014, as palavras-chaves
que ela mesma adota para exprimir suas obras são: “aconchego, pink, cócegas,
proteção e choro”, que perfazem um diálogo interessante com as peculiaridades do
kawaii, como a procura da proteção e aconchego, chorar e cócegas que são
qualidades infantis, e a feminilidade representada pela cor pink.
Fig. 2 Obra Love Yourself de Erica Mizutani. Imagem fornecida pela artista.
Fig.3 Obra Fugir e fingir de Nina Pandolfo. Imagem fornecida pela artista.
Erica define a sua própria obra como um “cheirinho da infância” e ressalva
que a sua obra “é kawaii para quem quer carinho”, mas não pode ser resumida
apenas a isso, e que existem “muitas outras mensagens para quem a observa com
maior concentração”. Em seus trabalhos, portanto, o kawaii não se restringe ao
gracioso da era moderna, mas está no âmbito do complexo e contemporâneo, que
reserva outras semânticas.
A brasileira Nina Pandolfo trabalha com tinta acrílica sobre tela, tecido, parede,
instalação e bonecas. As meninas da Nina são graciosas, rostos geralmente largos
como os das crianças, olhos enormes, cílios pronunciados e revelam seus sonhos e
seus medos. As suas pinturas são extremamente coloridas. (Fig.3)
Nina declara que seu trabalho é “como um alegre ecossistema de fantasias
no qual a inocência ou a memória de felicidade inata que sentíamos como crianças
não fossem corrompidos.” Ela descreve as suas obras como “um trabalho onde o
301
lúdico e a realidade se intercalam, trazendo um pouco de nostalgia misturada com
sentimentos de amor, paz, alegria” e as palavras-chaves escolhidas por ela para
suas obras são: onírica, cores, olhar, sensual, ingênuo e feminilidade. (entrevista
dada em março de 2014).
Assim, ela procura a inocência inata das crianças, a memória infantil, a
nostalgia, num espaço entre o fantástico e o real, o que faz que as suas meninas
sejam kawaii. A qualidade concomitante do sensual e do ingênuo traz uma
ambiguidade que muito dialoga com as obras de Takano.
A artista começou pintando nas ruas, porque era o que gostava de fazer.
Sobre a sua escolha temática, conta que é “provavelmente porque as meninas estão
sempre correndo para crescer, para se tornarem mulheres. Apesar de pintar as
meninas, as suas emoções nos seus olhos, suas expressões refletem desejo de
crescer.” (Mid Day Mumbai, November 13, 2008). Se as meninas kawaii japonesas
espelham, como vimos, a vontade de parar de crescer, as de Nina, ao contrário,
retratam a aspiração de se tornarem adultas, o que demonstra as diferenças sociais
e culturais inerentes aos dois países.
Tomaz Viana, o Toz, brasileiro, artista plástico e grafiteiro, relata que seu
trabalho é autobiográfico e trata de situações e possibilidades inerentes ao seu
cotidiano. As palavras-chaves escolhidas para refletir sua obra são: amor, alegria,
renovação, sugestão e energia (entrevista concedida em março de 2014).
Uma das suas personagens, Nina, uma mocinha linda e flutuante que,
frequentemente, ganha uma cauda de sereia, tem geralmente um rosto largo, olhos
afastados, representados por linhas localizadas nas extremidades do rosto, traços
quase idênticos às sobrancelhas, a bochecha em círculos rosados abaixo dos olhos,
uma boca vermelha e pequena, em bico, e um nariz que é apenas uma linha
horizontal acima da boca. Os cabelos são compridos e divididos ao meio na
nuca.(Fig.4)
Ele afirma fazer “uma versão brasileira de mangá” e que “sua obra é kawaii
pelas formas e técnicas utilizadas”, contudo, diferem das japonesas por usar “mais
cores, talvez por ser brasileiro” (entrevista dada em março de 2014). O uso de
302
múltiplas cores bem como de tonalidades fortes parecem ser um dos diferenciais dos
brasileiros, principalmente em Toz, Nina e Rogério.
Erica é mestiça e conviveu com a cultura japonesa desde a sua infância,
assim os estilos orientais aparecem, para ela, de forma natural, ao passo que Toz,
apesar de ser baiano, cresceu vendo “seriados japoneses de super-robôs e ficou
encantado ao ver desenhos animados e produtos orientais”. Dessa maneira, é
possível ver a influência japonesa em ambos os artistas, embora, em cada um, ela
seja distinta.
Entretanto, para Nina, que curiosamente tem, dentre os artistas brasileiros
mencionados, um desenho mais parecido com os personagens de mangá japonês,
diz não ter nenhuma ligação direta com a cultura japonesa e esclarece que os olhos
grandes surgiram em sua arte como uma expressão da auto-representação, o que
corrobora o fato de que na multiplicidade das representações artísticas não é
possível estabelecer uma relação automática entre o kawaii, os olhos grandes e a
influência japonesa.
A similaridade entre os três artistas pode ser verificada no grafite, que conta
com a característica da efemeridade, muito presente na cultura japonesa, além de
fazer parte da subcultura e arte urbana. No entanto, é pelo mangá e pelo animê que
eles recebem influências, embora em níveis distintos: Nina, apesar de mais distante
da cultura japonesa, diz ter recebido influência de Hayao Miyazaki (Time Out
Mumbai, November 1-27 2008, vol. 5 issue 6: 52).
Rogério Degaki (1974-2013) foi um artista nipo-brasileiro que introduziu na
sua obra uma mistura de elementos de mangá, animê, obras de Jeff Koons e
Takashi Murakami. As suas obras escultóricas, feitas de resina plástica, fibras de
vidro e polietileno expandido e pintadas com tinta automotiva cromada, possuem a
estética kawaii não só pela temática – geralmente de animais, figuras, doces e
objetos – mas também pelo seu colorido alegre e brilhante (Fig.5).
303
Fig.4 Obra Mãe de Toz no muro da Gávea.
Fotografia fornecida pelo artista.
Fig.5 Obra Art Nouveau, 2013 de Rogério Degaki.
Extraído do site http://www.rogeriodegaki.com.
As suas pinturas, cujos personagens, que não são meninas como nos casos
anteriores analisados, vêm do universo lúdico e infantil da cultura pop e de estampas
de roupas de crianças, imitam o bordado ponto cruz. Ultimamente, Rogério vinha
desenvolvendo a série mockup, na qual reproduzia alimentos do cotidiano em uma
dimensão agigantada. As suas obras são ambivalentes: a pintura apresenta uma
aparente visualidade do bordado e o suposto tema infantil traz problemas
desconcertantes relacionados a corpo, sexualidade, melancolia e morte, trazendo à
tona uma ambivalência semelhante à vista nos trabalhos dos outros artistas.
Na obra Felix II, Rogério dialoga com as flores sorridentes de Murakami
Takashi, difundidas mundialmente pelas bolsas Louis Vuitton. Essas flores foram
transformadas em doces e expostas no chão, como as balas de Felix Gonzalez
Torres, mas são não consumíveis e agigantadas. É uma obra que carrega em si a
reflexão a respeito da imagem que muda de material, dimensão e cor.
Considerações finais
O capitalismo atual é marcado pela transição do enfoque dos produtos
materiais para a imaterialidade da informação, comunicação e afeto, segundo o
teórico literário e filósofo político estadunidense Michael Hardt (1999). O trabalho
imaterial tem duas formas principais: aquele intelectual e computacional, o qual
envolve ideias, códigos e símbolos, e outro que trata do trabalho afetivo que engaja
sensações como bem-estar, excitação e tranquilidade. Os produtos J-cool japoneses
simbolizam esse segundo tipo de capitalismo pós-moderno, pois proporciona tais
afetos, intimamente
relacionados
ao
contexto biopolítico, nesta
sociedade
304
estressante que caracteriza a contemporaneidade. Conforme o filósofo Uchino
Tadashi (2008, p. 136), depois de 1995, após o estouro da bolha econômica e de
duas catástrofes, o terremoto de Hanshin-Awaji e o ataque de gás sarin da seita
Aum Shinri-kyô nas linhas do metrô de Tóquio, as palavras para se entender o
Japão são: kireru (estourar-se), hikikomoru (recolher-se) e iyasu (curar-se).
As pessoas, no limite do seu stress, suicidam-se, matam-se sem motivo
aparente (“kireru”), recolhem-se dentro das suas casas (“hikikomoru”) ou tentam
curar-se adotando uma alternativa menos radical (“iyasu”) – uma viagem a Bali, uma
simples massagem ou aulas de dança. Muito utilizados nos contextos metropolitanos
japoneses, os três verbos intercalam-se para representar o seu estado de espírito.
Nesse contexto, a fuga para o universo nostálgico da infância, da
dependência, da vontade de não crescer é uma das modalidades de “iyasu” que
proporciona a tranquilidade, a proteção, o conforto, e faz emergir o trabalho imaterial
afetivo apontado por Hardt. É justamente pela aquisição desenfreada dos produtos
kawaii que as pessoas expressam o desejo de serem confortadas e tranquilizadas,
num processo de “curar-se” da realidade da sociedade atual.
Esses produtos contêm algo que o antropólogo japonês Nakazawa Shin’ichi
(1997) denomina “pensamento selvagem” (LjŚ!÷Ƅ). O autor afirma que uma das
características do Japão pós-moderno é o fato de este ter conservado o
“pensamento selvagem”, a capacidade inata de criar arte e mitos, que se manifesta
em seus jogos industriais, os quais capturam a imaginação das crianças e dos
adultos. Tal conexão do iyashi10 high-tech com essa inconsciência primitiva é
materializada na mercadoria que o Japão exporta agora para o resto do mundo.
Vimos assim, no decorrer do texto, a transformação do kawaii ao longo dos
séculos, de sua origem na antiguidade, verificável na literatura da era Heian,
passando pela modernização e consequente ocidentalização japonesa, pelas quais
se torna um kawaii mais híbrido, até configurar-se, na atualidade, como uma estética
que oferta o conforto perante as vicissitudes da pós-modernidade.
O kawaii, hoje, é transnacional, talvez pela necessidade contemporânea
global do trabalho afetivo, a qual pode variar de acordo com grau de afetividade que
cada povo expressa. No Brasil, por exemplo, a função do iyashi pode ser minimizada.
305
Verifica-se, nos artistas brasileiros entrevistados, uma multiplicidade de
posições, de influências, japonesas ou não, mas o que fica evidente é a força com
que todos representam o seu “eu” emocional. Segundo Érica, sua criação é “um
momento de intensidade emocional”; Nina ressalta: “estou 100% nas obras que faço,
não é um autorretrato, mas tudo que gosto, vejo, quero e sonho”, e Toz afirma:
“Acho que faço tudo com muito amor e isso aproxima as pessoas”. Miyadai
classificou kawaii em três variáveis – o ergonômico, o romântico e o gracioso – mas
verifica-se aqui, talvez, uma outra vertente: o afetivo centrado na emoção do artista.
Além das diferenças entre o kawaii japonês e o brasileiro, esses depoimentos
revelam, talvez com mais intensidade que no caso nipônico, como o kawaii está
fortemente vinculado ao aspecto afetivo emocional do artista, e isso tem conquistado
seus fãs brasileiros, e vem enraizando a estética transnacional como resposta às
mudanças das sociedades, o que faz desse fenômeno um objeto riquíssimo para
estudo.
Notas:
1 Kogo Daijiten - Grande Dicionário de Palavras Antigas.
2 Hashimoto Cordaro, 2013:7.
3 Foi atriz, cantora, ilustradora e artista, com uma forte aparição entre os anos de 1945 e 1965, mas a
data de seu nascimento não é informada.
4 Nihonga é pintura tradicional japonesa, assim denominada a partir da era Meiji, para distinguir do
Yôga (pintura ocidental). É uma pintura feita com pigmentos à base d’água, de origem mineral ou vegetal, cujo
suporte é geralmente papel artesanal washi ou seda.
5. Imagens respectivamente extraídas de http://chasingbawa.com/2012/03/09/my-life-in-books/;
http://gallery.minitokyo.net/download/568810;http://www.mattthorn.com/shoujo_manga/prewar_shoujo/index.php;
http://sumato.net/33007/%E6%B0%B4%E6%A3%AE%E4%BA%9C%E5%9C%9Fandroid%E7%94%A8/
acesso no dia 30/03/2014
6 Publicado na revista Shôjo no tomo de dezembro de 1938.
7 Publicado na revista Shôjo no tomo de maio de 1940.
8 Otaku é um termo genérico que se refere àqueles que se viciam em formas da subcultura fortemente
relacionados com animê, vídeo, games, computadores, ficção científica, filmes de efeitos especiais, figurinos de
animê. (Azuma, 2009, p. 3)
9
Entrevista
de
Murakami
Takashi,
no
Japanorama,
disponível
no
site
https://www.youtube.com/watch?v=5-qoRmeDd-8(acesso no dia 14.03.2014)
10 Entrevista com Nara Yoshitomo disponível no site https://www.youtube.com/watch?v=_t8gLVNhXAs
11 Iyasu é verbo no infinitivo e significa curar-se. Iyashi é o substantivo cuja semântica é a cura.
A grafia dos nomes japoneses estão na forma original, em ordem de sobrenome e nome.
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306
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Michiko Okano
Professora de História da Arte da Ásia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
com graduação na Faculdade de Arquitetura da USP, mestrado e doutorado em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Autora do livro Ma: entre espaço da arte e comunicação no Japão (Ed. Annablume),
pesquisa a arte japonesa e suas circulações e transferências em diferentes localidades.
307
CIRCULAÇÃO DA ARTE COLONIAL NO BRASIL E NAS FILIPINAS:
UMA ABORDAGEM PARA UMA ANÁLISE COMPARATIVA
Jens Baumgarten - UNIFESP
Resumo: Nesta palestra gostaria de analisar as relações entre o Brasil colonial e as
Filipinas coloniais em diferentes patamares de compreensão conectando os sistemas
Pacífico e Atlântico que, por sua vez, devem ser inseridos nas suas tradições ibéricas com
as suas condições culturais e estruturais. Isso permite analisar os processos de encontros
complexos em uma abordagem transcultural. Estas questões são relacionadas também ao
discurso sobre a experiência sensorial e a sua percepção emocional. Apresentarei casos de
diferentes lugares do mundo ibérico, que demonstram a relação entre a percepção corporal,
sobretudo os sentidos olfatório e “kinestesia”, no Brasil e nas Filipinas. A conexão é
constituída através da experiência corporal e o seu impacto nas emoções do indivíduo. O
Colonialismo era profundamente “material”, os diferentes centros foram conectados
mutuamente via um intercâmbio contínuo que engloba todas as formas diferentes de objetos.
Isso coincide com a maior consideração de “embodiments” (corporalizações), enquanto
buscando identificar uma nova relação entre corpo, aparato de percepção e prática cultural.
Outras questões devem ser relacionadas à circulação de esculturas e a sua função no Brasil
e nas Filipinas. A compreensão das relações de encontros “barrocos” e “neobarrocos” pode
ser utilizado de uma forma válida para uma história da arte que permite outros regimes de
percepção de sociedades não ocidentais a serem considerados.
Palavras-chave: Anacronismo, arte colonial, marfim, Brasil, Filipinas.
Abstract: In this paper I would like to analyse the relations of colonial Brazil and the
Philippines on different levels of understanding connected by the Pacific and Atlantic
systems that should be understood in their Iberian tradition with similar cultural structural
conditions. I will shed light on the processes of complex encounters in a transcultural
approach. These questions are related also to the discourse about the sensual experience
and the emotional perception. Firstly, I shall discuss cases from different places of the
Iberian world, which present the relationship between bodily perception, especially for the
olfactory and the kinesthesia senses, in Brazil and the Philippines. The connection is
constituted by the bodily experience and its impact on the emotions of the individual.
Colonialism was profoundly “material”, the different centres connected to one another via a
continuous exchange that encompassed all forms of objects. This goes hand in hand with
giving greater consideration to “embodiments” when seeking to identify a new relationship
between body, perceptual apparatus and cultural practice.
Keywords: Anachronism, colonial art, ivory, Brazil, Philippines.
Nesta palestra gostaria de analisar as relações entre o Brasil colonial e as
Filipinas coloniais em diferentes patamares de compreensão conectando os
sistemas Pacífico e Atlântico que, por sua vez, devem ser inseridos nas suas
tradições ibéricas com as suas condições culturais e estruturais. Isso permite
analisar os processos de encontros complexos em uma abordagem transcultural.
308
Estas questões são relacionadas também ao discurso sobre a experiência sensorial
e a sua percepção emocional. Apresentarei casos de diferentes lugares do mundo
ibérico, que demonstram a relação entre a percepção corporal, sobretudo os
sentidos olfatório e “kinestesia”, no Brasil e nas Filipinas. A conexão é constituída
através da experiência corporal e o seu impacto nas emoções do indivíduo. O
Colonialismo era profundamente “material”, os diferentes centros foram conectados
mutuamente via um intercâmbio contínuo que engloba todas as formas diferentes de
objetos.
Isso
coincide
com
a
maior
consideração
de
“embodiments”
(corporalizações), enquanto buscando identificar uma nova relação entre corpo,
aparato de percepção e prática cultural. Outras questões devem ser relacionadas à
circulação de esculturas e a sua função no Brasil e nas Filipinas. A compreensão
das relações de encontros “barrocos” e “neobarrocos” pode ser utilizado de uma
forma válida para uma história da arte que permite outros regimes de percepção de
sociedades não ocidentais a serem considerados.
Com relação à coleção de entalhes de marfim asiático pode ser comprovado
o fato de que as várias esculturas de marfim, importadas, sobretudo da Índia, foram
em sua maioria produzidas por artistas não cristãos. Elas não representam todavia
deuses hindus ou budistas, mas seguem a iconografia cristã com suas imagens de
Cristo, da Virgem Maria e dos santos (BAILEY, 2002, p. 60).
O acervo completo não foi até hoje analisado, nem quantitativa, nem
qualitativamente. Isto vale tanto para as coleções em posse dos portugueses quanto
para as respectivas variantes nos territórios espanhóis. Existem publicações
individuais em catálogos por vezes suntuosos, as quais analisam os artefatos no
esquema tradicional dos termos ‘exotismo’ e ‘hibridismo’, preocupadas sobretudo
com a procedência de cada objeto (DEAN e LEIBSOHN, 2003, pp. 5-35).1 Como já
fora afirmado anteriormente, a iconografia destas pequenas esculturas luso-indianas
engloba as formas conhecidas de representação mariana e cristológica, assim como
diversos santos pós-tridentinos. Nesta última categoria agrupam-se especialmente
representações de São João Batista, o ‘santo de estado’ português Antônio de
Pádua e os santos das ordens missionárias Francisco, Inácio e Francisco Xavier (v.
TAVARES E TÁVORA, 1983; MAIA, 1987).2
309
Para a argumentação a seguir é significativo, sobretudo o acento na
iconografia do Jesus Menino. Dentro da representação dos ciclos da vida de Cristo
chama a atenção particularmente a quantidade de imagens relativas a seu
nascimento e infância.
Diferentemente da iconografia europeia, a qual mostra o Menino Jesus como
criança a dormir ou ainda nos braços da Virgem Maria, tais imagens isolam a figura
de seu contexto familiar, apresentando-o nu ou em vestimentas de cerimônia,
ostentando instrumentos de tortura, o globo terrestre e em gesto de abençoar, ou
ainda de pé sobre o globo terrestre. Estas representações manifestam paixão e
domínio do mundo. Uma segunda tradição mostra Jesus como o Bom Pastor e
também aqui, por oposição à tradição europeia, o Bom Pastor não é apresentado
como Jesus jovem, mas como criança, sentado em um trono ou em tamanho maior
que o natural sobre um monte populado por ovelhas. De olhos fechados, a cabeça,
levemente inclinada para o lado, é sustentada por sua mão direita, o que ocorre
aparentemente sem esforço do corpo. As pernas estão cruzadas abaixo dos joelhos.
Evidente, e destacada pela literatura, é a semelhança da postura da figura de Cristo
com Buda. Esta posição corresponde aquela da ‘yoga’ ou ‘lótus’. Neste sentido o
status de criança – a divindade ainda não representada em sua plenitude – é
equiparado com Sakyamuni, à etapa correspondente na vida de Buda (NAVARRO
de PINTADO, 1985, pp. 76-77).
A representação hindu-cristã reflete na postura da mão ao mesmo tempo a
posição correspondente do Buda deitado. Esta posição das mãos pressupõe um
desenvolvimento posterior, correspondente à paixão de Cristo, e o mostra no
momento que antecede sua chegada ao Nirvana. Tais formas de hibridismo são
típicas para pretensões missionárias, particularmente aquelas dos jesuítas nas
regiões asiáticas, os quais para fins de conversão de determinados grupos na Índia
e na China toleravam o emprego de correspondentes transferências estilísticas. Tal
empenho era evidente também na postura individual dos missionários que
adaptavam sua forma de comportamento aos ritos chineses e hindus, o que no
entanto levou dentro da Igreja católica no século XVII ao chamado debate sobre os
ritos (cp. HUONDER, 1921).3 A figura do bom pastor em especial remete à vida
pacífica dos animais e a uma era de paz, estabelecida pelo Menino Jesus,
310
assinalando a renovação da humanidade através da assimilação dos ‘Novos
Mundos’. No entanto, esta inter-relação de representação tem que ser colocada em
um contexto luso-escatológico. A ideia do retorno de Cristo juntamente com
concepções utópico-sociais e conciliatórias aparecem no campo da independência
de Portugal do trono espanhol concluída em meados do século XVII (MUHANA,
2005, p. 282).4
Até os dias de hoje os artefatos asiáticos foram compreendidos no contexto
do mercado global, cujas produções desenvolviam-se sobre o signo dos esforços
típicos de assimilação e hibridização. A frequência particular destas figuras por
exemplo no contexto brasileiro pode também ser um indicador, ainda que não
exclusivo, de um ‘exotismo’ da forma e de uma apreciação do valioso e dos
materiais de difícil aquisição no Brasil, tais como o marfim. As câmaras de tesouro
das respectivas igrejas e ordens parecem igualmente atestar este fato e relacioná-lo
aos tesouros medievais e aos gabinetes de curiosidade da Idade Moderna.5
Mas exatamente a citada referência do discurso político-teológico português
com relação à independência do domínio espanhol no século XVII indica a
popularidade de tais artefatos provenientes da Índia para a elite colonial-portuguesa.
Que relação iconográfica existe entre o gesto de poder, a alegoria da paz e o
discurso de dominação no Brasil?
Antônio Vieira, jesuíta, político e autor, indaga em sua pregação sobre a
epifania, realizada em 1662, por que razão o continente mais populoso, a América,
não é levado em consideração na interpretação de Bedas da história natalina, na
qual cada um dos três santos reis magos representa um continente. Juntamente
com Bernardo Vieira, ele compara os três reis magos a três entre os reis
portugueses: João, Manuel e João III (VIEIRA, 1662). Por fim o autor chega à
conclusão de que João IV de Portugal deve ser compreendido como o quarto rei
santo, ao qual é devida a primazia, uma vez que ele, na qualidade de último rei, faz
referência ao retorno de Cristo à terra. Esta interpretação messiânico-escatológica
foi representada também em seus escritos História do Futuro e ainda em Clavis
prophetarum, no qual “Portugal resistente” é representado como último império
perante o Juízo Final, dando a seu rei João IV uma função adequada dentro desta
história de salvação. Neste sentido o “Novo Mundo” é equiparado em sua
311
concretização com a Nova Jerusalém em uma conexão espacial e temporal ao
Apocalipse de São João. Vieira neste caso constata que o intercâmbio dos objetos
transformou tanto o antigo quanto o novo mundo.6 É interessante observar que ao
final de sua pregação Vieira fala de Cristo como o Bom Pastor (VIEIRA, 1662). Por
conseguinte, esta iconografia de caráter especificamente luso-indiano tem que ser
interpretada pelo menos não apenas como ‘exotismo’, uma vez que especialmente a
fórmula específica entre a imagem do dominador e o Bom Pastor inscreve-se no
discurso teológico-político das colônias de língua portuguesa na América.
Neste contexto o discurso de representação português colonial, conectado a
utopias escatológicas, não pode ser mais aprofundado, ainda que pareça evidente a
ocorrência de uma inserção no discurso e na iconografia do Jesus Menino de
aspectos problemáticos adicionais, tais como a questão da representação e do
status da imagem sacra. Neste ponto, resta apenas resumir: as esculturas de marfim
valem como objetos memoriais da grandeza pretérita de um império universal,
estando ao mesmo tempo inseridas na justificação escatológica de dominação dos
Bragança e na independência de Portugal da supremacia espanhola.7
No caso dos próximos exemplos apresentados, trata-se de esculturas de
proveniência provavelmente chinesa, as quais se encontram na decoração externa
do Mosteiro Franciscano de Santo Antônio na atual cidade de João Pessoa.
Os artefatos asiáticos serão analisados no que se refere à questão de seu
registro no contexto subsistente. Os artefatos com duas figuras integrantes de um
grupo representam uma máscara e um leão. Também, neste exemplo, a pesquisa
concentrou-se extensivamente na constatação afirmativa do hibridismo, fazendo
menção aos aspectos ‘mestiçantes’ da cultura colonial brasileira de preferência a
questionar os aspectos funcionais. Da mesma forma, resultam eventuais conclusões
não tanto sobre a descrição nesta forma fenomenológica, mas sobre os distintos
sistemas visuais e suas inter-relações. Paralelamente à sua ‘procedência
estrangeira’, as esculturas posicionadas na entrada e na fachada, onde estão
perfeitamente integradas, podem ser vistas como figuras apotropaicas, a exemplo
daquelas encontradas nas igrejas medievais dos séculos XIII e XIV em Portugal.8
312
É preciso apontar aqui a interpretação de São Francisco na pintura do teto da
ordem laica, a qual pode ser compreendida como “velho Elias” e “velho Inácio”, tanto
no contexto da concorrência missionária com as outras Ordens, quanto no contexto
missionário, no qual o santo franciscano representa o “verdadeiro profeta” perante a
população indígena, propagando em sua representação visualizada ao mesmo
tempo a própria adoração das imagens (v. BAUMGARTEN, 2008).
Para o contexto aqui discutido deve ser mencionada a iconografia arcaizante
por exemplo da Virgem Redentora e a igualmente arcaizante pintura de caixas com
a iconografia de Santo Antonio na abside da igreja principal. Seria importante
investigar também detalhadamente até que ponto a arquitetura está comprometida
com o ideal português do século XIV. Que importância pode ser dada, portanto, a
este regresso a uma tradição – à construção do passado? E, ademais, qual a
relação deste processo com os artefatos chineses?9
No que se refere à primeira questão, Alexander Nagel e Christopher S. Wood
apresentaram em seu artigo sobre a pintura renascentista veneziana um novo
modelo denominado “anacronismo” (NAGEL e WOOD, 2005, pp. 403-415). No
exemplo de Santo Agostinho de Carpaccio, os autores avaliam os diferentes
artefatos ‘citados’ pelo pintor como características de momentos históricos distintos,
os quais eles, por seu turno, interpretam como uma teoria performativa da origem
dos artefatos, segundo a qual cada objeto seria produto de uma performance
histórica singular. Toda repetição desta performance, por exemplo em forma de uma
cópia, distancia-se da cena criada originalmente (NAGEL e WOOD, 2005, p. 404).
No exemplo escolhido as diversas temporalidades foram encenadas e dramatizadas
em um sistema de citações anacrônico.
Na opinião de Nagel e Wood (2005), todos os artefatos teriam na era prémoderna uma historicidade dupla: é possível estar ciente do fato de terem sido
realizados no presente ou no passado recente e ao mesmo tempo estimá-los
erroneamente, como se tratasse-se aqui de objetos antigos. Tal procedimento não é
interpretado por eles como ingenuidade. Ao contrário, os autores vêem nesta atitude
antes um posicionamento ignorante por parte da pesquisa da história da arte com
relação ao pensamento pré-modernista e dos primórdios da era moderna. Imagens e
artefatos eram compreendidos como fenômeno ou símbolo de formatos. Formatos
313
estes que estavam, por sua vez, associados a origens místicas e reforçavam uma
continuidade estrutural e categorial sobre uma sequência de símbolos. Classes de
artefatos eram assim conectadas através de réplicas substituíveis, as quais
estendiam-se tanto no tempo como no espaço. Sob este aspecto da “substituição”
foram compreendidas as cópias modernas de ícones pintados como substitutos
equivalentes efetivos de originais perdidos. As circunstâncias exatas de seu
surgimento e o momento histórico não tiveram demasiada relevância com relação a
sua importância e função e eram vistos menos como constituintes do que como
acidentais. Ao contrário, os artefatos podem ser compreendidos como inscritos em
uma corrente de réplicas diacrônica (NAGEL e WOOD, 2005, p. 405).10
Neste contexto o tempo não é percebido como corrente linear, uma vez que
os artefatos configuram o tempo de forma diferente: neste sistema é possível
entender o processo de colapso da distância temporal como uma das funções da
arte (NAGEL e WOOD, 2005, p. 408). Em sua crítica à avaliação de Erwin Panofsky
da
experiência
temporal
‘correta’
no
Renascimento,
eles
fazem
menção
particularmente ao fato deste autor jamais ter explicado a relação entre distância
cognitiva do passado – o critério por excelência para explicar um período histórico
em seu todo – e o resultado estético da “arte renascentista”.11 Elizabeth Eisenstein
fala, neste caso, de um “contexto espacial-temporal amorfo” (EISENSTEIN, 1979, pp.
181-225)12.
Assim, Nagel e Wood não buscam diferenciar restritamente entre as
concepções medieval e renascentista, mas vão muito além, caracterizando esta
última como reaplicação do princípio medieval de substituição ante uma cultura
emergente de performance artística (NAGEL e WOOD, 2005, p. 412). Eles
compreendem o surgimento da obra de arte moderna como relação dialética entre
os princípios substituinte e autoral. Como inovação vale, por conseguinte, a
‘falsificação de obras de arte’ na Renascença, podendo ela ser vista ainda como
substituição desmascarada de uma única performance. Assim sendo, arcaísmos,
primitivismo estético, tipologias, citações, falsificações e outras disfunções temporais
podem ser avaliadas como conflito entre as teorias da procedência performativa e
substitutiva. De acordo com Nagel e Wood tais aspectos estão definitivamente
314
inseridos em um modelo dinâmico e histórico no âmbito do qual ocorre uma
interação permanente entre as duas teorias.
Após essas explanações teóricas, pretendo extrapolar estas reflexões para o
contexto colonial e também para a distância espacial. Sobretudo o significado da
cópia, da apropriação e do modelo de substituição desempenham um papel bastante
mais importante do que a autoria performativa, aspecto que vale tanto para as
colônias americanas quanto para as asiáticas.
Também nas Filipinas podemos encontrar exemplos dos leões (semelhante
ao local em Recife) em frente às igrejas Augustinianas em Manila, Cebu e outros.
Estas esculturas podem ser datadas do século XVII e XVIII. O contexto político
destas esculturas é diferente e se refere à população chinesa e a sua relação tensa
com a maioria tagalog (filipina) ou com a comunidade espanhola dominante. Neste
âmbito, gostaria de mencionar dois eventos ou aspectos significativos. A maioria dos
artistas na primeira fase da colonização pertenceram à comunidade chinesa. No
século XVII, as relações se tornaram mais violentas e a maior parte dos membros
chineses foram assassinados durante uma revolta dos Filipinos em Manila. O
segundo exemplo se refere a uma discussão sobre “superstição” dos chineses. Esta
discussão produziu um enorme volume de documentos nos arquivos. Devem ser
mencionadas as leis específicas para a conversão dos chineses, ao contrário
daquelas para os tagalog (filipinos). Mas para uma comparação é importante
considerar que – como no Brasil – comunidades e grupos diferentes podem ser
distinguidos no sistema colonial.
Nas Filipinas podemos encontrar a porta decorada que se inscreve num outro
contexto espacial ou temporal com seus caixotes e ornamentos
Se apresentasse apenas um paralelo formal ou iconográfico das duas
esculturas, seria insuficiente para compreender as condições de produção,
circulação e apropriação destes artefatos – que produziriam um “falso cognato”
(false friend), um termo que discutirei mais para frente, no final.
315
Consequências teóricas: Eduardo Viveiros de Castro
Num passo final gostaria de incluir algumas reflexões de Eduardo Viveiro de
Castro sobre a abordagem de uma antropologia de perspectiva e o seu método de
uma equivocação controlada dentro dos conceitos de forma e como sistemas visuais
diferentes foram estabelecidos e como seria possível compreender os processos de
conflito e negociação em contextos sagrados de alteridade. Não é uma mera
coincidência que, para Castro, o método básico da antropologia se constitui na
comparação bem como os métodos fundamentais da história da arte estabelecidos
por e desde Wölfflin. Porém, comparatibilidade não significa tradutibilidade – o que é
indispensável para analisar as sobreposições e a constituição complexa de
estabelecer sistemas visuais no contexto colonial no Brasil e nas Filipinas.
Castro estabeleceu uma teoria perspectivista de uma personalidade
transpacífica, que é unicultural e multinatural. Ele propõe a noção de “equívoco”.
Isso se refere ao processo que envolve a tradução dos conceitos práticos e
discursivos dos “nativos”. O trabalho básico da antropologia significa – e como quis
demonstrar com meus exemplos, isso vale também para uma história da arte que
trabalha com artefatos – que comparação está a serviço da tradução e não o oposto.
[…] perspectivismo projeta uma imagem de tradução como um processo
controlado de equivocação – ‘controlado’ no sentido que pode ser dito,
andar é uma forma controlada de cair. O perspectivismo indígena é uma
teoria de equivocação, isto é, da alteridade referencial entre conceitos
homonímicos. Equivocação aparece aqui como modo de comunicação de
excelência entre posições perspectivas diferentes – e por causa disso
significa a condição da possibilidade e o limite do trabalho antropológico.
(CASTRO, 2004, p. 3)
Eu gostaria de adicionar que estes diferentes aspectos constituem sistemas
visuais e podem ser aproximados por uma descrição densa no sentido de Greenblat.
Diferença é localizada na distinção corporal entre espécies, para o corpo e
seus afetos é o local e os instrumentos de uma diferenciação ontológica e disjunção
referencial.
O problema do perspectivismo indígena, por isso, não é algo para descobrir
o referente comum de duas representações diferentes. Perspectivismo
supõe uma epistemologia constante e ontologias variáveis, a mesma
representação de objetos distintos, um significado singular e vários
referentes. (CASTRO, 2004, p. 4)
316
Neste sentido, Castro continua afirmando que “as diferenças cruciais entre a
diversidade dos sujeitos [são localizados] no plano do corpo e não do espírito.” Os
exemplos apresentados aqui demonstram o momento frágil de um equilíbrio entre
aqueles perspectivismos no processo das negociações transculturais.
Gostaria de terminar com a idéia do falso cognato – ou melhor mal
entendimento criativo. Um equívoco não é apenas uma “falha de entender”, mas
uma falha de entender que compreensões não são necessariamente as mesmas e
não são relacionadas aos caminhos imaginários de “ver o mundo”, mas aos mundos
reais que são vistos.
Uma equivocação não é um erro de percepção. Ao contrário, é a fundação
da relação que implica, e isso não é sempre a relação com a exterioridade.
[,,,] Consequentemente, equivocações não pertencem ao mundo da
contradição dialética, porque a sua síntese é disjuntivo e infinito. Uma
equivocação é indissolúvel, ou mais recursivo: colocando como um objeto
determina uma outra equivocação ‘para cima’, e assim continuando ad
infinitum. (CASTRO, 2004, p. 9)
A última parte desta apresentação, que significa mais uma perspectiva para
pesquisa no futuro, é dedicada a entender as diferenças e similaridades da reapropriação da herança colonial e sua importância para o discurso nacional bem
como para a cultura pós-moderna de entretenimento. Também aqui é possível
observar efeitos de resposta nas duas direções entre Filipinas e Brasil que nunca
foram incluídas na análise.
Para o contexto Filipino é importante analisar a construção da peregrinação e
adoração do chamado “Santo Niño” (Menino Jesus), que pode ser encontrado na
Basílica de Cebu, perto do lugar onde o primeiro navegador europeu, Magalhães
(um português a serviço da coroa espanhola) chegou ao arquipélago e, mais tarde,
foi assassinado em 1521. A circulação de imagens, as “cópias autênticas” foram
importantes para o desenvolvimento da fé católica nas Filipinas e foram, na maior
parte, analisadas por antropólogos.
O desenvolvimento em ambos os territórios coloniais é relacionado em um
sistema de redes complexo de circulações de artefatos e idéias via os oceanos
Pacífico e Atlântico.
317
Como prospectiva para a esfera neobarroca gostaria de mostrar a
transferência e tradução de uma encenação mulitsensorial no contexto brasileiro e
filipino. A teatralização da peregrinação e da festa do Niño Jesus (menino Jesus ou
Santo Niño) seguem o modelo do carnaval da TV Globo e transformá-lo também em
um símbolo nacional.
Como no carnaval Brasileiro representado nos carros alegóricos, por exemplo,
no Rio de Janeiro e em São Paulo nos desfiles nos Sambódromos, a encenação em
Manila aparece ainda menos padronizada.
Final
Portanto é necessário compreender tanto a distância temporal quanto a
espacial sob o aspecto das estratégias de apropriação no princípio de substituição,
no qual a diferença temporal e local não pode ser percebida como conectada de
modo linear. Expressando de forma apaziguadora: a imitação da “idade média”
portuguesa, como os leões chineses, são ambas estranhas ou pelo menos a ser
compreendidas também em seu encadeamento como tipologias, isto é, o aspecto
alienígena temporal e espacial é encenado e não avaliado como exotismo autoral.13
Os artefatos asiáticos podem ser compreendidos em um contexto no qual as
estruturas missionárias e de dominação permanecem invisivelmente presentes, suas
condições ideológicas não sendo questionadas, aflorando compactas. No caso da
contextualização dos artefatos viajantes aqui apresentada é impossível tratar-se de
um momento subversivo na cultura colonial ou mesmo de um contradiscurso.
Porém a afirmação de que as imagens estejam inseridas em um discurso no
qual a própria perspectiva europeia de significado e produção de imagens é
demonstrada, contribuindo assim para a reflexão do colonialismo do ponto de vista
histórico da pintura, pode ser extrapolada. Se compreendermos os discursos visuais,
textuais e performativos como constituição de sistemas visuais distintos,
especialmente na incorporação dos objetos asiáticos no discurso sul-americano,
pode-se falar com relação aos exemplos apresentados de uma expansão e abertura
das possibilidades de percepção do outro. Certamente, isto não significa a negação
da primazia europeia missionária e escravagista. Exemplar para a relação da
318
relevância não necessariamente monocausal da cor da pele no contexto da
escravatura é um dos sermões do padre Antonio Vieira. É preciso dizer, no entanto,
que com tal afirmação ele não questiona nem o sistema hierárquico social baseado
no direito romano, nem busca uma depreciação da cor de pele negra em si, mas sim
a conexão direta e pseudocientífica da cor da pele com o discurso racista (cf.
SCHWARTZ, 1988; LARA, 1988).
Certamente, os entalhes em marfim poderiam ser antes interpretados no
contexto dos gabinetes de curiosidades ou de exotismo. Porém tal exotismo não
adere simplesmente à representação cortês de uma imagem idealizada da China.
Os artefatos asiáticos são postos em cena de forma tão alóctone quanto aqueles da
Idade Média europeia e precisam ser compreendidos como criadores de tradição no
sentido mais amplo de “nation building” de Benedict Anderson (1983).14 Desta forma
nivelam-se tradições europeias e não europeias. Formas iconográficas e
estilisticamente ‘mistas’ não são, portanto, simples hibridizações, pois isto
implicitamente
pressuporia
formas
básicas
essencializadas,
concebidas
dicotomicamente. Elas precisam ser compreendidas antes como tensão de sistemas
visuais distintos na concepção do Atlas de Imagens Mnemosine, de Aby Warburg (v.
DIDI-HUBERMANN, 2000; 2002).
A análise dos artefatos asiáticos selecionados nos contextos coloniais não se
deixa enquadrar em um modelo simplificado, nem de original e recepção e tampouco
de sincretismo e hibridez, manifestando problemas bastante específicos em cada
uma de suas localizações. Aqui desempenham um papel significativo ainda a
materialidade, o contexto local e, paralelamente às qualidades comunicativas,
também as qualidades visuais dos artefatos (v. FARAGO, 1995).15 Assim, elas
ilustram não apenas um puro exotismo, colocando em cena exatamente a diferença
representativa e abrindo o campo de discurso tanto no plano visual quanto material:
a encenação do alóctone como componente da sociedade e cultura colonial
experiência sua confirmação. Isto significa antes uma abertura do espaço a ser
negociado, o qual em princípio conhece sua fixação jurística (elite, libertos,
escravos), porém possibilita processos de apropriação, aproximação e negociação
principalmente sobre os sistemas visuais paralelos. Isto se evidencia, igualmente, na
absorção paralela da iconografia ‘medieval’.
319
Para terminar gostaria de retornar à questão inicial: Quais podem ser os
critérios para uma comparação da arte colonial que nem segue o “olhar do
colonizador” e nem cai no arbitrário. Qual é o discurso teórico de abordagens
diferentes para compreender arte colonial no contexto de uma – mais geral – história
global da arte. Penso que uma análise comparativa via conceitos de imagem,
política corporal, encenações de diferenças locais e temporais, re-apropriações
poderiam ajudar a descrever sistemas visuais diferentes em uma abordagem
(perspectivista) – na qual a imagem e o artefato servem melhor para uma
comparação que para uma tradução.
Notas
1
Básico com relação à questão do hibridismo na arte da América Latina a partir do exemplo das
colônias espanholas.
2
Para comparar v. ainda exemplos da colônia espanhola nas Filipinas (ESTELLA, 1970, pp. 151-179;
GALENDE, 2001, pp. 583-601).
3
Com relação às atividades dos jesuítas, v. Scholz-Hänsel (2002, pp. 237-252) e ainda Bailey (1999).
Um exemplo adicional é representado pela expansão da pintura ilusionística (cf. CORSI, 2004).
4
V. neste contexto ainda as pregações de Ardizone Spinola em Goa “Dezempenho de Christo Nosso
Senhor no Nascimento da Magestade d’El-Rey de Portugal Dom Juam IV”, datadas de 1650.
5
Mais recentemente acerca dos tesouros da Idade Média, Lucas Burkart (2005, pp. 1-26). Com relação
ao gabinete de curiosidades e ao instituído ato de colecionar, Barbara Marx e Karl-Siegbert Rehberg (2006);
Robert John Weston Evans (2006) e Aufsatz von Horst Bredekamp (2007, pp. 121-135).
6
Vieira, Sermão de Epifanias (1662): “Desapareceu a terra antiga, porque a terra dali por diante já não
era a que tinha sido, senão outra muito maior, muito mais estendida e dilatada em novas costas, em novos cabos,
em novas ilhas, em novas regiões, em novas gentes, em novos animais, em novas plantas. Da mesma maneira
o céu também começou a ser outro”.
7
Aqui deve ser lembrada a independência em 1640 e a perda de quase todas as possessões asiática,
com exceção de Goa e Macau até 1700.
8
Cite-se aqui exemplarmente Pedro Dias (1994).
9
Em comparação à recepção da Idade Média nos séculos XVI e XVII, Cp. Johannes Zahlten (1986, pp.
80-104) e Meinrad von Engelberg (2005).
10
Aqui eles se referem às teses de Richard Krautheimers sobre a iconografia da arquitetura medieval.
11
Isto relaciona-se sobretudo às publicações de Panofsky sobre a Renascença: Erwin Panofsky (1960,
p. 38; 1944, pp. 201-236).
12
Especialmente com relação às teses de Panofsky.
13
Especialmente a relatividade de perspectivas torna-se evidente, a qual é descrita também pelo
antropólogo brasileiro Eduardo de Castro em sua investigação sobre o confronto dos missionários com o povo
indígena, sobretudo o capítulo “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena” (CASTRO, 2002, pp.
345-400). Este fato incita a continuar a pensar acerca de um enfoque integrante de um modelo espacial
multidimensional. Isto teria que funcionar como uma metateoria, sob a qual os diversos teoremas adicionais
teriam que ser organizados de forma dinâmica e polivalente.
14
Phoebe Scott, “Mimesis to Mockery: Chinoiserie Ornament in the Social Space of Eighteenth-Century
France”, in: www.arts.usyd.edu.au/publications/philament/issue5_Critique_Scott.htm (Status: 10.4.2008). De
modo geral, Benedict Anderson (1983). O recurso aos mitos de fundação encontra-se por exemplo também em
Florença da Idade Moderna (BALDASSARI, 2007, pp. 29-56).
15
Uma das primeiras tentativas globais encontra-se na antologia sobre a reavaliação da Renascença
como fenômeno internacional, incluindo ainda o colonialismo da Idade Moderna (FARAGO, 1995).
320
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Jens Baumgarten
Professor adjunto de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, possui
graduação em História Geral pela Universidade de Hamburgo (1990), Mestrado (1996) e
Doutorado em História da Arte pela Universidade de Hamburgo (2002). Tem experiência na
área de História, com ênfase em História da Arte, atuando principalmente nos seguintes
temas: História da Arte, Arte, Barroco, História moderna e transferência cultural.
322
CINEMA, ESPAÇO E INTERMIDIALIDADE EM EM BUSCA DA VIDA DE
JIA ZHANG-KE
Cecília Mello - Unifesp
RESUMO: Esta comunicação é dedicada a uma análise do filme Em busca da vida (Jд
Z, 2006) do diretor chinês Jia Zhang-ke, sob o ponto de vista de sua relação intermidiática
com a pintura chinesa. Gostaria de sugerir que as escolhas estilísticas que guiaram a
interação com a paisagem urbana efêmera empreendida por Jia Zhang-ke nesse filme
revelam uma afinidade com qualidades estéticas oriundas das tradições da pintura chinesa
de paisagem em rolo. Essa hipótese leva a uma reflexão acerca da noção de espaço no
cinema sob a luz de revisões teóricas que sugerem um entendimento do espaço fílmico
através da ideia de movimento e de toque. Ao mesmo tempo, esta análise enseja uma
reflexão acerca da natureza estética e política do problema da intermidialidade, que traz
uma dimensão histórica à perspectiva contemporânea tão central ao cinema de Jia Zhangke.
Palavras-chave: Cinema chinês; intermidialidade; pintura em rolo; espaço cinematográfico;
Jia Zhang-ke.
ABSTRACT: This paper is dedicated to an analysis of Chinese director Jia Zhang-ke’s film
Still Life (, 2006) from the point of view of its intermedial relationship with Chinese
landscape and scroll painting. As I will suggest, Jia’s discovery of a real landscape and a
vanishing cityscape in this film shares many aesthetic qualities with the shanshuiand scroll
painting traditions. This leads to reflection on cinema’s spatial organization in light of current
revisions in theory, which suggest that filmic space and its spectatorial experience should be
considered above all from the point of view of touch and movement. It also allows for a
broader understanding of Jia Zhang-ke’s oeuvre, for while it springs from an original
aesthetic response to a new social conjuncture it equally brings, through intermediality, a
historical dimension to a contemporary perspective.
Keywords: chinese cinema; intermediality; scroll painting; cinematic space; Jia Zhang-ke.
Esta comunicação é dedicada a uma análise do filme Em busca da vida (JÐ
´Z, 2006) do diretor chinês Jia Zhang-ke, sob o ponto de vista de sua relação
intermidiática com a pintura chinesa. Gostaria de sugerir que as escolhas estilísticas
que guiaram a interação com a paisagem urbana efêmera empreendida por Jia
Zhang-ke nesse filme revelam uma afinidade com qualidades estéticas oriundas das
tradições da pintura chinesa de paisagem e em rolo. Essa hipótese, relacionada a
uma noção de espaço fílmico que emerge sob a luz das revisões na teoria do
cinema a partir dos anos 1980, enseja uma reflexão acerca da natureza estética e
política do problema da intermidialidade, tão central ao cinema de Jia Zhang-ke.
323
Primeiramente, introduzirei a obra do diretor e sua importância no panorama do
cinema contemporâneo, com destaque para seu filme Em busca da vida. Em
seguida tecerei alguns comentários acerca da relação intermidiática entre o cinema
e a pintura, vista aqui através do prisma da revisão teórica que rechaça a ideia do
espaço no cinema como herdeiro da perspectiva renascentista. Para concluir,
destacarei os principais pontos de contato entre Em busca da vida e a tradição da
pintura chinesa em rolo, tais como a perspectiva multifocal, o uso do trackingshot ou
travelling e a noção de “espaço vazio”.
O cinema itinerante de Jia Zhang-ke
Oriundo da cidade de Fenyang, na província de Shanxi, República Popular da
China, Jia Zhang-ke realizou 18 filmes entre 1994 e 2013, entre curtas e longasmetragens, em um primeiro momento atuando na clandestinidade dentro de seu país,
com financiamento externo, e a parir de 2004 com o aval do governo chinês. Jia é
considerado o maior expoente da “sexta geração” do cinema chinês, também
conhecida como a “geração urbana” por seu enfoque na vida e na paisagem das
cidades de seu país. Como tentarei evidenciar, sua obra procura responder à nova
conjuntura histórico-social da China através de uma estética original, que nasce do
problema da intermidialidade aliado a um impulso realista. Isso significa que, por um
lado, seu cinema se define pela crença de cunho baziniano na vocação da arte
cinematográfica pelo realismo, o que transforma sua câmera em uma fonte de poder.
Por outro lado, esse enlace com o real ocorre também através de recursos estéticos
encontrados em outras tradições artísticas chinesas, tais como a pintura e a
arquitetura. Assim, a “intermidialidade” – que aponta para o entrecruzamento do
cinema com as outras artes – e o “realismo” – normalmente associado à sua
especificidade – se misturam no cinema de Jia Zhang-ke. Essa mistura, que cria
suas próprias regras, afina-se a um regime estético das artes, nos termos de
Jacques Rancière (2001; 2009a; 2009b), e deriva sua força da criação de um
dissenso, que reúne os impulsos realista e autoral dessa intermidialidade crítica em
um impulso político, produto da interação entre a História e a Poesia.
Em busca da vida, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cinema de
324
Veneza em 2006, foi inteiramente filmado em locação na região das Três Gargantas,
situada em Chongqing, centro da China. A ação transcorre em uma paisagem
urbana em processo de franco desaparecimento, sob o pano de fundo de uma
paisagem natural carregada de significados simbólicos. FengJie, localizada às
margens do rio Yangtze, é uma cidade de mais de 2000 anos que está prestes a ser
submersa pela construção da represa das Três Gargantas. Será para lá que um
homem e uma mulher da província de Shanxi irão viajar em busca de seus cônjuges,
de quem estão separados há alguns anos. Ao chegarem, encontram uma cidade
que está sendo demolida, em parte para a reciclagem de material de construção e
em parte para tornar a represa navegável. Suas buscas ocorrem então em um
espaço repleto de prédios desabados, muros esburacados e pilhas de entulho.
A escolha da locação de Em busca da vida não se deu por acaso. Ao situar
essas duas histórias em FengJie, Jia Zhang-ke deixou evidente seu desejo de lançar
um olhar para uma paisagem urbana em desaparecimento de modo a observar e
refletir sobre a atmosfera de transformação intensa que domina a região das Três
Gargantas, assim como grande parte de seu país desde os anos 1980. Tais
mudanças dramáticas são consequência da chamada Era das Reformas de Deng
Xiaoping (GaigeKaifang, 1978-1992), que levou a China em direção à economia de
mercado. Sob a liderança de Deng, que sucedeu a década traumática da Revolução
Cultural (1966-1976), o país passou gradualmente a cultivar melhores relações com
o resto do mundo e a abrir sua economia para o investimento externo. Internamente,
a China reverteu a coletivização da agricultura, privatizou grande parte da indústria e
permitiu o aparecimento de negócios privados. Os efeitos das reformas econômicas
foram sentidos com intensidade nos espaços urbanos do país, que desde então vem
passando por grandes transformações espaciais tais como a demolição extensiva de
habitações tradicionais e antigas comunidades para a construção de novas avenidas,
pontes, viadutos, prédios,estações de metrô e grandes shopping centres.
A obra de Jia Zhang-ke, conforme afirma o próprio diretor em diversas
entrevistas nos últimos anos (ver por exemplo BERRY, 2009; FIANT, 2009; JIA,
2009), é movida por um desejo de filmar o desaparecimento, de registrar e preservar
– através da ontologia da imagem cinematográfica – uma paisagem urbana efêmera.
Jia parece muito consciente da dimensão espacial da memória, geralmente
325
ofuscada por sua dimensão temporal, e de como um espaço em desaparecimento
acarreta inevitavelmente uma perda de memória. Daí Jia deriva uma urgência em
filmar esses espaços e essas memórias, urgência esta que vem atrelada, de modo
aparentemente contraditório, a um estilo lento, que se empenha em observar
cuidadosamente aquilo que está prestes a se transformar.
Conforme mencionado anteriormente, a razão por trás do desaparecimento
da paisagem urbana histórica de FengJie é a construção da Usina Hidrelétrica das
Três Gargantas no Rio Yangtze. Uma das maiores obras da engenharia moderna, a
represa e usina das Três Gargantas foi primeiramente proposta pelo fundador da
República chinesa Sun Yat-Sen, e mais tarde, nos anos 1950, prospectada por Mao
Zedong. A construção finalmente começou em 1994 e foi completada em 2012,
inundando mais de 600 quilômetros quadrados de terra – incluindo monumentos
arqueológicos e históricos – e deslocando mais de 1 milhão de pessoas. Por trás da
grandeza do projeto estava uma das paisagens mais icônicas da China, formada
pelas três gargantas do rio Yangtze. A primeira das três, e também a mais estreita e
bonita, é chamada Qutang. Sua harmoniosa combinação de montanhas, canyons e
a água verde do rio Yangtze lhe renderam até mesmo um lugar na nota de 10 Yuan,
como pode ser observado em uma das cenas mais notáveis de Em busca da vida,
na qual o personagem Sanming observa a paisagem da nota diante da paisagem
real. Mas a importância e centralidade dessa paisagem para a memória cultural e
coletiva chinesa se deve também à sua presença recorrente em poemas e pinturas
clássicas das dinastias Tang, Song e Yuan. Hoje essa paisagem, além de tantos
outros sítios históricos que ficavam às margens do rio, foi literalmente apagada pela
construção da represa.
A importância da iconicidade das Três Gargantas na China também guarda
uma relação com seus principais elementos constituintes, ou seja, a Montanha e a
Água. Como é sabido, a expressão em língua chinesa “montanha-água” quer dizer,
por meio de uma sinédoque, “paisagem”. A pintura de paisagem é então conhecida
como “pintura de montanha e água”, ou em chinês shanshuihua (ÌĹŞ). Conforme
explica François Cheng, as montanhas e a água correspondem para o pensamento
chinês aos dois polos da Natureza, que por sua vez correspondem, de acordo com a
tradição confucionista, aos dois polos da sensibilidade humana, o coração
326
(montanha) e o espírito (a água). Daí é possível inferir que pintar uma paisagem é
também pintar um retrato do espírito humano. A montanha e a água são, portanto,
mais do que termos de comparação ou metáforas, já que encarnam as leis
fundamentais do universo macrocósmico e suas relações orgânicas com o
microcosmo do Homem (CHENG, 1991, pp. 92-93).
Jia Zhang-ke esteve pela primeira vez em FengJieem 2005 para filmar um
documentário sobre o pintor contemporâneo Liu Xiaodong intitulado Dong, que se
tornou uma espécie de filme-par para Em busca da vida. Ao chegar à cidade, muito
se impressionou com a potência icônica da paisagem natural e com a aparência
caótica da paisagem urbana: “Chegar a FengJie de barco é como fazer uma viagem
ao passado da China. A paisagem que inspirou tantos poemas e pinturas parece
realmente emergir da dinastia Tang. Mas assim que o barco chega ao porto você é
jogado de volta em um presente extremamente caótico” (JIA, 2008, p. 7). Não há
dúvidas de que a paisagem funcionou como uma fonte de inspiração para a
sofisticada superimposição de temporalidades operada por Jia em Em busca da vida.
FengJie e a represa hidrelétrica, a concretização de um sonho tanto republicano
quanto comunista, são afinal um reflexo e um sintoma da nova China que emergiu
das cinzas da Revolução Cultural. Ao mesmo tempo, a região das Três Gargantas
pertence à herança cultural da civilização chinesa, encapsulando assim não apenas
os sonhos e aspirações do século XX e XXI como também dois mil anos de história
da arte chinesa.
Cinema, pintura, espaço
A aproximação que venho tentando estabelecer entre cinema e pintura
através das possíveis afinidades entre as escolhas estéticas de Jia Zhang-ke e a
pintura de paisagem em rolo chinesa está em consonância com um entendimento do
espaço cinematográfico a partir de uma passagem de modelo teórico dentro do
campo do cinema e do audiovisual. Essa passagem significou, grosso modo, a
revisão de uma série de conceitos de inspiração estruturalista, pós-estruturalista e
psicanalítica que haviam guiado em grande medida a reflexão teórica sobre o
cinema a partir da década de 1960.
327
Como é sabido, a teoria do dispositivo cinematográfico (BAUDRY, 1986) e o
entendimento da espectatorialidade como análoga à regressão à fase do espelho
Lacaniana (METZ, 1982), propostos a partir do final dos anos 1960 pela crítica de
influência estruturalista, semiótica e psicanalítica, passaram por diversas revisões
desde o início dos anos 1990. Em The Cinematic Body (1993), Steven Shaviro
criticou radicalmente este modelo e trouxe à tona os elementos ativos e corpóreos
da experiência cinematográfica. Shaviro inspirou-se, entre outros, na obra de Gilles
Deleuze, que em Mille Plateaux: CapitalismeetSchizophrénie 2 (1980), com Félix
Guattari, e em seu estudo sobre o pintor Francis Bacon (1981), pôs em evidência a
função tátil ligada à visão. Desde então uma série de outros estudos no campo da
teoria do cinema vem privilegiando a qualidade tátil do olhar, dentre os quais se
destacam as noções de ‘embodied spectator’ (espectador corporificado) de Vivian
Sobchack (2004) e de ‘hapticvisuality’ (visualidade háptica) de Laura U. Marks
(2000).
Esta função tátil recebe o nome de háptica, palavra de origem grega que
designa a ciência do tato, empregada pela primeira vez no campo da estética pelo
historiador austríaco Alois Riegl, curador do setor de arte têxtil do Museu de Arte e
Indústria de Viena entre 1887 e 1897. Conforme observa Giuliana Bruno (2007, p.
247), Riegl se referiu à experiência háptica como um estágio inferior na evolução da
percepção moderna em direção ao ótico. Foi Walter Benjamin quem subverteu essa
evolução de háptico para ótico proposta por Riegl, sugerindo ao contrário que a
percepção moderna seria acima de tudo uma experiência háptica, tátil. E foi além ao
fazer a ligação expressa entre essa percepção moderna háptica e o cinema, em seu
famoso estudo de 1935 “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”:
O elemento de distração no filme é também essencialmente tátil, baseado
em mudanças de lugar e de foco que periodicamente assediam o
espectador. Comparemos a tela do cinema à tela da pintura. A pintura
convida o espectador à contemplação; diante dela, o espectador pode se
abandonar às suas associações. Ante à tela do cinema ele não pode fazê-lo.
Assim que seus olhos captam uma cena ela já se alterou (1999, p. 231).
No âmbito desta análise, interessa ressaltar de que modo a ênfase na
natureza háptica da experiência cinematográfica pôs em xeque abordagens acerca
do espaço no cinema tais como a de Pascal Bonitzer (1985), Jean-Louis Comolli
(1971-72) e Stephen Heath (1976), afinadas à tradição teórica de inspiração
328
semiótico-psicanalítica e que enxergavam a superfície plana do filme como uma tela
comparável à tridimensionalidade ilusória da pintura (BONITZER, 1985). Como
explica Philip Rosen, Comolli e Heath “advogaram a dominação da perspectiva
renascentista na tecnologia da imagem”, conectando essa persistência “ao apelo de
uma posição ‘centralizada’ do sujeito, cuja construção geométrica em perspectiva
eles entediam através de certos tipos de materialismo histórico e da psicanálise”
(ROSEN, 2001, p. 14). A ideia da perspectiva era então ligada, para Comolli e Heath,
a um “ideal visual epistemológico capaz de manifestar um padrão de conhecimento
visual confiável e a imaginação de um sujeito estável, incorporados ao cinema
mesmo que a composição em perspectiva esteja integrada a outros elementos do
espaço fílmico, tais como o movimento” (ROSEN, 2001, p. 14). Ainda para Heath, a
narrativa seria o elemento que asseguraria um posicionamento coerente ao
espectador habituado ao ponto de visto estático da perspectiva renascentista,
garantindo a coerência espacial a despeito da mobilidade inerente ao cinema.
O processo de revisão teórica que abarcou uma reapreciação da noção de
espaço cinematográfico incluiu, entre outras, a proposição de David Bordwell (1985)
por um entendimento cognitivo da perspectiva e a rejeição de Jonathan Crary (1990)
da existência em um filme de uma fonte de conhecimento única e objetiva. Mais
central ainda é a obra da professora italiana baseada nos Estados Unidos Giuliana
Bruno, talvez a mais original e inspiradora no campo teórico das relações entre
cinema e espaço. Em seu monumental Atlas of Emotion (2007), Bruno elabora a
qualidade sensorial da experiência cinematográfica identificada por Gilles Deleuze,
que assinalou nos anos 1980 uma passagem do modelo espectatorial de ótico para
háptico, contribuindo assim para um distanciamento da noção de representação na
teoria do cinema (1985). Em seu Atlas, Bruno sugere que o cinema é uma arte
espacial, parente da arquitetura, e transforma o(a) espectador(a) de voyeur em
voyageur. Assim, segue a tendência recente de não mais enxergar o cinema como
herdeiro direto da perspectiva Renascentista, e de considerar a apreciação do
espaço fílmico a partir da experiência tátil e do movimento.
Diante desse deslocamento de modelo teórico, pode-se afirmar que o cinema,
ao invés de transportar a(o) espectador(a) de volta à fase do espelho da primeira
infância, proporciona uma viagem emotiva através de espaços múltiplos (Bruno aqui
329
aproxima as palavras motion-movimento e e-motion-emoção). Evocando a
conhecida frase de Michel De Certeau, “toda narrativa é uma narrativa de viagem –
uma prática espacial” (2007), ela sugere ser o filme “a história de viagem por
excelência. Narrativas fílmicas geradas por um lugar, e com frequência rodadas em
locação, nos transportam para esse lugar” (1997, p. 46). Para Bruno, assistir a um
filme é uma “forma imaginária de flânerie” (2007, p. 17). Por fim, ela chama também
chama a atenção para o parentesco do cinema com a cidade ao escrever que por
ser “um ‘affair’ urbano, produzido pela era da metrópole, o filme desvenda o trânsito
metropolitano, e sua velocidade incessante” (1997, p. 46).
Shanshuihuae Em busca da vida: conexões intermidiáticas
Mas o que ocorre com a relação entre o cinema e a tradicional pintura em rolo
chinesa, que de certo modo empreendia uma representação móvel e multifocal do
espaço muito antes do aparecimento da imagem em movimento? Conforme
explicam Linda C. Ehrlich e David Desser (1994), as artes pictóricas asiáticas não se
apoiam de qualquer modo significativo na noção de perspectiva renascentista, e não
guardam qualquer relação com o chamado horror vacui (o medo do espaço vazio)
também característico da arte renascentista. Estaria assim a organização espacial
da pintura chinesa de um modo geral mais próxima da organização espacial
empreendida pelo cinema e outras manifestações audiovisuais? E de que modo esta
análise estética é relevante para um entendimento mais profundo da obra de Jia
Zhang-ke?
As conexões intermidiáticas entre o cinema e a tradição de pintura chinesa
em rolo já vêm sendo estudadas em relação à obra de alguns mestres do cinema
asiático tais como o diretor japonês Kenji Mizoguchi e o taiwanês HouHsia-hsien. O
termo “plano-rolo”, por exemplo, foi cunhado pelo teórico franco-americano
NoëlBurch (1979/2004) para descrever justamente os planos-sequência em
movimento lateral empregados por Mizoguchi em uma série de filmes, e que, de
acordo com o próprio diretor, procuravam emular a experiência móvel de observação
de uma pintura japonesa tradicional (e-makimono). Como explica Lúcia Nagib,
“tomando como base a ideia do descentramento e da auto-reflexividade inatos à arte
330
japonesa, Burch (muitas vezes em consonância com Tadao Sato) compara a
estrutura do plano-sequência de Mizoguchi com a do e-makimono (pintura em rolo
japonesa), que se desenvolve de forma a mostrar as personagens de cima para
baixo, ligeiramente fora de centro e numa ação contínua” (1990, p. 11). Burch via
nessa opção estética do diretor um distanciamento em relação à decupagem
clássica característica do cinema narrativo americano, já que o plano-sequência em
movimento lateral dispensava a decomposição espacial em planos e sua junção em
continuidade na montagem. Mizoguchi poderia ser visto, então, como um diretor
moderno antes mesmo do cinema moderno ter emergido como conceito e tendência
na Europa e nos Estados Unidos dos anos 1940, o que colocaria em questão o
próprio binarismo clássico X moderno tão perpetuado nos estudos do cinema. Aqui,
minha intenção é levar essas conexões em consideração para examinar a
especificidade do realismo estético de Jia Zhang-ke em Em busca da vida. Creio que
o foco nessa instância específica de intermidialidade permite trazer uma dimensão
histórica para um filme tão firmemente localizado na China contemporânea, a China
das grandes obras públicas e das transformações intensas. Ademais, enseja um tipo
de investigação que abre mão da perspectiva cartográfica em prol de uma
abordagem geológica, para sugerir que por trás das conexões transnacionais e
cinéfilas que informam o cinema de Jia Zhang-ke há um olhar aguçado e uma
recuperação consciente de traços estéticos da história da arte chinesa, revelando
assim de que modo Jia Zhang-ke integra forma e conteúdo e confere força política
ao seu cinema.
Que relações então poderiam haver entre a pintura de paisagem em rolo e a
prática espacial em Em busca da vida? O primeiro aspecto está relacionado à
questão da perspectiva, que por sua vez está relacionada à revisão do entendimento
do espaço cinematográfico explicada anteriormente. Conforme observa François
Cheng, a perspectiva na pintura chinesa tradicional é, antes de mais nada, uma
organização mental dos elementos representados, através da qual tudo se
transforma em uma questão de balanço e contraste:
Diferentemente da perspectiva linear que pressupõe um ponto de vista
privilegiado e um ponto de fuga, a perspectiva chinesa é de fato uma
perspectiva dupla. O pintor, em geral, deve estar posicionado em um ponto
de vista vantajoso de onde pode observar a paisagem como um todo; mas
ao mesmo tempo ele parece se mover através da pintura, abraçando o ritmo
331
de um espaço dinâmico ao mesmo tempo em que contempla a paisagem de
longe, de perto e através de diferentes ângulos. [...] Mais do que um objeto
a ser observado, a paisagem é para ser vivida. (1991, p. 101)
Se a pintura tradicional chinesa convida o olhar do pintor e do espectador a
adotar diferentes pontos de vista, seu tipo de organização especial parece bem mais
afinado à experiência cinematográfica do que o ponto de fuga e a ilusão
tridimensional da pintura renascentista ocidental. Em Em busca da vida, Jia parece
sempre buscar uma organização especial em múltipla perspectiva similar à
encontrada nas pinturas tradicionais chinesas ao empregar uma decupagem que
com frequência alterna o ponto de vista do voyeur, inspecionando um espaço a partir
de um ponto de vista vantajoso, com um ponto de vista à altura de uma pessoa, com
a câmera parecendo estar na altura de um ombro. Eu diria mesmo que todo o filme
emprega uma alternância de pontos de vista que se torna uma das chaves para sua
prática espacial sofisticada.
Figura 1 e 2: Alternância entre voyeur e voyageur em Em busca da vida de Jia Zhang-ke (2006)
Ao mesmo tempo, a noção de múltipla perspectiva também se impõe no filme
através do uso prolífico do trackingshot ou travelling, ou ainda “plano-rolo” nos
termos de Burch, frequentemente associado ao plano-sequência baziniano que se
tornou uma das marcas do cinema de Jia. Como explica o próprio diretor, “o rio, as
332
montanhas e a neblina são elementos fundamentais da pintura chinesa. Foi por essa
razão que optei pelo trackingshot, que evoca o desenrolar de uma pintura chinesa,
que se abre aos poucos” (JIA, 2008, p. 15).
Assim, o uso dos planos-rolo funciona como um terceiro elemento, ao lado
dos planos gerais de paisagem e dos planos à altura do ombro, para a descoberta
da paisagem natural e urbana da região das Três Gargantas. Combinados, os três
recursos estéticos servem a uma investigação da relação entre a figura humana e
seu ambiente, trazendo à tona a superimposição de temporalidades que define a
cidade de FengJie e em última análise toda a China contemporânea. Assim é que os
principais personagens do filme, Sanming e Shen, são vistos contemplando um
espaço, atravessando um espaço e ao mesmo tempo sendo eles próprios
“atravessados” pelo olhar da câmera.
Essa combinação de planos e movimentos de câmera também traz à tona a
presença aparentemente eterna de uma paisagem natural em contraposição à
velocidade da mudança promovida pela força humana, reforçando deste modo
essas duas forças opostas em uma espécie de lamento cinematográfico pela perda
da lentidão e da história. Isso porque, como aponta Fabienne Costa, Em busca da
vida demonstra de que modo a construção da Represa das Três Gargantas teria
impactado ou violentado não apenas a vida dos habitantes da região como também
a noção ancestral chinesa de paisagem ou shanshui (COSTA, 2007, p. 46). O
desaparecimento de cidades e sítios históricos, portanto, parece também sugerir o
desaparecimento de uma memória cultural e coletiva conectada a essa paisagem.
333
Figura 3, 4 e 5: O “plano-rolo” em Em busca da vida de Jia Zhang-ke (2006)
A relação intermidiática entre o filme e a pintura chinesa também pode ser
investigada a partir da noção de “espaço vazio”, tão central ao sistema de
pensamento chinês quanto o “Yin-Yang” (CHENG, 1991, p. 45). Na pintura chinesa,
o “espaço vazio” significa áreas da composição visual que existem entre os
principais elementos da pintura, ou seja, a montanha e a água. François Cheng nota
que em algumas pinturas das dinastias Song e Yuan o “espaço vazio” chegava até
mesmo a ocupar dois terços do espaço pictórico. Mas apesar do nome, o “espaço
vazio” não pode ser considerado inerte, já que na verdade ele é ocupado por “sopros”
que conectam o mundo visível ao mundo invisível. Isso significa que uma nuvem,
por exemplo, deve ser vista como um elemento que opera uma conexão entre a
montanha e a água, ocupando grande parte da pintura. O “espaço vazio” é assim
essencial para evitar uma oposição rígida entre esses elementos, que se comunicam
e por fim se transformam um no outro, em uma encarnação das leis dinâmicas do
real dentro da tradição do pensamento chinês (CHENG, 1991, p. 47).
Mas de que forma o “espaço vazio” da pintura chinesa se manifesta no
cinema, e mais especificamente em Em busca da vida? Em uma espécie de
334
tradução intersemiótica, o “espaço vazio” parece subsistir no estilo narrativo “lento”,
“atrasado” ou “demorado” do filme. Esse estilo “demorado”, nos termos de Laura
Mulvey (2006), acaba por abrir um espaço para momentos vazios em que nada
parece acontecer. Esse é de fato um filme que toma tempo, seguro de que sempre
algo acontece quando nada parece acontecer. Assim, em Em busca da vida o que
poderia ser visto como “pausas narrativas” servem na realidade para abrir um
espaço aos personagens Sanming e Shenpara que tenham tempo de pensar e sentir.
Esses “momentos vazios” também permitem ao espectador uma atitude mais
reflexiva, diferente da adotada diante de uma narrativa mais rígida de causa e efeito.
Para concluir esse breve apanhado das possíveis conexões intermidiáticas
entre a pintura tradicional chinesa e o filme de Jia Zhang-ke, gostaria então de
sugerir que, apesar de sua estética original ser uma resposta a uma nova conjuntura
social chinesa ela também parece nascer do problema da intermidialidade, que traz
uma dimensão histórica à perspectiva contemporânea. Assim, apesar de concordar
com diversos críticos e teóricos que insistem na relação entre o cinema de Jia
Zhang-ke e as monumentais transformações da China contemporânea derivadas do
processo de urbanização e globalização, creio não ser possível negligenciar o modo
como seus filmes se relacionam com tradições artísticas que remontam a um
passado milenar. No caso de Em busca da vida, penso ser justamente a
combinação de forma e conteúdo através de recursos estéticos da pintura tradicional
chinesa que permite a Jia Zhang-ke uma reflexão não apenas sobre a
contemporaneidade como também sobre o passado artístico e cultural de seu país.
Assim é que o diretor conhecido como “o poeta da globalização” é também um
“historiador” da transformação da China contemporânea (BERRY, 2008), e a
combinação desses dois vetores, motivados por um olhar ao mesmo tempo
contemporâneo e retrospectivo, faz emergir a atualidade e a força política de seu
cinema, que parece funcionar como um diagnóstico dos nossos tempos.
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336
Cecília Mello
Cecília Mello é Jovem Pesquisadora FAPESP na Unifesp Campus Guarulhos, com o projeto
“Intermidialidade, Estética e Política no Cinema Chinês de Jia Zhang-ke”. Foi bolsista
FAPESP de pós-doutorado (2008-2011, ECA-USP), é doutora em cinema pela Universidade
de Londres e organizou com Lúcia Nagib o livro Realism and the Audiovisual Media
(Palgrave, 2009).
337
A ESCRITA NA PELE OU A MARCA DA MORTE NA LITERATURA E NO CINEMA
JAPONÊS
Marilia Kubota - UFPR
RESUMO: Este artigo investiga e analisa as representações literárias e fílmicas sobre o
corpo na literatura e cinema japoneses do pós-guerra. Mais especificamente, analisa as
relações entre corpo e escrita, tema enraizado na cultura japonesa, que guarda paralelos
com o conceito da dualidade natureza e cultura. O eixo da discussão são as leituras de
obras de ficção japonesas ou ocidentais com temática japonesa, sob a ótica da catástrofe
nuclear. Essas leituras contrapõem-se a visões da tradição cultural japonesa, em que o
corpo é erotizado, como no teatro Nô e Kabuki e no Ukiyoe. Investiga-se se a visão do corpo
japonês foi apropriada por uma ideologia que difunde a imagem do corpo sagrado/fechado,
decorrente do pensamento budista, resultando no ícone doentio emergente das cinzas
atômicas, leitura preferencial de críticos de estudos culturais no Ocidente sobre as obras
nipônicas ou que reportem ao Japão.
Palavras-chave: escrita, corpo, bomba atômica.
ABSTRACT: This paper investigates and analyzes literary and filmic representations of the
body in Japanese's postwar literature and cinema. More specifically, it analyzes the
relationship between body and writing, a settled theme in Japanese culture, which parallels
with the concept of nature and culture duality. The discussion point here is informed by
Japanese and western Japanese-themed fiction focusing on nuclear catastrophe. These
readings oppose traditional cultural visions of an eroticized body, as in Noh and Kabuki
Theater and in Ukiyoe. I question if a concept of Japanese body has been appropriated to
reflect an ideology which spreads the image of a sacred/closed body as a Buddhist corollary.
It possibly results in the sick imagery of an icon emerging from atomic ashes that composes
a mainstream western reading by cultural studies on Nipponese or related literature.
Keywords: writing, body, atomic bomb.
As imagens divulgadas sobre o holocausto nuclear da Segunda Guerra
Mundial, na grande imprensa, durante muito tempo, mostravam o cogumelo atômico,
as bombas, as cidades e os monumentos destruídos em Hiroshima e Nagasaki.
Pouquíssimas mostram os corpos das vítimas, a não ser nos periódicos mais
sensacionalistas. De acordo com as estatísticas oficiais, 70 mil pessoas morreram
imediatamente durante os bombardeios em Hiroshima e 40 mil em Nagasaki.
Milhares ficaram doentes e calcula-se que no total, as duas explosões nucleares
tenham feito 200 mil vítimas. Muitas delas ficaram incapacitadas e doentes por
causa da radiação nuclear. Um terceiro grupo, testemunhas das explosões, mesmo
não tendo adoecido, foi atingido por outro tipo de doença – a estigmatização social.
338
Para os japoneses, durante muito tempo, as palavras “bomba atômica”, “Hiroshima”
e “Nagasaki” tornaram-se um tabu. As pessoas suspeitas de terem sofrido a
radiação eram isoladas. Temia-se que, através de casamentos, pudessem contagiar
os corpos sãos.
Apenas na ficção, O cinema e a literatura denunciam, de forma alegórica ou
realista, o silêncio que envolveu os marcados pelas cinzas nucleares. Neste trabalho,
analiso quatro obras: os filmes Contos da lua vaga (Ugetsu monogatari), de Kenji
Mizoguchi, Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour), de Alain Resnais, Kwaidan
– As quatro faces do medo (Kwaidan), de Masaki Kobayashi, e Chuva negra (Kuroi
ame), de Shohei Imamura.
A que explora o tema em abordagem mais realista é o filme de Shohei
Imamura, adaptação de obra homônima, de Masuji Ibuse. O autor baseou-se em
diários e testemunhos para construir o romance, transformando-os nos diários de
dois personagens: Yasuko, a protagonista, e seu tio, Shigematsu Shizuma. A opção
pela forma do diário aproxima o leitor da narrativa, como se vê na descrição de
Yasuko sobre a chuva ácida que caiu do céu radioativo de Hiroshima:
A fumaça subia bem alto no céu, espalhando-se à medida que ascendia.
Lembrei-me de uma foto que vi retratando tanques de petróleo se
incendiando em Cingapura. Fora tirada logo após a ocupação da cidade
pelas tropas japonesas; uma cena medonha, a ponto de me fazer
questionar sobre a pertinência de ações daquele tipo. A fumaça elevava-se
cada vez mais, atravessando as nuvens que pairavam horizontalmente,
imensa, assemelhando-se a um monstro na forma de guarda-chuva (Ibuse,
2011, p. 23).
Yasuko será estigmatizada como vítima da radiação e não se casará. Mais
tarde, sofrerá na carne os efeitos da radioatividade, que atingirá sua pele e da qual
tentará se livrar, em vão.
Me dei conta de que estava cheia de algo parecido com lama respingada
sobre mim. Minha blusa branca de mangas curtas também estava suja e
apenas nesses locais manchados o tecido foi danificado. Percebi, ao ver-me
no espelho, que tinha manchas da mesma cor por todo o corpo, exceto na
parte escondida pelo capuz antiaéreo. Encarava-me no espelho quando me
lembrei de que no momento em que subimos no barco clandestino,
orientadas pelo senhor Nojima, já caía uma pancada de chuva negra. Creio
que era por volta das dez da manhã. Nuvens negras se aproximavam,
vindas da direção da cidade, com barulho de trovoada, e a chuva que delas
caía parecia varas da grossura de caneta tinteiro. Apesar de ser pleno verão,
fazia um frio de arrepiar. A chuva logo cessou. Era como se eu estivesse
tendo uma alucinação. Imaginei que a pancada de chuva começara a cair
339
quando ainda estávamos dentro do caminhão. (...) Lavei as mãos na fonte,
mas por mais que as esfregasse com sabão a sujeira não saía. Colava-se à
pele. Não entendia a razão (ibidem).
!
Figura 1: Chuva negra.
A imagem dos resíduos atômicos da chuva ácida caindo no rosto de Yasuko,
no filme de Imamura, resgata a associação entre escrita e pele. As inscrições da
radiação permanecem na pele das vítimas como marcas visíveis da violência nuclear.
As manchas funcionam como signos legíveis da radiação, determinando a exclusão
social. Temerosos da estigmatização, os tios de Yasuko ficam em dúvida se
transcrevem tais informações de seu diário.
Em vários registros históricos da humanidade, o ritual de marcar a pele
confirma um ato de exclusão social. Nos campos de concentração nazistas, os
340
judeus são tatuados com números, como se fossem animais de outras espécies. A
marcação no corpo tem dupla função, uma desumanizadora, para que o corpo
marcado perca a sua identidade, tornando-se invisível. A outra, em viés oposto, faz
que a identidade seja agregada a um grupo. Nesse sentido, a tatuagem decorativa é
uma forma de distinção social, uma visibilidade.
Em relação à pele, o escritor Tanizaki já diz em “Em louvor da sombra”, que
“a compleição japonesa, não importa quão branca seja, é tingida por delicada
nebulosidade”. A bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki iniciou um novo
fenômeno de inscrição, testando a capacidade do corpo humano de sustentar a
força de cauterização da radiação atômica: ”seguindo a retórica de Tanizaki do corpo
como uma superfície fantástica, irradiação atômica pode ser vista como criação de
um tipo de fotografia violenta diretamente na superfície do corpo humano”. (LIPPIT,
2005, p.109)
Fora do Japão, a primeira tentativa de se falar sobre as marcas sociais
deixadas pelas cinzas radioativas foi Hiroshima meu amor. As cenas iniciais do filme
alternam imagens sobre os horrores da bomba atômica em Hiroshima: corpos
espalhados a esmo numa enfermaria, closes em deformações físicas, como
consequência da radiação, exposição de fotos da hecatombe no museu que guarda
o passado. E cenas de amor entre um casal, identificado apenas pelos nomes de
suas cidades: a atriz francesa Nevers e o arquiteto japonês Hiroshima. O amor entre
eles mistura cinzas e fluidos, uma fusão imagética que pretende estender um gesto
de compaixão do Ocidente ao Japão.
Todo o diálogo entre o casal é um embate sobre o tema da visão, da memória
e da veracidade do testemunho. Nevers afirma que por ter visitado o Memorial da
Paz de Hiroshima “viu” todo o sofrimento das vítimas. O arquiteto, que sofreu na
carne a tragédia, rebate que ela não poderia ter visto nada em Hiroshima. A atriz,
porém, tem uma tragédia individual sofrida durante a Segunda Guerra. Muito jovem,
apaixonou-se por um jovem soldado alemão e foi isolada em sua cidade pela sua
liberdade de amar. Teve seus cabelos cortados e ficou deprimida. Hiroshima, porém,
argumenta sempre que ela nunca conheceu a dor das vítimas da cidade japonesa. O
arquiteto apenas rebate suas falas, sem argumentar com um discurso lógico. A
341
suposição é que para Nevers, tanto ela como as vítimas civis da radiação nuclear
foram estigmatizadas por estarem do lado inimigo na guerra. Mas, para Hiroshima, o
drama individual não se compara ao coletivo. Embora a dor psicológica seja
semelhante, as marcas físicas e sociais se inscreveram na pele dos hibakushas
(sobreviventes da bomba atômica). Mas ambos carregam as marcas do
deslocamento, de ter estado em outro lugar durante o momento da catástrofe. O
breve relacionamento pode ser um sintoma de seus desconfortos, a inabilidade de
ficar no lugar a que pertencem.
Figura 2: Hiroshima meu amor.
Não apenas obras realistas descrevem as angústias sofridas pelos que são
marcados com as inscrições da chuva ácida Lippit (2005) vê inscrições da catástrofe
342
nuclear em dois diferentes filmes do pós-guerra: Contos da lua vaga, de Mizoguchi e
Kwaidan – As quatro faces do medo, de Kobayashi. Ambos contêm cenas que
podem ser lidas como alegorias da aniquilação atômica.
O filme de Mizoguchi é uma adaptação de Contos da chuva e da lua, de Ueda
Akinari, coletânea publicada pela primeira vez em 1776. No conto adaptado A
Volúpia da serpente, o camponês Genjuro é seduzido por um demônio, que toma a
forma de uma mulher, Wakasa. O demônio gradualmente suga a energia de Genjuro,
ameaçando levá-lo à morte. Seduzido pela fantasia, ele abandona a família. Um
sacerdote local percebe o estado do camponês. Vendo a sombra do fantasma em
sua aura, propõe salvá-lo inscrevendo em seu corpo orações em sânscrito. De
acordo com as crenças budistas, o texto sagrado protegerá o camponês dos
ataques do fantasma.
343
Figura 3: Contos da lua vaga.
Quando Genjuro e Wakasa voltam a se encontrar, a proteção surte efeito. Ele
anuncia a intenção de ir embora e ela tenta persuadi-lo a ficar. Mas, quando tenta
tocá-lo, recolhe-se em dor, queimada pelo calor do corpo do homem. São separados
pela superfície da pele de Genjuro, sua carne fresca:
A pele do camponês se torna mancha, rematerializada com a inscrição do
sacerdote. A palavra escrita intervém como uma espécie de tela. Se
Wakasa for entendida como uma metáfora da aniquilação atômica, o corpo
marcado de Genjuro neutraliza a força atômica com a cauterização das
feridas. Apenas quando assume a superfície da pele manchada, o
camponês recupera a humanidade (LIPPIT, 2005, p.114, tradução nossa).
Wakasa retira-se para as sombras, incapaz de superar a dívida que a pele
marcada de Genjuro impõe.
Visto dessa forma, o filme recodifica a estigmatização das vítimas da bomba
atômica. Expor as marcas da violência, em vez de escondê-las, como Yasuko, faz
com que o “monstro” se retraia. Seja o monstro manifestação interiorizada na psique
das vítimas, seja personificado em Godzilla (Gojira, 1954), de Ishihiro Honda, a
fantasmalização coletiva do terror nuclear.
Já no filme Kwaidan, de Kobayashi, também adaptado de uma obra literária
(uma compilação de narrativas fantásticas da literatura clássica japonesa em
tradução em inglês de Lafcadio Hearn, publicada em 1904), o encontro entre
fantasma e carne é similar, mediado pela escrita com tinta líquida. Não por acaso,
nas cenas iniciais de Hoichi sem orelhas, manchas de tinta negra escorrem na tela.
Sumi, o nanquim usado no pincel de caligrafia japonês, ou sangue coagulado? A
cena antecipa a descrição da batalha de Dan-no-ura, auge de Contos de Heike
(Heike monogatari). Nesse estreito acontece a batalha em que os Taira são
derrotados pelos Minamoto.
Muito séculos depois, a esse sítio histórico chega o monge cego Hoichi.
Famoso pela habilidade musical com o alaúde (biwa), sua recitação da batalha de
Dan-no-ura acaba atraindo os fantasmas. Como percebe Lippit, envolvido pelas
ondas e pelas lágrimas, Hoichi aproxima-se dos espíritos dos guerreiros mortos que
lhe pedem para recitar a estória da batalha. Como não consegue ver seus anfitriões,
344
acredita estar num palácio. Durante vários dias, interpreta a récita. No mosteiro, os
sinais de cansaço começam a aparecer na face de Hoichi. Um dos noviços o segue
em suas incursões noturnas e descobre que está tocando diante do túmulo dos
Taira. O sacerdote, então, prescreve a medicina budista. O corpo nu de Hoichi será
pintado com escrituras do Sutra do Coração a fim de protegê-lo dos fantasmas.
Figura 4: Mimi nashi Hoichi, em Kwaidan.
Durante a visita do fantasma, Hoichi estará invisível. Mas não de todo: suas
orelhas estão vulneráveis. Tendo esquecido de cobrir as orelhas de Hoichi com as
orações, os sacerdotes o deixaram exposto ao toque do fantasma. As orelhas são
tudo o que o fantasma pode ver. E as arranca do corpo. O sem-visão Hoichi é
também privado de suas orelhas. E a dupla privação no corpo do músico pode ser
345
interpretada como marcas da guerra: “A cegueira [...] também pode ser
alegoricamente um efeito do flash atômico, a segunda violência com as orelhas de
Hoichi nas mãos do fantasma reinscreve a memória da guerra no corpo de Hoichi"
(LIPPIT, 2005, p.118).
A imagem da desfiguração pode ser vista no exemplo real das “Donzelas de
Hiroshima”. Em 1955, um grupo de 25 mulheres voou para os Estado Unidos para
serem submetida a cirurgias plásticas gratuitas. O calor da radiação nuclear tinha
deformado seus corpos, unindo seus dedos das mãos, transformados em garras.
Ficaram 1,5 anos em terras americanas. Era uma experiência inédita para os
americanos. Eles haviam sido poupados das imagens de Hiroshima. Jornais,
revistas, televisão não veiculavam os efeitos da bomba nas pessoas. Nem todas as
cirurgias foram um sucesso. Numa delas, uma donzela morreu. Suas companheiras
levaram suas cinzas para o Japão no retorno.
Ver e não tocar, em A volúpia da serpente. Ver e tocar uma pequena parte do
corpo, em Hoichi. Em ambos os filmes, o gesto de escrever no corpo funciona como
mecanismo para prevenir o contato destrutivo que ameaça absorver as vítimas em
outro mundo, imaginário. Contaminadas pela semente radioativa, a princípio são
intocáveis. Em outro momento, poucos não exporão suas marcas e continuarão
levados pelos fantasmas da guerra.
Contos da lua vaga, Hiroshima meu amor e Kwaidan só se referem às marcas
deixadas na pele pela hecatombe nuclear de forma poética. Apenas depois de 1969,
Ibuse rompe o silêncio, ficcionalizando os depoimentos dos sobreviventes. A
linguagem poética das obras anteriores mostra como a alegoria funciona para
romper, gradualmente, os tabus sociais. Essa linguagem liberta a voz de indivíduos
que carregam as marcas do sofrimento, não apenas físico e psicológico, mas
também o da exclusão social. A história oficial sonega a narrativa dos indivíduos que,
por pertencerem ao lado dos que sofrem as perdas, têm sua voz enfraquecida ou
silenciada. Confrontam-se as imagens de marcas na pele de pessoas queimadas
pela bomba com a do cogumelo atômico. Essa, incessantemente exibida, causa o
esquecimento e esterilização dos fatos. A narrativa dos dramas individuais em
Chuva negra e Hiroshima meu amor dimensiona a catástrofe a uma escala humana.
346
A ficção antecipa o regaste da dor desses indivíduos, construindo uma visão
histórica mais ampla. O reconhecimento faz que o passado seja reescrito e reinscrito
na história, passando a ter uma memória, uma narrativa, que, ainda trágica para os
tempos pós-modernos, aponta para uma cicatriz inesquecível: o rompimento, pelo
irracionalismo, da fronteira entre o humano e não humano, a vida e a morte. A
exposição da cicatriz das vítimas promove o processo da cura da ferida simbólica,
evitando a repetição do trauma coletivo. Assim, tanto a representação alegórica
como a realista abrem caminho para a memória apaziguada, uma representação
social solidificada de um relato histórico, resgatando a convivência entre presente e
passado. O passado reelaborado é uma reconciliação com o presente.
Referências
Filmes
CHUVA negra. Direção: Shohei Imamura. Produção: Hisao Iino. Roteiro: Shohei Imamura e
Toshirô Ishido, baseado em livro de Masuji Ibuse. Intérpretes: Yoshiko Tanaka, Kazuo
Kitamura, Etsuko Ichihara, Shoichi Ozawa, Norihei Miki, Keisuke Ishida, Hisako Hara,
Masato Yamada, Tamaki Sawa, Akiji Kobayashi. 1989. 1 DVD (123 min.) son., color, 35 mm.
Título original – ǡǔ, Kuroi ame.
CONTOS da lua vaga. Direção: Kenji Mizoguchi. Produção: Masaichi Nagata. Roteiro:
Yoshikata Yoda. Intérpretes: Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Eitarô Ozawa,
Ikio Sawamura, Mitsuko Mito, Kikue Môri. 1953. 1 DVD (94 min.) son., color, 35 mm. Título
original: ǔĚŔƫ – Ugetsu monogatari.
HIROSHIMA meu amor. Direção: Alain Resnais. Produção: Samy Halfon e Anatole Dauman.
Roteiro: Marguerite Duras. Intérpretes: Bernard Fresson, Eiji Okada, Emmanuelle Riva. 1959.
1 DVD (94 min.) son., color, 35 mm. Título original: Hiroshima mon amour.
KWAIDAN – As quatro faces do medo. Direção: Masaki Kobayashi. Roteiro: Yoko Mizuki.
Intérpretes: Nakamura Katsuo, Tanba Tetsuro, Shimura Takashi (Hoichi, the Earless). 1964.
1 DVD (183 min.) son, color, 35 mm. Título original: ùƭ– Kwaidan.
Livros
AKINARI, Ueda. Contos da chuva e da lua. São Paulo: Centro de estudos japoneses
(USP), 1996. 150 p. (SEM ISBN).
IBUSE, Masaji. Chuva negra (Kuroi ame). São Paulo: Estação Liberdade, 2011. 330 p.
ISBN 978-85-7448-196-8.
LIPPIT, AKIRA, Atomic Light (Shadow Optics). Minneapolis: University of Minnesota Press,
2005. 214 p. ISBN 978-0-8166-4610-4.
Marilia Kubota
Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Universidade
Federal do Paraná, em 1992. É mestre em Estudos Literários, com a dissertação “As
narrativas japonesas de Valêncio Xavier – O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashiOichi”, defendida em 2012. Autora dos livros de poesia “Esperando as bárbaras” (2012) e
“Diário da vertigem” (2014).
347
O COTIDIANO FAMILIAR EM SEGUINDO EM FRENTE
Mari Sugai – UFPB e UnP
Orientador: Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães 1
RESUMO: Este texto possui como objetivo realizar uma análise fílmica da obra
cinematográfica de um dos diretores japoneses mais renomados dos tempos atuais,
Hirokazu Kore-Eda, e seu projeto Seguindo em frente (Aruitemo aruitemo. 2008).Para a
explanação do presente trabalho, analisaremos os temas estética visual e linguagem
audiovisual; e a história, que na obra em questão, possui como tema narrativo central, o
cotidiano e o encontro anual dos membros da família Yokoyama; além da semelhança dos
pontos anteriormente mencionados com o trabalho de outro realizador japonês, Yasujiro
Ozu, e seu longa-metragem Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari. 1953).
Palavras-Chave:
cinematográfica.
Cinema
japonês,
Hirokazu
Kore-Eda,
Análise
fílmica,
Narrativa
ABSTRACT: This text aims to analyze the cinematographic work of one of the most
renowned Japanese directors of modern times, Hirokazu Kore-Eda, and his project Still
walking (Aruitemo Aruitemo. 2008).For the explanation of this work, we intend to analyze the
themes visual aesthetics and audiovisual language; and the story that in the analyzed film
has as central narrative theme the everyday life and the annual meeting of the Yokoyama
family members, besides the similarity of the points mentioned before with the work of
another Japanese director, Yasujiro Ozu, and his feature film Tokyo Story (Tokyo monogatari
1953).
Keywords: Japanese cinema, Hirokazu Kore-Eda, film analysis, film narrative.
1. Introdução
A cinematografia japonesa chegou ao Ocidente quando os filmes de Kenji
Mizoguchi ( ō l T 1898 - 1956) e Akira Kurosawa ( ǡ Ő đ 1910 - 1998)
começaram a participar dos festivais de cinema europeu em 19502.
Um grande evento com a exibição de películas japonesas ocorrido treze anos
depois, patrocinado pela Cinemateca Francesa, levou para o conhecimento de seu
público, filmes inéditos de outros realizadores, desta vez da Nouvelle vague
japonesa3, apresentando diretores como Nagisa Oshima (°Óň 1932 - ~), Kiju
Yoshida (śLJ – 1933 - ~) e Shohei Imamura ([ġĐß1926 - 2006). As obras
possuíam tratamento cinematográfico sem precedentes no Ocidente e histórias
348
totalmente estrangeiras aos costumes e hábitos da época.
No final da década de 1960, as películas de Yasujiro Ozu (Çł¾TDŽ 1903 1963) são tardiamente “descobertas” pelo Ocidente. O estúdio responsável por seus
filmes considerava seu cinema “muito japonês” e menos “exportável” do que os de
Mizoguchi e Kurosawa, e por este motivo, não houve empenho em exibí-los
anteriormente nas principais capitais do Ocidente. O estilo cinematográfico do
realizador também não era bem aceito pelos próprios colegas, conforme afirma
Silva:
[...] Diferente de Kurosawa e Mizoguchi que são consagrados em festivais
europeus nos anos 50, Ozu durante sua vida é conhecido praticamente só
no Japão ou por um público vinculado à cultura japonesa, reconhecido
como cineasta popular e clássico dentro do Japão desde 1932,
gradualmente, após sua morte em 1963, é convertido fora do Japão em
autor e uma alternativa ao cinema hollywoodiano, considerado como um
“formalista rigoroso” (HASUMI, 1998, p. 116), um cineasta moderno, e
diferentemente, dentro do Japão, foi criticado por cineastas da Nouvelle
Vague japonesa como Nagisa Oshima e Shonei Imamura (NYGREN, 2007,
p. 148), tido como um cineasta conservador, tanto do ponto de vista formal
4
como dos valores morais centrados na família. (SILVA , 2011, p. 8)
Porém este panorama não é o encontrado atualmente,
Quase cinquenta anos após sua morte, a situação hoje se inverte: é cada
vez maior o culto ao cinema de Ozu fora do Japão, tanto no ocidente quanto
em outros países orientais. Multiplica-se o número de livros publicados, de
palestras proferidas e de mostras realizadas em todo o mundo em torno do
cinema de Ozu. No entanto, o que mais nos encanta é que, para além das
honrarias a esses encantadores filmes do passado, a obra de Ozu
5
permanece viva, pulsante, atual. [...] (IKEDA , 2012)
E cujo “efeito Ozu”:
[...] pode ser uma possibilidade de manter ainda um cinema narrativo,
clássico, que não se dissolve nas experiências radicais dos cinemas novos
dos anos 60, base para a proposta conciliatória do cinema pós-moderno
que emerge com a crise da noção de vanguarda nos anos 70. (SILVA, 2011,
p. 8)
O reconhecimento no Ocidente de Ozu e outros profissionais, ‘abriram as
portas’ para os atuais realizadores conterrâneos, entre eles, Hirokazu Kore-Eda (Ĕ
ħ Ƥ
1962
-
~),
“um
dos
diretores
japoneses
mais
reconhecidos
internacionalmente [...]. Faz parte de uma geração de cineastas nascidos na década
de sessenta e que estão obtendo repercussão dentro e fora do Japão” (MORENO6).
349
Após a graduação em Literatura, Kore-Eda ingressou na produtora
audiovisual TV Man Union, como assistente de direção, e iniciou sua carreira com a
produção de documentários para a televisão, temática presente em alguns de seus
filmes ficcionais. Ele encontra-se ainda produzindo obras, e até o dado momento
pudemos contabilizar dezesseis películas para cinema e TV (entre projetos ficcionais
e documentários já realizados, e outros em fase de pré-produção7), sendo nove
exclusivamente para cinema. Além de diretor, ele também ocupa as funções de
roteirista, produtor e editor.
2. Desenvolvimento
Seguindo em frente8 é uma obra ficcional. A respeito deste gênero, Rosenfeld
afirma que:
[...] A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode
viver e contemplar, através de personagens variadas a plenitude da sua
condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que,
transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e
destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se,
distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação [...].
(ROSENFELD et al.,2011, p. 48)
Além de fazerem parte em um gênero, os personagens da história são
integrantes de um enredo, em que “toda narrativa cinematográfica possui uma trama
lógica, é uma espécie de discurso” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 26).
Seguindo em frente apresenta como trama principal (que será detalhada a
seguir) o cotidiano familiar, que se desenvolve sem grandes reviravoltas narrativas,
pertencente a uma tendência do cinema contemporâneo asiático (semelhante ao
iraniano, argentino, e alguns nacionais), que parece estar produzindo a criação de
um contramodelo de Hollywood, conforme afirmam Baptista e Mascarello:
[...] Os roteiros são tirados da vida, da deles ou de amigos. As histórias são
principalmente urbanas. A câmera é móvel, muitas vezes no ombro. A
impressão é de que as imagens são feitas ao vivo, que são roubadas.
Esses filmes se tornam a concretização de uma urgência: a de filmar esses
destinos, a de tomar a palavra em nome dos contemporâneos. Essa nova
corrente não se inscreve no esteticismo [...], e sim em um cinema humanista
e documental [...]. (BAPTISTA; MASCARELLO, 2008, p. 280)
O filme trata da reunião anual da família Yokoyama para recordar a morte do
350
filho mais velho, Junpei, que ocorreu quinze anos atrás, quando este morreu
afogado ao salvar um garoto em um rio.
A obra se passa em uma cidade próxima de Tóquio, e durante o período de
pouco mais de um dia é narrada a relação entre os membros da família, composta
pelo patriarca (Kyohei), matriarca (Toshiko), filho Ryota (que pode ser considerado o
protagonista da película) e filha, ambos na faixa dos quarenta anos, além de seus
respectivos companheiros e filhos.
A película não nos situa em qual época a história se passa, informa somente
que acontece no verão. Devido a localização geográfica do país, concluímos que
ocorre em um dia entre junho a agosto.
Neste encontro, Ryota apresenta sua esposa aos demais membros da família,
o que causa discórdia principalmente por parte de sua mãe, pois a nora é viúva e
tem um filho do primeiro casamento. Outro ponto apresentado como atrito, é o fato
de Ryota, restaurador de arte, não ter seguido a profissão do pai e estar
desempregado. Kyohei, aposentado, exercia a profissão de médico, e Junpei (o filho
morto), daria continuidade e herdaria seu consultório.
Pais e filhos não se comunicam, porquanto existem velhos ressentimentos e,
muitas vezes, o que não é dito, o interdito, o que fica subentendido, é mais
importante do que aquilo que é verbalizado.
Além da temática familiar, existem outros pontos em comum com a obra Era
uma vez em Tóquio9, do realizador Ozu; que trata de um casal de idosos, Shukichi e
Tomi, que viaja para visitar os filhos na referida cidade do título. Porém os próprios
filhos não dispõem de tempo (ou não estão interessados) para dar atenção aos pais,
ao contrário do acolhimento recebido pela nora, viúva do filho morto na Segunda
Guerra Mundial.
Este gênero encontrado nas duas obras possui um nome específico no
cinema japonês: shomingeki, também conhecido como shoshimingeki, caracterizado
pelos dramas mais realísticos sobre pessoas comuns, cidadãos trabalhadores da
classe média.
É possível notar outras semelhanças entre as obras, além da temática
351
narrativa: na obra de Ozu, o personagem filho é o médico, e não o pai; sobre as
visitas, são os pais que viajam para encontrar os filhos; tanto em um longametragem quanto no outro, há morte de idosos; e presença do 'plano-tatame'.
A respeito desta informação técnica presente na obra do diretor de Era uma
vez em Tóquio, Nagib; Parente (1990) destacam a câmera baixa10, praticamente
imóvel, uma lente objetiva de 50 mm11, e pouco uso de close-up12.
O recurso do posicionamento angular em posição baixa, utilizado por Ozu a
40 ou 50 cm do chão, pode-se dizer que esta altura está no nível dos olhos de um
japonês quando sentado sobre o tatame 13 . Existem inúmeras leituras feitas por
estudiosos a respeito da posição deste enquadramento de Ozu. Sobre elas, Yoshida
afirma que:
Deve ter provocado boas gargalhadas no diretor a interpretação que muitos
vinham fazendo de que a composição da câmera em posição baixa era
derivada de um sentido estético peculiar aos japoneses e expressava uma
perfeita harmonia com um espaço arquitetônico – o olhar que parte de uma
pessoa sentada num tatame. Para ele, não passava de uma explicação
óbvia que essas cenas se mostrassem como uma expressão tipicamente
japonesa, e isso nada significava. Esse tipo de truísmo era veementemente
refutado por ele. (YOSHIDA, 2003, p. 140)
Ozu poderia considerar esta leitura óbvia, por estar inserido neste costume,
diferente dos praticados no Ocidente.
Para narrar o encontro da família Yokoyama, Kore-Eda utiliza recursos
semelhantes aos de Ozu. Para equiparar, faremos comparação entre os frames de
ambos os filmes.
352
Figura 1 - Composição de Ozu
Fotograma de Era uma vez em Tóquio
Figura 2 - Composição de Kore-eda
Fotograma de Seguindo em frente
Apesar do filme mais antigo ser preto e branco, e o outro colorido, ambas as
imagens exibem situações semelhantes, a família reunida em um dos cômodos da
casa; ângulo de câmera proveniente da sua posição baixa, e plano geral da ação em
um típico “plano-tatame” de Ozu; as rígidas composições geométricas construídas
pelas linhas verticais em primeiro plano; as retas inferiores do tatame no chão; linhas
verticais formadas pelo fusumá14; e o teto.
353
É neste ambiente residencial ilustrado acima que ocorriam os “dramas
familiares” nos filmes de Ozu, que geralmente focavam, e constituíam o centro
temático resultante de um núcleo familiar em degradação (os filhos vão embora, ou
os genitores morrem, e etc.). Este é o panorama similar encontrado em Seguindo em
frente: a evidência dos integrantes da família Yokoyama em primeiro plano.
Certamente este cotidiano presente nos filmes não é exclusividade da
cinematografia japonesa, podendo ser notada desde o início do Cinema, com as
produções dos irmãos Lumière, que tratavam do registro e exibição de fatos dos
acontecimentos de seu dia a dia (saída de funcionários da fábrica, alimentação de
um bebê, chegada de trem em uma estação e outros).
Sobre o cotidiano do japonês, Ozu afirma que:
A vida dos japoneses é absolutamente não cinematográfica. Por exemplo,
ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a
porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os sapatos, e assim por
diante. Não há como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não
tem outra saída senão retratar essa vida propensa à estagnação por meio
de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão
precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica. (apud YOSHIDA, 2003,
p. 45)
Segundo Rosenfeld (et al.,2011, p. 46): “[...] O próprio cotidiano, quando se
torna tema da ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do
tédio, da angústia e da náusea”. Calil15 (2010) complementa ao afirmar que Ozu só
se interessava por pessoas normais, imperfeitas, gente comum do dia-a-dia, em
meio às quais não há lugar para heróis, e que a vida ordinária dessas pessoas se
desenrola
em
sucessivos
"desacontecimentos",
num
cotidiano
levemente
dramatizado.
Kore-Eda também parece ter predileção por histórias e personagens com este
perfil. Em seus filmes podemos perceber os protagonistas, todavia não há
antagonistas, podendo estes ser os fatos corriqueiros da própria vida. A avó Toshiko,
de Seguindo em frente, oferece momentos de ternura para com alguns membros da
família, porém revela-se rancorosa com um fato passado envolvendo seu esposo; e
sua nova nora não é bem aceita, apesar da forma educada no tratamento, algumas
frases denunciam sua insatisfação com o casamento de seu filho.
O roteiro e a personagem Toshiko foram criadas baseadas nas próprias
354
experiências de seu realizador, conforme ele mesmo afirma:
Escrevi o roteiro de Seguindo em frente depois da morte de minha mãe.
Cerca de dois anos antes de sua morte, ela foi hospitalizada por causa de
um aneurisma cerebral. Até aquele momento, usei o meu trabalho como
desculpa, mas eu realmente a deixava sozinha e não cuidava dela. [...]
Quando minha mãe estava doente e a visitei no hospital por dois anos,
tomei notas das conversas que tivemos. Essas notas que tomei foram o
ponto de partida para o roteiro. [...]. A família de Seguindo em frente é muito
diferente da minha. Mas os sentimentos de pesar com os membros de sua
família, de ficar sem tempo, são fortemente baseados na minha própria
16
vida”. (PAYNE , 2008)
Segundo Silva, o cotidiano das famílias de Ozu e Kore-Eda é mostrado pelos
cineastas através dos enquadramentos de câmera já mencionados anteriormente, e
também pelos:
[...] chamados “pillow shots” (BURCH, 1979, p.160) ou planos de tempos
mortos em que os objetos e espaços não ocupam um sentido muito explícito
no desenrolar da ação não funcionam tanto como contextualização da cena,
nem são apenas momentos de suspensão, paisagens ou naturezas-mortas
a serem contempladas, eles apontam para um olhar que não é nem dos
personagens mergulhados em sua interioridade nem do narrador onisciente,
mas de “um olhar objetal ausente, invisível e caótico” (YOSHIDA, 2003, p.
196), de um olhar qualquer sem que os objetos e espaços adquiram
demasiada autonomia nem a câmera se coloque em cena criando algum
tipo de metalinguagem. (SILVA, 2011, p. 6)
O mesmo autor complementa ao mencionar que:
[...] o vazio em Ozu não fala da ausência da presença humana, de uma falta
angustiante, mas o espaço e objetos quase se tornam protagonistas como
os personagens que passam pela tela. É apenas um momento de escape
ou de descentramento de uma lógica que se cristalizou desde a perspectiva
renascentista, centrada no olhar humano, mas sem se perder no informe, no
inumano que tanto interessa às experiências das vanguardas. [...] Os
personagens são mais pontos no quadro do que o seu centro. (SILVA, 2011,
p. 5)
Estes trechos “vazios” não tem como função principal servir de ligação para a
próxima cena, como normalmente aconteceria e o público assim compreenderia,
remetem, porém, a um significado mais relevante, até mesmo de um “personagem”,
como afirma Silva na citação anterior. Ilustraremos com dois exemplos abaixo:
355
Figura 3 – “Plano morto”
Fotograma de Era uma vez em Tóquio
Figura 4 – “Plano morto”
Fotograma de Seguindo em frente
As narrativas audiovisuais são registradas/capturadas por enquadramentos
de
câmera
quando
personagens
e
acontecimentos
estão
presentes
em
determinados espaços e cenários, que, conforme afirmam Gaudreault; Jost (2009, p.
105): “O espaço é um dado incontrolável que não podemos desprezar quando se
356
trata de narrativa: a maioria das formas narrativas inscreve-se em um quadro
espacial suscetível de acolher a ação vindoura [...]”.
Os espaços que os personagens de ambos os filmes percorrem, são, em
grande parte, os cômodos residenciais. Em Era uma vez em Tóquio, são mostrados
o lar do casal de idosos; e em Tóquio, os visitantes transitam pela casa do filho, da
filha, um SPA, e o apartamento da nora. Enquanto que nas sequências de Seguindo
em frente, resumem-se aos ambientes interno da casa dos avôs.
Apesar das espacialidades das duas películas possuírem como característica
os pequenos e apertados espaços, são neles que Kore-Eda e Ozu conseguem
extrair os “planos mortos”, conforme citado acima.
Fica claro, portanto, que Kore-eda, mesmo pertencendo a uma geração
distinta de Ozu, consegue manter a tradição tanto narrativa quanto estética em seu
filme.
Sobre a influência do falecido diretor em seus filmes, Kore-Eda comenta:
17
Quando fiz Maboroshi - A luz da ilusão , estava ciente de minha forma de
expressão a partir do estilo de Ozu ao enquadrar certas cenas [...]. Mas
Seguindo em frente foi tão pessoal que realmente deixei de lado qualquer
consideração de técnica, estilo ou influência e trabalhei intuitivamente. A
ideia principal da família em Seguindo em frente é similar a de Maboroshi A luz da ilusão, portanto seja talvez de onde venha a comparação com Ozu.
18
(TANAKA )
Kore-Eda fornece indícios de que em algumas sequências tenha sido, mesmo
que inconsciente, influenciado por Ozu, seja na história, estética e/ou na linguagem.
Em Seguindo em frente esta hipótese pode ser verificada não somente na temática
do filme, mas também no que se refere aos enquadramentos utilizados.
3. Conclusão
Ozu, apesar de ser considerado por seus colegas, críticos e estudiosos, “o
mais japonês dos diretores de cinema” (o oposto de Kurosawa), possui pontos em
comum com o trabalho desenvolvido por Kore-Eda, cineasta reconhecido por suas
obras no Japão ou exterior.
357
Em Seguindo em frente, ainda que seu autor não admita, podemos encontrar,
mesmo tendo sido realizado décadas depois, além da temática central análoga,
similaridade com a estética e linguagens audiovisuais utilizadas em Era uma vez em
Tóquio.
Este se firma como o estilo que Kore-Eda desenvolve em seus projetos,
apesar de sua participação em um dos episódios 19 de um seriado de terror 20
produzido para a televisão japonesa. É o tema cotidiano familiar que ele escolhe
para narrar em suas obras cinematográficas; além de contar com elenco infantil para
interpretar os protagonistas de alguns de seus filmes, como na realização de três
das nove películas realizadas por ele para a tela grande: Ninguém pode saber21, O
que eu mais desejo22, e Pais e filhos23.
Certamente nem todos os seus colegas seguem este estilo/estética/
linguagem/narrativa. Existem os que exploram outros gêneros cinematográficos,
dentre eles: o diretor de filmes de terror, Takashi Shimizu (jd Ô 1972 - ~), que
após ser ‘descoberto’ pelo Ocidente, foi convidado para dirigir obras em Hollywood,
realizando inclusive a refilmagem de seu próprio longa-metragem O grito 24 ,
produzido no Japão; além de Takeshi Kitano ((@}ij 1947 - ~), que apesar da maior
parte de seus filmes estarem relacionados à temática violência, é autor de dramas
como Hanabi - Fogos de artifício 25 e Dolls 26 ; outro profissional que transita pelo
mesmo gênero sanguinário de Kitano, é Takashi Miike (3eM 1960 - ~).
Kore-Eda, apesar de narrar, no filme analisado neste texto, uma história do
cotidiano de uma típica família japonesa, tornou-se conhecido devido a uma história
que contém uma temática mundial, ou seja, que poderia ter sido desenvolvida com
qualquer grupo de parentes e região, e talvez por este motivo, apesar de utilizar
linguagem não usual, como por exemplo, enquadramentos com câmera baixa e sem
closes, suas obras sejam reconhecidas em inúmeros locais além do Japão.
Notas
1
Professor orientador: Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
- Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) - Programa de Pós Graduação em Letras - Literatura e
Cultura
2
Kurosawa tornou-se conhecido internacionalmente em 1950 ao ganhar o Leão de Ouro no Festival de
Veneza com a película Rashomon, e Mizoguchi foi premiado no mesmo festival em 1952 por Oharu - A Vida de
uma Cortesã, e recebeu em 1953 o prêmio Leão de Outro por Contos da lua vaga.
358
3
Em referência ao movimento Nouvelle vague francês, em que diretores como François Truffaut e Jean
Luc Godard deram início a realização de filmagens nas ruas e áreas externas, fazendo uso de equipamento mais
leve e compacto, além da temática inspirada no Neorrealismo italiano.
4
Disponível em:<http://www.uff.br/contracampo/index.php/revista/article/view/71/59>. Acesso em:
24/11/2013.
5
Disponível em:<http://www.ozu.com.br/texto_04.html>. Acesso em: 09/mar/2014.
6
Disponível
em:<http://digitooluam.greendata.es//exlibris/dtl/d3_1/apache_media/L2V4bGlicmlzL2R0bC9kM18xL2FwYWNoZV9tZWRpYS8zNT
Y1Ng==.pdf/>. Acesso em: 09/mar/2014.
7
Filmes que estão sendo preparados, e que ainda não foram filmados.
8
Título original: ARUITEMO ARUITEMO. (Ĵ,Ĵ,). Direção: Hirokazu Kore-eda. 2008. O
título adotado em português para esta pesquisa foi o mesmo utilizado quando a película foi exibida durante o
evento 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2009), já que o longa-metragem não foi lançado
comercialmente no Brasil.
9
Título original: TOKYO MONOGATARI (ĢXŔƫ). Direção: Yasujiro Ozu. 1953.
10
Tipo de enquadramento próximo ao chão.
11
Lente de câmera cujo campo de visão é a mais próximo do olho humano.
12
Plano que enquadra o rosto do personagem.
13
Espécie de tapete japonês feito de palha de arroz, coberto por uma esteira de junco.
14
Porta corrediça de madeira, coberta de papel.
15 Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0108201006.htm>. Acesso em:
09/mar/2014.
16
Disponível
em:<
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CDQQFjAB&url
=http%3A%2F%2Fwww.penwithfilmsociety.co.uk%2Fsystem%2Ffiles%2Fstill_walking_0.doc&ei=6gUqU5nIIYfmk
AfBkoGYBg&usg=AFQjCNFY40sM3lkPfx0smPb_Wi-tHYXoUg&sig2=nfyi7JdH0p8RpedWAlIFw&bvm=bv.62922401,d.eW0/>. Acesso em: 09/mar/2014.
17
Título original: MABOROSHI NO HIKARI (á!q). Direção: Hirokazu Kore-eda. 1995.
18
Disponível em:<http://therumpus.net/2009/06/the-rumpus-interview-with-hirokazu-koreeda/>. Acesso
em: 09/mar/2014.
19
Nochi no hi.
20
Ayashiki bungô kaidan (2010).
21
Título original: DAREMO SHIRANAI. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2004.
22
Título original: KISEKI. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2011.
23
Título original: SOSHITE CHICHI NI NARU. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2013.
24
Título original (versão japonesa): JU-ON. Direção: Takashi Shimizu. 2000. Título original (refilmagem):
THE GRUDGE. Direção: Takashi Shimizu. 2004.
25
Título original: HANABI. Direção: Takeshi Kitano. 1997.
26
Título original: DOLLS. Direção: Takeshi Kitano. 2002.
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contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008
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09/mar/2014.
SEGUINDO em frente. Direção: Hirokazu Kore-Eda. Produção: Yoshihiro Kato, Satoshi
Kôno, Hijiri Taguchi, e Masahiro Yasuda. Intérpretes: Hiroshi Abe, Yui Natsukawa, You,
Shohei Tanaka, Kirin Kiki, Yoshio Harada e outros. Roteiro: Hirokazu Kore-Eda. Música:
Gonchichi. Tóquio: Bandai Visual Company, Cinequanon, Eisei Gekijo, Engine Film, e TV
Man Union, c2008. 1 bobina cinematográfica (115 min.): Dolby digital, cor, 35mm. Produzido
por: Tóquio: Bandai Visual Company, Cinequanon, Eisei Gekijo, Engine Film, e TV Man
Union.
FILMOGRAFIA DE HIROKAZU KORE-EDA (projetos desenvolvidos para o
cinema):
2013 Pais e Filhos
2011 O Que Eu Mais Desejo
2009 Boneca Inflável
2008 Seguindo em frente
2006 Hana yori mo naho
2004 Ninguém Pode Saber
2001 Distance
1998 Depois da Vida
1995 Maboroshi - A luz da ilusão
SEGUINDO EM FRENTE – PRÊMIOS RECEBIDOS:
- Asian Film Awards 2009: Melhor diretor Hirokazu Kore-Eda
- Blue Ribbon Awards 2009: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki / Melhor diretor
Hirokazu Kore-Eda
- Chlotrudis Awards 2010: Melhor diretor Kore-Eda
- Hochi Film Awards 2008: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki
- Kinema Junpo Awards 2009: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki
- Mainichi Film Concours 2009: Melhor ator Hiroshi Abe
- Mar del Plata Film Festival 2008: Prêmio do júri Hirokazu Kore-Eda / Melhor filme
- Nikkan Sports Film Awards 2008: Melhor atriz coadjuvante Yui Natsukawa
360
Mari Sugai - msugai@gmail.com
Graduada em Cinema pela FAAP/SP; Mestre pela Universidade de São Paulo (USP) –
FFLCH / Cejap; Doutoranda da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes - Programa de Pós Graduação em Letras - Literatura e
Cultura. Docente na Escola de Comunicação e Artes da UnP (Natal/ RN), e produtora em
eventos culturais e projetos audiovisuais (Cinema e TV).
361
RUÍNAS EM DESLOCAMENTO. STILL LIFE (2005), DE JIA ZHANG-KE, OS
FILMES DE BARRAGEM E A RESPOSTA DA ARTE CHINESA À HIDRELÉTRICA
DAS TRÊS GARGANTAS
Lúcia Ramos Monteiro - USP e Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3
RESUMO: Além de se referir à arte chinesa tradicional, como a pintura de rolo e a poesia da
Dinastia Tang (618-907), Still Life (2005), de Jia Zhang-ke, estabelece uma série de outros
diálogos. Por um lado, o filme revela a cinefilia do realizador, citando elementos docinema
de Hong Kong (ChowYun-Fat e John Woopor exemplo são explicitamente convocados) e do
cinema europeu (notadamente Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni). Por outro lado,
o filme tece relações com a obra de artistas contemporâneos que trabalharam na região das
Três Gargantas (como Liu Xiaodong e ZhuangHui). Wu Hung considera o conjunto
heterogêneo de obras ligadas à construção da barragem das Três Gargantas como uma
“resposta dos artistas” à transformação radical na paisagem e na vida dos habitantes das
regiões inundadas. Still Life inscreve-se, mais globalmente, em uma tradição
cinematográfica precisa: aquela que, desde o fim do século 19, se interessa pela construção
de barragens (dos irmãos Lumière a Jean-Luc Godard, passando por Manuel de Oliveira e
Alexandre Dovjenko). Minha proposta consiste em analisar algumas relações intertextuais
que o filme de Jia estabelece, não apenas com trabalhos ligados à construção de barragens,
mas também com a iconologia das ruínas e a temática do deslocamento, na China e fora
dela.
Palavras-chave: Jia Zhang-ke; intertextualidade; orientalismo; iconologia de ruínas; filmes
de barragem
ABSTRACT: Besides of making reference to traditional Chinese art, like roll painting and the
poetry of the Tang Dynasty (618-907), JiaZhangke’s Still Life (2005) establishes many other
dialogues. On the one hand, the film reveals the director cinephilia, citing elements of HongKong cinema (Chow Yun-Fat and John Woo for instance are explicitly quoted) and European
cinema (notably Roberto Rossellini and Michelangelo Antonioni). On the other hand, the film
can be related to the work of contemporary artists who have been in the Three Gorges
region (as Liu Xiaodong and ZhuangHui). Wu Hung considers the heterogeneous collection
of works related to the construction of the Three Gorges Dam as a "response of artists" to the
radical transformation in the landscape and the lives of the inhabitants of the flooded regions.
Still Life also suits into the cinematic tradition that, since the late 19th century, is concerned
with the construction of dams (represented by the Lumière brothers, Jean-Luc Godard,
Manuel de Oliveira and AlexandreDovjenko, among others). My proposal is to analyse some
intertextual relations established by Jia’s film, not only with works generated by the
construction of dams, but also with the iconology of the ruins and the theme of displacement,
in China and elsewhere.
Keywords: Jia Zhang-ke; intertextuality; orientalism; iconologyof ruins; dam’sfilms
362
Introdução
Roland Barthes dedica algumas das mais belas páginas de A Câmara Clara
(BARTHES, 1984) à descrição da fotografia do soldado Lewis Payne, participante do
complô que havia tentado assassinar o presidente norte-americano Abraham Lincoln.
Payne é um jovem confederado robusto, de cabeleira farta e olhos claros que
parecem fixar calmamente a câmera. A imagem sobre a qual o semiólogo francês se
debruça foi feita na prisão, onde Payne aguardava o cumprimento de sua sentença:
morte por enforcamento. “A foto é bela, o jovem também: trata-sedo studium. Mas o
punctum é: ele vai morrer”, escreve Barthes (1984, p. 143). Diante do retrato, o “cela
a été” se dobra de um “celasera”, o que provoca no espectador estranheza,
desconforto e, nas palavras de Barthes, “horror”. Aoexaminar seus retratos de
família no fim da vida, o autor parece buscar essa estranheza a cada fotografia,
como se as imagens pudessem contaminar-se de seu futuro (1975, 1980).
Cada plano do filme Still Life Still Life – Em Busca da vida (Sanxiahaoren,
2006), de Jia Zhang-ke, opera uma colisão de mesma ordem entre “o que já foi” e “o
que está por vir”, razão pela qual proponho transferir a reflexão de Barthes para o
campo do cinema, ainda que sabendo de sua preferência por imagens fixas. O longa
foi rodado entre 2005 e 2006 no distrito de Fengjie, pertencente à municipalidade de
Chongqing, dentro da área afetada pela Barragem das Três Gargantas, um dos
principais símbolos da China contemporânea e prova do ambicioso futuro que a era
pós-Mao vem projetando e construindo1. À época, a barragem sobre o rio Yangtzé já
estava pronta, masa represa não havia atingido seu nível final, de modo que a maior
parte de Fengjie ainda estava habitada2. Quando o filme é lançado, a situação era
outra: a construção da barragem estava em sua fase final, a inundação havia se
completado.
Talvez pudéssemos parodiar Barthes ao dizer que “o filme é belo, a cidade
também; mas o punctum é: ela vai desaparecer sob as águas do Yangtzé”. Mas, à
diferença do retrato de Lewis Payne, o longa-metragem de Jia Zhang-ke não captura
exatamente “o” instante que antecede o desaparecimento de Fengjie. Tendo por fio
condutor um roteiro ficcional, Still Life acompanha o processo de destruição – real –
da cidade, sem, no entanto, chegar a mostrara inundação. Predominam imagens de
prédios sendo demolidos ou semi-destruídos; a barragem em si aparece em apenas
363
um plano. A ideia benjaminiana de que construção e destruição são forças
inseparáveis no curso de história (BENJAMIN, 2005) ecoa a cada vez que são vistos
trabalhadores a golpear os edifícios, que vão desabando um a um ao longo do filme.
Jia Zhang-ke não é o primeiro cineasta a valer-seda posição do “anjo da
história”, que Benjamin descreve com base na aquarela AngelusNovus, de Paul Klee
(1920). Ouso dizer que o conflito entredirigir-se ao futuro e olhar para o passadoé
frequente nos “filmes de barragem”, ou seja, filmes de diferentes registros e formatos
que se interessaram seja pela construção de uma barragem, seja pelo risco de sua
ruptura. Em muitos casos, a destruição das áreas a serem inundadas disputa a
atenção do espectador com canteiros de obras grandiosos, de modo a comprometer
parcial ou inteiramente qualquer possibilidade de entusiasmo – o grau em que isso
se dá é variável, e muito da força de Still Life reside na quase ausência de imagens
da barragem, em contraponto à onipresença da demolição.
É possível verem uma ruína aimpressão direta de um acontecimento
desastroso e destruidor, como a impressão de uma imagem sobre uma superfície
fotossensível. Assim, quando nos deparamos com a catedral de Berlim, que mantém
muito visíveis as feridas da Segunda Guerra Mundial, é como se estivéssemos
diante da imagem congelada do momento em que a capital alemã foi bombardeada.
Recoberta pelas cinzas do Vesúvio no ano 79, Pompeia tornou-se um emblema
dessa visão: a erupção vulcânica a um só tempo destrói e preserva a cidade romana,
já que, como revelaram as numerosas escavações a partir do século 18, suas
formas no momento da catástrofe mantiveram-se conservadas ao longo de quase
dois mil anos. O congelamento do instante provocado pelas cinzas do Vesúvio é
comparável ao processo fotográfico. Essa semelhança leva Victor Burgin a criar um
formidável neologismo: Pompeia constituiria hoje um reservatório de “imagens
catastrográficas”, e as fotografias de Pompeia, por sua vez, seriam duplamente
“catastrográficas”, enquanto “impressão de uma impressão, índice de um índice”
(2006, p. 79).
Victor Burginanalisa fotografias de Pompeia feitas por Carlo Fratacci em 1864,
encontradas num álbum do século 19 pertencente ao acervo do Centro Canadense
de Arquitetura. Ele observa que as colunas da Basílica que vemos na imagem não
364
haviam sido abaladas pela erupção vulcânica, mas por um terremoto ocorrido uma
década antes dela. Na verdade, se essas colunas aparecem incompletas na foto, é
porque estavam em construção. Assim, a imagem feita por Carlo Fratacci expressa
tanto o congelamento de um instante quanto a passagem do tempo (já no século 19,
escritores observavam que um crescente interesse turístico estava deteriorando a
cidade romana).
De fato, se as ruínas são praticamente onipresentes em Still Life, em
nenhuma hipótese elas oferecem um cenário fixo para que seus personagens
evoluam. Ao contrário, as ruínas estão permanentemente em movimento, atraindo o
olhar do espectador e fazendo com que a própria paisagem alcance o estatuto de
personagem, muitas vezes em detrimentodos personagens humanos. O filme
evidencia o processo de construção das ruínas e, por conseguinte, o gradual
desaparecimento de Fengjie. Ao se deter sobre a fabricação das ruínas, Jia Zhangke joga luz sobre seu movimento, indo no mesmo sentido de Victor Burgin. O
cineasta opera ainda um “deslocamento das ruínas”, ao valer-se de elementos de
uma iconologia oriunda principalmente do cinema europeu, mas também ligados ao
conjunto dos filmes de barragem e ao papel da ruína na arte chinesa. Isso se dá de
diferentes maneiras: podemosfalar de empréstimo, citação, contaminação da
memória ou, seguindo a proposta de Marie Martin, de “remake secreto” (2015). A
presença em Still Life de elementos oriundos de uma abrangente iconologia de
ruínas é o fio condutor desta comunicação.
Num primeiro momento, será necessário traçar um panorama dos filmes de
barragem e observar a posição que Still Life ocupa dentro dessa categoria. Em
seguida, a reflexão se concentrará sobre como o longa de Jia Zhang-ke se relaciona
com o que Wu Hung chama de “a resposta da arte chinesa à construção da
Barragem das Três Gargantas” (2008). Still Life dialoga diretamente com a obra de
artistas contemporâneos como Liu Xiaodong, Chen Qiulin e ZhuangHui, além de
questionar a evolução do motivo das ruínas no âmbito da arte chinesa,
principalmente a partir do século 19. Por outro lado, alguns filmes do cinema
europeu parecem ter exercido influência determinante na maneira como Jia Zhangke filma ruínas de Fengjie. É o caso de Alemanha, Ano Zero (Germania, anno zero,
Roberto Rossellini, 1947) e de O Deserto Vermelho (Il deserto rosso, Michelangelo
365
Antonioni, 1964). As consequências das ligações que Jia Zhang-ke estabelece com
esses dois filmes serão abordadas no último ponto desta comunicação.
Ao inserir Still Life num campo de forças em que atuam influências chinesas e
não chinesas, asiáticas e não asiáticas, esta comunicação privilegia a “circulação de
ideias”3 em detrimento da busca pelo que seria a “essência chinesa” ou “oriental” de
sua obra4 . O objetivo, por um lado, consiste em ressaltar como o filmecombina
influências de épocas e geografias distintas. Still Life é evidentemente fruto da
cinefilia de seu realizador, de fato um profundo conhecedor da história do cinema
chinês e de Hong Kong, mas também um admirador do cinema europeu. Se são
explícitas suas referências a John Woo, o impacto de Antonioni e de Rossellini na
maneira como Jia Zhang-ke traz à tona a problemática das ruínas é fundamental.
Por outro lado, sabemos que não há um bloco coerente que possa ser chamado de
“cinema oriental” ou “cinema asiático”, terminologia que, seguindo a linha de
raciocínio proposta por Edward Said, informaria mais sobre quem os emprega do
que sobreo objeto de estudo. Leitor de Foucault, Edward Said descreve essa
dinâmica de modo a ressaltar as relações de poder e os esforços de dominação
envolvidos no orientalismo (2003), concentrado que estava no modo como os
Estados Unidos, a Grã Bretanha e a França passaram a se interessar pela cultura
oriental no século 19, analisando principalmenteas representações do islã e da
cultura árabe. Olhar para o que seria o cinema oriental a partir de um país como o
Brasil consiste em um exercício diferente: do ponto de vista europeu, as populações,
as artes e as produções intelectuais da América Latina seriam “não ocidentais”, sem,
no entanto, poderem ser chamadas de “orientais”5.
Publicado originalmente nos Estados Unidos em 1978, O Orientalismo de
Edward Said ganhou traduções em diversas línguas, do francês ao sueco, do
japonês ao árabe, tendo sido editado também em português (pela primeira vez em
1990). Polêmica e provocadora, a obra deu origem a muitos debates. Num posfácio
escrito em 1994, Said havia profetizado que essa divisão do mundo cairia em
desuso, por não corresponder “a nenhuma realidade estável baseada em um fato
natural” e sim a uma “ficção geográfica” (2003). Mais de três décadas depois da
publicação original, e contrariando o desejo do autor, os problemas que ele
apresentou mantêm-se atuais. Gestos “orientalistas” seguem sendo praticados,
366
ainda que sob novas roupagens. Os termos “Ocidente” e “Oriente” continuam fortes,
seja na política, na economia e na diplomacia, seja na universidade.
Os desdobramentos dotrabalho de Said extrapolam sua área de interesse
imediata, ou seja, frutificaram fora das fronteiras do mundo árabe. Destacam-se
nomeadamente os estudos realizados em países do chamado “extremo Oriente”,
principalmente na Índia, mas também na China. Talvez o crescimento econômico,
político e militar da China contemporânea a façam disputar com o Oriente Médio o
lugar de “grande outro” dos Estados Unidos e da Europa, de maneira que a atual
retomada de interesse pela sinologia dentro dos estudos orientais e dos estudos
culturais pode, sim, relacionar-se a um desejo de domínio parecido com o que
descreve Said em seu livro. À exemplo do que faz Benedict Anderson em seu
estudo sobre os movimentos de independência nas Filipinas (2009), ArifDirlik
consegue escapar da dicotomia entre dominante e dominado para colocar o foco na
circulação de ideias e pessoas (1996). Ele se apoia no conceito de “zonas de
contato”, regiões fronteiriças em que ocidentais e orientais se encontram, de acordo
com o pensamento de Mary Louis Pratt (1992)6. Segundo Dirlik, o orientalismo do
século 19, pelo qual se interessa Said, foi um produto da circulação de intelectuais
euro-americanos e asiáticos nessas chamadas “zonas de contato” (1996).
Extrapolando o pensamento de Pratt e Dirlik, poderíamos dizer que o cinema,
sobretudo no caso de Jia Zhang-ke, seria uma grande zona de contado, já que é por
meio dele que diferentes culturas são postas em contato.
A breve incursão que acabo de fazer por questões relacionadas à ideia de
“orientalismo” é um contra-campo necessário à análise intertextual de Still Life, que
desenvolvo nos três pontos a seguir, dentro de uma teia de relações que não
obedece aos limites do que seria o mundo oriental.
“Filmes de barragem”
Quando, no início de Still Life, Sanming chega ao endereço que sua exmulher lhe havia dado no passado e descobre que a casa se encontra debaixo
d’água – uma consequência da primeira etapa das inundações provocadas pela
Barragem das Três Gargantas, como explica o jovem motorista do moto-táxi que o
367
conduz-Jia Zhang-ke deixa claro que seu filme se funda no embate entre o que seria
uma necessidade coletiva de modernização e o impacto negativo que ela exerce
sobre a vida do indivíduo comum, a brava gente do Shanxi7. Antes de Still Life,
outros “filmes de barragem” foram realizados com base na atenção sobre as perdas
humanas e os deslocamentos populacionais implicados nessas grandes obras de
construção civil, alguns deles combinando, como Still Life, um roteiro ficcional (os
graus de elaboração preliminar são variáveis) e filmagens diretas do real (seja das
barragens em construção, seja da paisagem urbana em transformação).
Embora barragens para fins de irrigação e de controle de enchentes tenham
existido desde a Antiguidade, é na modernidade que diversos países se lançam em
construções de grande porte; no século 19, as barragenspassam a inserir-se em
projetos maiores, com função de acumular água para a criação de usinas
hidrelétricas. Como proezas da engenharia moderna e mesmo como atração
turística, as barragens logo despertam a atenção do cinema: em 1897, Alexandre
Promio filma a barragem do Delta do Nilo8, a noroeste do Cairo, para o catálogo de
imagens do mundo dos irmãos Lumière (filme nº 378). É o primeiro “filme de
barragem” de que se tem notícia. Cinema e barragem seguiram se encontrando
pelas décadas subsequentes, em cinejornais, curtas-metragens, longas-metragens
de ficção, documentários, filmes experimentais e, mais recentemente, em vídeos de
artista, web documentários e produções independentes. Ainda que o entusiasmo
inicial do cinema pela construção de barragens se verifique em alguns filmes
posteriores 9 , logo a melancolia passa a prevalecer na maneira como o cinema
olhapara as barragens10.
Antes de Still Life, portanto, o cruzamento entre um roteiro ficcional e a
construção de uma barragem real já havia se produzido. Tanto o primeiro filme
sonoro de Aleksander Dovjenko (Ivan, 1932) quanto seu último filme (Poema do
Mar/Poema o more, 1958, rodado e montado por sua mulher, YouliaSolntseva,
depois da morte do cineasta, com base no roteiro e na decupagem que ele havia
elaborado) estão ligados à construção de barragens. No primeiro, o personagemtítulo é um camponês que vai trabalhar nas obras da Dnieprostroi, barragem sobre o
Dniepr, na Ucrânia. Embora o cineasta dê destaque à monumentalidade da
construção, a ambiguidade do roteiro não agradou o regime soviético: nem todos os
368
trabalhadores demonstram o mesmo comprometimento de Ivan, funcionário-modelo,
e o filme inclui até mesmo uma sequência sobre operários mortos no canteiro de
obras. Já o foco Poema do mar é a destruição da cidade de Kakhovka: os
moradores desmontam suas casas para transferi-las para a zona elevada ocupada
pela “Nova Kakhovka”, ao abrigo da inundação que se prepara. É com sofrimento
que os habitantes aceitam a ideia de ver o Dniepr se transformar em mar e o
desaparecimento dos cenários de suas memórias – não apenas as pessoais, mas
também as históricas, já que a região, ocupada no passado pelos cossacos
zapórogos, foi palco de importantes batalhas ao longo de sua história11.
Roberto Rossellini filma a construção da Barragem de Hirakud durante seu
“exílio” indiano 12 . O segundo dos quatro episódios que compõem o longa Índia
(India: MatriBhumi, 1959) foi escrito depois de o cineasta presenciar a inauguração
da obra, à convite do primeiro ministro JawahrlalNehru13. Índia combina imagens
filmadas à maneira de um travelogue com sequências ficcionais, interpretadas por
atores não profissionais. No episódio da barragem, o protagonista é Chakravati,
jovem trabalhador migrante que, depois de concluir a construção da obra, deve
buscar emprego noutro lugar. A narração em off do filme explica que o objetivo de
Hirakud era controlar o rio Mahanabi, causa de enchentes terríveis durante as
monções, a sua necessidade de tal obra jamais é questionada. Há, porém, um olhar
melancólico, não só pela partida involuntária de Chakravati e sua família, mas
também pela lembrança dos operários mortos durante a construção e pelo
desaparecimento iminente do lago onde o personagem fazia seus banhos rituais, da
paisagem que vira seu filho nascer.
No cinema brasileiro, talvez o filme que mais se aproxime do espírito de Still
Life seja Gititana (1975), de Jorge Bodansky e Orlando Senna, que contém imagens
do canteiro de obras da Barragem de Sobradinho sobre o rio São Francisco. No
longa, a dupla tenta repetir a combinação entre roteiro ficcional, atores não
profissionais e tomadas diretas do real, usada pelos dois cineastas um ano antes,
em Iracema (1974). As discussões na assembleia de trabalhadores migrantes e a
atualização das figuras do cangaço, como Maria Bonita (Conceição Senna), colocam
as lutas camponesas no centro da discussão sobre a barragem, problematizando o
369
tema da modernização do Nordeste.
Still Life narra a história de Sanming e de Shen Hong, um homem e uma
mulher que chegam à região das Três Gargantas em busca dos cônjuges, de quem
estavam separados havia tempos. Enquanto não encontra a ex-mulher, Sanming
(HanSanming) trabalha como demolidor e se hospeda numa pensão que vive seus
estertores: o nível que a água atingirá na próxima etapa da inundação está
assinalado em vermelho na parede, indicando que o lugar será demolido em breve.
Como o marido de Shen Hong (Zhao Tao) não dá notícias há meses, ela o procura
em seu antigo emprego, descobre que ele vive com uma rica amante e que tem um
cargo importante – a seu pedido, a ponte de Wushan se ilumina. Desde o início, o
filme explicita que a paisagem é muito mais do que um décor: a ponte de Wushan14,
o tecido urbano de Fengjie, o rio Yangtzée o relevo escarpado de suas margens se
apresentam como organismos vivos em franca transformação. Ao dar a esses
lugares uma imagem a um só tempo monumental e fugidia, o filme faz com que o
espectador viva diretamente a experiência de aparecimento e desaparecimento,
como se pudesse partilhar da frágil situação dos personagens, que precisam evoluir
sobre um terreno absolutamente instável.
No filme de Jia Zhang-ke, as fontes de tensão são semelhantes às de Ivan,
Poema do Mar, Índia e Gitirana: experiências de deslocamento dos personagens, do
contraste entre a fragilidade da condição individual diante da monumentalidade da
barragem e das necessidades do progresso; da construção da imagem de lugares
cujo desaparecimento está em curso. O olhar melancólico de Sanming e de Shen
Hong atualiza Ivan, Chakravati e mesmo a Maria Bonita de Conceição Senna. Mas
não basta assinalar as semelhanças: Still Life tem a particularidade de praticamente
não mostrar a barragem em si, e de deixar ver apenas parcialmente a paisagem que
imortaliza, num gesto que alguns pesquisadores consideram como baziniano (LI,
2008: 78-79).No filme chinês, o relevo das margens está sempre encoberto por um
véu esbranquiçado, fruto do encontro entre a geografia local (clima úmido e luz
abundante) e as condições técnicas do filme (câmera digital usada por YuLikWai,
acentuação da sensação de invisibilidade pela aplicação de filtros na pós-produção).
370
Ruínas na arte chinesa
Jia Zhang-ke decide realizar Still Life quando chega à região das Três
Gargantas para o documentário Dong (2006), retrato filmado do pintor chinês Liu
Xiaodong. Liu Xiaodong pintava desde 2003 os trabalhadores envolvidos na
construção da barragem, reunidos em Great Displaced People of the Three Gorges
(2002) e Great Migration at the Three Gorges (2003). Em Dong, Jia acompanha o
momento em que o artista pintava Hotbed (2005), obra composta de cinco painéis,
totalizando 9 metros de comprimento, produzido sin situ. Still Life e Dong foram
gravados quase simultaneamente, compartilhando não apenas a mesma paisagem,
mas também algumas imagens. HanSanming, ator não profissional convocado por
Jia Zhang-ke para protagonizar Still Life, chega a aparecer numa das pinturas de Liu
Xiaodong.
Assim como Liu Xiaodong, outros artistas chineses contemporâneos
estabeleceram em seus trabalhos relações profundas com as transformações da
região das Três Gargantas, lugar mítico descrito pela poesia e pela pintura da
Dinastia Tang. Em 2008, o historiador da arte chinês Wu Hung realizou em Chicago
a exposição Displacement, reunindo obras ligadas à construção da barragem,
realizadas por quatro artistas contemporâneos – além de Liu Xiaodong, Chen Qiulin,
Yun-Fei Ji e ZhuangHui. Autor de uma série de trabalhos sobre a representação das
ruínas na China, Wu Hung estava em uma posição privilegiada para entender o que
significava a destruição no sítio das Três Gargantas (1998 e 2012).
Enquanto na Europa ruínas são representadas pelo menos desde a Idade
Média ea partir do século 16 passam a enfeitar jardins, na arte tradicional chinesa
elas constituem um motivo praticamente inexistente. “Havia um tabu na China prémoderna contra a preservação e a representação de ruínas: embora se
lamentassem cidades abandonadas ou palácios desmoronados em palavras, pintar
a imagem delas traria má-sorte e perigo” (WU, 1998, p. 60). O encontro da China
com o culto europeu das ruínas fez com que suas imagens passem a aparecer na
arte e na arquitetura chinesas, mas evocando calamidades enfrentadas pela nação.
“As imagens de ruínas foram legitimadas; mas o que as fez ‘modernas’ (ou seja, o
que as distinguia da poesia clássica chinesa de ruínas) era a ênfase no presente, o
371
fascínio pela violência e pela destruição, a encarnação de um olhar crítico e a
circulação massiva” (WU, 1998, p.60).
Originária da região do Sichuan, onde a barragem se localiza, Chen Qiulin viu
a casa onde passou sua infância ser destruída e sua cidade natal, inundada. Seus
vídeos Rhapsody on Farewell (2002) e River, River (2005) resultam de performances
em que atores fantasiados que remetem a personagens de óperas ou da literatura
passam pelos escombros de Chongqing. De ZhuangHui, Displacement apresentava
a instalação fotográfica Longitude 109.88ºE and Latitude 31.09ºN (1995-2008),
composta de trinta fotografias em preto e branco. As imagens retratam buracos que
ZhuangHui vinha construindo na área próxima à represa e que, depois de seu
enchimento, tornaram-se invisíveis. Alguns dos problemas de Still Life aparecem de
forma fundamental na obra de Chen Qiulin e na de ZhuangHui. Como Jia Zhang-ke,
Chen Qiulin faz com que seus personagens evoluam sobre um terreno instável,
cheio de escombros; o encontro do roteiro ficcional com o cenário real gera tensão,
ainda mais porque, estranhamente, um parece ignorar o outro.
Quanto à relação de Still Life com o trabalho de ZhuangHui, pode-se dizer
que ambos exploram a tênue linha que separa o visível do invisível. As centenas de
buracos que ele faz em lugares próximos às Três Gargantas constituiriam, como a
Spiral Jet (1970) de Robert Smithson, uma obra de land-art. Mas embora seja uma
intervenção na paisagem de grandes proporções e de duração permanente, a obra
de ZhuangHui está condenada à invisibilidade: ficam debaixo d’água, de modo que
suas fotografias funcionam como obra em si, para além do simples registro. Jia
Zhang-ke, ao filmar a paisagem da região das Três Gargantas, confere-lhe
visibilidade ao mesmo tempo em que a esconde sob o véu que separa
constantemente o homem da paisagem, uma relação entre figura e fundo sempre
mediada pelo ar esbranquiçado, atmosfera opaca.
No filme de Jia Zhang-ke, Sanming se aproxima de Mark, um garoto
descolado, já na chegada a Fengjie – o garoto é o motorista que conduz o forasteiro
até o endereço da ex-mulher e depois à pensão onde se hospeda, antes de, por fim,
encontrar-lhe trabalho nas demolições. Em determinado momento, Mark vê a icônica
cena de Um melhor amanhã (Mujeogjia, 1986) em que ChowYun-fat acende o
372
cigarro com uma nota de 100 dólares. Mais tarde, ele acende seu próprio cigarro
com um pedaço de papel em chamas, numa clara imitação do ator. O filme de John
Woo foi lançado em Hong Kong em 1986, ano em que o movimento Xiamen Dada,
ou dadaístas do Xiamen, emerge em Pequim. Huang YongPinge seus colegas
queimaram suas obras ao final da primeira exibição do grupo, um gesto sem dúvida
inspirado pelo niilismo dadaísta, mas que relembra, sobretudo a queima de livros
durante a Revolução Cultural. Wu Hung insere o Xiamen Dada dentro de uma
dinâmica mais ampla, ocorrida ao longo dos anos 1980, de posicionamento crítico
diante da Revolução Cultural, de que participa também Wu ShanZhuan. A arte
chinesa estava se afastando da concepção tradicional das ruínas e passando a
relacioná-las mais diretamente ao presente. Ao tomar emprestado essa cena do
filme de John Woo, Jia Zhang-ke resgata o clima incendiário da época. Still Life fará
referência a ruínas do passado para propor uma visão do presente.
As ruínas da paisagem, em Berlim, Ravenna e Fengjie
Sabemos que a existência da paisagem depende do ato de olhar e que, no
cinema, apesar da realidade do objeto pró-fílmico, não há paisagem “em si”, apenas
paisagem filmada. Em Still Life, Sanming e Shen Hong fazem pausas em seus
percursos para contemplar a paisagem em pelo menos cinco situações. O esquema
se repete: o personagem aparece em primeiro plano, de costas; ao fundo, vê-se, em
alguns os casos, o relevo das margens do Yangtzé e, noutros, a ruína de prédios de
Fengjie. Essas cenas revelam de maneira particularmente explícita a problemática
relação que o filme constrói entre personagem e paisagem. Ao conferir densidade ao
que está entre um e outro – a atmosfera translúcida tem aparência esbranquiçada –,
Jia Zhang-ke evidencia sua separação.
O cinema de Rossellini e o de Antonionisão emblemáticos desse tipo de
relação conflituosa entre personagem e paisagem. Tanto na trilogia da guerra (Roma,
cidade aberta [Roma, città aperta, 1945], Paisà [1946], e Alemanha, Ano Zero),
quanto em alguns dos filmes que vieram em seguida (como Stromboli [1950] e
Europa ’51 [1952]), Rossellini coloca seus personagens em ambientes de profundo
desconforto. Ninguém se sente “em casa”: vive-se em vigília permanente, ou então,
373
como é o caso em Alemanha, Ano Zero, em meio às ruínas da guerra, que
constituem não apenas uma triste memória, mas um solo hostil para a construção de
qualquer presente. Da mesma forma, nos filmes de Antonioni o desconforto dos
personagens se dá tanto em ambientes externos quanto em interiores.
A paisagem se torna um personagem por si só, um verdadeiro interlocutor e
às vezes um antagonista implacável com relação aos protagonistas; não se
trata mais de um espelho da alma, nem de lugar da ação mas, ao contrário,
de algo estranho à ação, de um lugar vasto e opaco em que os personagem
correm o risco de se perder. (BERNARDI, 2006, p. 15; minha tradução)
Este terceiro e último ponto de minha comunicação se concentra sobre as
relações de intertextualidade que Still Life estabelece com dois filmes de
realizadores italianos do pós-Segunda Guerra Mundial: Roberto Rossellini e
Michelangelo Antonioni. Analiso, mais especificamente, como a relação entre
personagem e paisagem que se estabelece no filme de Jia Zhang-ke faz eco a
elementos de Alemanha, Ano Zero e O Deserto Vermelho. Detenho-meem algumas
sequências de Still Life, que encaro como “remakes” de sequências dos dois filmes
europeus. Primeiramente, a abertura do longa de Jia Zhang-ke será vista como uma
releitura de O Deserto Vermelho. Em seguida, a cena da implosão e o final de Still
Life serão trabalhados à luz de Alemanha, Ano Zero.
A sequência de abertura de Still Life compõe-se de dez planos, rodados a
bordo de um barco que conduz Sanming ao porto de Chongqing. Os três planos
iniciais – três travellings – têm foco oscilante. O primeiro deles começa com a
imagem fora de focodos corpos dos passageiros do barco, encontra a nitidez ao
aproximar-se de alguns deles, como a garota que olha para a objetiva, e então
desfoca novamente. O segundo plano inverte o esquema, começando com foco no
passageiro que acende seu cigarro para, ao acompanhar a fumaça do tabaco
queimado, perder a nitidez. No terceiro, o travelling conduz do desfocado para o
nítido. A essa tensão entre o desfocado e o nítido, soma-se uma outra, que
concerne a relação entre o interior do barco e o exterior de paisagem, e a diferença
de luminosidade entre um e outro. O relevo escarpado que o Yangtzé encontra na
região das Três Gargantas aparece sempre encoberto, já que a bruma característica
da região é reforçada pela superexposição.
O Deserto Vermelho também se inicia com um plano fora de foco. Um
374
travelling conduz o espectador da imagem inicial de algumas árvores de reduzida
folhagem à silhueta das chaminés de uma fábrica, vistas com pouca nitidez. Embora
os planos de Jia sejam mais longos que os de Antonioni, a maneira como os créditos
de Still Life são inseridos sobre imagens pouco nítidas deixando ver (e escondendo)
a paisagem portuária parece citar o realizador italiano. Assim, quando um engolidor
de fogo faz seu número no deque, sua presença ali surpreende menos o ritmo das
chamas: ele parece reproduzir o fogo que as chaminés da indústriaitaliana ostentam
apesar da greve. É possível ainda aproximar os megafones dos grevistas dos
autofalantes do barco, que anunciam a chegada à Chongqing, ponto em que as
brumas da Emília Romana15 encontramseu paralelo chinês. Tanto dentro do barco
quanto fora da usina, as falas dos passageiros/trabalhadores que não alcançarão o
status de personagem tratam de dinheiro: “É preciso ter dólares no bolso para
navegar sobre as águas”, diz o mestre de cerimônias do espetáculo a bordo a que
Sanming assiste sem ter como pagar. No show, um dos números de magia é a
transformação de notas de yuan em dólares. O espetáculo coletivo a que Giuliana
(Monica Vitti) assiste é o da greve; ela oferece dinheiro em troca do sanduíche que
um dos sindicalistas come.
Figura 1: fotogramas da abertura de Still Life (planos de 1 a 9), em que se estabelece um jogo entre a
nitidez e o fora de foco
375
Figura 2: fotogramas do início de O Deserto Vermelho (planos de 1 a 23), com uma série de imagens
fora de foco
Se a citação mais forte de O Deserto Vermelho se concentra nesse início de
Still Life, ao longo do filme outros elementos lembrarão a Ravenna de Antonioni e o
principal deles talvez esteja na sensação de não pertencimento.
José Moure considera o desconforto com o ambiente como sendo um traço
geral do cinema de Antonioni: na maior parte dos interiores que ele filma, destacamse a ausência, a não ocupação, a impressão de vazio (2001, p. 14). Mas o não
pertencimento se dá também na maneira como é criada a relação do personagem
com a paisagem exterior, principalmente da área industrial. Assim como a usina
italiana, praticamente vazia por causa da greve, a usina que Jia Zhang-ke filma é um
monumento assombrado há um tempo que passou: ela tem a cor avermelhada da
ferrugem (ferrugem que dialoga com A Oeste dos trilhos [Tiexiqu, 2003] de Wang
Bing) e parece sem sentido em comparação com a escala humana. O olhar para as
zonas industriais como se fossem desertos metropolitanos aparece em outros filmes
de Antonioni; como afirma José Moure, as lentes do realizador transformam as
usinas em “mutantes fantasmagóricos”. Antonioni filma lugares de trabalho em
circunstâncias de suspensão da atividade. Suas paisagens são, nas palavras de
José Moure,
um deserto de fim de mundo, onde o vazio aparece como resultado de uma
sedimentação industrial e de uma proliferação gangrenada que acabou por
asfixiar qualquer forma de vida, impossibilitando qualquer presença e
condenando os personagens a sonharem com outros lugares. (MOURE,
2001, p. 32; minha tradução)
Na relação entre personagem e paisagem, é importante ressaltar diferenças
fundamentais entre O Deserto Vermelho e Still Life. Enquanto no primeiro a
376
hostilidade do ambiente é vivida de maneira dramática pela protagonista – Giuliana
aparece “constantemente agredida pela violência arquitetural do que lhe rodeia”
(MOURE, 2001, p. 15) –, no filme de Jia Zhang-ke o descolamento entre
personagem e paisagem é tão profundo que por vezes tem-se a sensação de que
são indiferentes. Esse descolamento, ou a inserção problemática do homem na
paisagem não serve de pretexto para explorar sua psicologia.
É no final de Still Life que a proximidade com Alemanha, Ano Zero se acentua.
Sanming está ao lado da ex-mulher, dentro de um prédio parcialmente demolido, de
onde ambos observam uma paisagem de edifícios que parecem condenados a ruir.
Eles observam, de fato, a implosão de um deles. O enquadramento é construído de
modo o que resta da parede emoldura os dois personagens. Anteriormente no filme,
mulheres de uma casa de prostituição haviam sido filmadas em um enquadramento
parecido. A moldura de destruição lembra a incursão do pequeno Edmund pelo
edifício bombardeado em frente ao apartamento de sua família, em Alemanha, Ano
Zero, logo depois da morte de seu pai. Convém notar que, na cena de Still Life, as
paredes que restam são pintadas de verde à meia altura, costume na China
comunista – Jia gosta de dizer que, como foi uma criança pequena, enxergava em
sua infância sobretudo essa faixa verde, o que explica sua nostalgia para com essa
cor (ANDREW, 2009).
Figura 3: imagens da sequência final de Alemanha, Ano Zero. As ruínas emolduram o personagem
377
Figura 4: personagens e molduras de ruínas em Still Life
A memória de Alemanha, Ano Zero acentua a fragilidade da condição dos
personagens de Still Life, sem que para isso Jia Zhang-ke tenha que fazê-los viver
cenas efetivamente dramáticas. Uma catástrofe é por definição um acontecimento
singular e por essa razão não se pode estabelecer equivalências entre catástrofes
(NANCY, 2012). O bombardeamento de Berlim no contexto da Segunda Guerra
Mundial é em todos os sentidos extremamente distante da inundação de Fengjie por
causa da construção da barragem das Três Gargantas. No entanto, ao resgatar a
memória do filme de Rossellini, ao retomar a iconologia de ruínas que o cinema pósSegunda Guerra Mundial constrói, é como se Jia Zhang-ke afirmasse que, do ponto
de vista do indivíduo, afrágil condição é parecida.
Jia Zhang-ke conclui seu mais recente longa-metragem, A Touchofsin (2013)
com a cena de um rapaz que, encurralado por uma série de situações que não
consegue resolver, se joga de um edifício. Retoma, assim, o final de Alemanha, Ano
Zero. No plano final do filme de 2006, um equilibrista é visto em contra-plongée ao
caminhar sobre um fio que liga duas construções. A iminência da queda já estava
desenhada ali.
Conclusão
Ao longo desta comunicação, colocamos em evidência algumas das relações
intertextuais que Still Life estabelece: em primeiro lugar com filmes e obras de arte
ligados à construção de barragens e, mais especificamente, à Barragem das Três
Gargantas; em segundo lugar, com filmes fundamentais para uma iconologia
cinematográfica de ruínas. Observamos como, na arte chinesa, o motivo das ruínas
378
é trabalhado visualmente com base em influências externas, principalmente
europeias. Ao inscrever duplamente seu filme numa tradição pictórica chinesa e na
cinefilia mundial, Jia Zhang-ke atualiza a questão da representação de ruínas no
contexto chinês, apontando para problemas no presente. O cineasta contamina a
imagem da construção da China do futuro de uma memória catastrófica do passado,
dando uma configura atual e assustadora à alegoria do “Anjo da História”, formulada
por Walter Benjamin a partir da famosa aquarela de Paul Klee. A história, sobretudo
aquela vivida por indivíduos comuns, não é outra coisa senão uma sequência
interminável de catástrofes.
Notas
1
A barragem das Três Gargantas foi erguida em quatro fases, entre 1994 e 2007. Entre 1997 e 2003, o
nível da água atingiu 135 metros e cerca de 150 mil pessoas foram deslocadas. Entre 2005 e 2007, a água
atingiu 156 metros.
2
O cineasta chinês Jia Zhang-ke decide realizar o longa-metragem de ficção Still Life em meio às
gravações do documentário Dong (2006), dedicado ao pintor chinês Liu Xiaodong. Liu Xiaodong começou a
pintar as Três Gargantas em 2003. Dong acompanha o momento em que o artista trabalhava na pintura Hotbed
(2005), composta de cinco painéis. Com 9 metros de comprimento e produzida in situ, a pintura retrata migrantes
quetrabalhavam na demolição da cidade de Fengjie, que seria inundada pelas águas da represa. Liu Xiaodong
havia realizado duas outras grandes pinturas da região das Três Gargantas: Great Displaced People of the Three
Gorges (2002) e Great Migrationat the Three Gorges (2003) (WU, 2008, p. 131-135).
3
O historiador Benedict Anderson está entre os que se interessam pela questão da circulação das
ideias, pelas dinâmicas que se estabelecem entre países e continentes (ANDERSON, 2005 e 2008).
4
Seria possível analisar Stil Life à luz da poesia da Dinastia Tang (618-907) e principalmente de certos
poemas de Li Bai, que passou pela região das Três Gargantas. Still Life também se inspira na pintura chinesa
em rolos. Além disso, a relação que o filme estabelece entre luz e sombra, claro e escuro, cheio e vazio, deve
muito à filosofia chinesa. Outros filmes de Jia, como The World (Shijie, 2004), foram analisados à luz de estudos
sobre a arte e arquitetura chinesa (MELLO, 2013).
5
No dicionário de francês Le Petit Robert, a acepção política da palavra “Ocidental” se refere ao “Oeste
da Europa e aos Estados Unidos e, de maneira mais geral, aos membros da Organização do Tratado do
Atlântico do Norte (Otan)”. Países da América Latina são considerados “não ocidentais”. Em inglês, a definição
de “West” remete a países que não tiveram regimes comunistas.
6
Pratt define assim as “zonas de contato”: “the space of colonial encounters, the space in which peoples
geographically and historically separated come into contact with each other and establish ongoing relations,
usually involving conditions of coercion, radical inequality, and intractable conflict” (PRATT, 1992, p. 6).
7
Shanxi é uma região da China e, no filme, Sanming é originário de lá. “Numa época em que o ouro é
idolatrado, eu gostaria de saber quem ainda se interessa pela ‘brava gente’”, afirma Jia Zhang-ke, na pré-estreia
de Still Life, em 2006. Ele fazia sutilmente um contraponto entre seu filme, focado sobre o indivíduo comum, e A
Cidade Proibida (2006), de Zhang Yimou, longa de orçamento milionário que entrava em cartaz ao mesmo tempo,
ocupando um número muito maior de salas (JIA, 2012).
8
A construção havia sido concluída três anos antes. (BROWN, 1896).
9
Podem ser citados Opération béton (1955), de Jean-Luc Godard, e Filme-ensaio sobre a barragem do
Eufrates (Film-Mohawalaan Sad Al Forat, 1969), de Omar Amiralay, embora no primeiro exemplo o tom do
comentário soe irônico e, no segundo, o realizador tenha reconsiderado sua posição no filme sobre o mesmo
tema que realizou em seguida.
10
É o caso, como veremos, dos filmes de Dovjenko, Rossellini, Bodansky, e também de longas que não
serão mencionados neste artigo, como Sumidouro (2006-2008), de Cris Azzi, Wild River (1960), de Elia Kazan, e
muitos outros. Não abordo aqui a relação que filmes hollywoodianos como Chinatown (Roman Polanski, 1974) e
O Fugitivo (The Fugitive, Andrew Davis, 1993) mantêm com as barragens norte-americanas. Esse assunto foi
tratado em minha tese de doutorado (RAMOS MONTEIRO, L., L’imminence de lacatastropheaucinéma. Films de
barrage, filmssismiques, Universidade de São Paulo e Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3, 2014).
11
Para mais informações sobre Ivan e suas relações com a história da Rússia e da Ucrânia, ver
SCHNITZER, L. e J., 1966, p. 82-91.
379
12
Rossellini havia se separado de Ingrid Bergman e sua relação com os produtores europeus também
se deteriorara. Para Adriano Aprà, assim como Renoir, Rossellini vai à Índia “porque estava cansado do cinema
ocidental” (APRÀ, 2006, p. 198).
13
Nehru fora apresentado a Rossellini por intermédio de Jean Renoir, que havia filmado Le Fleuve
(1951) ali (ROSSELLINI, 1987).
14
A sequência em que a ponte se ilumina para atender aos caprichos de alguns dirigentes pode ser
vista como uma ironia, lembrando, nesse sentido, o comentário em off de OpérationBéton, em que Godard
parece estar maravilhado com a grandeza da Barragem da Grande-Dixence.
15
Antes de O Deserto Vermelho, Antonioni havia filmado a região enevoada do vale do Pó (Gente delPo,
1947), filme que também poderia ser comparado a Still Life: o filme se inicia a bordo de um barco, de onde se
avista a margem sob espessa bruma.Como no filme de Jia Zhang-ke, os sinais sonoros dos barcos acompanham
permanentemente Gente delPo.
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Lúcia Ramos Monteiro
Doutora em ciências da comunicação e em estudos cinematográficos e audiovisuais pela
Universidade de São Paulo e pela Universidade Sorbonne Nouvelle-Paris três, é autora de
artigos sobre a relação entre o cinema e a arte contemporânea, a representação da
catástrofe no cinema e o nascimento do cinema moçambicano. Ela foi professora do curso
de cinema da Universidade Sorbonne Nouvelle-Paris 3 e integra desde 2008 o coletivo LE
SILO.
381
DIFERENTES FACES DA ARTE NOS FILMES DE TAKESHI KITANO
Gustavo Henrique Lima Ferreira - UFT
RESUMO: O objetivo desse trabalho é apresentar e discutir questões em torno de parte
significativa da obra do cineasta Takeshi Kitano, com ênfase na versatilidade de sua
abordagem e destacando a relação autobiográfica e multifacetada de seu trabalho, como
plataforma de uma reflexão sobre o diálogo do cinema com diferentes áreas, dentre elas o
teatro, as artes plásticas e a televisão. Nesse sentido, a escolha dos filmes leva em
consideração tanto uma unidade artística, como também uma unidade temporal,
abrangendo os filmes dirigidos por Kitano no Japão, entre final dos anos 1990 e começo dos
anos 2000. Essa sequência possibilita uma discussão em torno da relação autobiográfica
que se desdobra de diferentes formas ao longo de cada filme. Ao abordar questões como a
relação autobiográfica e a construção multifacetada, ligando o cinema com outras áreas,
este trabalho visa a ampliar não apenas a reflexão sobre a obra deste artista, como sobre
questões da construção cinematográfica em si, discutindo diferentes aspectos em especial a
relação cinema e arte, através das artes plásticas, da televisão e do teatro.
Palavras-chave: Takeshi Kitano, Cinema japonês, Artes cênicas, Artes plásticas.
ABSTRACT: The aim of this paper is to present and discuss issues surrounding a significant
part of the work of filmmaker Takeshi Kitano, with an emphasis on the versatility of his
approach and highlighting the autobiographical and multifaceted relationship of his work as a
reflection on the dialogue of the film platform different areas, among them the theater, the
visual arts and the television. In this sense, the choice of films takes into account both an
artistic unity, as well as a temporal unit, covering films directed by Kitano in Japan between
the late 1990s and the early 2000s. This sequence allows a discussion through the
autobiographical relation that unfolds in different ways throughout each movie. By addressing
issues such as the autobiographical relation and the multifaceted construction, linking the
film with other areas, this project aims to expand this work not only to reflect on the work of
this artist, but on issues of cinematic construction itself, discussing different aspects and in
particular the relationship film and art, through visual arts, television and theater.
Keywords: Takeshi Kitano, Japanese Cinema, Scenic arts, Plastic arts.
Takeshi Kitano, nos anos 1970, resolveu seguir carreira fazendo comédia e,
na sua tentativa de conseguir se aproximar do meio artístico, aceitou trabalhar como
ascensorista em uma boate de strip-tease, onde um grupo de comediantes se
apresentava. Teve a chance de participar no lugar de um desses comediantes que
havia adoecido e, em pouco tempo, já havia se tornado conhecido nacionalmente,
ao juntar-se ao amigo Kiyoshi Kaneko, formando a dupla “Os Dois Beats”, Beat
Takeshi e Beat Kiyoshi. Os dois trabalharam juntos na televisão até os anos 80,
quando a dupla se desfaz. Nessa mesma década, Beat Takeshi começa a
382
apresentar seus próprios programas e a atuar em alguns filmes, interpretando papeis
dramáticos. No ano de 1989, ele é chamado para o papel principal de Sono otoko,
kyobo ni tsuki (Aquele homem, está sendo violento – tradução minha)1. Depois de
brigas internas, a produção fica sem diretor e Kitano se oferece para exercer a
função. Ele reescreve completamente o roteiro, transformando a história em um
drama sobre um policial violento e corrupto. O filme conseguiu sucesso no Japão,
lançando o artista em uma nova carreira. Em 1997, seu sétimo filme, Hana-bi, vence
o Leão de Ouro em Veneza, chamando atenção internacionalmente.
Hana-bi (1997) conta a história do detetive de polícia Nishi, interpretado pelo
próprio diretor, que, envolto pela crueza do mundo marginal do crime, precisa lidar
com a morte de sua filha, a doença terminal de sua esposa, Miyuki (Kayoko
Kishimoto) e a invalidez do detetive Horibe (Ren Ohsugi), um de seus melhores
amigos, atingido enquanto o substituía numa tocaia. Nos créditos do filme, o diretor
se divide em duas figuras, usando Takeshi Kitano para assinar a direção, mas como
ator, mantém o nome Beat Takeshi. Essa separação das figuras Beat Takeshi e
Takeshi Kitano é um fator importante dentro desse contexto de transformação. Ao
atuar em seus filmes, coisa que faz constantemente, ele se apresenta nos créditos
como essas duas figuras diferentes, Beat Takeshi e Takeshi Kitano. Sua intenção,
porém, não é apagar dos filmes a sua relação com a televisão, mesmo porque ele
não renega o pseudônimo, mas é criar uma separação entre o espaço da direção e
da interpretação, usando a figura de Beat Takeshi como um meio de se projetar na
tela. “O que Kitano está fazendo aqui é fixar seu olhar na essência da questão. Ao
creditar Yanagi Yurei e os outros com seus nomes reais, Kitano os mantém como
objetos. Para objetificar a si mesmo, porém, ele precisa fazer de ‘Beat Takeshi’ um
objeto”. (ABE, 2005, p. 38 – tradução minha)2.
Kitano vai usar o espaço de seus filmes para trabalhar uma relação
autobiográfica, usando o cinema como um campo onde ele se permite vivenciar
experiências, tanto no sentido das experiências pessoais, vivências que são
trabalhadas, retrabalhadas, deslocadas para o filme, mas também no sentido das
experimentações, do confronto de referências, da apropriação de diversos
elementos que vão se juntar, se amalgamar, na construção do filme. De acordo com
Casio Abe, “os filmes de Kitano são organizados apenas de acordo com razões
383
pessoais a ele. Em outras palavras, Kitano começa a reconhecer o fato consumado
de um Beat Takeshi que surfa nas ondas da televisão. Para contra-atacar isso, ele
faz filmes”. (ABE, 2005, p. 37 – tradução minha)3.
O que torna essa variação de nome singular, portanto, é que ela não se opera
de fato como uma mudança, uma passagem de uma figura para a outra, já que o
suposto alter ego continua existindo, mas sim como um acréscimo de facetas,
usando os dois nomes artísticos, cada um com sua finalidade: além do ator e
apresentador Beat Takeshi, ele passa a se apresentar também como o diretor de
cinema Takeshi Kitano, distinguindo uma figura da outra. Em entrevista realizada
junto à promoção do filme Hana-bi, o próprio Kitano brinca com essa relação:
No Japão há o estranho hábito de alterar o nome dos atores, como no teatro
Kabuki. Digamos que são nomes artísticos. É como se eu manejasse dois
fantoches diferentes: um é Beat Takeshi e o outro é Kitano Takeshi. Recorro
a um ou a outro consoante ao momento. Manejo os dois fantoches de forma
muito consciente. Pergunto-me se não serei esquizofrênico. Mas os
verdadeiros esquizofrênicos não estão conscientes dessa manipulação.
(TAKESHI Kitano: Portrait d'une douce schizophrénie, 1999, 6’43’’-7’30’’)
Em Hana-bi, como destaca Maria Roberta Novielli, Kitano apresenta “uma
obra rica em acenos autobiográficos, oscilante entre a impiedosa hiperviolência
kitaniana e as nuanças mais delicadas do amor e da amizade” (NOVIELLI, 2007). A
relação com a pintura vai ser um elemento fundamental, presente através do
personagem Horibe, que se torna paraplégico após sobreviver a uma emboscada.
Não bastasse a relação pessoal entre os dois, Nishi carrega ainda a culpa de saber
que era ele quem deveria estar de tocaia, mas foi substituído por Horibe, para poder
visitar sua esposa no hospital. Para completar a situação, na tentativa de vingá-lo,
Nishi acaba vendo outro policial ser morto. Horibe é, portanto, um personagem
chave para a diegese do filme. Preso à cadeira de rodas, sem possibilidade de voltar
ao trabalho, ele vai encontrar na pintura uma forma de passar seus dias e lidar com
a realidade à sua volta. Nesse caso, a relação autobiográfica se dá pela própria
história recente de Kitano, que havia se envolvido em um grave acidente automotivo
que ameaçou sua integridade física e fez com ele permanecesse com parte do rosto
paralisado. Assim como o personagem de Hana-bi, Kitano começou a se dedicar à
pintura durante seu processo de recuperação.
Michel Temman - Por que você pinta? | Beat Takeshi Kitano – Eu tive um
sério acidente de moto, em 1994, e tive que cancelar tudo o que eu estava
384
fazendo na época, todo o meu trabalho na televisão e no cinema. Como eu
tinha sido forçado a parar tudo por muitos meses, enquanto eu estava me
recuperando, eu não tinha nada para fazer. Eu estava tão entediado que
passei a pintar para matar o tempo – assim como Horibe, o personagem em
4
Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 247-248).
As pinturas presentes no filme são exatamente as criadas pelo próprio Kitano,
que são apresentadas na esfera ficcional como pintadas por Horibe. Fica claro então
que a relação autobiográfica não se limita ao dualismo Beat Takeshi x Takeshi
Kitano, mas permeia toda a esfera da obra. As pinturas servem de interlúdio para
determinados momentos, participando da construção do filme, chegando ao ponto
em que ultrapassam o ambiente de Horibe, como quando, por exemplo, a tinta
vermelha jogada na tela, acaba por indicar o confronto sangrento vivido por Nishi.
Horibe e Miyuki apresentam também um contraponto, na relação com Nishi, entre
pureza e violência. Fora da força policial e buscando ajudá-los, Nishi se envolve com
a máfia e até mesmo rouba um banco. A crueldade desses atos do ex-policial,
porém, contrasta com a preocupação e até mesmo o carinho que ele demonstra,
enviando todo o material de pintura para Horibe e saindo em viagem com sua
esposa pelo país. Nesse sentido, as pinturas reforçam também a própria trajetória de
Nishi, entre a pureza de sua relação com a esposa e a brutalidade e violência dos
crimes que precisou cometer.
Se em 1997 as pinturas de Kitano fizeram o caminho de suas telas para o
filme Hana-bi, em 2010, depois de terem sido apresentadas ao público pelo filme,
parte dessas pinturas, mais especificamente os animais com rostos de flores,
ganharam três dimensões, produzidas para a exposição Gosse de Paintre, realizada
na Fundação Cartier, em Paris, sobre o trabalho de Kitano como artista plástico. Elas
tornaram-se estátuas, transformando-se efetivamente em vasos de flores, numa
referência já presente no filme: Horibe pinta os animais após observar as flores
numa floricultura por onde passa. No catálogo da exposição, o próprio Kitano fala
sobre sua forma de conceber a pintura desses animais e, depois, de transformá-los
em vasos.
Michel Temman - Trinta quadros estão expostos no subsolo, alguns são
mais antigos, outros mais recentes. As pinturas que vemos em seu filme
Hana-bi pretendiam originalmente ser vasos ... | Beat Takeshi Kitano - No
Japão ikebana é a arte de criar arranjos florais usando plantas, flores e
vasos. Há muitas maneiras diferentes de organizar as flores em ikebana, e
uma das técnicas mais populares é uma abordagem minimalista que usa
apenas uma flor e um simples vaso. Tenho certeza de que uma relação é
385
criada entre a flor e o vaso, mas, pessoalmente, eu sempre achei que esta
técnica fosse visualmente muito chata. Então eu pensei comigo mesmo:
"Por que não adotar essa abordagem minimalista, baseada em uma única
flor, e usá-la para criar um animal? Seu rosto seria a flor, e seu corpo seria o
vaso." E foi assim que um girassol tornou-se o rosto de um leão, outra flor, o
rosto de um pinguim. Este processo infantil de associação, de combinar
imagens, é o que deu origem ao conceito por trás dessas pinturas. (KITANO,
5
2010, p. 247).
!
Figura 1 – à esquerda, os pinguins e o leão em Ikebana, junto às pinturas, que aparecem no filme
Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 110-111, 113, 173 e 180). À direita, em dois momentos de Hana-bi
(13’05’’ e 1h33’), o Detetive Nishi com seu amigo Horibe e com sua esposa Miyuki.
Como visto em Hana-bi, Beat Takeshi vai servir como uma ferramenta para a
construção dos filmes e, nesse sentido, ele não é a única, nem necessariamente a
melhor opção, a melhor escolha para Takeshi Kitano construir-se na tela. Essa
questão vai se apresentar em outro filme de Kitano, Dolls (2002), e o próprio diretor
deixa clara essa relação quando questionado sobre sua não presença no filme.
Se eu atuo ou não em um de meus filmes depende basicamente da minha
condição física. Quando eu estou cansado eu não atuo em meus filmes.
Também, eu tenho de pensar sobre o equilíbrio no filme inteiro. Eu visualizo
as possíveis imagens do filme e se eu achar que eu, como protagonista,
consigo levar o filme do começo ao fim, então eu faço o papel. Mas se eu
achar que dificilmente vou caber no personagem, eu uso outro ator.
6
(KITANO, 2002 – tradução minha) .
Dolls é dividido em três histórias, que versam sobre três casais diferentes.
Para facilitar a compreensão durante a abordagem dessas histórias, elas serão aqui
classificadas de acordo com a sua ordem de aparição inicial. Será considerado como
primeira, portanto, a história que apresenta o casal Matsumoto (Hidetoshi Nishijima)
e Sawako (Miho Kanno) como os “mendigos acorrentados”. A segunda história será
386
a de Hiro (Tatsuya Mihashi) e Ryoko (Chieko Matsubara), enquanto a terceira será a
do fã Nukui (Tsutomu Takeshige) e da cantora Haruna (Kyôko Fukada).
O filme é permeado por uma direta relação com o teatro de bonecos japonês
Bunraku, inclusive sendo iniciado com uma cena do espetáculo Meido no hikyaku,
Mensageiro do Inferno, do autor Monzaemon Chikamatsu (1653-1724), principal
dramaturgo desse teatro. Após esta introdução, o filme se volta para o mundo real,
onde “três grupos de humanos que têm o mesmo destino das marionetes – o destino
do arrependimento – aparecem na tela”. (ABE, 2005, p. 255 – tradução minha)9.Na
primeira história, Matsumoto e Sawako são apaixonados, mas o rapaz é convencido
pelos pais a abandoná-la para se casar com a filha de seu chefe. Após uma tentativa
de suicídio, Sawako acaba sofrendo graves danos mentais, levando Matsumoto a
rejeitar uma vida socialmente invejada, para se dedicar completamente à mulher que
havia abandonado, em uma vida errante e sem perspectivas. Essa história vai servir
como fio condutor para todo o filme e com isso, é nela onde se percebe um uso mais
direto da linguagem do teatro Bunraku. Na segunda história, Hiro, um chefe da máfia,
relembra do grande amor, Ryoko, abandonada por ele muitos anos antes num banco
de um parque. Ryoko promete esperar por ele todos os sábados no mesmo lugar.
Muitos anos depois, Hiro resolve retornar e tentar encontrá-la novamente. Na
terceira história, Haruna, uma famosa cantora pop, abandona a carreira e se isola
completamente após ter seu rosto desfigurado em um acidente de carro que
também causa a perda de visão de um de seus olhos. Para voltar a se aproximar,
Nukui, um de seus fãs mais devotos, toma uma atitude drástica, cegando a si próprio.
Apesar de ser um dos poucos filmes em que Takeshi Kitano limita-se a
trabalhar atrás das câmeras, é possível perceber que em Dolls a relação
autobiográfica vai estar fortemente presente em todas as histórias. Voltando a
pensar na figura de Beat Takeshi, Cassio Abe (2005) vai destacar essa relação
ressaltando que sua presença independe deste aparecer ou não como ator.
As performances de Nishijima, Takeshige e Mahashi crescem além das
performances do próprio Beat Takeshi. Esta impressão é particularmente
forte no jeito brusco de Nishijima e Takeshige e na língua afiada do dialeto
de Tokyo usado por Mihashi. Dolls deste modo se assemelha à Hana-Bi,
onde Kitano apresenta versões de si próprio em círculos concêntricos
7
através do filme. (ABE, 2005, p. 258 – tradução minha) .
387
Dentro
dessa
relação
autobiográfica,
uma
das
características
mais
importantes no trabalho de Takeshi Kitano é a constante vontade de transformar-se.
“Quebrar seus paradigmas e, fazendo isso, mudar o método organizacional de seus
trabalhos – esse é o espírito artístico sobre o qual Takeshi Kitano está
constantemente lançando seu trabalho” (ABE, 2005, p. 253 – tradução minha)8.
Mesmo neste persistente estado de transformação, trabalhando em mídias
completamente distintas, certos elementos presentes em suas obras dialogam entre
si, como se a transformação fizesse parte de uma autoafirmação de sua visão
artística. A forma como a morte e o suicídio são abordados em Dolls é um bom
exemplo disso. Estes temas são recorrentes em suas obras, mas a diferença vai
estar no fato deles aparecem agora de uma forma sutil, em contraste com seus
filmes anteriores, em geral ligados a uma imagem do submundo do crime. Essa
sutileza, porém, não faz com que Dolls se torne menos violento que os filmes
anteriores, mas revela outro tipo de violência. Nas palavras do próprio diretor, “não
são armas que matam os protagonistas. É algo como o destino, inevitabilidade ou
emoções concentradas que se tornam como uma única bala que atravessa os
personagens.” (KITANO, 2002 – tradução minha)10.
O uso assumido, pela primeira vez, de uma linguagem teatral como referência,
vai se apresentar como outra diferença entre Dolls e outros filmes de Kitano, com o
filme apresentando tanto uma referência dramatúrgica, como também imagética,
visual ao Bunraku. Dolls realiza um transporte, um arranjo desses elementos e
convenções presentes no teatro de bonecos, em contato com os elementos e
convenções presentes no cinema e, mais especificamente, no cinema de Takeshi
Kitano.
A primeira história é a que se liga de forma mais direta à cena inicial de
Bunraku, apresentando Matsumoto e Sawako como “mendigos acorrentados”. Não
se trata de uma adaptação à cena inicial do teatro de bonecos, mas da apropriação
de uma temática, que está presente em grande parte das obras de Chikamatsu, mas
também se liga a uma referência pessoal, de uma antiga imagem guardada pela
memória do diretor.
Quando eu era ainda aspirante a me tornar comediante de stand-up em
Asakusa (bairro tradicional de Tóquio), eu vi uma vez um homem e uma
mulher amarrados um no outro com um pedaço de corda. As pessoas os
388
chamavam de “mendigos acorrentados”. Havia vários rumores acerca deles,
mas ninguém sabia realmente como eles se tornaram vagabundos. A visão
dos mendigos acorrentados ficou presa na minha mente e eu sempre quis
fazer um filme com personagens como eles. Eu decidi mesclar essa história
com outras duas histórias curtas. A ideia de cada história veio de algo que
eu vi ou ouvi no passado. O tipo de histórias que são bastante comuns para
11
os japoneses. (KITANO, 2002 – tradução minha) .
Esse relato demonstra uma intenção de Takeshi Kitano em trabalhar com
questões da sua própria memória, organizar o filme “a partir de razões pessoais”
(ABE, 2005, p. 37) num arranjo autobiográfico que vai estar presente nas histórias
dos três casais de Dolls. A própria relação com o Bunraku também se apresenta no
filme dentro desse viés autobiográfico. No período em que o filme estava sendo
lançado, Kitano conta que sua falecida avó narrava joruri e tocava shamisen13. No
Bunraku, o narrador é o responsável pelas falas dos bonecos e é acompanhado por
um músico, o tocador de shamisen, um instrumento musical acústico de três cordas
e braço longo. “Quando eu era bem novo, os aprendizes dela viviam com nossa
família. Então eu me familiarizei muito ao Bunraku quando era criança. Toda essa
coisa ficou presa no fundo da minha mente desde então.” (KITANO, 2002 – tradução
minha)14.
A segunda história, por exemplo, vai estar ligada diretamente ao universo pelo
qual o cinema de Takeshi Kitano é conhecido, apresentando, Hiro, um gangster,
como protagonista. Kitano vai explorar elementos do seu próprio cinema, como a
temática da máfia, da violência das gangues. Já na terceira história, destaca-se a
fragilidade desses bonecos humanos, refletida na cultura contemporânea. “A história
no filme é sobre um ídolo pop e, literalmente, ídolos pop são bonecas. Uma vez que
a boneca está retalhada ou quebrada e você não consegue remendá-la, ela é
simplesmente jogada fora, e assim são os ídolos pop” (Kitano apud CLARKE, 2003 –
tradução minha)12. É possível traçar uma relação entre o acidente da cantora Haruna
no filme, com o acidente já mencionado, sofrido pelo próprio Kitano. Diferente da
personagem de Dolls, Kitano voltou às suas atividades anteriores, mas precisou se
isolar por um tempo de todas as atividades e, mesmo recuperado, o acidente deixou
como cicatriz uma ligeira paralisia no lado direito de seu rosto.
Assim como no Bunraku a música do shamisen exerce um papel fundamental
na construção e compreensão do espetáculo, em Dolls a trilha sonora de Joe
389
Hisaishi vai aparecer com força, especialmente nos momentos da caminhada dos
mendigos acorrentados, não se limitando a ser apenas um pano de fundo. Nesta
obra, essa música assume um espaço na narrativa, na construção de sentido da
cena, tal qual a música do shamisen no teatro de bonecos. Por sua vez, o estilista
Yohji Yamamoto influiu não apenas nos figurinos, mas na construção estética de
todo o filme. A partir da referência do autor do Bunraku Monzaemon Chikamatsu,
Yamamoto apresentou para Kitano uma proposta de figurino totalmente inspirada
nessa representação teatral. O diretor revelou que foi nesse momento que ele teve a
ideia de ir além da referência dramática e explorar também a linguagem cênica do
Bunraku.
Não é como se o Bunraku inspirasse todo o filme; essa ideia veio depois.
Inicialmente eu queria minha versão de uma história no “estilo Chikamatsu”,
uma trágica história de amor num cenário contemporâneo. Então Yohji
Yamamoto veio com todos aqueles trajes impressionantes, que me
inspiraram a consolidar o conceito de uma história concebida por bonecos
do Bunraku e contada na forma de um teatro de marionetes estrelando
personagens humanos. (DOLLS, 2005).
Dentro dessa análise, é importante observar a relação entre a pequena cena
inicial, onde é apresentado um fragmento de um espetáculo do Bunraku, e o
restante do filme, inclusive chamando atenção para as diferenças de tratamento
entre esses dois momentos. Como Cassio Abe vai destacar, Kitano usa diferentes
técnicas para esse primeiro momento.
Em primeiro lugar, podemos mencionar a introdução agressiva de um
trabalho de filmagem “cinético”, que se baseia nas possibilidades técnicas
da câmera (sua habilidade de mover, dar zoom e assim por diante). A
filmagem no começo do filme, que captura uma apresentação do drama de
Bunraku de Monzaemon Chikamatsu, Mensageiro do Inferno (Meido no
hikyaku), é particularmente anti-Kitano. A câmera, que circula muito próxima
em torno dos bonecos, deixa que os gestos conferidos pelos manipuladores,
vestidos de preto, sejam vistos alternadamente de forma parcial e total. A
técnica aqui nega a unidade do próprio plano e, contudo, certa “tenacidade”
difícil de agarrar aparece na filmagem. (ABE, 2005, p. 253 – tradução
16
minha) .
Não é atoa que o diretor vai lançar mão dessa forma “anti-Kitano”, segundo
Abe, exclusivamente para a cena inicial do teatro Bunraku, corroborando com a
noção de não se tratar aqui da simples e direta transposição desse teatro. A câmera
corre, aproxima-se e distancia-se, quebrando com a noção de “teatro filmado” que
poderia ser causada em uma filmagem estática e de plano aberto. Esse tipo de
plano também poderia criar uma falsa sensação de unidade, contraditória a ideia do
390
sangyo, dessa tríade do Bunraku, onde narração, música e manipulação se
apresentam separadas, num processo que privilegia uma construção simultânea e
harmoniosa, invés de uma unidade planificada. Os cortes, movimentos e planos de
câmera procuram manter essa simultaneidade da cena do Bunraku no filme e, para
isso, “planos de todo o palco, do narrador e da audiência também são inseridos de
forma complexa”. (ABE, 2005, p. 253 – tradução minha)17. Essa construção fílmica
também vai destacar o drama do casal de bonecos, com fortes closes e recortes da
câmera, que, em diversos momentos, apagam da tela as figuras dos manipuladores,
consequentemente, humanizando esses bonecos, dando-lhes vida própria, até que
em seguida, eles ganhem total independência, quando apresentados sozinhos em
um fundo preto.
Então, assim que o casal principal da peça de marionetes se aproxima do
seu trágico duplo suicídio e começa a olhar para o “mundo humano” de uma
nova perspectiva, o sujeito dessa filmagem “cinética” se transfere da esfera
das marionetes para o mundo dos humanos. Planos como o abrupto e
agressivo frontal reverso, familiar aos filmes anteriores de Kitano são
adicionados. Isto reforça a sensação de incongruidade que é
intencionalmente criada no roteiro. (ABE, 2005, p. 254 – tradução minha)18.
A cena apresenta então o revés desse quadro, quando o casal de mendigos
acorrentados aparece na tela como dois bonecos vagando pelo espaço, sustentados
um pelo outro por essa corda que os une. Nesse momento, o excesso de cortes,
movimentos, closes, vistos na cena inicial de Bunraku vai dar lugar a planos longos,
contínuos e abertos que vão ser trabalhados ao longo das três histórias, no “mundo
dos humanos”. A incongruidade a qual Abe refere-se nesse momento, estaria
presente na passagem da cena das marionetes para os humanos, na ligação entre
esses dois momentos, que apresentam formas de realização, no que se refere ao
uso
das
técnicas
de
filmagem,
completamente
distintas.
Essa
aparente
incongruência, vai servir à construção dramática que Kitano pretende apresentar
entre esses dois mundos, o das marionetes e o dos humanos. Ao fim da cena inicial,
portanto, esses bonecos que se desvencilham de seus manipuladores, tornam-se os
próprios contadores e condutores dessa história que começa: a história desses
casais de humanos que se tornam manipulados.
A forma como é feita essa transposição da cena dos bonecos para os atores
humanos tem como base a relação traçada pelo olhar das marionetes. O casal de
391
bonecos, Chubei e Umegawa, aparece liberto da presença dos manipuladores. Eles
olham-se e depois se viram na direção da câmera, não diretamente, mas para além
da tela, colocando-se como observadores dessa história que vai ser contada diante
delas. Já em primeiro plano, fica claro que as marionetes se reconhecem naquela
história, mas faz com que o olhar do espectador seja mediado pelo casal de
bonecos. O espectador observa aquelas histórias através do olhar de Chubei e
Umegawa. O olhar, portanto, parte do espectador para as marionetes, delas para os
personagens do filme. Ao olharem para além da câmera, o casal de marionetes olha
também para o espectador em si. Esse olhar, portanto, coloca o próprio espectador
em relação aos personagens dessas três histórias, que estão pra ser contadas. Toda
a mediação dessa relação é então feita por Chubei e Umegawa, no papel de
contadores das histórias4.
Dolls poderia ser visto como ‘marionetes humanas’ interpretando uma
história concebida por bonecos do Bunraku. O filme começa durante sua
hora de trabalho, sua performance. E depois que o dia de trabalho acaba,
eles descansam sozinhos e começam a contar suas histórias. (KITANO,
19
2002 - tradução minha) .
Figura 2 – Sequência de Dolls (5’40” - 6’45”). Destaque para a relação entre os bonecos, Chubei e
Umegawa, que direcionam o olhar para o casal de “marionetes humanas”, Matsumoto e Sawako.
Esse primeiro momento então, com a apresentação do espetáculo Meido no
Hikyaku, se apresenta como início do filme, mas não como início da diegese. Esse
momento serve para definir quem serão os contadores da história, no caso o casal
392
de bonecos, e, portanto, estaria próximo de um prefácio, de uma introdução a esse
universo de diálogo com o teatro Bunraku, estabelecido por Kitano ao longo das três
histórias de Dolls.
Um ponto importante nessa relação estabelecida, pelo olhar do casal de
bonecos para com o casal de humanos, está no fato dela partir exatamente da
imagem da corda que une Matsumoto e Sawako. A corda vermelha funciona como
um elemento simbólico da transformação desse casal em duas marionetes, “nos
mendigos acorrentados”. A cor é fundamental, já que no Bunraku, o vermelho, cor
do sangue e cor do sol na bandeira japonesa, vai representar a força da vida. A
corda vermelha, portanto, aparece não apenas com um simples material que as une,
mas como esse último fio de vida, como esse laço que os sustenta ao longo de toda
a caminhada. A esse respeito, é importante ressaltar que a cor no cinema, como
ressalta Maria Helena Braga e Vaz da Costa, apresenta valores específicos e
possibilita o estímulo de reações e sensações ao espectador: “seus significados
simbólicos e psicológicos podem consequentemente ser explorados pelos cineastas
com o intuito de obter uma faixa completa de efeitos de significação”. (COSTA, 2011,
p. 118).
As cores vão aparecer em Dolls de modo semelhante ao que ocorre no
Bunraku, como elementos simbólicos de representação. Kitano usa toda uma paleta
de cores que apresenta a caminhada desses casais ao longo das estações do ano e
que, em cada estação, se desdobra em significados específicos e muitas vezes sutis.
Um dos “modos cinemáticos de explorar a cor, por exemplo, é escolher as cores de
uma cena exterior de acordo com a estação do ano, a hora do dia, e as condições
meteorológicas”. (COSTA, 2011, p. 118). O vermelho, por exemplo, que Costa
defende como sendo uma cor de impressão forte, que atrai a atenção, vai aparecer
tomando praticamente toda a tela na representação do outono, apresentando as
folhas de cerejeira que caem sobre o campo, assim como o sangue que se espalha
dos personagens que perdem suas vidas. Observa-se, então, a relação com o
vermelho “força da vida”, do teatro de bonecos, com a queda das folhas da cerejeira,
que apresenta a queda dessas vidas.
Também nesse momento é importante destacar pela primeira vez um recurso
393
que irá aparecer com frequência durante todo o processo da caminhada do casal. É
o uso de um plano lateral de filmagem, com a câmera quase sempre parada, ou se
movendo muito lentamente, mostrando os atores a percorrer todo o espaço da cena
de um lado a outro da tela. Essa relação, criada pelo ângulo da câmera,
corresponde diretamente ao espaço da cena no teatro Bunraku, onde do ponto de
vista do espectador os bonecos executam as ações explorando a horizontalidade do
palco.
!
Figura 3 – Na primeira e segunda linhas observam-se diferentes momentos do filme Dolls, onde é
feito uso do plano lateral de filmagem, ressaltando a horizontalidade da cena, em comparação com
imagens de espetáculos do teatro Bunraku, na terceira linha. Courtesy of The Barbara Curtis Adachi
Bunraku Collection, C.V. Starr East Asian library, Columbia University.
Outra característica importante é que esses planos, em Dolls, são quase
sempre muito abertos, apresentando lugares e cenários grandiosos, onde os
personagens se mostram diminutos, como pequenos bonecos, presos a esse
espaço que efetivamente tentam percorrer, reforçando essa relação com os bonecos
do teatro Bunraku. O que Kitano propõe em Dolls, portanto, é uma troca, um diálogo
entre questões do teatro de bonecos japonês Bunraku, com questões do seu próprio
cinema.
Em Aquiles e a Tartaruga (2008), a relação com as artes plásticas volta a ser
o tema central, narrando em três tempos a vida do pintor Machisu, na infância (Reikô
394
Yoshioka), juventude (Yûrei Yanagi) e na fase adulta (Beat Takeshi). O paradoxo
grego, criado por Zeno, no século V a.C., sobre uma aposta entre o herói ateniense
e uma tartaruga serve de pano de fundo para essa história de eterna busca pelo
fazer artístico. O filme se inicia com uma curta animação onde Zeno pergunta para
um aprendiz se, ao apostarem corrida, Aquiles alcançaria a tartaruga, que, por ser
mais lenta, receberia uma vantagem inicial. Para Zeno, independentemente da
velocidade de Aquiles, quando ele alcançasse o ponto inicial da tartaruga, esta já
estaria num terceiro ponto, mais à frente. Quando Aquiles chegasse a esse terceiro
ponto, a tartaruga estaria em um quarto, e assim sucessivamente, de modo que o
herói será mantido sempre para trás, ainda que em espaços e tempos cada vez
menores – considerando uma infinita divisão desse espaço e tempo em parcelas
cada vez menores, na perspectiva desse recorte temporal, Aquiles nunca alcançaria
a tartaruga. A validez e relevância desse paradoxo vem sendo colocada em
discussão ao longo dos séculos, mas a questão que Kitano aponta em sua leitura
adapta a metáfora a uma realidade contemporânea: está focada na incapacidade de
seu protagonista de alcançar o suposto destino de vender uma obra de arte sua. A
tartaruga aparece aqui como esse destino, apresentado logo ao início do filme,
quando ainda criança, Machisu, mostra, aos olhos orgulhos do pai, seus desenhos e
pinturas e recebe ali a chancela que irá persegui-lo por toda a vida: você vai ser um
grande artista. Desfeita essa atmosfera de sonho, com a crise das indústrias da
família, Machisu passa de criança prodígio para órfão de pai, maltratado pelo tio, de
artista promissor, para criança sem estudo e sem aparente futuro.
O escopo desta fábula criada por Kitano aparenta uma superação, quando
Machisu conhece Matazo, o senhor que ficava pintando à beira da estrada. Junto a
Matazo, o garoto, que havia recebido uma bronca do tio por ficar desenhando em
vez de alimentar as galinhas, deixa novamente de cumprir seus afazeres, para criar
três enormes desenhos das galinhas no terreno em frente à casa, convencendo os
tios a levarem-no para escola. Mas o fato é que a tartaruga está sempre um passo à
frente e novamente Machisu encara dificuldades, sendo reprendido na escola por
desenhar e tendo depois de lidar com o suicídio da madrasta e a morte de Matazo,
que seguia exatamente a proposta do garoto – parar em frente ao ônibus para poder
pintá-lo.
395
A morte vai traçar uma importante relação ao longo do filme. Em Hana-bi e
Dolls, a morte se apresenta diretamente aos personagens, encerrando suas
trajetórias, seja no duplo suicídio de Nishi e Miyuki, ou na queda de Matsumoto e
Sawako. Com Machisu, porém, a relação com a morte se dá entre os que lhe estão
próximos, e, de certo modo, com sua arte. Já na infância, ele perde o pai, que lhe
financiava, depois a madrasta e o pintor Matazo, que eram aqueles que lhe davam
apoio. Na juventude, as experimentações artísticas coletivas, que marcam a
trajetória do jovem artista, cessam após a morte acidental de um dos integrantes do
grupo e, já na fase adulta, acompanhamos a morte da filha, logo após ser revelado
que ela se prostituía.
Kitano busca mostrar de forma até mesmo cômica, o experimentalismo
presente nos movimentos artísticos ao longo do século XX. O jovem Machisu tenta
incansavelmente ver reconhecido seu trabalho artístico, primeiramente juntando-se a
um grupo de artistas experimentais e, posteriormente, se dispondo até a copiar
outros artistas numa cena em que ele apresenta uma sucessão de quadros para um
marchand, que vai deduzindo o autor que serviu de referência e atestando que as
versões de Machisu seriam apenas cópias de menor qualidade. O mesmo marchand
segue aparecendo, de tempos em tempos, num processo quase professoral,
questionando as obras de Machisu, que nunca consegue vender seus quadros.
Porém, as outras pinturas presentes na galeria e que teriam um suposto valor são
criadas pelo próprio Takeshi Kitano, evidenciando, de certo modo, uma crítica à
noção de valor da obra de arte. O valor artístico das obras de Machisu, em última
instância, estaria determinado pela possibilidade de venda, que nunca ocorre. Essa
venda de sua obra é a tartaruga que Machisu persegue: o sonho de ficar famoso, de
ser reconhecido como artista.
396
!
Figura 4 – Quadro de Machisu em Aquiles e a Tartaruga (1h46’). Destaque para a linha do tempo que,
coloca entre outras questões, nascer, ficar famoso, rico e morrer.
O experimentalismo de Machisu não cessa em sua juventude e já na idade
adulta, é o suposto alter ego de Kitano, Beat Takeshi, quem vai assumir a
interpretação desse papel. Nessa fase, ganha destaque a relação familiar de
Machisu, num equilíbrio tênue entre o apoio da esposa Sachiko (Kanako Higuchi), e
a completa rejeição de seu trabalho pela filha, que apresenta o desejo de uma
suposta normalidade, expondo o olhar da vizinhança e envergonhada pelas notícias
geradas pelas tentativas artísticas do casal. Mais uma vez, o valor da arte é
questionado, agora pela noção de normalidade. Essa relação se apresenta numa
tentativa de criar um trabalho após mais uma das intervenções do marchand,
mostrando a Machisu uma reportagem de jornal. A reportagem destaca o sucesso
recente em Nova Iorque de um antigo companheiro dos tempos de experimentação
artística na juventude, que teria sido considerado o Basquiat japonês. Na cena
seguinte, Machisu e Sachiko são vistos estudando livros sobre Basquiat e
resolvendo criar uma intervenção urbana baseada nos trabalhos do grafiteiro
americano, pintando as portas dos estabelecimentos do bairro onde moram. O
problema é que essa tentativa é mal vista pelos donos dos locais que, descobrindo
os autores, chamam a polícia e os obrigam a apagar tudo que havia sido feito,
restando somente o lamento de Sachiko de que ela e Machisu teriam ficado famosos,
ouvindo o marido que os vizinhos não entendem o que é arte.
397
O fato é que, ainda que algumas das práticas de Machisu e Sachiko sejam
um tanto radicais, como o momento em que ela apanha de um boxeador, ou a
tentativa de afogá-lo, para que pintasse no limiar da morte – que resultam em
Machisu indo parar no hospital, enquanto Sachiko é levada pela polícia – o que se
continua vendo é a saga desse pintor pelo reconhecimento de seu trabalho artístico,
a busca desse Aquiles tentando alcançar a tartaruga. Mesmo quando é abandonado
pela esposa, o que se vê ao fim do filme é uma sucessão de tentativas
desesperadas, incluindo uma iniciativa frustrada de suicídio e uma radicalização
nessa busca, que o leva a pintar em meio a um incêndio provocado por ele mesmo,
que termina no hospital, enfaixado dos pés à cabeça. Voltando do hospital, ele
encontra uma velha lata de refrigerante e tenta vendê-la em uma feira de usados.
Após um casal de namorados que discute se a lata seria arte ou lixo, Machisu é
surpreendido por sua esposa, Sachiko, que se oferece para comprá-la. Mais uma
vez o questionamento do valor da arte se coloca, já que o momento em que Machisu
finalmente consegue vender sua arte se dá com um ready made, ou ainda um objet
trouvé, um objeto que não fora produzido por ele mesmo. O casal segue de mãos
dadas e uma legenda final anuncia que finalmente o Aquiles alcançou a tartaruga.
Porém, ele a alcança com um objeto a que nem ele mesmo dava valor, uma lata
enferrujada que, logo em seguida à compra, é jogada fora por Machisu e Sachiko.
!
Figura 5 – Machisu tentando vender a lata enferrujada em Aquiles e a Tartaruga (1h53’).
Como pudemos observar, o diálogo estabelecido entre o cinema e outras
áreas ocorre de diferentes formas nos filmes de Kitano. Em Hana-bi, a pintura
aparece como um elemento que compõe a diegese do filme, enquanto em Dolls, o
teatro Bunraku se coloca como uma linguagem que estrutura a própria construção
398
visual do filme. Em Aquiles e a tartaruga, por sua vez, a pintura, que antes figurava
como elemento, passa a ser o mote temático, que conduz a trama. Do mesmo modo,
se em Hana-bi a busca era destacar o olhar inocente invadido pela violência das
ruas, enquanto em Dolls, os amores eram devastados pela violência que se impõe
aos sentimentos, em Aquiles e a Tartaruga a busca é pela própria arte, que é
consumida e perdida para o próprio tempo, que inexoravelmente zomba de Machisu.
Em meio a essas possibilidades, pode-se inferir que a busca de Machisu é também
a busca de Kitano, que por sua vez é compartilhada por artistas, acadêmicos e
pesquisadores em geral: a tentativa de alcançar as tartarugas que se colocam à
frente, sem nenhuma garantia de que poderão ser alcançadas, mas onde a própria
busca constitui-se como a obra a ser legada em si, que nos estimulam a partir do
próprio processo que se apresenta nesse buscar.
Notas
1 O filme é também conhecido internacionalmente pelo seu título em inglês, Violent Cop.
2 What Kitano is doing here is fixing his gaze on the essence of matters. By crediting Yanagi Yurei and
the others under their real names, Kitano keeps them as objects. In order to objectify himself, however, he had to
make “Beat Takeshi” an object (ABE, 2005, p. 38).
3 Kitano’s films are organized only according to reasons personal to Kitano. In other words, Kitano starts
off by acknowledging the established fact of the Beat Takeshi that floats around in television. To counteract this,
he makes films. (ABE, 2005, p. 37).
4 Michel Temman – Why do you paint? | Beat Takeshi Kitano – I had a bad motorcycle accident back in
1994 and I had to cancel everything I was doing at the time, all of my television and film work. Since I was forced
to stop everything for many months, while I was recovering, I had nothing to do. I was so bored that I took up
painting to kill time – like Horibe ,the character in Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 247-248).
5 Michel Temman – Thirty paintings are being exhibited in the basement, some of them are older, others
are more recent. The paintings we see in your film Hana-bi were originally supposed to be vases... | Beat Takeshi
Kitano – In Japan ikebana is the art of creating floral arrangements using plants, flowers and vases. There are
many different ways of arranging the flowers in ikebana, and one of the most popular techniques is a minimalist
approach that uses just one flower and one simple vase. I'm sure a relationship is created between the flower and
the vase, but, personally, I've always found this technique to be visually quite boring. So I thought to myself: “Why
not take this minimalist approach, based on a quite single flower, and use to create an animal? Its face would be
the flower, and its body would be the vase.” And that's how a sunflower became the face of a lion, another flower,
the face of a penguin. This childish process of association, of combining images, is what gave rise to the concept
behind these paintings. (KITANO, 2010, p. 247).
6 Whether or not I act in one of my films basically depends on my physical condition. When I'm tired I
don't act in my films. Also, I have to think about the balance in the whole film. I visualize the possible images of
the film and if I think that I, as a protagonist, can carry the film from beginning to end, then I play the role. But if I
think I can hardly fit the character, I use another actor. (KITANO, 2002).
7 The performances of Nishijima, Takeshige, and Mihashi grow out of Beat Takeshi's own performances.
This impression is particularly strong in Nishijima and Takeshige's brusqueness, and in Mihashi's sharp-tongued
Tokyo dialect. Dolls thus resembles Fireworks in that Kitano has placed versions of himself in concentric circles
throughout the film. (ABE, 2005, p. 258).
8 To break free of self-restraint, and by so doing, to change the organizational method of his works – this
is the artistic spirit on which Takeshi Kitano is currently staking his work. (ABE, 2005, p. 253).
9 Three groups of humans who have the same fate as the puppets – the fate of regret – appear on the
screen. (ABE, 2005, p. 255).
10 It's not guns that kill protagonists. It's something like fate, inevitability or condensed emotions that
become like a single bullet and shoot right though the characters. (KITANO, 2002).
11 When I was still an aspiring stand-up comic in Asakusa (traditional Tokyo neighborhood), I once saw
399
a man and a woman tied to each other with a piece of rope. The townspeople called them the "bound beggars."
There were lots of rumors about the couple, but nobody really knew how they ended up becoming vagabonds.
The vision of the bound beggars stuck in my mind and I've always wanted to make a film with characters like them.
I decided to intertwine this story with two other short stories. The idea of each story came from something I saw or
heard in the past, the kind of stories, which are quite common for the Japanese. (KITANO, 2002).
12 The story in the film is about a pop idol and, literally, pop idols are dolls. Once a doll is chipped or
broken and you can't mend it, they're just thrown away, and so are the pop idols. (Kitano apud CLARKE, 2003).
3 Ao contrário do Kabuki, onde a presença de mulheres em cena é proibida desde o período Takemoto,
no Bunraku é permitido que as mulheres exerçam qualquer uma das funções, ainda que isso seja incomum. Há
ainda uma modalidade chamada otome Bunraku, onde a manipulação das marionetes e feita exclusivamente por
mulheres.
4 When I was very young, her apprentices lived with our family. So I became familiar with Bunraku when
I was a kid. All that stuff has been stuck in the back of my mind since then. (KITANO, 2002).
15 First of all, we could mention the aggressive introduction of “kinetic” camerawork, which relies on the
camera’s technical possibilities (its ability to travel, zoom, and so forth). The camerawork at the opening of the film,
which captures a performance of Monzaemon Chikamatsu's bunraku puppet drama, The Courier of Hell (Meido
no hikyaku), is particularly anti-Kitano. The camera, which circles around quite close to the puppets, alternately
resents total and partial view of the gestures being bestowed by the black-robed puppeteers. The technique here
denies the unity of the shot itself, and yet a certain difficult-to-grasp “tenacity” appears in the camerawork. (ABE,
2005, p. 253).
16 Shots of the entire stage, the narrator, and the audience are also inserted in a complex manner. (ABE,
2005, p. 253).
17 Then, just as the leading couple in the puppet play approaches their tragic double suicide and begin
to look at the “human world” from a new perspective, the subject of this “kinetic” camerawork shifts from the realm
of puppets to the world of humans. Shots such as the abrupt and aggressively frontal reverse shots familiar from
Kitano’s previous films are added in. This reinforces the sense of incongruity that is intentionally created in the
shooting script. (ABE, 2005, p. 254).
18 Essa lógica vai ser reforçada no final do filme, quando, assim que a história é encerrada, Chubei e
Umegawa aparecem novamente em uma repetição desse processo, retomando o olhar para aquela história que
se encerrou e reafirmando a posição de contadores e mediadores dela.
19 DOLLS could be seen as 'human puppets' playing out a story conceived by Bunraku dolls. The film
starts during their working hours, their performance. And after their day's work is done, they rest alone and start
telling stories. (KITANO, 2002).
Referências Bibliográficas
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Takeo Hori. New York: Kaya Press, 2005.
COSTA, Maria Helena Braga e Vaz da. Cores & filmes: um estudo da cor no cinema.
Curitiba: CRV, 2011.
GEROW, Aaron. Kitano Takeshi. London: British Film Institute, 2007.
GIROUX, Sakae M e SUZUKI, Tae. Bunraku: Um Teatro de Bonecos. São Paulo:
Perspectiva, 1991.
KEENE, Donald. The Major Plays of Chikamatsu. Columbia University Press, 1990.
KITANO, Takeshi. Beat Takeshi Kitano, Gosse de Peintre. Catálogo da exposição.
Fondation Cartier pour l'art contemporain, Paris / Actes Sud, Arles, 2010.
________. “Production Note”. In: Dolls – official web site, 2002. Disponível em:
http://www.office-Kitano.co.jp/dolls/en/pronote.html Acesso: 15 mar. 2014.
KUSANO, Darci. Os Teatros Bunraku e Kabuki: Uma Visada Barroca. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
NOVIELLI, Maria Roberta. História do Cinema Japonês. Tradução de Lavínia Porciúncula.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.
THE BARBARA Curtis Adachi Bunraku Collection. In: Columbia University Libraries.
Disponível em: http://www.columbia.edu/cu/lweb/digital/collections/eastasian/bunraku/
Acesso: 15 mar. 2014.
Filmografia
AQUILES e a tartaruga. Direção: Takeshi Kitano. Produção: Makoto Kakurai, Masayuki Mori
400
e Takio Yoshida. Roteiro: Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV
Tokyo; Tokyo FM Broadcasting Co. Tokyo Theaters Company; WoWow, 2008. DVD (119
min).
DOLLS. Direção: Takeshi Kitano. Produção: Masayuki Mori e Takio Yoshida. Roteiro:
Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV Tokyo; Tokyo FM
Broadcasting Co., 2002. DVD (113 min).
HANA-BI. Direção: Takeshi Kitano. Produção: Masayuki Mori, Yauhi Tsuge e Takio Yoshida.
Roteiro: Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV Tokyo; Tokyo FM
Broadcasting Co., 1997. DVD (103 min).
TAKESHI Kitano: Portrait d'une douce schizophrénie. Entrevista à Gilles Coudert. França,
Triac Documentaire, 1999 DVD (16 min). Edição Atalanta Filmes, Portugal.
THE LOVERS’ Exile. Direção e produção: Marty Gross. Roteiro: Marty Gross, adaptado da
peça Meido no Hikyaku de Monzaemon Chikamatsu. Traduzido para o inglês por Donald
Richie e Marty Gross. Japão, Canada: Marty Gross Film Productions Inc., 2006, reedição de
1980. DVD (87 min).
Gustavo Henrique Lima Ferreira
Professor em regime de dedicação exclusiva do curso de Licenciatura em Artes-Teatro na
Universidade Federal do Tocantins (UFT). Possui graduação em Artes Cênicas - Habilitação
em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) e mestrado em
Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2013). Tem experiência
na área de Artes, com ênfase em Direção Teatral.
401
O “GRUPO DE ARTE PONKÔ E A VANGUARDA TEATRAL PAULISTA DA
DÉCADA DE 80
Cassiano Sydow Quilici - UNICAMP
RESUMO: Este trabalho aborda a atuação do “Grupo de Arte Ponkã” no contexto de
retomada do teatro de grupos em São Paulo, no começo dos anos 80. Focalizo
principalmente seus dois primeiros trabalhos: “Tempestade em copo d’água” e “Apõnkalipse”.
Desenvolvo uma reflexão sobre as práticas e temáticas “orientais” trazidas pelo grupo e
suas contribuições singulares sobre as artes performativas, que não se enquadravam
exatamente nas referências predominantes no campo teatral de então. Refiro-me
especialmente a incorporação de práticas não artísticas ao treinamento dos atores (como o
tai chi chuan), a aproximação entre “oriente” e “vanguardas minimalistas” (especialmente do
teatro de Robert Wilson), as relações entre teatro, performance e “antropofagia”. Pretendo
também estabelecer contrapontos críticos com outras formas de diálogo entre “oriente” e
arte brasileira, recolocando as questões abordadas em relação ao momento atual.
Palavras-chave: teatro brasileiro, Oriente, Grupo de Arte Ponkã
ABSTRACT: This paper is about the acting of “Grupo de Arte Ponkã” in the context of
rescuing of theatre groups in São Paulo, in the early 80’s. It focuses mainly on its first two
works: “Tempestade em Copo d’água” and “Aponkãlipse”. I work on a reflection about
practices and eastern themes brought by the group as well as its singular contributions about
performing arts. I’m especially referring to the use of non-artistic practices in the training of
the actor (such as tai chi chuan), the approximation between “ the east” and minimalistic
avant-garde (especially Robert Wilson’s theatre), as well as the relationships among theatre,
performance and “antropofagia”. I also intend to estabilish critical counterpoints with other
forms of dialogue between East and Brazilian arts, placing the issues above in relation to
present time.
Keywords: Brazilian theatre, East, Group of Art Ponkã
Neste trabalho, retomo alguns temas abordados na minha dissertação de
mestrado sobre o teatro experimental em São Paulo na década de 80 e o Grupo de
Arte
Ponkã.
Recoloco
questões
que
não
consegui
desenvolver
naquela
oportunidade e também presto uma homenagem a esse grupo que teve tanta
importância na minha formação, assim como na de outras pessoas da minha
geração. O convívio com Paulo Yutaka, Celso Saiki e Luis Roberto Galízia 1 foi
essencial na definição de meu próprio caminho de pesquisa. Naquele momento, em
que se processava a retomada do teatro de grupo em São Paulo após o período da
ditadura, pude me conectar com experiências de uma geração anterior. Refletir
sobre o trabalho do Ponkã contribuiu para o desenvolvimento de uma ideia de
402
contemporaneidade que inclui o diálogo com tradições artísticas e culturais na
construção de propostas singulares e inovadoras de atuação cênica e performática.
Busco aqui tornar mais claros os elementos da trajetória inicial do grupo a partir dos
seus dois primeiros espetáculos: “Tempestade em copo d’água” e “Aponkãlipse”. A
meu ver, eles apresentam certo frescor no modo de abordar referências orientais e
suas interconexões com questões que emergem nas artes performativas
contemporâneas.
Sujeitos não identificáveis
O movimento de teatro de grupos no início dos anos 80 em São Paulo incluía,
além do Ponkã, o Ornitorrinco (de Cacá Rosset, Luiz Roberto Galízia e Maria Alice
Vergueiro), o Boi Voador (dirigido por Ulisses Cruz), o Pod Minoga (dirigido por
Naum Alves de Souza), o Orlando Furioso (dirigido por Renato Coehen), o XPTO,
entre outros, todos eles congregados em torno da Cooperativa Paulista de Teatro. A
diversidade de propostas e linguagens desenvolvidas por esses coletivos não
coadunava com a conhecida polarização entre Arena e Oficina, presente no teatro
experimental da década de 60 e 70. Mariângela Alves de Lima expressou
claramente as dificuldades encontradas pelos críticos em relação ao novo
panorama:
Essa sensação de massa indistinta, de um movimento difuso que se bifurca
em incontáveis singularidades, é um desafio que o pensamento crítico sobre
a atividade teatral enfrenta de má vontade teatral e por vezes com o pavor
do erro. (LIMA: 1984, p.110)
A pesquisadora detectava na cena paulista uma multiplicidade de
perspectivas difícil de ser compreendida a partir das referências que ainda
dominavam o campo artístico-cultural paulista. A polarização em torno da qual se
desenvolviam as discussões poderia ser assim resumida: de um lado, um projeto de
teatro “nacional-popular”, interessado no desenvolvimento de uma dramaturgia
crítica brasileira e na conscientização política de um público mais amplo; de outro, a
perspectiva de questionamento político-existencial do público de classe média
através da radicalização dos experimentos de linguagens, ancorados principalmente
na “antropofagia” de Oswald de Andrade e na contra-cultura internacional, entre
403
outras influências. Como encaixar nessa “dialética” a emergência de trabalhos
cênicos que enfatizavam outras questões e distintos procedimentos criativos?
No caso do Ponkã, como entender um grupo que afirmava a importância do
diálogo com referências “orientais” e, ao mesmo tempo, com a linguagem da
performance? Mais especificamente, o que era aquela linguagem corporal dos
atores, pautada em técnicas não artísticas como o tai chi chuan? Como pensar a
presença de um tratamento minimalista das cenas numa dramaturgia “ideogrâmica”,
que justapunha diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema? Ou ainda, que
tipo de leitura do modernismo brasileiro aparecia nos “manifestos” do grupo?
Afirmava-se ali uma outra “antropofagia”, destituída do pathos da devoração do
inimigo e atravessada pela ideia da hibridização e da justaposição das diferenças? A
meu ver, nas primeiras montagens do grupo já se delineava uma atitude artística
com traços especificamente contemporâneos, não alinhados com parâmetros
predominantes em boa parte da crítica e do pensamento teatral brasileiro de então.
Entendo também que o diálogo com referências orientais foi fundamental para fazer
emergir tal singularidade.
Para compreender esse processo é necessário retomar algumas condições
que possibilitaram o surgimento do projeto do grupo. Uma delas é o contato de seus
dois fundadores, Paulo Yutaka e Luiz Roberto Galízia, com artistas do teatro
contemporâneo e da performance, na Europa e nos Estados Unidos. O “Oriente” do
Ponkã, pelo menos na sua fase inicial, foi bastante influenciado pela leitura que
artistas contemporâneos como Robert Wilson faziam deste tema. Galízia realizou
seu
doutorado
sobre
o
trabalho
do
diretor
norte-americano,
publicando
posteriormente um estudo pioneiro no Brasil 2 . O livro tornou-se uma referência
fundamental para estudiosos e artistas posteriores que exploraram o campo da
performance, como Renato Cohen (na época, orientando de Galízia).
É importante sublinhar aspectos do ambiente cultural norte-americano em que
germinou o trabalho de Wilson. Destaco o interesse de artistas das vanguardas do
pós-guerra pelo pensamento budista e taoísta e pelas práticas meditativas. Como
exemplos mais conhecidos entre nós, poderíamos citar a relação de John Cage com
o zen budismo através de seu contato com D.T Suzuki 3 . O professor japonês
404
também exerceu forte influência em artistas da geração beat, tais como Allen
Guinsberg e Jack Kerouac e no precursor dos happennigs, Allan Kaprow. Nesta
direção, poderíamos destacar ainda a fundação, na década de 70, do Naropa
Institute, no Colorado, coordenado pelo professor tibetano Chogyam Trungpa. Este
centro tornou-se uma importante referência nos trabalhos de performers como
Meredith Monk e foi também frequentado por Wilson.
Para Galízia, o Grupo Ponkã tornou-se um espaço privilegiado de
experimentação e processamento de influências que não encontravam muita
ressonância em outros ambientes brasileiros. No “Ornitorrinco”, por exemplo, outro
coletivo em que este artista teve importante participação, a pesquisa concentrava-se
no teatro brechteano e em vanguardistas europeus como August Strindberg e Alfred
Jarry. Segundo a dissertação de Ramos (1989), Galízia considerou o segundo
espetáculo do Ponkã – “Apõnkalipse” – como seu trabalho mais autoral. Nele, o
diretor pôde reinventar o que aprendeu com o teatro de Wilson e trocar experiências
com atores interessados no diálogo entre as vanguardas e o “oriente”, num processo
de criação que hoje chamaríamos de “colaborativo”.
Paulo Yutaka se formou na EAD em 1973, tendo atuado na célebre
encenação de “Galileu Galilei” pelo teatro Oficina, em 1974. Entre 1976 e 1980
permaneceu na Europa, participando de espetáculos do grupo Shasatsu Japanease
Dance, estudando mímica, tai chi chuan e familiarizando-se com a linguagem da
performance art. Antes de fundar o grupo Ponkã, em 1982, iniciou um curso de
direção na ECA-USP, tendo dirigido dois espetáculos com alunos da EAD. O projeto
do “Grupo de Arte Ponkã” surge com a vontade de pesquisar referências não muito
comuns no ambiente teatral brasileiro. Além disso, a criação da companhia era um
modo de afirmar a presença de artistas descendentes de japoneses que
encontravam barreiras no mercado de trabalho brasileiro. Tanto Paulo Yutaka como
Celso Saiki reclamavam da persistência de estereótipos do japonês na publicidade e
na televisão brasileira, além da quase inexistência de papéis relevantes para eles no
teatro comercial.
Deste modo, o Ponkã expressava o desejo de pesquisar os cruzamentos
entre referências orientais e teatro contemporâneo, constituindo-se como um grupo
405
“mestiço”, formado por descendentes de japoneses e outros brasileiros. Se a
conexão entre “oriente” e vanguarda já era bastante evidente nos Estados Unidos e
na Europa, o mesmo não acontecia no nosso ambiente teatral. Já havia, entre nós,
os importantes estudos de Haroldo de Campos (1977) sobre as relações da
linguagem “ideogrâmica” com a poesia e a forte presença japonesa nas artes visuais
(os abstracionistas Tomie Ohtake, Manabu Mabe e Tikashi Fukushima entre outros).
Em relação às artes performativas, surgiam os primeiros trabalhos do coreógrafo
Takao Kusuno no Brasil. Pode-se mencionar ainda a importante pesquisa do
musicólogo Hans-Joachim Koellreuter, incorporando elementos do zen-budismo e do
hinduísmo na sua estética do “impreciso e do paradoxal”. No teatro, no entanto, tais
diálogos eram incipientes, apesar da reconhecida importância de tradições cênicas
orientais no processo de renovação teatral do século XX.
A linguagem corporal e as “práticas orientais”
Chamo-nos a atenção o fato do Ponkã ter se autodefinido como um “grupo de
arte” e não exatamente como uma companhia teatral. A opção por uma maior
abrangência na nomeação já indicava o interesse em alargar as práticas cênicas,
incluindo procedimentos vindos de outras áreas. Como vimos, tanto Yutaka quanto
Galízia estavam um tanto impregnados pela arte da performance e pela vanguarda
minimalista. Mais do que isso, compreendiam que o teatro experimental e a
performance dos anos 70 traziam uma série de inovações em relação à estética dos
happenings dos anos 50 e 60, que seriam, segundo Yutaka, marcados por um
menor rigor formal4. A maior elaboração composicional do teatro que propunham
buscava elementos e procedimentos em outros domínios artísticos e também em
práticas corporais não propriamente cênicas, como o tai chi chuan.
O alargamento da noção de teatro e a pesquisa de uma linguagem cênica que
rompia com convenções dramáticas permitiam a incorporação de treinamentos
extra-artísticos, como o das artes marciais. O interesse pelo “Oriente” que marcou
boa parte do trabalho dos encenadores seminais do teatro da primeira metade do
século XX5, voltava-se principalmente para tradições cênicas como o Nô, o Kabuki, o
Kathakali, a Ópera de Pequim e o Teatro Balinês. Elas ajudaram o teatro europeu a
406
repensar a linguagem do espetáculo e a própria função do teatro na cultura. Já as
vanguardas do pós-guerra apropriaram-se de elementos performativos do teatro e
de outras áreas para questionar as fronteiras entre arte e vida cotidiana. Nesse
processo, os artistas passam a se interessar s por práticas culturais, filosóficas e
espirituais orientais, tais como as artes marciais e as tradições meditativas.
Como mencionamos anteriormente, ecos dessas discussões atravessavam o
trabalho de alguns artistas brasileiros, não pertencentes ao teatro. O poeta Paulo
Leminski, por exemplo, fortemente influenciado por Haroldo de Campos e pelo
concretismo, elege uma arte marcial (no caso o judô) como uma espécie de porta de
entrada para uma “sensibilidade zen”, que ele buscava desenvolver na sua poesia e
nos seus hai kais. Numa biografia de Matsuo Bashô chamada “Bashô, a lágrima do
peixe”, publicada em 1983, Leminski dedica boa parte do texto explorando as
relações entre o exercício da escrita poética e as práticas do zen como o caminho
que dará forma à vida e à obra do importante poeta: “a força determinante da vida
de Matsuô era uma coisa chamada zen.” (Leminski: 2013, p.125). Mesmo
expressando uma compreensão do zen muito marcada, a meu ver, pela leitura que a
“geração Beat” fez do budismo (o que mereceria uma série de comentários críticos),
Leminski compreende e enfatiza as articulações entre uma prática artística e um
treinamento marcial meditativo, capaz de transformar a poesia numa “via” de
realização existencial.
No Ponkã, a prática taoista do tai chi chuan, que pode ser entendida como
uma forma de meditação em movimento, tornou-se uma espécie de treinamento
básico dos atores. A combinação desse tipo de exercício com a experiência artística
e cênica dos membros do grupo trouxe uma singular qualidade corporal para as
encenações, imediatamente reconhecida pelos críticos. Sábato Magaldi, ao
comentar o segundo espetáculo do grupo, “Aponkãlipse”, no jornal “O Estado de São
Paulo” (21/04/1984), apontava o Ponkã como o elenco que melhor sabia utilizar a
“expressão corporal” no teatro paulista. O uso do termo “expressão corporal” 6
mostrava como parte da crítica tentava articular o trabalho do grupo com referências
da década de 70, sem possuir ainda leituras mais precisas do que se dava em cena.
Acrescenta-se ainda que as qualidades “não verbais” dos primeiros espetáculos do
Ponkã (notadamente “Tempestade em Copo D’água” e “Aponkãlipse”) despertavam
407
certas desconfianças num ambiente teatral fortemente marcado pelos traumas da
censura à palavra, na ditadura militar. As estéticas pautadas no uso das imagens e
do corpo, desenvolvidas por grupos como o XPTO, Orlando Furioso, Boi Voador e
depois por Gerald Thomas, eram vistas, por parte da classe teatral mais identificada
com um pensamento político-militante, como “alienadas”, sintomas do processo de
repressão ao pensamento perpetrada pelos governos militares.
A meu ver, a utilização de técnicas como o tai chi chuan possibilitam
justamente o desenvolvimento de um outro tipo de “pensamento”. Incidindo sobre
processos cognitivos básicos - como a atenção, a concentração, a conexão corpomente, a relação com o espaço e o tempo – tais práticas permitem o refinamento da
percepção e o afloramento de estados sutis, de grande valia para o trabalho artístico.
O aprofundamento do treinamento implica na gradativa modificação de hábitos, a
partir da experiência intensiva dos movimentos e das técnicas. A repetição das
sequências parece criar uma espécie de “memória corporal” dos estados
experimentados que se transformam em referências para a vida cotidiana do
praticante. Estabelece-se assim uma ponte entre a técnica e a desconstrução dos
padrões automatizados de percepção. Daí a pertinência dessas práticas num
contexto artístico que se pergunta sobre as relações entre arte e vida. Tal tipo de
questionamento, presente em artistas contemporâneos preocupados com a redução
do trabalho artístico a uma mera mercadoria, encontra paralelos em visões orientais
que entendem a arte como uma forma de “cultivo” cotidiano capaz de despertar
certas possibilidades da consciência humana7.
Em “Aponkãlipse”, o tai chi chuan aparecia também diretamente como
linguagem cênica no último quadro do espetáculo, em que o grupo todo apresentava
uma “série” de movimentos junto a um texto do Tao Te King. A beleza dos
movimentos encantava os olhos, mas podia-se ver ali mais do que o simples uso de
uma “forma” ou um motivo “oriental”. Os artistas buscavam outros modos de
compreender o treinamento do ator-performer. Enquanto técnica não espetacular, o
tai chi favorece o cultivo de estados de atenção, percepção e presença, que podem
ser utilizados com grande liberdade na criação cênica.
Neste sentido, o Ponkã estava sintonizado, não necessariamente de modo
408
consciente, com pesquisas sobre a arte do ator que buscavam incorporar técnica
extra-artísticas no treinamento do performer. Não me refiro apenas às conhecidas
investigações de Jerzy Grotowsky na última etapa de seu trabalho (“arte como
veículo”), com os cantos das tradições afro-caribenhas. Penso especialmente no
importante trabalho desenvolvido por Philiip Zarrilli, tomando as práticas do tai chi
chuan, yoga e Kalaripayatu, como bases para a formação de um estado propício à
criação. Numa perspectiva intercultural, Zarrilli relê as contribuições de Stanilawski a
partir da questão da conexão corpo-mente enquanto fundamento do treinamento do
ator. O pesquisador encontra nas artes marciais citadas e no yoga procedimentos
muito precisos para construção de refinados modos de percepção e ação, a partir de
um pensamento filosófico, religioso e estético, distinto do dualismo cartesiano. Se os
artistas do Ponkã não chegaram a desenvolver todos os desdobramentos de
algumas opções que realizaram, podemos reconhecer o pioneirismo de algumas
intuições presentes já nos seus primeiros trabalhos.
Montagem ideogrâmica
Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito às estratégias utilizadas
na transformação do material cênico numa “dramaturgia” singular. O termo
“dramaturgia” deve ser compreendido aqui na sua acepção ampla, incluindo tanto o
texto verbal quanto a organização das ações e dos vários elementos que compõem
a cena. Se tomarmos, por exemplo, o primeiro espetáculo, “Tempestade em Copo
D´água”, poderemos exemplificar bem o que estou chamando de montagem
“ideogrâmica”. Há um tema central: “o ser masculino com seus traumas e anseios,
entre os polos caricatos do machismo e do homossexualismo” (na formulação de
Yutaka). Em torno dele se desenvolverão uma série de cenas mais ou menos
independentes entre si. O assunto genérico dá uma direção inicial para a pesquisa,
sendo rodeado por diferentes pontos de vista que aparecem em cenas singulares.
Não
há,
portanto,
uma
questão
abordada
dramaticamente
através
do
desenvolvimento de um conflito numa narrativa articulada, mas uma constelação de
cenas sintéticas que se organizam em torno de um motivo norteador.
O processo de criação das cenas também se realiza por procedimentos não
409
dramáticos. Como nos revelou Yutaka, vários quadros foram desenvolvidos a partir
de improvisações sobre memórias, impressões e imagens trazidas pelos artistas. Os
materiais não representavam necessariamente situações ou personagens. Em geral
eram depoimentos corporais de forte teor subjetivo. Os exercícios de improvisação
poderiam gerar então uma composição mais estável, definida como “sequência
coreográfica”. A partir daí eram acrescidos personagens e situações reconhecíveis,
como uma camada mais superficial da composição. As personagens em geral eram
estereotipadas, remetendo a referências da cultura de massa: a mulher barbada, o
índio viril, os marginais e a mocinha de filmes policiais, o bailarino e assim por diante.
Os objetos de cena também eram carregados pelas ideias de “gênero”, masculinos
ou femininos: secadores de cabelo, barbeadores, vassouras, revólveres, sutiãs,
barbas, etc.
A opção pelos clichês expressa a preocupação do grupo em trabalhar com
signos facilmente reconhecíveis pelo público. No processo de criação, esse nível
mais legível da cena era construído em cima de estruturas coreográficas iniciais,
mais abstratas e portadoras das vivências pessoais dos atores. Essas estruturas
podiam ser ainda trabalhadas posteriormente pelo jogo teatral (geralmente
humorístico e absurdo) com as “personagens”, o que visava dar ambiguidade e
flexibilidade aos estereótipos: a mulher dona de casa “varre” os perigosos marginais
para fora de casa; o índio viril faz um “strip-tease” com as penas, e assim por diante.
Surge também com frequência o tema da cisão entre o comportamento verbal e
corporal, como se a linguagem física pudesse revelar algo recalcado no discurso
verbal.
O que estou chamando de “montagem ideogrâmica” aparece, em primeiro
lugar, no tipo de concatenação das cenas. Trata-se de uma dramaturgia constituída
pela justaposição de fragmentos mais ou menos independentes, que possuem
relações analógicas entre si. Nesse sentido, a dramaturgia remeteria a uma lógica
semelhante à linguagem ideogrâmica, chinesa e japonesa, estudada por Haroldo de
Campos (1977), no livro “Ideograma”. Não sei se os artistas do Ponkã conheciam a
obra, mas é fato que esta acabou se tornando uma referência importante para os
estudos de estética oriental no Brasil. No ensaio inicial, Campos analisa o trabalho
do norte-americano Ernest Fenollosa sobre “os caracteres da escrita chinesa como
410
instrumento para poesia” e sua absorção pela poesia moderna através da leitura e
divulgação feita pelo poeta Ezra Pound. Na linguagem ideogrâmica, os processos de
justaposição de caracteres constelam novos significados. São vários os belos
exemplos de composição de ideogramas dados no livro: coração + meio = lealdade;
cinzas + coração = desespero; sol + lua = brilho. Nota-se que os significados
abstratos são obtidos a partir da aproximação de referências concretas. Por isso,
Fenollosa chegou a postular que os ideogramas estariam mais próximos de uma
percepção direta e sensível dos fenômenos, sem se apoiarem, a princípio, em
conceitos abstratos. Daí também a qualidade pictórica e icônica dos caracteres.
Campos ressalta, por sua vez, a ausência de conectivos entre os ideogramas e as
associações por justaposição que configuram os significados.
De um modo semelhante, a primeira peça do Ponkã é formada por uma
constelação de cenas em torno de um tema, sem conectivos ou vínculos lineares
entre elas. O que dá certa coesão ao material são as ressonâncias analógicas dos
seus elementos, que vibram como harmônicos. Para que isso aconteça é preciso
desmanchar as hierarquias convencionais da linguagem do teatro dramático, que
entendem o texto e a fábula como o alicerce da construção cênica. Na lógica
ideogrâmica todos os materiais cênicos têm importância semelhante: objetos,
espaço, gestos, movimentos, palavras, organização temporal, luz, som, ruídos.
Articulam-se e “jogam” entre si de maneiras imprevistas, criando também relações
transversais entre as cenas. As composições de elementos simples sugerem
significados mais abertos e abstratos. A poesia se constrói a partir de percepções
sensíveis que permitem apreensões metafóricas. Se há “micro-narrativas”, estas não
se estabelecem como o essencial do espetáculo. São apenas mais um dos
ingredientes do jogo lírico, humorado e por vezes absurdo, que pretende
“desdramatizar” um assunto (machismo, homossexualismo) por demais carregado
de paixões e preconceitos: “tempestades em copo d’água”.
Desdramatização da “antropofagia”
Os manifestos que acompanham os primeiros trabalhos do Ponkã “Manifesto Ponkã” (Paulo Yutaka) e “Teremos que ser radicais” (Luis Roberto
411
Galízia) – reivindicam, de modos distintos, uma conexão do grupo com o
modernismo brasileiro na sua vertente “oswaldeana”. A experiência anterior de
Yutaka com o teatro Oficina e o interesse de Galízia pelas vanguardas tornam
compreensível essa aproximação da “antropofagia”, um conceito que ajuda a pensar
as alteridades culturais e a experimentação artística. Pergunto-me, no entanto, sobre
o sentido singular que o termo acaba assumindo no Ponkã e se ele dá conta do que
parece emergir de singular no trabalho do grupo.
O manifesto de Yutaka, assinado com o com o codinome Ubiratan Tokugawa
e publicado no programa do primeiro espetáculo em 1982, é composto por uma série
de pequenos textos de 3 linhas, que lembram hai kais. Existe uma certa
despretensão, uma opção pela simplicidade e leveza, que diferencia o texto do tom
que geralmente associamos a “manifestos”.
ponkã é filho natural brasileiro
mistura de culturas e raças
ponkã mestiço
ponkã é laranja mexerica
da terra de nativos e imigrantes
8
ponkã brasileiro
Mais do que a postura de “devoração” das influências estrangeiras como
política de uma cultura colonizada (que caracteriza a “antropofagia oswaldeana”),
estamos diante de metáforas vegetais e das ideias de mistura, miscigenação e
hibridismo. Nesta atmosfera, as identidades étnicas se desmancham e se
recombinam em diversas possibilidades, entre elas a de uma “brasilidade mestiça”.
Mas essa não é a única opção expressa no texto que tem o cuidado de não se fixar
numa imagem ou idéia privilegiada, abrindo-se para outras perspectivas, incluindo
uma menção direta à antropofagia:
ponkã é mistura do mundo
tem ásia áfrica europa
ponkã américa
ponkã é capital são paulo
respira antropofagia
ponkã social
ponkã nasce em fase de crise
sobrevive no meio do caos
ponkã fatal
412
ponkã deseja abrir saídas
em caminhos fechados e buracos
ponkã coragem
A antropofagia é um dos elementos do manifesto, mas não sua idéia central.
Ela convive com outras perspectivas, menos agonísticas, como as da mestiçagem e
da hibridização. Num certo sentido, tal justaposição “desdramatiza” as várias
posições em jogo, fazendo-as dançar no mesmo espaço. Sem fazer muita
“tempestade em copo d´água”, o manifesto parece querer nos lembrar que qualquer
posicionamento pode se tornar rígido e caricatural. Por isso, o pensamento precisa
adquirir algo da qualidade do tai chi. Uma posição pode ser necessária num
determinado momento, mas sempre corre o risco de perder a fluidez, desembocando
no discurso da “identidade”. Daí a importância de se jogar com o fluxo constante das
mutações do mundo fenomênico, tema privilegiado no pensamento taoísta e budista.
A “antropofagia” torna-se apenas mais um ponto de vista, uma estratégia possível e
não uma direção programática.
Lembro-me da atuação política de Paulo Yutaka e de Celso Saiki na
Cooperativa Paulista de Teatro. Num ambiente ainda por demais polarizado entre os
partidários de um teatro político militante e os adeptos da corrente “antropofágica”,
os dois artistas, que foram presidentes da instituição, buscavam muitas vezes as
frestas para outras possibilidades de ação. Nesses momentos, a postura estética do
Ponkã se desdobrava numa ética e numa política. As altas temperaturas dos
debates ideológicas e a hybris modernista de desejar o novo a qualquer custo
pareciam ceder terreno para um jogo mais sutil e eficaz.
É certo que o Ponkã também se alimentou de um romantismo contracultural,
em que o “Oriente”, em geral, tem um assento garantido9. Mas era possível sentir ali
o frescor de outros ventos, uma vontade de ir mais fundo naquilo que se vislumbrava,
movimento este bruscamente interrompido pela morte de vários membros do grupo.
O trabalho do Ponkã se desdobrou posteriormente numa pesquisa mais vertical de
matrizes do teatro clássico oriental, que geraram o espetáculo “Pássaro do Poente”.
A respeito dessa peça outros pesquisadores, como a atriz Alice K e o diretor Márcio
Aurélio Garcia, participantes ativos desse processo, podem nos fornecer abordagens
413
aprofundadas.
Notas
1
2
Cito aqui o nome dos artistas com quem tive maior contato.
A tese foi publicada pela editora Perspectiva, com o título “Os Processos Criativos de Robert Wilson”,
em 1986.
3
A este respeito ver LARSON (2012)
A leitura de que os happenings dos anos 50 e 60 eram mais caóticos e improvisados do que as ações
performáticas foi propagada também pelos trabalhos teóricos de Renato Cohen, importante precursor dos
estudos e práticas da performance no Brasil. No entanto, os estudos da pesquisadora Thaíse Nardin sobre os
roteiros dos happenings de Allan Kaprow mostram que a questão é mais complexa.
5
Referimo-nos à reinvenção das referências orientais nos trabalhos de Meyerhorld, Craig, Artaud, Dullin,
Copeau, Brecht entre outros.
6
O termo “expressão corporal” designava uma série de práticas de forte conteúdo improvisacional,
utilizadas como exercício na área de dança e do teatro. Um treinamento, portanto, distante do tai chi chuan, que
se utiliza de Katis e sequências fixas.
7
Como nos mostra YUASA (1987)(1993), boa parte das técnicas encontradas nas artes marciais (Ken
dô), na poesia waka, no teatro Nô e na medicina tradicional, derivam de práticas contemplativas advindas do
Budismo. Elas perseguiriam a construção de um estado de “unificação” do corpo-mente como modo de obtenção
do satori , ou iluminação.
8
Os textos citados pertencem ao “Manifesto Ponkã”, publicado no programa do espetáculo
“Tempestade em Copo d’água”, em 1983.
9
Pode se ler no manifesto escrito por Galizia, “Teremos que ser radicais”, publicado no programa do
espetáculo “Aponkãlipse”: “Neste Brasil em que estamos agora, o novo, o moderno, o hodierno, o transformador,
a decisão radical, a afirmação contracultural, precisamos mais uma vez dar ouvidos aos loucos e aos profetas.”
4
Referências Bibliográficas
Livros
CAMPOS, Haroldo de (org). Ideograma: Lógica, Poesia e Linguagem. São Paulo. Editora
Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo.1977.
LEMINSKI, Paulo.Vida. São Paulo. Companhia das Letras. 2013.
LARSON, Kay. Where the Heart Beats: John Cage, Zen Buddhism and the Inner Life of
Artists. New York. The Pinguin Press.2012.
YUASA, Yasuo. The Body, Self Cultivation and Ki-Energy. New York. State University of
New York Press.1993.
ZARRILI, Phillip B. Psychophysical Acting: an Intercultural Approach after Stanislawski.
London and New York. Routledge. 2008.
-Artigos de Revista
LIMA, Mariângela Alves de. Perplexidades de um crítico. Arte em Revista, São Paulo, n.8,
Kairós, p.110,1984.
Dissertações de mestrado
QUILICI, Cassiano Sydow. Teatro Experimental: Liminaridade e Mercado.1992.152 f.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
RAMOS, Luis Fernando. Galízia: uma poética radical no teatro brasileiro. 1989. 140 f.
Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas)- Escola de Comunicação e Artes, Universidade de
São Paulo, São Paulo.
414
Cassiano Sydow Quilici
Professor livre docente do instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), com doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e mestrado em
Antropologia Social pela Unicamp. Autor dos livros “Antonin Artaud: Teatro e Ritual” (sd.
Annablume e “O Ator-Performer: Poéticas da Transformação de si” (Ed. Perspectiva/no
prelo) e diversos ensaios sobre teoria teatral e estudos interculturais.
415
A DIMENSÃO TÁCITA COMO EIXO DO TRABALHO DO ATOR NOS TEATROS
ORIENTAIS
Matteo Bonfitto Júnior - UNICAMP
RESUM O: Sobretudo a partir do início do século XX no Ocidente, os processos de atuação
passaram a representar no teatro um material de investigação artística constante. Nesse
sentido, vários criadores teatrais ocidentais foram extremamente influenciados por diferentes
manifestações cênicas orientais; bastaria citar a relação entre Meierhold e o Kabuki, Brecht
e a Ớpera de Pequim, Artaud e o Teatro de Bali, e Grotowski e o Teatro Kathakali, dentre
muitos outros. De qualquer forma, tais influências muitas vezes não ultrapassaram o plano
das primeiras impressões e intuições. Nesse sentido, vários aspectos constitutivos do que
poderíamos chamar de ‘dimensão tácita da atuação’, que envolvem por sua vez implicações
técnicas, éticas e estéticas, passaram desapercebidos por tais criadores. É nesse sentido
que essa pesquisa se insere, na medida em que busca olhar para a dimensão tácita da
atuação a partir de experiências práticas diretas, vivenciadas em primeira pessoa,
relacionadas com o Teatro Kabuki, o Topeng Balinês, o Kathakali, o Chi Kung e o Kung Fu.
Não se trata aqui de buscar construir modelizações universalizantes mas de buscar
perceber com os olhos da prática que os processos de atuação envolvem aspectos que vão
muito além da aplicação utilitária de técnicas.
Palavras-chave: tácito, alteridade, atuação, experiência.
ABSTRACT: Since the beginning of the XXth Century in the Western World, acting
processes have started to be seen as a material of constant investigation. In this respect,
many western theatre artists were deeply influenced by a variety of eastern theatre artforms,
such as the relationship between Meyerhold and the Kabuki Theatre, Brecht and the Peking
Opera, Artaud and the Balinese Theatre, Grotowski and the Kathakali, among many others.
Notwithstanding, such influences very often did not go beyond their first impressions and
intuitions. As a result, many aspects that constitute what we could call the ‘tacit dimension of
acting processes‘ was overlooked by these artists. This point represents the core of this
article, since it aims at looking at the dimension already referred to using in this case firsthand direct experiences associated with Kabuki Theatre, Balinese Topeng, Kathakali, Chi
Kung and Kung Fu. It is important to clarify that the objective here is not that of creating
universal models but that of perceiving, through the eyes of practice, that acting processes
involve aspects that go far beyond the utilitarian application of techniques.
Keywords: tacit, alterity, acting, experience.
A escritura desse artigo tem como objetivo refletir, ainda que brevemente,
sobre a dimensão tácita que envolve o trabalho do ator em algumas formas teatrais
orientais. E ao mesmo tempo, tem um sentido de reencontro que pode ser
representado, em termos gráficos, por uma espiral. De fato, em meu percurso como
artista-pesquisador, a minha primeira reflexão feita sobre a atuação do ator,
elaborada de maneira mais consistente, se deu após uma experiência prática vivida
416
com a Dança Kabuki chamada Shosagoto.1 Apesar de ter tido já naquele momento
uma trajetória variada com as práticas de atuação, senti nessa ocasião, pela
primeira vez, a necessidade de aprofundar uma experiência através da reflexão e da
elaboração. Tal reflexão não teve como objetivo explicar a prática, mas reconhecer
uma espécie de zona de ressonância que potencializou a experiência vivida. Várias
experiências diretas relacionadas com diferentes manifestações cênicas orientais
aconteceram desde então mas esse processo teve uma importância particular, como
se um universo tivesse se aberto.
A percepção que havia tido nos diversos contextos de formação conhecidos
até então, envolvia uma combinação de admiração e preconceito com relação aos
atores orientais, admiração em função da destreza atlética demonstrada por eles,
mas ao mesmo tempo um preconceito em relação a uma suposta falta de
criatividade presente no trabalho de tais profissionais. Tal falta de criatividade era
associada, em certos contextos de formação que frequentei, aos processos
estabelecidos nas pedagogias teatrais orientais, aos modos de transmissão de
conhecimento empregados nesses teatros, apoiados, sobretudo na imitação dos
mestres pelos alunos-atores. Dizia-se, então, que a centralidade da imitação na
formação dos atores orientais poderia ser vista como uma evidência de ausência
criativa, em função também da não exploração de improvisações, nesse caso.
Tais percepções perduraram até a minha experiência direta com a Dança
Shosagoto, conduzida pelo Mestre Onoe Ozomu. Descreverei alguns aspectos
dessa experiência em função do papel que ela exerceu enquanto desencadeadora
de uma transformação perceptiva profunda. O material explorado aqui foi uma dança
chamada Itakodejima.
Desde o primeiro dia do curso vestimos o kimono (yukata), a faixa (obi), e em
mãos um leque (sensu). Todas as ações eram executadas pelo mestre e
reproduzidas por nós, alunos-atores. No início de cada aula repetíamos as ações
aprendidas nos dias anteriores para depois passarmos às ações que deveriam ser
estudadas naquele dia. Repetíamos as ações diversas vezes com e sem o
acompanhamento de uma música. Em muitos momentos, enquanto observava o
mestre revivia certas sensações experimentadas quando vi pela primeira vez um
espetáculo Kabuki. Os gestos, as ações, tinham um alto grau de especificidade não
417
decodificável. A formalização das ações, em seus percursos cinéticos, muitas vezes
não se diferenciava daquelas presentes nos códigos comportamentais, digamos,
cotidianos. E, no entanto, a sua manifestação expressiva continha algo de específico.
Nos momentos em que as ações eram executadas individualmente, sem a utilização
da música, buscava compreender porque alguns atores, apesar de executarem o
trabalho com precisão, não conseguiam produzir o mesmo fenômeno. As ações
seriam realmente as mesmas? O processo de observação continuou; buscava
executar com precisão as ações propostas pelo Mestre. O desdobramento desse
processo me levou a perceber que aquilo que era chamado de kata não
correspondia à ideia que tinha de ‘forma’. Não se tratava nesse caso de
composições lineares ou espaciais simplesmente. Após algum tempo comecei a
reconhecer a existência de certos elementos, a diferenciá-los internamente, além de
constatar a presença de algumas constantes que se repetiam.
Com o tempo outras questões foram surgindo. Por exemplo, frequentemente
ações e sequências reapareciam, mas não eram exatamente as mesmas. Comecei
a perceber componentes invisíveis que estariam sob o desenho e os percursos
cinéticos daquelas ações. Percebi então que poderiam estar presentes em tais
ações dois níveis expressivos, chamei o primeiro de ‘esqueleto estrutural’ e o
segundo de ‘qualidade de energia’. O nível ‘esqueleto estrutural‘ envolve todos os
elementos que podem ser reproduzidos visualmente no espaço ao passo que o nível
‘qualidade de energia‘ diz respeito ao como as ações são executadas e seria
constituído por três aspectos: variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos. 2
Percebi, então, que cada kata envolvia uma relação dinâmica entre esses dois níveis
expressivos, que podem ser vistos como continuums. Percebi, também, que cada
kata emergia da relação entre estruturas corporais que se manifestavam
espacialmente e qualidades de energia que eram produzidas pela articulação entre
diferentes variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos.
Essa elaboração, a qual chamei de ‘Modelo de Kata’, publicada mais tarde em
meu primeiro livro (Bonfitto, 2002, 2006), emergiu da experiência prática direta, e tal
fato me possibilitou problematizar a percepção simplificadora do trabalho dos atores
orientais já mencionada. De fato, a imitação foi percebida a partir dessa experiência
não como uma reprodução mecânica de algo já existente mas como um processo
que pode envolver muitas camadas e tipos de manifestação. A leitura de Kadensho
418
feita na mesma época, obra escrita por Zeami (ZEAMI, 1968),3 contribuiu de maneira
fundamental para essa percepção da imitação.
Em Kadensho, Zeami faz referência a cinco princípios: princípio de imitação,
princípio de verossimilhança, princípio de identificação, princípio de essencializacão
e princípio de limitação. A noção generalizante de imitação, que corresponderia a
uma mera reprodução da aparência das coisas, é assim dissolvida, passando a dar
lugar a uma trajetória artesanal complexa. Essa elaboração de Zeami adquire uma
grande relevância na medida em que nos faz perceber a imitação como processo
que vai muito além da reprodução de aparências para envolver a captação de
aspectos sensíveis dinâmicos que dissolvem por sua vez o dualismo que permeia a
relação sujeito-objeto.4
Outro aspecto examinado nessa ocasião está relacionado com a suposta falta
de criatividade observada em alguns contextos de formação do ator no Ocidente.
Esse argumento estava relacionado com a aparente ausência de processos
improvisacionais no trabalho dos atores orientais. Ao reconhecer a importância do
nível expressivo ‘qualidade de energia’ na produção das Kata, pude problematizar
também essa percepção. De fato, percebi que a articulação dinâmica existente entre
variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos produzia um ‘espaço de improvisação’
que poderia ser explorado pelo ator. Tal aspecto ficou claro em função de uma
observação atenta do Mestre Ozomu enquanto ele repetia as kata. Percebi que as
mesmas kata se manifestavam de maneira precisa, mas ao mesmo tempo essa
manifestação envolvia diferenças quase imperceptíveis que estavam relacionadas
com a articulação dinâmica referida. Ao compartilhar essa percepção com ele, o
Mestre concordou mas ao mesmo tempo disse, em poucas palavras, que esse
espaço poderia emergir somente após uma grande experiência do ator, de outra
maneira, as kata se descaracterizariam e perderiam a própria especificidade
expressiva. Além disso, a criatividade pode ser reconhecida no caso do ator Kabuki
a partir da possibilidade existente para aqueles reconhecidamente experientes de
criar novas kata que podem assim ser inseridas nas partituras de ações já existentes.
Pude constatar através dessa experiência que a argumentação relacionada à
falta de criatividade e de ausência de improvisação no trabalho dos atores orientais nesse caso do ator Kabuki - não se sustenta. Tal argumentação era apoiada,
419
provavelmente, em um desconhecimento e na ausência de experiências diretas com
as linguagens de atuação orientais.
Após a prática com o Mestre Ozomu várias outras experiências relacionadas
com as linguagens cênicas orientais aconteceram. Tive um contato direto com John
Kalamandalam, Mestre indiano de Kathakali, Enrico Masseroli, Mestre de Topeng
balinês; mais tarde com o ator japonês Yoshi Oida e com o ator balinês Tapa
Sudana, os dois últimos integrantes do grupo internacional de teatro de Peter Brook,
com sede em Paris.5 Além de reconhecer nessas ocasiões uma certa recorrência
ampliada do Modelo de Kata - em que estruturas eram articuladas dinamicamente
com qualidades de energia - pude, também a partir de uma percepção mais
aprofundada da questão da energia, reconhecer a centralidade da dimensão tácita
nessas experiências. Esse reconhecimento me fez resgatar inclusive a experiência
vivenciada com o Mestre Ozomu.
Na verdade, desde a experiência vivenciada com o Mestre Ozomu, o
reconhecimento da importância da dimensão tácita no trabalho do ator já estava
presente para mim de forma latente. Mas o reconhecimento e a nomeação dessa
dimensão, ocorridos a partir das leituras de textos de Michael Polanyi (POLANYI,
2006, 2009) potencializou essa consciência e ampliou de maneira significativa o meu
horizonte perceptivo relacionado ao tácito. Ao mesmo tempo, percebo a
necessidade de ir além das elaborações de Polanyi uma vez que o tácito é referido
em seus textos quase sempre em relação à linguagem verbal e escrita, a
necessidade de ampliar esse território a fim de inserir nele as práticas do ator.
A partir dessas leituras, pude rever os processos com os mestres-atores
mencionados; muitas percepções emergiram dessa revisão. Tudo o que estava em
torno ao fazer passou a ser percebido como uma dimensão fundamental, e não
secundária, dessas práticas pedagógicas. Percebi que, antes da execução das
práticas, uma série de processos já estava ocorrendo. A qualidade de presença dos
mestres, os modos de acolhimento dos alunos-atores, a preparação do espaço, que
envolvia desde a limpeza do chão até o ‘acordar os materiais’ através de
procedimentos de percussão,6 e a qualidade de silêncio que permeava tudo isso. É
preciso criar condições para que algo aconteça, ou seja, é preciso que se instaure
420
um processo de ampliação perceptiva para que experiências mais densas possam
emergir.
No caso do trabalho do ator, Eugenio Barba deu uma contribuição importante
para os desdobramentos das reflexões sobre a presença do ator, na medida em que
apontou aspectos que estariam envolvidos em sua produção: equilíbrio precário,
oposições musculares, omissão, princípio de equivalência, kraft, etc. Sem descartar
essas possibilidades, pude perceber qualidades de presença nos mestres referidos
que emergiram não somente de um ‘trabalho sobre si’, mas também da qualidade de
contato com o Outro, processo esse entendido como exercício de alteridade. Em
outras palavras, a produção de presença foi percebida nesse caso não somente
como um efeito do artesanato do ator sobre si mesmo, mas igualmente como
habilidade de escuta e de estabelecimento de um contato mobilizador com o Outro.
Esse contato implica por sua vez não somente a transferência de conhecimentos e
competências já adquiridos, mas igualmente a capacidade de compartilhamento de
experiências que, assim, a cada vez, a cada momento, são presentificadas. Trata-se,
portanto da presentificação de experiências que funciona assim como uma
componente fundamental da construção compartilhada de conhecimento. O
conhecimento dessa maneira não é algo que se transfere simplesmente, que se
adquire, se compra, mas se dá em cada um que age sobre o Outro e vice-versa,
reciprocamente.
A ausência de instruções e de explicações sobre a prática, aspecto esse que
não pode ser dissociado das observações feitas acima sobre a presença,
representou uma outra componente importante desses processos. Não se trata aqui
do silêncio que resisti pessoalmente durante a minha passagem pela escola
elementar, um silêncio visto como ‘questão de ordem’ e como evidência de ‘bom
comportamento’. Nem as minhas várias idas à diretoria conseguiram, na época, me
fazer entender a necessidade de um silêncio imposto, não o silêncio produzido pela
experiência, mas o silêncio burocrático, exigido para fortalecer um simulacro de
processo pedagógico. Ainda hoje, ao ministrar cursos práticos de atuação em
diferentes contextos, percebo frequentemente a resistência por parte dos atores,
mesmo aqueles profissionais, em se lançarem nas práticas sem uma necessidade
prévia de entendimento das mesmas. Dentre as perguntas frequentes que surgem
nessas situações há algumas clássicas: “mas qual seria o objetivo dessa prática?”;
421
“o que você está querendo com isso que propõe”; e há ainda o frequente “estou
perdido/a, não sei porque estou fazendo isso que você propõe”. Tendo vivido em
diversos países ditos ocidentais, posso hipotizar que há nas culturas provenientes
dessa área geográfica, uma necessidade profunda de ‘saber para fazer’, lógica essa
sedimentada muitas vezes na escola elementar e na escola média. O processo
histórico parece ter cristalizado um racionalismo empobrecido nesses contextos.
Muitos filósofos ocidentais são testemunhas desse processo, desde Nietzsche e
Shopenhauer até Heidegger, Merleau-Ponty, Deleuze, Lyotard, até o próprio Polanyi,
químico de profissão, e desencantado com o suposto saber objetivo evocado pelas
ciências exatas.
Diante da ausência de explicações e justificativas que são dadas
normalmente para manter acesa a atenção do aluno, fui levado, durante as
experiências práticas referidas, a ‘inverter essa chave‘ perceptiva; tive que me dispor
realmente a ‘fazer para saber’.
Mas o saber aqui, apesar de ter produzido no meu caso algumas elaborações
tais como o ‘Modelo de Kata‘, vai muito além da possibilidade de tradução verbal e
de elaboração intelectual. Trata-se de um território que pode ser chamado de ‘saber
da prática’, que é permeado por sua vez por ‘lógicas da prática’. Lidamos nesse
caso com o campo do sensível que pode oferecer possibilidades variadas de
intelectualização. Vários aspectos estão envolvidos com o saber da prática, tais
como a exploração da intuição, da concentração, e a emergência de abduções.
De qualquer forma, uma implicação que emerge desse ‘saber da prática’
merece destaque: a própria noção de saber é aqui ampliada e problematizada. O
saber deixa de ser, nesse caso, somente o que é passível de nomeação e de
elaboração e passa a agregar aspectos que estão envolvidos na processualidade da
execução de práticas, que é muitas vezes catalisadora do invisível e do indizível.
Nas experiências vividas com os mestres referidos experienciei processos de
exploração e construção de saberes da prática.
Presenciei, inúmeras vezes, nessas experiências, perguntas feitas por
colegas ocidentais aos atores orientais. Essas perguntas se referiam em geral ao
significado das ações que os atores orientais executavam em suas demonstrações.
422
Diante da ausência de explicações a reação era quase sempre a de estupor e
decepção: “Mas se você não sabe o significado de suas ações, como você as
executa de maneira tão viva e interessante?” Essa pergunta era frequente.
Refletir sobre o ‘saber da prática’, território permeado de maneira profunda
pela dimensão tácita, representa uma tarefa árdua. Desse modo, creio ser útil inserir
a descrição de uma outra experiência vivida com um dos mestres mencionados.
Trata-se de workshops guiados pelo ator japonês Yoshi Oida.
Esses workshops exploraram diferentes tipos de procedimentos e materiais,
desde textos até canções e objetos. Além disso, vários aspectos relacionados com a
cultura japonesa foram referidos, ainda que brevemente. Oida falou, por exemplo,
sobre a inter-relação entre hana, tai, e yu.7 No caso dos textos trabalhados nesses
encontros, eles eram provenientes de várias línguas. Oida pediu para que
percebêssemos a qualidade de cada som, de cada língua. Enquanto fazíamos esse
trabalho, Oida observou que alguns atores não exploram as potencialidades dos
sons, mas reproduzem sem perceber códigos culturais, como a musicalidade de
apresentadores de televisão, etc... Explorar os sons das palavras implica escavar o
feio, o estranho, o desconhecido; envolve a capacidade de sermos tocados pelo som
que fazemos, assim como a capacidade de perceber a ressonância desse som em
nosso corpo, e os efeitos produzidos por esse processo. Desse modo, deveríamos
tentar ultrapassar nossos modelos culturais que determinam nossa musicalidade, a
entonação das palavras. Podemos, nesse sentido, relacionar as observações de
Oida com o que Barthes chamou de ‘o grão da voz’ (ver Barthes, 1977, 179-189).
Exploramos também a relação entre movimento e ritmo. A fim de nos fazer
perceber a importância desse aspecto, Oida descreveu uma cena que atuou em O
Homem Que (1993), espetáculo dirigido por Peter Brook. Nesse espetáculo, ele fez
o papel de um paciente que havia perdido a capacidade de perceber o lado
esquerdo de seu corpo. Durante uma cena, aquela referida por Oida, os médicos de
um hospital pedem para que a personagem feita por ele raspe a própria barba diante
do espelho. Ele obedece. Mas uma vez que ele não tinha consciência da parte
esquerda de seu corpo, ele raspou somente a parte direita de sua barba. A
personagem estava absolutamente certa de ter raspado toda a barba. O mesmo
tempo que fazia a barba, ele estava sendo filmado pelos médicos. Os médicos então
423
pediram para que ele virasse o rosto em direção ao monitor onde a sua imagem
estava projetada. No espelho, a parte esquerda de seu rosto aparecia à esquerda, e
no monitor ela aparecia à sua direita. Desse modo, ele pôde ver que metade de seu
rosto estava ainda coberta com o creme de barbear. Naquele momento a
personagem de Oida reconhece a existência de sua patologia. Após descrever essa
cena, Oida nos explicou o modo como percebeu o estado interno de sua
personagem através do trabalho com o ritmo. Ele tinha que olhar para o monitor e
então olhar de volta para o espelho três vezes, a fim de comparar as duas imagens
de sua face. Oida, a cada mudança de direção, mudou o ritmo de sua ação,
construindo assim a conexão interna necessária para atuar essa cena. Após
descrevê-la, iniciamos o trabalho com o ritmo.
Executamos exercícios básicos de ritmos binários, ternários, e quaternários.
Oida então se referiu ao princípio de jo-ha-kyu (início-desenvolvimento-conclusão).
Ele explicou que esse princípio permeia não somente todos os aspectos da cultura
japonesa, mas, como apontado por Zeami, é de fato transcultural, está presente em
todos os fenômenos naturais. Executando várias ações, Oida demonstrou a
aplicação prática desse princípio. O que é importante notar nesse caso é que essas
três fases, jo, ha, e kyu podem ser progressivamente exploradas enquanto a ação se
desenvolve. Como demonstrado pelo ator japonês, a ação de caminhar até uma
cadeira e sentar-se, por exemplo, pode ser permeada pelo princípio em questão
como um todo, mas se a repetirmos, tal princípio pode penetrar partes cada vez
menores dessa ação. Quanto mais o ator explorar esse princípio, começando de
partes maiores para então fragmentá-la progressivamente, mais sua ação será
detalhada, e como resultado ele poderá produzir um efeito de organicidade. Quando
explorado corretamente, o jo-ha-kyu pode gerar ressonâncias psicofísicas no ator.
Após trabalhar com esse princípio, começamos a explorar improvisações.
Deveríamos improvisar utilizando objetos. No meu caso improvisei com uma cadeira.
Após construir uma partitura de ações que envolveu diferentes níveis de relação
com esse objeto, Oida pediu para que eu explorasse um fragmento extraído do texto
de Orghast, que havia sido utilizado na produção dirigida por Brook no início dos
anos setenta do século XX. Eu deveria então conectar a sequência produzida com a
cadeira com o trabalho desenvolvido com o fragmento de Orghast. Após construir a
transição entre a sequência com a cadeira e o trabalho com esse fragmento,
424
apresentei o material para Oida, que observou: ‘Ok. Agora selecione o que deve ser
mantido, e descarte o resto.’ Duas horas mais tarde mostrei a ele as partes editadas
e ele fez a mesma observação. Esse processo continuou e ele repetiu o mesmo
pedido. Dois dias depois, a inteira sequência havia sido reduzida, de quinze para
três minutos. Percebi então que tal redução não estava relacionada ao tempo em si.
O fato é que o material que permaneceu era aquele que ressoava realmente em
mim; a sequência final representa o material que funcionava como um gerador de
ações psicofísicas, em que meus processos interiores e exteriores estavam
integrados, e nesse sentido a exploração do jo-ha-kyu cumpriu um papel importante
nesse processo. Ao explorar esse princípio, as ações revelaram potencialidades
expressivas que não havia percebido até então, e tal fato modificou a maneira como
tais ações passaram a ser atuadas. Com relação a essa exploração, Oida comentou:
“você deve saber o momento que deve desenvolver sua ação exterior, e o momento
que deve permanecer imóvel. A ação não se interrompe, ele se torna mais
concentrada.” Eu deveria, assim, explorar momentos de imobilidade, momentos
esses que poderiam ser considerados como sendo ápices de minhas ações.
No estágio seguinte do trabalho, eu deveria detalhar a minha sequência de
ações psicofísicas que durava três minutos. No início foi difícil lidar com esse
processo, sobretudo porque nesse caso, como apontado por Oida, o ator deve
selecionar os detalhes que ele desenvolverá: “quando você conhece o material que
você irá trabalhar, você deve selecionar detalhes a fim de desenvolvê-los.” Nesse
ponto eu então perguntei a ele:
- MB: Como posso escolher os detalhes que preciso desenvolver? Todos eles
parecem ser importantes...
Oida respondeu:
- YO: Quanto mais você trabalha com o material, mais você percebe que há
muitas diferenças internas contidas nele. Então, você verá que internamente, o
material é formado por detalhes que não têm o mesmo valor, a mesma importância.
Desse modo você perceberá quais são os detalhes que você precisa desenvolver.
Oida me pediu, então, para desenvolver esse processo de diferentes
maneiras, algumas vezes dilatando minhas ações e algumas vezes reduzindo-as,
425
miniaturizando-as. Além disso, ele disse para que eu concentrasse a energia em
diferentes partes de meu corpo, enquanto a ação era desenvolvida. Observou que
esse modo de trabalhar poderia ser útil porque os detalhes ao seu ver não podem
ser selecionados intelectualmente. Oida comentou ainda: ‘Não tenha consciência
somente das circunstâncias que envolvem as suas ações, pense sobre o fio que o
conecta ao céu e à terra.’ Eu deveria voltar minha atenção para diferentes aspectos,
e desse modo pude perceber que o material pode ser explorado em muitos níveis,
gerando assim várias camadas expressivas.
No último dia de trabalho, antes da apresentação das partituras de ações
criadas por cada ator, Oida comentou sobre a qualidade de vazio permeia também a
relação entre o ator e o público. O vazio, desse modo, ajuda o ator a perceber o
público, a ajustar suas ações, e a estar completamente presente no que está
fazendo.
A descrição dessa experiência envolve em diferentes níveis a exploração dos
aspectos associados ao saber da prática. De fato, além dos raros momentos de
explicação e informação fornecidos verbalmente por Oida, significados e sentidos,
intenções
e
intensões,
intuições,
concentração
e
abduções
permearam
significativamente esse processo. Apesar de não termos trabalhado com uma
linguagem cênica oriental, o modo de construção dos materiais explorou
procedimentos herdados das experiências de Oida com Brook e com o Kyogen.8
Terminamos o encontro da mesma forma como começamos, em silêncio. Mas o
silêncio do final era outro, ele havia se transformado perceptivelmente, assim como
nós.
Essa experiência, assim como as demais mencionadas, revelam a
importância do saber da prática permeada pela dimensão tácita. Reconheço nessa
abordagem especificidades que podem ampliar significativamente as possibilidades
expressivas do ator. Mas nesse caso, não se trata de mais um modelo, de uma
aplicação utilitária de técnicas. A relação entre ética e estética é condição necessária
aqui. Os procedimentos referidos implicam em uma transformação perceptiva do ator
e de uma ampliação relacional que passa necessariamente pelo exercício de
alteridade em diferentes níveis. Além disso, a exploração do tácito pode permitir a
incorporação de uma inversão importante: o fazer para saber. Esse processo pode
426
levar à ressignificação da própria noção de atuação, que pode vir a ser uma
instância que dissolve as fronteiras entre arte e vida.
Notas
1
A dança shosagoto, conhecida também como furigoto é um dos vários estilos de dança Kabuki. Ela
pode ser apresentada como um espetáculo em si ou aparecer como uma cena de um espetáculo Kabuki. Elas
incluem alguns dos trechos mais conhecidos do Teatro Kabuki.
2
Os contra-impulsos referem-se às transições executadas pelos atores entre uma ação e outra.
3
Motokiyo Zeami (1363-1443) foi o criador do Teatro Nô, juntamente com o seu pai Kan’ami Kiyotsugu
(1333-1384). Além de ator, Zeami foi um importante teórico do Teatro Nô.
4
Não se trata aqui de ampliar a reflexão sobre a imitação, tarefa essa que seria um projeto de anos de
pesquisa, mas cabe observar que a noção de imitação como processo está presente também na cultura
Ocidental, começando pela Poética de Aristóteles.
5
Peter Brook fundou o CICT - Centre International de Créations Théâtrales - em 1974 no Teatro Bouffes
du Nord, em Paris.
6
Oida costumava ‘acodar os materiais’ antes do início das práticas. Os elementos que continham
madeira, por exemplo, eram tocados ritmicamente com bastões, com essa finalidade.
7
Hana significa ‘flor’, e diz respeito a uma qualidade de presença que é produzida pelo ator. Há dois
tipos de hana: aquele temporário, que é produzido quando o ator é jovem, e o hana real chamado de shin-nohana, que revela a maturidade profissional do ator. Hana envolve ainda tai, estrutura fundamental da flor; e yu,
seu perfume.
8
Juntamente com o Teatro Nô e o Teatro Kabuki, o Kyogen representa uma manifestação cênica
tradicional do Japão. Ele diferencia-se dos outros dois tipos de teatro na medida em que explora aspectos
marcadamente cômicos e personagens tipificadas.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, R. R. de. Bunraku e Kabuki: a linguagem das animações japonesas. Biblioteca
On-line de Ciências da Comunicação, 2008. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=1548 Acesso em 8/11/2013.
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BARTHES, R. Image - Music - Text. London: Fontana Press, 1977.
BONFITTO, M. A pregnância do vazio: o ensino e a prática do Kabuki. Pesquisa de
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__________. O ator-compositor: as ações físicas como eixo. De Stanislávski à Barba. São
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DENNET, D. Tipos de Mentes: rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro:
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London: Routledge, 2012.
__________. The Tacit Dimension. Chicago: University of Chicago Press, 2009.
ZEAMI, M. Kadensho. Kyoto: Sumiya-Shinobe Publishing Institute, 1968.
Matteo Bonfitto
É ator-performer, diretor de teatro e pesquisador na área de Artes da Cena. Cursou a EADECA-USP e o DAMS de Bologna, na Itália. É Mestre pela ECA e Doutor (PhD) pela Royal
Holloway University of London. Além do trabalho artístico, apresentado no Brasil e no
exterior, é Professor Livre-Docente da UNICAMP. É um dos fundadores do Performa Teatro
- www.performateatro.org - e autor de vários artigos e livros sobre a atuação do atorperformer.
427
NÔ BRASIL: ASPECTOS DA TRADIÇÃO HOJE
Ângela Mayumi Nagai - PUC - SP
RESUMO: Este artigo se propõe a revisitar a história do teatro Nô no Brasil, focando, num
primeiro momento, a trajetória do grupo Hakuyou Kai, fundado em 1939 e extinto na década
de 1990; em seguida, a atualizar o percurso dos imigrantes praticantes e a formação de
novos grupos e por fim, descrever as atuais atividades desses grupos, sobretudo no contato
com novas gerações de artistas brasileiros. Dessa maneira, o objetivo deste artigo é
centrado na reflexão sobre a transmissão do Nô no mundo contemporâneo e na
singularidade do contexto brasileiro.
Palavras-chave: Teatro Nô, Brasil, história, transmissão.
ABSTRACT: The present paper aims, at first, to revisit the history of Noh in Brazil, which
focuses on the trajectory of the group Hakuyou Kai, established in 1939 and extinct in the
1990’s; then, to update the path of performing immigrants and the formation of new groups;
and finally, to describe the current activities of these groups, particularly the contact with new
generations of Brazilian artists. Thus, the purpose of this article is to consider the
transmission of Noh in the contemporary world, with all the peculiarities of Brazilian context.
Keywords: Noh Theater, Brazil, history, transmission.
Introdução
O teatro Nô é uma tradição japonesa de 600 anos que foi reconhecida pela
Unesco, em 2001, como Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade. Foi uma das
grandes referências artísticas orientais na renovação do teatro ocidental no século
XX1, sendo até hoje muito pesquisado por artistas contemporâneos.
Conhecido pela emblemática beleza e refinamento de suas máscaras, esse
teatro consolidou-se no século XIV sob a proteção da casta militar (o xogunato) a
partir de vários elementos das artes populares camponesas (dengaku) e artes
urbanas de origem chinesa (sangaku); da literatura medieval (Contos de Heike); do
primeiro romance escrito por uma mulher (Contos de Genji); da mitologia Xintoísta;
da filosofia e religião zen budista. É um teatro de epifanias e temas metafísicos,
cujas personagens buscam a iluminação por meio da quebra dos estados de ilusão.
O Nô contou com a genialidade de Zeami (1363-1443) que, além de profundo
conhecedor da alma humana expressada pela poesia cantada e bailada, sublimou
os conceitos de beleza, mistério e profundidade, sugeridos pelo termo yugen2.
428
A trajetória dessa arte no Brasil, bem como a existência de grupos que
conservam tal tradição, ainda é pouco conhecida.Trata-se de história viva que ainda
flui nos corpos de velhos atores imigrantes, amadores no sentido mais nobre e
profissional da palavra, os quais vivenciam essa arte zen na sua essência, ou seja,
como um caminho de autoaperfeiçoamento e aprazível contemplação.
Em termos acadêmicos, o teatro Nô despertou a atenção de universitários a
partir da década de 1960. Segundo um dos pioneiros, Takeshi Suzuki (apud Suzuki,
1993, p.112), naquele período, eram, em sua maioria, brasileiros intelectuais e
estudiosos da língua japonesa que se interessavam pelos textos como fonte de
aprendizado sobre o budismo e a literatura clássica. Já o estudo do Nô (ou de outras
abordagens orientais) como base para reflexões metodológicas na formação do ator
universitário tem ganhado espaço nas últimas décadas, porém ocorrendo ainda de
maneira subsidiária nos programas de graduação, geralmente pautados por uma
visão eurocêntrica.
Como pesquisadora da arte Nô, tive a oportunidade de estudar em Quioto nos
anos de 1997 e 2003, no International Noh Institute, totalizando dez meses3. Em
2011, tomei conhecimento de que vários praticantes de Nô no Brasil estavam se
reunindo para apresentar trechos de canto e dança do repertório clássico, na região
da cidade de São Paulo. Surpreendi-me ao saber que se tratava da união de
diferentes escolas presentes no Brasil (Kanze, Hosho e Kita), já que a convivência
de estilos entre as cinco escolas originais seria algo improvável no Japão.
Sinteticamente, as diferenças básicas entre as cinco escolas de Nô seriam: Kanze,
(a maior escola), conhecida por sua sofisticação; Hosho, pela delicadeza e
dignidade de seu canto; Komparu, de estilo dinâmico e direto; Kongo, conhecida
pela graça e pelo atletismo de sua dança; e Kita, a mais nova das escolas,
apresenta uma forte postura marcial com a aura dos samurais4.
Em 2013, fui convidada a colaborar com esses grupos como representante do
estilo Kongo. Essa união resultou na fundação da Associação Brasileira de
Nôgaku5. Em junho do mesmo ano, a peça Funa Benkei foi encenada no Tucarena
(teatro da PUC-SP) em sua versão integral com a participação das quatro escolas.
Um feito histórico sem precedentes no Brasil.
429
Com a propícia ocasião do 1º Encontro de Pesquisadores de Arte Oriental –
Oriente-se: Ampliando Fronteiras, senti o impulso de rever e reverenciar a trajetória
desses imigrantes, especialmente com os quais tenho tido a honra e a alegria de
trabalhar e aprender, levando à comunidade acadêmica (e aos interessados) uma
versão atualizada de suas atividades. Os grupos aqui abordados são: o pioneiro
Hakuyou Kai (com predominância de membros das escolas Hosho e Kanze,
fundado em 1939); o Brasil Hosho Kai (seguidor da escola Hosho e fundado em
1990); e o Shouyou Kai (seguidor da escola Kita, fundado em 2008 e formado tanto
por imigrantes como por jovens artistas brasileiros e estrangeiros). Além desses, o
grupo Houyou Kai (também da escola Kanze, criado em 1988) e uma breve menção
ao recém-fundado Brasil International Noh Institute (seguidor da escola Kongo).
Este artigo se organiza, num primeiro momento, revisitando brevemente um
documento escrito pelos pioneiros do Nô no Brasil, com foco na história do grupo
Hakuyou Kai; em seguida, apresentando entrevistas que atualizam o percurso dos
outros grupos, bem como a criação da Associação Brasileira de Nôgaku; e, por
fim, descrevendo e refletindo sobre as atividades da Associação Brasileira de
Nôgaku (doravante identificada pela sigla ABN), no contato com novas gerações de
artistas e pesquisadores brasileiros6.
A fala dos pioneiros
Ao se falar da origem oficial do Nô no Brasil, dois nomes devem ser
lembrados: Nobuyuki Suzuki e seu filho Takeshi Suzuki (1908-1987), proeminentes
intelectuais e pioneiros do teatro Nô em terras brasileiras e na América do Sul. O
senhor Nobuyuki Suzuki veio ao Brasil em 1939 enviado pelo Ministério das
Relações Exteriores e da Educação para divulgar a cultura japonesa. Seu filho
Takeshi, arquiteto, pintor e mestre de Nô, projetou obras significativas como o
Pavilhão Japonês do Parque do Ibirapuera em São Paulo. Completando o núcleo de
origem, a senhora Eico Suzuki (1936-2013), filha do senhor Takeshi, arquiteta,
escritora, atriz e instrumentista de Nô. Ela publicou três livros sobre essa arte7, os
quais incluem peças traduzidas para a língua portuguesa.
430
O texto escolhido para embasar a primeira parte do presente artigo foi escrito
pelo senhor Takeshi Suzuki, o qual inclui trechos de seu pai e patrícios. Foi coletado
de uma obra em japonês que trata da arte da colônia nikkei8 no Brasil (Suzuki, 1986),
desde a década de 1920 até meados de 1980, constituindo-se, assim, um
importante (e bem ilustrado) documento sobre cinema, teatro, dança, música, artes
tradicionais e entretenimento. O capítulo sobre o teatro Nô, foi especialmente
traduzido9 para esta ocasião como “O passado e o presente do Hakuyou Kai
Nôgaku – Intercâmbio cultural entre o Brasil e o Japão através de uma arte
clássica”. Não sendo possível sua publicação integral, procurei um recorte que
pudesse dialogar com a atualidade da prática de Nô no Brasil. Nessa difícil seleção,
muitos fatos, nomes e personagens importantes não puderam ser incluídos. Por isso,
desde já esclareço se tratar de uma amostragem10, cujo critério de escolha baseiase na exclusividade e/ou expressividade das narrações sobre a origem do grupo
Hakuyou Kai; a resistência durante a II guerra para manter a prática viva; a
convivência entre as diferentes escolas; e as reflexões a respeito da transmissão e
da continuidade dessa tradição no Brasil. Dessa forma, o texto não prioriza um fluxo
cronológico detalhado, mas busca destacar impressões e opiniões da época que
possam enriquecer a nossa reflexão.
Takeshi Suzuki introduz a história do Nô no Brasil publicando um texto escrito
por seu pai: “Ao ver a edição de março de 1941 da revista de nôgaku “Houshou”,
publicada antes da guerra, descubro uma publicação sobre meu pai, Nobuyuki, da
época em que ele veio para o Brasil, em agosto de 1939 [...]” (Suzuki, 1986, p.107).
Vejamos, a seguir, trechos do artigo Utai11 no Brasil, América do Sul, de Nobuyuki
Suzuki:
“Dentro do Brasil, o Estado de São Paulo é um dos lugares de clima mais
agradável [...]. A Capital deste estado se chama São Paulo [...]. O número de
japoneses que vivem nas proximidades desta cidade deve contabilizar uns vinte mil.
Portanto, mesmo estando tão longe da minha terra, encontrava quase todo tipo de
alimento que consumimos no Japão. [...] Também havia muita natureza e eu estava
totalmente satisfeito quanto às questões materiais. Porém não se pode dizer que o
ser humano fique feliz apenas com bens materiais. [...] Como sou japonês, estava
insatisfeito por não ter um passatempo japonês. Imagine então os imigrantes e seus
431
familiares que trabalham na indústria e no comércio há muito tempo, o quão devem
estar sentido o vazio em seus corações”.
“No subúrbio da cidade de São Paulo há uma construção com um quintal
japonês. Diziam que de vez em quando aconteciam encontros entre apreciadores de
waka [poesia], mas é muito pouco para a demanda do público em geral. Há também
eventos de chá, de ikebana [arranjo floral], mas não é o suficiente para atender a
todos. Apesar disso, ter é melhor que não ter”.
“Certo dia perguntei se por acaso, não haveria alguém que praticasse utai. Da
casa de um japonês que morava nas proximidades de uma construção ocidental,
dava para se escutar uma voz murmurada. Embora pensando ser impossível, já que
me encontrava tão sedento de passatempos, perguntei a um dos residentes, sem
muitas esperanças, se haveria praticantes de utai naquela habitação. A resposta foi
além do esperado: -‘Claro que temos! Ouvi dizer que um é Kanze e outro é Hosho’,
disse o residente. –‘Se é assim, que tal se você organizar uma associação?’ –
provoquei-o. Como resultado deste convite, juntamos alguns apreciadores de
Youkyoku12, moradores da mesma cidade, além de alguns freqüentadores do tal
Clube Nippon13. Aproximadamente, um pouco mais de dez pessoas. Foi no dia 22
de outubro de 1939. Presentes [no Clube Nippon], as duas escolas: Kanze e Hosho.
Sentamo-nos nas cadeiras em direção à mesa e cantamos alguns números. Este foi
o primeiro encontro de Youkyoku realizado no Brasil, na América do Sul, do outro
lado do mundo. Foi algo pequeno, mas não se pode negar que foi um grande
acontecimento para a história do Youkyoku. Porém, quanto à habilidade dos artistas
deste dia, obviamente, era algo abaixo da crítica.”
“Solicitaram que eu desse um nome para a associação, já que era eu o
criador. Em todo o caso, sugeri o nome Hakuyou Kai, que significa “Associação de
Youkyoku do Brasil”. [...] Por mais que o Youkyoku estivesse ganhando mais
adeptos, a quantidade ainda era muito pequena se comparado ao Japão. [...] A
relevância reside no fato de ser um passatempo puramente japonês, ainda que num
movimento pequeno [...]. No Japão diríamos que, ainda que seja um simples
gramado ou uma árvore, se observados com sentimento, estes nos envolvem em
uma atmosfera tipicamente japonesa. O fato de podermos respirar esta atmosfera do
432
Japão numa terra estrangeira, que não possui nada disso, é algo a ser muito
valorizado. Ainda penso que fiz algo muito bom”.
Aqui encerramos a narração do senhor Nobuyuki. Entre 1939 e 1941,
aconteceram seis apresentações abertas de Youkyoku com um programa variado.
Além do canto, havia também a prática dos bailados e dos instrumentos de Nô. Após
o episódio de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o uso da língua japonesa sofreu
severa restrição no Brasil e as reuniões se tornaram esparsas e secretas14.
Terminada a conflagração, em 1945, houve tensão entre os colonos
japoneses que acreditavam na derrota do Japão (os derrotistas) e os vitoristas
radicais, do chamado Shindo Renmei. No grupo Hakuyou Kai, havia dois grandes
amigos: o (já mencionado) ex-tenente coronel Kikkawa, vitorista, seguidor da escola
Hosho e que tocava o tamboril agudo (otsuzumi) e o ex-coronel Wakiyama,
derrotista, seguidor da escola Kanze e que tocava o tamboril grave (kotsuzumi). O
senhor Kikkawa foi escolhido como o líder máximo do Shindo Renmei, cujos
integrantes acabaram por assassinar o senhor Wakiyama. O fato levou o senhor
Kikkawa a se tornar um praticante do budismo e a rezar diariamente pela alma do
amigo até a sua morte15.
“Certo dia, as duas filhas do senhor Kikkawa vieram me procurar, e me
entregaram o otsuzumi que ele usava com tanto carinho. [...] Atualmente, o
kotsuzumi que está em nossas mãos é uma lembrança do senhor Wakiyama,
derrotista, e otsuzumi é uma lembrança do senhor Kikkawa, vitorista. Esta união
simbólica é um dos grandes mistérios deste mundo” (Suzuki, 1986).
Após os anos de interrupção, a primeira apresentação do Hakuyou Kai
aconteceu em janeiro de 1960, no Pavilhão Japonês do Parque do Ibirapuera. A
seguir, trechos de um artigo do Cônsul Sumiyoshi (apud Suzuki, 1986) sobre esse
período:
“A vida trancafiada durante a guerra, o estigma desonroso de povo do país
derrotado, a rivalidade interna na comunidade nipo-brasileira entre vitoristas e
derrotistas...Parecia uma grande quantidade de formigas sedentas por cultura
japonesa após a dificuldade de vários anos, atacando um cubo de açúcar chamado
´Youkyoku`. Dentro do pano de embrulho que carregavam nos braços, livros de
433
Youkyoku que guardaram durante e após a guerra como se fossem tesouros – com
as páginas amareladas, com manchas de chuva e com buracos de insetos – foram
trazidos em conjuntos de dez, vinte livros [...]. Senti que em cada um destes livros
havia marcas profundas da História da Imigração, construída com sangue e suor16”.
Mesmo considerando as diferenças entre as escolas Kanze, Hosho, Kita e até
Kongo, presentes naquela ocasião, o cônsul Sumiyoshi e o senhor Takeshi
mantiveram os encontros semanais. Não havia uniformidade nem mesmo entre
seguidores da mesma escola, já que a maioria praticava como autodidata e
apegava-se avidamente às referências aprendidas no Japão. No entanto, ao longo
de poucos meses, o grupo foi se aperfeiçoando e chegou a uma unidade que
culminou em apresentações integradas entre as escolas Kanze e Hosho.
Em 1964, um marco: pela primeira vez na América Latina foi apresentada
uma peça de Nô, intitulada Hagoromo - O Manto de Plumas - com a senhora Eico
Suzuki como shite (protagonista), no Museu da Arte de São Paulo (MASP).
Inicialmente a peça era acompanhada apenas por vozes, pois quase não havia
músicos. Apesar disso a peça fez bastante sucesso entre a plateia de brasileiros,
vindo a ser apresentada muitas vezes numa versão condensada (com cerca de vinte
minutos). De 1965 até 1972, foram realizadas transmissões televisivas 17 de
Hagoromo, (dentre outros trechos de peças).
As décadas de 1970-1980 continuaram profícuas para a difusão do Nô em
terras brasileiras. Em 1984, o Hakuyou Kai comemora sua centésima apresentação
de Nô no Brasil em grande estilo. Entretanto, o período de decadência do grupo já
se esboçava. Em 1987 o senhor Takeshi Suzuki, presidente e mestre do Hakuyou
Kai, faleceu. Com a morte em sequência de outros membros e professores18, o
grupo Hakuyou Kai começa a se dispersar e se extingue nos anos 1990. Membros
remanescentes (e outros dissidentes) se organizaram em novos grupos, ativos até
hoje, sobre os quais falaremos adiante.
Preocupação com a transmissão e a continuidade da tradição
Ao final desta publicação, Suzuki (1986) traz um questionamento do professor
Yoshiichi Tanaka: “Senhor Suzuki, eu fico admirado como o senhor não desgruda
434
dessa arte clássica, vindo até os dias de hoje. Mas até quando ela continuará?
Nagauta e Tokiwazu [estilos de música Kabuki] já desapareceram da comunidade
nikkei [do Brasil]. O Hakuyou Kai também já está com os dias contados, não é? É
algo realmente preocupante. É natural que todos envelheçam e diminua o número
de pessoas que possam cantar. Mas o fato de nos desentendermos a partir de
coisas tolas [...] é algo que acelera o processo de extinção das artes clássicas da
comunidade nipo-brasileira. Sinto na pele como é preciso tomar muito cuidado com
isso”.
Suzuki (1986) prossegue: “Aqui é o paraíso do samba e o povo tem
sensibilidade aguçada para o ritmo das músicas. Os nisseis e sanseis [segunda e
terceira gerações] que cresceram dentro desta percepção musical privilegiada estão
acostumados com uma atmosfera artística totalmente diferente da dos isseis
[primeira geração]. Às vezes, eu presencio pessoas que pegaram só o básico do
Youkyoku, participando de alguma apresentação e cantando com uma voz como se
estivessem gritando. E freqüentemente observo pessoas que escutam isso e torcem
o nariz: ´O quê? Isso que é música tradicional japonesa`? Não existem pessoas que
possam explicar o que é o Youkyoku, desde a composição do Nô até o significado
da sua letra.[...] Já são poucos os nisseis que conseguem ler a língua japonesa.
Será que existe quem consiga entender a linguagem do Youkyoku (com letras
escritas na Era Muromachi, há 600, 700 anos, e com a estrutura baseada na
literatura das Eras Heian e Kamakura)? [...] Acredito que uma importante tarefa
que nos cabe seria explicar esta atmosfera sutil e profunda enquanto um estilo
musical, não apenas para os nisseis e sanseis do Brasil, mas aos brasileiros que
buscam a cultura como um todo. [...] Para que o nosso Hakuyou Kai também não
desapareça [...] sinto que é necessário transmitir esta arte aos jovens nisseis e
sanseis de uma forma divertida, porém precisa e correta de ensinar”. (grifo
nosso).
Os grupos de Nô hoje
Vejamos como tem sido a “passagem do bastão” dos pioneiros aos dias de
hoje por meio de entrevistas com três imigrantes. Iniciemos com o senhor
Yamaguchi que integrou o Hakuyou Kai durante quase trinta anos. Ele foi escolhido
435
para representar o elo entre os dois períodos históricos abordados neste artigo,
sendo o primeiro mais ligado à colônia e o segundo, com uma participação maior de
brasileiros. O segundo entrevistado é o senhor Yasuyoshi Takeshita, diretor do
grupo Brasil Hosho Kai. Por fim, de uma geração mais recente, o senhor Jun
Ogasawara, do grupo Shouyou Kai, da escola Kita.
Primeiro entrevistado: Masakuni Yamaguchi
Nascido em Nagano, em 1931, o engenheiro químico, senhor Yamaguchi,
chegou ao Brasil em 1961. Ele iniciou seus estudos de Youkyoku (canto de Nô) aos
19 anos, ainda no Japão, no estilo Kanze. Ao se mudar para o Brasil, passou a
integrar o grupo Hakuyou Kai, no qual começou a aprender shimai (bailado) e
kotsuzumi (tamboril grave) com a senhora Eico Suzuki (estilo Hosho). Retornou
várias vezes ao Japão para estudar hayashi (música de nô), transmitindo,
posteriormente, seus conhecimentos aos integrantes do Hakuyou Kai. Segundo ele,
havia uma boa convivência entre as escolas Kanze e Hosho no Hakuyou Kai, tendo
sido, ele mesmo, um praticante dos dois estilos.
Perguntado sobre o que acha do futuro do Nô no Brasil, o senhor Yamaguchi
se mostra apreensivo: “Acho que dura mais uns dez anos, porque os japoneses
estão diminuindo e o Nô usa japonês arcaico, difícil de aprender”.
Ele mantém suas atividades como mestre de flauta através da ABN e integra,
também, o grupo Houyou kai19, de Mogi das Cruzes, fundado em 1988. Certamente,
todos os integrantes do atual Houyou Kai (e dos outros grupos aqui abordados)
teriam belas experiências que enriqueceriam a composição da história coletiva aqui
retratada, mas não foi possível entrevistar a todos. Por isso, registraremos apenas
os seus nomes:
Integrantes do grupo Houyou Kai (Escola Kanze): Masakuni Yamaguchi - Japonês
nascido em Nagano, em 1931 / Hideyo Isoda- Japonesa nascida em Mie, em 1924 / Shigeru
Matsumoto - Japonês nascido em Mie, em 1948 / Youji Tsuruta - Japonês nascido em Yamanashi,
em 1946 / Kimiko Nagata - Japonesa nascida em Tóquio, em 1931 /Hiroko Yamaguchi - Japonesa
nascida em Tóquio, em 1932.
436
Segundo entrevistado: Yasuyoshi Takeshita
Nascido em Ishikawa, em 1933, o senhor Takeshita veio para o Brasil em
1961. Ele integra o grupo Brasil Hosho Kai desde a sua fundação, em 1990, e
assumiu a direção do grupo após o falecimento de seus mestres-fundadores, há
cinco anos. No teatro Nô, atua na função de waki (ator coadjuvante). Em ótimo
português, o senhor Takeshita nos respondeu sobre a história do grupo Brasil Hosho
Kai, refletindo sobre as dificuldades de se manter uma tradição como o Nô, aqui no
país.
“O grupo Brasil Hosho Kai nasceu em 1990 quando o casal Yajima se
emancipou do grupo Hakuyou Kai. Naquela ocasião o senhor Yajima era presidente
do Banco América do Sul. Começou a dirigir este grupo de nô e me convidou a
participar dos encontros semanais. Como ele era meu chefe (e colega) eu não tinha
motivos para recusar. Além disso, eu nasci em Ishikawa Ken, que é considerada a
terra da escola Hosho. Então ele perguntou: ´Por que não se junta a nós`? E assim
nasceu o Brasil Hosho Kai”.
“Uma vez ao ano, durante dez anos, realizamos apresentações só de utai
[canto] na festa cultural de nossa província20. Em 2010 recebemos o convite do
senhor Ogasawara, um dos fundadores do grupo Shouyou Kai [escola Kita], para
nos juntarmos. Como nosso grupo só tem quatro pessoas atualmente, ficamos
preocupados em perder a nossa identidade Hosho, cuja maneira de cantar e
declamar é muito peculiar. Como eu ainda me considero um aprendiz, temo receber
influências ao ponto de nossa identidade se misturar. Seria este o objetivo da ABN?
Penso que, se as quatro escolas presentes no Brasil juntarem o que têm de melhor,
a mistura acabaria gerando um canto de Nô do Brasil, algo bastante diferente do utai
do Japão. Então minha dúvida é: manter a originalidade ou misturar os cantos até
criarmos uma escola independente? Apesar desta preocupação aceitamos nos unir,
porque um dia todos morrerão e daí não mais haverá Hosho, nem Kanze, nem
outras escolas no Brasil”.
O senhor Takeshita também ajuda a transmitir a arte da declamação e do
canto Nô através da ABN. Ao final da entrevista, fala um pouco sobre a didática de
ensino para os brasileiros. Apesar das partituras terem a tradução dos ideogramas
(kanji) e fonogramas (hiragana) em alfabeto romano, ele aconselha que as pessoas
437
cantem observando também a grafia japonesa e até estudem a língua para
entenderem melhor o significado do texto. Além disso, explica que cada som (mais
longo, curto, interrompido, mais alto, etc) resulta de uma compreensão profunda dos
sentimentos.
Integrantes do grupo Brasil Hosho Kai (Escola Hosho): Yasuyoshi Takeshita –Japonês
nascido em Ishikawa, em 1933 / Konami Fugimoto - Japonesa nascida em Ehime, em 1920 /
Michiko Tanaka - Japonesa nascida em Nagano, em 1931 / Yasuko Tanaka - Japonesa nascida em
Osaka, em 1933.
Terceiro entrevistado: Jun Ogasawara
O senhor Ogasawara é artista plástico, natural de Kochi e nascido em 1949.
Imigrou para o Brasil em 2002. Sua entrevista foi concedida no dia 26 de fevereiro
de 2014, em Cotia-SP.
Ele tem uma sólida formação em Nô, pois durante vinte anos, estudou canto,
dança e todos os instrumentos da tradição com o renomado ator e mestre Akio
Tomoeda, da escola Kita. Sua iniciativa e seu empenho conseguiram reunir
praticantes de Nô no Brasil em torno de projetos de pesquisa, performance e ensino
do repertório clássico, a despeito das diferenças de escolas, gerações, idiomas,
níveis de formação e nacionalidades. Dessa união, foi fundada, em 2013, a
Associação Brasileira de Nôgaku (ABN). Para definir o estilo próprio da ABN,
Ogasawara criou o termo Imin Nô – “Nô de imigrantes, por imigrantes e para
imigrantes” - ilustrando a ideia de uma arte não condicionada a uma única pátria e
produzida pelo espírito imigrante que todos nós, independentemente, carregamos.
Nesta entrevista, contamos com a inestimável colaboração de Toshiyuki Tanaka
como intérprete.
O senhor poderia nos falar sobre o nascimento do grupo Shouyou Kai e
como surgiu o impulso de reunir os diferentes grupos de Nô do Brasil?
Minha história é simples. Um dia desejei fazer uma peça de cerâmica para
oferecer comida à minha família, esposa e filho. Fui procurar aulas e conheci o
também imigrante mestre Ikoma 21. Ao mesmo tempo, comecei a dar aulas de Nô
para ele. Foi assim que nasceu a escola Kita no Brasil.
438
Em 2008, conheci o artista e professor Toshiyuki Tanaka. Apesar de ter
estudado na escola Kanze, Tanaka se juntou a nós e começou a pesquisar o estilo
de dança Kita. Estava fundado o grupo Shouyou Kai22 [shou=pinheiro; you=canto de
Nô; kai=grupo]. Como primeiro trabalho do grupo apresentamos a peça Hagoromo
com apenas quatro pessoas23 a uma comunidade carente em Itapecerica da Serra.
Estas pessoas assistiram à peça de maneira muito concentrada.
Em 2009, através de um amigo, conheci dois integrantes do atual Houyou Kai
[senhor Yamaguchi e senhor Matsumoto]; em 2010, estendemos o convite ao senhor
Takeshita, diretor do Brasil Hosho Kai. Finalmente, em 2013, convidamos a
pesquisadora nissei Ângela Nagai, da escola Kongo.
Minha ideia de reunir os grupos aqui existentes nasceu por três motivos:
primeiro, em função da avançada idade dos imigrantes mais antigos, que têm entre
70 e 95 anos de idade. As atividades de Nô no Brasil correm o risco de desaparecer
rapidamente, por isso precisamos renovar. Segundo, mostrar que no Brasil podemos
criar nosso próprio estilo. No Japão, ninguém pode fazer isso, mas nós podemos
continuar inovando. Respeitar a tradição, mas também a possibilidade de criação
dentro dela. Para isso, temos que transcender as diferenças das quatro escolas. Por
último, nossas apresentações têm despertado o interesse do público. Além disso,
todos os participantes (em especial os imigrantes) estão muito felizes. Ainda creio
que se sentir bem é a coisa mais importante quando se faz arte”.
O senhor poderia nos falar sobre a convivência entre os diferentes
estilos (escolas) nas atividades da ABN?
“Há 200 anos, quando termina o período Edo e começa a era Meij, houve
uma certa diluição dos estilos do teatro Nô. O governo dos samurais na era Edo
preservava esta arte, mas depois o Nô não representava mais o Estado. Ficou livre,
mas aconteceram muitas coisas. Atores da escola Kita chegaram a cantar em cima
de pontes como mendigos, porque ninguém mais queria assistir a uma arte antiga:
até o governo a desconsiderou. Depois tudo mudou, mas nessa época havia essa
desvalorização. Dentro da própria escola Kita, as pessoas começaram a perder a
unidade de estilo e ficou tudo muito complicado. Há 200 anos foi preciso recriar o
estilo de Kita. Cada escola teve que fazer isso.
439
Sobre a preocupação com a perda de identidade, levantada pelo senhor
Takeshita, penso o seguinte: primeiro é necessário termos alunos novos. Os
brasileiros precisam estudar o estilo de canto Hosho, por exemplo, para que ele
continue existindo. Isso é importante e urgente. Mas no futuro, gostaria de construir
duas coisas: manter os estilos individuais e montar o estilo próprio de Imin Nô. Por
enquanto, o senhor Takeshita é quem mais carrega esta preocupação. Na verdade,
todos nós sentimos um pouco desta dor. Num segundo momento, [Toshiyuki]
Tanaka e [Ângela] Nagai24 vão ter que suportar esta pressão. Devemos manter a
identidade de cada escola e, paralelamente, construir a identidade de Imin Nô. São
coisas quase opostas, por isso temos que estudar e pesquisar. Ainda faltam
pessoas da escola Komparu. Quando tivermos as cinco escolas no Brasil,
poderemos criar uma maneira brasileira.
Creio, porém, que a melhor forma de se manter um estilo é mantendo o hin.
Hin significa ´elegância`. Tendo hin você pode criar, mesmo dentro de uma tradição.
Mas sem hin, o Nô não pode ser Nô. É preciso manter uma essência, um centro.
Não se trata de um detalhe bom ou ruim, de melodia ou de tempo. Sem hin não
acontece a vida do teatro Nô. Explicar hin é muito difícil. Se alguém tentar explicar
sua maneira a outra pessoa, isso não será bom. Não se trata de um segredo, mas
há que se evitar erros de interpretação. O famoso conceito de yugen25 fala de uma
beleza que todos podem sentir, seja um deus, seja um mendigo. Já o hin existe para
quem pode perceber. Quem não pode sentir, para ele não existe. Não há uma
classificação de grau ou intensidade para se medir hin: ou se tem ou não se tem. No
mundo inteiro, as pessoas estão perdendo hin porque só querem dinheiro. Quase
não há mais hin. Nô é praticamente só hin. Dentro de Nô, existe a parte
religiosa/espiritual, mas não se pode viver a arte como religião. Você pode ter um
coração religioso, que é mais importante do que o estilo ou a forma da religião em si.
Então, nossa proposta de transmissão é: primeiro pegar a essência e depois estudar
o estilo”.
Poderia falar um pouco mais sobre a questão da transmissão desta
tradição no cenário brasileiro?
“No Japão, apesar de nunca ter sido um bom discípulo, tive mestres
maravilhosos! Tanto meus mestres de pintura quanto meu mestre de teatro Nô foram
440
muito bons. Eu não estudei só a arte em si, mas procurei estudar o coração deles.
Por isso, hoje tenho este olhar. Minha convivência com meu mestre de Nô foi de
intenso diálogo e reflexão artística. Ele costumava dizer para respeitarmos a arte de
forma absoluta. Porém, no nosso caso aqui no Brasil, considero esta postura forte
demais, porque no fundo de Imin Nô existe uma coisa básica e importante que é
amor. Acho uma direção um pouco perigosa se você foca só na arte. Ter respeito
por quem fez Nô anteriormente na história do Brasil é amor. Não é só fazer arte e
considerar-se separado da continuidade. Ouvi dizer que a prática de Nô dentro da
colônia japonesa aqui no Brasil era vivenciada de forma muito animada!
Para nós do Imin Nô, é difícil realizar o ensino à maneira tradicional. É
importante mantermos uma boa relação com nossos mestres no Japão, manter o
estudo tradicional com a forma anterior do mestre. Mas também podemos fazer
criações novas, só possíveis para nós. Aqui são quatro escolas diferentes, por isso a
dificuldade. Por outro lado é uma riqueza! No Japão, isso não existe, é algo novo
que só existe aqui. De certa forma, há nisso um espírito de vanguarda”.
Aqui termina a entrevista concedida pelo senhor Ogasawara. Ainda sobre os
imigrantes do grupo Shouyou Kai, gostaria de registrar a marcante contribuição do
artista e mestre Toshiyuki Tanaka26 na formação de novos atores e atrizes de Nô no
Brasil. No Japão, estudou Nô com o mestre Osamu Kobayakawa, do estilo Kanze.
Paralelamente, estudou técnicas corporais modernas japonesas como o seitai-ho e o
do-ho. Tanaka tem aplicado estas técnicas na preparação para a prática do Nô (com
foco na transmissão dos kata27), sendo notável o grau técnico e artístico que os
participantes do grupo Shouyou Kai têm alcançando.
Integrantes do grupo Shouyou Kai (Escola Kita): Toshiyuki Tanaka - Japonês nascido em
Tóquio em 1960 / Jun Ogasawara - Japonês nascido em Kochi em 1949 / Kenjiro Ikoma -Japonês
nascido em Mie em 1948 / Célio Amino - Brasileiro nascido em São Paulo em 1970 / Fernanda
Mascarenhas - Brasileira nascida em São Paulo em 1970 / Roger Muniz - Brasileiro nascido em São
Caetano do Sul em 1979 / Angélica Figuera - Venezuelana nascida em Ciudad Bolívar em 1981 /
Luciana Beloli - Brasileira'nascida'em'São'Paulo'em'1981'/'Beatriz(Sano(I'Brasileira'nascida'em'Santos'
em'1985'/'Flavio(Caputo(I'Brasileiro'nascido'em'São'Paulo'em'1983.'
Encerrando a atualização sobre os quatro grupos de Nô que integram a ABN,
devo mencionar também o Brasil International Noh Institute (INI), grupo de estilo
441
Kongo, fundado por minha pessoa no ano de 2013 para integrar e ampliar minhas
atividades junto à ABN. Sediado na cidade de Campinas-SP, o Brasil INI mantém-se
filiado ao International Noh Institute (INI) de Quioto, conhecido por tornar acessível o
aprendizado do Nô a estrangeiros, em princípio não falantes do idioma japonês. O
ator e mestre Udaka Michishigue, ao lado da diretora e instrutora Ogamo Rebecca,
tem alunos em diversos países do mundo, sendo alguns instrutores licenciados e
pesquisadores que trabalham a questão da transmissão em seus respectivos países.
Refletindo brevemente sobre a questão da convivência de estilos na ABN:
passado o estranhamento inicial, mantive a atenção sobre as peculiaridades do
estilo Kongo a partir de meu treinamento com o mestre Udaka. Dessa forma, tem
sido mais fácil reconhecer, acolher e interagir com as diferenças de interpretação
dos colegas.
Considerações finais
Nos quase 75 anos de história do Teatro Nô no Brasil que procuramos retratar
sucintamente, houve desde um período de ostracismo em função da II guerra até
uma projeção significativa dessa arte junto à sociedade brasileira, evidenciada,
dentre outras coisas, pela veiculação de peças do Hakuyou Kai em programas de
televisão não necessariamente destinados à comunidade japonesa
28
. Ao
compararmos os momentos aqui pesquisados, vemos que algumas questões se
repetem: um grau de tensão (geralmente criativa) na união e interação das
diferentes escolas; a preocupação com a qualidade da transmissão e a quantidade
de novos praticantes; a ideia de possível extinção ou empobrecimento desta arte em
função do desconhecimento do idioma japonês.
A autenticidade de uma tradição que é ensinada e praticada fora de seu país
de origem costuma ser questionada por alguns pesquisadores e artistas. Pronko
opina sobre o valor de se encenar uma tradição oriental (no caso, o Kabuki) por
alunos ocidentais de artes cênicas, num trecho intitulado “Transposições”:
O problema em jogo é menos o de conseguir imitação impecável do teatro
japonês utilizando artistas americanos ou europeus, como o de rasgar
novas perspectivas, quer para os atores quer para o público, e fazê-lo da
maneira mais rematada e artística possível [...]. (PRONKO, 1967, p. 145,
grifo nosso).
442
Ou, como afirmou o senhor Nobuyuki Suzuki: “ter é melhor que não ter”.
Ainda segundo Pronko (ibidem) é preciso saber o que se quer daquilo que uma
tradição oriental “tem a oferecer a nós, ocidentais”. A ABN, por meio de seu estilo
Imin Nô, definiu bem os seus objetivos e limites - de quem, para quem, com quem,
quando, onde, como e por que 29 - trabalhando num criterioso compartilhar de
diferenças didáticas e estéticas. Tanto nas aulas oferecidas a amadores e artistas
profissionais, quanto na montagem de peças, os estilos são bem delimitados,
mantendo-os, ao mesmo tempo, puros em si e sensíveis entre si. O que se
flexibiliza não são necessariamente os estilos, mas o espírito das pessoas ao
reconhecerem o momento histórico e a cultura em que estão inseridas (bem como
alguns limites, como no caso do idioma) ao praticarem uma tradição dessa natureza.
São inúmeros os diálogos e os experimentos entre o Nô e as diversas outras
expressões cênicas mundiais desde o início do século XX. Emmert (1997) crê que o
Nô não se cristalizou com Zeami e que, a partir da observância dos fundamentos da
tradição, é possível expandi-lo. Segundo Emmert, no Nô existem “elementos
externos” (ou seja, o texto, as máscaras, figurinos, estrutura musical, espaço cênico,
etc.) que podem ser imitados ou recriados por outras formas que nele venham a se
inspirar. Já os “elementos internos” (constituídos pela técnica corporal/vocal, como o
kata) não são reproduzidos ou incorporados facilmente sem uma formação
continuada. O autor conclui que se os elementos internos do Nô, bem como certos
fundamentos e princípios 30 forem preservados, a beleza e o fluxo de energia
permanecem, podendo o Nô ganhar novas perspectivas. O trabalho do Imin Nô se
insere nesse contexto, mantendo um extremo respeito aos aspectos da tradição e da
transmissão, porém tendo no horizonte a criação de uma identidade própria.
Além das questões geográficas, históricas e culturais, a questão da prática e
transmissão do teatro Nô para amadores também tem recebido atenção dos
pesquisadores. Compartilharei uma breve memória de viagem para ilustrar minha
opinião sobre o assunto, ainda que o exemplo esteja situado em um contexto
japonês. Conforme pude observar no International Noh Institute (INI), em Quioto,
nem todos os alunos japoneses eram artistas profissionais. Havia homens de
negócios, donas de casa, professores, profissionais liberais. Certo dia, durante
nossas atividades normais de estudo e observação, assistíamos ao treinamento de
uma colega, diretamente com o mestre Udaka. Tratava-se de uma enfermeira. Já
443
estávamos habituados a acompanhar os treinos de cada um, percebendo suas
evoluções e aprendendo com as sempre impecáveis demonstrações do mestre. De
repente, como num jorro de luminosidade, fomos surpreendidos por uma voz, antes
pequena, vibrando de maneira muito límpida e situando com perfeição o sentimento
essencial da personagem. Era como se séculos de tradição fluíssem nas cordas
vocais daquela mulher, sem esforço ou interferência. Aquele momento era de uma
suspensão profunda e plácida, quiçá uma autêntica manifestação de yugen,
conquistada pela enfermeira após anos de um treinamento que se aproxima da ideia
de autocultivo31.
As tradições se transformam; historicamente, os estilos se redesenham, a
maneira de se realizar um mesmo e secular kata é sempre idiossincrática. Segundo
Salz (2000, p.472-473), “Ironicamente, quanto maior a especificidade dos padrões
prescritos, maior a liberdade de interpretação”. Ainda do mesmo autor (ibid., p.470),
“A ´tradição` se assemelha a uma canção comum, cantada por muitas vozes”.
Em que pese o teatro Nô ter suas próprias, fundamentais e belas concepções
de “flor” a partir de Zeami (cuja explanação, porém, não é nosso objetivo neste
momento), finalizo esta reflexão tomando emprestada a imagem da flor
emblematicamente presente em outra arte zen, o ikebana. Quando penso na
condição do imigrante em geral e nas tradições que peregrinam e eventualmente se
enraízam, amiúde me ocorre a imagem de um ikebana, arte que busca preservar
uma flor em um recipiente com água, ou seja, longe da terra (natal). Princípios
estético-filosóficos são aplicados ao arranjo para se conquistar uma qualidade de
imanência a partir do efêmero corpo da flor. Assim, uma tradição é mantida viva em
nossos (efêmeros) corpos quando ela nos revitaliza, quando não é seguida como um
conjunto de dogmas. Tudo depende do que se pretende e em que nível: a liberdade
de criação dentro da tradição, como enfatiza Ogasawara, é vital para que a arte e os
artistas se fortaleçam. Uma tradição pode ser vivida para se curar “o vazio do
coração”, “manter o hin”, “atingir o yugen”, “rasgar novas perspectivas”, “ter um
passatempo”, ou para se manter a beleza da flor, onde quer que ela esteja.
444
Notas
1
Influenciou direta ou indiretamente as obras de Bertolt Brecht, Samuel Beckett, William B. Yeats, Paul
Claudel, Charles Dullin, Jacques Copeau, Jean Louis Barrault, Benjamin Britten, Peter Brook, Eugenio Barba,
dentre outros.
2
Das inúmeras interpretações existentes sobre o termo, escolhi a versão encontrada em Yuasa (1993, p.
24). O termo yugen foi utilizado pela primeira vez pelo poeta Fujiwara Shunzei (1114-1204). Nesta perspectiva, a
condição ideal para a experiência estética da beleza (ou yugen) é buscada em analogia à experiência do satori
(iluminação budista), adquirida através da arte vivida enquanto um caminho de autocultivo.
3
Graças aos programas de bolsas da Fundação Japão e da Fundação Vitae.
4
Informação verbal fornecida por Ogamo Rebecca, em Quioto, no ano de 2003, durante aula expositiva.
5
Nesse contexto, o termo gaku significa “alegria”.
6
Desde 2014, a ABN ministra, mensalmente, aulas de canto, dança e instrumentos, na cidade de São
Paulo.
7
Nô- Teatro Clássico japonês, volumes I (1977), II (1993) e III (1995). Editora do Escritor, São Paulo.
8
Descendentes de japoneses nascidos fora do Japão.
9
Tradução realizada pelo senhor Carlos Hideaki Fujinaga.
10
Em Nô - Teatro Clássico Japonês (vol. 2, 1993, p. 99), de Eico Suzuki, há uma entrevista de Takeshi
Suzuki concedida em 1973 a uma aluna da Escola de Comunicações e Artes da USP (cujo nome não foi
revelado). Nessa entrevista, encontram-se muitos detalhes sobre as atividades e as apresentações do Hakuyou
Kai entre os anos de 1939 e 1973. Utilizo algumas passagens dela para complementar minha abordagem do
texto principal. Também no livro “Recordações de Papai” (1988), da mesma autora, encontram-se algumas
passagens sobre a história do Hakuyou Kai.
11
Canto de Nô.
12
Termo mais recente para designar o canto de Nô. Youkyoku teria uma função análoga ao script de
uma obra teatral.
13
O Clube Nippon foi citado anteriormente como um lugar onde havia a prática de ikebana.
14
Mesmo neste período de proibições e prisões por causa do uso da língua, o ex-tenente coronel
Kikkawa ensinou, minuciosamente, o canto e a música da escola Hosho para Takeshi Suzuki. Até hoje, este fato
é relembrado com admiração por ex-membros do Hakuyou Kai, ainda em atividade.
15
A título de curiosidade: Na peça Nô intitulada Atsumori (peça de guerreiros de autoria de Zeami), a
última batalha entre os clãs Heike e Genji é retratada. Um experiente samurai Genji vê-se obrigado a decapitar o
jovem guerreiro Heike, Atsumori, exímio flautista de apenas 16 anos. Arrependido, abandona a vida de guerreiro
e torna-se um monge, passando a rezar pela alma de Atsumori. (N. da A.)
16
A interrupção parcial ou total da prática do Nô no Brasil ao longo de quase 20 anos evidencia com
clareza a assertiva do filósofo Walter Benjamin (1892-1940) segundo a qual o trauma causado por uma guerra
torna os homens “mais pobres em experiências comunicáveis” (Benjamin, 1985). Entretanto, na experiência
brasileira narrada ao longo deste artigo, percebe-se que existiu um núcleo de resistência.
17
Nos seguintes canais: antiga TV 2 - Cultura, TV Cultura (Fundação Padre Anchieta), TV Bandeirantes
e TV Gazeta. Mais detalhes em Suzuki (1993, p.99).
18
Últimos professores: Yoshida Noboru, falecido em 1995, e Yoshiichi Tanaka, falecido em 1999.
19
Na época de sua fundação, recebia o nome de Kanze Ryu Kenkyukai .
20
Na sede Ishikawa Kenjinkai, localizada no bairro Paraíso, em São Paulo.
21
Kenjiro Ikoma (1948). Importante ceramista, natural de Mie. Chegou ao Brasil em 1973.
22
Sediado atualmente em Cotia, SP.
23
A bailarina Cindy Quaglio participou deste início.
24
Que desempenham a função de shite ou seja, protagonista.
25
Vide Introdução.
26
Mudou-se para o Brasil em 1994.
27
Padrão de movimento e vocalização; forma; modelo. Códigos fundamentais na transmissão do Nô. Os
kata foram sintetizados ao longo de séculos a partir dos movimentos do corpo na sua relação com a terra. O kata
“refina as emoções pela estilização” (Salz, 2000), com maior ou menor grau de abstração.
28
Além disso, dois documentários foram realizados sobre o grupo, sendo um deles pelo respeitado
diretor Andrea Tonacci, em 1969.
29
Vide entrevista com Jun Ogasawara.
30
Por exemplo, o conceito de ma (intervalo pleno de possibilidades); jo-ha-kyu (progressão rítmica); o
princípio do movimento do corpo aos sete décimos e do espírito aos dez décimos; as várias metáforas da flor
(hana), dentre outros.
31
Yuasa (1993).
445
Referências Bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História
da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas Vol.1. Experiência e Pobreza: p.
114-119.
EMMERT, R. Expanding Nô`s Horizons: Considerations for a New Nô Perspective. In: Nô
and Kyôgen in the Contemporary World. Honolulu: University of Hawai`i Press, 1997.
PRONKO, L.C. Teatro: Leste e Oeste. São Paulo: Editora Perspectiva, 1967.
SALZ, J. Katafication: Form, Reform, Deform in Traditional Arts. In: International Society
and Culture Review n. 3, p. 465-477, 2000.
SUZUKI, E. Nô-Teatro Clássico japonês, vol. 2. São Paulo: Editora do Escritor, 1993.
SUZUKI, T. "Hakuyou Kai no Konjyaku" Nougaku Kotengeinou de Nippaku Bunka Kouryu.
In: Colônia Geinou Shi. São Paulo: Editora Gráfica Topan Press Ltda, 1986. Cap. 5, p.105118.
YUASA, Y. The Body, Self-Cultivation, and Ki-Energy. New York: State University of New
York Press, 1993.
Ângela Mayumi Nagai
Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),foi bolsista da
Fundação Japão (1997) e da Fundação Vitae (2002). Em ambas as ocasiões, estagiou no
International Noh Institute de Quioto, onde desenvolveu pesquisa sobre o teatro Nô. É
membro do Centro de Estudos Orientais (CEO) da PUC-SP e vice-presidente da Associação
Brasileira de Nôgaku (ABN).
446
O LEGADO DAS ESCULTURAS E TEMPLOS VÉDICOS EM COMPOSIÇÕES
ESTÉTICAS DA DANÇA CLÁSSICA INDIANA
Jorge Lúzio – PUC SP1
RESUMO: Entre os oito estilos que compõem a dança clássica indiana, destacam-se o
BharataNatyan e o Odissi, os quais são considerados, segundo fontes históricas, as mais
antigas formas de dança na Índia. Sistematizados a partir do NatyaShastra – tratado de
origem védica normatizadora da dramaturgia no teatro e na dança – nestas expressões
artísticas é possível reconhecer esculturas, gestos e manifestações do conhecimento védico
e hindu codificados em movimentos e posturas que irão compor seus respectivos repertórios.
Da mesma forma, vê-se nos itens coreográficos a reprodução de ritos e representações das
divindades para as quais as danças eram oferecidas ou apresentadas durante cerimônias
de culto ou invocação. O presente artigo busca analisar as vinculações historicamente
estabelecidas e observar, nas atuais codificações da dança clássica, a perpetuação das
tradições e a função da arte visual, elemento integrativo de tais linguagens.
Palavras-chave: BharataNatyan, Dança, Esculturas, Índia, Odissi
ABSTRACT: Among the eight styles which compound the Indian classical dance, Odissi and
BharataNatyan, considered according to historical sources, the oldest dance forms in India.
Systematized from the NatyaShastra Vedic origin treaty which normalizes drama in theater
and dance, in these artistics expressions it is possible recognized sculptures, gestures and
expressions of Hindu and Vedic knowledge encoded in movements and postures that will
make their respective repertoires. Likewise you see in choreographic plays some rites
reproduction and deities representations to whom the dances were offered or presented
during worship or invocation ceremonies. This paper analyzes the established historical links
and it observes in the current classical dance encodings the perpetuation traditions and the
visual art role integrating element of such languages.
Keywords: BharataNatyan, Dance, Sculptures, India, Odissi
Um corpo que revela a formação de uma cultura e que, em sua multiplicidade
de formas, exibe e resguarda a natureza humana, a hierarquização social, as
manifestações do poder, as interações históricas; iconografias em movimento,
esculpidas ou dramatizadas, interligadas pelo mito, firmadas em cenários e
edificações por estes preservados e protegidos, este mesmo corpo opera como um
culto à memória. Dessa ótica, um recurso para observações acerca das imaginárias
indianas em sua condição de herança religiosa e espólio civil claramente presentes
no âmbito artístico, de modo peculiar nas danças clássicas da Índia, que assim como
os milenares monumentos e santuários históricos, igualmente são repositórios dos
seus templos e esculturas.
447
Elaborada a inferência, que incide sobre o complexo de imagens e
representações de corpos de divindades, venerados, esculpidos, eternizados,
revividos em narrativas literárias ou coreográficas, alcança-se um liame traduzido
naquilo que Aby Warburg2 classificou como “sobrevivência” e que Didi-Huberman
com afinco esclarece:
Warburg substituiu o modelo natural dos ciclos de “vida e morte”, “grandeza
e decadência”, por um modelo decididamente não natural e simbólico, um
modelo cultural da história, no qual os tempos já não eram calcados em
estágios biomórficos, mas se exprimiam por estratos, blocos híbridos,
rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente inesperados
e objetivos sempre frustrados. Warburg substituiu o modelo ideal das
“renascenças”, das “boas imitações” e das “serenas belezas” antigas por um
modelo fantasmal da história, no qual os tempos já não se calcavam na
transmissão acadêmica dos saberes, mas se exprimiam por obsessões,
“sobrevivências”, remanências, reaparições das formas (DIDI-HUBERMAN,
3
2013, p. 25).
Sobreviventes e dotadas de consciência, as imagens indianas, nutridas pelos
mitos – e estes por seus devotos em seus ritos alimentados de anseios e graças,
com suas dinâmicas próprias de espaço e tempo, disseminam-se no corpo,
representado, documentado, ressurgido, fonte da memória, constituindo um arquivo
autêntico, explanação que vai ao encontro do que propõe Vigarello:
Sem dúvida, o corpo é um arquivo, Mas quando se diz que o corpo revela
não se pode esquecer que ele também esconde! Novamente um paradoxo.
O corpo revela e esconde, ele exprime e age e, quando ele exprime não
significa, forçosamente que ele age. Por isso, existem, de fato, várias
perspectivas para estudar as práticas e representações do corpo: há, por
exemplo, a análise expressiva dos gestos; o que permite dizer que não há
apenas uma única ciência do corpo e que aqueles que o estudam se situam
4
sempre em diversos terrenos (VIGARELLO, 2000, p. 230).
Assim, se identifica o território de investigação do corpo “iconografado”, um
campo ontologicamente e metodologicamente interdisciplinar, objeto que vai ao
encontro das indagações sobre o convívio e as articulações entre as esculturas e as
plásticas de origem védica e as estruturas coreográficas das danças clássicas
indianas.
De acordo com a ortodoxia hindu, a dança é obra divina, revelada aos
homens por intermédio dos quatro textos védicos que deram origem aos conceitos
que definem a dança como conhecimento artístico. Todavia, o ritmo perene da
Criação que se renova a todo instante nas manifestações da natureza, como o
murmúrio das ondas, o gorjeio dos pássaros, ou as notas do vento, exibe um padrão
448
de dança conhecido como o NrtyaDainic5, ou a dança de cada dia enquanto ações
de Brahma, o deus da Criação. Como entretenimento, figuras humanas tocando
instrumentos ou dispostas em formas corporais que sugerem bailados ou folias são
encontradas em fontes iconográficas da antiguidade indiana. No entanto, é o caráter
devocional que predomina sobre as performances, como informa Andrade6. Para
este autor, indiano de origem com formação em BharataNatyan, um dos oito estilos
da dança clássica, a religiosidade configura a dança, executada primordialmente nos
templos e nas celebrações hindus, dentro dos princípios védicos. Justamente por
isso, são apontadas quatro argumentações míticas na gênese da dança.
Partindo do conceito de NrtyaDainic, os brâmanes – sacerdotes e detentores
dos saberes religiosos descritos na literatura védica - atribuem ao deus Brahma toda
criação artística, e, por assim ser, terá na deusa Sarasvati – sua consorte,
representada com um instrumento musical de cordas sobre o seu colo, a divindade
provedora da inspiração e de todas as aptidões artísticas. A vertente vaishnava ou
vishnuísta, que se desenvolve em torno dos cultos de Vishnu, tem no deus Krishna
uma das suas principais encarnações (avatares), e atribui a esta divindade o seu
referencial na experiência da dança já que, como pastor, por tocar a sua flauta junto
às gopis,suas jovens e companheiras pastoras, com elas também dança. Mas teria
sido sobre a serpente Kaliya7, com quem trava uma luta nas águas do Rio Yamuna,
que Krishna, como herói,celebra sobre a cabeça da víbora – o mal destruído, sua
dança de vitória e poder. Para as tradições religiosas que têm em Shiva o seu cerne
teológico, o deus de origem dravídica, cujo principal aspecto é conhecido como
Nataraja – o Senhor da Dança, é ele o criador desta arte, já que com o seu corpo em
torções e flexões, e em seus quatro braços que com agilidade protege e abençoa os
seus devotos, executa seus movimentos e sua dança sobre o demônio-anão
muyalaka, símbolo do ego destruído pela consciência divina. Segundo Portinari
(1989) a imagem de ShivaNataraja8 foi considerada pelo grande escultor francês
Auguste Rodin (1840/1917) “a mais elevada concepção do corpo em movimento”9.
Nesta configuração em que a tríade hindu (ou Trimurti) mantém os seus papéis nas
suas inerentes e respectivas funções de criar (Brahma), preservar (Vishnu) e
transformar (Shiva), também é a prerrogativa da dança, como origem mítica, tão
somente possível pela existência da divindade e do corpo, em seu potencial de força,
fluidez, equilíbrio e harmonia, sintonizados com o pensamento filosófico da cultura
449
védica. Ainda assim, a tradição da dança também se remete às apsaras ou
dançarinas celestiais, que na mitologia estão presentes entre os deuses e demônios,
nas narrativas de enamoramento, conquistas, lutas e festejos. No mundo real,
seriam as ascendentes das devadasis10, as dançarinas dos templos, que em seus
cultos, em quaisquer das vertentes religiosas, e atos litúrgicos trazem na dança, no
gesto e nos sentidos, a comunicação física e transcendente com as suas divindades.
11
Figura 1: Shiva Nataraja
(FONTE: Grande Templo de Madurai; fotografado por Alfred Nawrath, 1938.)
Outrossim, nos estudos de Gopal e de Andrade prevalecem as interpretações
amplamente aceitas pelos cânones literários que normatizaram a dança e as artes
cênicas – no contexto indiano indissociáveis, de onde surgem os oito12 estilos de
dança clássica, que em suas particularidades históricas e geográficas agregam
outros elementos em seus repertórios historicamente vinculados às iconografias
templárias e espaços sacralizados - como santuários e recintos privados. Nos
referidos cânones, é o corpo que viabiliza o acesso e o entendimento de cada gesto
ou intenção, reproduzindo a tradição em seus ambientes e sua ancestralidade. Dois
tratados principais regem a dimensão técnica da dança:
“NatyaShastra” e “AbhinayaDarpanam” (são) considerados os textos mais
antigos sobre a dança hindu. Eles oferecem, de certo modo, a “gramática”
de desenvolvimento de todo o repertório da dança clássica hindu. Escrito
450
por volta do século II a. C., o “NatyaShastra” (literalmente, tratado sobre o
teatro) é o mais antigo livro existente sobre as artes cênicas. Trata-se de
uma verdadeira enciclopédia sobre teatro, em que são especificados
detalhadamente todos os aspectos envolvidos em uma representação
artística. Esse tratado chega a níveis de detalhamento impressionantes,
como por exemplo as cores adequadas para a maquiagem, os tipos de
movimento para cada parte do corpo e a maneira correta de construir dos
palcos em suas exatas proporções. O “AbhinayaDarpanam” de
Nandikesvara é um manual de gestos e posturas de dança e drama (século
III d. C.). {...} Em outras palavras abhinayasignifica o despertar dos nove
sentimentos chamados “navarasa” por meio das expressões faciais:
surpresa, repulsa, coragem, amor, humor, fúria, medo, liberação e comoção.
{...} O segundo termo “darpanam” significa espelho, que ajuda o espectador
ver toda a linguagem articulada no palco e compreender sua condição
13
pessoal (ANDRADE, 2008, p. 86).
Nos textos, as evidências da cultura védica para a concepção das artes do
corpo são expostas na sistematização do conhecimento e engendradas pela
intelectualidade brâmane. Para os sacerdotes, nas escrituras sagradas do Rig Veda,
Yagur Veda, Sama Veda e Atharva Veda14 estavam definições também aplicadas no
estudo das artes. A palavra no Rig – o veda ou conhecimento dos hinos, os gestos
do Yagur – veda dos atos sacrificiais, a música no Sama – onde se encontram os
cânticos rituais, e a estética do Atharva – voltado às funções sacerdotais, devoções
e encantamento espiritual (bhava). Reunidos pelo deus Brahma, estes fundamentos
foram compilados no chamado quinto veda que a supremacia brâmane nominou
“Natya Veda”. Em seguida, o deus da criação transmitiu-o ao sábio Bharata –
possivelmente um nome genérico, e conferiu ao brâmane o encargo da sua escrita
que redigiu o “NatyaShastra”, a ciência da dança, da música e da dramaturgia.
Algumas interpretações delegam ao estilo BharataNatyam – tal qual o Odissi estilos
considerados os mais remotos, a raiz etimológica no nome de Bharata por uma
divisão silábica; de “Bha” o bhava – deleite e expressão, de “Ra” o Raga – melodia e
escala musical, de “Ta” o termo Tala – ritmo e movimento. Desta fusão, a própria
dança.
451
Figura 2: RamGopal (1912/2003), dançarino e coreógrafo de BharataNatyan, expoente internacional,
tendo ao fundo o templo de Belur, Mysore, sul da Índia.
452
Figura 3: RamGopal, como Shiva, e a deusa Parvati, sua consorte.
Há que se observar que o mesmo vocábulo contudo designa historicamente a
nação indiana, haja vista o épico “Mahabharata”, atribuído ao sábio Vyasa, um autor
mítico, cujos primeiros textos teriam sido escritos por volta do século IV a. C., na
grande epopeia dos bharatas. Do “AbhinayaDarpanam”, que se concentra na
comunicação e na gestualidade, quatro aspectos da dança e da interpretação são
categoricamente descritos e, assim como o Natya Veda, desenvolvido nos textos
védicos: “VachikAbhinaya”/ Rig Veda, o diálogo e o discurso do texto;
“SattvikAbhinaya”/ Atharva Veda, a expressão dos sentimentos e estados mentais;
“AngikAbhinaya” / Yagur Veda, a linguagem do corpo; e “AharyyaAbhinaya” / Sama
Veda, voltado aos ornamentos e à visualidade15.
Com o processo de formação da dança clássica indiana historicamente
elucidado, entra em cena uma personagem de fundamental importância na
453
historicidade das imagens e representações indianas e sua continuidade para os
estudos do corpo e do movimento, diretamente vinculada ao campo dos estudos de
gênero e da historiografia dos subalternstudies: as devadasis ou “bailadeiras
indianas”.
Na organização social da Índia védica, a arquitetura concentrou em si o
panteão hindu iconografado e proporcionou o florescimento das artes templárias, já
que as sociabilidades e a economia se desenvolviam em torno dos templos,
construídos por soberanos ou doados por membros das cortes, eram mantidas por
influentes comerciantes. Nas comunidades rurais, os aldeões os mantinham e os
usufruíam, além dos ofícios religiosos, para funções educativas, nas quais músicos e
mulheres ligadas ao entretenimento somavam-se aos sacerdotes, como observou
Miranda
16
ao estudar as devadasis como uma das cinco temáticas mais
trabalhadasem toda a produção literária em português escrita na Índia. Mostravamse, depois dos sacerdotes, como figuras proeminentes dos grupos sociais
diretamente vinculados aos templos, embora fossem distinguidas como cortesãs,
eram dançarinas prescritas para os ritos diários e tinham nas suas danças a
sensualidade e a devoção como componentes equivalentes em oferta aos deuses. O
erotismo, associado à fertilidade, e o encantamento, ilustrando o desejo visceral na
realização entre criatura e criador, devoto e divindade, transformava a devadasi em
instrumento de lascívia e volúpia, o que legitimava o seu epíteto, do sânscrito
“servas dos deuses”, corroborando a descrição dos colonizadores portugueses em
Goa, no século XVII, ao referirem-se às dançarinas – ou bailadeiras, como
prostitutas dos pagodes; também citadas na obra do viajante inglês Richard Burton,
já no século XIX. Com uma visão que se distancia de possíveis anacronismos,
Lowen17 ao investigar as devadasis no estado de Orissa, costa leste da Índia, onde a
sociedade local as evocavam como maharis, destacou sua condição de mulheres
oficialmente casadas com a divindade principal do templo, que em Orissa, eram
consagrados em maior parte à Jaganath, uma das representaçõesdo deus Krishna,
ou deuses ligados aos cultos de Vishnu, como o deus do Sol - Surya, ou Hari-Hara –
divindade decorrente da fusão de cultos vishnuistas e shivaistas. A pesquisadora
descreveu a contribuição determinante das maharis – as devadasis de Orissa, em
sua intensa devoção, caracterização cênica e linguagem corporal - na formação
determinante da dança clássica Odissi, como uma das três escolas18 que, fundidas,
454
se fazem perceber nas performances contemporâneas. Em contrapartida, Boxer, ao
analisar as relações entre as devadasis e os cidadãos da nobreza de Portugal
estabelecidos em Goa, examinou extensa documentação em que as duplas funções
das devadasis, ora assistentes dos sacerdotes, ora serventes sexuais de
autoridades e abastados cujos lucros tinham como finalidade a manutenção dos
serviços dos templos, configuravam o seu papel de mediação econômica, exercida
pelo corpo, que tinha na dança o diálogo com o divino, para satisfação do gozo e
deleite humano, fenômeno presente em várias outras culturas da antiguidade, como
Egito, Grécia ou Suméria.
No território português da Índia, os conflitos entre vice-reis e arcebispos de
Goa diante das querelas sobre as devadasis eram frequentes. Os religiosos
acusavam as autoridades civis de serem tolerantes para com as bailadeiras e as
denunciavam como obstáculos para a promoção da prática cristã e reforma da vida
espiritual dos portugueses na Ásia. Com tratado escrito em 1725, o Fr. D. Inácio de
Santa Tereza, Arcebispo Primaz do Estado da Índia (1721-1740), assim se
pronunciou:
Aqui pertence finalmente juntar hum dos maiores escândalos da India, por
pertencer de algum modo à Religião, que he o comercio e comunicação
com as bayladeiras gentias, servidoras dos Pagodes, reedificações dos
antigos, ornato e riqueza dos Idolos, concorrendo talvez os seos amasios
com o dinheiro determinadamente para o Pagode, e existindo algum erecto
com o titulo de certo cavalheiro Portuguez, que ainda hoje vive, pelo muito
que deu à Bayladeira para a sua ereção. Porém adiante tocaremos alguma
couza neste particular dos danos, não só espirituais mas também
temporaes, que esta pessima carta de harpias e fúrias infernaes tem
19
cauzado e cauzão a todo o Estado (BOXER, 1961, p 91).
O texto expõe o risco em que tinham se constituído as devadasis já que a
ameaça do corpo, mais que uma infração moral, era especialmente temida devido
aos desvios financeiros que ocorriam nos templos hindus e em suas representantes
um foco de dispersão dos interesses coloniais. Paradoxalmente, as tensões
subsistiram ao quefavoreceu a permanência das devadasis no universo cultural da
Índia portuguesa, conforme apontou Miranda. O corpo físico da dançarina,
fartamente adornado em detalhes e joias, que a documentação lusa ultramarina
descreve como “oferta e sacrifício ao Diabo”, é acima de tudo a manifestação
telúrica, a força da ancestralidade imagética, cinestésica e consciente do seu
passado. Mais que reminiscências, são sobrevivências em inúmeras versões
455
representadas, musculaturas, eixos, expressões faciais, códigos e atalhos, estes,
muitas vezes, a indicar sendas para o desconhecido, quiçá inacessível, senão pela
leitura da gestualidade do corpo. Na mesma conjuntura, porém avançando para
outra singularidade em que o corpo e a dança veem-se em conflitos de alteridade,
observa-se o fenômeno dos rapazes que vestidos e adornados como dançarinas dos
templos, apontam duas problematizações: em Goa, no século XVIII, sobre a
proibição das bailadeiras nas terras dominadas pela Coroa portuguesa juntamente
com vassalos vestidos em trajes femininos de dança, e em Orissa, a partir do
mesmo período – com ênfase no século XIX, o acolhimento de garotos20 ginastas
que, figurados como maharis, as devadasisde Orissa, apresentavam suas danças
nas dependências externas dos templos.
No caso de Orissa, há duas interpretações. Na primeira delas, na qual se
apoia Andrade21, as constantes invasões estrangeiras provocaram a transferência
da dança ritual das maharis para as cortes, o que fez o sistema de formação de
dançarinas nos templos entrar em decadência. Concomitantemente, surgiu um
movimento que fez a dança ser preservada ao alcance dos devotos, por conta da
adaptação da tradição em meninos que, por um excelente domínio físico, foram
treinados a incorporar a tradição das dançarinas apresentando-se como se fossem
elas próprias, com figurinos, maquiagem e ornamentos femininos, mas inserindo o
seu desempenho acrobático nas peças coreográficas, mantidas sob o cunho
devocional. Os meninos – na língua local oryagotipuas, designação de garotos
ginastas, proporcionaram o surgimento de uma escola homônima, responsável pela
sobrevivência da dança ritual fora dos templos, e destes para a perpetuação da
tradição. Num outro panorama, teria sido da colonização britânica o impedimento da
execução das danças rituais das maharis nos espaços públicos religiosos, parte de
ações restritivas impostas às mulheres indianas, numa campanha por “moralização”.
Numa perspectiva de subalternidade, as duas leituras tornam-se coerentes enquanto
aspectos de uma realidade mais complexa.
456
Figura 4: KelucharanMohapatra, dançarino e principal coreógrafo do repertório contemporâneo da
dança Odissi, em peça expressiva (abhinaya) em louvor à Jagannatha.
Figura 5: KelucharanMohapatra e SanjuktaPanigrahi no RietbergMuseum,Zurique,Suiça, 1983.
Em Goa, o caráter punitivo esteve explícito, respaldado por uma legislação
determinada pelo Vice-Rei João Saldanha da Gama, publicada em 28 de setembro
de 1730.
457
Hey por bem, e mando que se guarda inviolavelmente a dita ley de 28 de
setembro de 1730 com todas as suas clausulas, expressões e disposições
assy como nella se conthem, - e outros ordeno, e mando que da publicação
da presente ley em diante nenhuma mulher servideira dos Pagodes, ou das
bailadeiras, nem os seus gadaras, venhão às terras do Estado sob pena de
morte natural para sempre, que se executará irremissivelmente, e os
vassalos do Estado, assychristãos como gentios, e mouros, não poderão
mandar vestir rapazes, ou christãos ou gentios, em trajo de bailadeira para
fazerem bailes, sob pena de serem degredados para Chaul por tempo de
sinco anos, e pagarem quinhentos xerafins para as despesas da fazenda
real, e havendo denunciante, se lhe dará a terceira parte (BOXER, 1961, p.
22
103).
Clara está a força e a influência que o grupo social das dançarinas dos
templos, dos sacerdotes e músicosexerciam sobre suas comunidades. Na função
social estabelecida em sua condição de cortesã, era o corpo da dançarina que lhe
conferia a devida dignidade, um corpo cujo possuidor era o divino; é nesta relação
que se concebe arte na cultura indiana. Pelo caráter sublime da dança, o corpo,
independente do gênero, era por si só o realizador da sacralidade no cotidiano da
vida social. Desta forma, é pertinente a reivindicação de AbyWarburg que propôs
uma ciência da cultura (Kulturwissenschaft) para tratar da história da arte em seus
“entrelaçamentos”. Didi-Huberman lembrou que
ao mandar gravar em letras maiúsculas a palavra grega correspondente a
memória (Mnemosyne) no alto da porta da sua biblioteca, Warburg indicou
ao visitante que ele estava entrando no território de outro tempo (DIDI23
HUBERMAMM, 2013, p. 41).
É neste território, acessado pela visualidade corporal, que se rememora nos
corpos dos deuses os sujeitos históricos, artistas, autores, artesãos, dançarinos e,
sobretudo os personagens anônimos presentes nas sombras das representações de
suas culturas. Desta abordagem, identifica-se a função histórica da arte visual na
corporalidade indiana como linguagem transmissora de conhecimentos e saberes, e,
sobretudo, portadora de um passado milenar, vivo, presente e determinante nas
rupturas e permanências na trajetória cultural da Índia, em seu território assim como
na diáspora, cumprindo o seu papel em promover princípios universais, em diálogo
com visões humanistas, categorias epistemológicas, paradigmas e padrões culturais,
muitas vezes antagônicos, mas em busca do convívio filosófico norteado por
estéticas em interações e transformações, e movidos pela Cultura de Paz proposta
pelo pensamento gandhiano.
458
Nos estilos clássicos de dança indiana que foram abordados nesta conjuntura,
imagem-corpo-dança, BharataNatyam e Odissi, o repertório coreográfico tradicional,
encenado em teatros, templos, espaços culturais, acadêmicos ou diplomáticos –
frequentemente divulgadores das expressões artísticas da Índia como meio de
participação política, ilustra a força da dimensão religiosa reproduzida nas
apresentações.
Inicialmente um ritual com percussão dos pés tradicionalmente contornados
em vermelho, portando guizos nos tornozelos para os efeitos sonoros da dança e
reverência com as mãos levadas ao chão e trazidas sobre a testa, indicando a
saudação dos dançarinos e dançarinas à Bhumi, a Mãe-Terra, doadora da vida e do
som reproduzido nos passos e marcações rítmicas, o Bhumi-Pranam; a partir deste
instante é que se começa a apresentação. As peças que abrem os espetáculos,
mostras ou recitais, remetem à chegada dos devotos nos templos com as oferendas
de flores e são introdutórias para textos de invocação, os slokas, ou exibição de
itens abstratos onde dançarinos e dançarinas exibem seu conhecimento técnico e a
tradição que representam. É também o momento em que uma imagem religiosa, na
maior parte esculturas, recebe um gestual de veneração, homenagem ou adoração.
No Alaripu, o BharataNatyam revela-se em sua intensidade já nos instantes iniciais
pela execução peculiar dos movimentos claramente inspirados em Shiva. O item
correspondente na dança Odissi, o Mangalacharan, destaca-se na sinuosidade do
caminhar da entrada no palco ou em direção à imagem religiosa, exibindo a devoção
e o encantamento que esta dança oferece como linguagem própria do sentimento
religioso, dançado, conforme a peça, em dedicação a determinadas divindades,
como o deus Ganesha, invocado para os momentos auspiciosos, por exemplo, o
começo de projetos, atividades ou empreendimentos; ou deusa Sarasvati, divindade
das artes, aspectos de Vishnu ou de Shiva, descritos dramaturgicamente pelo artista
em cena. Em seguida, o Pallavi, inteiramente abstrato e caracterizado pelas formas
das imagens templárias, retrata com rigor e precisão as esculturas religiosas numa
criação e combinação de movimentos, giros, saltos, gestos de mãos e expressões
faciais que fazemdos espectadores partícipes da experiência da dança. No
BharataNatyam,
esta
vivência
ocorre
no
Jatiswaran,
assim
como
no
Pallavisão,coreografias de dança pura conduzidas por ragas, melodias específicas
do sistema musical indiano, com temáticas criadas a partir das manifestações da
459
natureza ou do plano divino, o que possibilita aos gurus de dança, mestres das
tradições, compor inúmeras peças abstratas, versões para a dança, originadas nas
composições de música clássica, como na literatura, fontes de criação. O Shabdam
e o Varnam, do BharataNatyam, e o Abhinaya ou Ashtapadi, da dança Odissi,
configuram-se
como
itens
compostos
por
dramaticidade,
como
danças
interpretativas dos textos da literatura religiosa, num passado recente, exibidas por
longas horas de apresentação. A expressividade predominante, algumas vezes, é
enriquecida com elementos abstratos rítmicos tornando as coreografias originais em
estéticas integrativas de corpo, escultura, texto e imagem em movimento. Embora
sejam repertórios ricos e complexos, esta ordem, de acordo com as adaptações,
acrescidas ou reduzidas em demais itens coreográficos, é finalizada com danças
que têm por intuito a conclusão da experiência artística no encontro entre criador e
criatura, divino e humano, artista e audiência. O Tillana, do Bharata-Natyan, e o
Moksha, do Odissi, em essência, convidam para o ápice, a transcendência através
das bênçãos e do encontro interno com a divindade. Os hastas, ou mudras, ampla
codificação para os gestos manuais, constituem linguagem elementar na
comunicação cênica, já que suas variações e multiplicidade simbólica proporcionam
a gestualidade estendida às expressões faciais na comunicação e no sentido de
cada instante dançado, ouvido nas letras e no cântico dramatizado, reportando os
templos da antiguidade védica. Por fim, a dimensão plástica deixa de ser
prerrogativa no entendimento da arte da dança indiana, já que se encontra
intrinsecamente presente no deleite, no bhavadas imagens, onde beleza e
sacralidade encontram-se harmonizados pelo sublime. A dança clássica indiana na
contemporaneidade énão somente a herança das tradições filosóficas e visuais da
Índia antiga, tradução das esculturas milenares, ou acervo vivo do patrimônio
religioso. É, todavia, um campo particular de uma ciência da cultura, segundo a
perspectiva warbuguiana, sobrevivente, recria-se, superando fronteiras, como via de
autoconhecimento e de libertação. O sádhana, caminho existencial dos yogues rumo
à redenção definitiva, a meditação em movimento e visualidade, tão somente porque
os deuses dançam e se realizam quando seus devotos e suas esculturas podem
também dançar, através das imagens e do dançarino no seu corpo, divinamente,
humano.
460
Notas
1
Doutorando do Programa de Pós Graduação em História, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo PUC-SP, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Torres Londoño; bolsista CNPq.
2
Aby Warburg (Abraham Moritz Warburg), historiador da arte nascido em Hamburgo (1866 / 1929),
tornou-se um notável pesquisador, cuja obra influenciou os estudos de Erwin Panofsky, Ernst Gombrich, Walter
Benjamin, Carlo Ginzburg, entre tantos outros. Foi aluno de Jacob Burckhardt e segundo seus críticos tem um
pensamento marcado pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Referência impreterível para os estudos das imagens,
sua obra é profundamente analisada pelo historiador e filósofo Georges Didi-Huberman, professor da École de
Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, que discute em sua vasta bibliografia conceitos e fenômenos
apresentados por Warburg em suas investigações sobre o paganismo no renascimento italiano.
3
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo
AbyWarburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. p.25.
4
GeorgesVigarello, professor da Universidade de Paris-V e diretor de estudos na École des Hautes
Études em Sciences Sociales, em entrevista à Denise Bernuzzi de Sant’anna, intitulada O corpo inscrito na
história: imagens de um “arquivo vivo”, realizada em Paris, em 10 de fevereiro de 2000. Revista Projeto História,
nº 21, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, novembro de 2000, pp 225-236.
5
GOPAL, Ram e DADACHANJI, Serozh. Indian Dancing London: Phoenix House Limited. 1951. p 13.
6
ANDRADE, Joachim. Shiva abandona o seu trono: destradicionalização da dança hindu e sua difusão
no Brasil. 2007. Tese de doutoramento em Ciências da Religião, PUC/SP.
7
Um conto cita Krishna e suas gopis em passatempo às margens de um grande lago enquanto seus
rebanhos se abasteciam. O lago era a morada de uma serpente cujo veneno borbulhava sob as águas. Atirandose ao lago por conta da recreação Krishna notou o veneno, o mal estar dos animais e logo viu-se enrolado pela
serpente Kaliya. Neste instante sua natureza divina se manifesta e em ritmo crescente, atinge um grande
tamanho e seu pé passa a esmagar a cabeça do grande ofídio, em movimentos dançados vistos pelas gopis e
por transeuntes na beira do lago como o triunfo de Krishna. Reconhecendo sobre si a grandeza de Vishnu
revelado em seu avatar, Kalya com medo de ser morta pede à Krishna perdão explicando ser da sua própria
natureza o nefasto veneno. O divino pastor a perdoa e concede-lhe a fuga. Uma versão mais ampla do mito pode
ser encontrada em COOMARASWAMY, Ananda.e NIVEDITA, Irma. Mitos Hindus e Budistas. São Paulo: Landy,
2002. p. 215.
8
Um estudo específico sobre a dança em ShivaNataraja pode ser desenvolvido por conta da
complexidade simbólica da sua representação.
9
PORTINARI, Mabel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p 41
10
No estado de Orissa, costa leste da Índia, correspondem às maharis, e são descritas na obra de
Sharon Lowen. Ver: LOWEN, Sharon. Odissi.Dances of Índia. New Delhi: Wisdom Tree, 2004. p 19.
11
Para uma tradução dos códigos e símbolos desta imagem, ver ANDRADE, Joachim (op. cit) e Dança
clássica indiana:história – evolução – estilos. Curitiba: edição do autor, 2008, 166p.
12
De acordo com o profuso trabalho de pesquisa in loko da dançarina Rita Andrade que resultou no livro
“Odissi: dança clássica indiana”. São Paulo: Scortecci, 2009. pp 20/21 - o oitavo estilo clássico foi reconhecido
em 2000 pela NationalAcademy for Dance and Music – SangeetNatakAcademy, segundo bibliografia de Ashish
M. Khokar, o “Sattriya”, modalidade oriunda do estado de Assam, que surgiu no século XV. Junta-se ao “Odissi”,
“Manipuri” e “Mohiniattam” como estilos de inspiração claramente vishnuístas, enquanto no “BharataNatyan” e
“Kuchipudi” predominam as devoções e plásticas shivaístas, mais lineares e vigorosas por conta do elemento
tandava (força ou vigor), atributo de Shiva. Além destes as danças “Khatak” que nasce das confluências
islâmicas e hindus no norte da Índia, e “Katakali”, do sul do subcontinente indiano, caracterizam-se pelas
conotações de histórias fincadas nas antigas fontes literárias e tradições orais, e do forte apelo cênico e
percussivo. Nota-se que o “Katakali” é essencialmente teatralizado e tem na sua origem os cultos à deusa Kali,
um dos aspectos femininos de Shiva.
13
ANDRADE, Joachim. Op. Cit. p. 86.
14
Grafia utilizada por Gopal e Dadachaanji, que não abordam cronologias, mas a temporalidade mítica
na dança. GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Op. Cit. p. 17.
15
GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Op. Cit. p. 23
16
MIRANDA. Eufemiano de J. Literatura indo-portuguesa dos séculos XIX e XX: um estudo de temas
principais no contexto sócio-histórico. 1995.Tese de doutoramento em Literatura portuguesa. Universidade de
Goa, sob a orientação do Prof. Dr. Fr. Ivo de Mascarenhas. Mapusa. Goa.
17
LOWEN. Op. Cit. pp 19-22.
18
Além da tradição Mahari e Gotipua, uma terceira escola integra a formação da qual se evoluirá o
Odissi contemporâneo, a escola Nartaki, a dança desenvolvida nas cortes de Orissa.
19
BOXER. C. R. Fidalgos Portugueses e Bailadeiras Indianas (Séculos XVII e XVIII). Separata da
Revista de História. Nº 45. São Paulo, 1961. p 91.
20
A caracterização feminina em dançarinos está fundamentada no mito de “ShivaArdhanari” ou
“Ardhanarishwara”. A junção religiosa de Devi (ou de manifestações da deusa) e de Shiva gerou o culto à dupla
personificação de Shiva, em que se mostra metade de um corpo masculino com metade do corpo feminino. Os
atributos também foram equilibrados e a divindade é representada com elementos de Shiva e de Devi – não
necessariamente sua consorte já que esta ou divindades femininas do shivaísmo constituem outros mitos do
461
extenso panteão hindu. Sobre ShivaArdhnari ver: ZIIMMER, Heinrich. Mitos e símbolos na arte e civilização da
Índia. São Paulo: Palas Athena, 1989. p 171.
21
ANDRADE, Joachim. Op. Cit. p 113.
22
BOXER. C. R. Op. Cit. 103
23
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. Cit. 41
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Joachim. Shiva abandona o seu trono: destradicionalização da dança hindu e
sua difusão no Brasil. 2007. Tese de doutoramento em Ciências da Religião, PUC/SP.
ANDRADE, Rita. Odissi:dança clássica indiana.São Paulo: Scortecci, 2009.
BOXER. C. R. Fidalgos Portugueses e Bailadeiras Indianas (Séculos XVII e XVIII).
Separata da Revista de História. Nº 45. São Paulo, 1961
COOMARASWAMY, Ananda. e NIVEDITA, Irma. Mitos Hindus e Budistas. São Paulo:
Landy, 2002
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos
fantasmas segundo AbyWarburg.Rio de Janeiro: Contraponto, 2013
GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Indian Dancing. London: Phoenix House Limited.
1951
LOWEN, Sharon. Odissi.Dances of Índia.New Delhi: Wisdom Tree, 2004.
MIRANDA. Eufemiano de J. Literatura indo-portuguesa dos séculos XIX e XX: um
estudo de temas principais no contexto sócio-histórico.1995. Tese de doutoramento em
Literatura portuguesa. Universidade de Goa, sob a orientação do Prof. Dr. Fr. Ivo de
Mascarenhas. Mapusa. Goa.
PORTINARI, Mabel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
VIGARELLO, Georges.professor da Universidade de Paris-V e diretor de estudos na
ÉcoledesHautesÉtudes em SciencesSociales, em entrevista à SANT’ANNA, Denise
Bernuzzide, intitulada O corpo inscrito na história: imagens de um “arquivo vivo”,
realizada em Paris, em 10 de fevereiro de 2000. Revista Projeto História, nº 21, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, novembro de 2000, pp 225-236.
Jorge Lúzio
Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP, é
mestre em História pela mesma instituição. Membro do Laboratório de Interlocuções com a
Ásia – LIA FFLCH USP e do Grupo Outros Orientes, com Lato Sensu em Cultura e Arte
Barroca / UFOP-MG, especialização em Yoga / UniFMU-SP, e formação em Dança Clássica
Indiana Odissi /Padmaa-SP. Docente no Centro Universitário Assunção Unifai – São Paulo.
462
QUANDO A FLECHA ATINGE A SI MESMO – A ARTE ZEN DO KYUDÔ COMO
CAMPO DE MEDIAÇÕES DE CONTATOS INTERCULTURAIS ENTRE ORIENTE E
OCIDENTE
Saulo de Azevedo Freire - UECE
RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir acerca dos empreendimentos de apropriação
de práticas e produtos culturais das sociedades orientais pelo ocidente. Proponho como
ponto de partida para tais reflexões a experiência de contato com o Kyudô (a arte do
arqueiro zen), desenvolvida pelo filósofo alemão Eugen Herrigel entre 1924 e 1929, quando
lecionou filosofia no Japão. Dessa experiência surgiu o livro A arte cavalheiresca do arqueiro
zen (HERRIGEL, 1995). Esta é uma das primeiras narrativas sobre o contato prolongado de
um ocidental com o Zen, vertente do Budismo japonês, cujo desenvolvimento é marcado por
inúmeras atividades práticas como o Kyudô, além de outras técnicas como a Ikebana e a
Zazen. A análise das experiências de Herrigel nos apresenta um campo fértil para reflexão
sobre os contatos interculturais entre oriente e ocidente. Sua narrativa experiencial sobre o
Zen nos mostra um contraponto ao processo caracterizado por Benjamin (1986) como
empobrecimento da experiência, que marca o ocidente desde início do século XX. Seu
contato com a prática em questão diferencia-se de perspectivas desenvolvidas por
orientalistas, que empreendiam contatos com as sociedades do oriente com vias de
distanciamento, principalmente com perspectivas de subordinação (SAID, 2010).
Palavras-chave: Arte Zen, Budismo, contatos interculturais, orientalismo, Sociologia.
ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect on the appropriation of certain practices
and cultural products from eastern societies by the west. It is proposed as a starting point for
this reflection the experience of contact with Kyudo (Zen Archery), developed by the german
philosopher Eugen Herrigel between 1924-1929, while teaching philosophy in Japan. From
this experience, the book Zen in the art of archery (HERRIGEL, 1995) was originated. This is
one of the first narratives about a prolonged contact of a western with Zen, a form of
Japanese Budhism which uses countless practical activities as Kyudo, besides other
techniques as Ikebaria and Zazen. The analysis of Herrigel’s experiences presents a fertile
field for reflections on intercultural contacts between East and West. Herrigel’s experimental
narrative about Zen shows a counterpoint to the process of impoverishment of the
experience as stated by Benjamin (1986), which marks the West since the beginning of the
20th century. Herrigel’s contact with the mentioned practice is different from the perspectives
developed by orientalists, whose contact with other societies was based on detachment,
strongly biased by perspectives of subordination (SAID, 2010).
Keywords: Zen art, Budhism, intercultural contacts, orientalism, Sociology.
1. Introdução
Em 1924, Eugen Herrigel, um filósofo alemão de orientação neo-kantiana é
convidado para lecionar na Universidade Imperial de Tohoku, em Sendai no Japão¹.
Além das atividades de âmbito acadêmico, Herrigel aproveitou a oportunidade para
conhecer in locu, alguns aspectos da cultura e filosofia japonesas, tema pelo qual
463
havia desenvolvido gosto desde sua juventude. Em especial despertara interesse
pelo Zen Budismo, tradição com a qual intenta aproximação logo em sua chegada
ao Japão. Uma das características fundamentais da vertente Zen do Budismo é o
seu desenvolvimento atrelado a inúmeras atividades ou artes de cunho prático,
como as artes marciais, a Ikebana², a pintura, e inúmeras outras práticas. Em sua
empreitada de descobrimento/conhecimento sobre o Zen, Herrigel escolhe o Kyudô,
a arte do arqueiro Zen (kyu – arqueiro; dô – caminho), como prática que o conduziria
em tal empreendimento. Suas experiências de contato com o Kyudô e com o Zen
Budismo deram origem a um livro intitulado A arte cavalheiresca do arqueiro zen
(HERRIGEL, 1995), primeiro relato de contato direto de um ocidental com tais
práticas, e um dos primeiros textos publicados em idioma ocidental (e escrito por um
ocidental) sobre o tema.
São justamente as experiências de contato de Herrigel com o Kyudô, e
particularmente com o Zen, que tomo como ponto de partida neste trabalho para
refletir acerca dos processos de contatos e mediações culturais entre ocidente e o
oriente. Sua experiência com essa prática nos mostra como uma técnica corporal,
neste caso o tiro com arco, ganha significados e contornos práticos diferenciados
quando seu contexto de desenvolvimento é adverso, e atravessado por diferentes
campos de mediações culturais. Essa é uma problemática para a qual já atentava
Marcel Mauss (2003) desde o início do século XX. Mauss foi um dos primeiros no
âmbito das Ciências Sociais a chamar a atenção para a importância da
compreensão dos usos sociais do corpo para a análise das dinâmicas de
sociabilidade. Eis que ele denomina de técnicas corporais, as diversas formas de
usos sociais dos corpos. Nesse sentido, a arte japonesa do tiro com arco, como a
desenvolvida por Herrigel, será o fio condutor privilegiado sobre o qual serão
delineadas as reflexões acerca desses campos de mediações, contatos e
apropriações culturais entre ocidente e oriente.
Para esse empreendimento trato, pois, de discorrer no primeiro tópico deste
trabalho sobre as diversas perspectivas através das quais o ocidente estabeleceu
contatos com os povos e culturas orientais. É o que podemos observar através dos
empreendimentos de dominação colonial, tal qual aconteceu no período das grandes
navegações no contexto do movimento expansionista europeu no século XV, ou do
movimento recente de apropriação de diversas práticas e produtos culturais do
464
oriente tal como o ocorrido desde o início do século XX e que ganha novos
contornos com os processos de globalização. O que se destaca conceitualmente,
principalmente a partir da primeira perspectiva apresentada, é o surgimento de um
fenômeno que Edward Said (2010) denomina de orientalismo. Essa é uma categoria
de partida fundamental para as reflexões aqui propostas, pois nos mostra como esse
“oriente” surge como uma invenção do ocidente, e é fruto justamente desses
contatos e estranhamentos com uma alteridade distante, geográfica, cultural e
socialmente, que justamente por isso é colocada em uma condição de
subalternidade ante os povos do ocidente.
O movimento de contatos/apropriações/mediações com o oriente que
(re)emerge no início do século XX (podemos situar aí também experiências de
Herrigel), ocorre em um período entre as duas grandes Guerras Mundiais, onde o
ocidente vivenciava um processo que Walter Benjamin (1986) denominou de
empobrecimento da experiência. Observava-se uma perda nas pessoas da
capacidade de converter aquilo que era vivenciado em experiências duráveis e
transmissíveis. A experiência da Guerra, a instabilidade econômica, o desemprego,
somados ao domínio da técnica sobre o homem, a racionalidade exacerbada e o
ritmo de vida nas grandes metrópoles, delinearam no ser humano do início do século
XX certo “emudecimento” no que diz respeito á construção das experiências de vida.
É nesse contexto que as narrativas experienciais de Herrigel nos apresentam
campo fértil para pensar não somente o oriente, e nem só o ocidente, mas a tensão
que surge a partir desse contato intercultural e dos contextos de mediações que aí
se apresentam. As reflexões sobre o seu contato com a prática do Kyudô e a
experiência do Zen, nos conduzirão nesse caminho de olharmos para longe para
conseguirmos enxergar o que está perto.
2. Sobre a construção de um Oriente próximo
O título deste tópico é uma alegoria sugestiva para o empreendimento
analítico aqui proposto. Devemos perceber que a categoria “oriente”, tal qual fomos
acostumados a articular, é impregnada por diversos campos de mediações culturais
no contato estabelecido entre essas sociedades, e as sociedades ocidentais. Um
oriente que se apresenta como “próximo” não em uma perspectiva geográfica, mas
465
na construção de um imaginário inteligível através do qual se delineiam as vias de
apropriações. Com o intuito de compreender essa perspectiva é que Edward Said
(2010) propõe a categoria orientalismo para problematizar esse movimento de
contatos culturais, onde temos um oriente como “invenção” do ocidente. Segundo
este autor:
(...) o Orientalismo não é um simples tema ou campo político refletido
passivamente pela cultura, pela erudição ou pelas instituições; nem é uma
grande e difusa coletânea de textos sobre o Oriente; nem é representativo
ou expressivo de alguma execrável trama imperialista “ocidental” para
oprimir o mundo “oriental”. É antes a distribuição de uma consciência
geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos,
históricos e filológicos; é uma elaboração não só de distinção geográfica
básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), mas
também de toda uma série de “interesses” que, por meios como a
descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica, a
descrição paisagística e sociológica, o Orientalismo não só cria, mas
igualmente mantém; é, mais do que expressa, uma certa vontade ou
intenção de compreender, em alguns casos controlar, manipular e até
incorporar, o que é um mundo manifestamente diferente (...) (SAID, 2010. p.
40)
Nesse intento, Said (2010) nos apresenta três modelos básicos de
orientalismo. A primeira designação, que constitui o modelo mais prontamente aceito
de orientalismo, é a da esfera acadêmica. O orientalismo surge como um ramo de
estudos, vinculado seja à História, à Antropologia, à Sociologia ou às ciências afins.
O orientalista se apresenta na figura do pesquisador que empreende esses estudos,
e o fruto do seu trabalho é, por assim dizer, orientalismo. Todavia, este é um termo
cuja usualidade, mesmo na comunidade acadêmica, vem decrescendo em termos
de prestígio, pois tem sido atrelado ao empreendimento do imperialismo europeu do
século XIX e inicio do século XX. Os estudiosos sobre as culturas do oriente passam
a rejeitar o emprego do sufixo “ismo” para designar suas atividades de pesquisa com
o intuito de evitar atrelá-las a uma ciência comprometida com esse projeto
imperialista³.
Um segundo modelo de orientalismo, como nos mostra Said (2010), se
apresenta através de um estilo de pensamento baseado em uma distinção
ontológica e epistemológica que é posta entre oriente e ocidente. Nessa perspectiva,
as sociedades orientais são concebidas sempre em “oposição à” ou a partir de uma
“diferença fundamental” em relação às sociedades do ocidente. Esse tem sido o
ponto de partida para a elaboração de inúmeros romances, teorias, descrições
sociais, relatos políticos, entre outros, acerca do oriente, de seus povos, costumes,
466
mentalidades, e assim por diante. Através deste modelo, tecem-se imaginários sobre
esse “oriente” que o colocam sempre em perspectiva de distinção em relação ao
ocidente. É esse imaginário, por exemplo, que norteou a escrita de alguns dos
primeiros relatos sobre essas sociedades produzidos por escritores ocidentais
através da chamada literatura quinhentista, que se constituiu em meio às narrativas
e descrições das expedições marítimas portuguesas no século XVI. Os registros
dessa época se estruturam a partir de um extenso conjunto de obras e de
modalidades textuais, dentre os quais podemos destacar diários, roteiros, guias
náuticos, relatos de experiências de viagens, tratados de geografia, etc.
Partindo dessa abordagem, o terceiro modelo de orientalismo diz respeito
justamente à empreitada colonizadora do ocidente com relação a esses povos, um
estilo ocidental para dominar através das negociações que são feitas, declarações a
seu respeito, legitimando opiniões sobre ele, descrevendo-o, governado seu curso,
enfim, colonizando-o. Empreendimento que teve início nos primórdios da era
moderna com as grandes navegações no século XVI, e que encontra ecos recentes
com a consolidação do imperialismo britânico e francês em países como a Índia e a
Argélia, na passagem do século XIX para o XX, e na atuação norte-americana no
período pós-Segunda Guerra Mundial e sua intervenção no Japão, por exemplo.
Este panorama acerca de como os contatos interculturais entre oriente e
ocidente foram estabelecidos nos apresenta os alicerces nos quais estão fundadas
estas relações. Compreender esse movimento nos leva a perceber que esse tipo de
discurso sobre o oriente apresenta-se como mais um artifício fruto do
empreendimento colonial do ocidente no intuito de estabelecer seu domínio em
relação a outros povos e culturas. É o que ressalta Bhabha (2005), ao identificar que
uma característica fundamental desse tipo de discurso é a fixidez no que diz respeito
à construção ideológica da alteridade. Essa fixidez apresenta-se “(...) como um signo
da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de
representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem,
degeneração e repetição demoníaca” (BHABHA, 2005. p. 105).
Como principal estratégia discursiva, é apresentada uma visão da alteridade a
partir de um estereótipo, uma forma de conhecimento que vacila entre algo já
conhecido, mas que deve ser repetido indefinidamente. Ou seja, o discurso sobre a
467
alteridade, na eminência de representar o entranho, deve ser trazido para o interior
de categorias que produzam um “estranhamento próximo”, que possa ser
mensurável e articulado dentro de padrões conhecidos e conhecíveis pelo
colonizador. Como exemplos dessas manifestações ele cita a visualização de uma
duplicidade essencial do asiático, o da bestial liberdade sexual do africano. Tal
medida gera uma ambivalência no discurso, que para o autor:
(...) garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas
mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização;
produz aquele efeito de verdade probabilística e predictibilidade que, para o
estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado
empiricamente ou explicado logicamente (BHABHA, 2005. p. 106)
Deste modo, como também ressalta Said (2010), é possível visualizar coisas
novas, vistas pela primeira vez, como versões de algo previamente conhecido. E
esta se apresenta como uma forma de controlar aquilo que parece representar uma
ameaça a visão estabelecida das coisas. Por fim, a ameaça é emudecida na medida
em que sua voz é deslegitimada e os valores de familiaridade se impõem. Daí,
podemos perceber que o discurso colonial, enquanto aparato de poder, apóia-se no
reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. A legitimação
dessas estratégias aparece através da produção dos conhecimentos do colonizador
e do colonizado de maneira antitética. Apresenta a alteridade como uma população
de tipos degenerados com base na origem racial, intentando assim uma justificativa
para a conquista e o estabelecimento de sistemas de administração e instrução das
outras culturas aos moldes do colonizador (BHABHA, 2005). É justamente esse
movimento que faz com que diversas práticas culturais, modelos de espiritualidade e
manifestações artísticas de povos como Índia, China, Japão, sejam vistos a partir de
uma ótica da subalternidade. Surge um distanciamento fundamental e essencial que
separa oriente e ocidente não apenas a partir da distância geográfica, mas,
sobretudo de um distanciamento sociocultural.
No tópico que segue proponho uma análise sobre a especificidade do
movimento de contatos interculturais entre ocidente e oriente que surge a partir do
início do século XX. Compreender as características dos novos campos de
mediações que se apresentam nesse contexto é um percurso fundamental para
lançarmos um olhar para experiências de apropriação dessas práticas e produtos
468
culturais do oriente tais como as desenvolvidas por Eugen Herrigel, e as diferenças
com as perspectivas até aqui apresentadas.
3. Sobre a experiência contemporânea: do empobrecimento a destruição
O desenvolvimento técnico nos mais diversos setores das sociedades
ocidentais, ao mesmo tempo em que converte e cria mediadores para as
experiências dos indivíduos, abre também precedentes para que ele acesse uma
gama de “experiências possíveis”, outrora desconhecidas ou inacessíveis. Podemos
tomar como exemplo o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação
que faz com que se acessem práticas e produtos culturais de sociedades distantes
geográfica, cultural e temporalmente. Desde meados do século XX, por exemplo, é
possível com um simples apertar de um botão da TV, visualizar e conhecer inúmeras
terras longínquas sem mesmo levantar-se do sofá. Ao comprar determinados livros
podemos ter acesso às histórias de povos dos quais mal se encontram vestígios na
atualidade. Ao visitar uma loja de discos é possível adquirir trabalhos musicais de
compositores dos mais diversos países do mundo. E não são apenas as novas vias
através das quais acessamos essas práticas e produtos culturais dos mais diversos
lugares do planeta que se modificam, como também a velocidade com a qual eles
chegam até nós, e os modos gerais dessas apropriações que são transformados.
Sobre esse aspecto, impulsionado, sobretudo em decorrência do desenvolvimento
tecnológico, Ribeiro (1997) nos chama à reflexão:
Após a revolução industrial, a velocidade aumentou significativamente e
tornou-se tão capilar que se encontra naturalizada no presente. Os aparatos
da velocidade fazem parte de uma genealogia que inclui locomotivas,
barcos a vapor, carros, motocicletas, aviões. Todos em maior ou menor
grau, símbolos da modernidade em si mesmos (Berman 1987, Foot
Hardman 1988, veja também Virilio 1986). A naturalização da
simultaneidade é igualmente verdadeira. Desde o telégrafo, os aparatos da
simultaneidade incluem o telefone, rádio, televisão, fax e redes de
computadores. Se a velocidade transforma o espaço em uma entidade
obviamente relativa, a simultaneidade virtualmente aniquila o espaço e
tempo. Na era dos satélites, comunicar-se de Brasília com Tóquio dissolve
vários fusos horários. É o fim do espaço absoluto, o império do espaço
relativo na teia global que facilita e energiza a mistura hipercomplexa de
pessoas, capital e informações (RIBEIRO, 1997. p 9-10)
Os exemplos citados até aqui apresentam uma mesma particularidade, que é
uma das principais características da modernidade, marcante, sobretudo a partir do
início do século XX, como já relatava Walter Benjamin (1986) desde 1933: a perda
469
de valor, ou o empobrecimento da experiência humana. O problema da construção
da experiência no ocidente, como veremos, constitui-se de um dos principais
impulsionadores para o fenômeno contemporâneo de apropriação de práticas e
produtos culturais das sociedades do oriente.
Benjamin (1986), em um ensaio intitulado Experiência e pobreza, constata
uma perda do ser humano na capacidade de converter aquilo que foi vivido em
experiência durável e transmissível. A experiência, como nos mostra o autor, é a
capacidade do ser humano de construir e transmitir ensinamentos sobre a vida. Não
se trata, contudo de um conhecimento erudito, escolado ou formalizado, é mais um
conhecimento prático, que se adquire com o passar dos anos, que se aprendem
através da vivência, e se legitima por representar também o conhecimento
acumulado e repassado por gerações que nos precederam. E que, como constata o
autor, parece estar se perdendo em meio ao modelo de vida que se concretiza no
ocidente desde o início do século XX.
Uma das evidências que levam Benjamin a essa constatação é perceptível a
partir das experiências vivenciadas, por exemplo, com o advento da I Guerra
Mundial. Ele reconhece que os eventos extremos, como proporcionados pela Guerra,
faziam com que os soldados voltassem emudecidos dos campos de batalha, sem
conseguir converter em palavras aquilo que haviam vivido. Além da experiência
direta da Guerra, suas repercussões para a vida da população em geral, a inflação,
a crise econômica, a destruição de cidades, a tensão e o medo que se instalaram
nas pessoas, proporcionaram, segundo o autor, um novo estado de barbárie. É o
surgimento
de
uma
nova
forma
de
miséria
marcada
pelo
monstruoso
desenvolvimento da técnica sobrepujando o homem. Uma das características mais
marcantes desse período poderia ser percebida a partir de uma desilusão radical
com o século, e ao mesmo tempo uma total fidelidade a ele. Um desencantamento
com o presente simultâneo a uma rejeição aos signos do passado, que despoja o
homem mesmo do humano, e o coloca a serviço da técnica. (BENJAMIN 1986. p.
115-116).
É esse tipo de situação narrada pelos exemplos elencados desde o início
deste tópico. Do humano que cada vez mais se torna dependente de mediadores da
experiência, dos inúmeros apetrechos dos quais se vale para se resguardar,
470
protegê-lo mesmo de sua humanidade. E não é apenas o ser humano que cria
novas técnicas, mas essas técnicas também criam um novo homem, que
constantemente é modificado, que fala, comunica novas línguas, que se confundem
mesmo com a das máquinas. Homens que não se “conectam” com os outros, que
andam meio “desligados”, que parecem estar ficando “sem energia”, como se
estivessem “quebrados”. É que seus corpos agora parecem feitos de vidro, tanto por
sua fragilidade, na eminência dos perigos de sua humanidade aos quais estão
sujeitos, como por sua transparência, que parece não abrigar mais nada, não ter
nada mais de extraordinário a revelar em seu interior.
Giorgio Agamben (2008), em seu Ensaio sobre a destruição da experiência,
retoma o tema trabalhado por Benjamin anteriormente, contudo reconhece que para
a destruição da experiência humana não se precisa necessariamente de um evento
catastrófico, como o da Guerra evocado pelo autor anterior. Ele afirma que mesmo a
existência cotidiana em uma grande cidade pode ser suficiente para esse fim.
Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que
seja ainda traduzível em experiência: não a leitura do jornal, tão rico em
notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; não os minutos
que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; não a viagem nas
regiões ínferas nos vagões do metrô nem a manifestação que de repente
bloqueia a rua; não a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre
os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola
detonados não se sabe onde; não a fila dos guichês de uma repartição ou a
visita ao país de Cocanha do supermercado nem os momentos de muda
promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem
moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos
– divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes-,
entretanto nenhum deles se tornou experiência (AGAMBEN, 2008. p. 21-22)
O excesso de estímulos, a possibilidades de acesso a uma infinidade de
práticas e produtos das mais diversas partes do globo, e a velocidade com a qual
eles chegam, proporcionam uma dificuldade aos indivíduos em se conectarem de
maneira concreta e duradoura às experiências de vida, como constatou Agamben,
ao mesmo tempo em que lhes proporcionam uma infinidade de novas experiências
possíveis. É justamente em meio ao caráter ambíguo dessas condições internas de
vida nas sociedades ocidental, que vão eclodir e ser impulsionados diversas
manifestações de contraposição a essas lógicas. Uma iniciativa que surge a partir
desse contexto, e que destaco para o presente trabalho, é a do surgimento de um
novo campo de mediações para o processo de apropriação de práticas, produtos
471
culturais, técnicas corporais, terapêuticas e inúmeras manifestações artísticas
oriundos das sociedades do oriente.
4. A flecha que atinge o alvo sem atingi-lo
Como visto anteriormente com Benjamin e Agamben, as condições de vida
nas sociedades ocidentais, sobretudo a partir do início do século XX, geraram um
grande vazio de construção e transmissão de experiências. Podemos perceber
também, que essas mesmas condições de vida instigaram movimentos de
contraposição e de insuflação de novas possibilidades de construção de
experiências de vida em meio, e a partir das próprias contradições das sociedades
ocidentais. Nesse sentido, além de impulsionar movimentos de contraposição a essa
lógica, o empobrecimento da experiência humana nesse período fez com que essas
novas insurgências buscassem influências em tradições e perspectivas de
organizações sociais oriundas de sociedades distintas daquela vivenciada até então.
Sobretudo por parte de uma geração jovem, que se pretendia desbancar o estado
de coisas estabelecido pelas gerações anteriores à sua, com críticas às condições
de vida predominantes em seu tempo. E que para essa empreitada, tiveram também
influências decisivas de tradições do pensamento desenvolvidas em contextos
sociais e culturalmente distintos de sua sociedade como é o caso do Budismo,
Taoísmo e da cultura Hindu.
Podemos ver como nos mostra Campbell (1997), que um dos fatores
favoráveis a entrada de valores fundados principalmente nos modelos de
espiritualidade e tradições do pensamento oriental, reside no fato de que essas
manifestações não haviam se encontrado diretamente, tais quais as religiões e
filosofias do ocidente, como foco dos ferrenhos debates e criticas promovidas,
sobretudo, pela ciência moderna. São perspectivas que figuraram por muito tempo
como “pré-modernas” nos imaginários ocidentais, e que justamente em decorrência
disso nunca haviam gozado de prestígio, nem de grandes espaços para sua difusão
em tal contexto. As novas possibilidades de fluxos não apenas de pessoas, mas de
práticas e produtos culturais entre diversas sociedades fez com que essas
manifestações fossem acessadas no ocidente sob diversas perspectivas.
472
É o que podemos perceber através da experiência do filósofo alemão Eugen
Herrigel. Desde sua juventude já havia despertado interesse pelas tradições do
pensamento do extremo oriente, e como ele mesmo se refere, pela experiência
mística por elas proposta4. Contudo, havia constatado que não poderia apreender
essa experiência ou os ensinamentos sobre ela a partir de um ponto de vista externo
e distanciado. Herrigel já havia percorrido a literatura disponível em seu tempo em
busca de perspectivas para acessar àquele tipo de experiências. Desiludido com
essas investidas ele chega à seguinte conclusão:
(...) só quem verdadeiramente se isola é capaz de aprender o que significa
o isolamento, e só quem leva uma vida contemplativa está completamente
livre e desprendido de si para a união com o ‘Deus supradivino’. Eu
compreendera que não havia outro caminho que conduzisse ao misticismo,
a não se o da própria vivência e do sofrimento. Se faltam essas premissas,
fica apenas o inconseqüente palavrório (HERRIGEL, 1995. p 26).
A partir dessas constatações ele se propõe alguns questionamentos. Como
se acessa o caminho místico? Como se alcança o estado do verdadeiro isolamento?
E mais, como um ocidental moderno, cujas condições de vida são tão particulares
(às quais foram tratadas no tópico anterior), e que está separado dos grandes
mestres, temporal, cultural e geograficamente, poderia encontrar um caminho para
esse acesso?5 A oportunidade de lecionar na cátedra de História da Filosofia na
Universidade Imperial de Tohoku serviu como uma oportunidade para, além de
conhecer o Japão e os japoneses, de entrar em contato com a prática viva de uma
de suas tradições em particular: o Zen-Budismo. Herrigel se propõe a vivenciá-las
através da experiência prática, não-especulativa, tal qual é proposto pelos mestres
Zen. É-lhe recomendado que para esse fim deva praticar alguma arte vinculada ao
Zen6. Dentre tantas ele escolhe o tiro com arco, Kyudô (o caminho do arqueiro), pois
supunha que sua prática anterior de tiro com fuzis e pistolas viria a lhe servir em algo
(e que posteriormente iria perceber estar enganado). Através do intermédio de um
colega professor da faculdade Herrigel é apresentado Kenzo Awa, famoso mestre do
arco no Japão7. Um dos primeiros questionamentos que Herrigel lança sobre a
prática do Kyudô diz respeito a como o tiro com arco, que para nós ocidentais seria
visto unicamente como uma modalidade esportiva, e outrora utilizado com fins de
combate, poderia se constituir como exercício espiritual? (HERRIGEL, 1995. p. 16).
Esse é um tema problematizado também por Marcel Mauss (2003) em seu
artigo As técnicas do corpo, de 1934. Ele percebe que uma mesma técnica pode
473
adquirir significados e usos diversos tal qual variam os valores e anseios da
sociedade onde é praticada. Como por exemplo, a prática do tiro com arco, que para
os ocidentais adquiriu um caráter eminentemente esportivo, chegando a compor
inclusive o conjunto de modalidades presentes nos Jogos Olímpicos, e que para os
praticantes do Kyudô consistia em uma via através da qual poderia acessar o
estágio de Zen, de propricepção, e de integração com o mundo. Ou mesmo se
atentarmos apenas para a experiência ocidental, poderemos perceber que os
arqueiros do século XXI não atiram do mesmo modo e nem com as mesmas
finalidades dos arqueiros medievais. O aspecto relevante do trabalho de Mauss para
as análises aqui propostas reside justamente da compreensão de que os usos
sociais do corpo e as técnicas que dele surgem, são produções culturais diversas
cujas variações dependem de inúmeros valores presentes no seio de cada
sociedade. Uma técnica do corpo específica pode adquirir usos e significados
diversos a partir do momento que é praticada em um contexto diverso ao de sua
origem.
Ao relatar sua experiência com a prática do Kyudô no livro A arte
cavalheiresca do arqueiro Zen (Zen in der Kunst dês Bogenschiessens), publicado
originalmente em 1948, Herrigel (1995) não pretende, pois apresentar um roteiro, ou
caminho linear para a elevação espiritual. Ele também não se propõe a apresentar
um manual da boa-aventurança, pois reconhece a impossibilidade de percorrer o
caminho do Zen meramente com o estudo de textos, e que para isso é
imprescindível a relação com um mestre. Além disso, a experiência do Zen através
de uma de suas inúmeras artes só tem um sentido concreto para quem realmente as
vivenciou. O que se propõe na verdade, através do relato e da descrição da
experiência vivida, é apresentar essa possibilidade do encontro com ela por um
sujeito ocidental moderno. Ele assume a árdua e não menos complicada tarefa de
tentar transformar em palavras aquilo que somente se experimenta corporalmente
na prática. Como ele mesmo narra:
(...) seria irresponsável de minha parte oferecer fórmulas complicadas e
paradoxais, expostas em palavras de efeito. Meu desejo é, ao contrário,
fazer reluzir a essência do Zen através do modo como se manifesta numa
das artes por ele eleita. Esse reluzir não é, porém, a iluminação, na
acepção de um termo tão fundamental para o Zen, mas insinua, pelo menos
a presença de algo, como o súbito clarão de um relâmpago longínquo que
vemos através da neblina espessa. Aprendida deste modo, a arte do tiro
com o arco representa, por assim dizer, um curso preparatório para o Zen,
474
pois graças a ela é possível que um acontecimento à primeira vista
incompreensível se torne transparente, o que por si mesmo antes era
impossível (HERRIGEL, 1995. p. 24)
As experiências de contato com o oriente as quais teve acesso Eugen
Herrigel apresentam-se como uma perspectiva através da qual um ocidental, forjado
justamente pela orientação do pensamento científico, que concebe uma separação
fundamental entre sujeito e objeto da experiência (ou daquilo que se experiencia),
vivencia a possibilidade de construção dessa experiência tal qual recomenda uma
das tradições mais antagônicas dessa abordagem: o caminho do Zen. Onde não há
essa cisão, e indivíduo, objeto e a própria experiência se apresentam como um só,
cuja perspectiva se constrói muito mais por aquilo que consegue ser vivido de
maneira prática, do que por aquilo que se consegue daí refletir ou induzir. Uma
possibilidade de construção de experiência que ocorre justamente em um período
em que, na sociedade ocidental, como nos mostra Roszak (1972) a modernidade e a
racionalidade científica que a acompanha, despojaram o ser humano comum de
inúmeras competências, atribuindo assim à solução dos problemas que se
apresentam na vida cotidiana a especialistas, detentores de conhecimentos
específicos. Homem e natureza foram convertidos em objeto de manipulação da
técnica. Nesse sentido o cidadão comum, que não consegue acessar esse saber
técnico legítimo, se depara com uma realidade que transcende a sua competência.
A especialização seja ela, científica, administrativa, militar, educacional, médica,
transforma-se no grande artifício da sociedade tecnocrática.
Desde o início de sua prática ele ressaltava uma dificuldade em manejar o
arco, pois para isso desprendia de grande quantidade de força e tensão muscular.
Em seguida apresentava uma preocupação com o fato de não conseguir
desenvolver tiros certeiros, pois estes quase sempre escapavam-lhe das mãos. O
mestre Kenzo Awa afirmara que a grande da dificuldade apresentada por Herrigel
residia justamente em sua preocupação excessiva em acertar, no cálculo de seus
movimentos para atingir a esse fim. O mestre fala a seu discípulo:
(...) se quase todas as suas flechas atingirem o alvo, o senhor não será
outra coisa além de um artista que se exibe ao público. Para o ambicioso,
que só se importa com os tiros certeiros, o alvo não é nada mais que um
simples pedaço de papel que ele destrói com suas flechas. Para a Doutrina
Magna dos arqueiros, esse procedimento é, no mínimo, diabólico. Ela
ignora o alvo erguido a uma determinada distância do arqueiro. A única
meta que persegue é aquela que de nenhuma maneira se pode alcançar
475
tecnicamente, e essa meta se chama - se é que se lhe pode dar algum
nome – Buda. (HERRIGEL, 1995. p. 67 - 68).
Ao propor essa afirmativa, o mestre tenta destacar para seu aluno que, no
caso das inúmeras artes Zen, o percurso e a prática, por si mesmos já se constituem
enquanto o próprio fim de tais atividades. Semente após treinamento longo e
duradouro é que o praticante consegue desenvolver (ou restaurar) em si mesmo um
estado de espontaneidade, de naturalidade na execução dos movimentos. O mestre
assim o é e faz, não por apresentar um domínio sobre as técnicas, ou resguardar um
grande número delas, mas por não se deixar dominar por elas no curso de seus
movimentos. E ainda mais, a prática corporal que desenvolve vinculada a qualquer
dessas artes Zen, reverbera esse estado de espontaneidade e fluidez para os mais
diversos âmbitos de sua vida. Um tipo de conhecimento que se produz e se inscreve
de maneira concreta pelo corpo.
Para os mestres japoneses no uso do arco:
(...) a verdadeira compreensão dessa arte só é possível àqueles que dela se
aproximam com o coração puro, despido de qualquer preocupação. Se se
perguntar, desse ponto de vista, aos mestres arqueiros japoneses sobre
esse enfrentamento do arqueiro consigo mesmo, sua resposta soará mais
que misteriosa. Porque para eles o combate consiste no fato de que o
arqueiro se mira e no entanto não se atinge, e por vezes ele pode se atingir
sem ser atingido, de maneira que será simultaneamente o que mira e o que
é mirado, o que acerta e o que é acertado. (HERRIGEL, 1995. p. 17).
E por isso, a natureza misteriosa dessa arte se revela unicamente neste
combate do arqueiro contra ele mesmo. Uma das constatações fundamentais de
Herrigel é que para os ocidentais, acostumados a conceitos e definições claras, a
um pensamento objetivo, tais proposições aparentemente “enigmáticas” podem
parecer um tanto quanto difíceis de tornarem-se inteligíveis. Na verdade, muito mais
do que a reflexão, o que as palavras dos mestres propõem é que seu significado real
seja acessado pelo discípulo através de experiências práticas. E estas só podem
acontecer de fato quando o praticante conseguir silenciar a mente racional, e
extinguir a separação entre si, como sujeito, e a experiência a qual se propõe
acessar, ou os meios através dos quais acessá-la enquanto objeto de tal realização.
476
5. Considerações finais
Ao contrário das iniciativas desenvolvidas pelos orientalistas clássicos, a
experiência de contato de Eugen Herrigel com o Kyudô e com a tradição do Zen
Budismo, nos mostra uma via que nos permite uma reflexão sobre o próprio lugar do
ocidental na tessitura dessas experiências. Essa é uma perspectiva que geralmente
fica omissa no estabelecimento desse tipo de contato intercultural, e só o que
aparece é o estranhamento na relação com “diferente”. A narrativa experiencial de
Herrigel toma como ponto de partida também um estranhamento com o próprio lugar
que ele ocupa nessa relação. Seus conflitos particulares durante o aprendizado do
Kyudô nos apresentam exemplos do âmbito mais geral sobre tipo de problemática
que se origina a partir dessa tensão no contato ocidente/oriente.
As artes Zen apresentam um desafio particularmente árido para uma mente
talhada na lógica e na reflexividade. O desenvolvimento de uma atividade cujo fim
está em si mesmo, na própria prática, é um contraponto provocador a ânsia por um
objetivo delimitador para tal empreendimento. A inexistência de uma metodologia
linear de aprendizado, ou de um percurso teórico a ser contemplado, faz com que a
arte Zen seja o que os mestres chamam de arte sem arte. Seja no tiro com o arco,
na preparação dos arranjos florais, no caminho da espada, o que se intenta é tocar a
si mesmo. A flecha pode ser disparada, pode até nem sequer sair de perto do arco,
mas o arqueiro que tocou o Zen atingiu seu alvo, mesmo sem querer atingi-lo, pois
sabe que terá que continuar a atingi-lo inúmeras vezes.
Notas
1. Onde permaneceu de 1924 até 1929.
2. Arte japonesa de arranjos florais.
3. Eis que se tornam mais usuais expressões como sinólogo (estudioso sobre a cultura chinesa),
nipólogo (estudioso sobre a cultura japonesa) entre outros, para designar alguns desses ramos de estudos
orientais.
4. O emprego da categoria misticismo pelo autor consistiria em uma tentativa de utilizar uma noção para
se referir, de maneira inteligível ao ocidental, a experiência contemplativa, de integração com si mesmo e com o
mundo, sem que haja essa separação entre o eu interior e o mundo exterior. Vale ressaltar, pois, que “místico”
não é uma expressão oriunda dos textos clássicos ou das chamadas escrituras sagradas do Zen-Budismo,
tradição da qual ele trata em seus escritos. Refere-se a uma expressão utilizada pelo autor para aludir a
experiência que nesse contexto é proposta, na eminência de buscar palavras para melhor descrever aquilo que
nem sempre podem ser traduzido em palavras.
5. Herrigel (1995. p. 26) no que diz respeito à distância dos mestres, fala apenas do aspecto temporal.
Resolvi mencionar o aspecto da distância cultural e geográfica para evidenciar o abismo que separa as
sociedades, ocidental e do extremo oriental tradicional. E ainda mais, para explicitar o papel relevante do contato
com o mestre no caminho para aprimoramento do discípulo como aspecto fundamental da tradição budista do
Zen.
477
6. Dentre as quais podemos citar a pintura, os arranjos florais, algumas artes marciais japonesas, entre
outras
7. E que inicialmente reluta em aceitar Herrigel como discípulo, pois já havia tido experiências
desastrosas com alunos acidentais.
Bibliografia
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Infância e história – destruição da experiência e origem da história. elo Horizonte: Editora
UFMG, 2008
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1986.
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para um novo milênio. Revista Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 5-22,
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HENRIQUES, Antônio. Iniciação ao orientalismo. Rio de Janeiro: Editora Nova Era, 2000.
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PANIKAR, Sardar Kavalam Madhava. A dominação ocidental na Ásia. São Paulo: Editora
Paz e Terra, 1977
RIBEIRO, Gustavo Lins. A Condição da Transnacionalidade. In: Série Antropologia.
Brasília: Universidade de Brasília, v. 223, p. 1-31, 1997.
ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Petrópolis: Editora Vozes, 1972
SAID, Edward. Orientalismos – o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010
Saulo de Azevedo Freire
É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Possui mestrado em
Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. É professor da Universidade
Estadual do Ceará e membro do Laboratório de Estudos e Pesquisa Orientais –
LEPO/UECE. Desenvolve pesquisas em: corporeidades e sociabilidade; artes marciais;
apropriação de práticas e produtos culturais das sociedades do oriente no ocidente.
478
ENCONTROS NA OBRA DE LEE UFAN
Ana Amélia Corazza Genioli - PUC - SP
RESUMO: A experiência perceptiva é uma forma de pensar e entender o mundo, a partir da
ligação entre corpo e ambiente. Determinadas obras artísticas procuram estabelecer o
trabalho como ação mediadora entre processos internos perceptivos e de consciência e o
mundo exterior. Essa visão privilegia uma noção processual que implica relações
contingenciais que ocorrem na produção e exposição da obra. Esses aspectos são
fundamentais nas propostas de “encontro” do artista Lee Ufan. Lee cria encontros entre
materiais vistos como completamente distintos, ora industriais, ora in natura, tais como
pedras, chapas de vidro ou de aço e tiras de borracha, em suas instalações. São junções de
elementos inusitados, em arranjos sem precedentes. Suas obras, além de trazerem a junção
de diversos materiais, também podem ser entendidas como encontros entre corpo do artista,
corpo da obra e corpo do espectador. São uma espécie de “encontro às avessas”, porque
nos deixam desconfortáveis num primeiro olhar. Seus encontros produzem fricção, ou
mesmo um curto-circuito no pensamento ao tentarmos fazer analogias. E é justamente
neste ponto que reside um dos principais interesses do artista: a abertura do sentido – no
reinventar.
Palavras-chave: Arte Contemporânea Oriental; Oriente/Ocidente; Orientalismo.
ABSTRACT: The perceptual experience is a way of thinking and understand the world from
the connection between body and environment. Some artistic works seek to establish the
work as a mediator between perceptive action and internal processes of consciousness and
the external world. This view favors a procedural notion that implies contingency relations
that occur in the production and exhibition of the work. These aspects are crucial in the
proposals for "encounter" of the artist Lee Ufan. Lee creates encounters between materials
seen as quite distinct, sometimes industrial, sometimes in nature, such as rocks, glass or
steel sheets and rubber bands on his installations. They are junctions of unusual elements in
unprecedented arrangements. His works, besides bringing the joining of different materials,
can also be understood as encounters between the artist's body, body of work and the
viewer's body. They are a kind of "encounter in reverse", because they leave us
uncomfortable at first glance. His encounters produce friction, or even a short circuit in
thought while trying to draw analogies. And it is precisely at this point that lies one of the
main interests of the artist - the opening of the sense - in reinventing.
Keywords: Contemporary East Art; East / West; Orientalism.
Podemos pensar obras artísticas como mapas de conhecimento. Esses
mapas cartografam a experiência de “ser no mundo” em determinado meio. Desta
maneira, traduzem-nos o processo transformador com o qual lida o artista ao criar
novas experiências e conexões que possibilitam construir epistemologias. Essa
visão privilegia a noção processual do trabalho, ao invés do foco sobre a ação
artística. Dentro desse contexto observaremos quatro instalações do artista Lee Ufan
que envolvem relações contingenciais na produção e exposição das obras.
479
Lee Ufan faz parte de um grupo de artistas que, na década de 1970, estava
na vanguarda de uma onda internacional que separava ocidentalização de
modernização e modernização de universalismo ideológico. O artista nasceu na
Coreia ocupada por japoneses, cresceu no ambiente de guerra e no Japão, durante
os movimentos de protesto estudantil e nas passeatas contra os Estados Unidos, viu
o colapso dos ideais modernistas de progresso e racionalismo em face do genocídio,
imperialismo, holocausto nuclear e industrialização desenfreada. Como jovem
intelectual, Lee se engajou nas críticas à visão de um mundo moderno racionalista,
no qual a consciência humana tende a objetificar os fenômenos e os determinar,
criando assim um mundo de significações fixas. Sua linguagem tentou expandir as
possibilidades da arte em um mundo onde colonialismo e imperialismo, o “outro” e a
“diferença” tinham implicações diretas em sua vida real.
Conhecedor de filosofia moderna, Lee escreve sobre estética e arte
contemporânea e é reconhecido como o principal teórico do grupo Mono-ha, um
movimento de arte antiformalista que ocorreu em Tóquio entre o fim dos anos 1960
e o início de 1970. Em seus ensaios, o artista constrói um sistema estético que
enfatiza uma estrutura relacional através da qual as coisas apresentam sua
existência. Lee busca uma dinâmica espacial que nos induza a encontrar a
experiência imediata do que realmente está diante de nós, o “mundo tal como é”. O
objetivo do artista é redirecionar a intervenção do artista centrada no ato da criação
para a ética da mediação.
A ideia de “encontro” torna-se o elemento-chave para o desenvolvimento de
sua obra tanto artística quanto filosófica. Esse pensamento também é, segundo
Myriam Sas (2011, p.105-107), uma das principais investigações dos artistas
japoneses do pós-guerra. Como a autora declara, em suas várias formas, o conceito
de “encontro” parte de uma compreensão do funcionamento da subjetividade. Por
um lado, a tentativa de performar um encontro, muitas vezes, parte de um desejo de
quebrar a distinção entre “arte” e “vida”. Ou talvez seja uma tentativa de desafiar a
estrutura que circunscreve institucional e estruturalmente o trabalho, para distingui-lo
do “resto do mundo”. A obsessão do encontro é uma herança do esforço modernista
de quebrar a moldura e contestar a institucionalização da arte. Mas, por outro lado, a
idealização de encontro – direto ou imediato – oculta ou desvia a ocorrência de uma
mediação e as questões dialéticas do engajamento. Porém, muitos desses artistas
480
não visaram a um encontro direto, como era comum entre as ações artísticas da
época, mas objetivavam complicar esse ideal com ações de interrupção, mimeses
autorreflexivas e descontinuidade temporal.
A noção de “encontro” norteia toda a obra de Lee Ufan. O artista cria
encontros entre materiais vistos como completamente distintos, ora industriais, ora in
natura, tais como pedras, chapas de vidro ou de aço e tiras de borracha. São
junções de elementos inusitados em arranjos sem precedentes. São uma espécie de
“encontro às avessas”, porque nos deixam desconfortáveis num primeiro contato.
Suas obras, além de trazerem a junção de diversos materiais, também podem ser
entendidas como encontros de todos os elementos que compõem o ambiente, o que
inclui o espectador. Seus encontros produzem fricção, ou mesmo um curto-circuito
no pensamento ao tentarmos fazer analogias. E é justamente neste ponto que pode
residir um dos principais interesses do artista: a abertura do sentido – no reinventar.
Por meio da análise de quatro obras do artista, observaremos o processo de
transformação dos sentidos das coisas que, de certa forma, ressoam estratégias
cognitivas do nosso próprio corpo.
Relatum Phenomenon and Perception A (Fig.1), de Lee Ufan, é composto por
três pedras sobre uma faixa de borracha industrial, com marcações feitas pelo
próprio artista, a qual lembra uma fita métrica. A faixa esticada percorre a sala
expositiva e as pedras pousadas sobre a faixa pontuam seu percurso. A dureza das
pedras gera um contraste com o látex macio e flexível, enquanto seu peso permite
que a faixa seja esticada alterando a precisão de suas medidas. O artista parece
querer questionar a importância das medidas de contagem-padrão quando enfatiza
as propriedades da faixa, especialmente sua elasticidade. Impedido de verificar as
distâncias entre as pedras, o espectador encontra dificuldade em estabelecer
conexões, dentro de uma lógica funcional, entre os elementos na composição da
obra. Essa não interação nos leva novamente a observar os componentes para
tentar estabelecer novas relações com o que de fato estamos experienciando. Na
primeira vez em que tive contato com uma obra do artista, em uma galeria novaiorquina, minha sensação foi apenas de estranheza. Já no encontro seguinte, no
Museu Lee Ufan, em Naoshima, me permitiu um tempo maior não para entender sua
obra, mas para percebê-la melhor.
481
Fig. 1 - Relatum (Phenomenon and Perception A), 1969
Instalação no Museu de Arte de Quioto/Japão, 1969
Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other
Fig. 2 - Relatum-Silence, 2012
Instalação no Museu Lee Ufan Naoshima/Japão, 2012
Fonte: Internet: http://tumblr.anthonywarnick.com/ post/919234280/lee-ufans-relatum-silence-2010via-an-island. Acesso em: jan. 2014
482
A obra Relatum-Silence (Fig. 2), exposta no Museu, era composta por uma
grande pedra e uma espessa chapa de metal retangular, também de grandes
proporções, encostada verticalmente na parede da sala. A pedra tinha uma
angulação maior em uma das faces, como se estivesse apontada em direção à
chapa de metal. No momento em que lancei um segundo olhar à pedra, senti o
impacto da sua presença, seu porte, seu caráter, sua alteridade. Senti que fazia
parte, juntamente com outros elementos do trabalho, de um espaço relacional. Havia
estabelecido não só um contato visual com elementos, mas também um encontro
corpóreo entre alteridades.
Os trabalhos da série Relatum, iniciada nos anos 90, são compostos por
combinações entre um número pequeno de elementos não trabalhados, tais como
pedras, chapas industriais de vidro ou aço e tiras de borracha.
A pedra é um elemento que aparece com muita frequência nas instalações.
Sobre o seu uso, Lee (2008, p.34) relata que “pedras são coisas do mundo que não
são fabricadas e também não possuem um significado direto”. Ele não as escolhe
pela sua “pureza”, mas, sim, por sua alteridade, suas qualidades materiais e
temporais. Para o artista (2011, p.104), “a natureza é difícil de medir ou entender por
sua externalidade e temporalidade indefinida”.
Em suas obras, Lee justapõe elementos normalmente olhados como
completamente distintos – materiais naturais e industriais –, de forma a organizar um
diálogo entre eles. O resultado se assemelha a um tipo de encontro às avessas –
que ocorre não pela empatia, mas pela estranheza. Seu método parece induzir uma
percepção como experiência direta corporal do ser no mundo, deslocando a
definição de um sujeito cognoscitivo para um ser corpóreo que existe na intersecção
entre os mundos exterior e interior. “Corporeidade” é uma questão central na
proposição de encontro de Lee, a interconexão entre o corpo, consciência e o
mundo. Seu objetivo reside em deslocar narrativas conhecidas para poder incorporar
novas imagens sensoriais por meio da percepção.
Em suas obras Relatum, nem a placa, nem a pedra exercem dominância
sobre o outro; ao contrário, elas se relacionam como aspectos distintos da realidade.
483
Nossa participação nessa cena faz crescer o número de componentes e promove
uma experiência do tipo “face a face” com o outro.
Seus trabalhos podem ser melhor entendidos não como entidades fechadas,
mas como situações, conjuntos de relações e traços de eventos físicos; em outras
palavras, como convites abertos, experimentais, muitas vezes temporários ao
espectador.
Fig. 3 - Perception A, 1969
Instalação na Galeria SCAI Tóquio/Japão, 2000
a
Fonte: Catálogo da 52 Bienal de Veneza
Outro trabalho do artista, Relatum, formely Perception A (Fig. 3), é composto
apenas por uma pedra e uma almofada. A princípio observamos que a almofada,
com seu conteúdo macio, é pressionada pelo peso e rigidez da pedra. Podemos
484
ainda ver que a superfície áspera da pedra, marcada por manchas de sua exposição
ao tempo, cria contraste com a superfície lisa e suave do tecido da almofada.
Entretanto, outro elemento nos escapa à primeira vista – o piso. A almofada não
apenas suporta o peso como também se situa entre os dois elementos.
O leitor pode se perguntar se o piso também não teria uma função importante
nos trabalhos analisados anteriormente. Com certeza ele possui, porém nesse
trabalho, especificamente, não só vemos a almofada, mas simulamos mentalmente
o contato do corpo com um elemento macio ao nos posicionarmos sobre o piso.
A almofada faz o processo de mediação entre o peso da pedra e a dureza do
solo. Algo que amortece e suaviza a pressão como um anteparo entre dois
elementos rígidos sob a força gravitacional. Uma comovente metáfora sobre as
relações dos seres humanos com o mundo. Uma bela metáfora sobre o papel da
arte.
A última obra a ser analisada, Relatum Holzwege (Fig. 4 e Fig. 5), foi
instalada numa trilha no parque Haus Weitmar, em Bochum, na Alemanha. Essa
instalação é composta por duas pedras calcárias e entre elas há uma placa de aço
pousada horizontalmente sobre o chão. De certo ponto de vista, podemos perceber
que as pedras têm uma angulação em uma das faces que apontam para a placa de
metal. Os componentes da obra interagem com os elementos naturais e a ambiência
do parque, formando, assim, um novo encontro. A placa, que foi alinhada com a
trilha, oferece sua superfície como passagem. Uma passagem sutil, pois o tom
ferrugem de sua superfície “mescla-se” com a terra. Qualquer pessoa que esteja
pelo caminho pode andar sobre a placa sem tropeçar, sem notar, a princípio, sua
presença. Entretanto, sentirá o metal sob seus pés, a rigidez do material
contrastando com a suavidade das folhas secas no caminho, e também ouvirá um
som diferente quando pisar sobre a placa. As pedras foram colocadas uma em
oposição à outra, sugerindo uma linha perpendicular que cruza o caminho. A obra se
torna portal, um intermediário, uma pontuação na passagem, um instante em
suspensão para perceber a si e os elementos ao redor – uma metáfora para a vida.
485
Para Silke von Berswordt-Wallrabe (2008), esse trabalho promove um diálogo
com o lugar sem alterar a situação existente. Para a autora, essa referência pode ser
entendida como uma crítica à necessidade de controle sobre as coisas e situações.
Fig. 4 - Relatum Holzwege, 2000
Vista da Instalação, Bochum/Alemanha
Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other
Fig. 5 - Relatum Holzwege, 2000
Vista frontal da Instalação e o artista, Bochum/Alemanha
Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other
486
Em seus trabalhos, o artista gera um encontro entre elementos vistos como
desiguais. Mas os encontros que cria não são aleatórios; a partir das condições do
lugar, Lee estuda detalhadamente as dimensões da placa, o número de pedras,
posições e distâncias entre os elementos da obra.
Para Lee (2008, p.10), se tal arranjo for percebido pelo espectador, formará
um “espaço de reverberação” no qual atração e repulsão, afirmação e dissolução,
limitação e abertura serão mantidas em um equilíbrio tenso e indefinido. Dessa
forma, por meio do deslocamento tanto da posição do sujeito (seja espectador, seja
artista) quanto da posição do trabalho de arte em si, o artista cria uma sutil moldura
para a dinâmica das relações entre os componentes.
Em seu texto “Um homem no meio”, Lee Ufan narra:
Eu nasci na Coreia e lá vivi até os 20 anos. Depois disso, morei no Japão
por 40 anos [...] Por causa do meu passado, os coreanos me veem como
japonês, e os japoneses me veem fundamentalmente como coreano, e
quando eu vou para a Europa, as pessoas me olham como oriental. Eu me
vejo como uma bola de pingue-pongue, um homem no meio, sempre sendo
trazido para trás e ninguém querendo me aceitar como pertencente ao
grupo [...] As dinâmicas da distância me fizeram o que sou. (LEE, 2004,
p.17)
Para o crítico Tatehata Akira (2011) o estado de não pertencimento traz a Lee
uma crise perpétua. Mas também esse estado se reflete positivamente através de
sua aptidão para experimentar coisas desconhecidas que ocorrem nas mediações,
nos intervalos ou nos deslocamentos dos eventos.
O espaço ressonante, que o sentido de encontro gera nos trabalhos desse
artista, repercute na noção japonesa da espacialidade Ma. A pesquisadora Michiko
Okano, em suas investigações sobre o Ma, declara:
A espacialidade Ma, um espaço intervalar que, ao mesmo tempo, separa e
ata, aponta a possibilidade de coexistência de elementos distintos e até
opostos, como o interno e o externo, o público e o privado, combinações
entre a construção, a natureza e a arte. (OKANO, 2012, p.126)
Para a autora, o espaço Ma é uma zona onde as coisas se mantêm “em
suspensão” e os níveis de informação e descrição permanecem baixos. O receptor
complementa as informações por meio de analogias ou metáforas para que as
possibilidades se concretizem. Essas novas associações podem resultar em outras
487
associações, ainda inéditas, que transformam a concepção do lugar. Como exemplo,
Okano cita o Museu de Arte Chichu, na ilha de Naoshima, projetado por Tadao Ando.
Segundo a autora:
Tem-se uma experiência de perda de referência ao se caminhar por escuros
túneis, o que provoca uma desconexão com o mundo externo e torna esse
trajeto uma passagem para o sublime mundo da arte, que abriga as obras
permanentes de três artistas: Monet, James Turrell e Walter de Maria. O
corredor labiríntico, escuro e estreito é, muitas vezes, contrastado pelo
amplo espaço expositivo, o qual recebe muita luz, técnica peculiar a Ando e
denominada contraperspectiva pelo arquiteto Yoshimura (1997). (OKANO,
2012, p.115)
Sob a batuta do próprio Tadao Ando, no mesmo complexo artístico em
Naoshima, foi construído o Museu Lee Ufan.
Para a autora, a arquitetura do Ma se distingue “pela possibilidade de ação a
ser nela inserida, encontros, acasos, confrontos e inter-relações entre o homem, os
objetos e a memória”. É a possibilidade de ser uma passagem, um entre-espaço
quando se constitui fenômeno.
Os encontros promovidos pelas obras de Lee se constituem como lugar de
transição, interação – um espaço relacional em um jogo incessante de estabilidade e
instabilidades. Sua consciência histórica e sua visão de mundo o conduzem a
presumir o “eu” além dos processos mentais conscientes. Um eu que busca
incessantemente novos fluxos de imagens, de todos os sentidos sensoriais.
Dessa forma, entendemos que a “noção de ser” se dá a partir do movimento,
de forma processual, baseada fundamentalmente na complexa interação mentecorpo-ambiente. Perceber essas relações pode ser revolucionário. Segundo Lee,
somente pelo rompimento dos limites da centralidade da autoconsciência é possível
o reconhecimento do outro, da diferença, do mundo. Quanto mais externalidade é
incorporada, mais o desconhecido aparece. Muitas vezes, abrir-se para o
desconhecido pode significar meramente abrir-se para o conhecido de outras
maneiras. Assim, torna-se possível ver o mundo “tal como é” – sentir a vida como
potência, como contingência.
488
Referências Bibliográficas
LEE, Ufan. The art of encounter. Londres: Lisson Gallery, 2008.
LEE, Ufan. Writings of Lee Ufan. In: MUNROE, A. (Org.). Marking Infinity. Nova York:
Guggenheim Museum Publications, 2011. p. 104-123.
OKANO, Michiko. Ma: entre-espaço da arte e comunicação no Japão. São Paulo:
Annablume; Fapesp; Fundação Japão, 2012.
SAS, Myriam. Experimental Arts in Postwar Japan: moments of encounter,
engagement, and imagined return. Cambridge: Harvard University Press, 2011.
TATEHATA, Akira. The poetics of gaze. In: MUNROE, A. (Org.). Marking Infinity. Nova
York: Guggenheim Museum Publications, 2011. p. 35-40.
VON BERSWORDT-WALLRABE, Silke. Lee Ufan: Encounters with the Other. Göttingen:
Steidl, 2007.
Ana Amélia Corazza Genioli
é artista e arquiteta formada pela PUC-Campinas, mestre e doutoranda do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob orientação da Profa
Dra Christine Greiner. A autora também é membro do Núcleo de Estudos de Espacialidades
Contemporâneas (NEC-USP) e participante do CEO – Centro de Estudos Orientais (PUCSP).
489
SOBRE A ARTE DE PREVER O FUTURO
Rosana Pereira de Freitas - UFRJ
RESUMO: Esqueçam os carneiros pseudo-taxidermizados em lobo de Cai Guo-Quiang: a
tirania do coletivo, a irracionalidade da multidão. Zoomorfizadas, as características humanas
– vícios e virtudes – há muito tomam corpo em figuras de animais. Há tanto tempo que antes
que os doze animais do Zodíaco de Ai Weiwei possam atingir a principal esfera temática
proposta pelo artista – copyright e direitos civis – a obra recua a suas fontes. Como se livrar
do passado que a forjou, se ela assenta-se precisamente em tal eco? Se a arte
contemporânea pode confundir-se com o ativismo, a arte do passado funde-se aos
discursos de poder aos quais serve. Projetadas por um jesuíta que havia caído nas graças
do imperador, desenhadas, portanto, por mãos italianas em solo chinês, as peças originais
integravam um projeto de gosto europeu, embora nada parecido exista em qualquer outra
fonte italiana daquela época. O círculo se fecha. Em sua primeira aparição, na Bienal de
São Paulo de 2010, os doze animais do horóscopo chinês travam um mudo diálogo com
nosso passado comum.
Palavras-chave: Arte Asiática, Arte Chinesa, Arte Contemporânea, Ai Weiwei.
ABSTRACT: Forget the false-taxidermic sheeps in wolves’ clothing by Cai Guo-Quiang.
Forget the tyranny of the collective, or the crowds’ madness or irrationality. Zoomorphize,
human characteristics – vices and virtues – have long been embodied in animal figures.
Even long before the twelve zodiac animals of Ai Wei Wei could reflect the main intention of
the artist – copyright and civil rights – the work claims’ their sources. How to get rid of the
past that forged it, if it rests precisely in this echo? If contemporary art can be confused with
activism, the art of the past merges with the discourses of power it serves. Designed by a
Jesuit brother who had fallen into the emperor's grace, by Italian hands on Chinese soil, with
European taste – although nothing like it exists in Tivoli, or any other fountain of that time in
Italy. The circle closes. In its first appearance in the Sao Paulo Biennial in 2010, the twelve
animals of the Chinese horoscope wage a silent dialogue with our common past.
Keywords: Asian Art, Chinese Art, Contemporary Art, Ai Weiwei.
O presente texto busca avaliar a recepção da obra do aclamado artista
contemporâneo chinês Ai Weiwei, intitulada “Círculo de Animais/Cabeças do
Zodíaco”, em sua primeira exibição pública, ocorrida em 2010, no Brasil. Na obra em
questão ele reedita, a seu modo, as doze cabeças de animais do horóscopo chinês
originalmente pertencentes ao relógio de água do antigo Palácio de Verão, em
Beijing. Se parte significativa da arte moderna fazia tabula rasa da tradição em seu
culto ao novo, a produção contemporânea viaja no tempo e no espaço em sua busca
de produção de sentido, valendo-se da cópia e do pastiche. Em uma dura crítica à
política cultural de seu país, à qual atribui violência equivalente àquela praticada
490
pelos europeus, Ai Weiwei parecia, paradoxalmente, alinhar-se ao movimento chinês
atual, que reclama os bronzes como patrimônio cultural a ser restituído à China.
Mas ao expô-los pela primeira vez no Brasil, talvez à revelia, ele nos fez
lembrar que do ponto de vista artístico não seria possível simplesmente fazer voltar
ao local de origem as formas ou o gosto que as produziram. Significaria, em última
instância, a inútil tentativa de restituir à Europa um capítulo da história da arte que
também é nosso. A temática do horóscopo encontra-se fundida ao projeto jesuítico
nos bronze de Yuanming Yuan. Animais da tradição chinesa e jesuítas habitam a
arte contemporânea.
Não há qualquer menção a Ai Weiwei no catálogo da exposição Alors, la
Chine?1 Não se trata de mais um caso de censura. Estamos na França, de onde
teriam partido os ideais que Ai tão bem incorpora durante sua estadia norteamericana – liberdade, igualdade, fraternidade –, subsumidos por lá em uma só
palavra: democracia. Não há menção à sua obra no catálogo simplesmente porque
ele não tomou parte da exposição. A mostra ocorreu em Paris, durante o ano da
China na França, 2003-2004, integrada a uma virada no engajamento chinês em
eventos culturais, à nova estratégia político-diplomática oficial. No âmbito das artes
visuais tal virada começou no ano de 2000, quando o Museu de Arte de Shanghai
pretendeu transformar sua bienal no maior evento artístico do país, teve seu primeiro
grande evento internacional na mostra Living in Time realizada em Berlim em 2001 e
culminou com a primeira participação oficial chinesa em uma Bienal de Veneza, em
2005 (KOCH, 2013).
Tampouco há qualquer menção à sua participação em mostras sobre a cena
artística chinesa nos anos anteriores à virada. Em The China Project, na publicação
que busca reter a memória da iniciativa australiana – a APT, Asia Pacific Triennial of
Contemporary Art – iniciada em 1993, na Queensland Art Gallery, em Brisbane, ele
comparece em apenas duas de suas cerca de trezentas páginas. Em Why Asia?
Contemporary Asian and Asian American Art, de 1998, que amplia o foco para a
cena
norte-americana,
publicação
póstuma
dos
textos
de
Alice
Yang,
prematuramente falecida no ano anterior (1997), não há sequer uma única
referência a Ai Weiwei. Estão presentes não só expoentes da geração
imediatamente anterior, como da sua: Xu Bing, Wand Guangyi, Zhang Huan, Zhang
491
Xiaogang, entre inúmeros outros. São apenas alguns exemplos, quase aleatórios, da
Europa (Paris), Austrália (Brisbane) e EUA (Nova Iorque).
Servem para fazer notar que Ai Weiwei é um fenômeno recente na cena
contemporânea. Se o sucesso de Cai Guo-Qiang é constante desde seu
reconhecimento no Japão, ainda em seus anos de formação, Ai Weiwei amargaria
uma década – a de noventa – sem realizar uma só exposição individual que tenha
merecido ser incluída no elenco de sua retrospectiva, e teria de aguardar o sucesso
de sua participação na Documenta 12, em Kassel, na Alemanha, e sua participação
como consultor artístico junto aos arquitetos suíços Herzog & de Meuron no projeto
do estádio olímpico “Ninho de Pássaro” para iniciar a lista de epítetos pelos quais
costuma ser anunciado hoje2.
Quando era mencionado, timidamente, ele comparecia como membro
fundador do grupo Stars, ou como exemplo dos artistas da diáspora chinesa. Mesmo
tendo participado de algumas coletivas durante essa época, seu nome não era
incorporado aos textos que pretendiam abordar a arte contemporânea de origem
chinesa. Ai Weiwei parece gostar da posição “de fora” que terminaria por adquirir. Ao
deixar a China em direção aos Estados Unidos, em 1981, declarou à família que
seguia rumo a seu novo lar, antevendo um caminho sem volta. O que o fez retornar?
O pai doente, episódio que iria coincidir com o fim do seu romance de formação, de
sua estadia nova-iorquina.
Os anos oitenta seriam transcorridos, a maior parte do tempo, em Nova
Iorque, levando o que ele chamou de uma vida “inútil” e produzindo objetos em
conformidade ao adjetivo: são ready-mades modificados, fruto de seu entendimento
e emulação da obra de Marcel Duchamp. A apropriação de outra grande descoberta
– Andy Warhol – seria mais apropriada para descrever sua produção após o retorno
ao país natal, já de fins dos anos noventa e da década seguinte, marcada por
agenciamentos e produção em escala industrial, além da exploração de múltiplas
mídias.
Ao retornar, segundo ele próprio como um fracassado 3 , sua produção
americana conflui, como a muitos dentre os artistas da diáspora que voltavam à
pátria na mesma época, à segunda fornada da chamada “Apartment Art”:
492
instalações de pequeno porte, feitas de materiais baratos e conceitos aleatórios
(GAO, 2011). Remontando à década de oitenta, tal tendência iria desaparecer
rapidamente em meados dos anos noventa. Graças a convites para exposições
internacionais e à criação de inúmeras galerias de arte na China, os artistas “de
apartamento” se abriram ao mundo. Seus trabalhos não narravam mais a própria
vida, como no início de suas carreiras. Transcendiam o limite privado do
apartamento rumo à arena internacional. A produção “de apartamento”, que crescia
em escala, carga conceitual e capacidade projetiva com a chegada dos colegas
vindos do exterior, realizada ou não – muitos trabalhos mantiveram-se em projeto –
ganhou as páginas das publicações organizadas por Ai Weiwei e Zeng Xiaojun,
batizadas respectivamente de Black (1994), White (1995) e Grey (1997) Cover Book.
A década seguinte seria destinada à definitiva projeção de seus artistas e
organizadores.
Ai Weiwei chega ao Brasil já consagrado. Sua primeira aparição é na coletiva
“China: Construção/Desconstrução”, apresentada em 2008 no Museu de Arte de
São Paulo (MASP), onde comparece com fotos do Ninho de Pássaro. A segunda
exibição de uma obra sua ocorre em 2010, e já se trata da primeira exibição mundial
do “Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco”, que ocorreu na vigésima nona edição
da Bienal Internacional de São Paulo, na capital do estado homônimo. A despeito de
sua reconhecida importância no cenário internacional e de seu papel local – criada
em 1951, a Bienal de São Paulo só foi precedida em termos mundiais pela Bienal de
Veneza, e por ser o primeiro evento desse porte na America Latina, ela manteve
durante muitos anos e mantém ainda hoje relevante impacto na cena local – até
recentemente ela conservava em seu formato as tradicionais representações
nacionais, oriundas, em última instância, dos pavilhões dos países nas grandes
exposições mundiais.
Conhecida como uma bienal tradicional, criada nos moldes da Bienal italiana,
a Bienal de São Paulo manteve a plena participação das representações nacionais –
portanto com autonomia para o organizador local, o comissário nacional do local de
origem – até a sua 25a edição, em 2002, quando ela foi reduzida a um único artista
por país. Na ocasião, a intenção dos organizadores era forçar a aproximação com o
tema geral da mostra, “Iconografias Metropolitanas”. Finalmente, na edição de 2008,
493
a 28a edição da mostra paulista, a que ficou conhecida como a “Bienal do Vazio”, as
representações nacionais são suprimidas de todo.
A participação de Ai Weiwei na 29a. Bienal, a bienal política de Moacir dos
Anjos e Agnaldo Farias, respondia a um convite direto dos organizadores, e não
estava portanto, de modo algum vinculada a qualquer representação chinesa oficial.
É possível que ela tenha sido fruto de um convite da curadora japonesa Yuko
Hasegawa, ou de outro entre os curadores convidados. Como no caso dos demais
participantes, a participação do artista chinês deveria responder ao tema da Bienal,
que a utilização do verso do poema “A Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima,
pretendia subsumir. Os organizadores faziam questão de lembrar que a Bienal não
era “apenas sobre arte e política”, mas que ela era “um espaço político.” Usando
poesia e política como motrizes, falavam de um “conceito arquipélago, sem bordas
nítidas” (ANJOS & FARIAS, 2010). Reclamavam a noção de hipertexto, de polifonia.
Dentre os roteiros previstos, Ai Weiwei foi elencado para “Lembrança e
esquecimento”. Era o trajeto4 que versava sobre memória individual e coletiva, que
pretendia tratar da história e tudo aquilo que ela preserva ou olvida.
As cabeças foram produzidas na China, e viajaram até São Paulo, de onde
após a exibição seguiram para New Jersey, onde ficaram em um depósito até que
Larry Warsh e equipe fossem resgatá-las, durante a prisão de Ai Weiwei. A grande
inauguração do tour internacional da obra estava de fato prevista para ocorrer em
Nova Iorque, como o site especialmente criado para a itinerância deixava claro à
época. Na ocasião, a apresentação brasileira era devidamente eclipsada, em favor
da estréia americana.
O fato de terem feito uma rota análoga a dos bens oriundos da China na
ocasião de sua inauguração parece não ter chamado atenção de ninguém. A
dissimulação da apresentação paulista tampouco. A estréia nova-iorquina seria a
“grande estréia”, e assim a presença na Bienal simplesmente aparecia no site oficial
da obra em espaço absolutamente à parte, apenas parcialmente mencionada. O
curioso que se reportar ao site atual encontrará São Paulo no roteiro, mas isso não
ocorria até que “o círculo” tivesse completado ao menos quatro montagens.
494
O trabalho foi mostrado pela primeira vez no Brasil, contrariando a intenção
do artista, numa situação indoors, dentro do pavilhão do Ibirapuera. No material de
divulgação da Bienal, no demo que circulou durante o período de divulgação, o
“Círculo” era mostrado junto à cortina de vidro da fachada lateral, dando para o
parque, mais integrado à paisagem. Mas não foi essa a montagem final. A obra que
já nascia pensada para uma itinerância de dois anos, e com o irônico subtítulo de
“Uma histórica exposição pública de escultura ao ar livre”, se via confinada logo de
saída, e era apresentada logo à entrada do pavilhão, sem qualquer fundo verde,
sem integrar o cenário de praça alguma, como previsto pelos produtores e pelo
artista. A montagem de São Paulo surge, assim, como uma espécie de ensaio
aberto, de experimento, que só a posteriori seria definitivamente incorporada ao
circuito oficial, estendido depois em mais dois anos, e atualmente agendado até
2014. É possível que a dissimulação da montagem paulista, no site do projeto, seja
derivada, ao menos em parte, do local destinado a sua instalação. Todas as
montagens posteriores, sem exceção, ocorreram em praças públicas.
A recepção do público parece não ter sido, porém, muito afetada por isso. O
posicionamento – logo na entrada – o tamanho das cabeças, bem maiores do que
as da fonte original, as hastes e as bases que as deixavam ainda maiores, a técnica
de fundição tradicional, tudo isso contribuiu para uma empatia imediata com as
crianças e o grande público. As Cabeças de Animais foram muito fotografadas. Em
tempos de popularização da bienal, de mega eventos culturais, poucos ficaram
constrangidos com a atitude Disney: “por favor, poderia tirar uma foto minha com o
rato?”. Fazia parte do show, e quem já conhecia bem o trabalho do artista também
sabia disso.
Mas a obra integrava, ou deveria integrar, o projeto maior, temático, dos
curadores. Junto ao público especializado, houve queixa. Junto à imprensa local,
indiferença.
A documentação disponível nos arquivos da Bienal – Arquivo Histórico Wanda
Svevo – não fornece maiores pistas da reação do público, mas atesta uma
eloqüente lacuna: das cento e quarenta matérias publicadas na imprensa na ocasião,
recolhidas no clipping da 29a Bienal Internacional de São Paulo, só uma,
precisamente a única que não versa sobre a exposição paulista, é sobre Ai Weiwei.
495
Moacir dos Anjos havia enfatizado – enquanto divulgava a mostra – o forte
componente político da instalação de Ai Weiwei5. Talvez lhe possamos imputar ao
menos parte do problema: expectativa frustrada. Eram duas as razões de lamento:
Para começar, não era “chinesa” o bastante. E tampouco política o suficiente.
Na mídia, o “Círculo” de Ai Weiwei iria competir com outras obras, com outras
polêmicas, com outros animais: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA)
revogando a licença e exigindo a retirada dos urubus da instalação “Bandeira Branca”
de Nuno Ramos6 – é bom lembrar que os três urubus de cabeça-amarela vivos, que
compunham a obra do artista brasileiro, motivo da confusão, já tinham sido expostos
“legalmente” no Centro Cultural do Banco do Brasil de Brasília –; a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) pedindo a retirada dos desenhos de Gil Vicente onde ele
se retratava assassinando os presidentes Lula, Fernando Henrique, George Bush, a
rainha Elizabeth, e outras personalidades políticas7.
A única matéria sobre Ai Weiwei8 havia sido publicada por ocasião de sua
agressão, feita por policiais à paisana, quando iria registrar uma queixa por outra
agressão que sofrera. Tratava do episódio da delegacia de Chengdu, capital da
província de Sichuan, no sudoeste da China: “Policiais disfarçados rasgaram nossas
camisas e tentaram pegar nossas câmeras, havia uns dez deles (...) agora estamos
sendo atacados porque reclamamos da última vez, é muito irônico.” (AI, 2011). Na
ocasião, Ai levou um soco na cabeça. Um registro do ocorrido, fotos e imagens de
exames – ele teve de passar por uma cirurgia, quando montava Remembering
(2009), o trabalho sobre o terremoto de Sichuan, na Haus der Kunst, na Alemanha,
depois que médicos detectaram uma hemorragia – seriam futuramente integrados a
sua obra, gerando novos trabalhos. A instalação que apresentava quando precisou
ser operado, era justamente sobre a morte dos estudantes, onde nove mil mochilas
evocavam o número de vítimas e compunham a frase da mãe de uma delas: “ela
viveu rapidamente por sete anos nesse mundo”.
Por contraste, o sucesso de Ai Weiwei na Documenta 12 de Kassel com
Farytale – 1001 Chinese Visitors (2007) e de Remembering (2009), obras de
inconteste viés político, e que antecedem sua participação na bienal paulista,
ajudam a explicar a forma reticente como a instalação Círculo de Animais/Cabeças
496
do Zodíaco foi recebida, e a alegação de que a obra não seria suficientemente
política.
Se hoje há clareza de que a posição oficial do governo chinês em relação aos
bronzes originais, que reclama sua repatriação, bem como o movimento popular que
a sustenta não correspondem à posição do artista, na ocasião da Bienal isso não
ficou assim tão claro. A obra de Ai Weiwei reproduz, em maior escala, com poucas
alterações, os bronzes ainda existentes e cria novas versões para os quais só
existem gravuras antigas do conjunto arquitetônico, buscando criticar a fixação da
atenção oficial e popular com o parque arqueológico de Yuanming Yuan. Era recente
a colaboração do artista no projeto do Ninho de Pássaro (2005-2008) e a
ambigüidade do auto-exilado que retorna ao lar e rapidamente se torna colaboradordissidente, no contexto de uma mega exposição, como era o caso, poderia
facilmente passar desapercebida.
A recuperação das doze cabeças originais havia se tornado uma prioridade
para a China. Foram adquiridos em leilões – e a partir dos preços é possível ter uma
idéia do que ocorreu no mercado nos últimos anos – o rato e o coelho, comprados
no leilão da coleção de Yves Saint Laurent por quinze milhões de euros cada, em
2009, por Cai Mingchao; o cavalo, arrematado pelo magnata de Macao, Stanley Ho,
que o doaria para o governo chinês, por oito milhões e oitocentos e quarenta mil
dólares, em 2007, e o porco também por Stanley Ho, por apenas setecentos e
setenta mil dólares, em 2003. O porco teria recebido o preço mais baixo entre todas
as cabeças leiloadas, e não devido à época em que foi negociada. Isso porque o boi,
o tigre e o macaco foram vendidos por preços que variaram de novecentos e oitenta
mil dólares a dois milhões de dólares em 2000, pelo conglomerado chinês China
Poly Group Coorporation, que com o apoio do Estado, desenvolve programas de
economia criativa. Os outros ainda não apareceram.
Quando arremata o rato e o coelho, Cai Mingchao, que depois se revela
conselheiro do Fundo do Tesouro Nacional Chinês, recusa-se a pagar pelas peças,
alegando que tratava-se de tesouro nacional pilhado, a ser repatriado a seu país, e
que jamais deveriam ter ido a leilão. Pierre Berger, herdeiro de Saint Laurent que
havia posto à venda toda a coleção do estilista, contra-ataca: se os chineses
liberarem o Tibete, ele entregaria pessoalmente os bronzes. (DELSON, 2011).
497
Para Ai Weiwei é a noção de prioridade das autoridades chinesas que deve
ser questionada. Ele chama atenção, em sua obra, para o fato de que as cabeças
originais sequer foram desenhadas por chineses. E denuncia: “Eles nunca se
importaram, de fato, com arte. É a natureza do comunismo. Eles simplesmente
querem destruir o antigo para construir o mundo novo. O Zodíaco é apenas um
ótimo exemplo da ignorância deles.” (DELSON, 2011, p. 125) Ele diz claramente:
“não é patrimônio nacional. É obra de estrangeiros.”
Ele questiona o problema da originalidade, da autenticidade da arte chinesa,
ou do que seria autenticamente chinês. E em tal processo, e em muitas outras
ocasiões, devido a sua atuação, nos lembra um perfil de artista bastante conhecido
em sua China ancestral, na forma como é descrito, por exemplo, Su Tungpo, o Su
Shi (1037-1101) de Lin Yutang. Um certo perfil de intelectual público. O intelectual
banido pelas instancias de poder, que retorna honrado pela exclusão:
Durante a primeira perseguição de intelectuais e exclusão do grupo incurso
nas penas da censura, equiparado aos criminosos comuns pelo ilustre
defensor do capitalismo de Estado (...) havia pelo menos uma vintena de
intelectuais notáveis e homens de integridade disposta a sofrer por suas
convicções. Quando (...) ocorreu a segunda perseguição, quase todos os
homens decentes estavam mortos, ou iriam morrer depois do exílio. Esse
solapamento das energias nacionais começou em nome da ‘reforma social’,
visando evitar a ‘exploração pelo capital privado’ e tinha em mira ‘o
benefício do sempre amável povo da China’, sendo insuflado por um
ardente admirador de si próprio. Nada é tão prejudicial ao destino de uma
nação quanto um idealista mal orientado e cheio de obstinação. (LIN, 1947,
p.21)
Na lista negra do regime, encabeçada pelo nome do poeta biografado por Lin,
Su Shi, todos os trezentos e nove indivíduos listados, bem como seus filhos, ficaram
oficialmente proibidos de ocupar cargos públicos. E por conseqüência, também
honrados por nela figurarem:
Visava-se, assim, extirpar, para sempre, qualquer espécie de oposição e,
acreditavam-no os autores da medida, recobrir de infâmia eterna os nomes
que a lista consignava. Aconteceu, porém, que a China deveria ser entregue
pelos reformadores sociais ao conquistador que descia do Norte e o efeito
alcançado com a organização daquela lista foi na realidade muito diferente
do que o que tinham em vista os que a organizavam. Por mais de um século,
os descendentes que figuravam na Relação Yuanyu mencionaram como um
título de glória o fato de que seus antepassados fizeram parte da lista negra.
(LIN, 1947, p.22)
A lista histórica trazia também os inimigos pessoais do regime, o que não
garantia, portanto, sua idoneidade, ou a pura linhagem de seus herdeiros. Que a
498
lista tenha sido destruída por um raio, como que por intervenção divina, e que o
ministro de então tivesse declarado que os nomes para sempre seriam lembrados, o
que de fato ocorreu, é algo de menor interesse para nossa comparação, ao menos
até o presente momento. Como o poeta Su Shi, que na primeira década após sua
morte teve decretada a destruição de todas as suas inscrições em pedra e a
proibição de seus livros, acrescida da multa de oitocentos mil ienes pela posse dos
mesmos, Ai Weiwei teve seu blog prescrito, seu direito de expressão cerceado, seus
colaboradores investigados. Também como ele, sua situação era herdada de um
contexto familiar: seu pai, o poeta Ai Qing (1910-1996), havia sido enviado ao campo,
com a função de limpador de latrinas, à guisa de se reformar (ANDREWS, 2012). Ai
Weiwei cresceu “em exílio” antes de se auto-exilar na América. Era um dos artistas
da diáspora chinesa: “Meu pai era um poeta. Aos vinte e poucos anos de idade, foi
condenado a seis anos de prisão, e depois exilado por vinte anos, realmente na pior
situação, limpando banheiros públicos, e ainda assim sobreviveu.” (OBRIST, 2011,
p.36) Ele diz que não o admira como artista, mas por sua vida. Mas é o Ai Weiwei
maduro quem diz isso. Quando volta à Beijing, no início dos anos oitenta, no
momento em que o pai é reabilitado, ele se diz alienado. Será sua experiência com o
Ninho do Pássaro, o estádio olímpico, a abrir-lhe os olhos e ativar sua militância
contra as autoridades corruptas, às quais não atribui autoridade alguma em termos
de arte:
Eu tinha muita experiência, por ter crescido com a geração do meu pai e por
viver em uma sociedade democrática, em Nova York, mas apenas depois
de 1999, quando me envolvi com a arquitetura, é que enxerguei melhor a
estrutura interna do governo. Como cada acordo foi feito. Como as terras
foram vendidas. Como essas pessoas enriqueceram. Como fizeram seu
dinheiro. A arquitetura é uma coisa que você constrói no interior da
sociedade, e tem que lidar com o governo. A arquitetura é muito política,
como o estádio Ninho de Pássaro. (OBRIST, 2011, p.37)
Segundo Willian Safran9, o que caracterizaria o membro da diáspora seria a
vinculação, a importância fundamental da “terra natal”, a idealização do “lar
ancestral”, além do comprometimento com sua restauração, e sua ligação com ela,
independente da adversidade das situações. Para Safran o conceito é útil para tratar
de comunidades minoritárias expatriadas, que poderiam ser identificadas por
compartilhar as seguintes características: 1) os próprios agentes ou seus ancestrais
teriam sido dispersos de um “centro” original para regiões estrangeiras; 2) eles
reteriam o mito acerca da terra natal original (localização física, história, realizações)
499
e a memória coletiva; 3) compartilhariam a crença de que não são, nem nunca serão,
plenamente aceitos na nova pátria, nas sociedades que os acolhem, permanecendo
parcialmente isolados; 4) sonhariam com o lar originário, supondo que quando as
condições forem favoráveis irão retornar; 5) comungariam da crença de que todos os
membros da diáspora devem comprometer-se com a manutenção, restauração e
prosperidade da mítica terra natal de origem; 6) seguiriam ligados a ela de muitos
modos, e isso seria contribuição fundamental para definir sua consciência,
identidade etno-comunitária e solidariedade (SAFRAN, 2005).
Ainda que Ai Weiwei viva agora na sua China natal, para a qual retornou, a
tipologia descrita por Safran parece corresponder, em boa parte, ao modelo de
consciência, identidade e solidariedade ainda praticado pelo artista: “Meu trabalho
sempre relaciona-se à história e à memória. Eu gosto de explorar a relação entre
elas e o que as habilidades que a humanidade desenvolveu em milênios de luta”.
(BROUGHER, 2012, p.39). E o modelo de intelectual a que nos referíamos, algo que
aponta para uma certa tradição, tida como legítima, que excluiria as usurpações
recentes. O questionamento do que seria tipicamente chinês, assim, merece ser
melhor observado. A vinculação com o passado e com a atualidade, no caso da
poética de Ai, é um dos ingredientes na sua receita de “chinesidade”10. Como muitos
de seus colegas de geração, no caso da diáspora chinesa, prevalece a agenda da
identidade. De acordo com Melissa Chiu, para os artistas que vivem no exterior, a
exploração do passado e do presente, tanto simultânea como alternadamente, é
uma constante em seus trabalhos. As três estratégias mais usadas são, em primeiro
lugar, recuperar a iconografia chinesa como modo de resgatar o passado, a uma
distância geográfica e psicológica da China; em segundo, a justaposição de
memórias da China com a realidade atual, e em terceiro a modificação dos
significantes chineses, como por exemplo os caracteres chineses, para torná-los
acessíveis ao público não chinês. (CHIU, 2011). É aliás, por comportar-se como um
artista da diáspora em solo chinês que Ai Weiwei atraiu para si a perseguição que
tem sofrido. Ele acusa os políticos de não se preocuparem com sua terra natal, com
seu povo, e de defenderem como política de patrimônio a preservação de obras
estrangeiras, cujo índice de chinesidade não seria suficiente para alçá-las à
categoria de tesouro nacional.
500
Para Ai Weiwei, como para o público da Bienal de São Paulo, as cabeças
originais – e sua versão repaginada por Ai, no caso do público – não tinham
exatamente uma “aparência” chinesa. Para o artista, o tratamento realista denuncia
que haviam sido feitas por mãos estrangeiras. E acrescenta: “realmente não é
cultura chinesa”, pois chineses não estariam interessados na “tão falada copia do
real”:
Eu não acho que as cabeças do zodíaco sejam um tesouro nacional. Elas
foram desenhadas por um italiano, executadas por um francês para um
imperador Qing que era o governante, mas os manchus da dinastia Qing de
fato invadiram a China. Então se estamos falando de tesouro nacional, de
qual nação estamos falando? (OBRIST, 2011, p.41)
Se para Ai Weiwei o irmão jesuíta Giuseppe Castiglione é um estrangeiro em
uma corte estrangeira, no Brasil a produção jesuítica cedo torna-se sinônimo de
patrimônio nacional. Reclamar nossa posição desde o contexto das grades
navegações é algo que nossos órgãos de proteção ao patrimônio não se furtaram a
fazer. Eurocêntrica, é sempre necessário repetir, nossa história da arte foi produzida
a partir de parâmetros metropolitanos, portugueses, de onde advém também, ao
menos em parte, o gosto estrangeiro do qual reclama o artista. Castiglione passou
cinco anos em Portugal antes de ir para a China, e é em uma missão portuguesa
que permanece por lá, mesmo após a expulsão de seus colegas missionários. Ele
comparece, ao lado de dois alemães, um boêmio, um austríaco, quatro chineses e
cinco portugueses, na lista de jesuítas da missão portuguesa em Beijing, de acordo
com a lista do Padroado na China, no ano de 1762, elaborada por Martins do Vale a
partir das fontes por ele consultadas. (VALE, 2002, p.428).
É importante notar que à presença jesuíta na China corresponderia um novo
olhar, de natureza mais cultural, de curiosidade mais etnográfica que econômica11. O
texto “Emformação da Chyna”, atribuído a São Francisco Xavier aparentemente pelo
fato de ter sido ele quem formulara as perguntas do questionário que o gerou,
corresponderia a essa nova tipologia. Em “Emformação da Chyna” – não há
qualquer menção a informações de natureza econômica, política ou militar, como era
comum nos inúmeros relatos da época. O questionário teria sido elaborado,
esclarece Rui Loureiro, com base em preocupações culturais e religiosas muito
precisas: se tinham livros e bibliotecas, se já tinham tido contato com outras religiões,
etc.:
501
Os portugueses interessavam-se sobretudo por questões mercantis ou de
marinharia: mercadorias existentes ou em falta, preços, pesos e medidas,
calendários de feiras e mercados, e também portos mais acessíveis, rotas,
fundeadouros, ventos e correntes. A ação inquiridora do Padre-mestre [ele
se refere ao questionário enviado por São Francisco Xavier, respondidas
supostamente por um comerciante português e um informante chinês] veio
desperta-los para a importância do conhecimento mais aprofundado das
gentes orientais, desencadeando o aparecimento de um ‘interesse cultural’
pela China. Após a chegada dos jesuítas ao Oriente, assim, começam a
surgir novos dados sobre a realidade chinesa, anteriormente desconhecidos
ou mesmo desprezados. Os padres e irmãos da Companhia, graças a uma
sólida preparação intelectual, e em virtude de interesses muito específicos,
vão desempenhar um papel de catalisadores no processo de acumulação
de notícias de caráter geográfico e etnográfico. (LOUREIRO, 2000, p.406)
Descrever uma sociedade, adverte Jonathan Wright, seria o primeiro passo
para a conversão dessa sociedade (WRIGHT, 2006). Desde o tempo de Ruggieri e
Ricci, para os quais parecia prudente agradar a elite intelectual local, ler Confúcio e
produzir maravilhamentos, os relatos enviados à Europa demonstram uma alteração
de conteúdo, ainda que tal inflexão seja realizada exclusivamente pro domo. Joseph
Amiot descreveria de forma explícita a agenda, ou a esperança dos missionários:
Dessa forma procuramos no interesse da nossa religião ganhar a boa
vontade do príncipe e tornar nossos serviços tão úteis e necessários para
ele que no fim ele vai se tornar mais favoravelmente inclinado em direção
aos cristãos e importunar menos do que já importunou. (WRIGHT, 2006,
p.94)
Na esperança de não serem incomodados, os missionários iriam até mesmo
produzir mapas e canhões, em uma simbiose verdadeiramente arriscada do ponto
de vista militar. E construir palácios e jardins, como Yuanming Yuan. Embora Ai
Weiwei não demonstre qualquer interesse pelos aspectos mecânicos da fonte, é
graças a eles – ao uso da ciência – que os jesuítas lograram efetivamente
aproximar-se das altas esferas de poder. Giuseppe Castiglione, o pintor que cai nas
graças do imperador Qianlong, mantém outros jesuítas trabalhando consigo na corte.
Castiglione gozava de prestigio incomum nos ambientes do poder à época. Durante
o primeiro movimento de expulsão – com a morte do imperador – ele é convidado a
ficar, enquanto muitos outros são expulsos. Se o imperador aprecia seu trabalho,
não deixa de mencionar também, em seus comentários, que embora de interesse,
sua pintura é inferior à grande tradição chinesa (JONES, 2006). Castiglione traduziu
o tratado do Padre Pozzo – Perspectiva Pictorum et Architetorum – para o chinês. É
ele o responsável não pela introdução da técnica, mas pelo desenvolvimento do
502
gosto pela pintura a óleo, a despeito do comentário do imperador. É ele o autor do
projeto da fonte do Palácio de Verão.
É consenso hoje que não teria havido um “estilo jesuítico”, como já apontara
John Bury, ao comentar a arte brasileira que merecera tal epítome (BURY, 1999). Os
jesuítas seguiam o estilo de seu tempo, e não da sua companhia. E na época da
expansão portuguesa os estilos internacionalizavam-se, chegando a regionalizar-se.
No Brasil, o barroco e o rococó – devidamente reabilitados – há muito se tornaram
objeto de orgulho nacional, bandeira de identidade, índice de brasilidade. Nas mãos
dos nossos artistas contemporâneos e curadores, no contexto da globalização, da
“negociação de identidades” (RAMÍREZ, 2000) cedo foi lembrado e transformado em
clichê útil – Neobarroco, Ultrabarroco –, a ser produtivamente explorado
(ARMSTRONG, 2000). O público da Bienal de São Paulo, leigo ou especializado,
herdeiro da nossa tradição moderna12, não via problema algum em considerar a
produção jesuítica como monumento a ser preservado. É possível que tenha-lhe
escapado a ironia do gesto do artista chinês.
Ao artista chinês, por sua vez, parece ter escapado o processo de nativização
(KUDIELKA, 2003) do gosto europeu, e mesmo de conceitos estéticos dos quais
termina por se valer. Em seu típico tom ativista, Ai Weiwei se queixa do destino dado
ao antigo Palácio de Verão:
Eu odeio ver como eles realmente o estão destruindo mais uma vez.
Deveria permanecer intocado. Agora, todo mundo fala sobre reconstrução,
ou sobre adicionar algum prédio turístico. Eles estão tentando arruiná-lo. É
realmente ruim – não foi arruinado pelos estrangeiros, mas verdadeiramente
pelos chineses. (AMBROZY, 2011, P.57)
Ele está tentando preservar o aspecto de ruína de um local ao qual
costumava ir na juventude, de bicicleta, logo que se mudou para Beijing, e que foi
palco de inúmeros encontros para ler poesia, organizados pelo seu círculo, pelo
grupo Stars. Ai Weiwei nostalgicamente se curva diante da estética da ruína, sem
perceber o quanto ela se distancia dos índices de chinesidade que ele cobra, rumo a
um encontro, como poderíamos descrever os episódios da perspectiva e da pintura
à óleo na China, e da chegada do estilo rococó, que caracteriza o conjunto. Encontro
do qual também tomamos parte, e também ele devidamente eclipsado, como a
presença de navios vindos do Oriente aportados na Bahia. (LAPA, 2000).
503
Para Wu Hung, há uma diferença marcante entre o significado de ruína, se
compararmos o moderno culto europeu às ruínas e o sentido a elas dado no
contexto cultural chinês. Em primeiro lugar porque o sentimento chinês em relação
às ruínas era um fenômeno pré-moderno, e que teria adquirido uma carga simbólica
negativa na era moderna (WU, 1999). E mesmo na China tradicional, a estetização
das ruínas tinha lugar apenas na poesia. Imagens visuais delas praticamente não
existem. Preservá-las seria um tabu: imagens de ruínas, nada auspiciosas, deveriam
ser evitadas. Não haveria lugar para Riegl. Ai Weiwei, ao freqüentá-las com seu
grupo e ao defende-las em estado de ruína, a um só tempo reverencia a China
antiga e o Ocidente moderno.
Mesmo sabendo que é uma impossibilidade, um tour de force, acreditamos
que para entender sua obra, deveríamos observar melhor o Ai artista, deixando ao
ativista o segundo plano, para repetir com ambos: “Tudo é arte. Tudo é política”
(WARSH, 2013, p.24).
Notas
1
O título da exposição e do catálogo que a acompanhava faziam referencia ao artigo homônimo de
Roland Barthes publicado no jornal francês Le Monde, em 24 de maio de 1974.
2
Dos quais “o maior”, ou “o mais conhecido”, ou ainda “o mais influente” artista contemporâneo chinês
vivo são apenas os mais comuns.
3
“When I returned to China [from the United States], I din’t have a U.S. passport, a wife, or a university
degree. Form the Chinese point of view, I was a total failure”. WARSH, Larry (ed.) Weiwei-isms. New Jersey:
Princeton University Press, 2013.
4
Roteiro foi termo preterido pelos organizadores, por seu uso na Bienal precedente.
5
“Temos vários artistas que, embora famosos, nunca expuseram na America do Sul, como o Ai Weiwei,
um dos artistas chineses de maior destaque na atualidade. Ele trará uma instalação, uma representação de um
zodíaco da cultura chinesa com forte componente político, montada na Europa [sic]. O artista indiano Amar
Kanwar mostrará uma vídeo-instalação impactante, sobre o abuso sexual de mulheres e crianças em situações
de conflito, pela primeira vez no Brasil.” ‘Entre 4 paredes. Moarcir dos Anjos.’ Casa Vogue, São Paulo, ago. 2010,
pp.114-115.
6
Onde um membro do grupo Pixação escreveu “Liberte os urubu [sic]”.
7
LOPES, Jonas. “Adeus aos urubus”. Veja, São Paulo, 13 out. 2010.
8
“Artista Ai Weiwei volta a ser agredido por policiais na China”. In: Folha de São Paulo, 10 ago 2010. O
título da matéria fala no artista, mas é o ativista a ser citado no texto. Haverá diferença? Entre nós, brasileiros, do
ponto de vista da recepção, parece haver. A presença de Ai Weiwei na última edição da Rio Art Fair – a feira de
arte internacional do Rio de Janeiro – passou desapercebida pelo público e pela crítica especializada. O
documentário exibido no Festival [de Cinema] do Rio, “Never Sorry”, de Alison Klayman, teve melhor sorte,
graças à presença de ativistas.
9
Safran não foi, é certo, o único autor a se valer do termo diáspora para se reportar a experiências
análogas à judaica, mas parece ter sido ele o responsável pela mais bem sucedida tentativa de sistematizar a
expressão no contexto acadêmico.
10
Nossa tradução para “chineseness”, por afinidade ao já consagrado termo “brasilidade”.
11
“A Companhia de Jesus, no seu afã de conhecer a fundo as realidades asiáticas que teria de
enfrentar, adotou uma deliberada política de investigação. São Francisco Xavier, quando ainda estava nas Ilhas
Molucas, recebe uma carta de Goa, enviada pelo Padre Henriques Henriques [sic], que já incluía uma breve
descrição da China: “‘huum reyno muito grande’, cujos habitantes eram brancos e usavam longos cabelos negros,
‘assi homens como molheres’, para se distinguirem dos estrangeiros.”
12
Como descrito por Paulo Venâncio Filho: “The past, until then rejected as shameful, now became the
object of study and analysis, as well as a source of inspiration. What had, since Brazil’s indepencence from
504
Portugal, been seen as liability was transformed into a vital asset. Architetural elements characteristic of the
colonial period – the cobogó, the muxarábi, the veranda – were comibined with the ideas of such architets as Le
Corbusier and Mies van der Roe. Brazil’s artistic heritage, dating back to the eighteenth century, was reinented
even as it was being rediscoverd and preserved.” Rio de Janeiro 1950-1964. (BLAZWICK, 2001, p.122)
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Rosana Pereira de Freitas
É professora do departamento de História e Teoria da Arte da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. É membro da Associação Nacional de
Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), do Comitê Brasileiro de História da Arte
(CBHA) e do Conselho Internacional dos Museus (ICOM).
506
ARTE E CULTURA POP NIPO-BRASILEIRA: A ESTÉTICA E O FAZER
ARTÍSTICO EM TEMPOS DE INTERAÇÃO E PARTICIPAÇÃO, FORMAS DE
SOCIABILIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
Mariany Toriyama Nakamura - USP
RESUMO: O Japão do pós-guerra se insere no contexto do consumo mundial através dos
eletrônicos, automotores e pelo entretenimento. Por meio das recentes tecnologias de
informação e comunicação as referências desta indústria do entretenimento conhecido como
'japop' ou cultura pop japonesa abriram espaço pelo Ocidente e marcaram gerações de
jovens que foram introduzidos à dinâmica de consumo cultural e uma nova e singular
estética. No atual contexto de criação de espaços culturais e mídias sociais digitais
proporcionados pela conectividade nos deparamos com o afastamento dos limites físicos
que impediam a interatividade e a participação do indivíduo na criação, circulação e
apropriação da informação. Esta estrutura de uma sociedade em redes possibilita ao
consumidor cultural ser também mediador, o que deve ser questionado. Para a corrente do
pop japonês, o gosto natural pela tecnologia compõe uma forte cultura digital que está
relacionada também com o modo de encarar a arte.Este trabalho propõe o estudo das
relações entre artistas nipo-brasileiros, representantes da cultura pop, com os novos
espaços e possibilidades proporcionadas pelas tecnologias de informação e comunicação.
Em tempos de convergência midiática estas relações podem ser tomadas como
potencializadoras e transformadoras do fazer artístico.
Palavras-chave: Arte; Cultura pop japonesa; Tecnologias de Informação e Comunicação;
Mediação cultural.
ABSTRACT: The postwar Japan fits within a context of global consumption through
production of electronics, motor vehicles and entertainment. Due the latest technologies,
such as information and communication technologies the references of the industry of
entertainment known as “japop” or Japanese Popular Culture, have opened up space by the
West, touching generations of young people that have been introduced to dynamics of
cultural consume and an new and unique aesthetic. In the current context of the creation of
cultural spaces and digital and social midia proportioned by connectivity we confront with the
remoteness of the physical limits that prevented the interactivity and the participation of the
individual in creation, circulation and appropriation of information. This structure to a
networked society enables to the cultural consumer be considered as mediator, what must
be questioned. For Japanese pop, the preference for technology composes a strong digital
culture that is also related to the way of looking at art. In this paper, we investigate the
relations between the nipo-brazilians artistes, representatives of pop culture, with the new
spaces and possibilities allowed by the information and communication technology (ICT). In
times of media convergence, these relations can be taken as potentiators of the artistic act.
Keywords: Art; Japanese Popular Culture; Information and Communication Technologies;
Cultural Mediation.
Segundo Sônia Luyten (2005, p.7) a palavra “pop” é provavelmente um dos
termos mais bem sucedidos nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70,
relacionado normalmente à música ouvida pelos jovens – a conhecida pop music.
507
Por outro lado, através das obras de arte de Roy Lichtenstein, com inspiração nos
quadrinhos, o termo “pop art” passou a ser conhecido e trouxe o sentido de que a
arte também tende a acompanhar aquilo que é transmitido pelos meios de
comunicação e pela publicidade, além de se tornar popular. Fenômenos culturais
recentes, a “pop art” e a “pop culture” trouxeram aos norte americanos produtos que
se tornaram reflexo de gostos, hábitos e valores de uma nação que aos poucos
foram transmitidos para povos diferentes que os assimilaram, ou, diante de
adaptação, se apropriaram de alguns valores como lhes convinha.
Durante o período pós-guerra o Japão desenvolveu uma cultura popular
vibrante, criativa e comercialmente bem sucedida que posteriormente veio a se
espalhar pelo resto do mundo. Hoje, a cultura pop japonesa atravessou fronteiras e
deu ao Japão um impacto cultural mundial por meio de suas animações, quadrinhos,
música, estética, arte e personagens que alimentaram gerações de fãs que se
renovaram e, que junto do desenvolvimento das Tecnologias de Informação e
Comunicação, configuram um novo modo de interação e participação entre os - cada
vez mais ativos - fãs e artistas que modificam a criação e circulação de informação
no âmbito comunicacional. O termo cultura pop nipo-brasileira parte do pressuposto
de que, a partir do momento em que recebemos estímulos do Japão nos
apropriamos e criamos desdobramentos e inferências que a tornam uma cultura pop
diferenciada da original. Para tanto é preciso compreender alguns aspectos
expostos abaixo.
Cultura pop japonesa e o fazer artístico: o início com a massa e o consumo
Segundo Strinatti (1999), na modernidade, a discussão acerca da cultura
popular adquire importância por se relacionar ao conceito de cultura de massa que
se desenvolve com o advento dos meios de comunicação e comercialização do lazer
e da cultura, a partir dos anos 1920 e 1930. O autor considera que cultura de massa
é a cultura popular produzida por meio de técnicas de produção industrial e
comercializada com fins lucrativos para uma massa de consumidores. Observa-se
neste aspecto que a industrialização e a urbanização tenham promovido o
crescimento de uma massa atomizada e anônima também sujeita à manipulações.
508
Neste ponto, considera-se que o uso de técnicas de produção em massa foi
prejudicial para a cultura nas sociedades industrializadas visto que a visão de
público consumidor enquanto massa é apontada por MacDonald (1957) pela perda
de sua qualidade e identidade humanas. Em síntese Strinatti (1999) argumenta que
a concepção da cultura de massa é caracterizada por uma cultura banalizada e
padronizada que atropela a cultura folk, erudita e desafia o arbítrio intelectual
estético. Sugere ainda que, hoje em dia, ninguém mais pensa em termos de cultura
de massa e que agora é possível apreciar tanto a cultura popular como a erudita.
Partindo desta última colocação, Strinatti (1999) considera que o pósmodernismo descreve o nascimento de uma ordem social na qual os meios de
comunicação de massa e a cultura popular imperam e influenciam as outras formas
de relacionamentos sociais. Além disso, há certa dificuldade em distinguir economia
de cultura popular a partir do momento em que a mesma determina o consumo.
O argumento é que consumimos cada vez mais imagens e signos em
consequência do interesse por si mesmos, e não por sua "utilidade" ou
pelos valores mais fundamentais que simbolizam. Consumimos imagens e
signos precisamente porque são imagens e signos, e desconsideramos
questões de utilidade e valor. Isso é evidente na própria cultura popular, em
que a aparência e o estilo, ou seja, o que as coisas parecem [...]
predominam sobre o conteúdo, a substância e o significado. (STRINATTI,
1999, p. 219)
Sob este aspecto a linha de distinção entre arte e cultura popular torna-se
mais difusa não havendo critério determinante que as diferencie.
Um aspecto desse processo é que a arte se integra de modo crescente à
economia, tanto por incentivar as pessoas a consumir através do papel
ampliado que desempenha na propaganda, como por se tornar um bem
comercial em si mesmo. Um outro aspecto é que a cultura popular pósmoderna recusa-se a considerar as pretensões e as distinções da arte.
(STRINATTI, 1999, p. 220)
No campo artístico as produções e manifestações costumam se constituir
reflexos dos avanços de uma sociedade e têm por natureza um teor transformador
das coisas existentes como McLuhan (apud Oliveira, 1997, p. 217) nos lembra: “Faz
já muito tempo que ninguém contesta o poder da arte de antecipar o futuro social e
os desenvolvimentos tecnológicos bem antes de uma geração”. As palavras de
McLuhan ressaltam que o artista capta e visualiza os pequenos sinais das
mudanças na sociedade. Os artistas japoneses também se inserem neste contexto;
observam o que traz e o que significa a tecnologia no âmbito artístico com uma
509
percepção especial no que toca a formação histórica e cultural japonesa. “Questões
como identidade, originalidade, espaço, noção de vida e comunicação, assim como
a noção de arte, são concebidas de maneira mais ou menos diferente das ocidentais”
(KUSAHARA, 2009, p.369).
Bijutsu é o termo japonês que corresponde à arte e significa belas-artes em
termos visuais. Geijutsu significa arte, porém em um sentido mais amplo, ou seja,
inclui música, teatro e outras manifestações. Ambos os termos se estabeleceram na
segunda metade do século XIX, conceito importado do Ocidente quando a abertura
do Japão possibilitou seu processo de modernização. Até então esta noção de arte
era desconhecida aos japoneses, o que, no entanto, não significa que as produções
artísticas fossem inexistentes. De fato até o século XIX havia uma forte característica
visual e cultural que muitas vezes estava integrada à vida diária. Entre os séculos
XVII e XIX o desenvolvimento da técnica xilográfica, ou de blocos de madeira para
impressão, possibilitou que romances ilustrados se difundissem. O gosto pela arte
pictórica convergindo com as narrativas, algumas consideradas como “pré-mangá”1,
como expõe Gravett (2006), explica a predominância de vendas dos mangás no
mercado editorial japonês até hoje. Produzidos para que fossem consumidos e
posteriormente descartados serviam como distração temporal enquanto as melhores
impressões eram produzidas para contemplação. Não havia diferenças entre o que
constituía arte, entretenimento ou produtos comerciais.
‘Arte’ não é uma noção óbvia que se desenvolveria automaticamente no
mesmo paradigma em qualquer sociedade. ‘Arte’ como no conceito
ocidental, não se formou no Japão. Em vez de separar ‘belas-artes’ de arte
aplicada, do design ou do entretenimento, os japoneses englobaram esses
campos como uma forma contínua de cultura visual (KUSAHARA, 2009,
p.371).
A inexistência de distinção entre arte superior e arte inferior proporcionou ao
Japão um contexto cultural diferenciado que é essencial para que se possa refletir
sobre o desenvolvimento da arte contemporânea japonesa. Takashi Murakami,
artista contemporâneo da vertente pop japonesa propõe entre os de sua geração,
discussões sobre a relação de consumo, arte e indústria e aponta para um novo
direcionamento na recepção da estética japonesa fora do Japão, alimentando
também a produção artística que se estende além dos limites do museu e da galeria.
Neste caso é conveniente citar seu trabalho como produtor fundando a Hiropon
Factory2, mais tarde denominada Kaikai Kiki, que aplicava a produção artística em
510
objetos como camisetas e livros. O grupo formado inicialmente por amigos foi
ampliado e sua atuação visava abrir caminho para o cenário artístico internacional.
Murakami sempre questionou não apenas esta relação entre produção e consumo
artístico-cultural, mas também dilemas como originalidade e autenticidade das
produções através do processo de distribuição.
O funcionamento da produtora de Murakami já demonstra que muitos
trabalhos realizados por ele são produzidos através de um sistema fabril com a
participação de outros artistas e estudantes internos. Kusahara (2009) lembra que
esse modo de produção era padrão na pintura tradicional Kano-ha, cujos pintores
normalmente trabalhavam em grande escala reproduzindo ambientes da natureza,
assim como na impressão feita com blocos de madeira. Hoje isso é aplicável a
artistas populares de histórias em quadrinhos – mangá – e por estúdios de animação
– anime.
Nos últimos anos a produção artística japonesa tem apresentado forte marca
tecnológica. Esta relação entre os japoneses e a tecnologia normalmente é positiva,
apontando reflexos não apenas na arte, mas no comércio e no entretenimento. O
apego tecnológico é nitidamente percebido, por exemplo, pelo forte desenvolvimento
da robótica japonesa consequente da relação histórica com as ferramentas
profissionais que, de acordo com seu uso tornam-se tão importantes quanto o
resultado a que se quer alcançar. Havia então, a utilização da tecnologia para o
entretenimento visto como algo necessário no contexto de uma sociedade estável. A
restauração Meiji trouxe modernização e globalização aos japoneses e mesmo
depois
das
bombas
atômicas
que
devastaram
Hiroshima
e
Nagasaki
o
comportamento nipônico para com a tecnologia foi o de reconhecimento de seu
poder cientifico e tecnológico e de crença na otimização de seu uso. Por este
aspecto é mais fácil compreender as diferenças entre o Japão e o Ocidente que
pontuam a visão de arte, entretenimento e tecnologia do contexto atual.
=?E(Gojira): O Japão pop
O Japão manteve-se praticamente fechado ao Ocidente por mais de 1500
anos o que lhe conferiu uma configuração cultural singular. Com a Restauração Meiji
511
e a inevitável abertura dos portos diante da pressão e necessidade de
desenvolvimento da economia e da indústria, influências tecnológicas e culturais do
exterior foram recebidas em território japonês em um processo de troca de
informações inconstante até o período pós-Segunda Guerra Mundial que marcou a
passagem da imagem tradicional japonesa à sua ocidentalização, é também o
momento em que o Japão se insere "no mundo do consumo" (SAKURAI, 2008, p.
342) através dos eletrônicos, automotores e, pelo que nos interessa: o
entretenimento. Houve uma grande necessidade de inserção global que apagasse a
humilhação da derrota. Godzilla, ou Gojira originalmente, é símbolo mundialmente
conhecido da cultura pop japonesa e crítica absoluta aos ataques sofridos em
Hiroshima e Nagasaki. Inicialmente projetado como um monstro cuja cabeça se
assemelharia a um cogumelo de explosão atômica, gradualmente a personagem se
tornou mais "suave" à medida que passava o medo e o trauma causados pela
Guerra.
Com a ocupação americana após a derrota, os japoneses tiveram de lidar
com a abrupta ocupação das forças americanas em seu território e tão subitamente
quanto o arrebatamento da perda, o Japão se viu cercado por tudo que
anteriormente era considerado "inimigo" e descartado durante a guerra. Houve a
invasão das referências americanas nas rádios, cinemas, jornais e revistas, estética
e linguagem.
A ocupação americana, com o supremo comando do general Douglas
MacArthur até 1952, obteve sucesso em sua missão: rompeu as distorções
e as aberrações que os líderes pré-guerra haviam inculcado na sociedade
japonesa, demolindo o controle militar na política, na economia, na
educação, na imprensa e no resto da sociedade. No entanto, a ocupação
não atingiu a outra metade da missão: a construção de um novo Japão
conforme os ideais da democracia ocidental. (LUYTEN, 2011, p. 106)
Durante os anos 50 e 60 o Japão foi tomado por um ímpeto consumista
levado pelo desejo por produtos que viam nos filmes de Hollywood, e que,
adaptados para a realidade japonesa compunham a preferência de um “sonho
pagável” nacional que marcou o início do pop japonês. A conturbada década de 70,
período de agitação social e política, refletiu na cultura pop e nas artes; extremos
que pairavam de obras e eventos conservadores às inquietantes manifestações
culturais que vinham para quebrar regras. Com o fortalecimento e a estabilidade
econômica, desde os prósperos anos de 1980, temos tido contato com um Japão
512
estilizado, predominantemente virtual e tecnológico que vem influenciando a estética
e o comportamento ocidental.
Os japoneses tinham, como ainda têm, preferências locais baseadas em
suas condições, tradições, folclore e cultura que demonstraram ser fortes o
bastante para criar e manter um amplo e rico mercado nacional. E assim se
formou o pop japonês contemporâneo: ocidentalizado na forma, mas
nipônico no conteúdo. (SATO, 2007, p.15)
A autora ainda acrescenta que sendo um fenômeno ligado à industrialização e
à sociedade do consumo é importante destacar que o pop japonês ocorreu e se
beneficiou de condições culturais e econômicas favoráveis que foram conquistadas
no pós-guerra, "quando o então Primeiro Ministro Hayato Ikeda implantou um
histórico programa econômico, que em dez anos duplicou a distribuiu de forma
ampla a renda per capta do país [...]" (SATO, 2007, p. 17) Como em qualquer lugar,
a cultura pop está relacionada ao consumo e isso torna o pop um fenômeno
essencialmente cultural e comercial.
Tezuka Osamu, considerado pai do mangá moderno, cuja vida foi dedicada
aos quadrinhos japoneses e cuja influência foi reconhecida internacionalmente. Em
1954, cria Phoenix, obra que, segundo Luyten (2011) foi seu maior desafio
intelectual. A partir da figura da Fênix, Tezuka reflete sobre os sentidos de existência
do passado ao futuro sob as várias encarnações de suas personagens. Não é em
vão utilizar a Fênix, "Ave do Paraíso" que renasce das cinzas, para esta obra;
durante o período de desenvolvimento desta história, a ocupação militar norte
americana entregava, ou devolvia o Japão aos japoneses depois de "uma completa
reforma agrária, uma nova constituição e as perspectivas de um reerguimento
econômico". (LUYTEN, 2011, p. 110) Era o início de um novo momento de bem
estar e riqueza nacional que estava ali simbolizada na obra de Tezuka.
Foi através da televisão, na segunda metade do século XX, que muitos países
tiveram um contato menos rígido e histórico com o Japão por meio das primeiras
animações japonesas que começaram a ser exportadas.
Por volta de 1910 o público japonês conheceu pela primeira vez os desenhos
animados graças ao cinema. Eram curtas-metragens mudos norte-americanos que
inspiraram alguns desenhistas japoneses a se arriscarem neste ramo por iniciativa
própria. Seitaro Kitayama produziu, em 1913, os primeiros curtas-metragens
513
japoneses a partir de seus primeiros estudos com papel e nanquim. Foi a partir da
década de 1950 que o termo anime, do inglês animation, passou a ser utilizado
como sinônimo de desenhos animados japoneses.
Com a difusão de produções de animação japonesa no exterior a partir da
década de 1980, a palavra anime virou sinônimo de animação com a
estética e a técnica desenvolvidas pelos japoneses, embora no Japão ela
signifique todo e qualquer desenho animado, japonês ou não (SATO, 2005,
p32).
No Brasil, segundo Monte (2010), "O Oitavo Homem", animação sobre um
robô androide com poderes sobre humanos, foi possivelmente o primeiro anime a
ser exibido na TV, pela Rede Globo em Setembro de 1968. Daí, seguiram Speed
Racer, Samurai Kid e inúmeras séries ao longo dos anos que marcaram uma
geração de fãs da cultura pop japonesa. Os animes foram grandes agentes
difusores de outros componentes da cultura pop japonesa como os mangás e vice e
versa. Assim como produtos eletrônicos e carros, este “produto de exportação”,
termo usado por Cristiane Sato (2005), tem suas características próprias, que para
serem usufruídas e apreciadas em sua totalidade dependem de um conhecimento
mais profundo das tradições, hábitos e valores da cultura japonesa.
Com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, e
neste caso, especificamente a Internet, o acesso à informação foi facilitado e
ampliado, assim como a troca de informações e referências sobre as produções de
animações, sejam elas mais antigas ou mais recentes. Este cenário cada vez mais
complexo de fluxo informacional reflete na formação do consumidor cultural
contemporâneo, ou, neste caso, do protagonista cultural a partir do momento em
que ele se apropria de algo e passa a produzir e criar novos sentidos e significados.
Canclini (1993) ao trabalhar com o conceito de consumo cultural pontua que
os produtos denominados culturais possuem valor de troca e de uso de forma a
contribuir com a reprodução da sociedade e às vezes com a expansão do capital,
porém, neles prevalecem os valores simbólicos acima dos utilitários e mercantis.
Portanto, o consumo cultural consiste no conjunto de processos de apropriação e de
uso de produtos na qual o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e troca.
Esta definição permite ainda incluir o consumo de bens com maior autonomia como
o conhecimento universitário, as artes que circulam em museus, salas de concertos
e teatros, assim como produtos condicionados por suas implicações mercantis como
514
os programas de televisão e de cunho religioso como as danças indígenas cuja
elaboração e cujo consumo requerem uma estrutura simbólica de relativa
independência.
Segundo Almeida e Crippa (2009), o acesso à cultura, a partir do século XX,
passou a se processar muito mais por meio dos produtos culturais do que
propriamente pelo contato direto com a criação e apresentação artística. Percebe-se
hoje, entre a geração de jovens, que é nítida a relação cada vez mais precoce com a
tecnologia digital o que modifica as concepções de produção, circulação e recepção
de bens culturais principalmente quando considerada a internet. A escolha por
exemplos mais pontuais, apesar da existência de várias ramificações do pop
japonês, mais do que remontar os diversos aspectos do consumidor cultural
contemporâneo, propõe destacar as novas mediações no que toca a recepção de
manifestações artísticas na rede.
=?E 2.0 (Gojira 2.0): Tecnologias e um pouco de arte e estética pop
japonesa
O desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação
transformou a sociedade não apenas no que toca a produção, circulação e recepção
de produtos simbólicos, mas tornou mais complexo o cenário atual para as noções
de estética e arte. Segundo Claudia Gianetti (2006) o avanço das tecnologias digitais
possibilitou novas formas de criação e percepção artística que elevam as discussões
sobre novos paradigmas estéticos e modificam as noções de autor, observador,
objeto de arte e originalidade. A constituição de uma arte mais participativa e
comunicativa também entrelaça fortemente a ideia de mediação cultural que para
autores como Teixeira Coelho (2004, p.248) pode ser compreendida como
"processos de diferente natureza cuja meta é promover a aproximação entre
indivíduos ou coletividades e obras de cultura e arte", porém, considerando o uso
das TICs pode-se pensar na abertura de possibilidades de mediação cultural que
envolvam a participação dos indivíduos e grupos às dinâmicas socioculturais. A
possibilidade de construção coletiva de conhecimento e a estruturação de uma
sociedade em redes alteram a compreensão existente de informação e, segundo
Almeida (2009), as TICs permitem a constituição de espaços de circulação da
515
informação menos hierárquicos possibilitando que o consumidor cultural, possa ser
também um mediador.
Machiko Kusahara (2009), em torno da vertente pop, aponta que as
tecnologias da informação causaram um impacto profundo na infraestrutura da
sociedade desde a segunda metade do século XX marcado pela transição de um
sistema cujos valores eram baseados no material para um sistema no qual rege a
informação imaterial. Hoje as tecnologias de mídias digitais estão mudando nossa
concepção de vida e cultura e sob este ponto de vista, também o paradigma de arte
não conseguirá permanecer o mesmo. A autora questiona a solidez dos campos de
arte e estética e aponta para a necessidade de novas abordagens para a relação de
arte e tecnologia considerando ainda o questionamento e a validade de uma história
da arte baseada somente na noção ocidental. Segundo ela, é característica da
cultura japonesa não estabelecer limites entre a arte erudita e a arte popular.
No final do século XIX, quando foi introduzido o sistema ocidental de arte e
educação artística, por 100 anos a arte contemporânea japonesa não apresentava
traços notáveis de seu passado histórico, o que vem mudando na geração de jovens
artistas mais atentos ao sentido de “niponicidade”. O gosto natural pela tecnologia
compõe uma forte cultura digital que aponta para uma postura positiva com relação
à tecnologia ao invés de negativa ou crítica. A relação da arte com a indústria
também é uma característica que altera o sentido de produção e consumo de bens
culturais.
No contexto brasileiro reflexos destes apontamentos são percebidos
nitidamente nas gerações que hoje convivem facilmente com um mundo menos
físico e de múltiplas realidades conectadas quase todo o tempo. O pop japonês,
transmitido para o resto do globo primeiramente pelos meios de comunicação de
massa como a televisão foi adotado e apropriado gerando manifestações artísticas
diferenciadas e atreladas à imensa gama de comunidades virtuais existentes pela
rede gerando uma nova concepção que deve ser considerada nipo-brasileira. Em
comunhão com as atuais tecnologias digitais o fazer artístico mudou e tornou-se
inevitavelmente mais interativo e participativo.
516
Diana Domingues (1997) aponta que há cerca de trinta anos a arte
contemporânea
abraçou
uma
série
de
práticas
artísticas
assentadas
no
desenvolvimento tecnológico configurando novas formas de produção de arte que
rompem com seu passado e caminham para um cenário dominado pela arte
participativa, interativa e principalmente comunicativa. Artefatos e ferramentas são
substituídos por dispositivos de múltiplas conexões que auxiliam na produção e na
comunicação.
A circulação e recepção desta arte colocam em xeque até mesmo figuras e
estruturas de poder, como o papel do artista e sua genialidade, a figura de
curadores e marchands, o espaço sagrado de galerias e museus, a mídia
como instância que homologa uma arte dita qualificada. Esta arte partilhada
com as máquinas entra nas casas via satélite, telefones, oferecendo-se
para ser recebida, modificada e devolvida. Em CD-ROMS, websites,
altamente distribuíveis, catálogos e revistas eletrônicos, trocas via rede; é o
artista que assume a curadoria de seu próprio trabalho. Comunidades
virtuais online reúnem indivíduos por afinidade, em que arte também afirma
sua liberdade. (DOMINGUES, 1997, p. 18)
É difícil apontar um momento exato do uso dos recursos da informática no
campo artístico, mas alguns historiadores convergem para o período de Guerra Fria
que gerou um avanço no setor tecnológico e culminou no desenvolvimento do
computador. Os primeiros trabalhos artísticos que envolviam um computador faziam
uso de algoritmos e normalmente eram associados à geometria ou manifestações
abstratas e minimalistas. A conexão trazida pela Internet fez com que a circulação
da arte na rede fluísse através da proliferação de ambientes virtuais como websites
artísticos que mais uma vez retomam e aprimoram possibilidades de interação. A
sociedade muda com muita rapidez e a arte atrelada à tecnologia produz
manifestações que refletem as mudanças da relação do homem com o ambiente
que o cerca.
A arte, a rede e os espaços artísticos virtuais
Um dos pontos discutidos por Christine Greiner (2008) sobre arte pop
japonesa e mais profundamente por Machiko Kusahara (2003) ao trabalhar com a
relação entre arte e tecnologia através do olhar oriental é o conceito de originalidade
existente no Japão. Sabe-se que o uso de computadores e o desenvolvimento da
telecomunicação expandiram as possibilidades do fazer artístico, não apenas
quando se pensa nas formas do artista apresentar sua obra, mas mudou a relação
517
entre artista e observador. A partir do momento que dados digitais podem ser
copiados e transmitidos sem perda de qualidade, questões como direito autoral e
originalidade passam por mudanças necessárias para o ambiente em rede conforme
o ponto de vista ocidental onde também o conceito tradicional de arte tem forte
posicionamento. Para os japoneses concepções do tipo são singulares. Para que se
possa ter uma ideia, os japoneses muitas vezes são julgados negativamente pelo
Ocidente quando se trata de direitos autorais por frequentemente copiarem
softwares e por produzirem em massa cópias ilegais de textos e vídeos.
Historicamente e tradicionalmente o Japão possui uma visão diferente de
originalidade.
Para eles a rede é uma ferramenta para integrar tipos diferentes de
imaginação, ou mesmo egos diferentes. [...] Apresentar os produtos da
imaginação da pessoa é uma maneira de fazer arte; a troca de imaginações
e o trabalho conjunto é outra. Aqui a idéia de fazer arte existe dentro da
idéia de comunicação. Simplesmente finalizar uma obra de arte não é a
meta principal (KUSAHARA, 2003, p.232)
A tecnologia digital e a Internet vêm alterando o fazer artístico e o papel do
artista de várias formas. Um dos aspectos que vem sendo questionado é o valor e o
significado da assinatura do artista para uma obra. Machiko Kusahara (2003) traz o
exemplo do RENGA que significa "imagem ligada". O RENGA foi um projeto artístico
realizado por Toshihiro Anzai e Rieko Nakamura cuja primeira série foi iniciada em
1992 e exibida na exposição anual da Digital Image do mesmo ano. Neste método
uma imagem produzida por um artista é enviada a outro através da rede para que
possa ser modificada e transformada em outra imagem criando uma série de
pinturas digitais como resultado da interação entre imaginações que as precederam
e influenciaram. Neste caso específico modificar a imagem criada por outra pessoa
não seria negligenciá-la, mas ao invés disso vem exigir maior compreensão de sua
natureza para que seja possível compor dentro daquilo que já existe. “Ao tomar a
idéia da cultura tradicional japonesa, mas usando um meio digital, o projeto mostra
uma maneira de intensificar nossa criatividade enquanto questiona ao mesmo tempo
a idéia tradicional de arte” (KUSAHARA, 2003, p.234). A autora ainda explica sua
posição com relação às pinturas digitais cujo original e cópia tornam-se idênticos.
Não havendo diferença entre eles o sistema tradicional que apóia o valor dos
trabalhos de arte perderia sua base e o valor de uma obra não poderia mais se
basear na originalidade física da mesma.
518
Roy Ascott (1996) reforça que com o envolvimento da Internet estabeleceu-se
uma estrutura de “mente global” onde a arte não é mais unilateral nem mesmo um
encontro secundário de interpretação pessoal, mas passa por transformações que a
tornam interativa e fazem do observador parte integrante do sistema criativo. Se
neste ambiente virtual as pessoas se aproximam e as possibilidades de interação e
criação aumentam, tanto os espaços museológicos quanto artistas, público e
mediadores teriam condições de estar conectados sob esta configuração de “mente
global”. Neste novo ambiente o museu constitui-se mais interativo do que sua
concepção tradicional; criação e curadoria estariam abertas à colaboração, mas é
preciso lembrar que quando se trata de virtual a mediação não é realizada
diretamente, mas sim remotamente, o que configura um novo desafio ao museu ao
pensar na adequação ao público. Entretanto a possibilidade colaborativa dá
oportunidade ao usuário de estabelecer por si mesmo aquilo que melhor o atende no
processo de mediação cultural.
Com a Internet este novo espaço seria a possibilidade de exibição de todas
as obras de arte a todos os povos. Segundo Ascott (1996) há três configurações
para o novo museu, que obviamente atendem à tecnologia da época; a primeira
disponibiliza reproduções fotográficas ou de escaneamento de obras de arte através
de páginas da Internet, que, no entanto, estão reunidas em coleções físicas; a
segunda dispõe obras elaboradas por e para o meio digital fechadas à colaboração;
e a terceira dispõe obras de arte produzidas por e para o meio digital que estariam
abertas ao processo colaborativo e que não possuem referencial físico.
Embora Ascott (1996) trabalhe com o conceito de museu virtual, ou, segundo
suas palavras “The Museum of the Third Kind”, por que não pensar neste caso em
espaços ou galerias de arte virtuais? Pensar em um museu de caráter digital ainda
traz questionamentos como o sentido transitório e imaterial que o termo digital
remete em contrapartida à permanência e solidez característica dos museus. Refletir
sobre arte na rede conduz discussões que retomam a materialidade da arte
contemporânea ou a perda dela, e, por consequência sua documentação que é
essencial neste sentido. “O ‘museu imaginário’ de Malraux já alterara formas de
documentação e arquivamento da arte que, especialmente na arte conceitual,
geraram documentos de situações efêmeras” (DOMINGUES, 2009, p.33).
519
Considerando o ciberespaço, o que mantém os laços de uma comunidade já
não consiste mais na territorialidade; as fronteiras se tornam mais fluidas e as trocas
informacionais se aceleram e firmam a compreensão de McLuhan (1995) de uma
percepção de vida diferente com as mudanças trazidas pela eletricidade e pela
tecnologia, esta última como extensão do homem e portanto, determinante para
entendimento das múltiplas formas de circulação, acesso e apropriação da
informação.
A convergência tecnológica entre computação e comunicação que gerou a
internet, revolucionou as maneiras de gerar, armazenar, processar e transmitir
informações. O aumento da velocidade tornou-se regra, relacionada a outros fatores
como a interação, a hipertextualidade, o compartilhamento e construção coletiva, e
ainda mais relevante, se o caráter comunicacional que lhe atribui um sentido de
incompletude constante. O ambiente web com suas características faz a precisão e
a confiabilidade das informações veiculadas ser questionada, mas ainda assim
atuantes como agregadoras de grupos sociais. Segundo Castells (1999), o chamado
"boom" da Internet acontece verdadeiramente pela utilização das interfaces para
usuários finais, aqueles que não possuem conhecimentos técnicos avançados, mas
que tiram proveito da rede para se comunicar, consumir e produzir conteúdos,
acessar serviços, compras e ter momentos de lazer. A Web 2.0, caracterizada por
potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de
informações ainda ampliam os espaços para a interação entre os participantes do
processo. Assim, segundo Primo (2007) qualquer usuário da web pode utilizar
ferramentas para publicação sem conhecimento de linguagens computacionais.
Lemos (2010) afirma que as novas tecnologias de comunicação e informação
surgem a partir de 1975, com a fusão das telecomunicações analógicas com a
informática, possibilitando a veiculação, sob um mesmo suporte - o computador -, de
diversas
formatações
de
mensagens.
Esta
revolução
digital
implica,
progressivamente, a passagem do mass media (cujos símbolos são a TV, o rádio, a
imprensa, o cinema) para formas individualizadas de produção, difusão e estoque de
informação.
As novas tecnologias de informação devem ser consideradas em função da
comunicação bidirecional entre grupos e indivíduos, escapando da difusão
centralizada da informação massiva. Várias tecnologias comprovam a
520
falência da centralidade dos media de massa: os videotextos, os BBSs, a
rede mundial Internet em todas as suas particularidades (Web, WAP, chats,
listas, newsgroups, MUDs...). Em todos estes novos media estão embutidas
noções de interatividade e de descentralização da informação [...]. (LEMOS,
2010, p. 68-69)
Estaríamos entrando na era da simultaneidade e da tactilidade numa
integração total dos sentidos, deslocando-nos do paradigma mecânico ao orgânico.
McLuhan mostra como a imprensa modificou as formas de nossa experiência do
mundo, assim como nossas atitudes mentais. Se a invenção de Gutenberg
encorajou o que ele chama de narcose dos sentidos, quer dizer, a exacerbação de
uma só sensação (a visão para a escrita e para a imprensa), os novos media estaria
favorecendo a tactilidade, o retorno à oralidade e à simultaneidade. Mais ainda, se
as tecnologias são prolongamentos de nosso corpo, próteses de nossos sentidos, os
media são extensão do nosso sistema nervoso central.
Cultura pop nipo-brasileira: o fazer artístico em tempos de interação e
participação
A noção de rede no Japão remonta à constituição da própria língua e da
escrita. O ideograma ou kanji que seria o caractere de origem chinesa, já
trazia na sua constituição a lógica da rede, uma vez que cada pictograma
nunca poderia ser reduzido a um único significado, constituindo-se sempre
no contexto da frase e do pensamento. Pesquisadores que estudaram com
profundidade o ideograma, identificaram aí um traço cognitivo que pode ser
reconhecido em outras instâncias da cultura japonesa e se referem a modos
de percepção, organização de espacialidades e temporalidades e assim por
diante.(GREINER, 2013, p. 71)
Henry Jenkins (2009) introduz o conceito de cultura da convergência onde as
velhas e novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam
e onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de
maneiras imprevisíveis. A convergência representa uma transformação cultural à
medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer
conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos, ela não ocorre por meio de
aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro
dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros.
(JENKINS, 2009, p. 30)
A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança
tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes,
indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica
pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores
processam a notícia e o entretenimento. (JENKINS, 2009, p. 43)
521
Como exemplo, os fãs, sejam de filmes, séries, quadrinhos, sempre foram os
primeiros a se adaptar às novas tecnologias de mídia. A fascinação pelos universos
ficcionais como a cultura pop japonesa, muitas vezes inspira novas formas de
produção cultural, de figurinos ou fanzines ou cinema digital. Este grupo consiste,
por exemplo, naquele que se recusa a aceitar apenas o que recebe e insiste no
direito de se tornar um participante pleno e ativo. Assim, a web representa um local
de experimentação e inovação, onde o indivíduo pode desenvolver novos métodos e
temas e conteúdos que podem atrair seguidores, que criam suas próprias condições.
Para este estudo especificamente é determinada uma linha de artistas que
possuem a ligação da cultura pop japonesa e sua transição para nipo-brasileira.
Como alguns exemplos; Erika Mizutani, filha e neta de artistas atende às referências
da pop art dos anos 60 e 70 e dos grafismos orientais. Sua presença na web por
meio de várias redes sociais e sites faz com que o acesso do público às suas
ilustrações torne-se maior e torne seus trabalhos mais valorizados a partir do
instante em que é possível acompanhar seu desenvolvimento como artista e
interagir, de alguma forma, com seu fazer artístico. Hamilton Yokota, conhecido
como Titi Freak é mundialmente reconhecido por seus grafites, mas passou pelos
quadrinhos e por referências da arte oriental que, em suas palavras, naturalmente
influenciaram seus mais recentes trabalhos, dentre eles o projeto de grafite em
Ishinomaki, nos abrigos temporários para aqueles que haviam perdido seus lares
para o Tsunami em 2011. Também é possível encontrá-lo em site oficial e outras
redes sociais e apreciar seus trabalhos e esboços recentes bem como anteriores.
Nestes dois exemplos de artistas nipo-brasileiros o contato com admiradores de
suas obras é diferenciado. A interação favorecida pelas mídias digitais quebrou os
parâmetros de crítica cultural e nos incluiu e rompeu com o que antes se limitava ao
físico das galerias.
Embora Jenkins seja um dos autores mais citados quando se trata de cultura
da convergência há muitos estudos anteriores que devem ser considerados até que
se possa alcançar o recente contexto digital onde também outros pesquisadores
começam a propor seus estudos que relacionam interatividade e participação,
caracterizam-se transformações de caráter técnico, social e cultural no qual a própria
noção de convergência deve ser pensada a partir desses três níveis - técnico, social
e cultural. A compreensão das interações e relacionamentos que surgem e são
522
mantidos por meio da comunicação mediada pelas tecnologias digitais tem sido uma
questão central para a reflexão da sociedade contemporânea a partir do momento
que as tecnologias digitais aceleram o fluxo de informações que alteram nossos
modos de vida e noção de tempo e espaço. Neste sentido observamos o recente
movimento que se estabelece entre blogs e outras mídias sociais digitais como
adaptações às necessidades informacionais e velocidade de obtenção da
informação. Atuando como facilitadores, outros canais que se conectam aos blogs,
como por exemplo, os existentes facebook e twitter - redes sociais - agregam outros
seguidores por meio de uma composição informacional distinta. Esta é uma relação
que se estabelece naturalmente e é comumente apropriada pelos usuários e deve
ser questionada.
Considerações finais
Considerar a cultura pop japonesa no Brasil e os recentes estudos publicados
sobre seus "ecos mediáticos", termo utilizado pela pesquisadora Cíntia Dal Bello
(2013) a respeito do fenômeno hikikomori3, é o cenário para o qual nos voltamos ao
questionar e refletir a subjetividade e questões como identidades digitais e os
conceitos de ubiquidade e mobilidade nos mais variados espaços digitais.Como um
poderoso reflexo da sociedade, a cultura pop não se limita apenas ao sentido
estético, mas atinge a todos em um sentido cultural mais amplo. A presença de
blogs, fóruns e redes sociais na constituição de informações de modo colaborativo
abre-se como possibilidade de estender a comunicação para outros ambientes da
Internet. Temos presenciado um processo global de incorporação das Tecnologias
de Informação e Comunicação nas atividades cotidianas sejam das formas mais
simples às mais complexas.
Mesmo na arte, e neste caso, o fazer artístico dentro da cultura pop nipobrasileira, contexto deste estudo, deve-se pensar como a tecnologia influencia e
torna-se parte do sujeito esvanecendo as barreiras entre ele e o objeto. A rede,
portanto, a partir do momento que se define como flexível e não linear, dinâmica e
sem limites que possamos determinar explica a subjetividade entre sujeito e objeto
cultural.
523
Notas
1
Mangá significa quadrinhos japoneses. O termo mangá foi usado em 1814 pelo artista Hokusai para
designar seus livros de rascunhos excêntricos. Na década de 1980 quando os quadrinhos japoneses começaram
a ser exportados passaram por uma fase de total desdém ocidental e o termo possuía uma carga negativa
quando inserida na língua inglesa. Frederik Schodt co seu estudo Manga!Manga!, de 1983 foi um dos
responsáveis disso quando explicava que o significado dos dois ideogramas que constituíam a palavra vinham
designar imagens irresponsáveis. Completava ainda que o ideograma man “tem um significado secundário de
‘moralmente corrupto’”(GRAVETT, 2006, p.12).
2
Hiropon também constitui nome dado a uma das obras de Murakami; escultura de uma garota com
seios enormes que jorram leite. O nome, segundo Christine Greiner (2008) faz referência a uma anfetamina
popular durante o pós-guerra.
3
Hikikomori, termo cunhado pelo psicólogo japonês Saito Tamaki, é um desdobramento radical da
cultura otaku no Japão, que, segundo Saito (2012) é resultado da relação tecnologia/consumo e da sedução
pelas novas referências visuais destacadas pelas imagens de mangás e de animês. Os Hikikomoris, embora
tenham características compartilhadas com otakus, estão associados ao isolamento, colecionismo e vínculo à
internet, comportamento que tem se tornado caso de saúde pública no Japão recentemente.
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Mariany Toriyama Nakamura
Atualmente Doutoranda pelo PPGCI - ECA/USP, orientadora Profª. Dra. Giulia Crippa.
Pesquisa cultura pop nipo-brasileira e Tecnologias de Informação e Comunicação. Bacharel
em Ciências da Informação, Documentação e Biblioteconomia pela FFCLRP - USP. Mestre
pelo PPGCI - ECA/USP. Pesquisa nas áreas de memória e identidades nipo-brasileiras,
cultura pop e mediação cultural nas atuais tecnologias de informação e comunicação bolsista FAPESP.
525
COLETIVO DE ARTISTAS MOYASHIS: NOVOS OLHARES SOBRE A CULTURA
JAPONESA
Erika Kobayashi - Universidade Paris Descartes – Paris V - Sorbonne
RESUMO: Alguns anos antes do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, comemorado
em 2008, alguns jovens artistas que não se identificavam com a “cultura japonesa” difundida
no Brasil iniciaram uma produção coletiva com a proposta de fazer uma “releitura da cultura
japonesa” no país. O grupo se autodenominou moyashis por se considerarem artistas em
broto, e colocou em evidência um imaginário construído a partir de um olhar brasileiro que
encontra referências na arte japonesa tanto tradicional quanto contemporânea. O artigo
apresenta o trabalho do grupo e analisa o conjunto de sua produção como uma proposta
estética composta por elementos culturais híbridos, além da construção dessa coletividade
pela lógica da identificação, segundo o olhar do sociólogo francês Michel Maffesoli. Nessa
forma contemporânea de ver os laços sociais, tem-se que o pertencimento ao grupo se dá
pela identificação estética (no sentido amplo do termo), e que as redes sociais potencializam
trocas, compartilhamento e difusão de imagens, tendo sido também um dos caminhos para
que tal produção artística paralela adentrasse o cenário das comemorações oficiais pelos
100 anos da Imigração Japonesa no Brasil.
Palavras-chave: arte, cultura japonesa, sociologia, identificação.
SOMMAIRE: Quelques années avant le Centenaire de l’Immigration Japonaise au Brésil,
célebré l’année 2008, quelques jeunes artists qui ne s’identifiait pas avec la « culture
japonaise » traditionnel difusée au Brésil ont initié une production artistique colective pour
faire une « relecture de la culture japonaise » dans le pays. Le groupe s’est nommé luimême moyashis, en considérant qu’ils étaient encore d’artistes en bourgeon, et il a mis en
évidence un imaginaire construit à partir d’un regard Brésilien qui trouve des références dans
l’art japonaise traditionnelle et contemporaine. L’article présente la production du groupe et
analyse sa proposition esthétique faite des éléments culturels hybrides et comment cette
colectivité construite à partir de la logique de l’identification, selon le regard du sociologue
français Michel Maffesoli. Ce regard contemporain sur les liens sociaux propose qui que
l’appartenance au groupe se donne par l’identification esthétique (au sens large du terme), et
que les reseaux sociaux potentialisent des échanges, partages et aussi la diffusion d’images.
Elles ont fonctionné également comme un des chemins pour que telle production artistique
parallèle pourrait entrer dans le scénario des célébrations officielles pour le Centenaire de
l’Immigration Japonaise au Brésil.
Mots-clés: art, culture japonaise, sociologie, identification.
O coletivo moyashis
(1),
grupo de jovens artistas que começou a se reunir no
ano de 2006 em São Paulo e eclodiu em 2008, em plenas comemorações do
Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, da forma como surgiu e ganhou
projeção, não caberia em outro espaço e tempo. Não apenas por ser produto de um
contexto específico, mas também pelo fato de, em seu processo de formação,
atuação e até mesmo de dissolução, indicar uma forma de compartilhamento
526
característica da pós-modernidade em que a estética se coloca como elemento
central na criação de laços sociais. Esta abordagem da sociologia compreensiva foi
introduzida pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, e considera elementos do
cotidiano para analisar as formas de se estar junto no mundo contemporâneo.
A utilização do termo estética por Maffesoli (1990) comporta um sentido
pleno: não se restringe apenas a obras culturais ou produções artísticas, mas
considera sensibilidade, sensações, sentimentos e emoções que conduzem à
atração por uma paixão compartilhada. O laço deixa de ser racional e é nesse
sentido que a emoção estética pode servir como um cimento social. Em seu livro No
fundo das aparências, Maffesoli considera que a “cultura do sentimento é
consequência da atração. A gente se junta segundo ocorrências ou desejos”
(MAFFESOLI, 1990, p.31, tradução nossa). No caso do coletivo de artistas moyashis,
pode-se considerar que a estética constitui um fator ligante em ambos os sentidos
atribuídos pelo sociólogo ao termo, uma vez que o que une os artistas é a atração
que sentem pela “cultura japonesa” tradicional e contemporânea, cujas imagens se
tornam referências em sua expressão artística.
Essa nova forma de solidariedade pautada em experiências estéticas propõe
interações muito mais orgânicas do que a maneira como as relações eram regidas
na modernidade, em que Estados-nações, partidos políticos, profissões e religiões
(LYOTARD, 1993) constituíam polos de atração entre indivíduos e possuíam um
caráter contratual, conferindo-lhes uma identidade.
Da identidade à identificação
Refletir sobre como as formas de sociabilidade são afetadas a partir do
colapso do Estado do bem-estar social e do esvaziamento das instituições
democráticas é fundamental para compreender o quanto a proposta do coletivo de
artistas moyashis – renovar a forma como a “cultura japonesa” vinha sendo difundida
no Brasil – abre para novas possibilidades também do ponto de vista social (e não
apenas para a reflexão artística e cultural). Antes de seguir adiante com este
raciocínio, cabe especificar a interpretação do coletivo para o termo “cultura
japonesa”: consiste em manifestações apresentadas em festivais da comunidade de
527
imigrantes japoneses no Brasil como sendo exemplares de uma cultura autêntica,
que inclui as artes do que na língua japonesa é chamado de do (“caminho” na
tradução para o português) representadas por ikebana (“arranjo floral”), shodo
(“caligrafia japonesa”), sumi-ê (“arte em nanquim”), chado (“cerimônia do chá”), além
de culinária e origami. A não identificação com essa proposta não está relacionada
às manifestações (com as quais muitos dos artistas do coletivo se identificam), mas
ao caráter fechado da comunidade para participação de outras manifestações e
grupos que não faziam parte da esfera institucional da comunidade japonesa no
Brasil.
A construção do pensamento pós-moderno leva em consideração uma nova
configuração geopolítica que surge com um mundo globalizado e formas de
comunicação geradas por um cenário cibernético tanto do ponto de vista informático
quanto informacional. Esses dois fatores interferem diretamente nas relações entre
as pessoas e na forma como elas se comunicam e se expressam. A velocidade e a
possibilidade de compartilhamento geradas pelas novas tecnologias de informação e
comunicação ampliam a circulação de informações, a produção de modismos e
trazem uma grande oferta de produtos; elas conduzem a uma percepção
instantânea e fragmentada de interesses, de discursos, do tempo e tudo isso
interfere na forma como as pessoas consomem, criam e se relacionam. É nessa
conjuntura que o conceito de identidade se fragiliza e entra em crise.
O livro Identidade, que publica uma longa entrevista que o filósofo europeu
(2)
Zygmunt Bauman concedeu ao jornalista Benedetto Vecchi, traz reflexões de
Bauman sobre essa mudança de paradigma: “No admirável mundo novo das
oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo,
rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam” (BAUMAN, 2005, p. 33),
constata o filósofo. Em substituição ao modelo antigo, Bauman observa a existência
de diversas identidades em um mesmo indivíduo, escolhidas tanto pela própria
pessoa ou a ela atribuídas pelos que estão a sua volta. Nessa mesma entrevista, o
autor ainda fala de identidades em movimento, caracterizando-as como móveis,
velozes e circunstanciais, que possuem curta duração e constituem um contraponto
àquela identidade fixa feita para durar toda a vida, e traz o conceito de
“identificação”:
528
Quando a identidade perde as âncoras sociais que a fazem parecer
“natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez
mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós”
a quem possam pedir acesso. (BAUMAN, 2005, p. 30).
A substituição da lógica da identidade pela identificação é tema recorrente em
livros e conferências de Michel Maffesoli, que considera a identidade como uma
forma de enclausuramento definitivo. Ele utiliza a bipolaridade indivíduo X pessoa
(3)
para aprofundar a discussão e mostra como essas duas modulações são causa e
efeito de um zeitgest
(4)
específico. Segundo Maffesoli (1990), o indivíduo (fechado)
possui uma identidade forte e particular, enquanto a pessoa (aberta e plural) é
construída na e pela comunicação, valendo-se de identificações sucessivas e se
apoiando no pertencimento a grupos cada vez que encontra correspondência em
outras pessoas:
ela possui um forte tom hedonista, ou então todas as potencialidades
humanas: a imaginação, os sentidos, as emoções, e não apenas a razão,
participam dessa construção. É isso que permite falarmos de “abertura” da
pessoa, abertura aos outros e a diversas características de si mesmo.
(MAFFESOLI, 1990, p. 254, tradução nossa).
A pessoa funciona como uma espécie de matriz através da qual ela pode
viver a totalidade de suas máscaras, em uma relação com o(s) outro(s) que vai além
de uma simples correspondência ou reconhecimento. “Aquilo que se reputa como
indivisível, o indivíduo, é, antes de mais nada, fragmentado”, explica Michel Maffesoli
em seu livro Notas sobre a pós-modernidade (2004). A lógica da identificação, por
ter uma forte carga estética e empática, fornece um desejo de fusão: “os indivíduos
não se justapõem lado a lado, mas juntos reforçam uma pulsão, um vitalismo tribal”
(MAFFESOLI, 2004, p. 91).
O tribalismo pós-moderno foi introduzido pelo sociólogo em seu livro O tempo
das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-modernas, publicado em
1998, como uma das mais fortes características das comunidades contemporâneas
que se formam pautadas pela identificação. Não se trata de uma forma de
identificação racional, mas emocional: “É uma questão de sentir ou não, que remete
ao cheiro do sentimento” (MAFFESOLI, 1998, p. 232).
Tal como as tribos primitivas, as tribos contemporâneas se reúnem em torno
de um totem, elemento de agregação para a formação de comunidades afetivas.
Esses totens contemporâneos são diversos e simbolizam um gosto comum, que
529
pode estar ligado ao esporte, música, prazer, gastronomia etc.: “a imagem serve
como polo de agregação para diversas ‘tribos’ que formigam nas megalópoles
contemporâneas” (MAFFESOLI, 1990, p. 112, tradução nossa). As tribos vão
construindo um imaginário, consequência de uma produção subjetiva, e um mito do
qual fazem parte.
Uma nova forma de solidariedade
O mito que o coletivo de artistas moyashis ajudou a construir foi o da
“renovação”. As idealizadoras do movimento, a designer Flavia Yumi Sakai e eu, que
na época atuava como jornalista, não foram educadas dentro das comunidades
formadas pelos imigrantes, mas sabiam que algo forte ligado às suas origens
(ambas descendentes de imigrantes de japoneses) pulsava dentro delas e
influenciava sua expressão artística por meio de papéis e palavras respectivamente.
Em viagens para fora do Brasil, elas se reconheceram em imagens de um Japão
contemporâneo que ganhavam espaço na agenda cultural de outras metrópoles do
mundo por meio de exposições de artes visuais, mostras de cinema, dança e
performance. Tais manifestações tinham um espaço mais restrito no Brasil, um país
com imigração japonesa maciça cujos imigrantes preservavam a disseminação das
artes tradicionais. À inclusão de novas referências artísticas, elas chamaram de
“renovação”.
Simultaneamente a essa percepção, detectaram no trabalho de designers e
ilustradores que não eram de origem japonesa algo que remetia ao Japão, mas não
o Japão dos imigrantes que viviam no Brasil. Esse algo vinha sendo captado por
diversos profissionais do mercado editorial que pesquisavam referências visuais
incessantemente e o Japão era um modelo importante, não só porque estava sendo
internacionalmente exaltado como inovador na moda de rua e nas artes plásticas,
mas porque exercia uma forte atração sobre eles. Esse fascínio por imagens do
Japão contemporâneo e também pelo tradicional foi o totem social dos moyashis.
Retomando ao conceito de identificação proposto por Maffesoli, houve um
reconhecimento no outro, ou ainda “a necessidade de se singularizar se inversa no
desejo de fusão com um todo mais vasto” (MAFFESOLI, 1990, p. 254, tradução
nossa).
530
A leitura da singularização pode ser aplicada às idealizadoras do coletivo em
relação aos descendentes que cresceram dentro das comunidades de imigrantes
com os quais as elas não se identificavam. O distanciamento que tiveram da
comunidade nipo-brasileira durante toda a vida verteu-se para um olhar mais amplo.
Elas não estavam embutidas dentro das associações de províncias (criadas pelos
imigrantes e que até hoje reúnem descendentes de famílias que nasceram na
mesma província no Japão) que ensinavam e divulgavam a cultura tradicional
japonesa, escolas de japonês ou o Bunkyo, Sociedade Brasileira de Cultura
Japonesa e de Assistência Social, uma das principais instituições responsáveis pela
difusão da “cultura japonesa” no Brasil. Elas se identificavam e se reconheciam em
um outro que poderia ou não ser descendente de imigrantes japoneses, poderia ser
qualquer um que tivesse essa admiração pelo Japão e o desejo de expressá-la
artisticamente. Seguindo o paradigma estético proposto nesse artigo, um outro que
desejasse sentir e viver junto essa renovação, descoberta ou, por vezes,
questionamento.
Na ação inaugural do coletivo de artista moyashis, esses outros eram dez.
Foram produzidas ilustrações que tinham como referência um símbolo forte em seu
imaginário: A grande onda de Kanagawa, que faz parte da série “36 vistas do Monte
Fuji” produzidas no século 19 pelo mestre da xilogravura japonês Katsushika
Hokusai. As dez ilustrações que traziam releituras do tsunami foram impressas em
papéis e adesivos. Os stickers e lambe-lambes – linguagem escolhida pelo simples
fato de os artistas terem uma verba limitada – foram colados em muros do bairro da
Vila Madalena, em São Paulo, compondo uma galeria a céu aberto junto com
grafites e outras manifestações de arte de rua. Não havia nenhuma intenção política
ou intenção de arte de guerrilha nessa ação. Os muros foram ocupados por ser um
espaço livre e o vídeo da ação foi difundido no canal youtube
(5)
e exibido em no
Sarau da Santos, realizado em junho de 2006. Neste sarau, apresentaram-se
artistas diversos, alguns com produção mais consistente, como a dançarina e
coreógrafa Letícia Sekito e o músico Camilo Carrara, e outros reconhecidos pela
comunidade japonesa, como Tamako Yoshimoto, que pratica um estilo de ikebana
chamado Sogestu, que valoriza a expressão criativa do artista.
O Sarau da Santos foi um chamariz para que outras pessoas se
interessassem a criar com o grupo. Uma segunda ação reuniu mais de 20 artistas,
531
sendo que cerca de metade deles teve uma participação pontual nesta ação. Depois
disso, alguns outros se aproximaram pelo curso “Arte Japonesa pós-anos 90”,
realizado na Fundação Japão São Paulo e que teve como professora Christine
Greiner, especialista em estética, corpo e Japão. O limite da definição de moyashis
como um “coletivo formado por artistas brasileiros” foi extrapolado quando passei
alguns anos em Paris para pesquisar mulheres japonesas que moravam na cidade e
entrei em contato com japonesas que se identificavam com o que estava fora do
Japão. Algumas delas também produziram trabalhos exibidos pelo coletivo.
O grande salto desse movimento aconteceu em junho de 2007, quando o
suplemento de cultura do jornal Nippo Brasil publicou como matéria de capa uma
reportagem intitulada “O Japão sob novos olhares” na semana em que foi
comemorado o aniversário de 99 anos de Imigração Japonesa no Brasil. A matéria
escrita pela jornalista Erika Horigoshi tinha como objetivo mostrar como os jovens
descendentes de imigrantes estavam difundindo a “cultura japonesa” no Brasil e
trouxe como os principais expoentes a Comissão de Jovens do Bunkyo e o coletivo
moyashis. O que poderia ser uma aparente oposição entre os grupos se reverteu em
diálogo. Cláudio Kurita, líder da Comissão de Jovens, convidou o coletivo para fazer
parte do tradicional festival Bunka Matsuri, que acontece anualmente na sede do
Bunkyo, localizada no bairro da Liberdade, em São Paulo, e comumente apresenta
manifestações culturais japonesas tradicionais. No 4º Bunka Matsuri, realizado em
2008, ilustrações, grafites, vídeos, filmes, instalações e performance de 38 artistas
brasileiros e japoneses compuseram a exposição “invasão tsunami”, organizada pelo
coletivo moyashis, que ocupou o saguão principal localizado na entrada da
instituição.
Essa exposição levou o grupo a ser convidado para integrar a Semana
Cultura Brasil-Japão, evento comemorativo oficial cujo curador foi o então diretor da
Fundação Japão São Paulo Jo Takahashi. O coletivo participou da programação da
Semana Cultural, que aconteceu no Pavilhão de Exposições do Anhembi, com uma
exposição-intervenção que recebeu o nome de “invasão moyashis” e reuniu 11
artistas, além de quatro palestras sobre temas diversos como arte em papel, cultura
e quadrinhos proferidas por alguns de seus integrantes.
532
Na Semana Cultural, apesar de performarem uma “guerrilha artística”, os
artistas não tinha uma atitude de confrontação política. O trabalho do coletivo
suscitava uma reflexão sobre difusão cultural e questionava a maneira como ela
vinha sendo feita até então (sob o discurso da “preservação da cultura”) ao
apresentar novas possibilidades, mas não havia uma pretensão de que o sua
proposta substituísse o que vinha sendo feito. Não havia nenhum tipo de resistência
a uma coexistência dessas duas propostas diferentes, ou com outras comunidades
que constituíam segmentos mais específicos de fãs do Japão que se reuniam em
torno de “totens” diferentes, como o mangá ou de músicas estilo J-POP, entre outros.
O coletivo moyashis considerava apenas que o Centenário da Imigração Japonesa
poderia ser um momento propício para chamar atenção da comunidade nipobrasileira e dos brasileiros não descendentes para o fato de que as terceiras,
quartas e futuras gerações descendentes de imigrantes tinham uma outra maneira
de pensar o estar junto, e de que não descendentes também podiam fazer parte
dessa vibração estética coletiva.
Os convites feitos ao coletivo para que os artistas expusessem em eventos e
espaços institucionais no ano de 2008 acabou sendo uma forma de reconhecimento
e aceitação dessa cultura do sentimento. Outra foi o grande retorno de mídia
espontânea. Por consistir uma “pauta nova”, o trabalho dos artistas moyashis foi um
dos destaques da cobertura sobre o Centenário que saiu na imprensa em maio e
junho de 2008. Em dois meses, suas ações foram notícia em 10 matérias de
televisão (a maioria delas exibidas na Rede Globo e no canal Globonews), 2
matérias em rádio, 2 matérias de jornal, 2 matérias em revistas e cerca de 40
registros em sites e blogs. O blog do coletivo
(6),
que existia de forma independente
na plataforma blogspot, passou a integrar no início de 2008 o conjunto de blogs da
plataforma online do projeto de 100 Anos da Imigração Japonesa realizado pela
Editora Abril (hoje incorporado ao Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil).
A atuação dos moyashis é muito similar a um tipo de comportamento
detectado posteriormente pela pesquisa “Sonho Brasileiro”
(7),
realizada em 2011
pela Box1824, agência de pesquisa especializada em tendências de consumo e
comportamento jovem. A agência estuda o comportamento de jovens de 18 a 24
anos por considerarem essa faixa etária como um centro de influência para novos
comportamentos da sociedade. Um dos principais traços de comportamento
533
detectado na pesquisa é a atuação coletiva, caracterizada como conectada e não
dual e possível porque a hiperconexão pode mediar e facilitar diversas relações.
Nesse contexto, pequenas ações realizadas no cotidiano podem ganhar maior
amplitude. A Box 1824 chamou de “microrrevolução” essa nova forma de agir no
mundo que tem como principais características a quebra da hierarquia, novas
causas e atores que se espalham pelo planeta, o ganho de importância de questões
culturais, sociais e ambientais e as múltiplas atitudes que são realizadas no cotidiano
de forma independentes, mas carregam o potencial gerar um impacto mais global.
Na pesquisa de mestrado “Memórias e identidades nipo-brasileiras: cultura
pop, tecnologia e mediações”, a pesquisadora Mariany Nakamura atesta a
importância da hiperconexão – outra característica pós-moderna – no processo de
construção, produção e difusão do conteúdo produzido pelo coletivo:
Além de manifestações e ilustrações na rua, o grupo fez uso de blogs e
sites como youtube e flickr para expor, produzir e divulgar a ideia de uma
cultura japonesa renovada no Brasil (...) o nome do grupo surgiu
espontaneamente por meio de troca de e-mails e teve sua legitimação pelo
artista japonês Tadashi Endo, quando passou pelo Brasil em 2006.
(NAKAMURA, 2013, p. 78).
As novas tecnologias da informação e da comunicação tiveram fundamental
importância não só no compartilhamento do conteúdo produzido – afinal, “a
experiência vivida deve ser dita, contada e vista” (MAFFESOLI, 1990, p. 77,
tradução nossa) –, mas na captação de referências visuais pelos artistas (muitos
deles nunca tinham saído do Brasil e uma minoria conhecia o Japão “ao vivo”). O
desenrolar do movimento seria impensável sem essa possibilidade, que permitiu a
troca de processos criativos (em alguns momentos, os artistas se encontravam em
cidades, estados e países diferentes) e a descoberta de artistas que fizeram parte
de ações mais pontuais.
O espaço onde tudo acontecia era chamado de Espaço Cultural KIAI, que não
possuía CNPJ nem sede física. No entanto, tinha uma logomarca inspirada no
formato de uma espada japonesa (katana), redesenhada como se fosse uma flor, e
um propósito desde o início de sua atuação. Na definição do Espaço Cultural KIAI (o
termo foi escolhido por em japonês designar o grito proferido antes da luta, que
traduz o espírito do guerreiro), os verbos “absorvemos, criamos e trocamos” eram
usados para definir a forma de atuação do grupo e a seguinte frase explicava a não
534
existência de um espaço físico: “KIAI é um espaço cultural que não tem sede. Ele
está em nossas buscas” (8).
Logomarca do Espaço Cultural KIAI, arquivo pessoal.
Forma que exprime seu conteúdo
Havia outra expressão que sempre pontuava o discurso desses artistas:
“fazer uma releitura da cultura japonesa produzida no Brasil”. Contextualizando o
discurso e o grupo, estamos falando de um país do qual 1,5 milhão de cidadãos têm
ascendência japonesa de acordo com o governo de São Paulo (um dos quatro
estados em que mais residem descendentes de imigrantes japoneses), e do ano de
2008, em que uma centena de ações foi incluída no calendário oficial deste mesmo
estado para celebrar os 100 anos da chegada dos primeiros imigrantes japoneses
no Porto de Santos. Tanto esses dados quanto à repercussão que o Centenário da
Imigração Japonesa teve na mídia brasileira, podemos mensurar a influência deste
povo na formação multicultural do Brasil.
Já nascidos multiculturais (por serem brasileiros) e se tornando profissionais
atuantes no século 21, alguns integrantes do coletivo eram descendentes de
imigrantes japoneses. É deles que parte o desejo de releitura e renovação do que
até então era divulgado como “cultura japonesa”. Apesar de ser apresentada dessa
forma, já não poderia mais assim ser considerada por ter sofrido modificações e
adquirido novos significados a partir do momento em que os imigrantes japoneses
chegaram ao Brasil, de acordo com uma proposição feita pelo antropólogo Koichi
Mori. Em uma entrevista concedida a uma revista especial publicada pela Editora
Abril em 2008, Mori se refere à “cultura japonesa” deslocada de seu contexto original
535
como um “Japão inventado”: “quando uma cultura migra para outros países, ela é
modificada porque sofre intervenções locais e também porque resgata elementos de
distintas regiões do lugar de origem, como se fosse uma colcha de retalhos”
(MANFRINATTO, 2008, p. 8).
O termo criado por Mori foi rapidamente readaptado pelos artistas para
“Japão reinventado”, utilizado no texto de curadoria da exposição “Invasão
Tsunami”:
Há muitos países chamados Japão. Aquele tradicional, construído a partir
da memória dos imigrantes. Um país futurístico divulgado pela mídia. O
Japão otaku que circula na internet. Um país zen, organizado, fofo, kawaii,
minimalista e colorido. Uma cultura em que imperam emoções fortes, porém
contidas e que resultam na beleza suprema quando são expressadas pela
arte.
Perguntamos a 38 artistas qual o Japão – ou qual desses países – eles
carregavam dentro deles. A resposta está nessa exposição, que reúne
olhares de brasileiros – descendentes ou não de japoneses – e de
japoneses nômades, com quem cruzamos pelo mundo afora e que
carregam o mesmo espírito daqueles que chegaram no Brasil há cem anos.
Aqui temos um Japão reinventado a partir das imagens trazidas e fincadas
pelos imigrantes, das artes tradicionais por nós reverenciadas, de
referências de revistas, internet, mangás, cinema, de estereótipos e
símbolos. Elementos que são revistos, questionados, reapropriados e
homenageados pelos moyashis, coletivo de artistas que existe desde 2006.
Invadimos o Centenário da Imigração Japonesa com esta proposta, a de
renovar a cultura japonesa no Brasil. (9)
A fusão de elementos tradicionais e contemporâneos da “cultura japonesa” na
produção artística dos moyashis não se trata de uma simples cópia do estereótipo
“tradição-modernidade” comumente – e superficialmente – associado ao Japão.
Quando feita por brasileiros, ela consiste em um reconhecimento de formas e
conceitos que fazem parte de sua formação cultural. Quanto mais íntimo o contato
que tiveram com a “cultura japonesa” – alguns dos integrantes do coletivo eram
descendentes de imigrantes e muitos dos que não eram já haviam tido uma
experiência de aprendizado da arte tradicional japonesa: cerâmica, dança ou artes
marciais –, mais suas criações se aproximavam da essência do que pretendiam
recriar e utilizá-la na composição de algo novo. A proximidade entre a essência e o
que a representa também é algo pertinente às formações de comunidades – essa
categoria de análise foi determinada como formismo por Michel Maffesoli e consiste
536
na “estreita conexão entre o conteúdo e o que ele contém, entre a forma interior e a
força exterior” (1990, p. 105, tradução nossa).
Ao explicar esta categoria, o sociólogo faz uma aproximação com o conceito
japonês de kata, que pode ser traduzido como um “modelo” ou “template”. O termo é
bastante utilizado em artes marciais para definir uma série de movimentos prédefinidos que representam um combate real. O jornalista francês Philippe Pons,
autor de diversos livros sobre o Japão, explica que o kata não se trata de uma
simples operação de imitação, mas da representação de um processo. Em seu livro
De Edo à Tóquio, ele (1998) define a representação como a quintessência do que
ela representa. Ele ainda completa que “em matéria de comportamento, o domínio
da forma abre caminho para a aquisição da substância.” (PONS, 1998, PP.148-149)
Maffesoli se utiliza do formismo para explicar a coexistência entre o arcaico e
o novo nas comunidades pós-modernas. Ele lança a sociologia do imaginário,
proposta pelo filósofo francês Gilbert Durand, para analisar esse processo de
representação e resgata o que Durand definiu como dialética do retorno (DURAND,
1964, p. 223). No livro As estruturas antropológicas do imaginário, Durand verifica o
resgate de referências do passado para a composição da essência da construção de
novos modelos em que a ênfase se dá pela estética. As imagens antigas e arcaicas,
consideradas representações, consistem na essência de algo. Ao serem
metamorfoseadas, transformam-se em novas imagens e passam a ser reveladoras
de situações atuais que introduzem novos modelos.
Pode-se observar que diversas características da estética, da cultura e da
filosofia japonesa aparecem de forma transversal ao trabalho do coletivo de artistas
moyashis em diversas etapas, desde sua formação até a difusão de conteúdo. As
características existem desde os conceitos que inspiram o nome do grupo e razão
de existir (o termo shoshin, usado no zen budismo para designar o principiante, se
relaciona com os brotos de feijão e define a postura dos artistas de não se fixarem
em expressões culturais do passado, mas permanecerem em constante processo
evolutivo no acompanhamento de tendências), passando por símbolos da cultura
japonesa que se transformaram em temas para as séries de ilustrações (tsunami,
flor de cerejeira, arroz e ponte), referências diversas (artistas, obras, técnicas de
produção), imagens criadas e categorias de análise da formação de comunidades.
537
Além do formismo, o hibridismo também se encontra presente na própria construção
cultural do Japão.
O físico japonês Yukawa Hideki, no artigo Tendência moderna da civilização
ocidental e particularidades culturais do Japão observa que o Japão não assimilou
todas as influências estrangeiras com as quais teve contato, mas apenas elementos
que são familiares ao “clima japonês” (YUKAWA, 1967, p. 57, tradução nossa). Os
fragmentos de outras culturas ainda foram reeditados criativamente ao estilo japonês
em sua incorporação. Até porque os japoneses são muito mais “importadores de
ideias do que de produtos” na visão de Donald Richie (RICHIE, 2000, p. 37, tradução
nossa), um dos mais importantes especialistas em Japão contemporâneo.
Algumas ilustrações produzidas para as séries foram tão emblemáticas na
composição de imagens que conseguiram associar conceitos, técnicas e símbolos
tanto brasileiros quanto japoneses, como a gueixa criada pelo ilustrador Carlo
Giovani a partir de uma fotografia de uma banana para a série “Tsunami” e os itens
de restaurantes japoneses reunidos pelo quadrinista Gil Tokio para a série “Pontes”,
associados a elementos típicos brasileiros como “pinga”, “fita isolante” e “arroz com
feijão”.
Gueixa criada pelo ilustrador Carlo Giovani para a série inaugural “Tsunami”, realizada em 2006 e
exibida no Sarau da Santos, arquivo pessoal.
538
Ilustração do quadrinista Gil Tokio feita para a série “Pontes”, realizada em 2007 em comemoração
aos 99 anos da imigração japonesa no Brasil, arquivo pessoal.
De um modo geral, as produções do coletivo revelaram ter grande influência
do mangá, do pop e de um erotismo que se conecta a produções do artista
contemporâneo japonês Makoto Aida. Padronagens tradicionais e elementos da
tatuagem foram utilizados para compor texturas, construindo uma linguagem que
também se beneficiou da instantaneidade da poesia haikai. No processo criativo, os
artistas absorviam materiais e técnicas de inspiração japonesa, como nanquim
aquarelado, carimbos, xilogravura e uso de papéis especiais. As produções podiam
oscilar entre a linguagem sintética e o excesso de detalhes de ornamentos.
Por
seguirem
sentimentos,
desejos
e
paixões,
as
comunidades
contemporâneas são consideradas fluidas, com contornos porosos, e o tempo de
duração de suas existências é indeterminado. As tribos se organizam de maneiras
mais ou menos efêmeras, possuem uma temporalidade única e o calor da
festividade, que segue o prazer do instante como se ele fosse eterno:
O essencial é o estar junto suscitado pela identificação. O objeto sobre o
qual se tem fascinação pode se saturar ou perder seu poder de imantação;
ele será abandonado. No entanto, a estrutura perdura – o poder será
atribuído a um outro objeto que por sua vez terá sua função de agregação.
(MAFFESOLI, 1990, p. 270, tradução nossa).
Terminado o Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, diversos fatores de
ordem pessoal e profissional não permitiram a continuação de uma produção
coletiva pelos moyashis. As diversas identificações discutidas e suscitadas
provocaram ressonâncias em outros descendentes de imigrantes, artistas, fãs do
Japão, no público em geral, independentemente de serem ou não descendentes de
imigrantes japoneses. Da mesma forma como foram inspirados por diversas
comunidades, os moyashis passaram a inspirar outras que já existiam e que foram
reforçadas e também novos brotos, prontos para se expressarem em processos
cocriativos, virtuais, comunitários.
539
Tudo o que restou / Dos sonhos dos guerreiros / Capim de verão (10)
Matsuo Basho
Notas
(1) Moyashi é um alimento muito usado na culinária japonesa e também no Brasil, onde é conhecido
como broto de feijão. O grupo escolheu este nome por ser um elemento comum às duas culturas. Na japonesa,
está nas refeições e, na brasileira, é apresentado já na escola, quando crianças aprendem a cultivar brotos de
feijão. O símbolo do broto foi escolhido por ser uma alusão ao termo shoshin, que no zen budismo é usado para
designar o espírito de principiante em evolução constante.
(2) É importante definir o filósofo Zygmunt Bauman como europeu nesse artigo, pois ele inicia o livro
citado com uma reflexão sobre o conceito de identidade exatamente a partir de sua própria biografia. Nascido
polonês, ele foi professor na Universidade de Varsóvia até 1968, quando foi impedido pelo Partido Comunista de
lecionar e mudou-se para a Inglaterra. Apesar de ter se naturalizado britânico, Bauman sempre se sentiu
estrangeiro nesse país. Quando foi receber o título de doutor honoris causa pela Universidade Charles, em
Praga, escolheu o hino da Europa para ser tocada, pois não se sentia representado pelo hino de nenhum dos
países citados.
(3) Na versão original, em francês, Michel Maffesoli, ao falar de pessoa, faz um paralelo a palavra
persona. O sociólogo apropria-se desta palavra do latim para designar um tipo de máscara feita para ressoar a
voz de um ator. O termo foi apropriado pelo teatro para se referir a um personagem vivido por um ator.
(4) O termo alemão zeitgeist é usado para se referir ao conjunto do clima intelectual e cultural do mundo
em uma determinada época. É comumente traduzido como “espírito da época” ou “espírito do tempo”.
(5) Link do vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=fowvA0-bMUs&list=HL1396312075.
(6) Parte do blog ainda pode ser lida no link http://www.japao100.com.br/blog_moyashis.
(7) A pesquisa encontra-se disponível no site http://osonhobrasileiro.com.br.
(8) Retirado dos arquivos pessoais da autora do artigo.
(9) Retirado dos arquivos pessoais da autora do artigo.
(10) Em japonês, natsugusa ya tsuwamonodomo ga yume no ato. O interessante é que, nesta poesia, a
palavra yume tem o sentido dúbio de sonho e ambição, pois o capim de verão, por ser alto e espesso, tem o
significado de crescimento vigoroso.
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1964,
p. 223.
GREINER, Christine; SOUZA, Marco (Orgs.). Imagens do Japão: pesquisas, intervenções
poéticas, provocações. São Paulo: Annablume, 2011.
HORIGOSHI, Erika. O Japão sob novos olhares. Jornal Nippo Brasil, São Paulo, 13 a 19
jun. 2007. Caderno Zashi, pp. 12-13.
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1993.
MAFFESOLI, MICHEL. Aux creux des apparences: pour une éthique de l’esthétique. Paris:
Plon, 1990.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de
massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
MAFFESOLI, MICHEL. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro:
Atlântica, 2004.
MANFRINATTO, Ana. Sorry, Liberdade. Especial 100 anos da imigração japonesa: as
surpreendentes histórias do povo que ajudou a mudar o Brasil. São Paulo: Abril, 2008.
NAKAMURA, Mariany Toriyama. Memória e identidades nipo-brasileiras: cultura pop,
tecnologia e mediações. Ano. Dissertação (Mestrado em Ciências da Informação) – Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. Tese cedida
pela autora em 2013.
PONS, Philippe. D’Edo à Tokyo. Paris: Gallimard, 1998.
RICHIE, Donald. Tokyo, extravagante et humaine. Paris: Autrement, 2000.
540
YUKAWA, Hideki. Modern trend of Western civilization and cultural particularities in Japan.
In: MOORE, Charles A. The Japanese mind: essentials of Japanese philosophy and culture.
Honolulu: University of Hawaii, 1967.
Erika Kobayashi
é jornalista e socióloga, foi uma das idealizadoras do coletivo de artistas moyashis. Formouse em Comunicação Social – Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA-USP) e obteve o mestrado em Sociologia das Sociedades
Contemporâneas pela Universidade Paris Descartes (Paris V – Sorbonne) com a pesquisa
“Mulheres japonesas – do interior ao exterior”.
541
TRADIÇÃO E MODERNISMO EUROPEU E CHINÊS EM RETRATOS DE FAN
TCHUNPI: UMA INTRODUÇÃO
Cíntia Mariza do Amaral Moreira - UFRJ
RESUMO: A artista chinesa Fan Tchunpi (1998-1986) frequentou entre os anos de 1910 e
1920 a ‘Academie Julian’ (Paris), a ‘Ecole de Beaux Arts’ (Bordeaux) e o atelier de Humbert
(Paris) e sua formação inicial foi baseada na tradição acadêmica europeia francesa. Criticar
a tradição era uma prática comum naquela época, no entanto a artista preferia representar o
mundo de modo realista, mesmo quando em 1926 realizou estudos com Besnard (18491934), pintor com influência impressionista e aberto aos novos movimentos do início do
século XX. A artista completou a sua formação na China a partir de 1930 ao estudar com o
mestre Qi Baishi (1864-1957) e com os irmãos Gao Jianfu (1879-1951) e Gao Qifeng (18891935), fundadores da Escola Lingnan, voltada para o resgate da tradição chinesa como
distintivo de identidade expressiva. Dali para frente Fan Tchunpi adquiriu intimidade com o
uso da cor da pintura chinesa sobre a seda e o papel, assim como com a caligrafia e a
poesia, antiga, moderna e contemporânea, através do contato com obras da coleção
particular constituída em conjunto com seu marido. Na base da formação da artista de um
lado está a tradição e o modernismo da cultura europeia, de outro a pintura chinesa antiga,
moderna e contemporânea. Desejamos mostrar como isto emerge em alguns de seus
retratos.
Palavras-chave: Fan Tchunpi. modernismo e tradição. pintura chinesa. arte chinês. arte
oriental.
ABSTRACT: Chinese artist Fan Tchunpi (1998-1986) attended between the years 1910 and
1920 Academie Julian ( Paris) , the Ecole de Beaux Arts ( Bordeaux ) and Humbert Atelier
( Paris) and his initial training was based on the French European academic tradition.
Criticizing the tradition was a common practice at that time, however, the artist preferred to
represent the world realistically, even when conducted studies in 1926 with Besnard (18491934), painter with Impressionist influence and open to new movements of the early
twentieth century. The artist completed his training in China in 1930 to study with the master
Qi Baishi (1864-1957) and the brothers Gao Jianfu (1879-1951) and Gao Qifeng (1889-1935),
founders of the Lingnan School, focused to the rescue of Chinese tradition as expressive
identity badge. Henceforth Fan Tchunpi acquired intimacy with the use of color in Chinese
painting on silk and paper, as well as calligraphy and poetry, ancient, modern and
contemporary, through contact with private collection of works created jointly with her
husband On the basis of the formation of the artist one side is the tradition and the
modernism of European culture, on the other, ancient, modern and contemporary Chinese
painting. We want to show how it emerges in some of his portraits.
Keywords: Fan Tchunpi. Modernism and tradition. Chinese painting, Chinese art, oriental art.
Inicial
O início da formação artística de Fan Tchunpi (1898-1986) tem que ser
pensado na perspectiva histórica do mundo cultural chinês, da primeira década do
século XX, como refere Brentini1. No momento em que a família de Fan Tchunppi se
542
muda para a França, havia no mundo letrado chinês, um grande interesse cultural
pelo Ocidente.
Depois de radicados na França para estudar, alguns jovens optavam pelo
estudo artístico. O primeiro grupo de artistas chineses em formação na França
interessava-se em adquirir conhecimento prático, em ter intimidade com a matriz das
técnicas artísticas ocidentais.
A geração posterior de modo diferente, faria estágio no Japão, onde se podia
travar um primeiro contato com o mundo Ocidental, antes de alcançar a Europa.
Estes se abririam desde cedo às inovações estilísticas modernas.
O caminho de Fan Tchunpi foi singular. Nos primeiros anos de sua vida viveu
no seio de um ambiente letrado, de prósperos comerciantes do chá. Chegou à Paris
em 1912 com a família, a qual ao final do ano se estabeleceu em Montagis onde a
artista estudou chinês clássico com o educador chinês Cai Yuanpei (1868-1940),
conhecido por sua avaliação crítica da cultura chinesa e propósito em efetuar uma
síntese entre o pensamento chinês e o ocidental2. Com ele a artista desenvolveu a
“faculdade de exprimir seus sentimentos sob a forma de poema clássico a na arte da
caligrafia com pincel’, como revelou seu filho Chunglu Tsen3".
Na França a artista acompanhou em regime de internato o liceu feminino em
Montagis e em Bordeaux, onde a família fixou residência em 1914, por causa da
guerra.
Escolheu estudar arte e como era natural iniciou sua formação em contato
com a arte ocidental. Deste modo estudou com mestres da tradição artística
francesa, antes de entrar em contato com mestres da tradição chinesa.
A formação francesa
Em 1917, durante a guerra, hospedou-se por três meses num convento, a fim
de se vincular à Academia Julian, a maior academia privada de Paris, com a
intenção de se preparar para o exame da Ecole de Beaux Arts de Bordeaux. Bem
sucedida, ali se diplomou após ter sido aprovada no concurso anual de desenho de
modelo vivo, em 1920.
543
Com o fim da guerra retornou à Paris no mesmo ano e se vinculou como
ouvinte ao atelier de Ferdinad Humbert, na ‘Ecole de Beaux Arts de Paris’.
Em 1924 a aceitação da tela a óleo ‘La Joueuse de flûte’ pelo Salon des
Artistes Français tornou-a a primeira mulher ‘do extremo oriente’ a ali expor,
segundo nota crítica no periódico da época.
FIG. 1.
Les Analles politiques et literaires,
nº 2153, de 28 set 1924, p.333.
544
FIG 2.
“La Joueuse de flûte”, 1924.
Fan Tchunpi
Assinado “Fan Tchunpi 1924” e em
chinês “Tchunpi”.
Óleo sobre tela.
H: 73,1 cm. L: 59,9 cm.
Em 1925 a artista volta a expor no mesmo salão e devido ao reconhecimento
de seu talento na França foi convidada a ensinar pintura a óleo no College Zhixin,
Cantão. Ainda em 1925 participou da exposição organizada pelos irmãos Gao para
angariar fundos para a construção de um memorial em homenagem a Sun Yatsen4.
A artista retorna a Paris em 1926, ocasião em que inicia estudos no Atelier de
Albert Besnard, pintor de formação na tradição acadêmica, mas de expressão
impressionista naquele momento.
FanTchunpi expõe quatro retratos a óleo (até o momento considerados
perdidos) no Salon de Tuileries de 1928, do qual ela foi eleita membro.
Aos trinta anos tinha alcançado o domínio da estética acadêmica ocidental,
sabia como utilizar o óleo para se expressar, valia-se do estudo do tipo, do tema,
numa composição, bem como fora iniciada na arte da cópia e da pintura ao ar livre.
545
As estratégias da técnica acadêmica tradicional de fins do século XIX lhe eram caras,
pois seu objetivo, como de resto o dos demais artistas chineses com passagem pela
Europa naquele período, era representar o mundo de modo realista.
O contato com o modernismo europeu trouxe-lhe a possibilidade de abertura
à experimentação expressiva quando de sua permanência posterior na China, onde
se dedicou à renovação da arte chinesa.
A formação chinesa
Ao retornar a Cantão em 1930 Fan Tchunpi estreitou o contato com os irmãos
Gao, “dois dos mais influentes artistas da escola de Lingnan, os quais também foram
pioneiros no uso das técnicas ocidentais para reformular a pintura tradicional
[chinesa]” como atesta Kao Mayching, (1978)5.
Como quer o historiador da arte e arquiteto Tao Ho (1978)6 artistas chineses
em produção na década de 1920 até o início dos anos 1930 muito se esforçaram na
direção de renovar a arte chinesa, a qual havia estabelecido princípios sólidos por
mais de mil anos.
Ao seguir a tradição chinesa de pintura que se estende até o século XIX,
alguns artistas das duas primeiras décadas do século XX primeiro valorizarem a
cópia de mestres antigos para obter a maestria, depois se permitiram dialogar com
os ares da modernidade, ensina o arquiteto. Este foi o caminho trilhado por Qi Bai
Shi, com o qual Fan Tchunpi entrará em contato na década de 1940. Já aqueles
formados primeiro na tradição artística ocidental, ao retornarem para a China
complementaram seus estudos com o contato com a tradição artística e filosófica do
país de origem. Este foi o caso de Fan Tchunpi.
Alinhada com as premissas de seu treinamento acadêmico na França, a
artista se recusou a copiar os mestres antigos, a fim de obter a técnica, antes ela
persistiu estudando a natureza. No entanto sua recusa pela cópia não a fez ignorar a
pintura tradicional chinesa. Por esta época Fan Tchumpi em conjunto com seu
marido, deram início à coleção familiar de obras artísticas chinesas, muitas de
pintura chinesa tradicional. Esta coleção, a qual em parte hoje se abriga no Baur
546
Museum de Genebra e no Museum of Fine Art Boston, provavelmente favoreceu a
intimidade de Tchunpi com os mestres da pintura tradicional chinesa. Com eles se
aproximou tanto da técnica no uso do pincel, do nanquim e da aquarela, quanto das
escolhas da tradição ao se aproximar do modo chinês de expressar os temas:
animais, flores, paisagens e retratos.
Ainda segundo Tao Ho, durante os anos trinta Fan Tchunpi não apenas utiliza
atributos da tradição chinesa numa pintura com características ocidentais, como o
fazia até então. Ela começa a lançar mão do uso da perspectiva ocidental e do
desenho, em pinturas com características chinesas e das técnicas chinesas da
aquarela e do pincel nas telas a óleo. Em retratos estas duas tendências ficam
visíveis.
A obra a seguir, exposta em 2013 na exposição “Between Tradition and
modernity: the art of Fan Tchunpi no Hood Museum of Art7, faz uso do pincel na
aquarela e em ‘sumi ink’, sobre o desenho e foi executada em papel chinês".
Observamos a aproximação com a China na escolha do tema, o cotidiano do
homem comum habitante de pequenas cidades próximas do campo: um pedinte
cego acompanhado de uma criança.
O uso do desenho prévio sobressai na esquematização das duas figuras
humanas e em outros objetos da cena como a bengala, o cajado e a flauta do
pedinte cego. Observamos a correta anatomia das figuras, apreendida pela artista
na França. O detalhe e a elaboração minuciosa da profundidade estão presentes no
rosto dos personagens. Na roupa do menino é expressivo o uso da cor na camisa,
na calça e na sapatilha. O cromatismo audacioso, quase abstrato, é provavelmente
fruto de uma combinação entre os ensinamentos do mestre Besnard e as técnicas
utilizadas pelos irmãos Gao e aprendidas da pintura tradicional chinesa. Como em
muitas representações dos mestres chineses tradicionais, o fundo embora esboçado
no chão e na relva na parte inferior da imagem, permanece vazio dali para cima,
oferecendo uma ambiência de abstração para a obra.
547
FIG 3. Fan Tchunpi
“Blind Beggar with Child”, 1936.
Aquarela e ‘sumi ink’ sobre lápis em fino ‘off-white Chinese Paper’.
Coleção da família da artista. Foto de Matt Hamilton.
Em 1938 a casa editora do Shangai Commercial Press publica um volume a
cores das obras de Fan Tchunpi com uma introdução de Cai Yuanpei8. Isto
demonstra a abertura para a recepção de suas obras na China.
Após a morte de seu marido num atentado em 1939, a artista deixa a China
pelo Japão. Durante a estada na China no verão de 1943 a artista começa a pintar
retratos à maneira chinesa, segundo Brentini9. Reserva a pintura a óleo
preferencialmente para as paisagens. No entanto quando utiliza a pintura a óleo em
retratos, o faz segundo a maneira chinesa. Isto fica claro na obra a seguir, atribuída
a Fan Tchunpi.
548
FIG 4. Fan Tchunpi 10 incenso durante a noite, 1957. Óleo sobre tela. H: 92 cm. L: 71,5 cm.
Esta obra apresenta possivelmente o mestre zen Susuki, residente na
Califórnia e amigo da artista. O mestre com vestes negras está a trabalhar, olhando
atentamente para um texto de meditação. A cena é ambientada num quarto simples,
no qual existem materiais de leitura e um incensário de jade banco, emitindo rajadas
de sândalo.
Aqui novamente aflora o contraste entre a face e as mãos do mestre zen,
representadas em detalhe, segundo a técnica apreendida na França, com o uso dos
volumes no desenho e na representação do corpo humano, contrastando com a
resolução das vestes em preto, feitas à maneira chinesa de trabalhar. As pinceladas
a óleo, imitam a aquarela, de modo expressionista, quase abstrato. No fundo
transpareçam tijolos de uma parede da qual o estuque se desprendeu, o que adorna
a figura com um ar realista. As partes bem rebocadas da parede, envoltas pela
fumaça do incensário oferecem à cena, ao mesmo tempo um ar de suspensão, a
qual nos faz abstrair da realidade.
549
A partir de 1957 a artista passa a viver em Boston com um de seus filhos.
Depois irá expor em varios países, demonstrando ter sua obra alcançado recepção
internacional. Ainda em vida, a artista fará exposição no extremo oriente, em Tóquio,
Kioto e Taipé e Hong Kong em 1966 e novamente Pequin e Hong Kong em 1978;
Nos Estados Unidos irá expor em Boston, 1980/81 onde tornará pública uma parte
da coleção particular de obras de pintura chinesa tradicional, a qual cultivou com seu
marido; Na Europa, na França, a artista fará uma exposição retrospectiva em 1984,
no Musée Cernuchi em Paris; na América do Sul, no ano 1969 Fan Tchunpi irá expor
em Buenos Aires e no Rio de Janeiro.
Walmir Waiala foi testemunha da exposição carioca, dando notícia dela na
seção Artes da Semana. Caderno B do Jornal do Brasil. JB.02.11.1969.p.8.
Caderno B do Jornal do Brasil. JB.02.11.1969.p.8.
Duas esposições recentes a destacar: 2002, no Museu Baur em Genebra,
Suiça e em 2013, no Hood Museum of Art, New Hanpshire, USA.
Final
O caminho de Fan Tchoupi vai à contracorrente da tendência chinesa de
alcançar o ocidente com óculos ocidentais. Fan Tchunpi foi muito criticada por seus
contemporâneos franceses e chineses.
Os primeiros a reprovavam por não estar aberta às inovações da arte
moderna das vanguardas históricas ocidentais europeias. Esqueciam o fato de a
artista trazer consigo a mesma demanda dos artistas chineses chegados à Europa
na década de 1910: buscar no estudo da tradição ocidental, aquilo que eles
consideravam uma lacuna na formação artística chinesa: o conhecimento da
perspectiva, o aprendizado do desenho de observação ao ar livre, a prática das
“academias” e modelo vivo, em especial o conhecimento do corpo humano e como
550
representá-lo a partir do nu, até então na China considerado apenas do ponto de
vista médico ou erótico.
Os últimos a consideravam por demais restrita à tradição chinesa e pouco
aberta à renovação moderna que a segunda geração de artistas provenientes da
China, com estagio no Japão, antes de chegar à Europa estava afeita.
Como revela seu filho, ao fim de sua vida a artista abandona a pintura a óleo
em favor da técnica chinesa. Para redescobrir a China, ele prossegue, foi necessário
reaprender pacientemente, valer-se de tenacidade e suportar todas as críticas. Para
ele:
Se a viagem para o Ocidente é a conquista do progresso e da razão, este
raro retorno parece revelar algo diferente. Talvez o da arte, com certeza o
da beleza. Para Fan Thunpi e seu marido o que a China oferecia era
perfeitamente tangível: o criativo movimento do pincel, o contato sensual
com uma pedra rara, as fidelidades duráveis e, enfim, uma clara consciência
11
do próprio lugar no curso universal das coisas.
Se a trajetória artística de Fan Tchunpi foi de expressão intercultural, entre
ocidente e oriente, sua escolha poética dos últimos anos de vida foi pela
identificação com o país de origem. Isto de certo modo favoreceu ter a artista
adquirido aceitação internacional e suas obras hoje serem de ampla recepção de
norte a sul e de leste a oeste.
Notas
1. Dunand, 2002, p.50.
2. O educador Cai Yuanpei estudou psicologia, filosofia e história na Universidade de Leipzig, na
Alemanha, na década de 1900. Depois de uma estada na China onde atuou no ministério de Educação teve
passagem pela França em 1912.
3. Dunand, 2002, p.18.
4. Dunand, 2002, p. 51.
5. Kao Mayching é pesquisadora senior de História da Arte e curadora da Galeria de Arte da
Universidade de Hong Kong. Dedica-se ao estudo da arte chinesa moderna e contemporânea.
6. Tao Ho nasceu em Shangai, estudou arquitetura na Harvard University, foi assistente de Walter
Gropius na Bauhaus. Atuou como professor e arquiteto em Hong Kong desde 1964. Foi autor do projeto do Hong
Kong Arts Center em 1977.
7. Hood Museum of Art faz parte da Darmouth College está localizado em New Hampshire USA.
8. Dunand, 2002, p.44.
9. Dunand, 2002, p.45.
10. Obra atribuída a Fan Tchunpi e possivelmente proveniente de um parente da artista. Disponível em
busca com o nome da artista em chinês, seguido da data da obra: \ B m 1957 e em
http://www.council.com.cn/XinWen/detail.php?nid=1579 (acessado opção de língua: inglês em 29/03/2014).
11. Dunand, 2002, p. 34.
551
Referências
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Loong Galleries, Hong Kong Arts Centre, Fung Ping Shan Museum, University of Hong
Kong.Foreword: Rayson Huang, the Hon, Preface: Alan Wong, Introduction: Tao Ho, A Few
Remarks on Fan Thun-pi’s Retrospective Exhibition: Chuang Shen, Fan Tchun-Pi and
Twentieth-century Chinese Painting: Mayching Kao,On the works of Fan Tchunpi: Tsai YuenPai, René Grousset Hong Kong: Department of Fine Arts of the University of Hong Kong and
the Hong Kong Arts Centre / Department of Fine Arts, 1978.
BRENTINI, Sophie P. Wirth. An insider’s experience of a cross cultural exhibition: an
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partial fulfilment of the requirements for the degree of Master of Arts in the Faculty of
Graduate Studies, Department of curriculum Studies. University of British Collumbia.
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DUNAND, Frank (Ed.).The pavilion of marital harmony, Chinese Printing and calligraphy
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Professor'Jason'Kuo,'Department'of'Art'History'and'Archaeology.'Advisory'Committee:'
Professor'Jason'Kuo,'Chair,'Professor'Sandy'Kita,'Professor'Marie'Spiro.
KLARK, Jonh. Modern and contemporary Asian Art: a working bibliography. 2011 version.
Cíntia Moreira
Designer, Doutora em Educação, cursa o Doutorado em Artes Visuais EBA, UFRJ onde
estuda o livro de artista. Atualmente é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Imaginata
(EBA/UFRJ) e do Grupo de Estudos em Arte Oriental GEAO (EBA/UFRJ). Tem apresentado
comunicações, publicado artigos e lecionado em universidades públicas e particulares nos
campos em que atua.
552
SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES JUNIORES
553
A IMAGEM DA MÁFIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS TATUAGENS DA YAKUZA
Karina Ayumi Ekami Takiguti - UNIFESP
RESUMO: A pesquisa analisou as possíveis influências visuais que levaram os membros da
máfia japonesa Yakuza a selecionarem o repertório de suas tatuagens. Com a verificação
da recorrência das principais iconografias encontradas como dragões, peônias e flores de
cerejeira, a pesquisa se concentrou em mostrar a relevância dos designs das tatuagens dos
yakuzas em diálogo com os padrões tradicionais da arte japonesa no ukiyo-e e no baralho
hanafuda. A busca pelas fontes da iconografia revelou a circulação e a transferência de
imagens entre a China e o Japão, aspecto que se tornou latente após a grande verificação
de elementos chineses como o dragão e a peônia presentes nas tatuagens dos gângsteres.
Desse modo, pôde-se concluir, a partir da iconografia das tatuagens da Yakuza, a conexão
entre a estética japonesa que possui grande influência da China.
Palavras-chave: tatuagem, xilogravura ukiyo-e, yakuza.
ABSTRACT: The research analyzed possible visual influences that led members of
Japanese mafia Yakuza selecting the repertoire of their tattoos. With the discovery of
occurrence of main iconographies like dragons, peonies and cherry blossoms, the research
focused on showing the designs relevance of yakuza tattoos in dialogue with traditional
patterns of Japanese art in ukiyo-e and hanafuda deck. The search for the iconography
sources revealed the circulation and visual transference between China and Japan aspect
that became evident after frequent viewing of Chinese elements like dragon and peony in
yakuza tattoos. Thereby, we can conclude from the iconography of yakuza tattoos the
connection between Japanese aesthetic that has great Chinese influence.
Keywords: tattoo, woodblock print ukiyo-e, yakuza.
A modificação corporal é especialmente importante entre os membros da
máfia japonesa. De acordo com David Kaplan – editor representante da equipe
investigativa do U.S. News & World Report – e Alec Dubro – jornalista investigativo
residente em Washington (2003, p. 186), muitos membros da Yakuza ainda insistem
em fazer a tradicional tatuagem com o método tebori que utiliza uma haste de
bambu com uma série de agulhas na ponta. O projeto completo pode levar meses e,
quando concluído, pode custar mais de cinco mil dólares. Um estudo realizado por
pesquisadores japoneses do crime organizado (Fumio Mugishima, Kanehiro Hoshino
e Kenji Kiyonaga), em 1971, revelou que um grande número de yakuzas (73% dos
membros de grupos violentos) ainda está se submetendo à realização de tatuagens
(LEBRA, 1976, p. 185-186).
554
No Japão há aproximadamente 110.000 membros ativos divididos em 2.500
grupos (POYSDEM; BRATT, 2006, p. 92). Entre algumas infrações relacionadas ao
crime organizado, a máfia japonesa está envolvida com o tráfico de drogas, mercado
de armas, prostituição, jogos de azar e, inclusive, atividades legalizadas. A Yakuza
está implantada seguramente no mundo corporativo. Sua influência se expandiu
além das fronteiras japonesas para outros continentes como a América. A máfia
japonesa tem estabelecido alianças com as Tríades Chinesas, as máfias Siciliana e
Americana, os cartéis de drogas da Colômbia, as esquadras Jamaicanas e outras
organizações criminais ao redor do mundo (POYDEM; BRATT, 2006, p. 89-93).
A máfia japonesa é uma das mais reconhecidas por ter tatuagens em seus
membros. Essa sofisticada modificação corporal que trouxe popularidade aos
grandes mestres tatuadores e marcou solenemente os corpos dos gângsteres da
Yakuza já foi utilizada com diversas finalidades, além de ter assumido um design
menos exuberante nos primeiros tempos de sua história. Para compreendermos os
motivos de a máfia incorporar essa modificação corporal, assim como a estética com
elementos tradicionais japoneses, é imprescindível conhecer o contexto em que
essa manifestação visual se desenvolveu.
Pode-se dizer que um dos propósitos que tiveram maior impacto ao longo da
história da tatuagem no Japão foi o seu uso como forma de punição dos criminosos.
Para os chineses a tatuagem era vista como um sinal de barbárie e usavam-na
como forma de punição após o século VI. Nesse período, o governo japonês
recebeu grande influência da cultura da China a ponto de ter como consequência a
desaprovação da tatuagem oficialmente (RICHIE, 1989, p. 11-12). Sendo assim, as
tatuagens começaram a ser destinadas a punir criminosos ou intocáveis no Japão.
Foi dentro desse contexto que começou a ser delineada a relação entre a tattoo e a
máfia japonesa Yakuza.
Originalmente a tatuagem nos primórdios da Yakuza surgiu como forma de
punição entre os bakutos, considerados os ancestrais da máfia no período medieval
(KAPLAN & DUBRO, 2003, p. 7). Além do envolvimento com jogos de azar no
submundo do crime, os bakutos fizeram o primeiro uso da palavra Yakuza 1 e
implantaram o costume de cortar os dedos (yubitsume) quando membros
quebravam as regras da gangue. A tatuagem na máfia japonesa foi socialmente
555
utilizada pelas autoridades como forma de isolamento dos criminosos. Eles
geralmente eram tatuados com um bracelete negro em volta do braço por cada
punição (Ibidem, 2003, p. 14).
No início do século XVII, as tatuagens utilizadas no âmbito criminal possuíam
um design bastante simples. Nesse período, foi desenvolvido um elaborado código
de marcas de punição. Donald Richie (1989, p. 12) exemplifica alguns deles: “Na
região de Tama, um criminoso possuía o ideograma “cachorro” tatuado em sua
testa; em Kyoto uma dupla barra no braço superior; na proximidade de Nara, uma
linha dupla circulando o bíceps do braço direito [...]”. Desse modo, era possível
identificar tanto o criminoso quanto a sua localidade. É importante ressaltar que essa
forma de punição existia quando não havia nada mais apropriado. Para a sociedade
japonesa da época, a tatuagem era algo pior do que a prisão ou a tortura física
extrema, pois poderia acarretar o isolamento social do indivíduo por toda a sua vida.
Apesar dessa forte relação com o crime, uma exuberante tradição da
tatuagem japonesa continuou a florescer mesmo com os esforços do governo para a
sua supressão. No século XVIII, a tatuagem figurativa teve seu esplendor em
conexão com a cultura popular de Edo (GILBERT, 2000, p. 78). Designs injetados na
pele que cobriam o corpo todo se tornaram populares tanto entre os jogadores de
azar quanto trabalhadores que apresentavam o corpo exposto como os bombeiros e
os carregadores de palanquim. As marcas utilizadas em criminosos e intocáveis
foram sendo abandonadas. Não significa, entretanto, que essa conexão foi
esquecida. Em uma tentativa para explicar a transformação da tatuagem criminal
para a tatuagem como adorno, pesquisadores indicam que poderia ser uma maneira
que os criminosos encontraram para esconderem seus sinais de estigma com a
sobreposição de outras imagens2.
É também nesse período que as tatuagens figurativas da Yakuza começaram
a surgir. As imagens geralmente cobrem uma grande extensão do corpo (dos
ombros até os joelhos) e possuem um vasto acervo visual que combina diversos
elementos da natureza espalhados sobre a pele (flores, folhas) com figuras no plano
de fundo (nuvens, ondas, raios) e uma figura principal que pode ser da mitologia, um
herói folclórico ou um animal emblemático.
556
Para encontrar os temas mais recorrentes nas tatuagens dos yakuzas, foi
realizado um levantamento iconográfico, no arco temporal do século XX ao XXI, em
mídias nacionais e internacionais3, banco digital de fotógrafos e fotojornalistas4 e
páginas de armazenamento de imagens5. É necessário pontuar que as fotografias
encontradas para a pesquisa são um recorte de olhar trazido pela mídia e por
fotógrafos estrangeiros. Portanto, existe a possibilidade dos símbolos mais
recorrentes nessas imagens não corresponderem de fato à realidade dos yakuzas.
Sendo assim, o que a pesquisa objetiva é uma aproximação do que podem ser as
imagens mais recorrentes da máfia japonesa através do material obtido.
Para a seleção dos temas mais recorrentes das tatuagens da Yakuza foram
consideradas tanto a entrevista
6
do tatuador Adriano Kobayashi quanto as
fotografias coletadas no levantamento iconográfico. Adriano Kobayashi é um
tatuador brasileiro residente no Japão. Em seu estúdio em Oizumi, na província de
Gunma, ele atende clientes brasileiros, japoneses e até mesmo membros da Yakuza.
Adriano Kobayashi conta que os desenhos mais pedidos pelos gângsteres são:
“Dragões, deuses da mitologia xintoísta e budista e principalmente a carpa”. Os itens
citados pelo tatuador foram importantes para uma primeira ideia dos elementos que
os membros da máfia possuem afinidade.
No levantamento iconográfico foram coletadas 98 imagens das quais 40
foram selecionadas para compor a análise visual. Os critérios de exclusão foram
imagens com baixa nitidez e fotografias onde aparecem gângsteres tatuados
repetidos. De modo geral, os elementos que apareceram com maior frequência
foram tatuagens de animais (48) e flores (33) em contraposição às divindades
encontradas 28 vezes. Apesar de Adriano Kobayashi citar em sua entrevista que os
as imagens mais procuradas pelos Yakuzas são os dragões, as carpas e os deuses
da mitologia budista e xintoísta, no levantamento iconográfico foram constatados
que desses itens o dragão apareceu com maior frequência (33 vezes) em
contraposição à carpa (10 vezes). Fudō Myōō, Tennin e Kanon Bosatsu, divindades
do Budismo, apareceram 26 vezes, enquanto Raijin e Fūjin, provenientes do
Xintoísmo, foram encontrados apenas duas vezes.
Com a definição dos principais temas foram selecionados os dragões, as
peônias e as flores de cerejeiras para contemplarem o presente estudo devido à
557
grande recorrência nas fotografias coletadas e à relevância na cultura japonesa.
Diante disso, a pesquisa se concentrou na iconografia das tatuagens dos yakuzas
em diálogo com as xilogravuras ukiyo-e e o baralho de cartas japonês hanafuda.
Para a primeira análise será aproximada a temática do dragão na xilogravura
ukiyo-e de Utagawa Kuniyoshi 7 , One hundred and eight heroes of the popular
Suikoden all told (Tzūsoku Suikoden gōketsu hyakuhachinin no hitori), na Figura 1, e
a tatuagem apresentada na Figura 3. A obra de Kuniyoshi retrata o herói Kumonryū
Shishin do conto chinês Shui-hu Shuan (Contos a margem da água) ou Suikoden,
título da versão japonesa. Para compreender a escolha dessa obra é preciso
entender o conteúdo do livro e o impacto na sociedade de sua época.
O Suikoden é considerado um clássico chinês desde o século XIV quando foi
escrito ou compilado por um pesquisador desconhecido que utilizava o pseudônimo
Shih Nai-an. O conto retrata Sung Chiang e seus companheiros rebeldes durante os
anos de 1117-21. A história traz 108 foras da lei tatuados colocados no enredo como
homens de honra. Cada capítulo do livro conta a trajetória de um dos guerreiros e
suas aventuras. De modo geral, o que unia a todos era o sentimento de revolta
contra o governo corrupto e opressor (RICHIE, 1989, p. 20-21). Devido ao caráter
antiautoritário do enredo, o Suikoden logo se tornou um símbolo de resistência
contra o opressivo regime do período Tokugawa e um best seller por mais de um
século no Japão (GILBERT, 2000, p. 80).
A tradução japonesa do Suikoden obteve vendas estáveis por volta de 1751 e,
no final do século, já havia se tornado uma paixão entre o público. Tal popularidade
rendeu diversas edições. Uma das mais famosas teve tradução de Okajima Kanzan
(1674-1728), publicada em 1757. A versão considerada sucesso de vendas foi
Shimpen Suikogaden, do início de 1800, ilustrada por Katushika Hokusai8 (17601849). Em seguida, houve uma edição que recebeu ilustrações de Utagawa
Kuniyoshi (1797-1861). Diversos artistas do ukiyo-e participaram das edições
contribuindo com diversas releituras das ilustrações dos personagens. A última
versão considerada mais importante foi Bidan Suikoden, ilustrada por Tsukioka
Yoshitoshi9 (1839-1892), onde tanto as imagens quanto os textos foram adaptados
para o modelo japonês (RICHIE, 1989, p. 21).
558
As imagens do Suikoden – repletas de heróis tatuados como protagonistas e
célebres ilustrações realizadas por famosos artistas do ukiyo-e – contribuíram para a
proliferação da moda da tatuagem no período Edo. Nesse sentido, a tatuagem e o
ukiyo-e, que tanto impressionaram os ocidentais no final do século XIX, possuem um
diálogo complementar intermediados pela literatura proveniente da China. De acordo
com Donald Richie (1989, p. 21), “Essas ilustrações – particularmente as de
Kuniyoshi – eram aparentemente muito populares, e isso compôs tanto o estilo
quanto a iconografia da tatuagem japonesa pictórica”. O mestre tatuador
contemporâneo Horiyoshi III (1946) complementa: “[...] os artistas do ukiyo-e desse
período desempenharam um papel principal ao prepararem os princípios do design e
da composição do que agora são as tradicionais tatuagens japonesas”10. Takahiro
Kitamura (2000, p. 41), tatuador japonês e autor de diversos livros sobre tatuagem,
justifica: “Tatuadores copiavam os designs das tatuagens dessas gravuras e, como
resultado de sua influência, a tatuagem desfrutou de grande popularidade e
desenvolvimento rápido durante o final do século XVIII”. Outra interessante
semelhança apontada por Donald Richie (2003, p. 41) é em relação ao público.
Assim como as xilogravuras, as tatuagens afetaram primeiro e, principalmente, as
classes baixas de Edo: os artesãos, os carregadores de palanquim e os gângsteres
da Yakuza.
Um ímpeto inicial para a popularização da tatuagem como moda foi o fato do
grande número de heróis do Suikoden serem tatuados. Os artistas japoneses
aplicaram com liberdade uma releitura dos heróis chineses personalizando
tatuagens para dar a essas figuras um senso de valor, ameaça e emotividade. As
ilustrações de Utagawa Kuniyoshi adicionaram um grande impacto visual ao colocar
imensas tatuagens no corpo, além de criarem uma ambientação de conflito e
melodrama por meio da postura contorcida e expressividade violenta dos guerreiros
(KITAMURA, 2000, p. 50-80). Isso é possível notar na Figura 1, gravura que retrata
Kumonryū Shishin. O herói é visualmente pertinente para o eixo da pesquisa, pois
apresenta como característica principal tatuagens de dragões entrelaçados em seu
corpo.
A gravura de Utagawa Kuniyoshi, peça central de um tríptico, realizado no
século XIX, mostra os companheiros Shinkigunshi Shubu e Chōkanko Chintatsu, na
parte inferior da imagem, detidos pelo guerreiro Kumonryū Shishin que está prestes
559
a aniquilá-los. Os cabelos e o traje do guerreiro esvoaçam demonstrando a
intensidade do golpe. O corpo desnudo do personagem revela as exuberantes
tatuagens de dragões entrelaçados em sua pele. Há também feixes de fogos
vermelhos espalhados sobre o fundo negro (detalhe ampliado na Figura 2).
Nas tatuagens dos Yakuzas o dragão é um elemento que apareceu com
enorme frequência. Em alguns casos, esse motivo foi encontrado em outras
colorações como verde, cinza ou preto, posicionado em pontos de destaque como
costas, tórax ou entrelaçado ao corpo do gângster, como é possível notar na Figura
3. Primeiramente, é possível trazer como aspectos semelhantes, na tatuagem e na
obra mencionada, a disposição do dragão entrelaçado no braço e o design da
tatuagem de grande extensão que cobre até a altura dos punhos. Outro aspecto que
se pode citar são os filetes vermelhos contorcidos que aparecem nas duas imagens
analisadas e representam o elemento fogo. Além desse aspecto, tanto a xilogravura
ukiyo-e quanto a tatuagem tradicional japonesa apresentam como característica
semelhante a falta de intenção de parecerem realistas. Não há perspectiva, nem
sombreamento e volumetria exagerada. As cores das tatuagens e das xilogravuras
ukiyo-e geralmente apresentam cores chapadas e opacas com as figuras em
contorno preto. Tais semelhanças encontradas enfatizam o diálogo visual entre
ambas as artes que se desenvolveram no período Edo. Tanto a xilogravura ukiyo-e
quanto a tatuagem registraram as imagens que caracterizaram esse período onde a
arte era voltada para o povo.
560
Figura 1: KUNIYOSHI, U. Tzūsoku Suikoden gōketsu hyakuhachinin no hitori (One hundred and eight
heroes of the popular Suikoden all told).1827-30. Disponível em <http://www.kuniyoshiproject.com>.
Acesso em 30 de mar. de 2014.
Figura 2: Detalhe ampliado da figura 1.
561
Figura 3: LAITILA, J. Série Traditional Japan. 2007. Disponível em:
<http://www.flickr.com/photos/sushicam/sets/72157601884105744>. Acesso em 13 de jul. de 2012.
O dragão tem sua popularidade originada na China onde é elevado ao status
mítico além de ser um dos símbolos orientais mais famosos. Ao contrário da cultura
ocidental, o dragão na Ásia não é relacionado imediatamente com o mal, é visto
como uma entidade sagrada. Na cultura japonesa ele aparece em inumeráveis
lendas e contos. As associações mais comuns do dragão no design são com nuvens
ou padrões de ondas que refletem sua relação com o céu e o mar (KITAMURA, 2003,
p. 76). Tal aproximação é perceptível, inclusive, nas tatuagens dos gângsteres onde
é comum encontrá-lo junto a esses elementos. Na Figura 3, por exemplo, o dragão é
mostrado sobre esguichos de água, entrelaçado com nuvens e acompanhado de
feixes de fogos vermelhos. Além da presença do dragão, outro elemento bastante
recorrente nas tatuagens com influência chinesa são as peônias.
A flor é um elemento popular nos naipes do baralho hanafuda. Também
conhecido como hanakaruta (literalmente, “cartas de flores”) é um jogo tradicional no
Japão que utiliza um baralho apenas com imagens. O hanafuda apresenta 48 cartas
divididas em doze naipes. Cada naipe apresenta um conjunto de quatros cartas que
são ilustradas com árvores, flores ou arbustos correspondentes a cada mês e
estação do ano. Entre as imagens das cartas, há também a representação de
animais como o porco, o veado, o pássaro e um inseto, a borboleta.
562
É a combinação desses motivos – de plantas semelhantes, por exemplo –
que constitui a regra de um dos jogos do hanafuda, o Koi-koi, um dos mais
populares. Ao conseguir uma combinação especial de cartas (yaku), o jogador pode
decidir entre continuar o jogo dizendo koi-koi (pode vir) ou parar. Se a última escolha
for feita, ele adquire os pontos obtidos na rodada. Se o jogo prosseguir e o oponente
fizer uma combinação especial de cartas, o jogador que havia feito a combinação
antes não adquire nenhum ponto. O jogo termina assim que forem atingidos 50
pontos. Dependendo das cartas distribuídas na mesa no início da rodada, os pontos
podem dobrar, triplicar ou quadruplicar. Mesmo o jogador que ganhou menos
partidas pode sair vitorioso, o que torna o jogo imprevisível.
Somente no final do século XVIII o hanafuda surge. Embora os jogos de azar
fossem proibidos nesse período, as cartas não foram banidas. O hanafuda continuou
a divertir seus jogadores durante todo o período Edo (1603-1868). No final do século
XIX, essas cartas se tornaram bastante atraentes como jogos de azar. Jogadores
profissionais da Yakuza promoveram locais para agricultores, comerciantes,
artesãos e transportadores de carga empreenderem o jogo de azar. Em troca de
proteção para não serem presos ou perseguidos, os gângsteres extraíam propina
dos jogadores11.
A Nintendo tornou-se famosa em uma área completamente distinta dos jogos
eletrônicos. Em 1889, o fundador da empresa, Fusajiro Yamauchi, criou sua própria
marca de hanafuda feita artesanalmente seguindo a técnica tradicional. As cartas
produzidas pela Nintendo eram as mais populares em Kyoto e fizeram tanto sucesso
no Japão que a Yakuza começou a utilizá-las em seus cassinos. Foi nesse período
que a Nintendo atingiu suas maiores vendas. Os gângsteres eram um dos maiores
compradores do hanafuda, pois iniciavam cada jogo com um novo baralho
(FIRESTONE, 2011, p. 15-17). O envolvimento da máfia japonesa em jogos de azar
envolve atividades como a organização de cartas, dados e jogos de roleta (bakuchi);
apostadores profissionais; e pachinko12. Já o sistema do jogo de azar cobre do
lançador de dados a escalas de viagens de luxo que incluem voo, acomodação,
entretenimento e anfitriãs.
Entre os naipes do jogo de azar hanafuda, a peônia foi o motivo floral que
apareceu com maior frequência nas tatuagens de acordo com o levantamento de
563
imagens que registrou 26 ocorrências. Os chineses consideram a árvore da peônia o
rei das flores, um símbolo de boa fortuna e grande honra (BAIRD, 2001, p. 60).
Apesar da existência de peônias com tonalidades suaves como o rosa claro, o
branco e o lilás, nas tatuagens dos gângsteres ela é representada com cores
intensas como o vermelho, o roxo, o laranja ou azul. De todas as cores, a mais
encontrada nas tatuagens de peônia dos yakuzas é a vermelha que pode ser
aproximada com a carta do hanafuda (Figura 4) que apresenta a mesma coloração
intensa para essa flor. Na fotografia de Jeff Laitila (Figura 3), a tatuagem cobre
grande parte do corpo do gângster como um traje de mangas compridas. A peônia é
tatuada como se caísse naturalmente sobre a água. O impacto de seu peso
contraposto à resistência aquática forma esguichos com formas que se assemelham
a garras de caranguejo. O motivo floral aparece junto ao dragão que está
entrelaçado ao braço do gângster. Ambos os símbolos possuem forte influência
chinesa.
Figura 4: Fotografia da autora. Naipes de peônias e flores de cerejeiras do hanafuda. 2012
O segundo motivo floral mais encontrado nas tatuagens foi a flor de cerejeira
(sakura), encontrada cinco vezes no levantamento de imagens. A coloração rosa
claro e seu tamanho relativamente pequeno trazem delicadeza a essa flor que é a
mais apreciada pelos japoneses. O conceito de efemeridade é bem ilustrado pela
sakura que floresce radiante, mas apresenta curta duração de vida. A flor nacional é
um motivo comum na tatuagem e sugere que a vida é efêmera tanto para o guerreiro,
que pode ser aniquilado em qualquer momento, como também para a cortesã cuja
beleza é igualmente transitória (KITAMURA, 2003, p. 35).
564
No naipe do hanafuda a flor de cerejeira (Figura 4) é apresentada de maneira
intensa com cores fortes e chapadas como o vermelho explosivo e um rosa bem
distinto da cor original. Na tatuagem do primeiro plano, apresentada na Figura 5, é
possível visualizar o mesmo motivo floral nos ombros e na parte central do corpo.
Além desse elemento, é visível a máscara do teatro Nō sobre um fundo com
sobreposição de espirais e listras que sugerem um ambiente aquático. Ainda que o
motivo floral sobre a paisagem apareça grotesco com pétalas grandes em tons de
laranja e vermelho, o formato da flor remete à sakura. Não só nesse caso como em
outros foi bastante recorrente a representação da flor dessa maneira. Uma hipótese
para a preferência da representação exuberante pode ser o fato de que a aparência
grotesca da flor dê maior destaque a tatuagem. Visto que o hanafuda faz parte das
atividades ligadas ao empreendedorismo da máfia japonesa e foi o jogo que batizou
o nome Yakuza é possível que os elementos presentes no baralho estejam
relecionados às flores nas tatuagens.
Figura 5. LAI, N. Japan-tattoo-yakuza-gangsters.2013. Disponível em:
<http://www.freemalaysiatoday.com/>. Acesso em 30 de mar. de 2013.
Ao realizar o levantamento iconográfico das tatuagens da máfia japonesa,
através da consulta de mídias brasileiras e internacionais, foi perceptível a
apreensão existente por parte dos japoneses em discutirem o tema da Yakuza. Na
veiculação de notícias, por exemplo, foi notável o fato dos principais jornais do
Japão noticiarem menos matérias sobre a Yakuza do que a mídia estrangeira. O
temor por parte dos japoneses em se envolverem em qualquer assunto relacionado
à máfia pode ser um dos motivos que também podem justificar o aparecimento de
um maior número de bibliografias estrangeiras discutindo o assunto.
565
Por outro lado, apesar da maior veiculação do tema através da mídia
ocidental, não se pode afirmar que o que possui repercussão internacional possa ser
a realidade da Yakuza. A divergência encontrada entre os principais elementos
verificados no levantamento iconográfico e as tatuagens mais pedidas pelos
Yakuzas na reportagem de Adriano Kobayashi pode problematizar essa questão. De
acordo com o tatuador residente no Japão, os desenhos mais pedidos pelos
gângsteres são dragões, carpas, deuses da mitologia budista e xintoísta. Entretanto,
alguns desses elementos não foram os mesmos revelados em peso no
levantamento iconográfico baseado em fotografias veiculadas na mídia e no acervo
de fotógrafos estrangeiros.
Entre os animais, aqueles que mais apareceram foram o dragão (31), a carpa
(10), o tigre (3) e a cobra (4), totalizando 48 ocorrências. Ao cruzar os dados do
levantamento iconográfico e do depoimento de Adriano Kobayashi de fato pode-se
deduzir que o dragão e a carpa são elementos favoritos nas tatuagens dos Yakuzas.
Todavia, a mesma lógica não pode ser aplicada no eixo de divindades e figuras
lendárias. Aparece em maior destaque Tennin (12) seguida por Fudō-Myōō (7) e
Kannon Bosatsu (7), totalizando 26 divindades budistas. Em contrapartida, os únicos
elementos do Xintoísmo encontrados foram Raijin e Fūjin que apareceram apenas
duas vezes. Nesse caso, se fossem levadas em consideração apenas as imagens
do levantamento iconográfico, as divindades xintoístas não poderiam ser associadas
como favoritas pelos Yakuzas.
É nesse ponto que começou a se tornar aparente a divergência entre as
imagens escolhidas pela mídia, por fotógrafos ocidentais e as tatuagens que de fato
são adquiridas pelos Yakuzas. O que poderia ter acarretado essa grande
discrepância entre tatuagens de divindades budistas e xintoístas? Seria uma
consequência do acaso da escolha das fotografias? Seria pelo fato de que os outros
elementos são mais familiares aos ocidentais do que os deuses xintoístas? Seriam
as imagens que mais impactaram os ocidentais ou aquelas que eles mais se
identificaram? A princípio, não há como trazer respostas imediatas que satisfaçam
esses questionamentos, mas eles poderão ser colocados como reflexões
complementares para os próximos pontos da conclusão.
566
Outro risco que pode ter permeado o levantamento iconográfico é a
possibilidade de que as imagens encontradas no acervo digital de fotógrafos
ocidentais podem não corresponder aos membros da Yakuza. Algumas das imagens
analisadas partiram do evento Sanja Matsuri, em Asakusa, onde se reúnem um
grande número de pessoas tatuadas, inclusive da máfia japonesa. Como considerar
se o que é mostrado como Yakuza nessas imagens pode ser julgado apenas pelas
tatuagens e as legendas colocadas pelos fotógrafos?
Apesar das ressalvas, foi possível compreender o estudo da tatuagem
japonesa na Yakuza através dessas discussões, do material midiático e da
bibliografia. A busca pelas fontes da iconografia das tatuagens dos gângsteres
revelou a circulação e a transferência de imagens entre a China e o Japão. Esse
aspecto se tornou latente após a grande verificação de elementos chineses como o
dragão, o tigre e a peônia presentes nas tatuagens dos gângsteres. Elementos
esses que ao serem observados no campo da cultura tradicional japonesa serão
encontrados em padrões têxteis, cerâmicas, leques, jogos entre outros. Sendo assim,
a partir da iconografia da tatuagem dos gângsteres foi possível encontrar uma
conexão com a estética japonesa que possui grande influência da China.
Além desse diálogo, foi constatada outra importante relação entre a China e o
Japão, mas no campo da literatura. A popularidade do Suikoden foi capaz de
impulsionar a circulação de imagens com o tema da tatuagem no Período Edo. A
partir das ilustrações desse romance, foi possível notar a concomitância e a conexão
entre essa modificação corporal e o ukiyo-e. Foi possível perceber essa relação
principalmente a partir da obra de Takahiro Kitamura (2003, p. 11): assim como
personagens apareceram tatuados nas xilogravuras, muitas xilogravuras serviram
como padrões para a tatuagem. A verificação dessa conexão tornou claro o motivo
das tatuagens japonesas figurativas possuírem aspectos tão semelhantes com as
xilogravuras ukiyo-e como no quesito do traço, da cor, das formas, do tema, do
sombreamento e da iconografia.
Com a aproximação entre as duas artes foi possível elaborar um estudo
comparativo entre as gravuras do Suikoden e as tatuagens da Yakuza. A princípio, o
aspecto que chamou a atenção para a pesquisa foi o próprio conteúdo do romance
chinês que traz como protagonistas foras da lei tatuados em nome do
567
antiautoritarismo. Tanto a narrativa como o impacto gerado pelas imagens do
Suikoden no campo da tatuagem foram os principais motivos que levaram à
aproximação das imagens do ukiyo-e com a Yakuza na pesquisa. Foi realizado o
estudo apenas com um dos heróis mais conhecidos, Kumonryū Shishin, mas a
pesquisa abre margens para serem feitas análises com outros personagens. A
análise da gravura de Kumonryū Shishin revelou semelhanças com as tatuagens
dos Yakuzas como foi apresentado. Possivelmente o personagem pode ter exercido
influência na iconografia adotada nas tatuagens dos membros da máfia japonesa,
assim como o hanafuda.
Por ser um jogo de azar adotado pelos yakuzas e por estampar motivos
florais amplamente utilizados nas tatuagens dos gângsteres, o baralho hanafuda
revelou ser uma interessante fonte para o estudo iconográfico. As flores que
geralmente são associadas com a delicadeza parecem não exercer a mesma função
nessas tatuagens. De um modo geral, elas são apresentadas com cores fortes
mesmo que sejam distintas da coloração natural, como no caso da tatuagem de
sakura na fotografia de Jeff Laitila (Figura 3). A respeito disso, o mesmo fenômeno
ocorre nas cartas do hanafuda onde a coloração das flores é chapada e em cores
intensas. Pode haver, nesse sentido, influência dessa iconografia nas tatuagens dos
gângsteres. O que poderia elucidar a escolha de cores fortes e tamanho exagerado
na representação de flores para compor a tatuagem?
Uma hipótese seria o fato dos membros da Yakuza adotarem uma estética
para a construção de uma imagem agressiva. Isso poderia justificar a escolha de
elementos de aparência grotesca como o dragão ou os heróis do Suikoden, por
exemplo, em um grupo onde a violência física pode ser um caminho para a solução.
Essas observações revelaram a exaltação do corpo na máfia japonesa. Nesse
sentido, qual seria a importância da tatuagem para os membros da Yakuza? Pode
ser colocado como hipótese o fato de que essa modificação corporal seja uma
maneira de comprovar fidelidade entre o clã. O traço inapagável da tatuagem,
exceto com a realização de cirurgias, faz com que a identidade de um Yakuza seja
praticamente irreversível. Além disso, a tatuagem pode ser um símbolo para adquirir
status dentro da máfia, visto que pode chegar a cinco mil dólares quando completa.
568
Em suma, a pesquisa pôde mostrar a relevância da iconografia das tatuagens
da Yakuza. Através da busca pelas origens dessas imagens, foi possível perceber a
circulação e a transferência iconográfica em diversos níveis: entre países (China e
Japão) e áreas distintas (literatura, artes plásticas, teatro e tatuagem). Desse modo,
apesar de serem produtos de uma (sub) cultura, as tatuagens da Yakuza são
registros que podem revelar uma longa experiência, tradição e desenvolvimento da
estética japonesa.
Notas
1
De acordo com uma das crenças mais aceitas, o termo é originado do pior placar no jogo de cartas
hanafuda. A cada rodada, três cartas são negociadas por jogador e o último dígito é o seu total de pontos na
mão. Sendo assim, a soma da combinação 8-9-3 (ou em japonês ya-ku-za) é o pior placar, pois a soma de
números é totalizada em 20, porém o total de pontos corresponde ao último número, zero (KAPLAN & DUBRO,
2003, p. 13).
2
RICHIE, Donald; BURUMA, Ian. Op. cit., p. 13.
3
O Globo, Folha de São Paulo, Veja, Made in Japan, BBC, The Guardian, Tokyo-ezine, Japan Times,
Yomiuri Shimbum, Mainichi Shimbum, Kyodo News Service e Asahi.
4
Anton Kusters, Jeff Laitila e Chris Rainier.
5
Corbis, Getty e Flickr.
6
MADE
IN
JAPAN.
Tatuador
de
Yakuza.
Disponível
em:
<http://madeinjapan.uol.com.br/2009/12/27/tatuador-de-yakuza>. Acesso em 22 de mai. de 2012.
7
Utagawa Kuniyoshi (1797-1861): Renomado artista da xilogravura japonesa. Retratou ícones culturais
como atores do kabuki e heróis japoneses. Possui uma produção artística com temas vastos como cenas de
batalha, mulheres belas (bijin) e animais míticos.
8
Katushika Hokusai (1760-1849): Um dos maiores artistas consagrados do Japão. Foi impressor e
gravador de ukiyo-e. Suas séries mais famosas são Thirthy-six views of Mount Fuji, ca. 1831, e The great wave
of Kanagawa, ca. 1820.
9
Tsukioka Yoshitoshi (1839-1892): Considerado por muitos como um dos últimos grandes mestres do
ukiyo-e. Foi aluno de Utagawa Kuniyoshi. Trabalhou em diversos gêneros nas xilogravuras como ilustração em
jornal, pinturas de mulheres bonitas (bijin), paisagem, humor e cenas históricas.
10
NAKANO, Yoshihito. The history and techniques of tattooing in Japan, in Ozuma, Kaname. Woman in
tattoo. Tokyo: Tatsuma Publishing, 1995. In: KITAMURA, Takahiro. Tattoos of the floating world – ukiyo-e
motifs in the Japanese tattoo. Amsterdam: Hotei Publishing, 2003, p. 17.
11
Gambling. In: KODANSHA encyclopedia of Japan. Tokyo: Kodansha, 1983. v.3, p. 5.
12
Pachinko: Jogo de azar que se assemelha a uma mistura de pinball e caça níquel. A máquina do
Pachinko possui um painel com vários pinos, uma tampa de vidro e dispositivos elétricos. O jogador compra uma
quantidade de pequenas esferas de metal e as usa para jogar. Essas esferas são lançadas e rebatidas nos pinos.
Quando entram em locais específicos, o jogador ganha mais delas. Com as esferas novas ele pode continuar a
jogar ou trocá-las por prêmios.
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Karina Ayumi Ekami Takiguti
Bacharela em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Foi
educadora da 29ª Bienal de Artes de São Paulo; monitora do Curso de Formação de
Professores da Região de Pimentas e seu Entorno; merchant na Photoarts Gallery e
atualmente é coordenadora de cursos no Atelier Paulista e professora de História da Arte na
Universidade Aberta da Pessoa Idosa.
571
A COR E A LINHA NOS JARDINS EM ESTILO KARESANSUI1
Yukie Hori - USP
RESUMO: Com foco na cor e na linha em três jardins de autoria do paisagista japonês Mirei
Shigemori (1814-1875) – Kishiwada-jo, 1953 (Osaka), Ryōgin-an, 1964 (Quioto) e Sekizo-ji,
1972 (Hyogo) – confrontados com o famoso Ryoan-ji, 1450 (Quioto), exemplo máximo do
jardim em estilo karesansui (jardim de paisagem seca) tradicional, o estudo objetiva
expandir a compreensão do jardim como obra tridimensional relacionando-o com a escultura
e a instalação no contexto das Artes Plásticas. A discussão perpassa também pela leitura
monocromática da pintura Zen apontando a cor e a linha como elementos compositivos
inéditos na prática do karesansui e estabelecendo conexões entre a modernidade (as artes
das vanguardas europeia) e a tradição (artes japonesas e chinesas) presentes nos projetos
de Shigemori.
Palavras-chave: karesansui, jardim de paisagem seca, Mirei Shigemori, escultura,
instalação.
ABSTRACT: Focusing on the color and line of three gardens by the Japanese landscape
designer Mirei Shigemori (1814-1875) – Kishiwada-jo, 1953 (Osaka), Ryōgin-an, 1964
(Kyoto) and Sekizo-ji, 1972 (Hyogo) – compared with the famous Ryoan-ji, 1450 (Kyoto),
upmost example of traditional karesansui (dry landscape garden), this study has aimed to
expand the understanding of the garden as a three-dimensional artwork related to sculpture
and installation in the context of Visual Arts. The discussion also pervades the reading of Zen
monochromatic painting pointing to the color and the line as inedited composing elements in
the practice of karesansui establishing, as well, connections between modernity (European
avant-garde) and tradition (Japanese and Chinese arts) according to the vision of Shigemori,
which are manifested in his projects.
Keywords: karesansui, dry landscape garden, Mirei Shigemori, sculpture, installation
1. O cultivo de uma paisagem seca
Não é por acaso que os primeiros jardins conhecidos tenham nascido no
meio do deserto (na Mesopotâmia), devido a um trabalho de irrigação que
pareceu fazer surgir do nada um oásis de fecundidade e frescor. O jardim
realiza o mito da ilha encantada que, protegida dos ventos do cosmos e da
história, torna-se a se fechar num espaço tranquilizador de sedentário [...]
(RIBON, 1991: 107)
Como espaço de natureza domada para o deleite e para a observação de
uma paisagem ficcional, o jardim é tomado como análogo ou microcosmo da
natureza2. Na imagem de uma área de flora domesticada ou “renaturalizada”, prática
anunciada pela filósofa francesa Anne Cauquelin que implica em vigiar, proteger,
selecionar plantas adaptadas ao clima e favorecer seu crescimento, descobrir novas
espécies, o jardim seria criado como “um mundo à medida de uma atividade
572
paisagística ‘ecológica’”3. Embora a conhecida imagem do jardim de pedra japonês
pareça atuar em oposição ao colecionismo botânico e à natureza pela redução a
quase um único elemento compositivo, a rocha – em suas diferentes apresentações
como pedra em escalas diversas, cascalho e areia, matéria inorgânica e objeto de
culto desde tempos remotos na cultura nipônica –, mesmo destituída de vida4 não se
contrapõe à temporalidade do desenvolvimento biológico:
Nesse lugar de imobilidade e silêncio, nenhuma teatralidade; aí não se ouve
ninguém; a mediação e a procura de si oscilam entre a marca do tempo (as
flores, os arbustos) e a eternidade (a água e o montículo de rochas). O
objeto só é necessário a contemplação do sábio: estranhamente escavada
pela natureza, basta-lhe uma pedra, para entender, através de um rosário
de grutas imaginárias, um circuito místico no cosmo, a fim de se tornar mais
5
leve (RIBON, 1991: 109).
O estilo kare-san-sui6 枯山水, que define o jardim de pedras, é literalmente
traduzido como “montanha da água seca” e pode se referir também a um “jardim de
paisagem seca”7. O termo foi citado pela primeira vez no manual de jardinagem
Sakuteiki eåƩ, escrito no final do século XI e considerado uma espécie de livro
secreto da arte tradicional dos jardins japoneses.
Nesse estilo de jardim as pedras sugerem ilhas e montanhas, enquanto os
planos de cascalho ou areia aludem a cascatas secas (kare-taki ĨŎ) ou ao fluxo de
água seco (kare-nagare Ĩń). Pela semelhança com a paisagem monocromática da
pintura Zen esses jardins foram também chamados de suiboku sansui-ga-shiki teien
Ĺ« ÌĹŞ èå (jardim em estilo da pintura suiboku)8.
Embora a origem dos jardins de pedra seja historicamente incerta, sabe-se
que o cascalho e a areia eram estendidos no piso de palácios e santuários xintoístas
em rituais de purificação do solo, conforme dados colhidos nos primeiros registros
históricos japoneses. Recorrente como parte menor de jardins de grande extensão, o
karesansui se tornou uma espécie de local isolado e independente no século XVI
com o auge de seu desenvolvimento no período Muromachi (1392-1573) e seu uso
considerado apropriado para a prática da meditação (KOREN, 2000: 69).
Nesse mesmo período, nota-se a valorização do monocromático em oposição
ao rico colorido da aristocracia do período Heian (794-1185) cuja sensibilidade
estética era centrada na contemplação das cores vinculadas ao kigo ½ƫ, termo
573
sazonal relacionado à observação da natureza através do transcurso das estações
do ano. Tal aspecto estava vivamente presente no cotidiano da corte Fujiwara (em
vestes como o kimono) e nos registros minuciosos na literatura e na pintura da
época como os textos e ilustrações de Genji Monogatari ŌķŔƫ (O conto de Genji).
Segundo Toshihiko Izutsu, especialista japonês em religiões orientais, o
monocromático presente na pintura budista enfatizaria a importância de se perceber
no mundo a existência da não-forma e da não-cor, uma realidade eterna além do
fenômeno dos formatos e das tonalidades. Só pela ausência cromática seria
possível uma relação mais profunda entre a visualidade e o valor estético de uma
presença interna da cor. Nesse espectro, a redução da paleta ao preto e ao branco
do papel traduziria, portanto, o conceito do Zen de vazio no sentido de que a cor
mais fundamental é a cor que não é uma cor9.
2. Escultura Derramada: Possíveis aproximações entre o karesansui e as Artes
Visuais contemporâneas
No jardim karesansui os planos de cascalho ou areia fazem alusão à essência
mínima da água, mas sem trazer esse elemento fisicamente. Tal aproximação
sugestiva traz a possibilidade de representação até mais profundamente do que
seria possível com a água em sua substância real 10 . Essa relação sugere um
conceito que manifesta a ideia de contradição no princípio fundamental do Zen na
representação água com seu elemento oposto11. Nesse espaço em que não seria
permitida a ação da entropia, o rasteio, o desenho ou o modelado da atividade
regularmente mantida por um monge ou jardineiro, deixa evidente o exercício que
convém a manutenção dos significados simbólicos.
Se o jardim passou a ser incorporado como ambiente para a meditação ou
contemplação, também poderia ser trazido como experiência análoga à atitude do
indivíduo em quarto fechado na prática do zazen ¦ū. O praticante senta-se com as
pernas cruzadas, sobre a beira de uma almofada dura e desconfortável, com o corpo
voltado para uma parede, olhos semicerrados em um esforço exaustivo de
concentração mental para manter constante a consciência do aqui e agora na
percepção por todos os cinco sentidos do tempo e do lugar onde se encontra. Nesse
âmbito, pode-se sugerir que essa construção abstrata de pedras no jardim pode
574
servir também às experiências fenomenológicas. Um lugar que permite a ampliação
da leitura do karesansui, no contexto da produção tridimensional das Artes Visuais
(escultura, instalação, intervenção), especialmente na prática de projetos site
specific visíveis nos jardim de Mirei Shigemori é o que será aprofundado a seguir.
As fronteiras pouco delimitadas entre o exterior e o interior, seja na invasão
da paisagem externa que completa a visão no enquadramento proposto por um
jardim, ou a relação bastante ambígua entre esse local com o edifício que o contém,
oferecem instrumentos importantes para pensar a criação de uma instalação cujo
entorno, as escolha dos materiais e as relações não só físicas, mas perceptivas,
psicológicas e das memórias com o lugar devem ser incluídos e percebidos nos
procedimentos poéticos do artista.
3. Jardim Ryoan-ji (Templo do dragão da paz), 1450
O jardim de pedras do templo Ryoan-ji em Kyoto, nomeado Patrimônio
Mundial da UNESCO, é um dos exemplos mais representativos do estilo karesansui
tradicional. Com área retangular de 248 metros quadrados tem aproximadamente 25
metros de extensão e 10 metros de profundidade. O jardim é emoldurado por um
muro baixo de barro delimitando o campo visual no nível do plano de pedriscos e
permite que as copas das árvores no outro lado dessa fronteira sejam vistas
complementando a paisagem miniaturizada. O plano com linhas em relevo de
pedriscos é pontuado com composição de precisão matemática12 por 15 grupos de
pedras irregulares e musgo, sugerindo ilhas e montanhas, em uma paisagem
associada às cenas históricas da mitologia chinesa13.
O acesso ao interior desse jardim é proibido, e deve ser contemplado por uma
plataforma de madeira ou pelo salão no interior do templo onde cada ponto de vista
configuraria uma nova paisagem, sendo impossível, porém, capturar a totalidade das
pedras em um único lance do olhar. Até o século XX, foram poucas as interferências
estéticas nesse estilo de jardim que se restringiu ao aumento no contraste entre as
áreas de cascalho e as “ilhas” de pedras, musgo e plantas.
Embora a origem do jardim Ryoan-ji não esteja definida, admite-se a autoria
de Hosokawa Katsumoto (1430-1473), importante shogun (samurai) do período. O
575
jardim seria fundado com a inauguração do complexo de templos Ryoan-ji, em 1450,
que incendiado durante Guerra Onin (1467-1477), foi reconstruído no final do século
XV por Masamoto Katsumoto, filho de Hosokawa. Os primeiros achados com as
descrições do jardim, que o situam claramente na frente do salão principal, foram
constatadas somente em documentos históricos que datam dos anos de 1680 a
1682, cuja composição apresenta somente nove grupos de pedras representando os
“Jovens tigres atravessando a água” 14 . Após o segundo incêndio, em 1779, o
escritor e especialista em jardins japoneses, Akisato Ritō (?-1830), reconstruiu o
jardim sobre os escombros dos edifícios queimados e jogados nesse espaço
reconfigurando-o para quinze grupos de pedras. Atualmente é celebrado como
importante ponto turístico de Kyoto. Ademais, não foram encontradas evidências de
monges budistas que tenham trabalhado no jardim, além da manutenção dos
relevos no leito de cascalho branco15.
Assim como as pinturas suiboshi, o jardim é predominantemente cinza, como
ensina os textos antigos da arte dos jardins japoneses. Os contrastes deveriam ser
evitados. Lembro-me que durante visita ao Ryoan-ji, o branco do cascalho, o marrom
alaranjado do muro e o verde próprio da vegetação local na estação do verão davam
a impressão de reduzir a escala daquele espaço, sensação intensificada pelo grande
número de visitantes naquela ocasião16. Ainda pouco familiarizada com os conceitos
por trás do estilo karesansui, era natural imaginar esse lugar como um desenho de
paisagem composto por um oceano seco, ilhas em alta resolução pela grande
nitidez em contraste com um horizonte desfocado pelas manchas do muro e do céu
de nuvens verdes. “Aparentemente simples e destituído de significados, este jardim
se revela aos poucos na imaginação daquele que se entrega a seus segredos. É
considerado como a mais perfeita síntese dos preceitos do Budismo Zen e permite a
experiência visual e filosófica numa viagem contemplativa rumo à busca de um
sentido pleno”17.
4. Mirei Shigemori e os jardins de modernidade atemporal
Mirei Shigemori18 nasceu na província de Okayama em 1896, falecendo em
Kyoto em 1975. Graduado em nihonga (pintura tradicional japonesa) pela Academia
Nacional de Artes de Tokyo, completou sua formação acadêmica em História da Arte,
Estética e Filosofia Oriental na mesma instituição.
576
Como pesquisador acadêmico publicou 81 livros, entre eles: o compêndio de
52 publicações sobre a história, a estética e o levantamento catalográfico dos jardins
tradicionais do Japão; 19 livros relacionados ao ikebana (arte dos arranjos florais) e
alguns outros sobre a cerimônia do chá e temas ligados à cultura tradicional
japonesa além de manter em vida periódicos sobre jardins e a arte dos ikebanas.
Como paisagista criou aproximadamente 250 jardins em todo o Japão.
Mirei se posicionava contra os manuais de prática dos jardins japoneses
populares no período Edo (1603-1868) os quais, segundo o paisagista, limitavam-se
a receitas medíocres que estagnaram a prática do jardim. Também era desfavorável
à imitação ou à influência dos jardins ocidentais, especialmente dos estilos francês e
inglês19.
O paisagista suíço e pesquisador de jardins japoneses, Christian Tschumi,
atribui o conceito de modernização enunciado por Mirei como influência direta da
formação acadêmica em Belas Artes (onde teve especial interesse nos estudos da
arte abstrata e das ideias Modernistas) somada à memória cultural e manutenção de
valores tradicionais nas crenças dos sistemas do Taoísmo, Confucionismo, Budismo
Ortodoxo e Zen e principalmente Xintoísta pelo poder primordial atribuído às forças
da natureza, princípio da religião do Japão20. Com esses dados em vista, seguimos
pelos três jardins em estilo karesansui desenhados por Mirei Shigemori.
577
4.1 Kishiwada-jo, 1953 (Osaka): O jardim da formação das oito batalhas, do
castelo Kishiwada
Fig.01 Kishiwada-jo. Fotos: Yukie Hori. Mapa: TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori:
Modernizing the Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2005. p. 37.
O jardim, que integra a área do castelo Kishiwada, abandona o formato
retangular e se localiza na frente da edificação principal. Normalmente os jardins
karesansui são instalados no interior, atrás ou nas laterais dos edifícios. O desenho
faz referência à planta baixa do projeto original do castelo construído para ser um
forte ou base militar, tema que permitiu a Mirei se aproximar do episódio da história
chinesa “Formação do campo de batalha óctupla”21.
Configurado em três pavimentos concêntricos e irregulares, o jardim é
delimitado por linhas grossas em aoi-ishi22 e concreto, além de ser preenchido por
pedriscos cinzas em tons levemente avermelhados nas áreas centrais e mais frios
no terceiro nível. Nove grupos de rochas aoi-ishi são espalhados nesses degraus
representando animais, objetos ou fenômenos das mitologias orientais. A imagem
total do jardim só é possível do alto do castelo, ponto de vista onde foi notável23 a
percepção dos níveis que são acentuados pelo efeito óptico produzido pela leve
diferença tonal entre os pavimentos e é reforçado pelas linhas grossas destacadas
578
pelo leve azulado em contraste com os tons de cinza do chão. Já no nível do jardim,
a sensação aplanada é determinada pelas linhas diagonais convergentes que
deixam também imperceptível o desnível entre os pavimentos e, ao mesmo tempo,
parecem recortar a paisagem que o estilo karesansui tenta reproduzir. Tive a
impressão de que estava diante de uma colagem.
O “Acampamento do capitão”, grupo com o maior número e as maiores
pedras no centro do jardim, pareceu ganhar peso e força no desenho concêntrico da
cena pela estranha tonalidade azulada e cinza escura do mineral, em contraste com
a superfície cinza avermelhada sutilmente rastejada em relevo que sugere a
superfície da água. As cores de matizes bastante sutis pareceram-me claramente
visíveis naquela tarde de céu encoberto.
No projeto desse jardim previa-se ainda que as pessoas pudessem caminhar
sobre as linhas e pular por entre as estruturas que demarcam os três níveis da
construção tornando-o primeiro karesansui de entrada livre. Mirei pensou ainda em
diversas possibilidades de uso como exposições ao ar livre ou palco para
apresentações performáticas24. “Minha ideia foi criar um desenho referindo-se às
origens do castelo Kishiwada, de uma vista aérea, algo que nunca havia sido feito
antes”25. Nessa sentença, o autor reforça seu apreço pela modernidade além de
demonstrar a notável autoconsciência da radicalidade com os padrões do estilo
karesansui até então presentes nos jardins como o Ryoan-ji. Nesse viés, é
perceptível a crença de Mirei na liberdade da criação individual como força motriz
para a continuidade da tradição.
579
4.2 Ryōgin-an Hōjō Teien, 1964 (Kyoto): O eremitério do dragão cantante26
Fig.02 Ryōgin-an Hōjō Teien. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel:
Birkhäuser Architecture, 2007. p.116-121.
O projeto do Ryōgin-an Hōjō Teien foi criado como um trajeto que
compreende três jardins no entorno do templo Ryōgin-an, parte do complexo de
templos Tōfuku-ji, em Kyoto. No início do percurso, na entrada do tempo Ryōgin-an,
estende-se o jardim Leste onde, à primeira vista, destaca-se a superfície de
cascalhos avermelhados pontuados por pedras aoi-ishi. O cenário representa a cena
da lenda de Daimyō Kokushi, famoso senhor feudal Kokuji, antigo morador do
templo27. Nas pedras aoi-ishi há uma criança (pedra central), protegida por dois
cachorros (duas pedras de tamanhos intermediários) cercados por três lobos (pedras
580
menores). O vermelho intenso da superfície, que acentua a dramaticidade violenta
da cena, cria uma reação impactante quando o visitante se aproxima do jardim
seguinte, o Sul. Tal ambiente apresenta uma área retangular, de maior extensão do
que o primeiro jardim, coberta unicamente por shirakawa suna (areia do rio branco) e
é delimitado por cercas de bambu decorado. Nesse jardim o visitante pode se sentar
em uma área destinada à contemplação. Há uma vista marítima, clara,
absolutamente plana e silenciosa onde é possível descansar os olhos e deixar a
mente vagar pelo vazio. Esse jardim se encontra entre dois espaços cheios de ação.
No jardim Oeste, Mirei formata nuvens em cascalho de tons cinzas escuros e
claros delineados por concreto de linhas quase brancas criando diferentes planos de
cor. O grupo de pedras aoi-ishi forma o desenho de um dragão que parece se
tridimensionalizar, pelo contraste com fundo monocromático bastante pictórico, e
ganhar movimento a partir do deslocamento do observador. O jardim Oeste seria um
dos primeiros em estilo karesansui que, ao invés de reportar-se ao mar, voltaria-se
para o céu que, por sua vez, refletiria-se nos oceanos28.
4.3 Sekizo-ji, 1972 (Hyogo): Os deuses protetores dos quatro pontos cardeais
Fig.03 Sekizo-ji. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden.
Berkeley: Stone Bridge, 2005. p. 78-79.
581
Na ocasião do convite para construção de um jardim na entrada do santuário,
o Sekizo-ji era um templo abandonado. Originalmente foi construído dentro de uma
floresta próxima a uma iwakura Ïj (pedreira considerada morada dos deuses e
sagrada no Xintoísmo) que estava escondida pela mata, mas voltou a se tornar
visível durante a renovação do edifício e limpeza da área. Inspirado nessa história
Mirei buscou referências no conceito chinês shinshin soo (os quatro deuses
protetores das quatro direções do céu).
Com quatro áreas definidas por quatro cores predominantes que simbolizam
os quatros pontos carteais e suas respectivas entidades protetoras na cosmologia
chinesa, o jardim se divide em:
[4] LESTE: Com superfície em cascalho cinza escuro, centralizada por uma
pedra aoi-ishi de forma alongada que simboliza o dragão. É associado à cor azul e
ao elemento madeira;
[3] SUL: Associada à cor vermelha e ao elemento fogo, a fênix, representada
nos grupos de rochas avermelhadas e pontiagudas, está pousada sobre o leito de
areia alaranjada. A ave é considerada a guardiã do fogo;
[2] OESTE: Apresenta predominância do branco, cor associada ao elemento
metal. Uma grande rocha branca de formas curvilíneas e relativamente lisas
representa um tigre deitado sobre uma cama de areia branca. O animal é
considerado o guardião dos ventos;
[1] NORTE: Sobre pedriscos cinza escuro, descansa uma tartaruga, animal
associado à cor preta e considerado o guardião das águas. É representado por uma
ilha formada por um grupo de pedras escuras arredondadas e musgo.
O jardim é delimitado por muro de bambu decorado com ideogramas. As
quatro divisões são demarcadas por passarelas retilíneas que dão acesso ao templo.
Tal percurso me fez recordar os jardins que antecedem a entrada para a casa da
cerimônia do chá também por conta do movimento de caminhada que faz parte do
582
ritual. Numa leitura pictórica, o jardim me pareceu bastante “figurativo” e me fez
associá-lo a um manga (histórias em quadrinhos japoneses) ampliado onde cada
quadro apresenta uma personagem em seus respectivos planos de ação.
5. Algumas considerações finais
Na discussão dos três projetos de Mirei é possível aferir a combinação de
elementos compositivos tradicionais do estilo karesansui e a inclusão de
procedimentos pessoais, pontuados por Tschumi 29 , que inserem elementos, até
então inéditos, nos nove séculos de história dessa categoria de jardim:
- O uso do concreto e suas técnicas de tingimento;
- O uso de cascalho, areia e rocha em cores além do cinza;
- A representação do céu ou das nuvens;
- Motivos nas cercas ou muros baixos que emolduram os limites dos jardins;
- Motivos espiralados.
É importante mencionar que as cores nos jardins de Mirei estão presentes
enquanto matéria e não como superfície cromática aplicada. As pedras, os
cascalhos, a areia, o musgo e o concreto passam a estabelecer relações mais
profundas e complexas entre as partes do jardim e o seu entorno. Embora a
presença marcante das cores no estilo karesansui seja uma inovação, ao mesmo
tempo, é possível perceber a influência da palheta chinesa do "Sistema de
graduação das 12 classes de boinas”30 como guia das escolhas materiais no caso
das quatro divisões do jardim Sekizo-ji, por exemplo. Trata-se, portanto, da
aproximação da cor na sua apresentação tradicional.
A inclusão de uma planta baixa – como no jardim do castelo Kishiwada ou da
história do lugar onde o jardim é instalado como no caso do jardim Leste do tempo
Ryōgin-na –, os aspectos “mais modernos” nos projetos de Mirei, a meu ver,
convivem harmonicamente com as referências históricas das mitologias antigas. Fiel
583
às tradições culturais de seu país e atuando criticamente como historiador,
pesquisador e realizador, Mirei lança mão dos procedimentos transgressores e das
influências ocidentais como na sua já mencionada aproximação com as artes
plásticas, particularmente, das ideias modernistas. Tschumi também atribui ao
ikebana uma das principais fontes de inspiração do paisagista pelos ideais de
renovação ou modernização. Da dedicação do paisagista à prática frequente e
disciplinada do arranjo floral, desde jovem em Okayama até o final da sua vida,
Tschumi extraiu a visão da arte e da natureza de Shigemori. Em trechos do texto de
autoria de Mirei, “Exploração – A arte do arranjo floral”31, que integra as Obras
completas sobre os arranjos florais japoneses, vol.632, publicadas de 1930 a 1932,
seguem-se a versões abaixo:
Pela destruição da natureza, e não somente fisicamente, que nós devemos
pautar a arte. As linhas e as cores devem ser guiadas pela pura
33
criatividade .
É verdade que na arte de arranjo de flores a coisa mais importante é trazer
a natureza para a vida. Mas isso não significa necessariamente trazê-la viva
de uma forma realista. Trazer a natureza para a vida significa traduzi-la
dentro de mim. E, a fim de torná-la uma coisa de mim mesmo, tudo ou parte
da natureza precisam ser transformados: transformado para campo da
natureza, para o campo da arte, enfatizando a distinção entre a natureza e a
arte. Para trazer a natureza para a vida, as linhas e as cores da natureza
34
são feitas para as linhas e cores de arte .
Mirei não apenas propõe, como é característica da visualidade japonesa, uma
aproximação não mimética com a natureza, mas vê a abstração ou a geometrização
das formas como caminhos para uma natureza sugerida que se tornaria viva pela
arte. A abstração, nesse sentido, proveniente também da aparente modernidade
atemporal (seu grande objetivo de vida), é exercitada rompendo limites na criação
dos jardins karesansui. Isto é algo que parece condizer com as palavras do pintor
cubista George Braque: “Em arte, o progresso não consiste na extensão, mas no
conhecimento dos limites. A limitação dos meios determina o estilo, cria nova forma
e impulsiona a criação”35.
Notas
1
Este artigo é parte da pesquisa em desenvolvimento no Programa de Artes Visuais da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, sob orientação do Prof. Dr. Marco Garaude
Giannotti.
2
Natureza será definida ao longo do texto como as ações do mundo, ou a existência das coisas do
mundo, sem a interferência humana.
584
3
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marco Marcionilo. São Paulo: Martins
Fontes, 2007. p. 167
4
Embora tenhamos a predominância dos materiais inorgânicos nos karesansui tradicionais, é comum a
presença de musgo, pinheiro ou outras árvores não floríferas, arbustos cuidadosamente podados. É notável que
esses vegetais conservam-se verdes a maior parte da vida sendo, portanto, mais próximos das rochas do que
dos bordos ou das cerejeiras, consagrados como símbolo da efemeridade ou marcas da passagem do tempo.
5
Segundo o filósofo Michel Ribon, o jardim chinês e japonês seria oposto ao Jardim de Versalhes que
apresenta um “[...]vasto espaço de prazeres ordenado que a aristocracia dos intendentes e dos príncipes reserva
para si, o da Corte e do monarca, cujo poder deve ser teatralizado para aumentar seu prestígio. Tornando-se
parque, o jardim, prolonga para o exterior o espetáculo do poder que se dá no interior do aparato faustoso do
castelo” (RIBON, op. cit., p. 109).
6
Neste trabalho respeitaram-se as normas do sistema romanizado Hepburn para os termos em língua
japonesa e os nomes pessoais foram descritos da forma ocidental (prenome seguido de sobrenome).
7
A expressão “jardim zen” não seria adequada devido à ocorrência de jardins em estilo karesansui em
palácios, castelos, templos xintoístas e residências de importantes samurais. Conforme esclarece Wybe Kuitert,
professor do departamento de Estudos Ambientais da Universidade Nacional de Seul, no livro Themes in the
History of Japanese Garden Art (2002), não há menção ao karesansui como expressão da filosofia Zen na
literatura dos jardins japoneses escritos nos séculos XVII, XIX ou XX. Os jardins presentes em templos e
residências de samurais foram instalados para criar um “ambiente de aprimoramente cultural”.
8
Verbete karesansui adaptado da consulta do dicionário online Jaanus. Disponível em: <www.aisf.or.jp>.
Acesso em 05 de nov. de 2013.
9
IZUTSU, Toshihiko. The elimination of color in far eastern art and philosophy. In: Color Symbolism.
Six Excerpts from the Eranos Yearbook 1972. Dallas: Spring Publications, 1972. p. 176-177.
10
Referência traduzida do trecho em inglês: “The [kare-san-sui] Garden is an attempt to represent the
innermost of water, with out actully using water, and to represent it even more profoundly than would be possible
with real water”.In: KOREN, Leonard. Gardens of Gravel and Sand. California: Stone Bridge, 2000. p.68.
11
Op. cit, p.32. O pesquisador norte americano de design e estética japonesa Leonard Koren esclarece
que o termo “jardim Zen” (Zen garden) surgiu pela primeira vez em 1935 no livro publicado em língua inglesa
One Hundred Kyoto Gardens, de autoria da jornalista havaiana Loraine Kuck, e acrescenta que o “Zen não
estaria presente no projeto de criação do jardim, como resultado de insights ou ações espontâneas associadas
as ‘artes Zen’ da pintura, arquearia ou da cerimônia do chá. O desenho de um jardim requer planejamento e um
extensivo período de construção. [...] Muitos jardins não foram projetados ou construídos por praticantes do Zen”.
Sugere-se, portanto, que a relação do Zen com o jardim de pedras seria uma proposição ocidental, sem
fundamento em pesquisa histórica e criticada por gerações seguintes de estudiosos dos jardins japoneses. Não
coloco em questão as relações do Zen na criação dos jardins karesansui, sendo relevante para minha pesquisa,
o
modo
como
um
espectador
percebe
esses
espaços.
Disponível
em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Japanese_rock_garden>. Acesso em 05 de nov. de 2013.
12
Encontrei alguns artigos científicos (Gestalt e outras leituras com base na geometria matemática)
referentes aos efeitos visuais detectados nos elementos compositivos do jardim Ryoan-ji e análises do layout de
outros jardins em estilo karesansui. Essas bibliografias não serão referenciadas nesse trabalho, cuja discussão
se foca na relação das cores na observação do jardim.
13
Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Ryōan-ji>. Acesso em 5 de jan. de 2014.
14
Em inglês: “Tiger Cubs Crossing the Water”.
15
KUITERT, WYBE. Themes, Scenes, and Taste, in the History of Japanese Garden Art. XXX p.
114-124, 293-295.
16
Minha primeira visita ao Ryoan-ji foi no verão de 2008.
17
KALOUSTIOAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês - A magia do jardins de Kyoto. São Paulo: Editora
K, 2010. p.156.
18
Ao 19 anos, Shigemori adotou o prenome Mirei em homenagem ao pintor francês Jean-François Millet
(1814-1875) cujos trabalhos naquela época eram populares no Japão. Tomarei a liberdade de me referir ao
paisagista pelo primeiro nome, fato que me interessou por revelar o espírito progressista e visionário do
paisagista.
19
TSCHUMI, Christian. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel: Birkhäuser Architecture, 2007.
p.18.
20
Ibid., 44-47.
21
Do inglês “Eight-fold battlecamp formation”, evento cuja liderança foi marcada pela importante
personagem mítica do século III, Zhuge Liang. In: TSCHUMI, Christian. Mirei Shigemori – Modernizing the
Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2010. p.35.
22
Rochas azul-esverdeadas, comuns na ilha de Shikoku no sul do Japão. São declaradamente as
preferidas de Mirei Shigemori.
23
Em visita ao jardim em março de 2013.
24
Ibid., 38-40.
25
SHIGEMORI, Mirei. Nihon Teienshi Taikei, p. 97, aput TSCHUMI, ibid., p. 42.
26
Em inglês: “The Chanting Dragon’s Hermitage”.
27
Com fonte em TSCHUMI (2007), op. cit. p.118: A lenda conta que Kokushi, uma criança estranha,
dotada de poderes sobrenaturais e concebido maneira mística quando pequeno, foi abandonado em uma
585
montanha onde era costume se abandonar e deixar a morte, crianças que contraíram doenças graves. Nesse dia,
um monge avistou dois cachorros, um preto e um branco que seguiam o jovem Kokuji, que atacado em duas
ocasiões por de lobos selvagens, foi defendido pelos os dois cães. Ao presenciar essas cenas, o monge conclui
que a criança deveria possuir dons especiais e a leva para Kyoto, criando-a como seu discípulo. Kokushi se
tornaria mais tarde um importante monge em Kyoto.
28
Referências sobre jardim Ryôgin-an Hôjô Teien, ibid., p. 117-123.
29
Ibid., p. 64-65.
30
Sistema de graduação das 12 classes de boinas: sistema de cor de origem chinesa que orientaria a
hierarquia da guarda imperial pela cor dos uniformes, reconhecida e atribuída segundo classificação cromática
baseada nas seis qualidades confucionistas e nos seis elementos míticos chineses. Essas cores foram
conhecidas no Japão como kinjiki Ūƍ (cores proibidas) com seu uso autorizado e exclusivo a funcionários do
governo
das
mais
altas
patentes.
Disponível
em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/Twelve_Level_Cap_and_Rank_System>. Acesso em 15 de out. de 2013.
31
Em inglês: “Exploration — The Art Flower Arrangement”. Ibid., 36.
32
Em inglês: “Complete Works of Japanese Flower Arrangament”. Ibid., 36.
33
“By destroying nature, and not just physically, we must establish the art. The lines and colors of art
must be guided by pure creativity.”, ibid.
34
Em inglês: “It is true that in art of flower arrangement the most important thing is to bring nature to life.
But this doesn’t necessary mean bringing it alive in a realistic way. Bringing nature to life means to translate it
inside myself. And in order to make it a thing of myself, all or part of nature has to be transformed: transformed
from the field of nature to field of art, emphasizing the distinction between nature and art. To bring nature to life,
the lines and colors of nature are made into the lines and colors of art.”, ibid.
3535
BRAQUE, George. “Pensando e Reflexões sobre a Arte”. In: CHIPP, H. B. Teorias da Arte
Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2. ed. p. 264.
Referências Bibliográficas
BRAQUE, George. Pensando e Reflexões sobre a Arte. In: CHIPP, H. B. Teorias da Arte
Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2a Ed.
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marco Marcionilo. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
IZUTSU, Toshihiko. The elimination of color in far eastern art and philosophy. In: Color
Symbolism. Six Excerpts from the Eranos Yearbook 1972. Dallas: Spring Publications,
1972.
KALOUSTIOAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês - A magia do jardins de Kyoto. São
Paulo: Editora K, 2010. p.156.
KOREN, Leonard. Gardens of Gravel and Sand. California: Stone Bridge, 2000.
KUITERT, WYBE. Themes, Scenes, and Taste, in the History of Japanese Garden Art.
Honolulu: University of Hawaii Press, 2002.
RIBON, Michel. A arte e a natureza. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1991.
RICHIE, Donald. A Tractate on Japanese Aesthetics. Berkekey: Stone Bridge, 2007.
TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden. Berkeley:
Stone Bridge, 2005.
TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel: Birkhäuser
Architecture, 2007.
Sites
ATSUMI INTERNATIONAL SCHOLARSHIP FOUNDATION. Disponível em:
<http://www.aisf.or.jp>. Acesso em 14 de mar. de 2014.
NARA NATIONAL RESEARCH INSTITUTE FOR CULTURAL PROPERTIES. Disponível em:
<http://www.nabunken.go.jp>. Acesso em 14 de mar. de 2014.
TOFUGU. Disponível em: <http://www.tofugu.com/2013/09/12/the-traditional-colors-of-japanmaking-modern-history>. Acesso em 14 de mar. de 2014.
586
WIKIPEDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Japanese_rock_garden>. Acesso
em 14 de mar. de 2014.
WIKIPEDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Ryōan-ji>. Acesso em 14 de mar.
de 2014.
Yukie Hori
É artista visual e mestranda no Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP.
587
O DISPLAY E AS QUESTÕES CULTURAIS: O CASO DOS GUERREIROS DE
XI´AN
Ana Paula dos Santos Salvat - UNIFESP
RESUMO: O estudo do display das obras de arte é uma abordagem recente que consiste
em investigar o modo de mostrar uma peça ou uma coleção em uma exposição e as
mensagens associadas a essa visualização, as quais atribuem um significado que conduz o
olhar do visitante. O conceito de "arte" tal qual aplicamos hoje é uma criação ocidental do
final do Renascimento. No entanto, engloba-se nesse conceito tudo o que foi produzido
antes desse período bem como a cultura material de povos não-ocidentais, ou seja,
artefatos que não foram feitos para serem obras de arte, mas que, hoje, são considerados
como tais. Ao exibir essas peças no Ocidente, o desafio é remover sua própria lente cultural
e deixar que cada povo fale por si com seus próprios conceitos. Esta pesquisa pretende
levantar as questões referentes ao display dos soldados de terracota de Xi´an, em
exposições no Ocidente, em comparação com a visualidade em seu local original, com
destaque para o conceito e a prática da reconstrução e da cópia de elementos da cultura
material na China.
Palavras-chave: display, exposição, cópia, China, Exército de Terracota
ABSTRACT: The study of the display of works of art is a recent approach of investigating the
way to show a piece or a collection in an exhibition and the messages associated with this
view, which ascribe a meaning which leads the visitor's eye. The concept of "art " as we
apply today is a creation of the end of the Renaissance in western world. However, this
concept includes all that was produced prior to this period as well as non-western peoples
material culture, in other words, artifacts that were not meant to be works of art, but today,
they are considered as such. When viewing these pieces in the West, the challenge is to
remove our own cultural lens and let each people speak for themselves with their own
concepts. This research intends to raise issues relating to the display of the terracotta
warriors in western exhibitions comparing them with the visuality in their original place, with
emphasis to the concept and practice of reconstruction and copying elements of material
culture in China.
Keywords: display, exhibition, copy, China, Terracotta Army
O presente estudo pretende abordar os diferentes tipos de display aos quais
os Guerreiros de Terracota de Xi´an são submetidos, desde seu contexto original de
produção na China e suas especificidades culturais, até suas aparições no Ocidente
por meio de exposições museológicas. Apesar de surgirem outros temas
relacionados ao mausoléu do Imperador Qin Shi Huang Di, como a questão do
realismo das figuras ou os prováveis motivos da construção do complexo funerário,
a ênfase recairá sobre as implicações decorrentes dos diversos modos de mostrar
as peças, e da cópia como uma questão cultural oriental.
588
Introdução ao estudo do display
O contato do público com artefatos e obras de arte de outras culturas e
épocas ocorre, sobretudo por meio das exposições, cujo formato atual teve origem
no Século XVIII com o advento dos museus. No entanto, tais mostras não são
absolutamente neutras ou ingênuas, mas preparadas para conduzir o visitante a um
“modo de ver” proposto por meio da mediação, da informação textual e do modo de
apresentação do objeto e sua relação com os demais.
O display é justamente o “modo de mostrar” uma peça ou uma coleção e as
mensagens associadas a essa visualização, intencionais ou não, estando
intimamente ligado ao contexto cultural de um determinado local em uma
determinada época, regido por questões sociais, políticas e econômicas.
Essa abordagem é recente na História da Arte e tão importante que, pela
primeira vez, o The Getty Reserarch Institute dedicou dois biênios consecutivos
(2009/2010 e 2010/2011) ao estudo do display. Os textos de apresentação dos
Programas Acadêmicos trazem reflexões sobre o conceito:
Mostrar um objeto é afirmar que ele é digno de ser visto. (...). A criação de
determinadas condições de visualização reúne ideias e objetos, criando
narrativas que atribuem significados de modo que nossa experiência com
qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam de acordo
com o modo de exposição. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2009,
tradução nossa)
Display é uma força motriz no mundo da arte, reunindo ideias e objetos e
criando narrativas que atribuem significados. Nossa experiência com
qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam com os
contextos sociais, políticos, econômicos e culturais da sua exibição. Em
alguns casos, os objetos só se tornam obras de arte em virtude de serem
mostrados [como tais]. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2010,
tradução nossa)
Desta forma, o conceito de display está diretamente associado a exposições e
museus. No entanto, sua análise pode ser estendida aos períodos anteriores à
própria noção de arte, como entendemos hoje.
Conforme afirma Susan Vogel (1991, p. 191, tradução nossa),"quase nada
exposto nos museus foi feito para ser visto neles. (...). De alguma maneira,
atribuímos à arte ou aos artefatos de todos os períodos os nossos próprios valores".
Essa afirmação é essencial para a compreensão do que se vê nas instituições. Em
589
museus de arte ocidental moderna e contemporânea pode-se de dizer que grande
parte dos objetos exibidos aspiravam aquele local. No entanto, os museus históricos
ou os etnográficos, ou mesmo todos aqueles que guardam e expõem objetos
anteriores ao século XV e/ou de povos não-ocidentais, reúnem coleções de peças
funcionais de determinadas épocas e regiões. Além dessas peças não terem sido
feitas para museus, a segunda parte da afirmação de Vogel é igualmente importante
e destaca a ação do olhar contemporâneo, e todas as questões culturais que o
forma, sobre o objeto.
Introduzir um objeto, seja ele qual for, em um museu ou numa exposição, é,
por princípio, reterritorializá-lo, ou seja, implica na retirada do objeto de seu local
original de produção ou de funcionalidade e na inserção do mesmo em um outro
contexto, o museu, ou seja, um espaço artificialmente criado para recebê-lo,
conservá-lo, estudá-lo e relacioná-lo com outras peças da mesma coleção ou de
uma mesma exposição. Desta forma, a partir da musealização, cria-se uma nova
mensagem por meio do modo de mostrar o objeto ou a coleção. Esse novo modo de
apresentar um ou vários artefatos reflete os conceitos de quem concebe essa
exposição. Partindo da premissa de que os objetos não foram feitos originalmente
para serem expostos em museus, a mensagem que se passa não é a originalmente
concebida por quem os produziu. No entanto, é primordial que essa "intenção
original" seja conhecida pelo espectador para evitar ideias equivocadas a respeito da
origem e do percurso dos objetos vistos. De fato, nenhuma exposição é neutra, cada
elemento escolhido é carregado de significados que produzem efeitos entre si, com
os objetos, com a arquitetura, com o visitante.
O historiador da arte britânico Michael Baxandall considerou que uma
exposição seria um campo onde três agentes ativos jogam um jogo diferente num
mesmo lugar. Esses agentes são: o autor do objeto, o idealizador da mostra e o
visitante. O primeiro agente, o autor, é o que "compreende sua cultura de maneira
mais imediata e espontânea do que qualquer outro (incluindo o idealizador da
exposição e o visitante)" (BAXANDALL, 1991, p. 35, tradução nossa) e, portanto, o
objeto produzido é fruto de um contexto intrínseco a ele. O segundo agente, o
curador, ou idealizador da exposição, tem como propósito montar uma mostra
instrutiva sob a rubrica de uma teoria da cultura. Por fim, o terceiro agente é o
590
espectador, o visitante, o qual quer ver objetos de interesse visual de outra cultura e
entendê-los. O seu modo de olhar é influenciável pelo modo de mostrar.
Nessa perspectiva, pretende-se apresentar os diferentes modos de olhar os
Guerreiros de Xi´an a partir dos diferentes modos de mostrá-los, bem como discutir a
questão da produção de suas cópias no contexto do intercâmbio das culturas
oriental e ocidental.
Os Guerreiros de Terracota de Xi´an
As esculturas dos Guerreiros de Terracota em tamanho natural são peças
tumulares feitas por ordem de Qin Shi Huang Di, que unificou a China e proclamouse o primeiro imperador da Era Qin em 221 a.C., tendo falecido em 210 a.C. Sua
obsessão pela imortalidade e controle levou-o à construção desse complexo fúnebre
para si, iniciado logo após sua ascensão ao trono e que demorou cerca de 40 anos
para ser finalizado (ASIAN ART MUSEUM, 2013), segundo escritos do historiador
Sima Qian (ca.145 - 95 a.C.). A região do túmulo, descoberta por acaso por
lavradores locais em 1974 em Xi´an, capital da Província de Shaanxi, foi explorada
apenas em parte, pois estende-se por mais de 90 km², mas calcula-se que já foram
descobertas 1.900 peças de um total previsto de 8.000 (ASIAN ART MUSEUM,
2013). Em 1979 foi instituído no local o Museu do Exército de Terracota, o qual
recebe cerca de 5 mil visitantes por ano (NUWER, 2013) que observam não apenas
guerreiros, mas também acrobatas, dançarinos, músicos, carruagens e cavalos:
O exército de terracota foi construído para proteger o Imperador na vida
futura e supervisionar questões militares. Mas, recentes descobertas
provaram que o Primeiro Imperador estava preocupado com sua
administração civil após a morte. Em 1999, onze acrobatas e homens
vigorosos foram encontrados perto no monte da tumba, os quais eram
designados para entreter o Imperador na vida após a morte. Oficiais civis e
escribas de terracota foram encontrados em Outubro de 2000, e, um ano
mais tarde, um pássaro, um ganso em tamanho natural, cisnes e gruas de
bronze (THE BRITISH MUSEUM, 2007, tradução nossa).
Os guerreiros são as figuras mais numerosas e possuem características tidas
como individuais e realistas1. Há, no entanto, muitas teorias sobre o realismo das
peças, e Ladslav Kesner chama a atenção para as desproporções e certos exageros
em partes dos corpos, bem como para as posturas e gestos das figuras de acordo
com a função de cada personagem (KESNER, 1995, p. 118). Quanto aos rostos,
591
Kesner (1995, p. 120, tradução nossa) afirma que "enquanto certas figuras mostram
um notável grau de individualidade, a maioria dos rostos podem ser melhor descritos
como um conjunto de unidades expressivas e representativas pré-fabricadas", ou
seja, as peças possuem "aparência de individualidade sem sua substância, realismo
sem retrato" (KEIGHTLEY, 1991 apud KESNER, 1995, p. 120, tradução nossa).
Além das diferenças fisionômicas, a diversidade entre as peças ocorre sobretudo
pela variedade e detalhamento nas roupas, acessórios e penteados:
Há exemplos impressionantes de realismo visual na arte chinesa antes do
exército de terracota de Qin; mas não há precedente para esse massivo
desenvolvimento de verossimilhança, especialmente evidente na produção
de artigos de vestuário e peças de armadura e adornos. Cintos e ganchos,
botas e sapatos, fechamento de colarinho, coques e tranças são
intransigentemente reproduzidos de maneira plástica. (KESNER, 1995, p.
118, tradução nossa)
O sítio arqueológico de Xi´an é um grande campo de estudos e a cada
período são anunciados novos achados, sejam na área da arqueologia, da
conservação ou da história da arte, por exemplo. Há três pontos abertos de
escavação do Exército de Terracota e, novas descobertas são feitas de tempos em
tempos: "a primeira escavação formal do sítio durou seis anos, de 1978 a 1984 e
produziu 1.087 figuras de argila. Uma segunda escavação em 1985 permaneceu por
um ano mas foi logo interrompida por razões técnicas" (LIE, 2010, tradução nossa),
embora Brook Larmer (2012, p. 115) também acrescente que "um operário roubou a
cabeça de um guerreiro e foi executado ali mesmo". A última delas iniciou-se em
2009, e em 2012 foi anunciado o desenterramento de 310 peças, dentre as quais,
"100 soldados de terracota e cavalos de guerra, dois conjuntos de carruagens, bem
como algumas armas, tambores e um escudo" (MORE..., 2012, tradução nossa),
sendo que esses últimos nunca haviam sido encontrados antes em nenhum dos
pontos de escavação.
Recentemente, o britânico Lukas Nickel, da Escola de Estudos Orientais e
Africanos da Universidade de Londres, publicou o artigo "O primeiro Imperador e a
escultura na China" (2013) pontuando o aparecimento súbito da escultura
representando seres humanos em tamanho natural na China, sem precedente
similar, a partir do interesse do Imperador Qin Shi Huang Di por essa manifestação
artística, a qual "pode ter sido resultado do contato com o mundo contemporâneo
592
Helenístico [século III a.C.]" (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa), uma vez que
naquele século havia influência grega na Ásia Central, em especial, na Índia:
Durante a vida do Primeiro Imperador, o reino Greco-Bactriano de Diodoto
abrangeu toda a Ásia Central, do Jaxartes ao Indus, incluindo o Vale de
Fergana, e a cultura Helenística (e a escultura Helenística) floresceram não
apenas na distante Europa, mas dentro do alcance do crescente império
chinês. (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa)
Nickel (2013, p. 442, tradução nossa) menciona ainda que "as esculturas
encontradas na tumba do Primeiro Imperador da China permanecem isoladas na
história da arte chinesa", devido ao seu caráter particular.
Outra descoberta foi a respeito do colorido que as figuras de terracota tinham
originalmente. Em algumas peças é possível verificar vestígios de cor, mas o contato
com o ar rapidamente desprendeu os pigmentos da argila. No entanto, recentemente
foram encontrados soldados bem preservados:
Uma escavação que durou três anos no mais famoso sítio de Xian, o fosso
1, produziu mais de uma centena de soldados, alguns com feições pintadas,
incluindo cabelo preto, faces rosadas e olhos castanhos ou negros. Os mais
bem preservados foram achados no fundo do fosso, onde uma camada de
lama, criada por inundações, funcionou como uma espécie de tratamento
cosmético, que se estendeu por mais de 2 mil anos. (LARMER, 2012, p.
115)
Esse fato modifica a imagem comum que se tem do conjunto em cor de terra
e permite criar imaginativamente uma nova visão do grupo em cores. Um grande
exército colorido feito para ser enterrado, uma ostentação escondida dos olhos
humanos.
Display dos Guerreiros: da necrópole ao museu
A primeira questão a respeito do grande mausoléu de Xi´an é justamente que
ele foi feito para não ser visto. E assim permaneceu por mais de dois mil anos,
desde seu completo enterramento até o início de sua descoberta em 1974, quando,
então, tem-se revelado para o mundo como um impressionante sítio arqueológico e
campo de pesquisa.
Quem visita o local de um ponto de vista panorâmico tem oportunidade de
vislumbrar a extensão territorial e a grande quantidade de peças, ou seja, obtém
593
uma imagem de um conjunto que emerge de dentro da terra. Essa visão privilegiada
só pode ser experienciada pessoalmente por aqueles vão até o Mausoléu do
Primeiro Imperador Qin, inscrito como Patrimônio Mundial pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1987 (UNESCO, 19922014).
No entanto, na década de 1980 começou-se a organizar exposições em
museus ocidentais com pequenos grupos de Guerreiros de Terracota, sejam
sozinhos ou em conjunto com outras peças dentro de diversos contextos da cultura
chinesa, ampliando o acesso do público às peças. O primeiro lugar a mostrar essas
peças fora da China foi a Art Gallery of New South Wales na cidade de Sydney,
Austrália, em 1983 (TERRACOTA..., 2010). A Europa recebeu-os pela primeira vez
por meio de uma exposição na Suécia em 1984, que voltou a mostra-los em 2010,
no Museu da Ásia Oriental, em Estocolmo, em comemoração ao 60º aniversário do
estabelecimento de relações diplomáticas entre China e Suécia (FANG, 2010).
Finalmente, eles chegaram à América em 1985 numa mostra realizada no Instituto
de Artes de Minneapolis, Estados Unidos (MINNEAPOLIS INSTITUTE OF ARTS,
[2012]).
Vinte anos após a primeira exposição do Exército de Terracota fora de seu
local original, eles chegaram ao Brasil. Entre 21 de fevereiro e 8 de junho de 2003, o
Pavilhão Lucas Nogueira Garcez (Oca) no Parque Ibirapuera, São Paulo, recebia
centenas de peças oriundas de 18 museus de Shaanxi e do Museu do Palácio
Imperial da Cidade Proibida, entre as quais treze esculturas de terracota (onze
guerreiros e dois cavalos) para a mostra "Os Guerreiros de Xi´an e os tesouros da
Cidade Proibida"2 vista por 817.782 pessoas, que fizeram dela a exposição mais
visitada do país3. Esse evento foi fruto de acordos políticos de cooperação bilateral,
assinados em 2001, entre Brasil e China, que iniciaram suas relações diplomáticas
em 1974.
Nesse contexto de exposições museológicas, a espacialidade muda a
visualidade das peças. Evidentemente perde-se a visão do conjunto do local original,
mas, por outro lado, as peças são observadas em sua individualidade, com uma
proximidade que permite a apreensão dos detalhes, impossíveis de serem notados
com tanta acuidade à distância no sítio arqueológico.
594
A museografia das exposições é variável, mas um fator primordial é a
proteção das frágeis esculturas, o que leva os conservadores, muitas vezes, a
colocarem-nas sob cúpulas de vidro individuais, como foi feito na exposição em São
Paulo. Em outros locais, como na Itália, em 2010, os guerreiros, sem cúpulas, foram
agrupados sobre uma plataforma baixa na Curia Julia, Fórum Romano, próximos a
antiguidades locais, na mostra "Os dois impérios: a águia e o dragão", a qual
celebrava duas grandes potências do passado: Roma e China (BALLESTRAZZI,
2010). Apesar de mais restritiva à primeira vista, as cúpulas permitem uma maior
aproximação e uma vista de 180º das peças, enquanto a base limita a visualização
de certas partes das esculturas, apesar de não existir nenhum anteparo visual entre
os olhos e a obra. Os tipos de guerreiros selecionados dependem da curadoria de
cada mostra, mas, em geral o que se observa é que as escolhas sugerem certa
variedade, enfatizando as diferenças entre eles e trazendo à tona o tema da
individualidade e do realismo, já abordados no item anterior.
A questão da reconstrução como ato de preservação no Oriente
A China é uma civilização não-ocidental milenar, "a mais antiga das culturas
ainda vivas" (SULLIVAN, 1971, p. 10), onde arte e vida se misturam.
Uma característica essencialmente oriental é a preservação da cultura
material mediante a produção de cópias, ato reverente de manter sua aparência, seu
material e seu modo de produção. Prática comum na China, no Japão e em outros
povos, a reconstrução remete a uma visão cíclica do tempo e da preservação dos
costumes, da alimentação e do sistema social por séculos:
As dinastias ascendem e caem, são substituídas por novas, mas como a
Cidade Proibida emergindo de seu último incêndio, permanecem
fundamentalmente as mesmas: cada novo grupo governante mantém o
"mandato do céu". Na Era Imperial, os chineses contavam os anos pelas
dinastias, de modo que o tempo recomeçava a cada uma que se renovava
(STILLE, 2005, p. 73).
No entanto, a produção de cópias é impensável no Ocidente, especialmente
no campo da conservação e restauro de obras de arte, e até mesmo considerada
como fraude. E essa é uma questão na qual se insere, diretamente, o Exército de
Terracota:
595
Quando Michele Cordaro, diretor do Instituto Central de Conservação
Italiano, foi visitar o famoso exército de guerreiros de terracota em Lintong,
nos arredores de X´ian, ficou em estado de choque com o que aconteceu:
seus colegas chineses o levaram diretamente do antigo sítio arqueológico
para uma fábrica que estava produzindo réplicas modernas dos soldados do
túmulo do imperador (STILLE, 2005, p.71).
Os Guerreiros de Xi´an são peças frágeis e de grande valor econômico e a
China tem limitado a quantidade deles que saem do país, fato destacado nas
reportagens sobre as exposições das peças em diferentes países ao redor do
mundo. Em 2012, por exemplo, ao divulgar a abertura da exposição "Tesouros
Chineses" no Museu do Palácio de Topkapi, em Istambul, Turquia, o Jornal Daily
News afirmou que "de acordo com a lei chinesa, é proibido levar mais de cinco
soldados de terracota para fora do país" (CHINESE..., 2012, tradução nossa). No
ano seguinte, o Museu de Arte Asiática de São Francisco, EUA, anunciou a
exposição "Guerreiros de Terracota da China: o legado do primeiro Imperador",
apresentando "dez figuras de terracota em tamanho natural - o número máximo
permitido fora da China numa única exposição" (ASIAN ART MUSEUM, 2013,
tradução nossa). Anos antes, em 2007, o Museu Britânico, em cooperação com
alguns museus norte-americanos, organizou uma exposição itinerante de dois anos
intitulada "O primeiro imperador: o exército de terracota", a respeito da qual um
artigo na Revista do Instituto Smithsonian, em Washington DC, anunciava a
participação do maior número de Guerreiros de Terracota fora da China, admitindo a
presença de réplicas de peças de bronze:
Além de mostrar descobertas recentes, as exposições apresentam a maior
coleção de peças de terracota já mostrada fora da China. A estatuária inclui
nove soldados dispostos em formação de batalha (oficiais armados,
soldados de infantaria, em posição de pé e arqueiros ajoelhados), bem
como um cavalo de terracota. Outro destaque é um par de carruagens de
bronze, cheias de detalhes, de três metros de comprimento, cada uma,
puxadas por quatro cavalos de bronze. (Demasiado frágeis para serem
transportadas, as carruagens são representadas por réplicas). (LUBOW,
2009, tradução nossa)
Quando a exposição foi para o High Museum, em Atlanta, o museu norteamericano também divulgou que era "a maior coleção de figuras que deixou a
China" (BALL, 2008, tradução nossa).
No entanto, o episódio mais controverso ocorreu na Alemanha, em 2007,
quando o Museu de Etnologia de Hamburgo recebeu a exposição "Poder da Morte",
organizada pelo Centro de Artes e Cultura Chinesas (CCAC), com oito Guerreiros de
596
Terracota, dois cavalos e sessenta peças menores. A questão polêmica foi a
divulgação de que os guerreiros eram cópias. O diretor do Museu de Hamburgo
disse não saber que as peças não eram originais e que a CCAC havia mostrado um
certificado de autenticidade das peças. Dois anos antes, a mostra havia acontecido
na cidade de Leipzig com a clara divulgação de que os guerreiros não tinham dois
mil anos. Autoridades da cidade de Xi´an confirmaram que, na época, a única
permissão dada para empréstimo de peças originais para exposição em locais
distantes foi para o Museu Britânico, na mostra, já mencionada, que ocorria no
mesmo ano. O caso foi considerado um crime no mundo da arte (CONNOLLY, 2007).
Quanto à exposição no Brasil, com curadoria de Cristiana Barreto e Luís
Donisete Benze Grupioni, e inaugurada em 20 de fevereiro de 2003 com a presença
do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, não houve menção à existência de cópias e
o número total de peças divulgado variou conforme a fonte. Na edição eletrônica da
Revista Época (OLIVEIRA, 2003) falou-se em mais de 350 peças, enquanto Edemar
Cid Ferreira, Presidente da BrasilConnects, entidade organizadora da exposição no
Brasil, escreveu em seu site que vieram 260, e que a lei chinesa só permitia a saída
de 140 obras (FERREIRA, 2011). De qualquer forma, a presença de treze peças do
exército de terracota, sendo onze guerreiros e dois cavalos, ultrapassa qualquer
limite de quantidade de obras originais a deixar a China, conforme mencionado
anteriormente em outras exposições.
Conclusão
Desde que foram despertados de seu sono milenar os Guerreiros de Xi´an
atraem grande atenção. As exposições museológicas tornaram o acesso do público
a essas peças mais amplo, pois ocorrem em diversas partes do mundo. No entanto,
a experiência visual no sítio arqueológico tem um impacto que nenhuma exposição
reproduz, pois é possível contemplá-lo em visão superior como conjunto que se
estende à distância, o que permite dimensionar sua amplidão. As mostras
temporárias apresentam poucas peças, as quais são dispostas em vitrines ou
plataformas que as deixam praticamente no mesmo nível visual do visitante,
permitindo a apreciação de seus detalhes e enfatizando sua dimensão humana.
Desta forma, a produção das peças de maneira individual e distinta é muito melhor
597
contemplada não em seu local original, mas no ambiente construído pelas mostras,
ou seja, se no sítio tem-se a percepção do poder do Imperador, na exposição,
contempla-se o trabalho humano do artesão.
No que se refere à produção de cópias das peças, seriamente executadas
com habilidade pelos chineses, a obsessão do Ocidente pela autenticidade da
matéria de seu patrimônio histórico e artístico torna a questão bastante polêmica.
Devido às restrições da lei chinesa quanto à exportação temporária das obras e pela
própria fragilidade delas, algumas das exposições devem ter apresentado réplicas,
sem que o visitante soubesse ou mesmo pudesse notar a diferença. Esse fato
levanta a questão da possibilidade de fruição da obra e da apreensão de suas
características, o que não é um debate exclusivo dos Guerreiros de Xi´an, mas está
presente também em obras manipuláveis ocidentais contemporâneas, como nos
Bichos, de Lygia Clark, por exemplo. No entanto, a exposição das réplicas respeita o
contexto cultural tipicamente oriental de produção de cópias, o que "tem sido
tradicionalmente parte importante do treinamento artístico na China - encarado como
uma espécie de reverência, em vez de falta de originalidade"4 (STILLE, 2005, p. 74),
e que tem seu valor para estudo, afinal, o copista foi quem melhor observou a peça.
Além disso, como notou Michele Cordaro, entre o original e a cópia, ambos feitos
pelos chineses, "ninguém consegue distingui-los" (STILLE, 2005, p. 70).
As constantes descobertas que surgem com o contínuo trabalho de
escavação em Xi´an e os temas levantados com o estudo do local e das peças,
como
os
que
foram
aqui
abordados,
mesmo
que
polêmicos,
produzem
conhecimento em várias áreas da atividade humana, fazem do Exército de Terracota
um assunto constante na mídia, e, com isso, garantem que se cumpra o último
desejo do Imperador Qin Shi Huang Di: sua imortalidade.
Nota
1
Os soldados foram representados em diferentes patentes e graduações de acordo com a roupa e
adornos nas cabeças.
2
De fato, o título unificado refere-se a duas exposições concomitantes: "5 Mil Anos de Civilização:
Relíquias de Shaanxi e os Guerreiros de Xi´an" e "Tesouros da Cidade Proibida: Símbolos da Autoridade
Imperial". A redução do título tornou mais prática a divulgação do evento e foi adotado no Guia de Visitação da
exposição, mas, nos catálogos (um para cada mostra) foram mantidos os títulos oficiais, os quais denotam os
dois grandes núcleos da exposição: Shaanxi e Pequim.
598
3
A exposição sobre a China na Oca teve o maior público em um único edifício, pois a "Mostra do
Redescobrimento" (2000) teve um público total de 2,1 milhões de pessoas, mas abrangeu três edifícios dentro do
Parque Ibirapuera e durou 6 meses (MOSTRA..., jun. 2003).
4
No mesmo texto, Alexander Stille cita o pesquisador Ken DeWoskin, professor de estudos chineses da
Universidade de Michigan, o qual explica as duas palavras que a língua chinesa tem para cópia: Fang Zhipin e
Fu Zhipin. A primeira "é o termo mais aproximado do que chamamos de reprodução - uma réplica que se pode
comprar em lojas de museus -, já Fu Zhipin é uma cópia de alta qualidade, algo de valor que pode ser estudado
ou colocado em um museu" (STILLE, 2005, p. 74).
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THE GETTY RESEARCH INSTITUTE. 2010/11: the display of art. Los Angeles, 2010.
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UNESCO. Mausoleum of the first Qin emperor. [Paris], 1992-2014. Disponível em: <
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Smithsonian Books, 1991. p. 191-203.
Ana Paula dos Santos Salvat
Bacharel em Artes Plásticas pela USP (1996) com Especialização em Organização de
Arquivos pela UNICAMP (1999) e Mestrado em Artes pela UNESP (2003), está ampliando
sua formação cursando a graduação em História da Arte pela UNIFESP. Tem experiência
em documentação e conservação de obras de arte e montagem de exposições, tendo
trabalhado em museus de São Paulo por mais de treze anos.
600
AS EXPOSIÇÕES DE ZHĀNG DÀQIĀN NO BRASIL: FRAGMENTOS DE UMA
APROXIMAÇÂO INCOMPREENDIDA
Marco Antonio Baena F. Filho - UNESP
RESUMO: Considerado por muitos como um dos maiores pintores tradicionalistas chineses
do século XX e alcançando cifras bilionárias nos mais importantes leilões do mundo, Zhāng
Dàqiān (°) ainda é um desconhecido em nosso país, mesmo tendo vivido 17 anos na
cidade de Mogi das Cruzes, onde pintou obras importantes de sua carreira e construiu seu
famoso “Jardim das oito virtudes” (sð ). Embora tenha exposto seus trabalhos em
galerias e museus de dezenas de países do Ocidente e do Oriente, desde o período em que
aqui viveu até os dias de hoje, só houve cerca de 10 exibições de seu trabalho e apenas
uma de suas obras figura nos acervos de museus nacionais. Os registros dessas
exposições são escassos, seu imenso jardim chinês foi desapropriado e inundado para a
construção de uma represa, a memória da passagem desse importante artista, 30 anos
após sua morte, está em vias de se apagar. O presente artigo visa reunir e organizar os
registros disponíveis das exposições de Zhāng em museus e galerias do Brasil, provas da
aproximação desse artista que nunca aprendeu o português, mas que através de sua obra
se comunicou com o país que escolheu para viver e que, infelizmente, até hoje ignora sua
existência.
Palavras chave: Zhāng Dàqiān, Chang Daí-Chien, Exposições, Brasil.
ABSTRACT: Considered by many as one of the most important Chinese traditionalist
painters of the XX century and reaching billionaire numbers in some of the most important
auctions in the world, Zhāng Dàqiān ( ) still unknown in our country, even if he has
lived 17 years in the city of Mogi das Cruzes, where he painted important works of his career
and construed his famous “Eight Virtue Garden” ( ). Although he had exhibited his
pieces in galleries and museums of many countries from East and West, since the period
that he lived here up unto now, there were approximately 10 exhibitions of his work and only
one of his pieces figures in a public collection. The registers of these exhibitions are scarce;
his immense Chinese garden was expropriated and flooded for the construction of a dam.
The memory from the passage of this important artist 30 years after his death may soon fade
away. The present article aims to gather and organize the available data of Zhāng Dàqiān
exhibitions in museums and galleries from Brazil. These exhibitions are evidence of the
relationship of this artist with the country that he chose to live, even without ever learning
Portuguese, and where his history unfortunately still remains neglected.
Keywords: Zhāng Dàqiān, Chang Daí-Chien, Exhibitions, Brazil.
Introdução
Pintor, poeta, calígrafo, escritor, paisagista, colecionador, estudioso, filósofo,
professor, literati e viajante, são só alguns dos adjetivos que classificam Zhāng
Dàqiān¹, sem dúvida um dos maiores artistas do século XX, considerado um dos
maiores pintores chineses dos últimos 500 anos, dono de um imenso legado artístico
601
e de uma história de vida curiosamente espetacular. Tendo vivido por 17 anos no
Brasil, onde produziu algumas das obras mais importantes e esteticamente
inovadoras de sua carreira, além de ter exposto em importantes museus e galerias
de nosso país.
A ideia desse artigo surgiu da necessidade de reunir informações e materiais
disponíveis em acervos, bibliotecas, publicações acadêmicas e jornalísticas sobre
essas exposições, visando uma melhor organização das referências necessárias
para que outras pesquisas possam ser desenvolvidas e tendo como objetivo a
preservação da memória da passagem desse grande mestre pelo Brasil, além da
divulgação de sua obra para o público, gerando massa crítica sobre o artista, a
pintura chinesa e a arte Oriental como um todo.
Zhāng Dàqiān nasceu em 1899, em Neijing, na província de Sichuan, China,
aprendeu a desenhar com a mãe e os irmãos, que também eram artistas. Em 1916,
logo após passar três meses em poder de sequestradores, foi para Quioto, no Japão,
onde aprendeu tinturaria e tecelagem industrial por cerca de 3 anos. Em seguida,
voltou para a China, mudando-se para Xangai, onde aprofundou seus estudos em
escrita chinesa de diversas épocas com os calígrafos Nung-Jan e Li Mei-An, nessa
época, também teve contato, por meio de seus professores, com as obras de Shitao
e Bada Shanren (Zhu Da), dois dos maiores pintores clássicos chineses e
referências assumidas do artista, de quem passou a reproduzir as obras até
desenvolver sua técnica a um nível que seus trabalhos se tornaram quase
indistinguíveis dos velhos mestres (TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 381 ; JOHNSON,
1999).
Seguindo sua filosofia de viajar buscando acumular um repertório daquilo que
o artista chamava “paisagens mentais” (DAQIAN, 1965), Zhāng Dàqiān iniciou o que
seria uma longa série de viagens pela China que durariam uma boa parte de sua
vida, conhecendo a natureza e as obras de arte que o influenciariam ao longo de
sua carreira. Foi durante essas peregrinações que, em 1940, visitou as grutas de Mo
Gao em Dunhuang, famosas por manterem conservadas centenas de esculturas e
pinturas murais de arte budista, compreendendo um período que vai desde meados
da dinastia Han (206 a.c – 220 d.c) até a dinastia Tang (618 d.c-907 d.c). Zhāng
Dàqiān passou um período de 2 anos reproduzindo as obras-primas presentes nas
602
grutas, em um trabalho que resultou em cerca de 110 cópias e a publicação de um
livro sobre sua experiência. As exposições dessas obras foram as que o tornaram
um artista mundialmente conceituado, mesmo já tendo realizando exposições de
grande repercussão desde 1925 no Japão, Coréia, França e diversas partes da
China (HSIAO & ROSS, 2011; TEIXEIRA LEITE, 1999).
O Brasil e o “Jardim Ba De”
Por volta de 1950, após ter conhecido grande parte da China, Zhāng Dàqiān
começa uma longa série de viagens pelo mundo, embora retornando regularmente a
sua terra natal, se estabelece por longos períodos em países como a Índia, onde
estudou as grutas de Ajanta e expôs em Nova Deli e, mais tarde, na Argentina, onde
viveu por cerca de um ano e expôs em Buenos Aires, até se mudar definitivamente
com toda sua família, por volta de 1953, para a cidade de Mogi das Cruzes, no
interior do estado de São Paulo, onde adquiriu uma enorme área de 6 Alqueires
(cerca de 145,2 Km²) no distrito de Taiaçupeba.
Zhāng Dàqiān daria inicio a um longo projeto de construir um imenso jardim
tradicional chinês que nomeou como "Ba De Yuan" (sð
), do chinês, o "Jardim
das Oito Virtudes". Para entender a obra de Zhāng Dàqiān e sua passagem pelo
Brasil, precisamos refletir sobre o que era e o que significou o Jardim Ba De para o
seu trabalho. Na estrada da Capela do Ribeirão, Km 18, localizava-se a entrada do
sítio, um enorme corredor de bambuzais que dava acesso à imensa propriedade,
onde o artista organizou ordenadamente enormes pedras naturais do Brasil nas
quais entalhou, simbolicamente, ideogramas chineses, também mandou cavar um
imenso lago que nomeou como "Wu Ting Hu", do chinês, “Lago dos cinco pavilhões”,
que foi possível graças a um pequeno desvio no curso de um dos rios que cruzava o
imenso terreno.
O artista também plantou diversas espécies de plantas chinesas e brasileiras,
seguindo a antiga paisagística chinesa aliada a seu gosto pessoal, manteve,
também, uma enorme criação de Penjing trazidos do Japão e árvores frutíferas das
quais, aliás, não colhia as frutas por razões estéticas, sendo notáveis seus
numerosos pés de caquis, também plantou diversas espécies de flores que serviam
603
de inspiração para muitas pinturas, além de vários animais, dentre eles, os bugios,
pelos quais tinha muito apreço e costumava carregar nos ombros, tema frequente
em muitas de suas obras. O pintor chegou a criar 10 macacos dessa espécie, o
maior número que jamais criara (GEISSMAN, 2008), também haviam 2 cães da raça
São Bernardo que foram trazidos da Suíça pelo próprio artista e que são
provavelmente os primeiros exemplares desses animais no Brasil (BARROS
FERREIRA, 1966, p.10; TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 379; HSIAO e ROSS, 1999).
Zhāng Dàqiān também construiu ali seu ateliê, denominado “Pavilhão Da
Feng”, do chinês “Grande Vento”, onde produziu uma parte muito importante de
suas obras que seriam expostas em diversos países nas suas constantes viagens
para o exterior e onde desenvolveu um estilo de pintura inovador. Com problemas
de visão devido a diabetes, Zhāng Dàqiān passou a adaptar sua produção às
condições que lhe foram impostas, sintetizando cada vez mais as pinceladas e
chegando, muitas vezes, a resultados abstratos e às vezes, até mesmo,
esparramando a tinta sobre o papel, formando manchas, a partir das quais dava
continuidade às pinturas, que às vezes eram mescladas a elementos figurativos.
Alguns críticos chegaram a comparar essa estética com o expressionismo abstrato
que se desenvolvia no Ocidente, Zhāng Dàqiān, no entanto, respondia dizendo que
se tratava apenas de uma antiga técnica tradicional chinesa conhecida como
“PoMoFa” ou “Pocai”. (TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 385)
Esse ateliê, e também sua própria residência foram construídos com
influência da arquitetura chinesa, transformando o lugar em um pequeno pedaço da
China em pleno Brasil. É necessária a reflexão de que, em momento algum, o artista
e sua obra se separam seu jardim, sua filosofia de vida, seus poemas e suas
pinturas, além da própria figura do mestre, a longa barba e o peculiar jeito de se
vestir dos literati chineses, andando sempre com um cajado à mão. Avistar o artista
era um verdadeiro choque cultural em plena década de 60 no Brasil.
Em sua propriedade, além de alguns discípulos e membros da comunidade
chinesa no Brasil, Zhāng Dàqiān recebeu diversos jornalistas, artistas, curiosos e
personalidades brasileiras, sempre muito abertas à nossa sociedade. Foram os
registros dessas pessoas, fruto da simplicidade e boa vontade do mestre, que nos
permitiram imaginar como era grandioso e importante o local onde ele passou 17
604
anos de sua vida e que, infelizmente, foi desapropriado e inundado para a
construção da represa de Taiaçupeba.
Zhāng Dàqiān, que na época, também possuía uma propriedade de menor
porte em Carmel, no estado da Califórnia, mudou-se em definitivo para os EUA,
levando consigo sua família e toda sua imensa coleção de arte, que além de seu
próprio trabalho, incluía obras de diversos períodos da história chinesa e até mesmo
de artistas como o espanhol Pablo Picasso, que havia conhecido na década de 60,
durante uma de suas muitas viagens (HSIAO e ROSS, 1999, p. 94; MONTEIRO,
1960; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1966; FERREIRA, 1966; DIÁRIO DA NOITE,
1969).
VI Bienal e o início das exposições Brasileiras
Quando a primeira exposição com obras de Zhāng Dàqiān aconteceu no
Brasil em 1961, o artista já morava em Mogi há cerca de 8 anos. Em 1960, já havia
notícias de jornal sobre o curioso fato de um dos mais importantes artistas chineses
estar morando em um sítio no Brasil, incluindo uma grande reportagem escrita pelo
jornalista Jeronimo Monteiro para a Folha da Manhã(Vide figura 1), relatando como
encontrou o “Jardim Ba De” por acaso, enquanto buscava um certo chinês que
criava macacos por indicação do Zoológico de São Paulo (MONTEIRO, 1960).Zhāng
Dàqiān que, naquela época, havia completado 60 anos de idade e já era um artista
mundialmente famoso, inclusive tendo exposto naquele mesmo ano em Genebra e
Paris, ocasião na qual teve algumas pinturas adquiridas pelo MAM de Nova York.
Quando se inaugurou a “VI Bienal de São Paulo”, com curadoria de Mário
Pedrosa e obras de importantes artistas de diversos países como o brasileiro Alfredo
Volpi, o francês Eugène-Louis Boudin, o alemão Kurt Schwitters, dentre vários outros,
talvez tenha sido uma feliz coincidência que a delegação do Museu Nacional de
Taiwan, responsável pelas obras chinesas da exposição, tenha trazido de seu
acervo 7 pinturas de Zhāng Dàqiān. Feliz coincidência, pelo fato de que diversas
matérias de jornais da época, ao tratar da VI Bienal e das obras da delegação
chinesa, citavam as obras do artista mas, em momento algum, que o mesmo morava
em nosso país. Nem mesmo no catálogo da exposição, onde um texto conta com
605
detalhes a vida e a trajetória do mestre chinês citando, inclusive, o nome de seu
estúdio, não há nenhuma informação sobre os anos em que o mestre já vinha
vivendo e produzindo no Brasil. Talvez ofuscado por artistas ocidentais, a imprensa
brasileira simplesmente ignorou que um dos mais importantes artistas da exposição,
morava há apenas poucas horas de distância de onde era realizado o evento
Um ano depois, em 1962, o Embaixador da China no Brasil homenageou os
organizadores da exposição e os participantes chineses, citando inclusive sua
importância internacional, porém, também não citou sua vida no Brasil. No catálogo
publicado na época, podemos encontrar detalhes da sala da delegação chinesa, que
contou com obras de 8 artistas, além de Zhāng Dàqiān, que possuía uma sala
especial com 7 Pinturas: 2 de suas grandiosas composições de Lótus, com 6 painéis
cada; “O Barco”, que conta com um poema onde se pode ler “Escrito no Pavilhão do
Grande Vento” (talvez o motivo pelo qual o nome de seu ateliê tenha sido citado no
catálogo da exposição); 3 Paisagens tradicionais com poemas e inscrições; e uma
tela retratando um Bugio, todas pertencentes ao Museu Nacional de Taiwan.
(HOFFMANN, 2011; MUSEU DE ARTE MODERNA, 1961; O ESTADO DE SÃO
PAULO, 1961, 1962a, 1692b; CORREIO PAULISANO, 1960; JORNAL DO
COMÉRCIO, 1961).
Entre julho e agosto de 1963, o importante fotografo chinês Long JingShan
veio ao Brasil visitar seu amigo de longa data, com quem havia fundado, por volta de
1927, a Sociedade Huang, que congregava amantes da natureza (TEIXEIRA LEITE,
1999, p.383). O fotógrafo veio também admirar e conhecer o Jardim Ba De, onde
registrou alguns trabalhos que seriam futuramente publicados em dois livros, alguns
deles, inclusive, em parceria com Zhāng Dàqiān Nessa ocasião, Long JingShan
expôs algumas de suas obras no Rio de Janeiro e no Foto Cine Clube Bandeirante,
onde foi nomeado membro honorário e homenageado em uma cerimônia solene.
Seu amigo, Zhāng Dàqiān, entretanto, ainda demoraria 3 anos para receber suas
primeiras homenagens em terras brasileiras. Nesse meio tempo, o artista teria suas
obras expostas em Hong Kong, Malásia, Singapura, Tailândia, Nova Iorque,
Alemanha e Inglaterra, tendo inclusive vendido muitas de suas obras para
importantes acervos, incluindo uma composição de lótus em 6 painéis, vendida por
140 mil dólares, maior preço já pago por uma pintura chinesa (LAI e KIN-KEUNG e
EDWIN, 2000).
606
Figura1. Zhāng Dàqiān com macaquinho aos ombros em seu “Jardim Ba De”, foto tirada na ocasião
da reportagem de Jerônimo Monteiro, originalmente publicada na “Folha da Manhã” em 01/07/1960.
Fotografia de Jerônimo Monteiro.
MASP e MNBA: A Descoberta de Zhāng Dàqiān
Às 18 horas do dia 29 de março de 1966, Zhāng Dàqiān finalmente realizou
sua primeira exposição individual em nosso país, no Museu de Arte de São Paulo,
na época ainda localizado na Rua 7 de Abril. A imprensa e a sociedade brasileira
finalmente haviam notado sua presença. Assis Chateaubriand, dono dos “Diários
Associados”, e que praticamente comandava a imprensa na época, além de ser um
dos fundadores do MASP, homenageou o pintor em uma cerimônia de inauguração
em sua residência, conhecida como a “Casa Amarela”. Contando com a presença de
diversos figurões da sociedade paulistana, o embaixador da China no Brasil ChiHsien Mao, magnatas, diplomatas, personalidades e, inclusive, personagens ligadas
607
aos anos de chumbo da ditadura militar que, dali poucos anos viveria seu auge de
repressão e censura como o Coronel Amary Kruel e Henning Boilesen,
provavelmente interessados em ver de perto esse dissidente da China Maoísta.
Na cerimônia de inauguração da exposição ocorreu outro fato digno de nota,
durante a cerimônia, Zhāng Dàqiān doou uma de suas valiosas “Paisagens Suíças”
para o acervo do MASP, fato que foi celebrado pela imprensa da época como um
grande acontecimento. Estava, assim, inaugurada a exposição, contando com 23
obras da coleção particular do artista, algumas delas produzidas em Mogi e já
apresentando a estética inovadora da tinta espirrada no papel. Eram elas: “Ink Play”;
“Montanha de Nuvens”; “Montanha e Barco a vela”; “Pescando sob o Rochedo”;
“Visitando amigos na montanha de outono”; “Montanha na Primavera”; 5 “Paisagens
Suíças”; “Montanha Omei”; “Garganta Wu sobre o Rio Yangtze”; “Retiro do poeta
TuJu”; “Subindo as alturas no nono dia do nono mês”; “Pinheiro Velho”; “AutoRetrato aos 30 anos”, “Cascata no lago Geneva”, “Montanha Hwang”, “Pico da
montanha Ynmen”; “Lótus Branco”; e “Passeio ao longo do rio observando as flores
de ameixeiras”, que foi adquirida por Assis Chateaubriand e doada ao acervo da
Pinacoteca de Porto Alegre. Após a exposição, o artista foi assunto de diversas
reportagens e matérias de revistas, o Jardim Ba De passou a ser frequentemente
visitado e Zhāng Dàqiān deu início a uma série de exposições no nosso país (O
DIÁRIO DE SÃO PAULO, 1966; DIÁRIO DA NOITE, 1966; O ESTADO DA
GUANABARA, 1966).
Logo após a exposição realizada no MASP, em 3 de Maio de 1966, outra
exposição individual de peso foi inaugurada, dessa vez no Museu Nacional de Belas
Artes, no Rio de Janeiro. Denominada “Chang Daí-Chien: Grande Pintor da China
Contemporânea”, a exposição prova que o artista finalmente havia adquirido
reconhecimento em nosso país. O museu carioca contou com 36 obras do grande
mestre, 13 a mais que o MASP, sendo a maior exposição realizada pelo pintor no
Brasil.
A cerimônia de inauguração foi presidida pelo embaixador chinês ShaoChang Hsu e contou com a presença de diversas personalidades diplomáticas,
jornalistas, estudiosos e curiosos em geral, tendo cobertura da mídia carioca (v.
Figura 2). Na ocasião foi publicado um catálogo com uma pequena biografia do
608
artista, além de uma introdução do embaixador Chang-Hsu, na qual se pode ler a
seguinte passagem:
É desejo sincero do próprio Chang Dai-Chien e de todos os seus
compatriotas-admiradores que através da presente exibição aqui no Rio de
Janeiro, a mesma consiga transmitir uma mais ampla e melhor apreciação
do que há de melhor na arte chinesa, a fim de contribuir para um maior Inter
fluxo cultural entre os dois países. (MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES,
Catálogo de Exposição,1966)
No catálogo, também foram publicadas reproduções em preto e branco de 4
obras e a relação das pinturas expostas. Eram elas: “Montanha na Primavera”;
“Montanha sob a Chuva”; “Vale Solitário”; “Poço d’Água ao por do sol”; “Bambus”;
“Precipício Fragoso e Lago Límpido”; “Eremita”; ”Montanha Solitária antes das
chuvas”; “Dois Picos no Ocaso”; “Riacho Tranquilo e a cascatinha”; “Casa Velha na
Montanha Deserta”; “Picos Maravilhosos” ;”Legumes”; “O Velho e os Crisântemos”;
“Imagem invertida da montanha num lago solitário”; “Pescadores no rio Stang”;
“Moradores a entrada de um vale”; “Rochedos Fragosos ao Crepúsculo; 2 obras
retratando Peônias; 5 de suas “Paisagens Suíças”; “Barco a vela no desfiladeiro Wu
no rio YangTze”; “Ancião com pinheiro e rochedo”; “Lótus Branco”; “Petúnias”; “Lótus
na chuva”; “O Eremita e o Pinheiro”; “Dois Anciões em cima da montanha Huang”;
“Cascata no Outono”; “O Pico supremo de Heng-Shan”; e “Um claro da floresta no
outono”. Essa exposição no MNBA gerou grande repercussão da imprensa da época
(JORNAL DO COMÉRCIO, 1966; CORREIO DA MANHÃ, 1966; MUSEU NACIONAL
DE BELAS ARTES, 1966).
609
Figura 2. Zhāng Dàqiān na abertura de sua exposição no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de
Janeiro em 1966. Foto publicada originalmente no jornal “O Estado da Guanabara” no dia 04/05/1966.
Um ano depois, no dia 27 de Junho de 1967, às 18 horas, foi a vez dos 4
discípulos, que vinham estudando a técnica do velho mestre e convivendo com ele
no Jardim Ba De, inaugurarem a primeira exposição. Eram eles: Shang Yiu-Cho,
Wong Tan-Tan, Sun Chia-Chin e Shen Chieh, também conhecida como Judy Shen,
que vive até hoje no Brasil e cedeu gentilmente uma entrevista para o
desenvolvimento desse artigo. A exposição “4 Pintores Chineses” contava com 16
obras, 4 de cada artista. Na ocasião, cada discípulo doou uma obra para o acervo do
museu, sendo elas: “Flor de Lótus” de Shang Yui-Cho; “O Pescador” de Shen Chieh;
“O Gibão” de Sun Chia-Chin²; e “Mestre Passeando” de Wong Tan-Tan, todas elas
doadas por Assis Chateaubriand para o MAAC de Campina Grande, durante sua
campanha de “Museus Regionais” e que hoje integram o acervo dessa Instituição.
Nesse mesmo ano, o artista realizaria uma importante exposição com os traçados de
Dunhuan no Museu Nacional de Taipé (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1967).
610
Exposições comerciais: MAM e Galerias particulares
No dia 21 de Junho de 1968, às 19:00 horas, dois anos após a sua última
exposição no Brasil, iniciava-se a primeira exibição de caráter comercial de Zhāng
Dàqiān, na galeria paulistana Atrium, localizada na Rua São Luis, onde foram
expostos e disponibilizados para venda 18 trabalhos, dentre eles “Pescando na
Primavera”. Na ocasião, o Jornalista José Geraldo Vieira escreveu um pequeno texto
de caráter poético sobre o mestre para a “Folha de São Paulo”, e o jornalista
Geraldo Ferraz escreveu para o “O Estado de São Paulo” um texto de análise e
apresentação das obras do pintor. Nesse mesmo jornal, no dia 20 de junho, foi
publicado um pequeno texto com o título “Mestre Chinês Expõe Amanhã”, em que o
autor relata uma visita ao Jardim Ba De, ocasião na qual o velho mestre teria
comentado que escolhera o Brasil para viver graças a algumas semelhanças com a
sua terra natal, como o clima, a alimentação e também o espírito pacífico do povo.
Irônica coincidência, naquele mesmo ano estaria proclamado o Ato Institucional
Número 5 – AI-5, dali para frente o país viveria um dos momentos mais violentos de
sua história (VIEIRA, 1968; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1968).
As próximas exposições demoraram 3 anos para acontecer, nesse meio
tempo Zhāng Dàqiān realizou exposições em Taiwan e nos EUA, onde construiu
uma propriedade de menor porte denominada Choupana Bi Hua. Em 9 de Janeiro
de 1969, o jornalista Barros Ferreira publicaria uma grande reportagem sobre a vida
do artista e o Jardim Ba De, na revista “O Cruzeiro”, intitulada “O Fabuloso Mundo
de Chang Dai-Chien”, na qual descreve detalhes do Jardim Ba De e de um banquete
do qual participou, além de uma série de fotografias de alta qualidade (FERREIRA,
1968).
No ano de 1971, já com 72 anos, realizou uma exposição com 2 dos seus
discípulos que ainda estavam trabalhando no pavilhão do Grande Vento, o Professor
Sun Chia Chin, que na época lecionava mandarim na USP (WAY NEVES
LIMA,2012), e Paulo Chang, filho do mestre. Dessa vez a exposição aconteceu no
Museu de Arte Moderna, o MAM, localizado no Parque do Ibirapuera. A mostra teve
início às 19:00 horas do dia 12 de janeiro, nessa exibição, que também possuía
caráter comercial. Zhāng Dàqiān e seus discípulos expuseram 55 quadros, com
valores entre 400 e 6.000 cruzeiros, além de 5 obras que o mestre, como relataram
611
os jornais da época, “só cederia a colecionador muito interessado”. Na cerimônia de
inauguração Zhāng Dàqiān não pode comparecer por problemas de saúde, como
escreveu Tavares de Miranda em sua coluna para a “Folha de São Paulo” (DE
MIRANDA, 1971; DIARIO DO GRANDE ABC 1971; FOLHA DA NOITE, 1971;
CORREIO BRASILIENSE, 1971; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1971).
Naquele mesmo ano, aconteceria mais uma exposição uma galeria comercial,
dessa vez na “The Chelsea Art Galleries” localizada no número 1530 da Rua
Augusta, contando com 21 obras que variavam de 100 x 80 cm a 300 x 200 cm, com
preços entre 3.000 e 30.000 cruzeiros. A mostra, patrocinada pelo Embaixador
Chinês Fung Sung-Chu, foi inaugurada no dia 27 de outubro e teve publicado, na
ocasião, um pequeno convite com uma reprodução de uma das obras expostas,
além de textos do escritor Lin Yutang, do professor de Princeton, Wen Fong e do
proprietário da galeria Chelsea, Romy Fink, texto esse que teve trechos publicados
em diversos jornais da época (THE CHELSEA ART GALLERIES, 1971; A TRIBUNA,
1971; FOLHA DA TARDE, 1971).
Dois anos após a exposição no MAM, Zhāng Dàqiān realizaria mais uma
exposição em uma galeria comercial, dessa vez na “A Galeria”, de propriedade de
Belinha e Waldemar Szaniecki, localizada no número 1.111 da rua Haddock Lobo
em São Paulo, sob o patrocínio do Embaixador Fu-Sung Shu. Inaugurada às 20:00
horas do dia 11 de Junho de 1973, com o que a imprensa da época chamou de
“Uma Grande Festa para Chang Dai-chien”, que chegou à Vernissage com seus
filhos e netos, trajando suas roupas típicas e apoiado em seu cajado, encontrando
um grande número de chineses que aliás, arremataram quase todas as suas obras
com valores entre 5.000 e 10.000 cruzeiros. Foram disponibilizadas 26 pinturas,
dentre elas: “Casa do Amigo”; “Nuvens de Outono”; “Contemplando a Montanha”;
“Barco Voltando”; “Moradas de Anacoretas”; “Cascata”; “Morada do Ermitão”;
“Grama na primavera”; “Veleiro no fim da Tarde”; “Lótus Vermelho”; “Montanha no
outono”; “Velho Templo” e “Pássaro no outono”. Naquele ano, Zhāng Dàqiān vivia
entre a Choupana Bi Hua e o Jardim Ba De, expondo com frequência nos EUA e em
Taiwan.
Na época, perguntaram ao artista o que a pintura representava em sua vida,
sua resposta foi divulgada largamente pela imprensa, Zhāng Dàqiān teria respondido
612
que “a pintura é sua própria vida, que só pintava em momentos de alegria e que
mesmo assim suas obras carregavam a nostalgia que sentia em relação a sua terra
natal” (FOLHA DA TARDE, 1973). Ironicamente, essa foi a última exposição de
Zhāng Dàqiān no Brasil, no período em que aqui viveu, e a última exibição individual
realizada até hoje (DIARO DE SÃO PAULO, 1973a, 1973b; FOLHA DA TARDE,
1973).
No ano de 1976, foi construída a represa de Taiaçupeba que englobava a
área onde o Jardim Ba De estava localizado(SOLIA, FARIA, ARAUJO, 2007). Não
se sabe ao certo quando foi expedida a ordem de desapropriação, mas Zhāng
Dàqiān, que já vinha se alternando regularmente entre o Jardim Ba De e sua
Choupana Bi Hua, se mudou, voltando poucas vezes para o Brasil. Após a
inundação de seu Jardim, nunca mais voltou, no mesmo ano da construção da
represa, Zhāng Dàqiān voltou para perto de sua terra natal, dessa vez na Ilha de
Taiwan, onde o governo lhe cedeu uma imensa propriedade em que o artista
construiu um novo ateliê e jardim. O maior pintor chinês do século XX faleceu 7 anos
depois, na cidade de Taipé, sua última casa é hoje um Museu, administrado pelo
Museu Nacional do Palácio, em Taiwan. A notícia de sua morte saiu em poucos
jornais do Brasil e passou quase despercebida (HSIAO e ROSS, 2011; JOHNSON,
1999).
613
Figura 3. Capa da reportagem de Barros Ferreira, publicada na revista “O Cruzeiro” em 09/01/1969,
páginas 66 a 71, Fotografia de Walter Freitas.
Exposições póstumas e a redescoberta de Zhāng Dàqiān
Após a morte de Zhāng Dàqiān, pouco se ouviu falar do pintor na imprensa
brasileira, contudo, em 1999, o pesquisador José Roberto Teixeira Leite dedicaria
um capítulo exclusivo à passagem do mestre pelo Brasil, em sua tese “A China no
Brasil” (TEIXEIRA LEITE, 1999), primeiro trabalho acadêmico a citar os anos
brasileiros do artista. Depois disso, o pintor só voltou a ser assunto por volta de 2002,
quando suas obras começaram a bater recordes no crescente mercado de arte
chinês (GORGULHO,2003).
Também em 2002, quase 30 anos após sua última exposição, obras de
Zhāng Dàqiān finalmente puderam ser apreciadas em um museu brasileiro. Dessa
vez no Museu de Arte Brasileira – MAB, da Fundação Armando Álvares Penteado –
FAAP, que realizara naquele ano a exposição “Tesouros da China”, uma mostra de
grande porte e abrangência sobre arte chinesa, com obras de diversos períodos da
614
história da arte chinesa do acervo do Museu Guimet, na França. Dividida em três
eixos, “Arte do Contemporâneo”, “Arte do Cotidiano” e “Arte dos Imperadores”, esse
último tema contando com cerca de 10 obras de Zhāng Dàqiān. Um catálogo, com
reproduções e detalhes técnicos de todas as obras foi publicado na ocasião da
mostra (MUSEU DE ARTE BRASILEIRA, 2002; GORGULHO, 2003)
Somente 8 anos depois, em 2010, obras do artista seriam novamente
expostas no Brasil, na exposição “Guignard e o Oriente”, que aconteceu em junho
daquele ano no “Instituto Tomie Ohtake” e, em setembro, no “Museu de Arte do Rio
Grande do Sul”. A exposição visava analisar as possíveis influências orientais na
obra do pintor brasileiro Alberto da Veiga Guignard. Com 45 quadros do pintor,
foram expostas xilogravuras japonesas, mobiliários da época e algumas pinturas de
Zhāng Dàqiān (MARTÍ, 2010).
Em 2012, ano em que bateu novos recordes em leilões, a TV Cultura, em seu
programa “Cultura Documentário” exibiu “Morada da Ilusão”, de Richard Gordon e
Carma Hinton, documentário produzido em 1993, sobre a vida de Zhāng Dàqiān,
focando nas reproduções de obras antigas e tratando dos conceitos de cópia e
falsificação nas culturas Ocidentais e Orientais.
O próximo ano, 2013, foi muito importante para a memória de Zhāng Dàqiān e
para a arte Oriental no Brasil. No dia 4 de Maio, a “Pinacoteca do Estado de São
Paulo”, recebeu a exposição “Seis Séculos de Pintura Chinesa”, a maior exposição
sobre o tema já realizado no país, com 120 obras do acervo do Museu de
Chernuschi, de Paris. Com grande repercussão, a mostra contou com obras de
alguns dos mais importantes artistas de diversos períodos da arte chinesa, incluindo
10 pinturas de Zhāng Dàqiān. O catálogo da exposição foi disponibilizado em versão
digital, embora não se aprofunde muito na passagem do pintor pelo Brasil, devido a
amplitude histórica da mostra. Nesse ano, uma grande reportagem foi publicada pelo
jornalista Guilherme Gorgulho no Jornal da UNICAMP (GORGULHO, 2013;
PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO,2013).
Em 18 de Julho, aconteceu no Paço Municipal de Porto Alegre, a exposição
“Expressa do Oriente”, com obras dos acervos das Pinacotecas Rubem Berta e Aldo
Locatelli, a mostra contou com obras de artistas como Manabu Mabe, Tomie Otahke
615
e uma agradável surpresa, a obra “Passeio ao longo do rio apreciando as flores de
ameixa” de Zhāng Dàqiān, que havia sido adquirida na década de 60, por Assis
Chateaubriand, e que estava sem identificação na Reserva Técnica da Pinacoteca,
em 2003, o jornalista Guilherme Gorgulho havia publicado em reportagem para “A
Folha de São Paulo” a possibilidade de essa obra estar naquela Instituição
(GORGULHO, 2003). Atualmente, a obra é a única pintura de Zhāng Dàqiān que
figura em acervos nacionais, já que “Paisagem Suíça” doada para o MASP em 1966
e repassada para o MAC de Olinda, na campanha dos Museus Regionais,
infelizmente hoje não se encontra registrada no acervo daquele Museu podendo,
assim como “Passeio ao longo do rio (...)”, talvez possa estar armazenada sem
identificação na reserva técnica da Instituição, não existem registros de que a obra
tenha sido exposta, entretanto no Acervo do MASP, sobreviveu uma pequena
reprodução fotográfica em preto e branco (Figura 4) da doação de Zhāng Dàqiān
para o museu (GORGULHO, 2003, 2013).
Considerações Finais
Por manter-se focado na passagem de Zhāng Dàqiān pelo Brasil, o trabalho
não se aprofunda nos acontecimentos paralelos ocorridos na mesma época em que
o artista aqui viveu, só a análise conjunta de todos os dados referentes a longa
existência desse grande mestre nos permitirá vislumbrar a grandiosidade de seu
legado.
Por se tratar de um levantamento documental, o presente artigo é um trabalho
em aberto, o surgimento de novas informações pode fazer com que novas
conclusões sejam tiradas, os fragmentos da passagem de Zhāng Dàqiān pelo Brasil
continuam espalhados embora uma pequena parte esteja reunida neste trabalho. Só
compreenderemos os anos que o artista passou no Brasil, e a maneira com que se
aproximou e contribuiupara nossa cultura, se reconstruirmos a história desse
importante mestre.
616
Figura 4 - Único registro existente da “Paisagem Suíça” doada em 1966 para o MASP, atualmente a
obra está desaparecida. Imagem gentilmente cedida por “Acervo e Desenvolvimento Cultural do
MASP”
Notas
1
O método de romanização Piyin foi o escolhido para esse trabalho, entretanto, em ocasiões especiais,
o nome de Zhang Daqian é grafado no método Wade-Giles, lendo-se Chang Daí-Chien.
2
Sun Chia-Chin, faleceu em 2010 em Taiwan, veio para o Brasil em 1953 junto com Zhang Daqian, aqui,
lecionou na FFLCH-USP, colaborou com trabalhos acadêmicos e realizou exposições, além da obra no MAAC de
Campina Grande, existe uma obra sua no acervo do MASP, doação do Embaixador Fausto Godoy.
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Em: http://www.icm.gov.mo/exhibition/daqian/BiographyP.asp (Acessado em 28/03/2014)
Marco Antonio Baena F. Filho
Tem 23 anos, natural de Itanhaém-SP, é Artista Plástico e Pesquisador. Atualmente, cursa o
4º ano do Bacharelado em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, o 3º semestre do
curso de Mandarim do Instituto Confúcio e é estagiário da Coleção Asiática do MASP –
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.
619
30 DIAS EM DHARAMSALA: RESIDÊNCIA COM UM PINTOR TIBETANO
Vinicius de Assis - UNESP
RESUMO: O seguinte artigo se refere às anotações e estudos de quatro semanas de aula
no estúdio de Karma Sichoe, em Dharamsala, Índia, durante os meses de março e abril de
2013.Lá, conceitos como, história, técnica e temática da thangka (pintura tradicional
tibetana) foram comentados, explicados e praticados.Temas que foram vistos
superficialmente devido ao pouco tempo, mas que já exibiam a força tradicional e milenar da
pintura tibetana. Passando por sua história pessoal e indo até o seu fazer diário, como pintor
tradicional e contemporâneo, Karma abordou temas básicos: medida e cânone da cabeça
do buda, composição de paisagens, desenho, composição e cores dos elementos, fogo,ar
( nuvens), água (cachoeiras, rios e lagos), terra (montanhas, rochas, abismos, árvores,
flores) e princípios artesanais, demonstrando o ofício nas artes, a feitura de pincéis,
pigmentos minerais e preparo da tela.Além dos estudos tradicionais, numa mão dupla,
houve a participação de Karma num projeto do Coletivo RAGA (pintura e muralismo, do qual
faço parte) na execução de uma pintura mural em Dharamsala, sobre a difícil situação
política de protestos na região do Tibete.
Palavras-chave: thangka, pintura tradicional, cânone, sagrado, ofício.
ABSTRACT: The following article refers to the notes and studies of four weeks of classes in
Karma Sichoe’s studio in Dharamsala, India, during the months of March and April
2013. There, concepts such as history, technique and themes of thangka (Tibetan traditional
painting) were discussed, explained and practiced. Themes that were seen superficially
regarded the short time, but already displayed the traditional and millennial strength of
Tibetan painting. By his personal history and daily routine as a traditional and contemporary
painter, Karma addressed basic issues: measurement and canon of the Buddha's head,
composition of landscapes, design, composition and colors of the elements, fire, air (clouds),
water (waterfalls, rivers and lakes), earth (mountains, rocks, abyss, trees, flowers) and craft
principles, demonstrating the craft in the arts, the making of brushes, mineral pigments and
preparation of canvas. In addition to traditional studies, as in a two-way road, there was the
participation of Karma in Coletivo RAGA's project (to which I belong, doing paintings and
murals) in a mural in Dharamsala, about the difficult political situation and the protests in the
Tibetan region.
Keywords: thangka, traditional painting, canon, sacred, crafts.
Prefácio
A vivência com uma linhagem tradicional de pintura tibetana, só foi possível
graças a uma confluência de fatores: o interesse partilhado com o Coletivo, a
introdução à thangka e viagem com Tiffani Gyatso e a disponibilidade e desejo de
troca de Karma Sichoe. Aqui segue uma breve biografia e histórico desses fatores,
que darão o devido contexto ao artigo. O Coletivo RAGA é formado pelos artistas
visuais Felipe Ikehara, Rafael de Assis e Vinicius de Assis. Seus integrantes
620
partilham o estudo de referências em arte tradicional de diversos povos, com foco
específico na arte oriental (Índia, Nepal, Tibete, China, Japão e Tailândia) com a
mistura de suas peculiaridades, paridades estéticas e conceitos. Tiffani Hollack
Gyatso nasceu em São Paulo em 1981. Em 2000, ela viajou até a Mongólia, onde
teve seu primeiro contato com a arte sacra do budismo tibetano. Determinada a
estudar thangka, três anos depois, Tiffani se mudou para India. Em Dharamsala ela
foi aceita como a primeira aluna ocidental no Instituto Norbulingka, fundada por S.S.
o Dalai Lama e lá estudou pintura por três anos, onde conheceu o trabalho de
Karma Sichoe.Em 2006, ela retornou ao Brasil e no fim de 2007 foi convidada a
trabalhar no templo budista Caminho do Meio fundado por Lama Padma Samten em
Viamão, no Rio Grande do Sul, um projeto que levou quase 4 anos para ser
completado. Nesse ínterim, Tiffani retorna mais uma vez a Índia e tem 3 meses de
aulas com Karma. Em 2013, Tiffani lidera uma viagem de estudos de arte budista na
Índia e Nepal, com visitas a templos e um workshop com Karma.Karma Sichoe, 38
anos, é um pintor tradicional e artista contemporâneo, residente em Dharamsala.
Órfão e refugiado, Karma foi criado e educado no TCV (Tibetan Children’s Village
School) em Dharamsala. Ele recebeu seu treinamento formal em pintura thangka no
Centro Tibetano de Artes e Ofícios em Dharamsala (hoje Instituto Norbulingka) sob a
orientação do renomado mestre pintor Rinzin Paljor, que foi um dos principais
pintores da corte Potala no Tibete e no exílio continuou trabalhando diretamente
para Sua Santidade o Dalai Lama. Depois de se formar em 1993, Karma tem
trabalhado principalmente como um artista independente em encomendas
particulares, mosteiros, escolas e dedica grande parte de seu tempo e energia para
diversas atividades políticas dentro da comunidade tibetana no exílio, bem como
para o estudo da diversidade de estilos da pintura Thangka e formas de arte.
Introdução
No início de 2013, o Coletivo viajou à Ásia (Índia e Nepal) com Tiffani Gyatso,
onde visitamos templos, museus, ateliês, monumentos (locais sagrados) e
conhecemos Karma Sichoe. Após um mês de viagem nos despedimos de Tiffani e
retornamos para Dharamsala, para realizar uma residência de trinta dias com Karma
em seu ateliê. Além dos estudos tradicionais, alguns trabalhos foram produzidos
621
durante essa vivência e foram apresentados ao público, juntamente com pinturas
murais de instalação na exposição do Coletivo RAGA “Oriente-se” de agosto a
dezembro de 2013, no Sesc Santana.
O presente artigo tem como base, estudos, anotações e exercícios que foram
produzidos no período da residência em Dharamsala com Sichoe, além de
referências bibliográficas.
Aulas
A thangka nos era familiar por estudos em livros e por um curso ministrado
por Tiffani Gyatso em 2010 para o Coletivo RAGA. Por isso, já sabendo das
inúmeras e complexas categorias temáticas que a thangka se aplica: os seres
iluminados (budas, gurus e bodhisattvas), yidams (deidades pessoais), dharmapalas
(guardiões/protetores), mandalas, estupas, ilustrações e símbolos do dharma e
yantras (amuletos), optamos numa reunião inicial com Karma, por focar nossos
esforços e estudos nos elementos primordiais da paisagem (os cinco elementos da
natureza, composição, estilo e pintura) e na feitura e preparo da tela (thangka).
Motivação e Intenção
Quanto ao artista tibetano, ele sabe que sua própria habilidade, seja ela
grande ou pequena, deve, sob o risco de incorrer na autodestruição, ser
tanto inspirada pela Norma espiritual determinante como dedicada a Ela; e
essa Norma, em sua própria revelação, é negadora do ego, excluindo por
princípio todo o exibicionismo individualista. Esta é a natureza ou a
inspiração artística no mundo tibetano: quanto mais somos capazes de nos
identificar com esse ponto de vista, mais próximos estaremos de
compreender sobre do que se trata a pintura tibetana. (PALLIS, 1949, apud
1
PAL ,1983, p. 3)
Karma iniciou a residência falando sobre motivação e a intenção do artista
que se dedica ao tradicional e ao sagrado. Para esse artista, devem ser claras as
intenções ao pretender seguir os rigorosos e complexos cânones da tradição
tibetana. Pois o incentivo inspirador reside no respeito, confiança e admiração com o
conhecimento que será retratado, no caso o Dharma, a doutrina do Buda. De acordo
com o Lama Tarthang Tulku (2002, p. 23).
622
“O artista poderia ser um mestre realizado, treinado nos textos e nas
linhagens orais de sua tradição, sua visão aperfeiçoada por meio da realização
meditativa, sua mão refinada pela prática de uma longa aprendizagem”. Porém, na
maioria dos casos,“[...] frequentemente, o artista era uma pessoa leiga, treinada em
regras e estilos de representação, que havia trabalhado por muitos anos sob a
supervisão direta de um artista mestre”. O fato de um artista ser leigo não o isenta
de possuir certos atributos, como bom humor, humildade, honra, diligência e ser
dedicado ao Dharma (TULKU, 2002). Portanto, o artista deve se submeter as regras
e se elevar aos padrões do sagrado representado (ou assim deveria operar), pois
Karma dizia que a pintura é como um espelho da mente, se perturbada por emoções
negativas, como ansiedade ou raiva, esse substrato ficará nítido como um reflexo na
pintura, trazendo assim condições não auspiciosas ou inadequadas para o modelo
sagrado retratado.
Seguindo o raciocínio, para uma pintura harmônica, hierática e solene, exigese em medida, determinação, paciência e esmero. Mesmo o esforço intenso do
pintor é logo identificado e creditado ao sagrado que se fez através dele. Logo, uma
arte tradicional não é autoral, nem pertence a um indivíduo, mas sim, a uma corrente
de sabedoria reconhecida pela tradição, que tem origem no sagrado, primordial ou
divino. O artista tradicional comunga e participa disso.
Cânone e cabeça do buda
Por sua essência qualitativa, a forma ocupa uma posição, na ordem
sensível, análoga à da verdade, na ordem intelectual; este é o significado da
noção grega de êidos. Assim como uma forma mental, como um dogma ou
uma doutrina, pode ser o reflexo adequado, ainda que limitado, de uma
Verdade divina, assim também uma forma sensível pode representar e
expressar uma verdade ou realidade que transcende tanto o plano das
formas sensíveis quanto o plano do pensamento. (BURCKHARDT, 2004, p.
18)
Antes da pintura, as thangkas são cuidadosamente desenhadas, e cabe ao
pintor seguir certas convenções e padrões. Uma delas é um sistema exigente de
medição (tsomo) destinado a garantir que toda a composição seja desenhada em
proporção adequada.
623
Tradicionalmente, no ensino da pintura tibetana, o aluno deve no início
estudar e praticar muito o desenho e as proporções canônicas. A ênfase está
completamente voltada em adquirir maestria sobre cada etapa do processo. Tais
cálculos, medidas e formas tem uma razão de ser. Cada deidade possui medidas
geométricas exatas, estudadas e escritas em antigos manuscritos. Essas medidas
são baseadas por exemplo, na astrologia, no corpo humano, na natureza e em
outros cálculos secretos. Junto com a exatidão das linhas e da forma das imagens
que possuem importância simbólica, há também as cores, a posição do corpo e das
mãos, os instrumentos exibidos e as oferendas dadas.
Devido à importância iconográfica de cada elemento, seguir fielmente o
cânone é uma maneira segura e responsável de garantir a validade espiritual e
litúrgica da pintura, entendida no contexto budista como um utilitário espiritual, uma
ferramenta poderosa para práticas de meditação, visualização e culto. Como na
maioria das tradições budistas, a pintura tibetana é copiosamente geométrica.
Cabeça, cotovelos, mãos, olhos, orelhas e objetos ritualísticos são dispostos em
uma grade metódica de ângulos e linhas de interseção. Tarthang Tulku (2002, p. 25)
diz que “Quando a grade proporcional é desenhada, o artista se apóia nela como se
fosse a planta de um projeto.” O início da grelha canônica se dá com a linha central,
e a partir dela todo o desenho deve ser feito, isso ajuda na simetria das figuras.
Karma chama essa linha central de “linha de Brahma”, numa analogia ao princípio
criador.2
Um artífice habilidoso geralmente tem acesso a uma variedade de itens
definidos para conceber uma composição. Desde árvores, nuvens e objetos, até o
drapeamento da indumentária, a forma, o tamanho e ângulo dos olhos de uma figura.
A sutileza e cuidado com os detalhes era explícita quando Karma utilizava de
metáforas e poesias visuais para se explicar. Os olhos (de acordo com ele)
“deveriam ser como pássaros comendo alpiste”, as sobrancelhas “como o trigésimo
dia da Lua” e a boca “como um pássaro distante”, essas preciosas recomendações
dizem respeito ao formato e forma de tais detalhes, os olhos devem ser no formato
de pássaros comendo alpiste (Figura 1), as sobrancelhas finas e delgadas como a
última fase da lua minguante e a boca como uma silhueta de um pássaro. Apenas
seguir as medidas de maneira sistemática não basta, o método exige profundo
624
conhecimento da simbologia envolvida para capturar o espírito ou essência das
formas.
A arte tibetana é explicitamente religiosa, por vezes evoca simbolismo e
alusão, estes, devem estar alinhados com as condutas rigorosas estabelecidas nas
escrituras
budistas.
Possuir
uma
compreensão
religiosa
hábil,
se
torna
imprescindível para um artista tradicional. Ele deve ser devidamente treinado, ter
domínio, conhecimento e experiência para conceber uma thangka precisa e
adequada. A etapa de estudo das medidas e desenhos na tradição tibetana costuma
tomar integralmente o primeiro ano de aprendizado, somente nos anos seguintes
que é introduzida a pintura, demais deidades e cânones mais complexos.
Figura 1 - Estrutura canônica da cabeça do Buda. Caderno de anotações 2013.
625
Os cinco elementos na paisagem tibetana.
Toda paisagem na pintura tibetana deverá conter os cinco grandes
elementos: terra, água, fogo, ar e espaço. Há uma interdependência e interação
entre os elementos que deve ser reconhecida e representada (ex: a água ganha
forma sobre a terra e com o ar). Um elemento estará sempre cercado de outro
elemento. Numa menção metafórica, nota-se um pensamento filosófico budista, o da
lei da “originação interdependente dos fenômenos” ou “originação dependente”, em
sânscrito: pratītya-samutpāda e tibetano: rten cing 'brel bar 'byung ba.3De um modo
geral, se refere a um dos conceitos chave da tradição budista, de que todas as
coisas surgem na dependência mútua de múltiplas causas e condições. Isso nos
revela a potencialidade de leitura e relação intrínseca dos textos sagrados com a
arte sagrada budista. Na paisagem, o elemento terraé representado por formações
rochosas, cavernas, campinas e montanhas; a água por lagos, rios e cachoeiras; o
fogo pela luz, motivos flamejantes, auréolas e anéis de fogo; o ar por formações de
nuvens; e o espaço pelo céu, auras e arco-íris.
Segundo (BEER, 2004),anatomicamente falando, a terra representa o corpo
ou esqueleto da natureza, a água o sangue e veias, o fogo o calor e a compleição, o
ar é o fôlego e o espaço a consciência.
Na tradição tibetana, o símbolo primordial da terra é representado por um
quadrado amarelo, a água por um círculo branco, o fogo por um triângulo vermelho,
o ar por um semicírculo ou crescente verde e o espaço por uma gota azul se
dissolvendo. Existe a relação dos elementos com as cores sagradas do Budismo
Tibetano (Vermelho/ Fogo, Verde/ Água, Amarelo/Terra, Branco/Ar e Azul/Espaço) e
com os Cinco Budas da Meditação (em sânscrito: os Dhyani Budas). Os elementos
no entorno da imagem central, através de cores e iconografias dizem a respeito de
sua natureza.
Paisagem e composição
Descrições de dimensões onde tudo é permeado com luzes arco-íris, cores
iridescentes, perfume divino e música celeste, servem somente para elevar
as percepções da realidade visionária do artista. Aqui, onde uma paisagem
626
está iluminada por dentro, perspectiva, escala e sombras perdem sua
solidez lógica. (BEER, 2004, p. 4)
A pintura de paisagens, é regida por muitas leis e princípios. Ao artista é dado
livre arbítrio para expressar sua visão em detalhes sutis, como tonalidades, linhas e
curvas , porém ele deve se ater ao fato que uma paisagem deve ser bela, agradável,
inspiradora e em acordo com sua temática composicional.
Beer (2004, p. 3) atenta para “as pinturas que retratam temas biográficos,
como eventos nas vidas de lamas ou iogues, geralmente possuem locais
reconhecíveis ou construções pintadas em forma estilizada”.
No caso dos que viajaram de maneira errante através das regiões himalaicas
como ascetas nômades, em geral essas composições são completamente
imaginadas, já que esses lugares raramente seriam conhecidos ou visitados pelo
artista. Beer (2004, p. 3) comenta “[...] O isolamento geográfico do artista junto com
o platô tibetano, deu a arte tibetana uma qualidade visionária específica e única”. A
beleza contrastante do imenso céu azul rarefeito com os profundos vales e
escarpados picos, corrobora e se integra com as descrições da vida contemplativa e
ascética de iogues e lamas. De maneira essencial e com sua típica naturalidade, a
cultura tibetana facilmente soube relacionar os aspectos da natureza com a vida
espiritual. Beer (2004, p. 3) sintetiza essa relação, “A alma da paisagem se torna a
essência da visão interna do artista”.
Mesmo as incríveis e arrebatadoras paisagens com elementos em cores
fascinantes e maestria em pinceladas refinadas, são entendidos apenas como uma
visão menor e inferior dos mundos visualizados internamente através das práticas
espirituais tântricas (BEER, 2004). Numa alegoria às qualidades da prática espiritual,
cores e formas são retratadas em tons brilhantes, como se compostas pelas cinco
substâncias preciosas: ouro, prata, coral, pérola e pedras preciosas. Muitas vezes
esses elementos são adicionados aos pigmentos ou utilizados na pintura como
oferendas meritórias. As thangkas mais refinadas, seja no rigor e complexidade
iconográfica, seja no uso de materiais nobres e valiosos, revelam mais do que
atributos materiais, toda composição exibe uma relevante estrutura integrada com
graça sublime. A arte chinesa é familiar para a cultura tibetana desde o século VII.
Os primeiros reis do Tibete eram casados com princesas chinesas e o primeiro
627
monastério budista erigido, Samye (construído no século VIII), de acordo com a
tradição teve um dos andares feito e decorado à maneira chinesa (PAL, 1983, p.
121). Mas foi a partir do século XIV, com a aproximação tibetana com os príncipes
mongóis e imperadores da dinastia Yarlung (PAL, 2000, p. 121), que a paisagem
chinesa se tornou mais notória na arte tibetana (até então muito influenciada pela
arte indo-nepali). Um tema clássico chinês que influenciou a pintura tibetana foi o
dos Dezesseis Arhats. Beer (2004) comenta sobre a pintura dos dezesseis arhats à
maneira chinesa:
[...] a coreografia do movimento e a relação espacial entre as figuras,
paisagem, flores, árvores, vida selvagem e oferendas, exibem um fluente
vocabulário na linguagem da linha. As cores são graciosamente
sombreadas, rochas brilham com um calor interno, uma flor irradia sua
pureza intrínseca, a imagem da graça divina é capturada e mantida naquele
momento.(BEER 2004, p. 4)
Terra
Como foi explanado, só o aspecto da paisagem na pintura tibetana tradicional
já possui o potencial de se tornar um abundante arcabouço de significados e
símbolos referentes à doutrina budista. Sobre o elemento terra, ficamos limitados a
flores e árvores. Como na composição toda e na figura central, as flores e plantas
necessitam também de eixos centrais quando esboçadas. Como dito por Karma,
essa linha central é a “linha de Brahma” o eixo de equilíbrio da composição. As
pétalas de uma flor devem ser suaves e delicadas. E as folhas exibir harmonia e
equilíbrio. Uma recomendação auspiciosa revelada, foi de desenhar as flores
preferencialmente em suas três fases de maturação, o botão (fechado), a flor jovem
(semi aberta) e a flor aberta. Até detalhes mínimos como esse podem guardar
profundos significados, aqui mais uma vez uma analogia com o conceito chave
budista, a impermanência, em páli: anicca e em tibetano: mi rtag pa.4
Água
A composição da água com fluidez e harmonia, se dá pelo cuidado com o
formato e volume das ondas. As curvas devem ser interdependentes, onde linhas e
camadas de níveis se repetem, sendo posteriormente sombreadas e realçadas suas
628
características tridimensionais. A composição de águas turbulentas e agitadas pode
ser extremamente complexa e difícil de se realizar. Quanto mais distante estiver a
água, ela é retratada com ondas largas e calmas, quanto mais próxima do primeiro
plano, mais agitada a água se torna, com redemoinhos, cristas no pico das ondas e
pequenas esferas esvoaçantes de água, transmitindo assim, expressão e
dinamicidade ao elemento. Rios e lagos mostram movimentos mais lentos,
pequenos riachos e cachoeiras possuem um movimento rápido, isso faz variar os
tons, dos mais escuros nas águas calmas e mais claro nas águas agitadas.
Geralmente na base das cachoeiras a água é mostrada de maneira efervescente
com cristas e espuma branca. A cor e sombreamento da água exige muita paciência.
Basicamente cada onda é sombreada individualmente, assim o pintor deve ater-se
aos detalhes e degradês. Geralmente o sombreamento se dá em camadas
horizontais, indo do azul escuro no fundo, passando pelo azul médio até o topo e
com detalhes brancos no alto das ondas. O profundo azul desses lagos
naturalmente se concilia com o reflexo do céu em sua calma, como uma superfície
espelhada. A sutil forma da crista da onda, longa e graciosamente curva pode ser
muito expressiva, pode-se quase sentir a força da correnteza na água.
Sombreamento à seco (Dry Shading)
O sombreamento é um detalhe importante e notório da arte tibetana, junto
com a força da composição e com o trabalho detalhado e paciente do
sombreamento, a pintura é finalizada com o delineamento afiado e seguro de uma
mão treinada. Karma nos disse que em pinturas de templos, usualmente o artista
mestre faz os desenhos, alunos iniciantes fazem o preenchimento, alunos
adiantados fazem os degradês e os alunos mais avançados fazem o delineamento.
No período com Karma, apenas fizemos o sombreamento de dois elementos, a água
e o ar (nuvens). O sombreamento a seco, consiste numa técnica muito sutil onde
num ponto de aquarela (com a tinta bem fina) se faz a base do objeto (lago ou
nuvem) e gradualmente com o pincel vai se sobrepondo camadas com um tom mais
escuro, secando o pincel a cada camada, deixando cada vez o tom mais suave. No
início é difícil não deixar o gradiente granulado, o empenho deve ser de um artesão,
629
pacientemente e suavemente fazer camada por camada, o sombreamento é a parte
sem dúvida que toma mais tempo na thangka.
Figura 2 - Estudo de nuvens (composição, contorno e sombreamento), Caderno de anotações 2013.
Ar
Como na água, a composição de nuvens pode ser complexa com grandes
massas de nuvens se contorcendo, emoldurando a pintura e cercando figuras como
mestres ou deidades. Seu volume e forma devem corresponder ao movimento
interdependente de suas linhas e curvas, a harmonia reside no trabalho minucioso
de retratar a ação colossal das nuvens através de curvas, arcos e agloremados
interdependentes. Uma grande habilidade é empregada na descrição de nuvens na
pintura thangka. De acordo com Beer (2004) por sua composição simétrica em
espirais e curvas, criam-se vários pontos de convergência (centro) com níveis e
camadas entre as nuvens. Esses centros espiralados das nuvens são pintados com
uma cor escura. Esse “centro” é descrito na arte chinesa como na forma da metade
do símbolo yin yang, e representa o vórtice ou ‘essência semente’ que nutre a
nuvem eque se torna fértil com a dádiva da chuva.Nuvens frequentemente são
sombreadas de uma base branca no topo para um leve tom colorido na base.
630
Elas nunca são pesadas ou sombrias, mas sempre cheias de luz, cor, forma e
movimento. Nuvens rodeiam elas mesmas entorno dos altos picos, velando-os em
mistério.
Fogo
O elemento fogo é representado desde a sutil luz solar que se revela nas
matizes coloridas da paisagem e figuras, até a sua manifestação potente e vigorosa
em labaredas, línguas de fogo e auréolas flamejantes que acompanham as figuras
iradas. Como a água e as nuvens, o elemento fogo pode ser constituído desde
pequenas e discretas chamas, até composições intrincadas com línguas e flamas
num movimento dinâmico. Como os demais elementos, a possibilidade expressiva
do fogo é imensa. Graça, equilíbrio e dinamismo devem estar presentes. Estas,
desenhadas com muita habilidade e graça de movimento, ondulam e saltam e
curvas de um lado para o outro. O espaço negativo das chamas é preenchido com
uma cor escura, dando profundidade e realçando o fogo. Seu sombreamento é
semelhante ao da água, indo do laranja intenso na base da chama até o vermelho
em suas pontas. O delineamento deve ser preciso, recomenda-se treinar a
habilidade com o pincel em várias direções.
Espaço
O vasto céu com sua imensa extensão é a maneira com que o espaço é
representado na thangka. Muitas vezes o céu é a primeira parte a ser pintada pois é
a mais profunda das camadas e de maneira gradual vai se pintando os elementos
até chegar na figura principal, finalizando trabalho somente ao pintar os olhos da
figura. O céu tem uma importância cabal, refletindo e sendo usado como símbolo da
pureza inata da mente, da nossa natureza búdica acessível através da meditação e
dedicação ao Dharma. Este deve ser de um profundo tom azul no alto e
progressivamente ir clareando perto do horizonte em cores mais claras e
contrastando com a união com montanhas e picos. O céu como toda a composição
deve ser feito com o sombreamento a seco, utilizando de um pontilhismo esmerado
e paciente.
631
Ofício e artesania
A relação com as ferramentas e matéria prima num contexto tradicional é
imprescindível ao artesão. Muitas vezes antes mesmo de começar a pintura, o
artista deve ter o conhecimento de separar os materiais que usará no preparo da
composição e garantir que cada etapa saia da maneira adequada, não prejudicando
assim o resultado final. No âmbito tradicional oriental, não há diferenciação entre
“artes” e “ofícios” sendo ambos uma unidade inseparável na cultura e sociedade.
Assim, a tradição tibetana de pintura inclui nos afazeres do pintor, a extração de
pigmentos, feitura de tintas, fabricação de pincéis e preparação da tela. Muitos
pintores com ajudantes delegam com o tempo essas funções mais trabalhosas à
ajudantes, uma maneira de transmitir o conhecimento. Karma prefere ele mesmo
fazer cada etapa, dizia que assim conseguia garantir a qualidade necessária em
todos os estágios.
Pincel
Karma aprendeu em sua juventude a fazer os próprios pincéis, apesar disso,
esta é uma técnica que está morrendo, pois poucos ainda hoje fazem os próprios
pincéis, recorrendo aos pincéis chineses como opção de ferramentas adequadas.
Fazia anos que o próprio Karma não repetia esse método, e nos ensinar foi uma
maneira de relembrar o processo. Os pincéis podem ser feitos de vários tipos de
pêlos, cabra, gato selvagem, boi, porco. Os pelos de animais selvagens são
melhores pois por não serem manuseados, são farpados e seguram a tinta de
maneira mais eficiente. A técnica é bem simples, porém trabalhosa. Consiste em
primeiramente separar dentre vários, a quantidade de fios do pincel, isso deve ser
feito usando talco nos pelos, facilitando a separação destes. Uma fôrma, de massa
de trigo ou mesmo argila é modelada, do tamanho de um polegar. Nela é feita com
uma ferramenta pontiaguda o chanfro ou forma da ponta do pincel: chato, pontudo,
fino ou grosso. Os pelos são colocados com talco dentro da pequena fôrma e
amarrados com uma linha, como se fosse uma pequena vassoura. Utiliza-se cola
animal na amarração e coloca-se o cabo, geralmente um bambu fino, de preferência
verde, pois pode ser moldado de acordo com a preferência do pintor.
632
Pigmento
O manuseio do pigmento se dá em duas suas partes. A extração mineral ou
vegetal do pigmento e sua utilização como tinta. No procedimento após obter o pó
mineral, uma pasta é feita adicionando água e moendo ainda mais a mistura. Por
decantação é possível separar até três tons de um mesmo pigmento, esse processo
acontece extraindo o pigmento mais fino, que fica na superfície da água (tom claro)
e o que fica no fundo (tom escuro). Isso acontece com azuis, verdes, amarelos e
vermelhos. Repete-se o procedimento várias vezes. Tradicionalmente, os pigmentos
vermelhos são extraídos do vermelhão (cinabre), o azul vem do lápis lázuli, o verde
do musgo ou malaquita. O enxofre provê o amarelo, e a planta índigo o azul escuro
e a púrpura. O branco vem do alabastro, o laranja do chumbo. A tinta dourada é feita
apartir de folhas finas de ouro puro. A tinta é feita da mistura do pigmento com cola
animal e água. Após a secagem, a tinta pode ser reativada colocando-se mais água
ou moendo-se novamente o pigmento para a decantação.
Thangka
A palavra “thangka” literalmente significa, “superfície branca” (Than –
Superfície Ka- Branca).
Desde os primórdios do budismo no Tibete, as pinturas em pergaminhos
enrolados são utilizadas por lamas para o ensino religioso nas áreas remotas dos
Himalaias. A técnica garante além da praticidade de enrolar, a fixação perfeita da
tinta, na região seca e árida das montanhas. Primeiramente se escolhe um tecido
(algodão ou linho), “nem muito grosso nem muito fino” disse Karma, e com atenção à
direção da trama (ver para onde o tecido estica) se costura varetas (de metal ou
madeira) na peça de tecido cortada, essa costura é atada à um chassi específico
para esse procedimento. A técnica consiste em esticar o tecido para que a trama se
abra e a goma ou revestimento penetre integralmente no tecido. Após a mistura
aquecida e da consistência correta, aplica-se, através de camadas alternadas em
pincelas homogêneas, a goma de calcário em pedra (cal), cola animal e pigmento
em ambos os lados. Frequentemente três camadas na frente e duas atrás da tela.
633
Esperando a secagem a cada camada, vai se esticando a tela. O tecido e sua
armação são então depositados em uma superfície lisa e de base firme, polido com
uma pedra plana e lisa, um copo de vidro ou uma concha. Esfregando em uma única
direção e aplicando uma pressão razoavelmente forte e uniforme, o artista ou
aprendiz vai polindo o tecido até que se torne como um espelho acetinado, o que
toma cerca de duas horas para uma thangka de tamanho médio.
Figura 3 – Karma faz acabamento na tela utilizando uma pedra lisa. Aula sobre thangka, 2013.
Figura 4 – A cada etapa do preparo, afina-se o chassi para que a base entre em toda trama do tecido.
Aula sobre thangka. 2013
634
Considerações
Como artista visual contemporâneo, ficou nítido para mim a preciosidade do
contato com os preceitos e dogmas da arte antiga, ainda praticados no Oriente.
Penso que o diálogo e troca com esses conhecimentos pode enriquecer, tanto na
prática como na teoria e crítica, a arte que é produzida atualmente no Ocidente. Seja
através da assimilação e transformação de técnicas artesanais que mostram sua
aparente simplicidade e eficiência milenar, seja pela possibilidade de agregar valor e
simbolismos de maneira tão profunda, seja na busca de paralelos com a cultura
ocidental ou pelo acesso direto e seguro ao conhecimento transcendental e
ontológico budista.
Pintura Mural FREE TIBET
Quando Karma soube que o Coletivo RAGA era um coletivo de pinturas
murais, rapidamente conseguiu uma parede no centro de McLeod Ganj (distrito de
Dharamsala). Uma das “condições” para nossa estada, era pintar uma parede nas
ruas de Dharamsala com Karma. O mural foi planejado em conjunto por todos e a
execução aconteceu em sete dias. A temática do coletivo não costuma ser política
em nossos trabalhos no Ocidente, com foco maior em questões estéticas, mas para
Karma, um ativista engajado, o poder da intervenção é político e com isso surgiu a
idéia de fazer algo relacionado à causa da tibetana, sobre os protestos de auto
imolação.5 Numa troca de referências, misturamos elementos tradicionais tibetanos
à linguagem do coletivo que costuma ser híbrida e eclética. Sobre o fundo com as
cores da bandeira tibetana e os olhos do buda, retratamos alguns arquétipos da
cultura tibetana (um monge, um ativista, uma família e um devoto) simbolicamente
em meio as chamas da penosa situação. Há também uma frase do Dalai Lama em
tibetano e inglês, pela universalidade da mensagem: "Que o anseio pela liberdade
de todo Tibete, que temos cultivado em nossos corações por tão longo tempo, tornese realidade e possamos desfrutar a fortuna da gloriosa celebração da harmonia
espiritual e política" – S.S. Dalai Lama.
635
Figura 5 – Mural ‘Free Tibet’. Coletivo RAGA (Vinicius de Assis, Rafael de Assis e Felipe Ikehara)
Tsering Dorjee e Karma Sichoe. Dharamsala, Índia 2013
Notas
1
PALLIS,Marco. Peaks and Lamas. 1949. In: PAL, Pratapaditya. Tibetan Paintings.
A Study of Tibetan Thangkas Eleventh to Nineteenth Centuries. Nova Delhi.Índia: Bookwise New Delhi,
2000.
2
Deus hindu da criação.
Comum a todas as escolas de Budismo, tanto as do veículo Mahayana quando a Theravada, ela afirma
que todos os fenômenos são o resultado da existência mutuamente dependente.
4
De acordo com a tradição budista, todos os fenômenos que não o nirvana, são marcados por três
características, as vezes referidas como os "três selos do Darma". Eles são anicca (impermanência), dukkha
(sofrimento)
e
anatta
(não-eu).
5
www.standupfortibet.org/learn-more/
3
Referências Bibliográficas
BURCKHARDT, Titus. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente. São Paulo/SP: Attar
Editorial, 2004.
PAL, Pratapaditya. Tibetan Paintings. A Study of Tibetan Thangkas Eleventh to
Nineteenth Centuries. Nova Delhi.Índia: Bookwise New Delhi, 2000.
BEER, Robert. The Encyclopedia of Tibetan Symbols and Motifs. Chicago/IL: Serindia
Publications. 2004.
TULKU, Tarthang. A Arte Iluminada. Uma Perspectiva sobre a Arte Sagrada do Tibete.
São Paulo/SP: Editora Dharma, 2002.
636
Vinicius de Assis
Artista visual e mestrando pelo Instituto de Artes (UNESP/SP) com o Prof. Omar Khouri
como orientador na linha de pesquisa Análises Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, com
foco na pintura tibetana. É integrante do Coletivo RAGA onde realiza pesquisas sobre estilos
em arte tradicional. Tem passagem pela restauração, feitura de vitrais, pinturas parietais e
procedimentos artesanais de pintura.
637
INFLUÊNCIA DA ARTE JAPONESA NA REPRESENTAÇÃO DA ESPACIALIDADE
IMPRESSIONISTA
Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama - PUC - SP
Orientadora: Profa. Dra. Sonia Régis Barreto
RESUMO: O Impressionismo foi um movimento influenciado por vários aspectos culturais e
artísticos que o antecederam e, dentro desta premissa, esta pesquisa enfoca a influência da
arte japonesa, notadamente das gravuras Ukiyo-e do período Edo (1603-1868). A abertura
dos portos do Japão ao mundo ocidental, em 1854, propiciou um maior contato cultural e
artístico com a Europa, gerando um interesse crescente pela arte japonesa. O termo
“Japonismo” foi criado e utilizado na segunda metade do século XIX para designar um novo
campo de estudos artísticos, históricos e etnográficos recebidos da arte japonesa. Nessa
época, especialmente na França, a arte realista estava sendo questionada e o contato com
novos valores estéticos foi determinante para a evolução de uma inovadora representação
da espacialidade nas pinturas impressionistas. Este trabalho apresenta fundamentação
teórica que permite constatar que as estampas japonesas, além de inspiradoras, foram
fundamentais para a ação do artista impressionista no desenvolvimento de uma linguagem
artística que se entregou aos sentidos, subjetivando o espaço pictórico.
Palavras-chave: Japonismo, Ukiyo-e, Impressionismo
ABSTRACT: Impressionism was a movement influenced by various cultural and artistic
aspects that preceded it and, within this premise, this research focuses on the influence of
Japanese art, especially of Ukiyo-e prints from the Edo period (1603-1868). The opening of
the ports of Japan to the Western world in 1854 provided increased cultural and artistic
contact with Europe generating a growing interest in Japanese art. The term " Japonism "
was created and used in the second half of the nineteenth century to describe a new field of
artistic, historical and ethnographic studies inherited from Japanese art. At that time,
especially in France, realistic art was being questioned and the contact with new aesthetic
values was crucial to the development of an innovative representation of spatiality in
Impressionist paintings. This paper presents theoretical fundamentals which confirmed that
the Japanese prints, more than inspiring, were central to the action of the Impressionist artist
to develop an artistic language that surrounded itself to the senses, subjectifying the pictorial
space.
Keywords: Japonism, Ukiyo-e, Impressionism
A pesquisa tem como objetivo principal demonstrar as influências da arte
japonesa, especialmente da gravura Ukiyo-e, na representação da espacialidade
nas pinturas impressionistas, direcionando-as à subjetivação do espaço pictórico,
uma vez que toda representação espacial observada nas estampas japonesas era
concebida de maneira significativa, registrando um flagrante da consciência
apreendido pelo gesto rápido e definitivo do artista.
638
A estampa Ukiyo-e, arte de representação de entretenimentos do período Edo
(1603-1868) contribuiu muito com a pesquisa impressionista. Essas estampas
retratavam com grande expressividade o cotidiano do homem citadino e recebia o
nome de “pintura do mundo flutuante”. Tratava-se de xilografias populares, gravadas
em madeira e impressas em grande escala, que representavam o efêmero, o
transitório da vida e ilustravam as histórias populares no Japão. Apresentando novos
conceitos como a falta de perspectiva central, enquadramentos inusitados e a
irrelevância na representação de figura e fundo, a gravura japonesa influenciou a
nova concepção espacial da pintura no Impressionismo.
O contexto impressionista
O Impressionismo foi um movimento influenciado por vários aspectos culturais
e artísticos que o antecederam. Este percurso teve início no século XVIII, com a
cultura do Iluminismo. Pelo uso da razão, o homem percebeu a natureza não como
um modelo universal, imutável, mas como um estímulo a que cada indivíduo reage
de acordo com suas percepções. O pensamento do Iluminismo não considera a
natureza apenas como uma forma ou figura a ser representada ou imitada, a
natureza é percebida pelo homem com os sentidos, apreendida pelo intelecto e
modificada pelo agir. Nesse sentido, o “Belo” já não é objetivo, mas subjetivo.
Emmanuel Kant (1724-1804), através de sua Crítica do Juízo, foi o responsável pela
abertura desse caminho para o entendimento da autonomia do Belo. Benedito
Nunes (2005:13) resume o pensamento de Kant:
Kant admite três modalidades de experiência: a cognoscitiva (do
conhecimento intelectual propriamente dito), inseparável dos conceitos,
mediante os quais formamos ideias das coisas e de suas relações; a prática,
relativa aos fins morais que procuramos atingir na vida; e a experiência
estética, fundamentada na intuição ou no sentimento dos objetos que nos
satisfazem, independentemente da natureza real que possuem. Essa
satisfação começa e termina com os objetos que a provocam. Agradando
por si mesmos, eles despertam e alimentam em nosso espírito uma atitude
que não visa ao conhecimento e à consecução de interesses práticos da
vida. É uma atitude contemplativa, de caráter desinteressado.
Consequentemente, afirma-o Kant, o Belo é propriedade das coisas que
agradam sem conceito e que nos causam uma satisfação desinteressada.
O estilo Romântico, surgido como uma reação à corrente dominante da
pintura na época, o Neoclassicismo, abrangia motivações amplas e correspondia a
uma importante modificação da mentalidade artística. Os artistas românticos
639
procuraram se libertar das convenções acadêmicas em favor da livre expressão da
personalidade de cada artista, com a valorização dos sentimentos e da imaginação.
Paralelamente a essas revoluções do pensamento, novas tecnologias
propiciaram o rápido desenvolvimento do sistema industrial, alterando sensivelmente
a organização econômica e social da época. A Revolução Industrial deu à vida uma
nova dimensão, gerando não só uma aceleração da produção mas também a
aceleração da vida, mudando completamente a maneira de viver da população. A
vida na cidade moderna significava mudanças constantes. A indústria capitalista,
com o seu sentido de transitoriedade, estimulou também variações contínuas das
tendências artísticas, como mencionado por Hauser (1998, p. 896): “A tecnologia
introduziu um dinamismo sem precedentes em toda a atitude perante a vida – e é,
sobretudo, essa nova sensação de velocidade e mudança que encontra expressão
no Impressionismo”.
A formação da estética impressionista também está vinculada de modo direto
ao realismo de Gustave Courbet (1818-1877). Courbet realiza uma obra de ruptura,
na qual o romantismo e a idealização da natureza são substituídos por uma
representação da realidade, fruto da observação direta do artista que visava
expressar seu posicionamento sobre a realidade social da comunidade, prescindindo
de qualquer preconceito estético, moral ou religioso. A determinação de Courbet de
representar o mundo tal como ele o via, implicava em certa subjetividade
interpretativa, estimulando outros artistas a rejeitar o convencionalismo e a seguir
apenas sua própria consciência artística. Os realistas não renunciaram à perspectiva
linear, às sombras negras, aos tons sombrios, nem adotaram a fragmentação da
pincelada e a mistura ótica dos tons, mas abriram espaço para os passos que
seriam dados mais tarde pelos impressionistas, seus sucessores.
O Impressionismo
O movimento Impressionista, formado em Paris entre 1860 e 1870, rompeu
de forma decisiva as ligações com o passado, abrindo caminho para a pesquisa
artística moderna. O impressionismo reage às impressões externas, descrevendo a
mutabilidade, o ritmo nervoso, as impressões intensas mas sempre efêmeras da
640
vida na cidade. Através de certa informalidade técnica, esse movimento parecia
revelar uma visão da natureza que era ao mesmo tempo imediata e individual. Essa
fidelidade à impressão individual e subjetiva passou a ser vista como uma inovação
na
proposta
dos
artistas
impressionistas.
A
nova
imagem
criada
pelos
impressionistas era um fragmento abstraído do mundo visível familiar, que não
requeria nenhum conhecimento especial ou cultura literária para ser reconhecido, ao
contrário dos motivos históricos, míticos e poéticos das escolas neoclássica e
romântica.
Ocupavam-se
exclusivamente
da
sensação
visual,
evitando
a
“poeticidade” do tema, a emoção e a comoção romântica.
As figuras principais do grupo eram Claude Monet (1840-1926), Auguste
Renoir (1841-1919), Edgar Degas (1834-1917), Paul Cézanne (1839-1906), Camille
Pissaro (1830-1903) e Alfred Sisley (1839-1899).
Para essa nova maneira de ver, era imprescindível uma nova maneira de
pintar. Os artistas não mais representavam as formas tal como sabiam que elas
eram, mas tal como as viam sob a ação deformadora da luz. Os impressionistas
descobriram que embora toda visão humana seja dirigida pelo mesmo processo e
sistema orgânico, os indivíduos diferem quanto às condições e aos objetos
selecionados. Diferem ainda mais em suas representações daquilo que vêem,
subjetivando cada vez mais o espaço pictórico.
Sendo o Impressionismo uma das formas mais diretas do realismo, os temas
desses jovens pintores deviam ser obrigatoriamente extraídos da modernidade que
Baudelaire (1821-1867) já preconizava por meio de sua continuada defesa da
autonomia da arte. Para Baudelaire, a modernidade é o transitório, o fugidio, o
contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável. Desta
forma, o efêmero se apresenta como um valor positivo, propiciando novas
abordagens artísticas.
Essa modernidade podia ser percebida em duas novidades da época: a
fotografia e o japonismo. A fotografia, uma técnica de criação recente, buscava
também fixar a imagem da modernidade ao apreender o efêmero, o fugidio. Ela
revelou aos artistas aspectos desconhecidos como ângulos inéditos, planos
diferenciados e os efeitos da luz em suas diversas tonalidades ao longo do dia. O
641
diálogo com a fotografia propiciou ao pintor impressionista a observação do mundo
de forma diferenciada, fazendo-o rever o seu posicionamento perante o objeto ou
paisagem.
O Japonismo, por outro lado, trazia uma representação pictórica totalmente
diferenciada de qualquer modelo europeu, o que despertou um grande interesse por
parte dos artistas. Dentro do objetivo desta pesquisa, o Japonismo foi o ponto de
partida para demonstrar a ligação inseparável das gravuras Ukiyo-e com a nova
representação espacial dos impressionistas.
O Japonismo
No período chamado Tokugawa ou Edo (1603-1868), o Japão manteve-se
praticamente isolado do Ocidente. O conhecimento que os ocidentais tinham acerca
dos japoneses baseava-se em alguns episódios isolados, como as lendárias viagens
de Marco Polo (1254-1324), as tentativas de introdução do Cristianismo nos séculos
XVI e XVII pelos Portugueses e algumas relações comerciais e intelectuais
preservadas entre os holandeses e nipônicos durante o Shogunato Tokugawa.
Grande quantidade de artigos de porcelana e laca foram introduzidos na
Europa pelos holandeses em meados da segunda metade do século XVIII e eram
objeto
de
desejo
de
colecionadores
europeus.
Estes
produtos
atraíam
principalmente pelos seus efeitos decorativos e pela excelência de seus materiais e
técnicas utilizadas.
Finalmente, depois de mais de dois séculos de reclusão, o Japão foi forçado a
assinar um acordo comercial com a Europa e os Estados Unidos, abrindo suas
portas para os estrangeiros. Foi o fim do período Edo. A causa que deu fim ao
período é controversa, mas considera-se a abertura forçada do Japão ao mundo
pelo Comodoro da marinha americana Mattew C. Perry, em 1854, como sendo o
início de uma cadeia de eventos que levaram ao fim do shogunato no Japão.
A abertura dos portos japoneses ao comércio exterior propiciou o contato
cultural e artístico com o Ocidente, gerando um grande entusiasmo pela arte
japonesa na Europa. A descoberta de novos valores estéticos sugeriu então uma
642
nova área do estudos: o japonismo. Dentre todas as espécies de obras japonesas
que chegaram à Europa, uma em particular chamou a atenção dos artistas na
França e despertou grande interesse: a gravura Ukiyo-e.
Nessas gravuras transbordantes de cor, os artistas europeus descobriram
uma tradição pictórica que prescindia de todo o ilusionismo acadêmico que
conheciam. Tratava-se de xilografias populares japonesas, gravuras que registravam
a vida, a moda e os entretenimentos dos japoneses urbanos nos séculos XVII, XVIII
e começo do XIX. As pinturas Ukiyo-e mostravam uma sociedade desconhecida no
mundo ocidental.
Por volta de 1860, foi possível para os europeus descobrir um Japão até
então desconhecido. Foram realizadas múltiplas expedições e viagens. Iniciou-se
um fluxo de objetos decorativos japoneses, pinturas e gravuras Ukiyo-e para a
França e Inglaterra. O Japão estava na moda! E Paris tornou-se o núcleo do
japonismo europeu.
A palavra “japonismo” foi cunhada em 1872 pelo autor e colecionador francês
Philippe Burty (1830-1890), para designar um novo campo de estudos artísticos,
históricos e etnográficos recebidos da arte japonesa. Os mais importantes
defensores do Japonismo foram dois irmãos, Edmond (1822-1896) e Jules de
Goncourt (1830-1870). Ficaram famosos pela publicação do “Journal”, informativos
diários que revelavam um detalhado retrato da sociedade da época. Dentro das
páginas deste diário, que escreviam juntos, encontrava-se muito sobre a história do
Japonismo, um assunto que conheciam bem como colecionadores, críticos e
romancistas.
Segundo nos lembra Arakaki (1989: capítulo 4):
Toda cultura é constantemente atingida por informações externas, próximas
ou distantes, que são absorvidas inconscientemente. Quando os antigos
valores de uma cultura apresentam sinais de cansaço, aspira-se por um
“revival” dos mesmos ou procura-se novos caminhos. A assimilação
inconsciente das informações externas aflora na consciência e serve de
ponto de partida para o rejuvenescimento da cultura e para suas inovações.
O contato com a cultura japonesa transformou-se numa das principais fontes
de inspiração para os artistas do Ocidente, principalmente para os pintores
impressionistas. “Nada mais nada menos que uma revolução no olhar dos europeus,
643
isto é o japonismo”, dizia o escritor Edmond de Goncourt no seu jornal, e
acrescentava ainda: “Gostaria de afirmar que traz um novo sentido cromático, uma
nova configuração decorativa e inclusivamente fantasia e visão poética à obra
artística, como nunca antes tinham... existido” (PADBERG, 2008, p. 78).
A gravura Ukiyo-e era uma obra de múltiplos exemplares, feitas em séries, e
inicialmente, eram oferecidas em Paris por preços módicos, incentivando a sua
aquisição por vários artistas e colecionadores.
A Gravura Ukiyo-e
As estampas Ukiyo-e apresentam um “mundo flutuante”: mulheres e rapazes
das áreas de prazeres, atores de kabuki, usos e costumes das cidades, cenas de
entretenimentos e vistas famosas. As xilogravuras estavam extremamente unidas à
vida dos cidadãos japoneses. Desenvolveu-se como uma apropriação cultural e
constitui um expoente único em todo o mundo.
Ukiyo-e pode ser traduzido por estampa xilográfica. A estampa é a cópia ou o
produto final do trabalho da gravura, que é a matriz que foi desenhada, gravada e
entalhada na madeira. Esta arte é o produto do trabalho de três personagens que
trabalham sincronizadamente para a obtenção de uma obra de qualidade: o pintordesenhista, o entalhador e o impressor.
Durante o período Tokugawa, Ukiyo era a designação para o expansivo
mundo dos prazeres, do teatro kabuki e dos quarteirões do bairro Yoshiwara, onde
todos os tipos de satisfação erótica podiam ser obtidos. Tanto neste bairro do prazer,
mundano, como nas apresentações do teatro Kabuki, era possível derrubar as
barreiras sociais. Sua força de atração atuava de igual forma sobre a nova burguesia
urbana e sobre a aristocracia. No século XIX, a natureza – paisagens, plantas,
animais – também passou a fazer parte daquela vida festiva. O coração dessa
existência estava nas pequenas coisas agradáveis da vida cotidiana.
O domínio do pincel, oriundo da escola chinesa de pintura, constituía a base
da pintura e da caligrafia no Japão. O gravador retinha com minuciosidade a pegada
do pincel sobre a prancha de madeira. O estudante de pintura aprendia, através de
644
instruções rigorosas, o repertório do desenho e a destreza da pincelada mediante o
exercício constante, da mesma forma que aprendia o vocabulário, a gramática ou a
pronúncia do idioma, até que o discurso começasse a fluir.
É importante registrar que, através dos ideogramas, os estudantes conheciam
e percebiam as coisas concretamente, definidas pelos traços principais que os
caracterizavam. As linhas eram traçadas de uma só vez. O artista começava a pintar
só quando dominava a visão e os detalhes do mundo exterior.
Van Gogh (2007, p.279) escreveu sobre esse aprendizado:
Ao estudarmos a arte japonesa, veremos um homem que é
indubitavelmente sábio, filósofo e inteligente, que passa seu tempo fazendo
o quê? Estudando a distância entre a Terra e a Lua? Estudando a política
de Bismarck? Não. Estudando uma única folha de grama. Mas essa folha
de grama leva-o a desenhar todas as plantas, depois as estações, os
amplos aspectos das paisagens, depois os animais e então o rosto humano.
Assim passa ele a sua vida, e a vida é demasiado curta para fazer tudo isto.
Ora vejamos, não é quase uma verdadeira religião o que nos ensinam
esses japoneses simples, que vivem na natureza como se eles próprios
fossem flores? E não podemos estudar a arte japonesa, parece-me, sem
ficarmos mais alegres e mais felizes; ela nos faz voltar à natureza apesar de
nossa educação e de nosso trabalho num mundo de convenções.
A pintura japonesa originou-se da tradicional pintura chinesa e absorveu os
fundamentos estéticos e filosóficos daquela arte. Um dos fatores determinantes da
estreita relação cultural com a China foi a religião, desde o Xintoísmo até o Budismo,
que chegou ao Japão no século VI. A pintura antiga chinesa evoluiu de uma tradição
marcada pelo realismo para uma concepção cada vez mais espiritual. Essa
espiritualidade era essencialmente inspirada pelo Taoísmo e enriquecida pela
filosofia Zen.
Os professores de arte das academias ocidentais iniciavam o estudo da
natureza baseando-se em esquemas clássicos, que pretendiam captar o mundo à
base de luzes e sombras como se fora um corpo no espaço, tendo como
fundamento o desenho de imitação.
No Oriente, ao contrário, o olho e a mão foram adestrados mediante a cópia
de modelos que concentravam com exatidão a experiência pictórica dos séculos.
Entretanto, as regras não tinham como meta a imitação externa das figuras, e sim
captar o sentimento que anima a pincelada, cujo movimento organicamente
controlado devia coincidir com o modelo. O olhar não só comprova a forma das
645
linhas que se desenham pra criar uma flor, uma onda, ou uma prega na mão, mas
também, e com o mesmo cuidado, os espaços intermediários, ou melhor dizendo, o
vazio entre eles.
Juntamente com os fundamentos filosóficos da dualidade do yin-yang e com a
ideia do sopro divino vital, que regem todas as coisas do Universo, o vazio sempre
foi o tema primordial do pensamento estético chinês. Nesse contexto, a pintura não
aceita reproduzir apenas o aspecto externo das coisas, busca compreender e fixar
suas linhas internas e as relações ocultas que mantêm entre si. Na pintura chinesa,
a pincelada atua como vínculo entre o homem e o espírito e, embasada na noção de
vazio, manifesta todas as suas virtudes.
OKANO (2007, p. 202) nos esclarece algumas diferenças entre a
espacialidade ocidental e a oriental:
No Ocidente a espacialidade se vê preponderantemente marcada pela
perspectiva, que é a expressão de relações ideais criadas pela
representação, uma tradução ideológica do antropocentrismo renascentista,
quando o espaço e o tempo passam a comunicar um mundo ordenado e
controlado pela razão humana. A perspectiva é uma submissão da figura
em coerência com o esquema geométrico, através do eixo de visão
centralizado e único do observador e o espaço “vazio” intermediário é
simplesmente desconsiderado na sua representação. A espacialidade
oriental (Espacialidade Ma) pressupõe uma montagem, onde atua como
uma zona intervalar de intermediação entre dois elementos. A existência da
espacialidade Ma pressupõe divisão e intermediação, como também relação
e conexão, onde a noção de fronteira se torna uma constante. O espaço
‘vazio’ do espaço Ma, se refere à sua fisicalidade, à visualidade (como a
coisa aparece aos olhos da mente).
As gravuras Ukiyo-e apresentavam essas inovações na representação da
espacialidade. Traziam novas formas de representar o mundo, muito diferentes
daquelas com que os pintores ocidentais estavam acostumados no mundo
acadêmico. Era o encontro de duas culturas, apresentando uma nova concepção
plástica marcada também pela assimetria, ausência de profundidade e cores
chapadas que marcaram de forma significativa a arte pictórica.
Principais influências observadas
O Japonismo foi mais do que uma novidade para os Impressionistas. Um
novo modo de olhar foi absorvido pelos artistas, que encontraram então, nas
646
gravuras Ukiyo-e, respostas fundamentais para as suas pesquisas sobre novas
maneiras de representação.
As emoções causadas por essa escola popular das xilogravuras japonesas,
geraram grande revolução entre os pintores ocidentais e provocaram um excitante
novo direcionamento para artistas como James Abbott McNeil Whistler (1834-1903),
Edouard Manet (1832-1883), Edgar Degas (1834-1917), Claude Monet (1840-1926),
Vicent Van Gogh (1853-1890), Paul Gauguin (1848-1903), Mary Cassat (1844-1926),
entre outros.
Van Gogh (2007: p.236) destacou a importância da pintura japonesa para o
desenvolvimento da pintura moderna:
[...] a arte japonesa, decadente em sua pátria, retoma suas raízes nos
artistas impressionistas franceses. A arte japonesa é algo como os
primitivos, como os gregos, como nossos velhos holandeses, Rembrandt,
Potter, Hals, Vermeer, Osatade, Ruysdael. Não passa nunca [...].
Embora os impressionistas tivessem como objetivo pintar o que era realmente
visto por eles, nota-se que havia uma grande preocupação com a construção da
composição. O próprio jardim japonês de Monet, cenário de suas famosas Ninféias,
em sua casa em Giverny, parecia fazer parte de um projeto pictórico, certamente
inspirado nas estampas japonesas de sua coleção.
Novos princípios da composição, observados pelos pintores impressionistas
nas gravuras japonesas, definitivamente modificaram o espaço pictórico de suas
obras.
Bakker (2010, p. 114) cita a gravura japonesa como importante estímulo
recebido por Van Gogh para rejeitar a paleta escura de seus primeiros trabalhos e
abraçar definitivamente o colorido exuberante em suas pinturas. Ela diz ainda: “O
impacto da pintura japonesa na arte de Van Gogh não pode ser subestimado e, no
final, era maior que aquele dos impressionistas”.
Por meio de várias obras podemos comprovar a influência recebida dos
artistas japoneses pelos artistas impressionistas. Nesta pesquisa foram analisadas
algumas dessas obras, observando questões temáticas e técnicas, tais como
647
perspectiva, composição e enquadramento, cor, forma, linha, luz e sombra. Essas
influências foram absorvidas e desenvolvidas de duas maneiras:
1.
Um
primeiro
momento
de
encantamento
dominou
os
artistas
impressionistas, levando-os a citar, em suas composições, elementos derivados da
arte japonesa. Quimonos, leques e outros motivos da arte japonesa passaram a ser
incorporados nas pinturas de vários artistas europeus.
2. Em um segundo momento, de maior importância e intensidade, é possível
presenciar uma ressignificação do que é apreendido, com adaptações ao contexto
de cada artista. Nesse momento, a relação com a arte japonesa está presente na
concepção artística, ou seja, no processo de criação.
A percepção do artista interage com as novas imagens e, através de um
processo de transformação, incorpora esses recursos criativos e utiliza-os, de
maneira subjetiva, na construção de seus trabalhos.
No caso dos impressionistas, esses elementos foram recriados na
representação de cenários, fundamentados nas técnicas japonesas selecionadas, e
incorporados ao contexto francês. Observando o processo criativo desses artistas,
verificamos que, através das influências japonesas, modificações importantes foram
introduzidas na espacialidade da obra. A seguir, serão destacadas algumas dessas
influências.
Composição cortada
A
“composição
cortada”
é
uma
técnica
japonesa
utilizada
pelos
impressionistas que proporciona dinamismo ao objeto retratado. Nessa técnica,
objetos de significado conhecido são representados apenas parcialmente,deixando a
complementação por conta da imaginação do observador. Esse fator, um pouco
mais tarde, as teorias da percepção vão comprovar como uma característica da
representação de formas: tendemos a fechar as formas incompletas, a completá-las.
648
Descentralização da figura
A descentralização da figura é outro importante fundamento das gravuras
japonesas e está relacionada com a espacialidade MA, que pressupõe uma zona
intervalar de intermediação entre os elementos da cena. Ao remover grande parte da
composição ou do objeto retratado para um dos lados, cria-se um espaço disponível,
abrindo perspectivas para o horizonte.
Perspectiva
Uma das características mais importantes da pintura acadêmica ocidental do
século XIX era o espaço marcado pela perspectiva central, de foco único. As
composições
japonesas,
ao
contrário,
sempre
utilizaram
pontos
de
vista
diferenciados, que proporcionaram aos impressionistas novas maneiras de
interpretar o espaço. A ilusão de profundidade para os artistas japoneses era dada
por vários recursos, utilizados separadamente ou de forma simultânea, como
descrito abaixo:
Linhas diagonais
A divisão do espaço pictórico através de linhas diagonais era uma das formas
de criar a ilusão de profundidade e distanciamento. Essas linhas podem cruzar o
espaço da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, ou ainda, nas duas
direções, o que proporciona maior dramaticidade à cena.
Perspectiva contínua
As gravuras Ukiyo-e são elaboradas da mesma maneira que se “lê” um texto
na escrita oriental kanji, ou seja, da direita para a esquerda/de cima para baixo;
dessa forma eram feitos também os tradicionais rolos de pintura e painéis. Por esta
razão, nas gravuras Ukiyo-e não existe um ponto de fuga e sim uma proposta para a
leitura contínua da obra, parte por parte, criando uma perspectiva não centrada, com
vários pontos de vista. O espectador tem uma visão diferente, mas oticamente
649
correta de cada ponto da pintura. Esses pontos de vista podem ser de cima para
baixo, de baixo para cima ou pelos cortes em diagonal, como vimos anteriormente.
Em muitas composições, a linha do horizonte é eliminada ou deslocada, criando
uma nova perspectiva que altera a percepção de espaço do espectador.
Contrastes cromáticos
Os contrastes alcançados pelo encontro de cores não complementares eram
intensamente utilizados nas estampas japonesas e influenciou fortemente a
representação dos efeitos cromáticos da luz na pintura impressionista e pósimpressionista.
Em 1888, Van Gogh foi para Arles, no sul da França, onde a luz e o brilho das
cores da natureza lhe proporcionaram uma nova experiência, que ele relacionou
com as cores encontradas na pintura japonesa. O interesse de Van Gogh pelas
pinturas japonesas superava a apreciação estética de suas cores. Van Gogh
alimentava uma visão utópica do Japão como um paraíso de cores e beleza, que ele
reconheceu como similar em Arles. Van Gogh e seu irmão Theo colecionaram cerca
de 350 gravuras japonesas, entre elas 12 estampas do artista Utagawa Hiroshige
(1797-1858).
Sintetização das formas
A arte japonesa é marcada pela simplificação de suas formas, procurando
sempre mostrar o que realmente importa, ou seja, a expressão dos objetos. O artista
Katsushika Hokusai (1760-1849) sistematizou essa tradição oriental através de uma
série de estudos de movimentos e expressões, que recebeu o nome de Mangá.
A palavra Mangá é o resultado da união dos ideogramas Man (humor) e Gá
(grafismo), semelhante à “caricatura”, que seria a tradução literal para o Português.
São milhares de imagens compreendidas em 15 volumes, a primeira publicada em
1812, quando o artista tinha 52 anos. Seu trabalho começou a circular na Europa
logo depois da abertura dos portos do Japão ao mundo ocidental. Nas Exposições
650
Universais de Londres, em 1862, e de Paris, em 1867, as estampas de Hokusai
causaram grande impacto.
Similaridades
As gravuras Ukiyo-e ofereceram aos pintores impressionistas uma importante
reflexão sobre os costumes correspondentes na sociedade parisiense que, também
como a sociedade japonesa do período Edo, viviam um período de fascínio com as
novas possibilidades de lazer e prazer, acessíveis a uma nova classe social
emergente.
Pintores como Hiroshige que, em sua série “Cem vistas famosas de Edo”
evocava a vida urbana e da paisagem da cidade de Edo, confirmavam a visão de
muitos artistas ocidentais da época, que também estavam preocupados com a
experiência urbana moderna e seus arredores.
Considerações Finais
Uma nova maneira de ver, compreender e representar o mundo foi construída
pelos pintores impressionistas. Nessa construção eles não partiram do princípio de
uma concepção predeterminada do espaço pictórico, buscavam libertar a percepção
visual de qualquer preconceito ou convencionalismo.
As informações selecionadas e organizadas nesta pesquisa, demonstram que
as estampas Ukiyo-e exerceram grande influência na concretização da proposta
impressionista. Estes artistas viram na arte japonesa uma tradição que, não
contaminada pelas convenções acadêmicas ocidentais, oferecia novos instrumentos
para uma representação subjetiva do espaço pictórico.
As estampas japonesas apontavam para a comprovação de que um novo
caminho era possível, longe da artificialidade das sombras obtidas no ateliê e do
ilusionismo da perspectiva de ponto único. Além disso, os artistas japoneses
conseguiam captar, através da cor e da gestualidade, a essência da percepção
visual.
651
Se nos dias de hoje nos parece natural aceitar a subjetividade do olhar na
representação pictórica, sabemos que no século XIX, em função das convenções
acadêmicas, as inovações propostas pelos impressionistas eram questionadas não
só pelos salões oficiais, mas também pela sociedade. Podemos imaginar então o
estímulo recebido pelos pintores impressionistas ao conhecerem uma estética tão
inovadora, em que a mediação com a natureza era feita pelos olhos do artista. As
novidades trazidas pelas estampas japonesas, além de inspiradoras, ajudaram a
observar até que ponto as convenções européias ainda persistiam entre os próprios
impressionistas.
A visualização de uma experiência em que a natureza perde a sua condição
de imutabilidade, contribuiu para que cada artista passasse a utilizar o seu próprio
filtro de visão e, sob o domínio da impressão, utilizasse a percepção de como a luz
age sobre a superfície para apreender, sem nenhum tipo de modelo ou preconceito,
os reflexos produzidos por ela na tela.
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Pierre Ruprecht.
Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama
Mestranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.Graduada em Arte: História, Crítica e Curadoria pela PUC SP. Licenciatura em
Matemática pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Farias Brito-SP. Inglês
fluente.Interesse acadêmico em arte japonesa, frequenta o Centro de Estudos Orientais
coordenado pela Professora Dra. Christine Greigner e grupo de estudos com mesmo foco,
coordenado pela Professora Dra. Michiko Okano.
653
MIRA SCHENDEL E A PINTURA CHINESA
Victor Raphael Rente Vidal - UFRJ
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosana Pereira de Freitas
RESUMO: A presente pesquisa tem como objetivo estabelecer pontos de contato entre os
trabalhos da artista Mira Schendel com a pintura chinesa. Mira Schendel, judia e suíça,
radicou-se no Brasil em meados da década de quarenta após passar anos deslocando-se
pela Europa fugindo de perseguições de radicais religiosos e xenófobos. Ao se estabelecer
no Brasil sua carreira artística finalmente tomou forma. A obra de Mira Schendel é marcada
por uma sensibilidade e melancolia muito creditada a sua falta de raízes. As suas obras,
sempre questionando como estar no mundo, como ocupá-lo, são caracterizados pela
presença do vazio, e é a partir dessa questão que será traçado uma ponte com a pintura
chinesa. Profundamente ligada a ritos, a pintura traz em seus alicerces a noção do Vazio,
presente no pensamento chinês desde O Livro das Mutações. O Vazio é tido como um
espaço em potência, um espaço onde mutações estão ocorrendo, o Vazio nunca é um
espaço de falta, de perda.
Palavras-chave: Schendel, arte, moderna, pintura, chinesa.
ABSTRACT: This research intend to explore a relation between Mira Schendel's work and
chinese paintings. Jewess and born in Switzerland, Mira Schendel settled in Brazil in the
middle of 40's after scape of religious and xenophobic persecution in Europe. Finaly in Brazil,
her artistic carrear started. Mira Schendel's work is defined on sensibility and melancholy
credited to your rootless feeling. Your artworks is always responding to the problem of who
we are in this world, how we ocupy it, caracterized by the presence of the "Empty". From
here will be traced a relation with chinese paintings. Deeply connected with rituals, the
chinese paintings brings the notion of emptiness, presented in chinese philosophy since the
“Book of Changes”. “Empty” place is understood as a place in potential, a place where
mutations happens, “Empty” is never a place of lack.
Keywords: Schendel, art, modern, painting, chinese.
Grande parte da obra da artista Mira Schendel impressiona pela economia
que carrega. Mira é enxuta em suas propostas, em alguns trabalhos a ação é quase
mínima. Chama atenção o branco do papel, a tela de cor única, a transparência,
como se a artista estivesse buscando captar algo etéreo, de difícil alcance. O
presente texto busca estabelecer uma possível relação entre a obra da artista Mira
Schendel e a pintura chinesa da dinastia Song por meio da noção do Vazio. O Vazio
é um elemento do pensamento chinês encontrado em diversas manifestações
culturais e que está na base de várias correntes filosóficas, principalmente daquelas
provenientes do “I Ching”. Para esse enfrentamento será usado o livro do teórico
François Cheng, “Vazio e Plenitude”. Os apontamentos a respeito do percurso de
654
Mira Schendel terão como suporte a crítica brasileira recente sobre a artista. Este
trabalho é fruto de reflexões iniciais do que pode vir a ser uma monografia de fim de
curso de graduação em História da Arte.
Mira Schendel, nascida em Zurique, Suíça, chegou ao Brasil em 1949, aos
trinta anos, após percorrer diversos países da Europa fugindo de perseguições
antissemitas. Os anos de deslocamentos possibilitariam o aprendizado de diversos
idiomas, sendo o italiano a primeira língua aprendida. De acordo com Geraldo Souza
Dias no livro “Mira Schendel: do espiritual à corporeidade”, Mira seria fascinada por
idiomas e suas nuances; as palavras possuiriam grande significância para a artista,
fossem por suas qualidades sonoras, mutantes de idioma para idioma, fossem seus
significados e as relações que eles estabeleceriam de cultura para cultura, ou ainda
as qualidades gráficas que a palavra escrita seria capaz de oferecer. Nesse último
ponto, muito motivada por um contato com a escrita oriental. A palavra será um dos
elementos chaves na obra de Mira Schendel.
Mira primeiro se estabelece em Porto Alegre juntamente com o seu marido,
Josip Hargesheimer e afirma (SCHENDEL apud. MAQUÊS, 2011, p. 12) ter
praticamente começado a pintar aqui no Brasil, a despeito de pequenos trabalhos
realizados enquanto viveu na Europa. Em Porto Alegre, a artista diz ter encontrado
um local seguro onde pôde começar a desenvolver seus trabalhos fora dos circuitos
artísticos e afastada de modismos e movimentos da época. Como afirma Maria
Eduarda Marquês no livro “Mira Schendel, pintora”, embora toda a sua obra seja
diversa em experimentações, sendo redutor restringi-la apenas a categoria de
pintora, “a pintura foi a matriz de suas múltiplas criações, que se formalizaram em
processos
singulares
de
desdobramentos,
continuidades
e
contiguidades
renovadas”. (MARQUÊS, 2011, p. 13).
Durante o período passado em Porto Alegre, os trabalhos desenvolvidos por
Mira possuíam uma relação muito grande com os do pintor italiano Giorgio Morandi.
O tema das garrafas e copos de Morandi foi de grande referência para Mira, que
pintou quadros muito similares aos dele, embora optando por um desenvolvimento
ligado mais a geometria e menos a concretude dos objetos, como era o caso do
pintor italiano.
655
Mira expôs algumas de suas obras ainda em Porto Alegre, mas foi apenas
quando se mudou para São Paulo que a sua carreira realmente começou a tomar
forma. A essa altura, Mira e Josip já haviam se separado e agora a artista assinava
seus trabalhos apenas com o seu primeiro nome, talvez como uma forma de afirmar
sua identidade. É preciso dizer que Mira foi batizada em Zurique por Ada Saveria e
Karl Dub, seus pais, com o nome Myrrha Dagmar Dub. Como nos mostra Geraldo
Souza Dias no livro “Mira Schendel: do espiritual à corporeidade”, o nome da artista
foi sofrendo diversas alterações e simplificações conforme seus deslocamentos,
quase como uma espécie de adaptação. O “Schendel” acrescentou-se ao seu nome
apenas com o seu casamento seguinte com Knut Schendel.
Participando de Bienais, frequentando exposições de artes e estando
presente no meio artístico paulistano, o trabalho de Mira desse período mantinha
relações com o movimento neoconcreto, “mas de uma forma singularmente
despretensiosa”. (LAMBERT, 2011, p. 34). Os trabalhos de Mira dessa fase estavam
interessados nas possibilidades da abstração, não apenas por uma leitura formal,
mas por aquilo que elas poderiam vir a significar. Ou seja, Mira não usava a
geometria como um elemento concreto no quadro, mas como um elemento
carregado de significações e pessoalidades. Poderíamos dizer que a abstração de
Mira está mais para Kandinsky e menos para Mondrian.
Na pintura de Mira podemos estabelecer um percurso que começa com a
figuração e termina em quadros marcados pela presença do vazio. A figuração dos
seus primeiros trabalhos era uma figuração muito comedida, de elementos muito
econômicos e de pouco naturalismo. São esses os quadros que referenciam
Morandi. Após um momento dedicado a pinturas figurativas, Mira passou a pintar
fachadas de casas em uma série intitulada Fachadas. No desenvolvimento destes
trabalhos, Mira simplificou tanto as suas fachadas até chegar à pura geometria,
embora, como também dito anteriormente, uma geometria mais intuitiva, livre,
sensível e cheia de significados para a artista, longe do universo dos concretistas. É
possível dizer que Fachadas marca uma transição em sua pintura entre o
figurativismo e o abstracionismo de qualidade geométrica. Desses quadros
geométricos Mira passa a pintar telas monocromáticas ou de duas cores com
mínimos elementos povoando a composição, seja um pedaço de folha de ouro ou
656
um risco ou um elemento geométrico minúsculo.
Quem encara essas pinturas de mínimas ações por parte da artista sente os
olhos deslizarem por essas superfícies lisas e monocromáticas até esbarrarem
inesperadamente com um elemento aparentemente perdido. Parece que fizemos
uma digressão das conquistas modernas e voltamos à dicotomia figura e fundo. Mas
é só impressão. Em Mira figura provém de fundo, figura é fundo. Em outro estado,
em outro tempo. Experimentar essas pinturas é como captar o instante da figura,
como observar o nascimento dela, o seu vir a ser.
Em contato com as cartas e os diários de Mira, Geraldo Souza Dias nos
aponta que durante esse período fica claro o quanto esses trabalhos eram
desgostosos para a artista, que ainda procurava por aquilo que realmente a
interessasse e a motivasse. Foi quando ganhou de presente blocos de papel
japonês que Mira viu caminhos para desenvolver aquilo que durante muito tempo
seria uma vertente forte em sua produção artística: a transparência. “(...) a ideia [é a]
de acabar com atrás e o à frente, com o antes, com o depois, uma certa ideia de
simultaneidade mais ou menos discutível, o problema da temporalidade, da
espaciotemporalidade etc.” (SCHENDEL apud. DIAS, 2009, p. 257).
Mira precisou procurar por uma técnica com a qual pudesse desenhar no
papel japonês, afinal, esse é um papel muito fino que não aceita grandes
quantidades de tinta ou água. Mira teve de inventar uma técnica que a possibilitasse
desenhar nesse suporte, o que acabou gerando a série denominada Monotipias.
A técnica inventada pela artista consistia em utilizar uma placa de acrílico que
teria a sua superfície entintada de preto e salpicada por talco. O talco funcionava
como uma barreira entre a tinta e o papel japonês que seria colocado por cima,
fazendo com que o papel não absorvesse a tinta de imediato. Com um objeto
pontiagudo, que poderia vir a ser desde a tampa de caneta à sua própria unha, Mira
marcava um lado do papel fazendo surgir um desenho no outro.
Maria Beatriz da Rocha Lagôa, na dissertação “Mira Schendel – Um ensaio
sobre as monotipias”, aponta uma qualidade muito interessante nesses trabalhos: a
matriz das Monotipias de Mira, a placa de acrílico ou vidro, não recebe ação alguma.
657
Enquanto em uma matriz de xilogravura as incisões na madeira são demarcadas por
goivas, ou na matriz de metal o ácido, para produzir um desenho ou o que quer que
seja em negativo e assim imprimir positivo; a matriz de Mira segue intacta. O que
sofre interferências por parte da artista é o papel. Comumente em uma gravação, a
matriz é ativa e o papel é passivo, na técnica inventada por Mira é o inverso; o papel
é ativo, a matriz é passiva.
Desse modo não é possível fazer reproduções da série Monotipias; sem uma
matriz fixa não há uma qualidade uniforme no trabalho. O caráter principal dessa
técnica inventada por Mira é a possibilidade de produzir diversos exemplares com
imensa rapidez, o que explica essa série possuir tantos exemplares, cerca de duas
mil.
Um dos primeiros apontamentos que pode ser feito sobre as Monotipias de
Mira é o quanto essa série enfatiza o branco do papel japonês. Maria Lagôa, após
se dedicar a observação das Monotipias de Mira, propõe uma sistematização
interessante dos quase dois mil exemplares da série. De acordo com a autora, as
Monotipias de Mira podem ser divididas em três grupos:
1)
Intervenções mínimas no papel almejando um “quase vazio”;
2)
Conjuntos de letras que formam, ou não, palavras e frases associados
a traços e formas;
3)
Composição de formas circulares.
Evidentemente que esses três “grupos” não correspondiam a uma regra
estabelecida por Mira, o processo das Monotipias era um processo que abraçava o
acaso e atrelava criação ao momento da concepção, ou seja, Mira deixava para o
processo de concepção os problemas e as soluções que o papel japonês e a sua
técnica de desenho poderiam lhe proporcionar.
A visualidade que Mira nos oferece com essas mínimas intervenções, formas
geométricas e letras que ora são palavras, e então signos, ora são elementos
gráficos, corresponde a um espaço pouco ligado ao caráter físico e muito ao
sensível. Com isso busca-se dizer que o espaço das Monotipias de Mira está voltado
658
para a sensibilização e a imaginação da artista. Tem-se a impressão ao enfrentar as
Monotipias de Mira que estamos olhando um mapa de pensamentos e
deslocamentos da artista; é como se as Monotipias fossem um registro sensível do
que acontecia no seu ateliê, um registro sensível do seu deslocamento, por exemplo,
ao redor da sua mesa de trabalho.
Por esse caminho, as Monotipias de Mira podem ser lidas como trabalhos que
exploram noções de espaço e tempo. Espaço porque vemos os elementos sendo
distribuídos no papel de uma maneira muito particular, embora seja uma distribuição
muito ligada à sensibilidade e imaginação da artista; e tempo porque incorpora no
papel os deslocamentos de Mira ao redor do papel, e deslocamento implica tempo.
Em um embate com as Monotipias podemos dizer que há um caráter reflexivo
nesses trabalhos, um isolamento que eles parecem reclamar. Em “Mira Schendel –
Um ensaio sobre as Monotipias”, Maria Lagôa afirma que parece existir um paradoxo
nessa série de trabalhos. Para ela, Mira em alguns momentos estaria querendo falar
sobre as origens da linguagem, mas valendo-se da sua desconstrução. Podemos
exemplificar isso com as Monotipias que apresentam letras, mas não formam
palavras, naquelas em que Mira mistura idiomas ou brinca com a qualidade gráfica
das letras. O mesmo ocorreria naqueles trabalhos em que os círculos não são
perfeitos, são quase círculos. Ainda há as Monotipias de mínimas intervenções por
parte da artista, o papel está quase branco, a não ser por uma mancha aqui ou um
traço ali.
Mira sobre as suas Monotipias:
Os trabalhos ora apresentados são resultados de uma tentativa, (…), de
surpreender o discurso no momento da sua origem. O que me preocupa é
captar a passagem da vivência imediata, com toda sua força empírica, para
o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. (SCHENDEL
apud. SALZSTEIN, 1996, p.2)
Devido à técnica inventada, os elementos desenhados por Mira parecem
brotar de dentro do papel japonês. A tampa da caneta pressionando um lado do
papel e marcando o seu verso, depois da secagem, nos impressiona por fazer com
que o papel pareça marcado dos dois lados. As mãos de Mira apoiadas sobre o
papel também rompem a barreira do talco manchando levemente a superfície do
659
papel. A espessura tão fina do papel japonês submetido a essa técnica nos oferece
marcas de ambos os lados. Algumas vezes as Monotipias de Mira Schendel foram
expostas fora da parede, presas ao teto, suspensas no espaço (como aconteceu
recentemente na última ArtRio, em 2013), o que reforça as questões sobre
transparência e simultaneidade tão importantes para a artista.
O espaço nas Monotipias de Mira não é um espaço matemático
representativo, ele está na ordem do espaço moderno que rompe com as ideias da
perspectiva renascentista. Mira é moderna porque pensa a forma e as possibilidades
da forma. O espaço modernista caracteriza-se pela desconstrução do espaço
euclidiano renascentista e pela crise da representação em favor do livre uso do
espaço pictórico. O legado modernista é o legado da experimentação e do novo, a
arte moderna abre portas para inventar e explorar sem qualquer tipo de
compromisso com a natureza ou com a arte produzida no período clássico.
Devido ao processo inventado por Mira para produzir a série Monotipias não é
possível que a artista faça retoques posteriores a fim de aperfeiçoar um traço ou
tornar legível determinada frase ou que o seu círculo seja exatamente redondo.
Dessa maneira, os exemplares das Monotipias comportam em sua estética a
oscilação do traço, a hesitação, a imperfeição, o torto, o interrompido. Podemos
constatar nas Monotipias que quase não há uma separação entre aquilo que é
pensado com aquilo que é realizado, porque a intenção é que tudo aconteça ao
mesmo tempo enquanto o processo das Monotipias ocorre.
Outro importante trabalho desenvolvido por Mira Schendel utilizando o papel
japonês como suporte foi a serie Droguinhas.
A série Droguinhas se compõe, em grande maioria, por trabalhos espaciais
feitos a partir de torção e de nós no papel japonês. É como se Mira estivesse usando
o papel japonês para trançar uma enorme e delicada rede. Sua qualidade é tão
efêmera que intencionando enviar tais trabalhos para Londres Mira disse não saber
como transportá-los sem danificar. Na oitava Bienal de São Paulo esses trabalhos
foram chamados de Droguinhas Fenomenológicas, o que torna mais claro o que
Mira quis dizer ao afirmar que essa serie era um desdobramento das suas
explorações no desenho, não esculturas, como a princípio poderíamos vir a pensar1;
660
embora essas nomenclaturas não façam sentido em Mira, que gostava de explorar e
experimentar. Historicamente, escultura, muito por causa do pedestal, sempre se
manteve afastada do mundo. Como se o pedestal, como seria com a moldura na
pintura, teria como tarefa nos dizer que o que acontece sob ele faz parte de uma
realidade que não é a nossa. Esse entendimento segue a linha de pensamento em
que a arte é mera representação de coisas mundanas. As Droguinhas de Mira não
são cópias de nada que existe no mundo, elas estão no mundo, fazem parte do
mundo e atuam no mundo.
Exatamente por esse motivo a ação empregada pelo Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro de expor (1966) as Droguinhas no chão da galeria para que o
público pudesse manusear e interagir parece sem sentido. Primeiramente porque as
obras eram de uma fragilidade enorme e segundo porque não era preciso tocar nas
Droguinhas para que elas atuassem no mundo; elas já estavam atuando, uma vez
que elas são mundo.
Essa maneira de pensar a arte, não a retirando da esfera mundana, está em
completa consonância com a visão taoísta de mundo destituída de dicotomias como
espírito-matéria, figura-fundo. O entendimento é de que essas duas instâncias
possuem qualidades diferentes, mas convivem juntas e formam um núcleo único.
Esse pensamento além de fazer parte de certas filosofias orientais também está
presente na pintura chinesa do período dinástico Song (960 – 1279), que também
pode ser conhecida como pintura monocromática de paisagem, pintura de montanha
e água, pintura de bambu, pintura de flor de ameixeira. Toda a literatura desse
período se desenvolveu ao redor das noções estabelecidas pela pintura de flor de
ameixeira. A pintura na China durante esse período esteve muito vinculada à
caligrafia e a poesia.
A pintura chinesa da dinastia Song possui uma enorme relação com a
espiritualidade taoísta. Tao pode ser rapidamente definido como um princípio
cósmico presente em todo o universo destituído de dicotomias como matéria e
espírito; Tao seria formado por uma concepção única entre corpo e espírito. Essa
ideia de Tao como uma entidade destituída de dualismos conferiria às suas forças a
noção de infinito.
661
Sendo assim a pintura de flor de ameixeira preserva em seus alicerces umas
das grandes ordens de pensamento taoísta: a noção de Vazio.
A noção de Vazio está presente no pensamento filosófico e cultural chinês
desde o “I Ching”, de onde diversas escolas de pensamento (budismo,
confucionismo, taoismo, etc) tiveram sua origem. Várias dessas escolas filosóficas
valeram-se da noção de Vazio nos desdobramentos dos seus pensamentos, mas foi
a escola taoísta quem deu papel central a ele.
A de ideia de Tao seria originária da combinação de duas forças: o Yin e o
Yang. O Yin como o material, o orgânico, a Terra; enquanto o Yang como o imaterial,
o inorgânico, o Céu. Tao seria constituído por essas duas forças que para nós,
ocidentais, são vistas como contrárias umas às outras. Como dito anteriormente,
Tao está completamente destituído de qualidades ambíguas, dicotômicas. E isso
ocorre porque existe o Vazio.
No capítulo “O Vazio na filosofia chinesa”, François Cheng nos estabelece a
seguinte estrutura de pensamento: o Vazio seria o terceiro elemento da relação YinYang. O Vazio consistiria em uma força que daria movimento e funcionamento à
dupla Yin-Yang. De outro modo, o Yin e o Yang seriam forças dicotômicas que se
empurrariam e produziriam uma força marcada pelo estático. Com o Vazio, Yin-Yang
formam uma força cíclica que animam o mundo. Visto dessa maneira, o Vazio não é
uma realidade marcada pela ausência, pela falta, pelo espaço em branco, por aquilo
que não está; o pensamento chinês vê o espaço do Vazio como um espaço de
transformação, o espaço do Vazio como um espaço em potência, o Vazio como
espaço de transmutação.
Ao aprofundar mais a questão do Vazio, Cheng nos diz que na cosmologia
chinesa existe aquilo que eles chamam de o Vazio Supremo, o lugar de onde emana
o uno. O uno seria o Sopro Primordial, que por sua vez seria a força que anima todo
o Universo, a força que gera vida. O Uno, ou Sopro Primordial, gera o Duo, que seria
a força dupla encarnada no Yin-Yang. Entre o Yin-Yang há o Vazio, também
chamado de Vazio Intermediário. Do Sopro Primordial deriva os Sopros Vitais que
criam e animam todo o universo.
662
Podemos observar que existem no pensamento chinês diversos tipos de
vazios, cada um com uma ação muito específica, mas todos compreendidos como
uma força ativa. Ou seja, o Vazio nunca é uma força estática. Não se pode pensar
no Vazio como um algo que apenas impede o choque entre o Yin e o Yang, mas
como um algo que modifica e transforma a natureza, que dá movimento a essas
duas forças.
Em todo o universo está presente essa força de caráter triplo (Yin-Vazio-Yang,
para tornar mais visível tal relação); é essa força que anima o Universo e é essa
força que está presente em todo o Universo.
Sendo Tao destituído de qualidades ambíguas, fora da relação ocidental
corpo-espírito, os Sopros Vitais que animam o Universo são os mesmos que animam
todos os homens, todos os dez mil seres, como diziam os primeiros pensadores ao
referirem-se à criação da humanidade. Dentro desse esquema, o homem possui em
seu interior a relação Yin-Yang, e por sua vez o Vazio.
Imaginemos um teatro onde uma orquestra se apresenta. Tao é a música que
faz todos dançar, mas é também os instrumentos, os músicos que tocam os
instrumentos e o teatro onde a orquestra se apresenta. Essa noção de
espiritualidade pode parecer muito estranha aos olhos católicos acostumados à
separação espírito e matéria, divindade e criatura.
A partir da ideia do qi, ‘sopro’, ao mesmo tempo matéria e espírito, os
primeiros pensadores chineses formaram uma concepção unitária e
orgânica do universo vivo em que tudo está ligado e se mantém. O Sopro
constitui a unidade básica e, ao mesmo tempo, anima continuamente todos
os seres do universo vivo, ligando-os numa gigantesca rede de vida em
movimento chamada Tao, o ‘Caminho’. Dentro do Tao, o funcionamento do
Sopro é ternário, pois o Sopro primordial divide-se em três tipos cuja
interação rege a totalidade dos seres vivos, que são, o sopro Yin, o sopro
Yan e o sopro do Vazio Mediano. (CHENG, s/d, p. 111)
O mergulho na espiritualidade está no reencontro do homem com o Vazio em
seu interior, afastado pelos prazeres da vida mundana. É dessa forma que o silêncio
e a reclusão fazem parte de modo tão forte nas religiões das culturas orientais. O
silêncio nunca como algo constrangedor em vista o não dito, o silêncio nunca como
o não saber o que dizer, o silêncio nunca como falta de algo; silêncio como
transformação, como espera, como espaço para uma mudança se efetuar. O silêncio
663
seria um “lugar” onde estaria ocorrendo movimentos internos de grandes
transformações.
A pintura de flor de ameixeira possui todas essas qualidades em seu interior.
O pintor seria imbuído da tarefa de trazer para a pintura as relações que vimos
acima. Mas não por meio de um processo didático, embora haja pinturas que sirvam
a esse propósito, mas produzir uma pintura que traga em si esse movimento.
A pintura chinesa antiga seguiu uma evolução onde começou marcada por
um realismo para uma concepção cada vez mais espiritual. Na página 129 de “Vazio
e Plenitude”, Cheng nos mostra que a noção do Vazio na pintura já estaria presente
desde o período Tang (618 – 907), embora fosse uma vertente baseada no
figurativismo. No período dinástico posterior isso mudará em favor de uma pintura de
paisagem de qualidade monocromática.
Por espiritual não se quer dizer uma pintura propriamente de temas religiosos,
mas uma pintura que tendesse por si mesma a converter-se em espiritualidade; uma
pintura que trouxesse entranhada em suas qualidades poderes transcendentais,
uma pintura que pudesse por ela mesma ser um canal espiritual. Por espiritualidade
queremos dizer uma espiritualidade essencialmente inspirada no taoísmo e
enriquecida pela filosofia chan (zen).
A pintura de flor de ameixeira serve a contemplação, mas não a
contemplação
de
ordem
decorativa,
vaidosa,
mas
de
caráter
edificante;
contemplação que busca por meio dela uma revelação. É dessa maneira que a
pintura de flor de ameixeira possui uma qualidade sagrada sem necessariamente
tratar de temas religiosos. Produzir um trabalho de pintura e/ou contemplar esse
trabalho de pintura constitui na China quase como um rito sagrado.
Nesse jogo de entrelaçamento total, o sujeito que olha é igualmente olhado,
e assim o mundo olhado revela-se ele também ‘olhando’. Entre as duas
entidades presentes, o cruzamento em questão transmuta-se em
interpenetração. É exatamente através de um corpo a corpo e de um
espírito a espírito que surge a verdadeira percepção/criação. (CHENG, s/d,
p. 105)
Os mesmos Sopros Vitais que animam o universo e todos os seres animam
também a pintura. Ou seja, a pintura para o pensamento chinês é algo gerado pela
664
mesma força motriz (Tao) que impulsiona o surgimento do universo e dos dez mil
seres; sendo assim, para o pensamento chinês a pintura é algo que está
intrinsecamente ligado à vida.
Colocando a pintura no mesmo nível das vivências humanas, os chineses
estão propondo uma experiência onde arte e vida pisam o mesmo chão e
engendram ações intercambiáveis. É nesse sentido que a pintura pode se converter
em espiritualidade, porque ela age nas nossas vidas e nos modifica.
Animada por estas duas ideias, a pintura não se conformaria com reproduzir
o aspecto externo das coisas, buscando discernir suas linhas internas e fixar
as relações ocultas que mantém entre si. (Zong Bing: o espírito não tem
forma própria; cobra forma através das coisas. Se trata, então, de trazer as
linhas internas das coisas mediante pinceladas habitadas por sombra e luz.
Quando as coisas são assim recebidas adequadamente, se convertem em
representação da verdade). (CHENG, 2004, p. 133, tradução nossa)
Os pintores de flor de ameixeira estão preocupados em revelar as linhas
internas que cada coisa no universo possui; linhas internas como aquilo que define o
que cada coisa é, como as suas propriedades se constituem; ou seja, os pintores
chineses estão preocupados em revelar as essências, não apenas as aparências. A
pincelada chinesa busca discernir as linhas internas, aquilo que anima os dez mil
seres, os seus sopros. (CHENG, 2004, p. 136).
Levando em conta essa preocupação com as linhas internas que definem os
contornos do que cada coisa no universo é, bons artistas na China são definidos
pela capacidade em dar conta dos contornos internos com apenas uma pincelada. A
pintura de flor de ameixeira tem como parente a caligrafia, que para eles é também
considerado uma arte.
De acordo com Cheng é pela arte da caligrafia que o pintor chinês empreende
as composições estruturais da pintura; são os ideogramas chineses que dão ao
pintor a estrutura a ser seguida na pintura, os ideogramas apresentam formas que
propõe estruturas que variam em triângulos, diagonais, círculos centrados e
descentrados, quadrados, e etc.
Caligrafia é uma espécie de arte improvisada que demanda ser criada na
inspiração do momento. Diferente da pintura, não pode ser novamente
refeita, nem parcialmente apagada ou retocada. Assim sendo, os trabalhos
da caligrafia são muitas vezes caracteristicamente influenciados pela
casualidade. A arte da caligrafia é elevar esta casualidade para a
665
necessidade. Posto que esta qualidade não seja única para com a caligrafia.
Pintura oriental, especialmente os esboços com tinta chinesa, muitas vezes
têm esta qualidade. Consequentemente, no Oriente, o povo tem falado
desde os tempos antigos sobre a harmoniosa unidade de caligrafia e pintura.
O propósito da caligrafia é, portanto, não apenas desenho ornamental ou
legibilidade. O que desejamos expressar ou que seja apreciado em nossos
trabalhos são, em uma palavra, nossas ideias do mundo e nosso
sentimento espiritual. (MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO,
1971, p. 7)
Os pintores chineses em formação passam por longos períodos de
treinamento produzindo trabalhos caligráficos. Desse modo, os artistas estão
treinando o desenho, que é o aspecto mais importante para a pintura de flor de
ameixeira. Enquanto por longos períodos a pintura europeia foi caracterizada pelo
volume e pelos efeitos de profundidade que os artistas conseguiam produzir com a
cor e as variações dela, na China a pintura se definiu pelo desenho; como
afirmamos anteriormente, não por uma mera preocupação com as aparências, mas
por aquilo que de interno, de essencial, as linhas podem definir no papel.
O aprendizado para a pintura de flor de ameixeira compreende um grande
momento destinado à observação. Primeiro o pintor deve através da visão dominar
os contornos externos do mundo e por meio da reflexão alcançar os contornos
internos. O aprendizado para a pintura de flor de ameixeira requer muita meditação,
não é uma prática apenas de habilidade manual, mas também mental.
A pincelada é o elemento central da pintura de flor de ameixeira, é o elemento
que propõe um vínculo entre o homem e o sobrenatural. O pincel e a tinta formam a
dupla que estruturam todo o pensamento que envolve essa prática pictórica. O
pincel não tem serventia alguma sem a tinta, por sua vez a tinta não é nada sem o
pincel para lhe dar forma. A comunhão dos dois remete a comunhão espiritual,
comunhão que se relaciona com a noção de Tao, que abarca em sua força tanto
matéria quanto espírito de maneira inseparável.
Uma vez tendo tanta importância a pincelada de movimento único, que deve
ser algo internalizado no corpo do artista, para surgir de maneira natural sobre o
papel, a cor restringe-se muito ao preto e às variações que podem ser encontradas
ao diluir a cor preta. Cheng nos apresenta seis tipos diferentes de tons, chamados
de: 1) seca; 2) diluída; 3) branca; 4) molhada; 5) concentrada; e 6) negra. Esses seis
diferentes tons formam três pares de contrastes: Seca-Molhada, Diluída666
Concentrada, Branca-Negra.
Após um longo período dedicado a caligrafia, uma produção muito
interessada no movimento da mão, na agilidade, na rapidez e na concentração, o
artista chinês pode passar para o desenho e depois para a pintura. Bons pintores
são aqueles que se valendo de uma única pincela, apenas um movimento, apenas
um preciso movimento, são capazes de dar conta das linhas internas que definem
determinada coisa no universo. Os artistas chineses dão muita importância ao
movimento da mão, do pulso, e por sua vez da capacidade de se manifestar
espacialmente no papel.
Não se quer dizer que por internalizar o movimento da mão e fazê-lo dele
natural que a pintura de flor de ameixeira era caracterizada por um ato mecânico ou
inconsciente. A ideia sempre deve preceder o desenho. O pintor primeiramente
devia fazer crescer dentro de si aquilo que buscava pintar para só depois fazer tal
coisa crescer no papel. O pintor deve esvaziar a si mesmo para ter um espaço
interno onde tais elementos a serem pintados vão primeiro surgir. O pintor deve
“acessar” o Vazio interno que existe dentro de si. Sem buscar o Vazio, ele fará
apenas com que as coisas no universo cresçam dentro de si matizadas por
experiências anteriores, matizadas por experiências passadas e assim não poderá
ver os contornos internos que desenham a essência de tudo o que existe.
Há algumas características na pintura de flor de ameixeira que tratam
exclusivamente do Vazio:
Invisível-visível, chamado por Cheng também de yinxian, trata de um princípio
em que o pintor deve se valer para não mostrar um elemento em sua totalidade,
para cultivar o mistério, para manter o elemento em constante estado de formação, e
dessa maneira fazer com que o Sopro Vital que o forma permaneça vivo. A ideia é
que algo deve sempre estar presente e ausente, em constante movimentação,
transmutando-se, propondo intercâmbios.
Por exemplo, em trabalhos do artista Shitao2 vemos cadeias de montanhas
interrompidas por massas brancas, pelo branco do papel, pelo Vazio. Um olhar que
desconhece as correntes artísticas baseadas na noção filosófica do Vazio vê tais
667
massas brancas, exatamente dessa maneira, como massas brancas, como espaços
de nada, como falta. O artista chinês vê nesses espaços a montanha em potência, a
montanha em movimento, a montanha transmutando-se.
De acordo com Cheng, pintar montanhas é uma questão importante para a
pintura chinesa. Como vimos anteriormente, a pintura do período dinástico Song
pode também ser chamada de pintura de montanha e água. Aqui o entendimento é
que montanha e água formam instâncias polares, montanha como um estado
posterior da água e água como um estado anterior da montanha; e entre eles existe
o Vazio. A proposta de pintura de montanha e água é produzir um quadro que
contenha em seu interior um movimento circular. O pintor que almeja tal efeito o
consegue apenas por meio da introdução do Vazio na composição.
A dupla montanha e água possuiriam conotações também com a
sensibilidade humana, a montanha estaria próxima ao coração, aos sentimentos, às
sensações; a água daria conta dos pensamentos, do entendimento, da razão. Fazer
pintura de montanha e água, além de fazer uma paisagem, é representar o homem,
tanto em suas qualidades físicas, a montanha, quanto em suas qualidades
espirituais, a água.
Neste contexto, pintar montanha e água é retratar o homem, não seu
aspecto físico (embora este aspecto não esteja ausente), mas sim o seu
espírito: seu ritmo, seu proceder, seus tormentos, suas contradições, seus
temores, suas alegrias, silenciosas ou exuberantes, seus desejos secretos,
seus sonhos, etc. Assim, a montanha e a água não devem ser tomadas
como simples comparações ou puras metáforas; encarnam as leis
fundamentais do universo macrocósmico, que mantém vínculos orgânicos
com o microcosmo que é o homem. (CHENG, 2004, p. 164, tradução nossa)
A relação montanha-água assemelha-se à relação Yin-Yang, assim como à
relação Claro-Escuro3, que diz respeito ao papel e à tinta; Claro-Papel e EscuroTinta. Todas essas duplas precisam do Vazio para que não tornem suas relações
contrárias umas às outras e para que o seu movimento não seja nulo.
Maria Luisa Távora em sua dissertação sobre a artista Fayga Ostrower (1990,
p. 197) nos apresenta dois outros momentos em que o Vazio comparece na pintura,
dessa vez pelos traçados Kan-pi e Fei-pai. O Kan-pi é o traçado caracterizado pelo
uso do pincel parcialmente seco, um pincel com pouquíssima quantidade de tinta. O
resultado estético que o pincel Kan-pi proporciona ao papel é uma pincelada
668
oscilante, uma pincelada em que o rastro de tinta não é constante, em que o traço é
cheio de espaços em branco. A pincelada em Kan-pi é uma pincelada que oscila
presença e ausência, é uma pincelada que traz o Vazio.
O Fei-pai possui uma razão semelhante ao Kan-pi: a de trazer na pincelada a
presença do Vazio. Porém, o Fei-pai apresenta o Vazio não de modo oscilante como
o Kan-pi, mas de maneira constante. O pincel em Fei-pai é caracterizado por pelos
separados entre si para que ao ser embebido por tinta e traçado no papel, a
pincelada comporte o branco, mas de maneira constante, diferente das oscilações
de branco encontradas no pincel em Kan-pi.
Uma pintura que possui o Vazio não é uma pintura que apresenta a falta de
algo. O Vazio é um espaço em potência, um espaço onde vários elementos podem
surgir. O vazio não é visto como falta, algo com qualidade negativa, mas algo que
está aberto a presenças. O vazio torna o presente mais presente, o vazio reafirma
aquilo que está presente. Para os chineses o Vazio e aquilo que está presente
implicam uma relação que revela a existência do Céu e da Terra.
Podemos começar a estabelecer similaridades entre Mira Schendel e a
pintura chinesa levando em conta a questão do gesto automático e a noção de
pincelada única. A técnica inventada e empregada por Mira nas Monotipias capacita
a artista a produzir com muita velocidade. Sua mão parece ter deslizado com rapidez
pela superfície, criando formas, letras, palavras, imagens. Nas Monotipias de
composição
circular
nós
vemos
claramente
círculos
errantes,
rasuras,
descentralização. São exemplares que revelam, principalmente, o movimento da
artista sobre o papel. Como foi dito, o movimento empregado é algo de muita
importância nas Monotipias. Na pintura de flor de ameixeira o gesto automático se
revela muito relevante, embora por automático não se queira dizer inconsciente. O
movimento realizado surge com facilidade no punho, uma vez tendo o pintor
passado um longo tempo meditando e fazendo o elemento a ser pintado crescer em
seu interior antes de crescer no papel. Com a Mira ocorre o mesmo. Os elementos
nas Monotipias são seguros e revelam reflexão por parte da artista, como se antes
de ir para o papel ela conjecturasse suas intencionalidades. Não encontramos
Monotipias carregadas de elementos, uma folha de papel japonês abarrotada de
669
informações; Mira se propõe a discutir tempo e espaço sendo econômica com os
seus argumentos. O pintor de flor de ameixeira busca resolver seus problemas
traçando o menor número de pinceladas possível. Tal economia presente em ambos
os trabalhos revelam similaridade estéticas entre um e outro. Em algumas
Monotipias Mira recorre à cor vermelha para demarcar determinado elemento, seja
uma letra ou palavra, ou ainda um símbolo geométrico. Embora o preto seja o
prevalente na pintura de flor de ameixeira, também podemos encontrar a presença
do vermelho nos selos que indicam propriedade passadas e presentes daquela obra
de arte.
O processo das Monotipias revela um efeito em que a tinta parece sair de
dentro do papel, como se tinta e papel fossem apenas um ser, fossem apenas uma
entidade. Essa qualidade das Monotipias nos remete a ideia de Yin-Yang, do ClaroEscuro ou da montanha-água, onde forças contrárias tornam-se uma entidade única
devido à presença do Vazio. Mira provavelmente não estaria pensando nessas
relações quando idealizou o processo das Monotipias, uma vez que ele surgiu da
necessidade da artista em trabalhar com um papel tão fino. Essas considerações
podem ser feitas devido às similaridades de pensamentos que eles trazem.
Os traços oscilantes de Mira, alguns devido à pouca força empreendida pela
artista na hora de marcar o verso do papel e encerrar a barreira de talco, e outros à
inconstância do seu movimento, nos remete aos pinceis Kan-pi e Fei-pai. Em menor
medida o Fei-pai porque não há uma constância nas Monotipias. Sua técnica não
comporta a reprodução exata. Mira poderia tentar fazer repetições, mas elas seriam
manuais e nunca exatamente iguais.
As Monotipias de Mira enfatizam o branco do papel, enfatizam o vazio.
Partindo desses pressupostos, podemos ver os espaços em branco nas Monotipias,
e em diversos outros trabalhos de Mira, não como um espaço de falta, de ausência,
um espaço de desfalque; mas sim um lugar de reflexão, um espaço que não assenta
os desenhos, mas os movimenta, um espaço analítico. Assim como a noção de
Vazio do pensamento chinês movimenta o Yin e o Yang, não os tornando instâncias
polarizadas uma à outra, e dessa maneira provocando os Sopros Vitais a animar os
dez mil seres no Universo; o branco nas Monotipias de Mira torna vivo os seus
670
traços, os reafirma e os movimenta. Devido à técnica inventada por Mira, a tinta
parece incidir de dentro do papel, como se a celulose fosse a sua origem, como se o
desenho proviesse do papel, como se o desenho proviesse do branco, como se o
desenho proviesse do vazio. O vazio da pintura de flor de ameixeira e o vazio de
Mira Schendel não são espaços “entre coisas”, são espaços que provocam tensões
e significações.
No livro “No Vazio do Mundo”, Sônia Salzstein cita uma fala da própria Mira
sobre a sua obra: “(...) de qualquer forma o que importa na minha obra é o vazio,
ativamente o vazio”. Em Mira, o vazio cria a linha, assim como a linha cria o vazio,
ativa o vazio.
A obra de Mira é marcada por questionamentos que buscam dar conta da
relação mundo-eu. Geraldo Dias aponta em seu livro as diversas leituras filosóficas
que Mira empreendeu durante a sua vida e como elas tiveram ressonância pessoal e
artística. Mira parece estar buscando uma forma de solucionar o problema: como
estar no mundo? Para Mira, “mundo” e o “eu” são duas entidades indissociáveis, os
dois são um só, o um são os dois.
Notas
1
Sônia Salzstein (1996, p.16) chama as Droguinhas de Mira de “esculturas de ar”, enquanto Geraldo
Souza Dias (2009, p. 216) se refere a série como “desenhos no espaço”.
2
Pintor que viveu durante a dinastia Qing (séc. XVII-XIX).
3
O Claro-Escuro na pintura chinesa não se compara ao Claro-Escura da pintura da Renascentista
Italiana, um artifício da pintura europeia para produzir volume e profundidade. Essa noção é estabelecida após a
criação da técnica Sfumato inventada por Leonardo Da Vinci (séc. XV).
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671
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Victor Raphael Rente Vidal
Graduando em História da Arte, com apresentação de trabalho na edição de 2012 do evento
Letras Orientais e Eslavas, com textos publicados na Revista Dasartes e participação em
diversos cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Vinculado ao projeto de
pesquisa “Oriente-se: Arte Asiática em Coleções Nacionais” e integrante da equipe de apoio
do I Encontro de Pesquisadores em Arte Oriental, em 2012.
672
NA FACE OCULTA DA LUA: O JAPÃO DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS – ALGUNS
COMENTÁRIOS
Bruno Pereira de Araujo - UNIFESP
RESUMO: O presente ensaio tem como ponto de partida os escritos de Claude Lévi-Strauss
reunidos no livro A Outra Face da Lua publicado em 2012. O livro apresenta reflexões sobre
a cultura, a organização social, a mitologia e, seu aspecto mais marcante e mais decisivo
para Lévi-Strauss, a estética japonesa. O objetivo visado é pensar o potencial de
transformação que a imagem do Japão construída por Lévi-Strauss possui, tendo como eixo
norteador a dupla recusa japonesa, segundo o antropólogo francês, frente ao pensamento
“ocidental”; isto é, a recusa ao Sujeito e a recusa ao Discurso, elementos centrais na
metafísica do “Ocidente”. Essa dupla recusa será discutida seguindo descrições tanto do
teatro Nô quanto da arte do monge budista Sengai. Em suma, a proposta é de como tornar
possível, através dessa imagem levi-straussiana sobre o Japão, construir um espaço de
novas experimentações para nosso próprio pensamento.
Palavras-chave: relações Japão/Ocidente, pensamento japonês, Claude Lévi-Strauss,
transformação.
ABSTRACT: This essay has as a starting point the articles written by Claude Levi-Strauss
gathered in the book A Outra Face da Lua published in 2012. The book presents thoughts
about Japenese culture, social organization, mythology and, its most remarkable and most
decisive aspect for Lévi-Strauss, the Japanese aesthetics. My intent is to think about the
transformational potential that de image of Japan conceived by Lévi-Strauss has. For that, I
use as a guideline the Japanese double refusal, according to the French Anthropologist's
characterization, agaisnt “Western” thinking; that is, the refusal of the Subject and the refusal
of the Discourse, key elements of “Western” Metaphysics. That double refusal will be
discussed through accounts of both Noh Theatre and Sengai’s art. In short, my proposal is of
how to render possible, by this levi-straussian image of Japan, to set up a space of new
experimentations for our own thinking.
Keywords: Japan/Western
transformation.
relations,
Japanese
Thinking,
Claude
Lévi-Strauss,
“Que som faz uma só mão que bate?”1 Começar essa apresentação com um
koan me parece adequado. Segundo Lévi-Strauss, esses enunciados “bloqueiam o
espírito num impasse e o obrigam a procurar uma saída numa dimensão exterior ao
pensamento racional” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 78). O que pretendo aqui é simular
uma experiência análoga a um “bloqueio do espírito”. Através da imagem do Japão
construída por Lévi-Strauss, busco tornar possível um deslocamento da imagem que
se constitui junto a essa: a imagem do Ocidente.
Lévi-Strauss comenta que durante uma de suas visitas ao Japão – no total
673
foram um pequeno número de cinco – sua presença era tomada pelos japoneses
como uma “ocasião, jamais plenamente satisfeita, de olharem para si mesmos na
imagem que deles eu formava” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 45). Aqui, a imagem que
Lévi-Strauss formou em seus escritos sobre o Japão possibilita que olhemos a nós
mesmo na imagem que se forma concomitante a ela — uma imagem do “nós”2.
Retornando aos koan, se estes possibilitam uma “contemplação da palavra”,
espero que meu empreendimento possa possibilitar a experimentação de outra
imaginação3. Busco a possibilidade de permitir ao Japão operar uma “verdadeira
reviravolta em [nosso] pensamento e em [nossa] vida” (Ibid., p. 39). Contudo, cabe a
mim fazer uma pequena explicação. Ao falar no Japão, não busco me referir ao
Japão tal como ele é, mas, sim, falar em um Japão construído por Claude LéviStrauss. Uma construção não menos realista (ou menos impactante) por ser uma
construção. Devo salientar também que não pretendo, em nenhum momento,
apontar onde Lévi-Strauss possa ter se equivocado em suas caracterizações; receio
que meus conhecimentos sobre o Japão sejam muito incipientes. Reivindico para
mim algo que Lévi-Strauss repete frequentemente em seus escritos: falo apenas
como “um ignorante e um neófito”.
Lévi-Strauss dizia-se fascinado pela música japonesa devido a sua
capacidade de despertar em seus ouvintes um sentimento de “pungência das
coisas”. As descrições, ou melhor, as impressões do autor sobre o Japão também
despertam essa pungência, o que nos revela a grande sensibilidade que possuía
Lévi-Strauss, assim como, seu amor e fascínio pelo país4.
Ao ser interpelado sobre o lugar da cultura japonesa no mundo, o antropólogo
francês se diz impossibilitado de responder a tal pergunta, mas indica, de maneira
bastante convicta, que o lugar conquistado pelo Japão se deve ao fato de sua
capacidade em conciliar categorias, ideias e movimentos que parecem inconciliáveis
para nós, ocidentais. Nas palavras do autor: “Essa alternância de empréstimos e de
sínteses, de sincretismo e de originalidade, me parece a mais apropriada para definir
seu lugar e seu papel no mundo” (idem, p. 22).
A sensibilidade de Lévi-Strauss em suas caracterizações produz uma forma
que, se me permitem, agencia um efeito estético impressionante. Os primeiros
674
ocidentais a descreverem o Japão, de acordo com o autor, frequentemente diziam
que este era “um mundo do tudo pelo avesso”. A oposição, o avesso, é uma
poderosa imagem para produzir uma comparação5. Como diz o antropólogo,
A simetria que se reconhece entre duas culturas as une ao opô-las. Elas
parecem a um só tempo semelhantes e diferentes, como a imagem
simétrica de nós mesmos, refletida por um espelho, que nos permanece
irredutível embora nos reconhecemos em cada detalhe” (idem, p. 85-6).
Aqui está o efeito que falei e aquele que busco. A partir da relação que se
estabelece entre Japão e Ocidente, espero que possamos constituir um entre-lugar
habitável que nos permita experimentarmos algo que deixa de ser nós, mas não se
confunde com eles. Um entre-lugar onde há o máximo de diferença na semelhança;
onde podemos, finalmente, experimentar uma condição de Outro, uma intensidade
que nos torna capaz de estranhar o familiar.
Para tornar possível constituir esse espaço, seguirei o que Lévi-Strauss
descreve como a “dupla recusa” do pensamento japonês: a recusa do Sujeito e a
Recusa do Discurso.
Comecemos então pelo Sujeito, este grande mimado da filosofia moderna.
Gostaria de apresentar duas formas expressivas que insiro dentro dessa divisão
entre nós e eles, e que me permite tornar visível esta diferenciação.
Primeira imagem: poema de Lord Tenniyson – séc. XIX6
“Flor na muralha fendida,/Eu colho-te das fendas,/Seguro-te aqui, raiz e tudo,
na minha mão,/Pequena flor – mas se eu pudesse compreender/O que tu és, raiz e
tudo, e tudo em tudo,/Eu deveria saber o que Deus e o homem é”.
Segunda imagem: haiku japonês – XVII7
“Quando olho cuidadosamente/Vejo o florescer das nazumas/Ao longe!”
O poema de Lord Tenniyson precipita o “espírito cartesiano” no qual o Eu, que
existe porque pensa, se relaciona com o mundo imbuído de uma vontade de
conhecer “tudo em tudo” através da razão, isto é, utilizando o Discurso. Já no haiku,
675
vemos uma atitude diferente. As flores nazumas não são colhidas de seu lugar; elas
são contempladas com um olhar cuidadoso, característico daquilo que Lévi-Strauss
chamou de um “cartesianismo estético ou sensível”. Há também aqui atitudes
diferenciadas em relação à “Natureza”. Em uma das ocasiões de suas visitas, o
antropólogo comenta que trabalhava em seu laboratório na França, junto a outros
pesquisadores, sobre as diferentes maneiras que as pessoas de diferentes culturas
se relacionavam com o trabalho. Tendo buscado nessa visita conhecer tintureiros,
tecelões, pintores de quimono, ferreiros, ceramistas etc., Lévi-Strauss comenta que:
Deles tirei preciosas informações sobre a representação que fazem os
japoneses do trabalho: não como ação do homem sobre uma matéria inerte,
ao modo ocidental, mas como execução de uma relação de intimidade entre
o homem e a natureza. [...] A relação do homem com a natureza, que, ao
pensar no Japão antes de visitá-lo, eu idealizara um pouco demais, me
reservava outras surpresas. Viajando pelo país, percebi que o culto das
belezas naturais, ilustrado, aos olhos do Ocidente, por seus maravilhosos
jardins, pelo amor às cerejeiras em flor, pela arte floral e até mesmo pela
cozinha, podia se acomodar com uma extrema brutalidade diante do meio
natural. (p. 98-9)
Talvez a imagem transmitida por Lévi-Strauss seja forte ao pensar essa
relação com a Natureza em termos de amor e brutalidade. No entanto, penso que
em tempos de catástrofe ecológica global, causada em grande parte pelo dominação
do Sujeito Racional que transforma a Natureza passiva através de seu Trabalho,
pensar em uma relação de intimidade entre ambos esse polos torne nossa relação
apropriativa e exploradora em algo mais consciente e, talvez, mais saudável. Porque,
como diz o antropólogo francês, o Japão oferece ao ocidente um modelo de “higiene
mental”.
Analogias com a física mecânica feitas por Lévi-Strauss transmitem boas
imagens para pensarmos a diferença entre as concepções de sujeito, ou melhor, os
diferentes modos de subjetivação do Ocidente e do Oriente. O Sujeito, tal como
expresso em nosso pensamento, é o ponto de origem de tudo. A experiência do Eu
é fundamental para a existência do mundo. Basta pensarmos no mito de criação
judaico-cristão, o mundo em toda sua totalidade surge de um ponto único, ponto
este que tem todas as características de um sujeito, ou melhor, um hiper-sujeito ou
um sujeito ideal. Dessa forma, Lévi-Strauss diz que a filosofia do Sujeito ocidental é
centrífuga, enquanto no Japão, o sujeito exerce uma força centrípeta.
676
Portanto, antes de ser uma total recusa ao Sujeito, temos um outro sujeito,
um sujeito provisório, que não é uma causa da ação, mas sim um resultado, ou
melhor, um efeito. O teatro Nô, penso, nos oferece uma poderosa imagem a esse
respeito. Poderia utilizar aquela descrição bastante recorrente que conta sobre a
relação do ator com a máscara; diz-se que é esta última, a máscara, que “veste” o
ator para a composição do personagem-protagonista (KUSANO, 1988) – ou seja, o
personagem-protagonista parece ser o efeito de uma relação em que ambos,
máscara e ator, se usam mutuamente –, não há nesse caso, me parece, uma ação
de um sujeito centrado que através de um instrumento inerte causa uma boa
“representação teatral”. O que é significativo para mim, é que o sujeito, neste caso o
personagem-protagonista, é o efeito de uma relação.
No entanto, não é esse aspecto do Teatro Nô que pretendo desenvolver.
Focarei aqui em uma análise retirada de um artigo de Richard McKinnon (1953)
sobre Zeami e suas concepções acerca do treinamento de atores.
A audiência tinha um lugar central nas performances de Nô. Isso se evidencia
na necessidade, expressa por Zeami, de que um ator deveria ter versatilidade e
flexibilidade para poder “encantar” um público heterogêneo sem acabar com a
harmonia da peça. Nas palavras de McKinnon, que traduzo aqui, ele diz:
[...] um verdadeiro grande artista deve ter flexibilidade o bastante para variar
sua performance com o intuito de agradar uma audiência de uma região
menos sofisticada [assim como a audiência sagaz de um distrito capital].
Através da variação da apresentação, Zeami foi capaz de evocar na
audiência um sentimento de inovação e frescor, ou mezurashiki, que ele
sentia que era necessário para o sucesso. (1953, p. 210-11)
O sucesso poderia ser compreendido pelo agenciamento de um efeito
estético chamado de yūgen, traduzido belamente por Haroldo de Campos (2006)
como “charme sutil”. Para Zeami, segundo descreve McKinnon, era esse efeito,
yūgen, que deveria ser levado em consideração pelo ator em seu processo de
aperfeiçoamento. Contudo, algo permanece ainda no ar: como podemos relacionar
essa concepção acerca da “produção” do yūgen e o tema da recusa do Sujeito
apresentado por Lévi-Strauss? Aqui certamente farei um salto interpretativo muito
grande, espero que o exercício faça valer o risco8.
Para Zeami, o artista para poder agenciar, ou melhor, elicitar um efeito
677
estético yūgen, precisa desenvolver/ter aquilo que ele chama de hana9. Como uma
qualidade que parece ser intangível, para que o artista saiba/conheça sua eficácia
(hana) ele necessita da “objetificação”10 causada pelo yūgen; esse efeito seria a
“constatação” da eficácia do artista, isto é, seu hana. Dessa forma, me parece que o
yūgen pode ser visto antes como o índice de uma capacidade de elicitar na
audiência uma certa resposta do que como uma característica intrínseca à
apresentação e que deve ser deduzida passivamente pela audiência. Assim, o
sujeito (nesse caso, o artista) parece ser precipitado nessa relação; através do
yūgen provocado na audiência, ele conhece a si próprio, tem a certeza de ser um
agente, se constitui como sujeito.
No entanto, o yūgen não parece ser apenas o índice do hana do ator. A
audiência parece também ser “beneficiada” na produção desse efeito. Elicitar um
efeito na audiência também a constitui como um sujeito. Isso parece claro, quando
McKinnon descreve o que Zeami designou por kan, traduzido como um tipo de
“percepção intuitiva”.
Kan, segundo McKinnon (1953), não é um conceito facilmente definível. Para
o autor, é aquilo que “possibilita o artista a se tornar um mestre em seu meio, e
através do qual, dar marca pessoal à performance” (p. 212 – tradução nossa).
Seguindo a analogia feita por Zeami que comparava a situação do ator à uma
marionete, McKinnon afirma: “Ele [Zeami] reconheceu que assim como uma
marionete requer fios para que tome vida, um artista de Nô precisa da percepção e
do entendimento como “fios” invisíveis para que sua atuação ganhe vida” (Ibid., p.
212 – tradução nossa).
Se a percepção e o entendimento, isto é, kan, agem como fios que dão vida à
performance, quem movimenta esses fios? Aqui gostaria de propor que poderíamos
pensar que é a audiência. O autor afirma que o kan é a maneira que o artista
estabelece uma conexão com a audiência. Mas e se tentássemos perceber isso
como sendo a conexão criada pela audiência? Dessa forma, a audiência não parece
mais apenas o recipiente de onde o artista elicita um efeito, mas passa a ser
também um elemento ativo que incita o artista a buscar criar o efeito, o yūgen.
Portanto, o yūgen também pode ser compreendido, proponho, como o efeito
678
da eficácia de um duplo movimento de relações que constituem dois sujeitos: a
audiência satisfeita e o artista triunfante. Uma relação em que a audiência controla a
atuação incitando uma ação a partir de sua capacidade de afetar o kan do artista. E
outra relação, em que o artista incitado pela audiência, através de seu hana é capaz
de extrair de sua audiência um efeito, uma resposta adequada, o yūgen. O sujeito
parece ser, como já indicado por Lévi-Strauss, o resultado de como as pessoas se
encaixam umas nas outras, isto é, a realidade do sujeito é “como o último lugar em
que se refletem seus pertencimentos” (2012, p. 35).
Direcionemo-nos então para a segunda recusa: o Discurso. Espero que a
exposição acerca da recusa do Sujeito tenha sido o suficiente, apesar de parecer
certamente um pouco confusa. O Discurso tem igual importância para nós,
ocidentais. Acreditamos que “um discurso bem construído coincide com o real,
atinge e reflete a ordem das coisas” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Já no
pensamento japonês, diz Lévi-Strauss (Idem),
todo discurso é irremediavelmente inadequado ao real. A natureza última do
mundo, a supor que essa noção tenha algum sentido, nos escapa. Ela
transcende nossas faculdades de reflexão e de expressão. Nós não
podemos nada conhecer dela, e portando nada dizer a seu respeito.
Contudo, a recusa do Discurso não implica necessariamente sua negação
absoluta. Lévi-Strauss aponta que a recusa japonesa se desdobra em uma
desconfiança a um “espírito de sistema” imbuído de “preconceitos tenazes” como a
ideia de que os fenômenos da vida tem uma racionalidade e uma necessidade lógica.
O antropólogo francês utiliza a filosofia do Zen Budista para ilustrar a maneira que o
discurso, que assume a forma de sabedoria, parece ser construído. Esse discurso é
uma sabedoria que desconfia de si mesma, Lévi-Strauss (2012) afirma que
o zen é uma prática da meditação que deve conduzir à sabedoria, e se essa
sabedoria consiste em se distanciar do mundo das aparências, numa última
etapa a sabedoria descobre que, prisioneira de outras ilusões, também deve
desconfiar de si mesma. Ora, um saber que duvida de si não é um saber.
Ter atingido esse conhecimento supremo que tudo é não conhecimento
liberta o sábio. Ao ponto em que chegou, para ele isso equivale saber que
nada tem sentido, e, como se tudo tivesse um sentido, a partilhar como
homem ordinário a existência de seus contemporâneos. (p. 81-2)
Neste ponto, gostaria de introduzir outra imagem que pode deixar mais claro a
questão da recusa ao discurso. Desta vez não pretendo me voltar ao teatro Nô, me
679
aterei ao belíssimo ensaio de Lévi-Strauss sobre Sengai.
Sengai (1750 – 1837) foi um monge budista da escola Rinzai – conhecida
pelos seus ensinamentos de difícil entendimento assim como pelo uso dos koan.
Lévi-Strauss o situa na linhagem do pensamento que fez escola com a designação
de “arte do imperfeito”. Oriunda das cerimônias do chá, a arte do imperfeito tem um
apreço pelos produtos que foram produzidos sem uma pretensão estética de
tornarem-se obras de artes; valoriza-se as irregulares, assimetrias, descontinuidades,
ou seja, a imponderabilidade da vida.
Contudo, como salienta Lévi-Strauss, devemos ser cautelosos para não
apressarmos uma analogia entre a arte do imperfeito e o interesse de artistas
ocidentais em “encontrar a liberdade do gesto criador aquém das regras
convencionais” (2012, p. 75). O que estava em jogo nessa opção estética era “se
livrar de qualquer dualismo para atingir um estado em que a oposição do belo e do
feio não tem mais sentido: estado que o budismo chama de ‘Assimdade’, anterior a
todas as distinções, impossível de definir senão pelo fato de ser assim” (Ibid., p. 75).
A arte de Sengai também é uma forma de fazer com que os dualismos
bastante comuns ao nosso pensamento se desmontem e percam sua eficácia como
categorias de análises. Uma arte em que “a negligência e a elegância se confundem”
(Ibid., p. 75) requer que a olhemos de outros ângulos. O primeiro desafio das obras
de Sengai é o uso da “caligrafia” com a “figuração”. Contudo, essa distinção é nossa,
devemos lembrar que o próprio Sengai afirmava que seu “jogo” com o pincel e a
tinta “não é nem pintura nem caligrafia”11, a composição torna texto e desenho
indissociáveis, eles “se respondem um ao outro” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 80).
Voltemos a recusa do Discurso e sua relação com a arte de Sengai. Essa arte
é marcada pelo que Lévi-Strauss chama de uma “economia de meios”, aspecto
derivado do fato do Japão ser uma “civilização de tons”, onde as coisas significam
mais. Dada a incomensurabilidade entre discurso e mundo, a economia de meios
empregada por Sengai ajuda a expressar a coincidência, “o encontro inesperado da
realidade com um gesto” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 76). “A obra não imita o modelo.
Ela celebra a coincidência, mais valeria dizer a fusão, de dois fenômenos
transitórios: uma forma uma expressão ou uma atitude, e o impulso dado ao pincel”
680
(Ibid., p. 76).
A própria noção de “obra de arte” precisa ser repensada nesse encontro com
um discurso que parece sempre está mudando, pois desde o começo nunca foi
realmente adequado. Mais que uma forma espacial, a arte de Sengai assume uma
forma temporal. A produção de Sengai se apresenta muitas vezes enquanto uma
série onde a individualidade se transforma a partir de uma mistura, sucessão e
repetição. “Em tal arte, o quadro não existe, à maneira dos nossos, como um objeto
[uma obra]: é algo que chega e se apaga atrás de outro quadro igualmente
passageiro” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 79).
Outra questão que se desdobra da arte de Sengai é a autoria. Qual o papel
assumido por Sengai na produção de seus trabalhos? A dupla recusa japonesa nos
coloca diante das questões, já que o sujeito não é um a priori e tampouco o discurso
é adequado à realidade, de quem figura como autor? E sobre o que a autoria se
exerce?
Lévi-Strauss é enfático ao contrapor a concepção de autoria ocidental à
concepção japonesa afirmando que “o monge do zen quer ser o lugar insubstancial
em que alguma coisa no mundo se expressa através dele” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p.
79) enquanto o “autor” ocidental busca através de um gesto criativo “expressar sua
personalidade na obra” (Ibid., p. 79). Novamente a relação parece algo importante.
Ao se tornar o lugar insubstancial, Sengai é capaz de permitir que o mundo se
anuncie através do resultado desse encontro: a arte. Pois como diz Lévi-Strauss
(Ibid., p. 79): “o eu é o meio pelo qual o signo se expressa e, subsidiariamente,
assume a individualidade de quem o escreve”. A arte de Sengai é fruto dessa
relação, em que mundo e pessoa (sujeito) se compõem mutuamente. O antropólogo
francês estava certo, a arte de Sengai é uma “arte de se acomodar no mundo” e de
deixar o mundo se acomodar em si!
Novamente voltamos para o contraste que Lévi-Strauss percebe entre o
pensamento ocidental e o pensamento japonês – aquele entre o centrípeto e o
centrífugo. E aqui, já me encaminho para a conclusão. No início desse ensaio usei
um koan como analogia para o efeito que tentei criar. O efeito era um efeito de
681
alteração. Como se alterar a partir de um encontro com a alteridade?
O Japão de Lévi-Strauss é uma imagem complexa porque certamente o
Japão é uma realidade que nos escapa. E isso ele nos ensina: que o discurso é
irremediavelmente inadequado para o mundo. Esse ensaio, sendo a construção
sobre outra construção, pode parecer potencializar essa inadequação. Mas espero,
que algo ele possa nos ensinar: que ao lidarmos com o Outro precisamos ser
criativos para poder diminuir o máximo possível a inadequação de nossos conceitos
ao descrevermos os conceitos dele. E para isso não há um lugar seguro, apenas um
entre lugar extremamente perigoso, pois é um entre lugar que pode nos transformar.
E quem melhor que o Japão, uma cultura que vive se reinventando, para mostrar
que isso é possível e apreciável.
Notas
1
Esse ensaio é uma versão modificada e estendida de uma apresentação feita em 2013 no Grupo de
Estudos A Arte Japonesa: Diálogos, coordenado pela Prof. Dr. Michiko Okano. Agradeço pelos comentários
feitos pelos presentes na ocasião, em especial, Michiko Okano e Karina Ayumi.
2
A inspiração aqui vem de Roy Wagner (2009) e a maneira como ele pensa a antropologia. Para o autor,
a antropologia é oriunda de uma relação – entre antropólogos ou antropólogas e nativos – em que os primeiros,
para lidar com o que comumente chamamos de choque cultura, inventam para esses últimos uma cultura.
Contudo, nesse processo de inventar uma cultura para o Outro, o antropólogo ou antropóloga inventa uma
cultura para si. Portanto, ao se construir uma imagem sobre o Japão, construímos no mesmo ato uma imagem
sobre nós mesmos; a tarefa seria, então, deslocar essas imagens de tal modo que o antropólogo ou a
antropóloga seja capaz de familiarizar o “estranho” e estranhar o “familiar”.
3
Tomo emprestada a expressão de Viveiro de Castro (2002, p. 123 – grifo nosso): “A expressão
'experiência de pensamento' não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio)
pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real: não se trata de imaginar uma
experiência, mas de experimentar uma imaginação”.
4
Junzo Kawada, o autor do prefácio de A outra face da lua, descreve que encontramos no livro um
“Lévi-Strauss amoroso do Japão” (p. 9 – grifo do autor).
5
A negatividade é uma estratégia antropológica de descrição, que consiste na afirmação de que certo
conjunto de conceitos não se aplica ao material etnográfico (STRATHERN, 2006). A negatividade também nos
informa muito sobre a importância de determinados conceitos em sua metafísica de origem.
6
Retirado de Tennyson (2009).
7
Tradução nossa. Retirado de Scheper-Hughes e Lock (1987).
8
Confesso que essa análise foi inspirada pela análise que Strathern (2006) faz das concepções
melanésias acerca da pessoa e da ação. Também devo muito de minha inspiração para essa análise ao
fascinante artigo de Benito Ortoloni (1972) sobre a importância da audiência no Teatro Nô.
9
Outro texto de McKinnon (1952) me ofereceu pistas que também contribuíram para a análise.
10
O termo provém de Strathern (2006) que define objetificação como “a maneira pela qual as pessoas e
as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou
objetos de sua criação” (p. 267).
11
A frase completa atribuída a Sengai é: “Meu jogo com o pincel e a tinta não é pintura nem caligrafia;
ainda assim pessoas desavisadas pensam equivocadamente: isto é caligrafia, isto é pintura” (tradução nossa –
retirado de STEVENS, s/d).
682
Referências Bibliográficas
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KUSANO, Darci. O que é teatro nô. São Paulo: Brasiliense, 1988.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A outra face da lua: escritos sobre o Japão. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia diante dos problemas do mundo moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
MCKINNON, Richard N. The No and Zeami. The Far Eastern Quarterly, v. 11, n. 3, maio
1952.
MCKINNON, Richard N. Zeami on the art of training. Harvard Journal of Asiatic Studies, v.
16, n. 1-2, jun. 1953.
ORTOLANI, Benito. Zeami’s Aesthetics of the No and Audience Participation. Educational
Theatre Journal, v. 24, n. 2, maio 1972.
SCHEPER-HUGHES, Nancy; LOCK, Margaret M. The Mindful Body: A Prolegomenon to
Future Work in Medical Anthropology. Medical Anthropology Quarterly, New Series, Vol. 1,
No. 1, mar. 1987.
STEVENS, John. The appreciation of Zen Art. s/d. Disponível em:
<http://www.zenpaintings.com/stevens.htm> Acesso em: 16 mar. 2014.
STRATHERN, Marilyn. O gênero da dádiva. Campinas: Editora Unicamp, 2006.
TENNYSON, Alfred. Poemas de Alfred Tennyson. Seleção, tradução, notação, introdução
e organização de Octávio Santos. Lisboa: Editora Saída de Emergência, 2009.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, abr. 2002.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Bruno Pereira de Araujo
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Faz parte do
Grupo de Estudos A Arte Japonesa: Diálogos na mesma instituição. Tem como interesse de
pesquisa o Teatro Nô.
683
SOBRE MÃOS E COISAS QUE (NÃO) EXISTEM MAIS: ARTE E MEMÓRIA NO
REGIME VISUAL DA COMUNIDADE OKINAWANA EM SÃO PAULO
Laís Miwa Higa - USP
RESUMO: A partir da etnografia e participação como dançarina numa escola de dança de
Ryukyu (Tamagusukuryu Senjuka iSaito Satoru Ryubu Dojo), em São Paulo, investigo o
aprendizado do universo da arte okinawana e sua performance articulados a processos de
elaboração de discursos sobre identidade e cultura okinawana. O regime visual do grupo é
construído no imbricamento da performance artística com a memória. A arte, além de ter um
universo próprio constituído e regrado, permite a visualização de um passado constante nas
narrativas sobre a história de Okinawa/Ryukyu e da imigração ao Brasil. Dessa forma,
procuro refletir sobre a ryukyubuyo como índice e agente de outras relações sociais (Gell,
1998) e construto de espaços e coisas da memória (Carruthers, 2011).
Palavras-chave: Okinawa; imigração; memória; regime visual; dança.
ABSTRACT: By ethnographic work and as a dancer member in a Ryukyuclassical dance
school (Tamagusukuryu Senjukai Saito Satoru RyubuDojo), in São Paulo investigate the
learning process of okinawan art universe and its performance articulating them to
elaboration process of okinawan identity and culture discourses. The visual system is
constructed by interweaving artistic performance to memory. Art, besides it belongs to a
stablished and ruled universe, allows the visualization of a constant past in the narratives
about Okinawa/Ryukyu history and immigration to Brazil. In this sense, I reflect about ryukyu
buyou as index of other social relationships (Gell) and constructs of spaces and things of
memory (Carruthers, 2011).
Keywords: Okinawa; immigration; memory; visual system; dance.
Composição estética de sacerdotisas de Ryukyu: Kamigami, a dança dos
deuses e sua atmosfera de perigo
Em 2010, a escola de dança clássica ryukyuanaTamagusukuryuSenjukai
Saito SatoruRyubuDojo apresentou um número de dança junto com o grupo de
tambores okinawanos (taiko) RyukyuKokkuMatsuriDaiko(RKMD) em diversos
eventos da comunidade okinawana de São Paulo, chamado Kamigami (Deuses). A
vestimenta era composta de um quimono típico de Okinawa, kasuri, preto com
grafismos quadriculados em branco e obi, a faixa que prende o quimono, estreito e
vermelho; sobre ele vestimos um quimono branco não atado. Em nossos cabelos
era preso um aplique para alongar o rabo de cavalo preso na altura da nuca e no
topo da cabeça vestíamos uma coroa de folhas sobre um lenço branco amarrado em
torno da cabeça cujas pontas escorriam junto aos cabelos. Depois da maquiagem
684
feita, em nossas mãos eram pintadas figuras geométricas que compunham nossa
representação performática de sacerdotisas kaminchu(literalmente, gente de deus
ou deusas),de Ryukyu (nome do reino na ilha antes da anexação ao Japão, hoje
Okinawa). A sacerdotisa principal, noro, vestia mais uma camada de quimono e um
colar de contas pretas e um pingente de pedra em forma de vírgula (magatama, que
figura também a forma de um feto, símbolo importante na cosmologia okinawana)
[Figure 01]. As tatuagens que pintávamos utilizando esmalte preto para unhas sobre
a maquiagem de dança em nossas mãos chamam-se hajichi [Figure 02]. Durante os
ensaios, SatoruSaito, mestre da escola, nos mostrava algumas fotos de mãos de
sacerdotisas com as tatuagens. Todas as imagens eram de mãos envelhecidas,
enrugadas com grandes formas pretas ou azuladas. Quando estudara em Okinawa,
na Faculdade de Belas Artes de Ryukyu, um professor levara a turma para
Kudakajima, uma pequena ilha onde ainda existem essas mulheres de mãos
tatuadas. Elas pouco falavam e o que falavam não podia ser repassado, seus cantos
não poderiam ser cantados num palco ou ao acaso pois suas palavras são todas
sagradas. O intuito da ida a Kudaka era pedir autorização para o uso de uma história
sobre o relacionamento amoroso de uma norocom um dos reis de Ryukyu para a
produção de um kumiudui(ou kumiodori, teatro clássico de Ryukyu, considerado
patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO desde 2008). De acordo com
Saito, elas autorizaram o uso da história desde que os ritos e os cantos tivessem
alguns movimentos e palavras trocadas, pois “não podiam ser de verdade, era só
para imitação” (grifo meu – com. pessoal).
Durante um dos ensaios, o colar de Satoru quebrou e o chão se cobriu de
contas negras que rolavam enquanto observávamos o rosto do mestre coberto de
pavor. No intervalo, fumando um cigarro ele me dizia que estava preocupado, pois é
muito perigoso “mexer com essas coisas”, mas que ele havia “rezado” e pedido
autorização para os deuses e ancestrais nos protegerem. Ele se perguntava se
alguns problemas que estávamos enfrentando se davam por conta da performance e
associou o ocorrido a uma outra história. Na sede de sua academia, em Okinawa,
sua mestre coreografou “A princesa da Lua” (KaguyaHime), uma lenda japonesa.
Nas duas vezes em que apresentaram esse espetáculo, as protagonistas faleceram
no processo. E concluiu: “Kaguyahime também fala dos céus, de deuses... tem coisa
que a gente não pode mexer, mas acho que a gente vai perceber casoKamigami
685
seja perigoso”. Como de costume, jogamos sal no camarim e no palco antes da
apresentação para purificar o local e nos proteger das energias ruins. A abertura da
performance consistia num vídeo exibido num enorme telão com imagens dos mares
e praias de Okinawa e a narração de um texto sobre NiraiKanai, o “paraíso”, a ilha
sagrada onde habitam os deuses e ancestrais, de onde estes olham e protegem o
arquipélago de Ryukyu e onde reside o duplo das sacerdotisas kaminchu,
consideradas materialização em corpo de gente das deusas protetoras da ilha.
Segundo Saito, nem todas as kaminchue noro tinham as mãos tatuadas e
parece não haver nenhum significado religioso relacionado à sua função. Ele conta
que há duas versões que explicam as hajichi: as mulheres eram tatuadas para não
serem vendidas a prostíbulos e os pais obrigavam as filhas a usarem as hajichi para
não serem raptadas para a China.
Figure 1. Apresentação de Kamigami. Senjukai Saito SatoruRyubuDojo. Okinawa Festival, Vila Carrão,
São Paulo, 2010. Foto: CintiaTiemiHiga, São Paulo, 2010.Acervopessoal de Laís Miwa Higa.
Figure 2. Hajichi nas mãos das dançarinas e do mestre Saito, feitas por Sueli Asato. Okinawa Festival,
Vila Carrão, SP. Foto: Cintia TiemiHiga, 2010, São Paulo. Acervo pessoal de Laís Miwa Higa.
686
Narrativas: tatuagens, mulheres casadas e sacerdotisas
Em geral, conta-se que as hajichi eram usadas pelas sacerdotisas, mas
também por mulheres comuns. Nesse caso, elas marcavam que tais mulheres eram
casadas através de flechas desenhadas nos dedos numa só direção.Isso significava
que uma mulher casada sai da casa de sua família para nunca mais voltar. Outras
formas desenhadas também representavam a vila em que a mulher residia pois,
dizem, marcadas de tal maneira estariam prevenidas dos raptos de mercadores
chineses e japoneses e, caso isso acontecesse, pela tatuagem seria fácil devolver a
mulher ao seu respectivo marido. A hajichi era feita por mulheres utilizando lascas
de bambu para cortar a pele e inserir uma tinta feita de carvão vegetal.
Os imigrantes okinawanos aqui no Brasil contam que essas tatuagens foram
banidas em Okinawa logo após a Restauração Meiji (1869), em 1899, pois eram
consideradas pelos japoneses como símbolos de barbárie e associadas ao mundo
do crime. Ao chegarem ao Brasil, a mesma associação foi feita e as hajichi se
tornaram mais um elemento de preconceito contra os okinawanos. Somente as
pessoas muito idosas hoje já viram ou conheceram mulheres com as mãos tatuadas.
Disseram-me que as hajichi foram banidas por volta de 1905, no entanto, seu início,
como muitas coisas de Okinawa, se deu num passado longínquo e inacessível, pois
aquelas que as conheciam estão mortas [Figure 04]. Mesmo em Okinawa,
atualmente, somente sacerdotisas de ilhas menores como Miyako, Iheya e Kudaka
ainda são tatuadas.
Figure 3. Uma das poucas imagens de imigrantes okinawanas no Brasil com hajichi e vestida com o
bingata, quimono de Ryukyu. Acervo pessoal de Paulo Higa, s/d.
687
Kudakajima é uma ilha sagrada, nas quais a nobreza de Ryukyu buscava
ajuda e proteção, onde as sacerdotisas e deidades exercem suas funções. Foi lá
que brotaram os primeiros grãos com a ajuda dos deuses, segundo o mito. Kudaka,
no imaginário okinawano, é também a ilha do sonho. Somente as mulheres exercem
funções espirituais na cosmologia ryukyuana, os homens exercem somente funções
de adivinhação e mágica, já praticamente inexistente. É perigoso entrar nessa ilha,
afinal, é preciso efetuar rituais e promessas para obter permissão dos deuses –
estes não podem falhar sob ameaça de tragédias. Ouvi histórias sobre as punições
espirituais recebidas por aqueles que ousaram tocar com sua impureza a natureza
de Kudaka, permeada em cada folha pelos deuses da natureza: um menino faz xixi
numa árvore e adoece quase à beira da morte; um turista recolhe pedrinhas e as
traz ao Brasil como souvenir onde todas as tragédias acometem sua vida fazendo
com que ele volte a Okinawa para restituir as pedrinhas que tirou de lá e realizar
rituais de perdão e oferenda àqueles que insultara. Uma descrição similar pode ser
encontrada em “Heródoto no mar da China”, de Lévi Strauss (2012) na qual o autor
relata sua viagem às ilhas de Ryukyu.
A hajichipermanece de alguma forma na memória e nas histórias sobre
Okinawa e sobre a imigração, inclusive porque ela foi um dos elementos que
justificavam a proibição da imigração de okinawanos feita pelo Estado brasileiro.
Penso aqui numa questão formulada por Mary Carruthers (2011), em A Técnica do
Pensamento, “esse foi um fato de esquecimento ou recordação?” (p.97). Ela diz
ainda que a maneira de responder essa pergunta depende completamente do
ângulo, da rede de associações que a pessoa cria em sua cartografia da memória a
partir disso. Uma resposta constante as minhas perguntas sobre as tatuagens
femininas foi “elas não existem mais”. E, de fato, além dos muito idosos, somente as
pessoas mais engajadas nas narrativas sobre cultura e identidade okinawana já
tinham ouvido falar das hajichi: jovens que foram estudar em Okinawa, artistas,
lideranças.
Partindo das hajichi como elementos indexicais (Gell, 1998), ou seja, como
índices
que
apontam
e
agenciam
outros
tipos
de
relação
social
sem
necessariamente possuírem um significado em si, gostaria de refletir sobre sua
existência na cartografia da memória pública ou comum (Carruthers, 2011) dos
688
okinawanos. Como se pode perceber pela descrição feita acima, essas tatuagens,
apesar de “não existirem mais”, quando mobilizadas funcionam como espécie de
mote para se falar de certos temas como religião e mulheres. Além disso, é
importante notar que o conhecimento e o falar sobre as tatuagens se concentra em
dois grupos distintos: imigrantes idosos, que viram as hajichi e são considerados os
melhores contadores de história da comunidade, e pessoas que têm interesse em
difundir, especialmente para os mais jovens, a cultura e a história de Okinawa e da
imigração ao Brasil.
A questão, ou o desafio, neste paper é desenvolver uma interpretação das
narrativas que envolvem as hajichi tendo como pano de fundo a construção das
narrativas sobre Okinawa/Ryukyu e como ambas tecem espaços na memória do
grupo. Ora, como membro deste grupo de estudantes que já ouviu falar sobre a
hajichi, meu próprio processo de busca por material, notei então, seguiu um
determinado percurso de associações que acredito ter aprendido com aqueles que
me falaram da tatuagem, em especial o mestre Saito e o ex-presidente da
Associação OkinawaKenjin do Brasil (AOKB) que cego, pediu que eu escrevesse um
texto ditado por ele sobre as hajichi para ser publicado em sua coluna na Revista
OK1.
Memória comum, coisas da memória e suas realocações
Em A técnica do pensamento, Mary Carruthers (2011) reflete sobre a arte da
retórica monástica na Idade Média. Segundo ela, a retórica monástica enfatizava a
“invenção”, “uma arte para a mneme, ‘memória’” (p.26). Pede então aos leitores
um grande esforço de imaginação ao longo de todo este estudo, para
conceber a memória não apenas como “repetição”, a habilidade de
reproduzir algo (seja um texto, uma fórmula, uma lista de itens, um
incidente), mas como a matriz de uma cogitação reminiscente, que mistura
e confronta “coisas” armazenadas em um esquema ou conjunto de
esquemas de memória de acesso aleatório – uma arquitetura da memória e
uma biblioteca construídas ao longo de toda a vida, com a expressa
intenção de serem usadas inventivamente. (p.27).
O meu intuito aqui é refletir sobre a teoria da memória apresentada pela
autora contrastando-a com as narrativas já parcialmente descritas no início deste
paper e sobre as quais me deterei mais adiante. A “repetição” das informações nas
689
narrativas okinawanas que trazem como elemento as hajichi dizem mais sobre a
construção de espaços na memória por técnicas mnemotécnicas do que sobre a
reprodução de eventos, histórias. Ou seja, as hajichi são “lugares” construídos na
memória que “agem sobre” outras coisas proporcionando uma memória de acesso
aleatório e estabelecendo padrões de associação sobre as quais se pode construir
comparações e concordâncias com outros materiais (p.43). Além de seu conteúdo
em si, interessa-me o fato de que as hajichi são mobilizadas constantemente no
discurso de Shinji Yonamine, ex-presidente da AOKB, fundador do grupo Urizun (exbolsistas de Okinawa no Brasil), do grupo Seisonenkai (grupo que reúne pessoas de
meia-idade) e de diversos outros grupos e associações nacionais e internacionais
envolvendo a rede okinawana. Yonamine, engenheiro civil, se autodenomina
palestrante e já realizou palestras em todo o Brasil, em Okinawa, Argentina, Bolívia,
Peru e China, nas quais o hajichi é elemento essencial em sua narrativa sobre a
espiritualidade e relações de gênero entre os okinawanos2.
A inventio de que fala Carruthers engloba tanto o sentido de criação
(invenção) como o de inventário. Portanto, “tal afirmação pressupõe não apenas que
não se pode criar (“inventar”) sem um depósito de memória (“inventário”) a partir do
qual e com o qual inventar, mas que também tal depósito de memória está
efetivamente “inventariado”, que seus materiais se encontram em “locais”
prontamente recuperáveis” (p.37).
Em Okinawa: The HistoryofanIsland People, de George Kerr (2000 [1958]) e
Dancing withtheDead: Memory, Performance, andEveryday Life in PostwarOkinawa,
de Christopher Nelson (2008), os autores indicam que após a colonização japonesa
do arquipélago de Ryukyu e o banimento do reino houve um processo de
japonização da ilha. Após a Segunda Guerra Mundial – e o livro de Kerr é um
exemplo disso, pois foi encomendado pelo Exército Norte-Americano – iniciou-se um
processo de recuperação das coisas de Ryukyu. Por um lado, a ocupação militar
tinha interesse em desjaponizar os okinawanos com o intuito de diluírem o
sentimento nacionalista japonês dos cidadãos de Okinawa. Por outro lado, as
manifestações culturais e artísticas antes banidas puderam emergir de alguma
maneira e muito do que havia sido imposto ao esquecimento pôde ressurgir na
690
memória dos habitantes – de maneira pública.
As hajichi, assim como outras coisas que “não existem mais” como o
NiraiKanai, as noro, lavar os ossos dos mortos depois de sete anos do falecimento,
surgem assim como tropo na arquitetura da memória okinawana: são metáforas para
sua diferenciação como grupo étnico e cultural particular e para identificação dos
okinawanos como membros de uma comunidade que partilha de elementos comuns,
de narrativas e lembranças localizadas no passado distante da ancestralidade. Mais
ainda, são tropos que agenciam a construção de narrativas e ativam a memória
individual e comum (no sentido de comunitária, como aponta Carruthers em sua
crítica à ideia de memória coletiva) criando espaços para novas e outras
associações.
Estes
tropos
estabelecem
também
um
sentido
de
história
desvencilhado da disciplina História, mas não completamente cindido ou separado
dela, mas que são realocados na passagem da memória impelida a se tornar uma
história.
A fala recorrente de meus interlocutores “Não sei direito pois quem conhecia
já morreu” indica uma noção de história ou narrativa de passado fortemente baseada
na oralidade. Quando eu e meus colegas conversamos com nossas avós e
imigrantes perguntando das coisas de Okinawa ao invés de buscarmos uma
biblioteca estamos agindo da forma que aprendemos o que é aprender sobre essas
coisas em nossa comunidade. Nesse sentido, é pela memória que todas essas
coisas são ditas e reconstruídas. O trauma da destruição de monumentos e
documentos em Okinawa durante a Segunda Guerra Mundial reforça a ideia de que
é preciso ouvir os mais velhos para acessar uma outra história3, ainda não descrita
nos estudos sobre imigração japonesa ao Brasil.
A memória, portanto, de acordo com Carruthers, tem uma dimensão individual,
ou “secreta”, pois seu trabalho acontece na mente de um indivíduo. É uma atividade
moral. No entanto, é também social e política, uma vez que trabalha com materiais
de construção comuns a todos. Dentre esses materiais estão as res memoriais: os
blocos construtivos de novas composições (2011:51). A autora oferece o exemplo de
constelações estelares comparadas a animais que eram ensinadas a partir de
padrões e formas que a posteriori poderiam ser nomeadas pela sua semelhança
691
com algum animal. Porém, a ideia dessa técnica era tornar acessível e facilmente
identificável aquilo que era necessário para os homens se guiarem à noite: as
estrelas. Elas, então, formavam um inventário reconstrutível, são ferramentas
mnemotécnicas que podiam ser encaixadas em narrativas e bem “situadas” na
memória das pessoas.
As narrativas okinawanas que partem das hajichi situam os elementos
considerados bárbaros pelos japoneses e brasileiros: tatuagens, nudez, línguas,
xamanismo. Porém, diferentemente das narrativas que partem desses outros
elementos, a hajichi sempre serve para situar o “lugar” da mulher nas narrativas
okinawanas. No artigo produzido por Shinji Yonamine, e publicado na Revista OK
(2012), ele parte da tatuagem para contar a função da mulher na imigração
okinawana ao Brasil:
No Brasil, a tinta do hajichi foi desaparecendo das mãos de nossas
mulheres, mas estão marcadas em nossa memória, na lembrança das mãos
delas, que lutaram pela prosperidade e pelo espaço do okinawano em
nosso país. Essas mulheres trouxeram para o Brasil o modo de vida
okinawano em que os homens trabalhavam na agricultura ou na pesca e as
mulheres comercializavam o produto [...]. Também através do hajichi o
okinawano protegia o que tinha de mais precioso, a sua mulher que além de
trabalhar, era ela quem cuidava da vida doméstica e das relações sociais da
família. [...] Há histórias de líderes, mas não de suas mulheres que lutaram
e sofreram tanto quanto eles, devemos agradecer às obachan [avós],
grandes batalhadoras e submissas, que conseguiram deixar um grande
legado, a família okinawana...
Na narrativa de Shinji, é possível perceber uma realocação das hajichi
“marcadas em nossa memória” numa narrativa de gênero. Ao mobilizar o tropo do
preconceito e especificidade cultural busca-se contar uma história. Assim, o hajichi
não é esquecido, mas é ressignificado. Essa tentativa de nivelar o papel do homem
e da mulher, no entanto, não apaga da memória individual a situação de muitas
mulheres no pós-guerra: a prostituição forçada ou não e a posição de trabalhadoras
mal pagas e informais.
No blog “Okinawa Information.com”, o post relacionado ahajichi, inicia-se com
a seguinte sentença: “Some ofyoumayknowaboutthehajichitattoos. But some
ofyoumightnot, whichis a shamebecause it is quite aninterestingoldOkinawatradition”.
Assim, como outros tropos do passado imemorável de Ryukyu, elas são muitas
vezes impostas à memória dos okinawanos. Se em 1958, ano de publicação da obra
692
de George Kerr, elas eram citadas apenas como mais um elemento que voltava à
memória dos okinawanos no pós-guerra, atualmente elas são colocadas na memória
do grupo como elemento para se conhecer Okinawa. O autor do post,
autodenominado “HaisaiOkinawa” [Olá Okinawa], finaliza o artigo dizendo que há
especulações de que o banimento das tatuagens foi usado como subterfúgio para
prender líderes comunitárias, mulheres que tinham contato com o mundo dos
espíritos.
De acordo com Carruthers (2011), um dos princípios da mnemotécnica é que
recordamos de maneira vívida e tocante especialmente aquilo que é estranho e
emocionalmente tocante. As narrativas mais difundidas na comunidade okinawana
brasileira são narrativas orais. A maioria possui elementos de grande sofrimento
(fome, pobreza, preconceito) que são contrastados com a vida atual dos
descendentes de okinawanos (comida, dinheiro, conforto, educação). As res
memorabiles, as coisas da memória, obtêm sucesso de longo prazo ao reter
personagens, eventos ou linhas gerais de uma história. O que importa então não é o
que elas lembram, mas as formas que tomam, como despertam na memória. Essas
coisas se tornam populares por sua consonância com a atualidade da comunidade
em que estão inscritas.
Contudo, se as técnicas mnemotécnicas analisadas por Carruthers tinham o
objetivo de tornar o pensamento criativo e fornecer ferramentas para o debate e para
facilitar a apreensão do mundo, não é possível, me parece, estabelecer objetivos
estanques para os materiais que trago aqui em minha análise. Pois as fontes que
utilizo são diversas e seus autores agenciam diferentes tipos de relações sociais e
se posicionam também em diferentes lugares no grupo. No entanto, provisoriamente,
posso dizer que, em última instância, os tropos e os tipos de narrativas construídas
para que a história dos okinawanos seja memorizada, ou memorializada, estão
envoltas numa dinâmica de apreensão do mundo e de criar um tipo de pensamento
que é próprio de quem passou pelas colonizações japonesa e norte-americana e
migrou com a acusação dos que ficaram de que estariam fugindo ou esquecendo o
sofrimento e dedicando sua vida para reconstruir uma terra outra. O sofrimento
torna-se, como podemos ler na publicação da AOKB sobre os 90 anos da imigração
ao Brasil e como pude constatar em debates com jovens de 16 a 30 anos, o fio que
693
tece todos os tropos e eventos narrativos da história okinawana. O mais importante
disso é que é explicitamente imposto às novas gerações o não esquecimento desse
sofrimento, seja pelas narrativas trágicas seja pela caracterização dos imigrantes
como pessoas fortes, corajosas e vencedoras. Mesmo na ryukyubuyou, conhecida
pelos japoneses e okinawanos como uma modalidade artística que contrasta com a
japonesa por se alegre e vibrante (e, portanto, menos sóbria), o sentimento de
sofrimento é essencial na performance e nas releituras de coreografias clássicas. No
espetáculo Kizuna – corações unidos pela dança, de 2009, da escola de Saito, o
enredo contava a história de Ryukyu e de Okinawa. A Segunda Guerra Mundial foi
representada pela dança clássica feminina Kashikaki, na qual uma mulher tece
tristemente um quimono à espera de seu companheiro que fora lutar ou trabalhar
num local distante. No áudio da música foram acrescentados os sons dos
bombardeios em Okinawa e, num telão ao lado do palco, imagens da guerra
acompanhavam o som do sanshin e o dançarino. Apesar da associação não ser
comum nas narrativas oficiais, muitas pessoas nos procuraram para dizer o quanto
ficaram emocionadas.
Nelson, em Dancing withtheDead (2008), conduziu sua pesquisa sobre
memória e performance em Okinawa. Ele conta que com a presença militar norteamericana na ilha, os habitantes vivem cotidianamente com a instabilidade da
emergência de uma guerra, de um enorme acidente militar e ainda com as marcas
da Batalha de Okinawa. Assim, “não tem sido fácil para os okinawanos lidarem com
o passado” (p.4). A luta coletiva dos sobreviventes da guerra, ativistas e
testemunhas secundárias para reexaminar o passado desenterra traços complexos
inscritos na memória e nas representações gráficas. Não apenas o terror e a perda
sobressaem desses traços, mas também, diz Nelson, o passado okinawano é uma
arena de possibilidades que tem se mostrado um potente arquivo de práticas e
imaginários romantizados. O autor sugere ainda que as imagens do passado de
Okinawa são sempre ambivalentes pois suscitam perda e esperança, terror e prazer,
origem e apocalipse e que os okinawanos voltam a elas justamente por conta do
poder que emerge dessa ambivalência imagética.
O que se pode saber hoje sobre as hajichi é que eram tatuagens feitas nas
mãos de mulheres ryukyuanas, de sacerdotisas ou casadas. Elas permanecem na
694
memória, mesmo daqueles que nunca as viram, como um quadro ou cena que diz
sobre as relações de gênero, sobre a espiritualidade e também sobre questões
políticas e sociais atuais.
Como aponta Gell (1993), na introdução de Wrapping in Images, a
modificação corporal, como a tatuagem, pode ser entendida como parte das técnicas
de uma sociedade na qual sua reprodução se dava. No caso dos polinésios, a
tatuagem produzia uma sujeição (no sentido foucaultiano de produção de sujeitos)
que, em contrapartida, perpetuava formas políticas e sociais do grupo. Atualmente,
no Japão, as hajichi desapareceram dos corpos – somente os Ainu, os tatuadores
da máfia Yakuzae os estúdios de tatuagem norte-americana mantêm suas técnicas
atualmente. No entanto, elas mantiveram enquanto foram marcadas nos corpos de
mulheres o controle de sua circulação matrimonial e a construção do corpo das
sacerdotisas comunitárias. Ao ser realocada para a criação de uma memória
contemporânea do grupo, as hajichi são desvencilhadas do sistema hierárquico do
reino de Ryukyu como técnica construtora do corpo feminino e do corpo xamânico
para serem realocadas para um espaço memorial que cria associações com as
questões atuais da comunidade.
A atmosfera de perigo que surge nas narrativas sobre as noro e sobre as
coisas sagradas, ou femininas, se mantêm. Porém o sagrado vai se diluindo na
esfera cotidiana e acaba por se concentrar em momentos específicos, como os ritos
funerários e o envelhecimento dos avós e pais que vão passando para a esfera do
mundo dos ancestrais. As hajichi marcavam a pureza, a periculosidade, de mulheres
casadas e mulheres sagradas. Para minha avó, imigrante, “antes tinha tatuagem,
agora tem anel”.
As filhas mais velhas são conselheiras espirituais da família. Isso indica que
elas devem ser respeitadas e sua voz, ouvida. Porém, como aponta Susan Sered
(1997), o caráter sagrado de uma mulher nunca suprime suas obrigações
domésticas no seio da família e sua posição feminina na sociedade. Este é um
contraponto para o privilégio de herança dos primogênitos. Segundo Yonamine, o
homem detém a materialidade da casa e a mulher, a espiritualidade. Hoje, as
técnicas corporais das mulheres casadas passam por outros movimentos:
695
vestimentas, cabelo, postura. A garantia de matrimônio está vinculada ao círculo
social construído pelos pais desde a mais tenra infância e, ainda hoje, as filhas são
ensinadas a serem boas esposas okinawanas e criadas para serem parte de outra
família, como percebo nas narrativas de mulheres okinawanas em São Paulo. O
lugar da religião okinawana na memória da comunidade é também o lugar do
matrimônio e da troca de mulheres.
Processos de aprendizado da ryukyubuyoue na antropologia
Nos primeiros relatos sobre a imigração japonesa ao Brasil, TomooHanda
descreve o som do sanshin tocado pelos imigrantes okinawanos misturado ao das
ondas batendo no navio KasatoMaru. Em filmes, narrativa orais e nas escolas de
arte de Ryukyu, a arte aparece como elemento de superação e conforto diante das
adversidades. Se a arte clássica de Ryukyu nasceu como forma de entretenimento
aos diplomatas chineses que vinham ao reino negociar, ela foi recuperada no pósguerra como reconstrução da ilha, do coletivo e das pessoas. Na Okinawa
devastada pela Batalha do Pacífico, novas formas e novos revestimentos foram
tomando os instrumentos e a arte de Okinawa se renovou: sanshin eram feitos com
latas de biscoito, encontrados nos lixos das bases americanas, surgiu a vidraçaria
okinawana a partir dos restos de vidro americano, acabaram as proibições de
mulheres na ryukyubuyou. Imigrantes contam que cantavam ao som do sanshin para
conseguir lidar com as tragédias da guerra, com a fome, com a perda de parentes e
entes queridos. A dança popular, com seu ritmo alegre e passos soltos,servia de
catarse.
Em São Paulo, as conversas que tive com minhas colegas na escola do
mestre Saito mostram como a dança faz parte do aprendizado subjetivo e
consciente de se tornar uchinanchu (okinawano, na língua da ilha). Para elas,
dançar é ter orgulho de suas raízes, manter a cultura de seus ancestrais para que
ela possa chegar aos seus filhos e netos, é reconhecer o sofrimento de seus
ancestrais sem passividade, resistindo a muitos aspectos da modernidade que,
nessa perspectiva, destrói as tradições.
Em geral, as professoras de dança de Ryukyu no Brasil apoiam-se em vídeos
696
gravados em Okinawa para passar as coreografias para suas alunas. Poucas, como
o professor Saito, dedicam-se a criar novas danças e ensinar as técnicas. Satoru
Saito, 27 anos, é o único mestre de ryukyubuyou do sexo masculino, no Brasil, e dos
mais jovens. É o único que vive de sua arte. Satoru começou a ensaiar seus
primeiros passos em frente à TV enquanto sua avó assistia a vídeos de dança
ryukyuana, ao 4 anos de idade. Aprendeu a dançar copiando os vídeos e começou a
se apresentar nas festas de casamento e aniversário da comunidade. Ainda criança,
foi a Okinawa dançar com outro menino e fez sucesso no canal nacional do Japão,
NHK, pois além de ser um brasileiro talentoso em sua arte, só falava a língua de
Okinawa. Porém, ao escolher sua escola, a mestre lhe disse: “Aprenda japonês.
Enquanto criança é bonitinho só falar uchinaaguchi. Mas aqui ninguém mais fala e
não vou lhe tratar de modo diferente. Se quer entrar nesta escola, só volte falando
japonês”. Assim, no Brasil, começou a colorir revistas infantis japonesas. Voltou e foi
aceito pela diretora da escola TamagusukuryuSenjukai. Hoje, é o primeiro brasileiro
a vencer todos os concursos de ryukyubuyou, em Okinawa.
Conheci Satoru em janeiro de 2009, quando resolvi buscar atividades fora da
academia para diversificar minha vida. Estavam no meio da montagem do
espetáculo Kizuna. As alunas mais velhas me perguntavam meu sobrenome, onde
eu morava e tentavam associar as redes de parentesco nas quais estávamos
envolvidas. Satoru, no intervalo, conversou comigo: “Você já fez nihonbuyou (dança
clássica japonesa). Mas é diferente. Para entrar, é preciso gostar muito, pois é uma
atividade muito estressante, exige dedicação, empenho e tempo”. Entrei. Nas
primeiras aulas, ele ensina o andar, inspirado no teatro No. Acompanho as
coreografias do espetáculo, sua organização e os ensaios de madrugada e fins de
semana. Nos intervalos, ele explica o significado das danças, até onde suas origens
podem ser remontadas, o que foi modificado com o tempo. Na escola de Saito,
entramos num universo paralelo. Só é permitido ensaiar com o yukata devidamente
amarrado, cabelos presos e sem o uso de acessórios como brincos, relógios, etc. Ao
entrar, reverenciamos o dojo, espaço que contém o ensaio, o kamidana, deuses
protetores, e as diretoras da escola e seu fundador. O ensaio inicia-se ao nos
sentarmos à moda japonesa de frente para o professor. Um leque é posicionado do
lado direito de nosso corpo e o outro, colocado à nossa frente, na horizontal.
Aprendemos a nos reverenciar com o leque estabelecendo a hierarquia e os limites
697
entre mestre e aluno. A partir de então, nossas relações sociais mudam: toda a
dinâmica passa a ser a do ensinamento e aprendizado. É exigida uma postura
corporal e de atitude nesse espaço e nesse tempo da ryukyubuyou. Ali, aprendemos
através da dança, dos quimonos e acessórios, a história de Ryukyu e de Okinawa.
Ouvimos histórias sobre o povo mais simples, pescador. E histórias sobre o reino, a
corte. Tudo o que envolve o dojoe a casa da família Saito, onde aquele está
instalado, remete aos costumes okinawanos e japoneses. A comida levada aos
camarins é protegida por uma folha seca e estreita na qual se dá um nó. Ouvimos
conversas nas línguas da ilha, sua mãe e avó preparam jantares e almoços com
comidas típicas. Somos reconhecidas como parentes. Aprendemos que somos “da
casa” quando sua avó nos manda “servir chá para as visitas” ou até a prepara-lo.
Elas cuidam para que estejamos bem alimentadas e nos tratam com carinho para
estarmos sempre bem no palco.
As técnicas corporais, a melodia das músicas e dos jeitos de falar, os
elementos e acessórios da ryukyubuyou começam a dar materialidade às histórias
que ouvimos em casa de nossas próprias avós. Além do mais, materializam através
da sociabilidade construída nesse espaço ao que os okinawanos costumam chamar
de “espírito okinawano”. Trata-se da composição de uma pessoa vinculada tanto às
suas ações em relação a ideia de “Okinawa” quanto aos sentimentos que
aprendemos a dedicar aos nossos parentes. E parentes aqui passam a ser todos
aqueles unidos pelo sentimento comum de grupo, de coletividade e subjetividade
okinawana. A aprendizagem da ryukyubuyou é para muitos jovens o aprendizado de
uma identidade étnica e também a busca por um passado. Para mim, além de me
tornar okinawana para meus amigos e parentes, tornei-me também “nativa relativa”,
para usar a expressão de Eduardo Viveiros de Castros (2002), ao decidir tomar
como objeto de pesquisa meu próprio grupo.Segundo Favret-Saada:
Ora, entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando tais lugares,
acontecem coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo assistir, fala-se de
coisas que os etnógrafos não falam, ou então as pessoas se calam, mas
trata-se também de comunicação. Experimentando a intensidade ligada a
tal lugar, descobre-se, aliás, que cada um apresenta uma espécie particular
de objetividade: ali só pode acontecer uma certa ordem de eventos, não se
pode ser afetado senão de um certo modo. Como se vê, quando um
etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de
vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu
narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de
ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de
698
conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma
coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma
aventura, então uma etnografia é possível. (2005:160).
Ao aceitar ser afetada pelo meu campo e ocupar o espaço que me foi aberto,
pude então também conhecer a possibilidade da etnografia.
Visões do passado
As coisas okinawanas que não existem mais são visualizadas pela
comunidade especialmente através da arte. A ryukyubuyou oferece uma
visualização do passado de Ryukyu e de Okinawa especialmente fundamental para
a construção da memória comum. Através dela os professores e dançarinos
compõem representações do que teria sido a corte e os costumes dos tempos
antigos. Descrevi, no início desse ensaio, a composição estética das sacerdotisas de
Ryukyu na performance da coreografia Kamigami. Toda a composição da
performance foi pensada para envolver o espectador no mundo da arte okinawana,
através da emergência de uma atmosfera de espiritualidade ryukyuana: as imagens
no telão, a narração sobre NiraiKanai, a entrada dos tambores (utilizados
principalmente no Eisa, performance de dança e música que celebra a volta dos
mortos à terra). Num outro espetáculo, em 2009, chamado Kizuna: a dança unindo
corações, citado acima, o primeiro número contava a construção do Castelo de Shuri,
onde habitava o rei de Ryukyu. Dentre os quimonos utilizados para essa dança
havia um feito de fibra de bananeira, produzido antes da Segunda Guerra Mundial.
Este tipo de quimono era usado cotidianamente pelos habitantes da ilha. É claro que
nem tudo na ryukyubuyou busca representar o passado em sua “realidade”, pois a
realidade de seu mundo é outra. Fica como tropo misturado a visualidade dos
tecidos, as narrativas sobre identidade: “um povo alegre e caloroso como as cores
do bingata” [Figure 08]. Nas aulas de Satoru, mesmo se não interrogado, ele
diferencia a estética de sua arte da estética utilizada na corte, os modos da arte e os
modos da população.
699
Figure 4. Bingataamarelo, quimono típico de Ryukyu. Apresentação da dança JuriUma,
representação de um número apresentado por prostitutas okinawanas uma vez por ano quando
podiam rever seus pais. Marília, São Paulo, 2012. Marília JapanFest. TokieYonamine,
MayumiAguena, Sueli Asato, MiwaHiga e Satoru Saito. Foto: Leonardo Siqueira Antonio, Marília,
2012. Acervo pessoal de Laís Miwa Higa.
Líderes e pesquisadores da comunidade incessantemente buscam fotos,
imagens e artefatos que, por vezes, nos são dadas dentro de caixas sem referência
alguma de data e local. E que vão sendo encaixadas em narrativas a partir do que a
memória comum nos conta. Foi o que aconteceu, por exemplo, na curadoria da
exposição de abertura do Memorial do Imigrante Okinawano (MIO), Tinsagu nu
Hana: história da imigração okinawana ao Brasil (2011, GrupoUrizun).
As imagens do passado okinawano são tecidas com as narrativas,
intercaladas por artefatos antigos e não datados, como um capacete militar utilizado
como panela de arroz durante a guerra, como imagens de praias paradisíacas e as
cores e padronagens dos quimonos okinawanos. No fim, estudantes e descendentes
de okinawanos viajam a Okinawa e ao voltarem nos dizem: “ao pisar na terra dos
meus ancestrais a sensação era de voltar a um lugar para o qual eu nunca havia
ido”. Nessa fala, que ouvi de diversos colegas e interlocutores sobre sua primeira
viagem ao arquipélago, refere-se a um lugar material, a uma terra. Mas a sensação
que descrevem é a sensação desse lugar da memória, desses espaços construídos
por coisas memoráveis e narradas incessantemente, criadas a partir de diversos
tropos e que compõem o aprendizado da pessoa okinawana e de sua apreensão do
mundo. Quando em Okinawa, ao invés de ouvir os CDs que trouxera comigo do
Brasil de MPB, samba e forró, o que mais me fazia lembrar de casa eram as
músicas folclóricas da ilha.
700
Shinji me disse uma vez: em frente ao butsudan (altar domiciliar no qual
realizamos os ritos okinawanos) quando um netinho e uma avó se colocam a rezar e
pedir proteção aos ancestrais, a avó passa sua mão na cabeça da criança (e ele
passa então sua mão sobre minha cabeça) dizendo-lhe todas as coisas que
devemos lembrar, aprender e criar (para garantir nossa sobrevivência).
O cotidiano dos jovens que vivem com seus avós também são fonte de tropos
para memória. Gestos, posturas, expressões nas línguas de Okinawa tornam-se
motivos de debates calorosos entre eles. São coisas comuns, ordinárias e coletivas,
das quais se aprende a partilhar, a contar e a situar na memória. Os domingos são
cheios de parentes e músicas okinawanas. A estante da sala, repleta de vídeos de
teatro popular okinawano e espetáculos de dança e música. São coisas da arte, do
cultivo e também da materialidade da criação de uma identidade étnica e da
invenção de modos de vida.
Notas
1
Essa publicação é mensal e de distribuição gratuita. Seu objetivo é publicar matérias de interesse da
comunidade nipo-brasileira. O proprietário da revista é descendente de okinawano e talvez isso colabore com o
fato de a publicação manter um espaço fixo para temas de Okinawa, o que não costuma acontecer em outras
publicaçõesque se dedicam aos asiático em geral no Brasil
2
Acompanhei cotidianamente Shinji Yonamine entre fevereiro e julho de 2012, período em que trabalhei
para a Associação OkinawaKenjin do Brasil na elaboração do perfil do Memorial do Imigrante Okinawano (MIO),
durante a gestão de Yonamine como presidente da instituição. Na época, por conta da diabetes, ele começava a
perder a visão e eu o ajudava com os textos que publicava para a Revista OK, na elaboração de suas palestras e
de um livro que, infelizmente, não foi ainda concluído.
3
Somente pela conversa com tais pessoas é possível redescobrir uma história que não está escrita nos
livros sobre imigração japonesa no Brasil. Foi assim que minha colega socióloga, Ana Luiza Nakamoto,
descobriu o Perukudari, ao questionar por quê sua avó sempre falava de Pacha Mama: seu avô migrara para o
Peru e fugira da perseguição aos chineses, na virada do século XIX para o XX, atravessando os Andes e
adentrando o Brasil pelo Amazonas. Foi assim também que eu e muitos de meus amigos descobriram que seus
avós e pais “escolheram” um nome para si depois da Segunda Guerra Mundial pois seus documentos haviam se
perdido. E foi assim, que descobri que meu avô nascera no Peru, voltara para Okinawa e casara anos depois
com minha avó, nascida em Saipan, Ilhas Marianas, quando o arquipélago era colônia japonesa. Essas
memórias apontam para uma clivagem entre a narrativa oficial, ou pública, da comunidade okinawana que busca
se transformar em história oficial e a vivacidade com que a história foi e é vivida pelas pessoas comuns da
comunidade.
Referências bibliográficas
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FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”, Cadernos de Campo, nº13, 2005.
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Press, 1998.
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KERR, George. Okinawa: The HistoryofanIsland People. Tóquio: TuttlePublishing, 2000
[1958].
701
LEVI-STRAUSS, A Outra Face da Lua: escritos sobre o Japão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
NELSON, Christopher. Dancing withtheDead: Memory, Performance, andEveryday Life in
PostwarOkinawa. Durham: Duke University Press, 2008.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O nativo relativo”. Mana8 (1), Rio de Janeiro, 2002.
Laís Miwa Higa
Bacharel em Ciências Sociais (2011) pela Universidade Federal de São Paulo. Mestranda
em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo (PPGAS USP), sob orientação da Profª Drª Lilia Katri Moritz
Schwarcz, “Umi nu kanata – Do outro lado do mar: memória, história e etnicidade na
comunidade okinawana brasileira”.
702
RUPTURAS E CONTINUIDADES: AS PERCEPÇÕES DA PRODUÇÃO DE
ARTISTAS JAPONESES E NIPO-BRASILEIROS A PARTIR DE QUATRO
EXPOSIÇÕES
Carolina Carmini Mariano Lúcio - UNESP
RESUMO: Exposições de artes são importantes instrumentos de percepção de
mentalidades de um dado período frente à determinada produção artística. Vindos do Japão
ou nascidos em colônias de imigrantes no país, as obras desses artistas apresentaram-se
como um desafio a geração de críticos de arte, historiadores da arte e curadores - e para o
público visitante - que encontraram nessas obras um paradigma em relação à arte ocidental
e um diálogo intenso com a arte brasileira. A partir do estudo de quatros exposições
organizadas por curadores ocidentais e realizadas na cidade de São Paulo: “Artistas Nipobrasileiros” (1966), “Artistas Japoneses na Coleção do MAC” (1985), “Artistas Japoneses e
Nipo-brasileiros Contemporâneos” (1995) e “Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil,
Kaminagai e o Jovem Mori” (2008), pretendemos compreender a inserção dos artistas
japoneses e nipo-brasileiros no sistema das artes brasileira e a importância para
historiografia da arte no país.
Palavras-chave: Artistas Japoneses; Artistas Nipo-brasileiros; Curadoria; Exposições.
ABSTRACT: Art exhibitions are important instruments of perception of a given period
mentality, compared to the artistic production. Coming from Japan or born within japanese
colonies in Brazil, the works of those artists stand as a challenge to art critics, art historians,
curators - and the visiting public -, who find in the works a paradigm in relation to Western art
and an intensive dialogue with the Brazilian art. From the study of four exhibitions organized
by Western curators and held in São Paulo “Artistas Nipo-brasileiros” (1966), “Artistas
Japoneses na Coleção do MAC” (1985), “Artistas Japoneses e Nipo-brasileiros
Contemporâneos” (1995) and “Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o
Jovem Mori” (2008), we intend to understand the integration of Japanese and the JapaneseBrazilians in the Brazilian arts and its importance to the historiography of art in the country.
Keywords: Japanese Artists, Japanese-Brazilian Artists, Curators, Exhibitions.
Em 1908, a primeira leva migratória de japoneses chegava ao Brasil. A
aproximação advinha do “Tratado da Amizade, Comércio e Navegação entre o
Japão e o Brasil”, firmado ainda em 1895, buscando estabelecer relações comerciais
e diplomáticas entre ambas as nações. No entanto, mais que relações econômicas,
a vinda dos japoneses ao país constituiu uma forte ligação artística entre os países.
Sua produção poética hoje representa um capítulo fundamental na história da arte
brasileira, com obras pertencentes aos acervos de grandes museus e coleções.
Mas essa inserção no universo das artes brasileira percorreu um longo
703
processo de busca de entendimento e aceitação que, na atualidade, aparenta
simplicidade, mas que foram necessárias décadas para se firmar. De um lado, temos
um grupo de imigrantes que se uniu, não apenas para manter vivas as raízes de sua
cultura natal, mas para entender o novo contexto ao seu redor e recriar suas
experiências. Lembramos que nenhuma outra comunidade de imigrantes no Brasil
teve uma participação e suscitou tanto interesse no meio cultural quanto a de origem
japonesa, principalmente na cidade de São Paulo, local com a maior concentração
de japoneses fora do Japão. Do outro, temos uma série de críticos de arte,
historiadores da arte, diretores de museus, colecionadores e curadores pautados
pelas bases do Modernismo brasileiro, mas buscando compreender sob as mais
diversas chaves da história da arte essa produção artística paradigmática.
Nesse sentido, as exposições de arte, nas quais participaram diversos artistas
japoneses e nipo-brasileiros, apresentam-se como principal campo de embate entre
modos de ver e compreender a arte em princípios gerais e a própria arte brasileira.
Ao elegermos os museus como espaços de legitimação de um fazer artístico,
entendemos suas exposições como modos de percepção sobre determinada
produção. Modos de percepção muitas vezes distintos, e que sofrem alterações no
decorrer dos anos, motivadas por questões culturais, históricas e econômicas.
Através das exposições Artistas Nipo-brasileiros, de 1966, Artistas Japoneses
na
Coleção
do
MAC,
de
1985,
Artistas
Japoneses
e
Nipo-brasileiros
Contemporâneos, de 1995 e Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e
o Jovem Mori, de 2008, pretendemos analisar os mecanismos de compreensão de
determinados personagens da arte brasileira sobre os trabalhos dos artistas
participantes dessas mostras e a sua importância na produção da historiografia das
artes no país. Um cenário ainda carente de estudos e onde os catálogos das
exposições são as melhores e mais completas fontes de análises, desde décadas
anteriores, onde o foco dos estudos sobre o impacto da vinda dos japoneses ao
Brasil, sempre se recai nas questões históricas e sociológicas: “Nas estatísticas e
comentários dos sociólogos que estudam a comunidade japonesa no Brasil a
ausência de interesse pela acuidade artística é uma lacuna facilmente observável.”
(ZANINI, 1966, p.01). Um campo de estudos ainda a ser pesquisado e
compreendido, sendo que as principais bibliografias sobre esses artistas advêm das
704
exposições realizadas desde a década de 1960.
Algumas exposições de artistas japoneses e nipo-brasileiros no Brasil
Nesse contexto as exposições realizadas no Brasil tendo como problemática
a produção de artistas japoneses e nipo-brasileiros, se estabelecem como
importante documentação crítica e material historiográfico para a compreensão e
estudos sobre trabalhos que ainda carecem de maiores análises e até mesmo
reconhecimento dentro da história da arte brasileira.
Devemos salientar que os artistas japoneses sofreram uma forte perseguição
e restrição no Brasil, devido ao direcionamento tomado pelo Japão durante a
Segunda Guerra Mundial. Dessa forma são obrigados a interromper suas atividades,
incluindo as reuniões artísticas e outras trocas profissionais. Até mesmo a
participação em exposições e salões é limitada, quando não anuladas. Um dos
únicos eventos que conseguem organizar no período foi I Salão de Artistas
Japoneses, mostra coletiva realizada em 1938, no Nippon Clube (Clube Japonês),
localizado na capital paulista e idealizado pelo Grupo Seibi1.
Posteriormente a este período, diversas instituições em momentos distintos
apresentaram em seus espaços obras de artistas japoneses e nipo-brasileiros.
Essas mostras demonstram o importante papel dos museus e outras instituições
culturais na difusão e reconhecimentos da produção dos artistas expostos. A
Pinacoteca do Estado de São Paulo, desde a década de 1950, já incluía em suas
exposições coletivas e itinerantes obras de artistas japoneses pertencentes ao seu
acervo.
O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, por sua vez,
durante a gestão de Walter Zanini estabeleceu uma série de contatos com artistas e
curadores japoneses e, como resultado, foram realizadas as mostras ISPAA Internacional Society of Plastic and Audio-Visual Art2 e Cosmos3. Sem contar as
exposições Atelier Nord4 e Prospectiva 745, que traziam obras de artistas japoneses
integrados a contextos expositivos. Durante a gestão de Lina Bo Bardi, no Museu de
Arte Moderna da Bahia – sediado no Solar do Unhão em Salvador – foram exibidas
705
mostras de Flávio-Shiró, Manabu Mabe e Iwakishi Tsukaka, além da exposição
realizada em 1963, Novos pintores japoneses, extrapolando o eixo Rio-São Paulo,
como espaços habituais de exibição.
Outros museus dedicaram-se também a mostras coletivas cuja problemática
era exclusivamente a produção desses artistas, como a exposição Seibi-kai no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1964, a mostra Grupo Seibi – Grupo
Santa Helena: década de 35-45 no Museu de Arte Brasileira da Fundação Álvares
Penteado em 1977, Vida e arte dos japoneses no Brasil no Museu de Arte de São
Paulo em 1988, São Paulo: visão dos nipo-brasileiros no Museu Lasar Segall em
1993, Nipo-brasileiros no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2008,
entre outras propostas curatoriais. Inclusive diversas mostras internacionais –
algumas promovidas pela embaixada do Brasil -, como a Nippo Brazilian Painting
Today, no ano de 1965, e que circulou por Washington, Oakland e Tóquio.
Um exemplo emblemático foi a exposição Nipo-brasileiros: mestres e alunos
em 50 anos, realizada em 1983 por Maria Cecília França Lourenço 6 , em
comemoração aos 75 anos da imigração japonesa. A mostra era composta por
noventa trabalhos de 44 artistas 7 e expunha a produção dos primeiros artistas
japoneses chegados ao Brasil até obras de artistas mais contemporâneos. Em sua
abertura houve a performance de Paulo Yutaka, grupo Ponkã, e do grupo de dança
Hassagassakai, além da apresentação do ciclo de filme japoneses. O catálogo desta
exposição representa uma rica documentação composta por textos críticos,
biografias e documentação fotográfica.
Ocorreram ainda mostras individuais, como as da artista Lydia Okumura em
1981, sob a curadoria de Aracy Amaral e em 1995 sob a curadoria de Johan
Medelson, ambas realizadas na Pinacoteca do Estado de São Paulo, ou a exposição
analítica Destaque do mês8, da qual participaram Tomie Ohtake com a obra “Pintura”
(1969), em 1978, Lydia Okumura com “For the Double Image” (1974), em 1983, no
mesmo ano em Yoshiya Takaoka apresenta “Auto-retrato” (1950), e Flávio-Shiró
com “Auto-retrato” (1947) em 1985.
No entanto, devemos frisar que apesar da visibilidade existente com as
exposições citadas acima, a assimilação das obras japoneses e nipo-brasileiros
706
sofreu alguns revezes no pensamento da crítica e dos curadores de arte,
principalmente em relação à produção dos artistas pioneiros. Um exemplo a citar, é
o caso lembrado pelo professor Paulo Roberto Arruda de Menezes sobre a Bienal
Brasil Século XX:
Seu esquecimento institucional fez-se definitivamente, em maio de 1994,
quando se inaugurou uma exposição com o pomposo nome de Bienal Brasil
Século XX. O curador da maior mostra retrospectiva já montada sobre a arte
brasileira simplesmente ignorou todos, os pintores da primeira geração do
grupo Seibi, jogando uma pá de cal sobre aqueles que araram o terreno
sobre o qual agora florescem estes nomes tão conhecidos. (MENEZES,
1995, p. 104)
Podemos perceber que a produção dos artistas japoneses e nipo-brasileiros
japoneses estava inserida nos sistemas das artes brasileiras, participando de
mostras coletivas, salões e tendo trabalhos adquiridos em acervos de museus. Era
latente – e ainda permanece – o interesse dos críticos, curadores e historiadores da
arte em compreender a produção desses artistas no Brasil.
Exposições como produção historiográfica
Durante o século XX, o campo de maior visibilidade para a arte e seu
pensamento foi realizado pelas exposições. É neste espaço de contato com o
público que a arte tem seu local de reconhecimento e reflexão. Elas passam a
ocupar um papel central, pois também possuem o poder de re-significar, construir e
desconstruir conceitos e rever a história da arte:
[...] o principal local de troca na economia política da Arte, onde a
significação é construída, mantida e ocasionalmente desconstruída. Em
parte espetáculo, em parte evento histórico-social, em parte dispositivo
estruturante, as exposições - sobretudo, as exposições de Arte
contemporânea – determinam e administram os significados culturais da
Arte. (OBRIST, 2010, p.16)
Recentemente a história das exposições/curadorias ganhou espaço no mundo
acadêmico, atraindo a atenção de estudiosos. Em mais de um século de exposições,
apenas nas últimas décadas os estudos sobre as exposições/curadorias têm sido
realizados na Europa e nos Estados Unidos. Se internacionalmente ainda se delineia
os caminhos para análise da produção das exposições, no Brasil recentemente
começamos entender as mostras de artes e sua função nos sistemas da arte.
707
Quando refletimos sobre as exposições de artes e seus curadores, é possível
compreender como essas produções geram reflexões sobre a história da arte e seus
próprios personagens, e até mesmo rupturas de paradigmas estabelecidos no
decorrer das décadas. No entanto, tanto as problemáticas da ação curatorial quanto
a própria pesquisa curatorial, se perdem na trama da história, nos arquivos das
instituições, na memória de quem vivenciou:
Ver y pensar las exposiciones como entidades significantes en sí mismas es
una tendencia reciente: hasta poco nos ocupábamos sólo del arte y los
artistas. El atraso en reconocer la importancia de las exposiciones resalta si
pensarnos que la obra de arte nunca se comunica en una suerte de estado
puro, e num limbo, sino formando parte de un discurso visual tramando por
su relación con otras obras, con una locación, un espacio, una iluminación,
una presentación y un recorrido dados, entre otros factores físicos.
(MOSQUERA, 2008, p. 09)
O crítico e curador Gerardo Mosquera nos lembra de que o advento das
exposições não significou efetivamente um entendimento sobre elas. As instituições
pautam-se na documentação da obra e entendem muitas vezes as mostras como
espetáculos para o público. Desta forma, não reconhecemos o resultado das
exposições como o espaço de concretização de uma pesquisa, o local onde a obra
de arte ganha sentido, dialoga com outras obras e propõe visões para o
entendimento da arte.
Nas últimas décadas vemos o crescimento da atenção pelos exhibitions
studies e o aumento de espaços e publicações dedicadas não apenas a análise da
profissão curador, mas em resgatar e compreender o papel de importantes
exposições realizadas no mundo:
A primeira dimensão da história das exposições de arte moderna se
desdobra diretamente desses primórdios, e está ligada ao modo como as
exposições exploraram, negaram e confundiram a apreciação e a
experiência da arte, como algo que pertence propriamente à arena pública.
[...] A tensão entre público e privado, entre o coletivo e o individual, evoluiu
de maneira irregular durante o decorrer do século XX, irregular devido ao
uso desigual dos desenvolvimentos de vários espaços – cívico, comercial e
social – que vieram definir as exposições de arte. Não é difícil observar que
no fim do século, com a saturação do mercado de arte e de uma cultura de
consumo, o conceito de “exposição” perdeu qualquer especificidade que
poderia ter possuído como forma cívica na arena pública. [...] Como as
exposições transgrediram os limites burgueses entre público e privado,
social e doméstico, tornando-se similarmente difusas e ao mesmo tempo
diferenciadas, é preciso traçar as consequências que isso traz para a
experiência da arte comercialmente, individualmente ou criticamente
engajada. (WARD, 1996, p. 325)
708
Como relembramos anteriormente, exposições relevantes foram ponto de
ruptura para compreensão da arte contemporânea e somente agora nos
debruçamos sobre elas de maneira crítica: “El retraso en considerar el papel activo
de las exposiciones y su impacto emana también del hecho de que aquellas son un
fenómeno reciente.” (MOSQUERA, 2008, p. 09)
Desde o ano de 2008 é desenvolvido o projeto Exhibition Histories, numa
parceria da Afterall9 juntamente com a Academia de Belas Artes de Viena e Van
Abbemuseum, Eindhoven e com o apoio do Conselho de Artes da Inglaterra e
MUDAM, Luxemburgo. Cada publicação recupera através de entrevistas, textos e
fotografias, uma exposição ou um grupo de exposições de arte contemporânea dos
últimos 50 anos que mudou o modo de ver e fazer arte10. No Brasil, recentemente o
tema entrou em pauta com teses apresentadas aos programas de mestrado e
doutorado das universidades.
As exposições no Brasil sofrem com o seu caráter efêmero. A quase ausência
de olhar crítico para a produção curatorial reflete o nosso próprio entendimento
sobre a importância das exposições:
Una razón colateral para la falta de reflexión acerca de las exposiciones es
su condición efímera. La temporalidad es un componente de mayor
importancia en el fenómeno exposición. Es cierto que quedan los catálogos,
pero ellos solo proveen un testimonio limitado e en ocasiones son muy
modestos. La facilidad actual para la documentación fotográfica y en vídeo
ha mejorado un poco las cosas. No obstante, los estudiosos que han
emprendido investigaciones se quejan de la escasez u precariedad de los
vestigios dejados por muchas exposiciones, la carencia de archivos, y la
consecuente dificultad para realizar su trabajo. (MOSQUERA, 2008, p. 10).
As mostras e sua história são pouco valorizadas por nossas instituições. Após
a sua realização, apenas alguns vestígios permanecem: fotografias, releases,
reportagens de jornais, alguns relatórios e catálogos. Sobre os catálogos, estes se
mostraram a melhor documentação de uma exposição, a forma se contatar algo que
não existe mais e muitas vezes a única. Eles acabam sendo a memória da
exposição, sendo o resultado material de um ato tão efêmero.
Frequentemente eles apresentam uma visão limitada das exposições, quando
não são muito modestos. Na atualidade, exposições de qualidade são embasadas
em extensas pesquisas, que estão ao alcance do público através dos catálogos em
709
um país em que a publicação de livros enfrenta tantas dificuldades. Desta forma,
essas publicações assumem o papel de bibliografias fundamentais. E é dentro
desses catálogos que podemos recuperar o discurso curatorial muitas vezes perdido.
Pois, é nas exposições que os profissionais mais qualificados se despendem
a fazer nos museus, com contato direto com as obras e documentação de artistas,
que é construída a História da Arte Brasileira de maneira crítica. E, em um país onde
os maiores subsídios para pesquisa são para as áreas de exatas e biológicas, não
dar o valor necessário as pesquisas realizadas nos museus é uma atitude
contraditória. Não estamos construindo nossa história, nem mesmo avançando em
discussões, e auxiliamos a perda da memória ao permitimos que o único registro de
uma exposição seja seu nome.
Quatro exposições significantes
Ao selecionarmos esses quatros trabalhos curatoriais em meio a tantas outras
exposições, buscamos estabelecer uma linha na compreensão da arte japonesa e
nipo-brasileira pelas instituições e curadores brasileiros. Nas mostras selecionadas
Artistas Nipo-brasileiros, Artistas Japoneses na Coleção do MAC, Artistas Japoneses
e Nipo-brasileiros Contemporâneos e Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil,
Kaminagai e o Jovem Mori, podemos perceber que em todos os casos a base de
entendimento e discurso curatorial, a noção que a produção de cada um dos artistas
deve ser analisada de maneira única, assim como sua introdução e atuação nas
artes brasileiras:
A produção dos artistas visuais japoneses em nosso meio não deve ser
observada como uma categoria à parte, como um fenômeno ilhado em
nosso desenvolvimento. Vários dos pintores abordados neste primeiro
estudo coordenam ativismos e uma visão local. Valores que agem
completamente. Desde os fatores retinais da atmosfera em que vivem até
às reações sociais e psicológicas de toda a sorte que trabalha
inconscientemente na sensibilidade, há interferência decisivas na sua
categoria criativa e estilística que por sua vez pode retribuir ao meio. Mas,
como ocorre com os artistas nascidos no Brasil, é pelo grau de consciência
hiper-nacional que sua comunicação terá maior validade. (ZANINI, 1966,
p.4)
As exposições são exemplos de pesquisas realizadas por suas instituições e
curadores, e refletem esse direcionamento de uma análise que contextualiza cada
710
obra e artista em seu momento de produção e sua formação, não se esquecendo de
inseri-los no contexto da própria colônia:
Não podemos estudar os artistas visuais japoneses residentes no Brasil
segundo uma fórmula homogênea. Há os que vieram como filhos de
lavradores e foram lavradores eles mesmos até descobrir os apelos íntimos
da vocação e há os que foram atraídos pelo Brasil nestes últimos anos,
aportando com uma profissão artística definida. (ZANINI, 1966, p.02)
São trajetórias distintas, muitas vidas duras, formação diversificada – muitos
chegaram ao Brasil com formação consolidada no Japão, outros completaram seus
estudos no país - mas que objetivavam no fim o mesmo reconhecimento artístico:
“[...] as motivações são complexas e envolvem problemas que vão desde a procura
de melhores condições de existência até os de afirmação num meio que promove
uma Bienal internacional de arte.” (ZANINI, 1966, p. 02).
Entre os meses de julho e setembro de 1966, o Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, sob a direção Zanini, apresentou a
mostra Artistas nipo-brasileiros11. A exposição realizada foi a primeira curadoria da
crítica e historiadora da arte Aracy Amaral.
Organizada por ocasião do I Colóquio Brasil-Japão, a mostra foi pioneira em
reunir uma série de artistas japoneses e nipo-brasileiros de períodos diferentes,
apresentado ao público sua produção através de um estudo histórico e crítico sobre
a presença deles no Brasil. Como afirma Amaral (1966, p. 5) no objetivo de
estabelecer com a exposição: “uma visão conjunta, histórica e artística, assim como
um levantamento primeiro sobre o desenvolvimento da contribuição dos artistas
japoneses que vieram se fixar em nosso país.” Para a curadora o Brasil não é
apenas o país de maior população japonesa, fora do Japão. A união dos países é
mais profunda e complexa, sendo o Brasil um exemplo de uma relação artística
única:
[...] é rara essa coexistência artística oriente-ocidente num mesmo país,
deve-se chamar a atenção para o fato de que hoje em dia não há envio
representativo para o exterior das artes do Brasil em que não figurem pelo
menos dois ou três artistas nipo-brasileiros. (AMARAL, 1966, p.5)
Mais do que lançar um estudo crítico sobre a produção nipo-brasileira, a
curadoria de Amaral buscou estabelecer um olhar desprovido do exotismo pelo
Oriente, tão recorrente no Ocidente até fins da década de 1980. Percebemos que a
711
visão estabelecida busca constituir os pontos de contatos entre os artistas japoneses
e os nascidos no país:
Formando um agregado de muitas afinidades espirituais, a participação
artística japonesa na cultura moderna brasileira adquire significado
particular pelos seus recursos semânticos. Atuando na comunidade mais
importante, apresentando-se em todos os certames, seu exemplo moral e
estético é influente. Da mesma forma podemos dizer que o meio deve
acrescentar na experiência destes artistas componentes do racialismo
complexo de São Paulo. (ZANINI, 1966, p.02)
O próprio posicionamento da curadoria, em caracterizar todos os dezenove
artistas expostos em nipo-brasileiros, é uma atitude visando entende-los como uma
produção possuidora de particularidades e diferenças naturais de vivências
especificas:
A nosso ver, os casos extremos não têm vigência: há pintores radicados
desde a infância ou à juventude no Brasil os quais pelas próprias condições
de vivência, são marcadamente nacionais, não obstante seja inevitável que
associem na linguagem substratos da sensibilidade oriental; outros mantém
liames espirituais profundos com a pátria de origem, mas na exploração dos
conteúdos básicos não podem deixar de sofrer induções de certas
expressões de vida ou da natureza que integram a nova existência. (ZANINI,
1966, p. 02).
Ainda mais importante é constatar que a curadoria, não buscou separar a
produção entre os artistas pioneiros e contemporâneos. Assim, Handa, Tanaka,
Takaoka e Tamaki, pioneiros e estimuladores de uma produção artística na colônia,
e que se formaram artistas no país, estão expostos ao lado de Shirai, pertencente a
um segundo momento da produção nipo-brasileiro, com uma formação e carreira
mais estabelecidas.
Para a realização da exposição, Amaral juntamente com Zanini empreendeu
uma grande pesquisa de resgate de parte da produção destes artistas, buscando
recuperar suas obras, suas trajetórias e suas biografias. Se por um lado, se faziam
presentes artistas contemporâneas de trajetórias recentes como Suzuki ou Manabu
Mabe, por outro, era necessário mergulhar em caminhos desconhecidos, como as
vidas de Handa ou Takaoka – artistas que ainda hoje, são carentes de estudos mais
aprofundados. O catálogo elaborado representa uma documentação valiosa para
perceber a inserção desses artistas em seus momentos iniciais de produção e
circulação nos espaços expositivos.
712
Quase dezenove anos depois, em 1985, o Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, neste momento sob a direção de Aracy Amaral,
organiza a exposição Artistas japoneses na coleção do MAC12. Nessa curadoria, a
equipe do museu se apresenta em dois núcleos expositivos com estudos críticos
sobre as obras de artistas japoneses e nipo-brasileiros e a sua inserção no acervo
da instituição.
Apresentada por Amaral, a primeira parte da mostra: “Artistas japoneses da
coleção do MAC/USP” apresenta os trabalhos de Adachi, Arai, Fukuzawa,
Hamaguchi, Hirano, Horike, Inoue, Kageyana, Kawabata, Kodama, Kubota,
Matsuzawa, Mio, Mori, Mukai, Munakata, Nambata, Niotou, Ono, Sakata, Shima,
Shimotami,
Sugano,
Tabe,
Takeda,
Tanaka,
Teshigahara,
Tsutaka,
Wani,
Yamaguchi, Yasuda, Yoshida e Yoshitome.
Esse setor da mostra, parte do ano de 1963, quando todo o acervo
pertencente ao Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) foi doado à
Universidade de São Paulo por Francisco Matarazzo Sobrinho, para a criação do
Museu
de
Arte
Contemporânea.
Devido
ao
intenso
diálogo
internacional
estabelecido através da Bienal de São Paulo, diversas obras foram incorporadas ao
acervo do Museu de Arte Moderna, através das premiações organizadas pela Bienal
e que seguiram para o futuro acervo do MAC:
Assim, entre os onze artistas japoneses que chegam ao MAC junto com a
coleção do MAM-SP em 1963, sete são oriundos de doações ou
premiações das diversas Bienais (como os gravadores Munakata,
Hamaguchi e Yamaguchi, este último melhor gravador estrangeiro da VI
Bienal de São Paulo, além de Kawabata, Mukai, Teshigahara e Tsutaka), e
os restantes quatro procedem de doações por parte de diversas
possibilidades da colônia japonesa, como as pinturas que possuímos de
Tatsuo Arai, além das doações, pelos próprios artistas, nos casos de
Fukusawa, Kaminagai e Yazima. (AMARAL, 1985, p. 3).
Somado as premiações, segue-se uma série de doações de trabalhos em
diversos momentos da instituição, motivados por uma rede de relações
estabelecidas durante a diretoria e os artistas internacionais, e a própria relevância
do museu no cenário internacional. Assim, durante a década de 1960, obras doadas
pela Aliança Brasil-Japão e artistas passam a integrar a coleção do MAC. Nos anos
seguintes, uma série de exposições internacionais e nacionais com artistas
japoneses atualizou o acervo com as mais recentes tendências da arte
713
contemporânea Oriental – incluindo trabalhos de arte conceitual.
Interessante notar que Amaral, mantem sua tese sobre produção da arte nipobrasileira - a mesma que apresentou na exposição Artistas nipo-brasileiros -, onde
os artistas que produziam no país eram entendidos diretamente como nipobrasileiros, por se estabelecerem um diálogo intenso com a arte brasileira:
Evidentemente não incluímos [...] os artistas "nissei" ou "Sansei", porquanto
estes já são considerados por nós como artistas brasileiros, apesar das
origens ancestrais que em muitos casos os remete ao Extremo Oriente, em
fusão com o comportamento ocidental terceiro-mundista, bem visível ainda
em sua exteriorização plástica. (AMARAL, 1985, p. 5)
A exposição realizada pontua os trabalhos dos artistas japoneses que
expuseram no Brasil dentro do contexto da história da arte mundial e analisando as
tendências da arte contemporânea japonesa naquele período. A mostra delineou o
caminho trilhado pelo país, que só entrou na arte contemporânea após a Segunda
Guerra Mundial. O momento é marcado em 1951 com a assinatura do Tratado de
Paz de São Francisco e o Salon de Mai, realizado no mesmo ano em Tóquio, como
sendo a mostra representativa da arte contemporânea francesa, influência decisiva
na arte japonesa.
Em seu segundo momento da mostra, a historiadora e crítica de arte Lisbeth
Rebollo Gonçalves, responsável pela Divisão Cientifica do MAC, buscou se delinear
a partir das obras do acervo a história da presença da arte japonesa do Brasil. O
setor Nipo-brasileiros no acervo do MAC, trouxe os diversos momentos pelas quais
as produções de nipo-brasileiros passaram como, por exemplo, o artista pioneiro
Honda, buscando uma ruptura com a tradição japonesa:
Desta forma, o primeiro núcleo de artistas japoneses entre nós emergidos
apontarão, também, a derrocada dos valores culturais de sua tradição.
Colocam, por outro lado, a indagação de "qual arte poderiam fazer no Brasil
e qual seu significado". Diz Tomoo Handa que o esforço de seus
companheiros e seu próprio foi no sentido de jamais imitar as formas das
belas artes japonesas, e tampouco o ensino proveniente das escolas de
belas artes brasileiras, produzindo em compasso com o tempo.
(GONÇALVES, 1995, p. 23)
Chegando a arte mais contemporânea, com a produção gráfica de Emi Mori,
ou de Kondo e Yoshitame, pertencentes ao grupo Phases e participantes de
diversas exposições de arte contemporânea no Brasil, foram apresentados os
714
artistas nipo-brasileiros Fukushima, Kaminagai, Kaneko, Kondo, Kosuno, Mori,
Ohtake, Okada, Shimizu, Flávio-Shiró, Sakakibara, Toyota, Wakabayashi, Yazima e
Yoshitome. Interessante notar que Yoshitome é inserido nos dois núcleos da
exposição, o que nos permite perceber como entendimento sobre a produção dos
artistas é mutável de acordo com as pesquisas dos historiadores. E, o próprio
Kaminagai, deixou o Brasil fixando as raízes em Paris. Além da apresentação de
uma coleção significativa sobre a produção nipo-brasileira, a mostra que possuía um
forte diálogo conceitual com a mostra de 1966, também serviu para uma atualização
dos dados documentais sobre os artistas e suas obras pertencentes ao acervo.
A discussão entre artistas japoneses e nipo-brasileiros seriam temática de
uma nova exposição do MAC no ano de 1995. Em comemoração ao centenário do
“Tratado da Amizade, Comércio e Navegação entre o Japão e o Brasil”, e sob a
direção de Lisbeth Rebollo Gonçalves, foi realizada a mostra Artistas japoneses e
nipo-brasileiros contemporâneos13 com a curadoria de Elvira Vernaschi.
Dez anos após a mostra Artistas japoneses na coleção do MAC, a exposição
trazia uma clara ruptura em relação às mostras anteriores. A produção apresentada
buscava
estabelecer
zonas
de
contatos
entre
obras
de
jovens
artistas
contemporâneos - nascidos na década de 1960 – do Brasil e do Japão.
A curadoria buscava desconstruir as barreiras geográficas que ainda podiam
existir na arte contemporânea e demonstrar as articulações estabelecidas pelas
artes no Brasil e no Japão durante os anos, que não significavam estratégias
estéticas dispares a ponto de diferenciar suas poéticas:
Nesta exposição dos japoneses, de lá e daqui, a primeira e grande
observação é que, realmente, não existe diferenciação nas produções que
possam diagnosticar qual pertence a qual país: muitos poderão talvez ser
identificados, somente, pelo nome. [...] Neste conjunto, o olhar atento
conduz o cérebro a reflexões sobre a consciente profissionalização de cada
um dos artistas participantes e a percorrer os caminhos que nos introduzem
às novas linguagens, às inovações técnicas e às renovações estéticas.
Brasileiros e japoneses se unem numa mesma forma de expressão."
(VERNASCHI, 1995, p. 9/10).
Relevante salientar que a mostra foi realizada com obras de seu acervo, em
constante crescimento. Em 1985, o acervo possui 34 artistas, já em 1995, o número
sobe para 48 artistas, com 110 obras e com as mesmas raízes no Japão. Nesse
715
momento, a chave de análise da produção é a globalização – questão inquietante e
preponderante no pensamento da década de 1990.
Os artistas desse momento nasceram em um período em que a arte passava
por transformações na sua linguagem, o que significou outro entendimento da arte,
pautada pelo esgotamento das questões do modernismo e voltadas para uma outra
compreensão do mundo: “Encontra-se obras voltadas para a apresentação da
realidade e não mais interessada em representá-la, como se constatam nas
instalações, na utilização de materiais industriais e na referência ao descartável.”
(LOURENÇO, 1995, p. 14).
A mostra de 28 artistas – treze japoneses e quinze nipo-brasileiros –
apresentou um espaço de diálogo entre arte contemporânea de nações distantes,
mas de laços centenários. Essas relações sempre pautam de alguma maneira, as
exposições realizadas no país.
No ano de comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, em
2008, Aracy Amaral voltou-se mais uma vez para a arte japonesa e nipo-brasileira e
apresentou no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo a exposição Um círculo
de ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o jovem Mori.
A mostra tornou visível a pesquisa que a curadora realiza há quase uma
década, iniciada em 2000, e buscou retirar da obscuridade a presença de três
pintores japoneses no Brasil - Tsuguhari Foujita (1886-1968), Tadashi Kaminagai
(1899-1982) e Jorge Mori (1932) - e o período da vinda deles ao país: “A exposição
objetiva expor trabalhos de três artistas bem diferenciados, em momentos
insinuantes, para o meio artístico brasileiro.” (AMARAL, 2008, p.8).
Nessa exposição Amaral reviveu uma antiga parceria ao convidar para cocuradoria Paulo Portella Filho. O arte-educador ficou responsável pela curadoria das
obras de Kaminagai, tanto pelo seu conhecimento e proximidade com o tema,
quanto pelo desejo de Amaral em desenvolver um trabalho didático sobre a obra do
artista.
No entanto, mais do que exposição comemorativa, percebemos nessa mostra
uma questão levantada por Amaral (1966, p.6) na exposição da década de 1960:
716
“[...] não podemos falar na influência dos nipo-brasileiros na arte de seus colegas
brasileiros [...]”. Se anteriormente, a curadoria não podia precisamente pontuar a
influência e as relações da arte oriental no Brasil, no período dos pioneiros, nessa
exposição Amaral dá os primeiros passos - de uma pesquisa que ainda possui
espaço para aprofundamentos – para estabelecer um círculo de ligações entre
Foujita, Kaminagai e Mori e os Modernistas brasileiros, representado na figura de
Portinari. Diferente de outras modas do período, Amaral e Portella Filho,
empenharam-se em revelar episódios importantes dessas relações estabelecidas a
mais de um século, além de obras que há muito não entravam em contato – ou
nunca entraram – com o público brasileiro.
Por fim, apresentamos quatros exposições dialogantes. Não apenas por
possuírem em comum a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, como curadora
de três das quatro exposições, ou o Museu de Arte Contemporânea como espaço
expositivo de três das quatro mostras. O motivo destas escolhas justifica-se na
percepção das mostras e a busca de seus personagens – instituições e curadores –,
em estabelecer uma pesquisa, um entendimento sobre a arte japonesa e nipobrasileira e o diálogo entre nações – Brasil/Japão. A chave básica que todas essas
exposições possuem no momento é a de compreender cada obra exposta para o
público. Uma ligação que permanecerá latente por muitas gerações.
Notas
1
Grupo Seibi ou Seibikai, foi fundado em 1935, conta incialmente com os artistas Tomoo Handa, Hajime
Higaki, Walter Shigeto Tanaka, Kiyoji Tomioka, Kichizaemon Takahashi, Yuji Tamaki, Yoshiya Takaoka e o poeta
Kikuo Furuno. Organizou diversas manifestações culturais e artísticas buscando difundir sua produção, mas é
obrigado a dispersar durante a Segunda Guerra Mundial. Volta-se a reunir em 1947, com a inserção dos artistas
Manabu Mabe, Tikashi Fukushima, Tomie Ohtake, Flávio-Shiró, entre outros.
2
Entre agosto e setembro de 1968, sob a curadoria de Kenzo Tanaka o museu trouxe a São Paulo uma
série de artistas japoneses e coreanos mais atuais no momento da realização da mostra. A maioria dos artistas
doou suas obras para o acervo do museu.
3
Realizada em 1974, em uma colaboração entre Walter Zanini e o Tomoshigue Kusuno. O artista
japonês que já residia no Brasil há muitos anos, elaborou uma rede de contatos e estabeleceu um intenso
intercâmbio internacional, com o envio de serigrafias contemporâneas através dos Correios.
4
Exposição internacional realizada em 1967, pela curadora Anne Breivik, trazia gravuras de artistas
noruegueses e tinha entre seus participantes Kenji Yoshida.
5
Exposição realizada em 1974 sob a curadoria de Walter Zanini foi uma proposta inovadora ao permitir
que os artistas selecionados chamassem mais um e assim por diante, criando uma extensa rede.
6
A professora Dra. Maria Cecília França Lourenço é uma das maiores pesquisadores sobre a obra de
artistas nipo-brasileiros de diferentes gerações. Era diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo quando
empreendeu a e exposição Nipo-brasileiros: mestres e alunos em 50 anos.
717
7
Participaram desta exposição os artistas Kiyoji Tomioka, Tadashi Kaminagai, Teisuke Kumassaka,
Tomoo Handa, Kichizaemon Takahashi, Yoshiya Takaoka, Walter Shigeto Tanaka, Massao Okinaka, Tomie
Ohtake, Yuji Tamaki, Mário Masato Aki, Tikashi Fukushima, João Rossi, Manabu Mabe, Flávio-Shiró, Kazuo
Wakabayashi, Mari Yoshimoto, Yutaka Toyota, Hissao Ohara, Jorge Mori, Masumi Tsuchimoto, João Suzuki,
Kenichi Kaneko, Tomoshige Kusuno, Yasuhei Joshita, Bin Kondo, Hissao Sakakibara, Sachiko Kochikoku, Toshie
Sanematsu, Massuo Nakakubo, Megumi Yuasa, Mário Ishikawa, Carlos Takaoka, Lydia Okumura, Toshifumi
Nakano, Takashi Fukushima, Laerte Orui, Lúcio Kume, Mílton Sogabe, Taro Kaneko, Hiro Kai, Yugo Mabe e
Madalena Hashimoto.
8
“Destaque do mês” de divulgação didática do acervo, com uma obra exposta no saguão principal,
biografia do autor e texto técnico da diretora do museu. O projeto fazia parte da iniciativa de atrair o público para
o espaço da Pinacoteca, difundindo obras consagradas do acervo da instituição. O projeto teve início na gestão
de Aracy Amaral (1975-1979) e permaneceu na gestão de Fábio Magalhães (1979-1982) e Maria Cecília França
Lourenço (1983-1987).
9
Afterall é uma organização de pesquisa e publicação em arte contemporânea e sua relação com o
contexto histórico, social e artístico. Situada em Londres, fundada em 2008 por Charles Esche e Mark Lewis.
10
A 24ª Bienal de São Paulo sob a curadoria de Paulo Herkenhoff realizada em 1998 será uma das
exposições que ganhará um volume na série.
11
Participaram desta exposição os artistas Tikahashi Fukushima, Tomoo Handa, Bin Kondo, Tomoshige
Kosuno, Manabu Mabe, Hissao Ohara, Tomie Ohtake, Hissao Sakakibara, Takeo Shimizu, Hissao Shirai, FlávioShiró, João Suzuki, Yoshiya Takaoka, Yuji Tamaki, Walter Shigheo Tanaka, Yutaka Toyota, Masumi Tsuchimoto,
Kazuo Wakabayashi e Yo Yoshitame.
12
Participaram desta exposição os artistas Shindo Adachi, Tatsuo Arai, Ichiro Fukuzawa, Yozo
Hamaguchi, Hidekazu Hirano, Tohei Horike, Bukichi Inoue, Mitsuyoshi Kageyana, Minoru Kawabata, Massao
Kodama, Masuhiro Kubota, Yutaka Matsuzawa, Kozo Mio, Shoichiro Mori, Ryokishi Mukai, Shiko Munakata,
Tatsuoki Nambata, H. Niotou, Tadashiro Ono, Harumichi Sakata, Kuniichi Shima, Chihiro Shimotami, Keiya
Sugano, Kenzo Tabe, Nagatoshi Takeda, Kenzo Tanaka, Sofu Teshigahara, Waichi Tsutaka, Soroku Wani, Gen
Yamaguchi, Haruhiko Yasuda, Kenji Yoshida, Yo Yoshitome, Tikahashi Fukushima, Tadashi Kaminagai, Kenishi
Kaneko, Bin Kondo, Tomoshige Kosuno, Emi Mori, Tomie Ohtake, Yurio Okada, Takeo Shimizu, Flávio-Shiró,
Hissao Sakakibara, Yutaka Toyota, Kazuo Wakabayashi e Sada Yazima.
13
Participaram desta exposição os artistas Takashi Fukushima, Akira Ishii, Mário Ishikawa, Kiyonori
Kado, Hiro Kai, James Kudo, Takao Kusuno, Manabu Hangai, Midori Hatanaka, Yutaka Hatia, Nobuo Mitsunashi,
Koji Nakase, Yasuo Ogawa, Oscar Satio Oiwa, Ayao Okamoto, Roberto Okinaka, Lydia Okumura, Ademar
Shimabukuro, Kiyonori Shimada, Masaru Shimizu, Milton Sogabe, Nobuhiko Suzuki, Yasuichiro Suzuki, Herman
Takasey, Shoichi Yamada, Takeshi Yamamoto, Susana Yamauchi e Futoshi Yoshizawa.
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718
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Universidade de São Paulo, 1966.
Carolina Carmini Mariano Lúcio
Bacharel em Arte: História, Crítica e Curadoria pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Realizou duas mostras de arte japonesa. É premiada com Melhor Trabalho e Melhor
Artigo de Iniciação Científica na área de Artes pela pesquisa "História da Curadoria em São
Paulo", orientada pela LD. Elaine Caramella no ano de 2011. Seu trabalho de conclusão de
curso foi "Aracy Amaral: percurso curatorial" sob a orientação de Dr. Cauê Alves.
719
A NARRATIVA PICTÓRICA NA “TRILOGIA DA MARGEM” DE SUZY LEE
Luis Carlos Barroso de Sousa Girão - FA7
RESUMO: O mercado da literatura infantil se encontra em destaque entre pesquisadores
das mais diversas áreas, especialmente no que diz respeito à relação Palavra-Imagem nos
livros ilustrados. Ainda em campo fértil e inexplorado, o livro-imagem – tipo de livro ilustrado
composto em maior parte por códigos visuais e quase nenhum código verbal – é uma
publicação que se utiliza dos seus aspectos plásticos para contar/mostrar uma narrativa
pictórica/visual. Atualmente, a autora-ilustradora sul-coreana Suzy Lee é destaque entre os
artistas plásticos que desenvolvem livros-imagem. Sua “Trilogia da Margem” – composta por
거울속으로/Espelho (2003), 파도야 놀자/Onda (2008) e 그림자 놀이/Sombra (2010) – foi
publicada no Brasil, sendo inclusive adotada como material didático por escolas infantis.
Objetivando realizar uma análise acerca das narrativas pictóricas que compõem estas obras
repletas de ilustrações em carvão e aquarelas, propomos um diálogo entre os escritos do
crítico Perry Nodelman e da especialista Sophie Van der Linden com as pesquisas de Maria
Nikolajeva e Carole Scott. Como suporte ao nosso raciocínio, dando uma atenção ao
movimento presente nas páginas duplas desses livros, contamos com os estudos de
Philippe-Alain Michaud sobre a obra do historiador da arte Aby Warburg.
Palavras-chave: livro-imagem, movimento, narrativa pictórica.
SOMMAIRE: Le marché de la littérature pour la jeunesse est en évidence parmi les
chercheurs de différents domaines, en particulier, la relation des Images et des Mots dans
les livres illustrés. Inséré dans un domaine encore inexploré et fertile, le livre d'images –
espèce de livre illustré composé en majorité par des codes visuels et presque pas de code
verbal – est une publication qui se sert des aspects esthétiques pour raconter/montrer un
récit pictural/visuel. Actuellement, l'auteure-illustratrice sud-coréenne Suzy Lee est parmi les
artistes éminents qui développent des livres d'images. Sa “Trilogie de La Marge” – composé
par 거울속으로/Miroir (2003), 파도야 놀자/La Vague (2008) et 그림자 놀이/Ombres (2010) –
a été publiée au Brésil et a été même adoptée en tant que matériel pédagogique destiné aux
écoles des enfants. Afin d’analyser les récits picturaux qui composent ces œuvres pleines
d’illustrations au fusain et à l'aquarelle, on propose un dialogue entre les écrits du critique de
la littérature pour la jeunesse Perry Nodelman et de l’expert Sophie Van der Linden avec les
recherches de Maria Nikolajeva et Carole Scott. En accordant une attention particulière au
mouvement provenant des doubles pages de ces livres, notre ligne de pensée s’appuye sur
les études de Philippe-Alain Michaud sur le travail de l'historien de l'art Aby Warburg.
Mots-clés: livre d’images, mouvement, récit pictural.
A tradicional relação Palavra-Imagem utilizada desde o surgimento dos
primeiros livros ilustrados para o público infantil, que data do final do século XIX, é
elemento primordial para a elaboração das narrativas que compõem tais obras. Dito
isso, vale ressaltar que, à priori, a função dos textos visuais é auxiliar os textos
escritos, característica esta presente desde o Iluminismo.
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Dentre os estudos acadêmicos realizados atualmente acerca dos livros
ilustrados infantis – os quais tomam lugar em áreas diversas como Artes,
Comunicação, Design, Educação, Psicologia, entre outras –, a relação PalavraImagem é “palavra-chave” prioritária e referencial. Nesse contexto, objetivando
alcançar uma tipologia dos livros ilustrados, o pesquisador dinamarquês Torben
Gregersen definiu como livros-imagem as publicações literárias compostas por
“narrativas pictóricas, ou seja, sem ou com pouquíssimas palavras” (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p. 20-21).
Tal definição caminha em paralelo com o termo que o crítico e especialista em
literatura infantil Perry Nodelman (1988, p. 184) utiliza quando faz referência ao
wordless picture book – livro ilustrado sem palavras. Os estudos do professor
emérito da universidade de Winnipeg, no Canadá, são base teórica para muitas
pesquisas sobre os elementos que compõem as narrativas dos livros ilustrados.
Apesar de ainda pouco explorado, o território de publicação dos livrosimagem tem chamado atenção pelo crescente interesse tanto de profissionais, como
autores e ilustradores, bem como das editoras e do próprio público leitor. O fato de
as páginas internas destas obras serem repletas de imagens que narram histórias
sem o auxílio de palavras – estas resumindo sua presença aos títulos e algumas
poucas impressões ao longo da narrativa – constantemente as coloca em posição
comparativa aos livros de artista.
Graduada em pintura, a autora-ilustradora sul-coreana Suzy Lee começou a
despontar entre os artistas plásticos que desenvolvem livros-imagem quando
publicou uma versão – feita com fotografias e ilustrações recortadas – para o
clássico da literatura infantil Alice In Wonderland, de Lewis Carroll, como trabalho de
conclusão do seu mestrado em Book Arts, em 2002. A mesma editora que publicou
seu primeiro livro-imagem, a Edizioni Corraini, foi também a responsável pela
publicação do primeiro título que viria compor a trilogia que Lee concluiria alguns
anos mais tarde.
Lançado originalmente em 2003 sob o título 거울속으로, Espelho é a obra que
primeiro apresenta a protagonista da aclamada “Trilogia da Margem”. Após cinco
anos vivendo nos Estados Unidos, a artista plástica lança Onda, segundo volume de
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sua trilogia, originalmente intitulado 파도야 놀자. Pouco depois, em 2010, vivendo
em Cingapura, Lee lança o terceiro e último volume da trilogia, Sombra, cujo título
original é 그림자 놀이.
Comprovando o sucesso internacional de suas obras, Suzy Lee recebeu
diversos prêmios com a sua trilogia, inclusive um de Melhor Livro de Imagem pela
Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), do Rio de Janeiro, em 2011,
com Sombra. Nesse período, os livros da artista já haviam sido publicados em
território brasileiro pela editora Cosac Naify, que convenceu Lee a escrever e
publicar um ensaio teórico, seu primeiro, sobre o trabalho com os livros-imagem.
Lançado em 2012, o livro A trilogia da margem foi traduzido para outras línguas após
seu reconhecimento entre estudiosos da literatura infantil.
Caminhando paralelamente ao pensamento de Suzy Lee, quando a mesma
afirma (2012, p. 148): “Parece que os livros-imagem dizem: ‘Eu vou mostrar pra você.
Apenas sinta’”; acabamos diante das imagens encadeadas e dispostas em pranchas
enumeradas que compõem o apelidado “atlas de imagens” do historiador da arte
alemão Aby Warburg, intitulado Mnemosyne – que significa “memória” (WARBURG
apud MICHAUD, 2013, p. 39).
O referenciado estudioso da arte renascentista e da cultura dedicou anos de
sua vida escrevendo sobre os mais peculiares meios pelos quais a história da arte
poderia ser contada, especialmente no que se refere às possíveis ligações
existentes entre momentos distintos e que marcaram épocas diferentes na história.
No que diz respeito à leitura visual, temática que dialoga com a narrativa pictórica
abordada no presente artigo, Warburg se dedicou ao trabalho com a Mnemosyne
baseado em uma “iconologia dos intervalos” (MICHAUD, 2013, p. 295),
entendimento pelo qual ele associava as imagens e textos dispostos em pranchas
de tecido negro dentro de sua biblioteca particular – atualmente no Warburg Institute,
localizado em Londres.
Dentro deste contexto, cabe agora dar espaço à análise das narrativas
pictóricas, visuais criadas por Suzy Lee, as quais são fruídas por leitores das mais
diversas idades, apesar de indicadas para o público infantil. Tentar traçar uma linha
de diálogo entre o movimento do passar as páginas de um livro e o movimento de
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fruir as imagens nas pranchas da Mnemosyne. Esse movimento de mostrar
narrativas.
Uma narrativa mostrada
Quando nos colocamos diante de um livro ilustrado tradicional, composto por
textos escritos e textos visuais, a ação de nos apoiarmos em um e noutro é natural,
uma vez que as imagens à nossa disposição são complementos da leitura verbal.
Em casos assim, as imagens, ilustrações, fotografias que fazem parte do material
formador da narrativa possuem características mais específicas em termos de
significação. Essas imagens são elaboradas a partir de momentos relevantes nos
textos escritos aos quais se referem.
Seguindo este raciocínio, a especialista em literatura infantil Sophie Van der
Linden (2011, p. 104) afirma que, “para aumentar a força sugestiva” de uma imagem,
a captação de um momento a ser representado visualmente “significa restituir-lhe
seu instante mais breve, reduzir ao mínimo a duração representada”. Esta
efemeridade do momento representado é característica presente em quadros
pintados por artistas plásticos, assim como em fotografias realizadas por fotógrafos.
De acordo com a pesquisadora francesa (LINDEN, 2011, p. 104), esse momento é
chamado de “instante movimento”, o que nos leva ao elemento presente tanto nos
livros-imagem de Suzy Lee como nas pranchas negras de Aby Warburg: o
movimento.
O movimento presente em um livro ilustrado sem palavras pode se fazer por
meio de uma “picture sequence” – sequência pictórica –, termo este apontado pelo
renomado autor e ilustrador Uri Shulevitz (1985, p. 18). Não muito diferente do que
ocorre no rolo de fotogramas de um filme para cinema, as figuras impressas nas
páginas de um livro-imagem respeitam uma sequência de significação que as torna
“legíveis” ao leitor, fruidor. O próprio artista polonês explica que a legibilidade em
uma sequência pictórica está relacionada ao fato de “nós podermos seguir
facilmente as ações de um fotograma ao seguinte, que possamos compreender o
que está acontecendo” (1985, p. 21). A legibilidade de uma sequência pictórica está
intimamente ligada à produção de uma narrativa pictórica, ou seja, uma narrativa
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que é mostrada.
Identificando certa semelhança de tais ações sequenciais às obras aqui
analisadas, cabe trazer à tona algo que a própria autora-ilustradora sul-coreana
confessa em seu ensaio teórico (LEE, 2012, p. 148): “Quando trabalho, às vezes é
como se eu estivesse desenhando fotogramas de um filme de animação”. Esses
mesmos fotogramas, sempre em páginas duplas – no caso de sua “Trilogia da
Margem” –, mostram três momentos distintos das ações de uma garotinha em
contato com o mundo da imaginação.
Fazendo uso do formato do livro como cenário, fator que também impõe
significações na construção da narrativa, Suzy Lee explora a margem central de
suas publicações como espaço de “passagem” do mundo real, onde primeiramente
se encontra a personagem, para o mundo da imaginação, onde a personagem
interage com seres, à priori, inanimados – com o seu reflexo em Espelho; com as
ondas do mar em Onda; com as sombras no chão em Sombra. Nesse cenário, uma
“clara relação ator-palco” é determinante para a legibilidade da sequência pictórica
em exibição, à mostra para o espectador, leitor (SHULEVITZ, 1985, p. 21).
Dentro desta relação ator (personagem e ser inanimado com o qual interage)
e palco (livro), as obras que formam a trilogia de Suzy Lee são distintamente
separadas em três cenários: o primeiro cenário representado pelo mundo real; o
segundo cenário representando o mundo da imaginação; e o terceiro cenário
representado pela margem central do livro. É nesse terceiro cenário, invisível aos
olhos, que se dá a construção da problemática narratológica das histórias à mostra.
É na imersão da personagem do primeiro cenário no segundo cenário, por meio do
terceiro cenário, que a narrativa se torna convidativa a questões como: o que será
que aconteceu nesta passagem?
Este questionamento converge na afirmação de Perry Nodelman e Mavis
Reimer (2003, p. 298) quando esses dizem que “as imagens em livros sem palavras
exigem dos fruidores que os mesmos resolvam o enigma de qual história elas
implicam”. Ou seja, cabe a cada fruidor, leitor responder à pergunta anteriormente
lançada, ressaltando que as respostas poderão ser diferentes a cada nova leitura.
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Por este ângulo, se desconsiderássemos os títulos presentes nas capas das
obras de Suzy Lee, praticamente os únicos textos verbais destes livros-imagem, as
narrativas à mostra seguiriam o raciocínio, a interpretação de cada leitor a cada
leitura, fruição que esse último fizesse da história contada com o passar das páginas
duplas. Segundo a própria artista sul-coreana, o “significado ocorre entre as páginas
e é dado pelo ato de virá-las” (LEE, 2012, p. 120). A impressão dos momentos,
fotogramas em páginas duplas é também elemento de construção das narrativas
pictóricas aqui analisadas.
Quando Sophie Van der Linden (2011, p. 78) aborda a montagem da narrativa
em um livro ilustrado pela passagem de uma página à outra, ela cita o movimento de
“encadeamento das páginas duplas da primeira em direção à última”, dialogando
assim com o que Aby Warburg aponta como “encadeamento de planos” na
passagem do olhar de um recorte ao seguinte dispostos em uma prancha da
Mnemosyne (MICHAUD, 2013, p. 52) para sua compreensão, interpretação.
Reunindo em uma única prancha de tecido negro, identificada por sua
numeração, recortes de reproduções de obras de arte, fotografias de monumentos,
ampliações de quadros e textos verbais, Warburg elaborou um novo meio de se ter
acesso à história do homem (FIG. 1). Por meio deste “fenômeno de irrupção das
figuras” (MICHAUD, 2013, p. 298), o historiador da arte propôs que o ato de leitura
verbal se tornasse um ato de fruição contínua, onde o movimento de ida e volta dos
olhos fosse elemento inicial para a elaboração de uma narrativa visual, pictórica da
história.
FIGURA 1 – Pranchas 79, 45 e 46 da Mnemosyne.
FONTE – NIEL, 2011.
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Apesar de alguns espaços nas páginas duplas dos livros-imagem de Suzy
Lee serem preenchidos minimamente, como é o caso de Espelho – onde podemos
ver apenas a personagem e seu reflexo, além das manchas amarelas e pretas que
emergem da dobra central representando o terceiro cenário –, sua narrativa vai se
construindo por “efeito de concatenação” (MICHAUD, 2013, p. 137), pelo qual as
imagens se comunicam imediatamente às suas seguintes. Com este contexto
imagem-imagem, podemos “determinar a interpretação de uma imagem individual”
(SANTAELLA; NÖTH, 2012, p. 59), fazendo com que os leitores, fruidores da
“Trilogia da Margem” criem suas próprias relações de uma imagem com a sua
anterior, voltando uma página, ou com a sua seguinte, passando uma página.
No referente à presença do narrador em um livro-imagem, “o texto visual tem
uma perspectiva onisciente” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 163), onde tudo está à
mostra, à disposição para o leitor. Ao fruir a interação das imagens nas
extremidades das páginas duplas, sem esquecer do papel exercido pela margem
central, esse mesmo leitor poderá unir os elementos construtores da narrativa
pictórica e chegar a uma história não absoluta, uma vez que “as imagens têm seus
próprios meios de expressão” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 157).
Tal reflexão se aplica a um experimento realizado com Sombra, no qual há
uma página dupla totalmente negra ao final, representando o mundo imaginário
absoluto das sombras, de onde irrompe uma silhueta vinda do mundo da imaginação
na página dupla anterior refletida por uma luz exterior ao livro. Esse experimento é
apenas mais um meio pelo qual a narrativa pictórica pode se realizar devido à
interferência e interpretação do leitor, fruidor.
Em complemento à ação que o leitor influi passando as páginas duplas e sua
interpretação ao ler as imagens, um outro aspecto construtor da narrativa deve ser
destacado: a consistência. Segundo Uri Shulevitz (1985, p. 22-23):
Uma sequência pictórica é uma frase escrita com símbolos visuais no lugar
de palavras. […] Os primeiros fotogramas sugerem uma série de regras, ou
um código pictórico, que nos diz como ler tal sequência. Esse código nos
promete como a sequência será desenhada e como ela irá progredir.
No caso das obras componentes da trilogia de Suzy Lee, a consistência das
histórias não segue até a última página dupla aquilo que é exposto, colocado à
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mostra para o leitor a princípio. Os momentos de “passagem” do mundo real para o
imaginário, que deixam resquícios do terceiro cenário na personagem, criam ações
inesperadas no percurso da história. Esta reviravolta narrativa encerra os
movimentos que eram consistentes até ali.
Leitura visual da “Trilogia da Margem”
Utilizando-se do carvão, por seu caráter “tanto linear quanto volumoso” (LEE,
2012, p. 28), para os traços fortes e dinâmicos em seus personagens, Suzy Lee
equilibra a composição de seus textos visuais com as tintas, em especial pela
técnica aquarela. E tais imagens, “vistas como uma sequência” (NODELMAN, 1988,
p. 176), implicam uma série de mudanças que teriam um forte efeito narrativo.
FIGURA 2 – Páginas duplas de Espelho.
FONTE – LEE, 2009.
Publicado com um total de 28 ilustrações impressas em 48 páginas, Espelho
possui um formato vertical, semelhante ao formato padrão dos espelhos, que diminui
o espaço de exposição da personagem, bem como a deixa mais próxima da margem
central do livro. Essa mesma margem tem um papel mais presente no desenrolar da
narrativa, pois os pontos em amarelo e preto – desenvolvidos pela técnica da
decalcomania – emergem da dobra no livro, sinais de presença do terceiro cenário
tanto no mundo real quanto no mundo da imaginação.
A personagem que, à priori, aparece solitária no canto direito da primeira
página dupla – acompanhada por uma página branca, vazia à esquerda –, acaba por
se confundir com o que pode ser apontado como seu próprio reflexo na página dupla
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seguinte. A interação simétrica entre elas se dá com aspectos de diversão, porém
tudo muda depois que ambas desaparecem do teatro (livro) adentrando no terceiro
cenário, ação essa que deixa uma página dupla inteira em branco, vazia.
Quando saem do mundo entre o real e o imaginário, elas já não mais seguem
a característica simétrica de um espelho, e esta assimetria é fator determinante para
o fim da interação entre personagem e seu, agora não mais, reflexo. A falta de
empatia leva a personagem a empurrar e, com isso, quebrar o espelho (FIG. 2),
deixando-lhe solitária novamente, porém no canto esquerdo da última página dupla
– acompanhada por uma página vazia, em branco à direita.
Além dos aspectos visuais, não podemos ignorar a presença do título desta
obra impressa em sua capa, uma vez que a artista plástica sul-coreana encara as
“palavras como imagens” em seus livros (LEE, 2012, p. 136-137). O título original em
coreano, que traduzido livremente seria Dentro do Espelho, impõe uma significação
verbal fiel ao que ocorre ao longo da narrativa pictórica impressa nas páginas duplas
internas.
FIGURA 3 – Páginas duplas de Onda.
FONTE – LEE, 2008.
Publicado em um formato horizontal e com um total de 20 ilustrações
impressas em 40 páginas, Onda traz uma paisagem de mar, mesclando tintas
acrílicas diluídas e tintas secas, tudo com um ar convidativo para a diversão.
Diferente de Espelho, esta publicação possui uma ambientação nas páginas da
esquerda, que representam o mundo real da personagem à priori, com imagens de
dunas ao fundo. Além disso, a garota não está sozinha no mundo real, pois há um
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grupo de gaivotas que se movimenta de acordo com o comportamento da
protagonista, funcionando como “um coro” (LEE, 2012, p. 48). Enquanto isso, nas
páginas da direita, temos as ondas do mar representando o mundo da imaginação.
Após chegar correndo na praia acompanhada pela mãe, a garota se posiciona
de frente para o mar, brincando de se aproximar e se afastar das ondas, que
estranhamente não passam pela margem central do livro em direção ao mundo real.
A protagonista fica curiosa com isso e decide atravessar o espaço que representa o
terceiro cenário, no qual partes do seu corpo desaparecem e depois voltam a
aparecer (FIG. 3), com pinceladas azuis tanto no seu vestido quanto nas gaivotas,
no mundo da imaginação.
Enquanto a garota se diverte no mar com as gaivotas, uma onda enorme vai
se formando ao tempo que a ambientação do mundo real desaparece. Quando
notam a onda gigante, protagonista e gaivotas correm em direção à página da
esquerda, acreditando que a onda não atravessaria a margem central: enganam-se.
Após inundar a página dupla em todas as suas extremidades, a onda deixa
resquícios seus no cenário que seria o mundo real – o céu agora tem uma das
tonalidades de azul da onda e há várias conchas e estrelas no mar em azul na areia
da praia.
No referente à significação possível com o título original de Onda, que em
tradução livre para o português ficaria Ei, Onda, Vamos Brincar, o convite feito na
capa se mostra verdadeiro ao longo da narrativa pictórica nas páginas internas do
livro.
FIGURA 4 – Páginas duplas de Sombra.
FONTE – LEE, 2010.
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Também publicado em formato horizontal, porém com uma passagem de
páginas de baixo para cima – não mais da direita para a esquerda, como em
Espelho e Onda –, Sombra é a história mais elaborada da trilogia de Suzy Lee. A
autora se utilizou de estêncil e tinta em spray para formar as silhuetas das sombras,
além de ter salpicado a tinta amarela, que representa o mundo da imaginação, com
as cerdas de uma escova de dentes para, assim, conseguir um efeito gradativo de
preenchimento no segundo cenário. Composto por um total de 20 ilustrações
impressas em 40 páginas, o livro mostra mais de uma reviravolta em seu percurso.
A garota que acende a luz do porão no canto de cima da segunda página
dupla, onde identificamos o mundo real, depara-se com uma simetria de tudo à sua
volta no canto de baixo, representado pelo mundo da imaginação: o mundo das
sombras. Ela começa a criar formas com as mãos e com os objetos do primeiro
cenário que refletem em formatos de animais e plantas no segundo cenário, como
as figuras de um pássaro e de um lobo (FIG. 4). Aos poucos, com o surgimento das
silhuetas nítidas no espaço em amarelo, vemos desaparecer todos “os objetos
produtores de sombras” no espaço onde se encontra a protagonista (LEE, 2012, p.
72).
A primeira reviravolta da história acontece com a invasão do lobo no primeiro
cenário, após atravessar o terceiro cenário levando consigo resquícios do segundo
cenário. As demais silhuetas interagem diretamente com a protagonista, que não
demora a imergir no segundo cenário como uma sombra ela própria.
O elo entre a garota e o grupo de silhuetas é forte o suficiente para revidar os
avanços do lobo, numa segunda reviravolta, que logo depois é convidado a se
divertir com os demais em um teatro (livro) agora completamente invadido pelo
amarelo do mundo da imaginação. Porém a brincadeira não demora a ser
interrompida pelo grito que surge vindo do mundo real – aqui se tornando mais um
diferencial de Sombra comparado aos outros livros da trilogia, que não apresentam
outros textos verbais além dos seus títulos.
Com a saída da garota do porão, ficamos diante de uma nova página dupla
completamente negra, vazia e que logo depois é modificada, em outra reviravolta,
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desta vez com as silhuetas do mundo da imaginação se divertindo entre elas
mesmas. Esta ausência total de presença do mundo real caminha paralelamente
com o significado emitido pelo título original desta obra, que traduzido livremente
ficaria Brincadeira de Sombra. É também relevante para a construção desta
narrativa pictórica a presença da onomatopeia para o acender de uma luz: o “click”.
Considerações Finais
Fazendo uso dos livros como objetos a serem explorados em seus mais
diversos ângulos e formas, Suzy Lee produz narrativas pictóricas que levam o leitor
a se posicionar como o fruidor de uma obra de arte, de uma fotografia, de um filme
de cinema. A própria artista afirma que o livro é um objeto “para ser pensado como
uma tela que projeta uma história” (LEE, 2012, p. 102).
Ao realizar uma distinção entre mundo real e mundo imaginário, esses últimos
separados pela margem central do livro, a autora-ilustradora sul-coreana consegue
expor, colocar à mostra suas histórias vividas por uma garotinha curiosa. Além das
expressões faciais, a protagonista faz uso dos seus gestos corporais para passar
subjetividade ao leitor. Estas características apenas complementam todos os demais
fatores na construção de uma narrativa que é mostrada.
Por ir além do que Uri Shulevitz (1985, p. 18) atesta quando diz que a “clareza
de comunicação também é importante porque a apreciação do leitor depende disso”,
Suzy Lee convida seus fruidores a imergirem no mundo da imaginação assim como
a sua protagonista o faz. A passagem pelo terceiro cenário é inquietante, porém não
deixa de ser atraente aos olhos.
Quando opta por reforçar seus traços utilizando muitos fundos brancos ou
negros, as ditas “páginas vazias” (LEE, 2012, p. 110), a artista sul-coreana expõe
suas histórias de maneira simples e espontânea, característica que caminha
paralelamente ao conceito de “parcimônia” (LINDEN, 2011, p. 43), pouco utilizado
em livros ilustrados. Porém a decisão por páginas vazias é intencional para a
construção da narrativa, uma vez que a existência delas no livro influi no “aspecto de
criar tensão” (LEE, 2012, p. 114) da história à mostra.
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O fato de não fazer uso das palavras para contar suas histórias é notável
exatamente por não resumir o público leitor exclusivamente às crianças. No entanto,
sabendo que “uma imagem é mais comunicativa que qualquer número de palavras”
(NODELMAN; REIMER, 2003, p. 277), as narrativas pictóricas na “Trilogia da
Margem” de Suzy Lee mostram histórias, situações que podem ser consideradas
universais, ou seja, que podem acontecer com qualquer criança em qualquer lugar.
Referências Bibliográficas
LEE, S. A trilogia da margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac Naify,
2012.
_________ Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
_________ Onda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
_________ Sombra. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LINDEN, S. V. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
MICHAUD, P. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto,
2013.
NIEL, L. “Atlas Mnemosine”. A regra e a excepção, Lisboa, Portugal, 2011. Disponível em:
http://aregraeaexcepcao.blogspot.com.br/2011/12/atlas-mnemosine.html Último acesso em:
18/03/2014, às 11:00.
NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify,
2011.
NODELMAN, P. Words about pictures: the narrative art of children’s picture books. Athens:
University of Georgia Press, 1988.
NODELMAN, P.; REIMER, M. The pleasures of children’s literature. 3d ed. Boston: Allyn
and Bacon, 2003.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras,
2012.
SCHULEVITZ, U. Writing with pictures: how to write and illustrate children’s books. New
York: Watson-Guptill Publications, 1985.
Luis Carlos Barroso de Sousa Girão
Graduado em Design de Moda pela Faculdade Católica do Ceará (2008) e especialista em
Design Gráfico pela Faculdade 7 de Setembro (2013). Trabalhou como tradutor pelo portal
SarangInGayo (2008 - 2012). Atuou na indústria fonográfica como designer e ilustrador pela
gravadora Pastel Music (2010 - 2012). Tem interesse nas temáticas: Ilustração, Literatura
Infantil, Palavra-Imagem, Semiótica da Cultura, Tradução e Tradução Intersemiótica.
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BASARA EM: SHÔJO E SHÔNEN MANGÁ
Simonia Fukue Nakagawa - USP1
RESUMO: Basara, antes de ser entendida como estética, é entendida pelos artistas
contemporâneos japoneses como o espírito que demonstra exuberância e luxo. Foi um
modo de vida dos daimyo no século XIV, os quais não se importavam em usar as riquezas
econômicas das províncias para sustentar suas extravagâncias. Inspirados na história dos
daimyo surgiram o Sengoku Basara e o Basara. O primeiro é título de uma história em
shônen mangá, ou seja, quadrinho direcionado ao público masculino, e o último, Basara foi
publicado em shôjo mangá, quadrinho voltado para o universo feminino. Por atingirem
públicos divergentes, suas narrativas e poéticas visuais são diferentes. A pesquisa proposta
visa analisar as diferenças tanto narrativas quanto visuais, e identificar a estética/espírito
Basara nesses mangás. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram feitas leituras dos dois
tipos de mangá, bem como uma busca teórica a respeito do termo Basara na história do
Japão e seu uso pelos artistas contemporâneos japoneses.
Palavras-chaves: mangá; estética Basara; cultura japonesa.
ABSTRACT: Before being understood as aesthetics, the contemporary Japanese artists
understand Basara as the spirit which shows exuberance and luxury. Basara was the
Daimyo way of life of in XIV century that didn’t care about spends the wealth of the provinces
to maintain their extravagances. Inspired by the history of the Daimyo the Sengoku Basara
and the Basara arose. Sengoku Basara is title of a shônen manga (boy comics) story. And
Basara was published as shôjo manga (girl comics). To reach different readers their
narratives and visual poetics are also different. This research aims to analyze those
differences and identify the Basara aesthetics/spirit in both manga. For the development of
this research, readings of both manga have been made, as well as a theoretical search on
the term Basara in the History of Japan and its use by the contemporary Japanese artists.
Keywords: manga; Basara aesthetic; japanese culture.
Introdução
Existem diversos estudos no ocidente sobre as histórias em quadrinhos
japonesas, porém muitos deles abordam a história, gêneros e a narrativa. Este artigo
busca relacionar o mangá com uma estética japonesa empregada na arte
contemporânea conhecida como basara.
O mangá tem vários aspectos importantes em sua história:
O primeiro deles são os olhos grandes e pode-se dizer que essa importante
característica do mangá surgiu em 1935, com um jovem de vinte e dois anos
chamado Nakahara Jun’ichi, o qual “traz às capas (de revistas) meninas de olhos
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grandes e sonhadores” (FUJINO, 2002, p. 81). Neste período, os olhos grandes das
personagens de Jun’ichi causaram conflito com a Divisão de Livros do Ministério de
Assuntos Internos do Japão, que proibiram as capas desenhadas pelo artista
argumentando:
As meninas que você desenha sem sombra de dúvida são americanas,
porque têm os cabelos vermelhos e olhos grandes, e no geral mostram
fraqueza: são desenhos de uma doutrina derrotista. (2002, p. 82)
Apesar disso, os olhos grandes passaram a ser a característica do quadrinho
japonês que perpetua até a contemporaneidade e se tornou uma peculiaridade dos
mangás, distinguindo-o dos quadrinhos americanos e europeus.
Osamu Tezuka, além de difundir o mangá no ocidente, cria as famosas
estrelas nos olhos das personagens, cuja função é intensificar o brilho do olhar. Este
detalhe é muito comum nos mangás direcionados para o público feminino, porque
revela a ideia romântica nas narrativas.
Outro aspecto significativo no mangá são justamente as narrativas. No
mesmo período de Jun’ichi, o artista Matsumoto Katsuji usa quadros para dar
sequência às suas histórias, criando, assim, a sequência em quadrinhos como, por
exemplo, em Pichiko to Châ-kô, que apresenta uma narrativa composta de quatro
páginas sequenciais a fim de dar ritmo às narrativas (FUJINO, 2002). Mas é
necessário observar que, no decorrer dos anos, alguns mangakás2, em algumas
páginas, não usam a estrutura dos quadros, mas as colocam numa página inteira
como se fosse um único quadro.
Outro artista de relevância para os estudos das narrativas do mangá é
Rakuten Kitazawa, considerado o pioneiro dos quadrinhos japoneses e o primeiro a
usar a palavra mangá para designar histórias em quadrinhos. As histórias desse
artista eram voltadas para narrativas de humor, elas ridicularizavam personagens
que tinham “comportamento livre, que contrariavam os pais”. Essa característica se
desenvolvia lado a lado com a ocidentalização no Japão pós-guerra (2002, p. 48), o
que pode nos mostrar que, apesar de o ocidente influenciar o cotidiano do jovem
japonês – pensemos a rebeldia dos adolescentes americanos que podemos ver em
Juventude Transviada de Nicholas Ray – e, com isso, inspirar as histórias japonesas,
mesmo que sendo através do deboche como Kitazawa nos mostra, a estrutura da
734
narrativa visual permanece a mesma. O ocidente, indiretamente, inspira histórias,
mas não domina as estéticas.
Embora o mangá apresente diversos gêneros que se distinguem pela forma e
os temas que aborda, neste artigo apenas dois serão abordados, o shôjo e o shônen
mangá. O primeiro é voltado para o público jovem feminino.
Desenhos de estrelinhas, corações, flores, folhas e pétalas caídas, esparsos
pelo cenário, sugerem uma linguagem musical imaginária. Cria-se uma
atmosfera para o romance. [...] Os temas são variados, sempre enfocando o
amor impossível, as separações chorosas, as rivalidades entre amigas [...].
(LUYTEN, 2000, p. 52)
Já o shônen mangá se apresenta de forma oposta.
[...] quase todas as revistas para rapazes são preenchidas com histórias
melodramáticas, dentro da temática do samurai invencível, do esportista e
do aventureiro, tendo como constante as condutas japonesas típicas de
autodisciplina, perseverança, profissionalismo e competição. (LUYTEN,
2000, p. 56)
Assim, este artigo procura contribuir para a pesquisa sobre o mangá
apresentando uma estética/espírito japonesa – basara – presente nos dois gêneros
de mangá: um shôjo mangá chamado Basara e um shônen mangá denominado
Sengoku Basara II.
Estética/espírito basara
Basara, na sua etimologia vem da palavra sânscrita vajra, “que designa o que
está firme, duro como diamante, que pulveriza todas as coisas, o instrumento que
força aos maus deuses a submeter-se”3.(SATÔ4, 1995, p. 330, tradução nossa).
No Japão, o termo sofreu alterações no seu significado ao longo do tempo,
tornando-se mais um chavão e se manifestando como vanguarda que representa um
mundo de cabeça para baixo (gekokujo), valorizando o individualismo, porque no
século XIV a sociedade era violenta e procurava defender uma estética individual
(SATÔ, 1995).
Nessa época (século XIV), o sistema feudal, que possuía uma economia
estabelecida, deparou-se com as guerras civis, caminhando, assim, para ruína. No
735
entanto, os senhores feudais conhecidos como daimyo basara passaram a ostentar
roupas e casas luxuosas, alimentos raros e caros sustentados pela economia
advinda das províncias. Na cultura japonesa, basara representa aquilo que ostenta
exuberância e luxo, por causa desse modo de vida baseado na ostentação de
riquezas dos daimyo.
Diante dessas situações, o governo Muromachi passou a decretar
regulamentos estritos condenando a vida basara. Porém, um famoso e polêmico
daimyo basara, Sasaki Dôyo, ignorou essas proibições, mantendo espetáculos
extravagantes e divertimentos de caça para os vassalos. Essa foi uma forma notável
encontrada de sobreviver politicamente na sociedade diante da guerra civil.
Apoiados no poder econômico que tinham, os daimyo basara fizeram uma
crítica mordaz ao sistema à sua maneira, dando “[...] ao mundo a ‘licença ultrajante’,
‘livre violência’ (jiyu rôzeki) e ‘mundo de cabeça para baixo’ (gekokujo) [...].”5 (SATÔ,
1995, p. 339-340, tradução nossa).
Por causa das confusões caóticas da guerra civil a sociedade e todos seus
conceitos sociais entraram em colapso, mas tentava-se buscar diferentes valores
daqueles
veiculados
pela
velha
ordem.
Embora
tenha
sido
proibido
o
comportamento basara, para se estabelecer uma ordem, as autoridades o aceitavam,
e desta maneira, os daimyo passaram a ser “o lado positivo do mal”6 e a “entrar em
toda extravagância suntuosa”7. Neste momento, basara passou a ser caracterizada
por um “estado de ambivalência entre o distúrbio do paroxismo e beleza”8 (SATÔ,
1995, p. 340, tradução nossa).
Esse comportamento às vezes rude e cruel de indivíduos marginalizados pelo
sistema tradicional mostra uma sociedade que está em movimento tentando se
desenvolver economicamente, politicamente e culturalmente. Como os basara, os
artistas do teatro Nô, da arte floral ou do jardim, da arte dos perfumes ou da poesia
coletiva (renga) também sofreram discriminação da população. Eles eram os
“moradores das margens de rios (kawaramono)”
9
e podemos pensar essa
marginalização como uma elite, pois eram classificados como “[...] comensais
(dôsbôshû) do shogun ou os mais altos personagens do regime, isto é, viveram do
736
seu mecenato”10 (SATÔ, 1995, p. 40, tradução nossa).
Dito isso, o termo basara também foi usado para designar uma estética ligada
ao mundo do entretenimento. Esse comportamento extravagante e luxuoso dos
daimyo inaugura o termo basara que se cristaliza como estética
Na sociedade da época das guerras civis, foi feito um amplo uso do termo
basara, usado para se referir tanto a “extravagância” (kasa: luxo incomum),
como a “loucura” (monoguroi), o comportamento estridente ou simplesmente
para descrever como a manga de roupa de uma dançarina acrobática
possui graça, ou na dança dengaku, como um jogo, que intencionalmente
leva o ritmo clássico para atrair a atenção. Novos ritmos espasmódicos, tons
vibrantes, padrões negros, tudo o que era incompreensível para a
sensibilidade tradicional foi chamado “basara”. No vestuário, como nas
pinturas, eles começaram a usar abertamente as cores primárias em vez de
tons pálidos e tons escuros utilizados anteriormente. Não pareciam
mudanças radicais na estética da cor. Sem dúvida, um modo novo de
11
formas estranhas e incomuns tinha aparecido. (SATÔ, 1995, p. 330,
tradução nossa).
Assim, basara se tornou também forma de “arte” da vida, uma mistura de
provocações com o anticonformismo que, aliás, alguns guerreiros, homens e
mulheres das classes mais baixas procuravam como modelo a fim de se
distinguirem dos demais (MOLLARD, 2007), buscando a exuberância, seguindo
contra os valores autoritários, sendo extravagantes e valorizando a filosofia de que
“o baixo supera o alto”12 (AZITO, 2010).
Sob todas essas influências da estética basara, podemos encontrá-la na arte
e cultura japonesas contemporâneas. Exemplo disso foi a exposição, com curadoria
do artista japonês com tendências da “neo-arte japonesa”13, Hisashi Tenmyouya, o
qual selecionou artistas contemporâneos japoneses e os exibiu na Galeria Spiral
Garden em Tóquio com o tema basara (figura 1). Essa exposição teve como
proposta resgatar a história e cultura japonesas e trazê-las para a contemplação dos
olhares contemporâneos conectando, dessa forma, o passado com o presente,
porém contrapondo os estereótipos japoneses como wabi, sabi, zen e otaku 14 ,
criando um movimento de “voltar e ir entre estas percepções da arte japonesa”15
(AZITO, 2010, tradução nossa).
737
Figura 1. Intertwining thought. 2009. Hisashi Tenmyouya. Técnica: Acrílico e folhas de ouro, brocado
de outro, tecido velho, trança em madeira. Dimensão: 180 × 165cm.
Outro exemplo da influência do espírito basara, como é nomeado na
contemporaneidade, na arte e cultura japonesas contemporâneas são os trabalhos
do estilista japonês Kansai Yamamoto. O estilista que, na década de 70, vestiu
David Bowie na apresentação do seu sexto álbum denominado Alladin Sane, obteve
sucesso
internacionalmente.
Suas
produções
valorizam
as
extravagâncias,
misturadas às fantasias, performances e danças. Em 2013, produziu um desfile em
Londres no Victoria & Albert Museum (V&A), ali ele expôs criações novas com a
proposta de ser coreografada, expressando o movimento e o resultado foi o desfile
“Fashion in Motion”16. Essa “rebeldia” na moda resgatou aquilo que representa o
tradicional, mas reinterpretado na contemporaneidade e definida por Yamamoto
como o “espírito rebelde encontrado em extrema beleza”17 ou como comenta em
entrevista para revista online Shön Magazine (2013) "[...] a palavra BASARA
significa se vestir livremente, com uma extravagância elegante. [...] é colorido e
chamativo e que está no coração do meu projeto"18 (tradução nossa).
Essas ideias e conceitos os artistas contemporâneos emprestaram dos
daimyo basara. O que também aconteceu no mangá, pois a estética basara é
encontrada em dois gêneros de mangás, o shôjo e o shônen.
738
Basara em shôjo e shônen mangá
Ambos os mangás abordam esta estética/espírito basara de forma histórica,
mas com pequenas particularidades que as distingue uma da outra.
O shôjo mangá é narrado de forma fantástica e com algumas ideologias da
história sobre os próprios basara. O mangá intitulado Basara (figura 2) se passa num
Japão pós-apocalíptico onde o deserto domina a Terra. O conflito inicial da narrativa
é a luta que os povos enfrentam contra o império tirano do Imperador de Ouro, como
é conhecido. Quatro espadas – Byakko, Suzaku, Seiryu e Genbu – são forjadas
como símbolo da resistência do povo, e surge uma profecia para dar-lhes esperança.
Essa profecia preanunciava o nascimento de um menino que mudaria a vida da Vila
Byakko. Entretanto, nascem gêmeos, Sarasa (menina) e Tatara (menino) cujo
destino é libertar seu povo deste governo e tornar a vila independente.
Figura 2. Basara, criado por Yumi Tamura, editado por Shôgakukan. 1990.
No aniversário de 12 anos, Tatara é nomeado o “Filho do Destino” e passa a
receber a espada como símbolo do seu destino. Porém, o Rei Vermelho invade a
vila Byakko e um de seus guerreiros decapita Tatara, deixando o povo desesperado,
pois a esperança deles havia morrido. Mas, como em muitas narrativas, surge uma
esperança não revelada: Sarasa. Esta, percebendo o medo do seu povo, resolve
739
assumir o destino de seu irmão assumindo a figura de Tatara e, assim, começa sua
jornada como “Filho do Destino”.
Por ser um shôjo mangá, o amor é relevante e a relação percorre o caminho
da impossibilidade. Sarasa se apaixona pelo Rei Vermelho que corresponde a esse
amor. Como aceitar amar aquele que matou seus queridos parentes e quase
destruiu seu povo? E como amar aquela que é conhecida como a salvadora do povo
e está incumbida a matá-lo? Esse é o clímax do shôjo.
Uma das semelhanças com a estética/espírito basara está no contexto
histórico relacionado à ostentação que os daimyo basara adquiriram para comportar
seus luxos, e o Rei Vermelho, no mangá, procura fazer o mesmo. Seu reino é
repleto de extravagâncias, o que, de certo modo, é copiado pelos outros reinos.
Logo na primeira página há a definição de basara: “O espírito nega a antiga
autoridade, transcendendo as tradições e costumes. A origem da palavra é Vajra, ou
seja, diamante.”19 (TAMURA, 1990, p. 1) Podemos pensar ser este o mesmo ideal
dos daimyo basara em relação à antiga tradição japonesa e, no shôjo mangá,
Sarasa surge para quebrar esses costumes, isto é, as tradições de seu povo e
também do Rei Vermelho.
Outra ligação possível é o termo vajra (figura 3). Se basara vem de vajra que
significa diamante, pode-se entender que Sarasa é basara, vajra. Pois toda a
narrativa coloca a personagem como assumindo a figura do irmão, e por isso ela é
forte, pois não se deixa destruir, é dura no seu discernimento, como um diamante.
Entende-se então, que não somente esse mangá possa ter se influenciado pelo
contexto histórico dos basara, mas também pelo seu significado inicial.
740
Figura 3. Basara, criado por Yumi Tamura, editado por Shôgakukan. 1990.
Já o shônen mangá intitulado Sengoku Basara II (figura 4), baseado no game
da Capcom20, descreve a história das guerras civis no Japão. Como acontece em
muitos games, um primeiro jogo foi lançado e seguido de outros com avanços do
enredo e estratégias, suportes e melhor elaboração dos gráficos. O mangá deste
game seguiu o mesmo princípio, ou seja, é possível encontrar uma variação do
nome Sengoku Basara, porém, para esta pesquisa, privilegiou-se o Sengoku Basara
II.
Embora os personagens e cenários estejam relacionados com os trajes e
lugares do Japão antigo, no game existem personagens com vestimentas e lugares
diferentes da época, pois, como em muitos enredos de jogos japoneses e de
publicações de shônen mangá, a história se miscigena com a fantasia criada pelo
artista, no qual, dois mundos distintos, o da imaginação e o real se unem num
produto dirigido a um determinado público.
No entanto, os concept art (a arte da caracterização dos personagens) tanto
do game quanto do mangá estabelecem semelhanças com as criações do estilista
Kansai Yamamoto, pois eles foram criados a partir dos trajes e costumes daquela
época para os games da contemporaneidade. Existe uma mistura do tradicional com
o contemporâneo, a qual se harmoniza com as lutas entre vilões e mocinhos.
741
Figura 4. Sengoku Basara II, adaptado por Haibara Yaku, editado por Media Works, 2007.
Sengoku refere-se ao período de Estados em Guerra na China e foi uma era
contemporânea ao período Muromachi, mas no Japão as lutas eram pela disputa de
poder entre os clãs daimyo. Os principais daimyo desse período foram Takeda
Shingen, Uesugi Kenshin e Date Masamune, recuperados no game e no mangá,
assim como outras personalidades históricas japonesas: Oda Nobunaga, no
quadrinho, o Rei das Trevas e Toyotomi Hideyoshi, conhecido como o Senhor das
Armas. (TURNBULL, 2003)
Na História, sempre existiram a disputa de poder e conquista de territórios, e
nesse mangá não é diferente. Aparecem dois jovens, Sanada Yukimura e Date
Masamune, que a princípio são rivais, mas percebendo um poder maior tentando
conquistar o Japão, eles resolvem juntar suas forças assim como fazer acordos com
outros guerreiros de outras regiões para lutarem contra o Senhor das Armas. E
mesmo derrotando-o, se deparam com outra ameaça para os clãs, Toyotomi
Hideyoshi. Novamente os heróis unem as forças em busca da vitória.
Aqui os poderes sobrenaturais se sobrepõem dando mais emoção às cenas
de luta (figura 5). São poderes com nomes, como se tivessem sido aprendidos por
algum mestre ancestral, e que determinam o tipo de golpe que está sendo aplicado
ao oponente, característica comum nas narrativas dos mangás. É dessa forma que a
742
história do Japão entra num universo fantástico com referências históricas reais.
Figura 5. Sengoku Basara II, adaptado por Haibara Yaku, editado por Media Works, 2007.
Assim como o shôjo mangá Basara, este shônen mangá também aborda
questões sobre as extravagâncias dos senhores feudais e o espírito da liberdade
contra as tradições antigas, mas nele as personagens, inicialmente inimigas,
comungam entre si para vencer um poder maior, característica comum em shônen
mangá.
Os dois gêneros de mangá – shôjo e shônen – se analisados na forma visual,
são bastante distintos. O shôjo Basara exibe linhas e traços finos, mas mais ousados
que o shônen Sengoku Basara II, ou seja, apesar de uma das características
principais do shôjo mangá é ter páginas mais claras e “limpas” contrapondo-se ao
shônen que, geralmente, possui páginas carregadas e poluídas, Basara ousa em
sua estética carregando as páginas com nanquim e retículas. Entende-se que
Basara é um shôjo mangá pela narrativa do romance, caracterização dos
personagens que se expõem com traços leves e finos, olhos grandes e brilhantes,
mas com uma quadrinização mais rebuscada. Já Sengoku Basara II é percebido
como mangá masculino pela abordagem da narrativa que envolve lutas e disputa
entre poderes, no entanto com uma quadrinização mais organizada, embora com
linhas mais grossas.
743
Pode-se dizer que ambos trabalham com a questão histórica, ideológica e
conceitual da estética/espírito basara.
Considerações finais
Se na história do Japão basara é um comportamento extravagante que leva o
indivíduo a ostentação e luxo, na arte ela aparece como fenômeno relevante nos
trabalhos
de
artistas
nipônicos
contemporâneos.
Eles
se
utilizam
dessa
estética/espírito, influenciados pelos modos exuberantes desse termo e pelos
exageros para produção de suas obras. Essa estética também é observada no
mangá como elemento instituído. Entendemos a estética/espírito basara em sua
história e seu desenvolvimento na contemporaneidade como sendo um conceito da
percepção e liberdade na arte.
Notas
1
Orientanda da Professora Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro.
Mangaká é aquele que desenha mangá.
3
"[...] qui désigne tout ce qui est inébranlable, dur comme le diamant, qui pulvérise toutes choses,
l'instrument qui contraint les dieux maléfiques à se soumettre."
4
Satô Kazuhiko é professor da Universidade de Artes Liberais de Tóquio.
5
Satô Kazuhiko é professor da Universidade de Artes Liberais de Tóquio.
6
[les basara] "sont la face positive du mal."
7
"s'adornner à toutes les somptueuses extravagances."
8
"cet état d'ambivalence du paroxysme entre désorde et beauté."
9
"les habitants des berges des rivières (kawaramono)."
10
"[...] qu'ils étaient tous les commensaux (dôsbôshû) du shôgun ou des plus hauts personnages du
régime, c'est-à-dire qu'ils vivaient de leur mécénat."
11
"Dans la société du temps des guerres civiles, il était fait une large utilisation du term basara, employé
pour désigner à la fois l' "extravagance" (kasa: le luxe hors du commun), la "folie" (monoguroi), le comportament
tapageur, ou plus simplesment pour décrire la manière dont la manche du vêtement d'un danseur voltige avec
grâce, ou encore, dans la danse du dengaku, la façon dont l’exécutant par son jeu, sort intentionnellement du
rythme classique afin d’attirer l’attention. Les nouveaux rythmes saccadés, les tons éclatants, les motifs osés, tout
ce qui était incompréhensible pour la sensibilité traditionnelles fut appelé "basara". Dans le vêtement comme
dans le peintures, on commença à employer ouvertement les couleurs fondamentales à la place des teintes pales
et des tons sombres utilisés auparavant. On vit apparaître des changements radicaux dans l’esthétique des
couleurs. Incontestablement, une nouvelle mode de formes étranges et insolites avait fait son apparition."
12
“the low overcomes the high.”
13
“neo-japanese art”
14
O termo era usado para se referir a casa de outra pessoa, mas os japoneses o empregaram para
denominar os jovens que ficavam em casa e gastavam seu salário cultivando hobbies de diversos tipos,
principalmente, mangá, games e animê. Na década de 90 a palavra se tornou pejorativa implicando a indivíduos
que não tinham uma vida real além da internet ou dos quadrinhos. Porém, o ocidente importou a palavra que
passou a designar aquele que é fã da cultura japonesa ou mesmo nerd, para os japoneses. (GARCÍA, 2011, p.
86)
15
“to go back and forth between these perception of Japanese art.”
16
Moda em Movimento.
17
“rebellious spirit found in extreme beauty.” Matéria do site Style Bubble do Reino Unido.
18
“[…] the word BASARA means to dress freely, with a stylish extravagance. […] it is colorful and
flamboyant and it lies at the heart of my design.” (2013)
19
“The spirit of denies old authority, transcending traditions and customs. The origin of the word is Vajra,
meaning
diamond.
Traduzido
para
o
inglês
pelo
site
Mangafox.
Fonte:
http://mangafox.me/manga/basara/v01/c001.1/3.html.
2
744
20
Existem algumas versões das adaptações do game para o mangá, dentre elas: “Sengaku Basara 2”;
“Sengaku Basara Rense Ranbun”; “Sengaku Basara 3” etc.
Referências bibliográficas
FUJINO, Y. Identidade e alteridade: a figura feminina nas revistas ilustradas japonesas nas
Eras Meiji, Taishô e Shôwa. 2002. 204p.Tese (Doutorado em Comunicação e Estética do
Audiovisual) – Escola de Comunicação e Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo.
GARCÍA, H. A geek in Japan: discovering the land of manga, anime, zen, and the tea
ceremony. North Clarendon: Tuttle, 2011.160p.
LUYTEN, S. B. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. 250p.
TENMYOUYA, H. Basara. Tokyo: Bijutsu Shuppan-sha, 2010. 160p.
TURNBULL, S. Samurai: the world of the warrior. Oxford: Osprey Piblishing, 2003. 224p.
Fontes eletrônicas
AZITO online Gallery of Japanese Contamporary Art. "BASARA" curated by Hisashi
Tenmyoya. Disponível em: <http://www.azito-art.com/topics/exhibition/basara-curated-byhisashi-tenmyoya.html>. Acesso em: 18 nov. 2013.
LANJI, R. Interview with Kansai Yamamoto. SHÖN MAGAZINE, 30 de outubro de 2013.
Disponível em: <http://schonmagazine.com/2013/10/interview-kansai-yamamoto/>. Acesso
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MOLLARD, N. Construction d’une identité littéraire moderne à travers la relecture
d’une esthétique traditionnelle: Fūryū h dans les écrits de Kōda Rohan Pn: autour
de 1890. (Doutorado em Letras) – Universidade de Genebra. Genebra, 2007. Disponível em:
<https://archive-ouverte.unige.ch/download/unige:713/THESIS>. Acesso em: 06 nov. 2014.
SATÔ, K. Des gens étrange a l’allure insolite: contestation et valeurs nouvelles dans le
Japon medieval. In: SATÔ, K; BOUCHY, A. Annales: Histoire, Sciences Sociales. 50e
Année, n°. 02, mar. - abr., 1995, pp. 307-340. Publicado por: EHESS. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/27584894>. Acesso em: 18 nov. 2013.
Mangás
TAMURA, Y. Basara. Tokyo: Shogakukan, vol. 01-27, 1990. Disponível em:
<http://mangafox.me/manga/basara/>. Acesso em: 20 mar. 2014.
HAIBARA, Y. Sengoku Basara II. Tokyo: MediaWorks, vol. 1-4, 2007. Disponível em:
<http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/>. Acesso em: 20 mar. 2014.
Fontes ilustrativas
Figura 1: Disponível em: <http://www3.ocn.ne.jp/~tenmyoya/paintings/0_paintings.html>.
Acessado em: 20 mar. 2014.
Figura 2: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/basara/v03/c009.2/8.html>. Acessado
em: 20 mar. 2014.
Figura 3: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/basara/v01/c001.1/3.html>. Acessado
em: 20 mar. 2014.
Figura 4: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/v01/c001/37.html>.
Acessado em: 20 mar. 2014.
Figura 5: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/v01/c002/17.html>.
Acessado em: 20 mar. 2014.
745
Simonia Fukue Nakagawa
Mestranda em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela USP; fez especialização em
História da Arte do Século XX (EMBAP) e em Comunicação Audiovisual (PUC-PR) e é
formada em Gravura pela EMBAP. Leciona mangá desde 2000 e possui pesquisas
relacionadas a esta arte.
746
O CORPO E A CÂMERA EM TÓQUIO – DOIS VIAJANTES: CHRIS MARKER E
WIM WENDERS
Regiane Akemi Ishii - Unicamp
RESUMO: A partir de dois documentários realizados em Tóquio na década de 1980 por
diretores não japoneses, Sem Sol (Sans Soleil, 1983), de Chris Marker, e Tokyo Ga (1985),
de Wim Wenders, buscamos investigar como as camadas visuais deste espaço urbano e
seus elementos estéticos são filmados pelo corpo estrangeiro. Os ensaios fílmicos
apresentam como questionamento comum o papel fundamental da câmera para a
constituição de memórias. Enquanto para Marker, Tóquio seria o lugar onde os “fragmentos
de guerra estão encaixados na vida corrente”, Wenders parte em busca da cidade do diretor
japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes ele considera um “tesouro sagrado do cinema”. Para
Marker e Wenders, o mais profano e o mais sagrado caminham lado a lado na capital
japonesa. Entre as recorrências podemos citar os bares de Shinjuku, os pequenos rituais
religiosos, os neons das fachadas dos prédios, a estética da culinária, as galerias
subterrâneas das estações de metrô... Portanto, o que nos interessa é refletir sobre a
formação de um imaginário acerca da paisagem urbana de Tóquio. Para tal, faz-se presente
a ideia de emoção geográfica, desenvolvida por Giuliana Bruno em Atlas of Emotion –
Journeys in Art, Architecture, and Film (2002).
Palavras-chave: cidade e cinema, Tóquio, emoção geográfica.
ABSTRACT: From two documentaries made in Tokyo in the 1980s by non-Japanese
directors, Sunless (Sans Soleil, 1983), by Chris Marker, and Tokyo Ga (1985), by Wim
Wenders, we aim to investigate how visual layers of this urban space and its aesthetic
elements are filmed by a foreign body. These filmic essays present as a common question
the fundamental role of the camera for the formation of memories. While for Marker, Tokyo
would be the place where the "fragments of war are embedded in everyday life", Wenders
goes to search the city of the Japanese director Yasujiro Ozu, whose films he considers a
"sacred treasure of the cinema". To Marker and Wenders, the most profane and the most
sacred go hand in hand in the Japanese capital. Between the similarities we can cite the bars
of Shinjuku, the small religious rituals, the neons of the facades of buildings, the aesthetics of
cooking, the tunnels of the subway stations... What interests us is to discuss the formation of
a imagery about the urban landscape of Tokyo. To this end, it is importante the idea of
geographical emotion, developed by Giuliana Bruno in Atlas of Emotion - Journeys in Art,
Architecture, and Film (2002).
Keywords: city and cinema, Tokyo, geographic emotion.
Dois diretores europeus levam suas câmeras à Tóquio na década de 1980: o
alemão Wim Wenders, em Tokyo Ga (1985), e o francês Chris Marker, em Sem Sol
(Sans Soleil, 1983). Estamos localizados na capital japonesa do pós-guerra, que já
havia exibido seus espaços reconstruídos nos Jogos Olímpicos de 1964 e provado
sua recuperação econômica, mas ainda não havia sido o foco da profusão de
produções audiovisuais estrangeiras como acompanhamos na última década em
747
ficções como Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia
Coppola, Babel (2005), de Alejandro González Iñarritu, Enter the Void (2009), de
Gaspar Noe, Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love, 2012), de Abbas
Kiarostami, entre tantos outros títulos.
Nos documentários de que trataremos, a presença fundamental de Tóquio
convoca questionamentos sobre o próprio ato de filmar e o papel da câmera para a
constituição de memórias. Como o cinema afetaria a formulação de lembranças? Os
deslocamentos povoam nosso passado imaginário de maneiras diferentes quando
registrados? Seria Tóquio uma cidade que “pede” para ser filmada?
Frequentemente meus sonhos se passam nas lojas de Tóquio, nas galerias
subterrâneas que duplicam a cidade. Começo a me perguntar se tais
sonhos são meus ou se fazem parte de um conjunto, um gigantesco sonho
coletivo, da qual a cidade inteira seria uma projeção.
Eu me lembro daquele mês de janeiro em Tóquio ou das imagens que filmei
em janeiro em Tóquio. Elas foram substituídas em minha memória, elas são
minha memória. Pergunto-me como se lembram as pessoas que não filmam,
que não tiram fotos, que não gravam. Como fazia a humanidade para se
lembrar? (Trechos de Sem Sol, 1983, de Chris Marker)
Eu não tenho memória de nada. Simplesmente não lembro mais. Eu sei que
estive em Tóquio, sei que foi na primavera de 1983, eu sei. Eu estava com a
câmera e fiz imagens. Essas imagens agora existem e tornaram-se a minha
memória. (...) E, hoje, minhas próprias imagens parecem ter sido inventadas,
como quando, após muito tempo, você encontra um pedaço de papel no
qual você transcreveu um sonho na primeira hora da manhã. Você lê com
assombro e não reconhece nada, como se tivesse sido o sonho de outra
pessoa. (Trecho de Tokyo Ga, 1985, de Wim Wenders)
Gostaríamos de ter como panorama a interdisciplinaridade entre cinema,
arquitetura e corpo, proposta por Giuliana Bruno em Atlas of Emotion: Journeys in
Art, Architecture and Film, lançado em 2002. Sem uma cronologia rígida, o próprio
texto da autora organiza-se como uma jornada pela história das artes espaço-visuais,
inserindo o cinema como produto da modernidade e da cultura de viagem e herdeiro
da função de gerar uma emoção geográfica. Aqui, o próprio visionamento de filmes é
tido como uma forma imaginária de flânerie. As sensibilidades relacionadas à
viagem não estão somente nas histórias e narrativas destes filmes, mas no cinema
em si.
A necessidade de estabelecer parâmetros espaciais e (des) localizar o
corpo (...) é de fato uma obsessão emocional do filme. (...) No começo de
um filme, assim como no início da visita de um viajante a uma cidade, o
espectador é pensado para confrontar uma emoção geográfica. (BRUNO,
748
2007, p. 271)
Para os dois diretores, o mais profano e o mais sagrado caminham lado a
lado na capital japonesa. Há muitas recorrências em ambos os documentários: as
vitrines, os jogos eletrônicos, os bares de Shinjuku, os adolescentes dançando nos
parques públicos, os pequenos rituais em cemitérios, os carros em movimento nas
vias expressas, os neons das fachadas, a estética da comida, as horas em frente à
televisão japonesa no quarto de hotel, a influência ocidental, as galerias
subterrâneas das estações de metrô, os tíquetes nas catracas do metrô lotado, as
pessoas vistas pela janela do trem ao lado...
Enquanto Wenders é marcado por uma nostalgia pelos filmes do diretor
japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes ele considera um “tesouro sagrado do cinema”, o
viajante do filme de Marker conta que o “contínuo vai e vem não é procura de
contrastes, é uma viagem aos dois extremos da sobrevivência”. Guiné-Bissau e
Japão seriam os extremos. O primeiro viaja na primavera, quando a cidade está
povoada pelas cerejeiras floridas, o segundo visita a cidade no inverno, estação em
que as jovens tiram seus quimonos do armário.
“O afastamento dos países repara, de algum modo, a excessiva proximidade
dos tempos” é a citação de Jean Racine que abre Sem Sol. A partir daí, uma voz
feminina lê as cartas escritas pelo viajante que percorre a Islândia, Japão, GuinéBissau e os Estados Unidos. Para ele, Tóquio seria o lugar onde os “fragmentos de
guerra estão encaixados na vida corrente”.
É importante citar que Chris Marker já havia viajado ao Japão antes. Em Le
Mystère Koumiko (1967), filmado durante as Olimpíadas de 1964, apresenta a
personagem Kumiko. Entre os 20 e 30 anos, “ela não é exemplo de nada, nem de
classe, nem de raça”, diz o narrador. “E ao redor dela, o Japão”, prossegue. Depois
de capturar o rosto de Kumiko na plateia de um grande estádio, a câmera percorre
Tóquio ao seu lado, fazendo perguntas como “você vê a beleza japonesa como nós
vemos?”. Intercaladas com momentos dos jogos olímpicos estão sequências da
cidade à noite e suas fachadas iluminadas pelas propagandas, como também de
grupos dissidentes e protestos políticos, dois elementos que serão retomados em
Sem Sol.
749
Também nas proposições de Giuliana Bruno, não apenas se pensa como a
arquitetura é observada, mas também como se dá a presença no espaço. São
enfatizadas as conexões entre motion (movimento) e emotion (emoção), e entre
sight, expressão relacionada à visão, e site, como ideia de espaço. Em artigo
anterior, Site-seeing: Architecture and the Moving Image (1997), a autora inicia o
texto introduzindo um jogo com a palavra sightseeing (atividade de visitar lugares
como um turista).
Fazendo a mudança para a expressão siteseeing, a pesquisadora propõe
uma mudança teórica, um deslocamento do ótico para o háptico, trazendo o aspecto
tátil para pensar o cinema dentro do terreno das artes espaciais. Para ela, o
espectador de filmes havia sido fixado como um voyeur. Em relação ao novo
siteseeing, o espectador seria mais um voyageur. Pensar as habitações e travessias
pelo espaço próprias à imagem em movimento apenas nos limites do sight
(habilidade de ver) seria insuficiente; fez-se necessário, no pensamento de Bruno,
dar luz à dimensão espaço-corpórea do cinema:
Percebidos por meio de hábito e tato, cinema e arquitetura são ambos uma
questão de toque. O caminho háptico destas duas práticas espaciais toca a
esfera física. Suas questões cinéticas são carnais. Em suas ficções
arquitetônicas, há uma ligação tangível entre espaço e desejo. O espaço
desencadeia o desejo. (...) Proporcionando espaço para viver e alojando
lugares de biografia, o cinema e a arquitetura são constantemente
reinventados por histórias da carne. (BRUNO, 1997, p. 14)
Em Sem Sol, a primeira vista que temos de Tóquio é um plano geral da
cidade em que um longo trem entra e sai de quadro. Em outro momento, o viajante
escreve: “Tóquio é uma cidade cortada por trens, costurada por fios elétricos. Ela
mostra suas veias”. Ao longo do filme, os planos gerais são mesclados com detalhes
da vida urbana: a vitrine de uma loja de departamentos, o rosto de um homem no
bar, os tíquetes na catraca do metrô: “tudo lhe interessava. (...) As alegrias simples
da volta ao país, ao lar, à casa da família, que ele ignorava, doze milhões de
pessoas anônimas poderiam dar-lhe”. A sensação de estar distante de sua terra
natal permeia as imagens do documentário. São visões de quem está entregue ao
anonimato, sem pudores para observar o que parece enigmático ou estranho e tecer
suas próprias hipóteses. “Não compreender aumenta o prazer”, escreve o viajante.
Ou, citando novamente Bruno, “o espaço desencadeia o desejo”.
750
A Tóquio de Chris Marker também apresenta figuras que geralmente passam
ilesas às câmeras estrangeiras: os marginalizados, os manifestantes políticos, os
pobres, como os senhores que vão até as lojas de televisão para conseguir assistir
ao campeonato de sumô. Insistentemente o diretor tenta se aproximar de outras
camadas da cidade, trazendo várias sequências dedicadas aos rituais, como a visita
aos templos no Ano Novo: “uma prece que se insere na vida sem interrompê-la”.
Enquanto o tom alucinatório permeia o filme de Marker, a nostalgia marca a
Tóquio de Wim Wenders, que empreendeu uma viagem ao Japão entre as filmagens
de seu longa-metragem Paris, Texas (1984). O diretor alemão parece não desistir de
tentar encontrar o equilíbrio que relaciona com os filmes de Ozu, considerado por
muitos “o mais japonês” dentre os diretores do país. As primeiras imagens de seu
documentário são, na verdade, os créditos iniciais de Era uma Vez em Tóquio
(Tokyo Monogatari, 1953), do diretor japonês. Sobre tais imagens, nos deparamos
com a voz off de Wenders, que em nenhum momento do filme aparecerá ele mesmo
em quadro. Para ele, os filmes de Ozu tratavam sempre das mesmas histórias,
vividas pelas mesmas personagens, na mesma cidade, Tóquio. Em suas palavras,
esses filmes possuíam uma visão que ainda alcançava a “ordem num mundo sem
ordem”.
Foi só ao ver um garotinho no metrô, um menino que simplesmente não
queria andar mais, que percebi porque minhas imagens de Tóquio me
pareciam como as de um sonâmbulo. Nenhuma outra cidade junto com o
seu povo me parecia tão familiar e tão íntima muito antes de conseguir
visita-la graças aos filmes de Ozu. Eu queria redescobrir essa familiaridade
e era essa intimidade que minhas imagens de Tóquio buscavam. Nesse
garotinho no metrô eu reconheci muitas das crianças rebeldes dos filmes de
Ozu. Ou talvez eu apenas quisesse reconhecer. Talvez eu estivesse
procurando algo que não existia mais. (Trecho de Tokyo Ga, 1985, de Wim
Wenders)
O passado, representado pelos filmes de Ozu, não poderia estar
completamente perdido, e assim se manifesta dentre as diversas possibilidades que
a câmera de Wenders empenha-se em captar. Para Gilles Deleuze, Ozu “construiu
num contexto japonês a primeira obra a desenvolver situações óticas e sonoras
puras” (2007, p. 23). Seus tempos mortos e espaços vazios, sem personagens e
movimentos, adquirem uma autonomia que atinge o absoluto, são contemplações
puras, o tempo em si. A identidade do mental e do físico, do real e do imaginário, do
sujeito e do objeto, do mundo e do eu, em Ozu, aparecem como centro das
751
ambições de Wenders.
Não à toa, o diretor se detém às imagens realizadas dentro de trens. As
sequências de trens (e em trens) são famosas na filmografia de Ozu. Podemos
relembrar filmes de diferentes fases, como Meninos de Tóquio (Otona no miru ehon Umarete wa mita keredo, 1932) e Flor do Equinócio (Higanbana, 1958), além do já
citado Era uma Vez em Tóquio.
Diferente
do
que
vai
ocorrer
por
diversas
vezes
na
construção
cinematográfica da cidade de Tóquio, a câmera de Wenders se detém em planos
fixos, por vezes longos, a cada elemento. Sua atenção é conquistada pelo espelho
retrovisor do táxi, pelo mapa do metrô, pelas crianças brincando no cemitério cheio
de flores da primavera, pela plataforma do trem, pelo campo artificial de golfe.
Tóquio como clichê de grande metrópole, conhecida pelo seu frenesi e profusão de
imagens e luzes, foi bastante filmada de maneira frenética, mas não é o que
encontramos em Tokyo Ga.
Como uma metalinguagem poética, o diretor também faz uso de recursos
formais para experimentar o modo de filmar de Ozu. Em um beco de Shinjuku à
noite, Wenders posiciona sua câmera e tenta filmar com uma lente 50 mm, a
preferida do diretor japonês. Há também dois depoimentos com profissionais que
trabalharam por décadas com Ozu e que contam como era seu método no set. O
primeiro mostra o ator Chishu Ryu, que atuou em filmes como Era uma Vez em
Tóquio e Pai e Filha (Banshun, 1949). Não é à toa que o diretor escolhe filmar Ryu
sentado no tatami, posição em que já foi retratado tantas vezes por Ozu. A discrição
de suas memórias combina-se com imagens que tentam vislumbrar uma
aproximação com essa atmosfera sóbria. Algumas vezes o ator sai de quadro para
dar espaço a gotas escorrendo pelo vidro da janela ou por uma cerejeira desfocada
ao fundo.
Depois de perambular nas madrugadas pelos salões de pachinko, a penúltima
sequência do filme (antes apenas de mais imagens de Era uma Vez em Tóquio) é
também um depoimento. Yuuharu Atsuta foi diretor de fotografia de muitos filmes de
Ozu e monta uma câmera em um tripé mais baixo criado especialmente para os
filmes de Ozu para demonstrar qual era a altura utilizada para seus planos. Atsuta
752
também conta que as poucas sequências que não eram realizadas em set, mas sim
em locações reais, eram as de trens. Após a exibição do uso da câmera e de seu
depoimento emocionado sobre a transformação que o trabalho com Ozu lhe causou,
Atsuta tenta segurar as lágrimas e pede para ser deixado sozinho. A câmera tenta
encontrar o seu lugar e termina, um tanto quanto desajeitada, na cortina da sala de
entrevista.
Entre os depoimentos de Ryu e Atsuta, o filme inclui um encontro com o
diretor Werner Herzog, outro nome forte do chamado Cinema Novo Alemão. No topo
da Torre de Tóquio, em tom de manifesto e de denúncia, Herzog esbraveja:
Isso é tão simplesmente poluição visual. Quase não existem mais imagens
possíveis. Teríamos que fazer uma escavação arqueológica. É preciso
vasculhar essa paisagem violada para encontrar alguma coisa. Hoje em dia,
existem muitas poucas pessoas no mundo que arriscam algo em prol da
necessidade de termos imagens adequadas. Temos de encarar essa guerra,
a fim de solucionar tal necessidade. Eu lamento que, por exemplo, às vezes
eu tenha de subir oito mil metros montanha acima para obter imagens claras,
puras e verdadeiras. Aqui quase não tem isso, é preciso procurar muito. Eu
viajaria para Marte ou Saturno no próximo foguete. Para mim, seria mais
fácil do que aqui na Terra descobrir o que constitui as imagens verdadeiras.
(Depoimento de Werner Herzog em Tokyo Ga, de Wim Wenders)
Logo em seguida, Wenders prossegue e afirma, em voz off, que “não importa
o quanto eu entendia a busca de Herzog por imagens transparentes e puras, as
imagens que eu buscava só podiam ser encontradas aqui embaixo, no caos da
cidade. Apesar de tudo, eu não conseguia não me impressionar com Tóquio”. A
partir da proposição de Wim Wenders em fazer um documentário tendo como mote
os filmes de Ozu e do depoimento de Werner Herzog sobre o desespero frente a
uma “paisagem violada”, fica claro a diferença entre suas investigações.
Enquanto o primeiro produz imagens nostálgicas, o segundo busca a todo
custo, como em uma guerra, as imagens iniciáticas. Herzog tem levado ao limite a
“escavação arqueológica” até os dias de hoje. Em um de seus mais recentes
documentários, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams,
2010), o diretor acessa cavernas do sudeste francês, filma pinturas pré-históricas e
encerra o filme com jacarés albinos.
Aberta em 1958, a Torre de Tóquio funciona como ponto de telecomunicação
e de turismo e é tido como símbolo da industrialização e crescimento econômico do
753
pós-guerra. Com 333m de altura, possui dois decks de visitação abertos ao público
(150m e 250m). Em maio de 2012 foi inaugurada uma nova torre de
telecomunicação que também serve como ponto turístico, a Tokyo Skytree, com 634
m de altura, reforçando a oferta de uma vista clichê sobre Tóquio a partir de grandes
alturas.
Ao contrário disso, Wenders permanece, na maior parte do tempo, no meio do
caos da cidade. A calçada, a partir da janela de um carro, é vista na altura dos
pedestres e não em direção ao topo dos prédios. O diretor parece, em diferentes
momentos, tentar encontrar um ponto fixo na paisagem urbana para se descolar da
“poluição visual”. Elementos que variam do mapa do metrô à vitrine de um
restaurante. Depois, o diretor retornaria à cidade em Notebook on Cities and Clothes
(1989), em que retrata o estilista japonês Yohji Yamamoto.
O que parece unir Tokyo Ga e Sem Sol são a duração dos planos e o tempo
de permanência em alguns lugares, como as galerias subterrâneas das estações de
trem. Os diretores não passam correndo, parecem insistir na potência daquele visual,
se detendo à cidade de Tóquio como lugar possível onde disparar suas hipóteses e
reflexões. Ali, podem discorrer sobre questões relacionadas à memória e,
destacadamente sobre o ato de filmar em si. Ambos da década de 1980, os filmes
ainda carregam o passado da guerra e o peso da reconstrução, ao lado de certo ar
futurista causado pela arquitetura intrigante.
Shinjuku, iluminada por neons e cheia de becos e ruelas, e Ginza, com suas
largas avenidas, são os dois bairros mais recorrentes nesta produção até os anos 80
(os filmes das décadas seguintes dariam mais atenção a regiões como Shibuya,
Harajuku e Omotesando). São por suas ruas que caminham os europeus Chris
Marker e Wim Wenders, com olhares e reflexões para além da dicotomia clichê entre
as tradições e o frenesi da grande cidade. Também se faz presente a influência de
diretores japoneses, marcadamente Yasujiro Ozu. “A imagem cinematográfica de
Tóquio, ao longo das décadas do pós-guerra, se uniu com as texturas da cidade
inteira em formas visuais que demonstraram a ambivalência e o poder excêntrico em
que a cidade se baseou” (BARBER, 2002, p. 147).
Como um complexo trânsito de identificações, onde as narrativas se
754
alimentam da relação intensa entre os corpos e o espaço urbano, o cinema aparece
como o meio em que a perambulação conecta a experiência física com questões de
nação. Tendo em mente que o “espaço desencadeia o desejo”, temos um terreno
fértil para explorar os desejos imbricados nos fascínios e embates com a paisagem
urbana a partir de quem é de fora. Gostaríamos de pensar Tóquio como uma cidade
cinematográfica delineada como um mapa de passagens, migrações e erotismos.
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Regiane Akemi Ishii
Graduada em Comunicação Social - Midialogia pela Unicamp, atualmente desenvolve a
pesquisa de mestrado “Tóquio no Cinema Contemporâneo” na mesma universidade. Cursou
intercâmbio na Universidade de Santiago de Chile. Atuou como jornalista cultural em
diferentes veículos, trabalhando como repórter de exposições na Folha de S. Paulo. Desde
2013 integra a equipe de produção de conteúdo do Educativo Bienal.
755
O CANTO DA CIGARRA: MONO NO AWARE NA OBRA DE HIROKAZU
KOREEDA
Paulo André Gomes Soares - UERJ
RESUMO: O trabalho proposto pretende apresentar a obra cinematográfica do diretor
japonês Hirokazu Koreeda, tendo como foco de estudo a presença da estética “mono no
aware” em seu trabalho. Mono no aware é um termo presente nos estudos teóricos de
diferentes artes japonesas e até de aspectos sociais nipônicos que diz respeito ao pathos
das coisas e se caracteriza por agregar um tom de melancolia provocado pela consciência
da transitoriedade e efemeridade daquilo que nos cerca e principalmente da natureza. Já o
cinema de Hirokazu Koreeda, fortemente marcado por explorar as relações familiares e suas
diferentes gerações, nos convida a refletir sobre o tempo que passa e movimenta a vida.
Através de análises de aspectos narrativos e visuais em sua obra, são construídas também
algumas pontes com o cinema do mestre Yasujiro Ozu, grande referência no trabalho de
Koreeda, de forma a tentar entender como Koreeda desenvolve sua própria poética onde o
tempo pode ser considerado um dos seus pontos centrais.
Palavras-chave: mono no aware, Hirokazu Koreeda, cinema, tempo
ABSTRACT: The proposed work aims to present the cinematic work of the Japanese
director Hirokazu Koreeda , focusing on the study of the presence of the aesthetic " mono no
aware " in his work . Mono no aware is present in theoretical studies of various Japanese
arts and even in social aspects with regard to the pathos of things and it is characterized by
adding a tone of melancholy caused by the awareness of transience and ephemerality of the
things around us and especially the nature. About Hirokazu Koreeda's filmography, it is
strongly marked by exploring family relationships and their different generations, which
invites us to reflect on the time that passes and moves life . Through analysis of narrative
and visual aspects in his work , I also aim to build some bridges with the work of Yasujiro
Ozu, the great reference work Koreeda , as an attempt to understand how Koreeda develops
its own poetics where time can be considered a the central points .
Keywords: mono no aware, Hirokazu Koreeda, cinema, time
A percepção humana sobre o tempo sempre foi uma característica inquietante
dentro de todas as sociedades, independente de seus contextos culturais e
geográficos. A passagem do tempo inexoravelmente atinge a tudo e a todos sem
nenhuma discriminação. A única certeza que nos é dada quanto a todas as coisas
vivas é que um dia elas perecerão. E não é a toa que um grande número de obras
de arte é inspirado justamente por essa noção do fluxo devastador do tempo. A
própria gênese da criação artística nas artes visuais está atrelada a essa noção.
Segundo André Bazin (1991), uma das forças que move as artes visuais é
justamente essa necessidade de se combater o tempo, exorcizá-lo, atingindo uma
756
perenidade da forma.
Dependendo do contexto histórico e cultural, essa angústia em relação ao
tempo toma a forma de diferentes expressões artísticas. Enquanto que no Ocidente
muitas vezes assume-se um tom obsessivo e pessimista do espectro da morte
através da vanitas, o Japão surge com o conceito de mono no aware, trazendo uma
melancolia agridoce por meio da contemplação das coisas. Normalmente traduzido
como o pathos das coisas, a ideia de mono no aware está ligada a noção de uma
consciência e apreciação da transitoriedade e efemeridade das coisas e da natureza.
Ele sugere uma beleza que, apesar de frágil, cria uma poderosa experiência no
observador, uma vez que ela só pode ser desfrutada em um instante ou tempo
específico.
Tal fenômeno não está atrelado apenas às artes, mas também ao próprio
comportamento social dos japoneses. Apesar do conceito ter sido cunhado pelo
intelectual Motoori Norinaga no século XVIII, a princípio para definir o sentimento
evocado na literatura clássica do período Heian, o conceito também é expandido
para o modo de ser dos japoneses em aspectos gerais. Um exemplo disso é o
costume tradicional japonês do hanami, o ato de contemplar a beleza do
florescimento em massa das cerejeiras que acontece uma vez ao ano. O
acontecimento se dá na primavera, após um longo e rígido inverno, durante um curto
período que pode variar entre uma semana a dez dias e mobiliza grande parte da
população motivada a apreciar essa beleza de ordem tão efêmera. Mono no aware,
então, carrega consigo uma carga de tristeza e melancolia banhada pela beleza e
delicadeza do instante.
No que diz respeito ao campo cinematográfico alguns autores japoneses,
como Hirokazu Koreeda, se destacam em apresentar aspectos de mono no aware
na mise-en-scene. Antes de introduzir a obra de Koreeda, no entanto, eu preciso
apresentar algumas considerações sobre o cinema feito por Yasujiro Ozu, que
exerce tamanha influência na obra de Koreeda.
Quando falamos de um estilo característico de certo diretor, na maior parte
das vezes nos referimos a uma reprodução de códigos cinematográficos que tal
autor decidiu priorizar ou aprimorar, mas que de uma certa forma são herdados da
757
própria indústria cinematográfica. No caso de Ozu, durante o correr da sua carreira,
veio a desenvolver uma abordagem própria do fazer cinema.
Num meio caracterizado por uma linguagem grandiloquente cheia de
excessos, que constantemente apela para o grotesco, o grandioso e o trágico, Ozu
se foca em algo, que até então estava sempre à sombra, quase imperceptível, que é
o cotidiano. O cotidiano que pertence à insignificância, um cotidiano desprovido de
mistérios e aventuras, um cotidiano que aparece no cinema quase como o vazio que
aparece para a pintura japonesa, e marcado principalmente pela delicadeza e leveza.
Esse cotidiano passa um singelo sentimento de passagem de tempo e de fluxo da
vida, com suas idas e vindas, ganhos e perdas, nascimentos e mortes, focando
principalmente na casa, que se torna esse lugar de passagem e de fluxo de
momentos.
Tomando por exemplo o filme Era uma vez em Tóquio, o filme se concentra
nas relações pessoais de uma família, e trata de questões como o casamento, o
conflito de gerações, decepção e morte. O enredo é simples, sem muita ação
ocorrendo na tela, mas Ozu almeja que o público preste atenção a seus
personagens,
e
às
complexas
relações
entre
eles.
Dentre
as
técnicas
cinematográficas utilizadas, destaca-se um recurso desenvolvido por Ozu e
recorrente em sua obra que são os chamados “pillow shots”, planos de corte que
não exercem uma função muito nítida ou óbvia no desenrolar da narrativa. São
planos de objetos, espaços vazios ou paisagens que chegam a durar por um tempo
significantemente longo. Em “Era uma vez em Tóquio”, os primeiros planos servem
basicamente para nos contextualizar e nos dar o tom do filme que vamos assistir.
Vemos um grande monumento de pedra próximo a um rio com barcos passando,
crianças indo para escola, montanhas, telhados de casas, trens. Para criar uma
simetria e um ciclo fechado, Ozu termina o filme da mesma forma que começou, o
mesmo monumento de pedra, outros barcos passando até terminar com um “Fim”
escrito sobre um tecido de linho (que também aparece no início ao mostrar os
créditos iniciais. )
Esses pillow shots servem como instantes autônomos e mundanos de
extrema simplicidade que reforçam a ideia de mono no aware e são eternizados pela
758
câmera, cumprindo a função da arte examinada por Bazin. São fragmentos de
imagens cristalizadas (DELEUZE, 1985) cada qual com sua carga dramática, ora
para indicar um ritmo ou para contextualizar o espectador, ora apenas para nos dar
um tempo de reflexão sobre o tempo que passou e o que estar por vir.
Still dos primeiros planos de Era uma vez em Tóquio (1953)
Outra técnica cunhada por Ozu, trata-se de um enquadramento que adaptase necessariamente a uma realidade tradicional japonesa, conhecido como “plano
tatami”. Nele, os personagens são enquadrados por uma câmera estabelecida a
uma baixa altura, cerca de 80 centímetros do chão, que posiciona o espectador mais
ou menos na altura dos olhos de um personagem que esteja sentado de joelhos
sobre um tatami, como se o próprio espectador estivesse presente na sala
acompanhando os outros personagens na tela. Eventualmente Ozu utiliza planos de
close-ups médios de personagens, para destacar suas falas que nunca são
interrompidas. São raras as vezes em que há um corte de discurso dos diálogos de
Ozu. Nos seus filmes, todos os personagens tem o direito de serem ouvidos em sua
integridade. Assim, podemos apreender primeiramente o espaço em si (que muitas
vezes pode aparecer vazio) que proporciona o livre fluxo de acontecimentos da vida,
que passam num instante e eventualmente o esvazia novamente. Entramos na casa,
que é onde os acontecimentos mais importantes se revelam, conhecemos a
intimidade dos personagens que está longe de ser algo sexualizado, mas sim
desdramatizado, pautado na apreensão dos sentimentos mais delicados que podem
gerar dos relacionamentos e conflitos que por ali passam.
759
Por trabalhar o cinema de forma tão única em sua época, Ozu é considerado
o mais japoneses dos diretores japoneses, também por incorporar em sua obra
conceitos estéticos tão intrínsecos à cultura japonesa, como o mono no aware. Na
contemporaneidade, Hirokazu Koreeda surge, dando continuidade a essa vertente
atualizando-a ao seu tempo. Assim como em Ozu, as relações familiares (em toda
sua complexidade e simplicidade) é um tema caro a Koreeda, que tem um apreço
especial por trabalhar com a perspectiva de personagens infantes. Seus filmes
tangem temas como o tempo, gerações, família, cotidiano, vida e morte.
Principalmente em sua obra Aruitemo Aruitemo (normalmente traduzido como
“Ainda a caminhar”) considerada uma grande homenagem a Yasujiro Ozu, por conta
da temática e da forma de se filmar. Trata-se de uma serena comédia dramática
sobre uma família que se reúne todo ano para celebrar a morte do filho mais velho.
Tudo é desenvolvido de maneira bem simples, a narrativa não nos conduz a um
objetivo ou meta, não há protagonistas ou antagonistas, nem clímax ou reviravoltas.
O filme começa com imagens simples e orgânicas, tais como vegetais frescos sendo
cortados e preparados para uma refeição, conduzidas por diálogos banais, mas que
te prendem a atenção. Logo, o título do filme aparece sobre um plano pitoresco de
montanhas, casas, o mar e um trem que passa cortando o quadro. De forma
parecida o filme termina, lembrando muito Era uma vez em Tóquio.
Tela título de Aruitemo Aruitemo (2008)
Apesar da serenidade que conduz a trama, seus personagens e suas
preocupações giram em torno da presença da morte. Não apenas a do filho falecido,
mas também daquela que se aproxima com a velhice dos pais. E apesar de não
760
haver nenhum protagonista central, o filho mais novo do casal de idosos, Ryota, às
vezes toma o centro da trama, uma vez que ele acaba por viver na sombra do irmão
falecido, nunca alcançando a expectativa do pai, um médico aposentado, de seguir
com o consultório médico da família, plano esse reservado ao primogênito que já
não mais existe. Além disso, Ryota é recém-casado com uma viúva que traz um filho
de seu antigo casamento, o que em alguns momentos gera alguns constrangimentos
em relação à aceitação por parte dos pais de Ryota. E assim, durante o decorrer de
um dia em que é retratado no filme, vemos como esse ambiente tão familiar vira um
lar de relações mal resolvidas e de perdas. O que pode parecer à primeira vista
como situações de alta carga negativa, é trabalhado por Koreeda com extrema
beleza sob um ritmo delicado e até mesmo aconchegante.
Assim como os pillow shots de Ozu, Hirokazu Koreeda também se utiliza dos
planos tatami para retratar as situações corriqueiras de dentro de casa. Como o filme
é muito pautado no diálogo, Koreeda tenta enquadrar todos os personagens em seu
plano para acompanharmos o fluxo da conversa. Aqui os planos médios de close up
são mais para destacar reações do que falas em si. Se em Ozu, os personagens tem
o direito de se fazer ouvir, em Koreeda os personagens tem o direito de sentir e de
expressar seus sentimentos. Além disso, o uso que Koreeda faz de símbolos é
essencial para atribuir ao mono no aware uma importância particular, promovendo
uma reflexão pessoal sobre as imagens, em vez de interpretações dramáticas
pautadas na experiência. Durante uma cena crucial em que a avó se lembra com
tristeza o dia da morte de seu filho através de um monólogo, ela fala sobre como ele
deixou seus sapatos recém-engraxados na porta, saiu e nunca mais voltou para
casa. Ao escolher não mostrar a morte do filho na tela, e por poeticamente
renderizar uma única e solene imagem - um par vazio de sapatos - como um
lembrete de sua saída definitiva do mundo, Koreeda capta perfeitamente a essência
do mono no aware. A imagem mental dos sapatos do filho substitui o potencial
melodrama de representar sua morte, oferecendo ao público algum tempo para
contemplar este trágico acontecimento de forma mais singela, ao invés de forçá-los
a viver com ele. Estes singelos momentos de meditação, são combinados com
outros símbolos significativos no filme também. Em uma cena menor, um grupo de
crianças arranca um galho de uma flor de cor rosada (que apresenta alguma
semelhança com a flor de cerejeira) de uma árvore e alegremente trazem-na para
761
casa de seus avós. A flor é vista mais tarde em um plano noturno, morrendo em um
copo de água, enquanto um riso leve vindo da família é ouvido ao fundo.
Essas e outras questões fazem de Aruitemo Aruitemo, um filme extramente
simbólico que capta o espírito mais singelo do japonês de forma tão acurada, quanto
nos filmes de Ozu. O filme é todo desenvolvido sob um calor de verão que nos
remete a uma aconchegante preguiça melancólica. Enquanto que esse tom quente
nos é transmitido pelos leques abanando em mãos incessantes nos filmes de Ozu.
Aqui ele é evocado pelos ventiladores espalhados pela casa, pelo sabor da melancia
gelada e pelos incessantes sons das cigarras, cujos cantos permeiam o filme, muitas
vezes sendo a principal atenção de alguns planos, como se o próprio som delas
fosse a causa do calor.
Still de Aruitemo Aruitemo (2008), momento em que as crianças pegam a flor
Outros filmes de destaque na filmografia de Hirokazu Koreeda que explora
aspectos similares a Aruitemo Aruitemo são “Ninguém pode saber”, “O que mais
desejo” e o mais recente “Pais e Filhos”. Neles, Koreeda recorre a temas já
abordados aqui como relações familiares e perdas, mas sob ponto de vista de
crianças. A presença do mono no aware aparece principalmente na forma como as
crianças apreendem um mundo que lhes é novo. Principalmente em “Ninguém pode
saber” e em “O que mais desejo”, é notável uma preocupação maior em retratar
detalhes e instantes em detrimento de uma narrativa muito linear de causa e efeito.
762
Ambos são filmes mais contemplativos, assim como Aruitemo Aruitemo, do que em
relação ao “Pais e Filhos”, em que o desenrolar da história é mais bem elaborado de
acordo com uma narrativa clássica. Ainda assim “Pais e Filhos” não negligencia os
detalhes visuais para uma boa fruição da obra, segundo o próprio Koreeda (2014) foi
necessário ilustrar cuidadosamente os detalhes das duas famílias retratadas para
evitar que os espectadores se interessassem unicamente na história. Enquanto que
“Ninguém pode saber” nos conta a trágica história baseada em fatos reais sobre
quatro crianças abandonadas pela mãe, “O que mais desejo” nos mostra a história
de dois irmãos de pais separados e que agora vivem em cidades diferentes. Em
ambos as crianças lidam com seus problemas de forma independente, sejam eles
sobreviver com a ausência da mãe ou achar uma solução para ter sua família
reunida novamente. Em ambos os filmes, temos crianças que se encontram em
famílias dissolvidas por forças das circunstâncias, mas ainda assim se encantam
com os pequenos detalhes que as cercam.
Still de “Ninguém pode saber” (2004)
763
Still de “O que mais desejo” (2011)
Um caso a se citar em “O que mais desejo” é sobre o pequeno Koichi que
deseja que o vulcão ativo que se encontra em sua nova cidade entre em erupção,
pois assim ele poderá sair de lá e ter seus pais reunidos. Quando ele ouve dizer que
quando dois trens-bala se cruzam, uma energia é gerada com força suficiente pra se
realizar um milagre, ele combina com amigos e com seu irmão de se encontrar na
cidade onde o encontro dos trens é realizado para juntos fazerem seus pedidos. No
momento exato do cruzamento dos trens, Koichi desiste de seu pedido ao se
lembrar de todos os momentos fugazes mas de grande importância para e ele e
àqueles a sua volta na sua nova cidade. Uma erupção vulcânica certamente
eliminaria todos esses momentos de se repetirem. Assim, os irmãos voltam para
suas casas em suas respectivas cidades, não mais tão preocupados em grandes
dramas familiares mas nos pequenos prazeres que a vida há de lhes trazer ao longo
dessa jornada, sejam eles o gosto suave do manju feito pelo avô, o som de sinos de
bicicletas ou o som das cigarras no verão.
Aliás, é em “Pais e Filhos” que é revelado o grande segredo das
cigarras. Nessa história, duas famílias descobrem 6 anos depois que seus filhos
nasceram que os mesmos foram trocados na maternidade ao nascerem por uma
enfermeira ressentida. O maior impasse entre as famílias é se eles continuarão com
as crianças que criaram desde o nascimento ou se priorizarão os laços sanguíneos.
Nessa história um dos pais é um rígido arquiteto decepcionado com o filho que criou
764
pois o mesmo nunca atinge o estado de perfeição exigido pelo pai. Ao fazer uma
pesquisa de campo em uma floresta artificial na qual um projeto irá ser iniciado. O
biólogo responsável lhe explica que levaria cerca de 15 anos para as cigarras se
adaptarem a um novo ambiente, pois este é o tempo que elas levam para emergirem
a superfície, deixando seu estado de larva e iniciando a fase adulta. Este fato que
funciona como uma metáfora às crianças em seu novo lar, também funciona como
uma metáfora ao mono no aware. Após esses quinze anos em que as cigarras são
ninfas subterrâneas em busca de nutrientes, elas finalmente chegam a fase adulta,
momento em que emergem à superfície para acasalar e logo após morrerem. O
característico som que ouvimos durante o verão é justamente o canto de
acasalamento desses insetos que muito provavelmente não vão viver por mais de
uma semana. É ao mesmo tempo uma celebração de vida e morte, o que reforça
ainda mais o tom de mono no aware. Assim, apenas nos resta apreciar o verão e
suas belezas, pois elas são efêmeras e é preciso estar atento para apreciá-las no
momento certo.
Referências bibliográficas
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DELEUZE, Gilles. A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990 – (Cinema 02).
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Paulo André Gomes Soares
Bacharel em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atuou como
organizador e curador da mostra de cinema Oriente-se realizada no Instituto de Artes da
UERJ em 2004. Atualmente estuda na Escola de Cinema Darcy Ribeiro no curso de Direção
Cinematográfica.
765
BOLLYWOOD, IDENTIDADE CULTURAL E REPRESENTAÇÃO
Juily J. S. Manghirmalani - UFSCAR1
RESUMO: O texto pretende tratar dos filmes Dilwale Dulhania Le Jayenge (Aditya Chopra,
1995) e My Name is Khan (Karan Johar, 2010), ambos da enorme indústria cinematográfica
indiana conhecida popularmente como Bollywood, e que possuem suas diegeses
constituídas também fora da Índia, neste caso, Londres e São Francisco. Com o propósito
de estudar as relações entre as culturas representadas foram selecionados alguns
conceitos, entre eles, o da questão de identidade nacional pós-moderna, com influências da
crescente globalização. Dentro desta proposta, há o início do estudo sobre as
representações dos papéis femininos nos filmes indicados, que apresentam, em ambos os
filmes, comportamentos tradicionais além do início de um movimento, melhor, visto após a
influência do processo de globalização. Para melhor compreensão da narrativa indiana,
será necessária uma pequena introdução à sua mitologia, explanada na apresentação.
Palavras-chave: Bollywood, identidade cultural, hibridismo, globalização, representação.
ABSTRACT:The text aims to treat the movies Dilwale Dulhania Le Jayenge (Aditya Chopra,
1995) and My Name is Khan (Karan Johar , 2010), both from the huge Indian film industry
popularly known as Bollywood, that have made their diegeses also outside India, in this
case, London and San Francisco. In order to study the relationships between the cultures
represented, some concepts were selected, among them the question of post-modern
national identity, with influences of increasing globalization. Within this proposal, there is the
beginning of the study of the representations of women's roles in the chosen films,
presenting traditional behaviors as well, the top of a small movement best seen after the
influence of globalization. To better understand the Indian narrative, a short introduction to
Indians mythology, explained in the presentation will be required
Keywords: Bollywood, cultural identity, hybridism, globalization, representation.
1. Cinema, Identidade Nacional e Hibridismo
Falar de um cinema nacional é falar também da nação em que ele é
produzido e na qual está inserido. Benedict Anderson (2008) criou o conceito de
comunidade imaginada para se referir à ideia de nação e, através dele, podemos
perceber a importância dos discursos da cultura para a constituição das identidades
nacionais durante todo o século XX e, por que não, também o século XXI.
Para Anderson (2008, p. 34), a comunidade nacional é imaginada, pois a
maior parte de seus membros não poderá conhecer, nem ouvirá falar de todos os
seus companheiros, embora exista em seu imaginário a ideia de comunhão entre
eles; é soberana também, pois o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e
766
a Revolução Industrial “estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico
hierárquico de ordem divina”; e por último, pensa-se em “comunidade porque, a
nação é concebida como uma profunda camaradagem horizontal.”
Para a nação ser constituída, é preciso que haja um vínculo que una todas
as pessoas que pertençam a ela, no caso seria a história dessa cultura. Stuart Hall
(2010, p. 52) selecionou cinco elementos principais para explicar como a narrativa
de uma nação é contada: Há a narrativa da nação, da forma em que essa é narrada
na literatura, mídia e cultura popular; “Há a ênfase nas origens, na continuidade, na
tradição e na intemporalidade” onde, “os elementos essenciais do caráter nacional
permanecem imutáveis”; além do conjunto de práticas inventadas, de natureza ritual
ou simbólica, cultiva automaticamente, através da repetição, a continuidade com um
passado histórico adequado, ou seja, inteligível; há também mito fundacional, em
que a origem histórica da nação se encontra em um passado remotamente distante
que torna-se mítico. Assim sendo, as tradições inventadas tornam as confusões e
desastres da História compreensíveis, transformando a desordem em uma
“comunidade”; A ideia de um povo original e puro, servindo de base para a
identidade nacional, mas que, na realidade do desenvolvimento da nação,
dificilmente este povo poderia exercer o poder. Hall (2011, p. 49) argumenta que a
identidade nacional não nasce com o indivíduo, esta é “formada e transformada no
interior da representação”. Não sendo uma entidade política apenas, mas um
produtor de sentidos, “um sistema de representação cultural”.
Ella Shohat e Robert Stam (2006), reafirmam que nação é um conceito
fictício, produto moderno e imposto a um grupo de indivíduos através de histórias
nacionais, que exibem continuidade de temas em grande escala. Eles utilizam o
cinema como exemplo. Por ser enorme contador de histórias da humanidade, este
modo de expressão não pôde ser deixado de fora, uma vez que tornou-se, com
seus poucos mais de cem anos de existência, um grande construtor de
representação cultural. Para Shohat e Stam (2006, p. 144), “a autoconfiança
nacional, [...] a crença generalizada de que indivíduos distintos compartilham
origens comuns, condições, localizações e aspirações”, associou-se amplamente às
ficções cinematográficas. Já para Graeme Turner (1997, p. 128), porém, “o cinema
não reflete nem registra a realidade. O cinema constrói, através dos códigos que
767
emprega, quadros de realidade capazes de representar “convenções, mitos e
ideologias de sua cultura, bem como mediante práticas significadoras específicas
desse meio de comunicação”.
Hall (2011) afirma ainda que todas as nações são constituídas por pessoas
pertencentes a diferentes classes sociais, grupos étnicos e gêneros e, por último,
algumas das nações ocidentais modernas foram centros imperiais ou de influência
neoimperiais, que vêm exercendo hegemonia cultural sobre boa parte das outras
nações. Deve-se então, pensar culturas nacionais como constituídas por um
“dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade”
(HALL, 2011, p. 60). Apesar de serem atravessadas por diversas divisões internas,
as culturas nacionais são unificadas e diferenciadas pelo regime de poder e de
influência cultural. Uma forma de unificá-las é usar a expressão “de um único povo”
ao serem representadas. A tentação de usar a etnia2 dessa forma “fundacional”
acaba no mundo moderno, por ser um mito. “A Europa Ocidental não tem qualquer
nação que seja composta por apenas um único povo, uma única cultura ou etnia.
As nações modernas são, todas, híbridos culturais.” (HALL, 2011, p. 63).
A identidade não é mais vista como unificada e “bem resolvida” na pósmodernidade. Para explicar esta crise de identidade, Hall (2011) conceitualiza o
sujeito pós-moderno como: fragmentado, composto não de uma única, mas de
várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. O próprio
conceito de identificação, através do qual se projetam as identidades culturais,
tornou-se provisório, variável e problemático. O sujeito é definido historicamente e
não biologicamente, tornando-se assim, uma “celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação às formas que são representadas ou
interpeladas nos sistemas culturais que o rodeiam.
Outra consequência da intensificação do capitalismo, e que ajudou a
movimentar todos esses questionamentos de nação e identidade, foi o grande
crescimento da globalização. E as possíveis consequências da globalização sobre
as identidades culturais, segundo Stuart Hall (2011, p. 69), são: a desintegração
das identidades nacionais, resultantes do crescimento da homogeneização cultural;
em contrapartida, há também identidades nacionais que estão sendo reforçadas em
768
resistência à globalização; e ainda, estão se formando novas identidades, hídridas,
em função das identidades nacionais estarem em declínio.
Após a Segunda Guerra Mundial e as conquistas de independência por
alguns países colonizados, houve um impressionante movimento de migração entre
os países. A interdependência global tornou-se inevitável. Com as fronteiras
dissolvidas e continuidades rompidas, as certezas e hierarquias da identidade
cultural britânica, por exemplo, foram postas em questão. “Os confrontos da
Tradição são fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova
autointerpretação, baseada nas responsabilidades da tradução cultural.” (ROBINS,
1991, apud HALL, 2011, p. 41).
Tradução é o termo que Robins (1991) utiliza para descrever as formações
de identidades de pessoas pertencentes aos movimentos de diáspora. Essas
pessoas são “obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem
simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas
identidades.” (HALL, 2011, p. 77) Estes indivíduos possuem um conjunto de
histórias e culturas interconectadas, possuem culturas hibridas, que são então,
traduzidas – palavra vinda do latim, que significa “transferir”. “Eles são o produto
das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais.” (HALL, 2011, p. 78)
Nas últimas décadas, muitos filmes têm utilizado dos híbridos pós-coloniais como
tema, em que o “sujeito híbrido diaspórico se confronta com o desafio ‘teatral’ de se
mover entre modos diversos de atuação em mundos culturais e ideológicos
distintos.” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 81) Os filmes escolhidos Dilwale Dulhania Le
Jayenge, de 1995 e My Name is Khan, de 2010, possuem protagonistas que
compartilham do conceito de sujeitos híbridos.
O termo “hibridismo” não tem um significado fixo e absolutamente claro; pode
referir-se à imposição colonial, assimilação forçada, cooptação política, mímica
cultural e assim por diante. No caso do cinema, Shohat e Stam (2006) articulam que
o “Cinema do Terceiro Mundo” é definido por vários teóricos genericamente como o
conjunto de filmes produzidos nesses países; outros teóricos pensam esse cinema
como um projeto ideológico, ou seja, um corpo de filmes que adere a certo
programa político e estético, quer eles tenham sido produzidos no Terceiro Mundo
ou não.
769
Para o cinema, o eurocentrismo da cultura popular cinematográfica se dá
através da indústria hollywoodiana. Shohat e Stam (2006) citam um parágrafo de
um livro famoso sobre cinema clássico (sem, no entanto, nomear o título), no qual
se informa que Hollywood é única na história cinematográfica e que todas as outras
indústrias apenas a imitam, “quando na verdade a produção cinematográfica de
base capitalista surgiu mais ou menos simultaneamente em diversos países,
incluindo aqueles que agora pertencem ao Terceiro Mundo.” (SHOHAT e STAM,
2006, p. 62) E o cinema do Terceiro Mundo, longe de ser um fenômeno marginal, é,
atualmente, responsável pela maior produção cinematográfico do mundo.
Mesmo com todas as mudanças de hibridismo cultural, a distribuição global
de poder ainda tende a fazer dos países de Primeiro Mundo transmissores culturais,
enquanto os outros são majoritariamente “receptores”. Shohat e Stam (2006)
expõem que tanto nos países de Primeiro como nos de Terceiro Mundo, os
espectadores se relacionam ativamente com os discursos da cultura. Comunidades
específicas incorporam e transformam influências estrangeiras. Agora, mesmo com
as hegemonias estando mais dispersas, as redes globais de informação ainda
funcionam de acordo com estruturas hierárquicas de poder.
2. O Cinema Indiano
A grande influência das artes tradicionais, como a música, a dança e o teatro
popular, no movimento cinematográfico dos primeiros tempos, é, provavelmente, a
responsável pela inserção de música e dança nos filmes, que perdura até hoje.
Estes elementos fazem de muitos filmes indianos também os mais longos já feitos
em toda história do cinema mundial.
Dadasabeb Phalke, considerado o “Meliès do cinema indiano”, acreditava
fortemente na filosofia nacionalista de swadeshi 3 , que dizia que os indianos
deveriam tomar conta de sua própria economia na perspectiva de uma futura
independência. Após assistir uma adaptação da história da vida de Cristo no
cinema, exibida em Bombaim em 1910, Phalke bastante impressionado, decidiu
usar a nova arte de imagens em movimento para contar histórias, com as quais ele
e a maioria dos indianos estavam familiarizados, pretendendo, assim, educar e
770
difundir conhecimento para a sociedade indiana. Produziu o primeiro filme popular
indiano, chamado Raja Harishchandra (1913), que conta a história mítica do rei
Ayodhya, nascido do sol. A profunda “indianização” desse cinema, desde seu
nascimento, marcou sua identidade, mesmo antes da chegada do cinema falado de
Hollywood, na década de 1930.
Em 1920, o pioneirismo no cinema indiano já tinha acabado e muitas
pessoas já trabalhavam no ramo. Todos os tipos de gêneros vindos de Hollywood
eram usados: filmes históricos, comédia, ação e filmes com temas sociais. O
sistema de estúdios dominou o cenário indiano até as décadas de 1940 e 1950.
Desde o início, a influência americana nos filmes indianos era evidente.
Entusiasmados pelo espírito swadeshi, associações como Bombay Cinema
and Theatres e Indian Motion Picture Producers Association protestavam a favor de
que filmes indianos tivessem 50% das telas dos cinemas na Índia, com a ideia
implícita de sabotar Hollywood e as produções dos colonizadores, que na época era
responsável por 90% dos filmes. A preocupação maior era “proteger a sociedade
indiana e seus costumes da ameaça ocidental” (THORAVAL, 2000, p.18).
As bases do cinema popular indiano como entretenimento e como indústria
foram formadas na década de 1940, durante um período de grande mudança social
e trauma nacional.. A fórmula de sucesso nas bilheterias foi criada e consistia de:
canções, dança, espetáculo, retórica e fantasia. A junção e significante relação
entre o consciente indiano sobre o entretenimento épico (músicas, teatros, entre
outros) e a arte cinematográfica foram estabelecidas. Mais ainda, filmes estavam
sendo cada vez mais reconhecidos como um instrumento vital de crítica social.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Índia obteve sua independência em 1947
e estava se movendo rapidamente em direção ao capitalismo e à modernização.
Estava também enfrentando questões nacionalistas e divisões étnicas e religiosas.
Segundo historiadores, a década de 1950 foi marcada por ser a “Idade de
Ouro” do cinema popular indiano. O cinema é considerado uma arte urbana em
todo o mundo e durante este período, o movimento de urbanização da “consciência”
indiana estava acontecendo como nunca antes. Na metade da década de 1950, o
771
distinto cinema de arte indiano tomou forma com o bengalês Satyajit Ray. Pather
Panchali (1955) ganhou fama internacional e reconhecimento de crítica. Pather
Panchali, Aparajito (1956) e Apur Sansar (1959) ficaram conhecidos como a Trilogia
de Apu, uma das obras primas do cinema mundial.
Outro fator deve ser considerado para falar da indústria cinematográfica
indiana é o de que não existe apenas uma e sim, cinco indústrias com
características diferentes na Índia. Como no Brasil, dentro da Índia há grandes
diferenças culturais separadas entre norte, sul, nordeste e sudeste, e mais ainda,
entre grandes cidades. Com o crescimento avassalador da cinematografia indiana,
cada região seguiu seu próprio padrão dentro desta arte, são os chamados de
Cinemas Regionais. Existem sete tipos diferentes de cinema reconhecidos
atualmente – o cinema bengali de Calcutá; o cinema híndi de Mumbai; o cinema
canará de Karnataka; o cinema malaiala de Kerala; o cinema marata que nasceu
em Nasik, desenvolveu-se em Kolhapur e Pune, mas agora tem Mumbai como
sede; o cinema tâmil de Tâmil Nadu e o cinema telugu de Andhra Pradesh. E
produzindo-os, existem cinco indústrias cinematográficas diferentes, cada uma com
a sua uma maneira de contar histórias.
O cinema híndi é, em termos de público, a mais conhecida indústria
cinematográfica indiana. Essa indústria abrange o maior número de espectadores
dentro do país, como também possui grande reconhecimento internacional. Para
entender como o cinema indiano popular, ou cinema híndi, tomou forma e distinção,
K. Moti Gokulsing e Wimal Dissanayake (2004, p.17) afirmam que é preciso analisar
algumas forças que tiveram profundo impacto no crescimento do cinema nacional:
os épicos – Ramayana e Mahabharata, e Hollywood.
Os épicos - Ramayana e Mahabharata: Esses dois épicos indianos podem
ser vistos em diferentes formatos nas artes clássicas – poesia, drama, arte e
escultura – alimentando a imaginação de vários tipos de artistas e educando a
consciência da nação. A influência no cinema pode ser analisada em quatro níveis:
temas, narrativa, ideologia e comunicação. Em vez de narrativas realistas, lineares
e diretas, bastante comuns em filmes hollywoodianos, o cinema popular indiano
oferece uma estrutura narrativa que pode ser melhor compreendida a partir das
características narrativas desses dois épicos.
772
O Mahabharata (Os Grandes Bharatas) gira em torno das lutas entre duas
famílias principescas, os Pândavas e seus primos, os Kauravas, para possuírem um
reino localizado perto da atual cidade de Déli. Além da narrativa épica, o
Mahabharata desenvolve conceitos básicos do hinduísmo, os quatro objetivos de
vida: dharma (ação correta), artha (propósito), kama (prazer) e moksha (liberação).
O Ramayana (Viagem de Rama) celebra a vida e proeza do Príncipe Rama
que é exilado por seu pai aos 14 anos sob o comando de sua madrasta Kaikeji.
Rama parte com sua esposa Sita e seu irmão Lakshman. Na floresta, Sita é raptada
pelo rei-demônio, Ravanade Lanka. Rama, com ajuda do exército de macacos
liderados por Hanuman, recupera Sita. Mesmo sabendo que ela manteve-se pura
durante o cativeiro, Rama é obrigado a afastar-se dela. Leal ao marido, Sita aceita
sua condição, mas abre uma fenda no chão e é tragada pela terra. Triste com a
perda da esposa, Rama se oferece ao deus da morte. Esse épico transmite os
valores que regem o relacionamento entre humanos pelo hinduísmo: o caráter de
pai, filho, irmão, esposa, monarca e servos ideais.
O cinema popular indiano está comprometido com a manutenção do status
quo. A repetição do melodrama, música e espetáculo cria a segurança do cinema,
que não desafia fundamentalmente o status quo. “A ideologia central subjacente
nos dois épicos é a preservação da ordem social existente e seus valores
privilegiados.” (GOKULSING e DISSANAYAKE, 2004, p.18)
b) Hollywood: Musicais hollywoodianos fascinaram muitos cineastas indianos,
que relacionavam de forma interessante os traços do cinema clássico norteamericano com as performances indianas. No entanto, o cinema popular indiano
adotou uma estratégia diferente da hollywoodiana: o enredo não era usado para
ligar a narrativa ao espetáculo de música e dança. Ao contrário, músicas e danças
eram – e ainda são – usadas como expressões naturais de emoções e situações
emergentes no dia a dia, intensificando o elemento fantasia através do espetáculo,
criando a impressão de que eram naturais e lógicas. A música constitui-se como
ingrediente vital na construção das emoções culturais. Hollywood sempre buscou
uma maior aproximação com a realidade, consequentemente, muitos ângulos de
câmera estavam na altura dos olhos; a iluminação era discreta; cortes eram feitos
em juntas lógicas no fluxo narrativo. Por outro lado, o cinema indiano cresceu
773
através de diferentes raízes, e não sentiu a necessidade de utilizar o “estilo invisível
de narrar” típico do cinema hollywoodiano – os personagens são estereotipados, o
mundo é fantasioso, a atuação é exagerada, todos os aspectos da experiência
fílmica são melodramáticos, por exemplo, o uso da câmera é superficial (chamando
atenção para este aparato técnico), a edição é obstrutiva, o centro do filme é a trilha
sonora, as canções são feitas em playback e as sequências de dança são muito
usadas para intensificar emoções e o espetáculo.
Além dos gêneros fornecidos
por Hollywood, existem outros gêneros associados ao cinema da Índia. K. Moti
Gokulsing e Wimal Dissanayake (2004, p. 23) elegeram os mais significativos, que
são: filmes mitológicos; filmes devocionais; filmes românticos; filmes de ação; filmes
históricos; filmes sociais e melodramas familiares. Esses gêneros não são
especificamente indianos. No entanto, pode-se dizer que há algo específico na
forma como os cineastas indianos lidam com eles e os investem de uma
caracterização cultural indiana.
Os filmes populares tem um papel importante na construção da consciência
popular nacional. Eles têm sido as formas dominantes responsáveis pela criação do
que o público entende por heroísmo, dever, coragem, modernidade, consumismo e
glamour.
Independente
do
gênero,
os
filmes
populares
indianos
têm,
constantemente, engajamento cultural com a modernidade. Filmes populares
indianos são basicamente peças morais, onde o bem triunfa sobre o mal, os bons
valores são sempre restaurados pelos poderes em questão, normalmente pelos
deuses. Estes filmes são geralmente musicais melodramáticos, que não possuem o
senso ocidentalizado de neonaturalismo. As histórias não progridem linearmente
mas por meandros, com desvios e histórias dentro de histórias. A narrativa circular
é comum no teatro clássico e popular. Músicas preenchem um número importante
de funções dentro da experiência fílmica, tais como as emoções gerais, as
mensagens morais nas entrelinhas, o convencional erotismo e sexualidade que são
proibidas na tela, ou seja, climas que são criados para resignificar diversas
intenções em várias partes do filme.
774
3. Análise fílmica
Figura 1: Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra
My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar
Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra
Baldev Singh é um indiano da região de Punjab, nordeste da Índia. Imigrou
para Londres, onde vive há vinte anos, porém desde a primeira cena do filme, deixa
claro seu tormento pelo desejo de retornar à Índia. Patriarca tradicional, impõe à
esposa e a suas duas filhas comportamentos da cultura indiana dentro de sua casa.
Filhas essas que obedecem as tradições mais por dever do que por convicção.
Simran, a filha mais velha, sonha em se apaixonar. Porém, está comprometida em
um casamento arranjado com o filho do amigo de seu pai, que mora em Punjab.
Antes de ir à Índia se casar, Simran e suas amigas fazem uma viagem pela
Europa, onde conhece Raj. Ao voltarem para casa e se despedirem, percebem que
estão apaixonados. Ao contar este fato para Lajjo, sua mãe, não percebe que
Baldev ouve tudo e fica furioso, marcando a viagem de mudança para a Índia para
a manhã seguinte.
Raj viaja atrás de sua amada, passa-se por amigo do noivo de Simran para
entrar na casa onde estão todos hospedados para o casamento. Lá, conquista a
confiança de todos membros importantes da família de Simran. Até, que Baldev
775
encontra uma foto de sua filha com Raj em Londres, compreende tudo e expulsa-o
de sua casa. Porém, ao chegar na ferroviária, em uma cena memorável do cinema
indiano, Baldev deixa Simran ir com Raj.
My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar
Rizvan Khan é mulçumano e possui a Síndrome de Asperger4. Muda-se da
Índia para casa de seu irmão nos Estados Unidos após a morte de sua mãe. Ao
trabalhar na empresa do irmão, Rizvan sofre uma crise por causa dos problemas
que o autismo lhe causou, com isso conhece Mandira, que o ajuda. Indiana e mãe
de Sam, menino de 6 anos, Mandira e Rizvan se apaixonam e casam-se.
Com a queda das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, as ameaças
terroristas e o preconceito contra mulçumanos, o filho de Mandira fica exposto a
diversos preconceitos que resultam em sua morte. Mandira culpa o sobrenome de
Rizvan – por ser ligado a religião mulçumana – e o manda, em momento de raiva,
falar para o presidente dos Estados Unidos que ele não é terrorista, que esses
preconceitos não faziam de todos seguidores do Alcorão, terroristas. Rizvan, leva a
“ordem” a sério e empreende esta jornada até o presidente dos E.U.A., a fim de
reconstituir sua família. Com muitos problemas no caminho, Rizvan é preso e passa
por torturas na prisão dos Estados Unidos. Mas um grupo de estudantes indianos
consegue gravar seu real protesto e faz com que Rizvan fique famoso com sua
frase “Meu nome é Khan e eu não sou um terrorista”.
3.1 Análise da relação dos personagens e a questão de gênero
Em Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995), os personagens são um dos tópicos
mais relevantes, pois cada um representa um estereótipo marcado pelo cinema
indiano e com questões a serem discutidas. Os personagens escolhidos para serem
analisados aqui foram: Baldev, Lajjo e os jovens, Simram e Raj.
Começando por Baldev, pai de Simran e primeiro personagem a aparecer no
filme. É integrante das primeiras gerações da diáspora indiana pós-independência
na Inglaterra e apresenta questionamentos sobre sua identidade indiana e o
776
sentimento de “pertencimento”, ou seja, ele se questiona nas primeiras falas do
filme, sobre o sentimento de terra-mãe e nação. Baldev encontra-se jogando
migalhas para os pombos em uma das praças mais famosas de Londres e pensa:
“Por 22 anos, eu vivi aqui. (...) Toda manhã, essa rua pergunta meu nome
“Chaudhary Baldev Singh? Quem é você? De onde veio? Por quê está aqui?”. Após
mais algumas reflexões sobre sua similaridade com os pombos e a falta que sente
de “sua terra mãe”, conclui com: “Mas um dia eu certamente voltarei para minha
terra. Para minha Punjab”.
Baldev é um personagem que possui grande ligação com a cultura e
tradições indianas. Chegando a ter um posicionamento radical ao impor costumes à
sua família, fazendo com que sua esposa e filhas tenham medo de expor seus
gostos pela cultura ocidental. Um exemplo disso pode ser visto na cena em que ao
ouvir o pai entrar em casa, as meninas trocam rapidamente o rock que estavam
ouvindo por uma música clássica indiana. Patriarca da família, Baldev impõe à sua
primeira filha um casamento arranjado desde o seu nascimento. E mesmo ao
descobrir que ela está apaixonado por outra pessoa, prefere manter as tradições, e
a palavra dada sobre o casamento, do que pensar na possível felicidade de sua
filha, vinda da paixão. Este é um tema abordado por muitos filmes indianos.
A segunda personagem que aparece no filme, é Lajjo, mãe de Simran. Ela
representa claramente o estereótipo da “mãe indiana” dos filmes bollywoodianos, é
“carinhosa, firme na devoção familiar, alimenta e mantêm valores” ligados à tradição
e à cultura indiana. (GOKULSING e DISSANAYAKE, 1998, p. 26).
No entanto, Lajjo também apresenta questões ligadas à discussão de gênero
e à discussão do posicionamento da mulher dentro da cultura indiana. Mesmo
“alimentando e mantendo valores” da tradição, Lajjo incentiva a filha a buscar por
sua felicidade com Raj, pedindo para que fujam juntos. E depois ainda, é ela quem
chama Simran para ir a ferroviária no final do filme. Só foi possível compreender
essas decisões de Lajjo, mesmo ela sendo o “exemplo de mulher indiana”, depois
de duas outras cenas em que ela conversa com Simran sobre o papel de filha,
esposa e mãe dentro da cultura, no qual demonstra grande frustração por ter se
sacrificado a vida inteira por homens.
777
A primeira cena, se passa ainda em Londres quando a família de Lajjo
recebe a carta sobre o casamento de Simran e Kuljit. Simran rasga seu diário no
qual escreve sobre seus sonhos de se apaixonar e fala: “Eu tinha esquecido, mãe.
Eu não tenho nem direito de sonhar.” E Lajjo responde: “Não, minha filha, claro que
você pode sonhar. Mas não espere que os sonhos se tornem realidade.” Na
segunda cena, assim que chegam em Punjab, Simran está sozinha na janela e sua
mãe conta que, quando pequena, seu pai (avô de Simran) lhe ensinou que homens
e mulheres eram iguais e que ela sempre acreditou nisso, porém, ao crescer, foi
notando que a realidade não era bem assim. Quando pequena, sacrificou seus
estudos para que seus irmãos homens pudessem ser educados, depois, como
esposa e como mãe, outros sacrifícios foram sendo feitos para felicidade de outros
homens, mas que ao ter Simran, prometeu que sua filha jamais passaria por nada
disso por ter nascido mulher. Mas ao ver Simram sofrer por Raj, ela entendeu que
“a mulher não tem nem direito de fazer promessas” e que “por suas mulheres,
homens jamais fariam nem farão sacrifícios”.
Figura 2: Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra
3.1.1 A mulher no cinema indiano
Há poucos conceitos femininos representados no cinema indiano, o mais
famoso e utilizado, é o conceito de mulher vindo de Sita que prevalece na
sociedade indiana e em seus filmes. Imortalizada no conto Ramayana, Sita é a
“mulher e esposa ideal”; é leal e obedece os desejos de seu marido sem questionálo. Segundo o conto, a mulher deve obedecer seu marido como se fosse um deus:
778
ele é seu amigo e seu mestre (professor). O cinema popular indiano perpetuou esta
imagem dentro de seus filmes.
Na sociedade tradicional, o papel da mulher é essencialmente:
5
como filha (Beti), esposa (Patni) e mãe (Ma). De acordo com o Manusmriti ,
a mulher deveria estar sujeita ao pai na infância, ao marido na juventude, e
quando seu marido morresse, aos seus filhos. As mulheres não receberam
nenhum tipo de independência. (GOKULSING e DISSANAYAKE, 1998, p.
75)
Porém, o amor romântico não era proibido à mulher, pois esse poderia ser
visto em outra representação, a de Radha-Krishna, conto que enfatiza o
momentâneo e o desejo de aproveitar cada segundo que se passa com o outro.
Caso da luta da aceitação do amor de Simram e Raj, que é representado sendo
mais carinhoso, alegre e menos devocional.
Filha mais velha de Baldev e Lajjo, Simran é uma jovem de cerca de 18
anos que apesar de ter crescido em Londres, foi criada primordialmente dentro de
casa.
Pode-se
notar
suas
convicções
e
conservadorismo
em
diversos
exemploscomo: não compartilha com suas amigas o mesmo tipo de interesse
libertino por homens e festas; não se sente confortável em dormir no mesmo quarto
que um homem; possui medo da perda da virgindade ligada à honra na cultura;
além de sua postura em relação às tradições do casamento.
Em uma cena do filme, pode se notar claramente o pensamento machista de
Baldev, que se esconde com um elogio à Simran. O pai fala: “Dizem que uma filha
crescida é um fardo para o homem, mas uma filha como você faz meu peito encher
de orgulho”, em outras palavras, quando as filhas começam a se impor, ou quando
os pais precisam arranjar o casamento, elas se tornam problemas para eles. Na
resposta de Simran para Baldev, nesta cena, há a visão pessimista sobre as
consequências do casamento arranjado. Simran fala que casará com alguém que
nunca viu, não terá mais oportunidade de tomar suas próprias decisões e até
provavelmente não verá mais suas amigas de Londres. E usa esse argumento para
conseguir o que quer, permissão para viajar pela Europa. Provando que, na
verdade, nunca pode tomar grandes decisões sozinha, mesmo solteira.
779
Simran é uma jovem sonhadora, que trocaria toda a sua criação tradicional,
pelo primeiro rapaz por quem se apaixonou, sabendo que isso afetaria sua relação
com seu pai. Por não se sentir independente o suficiente para tomar atitudes e
satisfazer suas vontades, Simran compartilha com sua mãe o sentimento de
frustração por ser mulher dentro da cultura indiana. Ela não aceita sua realidade
com facilidade debatendo-se entre sua vivência londrina (ocidentalizada) e a cultura
tradicional imposta dentro de casa. A paixão por Raj pode ter ligação com o
sentimento de aprisionamento que a consome (relembrado na carta com a notícia
de seu casamento arranjado), podendo também, ter expectativas de um outro futuro,
ainda que dependente de outra pessoa do gênero masculino.
As duas personalidades que Raj mostra no filme, representam exatamente o
que a discussão sobre a negociação de culturas, já comentada. Por ter crescido em
Londres e ter sido educado socialmente conforme a cultura ocidental (vista aos
olhos do cinema indiano), Raj possui a persona que é vista no começo do filme,
malandro e aproveitador, por ter esta dupla vivência de culturas, questiona alguns
comportamentos tradicionais indianos. Ao saber que Simran está noiva de um rapaz
que ela não conhece, ele pergunta, incrédulo e emocionado, como ela passará o
resto da vida (divórcio é mal visto pela cultura tradicional, eles acreditam que só há
um casamento por vida) com alguém que ela nem conhece. Simran responde que é
assim que acontece com elas (mulheres indianas) e ele pergunta se ela é feliz com
essa decisão. Raj também utiliza de seu conhecimento dessa cultura para
conseguir o que quer. No começo do filme, ele fala que “um indiano deve ajudar
outro indiano”, enganando Baldev para conseguir cervejas. E depois, para
convencer Simram de que não tiveram relações sexuais, fala: “Eu não sou uma
escória, Simran. Sou um indiano e sei o que a honra significa para uma mulher
indiana. Nem nos meus sonhos eu poderia imaginar fazer isso com você”.
Em My Name is Khan (2010), os personagens analisados serão a de
Mandira e Rizvan.
Mandira aparece no filme com aproximadamente 26 anos, mas Rizvan fala
de seu passado: ela teve um casamento arranjado aos 19 anos e foi morar com o
marido em São Francisco. Engravidou e teve Sam, porém seu marido a abandonou
por outra mulher e se mudou para Austrália. Mandira divorciou-se (grande mudança
780
de caráter tradicional e social da cultura tradicional) e por isso não conseguiu mais
acolhimento da família (provavelmente por ser tradicional, vivente na Índia), que a
renegou, Mandira construiu uma vida independente nos Estados Unidos. O filme
mostra a consequência possível do divórcio, que é renegado em que muitos filmes
indianos mais tradicionais, como o Dilwale.
Rizvan, personagem condutor do filme, nasceu e cresceu na Índia, ao lado
de sua mãe. Por ter Síndrome de Asperg, tem dificuldades com mudanças e com
socialização, não tem referencias afetivas com o país nem com a sociedade de
onde veio (nação). Possui a educação e crenças mulçumanas mas não acredita na
violência extremista (realmente existe) entre hindus e mulçumanos, que aparece
algumas vezes no filme. Deve-se isso a ter aprendido com sua mãe que a única
diferença entre as pessoas é se são boas ou ruins. É possível ver exemplos da
rivalidade mulçumana/hindu quando, primeiro, com os ativistas que Rizvan, ainda
criança, ouve pela janela: “deve-se matar os hindus, sem dó” e depois, quando
Rizvan, já adulto, vai se hospedar em um motel de estrada e o dono indiano, após
sofrer ataque conseqüente de 11 de setembro de 2001, grita discurso de ódio
contra mulçumanos. Ou até quando Zakir, irmão de Rizvan, vai contra o casamento
dele com Mandira (que é hindu), pois considera isso uma blasfêmia.
Figura 3: My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar
781
3.2 Análise das representações dos países apresentados nos filmes
Em Dilwale Dulhania Le Jayenge, a Europa é vista somente na primeira hora
e meia de filme. Apesar de morarem em Londres e viajarem pelo continente
europeu, os personagens não mantém um diálogo se quer com algum outro
personagem relevante não-indiano. Na abertura do filme, Baldev anda por pontos
turísticos de Londres – este filme tem como característica tornar suas locações tão
atraentes para turistas, que é provável que os personagens não tenham
aproveitado as belas paisagens das cidades tanto quanto os espectadores. Pode-se
pensar em uma questão de marketing turístico da produção, como também, no caso
da Eurorail (empresa pela qual Simram e Raj viajam) que realmente existe e para a
qual o filme faz campanha publicitária.
Pode-se notar influências da cultura ocidental em outros momentos do filme,
como, por exemplo, quando a filha mais nova toma seu café da manhã, logo no
início do filme. Ela come cereais com leite e bebe suco. Elementos da cultura
indiana procuram ser mantidos dentro da casa de Lajjo e Baldev, em Londres, mas
as personagens das filhas deixam mais clara os híbridos das culturas com as quais
lidam, como as práticas alimentícias, por exemplo, ou no quarto onde dormem, que
possui pelo menos três bichinhos de pelúcia do Pato Donald, pequena indicação de
globalização, já que é figura marcada da Walt Disney, empresa norte-americana.
Dilwale Dulhania Le Jayenge, foi produzindo em uma época de grande domínio de
canais televisivos na Índia, de modo que, Thodaval (2000, p.137) comenta sobre a
globalização, que o produtor e expert em cinema indiano Joel Farges teme que o
Pato Donald se torne o próximo Ganesh.
A Índia aparece, primeiramente, na língua que Baldev usa para expressar
seus pensamentos. No cinema indiano, muitas vezes, a língua falada não tem
ligação com a realidade cultural de quem, na diegese, está recebendo a mensagem
(como se todos os personagens, entendessem o que está sendo dito, independente
da língua que falam). A mistura de hindi com inglês é frequentemente feita e existe
até um nome popular para isto, o hinglish. O filme tem como objetivo primordial ser
entendido por indianos, por isso, muitas vezes, personagens interagem falando em
hindi e inglês entre si e personagens não-indianos entendem. Mas há também
782
filmes que não seguem esse procedimento, como My Name, quando Rizvan traduz,
para o inglês, falas ditas para Mandira em hindi, no encontro com o presidente dos
Estados Unidos.
Também há elementos da cultura indiana nos devaneios de Baldev, com
saudades de “sua Punjab”; as roupas que ele usa são indianas, mesmo em
Londres; sua loja de conveniência, que tem valor simbólico, os costumes impostos,
os móveis da casa; as roupas de Lajjo e as caracterizações das personagens de
Lajjo
e
Simran
como
representantes
da
“mulher
indiana”
que
também
correspondem a híbridos da cultura indiana ligadas à cultura britânica.
A Índia realmente aparece apenas quando Simran e sua família já estão em
Punjab. É uma Punjab ainda não tão ocidentalizada, onde todos vestem roupas
indianas, as estruturas de casas e móveis são características, comidas e até o
inglês é menos falado. A cena final, em um trem antigo em movimento, resgata
características muito fortes de um cinema indiano mais clássico, fazendo um
contraponto entre forma e conteúdo. O trem é um símbolo muito utilizado em
diversos cinemas como progresso, industrialização e modernidade.
A Índia de My Name is Khan, não é representada por um sentimento de
nostalgia e sim por outra grande realidade indiana, a pobreza. Ela aparece somente
nas lembranças de Rizvan. As cenas fora da casa de Razina, mãe de Rizvan,
mostram locações reais onde é possível ver lixo pela rua, casas sem acabamento,
falta de asfalto e quase nenhuma influência da cultura ocidental, como por exemplo,
os mercados possuem escrituras em devanagari6.
Já os Estados Unidos são mostrados como uma realidade totalmente oposta.
Beleza estética e arquitetônica, pessoas bem vestidas, misturas culturais e grande
tecnologia. Rizvan, que já tem dificuldades com mudanças, foi parar em um país
completamente diferente do que estava acostumado – talvez essa tenha sido a
sensação de Baldev, quando se mudou para Londres, deparando-se com um
mundo ao qual nunca se adaptou – mas, diferentemente de Baldev, Rizvan
adaptou-se com as mudanças vindas do convívio com essa nova sociedade. Faz
até brincadeiras com as diferenças de cultura, como quando imita fotos de modelos
783
que representam a ideia de beleza ocidental – magras, muito brancas, quase sem
vida – mas, por se adaptar, age conforme as ideias culturais de “sua nova casa”.
A análise textual de um filme, vai além das possíveis significações retiradas
dos personagens, das relações entre eles e com a sociedade em que vivem, e seus
discursos. Como as imagens são compostas (pela fotografia, cenografia, figurino,
montagem, som e outras técnicas fílmicas) podem, também, fazer significações de
discursos de uma forma conotativa. Turner (1997, p. 53) afirma que
7
As imagens, assim como as palavras, carregam conotações . A imagem
filmada de um homem terá uma dimensão denotativa [...]. Mas as imagens
têm uma carga cultural; o ângulo usado pela câmera, a posição dela no
quadro, o uso da iluminação para realçar certos aspectos, qualquer efeito
obtido pela cor, tonalidade ou processamento teria o potencial do
significado social. Quando lidamos com imagens, torna-se especialmente
evidente que não estamos lidando apenas com o objeto ou o conceito que
representam, mas também o modo em que estão sendo representados.
Figura 4: My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar
E através da análise fílmica, com a contribuição do breve levantamento
histórico da cinematografia indiana, pode-se compreender também, as relações das
identidades diaspóricas e híbridas que o cinema popular indiano está levantando
nesses dois importantes filmes de sua cultura cinematográfica.
Notas
1
Orientada atualmente pela professora e doutora Flávia Cesarino Costa.
A etnia é o termo utilizado para se referir às características culturais – língua, religião, costume,
tradições, sentimentos de “lugar” – que são partilhadas por um povo. (HALL, 2011)
3
Swadeshi significa autosuficiência. O movimento swadeshi foi uma estratégia econômica destinada a
remover o Império Britânico do poder e das decisões econômicas da Índia. Estratégias do movimento swadeshi
envolviam boicotar produtos britânicos e revitalização dos produtos nacionais e seus processos de produção.
2
784
4
“A chamada Síndrome de Asperger é uma síndrome do espectro autista, diferenciando-se do autismo
classico por não comportar nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do
indivíduo.”
5
Trabalho textual mais importante e mais antigo do hinduísmo. Apresenta-se como o discurso proferido
por Manu, progenitor da humanidade, a um grupo de videntes, ou rishis, que fala sobre o “direito de todas as
classes sociais”.
Caligrafia mais utilizada para escrever híndi, marathi ou nepali.
7
O conotativo é interpretativo e depende da experiência cultural do usuário. “É na conotação que
encontramos a dimensão social da linguagem.” (TURNER, 1997, p. 53)
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
GONÇALVES, Mauricio R. Cinema e Identidade Nacional no Brasil 1898-1969. São
Paulo: LCTE Editora, 2011.
GOKULSING, K. Moti e DISSANAYAKE, Wimal. Indian Popular Cinema – A Narrative Of
Cultural Change. Inglaterra: Trentham Books Limited, 1998.
GOMES, Paulo Emílio Sales. Pequeno Cinema Antigo. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG,
2008.
___________ A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Critica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify,
2006.
THORAVAL, Yves. The Cinemas of India. Nova Delhi: Macmillan India Ltd., 2000
TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997.
Juily J. S. Manghirmalani
Formada em Audiovisual pelo Centro Universitario SENAC, em 2012. Completou o curso
com trabalho sobre o cinema da Índia e sua diaspora e agora segue como mestranda pela
Universidade Federal de São Carlos, com o mesmo tema, porém relacionando aos papéis
femininos e/ou de mulheres dentro do cinema popular da Índia. É integrande da pequena
diaspora indiana no Brasil, trabalha e estuda para fortalecer o conhecimento da cultura
indiana no país.
785
PÔSTERES
786
A CRIAÇÃO NO UNIVERSO DO RYÛKYÛ BUYÔ: A CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE ÉTNICA INDIVIDUAL
Alexandre Cardoso Oshiro - USP
RESUMO: Este estudo busca analisar o processo criativo das danças folclóricas de
Okinawa (Ryûkyû Buyô), como meio de construção da identidade ética individual das sensei,
quem as exercem. Tem-se o intuito de explorar o universo de cada professora participante,
levando em consideração aspectos de suas histórias de vida, com os quais as relações e os
envolvimentos subjetivos com a dança possam ser compreendidos. Imagina-se que o
processo de criação desta arte, interpole o self (individual) e o other (influência do meio),
fazendo da identidade um fenômeno criado sempre em oposição ao outro, transformando-se
constantemente ao longo do tempo. Por conseguinte, trata-se do par imigrantes versus
descendentes, calcado na combinação de múltiplos valores culturais, dados pelas origens
desses indivíduos (imigrantes japoneses vivendo no Brasil). Com base nos ideais
antropológicos da cultura e da arte, são propostos relatórios, filmagens, entrevistas e
questionários, como forma de gerar dados para a construção de perfis e comparação dos
mesmos.
Palavras-chave: identidade, imigração, processo criativo, cultura okinawana, Ryûkyû Buyô.
ABSTRACT: This study analyzes the creative process of okinawan folk dances (Ryûkyû
Buyô), as a means of building the individual ethnic identities of two Ryûkyû Buyô sensei. It
aims to explore each participant’s inner universe, according to the aspects of their life
experiences, in order to understand the subjective involvements to dance. It is thought that
the process of creating this art, interpolates the self (individual experiences) and other
(external influences), making identity a phenomenon always created by oppositions, which is
constantly transforming itself over time. Therefore, it is the immigrants versus offspring pair,
based on the combination of multiple cultural values, given the origins of these women
(Japanese immigrants living in Brazil). For purpose of generating data, reporting, filming,
interviews and questionnaires will be made.
Keywords: identity, immigration, creative process, okinawan culture, Ryûkyû Buyô.
Introdução
Okinawa: da liberdade à dominação
Durante muito tempo, Okinawa refletiu sua energia radiante em cores,
transmitindo sua liberdade e peculiar cultura. Localizado na zona tropical, ao sul das
restantes ilhas japonesas, foi um belo reino independente, amplamente visitado por
seus vizinhos do sudeste asiático, como a poderosa China. Inicialmente era
chamada de Řŗ (Ryûkyû) e após a dominação japonesa, recebeu seu atual nome
ļž (Okinawa).
787
Mesmo após a submissão ao poderio japonês, a vibrante cultura da região
jamais foi apagada ou esquecida. Suas artes, por exemplo, ainda remetem aos
tempo de reinado, como o Ryûkyû
1
Buyô ou danças tradicionais okinawanas.
Entretando, em 1869, a região foi tomada pelos vizinhos japoneses do norte,
tornando-se mais adiante uma de suas províncias. Yamashiro (1997) relata
brevemente este acontecimento na passagem a seguir:
Porém, com a queda do xonugato Tokugawa em 1867 e a proclamação da
2
restauração dos poderes imperiais em 1868, o Ken foi implantado como
3
substituição ao sistema Han, instalando a restauração Meiji e alcançando
posteriormente Okinawa (reino Ryûkyû), privando-a de sua liberdade e
autonomia […]. Em março de 1609, um exército de três mil homens partiu
de Satsuma sob o comando de Hisataka Kabayama e Masumune Hirata
pelo porto de Yamakawa. No caminho, dominou as ilhas Amami e
Tokunoshima e em 25 de março chegava ao porto de Unten, no norte da
ilha de Okinawa. Os invasores encontraram pouca resistência: os
okinawanos estavam praticamente desarmados, pois já desde o reinado de
Sho Shin (1477-1526) as armas estavam recolhidas num depósito de Shuri,
o
cujo castelo caiu em 1 de abril. Os combatentes de Satsuma dispunham de
um novo armamento: espingarda introduzida no Japão pelos portugueses. A
corte de Shuri, com sua velha nobreza, não tinha condições de enfrentar os
aguerridos samurais de Satsuma.
Em detrimento das dominações, os chamados4 Naichi cometeram vários atos
perturbadores aos okinawanos, como repressões e uma postura fortemente
discriminatória. Julgavam os mesmos como uma população inferior, culturalmente
atrasada e dotada de pouca inteligência, refletindo, dessa maneira, um sentimento
de absoluta intolerância à cultura do outro, assim como diz Pires (2011) em sua
passagem, onde complementa que "qualquer manifestação cultural distante do
padrão japonês era discriminada ou até mesmo, duramente perseguida”.
Mais adiante, como se já não bastasse a dura e forçada interação aos moldes
nipônicos, a pacífica população okinawana ainda vivenciou os horrores da guerra,
devastando a região e os obrigando a se lançarem ao mar em busca de terras mais
prósperas. Dessa forma, muitos países, como Brasil, Bolívia, Peru, Argentina e
Estados Unidos receberam inúmeros imigrantes provenientes das ilhas ryukyuanas.
O Brasil, por exemplo, é atualmente a nação com maior número de
estrangeiros nipônicos e okinawanos, graças “ao 'Tratado da Amizade, de Comércio
e de Navegação’, firmado em 1895, o qual regulamentava a proteção aos cidadãos
de ambos os países em seus territórios, entre outros interesses comuns às duas
788
nações’’ (GOMES, et al, 2012).
Em pouco tempo, os imigrantes foram incorporados em trabalhos braçais,
como serviços agrícolas ou mesmo construções civis, como “o grupo de imigrantes
chegado ao Brasil em 1908, quem trabalharam nas lavouras cafeeiras,
primeiramente, e logo após na construção da estrada de ferro 'Noroeste do Brasil’,
no sul do Mato Grosso” (NISHIMOTO, 2011).
Assim, "no processo de instalação, os imigrantes okinawanos se dispuseram
de maneira concentrada no estado de São Paulo e em Campo Grande, passando
por um processo de urbanização em todo o Brasil” (KANASHIRO, 2000).
Muitos deles se transformaram em profissionais liberais (médicos,
engenheiros, entre outros) ou então do comércio e serviços de forma geral,
ascendendo na escala social. Esse período foi fundamental para a
integração desses descendentes de famílias imigrantes junto à sociedade
brasileira. A passagem dos filhos pela universidade proporciona a
possibilidade de ascensão, prestígio social e a constituição de uma camada
de renda média de natureza urbana (Idem, 2000).
De forma geral, essa ascensão às classes de maior prestígio pelos
okinawanos ocorreu em todos os países nos quais se estabeleceram. Segundo
Takenaka (2003), "depois dos cem anos de suas presenças no Peru, os
okinawanos-peruanos,
nas
segunda
ou
terceira
geração,
são
integrados
economicamente e até politicamente”.
Sendo assim, com as bases sociais sólidas e estáveis, os imigrantes puderam
recriar um ambiente favorável à pratica das atividades costumeiras, assim como era
feito na longínqua terra natal. Festas, rituais e celebrações foram reavivados, graças
à criação de centros de vivência e encontro, como acontece nas atuais associações
okinawanas em diversos países americanos. No Brasil, a sede principal encontra-se
no bairro da Liberdade, onde frequentemente são divulgados eventos para
apresentações das artes tradicionais, promovidos pelos membros da colônia
okinawana da cidade de São Paulo.
Ryûkyû Buyô: a arte okinawana de dançar
Como uma das atividades artísticas mais recorrentes nas associações e
789
eventos realizados pelos okinawanos, a dança merece ser nomeada como um
acontecimento de prestígio e grande visibilidade. Na cidade de São Paulo, existem
muitas escolas e centros de treinamento, destinados a divulgar o aprendizado das
mesmas para descendentes e não-descendentes.
Atravessando gerações, o Ryûkyû Buyô passou por um longo processo de
transformações até atingir sua forma atual, acompanhando o ciclo de mudanças
sofridas pelo povo okinawano ao longo da história. Sabe-se que os primeiros
registros das danças ocorreram durante a existência do Reino.
As danças eram primordialmente destinadas aos membros da corte e durante
muito tempo foram performadas para fins de celebração e recepção de autoridades
estrangeiras. Com a tomada de Satsuma e o fim do reino, as danças clássicas foram
destituídas de sua principal função real e ganham novos praticantes. A
popularização das danças as transformaram em atividades mais dinâmicas,
refletindo o estilo de vida plebeu e não mais a formalidade dos antigos membros da
realeza.
Por conseguinte, devido a criação de centros de ensino e treinamento do
Ryûkyû Buyô, as características das danças okinawanas passaram por um processo
de subjetivação, na medida que os estilos ganham características próprias de seus
mestres ou mesmo influências de ritmos externos.
Há, nesse caso, uma divisão escolástica entre elas, sendo o Kotaro kai,
Gyokusen kai, Tenda no kai e Hana no kai, ou mesmo um agrupamento de ordem
estilística para a origem, sendo o clássico (koten buyô), o popular (zo-odori) e as
danças folclóricas (minzoku buyô).
Segundo Yamashiro (1997), as primeiras referências à arte coreográfica
constam do volume 9 de Ooro-Sôshi. A dança de Ryûkyû se divide, de maneira
sucinta, em:
Danças tradicionais das aldeias rurais do Pequeno Arquipélago, de caráter
essencialmente popular;
790
Dança clássica, aperfeiçoada e desenvolvida na corte de Shuri;
Dança moderna, zo-odori, criada e desenvolvida nas eras Meiji, Taisho e
Showa;
Ushid’ku Udui, Usudaiko Odori em japonês, dança de caráter religioso, da
crença nativa, executada só por mulheres;
Eisa – uma dança popular do festival dedicado aos mortos, Bon Odori
Barske (2003), junto à revista Gekkan Ryûkyû Buyô (1999), propõe uma
divisão ainda mais detalhada:
Okinawa no Geinô (Artes okinawanas)
A. Taishii Geinô (Artes Populares)
1. Shima Uta (Músicas da Ilha)
2. Minyô (Músicas Folclóricas)
3. Hayari Ongaku (Musicas Populares)
4. Sôsaku Buyô (Danças criadas/ Trabalhos Originais)
5. Okinawa Shibai (Peças/ Dramas Okinawanos)
6. Kageki (Óperas)
7. Zô Odori (Miscelânea de danças populares)
a. Nuchibana (Dança de Flores Perfuradas)
b. Manjuru (Dança com chapéus feitos de trigo)
c. Tanchame (Dança de casais, representando a pesca e a colheita)
791
B. Koten Geino (Artes Clássicas)
1. Kumi Odori (Dança dramática em grupo)
2. Koten Ongaku (Músicas Clássicas)
3. Koten Buyô (Danças Clássicas)
a. Nisai Odari (Dança para homens jovens)
b. Onna Odari (Dança para mulheres)
i. Muto Nuchibana (Nuchibana Original)
ii. Kashiki (Dança do tear)
C. Minzoku Geinô (Artes Folclóricas)
1. Eis (Dança de Obon Okinawano)
2. Bô Odori (Dança da viga)
3. Hachi Gatsu Odori (Dança de Agosto)
Numa construção milenar, as danças okinawanas perpassaram anos e anos,
registrando simbolicamente traços elementares e rotineiros dos habitantes nativos
do antigo reino de Ryûkyû, assim como de imigrantes vindos para terras
estrangeiras. Por esse motivo, acredita-se que as danças tradicionais okinawanas
são verdadeiros diários de bordo sobre os acontecimentos vividos por essa
população, disponibilizando detalhes sobre processos específicos e construção de
suas identidades.
Por esse motivo, será discutido o processo criativo das danças como meio de
entendimento da identidade étnica okinawana em duas professoras de Ryûkyû Buyô,
vindas ao Brasil após o período da segunda guerra mundial. Entende-se que o
reconhecimento de suas histórias de vida, assim como seus envolvimentos,
792
preferências e não preferências em relação a dança sejam de fundamental
importância para a criação de um panorama sobre suas identidades individuais.
Para tanto, coloca-se logo em seguida a utilização da dança como arte e meio de
entendimento do ser humano em si, assim como o valor de seus processo criativos,
de acordo com os pensamentos antropológicos.
O valor expressivo da dança
Tão antigo quanto os indivíduos que a executam, a dança é uma das
atividades cênicas que não permitiu a expressividade humana se emudecer.
Transmiti seu valor pelos gestos e movimentos, ora cadentes ora descompassados,
fervilhando em energia junto com a música, cenário, figurino que a acompanha. Não
há como dançar e esquecer do seu caráter primordial de ser humano. Aquele que
nasce e se finda dentro de uma esfera emocional constante, se comunicando e
propagando sintonias com o universo espectador. O interessante é que não se
dança apenas para o vazio, dança-se para transmitir algo, mesmo que os olhos da
platéia sejam aqueles de si, refletidos em espelhos. Estudar a dança, como um
objeto construído pelas humanidades não parece se dissociar da natureza do corpo
e alma. É se unir a arte, entendendo-a como elemento complacente à vida. Afinal,
qual transmite o outro? A arte expressa a vida? Ou é ela quem dita a arte?
"A dança é tema recorrente e transversal para as humanidades, assim como
para a antropologia. Coloca-se a reflexão sobre os caminhos da prática etnográfica e
sobre o desenvolvimento da teoria antropológica" (GONÇALVES & OSÓRIO, 2012).
O Autor prossegue seu discurso retratando que "os estudos sobre a dança agregam
ainda interesses diversos, com caráter transdisciplinar e abertos a recortes e
caminhos metodológicos variados, refletindo sobre a prática etnográfica e sobre o
desenvolvimento da teoria antropológica” (GOLÇALVES & OSÓRIO, 2012).
Assim, o desafio da Antropologia da Dança no século vinte e um, diz
Camargo (2013), “não é apenas o de empregar o método etnográfico para investigar
a dança, mas também o de apontar uma nova linha de investigação capaz de revelar
como e porque a dança pode funcionar sobre uma ação social discursiva e afetiva
793
de uma ordem humana particular".
Segundo a posição crítica de Pereira (2010), nas últimas duas décadas,
a dança vem sendo colocada para a sociedade em forma de pesquisa, que
gera publicações, de dança que educa, de dança que deve integrar as
diferentes classes sociais e que poderá oferecer um norte a menores, que
antes estariam à margem. A grande maioria dos sistemas financiadores
nacionais, que premia ou apóiam projetos para os artistas independentes,
exige deles uma contrapartida, que inclui organização de palestras,
relatórios sobre processos de criação, oficinas, criação e direção de projetos
para grupos localizados nas periferias das grandes cidades. É importante
relembrar que no século passado cada profissional recebia ao longo de
seus estudos formaç ão específica para a área de futura atuação. Com
esta afirmação, não pretendemos sugerir uma volta ao passado, onde a
maioria dos profissionais não transitava entre diferentes áreas, todavia,
acreditamos ser de grande importância que os profissionais sejam
preparados, para poder interagir, e dialogar nos diferentes segmentos do
fazer dança. Para que a mesma não seja levada ao conhecimento da
população apenas como forma lúdica, ou do descobrimento das sensações
do próprio corpo, no qual a fase pré-socrática do 'descubra-se a si mesmo'.
Ou ainda que dança não seja apenas sinônimo de salvar populações
carentes.
Kaeppler (2000) ainda discute a existência de muitos pesquisadores, tratando
sobre as tradições envolvidas nas danças de suas culturas e de outras. Diz ainda
que as mesmas devem ser vistas como uma parte integral do modo de vida
global. ”Adiciona, ainda com a distinção entre as danças ocidentais e orientais, sobre
suas principais finalidades em relação a apresentação. "Diferente da dança do oeste,
em muitas outras partes do mundo, a dança não é apenas entretenimento"
(KAEPPLER, 2000).
Todavia, quando são tratados os recursos expressivos da dança, é ressaltado
o valor de seu processo criativo como meio efetivo para o reconhecimento dos
fazeres humanos. Por esse motivo, ao eleger este assunto como fundamental,
rapidamente se associa com os processos formadores da identidade individual ou de
grupo, sendo este o motivo pelo qual esta pesquisa se voltou a este assunto.
Observa-se a proximidade do processo criativo, como vestígio íntimo humano
aos alicerces da construção da identidade individual nas palavras de Ostrower, a
seguir.
Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em
qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse 'novo', de novas
coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos
relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato
794
criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua
vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Desde as primeiras
culturas, o ser humano surge dotado de um dom singular: mais do que
'homo faber, ser fazedor, o homem é um ser informador. Ele é capaz de
estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao
redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua
experiência de viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem
faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre
o homem relaciona e forma (OSTROWER, 1977).
O Ryûkyû Buyô, então, como uma dança antiga e extremamente associada
ao desenvolvimento daqueles que a exercem, parece claramente ser uma
ferramenta elaborada para o entendimento dos okinawanos (nativos e imigrantes) e
de sua cultura, tendo os adventos históricos como o reinado, a tomada da região
pelos naichi, a transição das artes para o meio popular e não mais como uma
atividade da nobreza, etc.
Em virtude de atender as atribuições deste estudo sobre a dança à
compreensão do indivíduo e ainda as marcas dos valores subjetivos depositados
simbolicamente nos processo de criação da arte, vê-se o momento de calcar tais
afirmações em conceitos antropológicos, cuja proposta é justamente lidar com
experiências de um indivíduos para a construção de sua identidade. Caso seja
considerado a expressividade da dança e seu processo criativo como um conjunto
de experiências acumulados pela vida, compartilhados com o outro, chega-se, enfim,
às bases mínimas para discussões antropológicas sobre a identidade e alteridade,
elaborados a seguir.
Contribuições da Antropologia
O conhecimento preliminar sobre os objetivos desta pesquisa e a composição
do corpus propõe uma abordagem teórica compatível com transformações
sincrônicas e diacrônicas em sistemas estruturais complexos presentes no processo
de construção das identidades individuais das professoras de Ryûkyû Buyô. Já é
permitido saber que o objetivo desta pesquisa perpassa dois momentos distintos dos
okinawanos, ao passo que se subentende um primeiro ocorrido antes das
imigrações para terras estrangeiras, ou seja, todo o momento do passado históricocultural construído percorrido pelas membros selecionados para a pesquisa; o
segundo momento, quando as okinawanas migram para terras longínquas e lá se
795
estabelecem, e por fim, o terceiro momento, no instante que os costumes
tradicionais são desenvolvidos nos país estrangeiro.
Observa-se que as três etapas são bem definidas e de extrema importância
para o entendimento sintetizado de todo o processo vivenciado pelas imigrantes.
Assim, estabelece-se uma relação direta com os trabalhos desenvolvidos pela
antropologia cultural.
"O campo dessa disciplina especial é vastíssimo, pois ela se propõe a estudar
a obra humana. Ora, a obra que se denomina cultura é este conjunto complexo
citado anteriormente" (MELLO, 2002, p.37).
Para tanto, é importante observar, não somente a cultura, mas suas
interações em prol da construção da identidade étnica, levando-se em consideração
sua própria definição. "Identidade é, então, o conjunto de caracteres próprios e
exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos,
impressões digitais, etc” (LIMBERTI, 2007). "A noção de identidade tornou-se um
dos conceitos mais importantes de nossa época, na medida em que o conhecimento
da diversidade passa pela definição das identidade étnicas” (SILVA, 2006).
Fala-se, a esse respeito, dos seus eixos criadores, ou seja, a interessante
relação entre o self e other. Segundo Mori (2003), o termo japonês minzoku
(identidade) é formado pela união dos termos citados na frase anterior, quando o self
engloba a sua própria existência, enquanto o other atende ao vivenciado pelo alheio.
Mori cita as palavras de Uchibori (1989) para elucidar o processo de formação da
identidade étnica. “Uchibori argumenta que o processo da etnogênese envolve
negociações ideológicas entre self e o other.
Continuando, as afirmações feitas anteriormente estão diretamente de acordo
com o conceito antropológico de alteridade, conceito primordial para esta pesquisa.
A temática, no entanto, sempre esteve presente nas reflexões dessa ciência. Para
ela,
a alteridade se constitui, desde a sua emergência, em desafio a ser
explicado, posto que a antropologia se estrutura sobre a temática cultura.
Nesse sentido, tem prestado relevantes contribuições na medida em que
suas investigações tratam de mostrar o outro como diferença, desvendando
suas características e especificidades. Das leituras do diverso, calcadas na
796
comparação com a cultura européia que marcaram seu início ao
reconhecimento e defesa das diversidades um longo trajeto foi percorrido,
sendo que o desafio da ciência antropológica é hoje muito maior. Afinal, se
no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma
realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é
também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de
confundir certezas pois, não se trata mais de outros povos, outras línguas,
outros costumes. O outro hoje, é próximo e familiar, mas não
necessariamente é o nosso conhecido (GUSMÃO, 1999) e (ZANELLA,
2005)
A antropologia “combina interesses em compreender o mundo com a
preocupação em desvendar os códigos culturais da vida cotidiana, desvendando
problemáticas que estão na ordem do dia sobre a produção da diferença cultural,
práticas tradicionais, etc” (FELDMAN-BIANCO, 2011).
Continuando,
sempre esteve às voltas com a alteridade, seja em campo ou mesmo
recolhendo informações de viajantes, missionários, agentes colonialistas
dentre outros […] a relação de alteridade estava, e está, presente, não no
contato direto com o ‘Outro’ distante, mas no contato com os informantes
que com eles conviviam e que deles retiravam – mas também deixavam –
impressões que se somavam, e se somam, ao vocabulário universal das
diferenças – e, por vezes, semelhanças – existente entre sujeitos e culturas
em todo o mundo (NASCIMENTO, 2013).
Estudar antropologia cultural consiste então em promover conhecimento
sobre o saber de si em relação ao outro. Perceber a existência do homem social na
sua interação e interdependência com seus semelhantes, ao passo que o “euindividual” só é possível diante de um contato com o outro (outra cultura).
Sendo assim, a transição cultural provocada pelo fluxo migratório pode ter
influenciado as relações similares entre as estruturas culturais, induzindo a possíveis
peculiaridades no processo identitário das professoras de Ryûkyû Buyô. Seus
parâmetros múltiplos e modelos em transição são hipoteticamente registrados nos
processo criativos. Em outras palavras, as professoras vivenciaram a aprendizagem
das danças em escolas okinawanas, com mestres okinawanos e posteriormente
continuaram suas aprendizagens em terras brasileiras, onde necessitaram continuar
seus desenvolvimentos sob a ótica de uma nova cultura regional. Por este motivo,
questiona-se sobre quais imagens criaram para si sobre suas próprias criações
artísticas. Estas são obras fiéis aos ensinamentos okinawanos ou, devido a todos os
efeitos transculturais, os produtos finais acabam sendo hibridados? Quais são os
797
espelhos que propagam as imagens criadoras de suas identidades?
Em vista dos questionamentos, o desenvolvimento deste trabalho e de futuros,
tem como objetivo principal entender a construção da identidade étnica individual
nas 5sensei de Ryûkyû Buyô, através do entendimento proveniente de experiências
e fatos importantes nas suas histórias de vida. Busca-se compreender o
desenvolvimento das artes okinawanas no universo individual de cada professora,
analisando seus momentos primordiais com as atividades artísticas, atribuindo
dificuldades e motivações, as quais as levaram a aprender e evoluir como
aprendizes, até se tornarem sensei. Pretende-se ainda, averiguar o processo criativo
da dança como um recurso misto entre o self e o other (experiência vindas do
subjetivo de cada sensei, somado aquelas adquiridas através do “outro” ou do
universo alheio). Neste momento, busca-se entender cada sensei como profissional
geradora da arte, quem utiliza de seus recursos subjetivos e do reconhecimento de
seus aprendizes para iniciar o processo criativo do Ryûkyû Buyô.
O percurso do reconhecimento
Para que as informações sobre a vida das sensei e sobre o Ryûkyû Buyô se
tornassem transparentes, um processo de reconhecimento de campo prévio foi de
extrema importância, delegando a preocupação primeira de estabelecer contanto
entre o pesquisador e as instituições envolvidas (escolas e associações okinawanas
em São Paulo.
Sabe-se de antemão que as professoras de dança tradicional okinawana
(membros da Ryûkyû Buyô Kyokai do Brasil) costumam se reunir periodicamente no
Kenjinkai chamado de Associação Okinawa Kenjin do Brasil, localizado no bairro da
Liberdade na cidade de São Paulo.
Felizmente, o desenvolvimento deste estudo não esbarrou em barreiras
burocráticas, pois o presidente deste estabelecimento, senhor Shinji Yonamine,
concedeu gentilmente as dependências do local para a realização desta pesquisa,
assim como a senhora Chieko Chibana, presidente do Ryûkyû Buyô Kyokai do Brasil,
quem se manifestou disponível e receptiva, representando a aceitação do grupo de
798
professoras para com as intenções do pesquisador. Graças a este bom
relacionamento estabelecido, outras portas exploratórias foram abertas, uma vez
que há o total interesse em desvendar as peculiaridades dos desenvolvimentos das
danças em ambientes individuais, como os dojos ( ǂ ª - Escolas) de cada
professora escolhida.
Entende-se, na verdade, todo este processo inicial, como um momento
etnográfico, sabendo-se que “etnografia" (éthnos, “povo” + gráphein, “descrever” +
ia) incorpora os significados, em princípio, de escrita e descrição de algo” (SOUSA,
2000). “Entende-se pelo momento etnográfico como reconhecimento dos costumes
e da vida dos povos, englobando a classificação, descrição e análise dos fenômenos
culturais particulares” (MELLO, 2002).
Sendo assim, as professoras de danças tradicionais okinawanas foram
selecionadas de modo não aleatório, mas através de uma escolha proposital. Foi
requisitado a participação daquelas, com as quais fossem possíveis reconhecer um
processo de vida o mais distinto possível em comparação ao outro em diversos
aspectos, como local de nascimento, vida em terra nativa, vinda ao Brasil, vida
desenvolvida em terras brasileiras e experiências dadas pelo aprendizado das artes
de dança tradicional de acordo com o estilo de suas escolas. Deste modo, Yoko
Gushiken sensei da escola Tedahakuyo e Yoriko Shimabukuro sensei da escola
Takaryu Hana foram convidadas a participar desta pesquisa.
É conhecido, a pré-existência de diferenças notórias entre a vida de uma
professora e outra, no que diz respeito as influências familiares no envolvimento com
as artes tradicionais okinawanas, por exemplo. Numa exploração breve a esta
pesquisa, constatou-se que a professora Yoko passou mais tempo em Okinawa em
comparação com a Yoriko sensei, tendo ainda o pai como dono de um teatro, onde
apresentações artísticas eram constantes. Dados como estes, por exemplo,
denotam a intensidade com a qual a cultura de uma região e outra pode se suceder
sobre cada professora. Assim, questiona-se sobre prováveis interferências da
história de vida de casa sensei sobre seus processos criativos. Será possível a
existência de uma legítima generalização gestual e estética na montagem e
execução das coreográficas, sabendo-se da rigidez imposta pelas escolas de ensino
799
de danças tradicionais, onde todos passam pelo mesmo caminho e aprendem as
danças básicas da mesma forma? Ou a vinda ao Brasil, a mudança de costumes, a
pertença a estilos de ensino distintos destituíram as rédeas impostas pela cultura do
“ser igual ao outro” e transformaram seus processos criativos em fenômenos mais
singulares? Esses questionamento são fontes inspiradoras para outras vertentes,
não somente etnográficas, mas também etnológicas. Por isso, diz Gutwirth (2001)
“todo etnólogo observará em campo a existência de correlações entre os níveis de
uma realidade social, analisando o desenvolvimento histórico de uma cultura e a
relação entre as culturas”.
Assim, como é tratado da oposição direta entre os costumes e histórias de
vida, foi encontrado através de uma metáfora o eixo estrutural para basear, pelo
menos em instância inicial, as argumentações sobre como os processos
criativos/identidades são geradas pelo jogo didático recorrente neste processo.
Para melhor elucidar os caminhos estabelecidos pela proposta deste trabalho,
vale-se do belo estudo de Novaes (1993), sobre a construção da auto-imagem
através da associação metafórica ao jogo de espelhos, elucidando como ocorre a
construção da auto-imagem ou mesmo da identidade.
Quando uma sociedade focaliza um outro segmento populacional, ela
simultaneamente constitui uma imagem de si própria. A partir da forma
como se percebe aos olhos deste outro segmento. É como se o olhar
transformasse o outro em um espelho, a partir do qual aquele que olha
pudesse enxergar a si próprio. Cada outro, cada segmento populacional, é
um espelho diferente, que reflete imagens distintas entre si. Sendo vários os
segmentos populacionais com que uma sociedade convive e sobre os quais
ela lança seu olhar, são distintas as imagens que uma sociedade pode
produzir. […] Em imagens, que se formam a partir do modo como uma
sociedade se vê refletida pelos olhos do outro não são, tampouco, imagens
estáticas, imunes às mudanças. São exatamente estas imagens refletidas a
partir do outro que permitem alterações, tanto na minha auto-imagem como
na minha conduta, e este termo deve ser aqui tomado em seu sentido literal,
alter/ações - as ações que assumo em função do outro. Tomar o espelho
com metáfora que permite a compreensão da auto-imagem de uma
sociedade é procurar enveredar pelos processos de reflexão e especulação
que ela elabora sobre si, a que o próprio termo 'espelho' induz. O jogo de
espelhos é, assim, uma metáfora que me parece bastante adequada para
ilustrar, tanto o processo de formação, como as transformações da autoimagem de uma sociedade em contato com grupos sociais diferentes de si
própria.
É fundamental compreender que a aplicação individualizada do estudo para
cada sensei participante é altamente guiada pelo conteúdo teórico disposto acima. A
800
escolha sistemática das sensei, compartilha da representação metafórica dita por
Novaes, na medida em que as identidades étnicas individuais parecem assumir a
característica de serem criadas umas em relações as outras, assim como imagens
refletidas em espelhos. Ou seja, todas as atividades do Ryûkyû Buyô, assim como
formação de caráter, personalidade, costumes, entre outros referentes são
imaginados como produtos de uma complexa comparação de si com os mesmos
processos alheios. Somente para exemplificar, pode-se entender esta especulação
através, por exemplo, da escolha dos trajes para uma coreografia específica feita por
uma sensei. Após o reconhecimento sobre os elementos elegidos para um
espetáculo, esta hipotética professora inicia sua criação, partindo do seu plano de
experiências individuais e aquelas criadas a partir da imagem dos outros, dando
assim uma auto-imagem (processo identitário) de si e de seu próprio processo
criativo.
Considerações Finais
É observado através do contato breve com as atividades do Ryûkyû Buyô,
assim como informações primeiras sobre a história de vida das sensei participantes,
que o reconhecimento de uma identidade individual é uma tarefa igualmente árdua
ao de grupo, pois há a necessidade de se mergulhar profundamente nos pequenos
universos gerados pelos subjetivos de cada indivíduo analisado, e entender sua
maneira de interação com estruturas alheias, antes mesmo de compreender os
macro sistemas do coletivo humano. Por fim, aprofundar-se em questões como
aquelas apresentadas anteriormente são de extremo interesse para trabalhos
futuros, elaborando apontamentos superficiais e pilotos desta pesquisa sobre a
identidade okinawana e sua cultura.
Notas
1
Buyô: termo japonês para dança.
Ken: eram províncias - novas unidades administrativas regionais, as quais substituíram o Han.
3
Han: feudos ou daimiatos de todo o território japonês.
4
Naichi: significa o termo para se referir as ilhas principais do Japão (SHINMURA, 1998)
5
Sensei: Termo japonês para professor.
2
801
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Alexandre Cardoso Oshiro
Graduação em Ciências da Atividade Física pela Universidade de São Paulo (USP).
Mestrando pelo programa de pós-graduação Língua, Literatura e Cultura Japonesa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP). Endereço para
correspondência: Rua do Lago, 717 - Prédio da Diretoria e Administração - Cidade
Universitária. CEP: 05508-080 - São Paulo - SP - Brasil. Fone/ fax: (11) 3091-4612.
E-mail: oshirosan@usp.br
803
A FUNÇÃO DAS TRADIÇÕES TEATRAIS ORIENTAIS NO TRABALHO DE
CRIAÇÃO DO THÉÂTRE DU SOLEIL
Aline de Almeida Olmos - UNICAMP
Orientador: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici
RESUMO: Diversos são os grupos e os diretores teatrais que têm influências orientais em
suas pesquisas. Eugênio Barba, Peter Brook, Meyerhold, Artaud e Brecht são alguns dos
famosos exemplos que aqui poderiam ser citados. As influências orientais presentes nos
espetáculos do Théâtre du Soleil, grupo dirigido por Ariane Mnouchkine, se manifestam de
maneira distinta em cada processo criativo da companhia. Neste artigo analisaremos
brevemente desde as primeiras experiências de direção de Mnouchkine até o espetáculo La
Ville parjure ou le réveil des Érinyes encenado em 1994, com o objetivo de evidenciar como
determinadas tradições orientais foram incorporadas ao trabalho da companhia bem como
quais foram as funções exercidas por estas nos trabalhos criativos do grupo. O Théâtre du
Soleil se mostra como objeto de estudo exemplar para analisar outras formas de
apropriação ocidental das descobertas teatrais orientais, pois o grupo se relaciona com o
oriente sem deixar de com isso criar espetáculos atuais e completamente acessíveis ao
público ocidental. No trabalho do grupo não se busca a imitação das tradições orientais, mas
a descoberta de princípios e de mecanismos de trabalho que possam ser empregados em
práticas distantes destas tradições.
.
Palavras-chave: teatro, interculturalismo, cruzamento entre culturas.
SOMMAIRE: L'Orient exerce des influences sur les recherches de nombreux metteurs en
scène et de groupes théatrales. Parmi beaucoup d'autres exemples nous pouvons nommer
Eugênio Barba, Peter Brook, Meyerhold, Artaud et Brecht. Les influences orientales
présentes dans les spectacles du Théâtre du Soleil, mis en scène par Ariane Mnouchkine,
se manifestent de manière unique dans chaque création du groupe. Dans cet article nous
explorerons les prémières éxpériences du travail de Mnouchkine jusqu'au spetacle La ville
parjure ou le réveil des Érinyes, répresenté en 1994. Notre but c'est de mettre en évidence
comment les traditions orientales sont introduites dans chaque travail de la compagnie, et de
plus les fonctions qu'elles y entraînent. Le Théâtre du Soleil est un exemplaire de
l'appropriation occidentale des découvertes théâtrales orientales, puisque le groupe est
capable de créer, avec les références orientales, des spectacles actuels et accessibles au
publique occidental. Cette accessibilité des spectacles ressort des efforts du groupe de ne
pas reproduire les traditions orientelles, en chercheant, par contre, découvrir des bases et
des mécanismes de ce travail de création théatrale qui peuvent être appliqués au théâtre
occidental – ceci éloigné de ces traditions.
Mots-clés: théâtre, interculturalisme, croisement de cultures.
Em 1959 Ariane Mnouchkine tem suas primeiras experiências como diretora
teatral na ATEP (Association Théâtrale des Étudiantes de Paris), fundada por ela
mesma e alguns colegas na Université Sorbonne. Um dos principais objetivos desta
associação era de investigar novas formas teatrais que auxiliassem os integrantes a
804
fazerem produções teatrais capazes de fugir da estética realista. Devido a esta
busca os participantes da associação estudaram commedia dell’arte e entraram em
contato com algumas tradições teatrais orientais. Também neste período o teatro
francês Théâtre des Nations se empenhou em oferecer uma programação bastante
diversificada em que trouxe para o público parisiense espetáculos de ópera chinesa,
de kathakali e grupos como Berliner Ensemble dentre outros que ampliaram as
referências teatrais dos espectadores.
A primeira direção teatral de Ariane Mnouchkine se realizou nesta associação
em 1961 com a peça Gengis Khan, escrita por Henri Bauchau. Este espetáculo foi
influenciado pela ópera chinesa, tradição teatral assistida pela diretora no Théâtre
des Nations e buscou colocar em prática os ideais defendidos e aprendidos na
associação relacionados a busca por um teatro não realista. Sobre a criação do
espetáculo Mnouchkine afirma: “(quando montei Gengis Khan) eu já tinha apreciado
a ópera chinesa no Théâtre des Nations e já me inspirava um pouco no teatro chinês,
mas eu não sabia nada na época. Apenas tentava ser meticulosa e organizada”
(PASCOUD, 2011, p. 46).
A partir dos poucos estudos e relatos sobre esta criação podemos inferir que
provavelmente a abordagem feita pela diretora desta tradição chinesa tenha ocorrido
de forma simples e intuitiva neste espetáculo, uma vez que seu conhecimento de
ópera chinesa não era profundo, como ela relata. Porém, é importante notar que tal
carência teórica e referencial com relação a esta tradição não impediram a diretora
de usá-la como inspiração para sua criação.
Neste processo criativo observa-se uma das maneiras que será desenvolvida
nas próximas criações do grupo de abordagem das tradição orientais. Trata-se de
uma relação que não é determinada por um conhecimento profundo e prévio da
referência utilizada, mas que lida com a ideia que possuem de tal tradição e a parir
dessa suposição trabalham em improvisações. Esta forma de se relacionar com uma
determinada referência oriental encontrará seu desenvolvimento máximo no ciclo de
peças do grupo chamado Les Shakespeares (Os Shakespeares) de 1981. É
interessante notar também que já nesta primeira abordagem da companhia de uma
tradição estrangeira tal referência exerce a principal função de auxiliar os atores a se
805
distanciares de uma atuação próxima da linguagem realista.
Após a realização deste espetáculo os participantes da ATEP decidiram tomar
dois anos de pausa antes de continuarem seus planos teatrais em conjunto. Neste
período cada um pôde terminar seus afazeres pessoais como graduações, trabalhos
e cursos, a fim de que, posteriormente a este intervalo, pudessem se dedicar
exclusivamente a atividade teatral em grupo. Mnouchkine aproveitou este período
para realizar um antigo sonho de infância: ir à China que para ela, naquele momento,
representava o reino da beleza, do mistério e da aventura.
Sem conseguir imediatamente o viso chinês Mnouchkine iniciou sua viagem
pelo Japão onde ficou cinco meses e lá ficou impressionada com as apresentações
de teatro nô e de kabuki que presenciou. A diretora relata seu entusiasmo diante da
primeira apresentação de kabuki que assistiu em um teatro de Asakusa, bairro de
Tóquio:
Era um teatro minúsculo, onde eu tive o choque da minha vida ao observar
um ator que não saberei nunca o nome. Com um simples tambor, ele
representava sozinho uma batalha. Este homem, em duas horas de teatro,
me ensinou tudo. Ele me mostrou que o teatro era sempre possível, que ele
poderia contar tudo. Eu compreendi que mesmo nos teatros mais simples,
se um ator tem coração, ele pode nos transportar até o fundos dos campos
mais distantes. Era em 1963. Eu nunca saberia quem era este ator, mas ele
ocupa um grande espaço dentro da minha mala de tesouros (PICONVALLIN, 2004).
Além desta marcante experiência nesta viagem a diretora foi para Bangcoc na
Tailândia, onde entrou novamente em contato com o teatro chinês que pode assistir
em uma praça pública, depois partiu para o Camboja onde ficou maravilhada com as
belezas do país e com a cultura local. Posteriormente, foi para Calcutá, onde
observou de perto a fome, a pobreza e a clara presença da morte. Devido ao choque
diante de tamanha carência na Índia, a diretora seguiu em direção ao Nepal onde
passou um período vagando a pé pelo país. Após este momento de pausa e reflexão
voltou à Índia que, segundo ela, virou seu “segundo país” (PASCAUD, 2011, p.53) e
entrou novamente em contato com o kathakali, tradição indiana que já havia
assistido em Paris no Théâtre des Nations. Após a Índia, a diretora seguiu viagem
para o Paquistão, depois para o Afeganistão, terminando sua trajetória na Turquia
sem nunca pisar no primeiro destino desejado porque no período as dificuldades
eram muito grandes para se conseguir um visto chinês. Esta viagem marcou o
806
estabelecimento de relações profundas e intuitivas entre a diretora e algumas
tradições orientais, que aos poucos, foram desenvolvidas nos seus futuros
processos criativos.
De volta à França, junto com seus colegas da ATEP Mnouchkine fundou o
Theâtre du Soleil. Os primeiros dezoito anos de criação da companhia não foram
marcados pela relação direta com nenhuma influência teatral oriental específica.
Neste período foram criados os espetáculos: Les petits Bourgeois (Os pequenoburgueses) em 1964, Le capitaine Fracasse (O capitão Fracasso) em 1966, La
cuisine (A cozinha) em 1967, Le songe d’une nuit d’été (Sonho de uma noite de
verão) em 1968, Les clowns (Os palhaços) em 1969, 1789 em 1970, 1793 em 1972,
L’Âge d’or (A era do ouro) em 1975 e Mephisto (Méfisto) em 1979.
Este primeiro período de criações do grupo se caracteriza principalmente pela
busca por uma linguagem popular, pelo estabelecimento do processo de criação
coletivo na companhia e pela pesquisa da criação dramatúrgica feita pelo grupo com
o objetivo de possibilitar a criação de espetáculos que tratassem da realidade que os
cercava e que fossem capazes de suscitar um questionamento sobre as decisões
políticas da época. Este período foi influenciado principalmente por tradições
populares de teatros ocidentais como a commedia dell’arte, o trabalho com o jogo
dos palhaços e princípios presentes em teatros populares realizados em ruas e
feiras.
As relações da companhia com determinadas tradições orientais se
estabelecem claramente em 1981 quando o grupo montou o ciclo Les Shakespeares
(Os Shakespeares) composto por Richard II (Ricardo II) criado em 1981, La nuit des
rois (A noite de reis) em 1982 e Henry IV (Henrique IV) em 1984. O processo criativo
do primeiro espetáculo iniciou-se partindo das referências mais diretamente ligadas
ao universo Shakesperiano, passando por guerreiros medievais e figurinos típicos,
porém, diante da insuficiência dessas referências para o trabalho de improvisação,
os atores passaram a pesquisar outras fontes de inspiração e chegaram ao filme
Kagemusha de Akira Kurosawa. Nas palavras de Mnouchkine:
Eu quis escapar da imagem um pouco sem graça da idade média do tipo
“Thierry la Fonde”. O cinema japonês, por exemplo, guardou muito mais
testemunhos dos tempos de cavaleiros do que os países ocidentais
807
(SERRES, 1982 apud QUILLET, 1999, p. 83).
Assim, a partir deste filme o Oriente entrou como referência básica para a
criação de Richard II e Henry IV, como descreve a diretora:
Quando nós decidimos montar Shakespeare, o recurso ao Oriente se tornou
uma necessidade, porque Shakespeare se situa nas metáforas das
verdades humanas. Nós procuramos, então, como colocá-lo em cena
evitando a qualquer preço o realismo e o prosaísmo (MNOUCHKINE, 1986).
Mais especificamente do que o Oriente de forma geral os dois dramas
históricos shakespearianos tiveram o kabuki, teatro popular japonês, como
referência para criação. O que a diretora buscava ao se valer desta tradição, como
explica Anne Neuschafer era:
A recriação de um ambiente específico para a aquisição de certas técnicas
que permitissem que os atores alargassem seus repertórios de formas
teatrais (...). Para isso, Ariane Mnouchkine sugere aos atores de
trabalharem ‘como se fossem...’” (NEUSCHÄFER, 2002, p.220).
Próximo ao trabalho que inferimos ter ocorrido na criação de Gengis Khan a
referência do kabuki nestas encenações também passou pela imaginação e pela
sugestão. A proposição da diretora era a de que os atores do Théâtre du Soleil
trabalhassem como se fossem atores de kabuki. Mesmo ciente da distância
existente para a realização desta forma de interpretação japonesa e dos anos de
treinamento que ela requer Mnouchkine, se aproximando do conceito do “Se
mágico1” proposto por Stanislavski, chamava os atores, como em um jogo de criança,
para “fazerem de conta” que eram atores desta tradição. A diretora comenta este
processo de criação:
Vocês conhecem aquela pergunta mágica: “E se nós fossemos uma trupe
japonesa?” Imediatamente, isso quer dizer que não seremos mais nós
mesmos. E isso é a flor do teatro: a felicidade de não ser mais você, de
deixar vir o outro, o desconhecido. “Parece até que é verdade!” Certas
frases da infância nos são indispensáveis (PASCOUD, 2011, p.52).
É importante notar que Mnouchkine não buscou fazer Shakespeare na forma
kabuki diretamente, como ela diz: “Nada é japonês em Ricardo II: as referências ao
kabuki, ao teatro nô, ao bunraku se mantêm ao lado do rito, como vestígio e não
como molde” (HELIOT, 1982 apud QUILLET, 1999, p.83). Seu objetivo não era
dominar ou copiar estas formas cênicas. Ao sugerir para seus atores de se
imaginarem como atores desta tradição ela procurava auxiliar no desenho de seus
808
corpos, a impulsionar suas imaginações, a levá-los para um universo distante da
realidade e mais próximo do da ficção trabalhada. A diretora propôs uma nova
referência que auxiliou os atores a encontrarem uma forma cênica e por
consequência um jogo teatral.
Nós ocidentais só criamos formas realistas, Isto quer dizer que nós não
criamos uma “forma” propriamente dita. No momento em que utilizamos a
palavra “forma”, já se implica uma noção oriental, quando falamos de teatro.
É isso que nós buscamos sempre, uma forma (MNOUCHKINE, 1986).
A comédia, La nuit des rois contou com referências de danças indianas para
sua criação. E em seu processo criativo os atores fizeram aulas da dança indiana
bharata natyam durante as manhãs de trabalho e nos períodos da tarde e da noite
improvisavam o texto de Shakespeare tendo esta prática corporal como referência.
Ou seja, o Oriente trouxe ferramentas teatrais que possibilitaram o grupo a
representar o complexo “homem shakespeariano” de maneira extremamente
distante da convencional. Mnouchkine acredita, desta forma, ter aproximado
Shakespeare dos ocidentais, pois ao abordá-lo por meio de tradições desconhecida
para a grande maioria do público, ela criou um distanciamento que instigava a
abertura do olhar do espectador para estas histórias. Uma vez que ao assistir os
personagens guerreiros vestidos com saias volumosas e não com armaduras de
ferro medievais, por exemplo, observa-se que o imaginário do espectador é obrigado
a se deslocar e a se abrir para estas novas imagens. Além disso, tal aproximação foi
possível pois, as referências orientais presentes no espetáculo eram acessíveis a
todo o público, não se fazendo necessário nenhum conhecimento prévio de kabuki
ou de danças indianas para compreende-las.
As referências orientais, nestas montagens, não foram usadas apenas para o
trabalho dos atores, elas estavam também claramente presentes no espaço
cenográfico, nos objetos cênicos, nas maquiagem, nos figurinos e na presença
constante da música, como descreve Françoise Quillet, importante teórica sobre a
relação do grupo com tradições orientais (QUILLET, 1999, p. 84).
O espaço cenográfico, que era igual nas três peças do ciclo, continha uma
passarela que ligava o palco à coxia que era uma referência ao hashigakari,
(espécie de ponte presente nos palcos de teatro nô que também liga o palco a coxia).
Além disso, continha telas ao fundo e cortinas que se assemelhavam às presentes
809
nos espetáculos de kabuki e o espaço reservado aos músicos no palco estava
posicionada da mesma maneira que se encontra nos palcos desta tradição, com a
única diferença de que no Théâtre du Soleil esta área era completamente visível.
Dentre os objetos cênicos presentes nos espetáculos destaca-se o uso de
sombrinhas trazidas por servidores de cena (outra referência oriental) para sinalizar
personagens ilustres, sendo esta uma referência também presente na ópera chinesa,
no kathakali e no topeng, o uso do mar, em cena, feito com seda presente também
no kabuki e o uso de estruturas de bambu para criação de prisões ou castelos em
cena que são inspiradas nos teatros japoneses. As maquiagens eram inspiradas nas
do kabuki e nas da ópera chinesa e as máscaras foram feitas a partir da referência
do teatro nô e da commedia dell’arte. Os figurinos lembravam as silhuetas presentes
nos espetáculos de kabuki e eram compostos por saias longas e volumosas.
O ciclo dos Shakespeares contou também com a presença constante da
música em suas encenações acentuando a atuação dos atores, preparando suas
entradas, saídas e os climas dos espetáculos. Neste ciclo Jean Jacques Lemêtre,
músico do grupo, participa de todo o processo criativo e o papel da música nos
espetáculos da companhia passa a ser diretamente associado à forma como este
elemento está presente nos espetáculos de kabuki devido principalmente à forte
relação da execução da música com o trabalho dos atores.
O uso de materiais luxuosos e de extrema beleza presentes nas encenações
e a ideia oriental do “alargamento” do tempo são ainda outros pontos de contato
existentes entre estas encenações e o pensamento teatral oriental. O Théâtre du
Soleil ao representar em certas ocasiões os três espetáculos em sequência
estabelecia tempos de representação parecidos com os propostos por algumas
tradições orientais, como por exemplo o kathakali, chegando a aproximadamente
dez horas de duração.
É interessante notar que o Oriente que primeiro surgiu para a diretora como
lugar “encantado” e misterioso antes da realização de sua viagem, só se fez
realmente presente como inspiração direta para suas criações dezoito anos depois
neste ciclo de espetáculos. Neste as tradições orientais tidas como referência têm
como principal função ajudar o grupo a redescobrir o tesouro teatral ocidental que
810
são os textos de Shakespeare e auxiliar na descoberta de uma forma física, distante
da estética realista, para que a encenação se concretize. Estas funções exercidas
pelas tradições orientais revelam que o grupo busca no Oriente ferramentas e
conhecimentos para redescobrir o teatro e para melhor executar seus projetos, tratase de um interesse nestas tradições que é diretamente aplicado na prática do grupo
e não em uma investigação para copiar ou reviver uma outra tradição.
O espetáculo seguinte criado pelo grupo foi L’Histoire terrible et inachevée de
Norodom Sihanouk roi du Cambodge (A história terrível porém inacabada de
Norodom Sihanouk rei do Camboja) de 1985. Esta peça contava vinte e quatro anos
de história do Camboja (de 1955 a 1979), tendo como personagem principal o
príncipe, depois rei, Norodon Sihanouk. O espetáculo mostrava o golpe de Estado
ocorrido em 1970 no país que levou os Khmers vermelhos ao poder e,
consequentemente, Sihanouk ao exílio em Pequim, descrevia a ditadura sangrenta
estabelecida por estes novos governantes e finalizava sua encenação retratando o
início do controle Vietnamita no país expulsando dos Khmers vermelhos do poder.
A encenação começou a ser trabalhada em 1985 e foi finalizada em 1986. Os
períodos de poder de Sihanouk no Camboja foram de 1941 a 1955 como rei e de
1955 a 1970 como primeiro ministro e depois de 1993 a 2004 como rei novamente.
Ou seja, durante as apresentações Sihanouk ainda estava vivo (seu falecimento
ocorreu em 2012) tendo ele assistido a uma das representações do espetáculo.
A motivação para a montagem deste espetáculo tem forte relação com a
viagem ao Oriente feita por Ariane descrita anteriormente. Ao visitar o país a diretora
ficou maravilhada e descreve que era muito difícil imaginar que pouco tempo depois,
(a diretora visitou o Camboja em 1964) ocorreria o genocídio de quase três milhões
de cambojanos pelos Khmers vermelhos. Para a diretora a figura do rei Sihanouk
representava:
Drama individual no centro de um drama coletivo, ele se encontra no
coração de uma das tragédias mais importantes do século XX, o massacre
do povo khmer, e é vítima de um destino político mundial, jogado entre os
americanos, os chineses, os russos e os europeus. Além disso, rei de poder
divino, ele abdica para se apresentar às eleições se tornando assim a
metáfora da entrada do Oriente na era democrática moderna. A escolha
deste assunto satisfazia o problema fundamental do Théâtre du Soleil de
religar Oriente e Ocidente, noções já caducas diante do caráter mundial da
811
política e da economia do século XX (QUILLET, 1999, p. 90).
Falar da história do Camboja por meio da figura do rei Sihanouk para o grupo
representava principalmente descrever a influência do Ocidente no Oriente, uma vez
que os acontecimentos históricos ocorridos no país descritos na peça foram
influenciados por questões políticas mundiais. Além disso, pelo fato do personagem
protagonista do espetáculo representar uma importante figura histórica e estar ainda
vivo durante as encenações, o espetáculo representava uma tentativa de fazer o
teatro falar à sua contemporaneidade, de ligar passado e presente assim como de
ligar Oriente e Ocidente.
Uma das características Orientais existentes nesta peça foi a presença
simultânea, em cena, de personagens representando figuras mortas e de outros
representando figuras vivas. Existiam duas funções dramáticas exercidas por estes
personagens “mortos” na peça. A primeira era exercida pelo personagem do pai de
Sihanouk que já iniciava a peça morto e tinha a função de desenvolver as ações
internas da peça, pois ouvia as confissões de seu filho e o aconselhava. Para tal
personagem o ator utilizou figurino e máscara influenciados pelas marionetes e
pelos atores do Camboja que atuavam nas grandes epopeias do Ramayana ou do
Mahabharata. A segunda função era exercida pelos personagens “mortos” nos quais
o público assistia a suas mortes durante a encenação. Estes concretizavam
teatralmente a ponte entre o passado e o presente, entre o fato histórico e o público
do espetáculo, pois falavam diretamente com os espectadores “agindo sob o mundo
real a partir desses diálogos” (QUILLET, 1999, p. 91).
Quillet, associa esta segunda categoria de personagens mortos a tradição
teatral japonesa do teatro nô:
Como os shite no teatro Nô, eles trazem de volta a alma não aliviada mas,
ali onde o shite, cedendo à insistência do waki, obtêm a benção eterna
depois de ser liberado de seus tormentos - revivendo sua passagem para a
morte uma última vez -, eles não encontrarão a paz ao menos que a
emoção motivada pelo drama no coração dos vivos faça-os se levantarem,
para impedir na realidade tragédias parecidas (QUILLET, 1999, p. 91).
A autora também enumera em sua análise desta peça elementos concretos
presentes nos espetáculos que eram ecos de algumas tradições orientais, são eles:
a presença no espetáculo de sombrinhas acompanhando os personagens mais
812
importantes, o deslocamento de alguns personagens da peça que lembrava a
maneira como as personagens femininas da ópera chinesa caminham, a música de
Jean-Jacques Lemêtre que continuava a fazer parte intrínseca do espetáculo
acompanhando toda a encenação, a cortina presente no fundo do palco que
lembrava os teatros da Indonésia como o topeng e o wayang wong e o cenário feito
em madeira que também remetia à cena oriental. (QUILLET, 1999)
L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge foi a
primeira contribuição dramatúrgica que Hélène Cixous fez ao Théâtre du Soleil e
representou o desejo de Ariane Mnouchkine, descrito por Quillet de “Não mais se
referir ao Oriente como simples depósito de ferramentas teatrais, mas também como
território político contemporâneo” (QUILLET, 1999, p. 89). Ou seja, apesar de contar
com referências orientais concretas e formais, sendo elas o teatro de sombra do
Camboja e as máscaras balinesas topeng a principal relação estabelecida com o
Oriente neste espetáculo foi dramatúrgica.
O próximo trabalho do grupo foi o espetáculo L’indiade ou l’inde de leurs
rêves (A Indíada ou a Índia de seus sonhos). Esta peça começou a ser trabalhada
em 1987 e teve suas apresentações realizadas em 1988. Segundo texto escrito por
Hélène Cixous para o Théâtre du Soleil, este espetáculo buscou retratar a
comunidade indiana. Nas palavras de Ariane:
No começo, nós queríamos fazer um espetáculo sobre Indira Gandhi, cujo
assassinato nos parecia revelador da situação da Índia na época. Fomos
então para lá, no seu rastro, e nos demos conta de que ela não encarnava o
que se passava em seu país. Seu assassinato, sim; ela, não. Para entender
a história da Índia, deveríamos trabalhar pesquisando sobre Nehru, seu pai,
Mahatma Gandhi e os combatentes pela liberdade, os Freedom Fighters. A
geração de antes. Assim que nós decidimos isso, os personagens surgiram
do nada. Estávamos lidando com esses gigantes que o teatro as vezes
exige.
Então, com alguns atores, fizemos uma segunda viagem, e encontramos
sobreviventes do movimento pela independência, companheiros de Gandhi
e de Nehru. Uma pesquisa, uma busca, durante a qual achamos grandes
heróis, pequenos heróis e pessoas horríveis, já sabíamos que virariam
seres de teatro (PASCOUD, 2011, p. 154).
O espetáculo, de maneira geral, abordava a descolonização ocidental no
Oriente através da independência da Índia, também retratava a divisão violenta
deste país logo após sua independência, os confrontos fratricidas entre os hindus,
813
sikhs e muçulmanos e a criação do Pakistão. Segundo a diretora, a peça era uma
“metáfora de todas as divisões e separações que nos esperam a cada dia”
(PASCOUD, 2011, p. 155).
Teatralmente esta história foi representada por um coro composto por
personagens importantes da Índia moderna tendo como corifeu Gandhi. Tratava-se,
porém, de um coro complexificado porque ele não testemunhava a ação ocorrida na
peça, como tradicionalmente, mas a executava, era composto pelos agentes da
história. Além disso, seus componentes não se configuravam como uma unidade
sendo o coro composto por personagens opositores e divergentes.
A partir desta referência grega o grupo encontrou uma forma teatral para
representar as divisões internas do país e, por meio do papel do corifeu, interpretado
por Gandhi, que tinha a função de reunificar o coro disperso e de reconectar as
partes da nação que se opunham, a companhia retratou a delicada situação política
da Índia.
A música de Jean Jacques Lemêtre acompanhou toda a peça e era tocada ao
vivo durante todas as apresentações estando diretamente conectada com o trabalho
dos atores. O espaço cênico de L’indiade se manteve o mesmo de Sihanouk, porém,
ele contava com uma passagem para entradas e saídas as vezes acessada por uma
ponte móvel, metamorfose da ponte presente nos teatros nô, e em seus elementos o
cenário continha referências hindus e islâmicas, religiões divididas depois da
independência da Índia (QUILLET, 1999, p. 93).
Neste espetáculo não havia uma forma precisa de teatro oriental tida como
base de trabalho pois Mnouchkine acreditava que o cotidiano indiano era
suficientemente teatral e por isso não tinha necessidade de se basear em uma
tradição oriental especifica para definir a forma do espetáculo. Para se aproximarem
e para melhor compreenderem a cultura indiana duas viagens foram feitas ao país,
como descrito pela diretora, uma delas por Mnouchkine e Cixous e a segunda pela
dramaturga e pela diretora acompanhadas por alguns atores no início do processo
criativo do espetáculo.
Estes dois últimos espetáculos descritos revelam uma outra função da
814
influência oriental no trabalho do grupo, neles a dramaturgia é o principal ponto de
contato com o mundo oriental, o que mostra um aprofundamento da relação do
grupo com tais referências uma vez que a companhia passa a olhá-las não só como
fonte de referências formais para o trabalho da encenação e dos atores, mas como
tema social e político a ser tratado e discutido.
A próxima realização do grupo foi o ciclo de espetáculos chamado Les Atrides
(Os Átridas) composto pelas peças: Iphigenie à Aulus (Ifigênia em Áulis) de
Eurípedes, Agamemnon, Les Coéphores (As Coéforas) e Les Eumènides (As
Euménides), trilogia que compõe a Orestéia de Ésquilo.
Estes espetáculos foram montados na ordem em que foram citados sendo a
totalidade do trabalho ocorrida entre 1990 e 1993. A direção e a encenação deste
ciclo aprofundou a relação do Soleil com algumas tradições teatrais do Oriente, pois
para estas encenações e para a criação dos coros gregos o grupo se baseou em
danças balinesas, danças folclóricas do Cáucaso e em tradições indianas como
kathakali, kûtiyattam e bharata natyam.
Além das danças, o cenário do espetáculo também se inspirava em formas
orientais. Ele era todo feito em madeira, formado por três paredes que fechavam as
laterais e o fundo do palco com alguns desníveis que possibilitavam a passagem do
coro, no centro da parede do fundo da cena havia uma porta de duas folhas usada
para as entradas e saídas mais importantes e toda a área central de atuação era
vazia, lembrando os palcos orientais. Os poucos objetos usados em cena eram
trazidos, quando necessários, pelos servidores de cena, e faziam com que a
encenação nos lembrasse o kathakali, uma vez que como nesta tradição os atores
deveriam suprir a falta de cenário e de objetos pela sua atuação.
Buscando fugir do estereótipo do uso de máscaras presente nas tragédias
gregas, Mnouchkine utilizou no coro uma maquiagem-máscara inspirada na
maquiagem do kathakali. Os atores ao possuírem estas maquiagens como
referências criaram as suas tornando visível algumas pequenas particularidades
diferentes em cada membro do coro. O figurino e a maquiagem foram trabalhados
de forma que de longe o coro transmitisse uma ideia de unidade e semelhança,
815
porém de perto percebia-se que este era composto por indivíduos diferentes entre si.
Neste ciclo de peças o Théâtre du Soleil estabeleceu com o Oriente a mesma
relação que criou com os conhecimentos existentes acerca do teatro grego antigo.
Assim como não pretendeu fazer um trabalho arqueológico, ou seja, de uma
pesquisa de reconstituição das formas gregas de atuação, as traições teatrais
orientais também não pretenderam ser copiadas pelo grupo, elas serviram de
inspiração para que a companhia encontrasse sua própria forma.
Já no trabalho direto com o texto dramático observa-se uma relação diferente
nesse processo de criação. Neste espetáculo houve um detalhado trabalho de
tradução para os quatro textos apresentados, sendo dois feitos por Ariane e dois por
Hélène Cixous. Claudine Bensaid traduziu para o francês palavra por palavra da
versão mais antiga que tiveram acesso em grego dos textos e, a partir deste
trabalho Mnouchkine e Cixous fizeram as traduções francesa das tragédias usadas
no espetáculo. Dessa forma a diretora buscou conectar-se o máximo possível com o
texto original e com a potência dramática que poderia ter sido perdida.
Neste ciclo no primeiro pavilhão de chegada da Cartoucherie havia uma
espécies de instalação com estátuas que simulavam terem acabado de serem
descobertas, como um campo de escavações arqueológicas. Estas representavam
as figuras que depois os espectadores reconheceriam no coro do espetáculo. Tais
figuras eram uma mistura de referências orientais e da Grécia antiga, não podendo
ser classificadas como provenientes de um território ou época específica de nosso
planeta. Uma das principais funções desta instalação era a de incitar a criação de
um mundo imaginário no pensamento do espectador antes do início do espetáculo.
O Théâtre du Soleil até hoje trabalha com esta preparação do público antes
deste adentrar a sala de espetáculo seguindo, dessa forma, princípios que se
assemelham a alguns presentes em certas tradições orientais. Mnouchkine acredita
na importância da preparação do espectador para que este entre em contato com o
espetáculo de forma mais profunda, para isso o grupo muda a decoração do galpão
de entrada da Cartoucherie e o organiza expondo livros, fotos e referências ligadas a
cada espetáculo que será apresentado de forma que os espectadores possam
816
começar a ser transportados para o mundo ficcional que em breve assistirão.
Apesar de Mnouchkine não mostrar, como Artaud, identificar-se com as
dimensões sagradas presentes em diversas tradições orientais, a importância dada
a ritualização do espaço cênico e da Cartoucherie como um todo é o ponto que mais
aproxima o grupo, guardadas as devidas proporções, da dimensão espiritual
presente em algumas destas tradições.
Este ciclo de peças quando encenado em sequência no mesmo dia, assim
como as representações totais do ciclo Les Shakespeares montadas pelo grupo,
também lembravam o ritmo de narração das grandes epopeias atuadas nos teatros
orientais devido a sua duração.
Neste trabalho as tradições orientais têm como função, assim como no ciclo
de espetáculos de Shakespeare, o distanciamento capaz de revelar e potencializar a
dramaturgia ocidental e além disso, nestas peças se mostram também como uma
referência formal fundamental para a redescoberta de uma maneira de existência
cênica para o coro grego.
Em seguida a companhia criou La Ville parjure ou le réveil des Érinyes (A
cidade do perjúrio ou o despertar das Erínias) encenado em 1994. O grupo estava
trabalhando em um espetáculo que tratava da queda do império soviético quando
decidiu-se mudar completamente o rumo dos ensaios e tratar do escândalo ocorrido
na França durante a década de 80 chamado L’affaire du sang contamine (a questão
do sangue contaminado). Tal escândalo tratava do caso real acontecido na França
de que sangue contaminado pelo vírus HIV foi disponibilizado para transfusão
levando a óbito centenas de crianças e adultos. A mudança de tema para a criação
do próximo espetáculo da companhia foi impulsionada pois em 1994 ocorreu o
julgamento dos médicos e políticos responsáveis pelo ocorrido.
O caso que muitas vezes foi retratado em jornais como um “acidente”
mostrava, sob o ponto de vista do grupo, o descaso do ministério da saúde e do
poder público diante da sociedade, por isso, a companhia buscou questionar e tornar
pública suas reflexões a cerca deste acontecimento extremamente atual da
sociedade francesa da época, por meio de seu espetáculo. Nas palavras de Hélène
817
Cixous:
O tema da contaminação contagiou todos os círculos da sociedade. Um
acidente? Mas o teatro não tem por motor e por razão de existir ser um
vigia? Ele não foi inventado para questionar o acidente, para revelar os
segredos do “acidente”? Para nos mostrar que na verdade estamos cegos,
quando pensamos enxergar? (CIXOUS, 2010).
Para retratar este episódio da história francesa o grupo se inspirou em um
cemitério da cidade do Cairo conhecido como “A cidade dos mortos” onde os
túmulos, diferentemente dos túmulos ocidentais são uma espécie de casa capaz de
abrigar a família do falecido durante 40 dias (tempo de duração do luto). Este
cemitério, que existe até hoje e se estende por mais de 10 quilômetros ao longo de
uma autoestrada onde vivem oficialmente cerca de 1 milhão de pessoas e extra
oficialmente certa de 2 milhões, foi tomado como referência pois representava uma
maneira singular de convivência da vida com a morte.
No teatro o cemitério foi transposto no cenário do espetáculo, composto por
um palco praticamente vazio rodeado por túmulos-casas nas laterais direita e
esquerda e por um portão que representava a entrada do cemitério localizado no
fundo da cena, além destes elementos no meio do palco existiam três tumbas não
identificadas. Em uma entrevista Sophie Moscoso, assistente de direção de Ariane
Mnouchkine, revelou que elas representam as tumbas de Ésquilo, Shakespeare e
Hokusai colocadas como homenagem a estes três mestres.
Da mesma forma que em Les eumenides assistia-se a um tribunal de
julgamento de Orestes pelo seu matricídio, nesta peça um tribunal sobre um crime
de estado se instaurava, nele a personagem principal buscava justiça por ter tido
seus dois filhos mortos devido ao sangue contaminado. Por meio desse julgamento
oficial o espetáculo pretendia trazer luz ao caso real francês, não no sentido jurídico,
mas espiritual e moral.
Segundo Quillet, esta peça, extremamente baseada nas tragédias gregas,
utilizava-se dos recursos oferecidos pelo teatro oriental, neste caso principalmente
do teatro nô, para ser capaz de colocar em cena personagens que, hoje e na época
da encenação, não eram tão facilmente representados como o eram na época das
tragédias gregas, sendo eles: o Destino, os Deuses, a Noite e neste caso também as
818
divindades chamadas Erynes. Para a autora a referência oriental citada auxiliou o
grupo no sentido de evitar uma espécie de formalismo frequentemente associada a
representação desses personagens abstratos.
Neste último espetáculo descrito observa-se um processamento de todas as
referências teatrais orientais usadas pelo grupo nos espetáculos precedentes
culminando na elaboração de uma linguagem própria da companhia. A função das
tradições orientais nesse espetáculo é, portanto, a de capacitar o grupo a criar um
discurso e principalmente uma forma cênica própria e contemporânea de retratar o
que é chamado por Quillet de tragédia contemporânea.
Por meio destes exemplos, percebe-se que a relação do grupo com as
diversas tradições teatrais orientais com as quais entrou em contato neste período
de sua trajetória é complexa e capaz de exercer diferentes funções. Françoise
Quillet em seu livro L’Orient au Théâtre du Soleil defende que as tradições orientais
foram gradativamente sendo abordadas pela companhia com a função definida de
se encontrar uma linguagem própria para o grupo que o tornasse capaz de retratar
cenicamente a realidade que o cercava, para a autora “Ariane Mnouchkine se inspira
no Oriente como Van Gogh ou Gaugin se inspiraram nas estampas japonesas, para
alimentarem suas próprias criações que são completamente pessoais e originais”
(QUILLET, 1999, p. 101). Acreditamos que por se debruçar em determinadas
tradições orientais para redescobrir princípios teatrais e a sua linguagem própria o
Théâtre du Soleil exemplifica uma maneira singular de se relacionar com o Oriente
principalmente pautada na livre inspiração, na recriação a partir de um exemplo e na
reformulação de tradições.
Notas
1
A partir do momento em que se manifesta o (mágico) Se, o ator se transporta do plano da vida real
para o plano de uma outra vida, criada e imaginada por ele. (...) Isto não significa que deva se entregar a algo
parecido com uma alucinação, (...) muito pelo contrário. (...) Deve perguntar-se: “Se tudo isso fosse real, de que
forma eu reagiria? O que eu faria?” (...) E então, normalmente e naturalmente, (...) este Se funciona como uma
alavanca que lhe permite alcançar um mundo (...) de criatividade. (STANISLAVSKI, 2001, p.125)
819
Referências Bibliográficas
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Tradução de Marcelo Gomes. São Paulo: SENAC, 2010.
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Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditionsorientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/l-orient-au-theatre-du-soleil-le?lang=fr>.
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1982.
STANISLAVSKI, Constantin. Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Aline de Almeida Olmos
Formada em Artes Cênicas na UNICAMP, realizou intercâmbio acadêmico na Université
Sorbonne Nouvelle – Paris 3 onde se familiarizou com o trabalho do Théâtre du Soleil, em
seu currículo possui mais de dez cursos realizados com atores da companhia e atualmente
trabalha em sua dissertação de mestrado intitulada: O Théâtre du Soleil e as tradições
teatrais orientais: um estudo sobre a relação entre o espetáculo Tambours sur la digue e o
Kabuki.
820
A ARQUITETURA JAPONESA DEPOIS DO TSUNAMI
Lorea Ariadna Ruiz Gómez - Universidad de Málaga; Universitat Oberta de Catalunya e USP
RESUMO: O objetivo desta pesquisa é apresentar um estudo sobre o desenvolvimento
arquitetônico observado na reconstrução do Japão após o terremoto que, seguido de um
tsunami de amplas proporções, provocou uma catástrofe nuclear ao atingir a usina de
Fukushima. O estudo busca evidenciar o papel do design como norteador de novos modelos
visuais para os projetos de reconstrução e reurbanização das cidades japonesas.
A fim de ilustrar o tema em questão, será utilizada a exposição Arquitectura Contemporánea
Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami, realizada em março de 2012, na
cidade de Barcelona – Espanha.
Dentre as inúmeras abordagens arquitetônicas possíveis, pode-se vislumbrar um conjunto
comum de princípios orientadores nos projetos analisados: um tradicionalismo presente
tanto em materiais e técnicas de construção quanto nos conceitos semióticos que
caracteriam a “aparência” japonesa. Outro parâmetro observado é a organicidade rigorosa,
em que fica claro que o verdadeiro leitmotiv dos projetos é o uso e o aproveitamento das
energias naturais em benefício da população.
Palavras-chave: Design;
Aparência japonesa.
Tradicionalismo;.Energias
naturais;
Conceitos
semióticos;
RESUMEN: El objetivo de esta investigación es presentar un estudio sobre el desarrollo de
la arquitectura de reconstrucción japonesa tras el Tsunami y la fuga nuclear de la central de
Fukushima. Así pues, dentro del estudio se busca evidenciar el papel del diseño como el
motor para la reconstrucción y reurbanización de las ciudades japonesas.
Para ilustrar el tema en cuestión, tomaremos como eje central la exposición Arquitectura
Contemporánea Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami, realizada en marzo
de 2012, en la ciudad de Barcelona - España. La estructura que seguiremos será la que
desarrolló la Escuela de Arquitectos de Cataluña.
Entre los muchos y variados enfoques arquitectónicos, se puede discernir unos principios
rectores comunes en cada uno de los proyectos. En este sentido, podemos observar la
existencia de cierto grado de tradicionalismo, tanto en los materiales y técnicas de
construcción como en los conceptos semióticos, así como en las fórmulas que despiertan
una “apariencia” japonesa. Otro de los parámetros que veremos que se sigue en este tipo de
arquitectura es el de la rigurosa organicidad. Como observaremos, éste es el verdadero
leitmotiv de todos los proyectos, el uso y el aprovechamiento de las energías naturales que
están al servicio de la población.
Palabras
clave:
Diseño.
semióticos.Apariencia japonesa.
Tradicionalismo.
Energías
naturales.
Conceptos
Texto
Em razão do aniversário do terremoto e do tsunami que arrasaram o Japão
em 2011, o Colégio de Arquitetos da Catalunha organizou uma retrospectiva com os
projetos de arquitetura apresentados para a reestruturação das áreas afetadas.
821
Entre os dias 08 e 31 de março de 2012, a exposição Arquitectura Contemporánea
Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami contou com um ciclo de
palestras realizadas por arquitetos dos vários empreendimentos responsáveis pelas
obras de reconstrução.
A proposta do Colégio era aprofundar o debate em relação ao processo de
recuperação do espaço e das populações assentadas no território atingido pelo
terremoto. Para isso, foi instalada uma linha do tempo com os registros dos projetos
executados no decurso de um ano.
Dentro da grande quantidade e variedade de desenhos, foi observada uma
série de ideias comuns a todos eles: por um lado, a tradição presente tanto na
escolha de materiais e aplicação de técnicas de construção quanto na carga
simbólica das iniciativas trabalhadas, fórmulas características da cultura do povo
japonês; por outro, a estrita organicidade, identificada tanto no planejamento urbano
quanto na composição e distribuição dos espaços internos de vivência –neste ponto,
é importante destacar que a funcionalidade, aspecto tratado com muito zelo pela
indústria japonesa, é elevada à máxima expressão nos projetos apresentados.
Entretanto, o verdadeiro leitmotiv de todas as ações registradas primava pelo
uso e aproveitamento das energias naturais em favor das necessidades da
população (CAPITEL, 2010, p. 28).
A abordagem cronológica da exposição revela que os primeiros planos de
ação apresentados eram voltados à realocação e acomodação das famílias
afetadas; foram instituídos módulos para que elas pudessem conservar espaços de
intimidade dentro dos pavilhões de acolhimento e, uma vez limpas as áreas
destruídas, ergueram-se núcleos urbanos para que a população pudesse tornar a
assentar-se. A maior parte dessas iniciativas era operada tendo em vista o conceito
da bricolagem.
Temos o caso do projeto Heartquake Base Camp, idealizado pela
Heartquake Association, que consiste em uma concentração de edifícios de baixa
densidade, recicláveis e de carácter temporário, cujo objetivo é melhorar as
condições de vida dos afetados pelo desastre.
822
O projeto Gassho do arquiteto Koji Kakiuchi uniu a simplicidade de formas à
tradição da cultura japonesa. Sobre os concretos dos edifícios arrasados da
província de Iwate, Kakiuchi propôs instalar um espaço de refúgio e de recreação
para os sobreviventes. A proposta foi idealizada com técnicas artesanais nipônicas:
a partir do rearranjo de tábuas de madeira, por exemplo, foi criado um telhado para a
passagem das águas, uma estrutura simples e muito utilizada na arquitetura
japonesa contemporânea. A forma é valorizada pela carga simbólica, uma vez que a
estrutura faz alusão à posição das mãos no momento da oração. Também os
escombros de concreto das casas destruídas foram utilizados para criar zonas de
cultivo: cabines formadas pela sobreposição de tábuas de madeira permaneciam
ancoradas sobre habitações e o espaço restante era irrigado para o plantio e a
regeneração da terra.
Figura 1. O arquiteto Koji Kakiuchi em seu projeto Gassho, em Iwate
No âmbito do urbanismo, deve-se destacar o plano executado três meses
após a catástrofe na área pesqueira de Iwate y Miyagi, afetada pelo terremoto do
leste. O projeto, denominado Takadai (high land) Project, consistiu na árdua tarefa
de transladar populações da zona agrícola para uma zona mais elevada, um monte
próximo ao centro urbano. Para tanto, foi realizado um amplo estudo, já que era
necessário levar em conta fatores como a salinidade do terreno para o cultivo.
823
Figura 2. No plano do urbanismo:Takadai (high land) Project
Seis meses após o desastre, surgiu o grupo Young Architects Plaza. Jovens
arquitetos, estudantes e voluntários se reuniram para discutir planos de reconstrução
das áreas mais afetadas pelo terremoto, pelo tsunami e pela radiação que se
espalhoudevido ao derretimento dos reatores da usina nuclear de Fukushima.
Trabalhando junto aos abrigos a fim de conhecer melhor as necesidades da
população, o grupo também consolava e estimulava os sobreviventes.
Nesse mesmo período, os estudantes de arquitetura da Universidade de Keio
– SFC Campus – idealizaram o projeto Fish Arch para reconstruir a cidade de
Kesennuma. A tarefa consistia em criar um arco simbólico, uma ponte emblemática
que, para além de recordar a tragédia, celebrasse o poder de superação do povo de
Kesennuma, fortalecido pelo caráter gregário da sociedade japonesa. A estrutura do
arco foi projetada em lâminas de madeira reciclada (proveniente das muitas
toneladas recolhidas após a catástrofe) em formato de peixes que simbolizam o
principal meio de sustento da comunidade: a pesca. Tal como peças de um quebracabeça, os peixes foram talhados com ranhuras que possibilitavam o encaixe para
compor a ponte. As medidas estimadas para o esqueleto do arco foram de 2 metros
de altura por 4 de largura.
Durante o mês de agosto de 2011, 5 meses após o terremoto, o arco foi
exposto em diferentes pontos da cidade e, uma vez encerradas as festas da Páscoa
japonesa, as peças foram distribuídas entre os habitantes de Kesennuma para
824
reforçar os laços de união da comunidade.
Figura3. Fish Arch: criação de um arco simbólico
Um dos projetos mais atrativos e emocionantes foi o Ark Nova, desenvolvido
pelos arquitetos Arata Isozaki e Anish Kapoor. Notória pela originalidade, a obra foi
planejada para o aniversário do desastre e consistiu em um anfiteatro portátil, de
estrutura inflável, ovalada, com cerca de 500 a 700 assentos. Em princípio, o
anfiteatro nômade foi projetado para o Festival de Lucerna, mas foi decidido que
seria magnífico apresentá-lo às populações da região de Higashi-Nihon, devastadas
pelo tsunami de 11 de março.
Projetado para receber concertos de música clássica, jazz, programas de
dança e apresentações multimídia, o desenho foi fundamental para o planejamento
dessa cápsula musical, uma vez que deveria combinar estética e ótimo
aproveitamento acústico. O responsável por esses detalhes foi o especialista em
acústica, Yasushisa Toyota de Nagata.
825
Figura4.Ark Nova,projeto de Arata Isozaki e Anish Kapoor
Figura5.Inujima Art Project Seirensho é um projeto do arquiteto Hiroshi Sambuichi e do artista
Yukinori Yanagi
A dinâmica seguida pelos arquitetos e urbanistas japoneses tem sido a do
reaproveitamento, da reciclagem, tanto dos recursos naturais e suas propriedades
energéticas quanto dos edifícios destruídos pela catástrofe.
Esse princípio do reaproveitamento pode ser identificado em um projeto muito
sugestivo de 2008 que, embora esteja fora do marco cronológico que orienta este
estudo, constitui um ótimo exemplo para as propostas que têm servido à
reconstrução do Japão após o terremoto.
Inujima Art Project Seirenshoé uma iniciativa do arquiteto Hiroshi Sambuichi
em parceria com o artista Yukinori Yanagi, que pretendia reabilitar uma refinaria de
cobre localizada na zona do Mar Interior de Seto. A refinaria foi inaugurada em 1999;
826
dez anos depois, foi abandonada por conta do desmoronamento dos preços do
cobre e virou um museu autossuficiente. As chaminés e os tijolos Karami
encontrados na fábrica foram reaproveitados e a estrutura utiliza as energias
naturais, tais como a solar e a geotérmica. Além disso, foi realizado um estudo do
meio ambiente nos arredores da fábrica para verificar quais plantas melhor se
adaptariam a Inujima a fim de integrar um sofisticado sistema de purificação de água.
Todo o projeto, que abriga as obras de arte permanentes e o próprio edifício,
gira em torno de um novo conceito de sociedade que preza pelo reaproveitamento e
reciclagem de materiais e recursos, deixando claro que a revitalização regional é um
processo factível por meio de quatro pilares que, neste momento pós-desastres, são
debatidos com grande receptividade pela comunidade científica japonesa:
patrimônio industrial, arquitetura, arte e meio ambiente.
Essas percepções fomentam o eixo básico do que desenvolvido na
arquitetura nipônica a partir de um contexto de reconstrução, de maneira que a
necessidade e a tradição cultural do país impõem a manutenção da natureza e de
tecnologias capazes de aproveitar seus recursos, tal como haviam planejado os
Metabolistas (MARTÍN, 1990, n. 12, p. 15-21) japoneses em meados do século XX,
que enxergavam o desenho e a funcionalidade da cidade e dos edifícios como
paradigmas orgânicos, inseridos em um processo biológico (KRIEGER, 2005, n. 87,
p. 221-247).
Assim, não podemos senão admirar um povo que sofreu tamanho revés por
conta de um açoite da natureza e que, enrodilhado ainda em um longo e árduo
período de recuperação, entendeu que a única fórmula capaz de sanar suas feridas
se dá por um processo de catarse entre o ser humano e a natureza.
Referências bibliográficas
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KRIEGER, P. Kenzo Tange (1913-2005) Metabolismo y metamorfosis. EmAnales del
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829
Lorea Ariadna Ruiz Gómez
Licenciada em História da Arte, pesquisadora das áreas de arte e arquitetura. Colabora
desde 2008 com pesquisas sobre moradias operárias. Autora de diversos artigos de revistas
e coautorados livros: “Santa Ana Sociedad Cooperativa de Casas Baratas”; “Casas baratas
de Vizcaya 1911-1936. Nueva imagen de la ciudad”.
830
FU BAOSHI E UMA ANÁLISE DA PINTURA MODERNA
Beatriz Faria Santos - UNIFESP
Orientadora: Michiko Okano - UNIFESP
RESUMO: Fu Baoshi é um famoso mestre chinês do século XX. Sua obra reflete a ânsia do
moderno, em que a inovação deveria ser a força motriz do artista. Seu apelo estético da
“arte de ação”, na qual ele mesclava elementos tradicionais chineses a elementos
expressionistas e impressionistas nos mostram que Baoshi, além de ser um artista versátil,
pôde resolver com precisão o embate entre as técnicas de pintura do Ocidente e do Oriente,
criando assim um híbrido que dialoga habilmente entre os dois polos. Desta maneira,
podemos utilizar sua obra como ferramenta de um possível diálogo e análise da pintura
moderna, já que Baoshi cria novas técnicas, mas não abandona sua criação artística original.
Iremos compará-lo com Monet, que assim como o chinês, inova em sua maneira de pintar,
mas permanece fiel às suas origens artísticas.
Palavras-chave: Fu Baoshi, Monet, Moderno, Técnica.
ABSTRACT: Fu Baoshi is a famous Chinese master of the twentieth century. His work
reflects the eagerness of modern, where innovation should be the driving force of the artist.
Its aesthetic appeal of "action art", in which he blended traditional Chinese elements to
expressionist and impressionist elements show us that Baoshi, besides being a versatile
artist, could accurately resolve the clash between Western painting techniques and East,
creating a hybrid skillfully dialogue between the two poles. This way, we can use his work as
a tool for dialogue and analysis of all modern painting since Baoshi creates new techniques,
but does not abandon his artistic creation. We will compare it with Monet, who like the
Chinese, innovates its way to paint but still remains true to their artistic origins.
Key words: Fu Baoshi, Monet, Modern, Technique.
Fu Changsheng nasceu em 1904 sendo oriundo da província de Jiangxi. Sua
educação informal começou aos doze anos, enquanto trabalhava como ajudante em
uma loja de cerâmicas. Aos 18 anos, mudou seu nome para Fu Baoshi que em uma
tradução literal significa o que “abraça as pedras”, o que nos mostra seu
envolvimento, ainda que precoce, como escultor profissional. Começou então a
estudar artes ainda na província de Jiangxi, na escola de Jiangxi Li e acabou
conhecendo XuBeihong, que viria a ser seu grande amigo e influência artística.
Ainda com a ajuda de Xu, Baoshi em 1932 foi para a universidade de Belas Artes de
Tokyo estudar a arte clássica chinesa e japonesa. No Japão, ele passou todo o
tempo disponível estudando as técnicas clássicas da pintura e treinando sua própria
técnica; onde também conseguiu realizar sua primeira exposição individual, com a
831
ajuda de GuoMoruo, literato amplamente conhecido tanto na China quanto no Japão.
Em seus primeiros trabalhos é possível notar grande influência da arte
moderna japonesa apesar de sua técnica mesclar traços japoneses, chineses e até
mesmo ocidentais. É possível que durante o tempo em que passou no Japão Fu
tenha tido amplo contato com técnicas ocidentais modernas de pintura, tais como o
expressionismo e o impressionismo que neste momento faziam muito sucesso entre
os artistas nipônicos.
Quando voltou do Japão, Baoshi foi convidado para lecionar as técnicas
japonesas e chinesas de pintura no Departamento Artístico da Universidade Central
(hoje Universidade de Nanjing). Neste período, Fu Baoshi também produziu diversas
pinturas e tratados artísticos.
Fu era apaixonado pela China e suas paisagens. Mesmo durante suas
viagens internacionais, o pintor teria comparado incessantemente as paisagens
naturais do local onde se encontrava com as de seu local de nascimento. Tal
patriotismo foi de grande valia durante o período da Revolução Cultural, onde Fu
teria se tornado um filiado importante do Partido Comunista Chinês. Há relatos de
uma grande adaptação de um poema de Mao chamado “Neve”, que o artista teria
sido convidado a realizar no “The Great Hall of People” dentro do parlamento chinês.
A obra, de nome “Such is the Beauty of our Rivers and Mountains” de 1955, teria
sido composta por uma grande montanha coberta de neve, onde marcado em uma
caligrafia leve e graciosa estariam os versos do poema de Mao. No entanto, a obra
hoje está desaparecida.
Vale ressaltar que apesar de fervorosamente nacionalista, Fu Baoshi
conseguiu lidar de maneira harmônica todos os elementos conflitantes em sua
técnica. Talvez, Fu tenha notado que não é preciso abandonar suas ideologias para
buscar um instinto criativo que ditaria suas obras; instinto esse que poderia ser
ligado à essência do moderno, do “fazer o novo”.
Deste modo, foram criados dois grupos principais para tratar e analisar sua
obra, grupos estes que consistem de três obras características: Método de
Representação da Figura Humana e Método de Representação da Paisagem.
832
A presente pesquisa foi realizada baseada no conceito que o teórico e
historiador da arte Giulio Argan apresenta em um de seus trabalhos, onde ele afirma
que
Uma história da arte só é possível e legítima se explica o fenômeno artístico
em sua globalidade; não se pode fazer uma história da arte se não se
admite a existência de uma relação entre todos os fenômenos artísticos,
quaisquer que seja a dimensão espaço-temporal em que foram produzidos.
(Argan, 1992, p. 19)
A análise será feita contrapondo essencialmente a técnica e o apelo estético
de Fu Baoshi e Oscar Claude Monet. Tais mestres foram escolhidos por suas
grandes contribuições à pintura tanto no ocidente quanto no oriente, e à maneira
como sua técnica, que invariavelmente em ambos os casos rompeu com os métodos
vigentes visando buscar o novo essencial, pode ser comparada utilizando em ambos,
cada um à sua maneira, seu apelo estético.
O apelo estético e suas definições no contexto de Baoshi e Monet
Em se tratando de Baoshi observamos que sua técnica consiste no uso
habilidoso de “dots” (pontos), onde o pintor pinga o nanquim sob o papel sem o uso
da cera animal, propiciando o efeito de gota ou respingo. Com esses pontos,
pingados um sob os outros e o uso de nanquim mais ou menos diluído, Fu Baoshi
nos dá a impressão de profundidade e perspectiva. Ele também utiliza métodos
livres de traços com o nanquim e um método de criação própria que visa salpicar o
nanquim sob a superfície, em uma espécie de “arte de ação”, onde o intuito de sua
técnica era a execução da captação da luz do objeto sem a necessidade de
semelhança à forma ou ao desenho, que se assemelha aos métodos de trabalho de
artistas expressionistas e impressionista.
Deste modo, posso concluir que apesar de se utilizar de temas estritamente
tradicionais chineses como a composição, a técnica de Fu representa todo o seu
apelo estético essencial. Apelo este no sentido de inovar atraindo o olhar do
espectador, através do uso da “arte de ação” ou de seus pontos, estes que
consistem em um modo totalmente não tradicional de se compor a paisagem.
Utilizando tal técnica, Fu força nosso olhar em direção à sua obra, já que suas obras
833
não consistem em um traço “corte de machado” ou “patas de caranguejo” com sua
tradicional composição de montanha e água. As paisagens de Fu, por muitas vezes
densas e fechadas, assim como seu método livre de pintura, apelam esteticamente
para o olhar do espectador que não espera encontrar tal técnica livre em um mestre
chinês (ainda que moderno).
Enquanto Monet apela para a tridimensionalidade de seus empastelamentos
de tinta óleo na tela. Grande parte do efeito da obra de Monet se dá pelo
empastelamento, já que o artista não se preocupa em reproduzir esteticamente o
universo de maneira fiel. Enquanto um artista neoclássico se preocuparia em pintar
uma onda se quebrando contra a praia utilizando diversos tons de azul e pintando a
espuma de uma maneira que a mesma parecesse o mais fiel possível, Monet
empastela a tinta nos dando a sensação da onda se quebrando, sem
necessariamente representar todas as mínimas partículas de água.
Método de representação da figura humana
Tanto no Ocidente quanto no Oriente, a representação da figura humana é
uma parte importante das temáticas compositivas da pintura. Desta forma, este tipo
de composição não exclui tanto o mestre chinês quanto o europeu. É apenas
interessante notar como a técnica, a estética e a composição podem se aproximar
ou se diferenciar uma das outras, dependendo exclusivamente não do método
criativo, mas sim do método técnico do artista.
Para análise, trataremos tais obras de Baoshi:
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Esquerda superior:Fu Baoshi, \³ó, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel,
coleção particular.
Direita: Fu Baoshi,Old Man Underthe Pine Tree, sem informação de data, nanquim e cores sobre
papel, coleção particular.
Esquerda inferior: Fu Baoshi, Qu Yuan, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel,
coleção particular.
A primeira intitulada \³ó¹, é a representação de uma jovem mulher,
provavelmente aristocrática, repousando em um salão de chá. Na obra, podemos
notar primeiramente a delicadeza dos traços do rosto da personagem contrastando
com os traços livres e grossos de suas roupagens e do cenário. Seus cabelos são
feitos também de traços livres, porém neles há um interesse estético maior já que o
mesmo não foi pintado de maneira totalmente livre de intenção. Os traços são
contidos pelo desenho, formando o penteado, de maneira que se tivessem sido
feitos totalmente sem intenção não poderiam compor o cabelo da personagem.
Podemos ainda notar suas roupagens, que consistem em camadas longas do que
parece ser um quimono de cor escura, que se acumula ao chão às costas da
personagem. Nestes vincos, podemos ver a “arte em ação” de Baoshi de maneira
explícita. Não há vincos bem marcados e sombreados; temos ao invés disso, traços
finos e grossos de nanquim diluído que nos cria a vaga sensação visual de que o
quimono está naquele ponto da composição formando vincos. Ao redor, há uma total
835
falta de interesse pela perspectiva ocidental, já que a janela parece estar a uma
estranha distância da personagem, perto demais para que fosse confortável sentarse a ela. Na segunda obra, intitulada Old Man Under the Pine Tree, temos a figura
de um homem que se encontra ao caule de um pinheiro. Nele, podemos notar
novamente os traços delicados do rosto e das roupagens, característica esta
tradicional chinesa que Baoshi faz questão de enfatizar em suas obras, e o pinheiro
atrás do mesmo. É curioso notar nessa obra a composição da árvore: não temos
traços precisos ou sequer qualquer evidência de uma intenção formal mais realista.
Nela, o caule foi feito de pinceladas grossas e rápidas de nanquim marrom postas
sobre grossos pingos de nanquim escuro que nos criam a vaga impressão de
profundidade. Nos galhos, há grandes borras quase totalmente diluídas de nanquim
verde indicando as folhas ao fundo. Há então traços livres em nanquim preto o que
nos indica que aqueles galhos e folhas estão mais á frente, perto do personagem.
A terceira obra consiste em um retrato de Qu Yuan, onde a figura se destaca
por um campo de vegetação baixa. Novamente, vemos os traços delicados e poucos
fiéis às características humanas reais, tradicionais na arte chinesa, enquanto que a
vegetação se projeta delicadamente sob a personagem em traços livres e graciosos.
Após tais considerações, utilizaremos de Monet tais obras para a análise:
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Esquerda: Oscar Claude Monet, Woman with a Parasol – Madame Monet and Her Son, 1857, óleo
sobre tela, 100 cm x 81 cm, National Gallery of Art, Washington.
Direita superior: Oscar Claude Monet, The Gladioli, 1897, óleo sobre tela, 60 cm x 81 cm, Institute of
Arts, Detroit.
Direira inferior: Oscar Claude Monet, The Red Cape, 1869-1871, oleo sobre tela, 99 cm x 80 cm,
Museum of Art, Cleveland.
A primeira obra, Woman with a Parasol, é composta por uma figura feminina
que se projeta sob o céu em um ângulo de aproximadamente 45º se vista do solo,
ou seja, de um ponto de vista formal com um olhar rebaixado. Nela, os
empastelamentos nos dão a sensação do movimentando o tecido do vestido, das
nuvens no céu, da vegetação baixa que toma uma parte da cena. A segunda, The
Gladioli, nos mostra uma figura feminina em um jardim. Nela, o jardim se projeta
sobre a personagem, e o uso de vermelho na vegetação e azul na figura humana
poderia indicar um interesse em atrair nosso olhar no primeiro momento para as
flores do jardim². A segunda, The Red Cape, nos mostra uma figura feminina atrás
de uma vidraça. O uso do vermelho também poderia ser intencional, visando atrair
nosso olhar para a personagem e não para o cenário.
O que ambos os grupos tem em comum? A composição. Não somente no
sentido de figura humana e fundo quase indistinto que se mesclam à personagem,
como também no próprio interesse estético do papel da personagem na composição.
Como por exemplo: Woman with a Parasol e \³ó se assemelham porque a
figura se pronuncia em um fundo praticamente nulo além de a técnica visar enfatizar
seus elementos compositivos (a técnica nas roupagens, no cabelo, no avental da
senhora, na sua sombrinha) de maneira que o a própria figura dominasse o todo, se
assemelham também porque Monet visa nos representar uma visão oblíqua da
mulher, com seus empastelamentos que nos bloqueiam a visão exata de seu rosto,
restando apenas uma vaga intenção do que ele deveria ter sido, ressaltando a
experiência de olhar para o rosto da personagem e tentar imaginá-lo ao invés de
simplesmente olhá-lo. Monet nos força a construir a imagem de suas feições em
nossa mente, nos dando assim a possibilidade de criar uma personagem que poderá
diferir da criação de outro espectador. Baoshi, por outro lado, utiliza a técnica
clássica chinesa para nos descrever o rosto da personagem com traços finos e
precisos. No entanto, assim como Monet, sua técnica, apesar de precisa, não nos
mostra o rosto real da personagem, já que é sabido que rostos muitas vezes são
similares na arte chinesa por causa de sua técnica muito peculiar. Dessa maneira,
837
temos que imaginar não somente como Woman with a Parasol seria, como também
como \³ó seria.
O desenho formal das personagens também pode se assemelhar. Em ambas
as obras as senhoras olham para o espectador por cima dos ombros, de maneira
indireta, quase como se colocassem uma barreira entre elas e a pessoa que as
contempla. Ambas também parecem ter sido flagradas em um momento de grande
intimidade, dado o gesto delicado e tímido de cabeça esboçado por Baoshi em \³
ó e ao olhar quase surpreso que Monet aplica em Woman with a Parasol. O
fundo indistinto também se assemelha; enquanto Woman with a Parasol foi pintada
oposta ao céu e à uma vegetação comum, \³ó foi posta em um salão de chá
sem um interesse estético definido além de servir majoritariamente de fundo.
Porém, se observamos a técnica, podemos notar que o apelo estético que
cada artista utilizou não se corresponde de maneira nenhuma. Enquanto Monet
visou empastelar o vestido de Woman with a Parasol e seu rosto, dando à
personagem uma áurea quase etérea, sem expressão, onde o objetivo do
espectador é muito mais sentir de fato o ambiente no qual a figura está imersa do
que efetivamente compreender a figura, além de mesclá-la ao fundo pela cor e pelos
próprios empastelamentos da personagem, Baoshi nos dá \³ó onde a figura se
destaca por ter um desenho mais trabalhado (apesar da “arte de ação” das
roupagens da mesma) que se sobrepõe à falta de interesse perspectivo do fundo.
Desta maneira, Monet visa encobrir sua figura, mesclando-a com o fundo, enquanto
Baoshi visa ressaltar sua figura, colocando-a em um fundo neutro e sem interesse
estético.
Desta forma, podemos esboçar que o objetivo técnico compositivo de Baoshi
é muito semelhante ao de Monet, visto que seu desenho é feito de maneira que aja
uma barreira quase natural na relação espectador-personagem, além do fundo que
possui o interesse estético de se parecer nulo em relação à personagem. Porém,
podemos também esboçar que a o objetivo formal das personagens é diferente,
assim como a técnica utilizada para a representação. Enquanto Baoshi eleva sua
personagem, Monet a encobre.
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Em se tratando das segundas obras, Old Man Under the Pine Tree de Baoshi
e The Gladioli de Monet, podemos notar várias diferenças compositivas essenciais.
Enquanto em Old Man Under the Pine Tree o pinheiro indistinto serve apenas para
elevar o personagem e fazer com que nossa atenção se foque neste, o jardim de
The Gladioli encobre a personagem, de maneira ainda mais agressiva. O uso de
cores, a grande profusão de plantas diferentes que se amontoam em um canto da
tela, os empastelamentos feitos com maior profusão sobre as mesmas além do
fundo que segue o padrão de plantas, a personagem só se destaca pela cor azul,
pois em relação à composição geral seu local na perspectiva de ponto de fuga único
faz com que a mesma acabe do tamanho que as plantas no jardim do primeiro plano.
O uso da cor é curioso de se notar, já que é sabido que a cor azul é utilizada na
pintura para afastar o olhar, enquanto a vermelha para atraí-lo. Desta forma, ao
analisarmos todos estes elementos, é correto dizer que a intenção formal de Monet
era esconder a personagem. Em contrapartida, Baoshi ressalta seu personagem
dando a ele um fundo branco e uma árvore que, ao ser feita com uma técnica que
não visava a representação fiel da forma, conduz nosso olhar ao personagem
humano.
Esta talvez seja a diferença compositiva principal entre as duas obras.
Podemos notar também a tradicional composição “limpa”, com grandes espaços em
branco e um aglomerado compositivo em um dos cantos da pintura que marcam a
técnica chinesa tradicional e que Baoshi emprega em sua obra, contrastando com a
obra de Monet, em que toda a composição é “pesada” pela grande profusão de
elementos que se encontram no primeiro e no último plano.
Na técnica, não há nada de novo a se ressaltar. As personagens de ambas as
obras se assemelham porque podem ter sido criadas com concepção estética
semelhante: o fato de que a personagem de Monet se encontra no plano
intermediário da obra, o uso do empastelamento e a cor de seu vestido a esconde
do olhar do espectador, enquanto que o traço tradicional de Baoshi, ainda que bem
revelado pela técnica de traços livres com o pincel e com o nanquim, não nos diz
quem de fato é a pessoa por trás do traço tradicionalista. Desta maneira, ambas se
assemelham: uma por estar encoberta pela composição e outra por estar encoberta
839
pela técnica.
Método de Representação de Paisagem
Para a análise compositiva dos métodos de representação de paisagem,
vamos utilizar tais obras de Baoshi:
Esquerda: Fu Baoshi, <XoCl, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção
particular.
Direita superior: Fu Baoshi, , sem informação de data, nanquim e cores sobre papel,
coleção particular.
Direita inferior: Fu Baoshi, , sem informação de data, nanquim e cores sobre papel,
coleção particular.
Na primeira, intitulada <XoCl (1) vemos a composição e técnica
moderna de Baoshi se relacionarem de maneira harmônica com a temática chinesa
clássica. Na obra podemos observar um casebre ao sopé de uma cachoeira e um
monge dentro do mesmo. É interessante notar que Baoshi utiliza majoritariamente
borras de nanquim para representar ambas as massas que se encontram á margem
da figura, e que devido à técnica de Baoshi se tornam indistintas; seriam árvores ou
montanhas?Uma que se encontra em um plano mais distante em relação ao casebre,
e a outra, que se encontra em um plano mais próximo. Na mais distante, ele utiliza
840
borras mais claras e menos densas de nanquim para indicar que a mesma estaria
longe e possivelmente encoberta pela névoa da cachoeira, enquanto na mais perto
do espectador, as borras de nanquim se tornam mais escuras e profusas, indicando
a proximidade da mesma. A água é representada por traços livres sutis e a única
figura colorida em toda a cena é o monge que se veste de laranja. Na segunda obra,
intitulada (2), vemos como Baoshi consegue adaptar a composição
clássica chinesa à sua técnica moderna. Nela, há um penhasco que se aglomera no
canto direito da imagem, um decline suave ao fim da tela e por fim duas
personagens que deslizam por um rio. Ainda podemos notar os grandes espaços
vazios em composição, que são tradicionais dentre as pinturas orientais, em especial
a chinesa e japonesa. Tal espaço compreende o rio, que não é representado a não
ser pela quase ausência de desenho. Podemos ressaltar também que Baoshi
utilizou sua técnica de “arte de ação” para criar o penhasco, que foi feito com traços
livres e borros de nanquim assim como o declive na margem do desenho. Na
terceira composição, chamada de (3), é interessante notar como
Baoshi utiliza uma composição de viés totalmente diferente da sua tradicional, mas
consegue adaptá-la para seu tema. Na obra, há um choupo que se projeta sobre o
espectador; há sua frente há um rio de águas calmas onde barcos deslizam. Talvez
a característica mais interessante de tal obra seja a “quebra” que Baoshi realiza na
composição ao posicionar o choupo sobre o desenho, como se o espectador
estivesse olhando através dele, em direção à cena. Apesar de o rio ser praticamente
representado como um espaço em branco, esse espaço “nulo” é bruscamente
interrompido por Baoshi que interpõe um elemento compositivo completamente novo
e não usual na cena. Porém, a maneira delicada como pintou os galhos fez com que
essa interposição não fosse alienada em relação ao desenho. Com o pincel fofo e
pinceladas grossas e suaves, Baoshi fez com que esse elemento, ainda que
completamente novo, se fundisse graciosamente na composição. De fato, é preciso
um conhecimento técnico específico para notar que se a proposta artística de Baoshi
é utilizar os paradigmas da técnica compositiva tradicional chinesa, aquele choupo
poderia ser interpretado como estando totalmente alheio à composição, o que não
ocorre.
Em Monet, vamos utilizar tais obras para análise:
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Esquerda: Oscar Claude Monet, Bridge Over a Pond of Water Lilies, 1899, oleo sobretela, 93 cm x 74
cm, Metropolitam Museum of Art, New York.
Direita superior: Oscar Claude Monet, A Cart on the Snowy Road at Honfleur, 1865, oleo sobretela, 65
cm x 93 cm, Museé d’Orsay, Paris.
Direita inferior: Oscar Claude Monet, Cliffs near Deppe, 1882, oleo sobre tela, 65 cm x 81 cm,
Kunsthaus, Zurique.
É na primeira obra, Bridge over a Pond of Water Lilies, que vemos a temática,
técnica e composição mais comuns nas obras de Monet: suas ninfeias. Na obra, há
uma ponte representada sob a qual um riacho corre e várias ninfeias se encontram
boiando sobre a superfície. A obra, de temática muito simples, nos impressiona pela
técnica empregada pelo artista: a cena é completamente densa, e são os
empastelamentos abundantes de tons de verde que nos dão tal sensação. Apesar
de toda a vegetação estar concentrada no ponto de fuga único, ainda sentimos
como se o bosque fosse longo, o que não torna a cena fechada já que Monet nos
passa a sensação de um bosque calmo e uma ponte justamente por causa da
profusão de elementos compositivos e graças à disposição das flores no rio. Na
segunda obra, A Cart on the Snowy Road at Honfleur, vemos uma composição
também comum de Monet: uma cena de inverno, na qual uma larga avenida é
representada cheia de neve por onde uma carroça passa. Novamente, a técnica do
artista nos auxilia no processo de assimilação da obra: A neve ao redor é quase
completamente branca e são os empastelamentos que nos dão a sensação da neve
842
representada, assim como o céu já que a mesma não possui contornos claros e
delineados. Até mesmo a carroça, aparente personagem principal da cena, é feita de
traços grossos e empastelados, porém, não desprovida de senso ou interesse
estético. Talvez os únicos elementos da imagem que tenham um interesse descritivo
maior por parte do artista sejam as árvores, onde o mesmo descreve os galhos com
atenção e empastela a tinta branca como a neve que se amontoa nos mesmos.
Na terceira obra, Cliffs near Dieppe, vemos uma composição pouco comum
não somente em Monet, como também em outros pintores ocidentais de quaisquer
outras épocas: Monet compõe uma cena onde a personagem não é as figuras
humanas ou a paisagem, mas sim um elemento intrínseco e exclusivo da cena que
em qualquer outra composição não seria a personagem. Na obra, ele cria um
penhasco onde em seu topo há o que se parece ser uma pequena vila ou uma
residência de verão de algum senhor; e é possível ver figuras humanas que se
envolvem na paisagem e parecem coerentes com os outros elementos compositivos.
Porém, o que nos causa certa surpresa pela composição inesperada é a quebra
repentina que o penhasco sofre nos dando assim duas cenas e três objetos de
interesse artístico: a cena que ocorre acima do penhasco, a cena que ocorre na
praia atrás do penhasco e que sua quebra nos permite visualizar e o próprio
penhasco.Cada cena se desenvolve de maneira totalmente autônoma e podem
também ser encaradas individualmente. Em cima do penhasco, temos uma cena de
certa maneira aristocrática, onde há o penhasco propriamente dito que nos desperta
interesse estético pelos empastelamentos em sua face cega e branca onde há o
efetivo corte da cena, e temos a praia, onde pessoas se divertem na areia enquanto
um barco atravessa sozinho o oceano.
As obras foram escolhidas para se relacionarem por: técnica mais utilizada,
composição tradicional e quebra de composição e talvez este seja o grupo no qual
as semelhanças se tornem mais óbvias. A relação entre a técnica das obras <Xo
Cl (1) e Bridge over a Pond of Water Lilies é gritante, principalmente pelo apelo
estético de ambos que utilizam de maneira semelhante na composição e,
principalmente a maneira como ambos a utilizam para ressaltar a cena não focando
os empastelamentos ou borras no personagem principal, mas sim no entorno.
Também é possível comparar a composição, já que ambos os artistas utilizam cenas
843
densas como método compositivo frequente. Em diferenças, podemos ressaltar a
técnica propriamente europeia e chinesa que se choca em ambos os casos: o ponto
de vista único em contrapartida com o ponto de vista fracionado, os grandes
espaços vazios, etc.
Em (2) e A Cart on the Snowy Road at Honfleur, vemos como
ambos os artistas conseguem manterem-se fiéis à sua técnica e à sua tradição
compositiva: no caso de Baoshi, com o grande espaço em branco aliado aos borros
e traços livres da montanha que nos dão a cena tradicional, e em Monet, seus
empastelamentos que não fogem do detalhismo da pintura Ocidental.
Mas talvez as obras mais interessantes ao se comparar sejam
(3) e Cliffs near Dieppe e como essa quebra compositiva tradicional, analisada no
parágrafo anterior, não parece de maneira nenhuma deslocada em relação à cena.
Baoshi interpõe um elemento estético na obra, o que causa um estranhamento já
que tal feitio não é comum na pintura chinesa, enquanto Monet nos introduz uma
quebra compositiva que nos dá não somente duas cenas como também dois pontos
de vista e de fuga. No caso de Baoshi, seu choupo interposto pode ser interpretado
não como um elemento puramente ocidental, mas sim um elemento compositivo
com interesse estético puramente moderno, já que ele insere uma quebra na
tradição representativa da cena, ainda que o elemento se funda com a composição
em si. Podemos ver tal ocorrência como o cubismo de Cèzanne ou Picasso, ou o
neo-concretismo de Lygia Pape. No caso da perspectiva dupla de Monet, seria
talvez ousado demais e incorreto supor que sua inspiração fosse a arte oriental, mas
é certo de que não foi a arte ocidental já que em toda a história da pintura uma única
cena com mais de um ponto de fuga único são ocorrências raríssimas. Para situar o
leitor, vamos analisar novamente a cena: o primeiro ponto de fuga está em cima do
penhasco. O segundo, no penhasco em si. O terceiro na praia. Se o espectador é o
marco zero posicionado em um ângulo de 90ºC focado na perspectiva única da cena
em cima do penhasco, veríamos que a praia deveria estar mais longe do que
efetivamente se encontra e o penhasco mais perto. Se focarmos na cena da praia,
veríamos que não seria possível ver a cena em cima do penhasco, já que ela se
encontraria muito além do campo de visão do espectador. Se focássemos no
844
penhasco, não veríamos nenhuma cena já que ele se interpõe entre elas.
Apesar de ambas as cenas serem retratadas no sentido de ponto de fuga
único, a perspectiva não é única. Utilizando tal recurso, Monet quebra de maneira a
tradição representativa de ponto de fuga único e perspectiva planificada e parte para
um método representativo quase oriental, representado cada pedaço da cena em
um ponto de vista diferente.
Conclusões
Monet “cria” e utiliza seus empastelamentos como uma alternativa moderna à
técnica fiel representativa, buscando assim uma maior interação da cena com o
espectador, além de visar a experiência da pintura e não sua simples observação,
Baoshi também faz exatamente a mesma coisa: ele utiliza borros de nanquim e
traços livres, técnica esta que jamais foi empregada antes em toda a pintura chinesa,
para tentar expor de maneira mais convincente a cena que ele busca representar
além de visar envolver o espectador não apenas com uma técnica puramente
moderna como também com a experiência da cena que ele visa transpassar.
É importante salientar que, apesar de literato, a arte de Baoshi não tem a
mesma auréola quase mítica e intocável da pintura feita por literatos nos séculos
anteriores. Antes de Baoshi, a pintura era feita como uma forma de estudo da
natureza e da filosofia. A paisagem não buscava representar o real, e sim a visão
filosófica ou imaginativa do artista de como a paisagem deveria ser. Dessa forma,
ainda que não inspirada em locais ou cenas reais, a paisagem ainda era
representada de forma real mesmo que pelo imaginário do artista. Já Baoshi quebra
essa tradição. Ele não procura pintar o real nem mesmo o que imagina; ao invés,
decide tentar passar ao espectador a sensação da cena assim como o mestre
ocidental. Se Baoshi não desejasse tal efeito, suas cenas de contemplação, por
exemplo, não seriam feitas de montanhas densas e águas rápidas onde apenas o
monge é representado com detalhes em meio ao caos da paisagem. O artista quer
que nossa atenção se fixe na personagem, e nos utilizando dela, olhar para toda a
cena e tentar compreender e sentir a cena como a personagem e não como um
845
espectador vazio que olha para uma tela como alguém olha para uma janela.
Com tais considerações, podemos concluir que ainda que jamais tivessem se
conhecido e ainda que não haja provas suficientes que afirmem que Baoshi tenha ou
não se inspirado no mestre europeu, ambos os apelos estéticos dos dois mestres
são similares porque ambos visam a representação da sensação da cena, ao invés
da cena intrínseca em si, ocorrência essa que se deu pelo início do pensamento
moderno, e tal que viria a ser repetida em vários outros mestres das belas artes e
até mesmo das artes menores, até 1960. Também podemos concluir que, ainda que
nos faltem evidências que comprovem que Baoshi tenha efetivamente se inspirado
em Monet, as semelhanças entre ambos são volumosas demais para que possamos
ignorá-las. Tudo o que podemos fazer é supor, e avaliar a obra do mestre chinês
para tentar entender o que teria efetivamente acontecido. O que sabemos com
certeza é que o Japão sofreu grandes influências europeias no período moderno que
teriam influenciado vários artistas dentre os anos de 1920 e 1950, e também
sabemos com certeza que Fu Baoshi esteve entre 1922 e 1923 no Japão estudando,
pintando e expondo. Podemos supor que ele tenha efetivamente tido esta influência
europeia através da cultura japonesa por estar em um lugar suscetível a tal
influência, mas não há confirmação para tal fato. A única certeza que temos é que o
pensamento moderno influenciou sobre medida artistas do Oriente ao Ocidente
inspirando assim novas técnicas, composições e interesses estéticos.
Podemos concluir então que Fu Baoshi apela esteticamente para nosso olhar
por utilizar uma técnica que tradicionalmente não poderia ser empregada de maneira
harmônica com a composição chinesa, enquanto Monet apela esteticamente para
nosso olhar quebrando a tradição de uma representação fiel do universo e trocandoa pela sensação do representado, que se dá por seus empastelamentos. Desta
forma, Baoshi e Monet podem ser citados como exemplos típicos do processo
moderno porque ambos introduzem uma nova técnica de maneira fazendo com que
ela seja coesa com os elementos tradicionais que ainda permanecem em suas obras
(em ambos os casos a composição ou a temática) e concisa em representar não de
maneira fiel, mas sim de uma maneira nova, o universo.
846
Notas
¹ Foi decidido manter os títulos originais da obra de Fu Baoshi em chinês já que muitos deles não foram
traduzidos oficialmente e uma tradução superficial acabaria resultando em interpretações errôneas.
²De acordo com Baxandall (2006, pag. 151) “ No século XVIII, Newton e Locke estiveram na origem de
um debate sobre a influência da cor na percepção da distância e do tamanho dos objetos. A luz de baixa
refração – que ‘dá a sensação do vermelho’ – se imprime na retina com mais força que a luz de alta refração –
‘que dá a sensação do azul’ -, por exemplo. [...] É por isso que os objetos que refletem a luz vermelha parecem
mais perto de nós que os objetos azuis. [...] um objeto vermelho parece estar mais perto de nós do que
realmente está, também será percebido como menor do que é. Um vaso vermelho dá a impressão de estar mais
perto que um vaso azul do mesmo tamanho e, como a idéia de vaso decorre da relação estabelecida pela mente
entre o tamanho e a distância do objeto, concluiremos que o vaso azul é muito maior que o vermelho. Há um
sugestivo grau de tensão entre a sensação e a percepção”.
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CROIZIER, Ralph. Qu Yuan and the Artists: Ancient Symbols and Modern Politics in
the Post Mao Era. RevistaThe Australian Journal of Chinese Affairs. 1990. Vol. 24. Pag.2560. Chicago Journals emparceria com College of Asia and the Pacific.The Australian
National University.The University of Chicago Press. Chicago.
BUTLER, Ruth. Hidden in the Shadow of the Master: The Model-Wives of Cezanne,
Monet, and Rodin.Yale University Press. 2008.
TUCKER, Paul Hayes. Claude Monet: Life and Art. Yale University Press. 1995.
Beatriz Faria Santos
Estudante de graduação do Departamento de História da Arte da Escola de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo.
Pesquisa a arte chinesa, em especial o período moderno e o artista Fu Baoshi.
847
A MEMÓRIA MATERIAL DO INTERCÂMBIO CHINA-PORTUGAL NA ARTE
SACRA PAULISTA: CAPELA DE SANTO ANTÔNIO EM SÃO ROQUE E IGREJA
DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO NO EMBU DAS ARTES
Beatriz Vicente de Azevedo – PIME-SP
RESUMO: Os movimentos missionários, principalmente dos jesuítas, promoveram um
intercâmbio cultural entre Oriente e Ocidente. A necessidade de converter e ganhar almas
para Cristo fez os missionários se espraiar pelo mundo, e assim nasceram as reduções
jesuíticas na América. Raízes artísticas e culturais distintas passaram a conviver, em uma
longa história de fecunda contaminação. Do período colonial brasileiro, na então São Paulo
de Piratininga, destacam-se duas construções jesuíticas representativas dessa
miscigenação: a Capela de Santo Antonio em São Roque, do final do século XVII, e a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário no Embu das Artes, do início do século XVIII. Exteriormente,
por exemplo, os telhados remetem aos pagodas chineses; na arquitetura interna, mais
especificamente na pintura do forro dos tetos, a presença oriental se manifesta por meio da
iconografia, dos arabescos florais, do vermelho-intenso.
Palavras-chave: intercâmbio cultural, jesuítas, chinesices, cultura material, arte sacra
brasileira
ABSTRACT: The missionary movements, especially the Jesuits, promoted an exchange
between East and West. The need to convert and win souls for Christ did the missionaries
spread throughout the world, and so was born the Jesuit missions in America. Since then,
distinct cultural and artistic roots coexist, in a long history of fruitful contamination. In São
Paulo colonial period, we highlight two Jesuit constructions: the Chapel of San Antonio in
San Roque, at the end of the Seventeenth Century, and the Church of Our Lady of the
Rosary in Embu of Arts, at the early Eighteenth Century. Outside, for instance, are the
rooftops like the Chinese pagodas, in the internal architecture, specifically in ceilings painting,
oriental presence manifests itself through the iconography, the floral arabesques, the intense
red.
Keywords: cultural exchanges, Jesuits, chinoiserie, material culture, Brazilian religious art
Qual é a relevância, e o sentido, de estudar os vestígios do oriente na cultura
material paulista?
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2011) chama a época em que
vivemos de “modernidade líquida”, porque, “(...) como todos os líquidos, nosso
mundo jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo”. Essa
denominação é muito adequada e pertinente porque nesta segunda década do
século XXI, ou seja, a época do Instagram, Facebook, Twitter, o efêmero e o
descartável são características onipresentes, e a cultura material é um dos
contrapontos possíveis.
848
O presente artigo é sobre a memória material, e abrange um campo bastante
específico e delimitado: do ponto de vista geográfico, a área de estudo se restringe
ao Planalto Paulista e, do ponto de vista histórico, ao século XVII e XVIII. Cabem
destacar aqui alguns pontos que podem contribuir para dar uma noção de como era
o cenário em que surgiu a cultura material, principal objeto deste estudo.
Desde a época das grandes navegações, os inacianos estiveram presentes
nas naus que circulavam pelos oceanos, como o Padre Francisco Xavier no Oriente
e Padre Manoel da Nóbrega no Ocidente. A Igreja Católica é uma das primeiras e
mais antigas organizações globalizadas do planeta, e o cristianismo, em sua forma
católica, era a religião oficial dos portugueses.
No caso do Brasil colônia, a cultura material era, na maioria dos casos,
impulsionada pela fé cristã, e isso é particularmente verdadeiro no campo das artes.
Em Portugal, encarregavam-se da educação dos jovens – gramática, retórica,
matemática – e do ensino das artes, incumbência que se espalhou ao redor do
mundo, inclusive pelo Brasil.
Partiu de São Vicente o grupo comandado pelos padres Manoel da Nóbrega e
José de Anchieta que fundou, em 1554, São Paulo de Piratininga, um vilarejo
completamente isolado em virtude da dificuldade de transposição da Serra do Mar.
No altiplano, surgiu então uma sociedade segregada formada por mamelucos,
fruto da miscigenação dos índios que acompanhavam o cacique Tibiriça com os
poucos brancos trazidos por Martim Afonso de Sousa, que fundou São Vicente em
1531, na baixada santista, a primeira vila e capitania brasileira, e pela gente de João
Ramalho, que dois anos depois fundara a vizinha Santo André da Borda do Campo.
Há relatos de que os homens venciam as escarpas com muito esforço, às
vezes de gatinhas, a subida era íngreme e não havia trilhas, com o deslocamento
acontecendo em mato cerrado, e as pessoas abrindo caminho com facão. Somente
em 1792 é que ficaria pronta a Calçada do Lorena, uma estrada pavimentada com
pedras para facilitar o crescente tráfego comercial entre São Paulo e o Porto de
Santos. A Calçada do Lorena ficou famosa desde que Dom Pedro I e comitiva a
utilizaram montados em muares nas visitas à marquesa de Santos na primeira
metade do século XIX (MENDES, 2014).
849
O século XVII começa com a iniciativa dos paulistas de organizar as grandes
expedições conhecidas por entradas e bandeiras, que saíam para desbravar o
interior em busca de mão-de-obra indígena, pedras e metais preciosos nos rincões
inexplorados. Atividade que gradualmente arrefeceu no século XVIII (RECCO, 2014).
O mundo lusófono tem vínculos históricos remotos com o Oriente, mas, no
século XVI e XVII graças à ligação marítima regular e contínua entre os países do
Atlântico, Índico e Pacífico, a Europa tornou-se presença marcante na Ásia. Em
contrapartida, os intelectuais europeus, laicos e clericais, eram influenciados pela
cultura asiática nesse encontro intercultural. É interessante verificar que os primeiros
mandatários a estabelecer-se no Brasil ocuparam antes cargos oficiais no Oriente.
Salvador na Bahia está a 17.000 quilômetros distante da chinesa Macau,
onde o português é língua oficial junto com o cantonês. São Paulo dista cerca de
18.000 quilômetros da capital da China, Beijing (Pequim). Entretanto é possível
constatar tanto no Recôncavo Baiano quanto em Sabará e Mariana, municípios de
Minas Gerais, ou em cidades como São Roque e Embu das Artes, em São Paulo,
influências exercidas pela China sobre o Brasil no que diz respeito à cultura material,
especialmente na arte sacra religiosa.
Muitos dos motivos orientais que aparecem nas pinturas das igrejas daquela
época podem ter sido copiados das porcelanas e tecidos que a Companhia das
Índias Orientais trazia e que por aqui circulavam e serviam de modelo. Ou pode ter
sido influência direta do Oriente devido às paradas que os navios faziam nos portos
brasileiros; bem como reflexo do estilo chinoiserie que ocorreu na Europa no século
XVIII. É possível constatar, por exemplo, tal modismo, a atração pelo Oriente no
Palácio de Queluz, em Versailles.
A gênese artística brasileira tem caráter mestiço e universal, sendo na maioria
das vezes interpretações de formas e temas e também reelaboração de padrões
indígenas, europeus, africanos, orientais. Em forros de sacristias franciscanas de
Olinda, no Recife, por exemplo, há pinturas de frutos dentro de porcelanas chinesas.
Em Mogi das Cruzes, em São Paulo, em pintura deslocada de alguma outra sacristia,
há não apenas porcelanas chinesas representadas como também pássaros em vôo
que lembram a liberdade espacial pictórica chinesa.
850
Chinesices
O crítico José Roberto Teixeira Leite escreve sobre as chinesices (1999,
p.180):
Chinoiserie é invenção européia e não asiática, é pintura que pode ser feita
por qualquer um, menos, obviamente, por artista chinês ou oriental, visto
como, por definição, representa a visão fantasiosa que os europeus, do
século XVIII sobretudo, tinham da China – ou do que julgavam ser a China.
No Estado de São Paulo, há algumas construções de valor artístico e
principalmente histórico remanescentes da época colonial. Em duas delas
encontram-se chinesices ou chinoiserie: a Capela de Santo Antonio, no município de
São Roque, e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no município de Embu das
Artes.
Em ambos os casos, os documentos foram perdidos, e assim não se pode
saber ao certo em que circunstâncias foram feitas as chinesices, mas é possível
levantar hipóteses e suposições.
Capela de Santo Antonio em São Roque
O Sítio de Santo Antonio, onde se situa a casa bandeirista e a capela, era a
antiga propriedade do patrocinador e organizador de entradas Fernão Paes de
Barros. A capela começou a ser construída em 1681, sendo consagrada em 1686. O
sítio foi adquirido pelo escritor modernista Mario de Andrade em 1944, que faleceu
no ano seguinte sem realizar o sonho de ali criar um centro para pesquisadores. A
capela foi objeto de pesquisas aprofundadas por parte do modernista, instigado pelo
amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, então diretor do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (antiga SPHAN, 1937). Mario de Andrade escreveu o artigo “A
capela de Santo Antônio”, publicado no número 1 da revista do Iphan, em 1937.
No artigo, Mário de Andrade avaliava que as pinturas eram os melhores e
mais bem conservados testemunhos da arte paulista. O urbanista Lúcio Costa
(1997), anos mais tarde, no artigo “A arquitetura dos jesuítas no Brasil”, de 1941, no
número 5 da mesma revista, confirma a importância da construção. A família de
851
Mário de Andrade doou as terras da capela ao governo federal, que passou a ser
restaurada pelo Iphan.
Tanto a casa bandeirista quanto a Capela de Santo Antonio apresentam um
elemento estrutural e construtivo de flagrante conotação chinesa, ou seja, estão
edificadas sobre uma plataforma de pedra, técnica comum na China desde tempos
imemoriais, observação de Roberto Teixeira Leite (1999). Essa plataforma é uma
peculiaridade que só as casas bandeiristas exibem e as distingue das demais
residências rurais brasileiras, que pousavam naturalmente no terreno e nem sempre
com o cuidado de nivelamento mais alto e amplo que destaca a construção (Figura
1).
Os três níveis do telhado da capela, acachapados e com as extremidades
ligeiramente arrebitadas, remetem aos pagodes chineses, o alpendre da entrada,
enfim, a capela possui uma visível reminiscência asiática (Figura 2).
No que diz respeito à pintura interna, a crítica de arte e historiadora Aracy
Amaral escreveu (1981, p. 82):
Chinesices, entretanto, não estão totalmente ausentes da pintura de Santo
Antônio se observarmos com cuidado as largas faixas que, à maneira de
friso, rodeiam a pintura central do forro: elementos vegetais, tratados no
linearismo da maneira orientalizante, envolvem como guirlandas grandes
flores (uma circundada por cada duas hastes) e na união dos elementos
dessa sequência pendem delicadas cerejas. O vermelho é,
significativamente, a cor dessa decoração do friso (Figura 3).
852
Figura 1 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: vista frontal com destaque para a plataforma de
pedra. Foto: MEDEIROS (2013)
Figura 2 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: telhados com influência chinesa.
Foto: MEDEIROS (2013)
853
Figura 3 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: detalhe da pintura do forro apresentando chinesices.
Foto: MEDEIROS (2013)
Igreja Nossa Senhora do Rosário no Embu das Artes
A outra edificação tema deste estudo é conjunto jesuítico Nossa Senhora do
Rosário, formado pela igreja e pela antiga residência dos padres, conjugadas numa
mesma planta. A redução foi criada em 1623. É um dos mais importantes e
preservados remanescentes das construções jesuítas em São Paulo, caracterizadas
pela simplicidade das linhas retas.
A igreja foi reformada na década de 1690, e a nova residência foi concluída
por volta de 1735, pelo Padre Belchior de Pontes, em substituição à antiga capela da
fazenda de Catarina Camacho, situada não muito longe dali, também dedicada a
Nossa Senhora do Rosário.
Encontram-se chinesices nos frisos dos caixotões do forro da capela-mor e
mais enfaticamente nas molduras dos caixotões do forro da sacristia.
854
Sacristia
No forro da sacristia, nas molduras dos caixotões dos seis painéis de formas
retangulares, observam-se frisos pintados de vermelho, com flores, pássaros,
pagodes, pontes e embarcações.
Em um deles aparece ao centro uma caravela, e pode-se ver também um
barco na pintura do friso. Os outros cinco representam cenas da paixão de Cristo: a)
a coluna onde Cristo foi amarrado para ser flagelado; b) o lenço com o qual Verônica
enxugou o rosto de Cristo; c) os três cravos usados para prender as mãos e os pés
de Cristo; d) a lança que perfurou o coração do Cristo e outra com a esponja
embebida em fel e a Ele oferecida – observar as plumas como elemento indígena na
cabeça dos anjos – (figura 4); e e) o cálice com o Sangue de Cristo.
Sobre essas pinturas também escrevem Myriam Salomão e Percival Tirapelli
(2001, p. 96):
Essa pintura decorativa, denominada “grotesco”, chegou ao Brasil por
intermédios dos jesuítas, que a aplicaram na decoração dos forros de
templos, seminários e sacristias de suas fundações brasileiras. Em geral tal
ornamentação pictórica utiliza fortes tonalidades avermelhadas e castanhas,
sendo emoldurada por elementos de influência chinesa.
855
Figura 4 - Igreja Nossa Senhora do Rosário em Embu das Artes: pintura de um dos cinco painéis no
forro da sacristia com o tema da paixão de Cristo: representação da lança e esponja com vinagre. Os
anjos nas extremidades utilizam plumária indígena na cabeça. Nas molduras com fundo vermelho
repetem-se motivos chineses em branco. Foto: MEDEIROS (2013)
Leões funerários
Ainda neste conjunto, que atualmente abriga o Museu de Arte Sacra, estão
quatro leões funerários de madeira que suportam o esquife que na Semana Santa
sai em procissão levando a imagem do Senhor Morto. Pela postura e tratamento
dado ao animal, boca, focinho, olhos, patas garras e cauda, pode-se dizer que são
perfeitos leões budistas chineses. Germain Bazin em seu livro O Aleijadinho e a
Cultura Barroca no Brasil cita estes leões, e escreve (1971, p. 49): “(...) quatro
magníficos leões de madeira que um escultor da época Tang não teria renegado”
(Figura 5).
856
Figura 5 - Conjunto funerário de madeira com quatro leões e esquife, Museu de Arte Sacra dos
Jesuítas, Embu das Artes. Foto: MEDEIROS (2013)
Vínculos culturais
O principal objetivo deste estudo não é o rastreamento das influências e
trocas interculturais, mas principalmente uma tentativa de entender os vínculos
culturais por meio do patrimônio material que sobreviveu até nossos dias como
memória e testemunho de uma longa história de fecunda contaminação.
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ANDRADE, Mário. A Capela de Santo Antonio. Revista do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Iphan, n. 26, p. 24-9, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor Ltda., 2011.
BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro:
Distribuidora Record, 1971.
COSTA, Lúcio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. 60 anos: a Revista. Rio de Janeiro,
IPHAN, 1997, nº 26, pp. 105-169.
MENDES, Denise. Calçada do Lorena. Historianet. Disponível em
<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=606> 12 jan. 2014.
857
RECCO, Claudio. História de São Paulo. Historianet. Disponível em
<http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=745> 12 jan. 2014.
SALOMÃO, Myriam; TIRAPELI, Percival. Pintura colonial paulista. In: TIRAPELI, Percival
(Org.). Arte sacra colonial: barroco memória viva. São Paulo: Edunesp/ Imprensa Oficial do
Estado, 2001. p. 90-117
TEIXEIRA LEITE, José Roberto. A China no Brasil: Influências, marcas, ecos e
sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, SP: Unicamp, 1999.
Beatriz Vicente de Azevedo
Formada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com pósgraduação em Administração pela Fundação Armando Alvares Penteado. Foi Diretora do
Colégio Nuno de Andrade, Diretora da Sociedade dos Amigos da Arte de São Paulo e
Diretora Executiva do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Atualmente colabora com o
Departamento Cultural do Pontifício Instituto para as Missões de São Paulo.
858
ơw!ƪ: A HISTÓRIA DO SUPORTE
Camila Ferreira Iquiene da Silva - UFRJ
RESUMO: Publicado em 1951, ơw!ƪ(hyougu no hanashi), A História do Suporte
(em tradução livre), Yuyama Isamu faz um panorama histórico dos tipos de suporte
utilizados em obras japonesas. Começando com osąğ(Orihon), livros encadernados
que consistem de folhas de papel organizadas e coladas horizontalmente, até aprofundar-se
nos ćŔ(Kakemono), rolos verticais de seda. Como, até onde temos notícia, a obra não
dispõe de uma tradução no ocidente, a aproximação do tema é feita a partir da leitura da
obra em seu original em japonês, em que foram observadas diversas particularidades em
relação aos termos utilizados, cuja maioria não possui uma tradução direta ou muito de seu
significado é perdido na mesma. Além da necessidade de compreensão dos termos no
original para que haja o aprofundamento no assunto, a obra de Yuyama também possui
muitas informações específicas, principalmente no que tange os kakemono, desde sua
função no tokonoma até seu armazenamento, tornando-se uma bibliografia necessária no
estudo do tema.
Palavras-chave: suporte, arte japonesa, Yuyama Isamu.
ABSTRACT: Published in 1951, 2 3 (hyougu no hanashi), The Story of Mounting
(in free translation), Yuyama Isamu traces an historical overview of the types of mounting
used in japanese works of art. Starting with the#(Orihon), bounded books consisted
of paper sheets organized and glued up horizontally, until a deep study about the(
(Kakemono), vertical silk rolls. Since, as far as we know, this work was not translated in the
West, the theme approach is based on the work’s reading in its original language (Japanese),
in which several particularities regarding the terms used were observed, which most of it do
not has a direct translation or much of its meaning is lost during the same. Besides the need
of understanding the terms in its original language to have a deep understanding of the
subject, Yuyamu’s work also has much specific information, most of it regarding the
kakemono, since its function in the tokonoma until its storage, becoming a necessary
bibliography in the study of this theme.
Keywords: mounting, japanese art, Yuyama Isamu.
O seguinte trabalho é fruto de uma aproximação, ainda inicial, de uma
estudante de Letras Português-Japonês ao mundo das artes, que tem como ponto
de partida a obra de Yuyama Isamu, presente no acervo do crítico de arte Mário
Pedrosa, sobre os diferentes suportes presentes nas obras japonesas. Esta
pesquisa é uma tentativa de compreensão desses suportes e visa reunir
informações quanto aos mesmos, tendo em vista a fragmentação destas em
diferentes bibliografias.
859
1. O significado de ơw
A palavraơw (hyougu) é dada a partir da junção de dois ideogramas. O
primeiro, ơ (hyou), carrega a idéia de superfície e o segundo, w (gu), pode conter
tanto a idéia de mobília quanto a de ferramenta, utensílio. Esta palavra é utilizada
para designar obras que foram afixadas em superfícies de papel ou tecido, como é o
caso dos rolos (ÙŔ, makimono), rolos verticais (ćƺ, kakejiku), biombos (Ëǚ,
byoubu), fusuma (ƥ), divisórias portáteis (Ɵů, tsuitate), dentre outros1. Por questão
de praticidade, dar-se-á preferência à utilização da palavra “suporte” para designar
as superfícies em que se encontram as obras. O termo hyougu aparecerá somente
em caso discriminatório.
A sequência e os tipos de hyougu que serão apresentados correspondem à
introdução e ao panorama histórico feitos por Yuyama Isamu em ơw!ƪ
(hyougu no hanashi)2.
2. ąğ(Orihon)
Literalmente
encadernados
e
“livro
dobrado”,
consistem
de
os
folhas
Orihon
de
são
papel
anteriores
organizadas
aos
e
livros
coladas
horizontalmente. É considerado um estágio entre um rolo e um códice. Ao invés do
Orihon ser enrolado para seu armazenamento, este era dobrado de forma similar à
de uma sanfona, fazendo com que cada página escrita encare outra também escrita
quando fechado, podendo, assim, ser aberto em qualquer página.
Quando eram acopladas capas sólidas na primeira e na última parte, os
Orihon também eram chamados de Úƣğ (Jousoubon), cuja tradução seria próxima
de “livro dobrado de tecido”3. Os Orihon eram comumente utilizados para cópias
manuscritas e obras budistas.
860
3. ŹÙŔ(Emakimono)
Composto pelos ideogramas Ź (e), pintura, e ÙŔ (makimono), rolo, este
suporte feito de seda ou papel, amarrado a uma haste de madeira em sua esquerda
com uma corda de seda trançada, data dentre o século XII e o século XIII, no
período Heian. Tem como principais características sua forma horizontal, o ritmo de
leitura (ditado pelo espectador, gerando uma relação com o mesmo) e cenas quadro
a quadro, mantendo uma sequência narrativa. Os emakimono divergem em tamanho,
tendo em média 30 centímetros de largura e podendo ter entre 9 a 12 metros de
comprimento. Uma história em rolo horizontal pode apresentar entre um a três rolos
no total.
Os chineses utilizavam o rolo horizontal de modo a representar paisagens de
forma panorâmica, com uma sucessão de cordilheiras, que possuíssem uma
sensação de profundidade. Da mesma forma os japoneses descreviam pelos
emakimono a natureza do homem, no qual a perspectiva era menos importante que
a cena que se desdobrava. Os emakimono mais antigos do período Heian que
conseguiram ser conservados até os dias de hoje são os de Genji Monogatari (O
Romance de Genji), compostos por ilustrações e trechos do livro homônimo escrito
por Murasaki Shikibu no início do século XI, que retrata a vida da corte imperial no
período Heian.
O emakimono combinava tanto narrativas escritas quanto imagens, mantendo
uma relação entre a pintura e a prosa4. As obras presentes no emakimono eram
principalmente sobre batalhas 5 , romances 6 , religião 7 , histórias folclóricas 8 e
narrativas sobre o mundo sobrenatural9.
861
10
Figura 1. ĢÊ (Azumaya), séc. XII, Museu de Arte de Tokugawa .
4. Ëǚ(Byoubu)
Muitas vezesËǚ(byoubu) é traduzido de forma literal, de modo a ficar como
“parede de vento”. Porém, a palavra se origina da fraseǚ5Ë(“kaze wo
fusegu”), cuja tradução seria “proteger-se do vento” 11.
Sua origem remonta da China, na dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), onde
sua função, originalmente, era bloquear o vento. Entretanto, nas dinastias do Norte e
do Sul (386-589), adquiriu o status de ornamento de luxo pela realeza. Sua forma
original era a de um painel com ou caligrafia ou pintura, sustentado por um único
suporte.
O byoubu japonês mais antigo data de 68612, no período Nara. Neste período,
os byoubu mais comuns eram os de seis painéis, feitos de seda e conectados com
tiras de couro ou seda e acoplados em uma armação de madeira. No período Heian
(794-1185), essas tiras passaram a ser menos utilizadas, dando lugar às NJë
(Zenigata), dobradiças de metal em formato de moeda. Também foi neste período
que os byoubu se tornaram elementos indispensáveis nas residências dos senhores
feudais (daimyō), templos budistas e santuários xintoístas.
Foi apenas no período Muromachi (1337-1573) que o byoubu tornou-se
popular dentre as massas, sendo encontrado em residências, dōjō e lojas, e também
mais resistente, mais fácil de dobrar e carregar.
As pinturas presentes nos byoubu podem ser tanto japonesas quanto
chinesas. Estas pinturas podiam ser°t (Yamato-e)13, Ĺ«Ş (Suiboku-ga)14 ou
ČZŞ
(Bunjinga)
15
. Nos byoubu japoneses em específico, pinturas que
representavam a passagem das estações também eram muito comuns. Nestes
byoubu, as pinturas de cada estação eram dispostas da direita para a esquerda,
representando a transição das mesmas.
Foi somente entre o período Azuchi-Momoyama (1573-1603) e o período Edo
(1603-1858) que as pinturas dos byoubu obtiveram mais prestígio, devido à
presença destes nos castelos e fortalezas.
862
5. ƥ(Fusuma)
Fusuma são painéis retangulares verticais que podem ser deslizados para
ambos os lados a fim de redefinir o espaço de um cômodo ou serem utilizados como
portas. Embora os fusuma modernos sejam em sua maioria apenas de papel, sem
nenhuma pintura, ou então com estampas e padrões industrializados, historicamente
eles eram pintados geralmente com vistas contendo montanhas, florestas ou
animais. O fusuma foi popularizado ao fim do período Heian.
Originalmente feitos de seda, os fusuma começaram a ser produzidos em
papel a partir do período Heian. Deste período até o Kamakura, (1185-1333), as
pinturas em fusuma eram em sua maioria Yamato-e, passando a pinturas com
carvão e aquarelas no período Muromachi (1336-1573).
6. ćŔ(Kakemono)
Mais conhecido como ćƺ (Kakejiku), estes rolos verticais são feitos de seda
onde então é afixada a obra a ser exibida. Por ser feito deste material, o rolo é
flexível, o que o torna mais fácil de ser enrolado e armazenado. Entretanto, ao
contrário do emakimono, o kakemono é feito para ficar pendurado e exposto,
fazendo parte da decoração do tokonoma, uma espécie de alcova em que são
expostos itens artísticos para a contemplação, sendo trocado de modo a
acompanhar cada estação do ano. Quando posto numa sala de cerimônia do chá, o
kakemono será escolhido de modo a complementar o arranjo floral (ikebana)
exposto.
O kakemono é o elemento principal do tokonoma. Escolhe-se um kakemono
com uma obra de um artista distinto, pois, caso contrário, este não exercerá a
influência esperada em quem o observa16. Tão preciosos são os kakemono que
estes são armazenado, enrolados, em caixas feitas especialmente para os mesmos
e só são pendurados quando a ocasião é apropriada, como cerimônias (quando se
serve o chá, por exemplo), ao receber uma visita ou com o advento de uma nova
estação. Quanto às obras afixadas no kakemono, estas podem ser pinturas do tipo
yamato-e, suiboku ga, dentre outras escolas, ou uma arte caligráfica. Uma casa com
863
um tokonoma tem, pelo menos, quatorze ou quinze rolos diferentes de modo a haver
essa alternância17.
Sua origem remonta da China, na distania Jin (265-420)18 e seu nome vem da
expressão “pendurar e reverenciar”, pois seus primeiros temas eram religiosos. Foi
amplamente usado por monges, pois os kakemono ajudavam a transportar as
pinturas budistas de forma mais prática. Foi introduzido no Japão no período Asuka
(550-710) ainda com temas budistas, mas ao fim do período Kamakura, por
influência do zen budismo e por pinturas suibokuga estarem em voga, os kakemono
passaram também a serem utilizados como suporte para suibokuga com temas
bucólicos e, com isso, a terem mais visibilidade.
No período Muromachi, tornou-se comum ver kakemono com suibokuga nos
tokonoma de salões de cerimônia do chá. Foi Sen Rikyuu19 o grande responsável
pela popularização dos kakemono ao falar sobre sua importância, fazendo com que
ficasse em voga dentre os entusiastas de cerimônia do chá. Foi a partir deste
momento que o costume, a formalidade, de escolher cada tipo de kakemono de
acordo com a estação vigente, horário e convidados teve início. Os estilos de
hyougu mais comuns eram osŤ!ëè (shin no keishiki), formal, ƞ!ëè (gyou no
keishiki), semi-formal, eƓ!ëè (kusa no keishiki), informal.
Figura 2. Estilo de hyougu formal
20
864
Figura 3. Estilo de hyougu semi-formal
Figura 4. Estilo de hyougu informal
21
22
Com a introdução do estilo de hyougu da dinastia Ming (1368-1644) no Japão
durante o período Edo (1603-1868), os kakemono adquiriram um grau maior de
sofisticação. Consequentemente, os demais hyougu também passaram a ser mais
sofisticados, utilizando padrões de tecido complexos como°~ (Yamatonishiki)23,
ŹNjv (e nishiko tou ori)24, dentre outros. No século XVIII, o kakemono tornou-se
popular dentre os nobres e meios artísticos da época, obtendo maior prestígio.
865
25
Figura 5. Estilo de hyougu da dinastia Ming
7. Considerações finais
Através da pesquisa feita, foi notada a importância de reunir informações
ainda dispersas sobre o assunto abordado, uma vez que a maior parte do material
que dispõe destas não se encontra com facilidade no Brasil. Até onde se tem notícia,
não há a tradução de uma obra voltada especificamente para o assunto no ocidente.
Portanto, para que haja um aprofundamento nesse estudo se faz necessária uma
ampla pesquisa e compilação destes fragmentos e a consulta a materiais somente
dispostos no original em japonês, como o caso da obra de Isamu Yuyama, utilizada
neste trabalho.
Notas
1
YAMAMOTO, Moto. Zouhokaitei Hyougu no Shiori. Quioto: Geibundou, 1978, p. 142.
YUYAMA, Isamu. História da Moldura. Tóquio: Hyoso Bijutsu Kenkyuukai, 1958, p. 1.
3
ą0ğ. In: 9 8 < C @ 8 7 : B F H Š Ŭ S x . Wikimedia Foundation, Inc. 2001. Disponível em
<http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%8A%98%E3%82%8A%E6%9C%AC>. Acesso em: 31 mar. 2014.
4
PAINE, Robert Treat; SOPER, Alexander – The Art and Architeture of Japan. Londres: Yale
University Press, 1992, p. 134.
5
Night Attack on the Sanjô Palace, séc. XIII, Museu de Belas Artes de Boston. Disponível
em<http://www.mfa.org/collections/object/night-attack-on-the-sanj-palace-from-the-illustrated-scrolls-of-theevents-of-the-heiji-era-heiji-monogatari-emaki-24523>. Acesso em: 31 mar. 2014.
6
Yadorigi. In: Genji Monogatari Emaki, séc. XII, Museu de Belas Artes de Tokugawa. Disponível em
<http://www.tokugawa-art-museum.jp/english/index.html>. Acesso em: 31 mar. 2014.
7
Hekija
e,
séc.
XII,
Museu
nacional
de
Nara.
Disponível
em
<http://www.narahaku.go.jp/english/collection/d-1106-0-1.html>. Acesso em: 31 mar. 2014.
8
Choujyuu
Jinbutsu
Giga,
séc.
XII,
Templo
Budista
Kouzan.
Disponível
em
<http://www.kosanji.com/chojujinbutsugiga.html>. Acesso em: 31 mar. 2014.
2
866
9
Jigoku
Zoshi,
séc.
XII,
Museu
Nacional
de
Tóquio.
Disponível
em
<http://www.tnm.jp/modules/r_collection/index.php?controller=dtl&colid=A10942&t=type_s&id=11>. Acesso em:
31 mar. 2014.
10
Disponível em
<http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%BA%90%E6%B0%8F%E7%89%A9%E8%AA%9E%E7%B5%B5%E5
%B7%BB>. Acesso em: 13 dez. 2014.
11
Ëǚ. In: 9 8 < C @ 8 7 : B F H Š Ŭ S x . Wikimedia Foundation, Inc. 2001. Disponível em
<http://ja.wikipedia.org/wiki/%E5%B1%8F%E9%A2%A8>. Acesso em: 10 dez. 2013.
12
ǞĶů³ËǚIJjǏǥ(Torigeritsujyobyoubu. Shōsō-in.)
13
Estilo de pintura japonesa inspirando pelas pinturas da dinastia Tang (618-907) e desenvolvida pelo
período Heian. As principais características de uma Yamato-e são as figuras pequenas, construções e objetos
ricos em detalhes, visão da cena de cima para baixo, com o ponto de fuga para fora da tela, e a omissão de
partes menos relevantes da cena que são substituídos por uma nuvem.
14
Também conhecidas como Sumi-e, são pinturas feitas a partir da técnica chinesa da segunda metade
da dinastia Tang, na qual se utiliza uma tinta parecida com o nanquim diluída em água (sumi), pincéis e papel à
base de arroz. Tem forte relação com a caligrafia e, embora não tenham temas em específico, todos são
minimalistas.
15
Bunjinga, ou, “Escola do Sul”, utilizava tintas monocromáticas e focava-se em pinceladas mais
expressivas e em uma abordagem impressionista. Os temas mais comuns eram paisagens, às vezes com
andarilhos ou eremitas apreciando a mesma. Também era comum a presença de poemas, ora clássicos, ora do
próprio artista ou de alguém do seu meio social.
16
SAGARA, Takuzou. Tourist Library vol. 9: Japanese Fine Arts. Tóquio: Kyoudou Printing Co., 1962,
p. 98.
17
Ibid, p. 100.
18
BECKER, Gabriele Fahr. Arte Asiatico. Colônia: Könemann, 2001, p. 108.
19
Sen Rikyuu (1522-1591) é considerado a figura histórica mais importante da cerimônia do chá.
20
Disponível em < http://home.m05.itscom.net/hyougu/keishiki/>. Acesso em: 31 mar. 2014.
21
Ibid.
22
Ibid.
23
Um tipo de padrão baseado na planta homônima.
24
Tipo de padrão da dinastia Tang.
25
Disponível em < http://home.m05.itscom.net/hyougu/keishiki/>. Acesso em: 31 mar. 2014
Referências
BECKER, Gabriele Fahr. Arte Asiatico. Colônia: Könemann, 2001;
GERHART, Karen M. The Eyes of Power: Art and Early Tokugawa Authority. Honolulu:
University of Hawaii Press, 1999;
PAINE, Robert Treat; SOPER, Alexander – The Art and Architeture of Japan. Londres:
Yale University Press, 1992;
SAGARA, Takuzou. Tourist Library vol. 9: Japanese Fine Arts. Tóquio: Kyoudou Printing
Co. 1962;
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867
Camila Ferreira Iquiene da Silva:
Graduanda em Português-Japonês na Faculdade de Letras da UFRJ. Em 2011 foi monitora
do setor de língua japonesa da UFRJ. É monitora de língua japonesa no Curso de Línguas
Aberto à Comunidade da UFRJ desde 2012.
868
O IMAGINÁRIO NA EDUCAÇÃO CLÁSSICA INDO-TIBETANA
Daniel Confortin - UPF
RESUMO: A questão da formação integral do homem e as diversas abordagens propostas
em tempos e espaços diferentes constituem um tema interminável. Nesta pesquisa
buscamos iniciar uma relação entre a educação e o uso das imagens dentro da cultura indotibetana exemplificada pela tradicional pintura sacra tibetana, a thangka. O termo tibetano
"thangka" pode ser traduzido simplesmente como "rolo" ou "pergaminho" o que indica a
forma assumida pela iconografia budista dentro do país. As thangkas são pinturas sacras
com imagens que representam conceitos básicos da filosofia budista. Os principais objetivos
deste artigo são fazer um apanhado histórico desta arte tibetana assim como evidenciar a
relação entre educação, estética e as técnicas contemplativas dentro do contexto do
Budismo Vajrayana.
Palavras-chave: Educação. Estética. Imagem. Tibet. Budismo.
ABSTRACT: The issue of human integral education and its approaches is a vast subject In
this research we seek to start a relationship between education and the use of images within
the Indo-Tibetan culture exemplified by the traditional Tibetan religious painting, the thangka.
The Tibetan word "thangka" can be translated simply as "roll" or "parchment" which indicates
the main fisical form of the Buddhist iconography inside the country. The thangkas are
religious paintings with images that represent basic concepts of Buddhist philosophy. The
main objectives of this article is to make a historical overview of Tibetan painting as well as
demonstrating the link between education, aesthetic and contemplative techniques within the
context of Vajrayana Buddhism.
Keywords: Education. Aesthetics. Image. Tibet. Buddhism.
Introdução
A cultura indiana é uma das matrizes civilizatórias da humanidade. Uma
notável peculiaridade de sua manifestação é a ênfase dada à imagem. Este artigo
faz parte de um projeto maior que apresenta uma proposta de pesquisa acerca das
características conceituais e metodológicas empregadas no uso da imagem dentro
do contexto educativo indiano e, posteriormente, tibetano. Como afirma Kinnard “Se
um dos objetivos disciplinares da história das religiões é criar um retrato completo
das tradições religiosas, então precisamos achar espaço para ferramentas que
tratem o visual” (2001, p.13, tradução nossa). Sabendo da impossibilidade de
determinar uma uniformidade de espaço e tempo dentro de uma cultura tão diversa
buscaremos focar nas práticas educativas que, mesmo tendo início nos primórdios
da cultura ariana no subcontinente, desenvolveram-se em um panorama budista
869
determinante. Tal ênfase na imagem pode ser creditado em grande parte ao
fenômeno suprarregilioso conhecido como Tantra que tomou forma em tais
instituições do norte indiano e acabou por servir de base para a própria identidade
cultural tibetana associada à filosofia budista que resiste até hoje. Para responder a
pergunta central da pesquisa antes de tudo é necessário saber qual o conceito de
educação na civilização clássica indiana, como se deu seu desenvolvimento e sua
posterior difusão. Em seguida indicar o papel histórico da imagem nesse processo
educativo, incluindo o atual contexto regional e a sua relação com o já mencionado
pensamento
tântrico
comum
às
grandes
religiões
indianas.
Além
disso,
necessitamos compreender de que forma as escolas budistas assimilaram (e
contribuíram para) tal fenômeno cultural. Por fim resta determinar a possibilidade de
uma análise teórica do fenômeno que fuja de qualquer orientalismo aliando aspectos
do pensamento ocidental e indiano. Neste artigo procuramos nos ater as questões
iniciais exemplificando a prática por meio da tradicional pintura sacra tibetana
conhecida como thangka.
A formação integral do homem
Em uma época crítica para qualquer educador, chamado para atuar em um
mundo pautado pela transformação e sem ferramentas que lhe permitam lidar com
uma geração sobrecarregada de conhecimentos superficiais e fragmentados, será
possível uma educação humana integral? Quando nos referimos a esse tipo de
educação queremos indicar um sistema que respeite todas as fases da evolução da
consciência humana e sua interdependência, como afirma Wilber (2000, p.100) “a
consciência flui do arcaico para o mágico, do mágico para o mítico, do mítico para o
racional e do racional para as ondas integrais, e uma educação genuinamente
integral enfatiza, não só a última onda, mas todas elas, à medida que
apropriadamente se revelam.” Como afirma Jung (1999, p. 87) “quando falamos aqui
do homem, aludimos a uma totalidade que não pode ser delimitada e nem é
susceptível de formulação, só podendo ser expressada por meio de símbolos”. Pois
é justamente o papel do símbolo visual, do olhar e da imagem em si dentro da
educação que queremos explorar aqui. Se é certo dizer que vivemos na “era da
informação” também podemos afirmar que esta informação é predominantemente
870
visual. A simplificação torna-se imprescindível frente a um enorme volume de
informação construída de maneira anárquica. O ícone se transforma, quase que
intuitivamente, no meio predominante de encapsulamento de significados dentro dos
múltiplos meios de comunicação de massa. Como afirma Ormezzano (2007, p. 31)
“os circuitos da imagem visual podem ser os circuitos do saber, de um saber icônico
que estabelece o compromisso de uma educação visual”. Então, tendo em vista este
panorama, a educação estética se coloca como uma ferramenta valiosa para a
educação integral.
Educação estética
A questão estética tem origem em Platão (428-348 a. C.), o primeiro a
sistematizar uma ideia inicial de teoria estética associando-a aos conceitos de
beleza e divindade, além de estabelecer o princípio da mímese na arte. O filósofo
sustenta uma posição ao mesmo tempo afirmativa e negativa quanto a necessidade
da estética no contexto educativo. Se por um lado a beleza era imprescindível tendo
em vista que “a boa educação é aquela que oferece toda a beleza e perfeições
possíveis ao corpo e à alma” (ORMEZZANO, 2007 p 16) por outro, nos trabalhos
políticos do filósofo, grande parte das expressões artísticas eram vistas como
subversivas dentro do modelo ideal da república.
Aristóteles desenvolve uma teoria muito diferente de seu mestre, dando
ênfase no processo linguístico e psicológico, como afirma Ginzburg (1998 p 138) “a
interpretação da linguagem humana como convenção, proposta por Aristóteles
contra Platão, convidava a explorar a fundo a gama de fenômenos que estão antes,
junto e além da linguagem”. Ao contrário da teoria platônica, existe no pensamento
do estagirita um viés prático para a arte onde esta pode até, de acordo com
Ormezzano (2007), purificar certas paixões através da katharsis, conferindo à arte
um caráter terapêutico. No fim da antiguidade, entre os neoplatônicos, predominava
uma ideia de arte relacionada diretamente com o plano de desenvolvimento
espiritual. Como coloca Nunes (2010, p. 31) “mais do que atividade produtiva, a Arte
é também um meio de conhecimento da Verdade. (…) O que importa a Plotino é a
Arte como obra do espírito. Os produtos artísticos são signos de uma outra arte,
imaterial”.
871
Na Idade Média a estética assume uma função instrumental com relação a
teologia. Genari (1997) citando Santo Agostinho (354-430) lembra que a única razão
de significar, a produção sígnica, é de transferir claramente ao espírito do próximo o
que levamos em nosso próprio espírito. Kinnard (2001) cita a explicação dada por
Gregório Magno (540-604) para o uso das imagens na liturgia católica, quando, no
interior das igrejas estas tinham a função de servir como libri idiotarum ou “livro dos
iliterados” podendo ser lidas por aqueles sem instrução. Esta ideia nos levou por
muito tempo a ver as imagens artísticas como um mero complemento das
informações textuais sem uma importância além da ilustração.
Mas somente após o renascimento da cultura europeia e com o advento da
modernidade, especialmente através de Kant (1724-1804), Schiller (1759-1805) e
Hegel (1770-1831), é que a educação estética receberá uma definição mais
completa e assumirá assim um papel importante dentro da filosofia da educação.
Kant cria um marco definitivo na estética a partir da publicação da obra Crítica do
juízo de 1790: “Superando a dicotomia de que todo o conhecimento é inato ou
adquirido pela experiência, ele encontrou na tricotomia das faculdades humanas –
conhecer, desejar, sentir – o princípio dos sentimentos de prazer e desprazer”
(ORMEZZANO, 2007 p. 19). Tal ênfase na subjetividade que servirá de fundação à
definição de Schiller para o conceito de educação estética.
Trata-se de um preparo que consiste na experiência da beleza, estado de
recepção produtiva da arte e da criação artística, onde se experimenta a
síntese da racionalidade e das pulsões naturais. A experiência estética pode
ser interpretada como um elo no caminho da educação político-moral ou
pode, também, ser entendida como possibilidade humana de experimentar
a felicidade, a satisfação e a plenitude de um presente sobre o qual se
esboça um futuro de esperança e vida melhor. (ORMEZZANO, 2007, p. 20)
Se no Ocidente atualmente costumamos depreciar a formação estética dentro
da educação formal em favor de módulos curriculares mais “práticos”, dentro da
educação indiana e tibetana é impossível falar de formação integral sem levar em
conta o fenômeno estético. Grande parte daquilo que compõe hoje os cânones
sagrados de ambos os países é composto por imagens que acabam por
desempenhar funções diversas incluindo a simples narrativa até práticas
contemplativas complexas. É importante salientar que, apesar de tecer aqui um
panorama daquilo que pretendemos usar como base inicial para a pesquisa
872
proposta, não faltam na tradição indiana subsídios filosóficos e teóricos para
justificar e refletir acerca de si mesma.
Educação indiana
Muitas vezes criamos coletivamente grilhões mentais por meio de conceitos
maniqueístas e generalistas com fins políticos e esquecemos de colocá-los em
questão. O orientalismo, termo cunhado por Edward Said é um bom exemplo de
doxa que se reproduz desde a antiguidade.
Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a
lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito,
descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o
Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter
autoridade sobre o Oriente. (SAID, 2007, p. 29)
Buscando fugir desta armadilha tão comum em textos acadêmicos sobre o
tema, afirmamos aqui a necessidade da interculturalidade abordando a história e a
cultura da índia como a matriz responsável pelo florescimento de grande parte do
pensamento asiático. Como afirma Ginzburg (1998, p.87) as “semelhanças
transculturais podem ajudar a compreender a especificidade dos fenômenos de que
partiram”. Tendo isso em vista uma abordagem comparativa entre a filosofia
ocidental e o pensamento indiano se faz necessária para compreender a proposta
da pesquisa.
Analisando em uma perspectiva mais ampla podemos notar que, no decorrer
da história, várias culturas desenvolveram sistemas extremamente requintados de
leitura e educação por meio da imagem. Nesse sentido a experiência educacional da
cultura indo-tibetana, assim como o papel central que esta atribui à imagem, é um
objeto de estudo interessantíssimo. Devemos ter em mente que praticamente todos
os grandes questionamentos filosóficos levantados no ocidente foram também tema
de análise das diversas escolas indianas.
“Não há nenhum nível de visão espiritual ou filosofia racional atingida no
mundo” escreve Radhakrishnan com insatisfação com alguns estudos
ocidentais do pensamento indiano“ que não tenha um paralelo na vasta
extensão entre os visionários Védicos clássicos e os modernos Naiyãyikas”.
Uma reação moderada para essa afirmação é que ela clama por algo muito
vasto. Mas Radhakrishnan não quer dizer que a filosofia indiana contenha a
lógica formal do Principia Mathematica de Russell e Whitehead, mas apenas
873
que todas as possíveis tradições de pensamento, as quais a vida do homem
pensante gerou, podem ser encontradas no pensamento indiano [...] e cada
uma dessas tradições tem um desenvolvimento sistemático e elaborado
desde o século IV a.C. até o século XV. (RAJU, 2009 p. 14, tradução nossa)
A Índia é antes de tudo uma cultura, essa característica lhe permitiu o
pioneirismo como nacionalidade extraterritorial. A base dessa cultura é religiosa e
todas as atividades humanas relacionarem-se a esse princípio. Como afirma
Mookerji (2003, p. XXI, tradução nossa) “A educação na Índia através das eras tem
sido valorizada e perseguida não em seu próprio benefício, se podemos colocar
assim, mas em função, e como uma parte, da religião”. Como define Jung a filosofia
indiana “corresponde a uma psicologia que há muito já advertiu a relatividade dos
deuses” (1999, p. 87).
A educação deve ajudar nessa auto-realização, e não na aquisição de mero
conhecimento objetivo. É mais direcionada ao sujeito que ao objeto, ao
mundo interno que ao externo. Mas existe um método nessa loucura […] O
caminho correto é buscar diretamente a fonte da vida e do conhecimento, e
não somente adquirir conhecimento é, portanto, a principal preocupação.
(MOOKERJI, 2003 p. XXIII, tradução nossa)
Não seria possível passar aqui por todo o desenvolvimento das diversas
tradições filosóficas indianas e sua relação com a educação, porém existem
similaridades culturais que resistem ao tempo que podem ser assinaladas. No
princípio da civilização ariana estabelecida no subcontinente era extremamente
voltada para os rituais religiosos contidos nos Vedas e na literatura épica, com o
desenvolvimento das escolas na forma de tradições aos poucos o sistema dava
espaço para o questionamento filosófico e ideais educativos heterodoxos sediados
em Ashrams, ou seja, dentro da casa dos mestres. Desde cedo se estabelece uma
relação estreita e personalizada entre aluno e mestre, como de um paciente para
com seu médico, isso passa a fazer sentido quando lembramos que grande parte
das tradições focavam a filosofia de vida em primeiro plano. Mookerji (2003)
comenta que a Índia sempre apostou no sistema doméstico buscando fugir da
educação mecânica e padronizada, mas, ao mesmo tempo, equilibrando a educação
manual e vocacional para dar um rumo prático à formação humana e ensinar ao
aluno como lidar com os objetos e o próprio ambiente físico.
Os indianos apresentam um desprezo pelo conhecimento escrito mostrado no
início da educação védica. Observando-se que os textos sagrados hindus foram
escritos tardiamente e que, até o século XVII eles eram transmitidos principalmente
874
por via oral, podemos compreender tal posição. O professor era a biblioteca dentro
da tradição e se considerava um sacrilégio reduzir os Vedas à palavra escrita. Nessa
ânsia prática estava o embrião de uma característica que logo iria se destacar nos
sutras (discursos) mas principalmente nos mantras, formas extremamente reduzidas
de discurso e que, na concepção indiana, falam diretamente ao atman (espírito). Tal
prática abriria caminho para a filosofia tântrica, um conjunto de métodos que
abrange (e une) as principais tradições do pensamento indiano.
Pontos básicos do budismo
Aquilo que conhecemos como “budismo” surge no berço da cultura indiana
dentro do pensamento védico e rompe com sua estrutura para se tornar a primeira
religião universal do mundo. Sua origem é atribuída ao príncipe Sidarta Gotama por
volta do século V a. C. nascido no território que hoje pertence ao Nepal. Mesmo
sendo referido como uma religião o budismo é, antes de tudo, uma tradição filosófica
composta por múltiplas escolas. Seu cânone inicial está reunido naquilo que se
convencionou chamar de triptaka, ou “três cestos”, onde aparecem as bases para a
o discursos filosófico (sutras), moral (vinaya) e psicológico (abidharma) que compõe
o chão comum da doutrina. Em muitos sentidos o budismo foi revolucionário,
renegava a organização social predominante das castas, não determinava
diferenças entre os seres sencientes, não formula a ideia de um deus (ou muitos) e
até mesmo nega a existência de um “eu” permanente (atman em sânscrito, ou alma).
Tudo relacionado à experiência subjetiva de Buda (“iluminado”, título conferido
inicialmente à Sidarta) que, através de uma enorme gama de técnicas meditativas,
reconheceu sem a necessidade de uma revelação divina a verdadeira natureza da
mente, do mundo e do sofrimento humano.
Esse conjunto de “descobertas” recebe o nome de Dharma e que, em termos
gerais, podemos resumir em três etapas ou “giros”. Na primeira etapa, Buda tratou
daquilo que é conhecido como “as quatro nobres verdades” que seriam: a verdade
do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade da cessação do
sofrimento e, por fim, a verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento.
Cabe salientar que a palavra original para designar sofrimento é dukkha em
sânscrito, que indica não um sofrimento no sentido comum mas sim algo
875
proveniente da confusão, ignorância e inquietação que são comuns frente ao ir e vir
entre extremos da vida.
A mente degradada, afirmou, provém de nosso apego à noção de uma
individualidade, ou ego. Assim, o Buda demonstrou a natureza sofredora da
existência no mundo e suas causas. Em seguida, mostrou a possibilidade
da liberação do sofrimento ao alcançarmos o Nirvana. (THRANGU, 1997, p.
6)
Os primeiros ensinamentos de Buda formam a base para as práticas de um
grupo que se convencionou chamar de “Pequeno veículo” ou Hinayana, o caminho
dos anciões ou dos praticantes individuais, que enfatiza a conduta correta e a
aversão ao samsara (o mundo comum de ilusão e desejo, ciclo de existências
infindável) em busca da paz do nirvana (a cessação do renascimento, um estado e
não um plano). Durante o segundo “giro” Buda aprofundou o que havia exposto e
introduziu o conceito de vacuidade e originação interdependente através da
coletânea de sutras (ensinamentos) conhecida como “Perfeição de sabedoria” ou,
em sânscrito, Prajnaparamita. O foco dos ensinamentos se expande e passa a
abarcar todos os seres sencientes por meio da compaixão universal. A doutrina da
vacuidade se baseia no conceito de originação interdependente, onde se busca
salientar a impermanência e a ausência de existência intrínseca de todos os
fenômenos, o que não quer dizer inexistência, e sim que vemos os fenômenos de
forma ilusória. É justamente essa ausência de existência intrínseca e a
interdependência de todos os fenômenos que justificam e incentivam, juntamente
com as quatro nobres verdades e os princípios de causalidade, a bodhicitta,
literalmente “mente do despertar”, um processo de aspiração altruística à iluminação
plena de todos os seres, atitudes que caracterizam um novo elemento no budismo, o
Bodhisattva.
Por fim os ensinamentos de Buda tiveram uma última etapa, o terceiro giro,
onde trata-se do tathagatagarbha ou “natureza búdica”, o potencial inato para a
iluminação. É nessa etapa dos ensinamentos que a questão subjetiva é ampliada e
questões sobre a vacuidade são esclarecidas, como o fato de que o conceito não
indicar a simples “não existência” ou vazio no sentido comum mas, ao contrário, é a
vacuidade que dá origem a todos os fenômenos e é continuamente expressiva. Um
outro aspecto que surge é o continuum mental em todos os seus níveis. Pois é
através de tal continuum, identificado como nossa natureza búdica, que os
876
ensinamentos budistas asseveram a possibilidade de todos os seres atingirem o
estado último da iluminação. Surge com isso o mais tardios dos “veículos” do
Dharma, o Vajrayana, onde a profusão iconográfica que nos referimos ao início
ganha força. De acordo com Rao a expressão “tantra” significa inicialmente “um
sistema de pensamento, um corpo de práticas ou uma coleção de livros […] O
significado original aparentemente se relaciona no contexto à tecelagem em um tear”
ou mesmo “um padrão ou design que surge do seu desenvolvimento ou extensão”
(2008, p. 3, tradução nossa). Apesar da definição vaga o tantrismo apresenta uma
gama enorme de técnicas em um contexto suprarreligioso sistematizadas em
mantras e sadhanas que lidam principalmente com processos complexos de
visualização de deidades e “terras puras”.
Durante o século VIII os ensinamentos budistas chegaram ao país das neves
através do patrocínio do rei Trisong Detsen que promoveu a vinda do abade indiano
Shantarakshita. Foi ele quem fundou o primeiro monastério tibetano e, com a ajuda
do grande Padmasambhava conhecido como “Guru Rinpoche” ou “mestre precioso”,
instaurou de forma definitiva o Dharma em terras tibetanas. Padmasambhava foi
chamado de “o segundo Buda” tamanha sua importância, ele quem desencadeou
todo o processo de criação de uma cultura única misturando elementos budistas
com a tradição xamânica já existente no território tibetano conhecida como Bön. Por
muito tempo conhecido como “lamaísmo” pelos ocidentais, o budismo tibetano é o
próprio currículo de Nalanda travestido de fatores culturais locais. Os professores
tibetanos sabiam que “as imagens possen un peso pedagógico que vá más allá de
su estricto carácter lingüístico” (GENARI, 1997, p. 77) e que “una mayor limpieza
icónica en el nivel mnemónico favorecía la construcción mental de las imágenes”
(GENARI, 1997, p.36) e com isso criaram por séculos um aparato visual sincrético,
transmitindo os ensinamentos budistas em uma linhagem ininterrupta até os dias de
hoje. Para os tibetanos, como comenta Beer (1999, p. xvi, tradução nossa) “a rica
reunião de símbolos do Budismo Tibetano é um encapsulamento das muitas
qualidades iluminadas da mente de Buda, manifestando-se como a realização
absoluta de sabedoria e compaixão”. São essas características do budismo
vajrayana que nos levaram a escolhê-lo como alvo de nossa pesquisa buscando
entender o complexo sistema que se coloca entre o praticante meditativo que busca
transformar processos mentais e as intrincadas representações visuais que são
877
empregadas em tal prática. Tendo em vista a infindável gama de objetos usados no
ritual Vajrayana e a impossibilidade de espaço para tratá-los de maneira individual,
tomaremos para fins de estudo neste artigo um objeto artístico típico da cultura
tibetana: a thangka.
As origens da thangka no Tibet
Mesmo sendo um país isolado geograficamente o Tibet sempre recebeu
aportes culturais importantíssimos de seus vizinhos moldando sua história em um
sincretismo impressionante. Se observamos sua localização geográfica e a
disposição das províncias tibetanas, podemos constatar a enorme influência de
culturas antigas como a chinesa, a indiana e a mongol no processo de formação do
Tibet. Outro fator de intercâmbio se dava pelo fato de que a grande maioria dos
tibetanos era de origem nômade e tinha na atividade pastoril e no comércio com
povos vizinhos sua principal forma de sobrevivência.
Os pequenos reinos que formavam o território tibetano foram unificados
somente no século VII dando início a um império gigantesco por meio do reinado de
Songtsän Gampo. Foi através deste monarca que inúmeros profissionais e artífices
de várias partes do mundo incluindo persas, chineses, nepaleses, indianos e até
mesmo médicos gregos, foram convidados para ensinar sua arte e fortalecer
culturalmente o império visando a criação de uma identidade unificada em torno da
dinastia.
Neste período o Tibet se destacou em várias técnicas de produção de objetos
de uso cotidiano, artísticos e religiosos. Podemos citar a produção de papel e tinta,
trabalhos em couro, metal e madeira, os vários processos de pintura em mural,
mobiliário, ornamentos e tela, assim como o desenvolvimento incrível da fundição
artística dentro e fora dos mosteiros. No interior de uma tenda dos povos nômades
do Tibet ocidental, por exemplo, podia-se encontrar toda a sorte de objetos
decorativos adaptados as suas condições de vida, como utensílios em prata,
mobílias de madeira, altares cerimoniais e também pinturas religiosas que ficaram
conhecidas como thangkas, termo que deriva da palavra thang yig que quer dizer
simplesmente “rolo”, “relatório” ou “desenho”, indicando seu formato próprio de
878
pergaminho (figura 1) especialmente prático para os viajantes que caminhavam com
suas famílias pelo platô tibetano e para os “mágicos” que peregrinavam transmitindo
seu conhecimento nessas terras geladas.
Figura 1 – Pintura thangka com brocado e suportes
Fonte: JACKSON. 2006, p.143
Uma thangka pode ter vários usos, desde suporte para a prática da meditação,
contar histórias de heróis ou seres iluminados, até transmitir conhecimentos bem
detalhados acerca dos textos sagrados. Justamente por isso, como é comum na
maioria das sociedades, pinturas e esculturas foram essenciais na vida religiosa do
Tibet por representarem o principal meio de transmitir os ideais do budismo recémtrazido da Índia e patrocinado pelo império nascente. Para os tibetanos uma pintura
sagrada não era um simples objeto de adoração de uma entidade (na verdade essa
prática comum nas religiões teístas é estranha ao budismo) mas era sim um suporte
físico, ou corporificação, da própria iluminação possível a todos os seres
preconizada por Buda, o iluminado. Contar histórias e transmitir conhecimentos
diversos por meio de pinturas em pergaminhos é algo comum a várias culturas e
especialmente eficaz quando se trata de um público geralmente sem alfabetização.
No caso do Tibet podemos considerar que foi uma prática trazida da Índia que se
adaptou perfeitamente à vida nômade dos antigos tibetanos. A densidade
populacional era tão baixa que qualquer viajante poderia passar meses sem
encontrar uma pessoa ou povoado, o perigo de se transladar de um lado a outro era
879
enorme, comunicação entre províncias se tornava muito difícil e demorada, manter a
unidade do estado era um desafio. Foi a cultura tibetana, em especial a religião e a
arte dela proveniente, que conseguiu gerar uma “liga” forte o suficiente para manter
o Tibet unificado por vários séculos. O uso das thangkas tem então sua origem na
necessidade dos Lamas em levar histórias e ensinamentos tanto do budismo quanto
da crença nativa Bön assim como lendas nacionais de antigos heróis e reis.
Pintura (juntamente com a escultura) era crucial para a vida religiosa do
Tibet pois era o meio pelo qual os altos ideais do Budismo eram evocados e
trazidos a vida. Uma pintura sagrada era para o Tibetano um “suporte físico”
- em outras palavras uma corporificação – da iluminação.(JACKSON, 2006,
p. 9, tradução nossa)
Sua produção era feita principalmente dentro dos monastérios estabelecidos
a partir do reinado de Trisong Detsen mas, com o passar do tempo, a atividade se
popularizou e surgiram estúdios dedicados somente à pintura sagrada. Existem
vários estilos de thangka no Tibet, cada região recebendo maior ou menor influência
de determinado estilo estrangeiro. Em alguns estilos e tipos de thangkas, as árvores
são desenhadas no estilo Rajput da Índia e as pedras no estilo chinês, já a maneira
de colorir o nimbo foi inspirada pela cultura persa. A representação dos Arhats (os
“dignos de veneração” indicando aqueles que realizaram a iluminação de acordo
com o Hinayana), cuja iconografia chegou ao Tibet através da China, utiliza
tradicionalmente o estilo chinês. Inicialmente a história da thangka tibetana é feita
por indivíduos anônimos, leigos e lamas. Apenas após o século XIII, já com toda
uma iconografia desenvolvida e sistematizada, que surgem as primeiras escolas de
thangka em torno de determinado artista e seu estilo. Nem todos os tratados escritos
acerca da pintura sagrada foram preservados, muitos se perderam no tempo ou
durante a revolução cultural chinesa, se todos estivessem a nosso alcance
poderíamos ter uma visão muito mais rica da tradição artística no Tibet.
Caracterização e tipos de thangka
As thangkas tibetanas são caracterizadas, fisicamente falando, por possuírem
um suporte em tecido de algodão, linho ou até mesmo seda. A base é preparada
utilizando-se cola de origem animal e goma de calcário que é posteriormente polida
e, em seguida, pintada com pigmentos naturais e muitas vezes prata ou ouro.
880
Quando prontas são emolduradas em brocados tradicionais de diferentes cores, de
acordo com o motivo da pintura. A produção da pintura, dependendo da sua
complexidade, pode demorar meses. Ao final ela é consagrada em um ritual
específico para a finalidade pela qual foi produzida e as sílabas Om Ah Hum Svaha
são desenhadas em seu verso. Sua moldura nunca é perfeitamente retangular, ao
contrário, na base da pintura pode-se notar um trapézio que representa a “porta de
entrada” da thangka em direção à deidade. Tendo em vista que, originalmente, as
thangkas ficavam penduradas em tendas expostas à intempérie, como proteção as
pinturas são cobertas por panos vermelhos e amarelos de seda nos quais são
penduradas duas fitas vermelhas que lhes servem de suporte. Acima e abaixo do
brocado são introduzidos bastões que esticam a tela e também servem de proteção
para o transporte (Figura 1).
Existe uma enorme diversidade de motivos retratados nas thangkas, estes
vão desde elementos doutrinários com fins didáticos, pinturas geométricas como
mandalas e yantras, representações arquitetônicas de stupas e templos, até as mais
comuns que exibem Budas, Bodisatvas, yidams ou dharmapalas. Resumidamente
podemos agrupar os motivos usados nas pinturas sagradas em oito grupos:
Seres iluminados: Estão inclusos nessa categoria os Budas, Bodhisattvas e
gurus. São exemplos dessa classe as representações de Buda Shakyamuni,
Manjushri e Padmasambhava.
Yidams: Deidades pessoais de meditação, de acordo com a constituição
psicológica do praticante representam a natureza búdica para ele. Podem ser
representados em formas pacíficas, iradas ou intermediárias.
Dharmapalas: Os “guardiões da doutrina” são entidades assimiladas do
hinduismo e do culto Bön nos períodos de implantação do budismo
Ilustrações da doutrina: Existem thangkas que tem como objetivo transmitir
informações sobre determinado tema complexo. É o caso, por exemplo, da “roda da
existência” que explica em um só quadro a cosmologia budista, assim como
conceitos fundamentes de originação interdependente.
881
Mandalas: As mandalas guardam o segredo mais profundo dos ensinamentos
tântricos e estão ligadas à compreensão final da vacuidade (sunyata). Ao contrário
do conceito disseminado no ocidente, mandalas não são apenas material de
decoração ou, para a psicologia analítica, representações circulares que podem
representar aspectos psicológicos humanos. No contexto budista e hindu elas são
“plantas baixas” da consciência, representações bidimensionais de uma realidade
tridimensional e fractal, do palácio da deidade e seu séquito. A mandala é uma
tentativa de representar o reino da ausência de forma, o dharmakaya, através dos
cinco campos da mente iluminada: Kaya (corpo), Vaca (fala), Citta (mente), Guna
(qualidade) e Karma (ação).
Stupas e outros elementos arquitetônicos: Uma stupa é uma representação
simbólica do corpo, fala e mente de Buda, muitas vezes confundida com um templo
porém não possui entradas, trata-se de uma espécie de relicário que serve como
uma lembrança dos seres iluminados.
Yantras: Da forma que as mandalas os yantras são modelos geométricos
abstratos, mas em seu caso específico indicam um caminho ou roteiro que deve ser
seguido. Sua tradução literal do sânscrito é “instrumento”, os yantras são usados nas
representações dos pontos de energias do corpo (chackras), possuem um ponto de
início e um fim, sendo que cada forma geométrica dentro deles tem seu significado.
Deidades menores: Nesse grupo incluem-se várias deidades provenientes do
panteão hindu e Bön, incluindo os Nagas, seres marítimos metade humanos metade
serpente. que seriam os guardiões dos tesouros, Dakas e Dakinis, manifestações
masculinas e femininas que conectam a esfera humana com planos mais elevados,
entre outros.
Cada detalhe do Yidam, seus ornamentos, expressões corporais, cada
disposição de elementos, ou formas de expressão de um Buda, Dharmapala ou
Bodhisattva a tem seu significado e, no contexto geral da prática tântrica, não existe
nenhum ponto sem importância. Vários fatores são essenciais na simbologia, um
dos principais são os mudras. Os mudras são gestos corporais simbólicos que
expressam elementos do Dharma. Os textos sagrados descrevem centenas de
mudras, cada um com vários níveis de significado e também alterando sua
882
mensagem de acordo com o contexto. Outro elemento importante são as cores da
deidade, uma ótima forma de exemplificar isso é através da simbologia dos cinco
Dhyani-Budas (Figura 2). Essas cinco facetas da consciência, chamadas assim por
envolverem, cada uma delas, todo um séquito de outras divindades, podem ser
agrupadas por “famílias búdicas” que com seus respectivos Dhyani-Budas e Yidams,
formam uma das mandalas mais importantes do Vajrayana e dentro de sua
simbologia provém grande parte das práticas do caminho tântrico tibetano
(sadhanas).
Figura 2 – Os cinco Dhyani-Budas da esquerda para a direita Ratnasambhava, Akshobhya,
Vairochana, Amitabha e Amoghasiddhi. Autora: Tiffany H. Gyatso
Fonte: Centro de Estudos Budistas Bodisatva
Finalmente outro fator de grande importância nas thangkas é a ordenação das
figuras na composição. Normalmente existem algumas regras para a composição da
pintura, em outros casos porém é o patrocinador que determina quais elementos
farão parte do quadro. Porém uma coisa que necessariamente deve ser respeitada é
a hierarquia entre entidades, isso se dá através de tamanho e localização na
composição. A ordem é expressa da seguinte forma: Gurus; Yidams; Budas;
Bodhisatvas; Daka e Dakini; Dharmapala; Yaksa; Deuses da prosperidade; Deidades
menores. Cabe salientar que essa ordem é relativa pois diz respeito apenas as
figuras de segundo plano, excluindo assim a deidade principal da pintura.
883
Thangka como suporte para prática
Existem muitos usos tradicionais para uma thangka. Como já foi dito elas
podem contar histórias e transmitir conhecimentos relativos ao Dharma, além disso,
também era comum no Tibet, por exemplo, thangkas serem patrocinadas em favor
de um familiar doente ou de uma pessoa que acabara de falecer. Apesar de
algumas aplicações estarem muito próximas da superstição (como o uso de pinturas
para espantar demônios) a principal aplicação das pinturas sagradas era, e continua
sendo, o suporte para a prática meditativa. Para que se possa entender
corretamente o lugar da visualização dentro do contexto do budismo é preciso ter
em mente as questões já abordadas da ausência de existência intrínseca nos
fenômenos, da vacuidade e dos diversos níveis de expressão da iluminação.
A pintura tibetana thangka foi desenvolvida principalmente para sustentar a
técnica da visualização. O objetivo da visualização não é adorarmos uma
divindade exterior qualquer; (…) Portanto, nessa arte não se trata, como de
costume, de estimular um comportamento distanciado entre o observador e
o quadro, mas o quadro deve estimular o observador a entender ativamente
a forma que lhe é apresentada como um determinado âmbito da realização
e, finalmente, unir-se com ela. (DUDKA; LUETJOHANN, 2009, p.18)
Nunca uma prática formal Vajrayana pode ser confundida com adoração de
imagens, o conceito de deidade aqui é muito diferente. Embora a palavra Yidam seja
traduzida normalmente como “deidade” esse termo não é tecnicamente correto, uma
vez que os Yidams representam aspectos da mente iluminada eles não são
“deidades” no sentido convencional.
As divindades pessoais de meditação chamadas Yidam não são deuses
com caráter próprio, de acordo com o conceito ocidental de deus. Dentro da
prática tântrica, representam a diversidade de formas da energia da
iluminação e da realização do Buda. São aspectos de determinadas
qualidades e atividades do corpo, da fala e da realização do Buda. (Ibid, p.
19)
O principal meio de prática se dá através das sadhanas, traduzindo
literalmente “caminhos” ou “roteiros” de prática. Essas sadhanas são normalmente
textos impressos contendo recitações de orações e mantras que são associadas ao
contexto principal da visualização. A visualização do Yidam revela, através da
concentração em sua simbologia, processos escondidos no subconsciente e níveis
mais profundos. Durante a prática meditativa além de se concentrar na forma do
Yidam o praticante iniciado no Vajrayana visualiza à si mesmo como a deidade com
884
o objetivo de internalizar todas as qualidades que ela expressa como representação
da mente iluminada.
De acordo com o budismo a imaginação de uma deidade de meditação traz
como consequência uma perfeita identificação com ela e a aproximação mais rápida
das qualidades incorporadas, do que se apenas mentalizássemos e as quiséssemos
desenvolver apenas pelo intelecto. Também, a partir desse ponto, o praticante
aprende a experimentar todos os fenômenos como manifestações da mandala da
divindade, todos os sons como mantra da divindade e todos os pensamentos como
expressão de sua sabedoria iluminada. O fato de transformar a nossa visão ordinária
em uma forma de observar sem julgamentos, de forma “pura”, os fenômenos estão
presentes em grande parte dos tantras superiores tibetanos. Na maioria dos casos
os elementos simbólicos são tantos que ficaria impossível qualquer prática sem o
auxílio das imagens presentes nas thangkas. Como a visualização se dá dentro da
posição clássica de meditação, inicialmente o praticante observa a deidade à sua
frente, e então aplica a fórmula da vacuidade ou “o círculo perfeito dos três” onde
estão presentes um sujeito, um objeto e a relação entre os dois. Podemos expressar
essa “pureza tríplice” pela forma “eu não possuo existência real, a visualização não
possui existência real e o ato de visualizar também não possui existência real”. Dizse que a visualização deve ser sutil, de substância transparente, de aparência vazia
e luminosa, comparável a um arco-íris no céu.
No final da prática a divindade visualizada é dissolvida outra vez no espaço
aberto do vazio, como sinal de que todas as coisas estão livres de um
núcleo essencial imutável, sua aparência é como uma ilusão, a essência
pura de uma divindade da sabedoria e expressão da sua mandala.
(DUDKA; LUETJOHANN, 2009, p. 23)
Em resumo, a visualização criativa e outros exercícios, em que são usadas as
imagens presentes nas thangkas, são, segundo o budismo, meios eficazes de
reconhecer nossa natureza iluminada primordial e nos identificarmos com ela. Por
“falar” diretamente com aspectos inconscientes da psique através de sua própria
linguagem, os símbolos, e não apelar exclusivamente para o processo racional os
tibetanos consideram este como o caminho mais rápido para alcançar a realização
plena.
885
Conclusão
O futuro do Tibet e dos tibetanos é ainda incerto, a cada dia que passa as
chances de um estado novamente livre e soberano diminuem. Porém, inspirados
pela dinamicidade de seu líder espiritual o XIV Dalai Lama, os tibetanos tem se
reinventado a cada dia. Isso não é diferente no campo das artes. Através da criação
do instituto Norbulingka em 1988, um centro para preservação das artes tradicionais
tibetanas como pintura, escultura, entalhe em madeira e outros, criou-se toda uma
nova geração de artífices com conhecimento suficiente para manter a tradição viva e
aperfeiçoá-la. Além disso, mesmo pintores de thangka tradicionais têm desenvolvido
estilos próprios e abordagens bem particulares aos temas religiosos apoiados por
novos eruditos tibetanos com uma formação muito mais eclética e aberta que seus
antepassados.
No entanto é importante não separar a thangka de seu contexto original e,
muito menos, observar tais pinturas como meras peças de museu. Como afirma
Tarthang Tulku (2002, p.27) “quando vemos thangkas fora do seu contexto religioso,
separadas dos ensinamentos que estas pinturas expressam, não podemos apreciar
plenamente seu valor”. A pintura sacra tibetana faz parte de todo uma imagem maior,
um complexo interligado de expressões artísticas e religiosas, e fora deste cenário
perde grande parte de seu valor. Por isso é importante preservar a tradição de
maneira inalterada associada a novas formas de manifestação criativa.
A menos que exemplos perfeitos de todos os tipos de thangkas sejam
preservados e disponibilizados amplamente, será difícil continuar a
transmissão das tradições artísticas tibetanas além da próxima geração. Se
assim for, a arte tibetana tornar-se-ia tão distante das tradições budistas
como os antigos ícones ocidentais o são para nós hoje: canais fechados ao
conhecimento, sem que tenhamos nenhuma maneira de reabri-los. (Ibid, p.
29)
Da mesma forma que a arte indiana, todas as expressões estéticas da cultura
tibetana provém e tem como objetivo final a realização plena do potencial humano.
Pintura, escultura, teatro, dança e música unem-se em torno desta aspiração. E tal
contexto, como podemos perceber adotando a thangka como exemplo, tais
expressões constituem uma linguagem adequada para expressão de ideias
complexas que muitas vezes escapam da verbalização. Uma das principais
contribuições que a tradição educativa oriental pode nos proporcionar nos dias de
886
hoje é justamente a valorização do fator estético dentro da formação integral
humana. Cada imagem é um convite e um mapa de um mar desconhecido.
Finalmente é importante deixar claro que este artigo apresenta de maneira
bastante humilde a tremenda complexidade tanto do processo artístico ligado à
thangka quanto seu uso enquanto ferramenta contemplativa e educativa. Esperamos
que através destas poucas linhas tenhamos despertado o interesse nessa cultura
milenar e complexa, assim como na arte oriental como um todo, e que isso possa
servir como uma ligação benéfica em busca daquilo que Buda visualizou sentado
sob uma árvore 2.500 anos atrás: uma visão pura, pacífica e simples da realização
de nossa própria natureza iluminada.
Referências
BEER, Robert. The encyclopedia of tibetan symbols and motifs. Boston: Shambhala, 1999.
DUDKA, Nick; LUETJOHANN, Sylvia. A prática da meditação tibetana. São Paulo:
Pensamento, 2009.
GENARI, Mario. La educación estética: arte y literatura. Barcelona: Paidós, 1997.
GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: Nove reflexões sobre a distância. São Paulo:
Companhia das letras, 1998.
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JUNG, Carl G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1999.
KINNARD, Jacob N. Imaging Wisdom: Seeing and Knowing in the ar of Indian Buddhism.
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Motilal Banarsidass, 2003.
NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. Editora Ática: São Paulo, 2010.
ORMEZZANO, Graciela. Educação estética: abordagens e perspectivas. Em Aberto. 2007
Jun;15:38.
RAO, S. K. Ramachandra. Tantra, Mantra, Yantra: The Tantra Psychology. Delhi: Sri
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THARANGU, Kenchen. A porta aberta para a vacuidade. Porto Alegre: Bodigaya, 1997.
TULKU, Tarthang. A arte iluminada. São Paulo: Editora Dharma, 2002.
WILBER, Ken. Uma teoria de tudo. São Paulo: Cultrix, 2000.
Daniel Confortin
Possui graduação em Design pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Especialista
em Arteterapia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Atuou como professor no ensino
superior (ULBRA – FSG). Desenvolveu pesquisas sobre pintura sacra e escultura em bronze
na Índia e Nepal entre os anos de 2010 e 2013. Atualmente é estudante do 6° semestre de
Filosofia (UPF) e mestrando em educação pelo PPGEDU (UPF).
887
HISTÓRIA DAS TÉCNICAS DA ARTE DO CHARÃO NO JAPÃO
Francis Jean Yves Marie – INALCO, Université de la Sorbonne Nouvelle Paris III
RESUMO: Esta apresentação tem por objetivo traçar um resumo da história das técnicas e
da evolução da Arte do charão no Japão. Trata-se de um trabalho baseado em pesquisas e
estudos, teóricos e práticos, desenvolvido em um dos mais conceituados institutos sobre
este assunto: o Laboratório Nacional de Pesquisa dos Bens Culturais, de Tóquio. O charão
é uma resina vegetal, seiva da árvore Rhus vernicifera, do Japão. Esta resina foi utilizada
inicialmente por causa de duas de suas propriedades físicas: sua qualidade de cola
resistente e impermeabilizante. Artefatos achados em sítios arqueológicos pré-históricos
comprovam a utilização do charão no Japão desde a época Jomon (7500 a. C.). Com o
decorrer dos séculos, os modos de preparação da resina bruta, sua associação com outros
materiais e o aspecto decorativo ampliaram consideravelmente o leque de suas aplicações e
técnicas. A utilização rudimentar do charão se transformou em uma arte sofisticadíssima,
criando uma importante cadeia de produção de profissionais trabalhando a resina e artesãos
produzindo objetos de base, ferramentas e implementos necessários. A sua história passou
por períodos de apogeu e declínio. O trabalho com charão exige paciência, habilidade,
dedicação e por estas razões foram e são poucos os que dominam esta “Arte do Urushi”.
Palavras-chave: Charão, Arte do charão, urushi, resina, técnica.
SOMMAIRE: Cette présentation a pour objectif de tracer un resumé de l´histoire des
techniques et de l´évolution de l´Art du Laque au Japon. Ce travail est basé sur des
recherches et études (théoriques et pratiques), realizés dans un institut des plus respectés
sur ce sujet: le Laboratoire National de Recherche sur les Biens Culturels de Tokyô. La
Laque est une résine végétale, sève de l´arbre Rhus vernicifera no Japon. Cette résine fût
utilisée initialement à cause de deux de ses proprietés physiques: ses qualités de colle
résistante et impermeable. Artéfacts trouvés dans des sites archeologiques pré-historiques
prouvent l´utilisation de la laque au Japon dès l´époque Jomon (7500 av.J.C.). Au cours des
siècles, les modes de préparer la résine brute, son association avec d´autres matériaux et
l´aspect décoratif ont élargi considérablement l´éventail de ses applications et techniques.
L´utilisation rudimentaire de la laque s´est transformée en un art sophistiqué, créant une
importante chaîne de production de professionels travaillant la résine et artisants produisant
objets de base, outils et compléments nécessaires. Son histoire a passé par des périodes
d´apogée et de déclin. Le travail de la Laque requiert patience, habilité, dévouement et pour
ces raisons furent et sont peu ceux qui maîtrisent cet “Art de l´Urushi”.
Mots-clés: Laque, Art du laque, Urushi, résine, technique.
A árvore do charão é de tipo frágil, assim, quando uma parte do tronco ou um
galho estiver ferido, acontece um processo de apodrecimento a partir da área
machucada. Para combater esta necrose, a seiva, com propriedade de esterilização,
começa a escorrer da ferida, endurecendo rapidamente com umidade do ar, como
se fosse um curativo impermeável, “cicatrizando” e protegendo a árvore de dano
maior. A observação deste processo deve ser a origem da utilização da seiva. No
arquipélago nipônico, a resina é extraída da árvore Rhus vernicifera, família
888
Anacardiaceae, Toxicodendron vernicifluum, com uma técnica específica, diferente
dos outros países da Ásia. Três pequenas foices especiais (kama) mais um pote
(urushi-tsubo) são utilizados para o processo. A primeira é utilizada para remover a
casca, uma foice de duas funções serve de um lado para fazer uma incisão na
árvore e do outro lado para estimular a saída do charão. Uma espátula estreita de
metal completa o jogo, sendo utilizada para raspar a seiva que escoou e colocá-la
dentro do pote. O ideal é extrair a resina bruta (urushi) em uma árvore de doze a
vinte anos quando o diâmetro do tronco deve atingir de quinze a vinte centímetros.
A extração acontece durante os meses de verão no Japão. O processo
começa na metade do mês de junho e vai até o fim de setembro ou novembro,
dependendo da região. As incisões são praticadas em várias partes do mesmo
tronco com cinco a sete dias de intervalo. No fim do dia, o charão recolhido no pote
é colocado num balde e tampado para evitar a oxidação. Nos outros países da Ásia
que produzem o charão - China, Vietnã, Coreia, Camboja, Birmânia, Butão - o
procedimento é diferente daquele utilizado no Japão e parecido com a colheita do
látex no Brasil. A seiva escoa das incisões do tronco até um potinho fixado na árvore.
Recolhida semanalmente, quando serão trocados os recipientes, esta resina tem um
custo bem menor que daquela extraída no Japão. A resina chinesa é retirada da
mesma árvore, Rhus vernicifera, entretanto ela é de qualidade inferior. O tempo
entre as trocas de potes facilita o contato com o ar, a oxidação e a fermentação do
charão.
Como a extração acontece nos meses de verão, de clima quente e úmido,
esses dois fatores favoráveis ao endurecimento da resina acabam alterando também
suas propriedades. Pelo aspecto econômico, a resina chinesa é bastante utilizada
no Japão na produção de objetos em grande quantidade para preparação das
camadas inferiores e intermediárias. A seiva japonesa fica reservada para as
camadas superiores e acabamento das peças. Nos ateliês mais refinados, o charão
nipônico pode ser utilizado desde camadas inferiores até o acabamento
(MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
889
Características do charão
A seiva, ao sair da árvore, é de cor bege leitosa, em contato com o ar, ela
começa a se oxidar, tomando uma coloração caramelo ou cor âmbar, tendo ela
cheiro de vinagre. Para impedir sua oxidação, fermentação e endurecimento, ela
deve ser acomodada em recipientes fechados sem contato com o ar. Em função do
momento da colheita, o charão tem uma porcentagem de água diferente. A
proporção ideal de água na seiva acontece entre a metade de julho e fim de agosto,
no urushi abundante e da melhor qualidade (“sakari-urushi”) (MASUMURA, 1984;
MATSUDA, 2001, tradução nossa).
As propriedades físicas do charão são múltiplas, além das qualidades de cola
resistente e impermeabilizante que já foram descobertas e aproveitadas há mais de
6000 anos. A seiva endurecida é durável, isolante elétrico, resistente às substâncias
ácidas, básicas, óleos, solventes e a altas temperaturas (a laqueação sobre objeto
em metal passa ao forno a 150ºC por uma hora). O charão é sensível às radiações
ultravioleta e se enfraquece em condições de umidade baixa (MASUMURA, 1984;
MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Preparação do charão
A primeira operação a ser feita é a filtragem da resina bruta (arami) para
descartar, principalmente, pedacinhos de casca da árvore. O charão filtrado pode ser
usado no estado bruto para as camadas de preparação de um objeto delicado, mas
geralmente só uma parte desta seiva (kijômi) é guardada para usos especiais. A
segunda fase de preparação da resina é a homogeneização e a evaporação da água
(nayashi e kurome). No fim deste processo, a seiva passa da cor leitosa e opaca
para cor âmbar e semitransparente (kijiro-urushi, tomei-urushi). Duas partes desta
laca são conservadas nesta fase, uma parte para ser usada na cor âmbar ou
misturada com pigmentos. Na outra parte, será adicionado um corante amarelo,
caldo preparado de frutas de gardênia, que deixa a laca mais transparente (nashijiurushi), sendo utilizado em uma das técnicas de maki-e: nashiji (efeito pele de pera
japonesa). Outra qualidade de urushi pode ser preparada nesta fase, adicionando de
20 a 30 % de óleo de charão preto ou semitransparente (shu-ai-urushi, nuri-tate890
urushi). Este composto é utilizado na última camada de laqueação, ele dá brilho sem
precisar de polimento (hana-nuri). O shu-ai-urushi é muito usado para laqueação de
objetos destinados ao uso cotidiano, como tigela, bandeja, par de palitos, sendo de
fácil manutenção. O tipo semitransparente (kijiro-urushi) é usado para preparar o
charão colorido (iro-urushi). O procedimento seguinte é a transformação para a cor
preta (roiro-urushi). Na tradição, misturava-se limalha de ferro para obter essa cor,
atualmente pode-se utilizar também hidróxido de ferro ou sulfato de cobre.
Estes procedimentos são agora mecanizados, meio industrializados, com
exceção do charão colorido, que é preparado pelo artesão, mas existem ainda
ateliês que preferem realizar o processo completo para ter certeza da origem e da
qualidade do produto. Neste caso, a oficina compra a seiva bruta diretamente do
artesão que a colhe. Após estas diferentes fases, o charão está pronto para ser
utilizado. Ele é armazenado em diferentes tipos de baldes de papelão ou madeira
tampados com o papel oleoso e nas últimas décadas também vêm sendo utilizados
tubos de estanho (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Secagem ou endurecimento do charão
O charão endurece por uma reação de oxidação e de polimerização do ácido
urushique (“urushiol”) e da “laccase” (catalisador), em meio úmido, 70% de umidade
do ar, e temperatura de 35ºa 40ºC, estendendo-se o processo por cinco a seis horas.
Para favorecer a reação química desejada, condições ideais de umidade e
temperatura são criadas dentro de um gabinete “muro” onde serão colocados os
objetos que acabam de ser laqueados. Esta estufa pode ser do tamanho de uma
cômoda com portas deslizantes ou de um quarto, dependendo da quantidade ou do
tamanho dos objetos (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Bases e suportes utilizados nos objetos laqueados
A matéria-prima mais utilizada e mais antiga é a madeira. Quando a base é
do tipo caixilho (sashi-mono ou ita-mono) ou de lâmina curvada, flexionada (magemono), são utilizados o cipreste, a canela ou diferentes tipo de coníferas, porque não
entortam nem racham. Para objetos torneados (hiki-mono), o olmo, a cerejeira, a
magnólia, a canela, a faia e o ginkgobiloba são as mais comuns. Peças são
891
esculpidas ou entalhadas (kuri-mono) em amoreira. Objetos, desde o passado
remoto, são fabricados com lâminas de bambu trançadas (rantai) com couro de vaca,
javali, cervo, gato e cachorro (shippi), com casca da cerejeira, em cerâmica não
esmaltada (yaki-mono), com papéis fibrosos (shitai ou ikkanbari: várias camadas
coladas ou papier maché) em tecidos de linho, juta, seda, algodão (kanshitsu: laca
seca) e com metal (kin-tai). Muitos exemplos destes objetos existem desde século
nove e são conservados no Pavilhão dos Tesouros Nacionais (Shôsô-in) em Nara
(MATSUDA, 2001; MASUMURA, 1985; JAHSS e JAHSS, 1981; tradução nossa).
Laqueação dos objetos
Existem mais de cem aplicações diferentes do charão. As mais simples
comportam de uma a quatro camadas. A mais singela de todas (kakiawase-nuri)
consiste em passar sobre um objeto de madeira um extrato de caqui amargo (kakishibu), utilizado para impermeabilizar, seguido de uma única laqueação. Para
realçar a beleza dos veios da madeira (mehajiki-nuri), são feitas quatro aplicações
de charão semitransparente (kijiro-nuri, shunkei-nuri), na última, um óleo secante é
adicionado ao charão para dar brilho. Quando uma camada de charão colorido (irourushi,
vermelha,
amarela
ou
verde)
é
aplicada
antes
da
laqueação
semitransparente, a técnica chama-se tame-nuri. A aplicação de múltiplas camadas
acontece na técnica de charão esculpido (chôshitsu). São dezenas de laqueações
sobrepostas para uma espessura de três a sete milímetros, suficiente para poder ser
entalhada. (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Preparação das bases
São três tipos de preparação de base (urushi-shita-ji) na história do charão: o
primeiro, “verdadeiro fundo duro” (honkata-ji), preparado com pó de terracota
misturado com água e charão bruto, aplicado no suporte com pincel ou espátula; o
segundo, “verdadeiro fundo” (hon-ji) que contém só o pó fino e charão bruto, é
aplicado duas vezes com pincel; e o terceiro, “fundo semeado” (maki-ji), é feito com
várias camadas de pó semeado sobre o charão fresco. Após secagem, o processo é
repetido com partículas menores, várias vezes. Na época atual, só o primeiro tipo
(honkata-ji) é utilizado. Os dois outros foram abandonados no meio do século
892
dezenove, por serem irregulares e muito duros, praticamente impossíveis de retificar
com polimento. (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Polimento do charão
A cada aplicação de charão corresponde um tipo de polimento. Nas camadas
inferiores de preparação, são utilizadas pedras para polir, usadas com ou sem água.
Nas fases de laqueação, são usados diferentes tipos de carvão vegetal, preparados
das árvores camélia e magnólia. Para o acabamento final do charão, são
empregados pó de carvão, partículas finíssimas de pedra de polir misturadas com
óleo vegetal e pó de chifre de cervo calcinado. Nas partes com decoração metálica,
ouro, prata, aogin, são utilizadas partículas finíssimas moídas de pedra de amolar. O
tempo necessário aos múltiplos polimentos é muito superior ao tempo de laqueação.
A única exceção é quando na última camada é aplicado o shu-ai-urushi, que é a
técnica de laquear sem fazer nenhum tipo de polimento após secagem (hana-nuri,
nuri-tate) (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Ferramentas e implementos utilizados no trabalho do charão
Para as múltiplas fases de preparação, laqueação e decoração dos objetos, é
necessária uma infinita lista de ferramentas diversas e complexas como também
inúmeros implementos específicos fabricados por artesãos especialistas.
Na fase de preparação do suporte ou base, misturam-se com o charão bruto
pó de serragem, fibra de tecido, pó de argila ou de terracota e água (urushi-shitaji).
As camadas de tecido (linho, seda, juta, algodão) são coladas (nuno-kise) com
charão misturado com água e farinha de trigo (mugi-urushi) ou de arroz (nori-urushi).
Para preparar e aplicar as camadas de base são utilizadas espátulas de cipreste
(hinoki) de metal e nos diais de hoje de plástico também.
Existe uma gama de pincéis, com múltiplos tamanhos, formatos e usos
específicos, confeccionados com pelos de animais ou cabelo humano. Um pincel de
crina de cavalo é utilizado para espalhar o fundo de base. Os instrumentos para
desenhar com urushi precisam de mais corpo e firmeza que aqueles das artes
picturais comuns. Para traçar linhas ou curvas compridas e regulares, são utilizados
893
pelos selecionados de rato, raposa, coelho, gato e texugo. Os pincéis destinados à
laqueação (hake) são feitos de cabelo humano. Os “hake” são fabricados por e para
gerações de artesãos, sendo parecidos, a princípio, com lapiseiras; finas plaquinhas
de cabelos são juntadas, coladas e prensadas entre quatro lâminas de madeira.
Quando a extremidade do pincel fica desgastada ou danificada, ela é cortada e pode
ser “apontada”, removendo uma pequena faixa das lâminas de madeira,
apresentando um pincel novo, pronto para usar.
Na fase de decoração, são numerosos os tipos de materiais utilizados. Nas
técnicas de nácar (raden), madrepérola e outras conchas, eles são utilizados de
variadas formas: para incrustação, são usadas lâminas duras de dois milímetros
(hatsu-gai); para aplicação em superfície, lâminas finas (usu-gai), inferiores a um
milímetro, e diferentes tamanhos de partículas. O elemento de decoração em
lâminas duras requer serrinha e um jogo de limas variadas para ser feito. Nas
decorações, os metais (ouro, prata e estanho), são utilizados sob múltiplas formas:
placa fina (hyômon) e folha ultrafina (haku). Para as técnicas de desenhos
semeados (maki-e), são utilizados três metais (ouro, prata, estanho) em partículas
de formatos e dimensões diferentes (são mais de 150 tipos). Esses pós-metálicos
são semeados sobre uma camada de charão fresca com ajuda de canudos de
bambu (tsutsu) semifechados em uma extremidade por uma gaze, tipo peneirinha,
permitido espalhar direcionando o pó.
Para preparação do charão de cor (iro-urushi, e-urushi), precisa-se de
pigmentos específicos compatíveis, diferentes daqueles utilizados nas artes picturais
comuns. O pó colorido pode ser utilizado malaxado com a resina, ou semeado numa
camada fresca de charão (pigmentos puros ou misturados com partículas metálicas).
Nas técnicas de incrustações, o marfim, o chifre, a cerâmica, as pérolas, o estanho,
as ligas e fios de metais, os esmaltes e o casco de tartaruga fornecem uma gama de
opções. Além de agulhas, estiletes e facas variadas, pequenos formões são
necessários para esculpir a madeira; outro jogo de formão é utilizado para fazer as
delicadas incisões na técnica do “ouro afundado” (chinkin) (BUSHELL, 1979;
MASUMURA, 1985; MASUDA, 2001; JAHSS E JAHSS, 1981, tradução nossa).
894
Período Pré-Histórico (13.000 – 300 a.C)
A região norte do Japão (Aomori e Hokkaido) tem 18 sítios arqueológicos da
época pré-histórica (Jomon: 9000 – 300 a. C.). A mais recente descoberta de
artefatos na ilha de Hokkaido no ano 2000 comprova a utilização do charão no
Japão desde 6500 a. C. Trata-se de um conjunto de ornamento funerário especial,
destinado a alto dignitário. Confeccionado de fibras naturais e recoberto de charão
de cor vermelha, este traje oficial tem 9000 anos (URUSHI, 2014, tradução nossa).
Outros objetos mais “recentes” comprovam a utilização da resina sobre outros tipos
de material como madeira no Jomon precoce (5000-3000 a. C.), bambu no Jomon
médio (3000-2000 a. C.), cerâmica no Jomon tardio (2000-1000 a. C.). Até esta
época, o Charão de cor vermelha (à base de óxido de ferro (benigara, Fe2O3), de
cinabre (sulfeto de mercúrio HgS)) ou de cor preta era aplicado diretamente sobre os
objetos sem preparação (tigelas cavadas, colares, pentes, brincos, arco). Nos
objetos feito de lâminas de bambu entrelaçadas, do Jomon final (1000-300 a.C.),
observa-se uma nova técnica importante: o charão foi utilizado com liga, misturado
com um tipo de areia para obturar as malhas do trançado. Para confeccionar os
pentes deste mesmo período, a base dando suporte aos dentes de bambu, foi feita
uma mistura do charão com pó de argila e de serragem. Esta liga (urushi-shitaji) de
alta resistência usada nos dez pentes descobertos no sítio arqueológico de Terachi
tem mais de dois mil e quinhentos anos e apresenta um ótimo estado de
conservação (MATSUDA, 2001; KURAKU, NAKASATO, 1985, tradução nossa).
Idade da pedra e do ferro (Yayoi: 300 a.C. - 250 d.C; Kofun: 250 d.C - 538 d.C.)
Do período Jomon final até o período Asuka (538-650 d. C.), a técnica do
charão entra em retrocesso e a técnica de shitaji é raramente utilizada. Entretanto, o
urushi continua sendo utilizado sobre diferentes tipos de matérias como arma,
armadura, cofrinho e cerâmica. Objetos de madeira encontrados em ruínas perto de
Shizuoka, da época Yayoi, apresentam múltiplas camadas de charão de cor preta ou
desbotada, sem decoração. São objetos de madeira feitos no torno (tigela), com
encaixes (bandejas, mesinhas) ou feito à mão (conchas) (MATSUDA, 2001;
KURAKU, NAKASATO, 1985, tradução nossa).
895
Período antigo (538-1200 d. C.).
A partir do século seis, o Japão começa a se desenvolver como nação e
durante os quatro séculos seguintes, do sexto ao nono, a arte do charão será
fortemente influenciada por objetos magníficos e técnicas, chegados, da China via
Coreia e também do Ocidente. O arquipélago nipônico foi neste período a ponta no
extremo leste da rota da seda. Esta via ligando a Ásia, o Extremo Oriente e a Europa
formava a maior rede comercial de intercâmbio cultural, político, religioso e científico
do mundo antigo. Historicamente, foi a primeira globalização antes que se pudesse
pensar nessa palavra (ROTA, 2014).
Os objetos preciosos que influenciaram as artes neste período, vindos da
Índia, do Irã, da Grécia, de Roma, da China e do Egito, estão guardados até hoje no
Shôsô-in, Pavilhão dos Tesouros Nacionais, em Nara, junto com objetos refinados
de produção nacional do oitavo século. Das nove mil peças do acervo, mais de
seiscentos itens estão relacionados ao imperador Shômu (701-756). Uma exposição
anual (Shôsô-in-ten) oferece aos visitantes durante duas semanas, mais ou menos
setenta destes tesouros, dos quais alguns nunca foram mostrados. Em 2013
aconteceu a sexagésima quinta exposição (SHÔSÔIN, 2014; NAKASATO et al.,
1985, tradução nossa).
Da China, em particular, veio a técnica da “laca seca”, que reativou a
fabricação da liga (urushi-shitaji). A laca seca (kanshitsu) é o nome utilizado para
definir objetos confeccionados com várias camadas de tecidos de linhos, juta ou
seda, colados com mugi-urushi e ligadas com urushi-shitaji. Os objetos fabricados
com este método são leves, resistentes e duráveis. Foram encontrados, datando do
oitavo século, tigelas, caixas, máscaras de teatro, caixas para textos religiosos,
urnas funerárias (no túmulo de Kegoshi-zuka) e caixa de couro (sutra-bako, para
textos religiosos).
Vindo da Índia pela rota da seda, o budismo chegou ao Japão via Coreia em
538, e muitas estátuas representando os vários aspectos do Buda foram
confeccionadas por este processo. A mais antiga deste tipo (dakkatsu-kanshitsu-zô)
representa o monge chinês Ganjin (688-763), convidado pelo imperador para formar
padres e aprimorar o budismo japonês. Ele fundou o templo Toshodaiji, em Nara, em
896
759. Conservada ali mesmo, a estátua de Ganjin só podia ser contemplada alguns
dias por ano, no começo de junho, data do seu aniversário. Desde 2013, por ocasião
dos 1250 anos de seu falecimento (atestando a resistência da laca seca), foi criada
uma fiel réplica de sua estátua para ser vista agora diariamente. Existem dois tipos
de estátua da laca seca (kanshitsu–zô), em que múltiplas camadas de tecidos são
coladas por cima de um molde, uma alma de madeira (moku-shin): 1 - quando a
imagem (mokushin-kanshitsu-zô) estiver totalmente acabada e seca, ela poderá ser
instalada no santuário; 2- se sua alma de madeira for retirada (dakkatsu-kanshitsuzô), ela poderá sair do oratório e ser carregada nas procissões por ser muito mais
leve. A maioria das outras estátuas, mais pesadas, são esculpidas em madeira,
fundidas em cobre ou moldadas com argila. Existe ainda imagem de Buda em prata,
ferro ou de papel, mas são raras. A estátua mais antiga de madeira laqueada com
urushi e folheada a ouro (shippaku-zô) é do período Asuka (538 - 645).
Desta época, remanesce também o mais antigo objeto conhecido decorado
com charão colorido, o Tamamushi no Zushi. Construído na metade do século sete,
ele é um oratório budista, conservado no templo Hôryû-ji em Nara e classificado
como Tesouro Nacional (NAKASATO, et al.,1985; MATSUDA, 2001; (ELISSEEFF e
ELISSEEFF, 1974; IRIE e AOYAMA, 1983, tradução nossa).
A partir do século nove até o século doze, o Japão isolou-se do continente e
desenvolveu sua própria arte do charão. Durante este período, foram desenvolvidas
praticamente todas as técnicas fundamentais do trabalho com urushi. Estes
procedimentos utilizados até hoje não são exatamente iguais, eles evoluíram no
decorrer dos séculos, acompanhando o refinamento da arte. Por exemplo, na liga
urushi-shitaji, que existiu no Jomon final (1000 a. C.) até o oitavo século, o pó de
argila misturado com o charão (tsuchi-urushi) foi substituído, a partir do nono século,
por partículas de terracota (yaki-tsuchi), e do décimo sexto século em diante, por um
pó de pedra de polir (to-no-ko). Objetos do oitavo século mostram a existência nas
decorações das técnicas de maki-e, de raden, de hyômon (plaquinha fina de metais,
chamada também de heidatsu ou de kanagai), e do mitsuda-e (tipo de pintura a óleo,
em que a tinta é preparada com óleo secante, pigmentos e com óxido de chumbo
para poder aderir no charão). Constam igualmente vários tipos de fundos metálicos:
fundo dourado com pó de ouro (kinji); fundo prateado (kinji); e fundo dourado897
esverdeado (aki-kinji ou koban-kinji) (ELISSEEFF e ELISSEEFF, 1974; NAKASATO,
KIMURA, 1985; MASUMURA, 1985, tradução nossa).
O pó de maki-e (makie-fun, de ouro e prata) utilizado anteriormente ao oitavo
século era de origem natural, tipo grãos de areia (aluvial); do oitavo ao décimo do
segundo século, as partículas (denominadas partículas antigas quando elas são
mais finas que as limalhas) tinham principalmente formas de grãos de arroz,
entretanto outras tendências como aspectos de cunhas, de triângulos ou filiformes
foram observadas em função dos metais. O formato em cunha é mais comum para
as partículas de prata e ouro-verde (koban ou aogin, que é uma mistura de prata e
ouro), sendo que o aogin aparece também em formato de triângulo. A partir do
décimo terceiro século, o aspecto oval se torna gradualmente esférico, sendo um
dos diferentes tipos de pó utilizado até hoje (NAKASATO, 1985, 1990, tradução
nossa).
Na técnica de raden, do oitavo ao décimo segundo século, o nácar foi tirado
exclusivamente do caracol marmorata linne (yakogai). O exemplo mais importante
conservado deste processo de decoração se encontra no interior do Konjiki-Dô,
Salão Dourado, pavilhão do templo Chûzon-ji, na cidade de Hiraizumi, terminado em
1124 d. C, mas reconstruído de 1962 até 1968 por uma equipe de especialistas.
Esta sala é um mausoléu com as paredes e o teto folheados a ouro, que comporta
três altares decorados com dezenas de milhares de peças recortadas em yakogai.
Até hoje, há dificuldade para explicar como os artesãos desta época conseguiram
cortar essa quantidade tão importante de peças. A melhor relíquia deste período
com trabalho mais refinado em madrepérola é o Makie Koto. O koto é uma cítara,
um tipo de harpa horizontal com sete cordas. A caixa acústica foi decorada com
maki-e (ouro e prata) e peças de yakogai finamente executadas. O instrumento
tradicional, classificado como “Tesouro Nacional Sagrado Antigo” é conservado no
templo Kasuga, em Nara (NAKASATO, 1985, 1990, tradução nossa).
898
Período Kamakura - Nambokucho (1200-1400)
É o começo da época feudal, que vai durar até 1867. Muitas guerras de
sucessões de dinastias, de disputas de poder entre as classes dos nobres, dos
militares e os templos, vão dividir o país até o começo do período Edo (1603).
Durante este era, as influências militares e do Zen Budista são de grande
importância. A técnica do nácar atingiu seu apogeu. Entre os objetos mais
importantes remanescentes desta época, existem alguns bem conhecidos
comprovando a perfeição nesta arte: uma caixa para cosméticos (Fusenryo-makieraden-tebako) e duas selas de cavaleiros (kura) mais destacados, entre várias
(Shigure-radenkura e Sakura-radenkura). Aparece também o uso de partículas de
madrepérola (mijin-gai). Todas as técnicas de maki-e (hira-makie, togidashi-makie,
taka-makie) foram aprimoradas. Novos procedimentos de decoração aparecem: o
kiri-gane, o kamakura-bori e o negoro (NAKASATO, et al., 1985; MASUMURA, 1984;
MATSUDA, 2001, tradução nossa).
O kirigane é um processo decorativo que consiste em colocar na camada de
charão fresca, peça por peça, pequenos quadradinhos ou triângulos, de dois a três
milímetros, cortados em finas folhas metálicas (ouro, prata ou estanho). O
kamakura-bori, esculpido de Kamakura, é uma técnica de decoração na madeira em
três dimensões, inspirada do processo chinês de esculpir múltiplas camadas de
charão aplicadas sobre um objeto (tsuishu, tsuishitsu, processo que será adotado
também no século dezenove no Japão, chamado chôshitsu).
No Kamakura-bori, um desenho sobre um objeto em madeira é executado em
relevo, esculpido com goivas e formões. A peça será submetida ao processo
completo de preparação e laqueação em dezoito etapas, tendo no final uma camada
de cor preta seguida de outra de cor vermelha. Um polimento cuidadoso
(mizutonoko-togi) deixa aparecer a cor preta inferior, realçando o efeito do relevo.
Outra alternativa de laqueação aparece, o negoro, desenvolvido no templo Neguro
na prefeitura de Wakayama. Para economizar o trabalho de preparação do charão
vermelho feito manualmente, os objetos de uso diário dos monges são laqueados
com uma camada de cor preta, seguida de outra de cor vermelha. Com o uso
repetido dos objetos, a camada superior vai se desgastando, deixando a cor preta
899
aparecer, dando um aspecto original para cada peça (NAKASATO, et al., 1985;
GOTO e AOYAMA, 1973; MATSUDA, 2001; MASUMURA, 1984, tradução nossa).
Período Muromachi - Momoyama (1400-1600)
Nas decorações em raden, a utilização de outras conchas amplia a gama de
cores. A abalone (awabi-gai: haliotis japônica), o molusco do mar (aogai: pateloida) e
as ostras que produzem as pérolas (shiro-chô-gai e kurochô-gai: pinctada máxima)
fornecem o verde, o azul, branco, o cinza e o vermelho.
A técnica de chinkin se desenvolve nesta época. Ela existia na China desde o
século cinco, chamada sôkin. O processo consiste em gravar finas incisões sobre
um objeto com ajuda de pequenos formões específicos. Os sulcos são preenchidos
em seguida com charão e logo depois são aplicadas folhas ultrafinas de ouro ou pó
de ouro (kimpaku ou kin-keshifun). A superfície é esfregada seguidamente, deixando
as partículas de ouro só nas incisões, revelando a delicadeza do desenho. Quando
os sulcos são laqueados com charão colorido (vermelho em geral) e polidos depois
da secagem, o processo é chamado de kimma (TAGUCHI et al., 1985; MASUMURA,
1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Uma mudança também é observada nos temas de decoração a partir deste
período: paisagens, arquitetura, animais e silhuetas humanas vêm ampliar os
padrões tradicionais de flores e pássaros retratados desde o nono século.
Um novo estilo de maki-e aparece no fim da época Momoyama, chamado
Kodaiji, nome do templo no qual se encontra esta decoração. Dentro do edifício
erguido em homenagem a Toyotomi Hideyoshi (1536-1598), os altares e o santuário
estão decorados seguindo um novo processo. A originalidade não está nas
partículas utilizadas, o pó nashiji-fun (tipo flocos), que já era usado desde o século
nove, a novidade está na utilização desses flocos nos próprios desenhos (e-nashiji)
e não mais como fundo. Tanto as técnicas, e-nashiji e hira-makie (desenho plano)
como os temas escolhidos criaram um ambiente alegre. Além dos tradicionais pinus,
bambu e flores de crisântemos, as flores de cerejeira, jangadas, instrumentos de
música (koto, biwa, taiko e kosutsumi), ervas da pampa, folhas de acere e flores de
paulownia (kiri, brasão da família) avivavam a decoração. Esta técnica e-nashiji
900
perdura até hoje com o nome de Kodaiji-maki-e. Outras duas particularidades desta
época são: o processo de dividir a área decorada em duas partes com dois temas
diferentes e a utilização de elementos recortados em fina lâmina metálica (kanagai
ou hyômon em ouro ou prata) (MAEDA, 1976; MASUMURA, 1984, tradução nossa).
Toyotomi Hideyoshi foi um personagem importante nas Artes. No fim do
século dezessete, após vários sucessos militares e mestre incontestado do Japão,
ele reorganizou o país e desarmou as regiões rurais, mantendo o arquipélago em
paz após séculos de guerras. Toyotomi Hideyoshi juntou os últimos mestres do
urushi sobreviventes sob sua proteção no palácio Karasu em Kyoto. Foi ele também
quem mandou codificar as regras da cerimônia do chá (cha no yu). Este
reconhecimento oficial vai influenciar todas as profissões e as artes ligadas a este
ritual: arquitetura, cerâmica, fundição, arte das flores (ikebana) e o charão, além de
trazer os princípios filosóficos e estéticos do Zen para a vida cotidiana (ELISSEEFF
e ELISSEEFF, 1974; JAHSS e JAHSS, 1981; MATSUDA, 2001, tradução nossa).
Período Edo (Tokugawa 1603-1868)
Com o fim das guerras, os fundos, que eram gastos com armamento,
puderam ser investidos agora nas artes. Os senhores feudais (daimio) adotaram o
exemplo de Toyotomi Hideyoshi, patrocinando artistas e ateliês particulares.
Tokugawa Ieyasu, fundador e primeiro xogum do Xogunato Tokugawa, deixou Kyoto
e estabeleceu–se em Edo (Tóquio). Ele convidou muitos artistas do charão a se
instalar no ateliê fundado especialmente para eles (Ôkoyaba). Com o crescimento do
comércio e da indústria no fim do período Edo, uma nova classe de negociantes
bem-sucedidos aderiu também à ideia do patrocínio. O desenvolvimento das
técnicas, as habilidades, a abundância e a riqueza das matérias utilizadas, vão
favorecer a maior e mais refinada produção na arte do charão. E uma grande
variação na laqueação das bainhas de espada (saya) é desenvolvida. O estojo era
fabricado de modo geral com uma madeira leve, da família das magnólias (Honoki)
escolhida por não afetar o corte da lâmina. A decoração da bainha era feita em
função da qualidade e da preciosidade da espada a ser protegida (katana). Existem
bainhas decoradas com várias técnicas de maki-e ou nácar (hanagai) desde o
século oito, conservadas no Shôsô-in. Centenas de técnicas de laqueações
901
diferentes (kawari-nuri, saya-nuri) foram desenvolvidas nesta época. Os dois
processos de base principais são o charão viscoso (shibo-urushi) e o charão rústico
(sabi-urushi). O shibo-urushi é preparado misturando o charão refinado, preto ou
colorido, com uma substância viscosa para perder sua fluidez (clara de ovo, gelatina,
cola de amido). Marcas de pincel, de folhas, de sementes etc. são deixadas numa
camada fresca e vão permanecer após o endurecimento. As marcas serão
aproveitadas tal qual ou destacadas com cores (nanako-nuri, hake-nuri, botan
shibo,...). Na técnica do charão rústico (sabi-urushi), o caráter viscoso é preparado,
adicionando na seiva bruta, pó de argila e água (MASUMURA, 1984; JAHSS e
JAHSS, 1981, tradução nossa).
A utilização da casca de ovo (rankaku) como material de decoração se
desenvolve nesta época. Para os objetos pequenos, são aproveitados os ovos de
codorna, para superfícies maiores, os ovos de galinha têm mais rendimento.
De todos os objetos de charão miniatura, o mais popular e mais importante é
“o inrô”. Surgiu no final do décimo sétimo século e tem seu apogeu neste período:
Ele é um tipo de caixinha oblonga, altamente decorativa, carregada pendurada
amarrada na cintura. A altura, em média, de nove centímetros, é dividida em vários
compartimentos, que se encaixam deslizando, presos a um cordão de seda
amarrado na parte de baixo. Na outra ponta da cordinha, há uma pequena bolinha
furada (ojime), mais um pequeno objeto de marfim ou madeira (netsuke) finamente
trabalhado, que ajuda a prendê-lo na cintura.
A multiplicação das formas e dos objetos decorados acompanha o
crescimento das técnicas. Muitos utensílios de uso diário, como pentes, tigelas,
xícaras, cachimbos, cofrinhos, caixas e caixinhas, receberam decorações refinadas.
Cada província desenvolveu e se especializou em uma técnica própria, que perdura
até hoje (charão multicores de Tsugaru, laqueados semitransparentes (shunkei) de
Hida e Noshiro). Na técnica de nácar as, conchas nautilus (omugai) e o turbo
cornatus (sazae) aumentam a paleta de cores. Todas são preparadas também em
lâminas finas (usu-gai), ao natural, coloridas ou folheadas com ouro na parte detrás,
antes de ser coladas no charão (MASUMURA, 1984; JAHSS e JAHSS, 1981,
tradução nossa).
902
Os implementos utilizados nas incrustações (técnica de Shibayama) se
multiplicam (malaquita, corais, pedra sabão, marfim tingido, ouro, prata, cerâmica,
liga de metais e peças delicadas encomendadas aos mestres que fabricam as
espadas).
No fim do século dezenove, os objetos sobrecarregados de desenhos e
elementos de decoração com técnica sofisticada representavam um gosto de luxo,
cobiçados
pela
nova
classe
rica
dos
negociantes.
Estes
objetos
eram
encomendados por negociantes e destinados a ser exportados. De fraco valor
artístico e pela pobreza estética, eles não eram representativos da perfeição
alcançada pelos artistas desta época. Nos ateliês patrocinados e protegidos,
destacaram-se grandes mestres, que influenciaram a arte do urushi. Pela alta
qualidade de seus trabalhos, ateliês-escola ou famílias (Shibayama, Somoda, Koami,
Kajikawa, Koetsu, Korin, Koma, Shunsho) ganharam renome e cresceram atraindo e
formando excelentes discípulos (JAHSS e JAHSS, 1981; MASUMURA, 1984;
BUSHELL, 1979, tradução nossa).
Período Moderno (Meiji-Taisho-Showa-Heisei 1868-2010)
O começo da era Meiji em 1868 marca o fim da época feudal. O Japão se
abre ao Ocidente, a maior autoridade política é restaurada ao Imperador. Essa nova
reorganização da estrutura política acabou com os patrocínios e a proteção dos
senhores feudais, desmantelando os renomados ateliês de urushi. A maioria dos
mestres nesta arte perdeu para sempre suas altas posições sociais. Alguns foram
convidados para o ateliê de maki-e do Palácio Imperial, outros para ensinar na
Escola de Artes Finas de Tóquio, fundada em 1889, na Escola de Aprendizes de
Aizu, fundada em 1884, na Escola Industrial de Kanazawa, fundada em1887. Com
as mudanças de estilo de vida, os objetos de charão vão perdendo espaço para os
de cerâmica (situação inversa da época Nara). O trabalho do urushi entra em
declínio, a quantidade de seiva colhida diminui. Para reverter tal situação, o Governo
atuou em muitas frentes. Pesquisas científicas sobre o charão são iniciadas a partir
de 1884. Sua composição é descoberta aos poucos: 80% da seiva japonesa é de
ácido urushique (urushiol), 19% água, 1% é da enzima rhus laccase (quem permite a
polimerização do Urushiol), uma pequena proporção de látex, carboidratos e
903
impurezas. O outro campo de pesquisa é sobre corantes compatíveis. Até então a
paleta de cores é limitada pela dificuldade de obter pigmentos que não impeçam o
endurecimento do charão e que não alterem sua cor durante ou logo depois da
secagem. A cor branca deu mais trabalho, mas as pesquisas foram bem-sucedidas,
e hoje todas as cores de charão são possíveis (MATSUDA, 2001; ADACHI, OKADA
e SHIRAISHI, 1982; MASUMURA, 1984, tradução nossa).
No plano internacional, o governo investiu na exposição de Viena em 1873,
apresentando trabalhos dos mestres Shibata Zeishin e Ikeda Taishin para divulgar e
promover exportações para o Ocidente. Logo depois, ele financiou uma empresa
para produzir objetos e comercializá-los em Paris e Nova York, mas faliu
rapidamente em 1891 por oferecer produtos extravagantes e de mau gosto. No
plano nacional, para divulgar os melhores trabalhos a fim de estimular produções de
qualidades, o Ministério da Agricultura e do Comércio promove, em 1913, uma
exposição anual nacional premiada para as artes aplicadas, “Noten”, evento que se
repetiu até 1938. A partir de 1927, a Academia Imperial inclui quatro especialidades
de Artes Aplicadas nas exposições “Teiten” (charão, metal, cerâmica e têxtil).
Grupos de profissionais aparecem para se aperfeiçoar, publicando jornal
especializado e organizando exposições (Sociedade da Indústria do Charão
Japonês, Nihon Shikko-Kai–1900, que promovia competição bienal para romper com
os padrões tradicionais), Associação Crafts, (Saisai-Kai -1923), Associação sem
Disputas (Mukei-kai-1926). Até 1926, a arte do charão apresenta uma grande
morosidade, estagnada nos padrões antigos, ao contrário das outras artes em crafts
(metal, cerâmica, têxtil), em plena renovação. As exposições em conjunto de artes
aplicadas colocam em evidência o quanto a arte do charão está defasada. A Mukeikai, de pensamento moderno, vem contrapor-se à mentalidade tradicionalista da
Saisai-kai e quer mudar em direção de uma estética do futuro. Em 1932, Isoya Akira
junta-se ao grupo Mukei no intuito de produzir objetos com novas perspectivas e
sensibilidades, incluindo ideias da Europa, transformando-se em líder da revolução
no mundo do charão. Este grupo, muito ativo, apresentou novidades e originalidades,
introduzindo influências do Ocidente na confecção dos objetos, tendo sido premiado
por se destacar na Exposição Nacional Especial de Artes Aplicadas em 1931. Os
trabalhos de charão apresentados na exposição “Teiten” do ano 1936 destacaramse pela originalidade e se distanciaram dos padrões antigos. Nos anos 30 muitos
904
mestres vêm a falecer e são substituídos por novos artistas cheios de entusiasmo,
que fazem reflorescer a arte do charão. Estes novos talentos ganham importância,
participando como expositores e juízes nas exposições “Shin Bunten”. Dois novos
grupos apareceram: em 1935, a Sociedade das Verdadeiras Artes em Crafts (onze
artistas pertenciam à Mukei-kai, agora desfeita) promove exposições premiadas,
apresentando objetos de arte ligados à vida cotidiana; em 1936, é constituída a
Academia Japonesa de Arte em Charão, formada pelos mais notáveis mestres da
época (vinte e seis artistas), que apresentam em 1937 trabalhos novos e arrojados,
executados com perfeição.
As Cidades de Kyoto, Kanazawa, Wajima e Takamatsu, menos ativa que
Tóquio, mas de longa história e reputação nas artes finas do charão, continuam suas
tradições, abrigando organizações e mestres do urushi. Com objetivo de continuar a
desenvolver a arte nas províncias, foram estabelecidos o “Instituto de Pesquisa em
Arte do Charão”, de Kanagawa, em 1954, e o “Instituto em Arte do Charão”, de
Wajima, em 1967 (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982, tradução nossa).
Os períodos pré-guerra e pós-guerra dificultaram a arte do charão. Em 1940,
as atividades ficaram paralisadas porque a resina e os metais preciosos (ouro e
prata) foram considerados artigos de luxo de produção e venda restringidos por lei
até 1943. Depois da guerra, as exposições anuais “Shin Bunten” (antiga Teiten com
patrocínio Imperial) e “Nitten” (antiga Bunten, patrocinada pelo Ministério da
Educação) reiniciaram suas atividades, mas com participações modestas. Um
acontecimento especial em 1955 vai modificar totalmente o campo das artes
aplicadas. Uma lei editada em 1951 sobre a proteção dos bens culturais entra em
vigor, criando a Sociedade das Artes Aplicadas (Artes em Crafts). Esta associação
vai promover exposições anuais premiadas e patrocinar o melhor artesão em cada
especialidade. Os "Mestres" escolhidos recebem o titulo de “Guardiões dos
Intangíveis Bens culturais”, mais conhecidos como “Tesouros Nacionais Humanos”
(Ningen Kokuhô). Nas técnicas de Maki-e, foram escolhidos Matsuda Gonroku
(1896-1986) e Takano Shôzan (1889-1976), na técnica Chôshitsu (charão
entalhado): Otomaru Kôdô (1898-1997), na técnica de Chinkin: Mae Taihô (18901977), na técnica de Kimma: Isoi Joshin (1883-1964), na técnica Kanshittsu (laca
seca): Matsunami Hoshin (1882-1954) e Masumura Mashiki (1910-1996), na técnica
905
Magewa-zukuri (lâmina curvada): Akaji Yûsai (1906-1984) (ADACHI, OKADA e
SHIRAISHI, 1982, tradução nossa).
Esta valorização dos "Tesouros Humanos" permanece ainda, e hoje, dez
“guardiões” escolhidos nas Artes do Charão se dedicam com apoio do governo. Em
1974, o governo legalizou um apoio financeiro para estimular e garantir a produção
de objeto em charão em onze cidades. Os lugares foram escolhidos por serem
tradicionais nesta arte, representando as bases de origem para formar futuros
artesãos e mestres (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982, tradução nossa). Na
época atual, o charão continua perdendo do metal e da argila na plasticidade. A
espuma rígida de poliuretano e a fibra de vidro substituem, às vezes, a técnica de
laca seca (Kanshitsu). As resinas sintéticas, derivadas do petróleo, são concorrentes
mais econômicos para laqueação e impermeabilização. Entretanto, seu uso estético
é garantido por se destacar por sua beleza, seu brilho e seu toque particular. Com
sua riquíssima paleta de cores, novas expressões gráficas foram elaboradas,
permitindo efeitos especiais impossíveis nas outras artes picturais. Os pigmentos ou
partículas de laca seca colorida (kanshitsu-fun) podem ser utilizados nas técnicas de
maki-e ou de chinkin e aplicados para decoração interior em painéis, telas, biombo
ou peças mobiliares de linhas modernas. As técnicas tradicionais de raden, maki-e e
incrustações são utilizadas hoje na decoração de capa de smartphone, tablet,
tinteiro e outros objetos de uso diário. Desde 1989, acontece periodicamente a
“Exposição Internacional de Ishikawa”, que, em 2014, completará sua décima edição.
Esta exposição, de renome mundial na Arte do Urushi, tem por objetivo estimular a
produção local com as trocas internacionais sobre a exploração do potencial do
charão. Desde utensílios de uso diário até obras artísticas apresentando um novo
estilo ou uma nova “sensação” são almejados. O evento atrai excelentes trabalhos
nacionais e também participações, em média, de dez países diferentes em cada
edição. Isto mostra o quanto o Japão tem consciência e vontade política de guardar
e promover o patrimônio cultural ancestral desta Arte.
O processo japonês de extração e de preparação da seiva lhe proporciona
uma altíssima qualidade, permitindo assim o uso abundante das técnicas de maki-e
em ouro e prata, destacando a Arte Nipônica dos outros países. Por trás das
partículas semeadas, o mestre laqueador vai retificando, lixando, polindo cada
906
camada de charão, com a maior paciência e precisão do profissional rigoroso que
sabe produzir o esmaltado perfeito de uma joia em charão. O mestre não pode ter
pressa nem espontaneidade, e ele deve trabalhar minuciosamente, sem nenhuma
precipitação. Ele deve ter inspiração, mas ela não pode ser transferida de imediato
para um quadro. O resultado final vai depender de um longo trabalho preliminar,
desde a fase de preparação do suporte, passando pelas camadas de laqueações,
inferiores, intermediárias e de acabamento. Cada aplicação necessita de um
polimento, antes de ir para a próxima etapa. Um laborioso processo é indispensável
entre o momento da inspiração e o último retoque final. As palavras inspiração,
habilidade, perseverança, paciência, dedicação, teimosia, técnica e criatividade
compõem a lista dos requisitos indispensáveis para dominar essa arte do urushi.
Assim, são poucos os mestres que dominaram e que continuam se dedicando à
produção de joias laqueadas, reconhecidas e admiradas mundialmente por sua
perfeição (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982; BUSHELL, 1979, tradução nossa).
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907
Francis Jean Yves Marie
Nascido em 31-Julho-1954 na França. 1982: Licenciatura de Japonês, Sorbonne-Nouvelle,
Paris-III. 1982-85: Universidade de Tóquio e especialização em “Urushi” no Instituto
Nacional de Pesquisa de Bens Culturais de Tóquio; Estágio no ateliê de “urushi” do Mestre
Ogawara Enotsuke,Tóquio.1985-2009: Brasil - Participação em exposições (coletivas e
individuais). 2001: Medalha do Mérito Profissional da Academia Brasileira de Arte e Cultura.
908
UM OCIDENTE ORIENTAL
Hannah Basilio Ferreira da Cunha - UFRJ
RESUMO: Em muitos de seus trabalhos Gilberto Freyre descreve as similaridades entre o
Oriente e o Brasil. No texto “Oriente e Ocidente” - capítulo da obra “Sobrados e Mucambos”o autor faz uma descrição do Rio de Janeiro antigo, que nos permite visualizar uma cidade
onde não havia apenas um “gosto orientalista”, mas onde o Oriente fazia parte do cotidiano
e da paisagem. Freyre nos explica que os colonos portugueses haviam sofrido influência
dos árabes, no passado, e na época da colonização lucravam com o comércio entre o Brasil
e as suas colônias na Ásia. Além disso, a arquitetura, as comidas, os tecidos e até mesmo
os hábitos orientais permitiam a adaptação dos europeus a vida nos trópicos. Nos séculos
seguintes as peças de origem ou gosto oriental passaram a representar sofisticação e
riqueza, sendo desta forma colecionada por nobres europeus. Uma prática copiada pelos
brasileiros mais abastados. Assim, a partir do texto de Gilberto Freyre buscamos refletir
sobre a origem de diversas peças orientais, tais como fotografias, artefatos de porcelana e
leques, que hoje ocupam os acervos de instituições cariocas.
Palavras- chave: Arte Oriental, Orientalismo, Gilberto Freyre, Colecionismo.
ABSTRACT: In many of his works Gilberto Freyre describes the similarities between the
Orient and Brazil. In the text “Oriente e Ocidente”- chapter of the work “Sobrados e
Mucambos”- the writer makes a description of the ancient Rio de Janeiro which allows us to
visualize a city where didn’t exist just one “orientalist taste”, but a place where the Orient was
in the daily and in the landscape. Freyre explains that the Portuguese settlers had been
influenced by the Arabs in the past and during colonization were profited from the trade
between Brazil and its colonies in Asia. Moreover, the architecture, the food, the cloth and
even Orientals habits allowed the Europeans to adapt the life in the tropics. In the centuries
that followed, articles from orient or in oriental style began to represent sophistication and
richness, being collected by European nobles. It is a practice also assimilated by rich
Brazilians. Thereby from Gilberto Freyre’s text, a reflection is made over the source of many
Oriental articles, like photography, porcelain and fan that are today in collections of Rio de
Janeiro institutions.
Keywords: Orient art, Orientalism, Gilberto Freyre, Collection
Em exposições permanentes de diversos museus do Rio de Janeiro nos
deparamos com leques decorados por cenas com pagodes e jardins chineses,
vitrines onde estão a mostra peças de porcelanas adornadas com flores de pêssego
e cerejeira. Surge uma pergunta: da onde vieram todas essas peças? Por que se
encontram tantos objetos de gosto ou origem oriental, como tais, nos acervos
cariocas? A resposta vem do fato de que a relação entre o Brasil e o Oriente é muito
mais antiga e intima do que se pode imaginar.
909
Gilberto Freyre foi um dos intelectuais mais preocupados em estudar a origem
da relação entre o Brasil e o Oriente. Ainda no século passado, Freyre afirmou por
diversas vezes que uma integração entre China e Brasil ou Índia e Brasil seriam
mais do que lucrativas, devido às similaridades que possuíam os países. “O Oriente
e o Ocidente” (capítulo adicionado à segunda edição do livro “Sobrados e
Mucambos” publicado em 1951) é um dos seus primeiros textos a abordar este
assunto. Depois deste se seguiram muitos outros textos do autor referentes ao
assunto. Anos depois de sua morte, a reunião alguns deles deu origem ao livro
“China Tropical”. A partir desses escritos é possível pontuar três motivos distintos
para a presença dos objetos de gosto e origem Oriental, sendo esses
interdependentes e complementares.
Primeiramente, deve-se lembrar de que a Península Ibérica passou boa parte
da Idade Média sob o domínio e a influência de povos árabes. Estes deixaram um
legado tão profundo na cultura portuguesa que se tornou difícil desassociá-los.
Gilberto Freyre aprofunda a questão e descreve a durabilidade da influência não só
árabe, mas Oriental na cultura lusitana da seguinte forma: “[...] no próprio Portugal,
os traços orientais chegaram ao século XIX com uma vivacidade que talvez só fosse
maior, na Europa inteira, na Turquia asiática ou na parte asiática da Rússia”
(FREYRE, 1968, p. 427).
A expulsão moura de território ibérico foi seguida de uma perseguição
religiosa a estes povos, o que justificou muitas das conquistas de territórios na Ásia
e na África para o reino português. Essas dominações, no lugar de afastar,
estreitaram ainda mais os laços entre portugueses e árabes. Boa parte da população
lusitana fora deslocada para ocupar ou proteger os portos em ocupações como, por
exemplo, Omã, Ormuz, Baçaim, Diu, Azamor, Tanger e Goa da onde saía boa parte
dos produtos que eram vendidos no Brasil, aonde mais impostos eram cobrados em
nome da Coroa Portuguesa.
Assim, abordamos o segundo motivo: o mercantilismo. Ele permitia aos
lusitanos lucrar sobre ambos os lados das relações comerciais, compradores e
vendedores, e através de todas as etapas da comercialização. Eles administravam
os portos, faziam o transporte e o armazenamento dos produtos. Tudo conforme as
910
regras das relações coloniais; que faziam parte do mercantilismo. Como definiu
Gilberto Freyre:
[...] na época em que os portugueses, senhores de numerosas terras na
Ásia e na África, se haviam apoderado de uma rica variedade de valores
tropicais. Alguns inadaptáveis à Europa. Mas todos produtos de finas,
opulentas e velhas civilizações asiáticas e africanas. Desses produtos, o
Brasil foi talvez a parte do império lusitano que, graças às suas condições
sociais e de clima, mais largamente se aproveitou [...]. (FREYRE, 2003,
p.11)
No auge do ciclo do açúcar, diversas eram as naus, tanto portuguesas quanto
de outras civilizações europeias que zarpavam do Oriente, e aportavam no Brasil. As
peças vindas do Oriente despertavam o interesse dos ricos senhores de engenho,
principalmente os baianos e pernambucanos. Esses opulentos brasileiros gozavam
da posse de produtos que nos séculos XVI e XVII só as cortes mais requintadas da
Europa utilizavam: peças de porcelana da China, especiarias e roupas de seda.
Nos séculos seguintes, o restante da colônia foi dominado pelos produtos de
origem oriental, não apenas devido ao incentivo dos portugueses que visavam o
lucro, mas também porque a utilização destes produtos, e a implantação de tais
costumes representavam uma adaptação ao clima tropical. Como define o próprio
Gilberto Freyre (1968, p.431): "[...] não se vence o trópico sem de algum modo
ensombrá-lo à moda dos árabes ou dos orientais".
E é este o terceiro motivo. Os modos de vida dos árabes e dos orientais
permitiu a sobrevivência dos europeus nos trópicos. Freyre explicou que sem a
roupa, a arquitetura, as comidas e os costumes do Oriente1 o português não poderia
colonizar terras tão quentes e úmidas, incluindo o Brasil. Como se proteger do forte
calor sem guarda-sóis e as cortinas? Como evitar a incidência direta do sol sem
alpendres construídos ao redor das casas e igrejas, telhas à moda sino-japonesas,
as casas caiadas de branco e os azulejos revestindo as fachadas? Como tornar
mais apetitosos os alimentos sem os temperos orientais: o cravo das Molucas, a
canela do Ceilão e a pimenta de Cochim?
911
Figura 1: MOTTE, Charles; ÉTIENNE, Pierre. Femmes Gouaranis civilisées allant a la messe le
dimanche. 1834. 1 grav. : litografia, color., 31,7 x 20,1cm. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil)
Quando a Família Real, acompanhada da nobreza lusitana, de ingleses e
outros europeus, aportaram no Brasil no início do século XIX ficou, segundo o autor,
horrorizada com a presença de tantos elementos orientais na cidade do Rio de
Janeiro e iniciou-se um movimento de “desassombramento” 2 , como denominou
Gilberto Freire. Era necessário tornar a colônia muito mais ocidental e civilizada.
A cidade era iluminada por lampiões abastecidos de azeite de peixe e
lanternas orientais de papel. Os telhados das casas eram caídos para os lados e
recurvados nas pontas em cornos de lua, como haviam aprendido os mestres
lusitanos com a arquitetura japonesa e chinesa. Palanquins e banguês cortavam as
ruas transportando os mais nobres. Havia chafarizes que forneciam água aos
912
moradores. Construções como bangalôs, casas baixas com telhados de palha
originárias da índia, onde moravam os mais pobres e quiosques (ou kiosques),
aonde eram vendidos quitutes diversos. Os homens andavam com grandes barbas,
denominados por causa destas de “turcos”, “mouros” ou “nazarenos”.
Os aristocratas ostentavam longas unhas, demonstrando que não precisavam
fazer nada, pois tinham quem fizesse por eles, um costume vindo da China.3 Como
lazer esses mesmo aristocratas empinavam papagaios, as milenares pipas orientais.
Os principais magistrados do governo se vestiam para ir ao trabalho com roupas
ricamente bordadas, como as dos chineses, japoneses e indianos, tecidos muitas
vezes oriundos desses países.
Pagodes4, elementos arquitetônicos onde eram realizados eventos religiosos
no Oriente, aqui, eram ornamentos das praças. As festas dos santos das igrejas
estavam sempre acompanhadas de fogos de artifício ou fogos de vista, artefatos de
origem chinesa que criavam um verdadeiro show pirotécnico.
As ruas comerciais eram abarrotadas de lojas com produtos de origem
orientais, devidamente anunciados em jornais da época que exaltavam a origem dos
produtos. Muitos eram também os mestres chineses, indianos e mesmo portugueses
(tendo este ultimo aprendido com os orientais) que produziam móveis ao estilo ou
com adornos tipicamente orientais. Quem vivia no interior comprava os artigos do
Oriente nas mãos dos mascates, comerciantes, inicialmente de origem árabe, da
cidade de Mascate.
Segundo Freyre, em outro de seus textos sobre o Oriente, “Aventura e
Rotina”5, um dos diferenciais da colonização portuguesa era a presença da mulher.
Um ponto positivo, pois foram elas as responsáveis por implantar valores
considerados socialmente e moralmente nobres, como os preceitos religiosos,
diferente do que ocorria na colonização somente pelos solteiros. Contudo, no Brasil,
por motivos diversos, imperava o patriarcalismo, outro fator em comum com o
Oriente. Isso fez da mulher colonial o maior exemplo da orientalização que se pode
ter.
Freyre descreve que elas usavam leques chineses para se refrescar e
vestidos de tecido finíssimo, em suas casas, aonde andavam descalças e se
913
sentavam de pernas cruzadas nas esteiras de bambu. Elas viviam “aprisionadas” em
suas casas, onde as janelas eram gelosias ou rótulas e as varandas eram muxarabis.
Essas “grades xadrez” (uma expressão que Freyre extraiu de Wash) estavam
presentes também nas carruagens, utilizadas pelas senhoras nos raros momentos
que saíam de casa, e permitiam ver sem ser visto.
Figura 2: CASA DO MUXARABI. Altura: 811 pixels. Largura: 550 pixels. 96 dpi. 24 BIT CMYK. 80,2
KB. Formato JPG. Compactado. Disponível em:
<http://www.turismopelobrasil.net/turismo/admin/img_normal/G201242413318.jpg> Acessado em: 30
jul. 2012.
Por pressão do “olhar estrangeiro”, cada vez mais presente com a vinda da
Família Real se deu o “desassombramento” e as gelosias dos sobrados e das
carruagens tiveram de ser trocadas por janelas de vidraça e varandas de ferro.
Vieram artífices de todos os locais da Europa: franceses doceiros e italianos
914
marceneiros, entre outros, a fim de conquistar os brasileiros no lugar dos mouros e
“chins”, que produziam os móveis ao gosto oriental como dito anteriormente. Roupas
femininas vinham da França a fim de substituir aquelas de bordado indiano e de
seda chinesa. Objetos de cutelaria eram importados da Inglaterra e assim os
homens passaram a se barbear a moda europeia.
Contudo, apesar dos esforços, o Oriente continuava presente. Não somente
por conta dos mais interioranos, que insistiam em manter tais costumes e das
mulheres que demoraram a aderir às mudanças. O fato é que no século XIX, quando
a corte portuguesa chegou ao Brasil, um novo tipo de relação entre a Europa e o
Oriente surgia. Impulsionadas pela campanha napoleônica no Egito, diversas
expedições
começaram
a
ser
realizadas
ao
Oriente
sem
uma
intenção
necessariamente política ou comercial.
Em meio a movimentos nacionalistas, Revolução Francesa, Revolução
Industrial, Positivismo, Iluminismo e unificações, dentre outros fatos o deslumbre
provocado pelo Oriente, desde tempos remotos, foi colocado em um novo patamar.
Nas palavras de Said (2007, p.28): “[...] o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o
Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade e experiência contrastante”.
Na realidade não só Portugal, mas a Europa de modo geral sempre importara
objetos, usos e costumes do Oriente. Ela sempre fora fascinada pelos orientais. Vera
Lúcia Tostes descreve:
As viagens ao país da seda foram realizadas por gregos, romanos,
bizantinos, venezianos e muitos outros que desbravaram novas rotas,
penetrando no interior da Ásia e entraram em contato com conhecimentos
provindos dos povos dessas regiões, nos campos da astronomia,
matemática e medicina, como com as técnicas para trabalhar o ferro, o
bronze e a cerâmica. (TOSTES, 2010.p.7)
Os artigos orientais continuaram presentes no cotidiano brasileiro porque já
haviam sido absorvidos pela cultura europeia e em muitos casos eram sinônimo de
poder e riqueza. “O Chá do Oriente não faltava aos requintados da corte de D. João.”
descreve Gilberto Freyre (1968, p.444). As senhoras europeias não viviam sem seus
leques, oriundos do oriente e que possuíam não só a função de refrescar como
também um meio de comunicação, havendo diversos códigos realizados com as
posições dos leques. Os serviços de mesa de porcelana vindos da China eram
915
artigo de alto luxo, presente nas mesas mais requintadas, inclusive as dos
Imperadores!
Figura 3: PACHECO, Joaquim Isley. Teresa Cristina Maria, Imperatriz, consorte de D. Pedro II,
Imperador do Brasil. Século XIX. 1 fot., PB, 16 x 11 cm. Coleção D. Teresa Cristina. Fundação
Biblioteca Nacional (Brasil).
Aos poucos os próprios europeus passaram a copiar essas peças com
técnicas cada vez mais aprimoradas. Ainda assim, muitos eram os objetos
importados do Oriente e decorados na Europa. A abertura dos portos as nações
amigas não tornou mais difícil à entrada de artigos orientais no Brasil, mas o oposto.
Agora era a Inglaterra (a nação amiga em questão) uma das maiores importadoras
de artigos orientais, fazendo o transporte marítimo desses objetos. Além disso, havia
o tráfico clandestino de produtos realizados desde o início da colonização.
O Imperador D. Pedro II acompanhou o movimento Orientalista de sua época.
Assim como Victor Hugo, Delacroix e Flaubert ele possuía uma fascinação pelo
longínquo Oriente. Estudou diversas línguas ditas “orientais”, dentre árabe, hebraico
916
e sânscrito. Possuía livros e objetos no geral de origem oriental, muitos hoje
pertencentes às coleções do Museu Imperial de Petrópolis e no Museu Histórico
Nacional. Ele até experimentou realizar uma tradução de “Mil e uma noites”
diretamente do texto original, assessorado por um professor. Na “Coleção D. Teresa
Cristina” de fotografias pertencentes ao imperador, e que hoje se encontra na
Fundação Biblioteca Nacional, existem diversos álbuns com fotografias do Oriente
(Jerusalém, Egito, China e Líbano.6). Alguns comprados por D. Pedro II e outros de
fotos retiradas durante suas viagens à região.
Figura 4: SEBÁH, J. Pascal. Mosquée Emir Akhor. 1870. 1 fot., PB, 34 x 27cm. Coleção D. Teresa
Cristina. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil).
Ao longo do século XIX e início do século XX foram diversas as construções
realizadas ao estilo oriental, definidas como “neos”. A construção, hoje sede da
FIOCRUZ e o já demolido prédio Mourisco, que ficava no final da praia de Botafogo
917
e até hoje nomeia a região, são dois exemplos. Leituras e releituras da cultura, da
arquitetura e da arte do Oriente que agora adornavam casas e prédios públicos,
como o “Salão Assírio”, localizado no subsolo do Teatro Municipal, construído no
início da República.
Em suma os produtos, a cultura e a arquitetura do Oriente continuaram
presentes no Brasil, mas a nossa relação com os países orientais mudou e se tornou
similar a que havia entre estes e os europeus nos séculos XIX e XX. Gilberto Freyre
constatou em seus livros que a cultura oriental exerceu uma influência tão profunda
no Brasil que apesar de todas as tentativas europeias não havia como desfazer tal
relação.
As dinâmicas orientalistas esgarçam fronteiras e cronologias. No caso do
Brasil, o gosto orientalista veio com os colonos portugueses, que haviam sofrido
influência dos árabes no passado e lucravam com o comércio entre o Brasil e as
colônias na Ásia. Esse gosto seguiu até o século atual e deixou seu legado em
acervos nacionais onde são encontradas peças de procedências e natureza por
vezes inesperadas, elas, parafraseando Gilberto Freyre, “[...] tornaram-se quase tão
raros-peças de museu, arcadismo, curiosidades - como nos países de civilização
mais acentuadamente ocidental da América.” (1968, p.813-814).
Notas
1
Vale salientar que Gilberto Freyre considerava como Oriente também a costa da África oriental,
voltada para a Ásia. Aonde os portugueses tiveram diversas colônias e dominações.
2
FREYRE, Gilberto. O Oriente e o Ocidente. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural
e desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
3
LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: Influência, marcas, ecos e sobrevivências chinesas
na sociedade e na arte brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 1999.
4
Em um trecho da página 116 do livro “China Tropical”, Freyre narra sua visita a uma festividade no
pagode de Queula, na Índia, sublinhando a semelhança entre esta e as festas de igreja do Brasil, com fogos,
música e dança. Contudo nesse caso, o silencio se estabelecia no interior do Pagode, que é um local santo,
aonde se encontrava o menino suami, “uma espécie de bispo entre os hindus”.
6
GOLDFELD, Monique Sochaczewski. O Oriente Médio no Acervo da Biblioteca Nacional. Programa
Nacional de Apoio à Pesquisa- FBN/MinC, 2006.
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Hannah Basilio Ferreira da Cunha
Graduanda em História da Arte pela EBA/UFRJ. Bolsista do PIBIC/UFRJ junto ao projeto de
pesquisa “Oriente-se: Arte Asiática em Coleções Nacionais” e ao Grupo de Estudos em Arte
Asiática (GEAA). Participou das edições de 2012 e 2013 da JICTAC/UFRJ. Em 2013
participo do VII encontro de Letras Orientais e Eslavas da FL/UFRJ. Foi monitora das
disciplinas de História das Artes Visuais II, Historiografia da Arte II e Arte Oriental.
919
AS METÁFORAS DO VENTO EM HAYAO MIYAZAKI1
Kamilla Medeiros do Nascimento - UFC
RESUMO: O animador e diretor japonês Hayao Miyazaki encanta com seus filmes e é
considerado conceituado no cinema de animação mundial. O objetivo deste trabalho é
compreender as faces do “vento” nos filmes do diretor, se há ou não pertinência desse
elemento em sua obra. O vento carrega significados importantes na própria história do
Japão, como o famoso tufão “kamikaze”, que resguardou a costa nipônica durante as
invasões mongóis. E neste ano, a obra que proporcionou a criação do Studio Ghibli (estúdio
de animação fundado por Hayao Miyazaki e Isao Takahaka, também diretor japonês)
completa seus 30 anos de lançamento, o filme chamado “Kaze no Tani no Naushika
/Nausicaä do Vale do Vento”. Neste filme, o vento toma para si o papel de protetor,
mantendo longe as ameaças ao Vale do Vento. Nos demais filmes do diretor será analisado
se o vento está representado para além do óbvio de seus aspectos físicos, o vento também
como elemento da fantasia, da espiritualidade, do simbólico, enfim, suas metáforas. O
próprio significado de Ghibli (escrito em árabe) pode ser entendido como O Quente Vento do
Deserto do Saara, essa frase parece não ter sentido, mas para Hayao Miyazaki esse sopro
mudaria para sempre a história da animação mundial. A genialidade artística japonesa
estaria ao sabor do vento, que sopra forte na imaginação de milhares de pessoas, alçando
voos longínquos.
Palavras-chave: Hayao Miyazaki, Cinema de animação, Japão, Vento
RESUMEN: El animador y director japones Hayao Miyazaki nos emociona con sus películas,
prestigiado en el mundo de la animación cinematográfica. El objetivo de este trabajo es
conocer los aspectos del "viento" en las películas del diretor, si hay relevancia de este
elemento en su obra. El viento tiene un significado importante en la historia de Japón, ya
que el tifón famoso "kamikaze " que protegía a la costa nipônica durante las invasiones de
los mongoles. Y este año, la obra que llevó a la creación de Studio Ghibli (estudio de
animación fundado por Hayao Miyazaki e Isao Takahaka, también director japonés) celebra
sus 30 años de estreno, la película se llama "Kaze no Tani no Nausicaä / Nausicaä del Valle
Viento". En esta película, el viento toma el papel de protector, manteniéndo alejado las
amenazas para el Valle del Viento. En las otras películas del diretor, se analizará si el viento
está representado más allá de sus aspectos físicos obvios, el viento también como un
elemento de fantasía, espiritualidad, símbolo, por fin, sus metáforas. El significado de Ghibli
(escrito en árabe) se puede entender como el viento caliente del desierto del Sahara, esta
frase parece no tener sentido, pero a Hayao Miyazaki ese golpe cambiaría para siempre la
historia de la animación mundial. El genio artístico japonês sopla con fuerza en la
imaginación de miles de personas, elevando vuelos distantes.
Palabras clave: Hayao Miyazaki, Animación cinematográfica, Japón, Viento
Neste presente trabalho serão apresentadas algumas possibilidades de
sentido (interpretações) que o elemento vento pode simbolizar. Para isso, serão
inicialmente expostas algumas conexões necessárias para a feitura das análises dos
filmes, que serão estes: “Nausicaä do Vale do Vento”, “Meu Vizinho Totoro”, “A
920
viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado” e “Vidas ao Vento”, em ordem cronológica
de lançamento. Conceitos de mitologia serão empregados ao decorrer do texto,
havendo a conexão entre Oriente e Ocidente.
JN / Hayao Miyazaki
Hayao Miyazaki é uma verdadeira lenda viva do cinema de animação mundial.
É reconhecido por seus filmes, conseguindo status de “obra de arte”. Diretor de
diversos filmes de animação, tais como os clássicos “Meu Vizinho Totoro”,
“Mononoke Hime”, “A Viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado”, etc. Nasceu em
1941 em Tóquio, no contexto da II Guerra Mundial, mas apesar disso, a sua família
era rica e vivia em condições privilegiadas para uma época difícil como aquela. Seu
pai, Katsuyiki Miyazaki, trabalhava em uma fábrica que construía peças para os
caças japoneses. Sua carreira inicia-se em 1963, logo após ter se formado em
Ciências Políticas e Economia. Foi trabalhar como estagiário de animação na Toei
Animation (estúdio de animação), e lá conheceu seu parceiro de trabalho, Isao
Takahata. Atualmente, Hayao Miyazaki, tem 73 anos, e em 2013, anunciou sua
aposentadoria dos longas-metragens.
Vento ghibli: o voo da animação japonesa
Foi a partir do lançamento, em 1984, do filme Nausicaä do Vale do Vento2 que
a criação do Studio Ghibli começa a se fazer possível. A história do filme, no entanto,
inicia-se muito antes, em 1982, quando Hayao Miyazaki trabalhava no projeto de um
mangá3 sobre ficção científica. Ambos os formatos contemplam a plenitude artística
do diretor: mundos maravilhosos, complexos, com mensagens pacifistas e
ecológicas, o gosto pela aviação, o protagonismo feminino, entre outros aspectos.
O diretor é conhecido por ter um discurso ambiental forte em seus filmes, e
isso é de grande relevância. O Japão é um dos países asiáticos que mais poluem o
planeta, ao lado da China, segundo pesquisas recentes. Nada mais coerente do que
criticar isso por meio do cinema, de modo educativo e tão belo. Um detalhe
interessante é saber que parte da personalidade da protagonista do filme, foi
921
inspirada na personagem Nausicaä de Homero, em Odisséia, e também a partir de
um conto do folclore japonês, A Princesa que Amava os Insetos (Mushi Mezuru
Hime). Graças ao sucesso alcançado pelo filme, Miyazaki e Isao Takahaka 4
fundaram em 15 de junho de 1985, o Studio Ghibli5, estúdio de animação japonês,
renomado mundialmente. O significado de Ghibli (escrito em árabe) pode ser
entendido como O Vento Quente do Deserto do Saara, é o nome do vento siroco,
nascido no mediterrâneo. Também pode remeter ao avião italiano “Caproni Ca.309
Ghibli”, usado na Segunda Guerra Mundial. Não deve ser à toa que vento e avião
constroem juntos a simbologia do nome do estúdio.
A iminência do sopro: conexões de significados
“Quem viu o vento? Eu não vi, você também não. Mas quando as folhas estão
quase caindo, é porque o vento está passando.” Trecho de uma fala do protagonista
de Vidas ao Vento / Kaze Tachinu, último filme do diretor, de 2013.
Entender os ventos é antes de tudo conhecer as suas origens e suas relações.
O simbolismo do vento apresenta diversas faces, podendo representar, ao mesmo
tempo, a força bruta, indicativo de sua violência e sua cegueira, e em paralelo, tendo
como sinônimo, o sopro, em toda a sua sutileza. Vamos tentar conhecer algumas
das variadas conexões que o vento estabelece simbolicamente.
De acordo com Jung, em seu livro “A natureza da psique”, a alma era uma
espécie de força vital do corpo, o sopro da vida. É interessante que nesse texto o
autor menciona que em diferentes culturas as palavras ‘vento’ e ‘alma’,
etimologicamente, se assemelham. Desde o alemão “seele” e do inglês “soul”, por
exemplo, existe uma relação com a palavra grega aiolos que significa movimento, ou
seja, a alma seria uma força em movimento, que nos dá vida. Podemos tomar
também como exemplo, os nomes latinos para espírito (animus) e para alma (anima)
que tem o mesmo significado de anemos, vento em grego. As conexões são muitas,
ainda em grego, podemos encontrar as palavras pneuma, que designa o vento e o
espírito, concomitantemente; psycho (soprar), psychos (fresco), psychros (frio), etc.
Enfim, todos esses nomes dados à alma ou que possuem alguma relação só
reforçam, ainda mais, o sentido de “ar em movimento”.
922
Quanto ao Oriente, na mitologia hindu, o vento, Vayu, é o sopro cósmico, o fio
que une todos os mundos. Já na Bíblia, os ventos são o sopro de Deus, que através
disso ordenou o caos e animou o primeiro ser. Assim como os anjos, os ventos são
mensageiros, manifestações divinas que nos comunicam desde a mais doce brisa
até a tempestuosa ventania. De acordo com o taoísmo dos Han, no princípio existia
nove sopros que com o passar do tempo, misturaram-se e formaram o espaço físico.
O espaço intermediário entre o céu e a terra é preenchido por um sopro chamado k’i.
O conceito utilizado no Japão para simbolizar espaço intermediário, intervalo
espaço-temporal, etc, chama-se Ma Ǎ. Michiko Okano (2007, p. 16) afirma que “a
noção do Ma é muito antiga e remonta ao espaço vazio de conexão com o divino”.
Se estamos tratando de intervalo, podemos conceber que a respiração em
seu ritmo dual, pode estar relacionada ao tema. Ora, segundo Chevalier (2012, p.
778) para os taoístas “as duas fases respiratórias são a abertura e o fechamento da
porta do Céu, respectivamente yang e yin. Respirar é assimilar o poder do ar; se o ar
é símbolo espiritual do sopro, respirar é assimilar um poder espiritual.” Ou seja, a
partir disso podemos entender os ventos também como intervalos, pausas
necessárias no preenchimento do espaço.
O silêncio também é uma forma de pausa, intervalo, segundo Eni Orlandi
(1997). Para a autora, o silêncio adota múltiplas formas, ele pode atravessar as
palavras, ele existe entre as palavras, ele indica que o sentido de algo pode ser
outro ou pode estar presente naquilo que nunca se diz. Podemos notar semelhanças
entre o silêncio e o vento, quando dizemos que o silêncio não pode ser observado
de maneira verbal, ele é “invisível” assim como o ar.
Ao lado do silêncio está o som, e juntos formam a onda sonora, que é
constituída de um sinal (frequência) que, por sua vez, se apresenta e se ausenta.
Para Wisnik (2007), sem essas interrupções (intervalos) o som não duraria, tão
pouco começaria. Podemos entender a onda sonora, de um modo simples, como
partidas e contrapartidas de movimentos, como impulsos e repousos. Em um outro
trabalho, pesquisei sobre os sentidos do silêncio no rádio, os discursos que
podemos observar. Aproveitando isso, comento a relação que a onda sonora possui
com taoísmo:
923
A partir disso, pode-se observar que o som é movimento, essencialmente
complementar, sempre partindo para algum lugar e ao mesmo tempo, o
contrário. (...) Um exemplo claro dessa representação é o círculo do Tao,
contendo o yang (ímpeto) e o yin (repouso). Vale salientar que o próprio
símbolo taoísta possui uma onda, representando o movimento do som como
a vida em harmonia (NASCIMENTO, 2013, p. 03).
Sobre o poder invisível do vento, não podemos esquecer de comentar sobre o
ar. Um dos quatro elementos da natureza, segundo as cosmogonias mais antigas, é
ativo por excelência, masculino e símbolo da espiritualização. Mais uma vez, temos
a representação do reino do sutil e do espaço intermediário entre céu e terra com
suas diversas camadas de possibilidades. O que o vento ‘sopra’ voa, por isso, é
natural que as asas se relacionem com o ar. Simbolizam o alçar voo da alma, a
leveza espiritual, a liberdade. Por consequência, os pássaros e as borboletas,
também possuem conexão com os ares. A fênix, por exemplo, combina os
elementos ar e fogo, e é símbolo da alma imortal. Temos, portanto, o fogo como
semelhante ao espírito, ao divino, assim como, o vento. Ser alado também está nos
domínios do onírico. Na mitologia grega, Hermes, o deus das estradas, das viagens
e mensageiro do Olimpo, possuía asas nos calcanhares, caracterizando, assim, o
voo noturno dos sonhos.
Bem, depois de tecermos uma exaustiva rede de significados, podemos
entender que tanto o ar, o sopro, o silêncio, o som, as asas, os pássaros, o espírito,
a alma, a respiração, o vazio, os intervalos, etc, constituem alguns dos muitos
sentidos que o vento possui. A seguir, eles nos serão úteis no processo de
vislumbrar as possíveis metáforas encontradas na obra cinematográfica de Hayao
Miyazaki.
Sutilezas no ar: metáforas em Hayao Miyazaki
Neste momento, irei tecer comentários sobre as representações do vento a
partir de alguns filmes do diretor. No entanto, não tenho a pretensão de esboçar
inúmeras análises, estarei, apenas, tentando trabalhar alguns exemplos. Podemos
começar com clássico aqui já mencionado, “Nausicaä do Vale do Vento”, o segundo
longa-metragem dirigido por Miyazaki. Já de início, o próprio nome do filme invoca a
presença do elemento ar. A história se passa mil anos após a Guerra dos Sete Dias
de Fogo, quando nações inteiras padeceram devido às substâncias tóxicas
924
produzidas por elas mesmas. A personagem principal é a princesa Nausicaä, que
protege seu povo das nações invasoras e da constante expansão do Mar Podre
(Floresta Fukai), onde há plantas com um tipo de gás nocivo aos seres vivos, no
entanto, os insetos parecem ter resistência ao gás. Diante disso, no desenrolar da
história, a princesa toma para si a missão de descobrir a causa e a função da
floresta e, assim, solucionar o mistério.
Figura 1: Cena do filme. O vento volta a soprar no Vale, e a vida continua.
O Vale do Vento situa-se às margens do mar, e de lá provém o vento
auspicioso que protege o povoado da expansão da floresta de fungos, que, como
podemos supor, se alastra através do ar. Ou seja, o sopro do mar se relaciona com
a água como símbolo de purificação. Na Ásia, a água é manifestação da vida, da
regeneração corporal e espiritual, segundo Chevalier (2012, p.15). Por isso,
podemos dizer que a metáfora do vento neste filme é o de purificador, de tornar a
vida possível. Claro, esse é apenas um dos possíveis aspectos que podemos
observar. Há uma cena do filme que é bastante intrigante. Trata-se de uma das
últimas cenas, quando a heroína Nausicaä consegue salvar o Vale o Vento.
Momentos antes, o vento havia, simplesmente, parado de ‘soprar’, era um mau
presságio, a vida estava em perigo. Retomamos aqui a ideia de intervalo, pausa, e
literalmente o k’i e o Ma estavam abalados, o preenchimento havia sumido, aos
ouvidos, ao tato, ao olfato e aos olhos (as nuvens estavam paralisadas). A força vital
fora interrompida por alguns instantes.
Outro filme que possui forte evocação aos ventos é o simpático “Meu Vizinho
Totoro”, (
%%1, Tonari no Totoro) de 1988. Quando falamos em evocar,
não necessariamente no sentido físico. O personagem Totoro (que são três, um
925
gigante, um médio e um menor) são espíritos protetores da floresta, invisíveis,
exceto às crianças de coração puro. As irmãs Mei (6 anos) e Satsuki (10 anos)
mudam-se com seu pai para uma vila rural no interior do Japão, para ficar perto da
mãe adoentada. Animadas, elas brincam ao redor da nova casa, explorando o lugar,
até que a irmã mais nova encontra uma criaturinha. Nota-se que essa criatura é um
dos Totoros e possui a capacidade de invisibilidade (até para as crianças). O vento
está presente nesses detalhes, essa criatura simbolicamente remete ao plano
espiritual e como já dito antes, o espírito é o sopro da vida. Outro aspecto
interessante desse filme, são os momentos de silêncio, e a maneira como o diretor
trabalha isso. Em uma entrevista no ano de 2002, Miyazaki responde ao crítico de
cinema, Roger Ebert, quando este comenta que aprecia os “momentos gratuitos” em
seus filmes, onde as personagens fogem da agitação da narrativa e param por um
instante, pausam para olhar a paisagem, para suspirar, para sentar, etc. O diretor,
em resposta:
Nós temos uma palavra para isso em japonês", disse ele. "Chama-se Ma.
Está lá intencionalmente.” (...) Ele bateu palmas três ou quatro vezes. "O
tempo entre o meu aplauso é o Ma. Se você só tem ação constante, sem o
espaço para respirar, é uma correria só, mas se você parar um momento,
então a construção de tensão no filme pode ter uma dimensão mais ampla.
(Tradução minha).
O que o Miyazaki quis nos dizer é que não devemos ter medo dessas pausas,
desses silêncios. O vento está representado, mais uma vez, nesses aspectos.
Figura 2: Cena do filme. Mei encontra um dos Totoros e o segue, curiosa.
Em “A viagem de Chihiro” (A
AKq
/Sen to Chihiro no Kamikakushi),
2001, ganhador do Oscar de Melhor Filme de Animação, podemos perceber um dos
aspectos do vento em uma cena que a princípio pode passar despercebida. Quando
a personagem Chihiro encontra-se em apuros e é ajudada por Haku, o conselho do
926
rapaz é de que ela prenda a respiração por alguns instantes, pois só assim será
seguro atravessar a ponte, a passagem para o divino. Por que ela precisou prender
a respiração? O que isso tem demais? Bem, já vimos anteriormente que o vento tem
descendência divina. Na mitologia cristã, por exemplo, Deus cria as coisas a partir
do soprar. Sendo assim, a respiração humana, estaria impura, inapropriada para
ambientes sagrados. Segundo Chevalier (2012, p. 851), há um culto eslavo ao deus
Svantevit, e na véspera dessa cerimônia, “o sacerdote varreria o templo, em que só
ele podia penetrar, tomando o cuidado de não respirar. Assim, toda vez que
precisava expirar, corria para a saída para que o sopro humano não tocasse o deus
e o maculasse”. Podemos fazer um paralelo com a cena do filme, onde Chihiro ao
expirar seu ar impuro, pode chamar a atenção dos seres divinos ali presentes.
Figura 3: Cena do filme. O momento em que Chihiro perde o fôlego e respira.
Indo adiante, temos um filme de 2004 chamado “O Castelo Animado” ((0
?F / Hauru no Ugoku Shiro). Nele poderemos nos atentar ao aspecto ígneo do
vento. Símbolo de purificação e iluminação, o fogo também pode representar o
coração, em suas paixões. Sendo um órgão espiritual, o coração simboliza, desse
modo, o espírito (que é sopro) e queima. Exemplo claro disso é o personagem
Calcifer, um demônio que fez um pacto com o mágico Howl, e por isso, possui seu
coração (seu espírito), representação do fogo como movimento da alma.
Consequentemente, Calcifer se transforma na força vital do castelo, que sem seu o
calor se desfaz em pedaços.
Por fim, temos “Vidas ao Vento” ( r
/ Kaze Tachinu), filme de
despedida do diretor, lançado em julho de 2013. A história conta a vida do designer
de aviões Jiro Horikoshi, que sonha em voar e desenhar aviões desde criança. Ao
que parece, Hayao Miyazaki se despede dos longa-metragem em grande estilo, e o
927
filme todo é repleto de metáforas aéreas, desde o seu título “o vento se eleva” até as
cenas com aviões. Neste filme, o aspecto onírico do vento está exaltado. Como dito,
o símbolo das viagens são as asas, forças criadoras, capazes de impulsionar os
sonhos. Ao avião lhe é concedido o dom da levitação, e não podemos confundir o
avião com o cavalo, ele é o Pégaso. De acordo com Chevalier (2012, p. 104), “dirse-á que sua decolagem pode exprimir uma aspiração espiritual, a da liberação do
ser de seu ego terreno através do acesso purificador às alturas celestes”.
Há também um outro aspecto, o da água. Por muitas vezes, o vento ‘soprava’
nas águas, anunciando sua passagem, com o intuito de aproximar. Nesta cena da
fonte, onde a personagem Naoko está, e que perto dali Jiro se aproxima, temos a
sensação de que o vento está guiando esse encontro. Para Jung, a fonte simboliza a
imagem da alma, como origem de energia espiritual. Ainda nesse mesmo contexto
da cena, o casal se avista e a moça no impulso de felicidade comenta que havia
feito um pedido à fonte para que eles se reencontrassem. Não apenas ali, mas há
vários outros momentos nos quais o vento proporcionou encontros e desencontros,
sejam como brisas ou ventanias.
Figura 4: Cena do filme. Naoko próxima a uma fonte.
Considerações finais: o tomar fôlego
Pois bem, tentei nesse trabalho, pincelar algumas metáforas, representações
do elemento vento (aspecto espiritual, divino, purificador, criador, destrutivo,
comunicador, etc) em alguns filmes do diretor e animador Hayao Miyazaki. Deixo
claro que tais comentários são apenas uma parcela dos muitos sentidos possíveis
de análise, há um vasto campo de interpretações, sobretudo, quando envolvemos o
928
Oriente, que em toda a sua riqueza cultural, facilitou o tecer dessa rede simbólica.
Talvez seja raro pararmos para pensar o quanto estamos imersos em ar,
preenchidos de vazios e pausas (necessários), na oscilação do movimento da nossa
respiração. Salientamos, com isso, a importância do elemento vento para o cinema
do diretor.
E como posto no final do mangá de “Kaze no Tani no Naushika” e do filme
“Kaze Tachinu”, nós temos que viver. Que os ventos continuem soprando.
Ś
#
Notas
1
Glaudiney Moreira Mendonça Junior, orientador do trabalho e professor mestre de Narrativas, Design
de Jogos e Mitologia do Curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC, email: glaudiney@virtual.ufc.br.
2
Título original, em japonês: ǚ!ư!A9>; / Kaze no tani no Naushika.
3
Histórias em quadrinhos japoneses.
4
Cineasta, animador, roteirista e produtor japonês. Diretor de filmes como “O Cemitérios dos
vagalumes”, “Only Yesterday”, “Pom Poko” e “Meus vizinhos, os Yamadas”.
5
Título original, em japonês: aR9p!)/ / Kabushiki-gaisha Sutajio Jiburi.
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Sakakibara, Iemasa Kayumi e outros. Japão: Top Craft, 1984. 1 filme (117 min), son., color.,
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Studio Ghibli, 1988. 1 filme (86 min.), son., color., 35mm.
A VIAGEM de Chihiro. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Roteiro: Hayao
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Sawaguchi, Tsunehiko Kamijō, Takehiko Ono, Bunta Sugawara e outros. Japão: Studio
Ghibli, 2001. 1 filmw (124 min.), son., color., 35mm.
O CASTELO Animado. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Roteiro: Hayao
Miyazaki. Dubladores: Chieko Baisho, Takuya Kimura, Akihiro Miwa e outros. Japão: Studio
Ghibli, 2004. 1 filme (118 min.), son., color., 35mm. Baseado na obra “Howl's Moving Castle”
de Diana Wynne Jones.
VIDAS ao Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Roteiro: Hayao
Miyazaki. Dubladores: Hideaki Anno, Miori Takimoto, Hidetoshi Nishijima, Masahiko
Nishimura, Steve Alpert, Morio Kazama, Keiko Takeshita, Mirai Shida, Jun Kunimura,
Shinobu Otake, Nomura Mansai e outros. Japão: Studio Ghibli, 2013. 1 filme (126 min.), son.,
color., 35mm. Baseado no mangá “Kaze Tachinu” de Hayao Miyazaki.
Kamilla Medeiros do Nascimento
Estudante de graduação em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela
Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista de extensão na Rádio Universitária FM
107,9, assistência de produção. Organizadora do Cineclube de Animação “Cinuca”, na Casa
Amarela Eusélio de Oliveira (UFC). Integrante do grupo do Laboratório de Estudos e
Pesquisas Orientais (LEPO), na Universidade Estadual do Ceará – UECE.
930
CHÁ: A EXPERIÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM A CULTURA ORIENTAL
Rebeca Chiarini Alcântara - UNESP
RESUMO: Esta pesquisa busca aproximar os conceitos de “experiência” trazidos na
modernidade e contemporaneidade pelos filósofos Walter Benjamin, John Dewey e Jorge
Larrosa ao pensamento antigo oriental, mais especificamente o Taoismo e o Zen. Estas
comparações não foram feitas apenas a partir de seus ideais, mas também através de seus
desdobramentos culturais e estéticos. A cerimônia do chá foi escolhida nesta pesquisa como
figura que ilustra estes princípios, por ter sido apontada por Kakuzo Okakura como símbolo
do conceito de vida e arte oriental, e também por ter feito parte de minha vivência em um
curso realizado no Brasil. Tanto na estética japonesa e na cerimônia do chá, assim como
nas diversas definições de experiência, há a valorização da apreensão pessoal e subjetiva
de cada indivíduo acerca do mundo como fonte de conhecimento. Estas noções se
contrapõem às noções ocidentais de verdade neutra e objetiva presentes no discurso lógicoracional.
Palavras-chave: experiência, cerimônia do chá, cultura japonesa, pensamento oriental
ABSTRACT: This research aims to make connections between the modern, contemporary
concepts of “experience” created by the philosophers Walter Benjamin, John Dewey and
Jorge Larrosa and the eastern thought, specifically Tao and Zen doctrines. These
connections were made not just by the analysis of eastern ideals but also through
understanding of its aesthetics and culture. The tea ceremony have been chosen in this
research as an illustration of these principles because it was appointed by Kakuzo Okakura
as a symbol of eastern art and life, and also because it has been a part of my own
experience in a course that I took in Brazil. In Japanese aesthetics and in tea ceremony as
well as in the concepts of “experience”, we can see an acceptance of the personal
apprehension of the world as a source of knowledge. That opinion is opposite to the main
western notions that defend the neutral and objective truth.
Keywords: experience, tea ceremony, Japanese culture, eastern thought
As faces da experiência
Em linguagem corrente, experiência refere-se ao ato ou efeito de
experimentar ou de sofrer algo. O Michaelis atribui como um de seus significados o
“conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida“. A ideia de
experiência habitualmente nos remete à noção de aprendizagem, por meio de algo
vivido empiricamente, ou seja, anterior a teorias e métodos organizados. Experiência
também faz alusão ao sentido de competência e habilidade. Aquele que se dedicou
por um longo período a determinado assunto, conhecendo-o em sua abrangência e
dominando suas minúcias, torna-se referência para aqueles que são principiantes,
adiquirindo prestígio e reputação pelo acúmulo de saberes e situações que travou
931
durante o percurso do tempo. Experiência também diz respeito, numa noção
científica e moderna, à demonstração e prova. É entendida como a apreensão
visível e concreta do pensamento científico, através da utilização de aparatos e
instrumento próprios.
Ao buscar as raízes etimológicas da palavra, encontramos a raiz latina
experiri que significa provar, experimentar. A raiz indo-européia per, relaciona-se a
ideia de travessia, prova, risco. Já o radical ex, é o mesmo presente em exterior,
estrangeiro, estranho. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de
viajar. De fara também deriva Gefahr, perigo. “Tanto nas línguas germânicas como
nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia
e perigo” (LARROSA, 2002, p. 25). Deste modo, podemos compreender a
experiência como um encontro com algo exterior a si, sendo esta passagem
marcada pelo risco e pela incerteza, por se tratar de algo desconhecido.
Em Filosofia, experiência significa o conhecimento transmitido pelos sentidos,
ou seja, a apreensão sensível da realidade externa (MEINERZ, 2000, p. 20). Para o
pensamento platônico, nossos sentidos apenas nos dão acesso a vagas e volúveis
aparências pois a verdade primeira se encontra no “mundo das ideias”, não no
“mundo das coisas”. Assim como para os prisioneiros de uma caverna, as sombras
que lá dentro se projetam parecem reais, todavia, são apenas simulacros, produtos
de sua própria sensibilidade. No discurso filosófico, a verdade objetiva só pode ser
alcançada por meio da razão, ou seja, por meio de um sistema de argumentação
que pode ser comprovado, que é neutro e objetivo e independente de nós. Esta
distinção entre mundo sensível e inteligível equivale, em parte, à distinção entre
experiência e razão (MEINERZ, 2000, p. 20).
Numa aliança entre fé e razão, o pensamento medieval coloca experiência e
ciência como “campos dicotômicos, impossíveis no mesmo sujeito” (MEINERZ, 2000,
p.
21).
Tanto
a
natureza
como
o
homem
são
criações
divinas
mas
contraditoriamente, em sua visão, não são belos ou bons, mas apenas matéria
mortal e imperfeita. Segundo a Igreja, o homem é fruto do pecado original, possui
em seu cerne a marca intrínseca de pecador. Deste modo, o que cabia ao sujeito
medieval era seguir o bem através das normas de conduta, em direção ao paraíso
além túmulo. Neste pensamento que distingue o bem e o mal, o homem “conhece o
932
mal por experiência, mas só pode conhecer o bem por ciência” (MEINERZ, 2000,
p.22).
Com a formulação do projeto da ciência moderna por Francis Bacon no
século XVI fica claro que a experiência é apenas válida no sentido de experimento,
ou seja, como comprovação palpável e visível de um pressuposto teórico. No
Ocidente, tanto a ciência moderna, o pensamento filosófico clássico e a doutrina
cristã distanciam o sujeito e sua absorção direta do universo como fonte digna de
conhecimento, preservando a convicção em uma verdade única e independente de
nós. Mesmo depois de séculos, após tantas transformações sociais, ainda somos
ensinados a pensar predominantemente desta maneira. Desta forma acabamos
desconsiderando a experiência como fonte de conhecimento e como processo
autêntico de nos relacionarmos com o mundo.
Somente no final do século XIX e no início do século XX é que os autores
ocidentais trazem novos olhares para o sujeito, neste contexto surgem os conceitos
de “experiência”, trazidos pelos filósofos Walter Benjamin e John Dewey na primeira
metade do século XX e por Jorge Larrosa na contemporaneidade. Entretanto,
podemos perceber diversas semelhanças entre as noções presentes nos conceitos
de “experiência” e o pensamento oriental, tanto através de suas ideias como de sua
estética. Para não falarmos do Oriente somente de uma perspectiva distanciada e
abrangente, tomaremos como figura a cerimônia do chá (também conhecida por
chado ou chanoyu), tradição da cultura japonesa que foi reconhecida pelo escritor
Kakuzo Okakura como símbolo de arte e vida oriental e que também fez parte de
minha própria experiência através de um curso teórico-vivencial realizado na Casa
de Cultura Japonesa da Usp representada pela Escola Urasenke. Traçaremos tais
relações entre experiência e cultura oriental nos baseando em autores como Kakuzo
Okakura em O livro do chá, Claude Lévi-Strauss em A outra face da lua e Junichiro
Tanizaki em Em louvor da sombra e Roland Barthes em O império dos signos.
Utilizamos termos como “oriental” e “ocidental”, “Oriente” e “Ocidente” como
generalizações necessárias para a compreensão destas relações. Ainda que se
tenha consciência do perigo das generalizações, já que dentro delas pode haver
inúmeras excessões, nos atentaremos para os aspectos dominantes destas culturas
nos baseando nos autores em questão.
933
O tempo da experiência
O homem acumula saberes. Acumula porque não pode permanecer no zero.
Da utilização destes conhecimentos depende a sua sobrevivência, e são eles quem
criam uma teia na qual toda a humanidade se encadeia. O homem que descobriu o
fogo, reune-se com seus companheiros para partilhar a nova descoberta. Estes
alumbram-se com esta façanha desconhecida que mais lhes parece um ato de
magia, e ao observarem e imitarem os movimentos de seu “professor”, são agora
capazes de fabricar e utilizar a chama da vida. Cada descoberta perpetua-se na
forma de tradição. Ao nascer agregamos os conhecimentos de nossos pais para
podermos fazer mais. O que domina o fogo descobre nele uma nova possibilidade:
não somente o protege do frio e coze seu alimento, mas o ajuda a moldar materiais
para seu uso e benefício, e assim continua a escrever uma história da qual todos
nós participamos.
Essa experiência que se articula em comunidade, chamada de Erfahrung por
Benjamin, transmite-se de pessoa a pessoa através da fala (1987, p. 198). O
ambiente da Erfahrung é um ambiente artesanal, onde as relações se tecem
manualmente, através do encontro, do ouvir e do gesticular. Para Benjamin, essa
transmissão de saberes é o que compõe a narrativa. O narrador é a figura do
homem sábio, que conta histórias de viagens a terras distantes e de tempos remotos,
dá conselhos e instruções práticas. O ouvinte, ao escutar, esquece-se um pouco de
si mesmo e absorve tais narrativas, incorporando em si a experiência de seu povo. A
narrativa não é rígida e estática como um relatório, mas uma arte fluida, que se
modifica de transmissão em transmissão, e “assim se imprime na narrativa a marca
do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1987, p. 205). A
gravação destas marcas não pode ser evitada pois a narrativa acompanha o fluxo da
vida, que nunca cessa. A experiência enfatizada por Benjamin é a coletiva, através
dela o passado conecta-se com o presente e o indivíduo encontra-se como parte de
um conjunto maior.
Benjamin lamenta a perda da experiência nos tempos que correm, pois,
segundo ele, de nada adianta haver um patrimônio histórico se não nos sentirmos
ligados a ele. A quebra da experiência se deve ao esfacelamento das sociedades
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artesanais e dos modos de vida que elas proporcionavam. A modernização, a
industrialização e as guerras, tornaram o homem mais rico em artefatos, mas muito
mais pobre em experiências. O soldado que volta da guerra quer esquecer o que
viveu lá em vez de passar adiante. A habilidade de intercambiar experiências já não
se cultiva mais e o que resulta disto é um indivíduo que hoje sente-se isolado,
apartado de seus semelhantes, que vive em edifícios mas parece não dividir nada
com os outros além de paredes. A Elerbnis, a experiência individual, é a busca do
indivíduo solitário por esse sentido de pertencimento, ainda assim, ambas
experiências possuem o mesmo caráter: o rompimento do isolamento e a busca por
um sentido de religação.
Apesar desse aspecto saudoso em relação à experiência, Benjamin também
alerta para o seu lado negativo quando esta é usada como fonte de autoridade e
comodismo. O mais velho, por ser mais vivido que o jovem, tenta lhe impedir de
sonhar e experimentar, acreditando já saber como as coisas funcionam e as ditando
como verdade. Esta característica de estagnação é reversa à experiência, que é um
processo de constante construção. Benjamin diz que a experiência deve servir como
matéria prima para a criação, para a religação do sujeito com sua história, e não
para o impedimento de uma reconstrução do presente (1987, p.114).
Nas ideias trazidas por Benjamin, Dewey e Larrosa, há um entendimento da
experiência como processo intrísenco na relação do indivíduo com o mundo que o
cerca. Segundo Dewey, ela “ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo
com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver” (2010, p.
109). Há a concepção da experiência como um aprendizado que instaura uma
transformação e um aprendizado ainda que Benjamin, ao contrário dos outros, não
chegue a falar em termos de “educação”, mas sim naqueles saberes distribuídos
pela tradição cultural. O conhecimento da experiência, é um saber finito, pessoal,
subjetivo e “ligado à existência de uma pessoa ou de uma comunidade”, ao contrário
da ideia científica de conhecimento como algo universal e objetivo (LARROSA, 2002,
p. 27).
A experiência, para Larrosa, é o que nos passa, o que nos acontece e o que
nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca (2002, p. 21). Trata-se,
em primeiro lugar, de um encontro, de uma relação com algo exterior a nós mesmos.
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Esta relação pode acontecer em qualquer lugar ou circunstância mas ao mesmo
tempo, pode não acontecer. Para viver uma experiência não basta presenciar um
acontecimento, é preciso tornar-se disponível como uma “superfície sensível”, sair
dos automatismos e das certezas habituais e abrir-se para que algo novo lhe
penetre. Assim, quem define a experiência não é o acontecimento em si, mas o
sujeito que a vive. “Duas pessoas ainda que enfrentem o mesmo acontecimento não
fazem a mesma experiência” (LARROSA, 2002, p. 27).
Todavia a experiência não se faz mais tão presente nos dias de hoje.
Segundo Larrosa, num mundo onde tantas coisas acontecem, a experiência é cada
vez mais rara. Ele aponta para o modo de vida moderno e capitalista que nos afasta
da disponibilidade necessária à experiência, nos estimulando a ser apressados, a ter
pouco tempo, a ser informados e cheios de opinião (LARROSA, 2002, p. 24). A
informação e a opinião não permitem que se viva uma experiência pois estas armam
o homem de certezas e conceitos, não deixando lugar para que algo inusitado lhe
aconteça.
Acumular
dados
e
opiniões
acerca
de
algo
não
pressupõe
necessariamente que algo lhe toque. Em função disso, Larrosa critica a expressão
“sociedade da informação” utilizada equivocadamente como “sociedade do
conhecimento e aprendizagem” pois para ele a sociedade da informação é uma
sociedade onde a experiência é impossível (LARROSA, 2002, p. 22).
A experência precisa de tempo, ela não acontece de repente, nem se dá por
choques. Se não há tempo, vivemos com pressa, pulando de uma coisa para a outra,
sem cultivar este espaço onde se digere o que está sendo visto e vivido. Neste
sentido, Dewey expõe a sua crítica ao nosso excesso de ação:
O gosto pelo fazer, a ânsia pela ação, deixa muitas pessoas com
experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais.
Nenhuma experiência isolada tem a oportunidade de se concluir, porque o
indivíduo entra em outra coisa com muita precipitação. A resistência é
tratada como uma obstrução a ser vencida, e não como um convite a
reflexão. O indivíduo passa a buscar situações em que possa fazer o
máximo de coisas no prazo mais curto possível (DEWEY, 2010, p. 123).
Segundo Larrosa, nos relacionamos com os acontecimentos sempre “do
ponto de vista da ação” (2002, p. 23). Não temos silêncio, nem espera, nem
memória. E para ele, o sujeito da experiência não se define por sua atividade, mas
por sua receptividade, disponibilidade e abertura:
936
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para
escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar;
parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os
ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo
e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).
O que distingue a experiência dos outros tipos de conhecimento é o que
acontece com o próprio sujeito que a vive: sua capacidade de auto-transformação
(LARROSA, 2002, p. 26). No momento em que se expõe, o sujeito, assim como uma
“superfície sensível”, é tocado e algo lhe acontece. Tira uma conclusão, cria algum
novo entendimento e logo é transformado por este acontecimento, que agora faz
parte de si, manifestando-se por sua “ética (um modo de conduzir-se) e estética
(estilo)” (LARROSA, 2002, p.27). Tais experiências não acontecem de maneira
passiva pois, segundo Dewey, para que haja experiência é necessária a participação
ativa do sujeito. As percepções não são reconhecimentos que se imprimem
automaticamente em sua consciência, mas atos constantes de criação, feitos de
maneira particular no interior de sua mente.
Larrosa e Benjamin opõem suas ideias de experiência à ciência - seja porque
ela se baseia numa premissa de objetividade e neutralidade, que para Larrosa é
contrária ao caráter pessoal e subjetivo da experiência, ou como para Benjamin, por
ela ter acarretado no rompimento das sociedades artesanais e consequentemente
nas suas relações íntimas e domésticas, que proporcionavam uma interrelação entre
as experiências de cada geração. Dewey não se opõe à ciência, mas tampouco
compreende a experiência como um processo meramente racional. Para ele, a
experiência é um exercício de criação de sentido que envolve o intelecto, o emotivo
e o prático, trabalhando simultaneamente através da consciência do ser que a vive.
O ser centrípeto e o ser centrífugo
As sociedades se desenvolveram por caminhos distintos. Singulares foram as
suas condições, os seus cenários, seus desafios, suas paisagens. Diferentes
também foram as maneiras como responderam a cada situação, os caminhos e
conclusões a que chegaram. Cada povo possui uma história para contar, é dono de
937
uma singularidade que o caracteriza, relacionada com tudo o que viveu. Os saberes
que vão sendo elaborados em cada experiência acumulam-se, como na Erfahrung,
para serem incorporados pelos próximos membros criadores. Organizam-se não só
de forma discursiva, mas em feição estética. Suas cores e formas talvez nos contem
mais a respeito de si do que qualquer explicação verbal, pois “a vida é uma
expressão, e nossos atos inconscientes são a constante traição de nossos
pensamentos mais íntimos” (OKAKURA, 2008, p. 42).
Segundo o antropólogo Claude Lévi-Strauss, os filósofos ocidentais vêem
duas grandes diferenças entre o seu pensamento e o oriental pois este se
caracteriza por uma dupla recusa. Em primeiro lugar, pela recusa do sujeito,
negando o que para o ocidente constitui uma “evidência primeira”, e cujas doutrinas
tentam demonstrar seu “caráter ilusório” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). O
pensamento oriental critica a relação eu-mundo, tida como separação sujeito-objeto,
não porque estes sejam o mesmo, mas porque influenciam-se de tal maneira que é
impossível considerá-los entidades separadas e independentes. O homem que
percebia-se como um ser-mundo, era um homem que reconhecia-se no tronco das
árvores, no vôo dos pássaros e na chuva tempestuosa. Via se como parte de um
misterioso quebra-cabeça do qual todos os elementos estavam encadeados e ele
era apenas uma peça.
Entretanto, esta recusa do sujeito não implica o seu anulamento, mas, como
propõe Lévi-Strauss, em perceber que a maneira como Oriente e Ocidente
concebem o sujeito é totalmente distinta. O sujeito ocidental coloca-se como um ser
centrífugo: tudo parte dele. É o sujeito pleno e farto, que espalha suas flechas ao
redor de si, podendo ser relacionado ao sujeito moderno e contrário à experiência,
segundo Larrosa, aquele “que se relaciona com os acontecimentos sempre pelo
ponto de vista da ação” (2002, p. 24). Já o oriental mais parece centrípeto: é o lugar
que recebe e acolhe todo o seu meio circundante, é “superfície sensível” e “território
de passagem”, como o indivíduo da experiência (2002, p.19).
O sujeito centrífugo ocidental, em sua noção precisa e delineada de
individualidade, vê-se num lugar distanciado, crê ser destacado e isolado dos
demais. Sua relação com a natureza é não a de integração ou cooperação, mas a
de contraste e oposição Busca, neste confronto, ser um agente transformador,
938
atribuindo à natureza a tarefa de servir-lhe como recurso a ser explorado em prol de
seus próprios interesses. Neste ponto Lévi-Strauss faz uma interessante
observação: conta que nas populações estudadas por ele e pelos seus colegas
etnólogos não existe a palavra “trabalho”, não no sentido a que a conhecemos. A
nossa maneira de supor o trabalho implica em uma “relação inteiramente ativa de
um lado, o do homem, e passiva de outro, o da natureza”. Em outras civilizações, o
trabalho assume um caráter de cooperação entre homem e natureza, na qual cada
um dá um pouco de si. Estes trabalhos assumem um verdadeiro valor poético,
“justamente porque representam uma das formas de comunicação entre homem e
natureza” (LÉVI-STRAUSS, p. 39).
A segunda recusa oriental é a do discurso. O Ocidente busca desde os
gregos encontrar axiomas e postulados que expliquem de modo indubitável a
natureza dos fatos. Para o Oriente “todo discurso é irremediavelmente inadequado
ao real” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Conforme nos conta Okakura numa estória
Zen, nada é real exceto aquilo que percebemos através de nossos próprios olhos,
ou seja, aquilo que percebemos através de nossa experiência:
Eno, o sexto patriarca, viu certa vez dois monges observando a bandeira de
um pagode tremulando ao vento. Um deles disse: “É o pagode que se
move”; o outro disse: “É a bandeira que se move”. Mas Eno explicou-lhes
que o verdadeiro movimento não era nem do vento nem da bandeira, mas
de algo do interior de suas próprias mentes (OKAKURA, 2008, p. 63).
O oriental preferia formular seus conceitos a partir do contato com a vida e
não moldar a vida através de premissas idealizadas. Nesse caso, a “sabedoria
oriental” nada mais é que a capacidade de olhar para a natureza e tentar aprender
com ela. Em tempos passados, o homem observou as mudanças sazonais, os
movimentos estelares, a natureza cíclica dos seres, a pulsação inerente a tudo o
que vive, e concluiu que tudo muda. Há somente o devir, a constante mutação das
formas. Mas, se o absoluto é o relativo, como classificar? Pois “definição é sempre
uma limitação, “fixo” e “imutável” são apenas termos que expressam interrupção de
crescimento” (OKAKURA, 2008, p. 57). Segundo o físico Fritjof Capra, os chineses
antigos expressavam suas ideias mais por padrões orgânicos do que por definições.
Seus símbolos eram mais uma gestalt – um complexo conjunto de imagens e
emoções com um forte poder sugestivo - que um signo abstrato de um conceito
claramente delineado (CAPRA, 1989, p. 88). Ao “entender” racionalmente algo
939
estamos atribuindo um sentido único a tal situação, excluindo suas demais
possibilidades. Já os sábios orientais, “nunca apresentavam seus ensinamentos de
forma sistemática. Expressavam-se por meio de paradoxos, pois temiam dizer
meias-verdades” (OKAKURA, 2008, p. 54). Compreender que a existência é
complexa, não é só isto ou aquilo, mas que possui múltiplas faces ao mesmo tempo,
é uma de suas características. A dualidade racional coloca as extremidades em
confronto, o paradoxo as abarca sem rivalidade, preferindo entender o mundo por
um estado ”anterior a todas as distinções, impossível de definir senão pelo fato de
ser assim” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 75).
Essas qualidades que construíram o homem na “chegada”, centrípeto,
definido pela experiência, e na “partida”, centrífugo, definido por si próprio, podem
ser vistas não apenas em suas formas institucionais e em seus princípios formulados,
mas em gestos menores e talvez desapercebidos mas, que por sua inconsciência,
talvez revelem ainda com mais força o funcionamento de suas mentes. Lévi-Strauss
conta que no Japão ferramentas como serras e plainas foram empregadas com um
uso invertido: para realizar o artesão puxa a ferramenta para si em vez de empurrála para frente. Do mesmo modo, as costureiras trazem o tecido em direção à agulha,
ao invés de fincá-la na trama (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 84). Roland Barthes, que
viajou ao Japão em 1970, enxergou nossas posturas de vida explícitas nos
instrumentos que usamos à mesa:
Em todos esses usos, em todos os gestos que implicam, os palitos se
opõem à nossa faca (e a seu substituto predador, o garfo): eles são os
instrumentos alimentares que se recusam a cortar, a espetar, a mutilar, a
furar (gestos muito limitados, rechaçados no preparo da comida: o peixeiro
que esfola diante de nossos olhos a enguia viva exorciza, de uma vez por
todas, num sacrifício preliminar, o assassinato da comida); pelos palitos, a
comida não é mais uma presa que violentamos (carnes sobre as quais nos
encarniçamos), mas uma substância harmoniosamente transferida; ele
transforma a matéria previamente dividida em alimento de pássaro, e o
arroz em onda de leite; maternais, conduzem incansavelmente o gesto da
bicada, deixando a nossos hábitos alimentares, armados de lanças e facas,
o da predação (BARTHES, 2007, p. 26-28).
O chá, o tao e o zen
O chá, bebida feita à base da planta da espécie Camellia Sinensis, mas que
em linguagem corrente empresta o nome para as demais infusões, é nativa da China
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e foi descoberta há mais de 5000 anos. O chá era conhecido por suas propriedades
medicinais e utilizado como remédio, afim de evitar fadiga, restaurar a visão, deleitar
a alma – qualidades que faziam dele quase um “elixir da imortalidade” (OKAKURA,
2008, p. 43). Era muitas vezes aplicado em forma de pasta diretamente no corpo, ou
era ingerido pelas folhas cozidas. Demorou séculos para que se desenvolvem
técnicas de desidratração, oxidação e secagem, a fim de refiná-lo como bebida. O
chá foi conquistando simpatia e se espalhando pela Ásia, logo tornou-se objeto de
desejo e importante item nas transações comerciais. Na China inspirou poetas e
virou entreterimento refinado. No Japão, se tornou método de autocompreensão,
ganhando status de “religião estética” (OKAKURA, 2008, p.29). A cerimônia do chá,
tradição que carrega as dimensões artística, religiosa e social, evoluiu de um ritual
Zen no qual os monges se reuniam perante a imagem de Bodhi Dharma e com
profunda reverência bebiam o chá numa mesma tigela. A chanoyu conforme
conhecemos foi idealizada e organizada no século XVI por Sen Rikyu, o maior de
todos os mestres “chaístas”, sob os princípios “harmonia, respeiro, pureza e
tranquilidade”.
O Ocidente conheceu o Oriente no período das grandes navegações. No final
do século XVI os holandeses trouxeram notícias de uma bebida agradável que se
fazia na Ásia a partir das folhas de um arbusto. Anos depois já havia chegado à
Inglaterra, à França e à Russia. Segundo Okakura, a humanidade de repente se
encontrou numa xícara de chá:
É o único ritual asiático que merece apreço de todos. O homem branco
escarnece de nossa religião e de nossos costumes, mas aceita a bebida
marrom sem hesitar. O chá da tarde exerce hoje importante função na
sociedade Ocidental. No tilintar delicado de bandejas e pires, no roçagar
suave da hospitalidade feminina, na série de perguntas formais em torno do
leite e do açúcar, percebemos que a “veneração ao chá” está
inquestionavelmente estabelecida (OKAKURA, 2008, p. 34).
Ao escrever O livro do chá em 1906, momento histórico em que o Japão via a
acelerada modernização de seu cotidiano, Okakura não buscava abordar os
aspectos técnicos e formais da chanoyu, e sim revelá-la como símbolo do conceito
de arte e vida oriental, a fim de interpretar o Japão para o Ocidente. Nota-se por
vezes um ar defensivo e preocupado em suas palavras, mas percebe-se que não se
trata de uma busca por proteção ou imposição de sua cultura, mas da tentativa de
941
trazer uma compreensão entre ambas as partes, tão necessária para uma
convivência harmoniosa.
No cerne da cerimônia do chá está o Zen, seita que surgiu na China no século
VI por uma fusão das correntes budista, taoísta e confucionista, se desenvolvendo
posteriormente no Japão. Okakura enfatiza principalmente a presença o Taoismo na
chanoyu, pois segundo ele, o Zen tornou visível o que o Taoismo idealizou. No
princípio deste pensamento iniciado por Lao-tsé encontra-se o Tao, cujo significado
é algo próximo de “o caminho”, “o curso”, “o modo”, “a natureza”. O Tao é a fonte de
todas as coisas do universo, é a constante mutação que permeia todas as formas
numa cadência rítmica e harmoniosa. Neste processo de transição, nada se repete
ou se firma, pois cada condição é singular e única. Para o Taoismo, saber disso não
implica em se afastar dos fenômenos do mundo, negando criar com eles algum
vínculo, mas pelo contrário, propõe envolver-se com inteireza em cada circunstância
mesmo sabendo que ela é passageira. A partir disso, compreendo que na cerimônia
do chá há a extrema valorização das pequenas coisas. A profunda preocupação que
presenciei em todos os detalhes que irão compor o cenário da cerimônia se justifica
pela frase Ichigo Ichie, literalmente, “uma única vez, um único encontro”. A reunião
para o chá faz-se assim um pretexto para a “contemplação do efêmero” e a chanoyu
um meio cristalizado por meio do qual o homem se integra ao instante.
O Taoismo e o Zen, diferentemente da tendência ocidental e mesmo de
outras correntes orientais, não vêem esta noção de impermanência com
desconfiança. Não se trata de algo falso ou negativo, mas do próprio humor do
universo. De nada adianta irmos contra este movimento, assim, resta-nos apenas
entrar em sintonia com ele:
Mas a principal contribuição do taoísmo para a vida asiática tem sido no
campo da estética. Historiadores chineses sempre se referiram ao taoísmo
como “a arte de estar no mundo”, pois o taoísmo lida com o presente – nós
mesmos. É em nós que Deus encontra a natureza, e o ontem se aparta do
amanhã. O presente é a infinitude movente, a esfera legítima do relativo. A
relatividade busca ajustamento; ajustamento é a arte. A arte da vida
repousa num constante ajustamento ao nosso meio. O taoismo aceita o
mundano conforme é, e diferentemente dos confucianos e dos budistas,
tenta encontrar beleza em nosso mundo de angústia e inquietude
(OKAKURA, 2008, p.59).
Este foco no “agora” contrasta-se nitidamente com as tendências ocidentais,
tais como a a promessa cristã pelo paraíso além túmulo e a segregação platonista
942
de “mundos”. O Zen reconhece que no pequeno e no grande existem as mesmas
possibilidades, pois “o manifesto e o imanifesto são o mesmo” (LAO-TSÉ, 2002, p.
29). O Zen singularizou-se assim pela valorização dos assuntos cotidianos tanto
quanto as atitudes tidas como espirituais. Em muitas de suas anedotas ouvimos
histórias de monges tendo profundas reflexões ou insights enquanto varrem, limpam
ervas daninhas no jardim ou descascam nabos. A partir disso, promoveram o
exercício de ofícios como a jardinagem, o arco e flecha, a caligrafia, o arranjo de
flores e o chá. Todas essas atividades são chamadas de Do, que são caminhos para
a suprema autocompreensão que devem ser executados com afeto e perfeição. O
Do não enfatiza o resultado, e assim como a experiência, o processo de sentir o
caminhar. Apesar de toda a destreza que se pode adiquirir por meio destes
trabalhos, “o mais difícil é sempre o mais básico” (SEN, 2008, p. 126). A execução
mecânica duma ação, como coloca Dewey, não provoca nenhuma percepção, mas
apenas um gesto de automatismo. Criar este vínculo com o agora deve ser uma
meta constante, que nunca se conquista por definitivo.
Okakura conta que desde os períodos do Xintoísmo, anteriores ao Zen, os
japoneses já tinham o hábito da mudança (2008, p. 76). Suas construções eram
feitas não de tijolos ou pedras, mas por peças de encaixe de madeira que, assim
como peças de brinquedo, possibilitavam a construção e reconstrução de acordo
com suas necessidades. Havia um hábito de dar uma nova casa a cada casal que
se juntasse e de desmanchá-la após a morte de seu integrante principal. As capitais
imperiais mudavam de lugar com frequência, e assim iam junto os seus templos e
edifícios (OKAKURA, 2008, p. 76).
Na cerimônia do chá este espírito de mutação está presente, por exemplo, na
contínua alternância dos motivos decorativos que compõem a cena. A especial
seleção dos objetos, a escolha da pintura com uma mensagem propícia ao momento
exibem essa tendência de adequação. A chanoyu varia em sintonia aos ritmos
sazonais, de tal forma que no fim do inverno podemos encontrar um broto de
cerejeira, anunciando a chegada da primavera, e no verão nos deparar com um lírio
gotejante, sugerindo agradável frescor. Desta maneira, o aposento de chá é um
vazio, uma “morada do gosto” que expressa o temperamento vigente, satisfazendo a
necessidade estética do momento. Segundo a pesquisadora Michiko Okano,
943
diferentemente da concepção ocidental de vazio como morte e como ausência, o
vazio no Oriente é o nada que tudo contém, é toda a possibilidade de nascimento,
“em que tudo pode vir a ser” (OKANO, 2012 , p. 1134). O vazio da cabana de chá é
o espaço por onde a mutação transita, pois a realidade de um aposento encontra-se
no espaço vazio circundado por tetos e paredes, não no tetos e paredes em si, da
mesma forma que o jarro só é útil pela lacuna que permite abrigar algum líquido
(OKAKURA, 2008, p. 60).
A arte inacabada
Ao citar César e Napoleão, Dewey exemplifica como uma ação prática pode
ser estética, já que os feitos realizados pelos imperadores não decorriam de uma
preocupação exclusiva com o resultado, mas culminavam como o desfecho de um
processo. Do mesmo modo, a moral grega da boa conduta reproduz-se em suas
formas por serem dotadas de “proporção, graça e harmonia”. Dewey explica que em
uma experiência há uma relação entre moral e prática:
O estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro,
seja pelo luxo ocioso ou pela idealização transcedental, mas é o
desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a uma
experiência completa (2010, p. 125).
Assim, compreendemos que num processo vivido através de uma experiência,
seja aquele vivido por uma pessoa ou por uma comunidade, as formas que ali se
encontram não são fortuitas ou aleatórias, já que não estão desgarradas do
processo que as gerou. São como cartas vindas de lugares distantes, que nos
contam histórias de povos e culturas de outro tempo e espaço.
Os orientais, como foi comentado anteriormente, extraíam seus conceitos
através de uma relação direta e pessoal com o mundo, numa direção centrípeta.
Procuraram assim propor em sua estética cotidiana esta comunhão apreciativa do
homem com o seu ambiente circundante. Palavras como “contemplação”,
“observação”, “apreciação”, são muito comuns quando estudamos estas culturas. O
escritor Junichiro Tanizaki, em seu ensaio Em Louvor da Sombra, escrito em 1933,
observa a predileção dos orientais pela penumbra, qualidade de luz convidativa,
característica por sua suavidade, profundidade e mistério, que os agrada muito mais
944
que a luz clara e reluzente. Essa primazia pode ser vista nos figurinos do teatro Nô,
que refletem fios dourados na penumbra; na arquitetura das casas, características
por seus frondosos telhados e por suas janelas forradas por papel shoji, quem filtram
a passagem da luz; pelos utensílios usados à mesa, de laca ou densa cerâmica, que
valorizam a apreciação da culinária japonesa. Adoram a tonalidade envelhecida e
anuviada dos utensílios de estanho e a aparência dos objetos marcados por
constante manipulação, fuligem, chuva e vento. “Tê-los ao nosso redor e morar em
construções com suas características tranquiliza-nos a alma, proporciona-nos
estranha serenidade” (TANIZAKI, 2007, p. 23). Já os ocidentais, em oposição,
renegam o sebo e fazem de tudo para se livrar dele, evitando todo tipo de sombra ou
escuridão. A penumbra não busca explicar ou iluminar uma realidade, mas permite a
dúvida, provoca este tatear incerto, sugerindo àquele que olha uma multiplicidade de
sentidos. Já a “excessiva iluminação que desvenda e exibe todo detalhe é ofensa
ímpar” (TANIZAKI, 2007, p. 15).
A penumbra é a qualidade de luz mais propícia para a apreciação estética, faz
com que a culinária japonesa não seja apenas um alimento a ser consumido, mas
que seja “digna de meditação” (TANIZAKI, 2007, p.28). Entretanto, louvar a
penumbra não é só fazer um apelo ao sentido da visão, mas provocar cheiros,
texturas e sabores. Na cerimônia do chá a apreciação ocorre por um conjunto
sinestésico em que nada passa despercebido. Comer um doce de youkan (feito de
feijão azuki), uma “massa semitransparente e nublada” de “tonalidade profunda e
complexa” é fazer um agrado primeiro à mente, depois ao paladar, compondo um
conjunto estético completo. É como “ter o próprio negrume transformado em
delicioso bocado derretendo na ponta da língua” (TANIZAKI, 2007, p. 28). Na
chanoyu, é prática usual que depois de beber o chá, nós tiremos alguns instantes
para simplesmente observar a tigela em que nos foi servida a bebida, atuando
simplesmente de maneira apreciativa.
Os japoneses também criaram uma tendência estética chamada wabi sabi,
traduzido muitas vezes como “a arte do imperfeito” ou “rusticidade”, por valorizar o
simples em favor do ornamentado, formas orgânicas e irregulares, como a presente
no caule rugoso de uma árvore. O objetivo do wabi é não o de ostentação de riqueza,
mas uma tentativa mais singela de despertar modéstia e naturalidade. Este “culto do
945
imperfeito” também pode ser compreendido como o reconhecimento que nossas
vidas nunca atingirão a plenitude dos nossos ideais, mas que mesmo em meio a
todos esses defeitos e faltas, podemos aprender a apreciá-la como ela é. E assim é
a cerimônia do chá: uma tentativa de encontrar beleza em meio à “sordidez dos
acontecimentos diários” (OKAKURA, 2008, p. 29).
Na chanoyu este ar de “pobreza refinada” pode ser visto na escolha de
materiais puros como o bambu, utilizados em sua coloração natural, nas tigelas
irregulares feitas à mão, e na própria tonalidade ocre da sala de chá, que busca
evocar a atmosfera de uma cabana construída em meio ao campo, trazendo para
dentro do aposento um sabor dos ventos lá de fora. Ao contrário dos jardins
renascentistas que procuram alinhar suas plantas em rígidas formas geométricas, o
japonês opta pelo natural. Porém, essa vontade de estar lado a lado da natureza
não implica simplesmente cortar um arbusto e trazê-lo para dentro do aposento:
primeiro deve-se captar a sua essência, e depois transportá-la através do gesto. O
paradoxo do “cuidadoso arranjo destinado a evocar naturalidade” não é fruto de
gestos desleixados ou displicentes, mas são resultados de “profunda reflexão
artística”, e que em função de todo rigor necessário, geralmente dão mais trabalho e
custos para serem produzidos do que as mais complexas e “pomposas” construções
(OKAKURA, 2008, p. 69).
A ideia do inacabado também pode ser percebida na assimetria, característica
tida como tipicamente japonesa. Para eles, a simetria não se mostrava tão
interessante pois era uma “expressão de completude”. As tigelas irregulares, por
exemplo, mostram em suas marcas a valorização mais do processo e da passagem,
que do acabado. A tigela não é perfeita, mas mostra o meio pelo qual a o homem se
encontrou com a matéria. Do mesmo modo, a ideia de simplicidade pode ser
compreendida como a síntese das formas, como o “dom de concisão” que os
japoneses valorizavam e que o ocidente só veio a conhecer séculos mais tarde com
as vanguardas modernistas. Tanto na assimetria quanto na síntese, podemos ver
em ação o princípio do vazio:
Ao deixar algo não dito é concedida ao observador a oportunidade de
completar a ideia; deste modo, uma grande obra prima prende sua atenção
até você ter a impressão de ser realmente parte da obra. O vácuo está ali
para que você possa entrar e preenchê-lo completamente com sua emoção
estética (OKAKURA, 2008, p. 60).
946
Isso pode ser visualizado, por exemplo, na máscara do teatro Nô, que
sintetiza todas as emoções numa única expressão, sendo apenas sugeridas pela
inclinação da cabeça do ator (OKANO, 2012, p. 1136). A neutralidade é, para eles,
mais potente que a descrição, pois contém diversas facetas em estado latente,
podendo gerar diferentes respostas na mente do espectador. A máscara pode nos
parecer assombrada, alegre ou nervosa, isso depende apenas das circunstâncias.
Seja pelo gosto pela penumbra, estética wabi, assimetria ou síntese das
formas, características que remetem ao “inacabado” e “incompleto”, percebemos na
estética tradicional japonesa a importância da participação do observador como
criador de sua própria interpretação, já que “nada é real exceto aquilo que
percebemos através de nossos próprios olhos” - assim como em uma “experiência”,
que nunca é um dado de antemão, mas uma construção que se desenvolve de
maneira particular em cada indivíduo. Segundo Kakuzo Okakura, “a verdadeira
beleza podia apenas ser descoberta por aquele que completasse mentalmente o
incompleto” (2008, p.80). O propósito da cerimônia do chá não é outro senão o de
ter uma experiência: abrir-se para os sentidos, ligar-se ao aqui e o agora, criando,
em um elo de comunicação com o entorno, uma percepção única e singular deste
momento, que nunca se repetirá.
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Rebeca Chiarini Alcântara
Graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Unesp, São Paulo. Trabalha com Arteeducação em espaços informais, como museus e oficinas, e no ambiente escolar. É
pesquisadora de culturas tradicionais e orientais.
948
ANÁLISE DE PERCURSO E ESTUDO DE RELAÇÕES ENTRE ORIENTE E
OCIDENTE NO ACERVO DA FUNDAÇÃO CULTURAL EMA GORDON KLABIN
EM SÃO PAULO – SP
Vinícius Angelon Scopin - UNIFESP
RESUMO: O trabalho propõe uma análise de percurso dentro da Fundação Cultural Ema
Gordon Klabin, adotando essa como método de apreciação oriental e por isso a sugerida
para tal, e consiste em um estudo de relações entre as peças de origem oriental com as de
origem ocidental dentro do acervo. Assim, levanta questões sobre essas peças, em torno de
seu significado original em seu local de origem, como ele se insere em um contexto
ocidental, como eles se apropriam de novos significados nesse ambiente e como eles se
relacionam com as demais peças nos ambientes de origens diversas. No final do percurso
proposto, nos levanta uma discussão em torno de uma mesa chinesa, afirmando que essa
peça de mobiliário possivelmente tinha importância sentimental para a proprietária da
coleção, pelo fato de se localizar no centro de seu ambiente preferido da casa, em que
poucos tinham acesso. Através desse estudo, conseguimos levantar hipóteses sobre a
personalidade da moradora, sua relação com as ideias provenientes do oriente, e fazer
análises técnicas sobre peças de mobiliário de origem oriental presentes na residência, além
de mostrar esse ambiente em que foi criado um terceiro espaço de harmonia entre oriente e
ocidente.
Palavras-chave: Percurso, coexistência, mobiliário.
ABSTRACT: This work proposes an analysis of route inside the Ema Gordon Klabin Cultural
Foundation, adopting this as a method of assessment eastern and therefore suggested for
this purpose and is a study of relationships between pieces of oriental origin with those of
Western origin within the acquis. Thus raises questions about these parts, around its original
meaning in its place of origin, how it fits in a Western context, as they take ownership of new
meanings in this environment and how they relate to other parts of the environment diverse
backgrounds. At the end of the proposed route, posing in a discussion around a Chinese
table, stating that this piece of furniture possibly had sentimental value to the owner of the
collection, because it is located in the center of your favorite room of the house, where a few
had access. Through this study, we were able to raise hypotheses about the personality of
the resident, their relationship to the ideas coming from the east, and technical analysis on
pieces of furniture oriental origin present in the residence, in addition to showing that
environment it was created a third space of harmony between East and West .
Keywords: Route, coexistence, furniture.
Introdução
No seu processo de compreensão do mundo em que vive, o ser humano cria
uma linha e coloca atrás dessa linha tudo aquilo que não faz parte de si. Tudo que é
colocado do outro lado dessa linha, é considerado não cientifico, magia, misticismo,
fantasia, mito (...) objeto de estudo. Enquanto quem realiza o estudo, detém a
949
ciência, o conhecimento técnico, a verdade. De acordo com o sociólogo Boaventura
de Sousa Santos, assim se estuda o oriente no ocidente. Então, temos uma história
do outro lado do mundo contada pelos ocidentais. O oriente segundo o Oriente.
Desmistificando essa visão que torna “o outro” como objeto fonte de estudo, e
o coloca num patamar inferior daquilo que é realizado em nossa cultura, esse
trabalho busca mostrar a produção artística oriental que se fa presente em nosso
meio, com a mesma importância que a ocidental. E esse resultado só pode ser
alcançado através do estudo e do entendimento.
Portanto, o local escolhido para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi a
Fundação Ema Gordon Klabin. Uma casa museu localizada na cidade de São Paulo,
onde podemos encontrar harmoniosamente e não subjulgadas, vinte e cinco séculos
de produção de arte oriental e ocidental dividindo harmoniosamente o mesmo
espaço. Ocupando lugares em um mesmo nível de importância.
Sendo assim, essa casa nos será apresentada como o espaço de
coexistência, onde as ideias vindas do oriente, expressas pela sua produção,
poderão conviver harmonicamente com as ideias europeias fortemente estratificadas
em nosso contexto social. A casa será aqui apresentada como o “terceiro espaço”,
do qual François Julien nos propõe como a criação do espaço onde ideias diferentes,
e até mesmo divergentes, poderão conviver com respeito e compartilhamento.
Através desse trabalho, podemos compreender como a presença de
elementos vindos da cultura oriental, podem não apenas enriquecer valores nossos,
mas também muitas vezes resignificá-los.
A relação entre a concepção, construção e uso do espaço no Oriente e no
Ocidente
Quase meio século se passou desde que a casa foi construída para abrigar a
coleção e sua proprietária, e pouca coisa mudou nesse espaço fisicamente, e
principalmente internamente. A principal mudança ocorrida nesse espaço foi sua na
sua função, a transformação de casa em museu. E essa transformação ocorreu sem
que um móvel sequer fosse movido de seu local original. Uma única disposição de
950
objetos foi mais que suficiente para abrigar em si duas funções muito distintas, o que
nos mostra uma organização muito flexível.
Dentro dessa análise de uso dos espaços, vemos uma relação com o
conceito oriental sobre a flexibilidade dos ambientes que se transformam de acordo
com o uso que empenharão. A casa se apropria da flexibilidade proposta pela
arquitetura tradicional japonesa, porém se distingue dela em muitos aspectos. A
casa japonesa em sua concepção tradicional se apresenta como um espaço aberto
onde nada é fixo e todos os objetos são projetados e construídos de forma a atender
todas as necessidades diárias de seus residentes de forma objetiva e prática, sem
nunca deixar de lado a questão estética em que esses objetos são concebidos. Os
ambientes na casa japonesa são divididos por painéis conhecidos como fusuma,
que permitem que os espaços sejam divididos conforme as necessidades no
decorrer do dia. Embora a casa de Ema Klabin se assemelhe com a casa japonesa
em sua flexibilidade, ela se distingue da mesma quando pensamos na prédeterminação dos usos dos ambientes internos e os móveis que neles estão locados
para o uso específico que o ambiente se propõe a atender.
A casa japonesa se transforma de acordo com as estações do ano para
melhor aproveitar o que a natureza está propondo de mais belo e promover o
contato com o homem. E para aproveitar, por exemplo, a entrada da brisa
refrescante do verão, os painéis de madeira são substituídos pelos ama-do, para
excluir apenas a luz solar em excesso e os insetos indesejados. Essa relação entre
o homem e a natureza é proposta inclusive pelo xintoísmo, onde a natureza é
sagrada e representação do divino. Enquanto a casa japonesa se abre para a
natureza, a casa de Ema Klabin proporciona o contato visual com o lado externo da
casa através de grandes janelas de vidro que se espalham ao longo de sua galeria,
porém, nos isolam das mudanças climáticas propostas pelas estações do ano com
grandes panos de vidro e não nos permitem essa experiência de contato direto com
a natureza. O homem ocidental isolou a natureza do lado de fora da casa para que
os ciclos das estações do ano não o incomodassem.
Com o ingresso feito por uma pequena escada, a casa tradicional japonesa se
eleva do solo como um local sagrado onde moram os deuses e os separam do
campo onde espíritos ingressam terra. Dentro dos parâmetros da arquitetura
951
ocidental, a casa de Ema Klabin se eleva do solo dando a casa uma escala de
monumentalidade e uma visão superior do interno para o externo.
A efemeridade e transitoriedade da vida estão representados claramente nos
materiais adotados na arquitetura tradicional japonesa, que com o uso da madeira
torna obrigatória a reconstrução das edificações das casas e templos em um ciclo de
duas décadas, fazendo uma clara analogia a transitoriedade e efemeridade da vida
do homem no mundo. Essa característica cria um vinculo de relação do homem com
o tempo e espaço, com a transformação do espaço e da vida no tempo, que não
existe na casa construída no ocidente, onde não há relação entre a existência da
casa e a vida do morador, que, possivelmente viverá muito menos que sua
residência.
Revestimento de palha das paredes da galeria.
Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo.
Foto: Vinícius Angelon, 2014.
Análise de percurso interno sugerido
Diferente de grande maioria dos museus que dispõem de espaços específicos
para disposição de grupos de obras, que podem ser ordenados pela origem, por um
espaço de tempo, por um movimento, uma proposta estética, por semelhanças ou
diferenças, o caráter de organização da coleção de Ema Klabin em sua casa, tem
como princípio ordenador, primeiramente a questão estética-visual, do qual seu
decorador fará a distribuição dos objetos de maior peso nos ambientes (mobiliário), e
952
em segundo lugar atingir as pessoas da alta sociedade paulistana que será recebida
em impecáveis jantares de gala oferecidos pela anfitriã que Ema Klabin foi.
Através de sua coleção de arte, Ema Klabin se afirmará como uma pessoa
erudita e uma mulher de postura diferenciada na sociedade. Sendo educada em
uma rígida educação judaica, realizada em países da Europa pela ausência de
colégios judaicos em São Paulo na sua infância, Ema Klabin afirmará sua liberdade
de pensamento à seus ilustres convidados, através de sua coleção e sua disposição
que irá de forma sutil, brincar com objetos de diferentes religiões, logo no Hall de
entrada da sua casa, onde o visitante terá seu primeiro impacto.
Para discutirmos um pouco o diálogo que a arte oriental desenvolve com os
espaços da casa, e sua importância e seus significados dentro desses espaços,
percorreremos um trajeto pela casa que nos evidenciará a presença desses objetos
tanto na área social da casa, como na pequena ala íntima. Dessa forma, adotaremos
um método de análise da casa, que se assemelha com o método que os chineses
irão propor para a apreciação de suas pinturas em rolos, adotaremos a leitura,
compreensão e apreciação da casa como uma obra de arte, através de um percurso,
em que nós caminharemos pela obra.
Logo na entrada, após passarmos por um pequeno vestíbulo que dá acesso
ao quarto de hóspedes da casa, nos encontramos no Hall. Ao lado direito temos dois
anjos de igrejas barrocas suspensos apontando para uma cena pagã em uma
tapeçaria belga do século XVIII, que nos apresenta uma cena campestre. Logo
abaixo, temos um cassone onde está assentada uma imagem de Nossa Senhora
com o menino Jesus no colo. Ao lado esquerdo, temos as primeiras peças vindas do
oriente presentes na casa. Acima do baú, encontraremos representações de
sentinelas de câmaras funerárias de tumbas e câmaras mortuárias Chinesas,
esculturas da Era Tang (Século VIII). Atrás dos sentinelas, temos uma tapeçaria
holandesa com “A lenda de Aquiles” em uma cena de guerra.
De certa forma uma maneira um tanto quanto hostil de receber seus
convidados, porém talvez demonstrando uma certa naturalidade em relação com a
vida e a morte, nessas esculturas que guardavam túmulos. Teria Ema Klabin
partilhado das grandes ideias da filosofia oriental, da transitoriedade da vida, e teria
953
ela lidado com tanta serenidade com esse objetos a recebendo diariamente em sua
casa ainda em vida?
Lado esquerdo do Hall. Composição “masculina”.
Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo.
Foto: Vinícius Angelon, 2014
Embora não se possa afirmar com certeza se a presença dessa peças logo
na entrada da casa comprove que Ema Klabin partilhasse dessas ideias, podemos
afirmar com toda certeza a grande importância que a arte oriental possui dentro
dessa coleção, que logo na entrada da casa, em seu primeiro ambiente, seu cartão
de visitas, o local que passará sua primeira impressão ao visitante, já temos não
apenas uma peça isolada, mas um grupo de esculturas vindas do oriente, colocadas
em uma posição de destaque em cima de um baú.
954
Nesse primeiro ambiente já temos apresentada uma grande tensão, que nos
é proposta visualmente em todos objetos que foram pensados para a composição
desse ambiente. Do lado direito, temos duas esculturas produzidas para igreja
católica, anjos barrocos, apontando para uma cena pagã, uma tapeçaria de
proveniência belga onde a religião predominante no contexto de sua produção era a
protestante. No chão temos um Cassone italiano do século XVI. Essa peça de
mobiliário era usado para a futura esposa burguesa guardar seu enxoval enquanto
se preparava para o casamento. Acima do Cassone, temos Nossa Senhora com o
menino Jesus contrastado com essa cena pagã ao fundo. A tapeçaria nos apresenta
figuras femininas, assim como a divindade católica. Essa feminilidade é realçada
pela presença dos anjos, esculpidos com traços leves e delicados. Reafirmando
mais uma vez o caráter feminino, temos ainda duas porcelanas turcas, pintadas com
motivos ornamentas florais. Podemos afirmar que o lado direito do Hall, foi
construído com caráter feminino, e com tensão religiosa apresentada em sua
composição.
Do lado esquerdo, temos uma composição completamente incisiva de figuras
masculinas que nos apresentam expressões um tanto quanto hostis em suas
representações. Na tapeçaria temos uma cena de guerra, com um soldado vestido
com um traje vermelho vivo, que já nos remete a cor de sangue. Abaixo da tapeçaria
em cima do baú, temos as esculturas que apresentam soldados, que em seu
contexto original eram usados como sentinelas em túmulos. Essas esculturas eram
usadas para dar uma falsa ilusão da presença de um exército guardando os
tesouros de imperadores contra possível invasão de pilhagem de saqueadores.
Podemos afirmar que a composição do lado esquerdo do Hall, possui caráter
exclusivamente masculino.
Além das tensões religiosas, enquanto de um lado temos possuímos leveza e
delicadeza feminina, do outro lado encontramos virilidade e força masculina. Embora
apresentem características opostas em suas interpretações, todas as pessoas
convivem nesse espaço de maneira harmônica. Podemos então entender o Hall da
residência como um espaço de coexistência, onde oriente e ocidente convivem sem
que um lado subjulgue o outro lado. Onde os credos de cada cultura, influenciados
955
por suas religiões, por mais divergências apresentem, aqui podem se relacionar sem
conflito.
Entre o Hall e o vestíbulo, encontramos uma peça que de alguma maneira
apaziguará essa tensão entre masculino e feminino, com uma figura que nos remete
ao elemento infantil, à inocência. Essa peça é a cadeira infantil chinesa do século
XIX.
Saindo do Hall em direção à galeria que dará acesso a quase todos os
ambientes da casa (exceto ambientes de serviço) e jardim, temos elementos
arquitetônicos que nos conduzirão a um percurso que nos é sugerido através de
obstáculos que são os degraus de saída do Hall. Deparando-se com a grande
galeria em curva que nos dá uma sensação de convite à desbravar esse espaço
ricamente decorado com quadros, esculturas e moveis de diversas origens, temos à
nossa esquerda um obstáculo de subida, que define a área de acesso restrito da
casa, a ala íntima.
Embora a casa possua 900m² de área construída, a casa possui apenas dois
quartos, um para Ema Klabin, e um para sua irmã Eva que morava então na cidade
do Rio de Janeiro, e hospedava-se na casa de Ema em suas visitas à irmã em São
Paulo. A própria disposição dos ambientes da casa nos sugere um espaço
reservado nesse canto. E para nos ressaltar essa impressão, à frente do quarto da
porta de Ema no fim da galeria, temos um biombo chinês do século XIX, que de uma
maneira muito discreta, obstrui sutilmente a visibilidade das portas dos quartos, para
quem estiver na galeria, em um nível inferior, e ainda “protege” a entrada dos
quartos com mais três esculturas.
956
Os degraus que se propõem em diferentes níveis, como obstáculo ou como convite.
Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo.
Foto: Vinícius Angelon, 2014
O biombo chinês do século XVIII é ornamentado com motivos florais e cenas
de guerra. Além de sua posição em uma das extremidades da galeria, está
posicionado quatro degraus acima do nível da mesma, o que lhe atribui uma posição
de destaque, que é ressaltada pela sua cor predominante, o escarlate. Em contraste
com a cena de guerra, temos a sua frente esculturas japonesas serenas de uma
Tríade Amida, do período Kamakura (Século XII) composta por um Buda e dois
atendentes.
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Tríade Amida, Madeira entalhada e pigmentos frios. Japão, séc. XII, Período Kamakura Fundação
Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo.
Foto: Vinícius Angelon, 2014.
O próximo ambiente que encontraremos influências da arte oriental é o
banheiro da Suíte de Ema. Revestido em placas de viro branco e com vista para o
jardim, encontramos utensílios hidráulicos, como torneiras e saídas de água da
banheira, com motivos de carpas entalhadas em metal na cor dourada. Temos então
o símbolo de prosperidade do povo japonês, além da cor do templo Kinkakuji, e
também de ser uma das cores utilizadas na ornamentação de construções chinesas
imperiais e religiosas.
Voltando à grande galeria, continuaremos nosso percurso pela casa,
mencionando dois fatos interessantes sobre a galeria que nos remetem a visão do
oriente com o espaço onde moramos. Ambos nos levam a refletir sobre a relação do
povo japonês com a natureza. Aqui dois elementos nos mostram integração da
natureza com a vida na arquitetura edificada pelo homem.
O primeiro deles, é o revestimento com palha, que foi trazido dos países
tropicais da Ásia e usados para o revestimentos das monumentais paredes de pédireito duplo dessa galeria. Aquele material que para o japonês, tornará o tatame de
sua casa solo santo, onde ele tirará os calçados que usa na rua para adentrar nesse
espaço dos deuses, aqui é usado como um motivo ornamental revestindo as
paredes pelo acabamento estético proposto pela beleza de sua trama. Com essa
958
situação, começamos a notar como um elemento que em uma cultura é usado como
algo sagrado, que tem um valor espiritual, é retirado de um espaço e em uma outra
parte do mundo, é aplicado em outro contexto completamente diferente que dará um
outro valor à esse elemento, nesse caso específico, o status de exotismo.
A segunda relação que podemos aqui colocar em discussão, são as enormes
janelas que são dispostas por essa galeria, que, quando abertas as cortinas nos dão
campo de visão para apreciar o belo jardim da casa, projeto pelo arquiteto brasileiro
Burle Marx. Vemos aqui outra semelhança com a visão dos japoneses sobre o
jardim, de integrar a natureza ao homem. Embora por essas aberturas se dão
acesso ao jardim, enquanto fechadas, ela são uma janela à contemplação da beleza
da natureza.
Prosseguindo nosso percurso de análise, ao fim da galeria chegaremos ao
ambiente onde se encontra nosso objeto de estudo, a Biblioteca Conheceremos a
mesa de centro chinesa e seus motivos ornamentais, analisaremos como ela dialoga
com os demais objetos da biblioteca e qual seria sua relação de uso e sua
importância para a proprietária Ema Klabin.
Análise formal do objeto de estudo
Mesa de Centro em madeira laçada, marfim e nácar. 86,5 x 54,0 x 31,3 cm. China, séc. XIX.
Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo.
Foto: Acervo da Fundação Ema Klabin
959
A mesa de centro de origem chinesa que está inserida na biblioteca da casa
de Ema Klabin, possui características muito comuns do mobiliário chinês do século
XIX. Podemos notar essa difusão dessa peça de mobiliário na China obervando
catálogos de móveis dessa época.
Esse tipo de móvel veio cair no gosto francês durante o governo de Louis XV.
Esse contato do mobiliário chinês na Europa deu início a um fenômeno conhecido
como Chinoiserie, que repercutiu em grande parte da produção do mobiliário rococó.
As “chinoiseries” eram peças de mobiliário produzidos na Europa, geralmente com
as formas dos móveis europeus, porém com pinturas e acabamentos realizados com
técnicas de pinturas e encrustamentos chineses.
A mesa é constituída de uma estrutura em madeira lisa com encrustações de
Marfim em seu tampo. Esse tampo é apoiado sobre quatro pés levemente
acabriolados e a mesa recebe acabamento de saiote por todas as faces laterais.
Ao redor de seu tampo notamos o adorno baseado em linhas formando
desenhos geométricos que emolduram a paisagem com a presença de estruturas
arquitetônicas e pessoas. No decorrer da estrutura do saiote e dos pés acabriolados
o mesa foi adornada com motivos florais e folhagens, como uma trepadeira que se
estende por toda dimensão das laterais.
Tanto o tampo quanto a estrutura possuem seu fundo laqueado em preto,
característica típica do mobiliário chinês. A pintura é feita através de inúmeras
camadas de tintas das mais claras para as mais escuras, de maneira que recebe
assim camadas de cores gradualmente.
O tampo além da pintura possui encrustamentos de Marfim principalmente
nas áreas de coloração branca. Ele é emoldurado por mais um faixa com motivos
ornamentais florais em cor dourada. As cores predominantes são o marrom, laranjas,
vermelhos, o azul, o branco e o dourado na ornamentação das molduras. O tema
colorido tem grande realce sobre o fundo negro característico da pintura de Xarão.
À direita podemos observar uma construção tipicamente tradicional chinesa
onde podemos ver um ancião observando o lado de fora, uma grande área aberta
cercada com algumas árvores muito retorcidas e com poucas folhas , além rochas
960
dentro de um lago . Nesse espaço ao lado do templo sob as árvores se encontram
três mulheres vestindo kimonos e com penteados trabalhados em seus cabelos.
Talvez sejam membros da nobreza. As três mulheres encontram-se voltadas para
um quinto personagem que se encontra à direita na representação. No primeiro
plano vemos duas pessoas em algum tipo de interação e atrás a paisagem nos
mostra um lago com algumas rochas e vegetações, além de algumas árvores de
pequeno porte.
A inserção na biblioteca e sua importância
Para compreendermos a importância que essa mesa possuía para Ema
Klabin, vamos analisar qual a importância desse ambiente para a casa e uma
informação sobre a história da mesa que a torna ainda mais importante par a
proprietária da casa. Não apenas a mesa, a biblioteca abriga muitas peças de
origem oriental. Com função decorativa, encontramos sobre a mesa de centro
estudada e os aparadores laterais do ambiente, peças de porcelana e cerâmica.
A primeira questão que devemos levar em consideração, é que a biblioteca foi
o espaço da casa em que Ema Klabin passou a maior parte do seu tempo em sua
casa. Podemos encontrar inúmeros registros fotográficos da moradora nesse
ambiente, além de ser pela mesma, declarado o seu lugar preferido na casa. Ali
ficava não só seu acervo bibliográfico de valor inestimável, como exemplares raros,
adquiridos ao longo de sua vida. É na sua biblioteca que está localizado sua
pequena escrivania, e provavelmente era nesse espaço onde Ema podia receber
seus amigos mais íntimos para uma conversa particular. E muitos fatos nos dão
esse indício.
A biblioteca é o menor ambiente da Ala Social da casa. Em seu interior, há
um sofá e duas poltronas que acomodam confortavelmente no máximo 4 pessoas.
Por ser um ambiente compacto, todas ficam muito próximas. Além dessa
características, por possuir uma lareira, revestimento de paredes de madeira, um
carpete mais escuro, e uma iluminação com pontos de luz baixos (diferentes da
iluminação indireta presente em todos demais ambientes da casa), esse ambiente já
nos emerge em uma atmosfera mais intimista pela sua estrutura e decoração.
961
Relacionando esse ambiente com as demais áreas da casa, vamos notar
fatos que realçam esse caráter mais íntimo conferido à este ambiente. Além da
iluminação que se difere dos demais ambientes da casa, outras características o
tornam único e importante na casa. A primeira características de distinção entre as
demais salas, é o fato da biblioteca não dar acesso à outro ambiente, diferente das
salas de estar, jantar, música e a galeria, que dialogam entre si por várias
passagens, permitindo uma circulação maior e em diferentes sentidos pelos
visitantes.
Outra questão que nos leva à essas conclusões é o isolamento que foi
proposto à biblioteca. Ela fica no final da galeria, e depois de todos os demais
ambientes, o que à atribui um determinado isolamento da casa. Ali era o espaço de
Ema Klabin pensar em suas atividades de cunho social, fazer planos, escrever
cartas para seus ente-queridos, e ler muito, afinal Ema Klabin era uma mulher com
alto nível de erudição.
Aquele espaço tinha uma importância e significado especiais para ela. E é
justamente no centro desse espaço, que está inserida a mesa de centro chinesa. De
todos os cantos da biblioteca, e em qualquer estofado ou cadeira em que se assente,
temos vista para a mesa, que além de estar no centro da sala, por mais que ela seja
uma mesa baixa, ela é o móvel mais escuro, o que lhe atrai um foco de atenção
exclusivo.
Além dessa questão de um posição de privilégio, não só dentro da biblioteca,
mas dentro da casa em si, temos de levar em consideração a importância das
poucas informações que possuímos sobre a história desse móvel. Além de ser uma
peça de mobiliário do século XIX, que a torna um móvel de alto valor financeiro, para
Ema, ela provavelmente tinha um grande valor sentimental, afinal, essa peça
pertencia aos pais de Ema Klabin, e pertencia à Sala de Música da casa de seus
pais no bairro de Campos Elísios, onde Ema passou parte de sua infância antes de
ir estudar em um colégio judaico na Alemanha.
Tendo a mesa de centro da biblioteca como nossa última parada em nosso
percurso de análise de relações, terminamos nosso estudo dentro da casa de Ema
Klabin, não apenas tendo analisado essa casa com uma nova ótica, destacando
962
toda a produção oriental que aqui hoje se encontra, mas também enaltecendo o
possível valor sentimental de uma dessas peças para a proprietária da casa, que
nos deixou sua coleção, fruto de um trabalho de uma vida toda, para que fosse
transformada em um museu e aberta ao público.
Conclusão
Através desse estudo feito baseado em um discurso pautado em um percurso
que nos proporciona um contato com obras que trazem consigo valores próprios de
sua cultura de origem, podemos perceber que quando re-inseridos em seu novo
contexto, alguns podem perder seu significado original, mas outros podem ganhar
significados. E alguns até mesmo tem consigo idéias e valores que já fazem parte de
nós, e são aqui representados de outras formas em outros objetos. Mas também a
aquisição de muitos, podem nos incorporar valores e discussões que gerarão algo
em nós.
As coisas que possuímos não dizem efetivamente quem nós somos apenas
por possuí-las, mas aquilo que nos rodeia, nos dá uma noção de identidade, e uma
sensação de acolhimento que nos mostra um pouco de nossa identidade e relação
com o mundo. Baseado nesses conceitos, Ema Klabin constrói uma casa para
abrigar uma coleção que por anos mostrará ao mundo quem foi enquanto vivia
naquela casa.
Muito mais que uma peça de coleção, essa mesa que foi nosso objeto de
estudo, objetivo final de nosso percurso dentro da casa, quase que certo
representava para Ema um vínculo com seu passado e com sua história. Diferente
de grande parte do acervo que foi adquirido metodicamente no decorrer de sua vida,
essa é uma herança que seus pais deixam à filha, que a insere em seu ambiente
preferido em sua futura residência, que é fruto de um sonho de uma casa que
abrigue sua coleção, mas também, é um objeto no centro desse espaço que traz
consigo uma série de memórias de uma vida e uma família, do qual Ema tinha
grande apego ao seu pai, e só com sua morte, ela terá o impulso principal para
começar sua coleção, para talvez, compensar a perda irreparável do mesmo,
preenchendo sua vida com arte, e vivendo no meio dela.
963
Referências Bibliográficas
PONTE, A. Le Mobilier Du XVIII Siècle à L’art Déco. Singapura: Editora Evergreen, 2000.
MOSS, P. Asian Furniture. Editora Thames and Hudson, 2007.
NUTE, K. Place, time and Being in the Japanese architecture. Londres : Editora
Routledge, 2005.
COSTA, P. F. Sinfonia de Objetos. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.
JULIEN, F. O diálogo entre as culturas. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009.
Vinícius Angelon Scopin
Estudante de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP.
964
A RECEPÇÃO CRÍTICA DE UMA EXPOSIÇÃO DE ARTE JAPONESA NO RIO DE
JANEIRO EM 1921
Vinícius Moraes de Aguiar - Prefeitura Municipal de Vassouras
Arthur Valle - Universidade Nova de Lisboa e UFRRJ
RESUMO: Em 4 de janeiro de 1921, inaugurou-se, no Rio de Janeiro, uma exposição de
arte japonesa organizada pelo pintor U. Tadokoro, que era, também, mestre em um ateliê de
arte localizado na cidade de Yokohama. A exposição recebeu destaque nos meios de
comunicação impressos cariocas e mereceu particular atenção do crítico Fléxa Ribeiro,
então professor de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes. Na presente
comunicação, pretendemos apresentar os resultados iniciais de nossa investigação sobre
essa (aparentemente) inusitada exposição de arte japonesa no Rio de Janeiro, dando
especial atenção à sua recepção crítica.
Palavras-chave: Arte Japonesa no Brasil; Estudos de Recepção; Crítica de Arte
SOMMAIRE: Le 4 janvier 1921, a été inauguré, à Rio de Janeiro, une exposition d’art
japonais, organisée pour le peintre U. Tadokoro, qui était, aussi, maître dans un atelier d’art,
situé dans la ville de Yokohama. L’exposition a reçu détache dans les médias imprimées de
Rio de Janeiro et a mérité particulier attention du critique Fléxa Ribeiro, alors professeur de
Histoire d’Art de l’École National de Beaux Arts. Dans cette communication, nous avons
l'intention de présenter les résultats initiales de notre investigation sur cette (apparemment)
inusité exposition d’art japonais à Rio de Janeiro, en donnant spécial attention pour sa
réception critique.
Mots-clés: Art Japonais au Brésil; Études de réception; Critique d’Art
No período compreendido entre 4 e 13 de janeiro de 1921, na cidade do Rio
de Janeiro, realizou-se uma exposição de arte japonesa, organizada pelo pintor U.
Tadokoro, que era, também, mestre em um ateliê de arte localizado na cidade de
Yokohama. As obras trazidas por Tadokoro ao Brasil foram expostas no salão do
prestigioso Hotel dos Estrangeiros, localizado no bairro do Catete, um espaço
referencial em termos de sofisticação e ponto de encontro para membros das elites
econômicas e políticas brasileiras.
Essa exposição japonesa recebeu destaque nos meios de comunicação
impressos cariocas, sendo comentada em jornais como a Gazeta de Notícias, O
Paiz e A Noite. Logo no dia seguinte à inauguração, a Gazeta de Noticias (5 jan.
1921, p. 3) publicou uma fotografia da mostra, na qual se pode um ver aspecto da
sua instalação, no salão do Hotel dos Estrangeiros [Figura 1]. Nessa mesma edição
965
da Gazeta, eram fornecidas algumas outras informações sobre a mostra, como a
quantidade de obras expostas - 260 - e de autores - um total de “13 artistas
japonezes, alumnos e profissionaes do ‘atelier’ do Sr. Tadokoro” 1 (Gazeta de
Noticias, 5 jan. 1921, p. 3). O Paiz (5 jan. 1921, p.4) afirmava que, dentre o montante
total de obras, estavam incluídas algumas do próprio Tadokoro.
Figura 1: Aspecto da instalação da Exposição de Arte Japonesa no salão do Hotel dos Estrangeiros,
Rio de Janeiro, janeiro de 1921
Fonte: Arte Japoneza. Uma exposição inaugurada hontem, no Hotel dos Estrangeiros. Gazeta de
Noticias, Rio de Janeiro, 5 jan. 1921, p. 3
A notícia publicada n’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) foi a que mais se deteve sobre
a figura do responsável pela organização da exposição de 1921. Em um primeiro
momento, o periodicista anônimo precisou que o ateliê onde Tadokoro ensinava se
chamava “The Tosa Art Studio” e, em seguida, falou sobre quais seriam as intenções
por trás da visita do artista e professor japonês. Ao que parece, a estadia de
Tadokoro ao Brasil era apenas uma escala de uma viagem muito mais ampla, em
busca de motivos para o seu próprio trabalho artístico:
Com o propósito de incutir novas sensações de arte produzidas por
trabalhos de paizes exóticos nos seus costumes e aspectos, [Tadokoro] já
percorreu, nestes últimos treze mezes, a China, Java, Sumatra, Bornéo,
Península Malaia, India Ingleza, Ceylão, África Oriental e Occidental. (A
Noite, 4 jan. 1921, p. 2)
O periodicista d’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) acrescentava que, após a estadia
no Brasil, Tadokoro “tenciona[va] partir, depois, para a Argentina e Japão, via Chile,
tendo já visitado os Estados Unidos”. Até o presente momento, nenhuma outra
966
referência a Tadokoro foi encontrada, o que demanda o aprofundamento das
investigações.
Outra questão que nos tem ocupado, nesse estágio inicial da pesquisa, é
precisar que tipo de arte foi de fato apresentada na exposição japonesa realizada no
Hotel dos Estrangeiros em 1921. Com exceção da imagem mostrada acima, ainda
não encontramos outros registros iconográficos da mostra, e as notícias escritas,
apesar de nos permitirem formar uma ideia geral do evento, não deixam de
apresentar algumas contradições. Por exemplo, enquanto o periodicista da Gazeta
de Noticias (5 jan. 1921, p. 3) afirmava que a exposição era composta
exclusivamente de “pinturas em aquarellas”, n’O Paiz (5 jan. 1921, p.4) se dizia que
Tadokoro expôs “uma linda collecção de aquarelas e gouaches”. O citado
periodicista d’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) acrescentou, por sua vez, que a exposição
era composta de uma “valiosa collecção de aquarelas modernas e cópias de antigos
mestres”.
Todavia,
todas
as
notícias
publicadas
nos
três
periódicos
citados
concordavam com relação a um ponto: a elevada qualidade estética da exposição
como um todo. Por exemplo, o periodicista d’O Paiz (5 jan. 1921, p.4) afirmou que os
trabalhos expostos eram “curiosos e finamente executados, [e] têm sido geralmente
apreciados pela sua raridade.” N’A Noite (4 jan. 1921, p. 2), se asseverou: “Os
quadros expostos são, de facto, de uma rara beleza e de perfeita execução,
merecendo os maiores elogios”. Por fim, na Gazeta de Notícias, podemos encontrar
a seguinte apreciação:
A arte japoneza, na actual exposição, apresenta-nos os mais deliciosos
aspectos, os coloridos mais bizarros, as paisagens mais lindas e as
‘gueichas’ mais sonhadoras, não tendo os autores perdido os meros
detalhes para que seus quadros impressionem vivamente o espírito dos que
os contemplam. (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p. 3)
Essa noticia na Gazeta de Noticias foi a que mais se deteve na descrição das
obras expostas e, através dela podemos inferir, sobretudo, os gêneros preferidos
pelos expositores. Entre estes se destacava a pintura de paisagem, representada
por obra que mereceram os maiores elogios. Em meio a figurações da “entrada de
uma igreja [...], o interior de uma fábrica de chinellos [...], uma grande árvore ‘sakura’,
com sua folhagem amarelecida em pleno inverno; plantações de arroz no Japão;
967
flócos de neve cahindo sobre casebres á margem de um rio”, (Gazeta de Noticias, 5
jan. 1921, p.3) algumas vistas se destacavam, como a de “uma paisagem á noite,
vendo-se a lua despontar ao longe e, perto, uma casa com o interior
encantadoramente iluminado.” (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p.3) Ou, ainda,
[...] um “Pôr do Sol” que é verdadeiramente um mimo de arte. A cor
avermelhada, com reflexos brilhantes, dá a impressão exacta de um sol
poente, á imagem de um rio tranquillo a que alguns barcos de pescadores
dão uns tons de maior poesia. (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p.3)
Além de paisagens, pinturas de figuras femininas também foram abundantes
na mostra de 1921. Como resumiu o periodicista da Gazeta de Notícias:
Vários quadros apresentam figuras de “geishas”: uma cheia de lindas flores
vermelhas “kiku”, flores muito queridas do imperador; outra, num
cumprimento gracioso como se usa na sua terra, vergando o busto em sua
“Karakami” e ainda uma outra dansando e atirando leques... (Gazeta de
Noticias, 5 jan. 1921, p. 3)
Se paisagens e figuras femininas parecem ter sido os temas mais frequentes
das obras expostas por Tadokoro no Rio, é bem mais difícil fazer generalizações a
respeito do estilo das mesmas. Por dirigir um estabelecimento de ensino artístico
que se chamava “Tosa”, poderíamos supor que o japonês trouxe consigo, para a
exposição no Hotel do Estrangeiro, obras relacionadas à famosa escola Tosa (¡c
Ń), que teve um papel de grande relevância na história da arte japonesa.
Com efeito, a escola Tosa teve sua origem no século XV e estava relacionada
aos interesses da corte imperial; para a produção de suas obras, seus artistas
referenciavam-se, predominantemente, na literatura clássica japonesa e utilizavam o
estilo denominado yamato-e (°Ź), (The Metropolitan Museum of Art, s.d.) surgido
no período Heian (ß¾ĕ^, 794-1185) e considerado como o estilo clássico de
pintura japonesa. Inclusive, o termo yamato-e (“pintura japonesa”) foi criado
exatamente para diferenciar obras que se centravam em uma temática e uma
estética estritamente japonesas, das obras que ainda carregavam descendências
chinesas, denominadas de kara-e (“pintura Tang”), em referência à dinastia chinesa
Tang (618-906) (WILLMANN, 2000). Uma das mais conhecidas obras literárias
trabalhadas pelos artistas ligados ao estilo yamato-e e à escola Tosa, foi o Conto de
Genji (ŌķŔƫ), um romance do século X escrito por Murasaki Shikibu (c.978c.1014). Para exemplificar o estilo, reproduzimos, na Figura 2, uma seção de uma
968
composição de 8 painéis dobráveis que representa cenas do Conto de Genji, e que
traz as assinaturas de Tosa Mitsuyoshi (1539-1613) e de seu neto, Tosa Mitsuoki
(1617-1691).
Figura 2: Tosa Mitsuyoshi (1539–1613); Tosa Mitsuoki (1617–1691): Cenas de “O Conto de Genji”:
“O Passeio Real” (capítulo 29), “Um barco sobre as águas” (capítulo 51), “O portão” (capítulo 16),
1573–1615
Par de tela de quatro painéis dobráveis. Tinta e ouro sobre papel dourado.
Fonte: The Metropolitan Museum of Arte: Em: <http://www.metmuseum.org/toah/works-ofart/55.94.1,2>. Acesso em: 23 março 2014.
Todavia, a questão de em que medida as obras expostas por U. Tadokoro no
Rio de Janeiro se relacionavam à tradicional escola Tosa se coloca quando lemos as
opiniões que o crítico de arte José Pinto Fléxa Ribeiro (1884-1971) fez a respeito da
exposição de arte japonesa de 1921, em um capítulo de se livro O Imaginário
(Pretextos de Arte), cuja segunda edição data de 1925. Poeta, crítico de arte e,
então, catedrático da disciplina de História da Arte da Escola Nacional de Belas
Artes (ENBA) do Rio de Janeiro, Fléxa Ribeiro exprimiu uma opinião radicalmente
diferente daquela estampada nas resenhas anônimas da Gazeta de Notícias, d’A
Noite e d’O Paiz.
Ao contrário de outros comentaristas, Fléxa Ribeiro (1925) foi categórico ao
dizer que a exposição no Hotel dos Estrangeiros não atingia as suas expectativas,
porque não manifestava o que ele acreditava serem as qualidades intrínsecas à arte
japonesa. “Onde aquela profunda e inexorável sciência do rendu de forma, de
perspectiva a cavaleiro, onde o sentimento aéreo das linhas que se não conjugam
no horizonte?” (RIBEIRO, p.198, grifo do autor), inquiria, decepcionado, Fléxa
Ribeiro. Ele não julgava a mostra uma autêntica exposição de arte japonesa e
969
afirmava, antes, que o evento se tratava de “uma exportação, a granel, de pintura
japonesa.” (RIBEIRO, p.198). Para Fléxa Ribeiro (1925), os artistas expositores2
simplesmente não apresentavam, em suas obras, resquícios de mestres como
Katsushika Hokusai (1760-1849) e Kitagawa Utamaro (1753-1806), que o critico
brasileiro identificava como as verdadeiras referências na história da arte japonesa.
O tom de desapontamento perceptível nesse texto não se devia apenas à
qualidade da exposição: Fléxa Ribeiro (1925) lamentava, de uma maneira mais geral,
a respeito da infrequência de exposições de arte japonesa em solo brasileiro. O
crítico advogava o valor pedagógico da vinda de uma exposição que fosse
“genuinamente” japonesa ao Rio de Janeiro, pois só assim
Poderíamos ter uma ideia fecunda do que é o Japão artístico, na sua forma
mais impressionante e sedutora, da Escola da Vida, do Ouki-yo-yé [sic],
onde irradia e se imortaliza o génio de Utamáro.(RIBEIRO, p.198)
Em resumo, o que Fléxa Ribeiro (1925) sintetizava em seu texto sobre a
exposição de 1921 era uma visão particular do desenvolvimento da arte japonesa:
aos seus olhos, este teria sido caracterizado, a partir de meados do século XIX, por
uma inexorável decadência. Não por acaso, a seção d’O Imaginário, que abrigava a
resenha referente à exposição de 1921 se intitulava “A decadência artística dos
Japões [sic]” (RIBEIRO, 189). Fléxa Ribeiro (1925) acreditava que a arte japonesa
havia começado a declinar já a partir da morte, em 1849, do seu “incomparável e
extraordinário génio do desenho” (RIBEIRO, p.189), Katsushika Hokusai, mas isso
se acentuou com o processo de ocidentalização que foi consequência da chamada
Restauração Meiji (]fu[), em 1868. O período do Japão que então se iniciou,
caracterizado pela modernização e emergência industrial, pelo esvaziamento do
sistema feudal, pela transferência da capital para Tóquio etc., teria representado o
fim do fechamento cultural do país, associado ao Período Edo (ĻĂĕ^), que, para
Fléxa Ribeiro (1925), fora importante justamente por frear a incorporação, de
maneira delituosa, de costumes artísticos provenientes de outros centros políticos,
econômicos e culturais.
Todo esse desenrolar implicou, no entender de Fléxa Ribeiro (1925), na
precarização da criação artística no Japão e majorou a produção que visava à
exportação à Europa e às Américas. Entendemos melhor agora a razão do autor
970
brasileiro utilizar a expressão pejorativa “exportação a granel” quando se referencia
à exposição de Tadokoro e de seus companheiros do “The Tosa Art Studio” no Rio
de Janeiro: esta seria mais um exemplo de uma produção com fins estritamente
comerciais, lançada em enormes quantidades no mercado de arte internacional, sem
uma contrapartida cultural japonesa, e incentivada somente pela emergência de um
modismo - a “japonesaria”.
Com relação a esse ponto, em outro texto d’O Imaginário intitulado “O
Contágio Europeizante”, Fléxa Ribeiro (1925) fazia uma ressalva, destacando os
esforços e as boas intenções de europeus como, por exemplo, Edmond de Goncourt
(1822-1896), Louis Gonse (1846-1921) e Siegfried Bing (1838-1905). Todavia,
mesmo com “tenacidade, lucidez especializada, sentimento de bom gôsto” (RIBEIRO,
p.190), os textos críticos desses autores e suas importações de obras japonesas
também contribuíram para instaurar uma moda vulgarizadora da “japonesaria”, em
detrimento “do senso, do belo original, étnico” (RIBEIRO, p.190), que para Fléxa
Ribeiro (1925), singularizavam a arte japonesa e a distinguiam das concepções
artísticas ocidentais.
Com efeito, para Fléxa Ribeiro (1925), a arte japonesa só seria “autêntica”
enquanto intocada e casta, ou seja, caracterizada pelo “imaginoso sentimento do
pitoresco, [pela] riqueza espontânea e sedutora da decoração” (RIBEIRO, p.192),
pela “pureza primitiva, [pelo] exotismo picante, [pela] graça absorvente” (RIBEIRO,
p.190). Essas características se exibiam, por exemplo, nos kakemonos, “onde o
toque é leve, quase efêmero, dando a impressão de vertiginosa rapidez, de aflitiva
habilidade manual” (RIBEIRO, 191); nas cerâmicas nipônicas, que possuíam
diversas variantes conforme cada região do país, e da quais um exemplo
paradigmático era a produção de Nonomura Ninsei (c. 1646-1994) [Figura 3]; e na
obra dos “grandes”, principalmente na do citado Hokusai. Na passagem para o
século XX, para Fléxa Ribeiro (1925), essa arte japonesa “autêntica” só podia ser
encontrada na obra de alguns poucos perpetuadores, como Yamamoto Shunkyo
(1871-1933), Ôkoku Konoshima (1877-1938) e, sobretudo, Kawanabe Kyōsai (18311889) [Figura 4].
971
Figura 3: Nonomura Ninsei (c.1646-1694): Queimador de incenso (koro), período Edo (1615-1868)
Argila coberta com esmalte craquelado e aplicação de ouro, 17,1 x 18,4 x 18,4 cm.
Fonte: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/29.100.668
Figura 4: Kawanabe Kyōsai (1831-1889): Unhas no farelo de arroz, Grampos no Tofu, Período Edo
(1863-1866).
Tinta sobre papel
Fonte: http://www.mfa.org/collections/object/nails-in-the-rice-bran-nuka-ni-kugi-clamps-on-the-t-fu-t-funi-kasugai-from-the-series-one-hundred-pictures-by-ky-sai-ky-sai-hyakuzu-461706
Apesar da visão decidida de Fléxa Ribeiro sobre a chamada “japonesaria”,
podemos constatar, através de pesquisas recentes, a importância que Siegfried Bing,
972
por exemplo, teve para a formação de artistas europeus que desenvolveram
produções reconhecidas de maneira positiva, a partir da expansão da arte japonesa.
Poderíamos colocar esse fato como uma contraposição à ideia e ao sentimento
abatidos de Fléxa Ribeiro - afinal o “boom” japonês, a partir de 1868, mesmo que
sem seus valores e intentos ilesos, foi determinante para o fortalecimento das artes
decorativas europeias e para o florescimento de nomes como Jean-Édouard Vuillard
(1868-1940), Henri Somm (1844-1907), Henri Vever (1854-1942) [Figura 5], entre
diversos outros. (WEISBERG, 2005).
Figura 5: Henri Vever (1854-1942): Art Nouveau Comb, 1900
Chifre esculpido e decorado com cor e sementes peroladas, 9,5x11cm
Fonte: http://www.artnet.com/artwork/424347178/119156/henri-vever-art-nouveau-comb.html
À guisa de considerações finais, gostaríamos de frisar que esta comunicação
procura sintetizar os dados iniciais de uma pesquisa que se encontra apenas
iniciada: ela está sujeito, portanto, às insuficiências características de trabalhos do
gênero, como a falta de conclusões mais definidas e a abertura de problemas
conexos. Nossa intenção é aprofundar as investigações, pois acreditamos que o
estudo da exposição de arte japonesa realizada no Rio de Janeiro em 1921 pode
nos ajudar a compreender melhor os principais parâmetros que regeram a recepção
da arte japonesa no Brasil de inícios do século XX.
Notas
1
Nessa e em todas as demais citações de época, procuramos manter a grafia original com a qual os
textos foram escritos.
973
2
Fléxa Ribeiro cita os nomes de como “E. Kato, After Rain, Amdmato, Kassigi”, a respeito dos quais
ainda não encontramos maiores referências.
Referências Bibliográficas
Livros
BING, Siegfried. Artistic Japan: illustrations and essays. S. Low, Marston, Searle & Rivington,
limited, 1891, v.6
GONCOURT, Edmond de. Hokousaï: l'art japonais au XVIIIe siècle. Paris: E. Flammarion;
Paris: E. Fasquelle, 1922
RIBEIRO, Fléxa. O Imaginário (Pretextos de Arte). São Paulo: Nova Era, 1925.
- Artigos de sites, revistas ou periódicos:
Artes e Artistas. Bellas Artes. U Tadokoro. O Paiz, Rio de Janeiro, 5 jan 1921, p.4.
Arte Japoneza. Uma exposição inaugurada hontem, no Hotel dos Estrangeiros. Gazeta de
Noticias, Rio de Janeiro, 5 jan. 1921, p. 3
Exposição de Arte do Sr. U. Tadoroko. A Noite, Rio de Janeiro, 4 jan 1921, p. 2.
The Metropolitan Museum of Art: Em:
<http://www.britishmuseum.org/explore/highlights/article_index/j/japanese_painting_tosa.asp
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WEISBERG, Gabriel P.. Introduction: Tastemaking in the Age of Art Nouveau: The Role of
Siegfried Bing.Nineteenth-Century Art Worldwide, v. IV, 2005. Em: <http://www.19thcartworldwide.org/summer05index?id=192>. Acesso em: 26 março 2014.
WILLMANN, Anna. Yamato-e Painting. In Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The
Metropolitan Museum of Art, 2000. Em:
<http://www.metmuseum.org/toah/hd/yama/hd_yama.htm> Acesso em: 23 março 2014.
Vinícius Moraes de Aguar
Graduado em Belas Artes pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Desenvolve pesquisa acerca dos escritos do poeta, crítico e historiador da arte José Pinto
Fléxa Ribeiro (1884-1971). Atualmente é Professor de Artes (20h) da Prefeitura Municipal de
Vassouras (PMV) e Professor Docente I - Artes (16h) da Secretaria de Estado de Educação
(SEEDUC-RJ).
Arthur Gomes Valle
Professor Adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (DArtes/UFRRJ). Atualmente é Pós-Doutorando no Instituto de História da Arte da
Universidade Nova de Lisboa/Portugal. Seus temas de pesquisa principais, referentes em
particular ao campo artístico do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930, são: Intercâmbios
Artísticos entre Brasil e Portugal; Sistema Expositivo; Ensino Artístico.
974
ARTES SACRAS DO BUDISMO TIBETANO – HISTÓRIA, SÍMBOLOS E PRÁTICA
Tiffani Hollack Gyatso – FADM
RESUMO: O texto introduz fatores históricos sobre o desenvolvimento da arte budista no
Tibete, denominada “Thangka” – ícones de um grande panteão de deidades canonizadas
dentro de regras geométricas, através das quais busca-se alcançar a simetria perfeita,
reflexo simbólico dos ensinamentos de Buda, ou do dharma. A arte de thangka busca definir
os códigos budistas de acordo com uma anatomia espiritual, representando Buda através de
80 marcas menores e 32 marcas maiores. O texto esclarece as técnicas de produção destas
obras, bem como símbolos e seu uso dentro da prática do budismo tibetano, a partir da
imagem do Buda histórico, Sakyamuni.Procura-se esclarecer o papel do artista com relação
a esta arte sacra – seu treino, motivação e reconhecimento –, que difere da arte ocidental.
Apresentam-se exemplos da experiência da autora como a primeira aluna, estrangeira e
mulher, a frequentar por 3 anos o Instituto Norbulingka, na Índia, onde passou por um
treinamento em thangka. Além disso, mostra-se a experiência da artista no retorno ao Brasil
e na execução das pinturas do templo budista de Viamão (RS), em um projeto de 5 anos.
Dentro do aprendizado de thangka, comparam-se também os modos didáticos do ensino
oriental e do ocidental e a relação professor/mestre e aluno/discípulo.
Palavras-chave: arte budista, arte tibetana, símbolos do budismo, thangka
ABSTRACT: The text introduces historical factors regarding the development of Buddhist art
in Tibet, so-called Thangka painting – icons from a vast pantheon of deities, canonized by
the rules of sacred geometry, aiming to attain the perfect symmetry that reflects symbolic
teachings of the Buddha, known as the Dharma. The art of thangka painting aims to define
the Buddhist codes through a spiritual anatomy, by means of which the Buddha is
represented with the 80 Minor Marks and the 32 Major Marks. The text explains basic
production techniques, as well as symbols and their uses in Tibetan Buddhism, using the
image of the historical Buda, Sakyamuni. The essay also tries to clarify the role of the artist in
this sacred art – his/her training, motivation, and recognition – which is different from
Western art. Examples are given of the artist’s experience as the first student, being
foreigner and woman, to join for three years the Norbulingka Institute, India, where she
studied thangka painting. Furthermore, the artist’s return to Brazil to paint a Buddhist temple
in Viamão (RS) – a 5-years project – is provided. The text also compares the educational
method between East and West, including the pupil and teacher relationship.
Keywords: buddhist art, tibetan art, Buddhist symbols, thangka
História e símbolos
Thangka, a arte do budismo vajrayana1 praticado no Tibete, tem em grande
eminência seus princípios de composição, delineando fórmulas visíveis e simbólicas
do universo metafísico da espiritualidade, observado pelo budismo. Em sua natureza,
os temas da iconografia tibetana são abstratos, por isso a necessidade, em seu
estudo objetivo, de se atribuir a eles uma linguagem clara e pré-definida de símbolos.
975
A abundância e complexidade simbólica do thangka exibe a característica íntima de
uma cultura única e de uma linguagem específica, tanto nos temas abordados,
quanto na sua expressão.
O thangka – que, traduzido do tibetano para o português, significa “tela
branca de enrolar” (scroll painting em inglês) – co-emergiu com a oficialização do
budismo no Tibete em meados do século 700 D.C., com a vinda do excêntrico e
esotérico praticante do budismo tântrico da Índia, Padmasambhava, também
conhecido como Guru Rimpoche, ou seja, “precioso professor”. Guru Rimpoche veio
ao Tibete a convite do rei Trison Dechen, que se deparava na época com
dificuldades de oficializar o budismo em sua terra onde o Bon predominava – uma
religião animista, praticante de sacrifícios e crente em um panteão de divindades
locais. Hoje, o Bon é inserido dentro do budismo com diversas adaptações, assim
como o budismo vajrayana também incorporou algumas deidades do Bon.
Guru Rimpoche reforçou a fundação do primeiro mosteiro de Samye,
idealizado pelo mestre indiano Shantarakshita. Para o processo artístico do mosteiro
de Samye, foram chamados artistas da Índia, Nepal e China, que na época eram
locais de grande incentivo nas artes, sendo seus artistas muito recomendados. Ao
produzirem as pinturas e murais do templo, treinando conseqüentemente artistas
locais, um estilo artístico único surgiria no Tibete, junto com a religião que
predominaria pelo resto do milênio. A arte no Tibete tomou forma inseparável do
budismo e se desenvolveu dentro de diferentes escolas de estilo.
Curioso observar que o próprio Buda Sakyamuni, nascido como Sidharta
Gautama, pediu que nenhuma imagem dele fosse feita, pois imagens de Buda
desviariam a atenção do praticante para uma imagem de adoração, ao invés de
manter seu foco em si mesmo e reconhecer-se como um Buda. Dessa forma, é de
grande importância entender como a imagem do Buda é usada no budismo
vajrayana. Ela não é usada especificamente para representar a figura histórica, mas
principalmente para representar o corpo do dharma2, ou seja, da verdade entendida
por ele. A idéia é que o Buda atingiu nirvana 3 (a iluminação) e não apenas
compreendeu o dharma, mas se tornou o dharma. Quando observa a imagem do
Buda, o iniciado entende que olha para o dharma ‘escrito’, sendo assim
corretamente entendido e identificado. Além disso, o iniciado reconhece o Buda
976
desperto dentro de si mesmo e é por essa intenção especifica que a imagem do
Buda é reproduzida hoje.
Historicamente, as primeiras representações do Buda eram imagens de um
trono vazio, um guarda-sol ou as pegadas de seus pés. Mas, quando o império
grego, com Alexandre o Grande, conquistou grande parte da Pérsia e parte do norte
da Índia, cerca de 332 A.C., houve grande influência da arte grega e de sua
mitologia na crença em um deus-homem. A escola artística de Ghandara, originada
no Kashmir, norte da Índia e parte do Paquistão, deu características de um rosto e
corpo perfeito ao Buda, como os deuses gregos – de cabelos ondulados, olhar
perfeitamente sereno, corpo esguio, um manto que cobria seus dois ombros e uso
de sandálias. Os arabescos desse estilo eram muito floridos, ocupando todos os
espaços vazios de murais e afrescos, com os pilares lembrando motivos corintianos.
O estilo nepalês Newar – mais tarde conhecido também como Beri – vem
especialmente do vale de Kathmandu, onde artistas contribuíram para um estilo de
detalhes arquitetônicos, jóias com o formato de gotas e o uso do azul índigo e
abundantemente do vermelho profundo. Durante a época da dinastia Gupta na Índia,
entre séculos IV e V, a escola Mathura, de origem inteiramente indiana, desenvolveu
estátuas de pedra-sabão rosa que ficaram muito conhecidas no resto do país por
sua delicadeza e formosura.
Por volta do século X, a arte budista declinou na Índia, com a predominância
do Islã e do hinduísmo. Mas, paralelamente, o budismo se desenvolvia na China,
Japão, Tibete, Tailândia e outros países no sul da Ásia. À medida que o budismo se
espalhava por toda a Ásia, os meios artísticos de expressar os ensinamentos do
Buda foram sendo mesclados com a arte já estabelecida de cada país.
977
Figura 1 - Coluna estilo corintiano. (Imagem web)
Figura 2 - Coluna tradicional tibetana. (Imagem cedida por Dawa Lama).
Há duas importantes ramificações no budismo, também chamados como
“veículos”: o Mahayana 4, que se expandiu mais ao norte dos Himalaias (Nepal,
Tibete, Butão, China, Coréia, Japão e Vietnam), e, mais ao sul, o Theravada 5
(Myanmar, Sri Lanka, Tailândia, Cambodja e Laos). Dentro de cada um destes dois
veículos, outras veias filosóficas do budismo e da arte se ramificaram. A
intensificação do comércio pela Rota da Seda – que cruzava os Himalaias e parte do
978
oriente médio, e pela qual mercadores e peregrinos carregavam consigo achados
dos outros países – contribuiu imensamente para a conscientização dos novos
desenvolvimentos de artefatos e filosofias que aconteciam no oriente e no ocidente.
A imagem do Buda, dentro de cada linha artística, sempre manteve seu cânon
de regras de proporção em relação à perfeição do estado mental, retratado
simbolicamente, acima do realismo anatômico. Buda disse: “Quem vê o dharma, me
vê, quem me vê, vê o dharma”. Por exemplo, a sola de seus pés são lisas, sem
muitas curvas, pois o meio como ele caminha é macio, suave e sem desvios,
podendo-se dizer que ‘as pedras do caminho’ não moldam seus pés e sim, o modo
de sua conduta prevalece representado. Essas marcas, conhecidas como lakshanas,
definem o reconhecimento de 32 Marcas Maiores e 80 Marcas Menores de um
Chakravartin, “líder do universo”, após atingir a iluminação. No nascimento do Buda,
videntes do palácio de sua família previram o futuro de Sidharta Gautama, o Buda:
que ele seria um líder universal ou um grande monarca, através de 108 marcas na
sola dos seus pés. A famosa e monumental estátua do Buda na posição de sua
morte (paranirvana), em Bangkok, na Tailândia, mostra esses detalhes.
Figura 3 - 108 marcas na sola dos pés de Buda, reconhecido como um chakravartin no momento de
seu nascimento. Wat Pho temple, Bangkok. Foto por Tiffani Gyatso.
Sem entrar nos detalhes da vida do Buda, mas sim focando no significado de
sua estrutura, conforme manifestada na arte budista, podemos aqui listar em resumo
algumas das 32 marcas maiores de um Chakravartin, conforme divulgado pelo
979
Victoria and Albert Museum, Londres, com detalhes adicionados da apostila “Path to
Liberation” (2001), do mosteiro de Sechen, Kathmandu:
1.
Ele tem a sola dos pés planas (por nunca desviar do caminho).
2.
Desenho da roda do dharma juntamente com outros símbolos que
seguem, na sola dos seus pés e na palma de seus mãos.
3.
A pele da sua palma e da sola são mais macios do que o comum (por
praticar generosidade).
4.
Dedos das mãos e dos pés compridos (por salvar aqueles que estão
presos).
5.
Ha uma membrana entre seus dedos (por sempre manter união entre
os outros).
6.
Pés que firmam perfeitamente ao solo.
7.
Ossos da canela são discretos.
8.
Pernas como as de um antílope.
9.
Estrutura superior do corpo alta e ereta.
10.
Braços que alcançam até os joelhos quando em pé.
11.
Genitália contraída (por guardar ensinamentos secretos).
12.
Cabelos macios encaracolados para a direita.
13.
Pelos que crescem apontando para cima.
14.
Pele macia e delicada.
15.
Pele dourada (quando nasceu, ele brilhou como o sol).
16.
Sete Partes do Corpo especiais: dois calcanhares largos, duas mãos
largas, dois ombros largos e pescoço largo.
17.
Torso como o de um leão.
18.
Ombros delicadamente curvados.
19.
Peito largo.
20.
Circunferência do corpo tem as proporções de uma figueira.
21.
Tórax de um leão.
22.
40 dentes, ao invés dos 32 normalmente encontrados.
23.
Não há espaços entre os dentes.
24.
Os dentes têm todos o mesmo tamanho.
25.
Dentes muito brancos (fala, corpo e mente de acordo com o dharma).
26.
Um senso de paladar excelente.
27.
Uma língua longa e esguia (por sempre dizer a verdade).
28.
Voz forte e atraente, como a dos deuses.
29.
Olhos da cor de safira (por sempre olhar os outros com compaixão).
30.
Cílios longos.
31.
Bindu, marca ou pelos entre suas sobrancelhas (insight espiritual).
32.
Ushnisha, uma protuberância no topo de sua cabeça (iluminação).
Essa lista pode ter diferentes definições, dependendo das escrituras
interpretadas. Outras marcas que são usadas, sem serem definidas como lakshanas,
são as orelhas compridas e furadas. Especialmente na imagem do Buda, estas
recontam uma cena de sua vida, quando ele renuncia às vestes de príncipe,
inclusive suas pesadas jóias de ouro, as quais deixaram apenas furos alongados.
980
Essa passa a ser uma importante marca de renúncia e, conseqüentemente, de uma
linhagem nobre.
Adotando a imagem do Buda Sakyamuni para estudarmos as marcas,
símbolos e significados, é importante também reconhecer, além dos lakshanas, os
mudras (posição das mãos) e asanas (posição do corpo). O Buda Sakyamuni, na
tradição tibetana, é visto frequentemente na posição de lótus, ou seja, de pernas
cruzadas. Ele se senta sobre um trono de flor de lótus aberta. A flor de lótus é um
símbolo muito repetido e usado no budismo, pois simboliza uma perfeita metáfora de
como nós nos encontramos dentro de samsara – termo em sânscrito que designa a
roda do viver e morrer. Samsara aponta para uma visão de mundo na qual todo ser
se encontra preso no ciclo infindável dos quatro sofrimentos: nascimento,
envelhecimento, doença e morte. De acordo com o budismo, estamos todos
inevitavelmente sujeitos à morte e ao renascimento, condenados assim a sofrer as
experiências de samsara. A flor de lótus, que nasce no lodo, ergue-se por cima da
superfície escura para receber o brilho do sol. E é assim que – conforme explica o
budismo – devemos estar sobre samsara: com nossas raízes se alimentando no
lodo, mas erguendo-nos para um estado mental soberano, através das práticas que
Buda nos legou.
Por isso a imagem do Buda, bem como a das deidades, sentam-se sobre uma
flor de lótus aberta, erguendo-se sobre o lodo. Uma observação sobre o estilo das
flores em thangka é que, como o budismo foi trazido da Índia para o Tibete, muitas
flores e animais não eram conhecido pelos tibetanos, então eles pintavam o que era
descrito e não observado por eles. Assim surgiu um estilo de flores e animais únicos,
de raças híbridas e até investidos de poderes fantásticos. A flor de lótus,
tradicionalmente representada em thangka, muitas vezes sequer será reconhecida
por aquele que não é familiar com a arte tibetana.
Seguindo os símbolos, temos a representação de Buda Sakyamuni sentado
em postura de pernas cruzadas, também chamada postura do lótus, em tibetano
conhecido como a posição vajra, ou em sânscrito, dhyana asana, (posição do corpo
de meditante), assim como sua mão esquerda representa o dhyana mudra (posição
de mão do meditante). Dentro do trono de lótus, há um disco amarelo deitado,
representando o Sol, e por cima do disco do Sol há um disco da Lua – muitas vezes
981
apenas o disco da Lua será visto. De acordo com a descrição Jonathan Landaw e
Andy Weber em “Images of Enlightment” (1993), o Sol simboliza a sabedoria (Skt.
prajna): assim como o Sol dissipa a escuridão brilhando sobre o mundo, assim é a
sabedoria que compreende a natureza dos fenômenos e elimina nossa ignorância,
nossa cegueira – a causa de todo o sofrimento. A Lua simboliza método compassivo
(Skt. upaya): assim como ela brilha branca e branda, acalma nossas aflições para
receber e praticar o método com compaixão. As duas qualidades indispensáveis
representadas pelo Sol e pela Lua devem andar juntas para o alcance da iluminação
(Skt. nirvana). O Sol e a Lua também aparecem no topo de quase toda composição
em thangka, esclarecendo e reforçando a importância de sabedora e método
compassivo serem ambas cultivadas, pois método sem sabedoria é cego e
sabedoria sem método é estéril.
Buda senta-se sobre o trono de lótus, o disco da Lua e o disco do Sol, que, ao
se apresentarem em conjunto, simbolizam os Três Aspectos Principais para atingir o
nirvana, consecutivamente: renúncia de todas as causas do sofrimento gerado em
samsara; sabedoria penetrante sobre a realidade da natureza dos fenômenos que
se manifestam em sua impermanente existência; e compaixão, a motivação
verdadeira e altruísta de beneficiar os outros. A mão esquerda do Buda apresentase em dhyana mudra, o qual suporta um pote de mendicância que até hoje é
praticada pelos monges, e a mão direita apresenta-se em bhumi mudra, em
sânscrito “mudra terra”. Esse mudra se relaciona em especial com uma cena da vida
do Buda: o momento de sua iluminação, quando ele estava sentado debaixo da
árvore Bodhi (um tipo de figueira), em Bodh Gaya, Índia, cerca de 600 A.C. Buda,
sentado em estado de meditação profunda, encontra o senhor das ilusões, Mara,
que se apresenta ao Buda em três formas: primeiro, na forma de um mensageiro
com uma carta de seu pai, pedindo que Buda voltasse à corte onde nunca mais
havia voltado, pois seu pai estava morrendo. Buda compreende que essa é uma
ilusão criada dentro de sua própria mente, baseada nos resquícios de seus medos,
anseios e conceitos; por isso, ele não se move de seu lugar. Então, belas donzelas
dos cinco sentidos aparecem das formas mais sensuais e atraentes, porém Buda
enxerga a impermanência de seus corpos feitos de carne, osso e sangue, e tudo se
dissolve; ele não se move. Por fim, um grande exército, construído de ira, guerra e
terror, se manifesta em sua frente lhe impondo destruição, mas Buda enxerga que
982
ele é parte de tudo e não há ali uma identidade separada, tanto da morte, quanto da
vida, e todas as flechas que são lançadas contra o Buda por esse exército se
transformam em pétalas de flores. Mara se enfurece e lhe questiona na tentativa de
semear dúvida e confusão, “Como ousa não me responder? Você que nasceu
príncipe e se embebedou de todos os prazeres e agora acredita poder chegar onde
qualquer outro melhor que você não chegou? Quem você pensa que é?”. Buda
estende sua mão direita e chama a própria terra para testemunhar a sua iluminação.
Por isso, o bhumi mudra é o momento que Buda supera seus últimos testes e atinge
o nirvana.
Figura 4 - Desenho de Buda Sakyamuni de acordo com as proporções tradicionais tibetanas.
Desenho pela autora.
Buda usa um manto de monge cor de açafrão ou avermelhado, cores mais
fáceis e baratas de se achar. Seu manto é feito de retalhos de tecido simples. A
roupa não toca sua pele e por isso é visível, em algumas partes, o avesso do manto
mostrando outra cor. Seu corpo emana tamanha energia que a roupa fica suspensa
e folgada.
983
O pote em suas mãos pode ser visto na maioria das vezes cheio de iogurte,
que também corresponde à outra cena da vida do Buda. Quando o Buda abandona
sua vida de príncipe no palácio e renuncia a tudo, ele percorre um caminho de
máxima austeridade, meditando por seis anos sem se levantar, alimentando-se
apenas do que escorria para sua boca. Uma imagem bastante reproduzida,
especialmente pelos artistas de Bodh Gaya, é a imagem do Buda esquelético.
Depois desses longos anos, ele escuta ao longe, na margem de um rio, um
professor de sitara, instrumento indiano, passando instruções ao seu aluno, “se você
esticar demais a corda, ela arrebentará, e se afrouxá-la demais ela não produzirá
nenhum som.” Ao ouvir isso, Buda se deu conta do caminho radical que estava
praticando e, quando uma camponesa chamada Sujata, aparece lhe oferecendo
uma cumbuca de iogurte, ele aceita. Mesmo que seus companheiros meditadores se
indignassem com essa reação, Buda se levanta, fraco, e decide trilhar pelo “caminho
do meio” – e, por isso, o caminho do budismo até hoje é conhecido assim, inclusive
a escola Madhyamika, fundada por Nagarjuna, tem esse nome (literalmente significa
“caminho do meio”).
Porém, o pote que Buda Sakyamuni segura também pode ser exibido, em
algumas ocasiões, vazio – referindo-se a um conceito importante e central no
budismo tibetano, o significado do termo “vacuidade” (Skt.: sunyata), especialmente
discutida na escola Madhyamica. Nas escrituras do Sutra prajnaparamita, Buda
recita: “vazio é forma e forma é vazio”. Esse termo é elaborado em detalhe, ao
observar a arte, pelo professor tibetano Chogyam Trungpa, em seu livro “True
Perspective – the path of dharma art”.
Trungpa discorre sobre a percepção do objeto como agregados de partes
conjuntas; e as partes, por sua vez, como um agregado de partículas. No momento
em que são observadas como partes, perde-se o sentido da forma pela qual o objeto
é distinguido convencionalmente. Por exemplo, se separarmos as partes agregadas
de uma cadeira – o pé, o assento, o encosto, o tecido, a borracha – a questão surge:
onde está a cadeira? Ninguém será capaz de apontar para algo distinto que se
chame “cadeira”, apenas para partes que pertencem à cadeira; mas onde está a
cadeira? O sentido do objeto já é dado antes da observação da sua forma física – o
sentido do objeto é uma idéia. Sob esse ponto de vista, a cadeira não existe – é uma
984
idéia, uma ilusão. É a partir dessa perspectiva que avançamos percebendo que
nossa própria identidade enquanto pessoa é uma idéia construída pelos fenômenos
visíveis. É essa distorção da realidade que o budismo busca compreender com
grande profundidade.
Entendendo a forma, entendemos o vazio da forma. Estudar a imagem do
Buda é recordar-se das construções de símbolos que damos involuntariamente e
instintivamente a todas as formas que se apresentam, pois a imagem do Buda é
construída por idéias baseadas no estudo do dharma – e não do corpo dele de fato,
nem como ele foi fisicamente percebido no mundo ‘convencional’. O estudo do
budismo se foca na realidade não distorcida pelos sentidos físicos, porém,
paradoxalmente, é apenas através dos sentidos que também percebemos aquilo
que é real, bem como o efeito de distorção daquilo que é real ou verdadeiro.
Noções de espaço e proporções
No desenho das proporções de Buda Sakyamuni, observamos linhas de
medidas que cruzam pela horizontal, vertical e diagonal. Ao iniciar o desenho, com a
superfície ainda inteiramente em branco, o artista define o ponto e linha vertical
central, denominado em tibetano tsan-tik: tsan significa a idéia de Brahma, o deus
Criador, (parte da trindade de deuses do hinduísmo, Brahma, Vishnu (preservador) e
Shiva (destruidor)). Tsan é o inicio da criação, a primeira linha manifestada. Tik
significa o sêmen de Brahma, a semente da criação – o ponto no universo de
Bhrama grávido da existência e de todo o potencial. Então tsan-tik é o eixo central
encontrado a partir de um ponto sobre a superfície. A partir do ponto central, todas
as outras linhas que atravessam o desenho tomam um sentido e uma estrutura
organizada. Como explicado por Alice Boner, no livro “Principles of composition in
hindu sculpture” (1962), o centro é um ponto de referência para o qual todas as
partes convergem, por isso toda estrutura se torna “co-centrada”. A existência desse
ponto central cria logo uma hierarquia de valores, onde as partes deixam de ser
equivalentes e assumem um peso diferente na sua importância. A importância de
qualquer parte diminui diretamente em proporção da distância ao centro. Entre o
centro e as partes exteriores, acima e abaixo, o singular e o plural, cria-se uma
tensão de polaridades e ao mesmo tempo um ritmo orgânico na composição. O
985
ponto (Skt. bindu) em si é um símbolo universal – estando ele no centro de um
quadro ou em uma esfera, sua existência determina a organização das formas que
formam por si um todo. A partir do ponto, podemos iniciar a noção básica das seis
direções.
A imagem do Buda se inicia a partir da linha vertical centralizada, e o tamanho de
suas proporções são medidas em unidades denominadas tsomo.
O artista nos estudos de thangka
O estudo filosófico é em particular um requisito para o artista de thangka,
promovendo um compromisso pessoal de conduta coerente no seu trabalho. Ainda
assim, não podemos definir de modo geral que todos tenham esse compromisso,
porém seria o ideal dentro dos parâmetros esperados na arte budista. Espera-se – e,
mais do que isso, confia-se – que um autêntico pintor de thangka, ao reproduzir a
imagem de Buda e de todas as divindades e mandalas que fazem parte da
elaboração e explicação visual em busca de nirvana, tenha como premissa as
expectativas sacras, a reprodução artística sem distorção do que já foi pré-definido
pelos mestres de sua linhagem, que alcançaram a perfeita visão de sunyata
(vacuidade). Posteriormente, aquele que receber o thangka e o tiver exposto durante
sua pratica de meditação, poderá sintonizar-se com o sentido simbólico dos traços e
proporções intencionadas da imagem e da composição, que também seguem
normas pré-definidas por sua linhagem religiosa.
Finalizando, podemos usar um simples exemplo para comparar a importância
destes símbolos com um logo de qualquer produto. Quando avistamos o logo de
uma marca conhecida, associamos imediatamente com todas as qualidades e
eficiências do produto e somos remetidos a uma realidade de entendimento daquilo
que vai muito além do que o próprio logo, simples em sua forma, mas vasto e
complexo em sua realidade. Essa é a intenção quando o praticante avista a imagem
repetida do Buda.
De acordo com o sistema de estudo do Instituto Norbulingka, em Dharamsala,
Índia, o estudante de thangka se forma em 6 a 7 anos de estudo. Mas, como diz o
mestre de pinturas Temba Chopel, do Instituto Norbulingka, thangka é uma arte que
986
se aprende a vida inteira. Os primeiros dois anos na escola se passam apenas
aprendendo sobre as proporções, desenhando repetidas vezes a mesma imagem,
dando explícita ênfase na importância de manter as proporções e os símbolos
perfeitamente representados. Esse treino não faria sentido, se o artista não
estudasse as deidades do budismo, seus significados, símbolos e a filosofia que
sustenta sua representação. Quando há profundo entendimento, o desenho e a
pintura do artista refletirão o estado mental alcançado por ele através da prática de
paciência, concentração, perseverança e humildade, guiado pelo seu mestre. É
nesse ponto que se mostra tão clara a importância de um mestre e a relação que se
desenvolve tradicionalmente, no oriente, entre mestre e discípulo. Essa conexão
desenvolve, tanto no discípulo quanto no próprio mestre, a dedicação intensa e
necessária para trilhar o caminho e chegar à perfeição definida na arte de thangka.
No ocidente, parte deste aspecto se perde, por conta da relação
completamente impessoal entre professor e aluno. A pedagogia da educação no
ocidente não tem a intenção de reconhecer o valor nesse tipo de relação
compromissada, que desperta a vontade íntima de mergulhar no tema e dar o
máximo de sua potencialidade. Porém, no oriente, nas escolas mais tradicionais,
esse método de transmissão do conhecimento ainda é usado e de forma muito
eficiente. Essa relação cria uma ligação que se funde no propósito de vida da
pessoa e, por isso, seu estudo será de grande dedicação. Um verdadeiro estudante
de thangka não pode alcançar sua excelência sem: (1) ter interesse pela filosofia
dos temas tratados na pintura, (2) ter um mestre de longa trajetória e de reconhecida
linhagem e (3) sentir despertada essa dedicação em forma de propósito existencial.
A minha experiência como estudante de thangka no Instituto Norbulingka, em
Dharamsala, Índia, fundado por S. S. o Dalai Lama, foi também um marco para o
próprio instituto, que até então não havia aberto vagas para nenhum estrangeiro, e
nos últimos 10 anos havia aceito apenas uma mulher. Em meados de 2003, iniciei
meus estudos na arte tradicional de thangka, até o inicio de 2006. Ao retornar ao
Brasil, fui convidada para coordenar e executar as pinturas do templo budista
Caminho do Meio, na comunidade do CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodisatva),
liderado por Lama Padma Samten (Prof. Alfredo Aveline), em Viamão, RS.
Novamente, como a primeira não tibetana, estava na coordenação de execução das
987
pinturas. O trabalho foi iniciado no fim de 2007 e completado no fim de 2012.
Algumas adaptações tiveram que ser feitas em relação ao modo tradicional de
execução.
Figura 6 - Tiffani Gyatso pintando as “Oito Manifestações de Guru Rimpoche”, em um dos
painéis do templo do Caminho do Meio, Viamão, RS, 2008.
Tradicionalmente, o desenho é feito em papel vegetal, para que possa ser
transferido para a superfície e para a parede, através da técnica do spolvo – um
segmento de furos feitos em cima do traço do desenho e pulverizado com pó de giz
marcando o desenho na parede. Porém, essa técnica, usada também antigamente
na Europa, se mostrou desnecessária, com o uso de papel de carbono de costureira
mostrando-se mais eficiente. Ainda segundo a tradição, o uso de pigmento mineral
junto a um aglutinante orgânico é usado em toda pintura, tanto em tela quanto em
murais, porém hoje em dia é comum os artistas tibetanos substituírem o pigmento
pela tinta acrílica, por vários motivos, como: maior disponibilidade, menor custo e
facilidade na execução. Esta foi a opção adotada no templo de Viamão.
No teto, havia quatro painéis inclinados. Ao invés de pintar diretamente sobre
a parede, como foi feito no restante do templo, optou-se por doze telas de tecido,
coladas diretamente ao teto com cola de álcool polivinílico.
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Conclusão
Quanto mais inusitados e preciosos os instrumentos de medida criados,
mais perspectivas de observação da realidade surgem e com elas as mais
diversas análises, aplicações e avaliações. Por mais sofisticados que sejam,
tais instrumentos não tem condições de oferecer uma visão real da
realidade. (SAMTEN, Padma. A Roda da Vida. São Paulo, Peirópolis, 2010)
Para a arte de thangka propiciar seu verdadeiro objetivo, além de ser obra de
arte e tradição, seu propósito de origem é ser um instrumento de percepção da
realidade da nossa existência em uma linguagem além do verbal, representada
pelos aspectos simbólico, iconográfico e filosófico. A riqueza de thangka está no
encontro do olhar que busca um sentido existencial e se permite ser guiado pelo seu
universo de significados, que refletem a representação da existência humana.
Notas
1
Vajrayana: A escola Vajrayana, praticada no Tibete, também conhecido como Lamaismo ou Tantrismo
dentro da vertente do Mahayana. Em tibetano “vajra” significa “diamante” e yana significa “veículo”.
2
Dharma: os ensinamentos do Buda, entendido como a Verdade.
3
Nirvana: Iluminação, o entendimento da realidade e dissolução da identidade como separado do todo.
4
Mahayana: Uma das duas principais vertentes do budismo com maior número de seguidores. Acredita
no voto de boddhisatva – um voto de compaixão por todos os seres atingindo iluminação apenas após ter
ajudado todos os outros.
5
Theravada: Uma das duas principais vertentes do budismo, mais praticadas no sudeste da Ásia,
praticada com maior austeridade seguindo literalmente os passos do Buda, de renuncia e voto de pobreza.
Referências
BONER, Alice. Principles of Composition in Hindu Sculpures. Holanda, Brill, 1962.
JACKSON, David & Janice. Tibetan Thangka Painting. New York, Snow Lion, 2006.
LADREPA, Konchog. The Path to Liberation: the tsering art school manual for the basic
gradual stages of study of deity drawing. Kathmandu, Sechen monastery, 2001.
LANDAW, Jonathan. Images of Enlightment. New York, Snow Lion,1993.
SAMTEN, Padma. A Roda da Vida. São Paulo, Editora Petrópolis, 2008.
Tiffani Hollack Gyatso
Nascida em Cotia, SP, 1981, viajou por vários países – morou em um veleiro, conviveu com
os aborígenes no deserto da Austrália e explorou a Rússia e a Mongólia de carro. Estudou
alemão e design gráfico em Munique, Alemanha, e arte tibetana no Norbulingka Institute,
Dharamsala, Índia. Desde 2013 mora em Brasília, DF, onde faz sua graduação em Artes
Visuais pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
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