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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO UNIFESP ANAIS DO ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTE ORIENTAL ORIENTE-SE: AMPLIANDO FRONTEIRAS Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Michiko Okano (Orgs.) São Paulo 21, 22 e 23 de maio 2014 Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados, sem citação da fonte e créditos devidos. O conteúdo e a redação dos artigos é de responsabilidade de seus autores. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Biblioteca do EFLCH / UNIFESP, Guarulhos, SP E56a Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental (2014 : São Paulo, SP) Anais [recurso eletrônico] / Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental : oriente-se : ampliando fronteiras; org. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi, Michiko Okano. - Dados eletrônicos - São Paulo: UNIFESP, 2014. 990.p.; il. Disponível em: www.outrosorientes.com ISBN: 978-85-66540-08-6 Inclui bibliografias 1. História da Arte; 2. Arte Asiática; 3. Arte Oriental; 4.Arte Japonesa; 5. Arte Indiana; 6. Arte Chinesa; 7. Arte Tibetana; 8. Arte Coreana; 9. Arte Islâmica; 10. Arte Cinema Asiático; 11. Teatro; 12. Dança; I. Aldrovandi, Cibele Elisa Viegas II. Okano, Michiko III. Título CDD 709 Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP Reitora: Profa. Dra. Soraya Soubhi Smaili Vice-Reitora: Profa. Dra. Valeria Petri Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Prof. Dr. Daniel Arias Vazquez Vice Diretora: Profa. Dra. Marineide de Oliveira Gomes Departamento de História da Arte Chefe: Profa. Dra. Marina Soler Jorge Vice-chefe: Prof. Dr. Cássio da Silva Fernandes Grupo de Pesquisa Outros Orientes: Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Prof. Dr. Afonso Medeiros Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt Profa. Dra. Michiko Okano Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas Programa de Pós-Graduação em História da Arte Coordenadora: Profa. Dra. Angela Brandão Vice-coordenador: Prof. Dr. José Geraldo Costa Grillo 4 Organização e Realização Universidade Federal de São Paulo/Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/ Programa de Pós-Graduação em História da Arte Grupo de Pesquisa Outros Orientes: Profa. Dra. Cibele Elisa ViegasAldrovandi Prof. Dr. Afonso Medeiros Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt Profa. Dra. Michiko Okano Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas Coordenação Geral Profa. Dra. Michiko Okano Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Vice-coordenação: Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt Comissão Organizadora Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Prof. Dr. Afonso Medeiros Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt Profa. Dra. Michiko Okano Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas Comissão Científica Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici Profa. Dra. Cecília Mello Dra. Cecília Noriko Ito Saito Profa. Dra. Christine Greiner Profa. Dra. Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Prof. Dr. Jens Michael Baumgarten Prof. Dr. Afonso Medeiros Profa. Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro Profa. Mag. Maria Fernanda Lochschmidt Profa. Dra. Michiko Okano Profa. Dra. Patrícia Souza de Faria Profa. Dra. Rosana Pereira de Freitas Prof. Dr. Tai Hsuan An 5 Equipe Técnica Evento/Recepção Vinícius de Assis (coordenação) Ana Paula dos Santos Salvat Beatriz Faria Santos Bianca Mayumi Saijo Bruno Pereira Carolina Ciolin César Kenzo Nakashima Felipe Ikehara Gabriela Tamy Gushiken Vinícius Angelon Scopin Marco Antonio Baena Fernandes Filho Evento/Monitoria Karina Ayumi Ekami Takiguti Mariany Toriyama Nakamura Simonia Fukue Nakagawa Evento/ Fotografia Karina Ayumi Ekami Takiguti Marco Antonio Baena Fernandes Filho Vinícius de Assis Evento/Filmagem Marina Machado Ferreira Rodrigo Fernandes Simonia Fukue Nakagawa Evento/Apoio a palestrantes Lúcia Abreu Machado Yukie Hori Design gráfico e identidade visual Yukie Hori Livreto/Editoração Simonia Fukue Nakagawa Yukie Hori Livreto/Revisão Lúcia Abreu Machado Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama 6 Livreto/Fotos Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Maria Fernanda Lochschmidt Michiko Okano Yukie Hori Site Mariany Toriyama Nakamura Yukie Hori Assessoria Financeira Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama Anais Organização Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Michiko Okano Editoração/Revisão Final Cibele Elisa Viegas Aldrovandi Editoração/Revisão Karina Ayumi Ekami Takiguti Mariany Toriyama Nakamura Yukie Hori 7 Apoio Financeiro e Institucional Patrocínio CAPES – Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Apoio Institucional Consulado Geral do Japão Consulado Geral da Índia Advantage Austria Parceria Pinacoteca do Estado de São Paulo FAP Unifesp Colaboração Korin Shefa Agradecimentos Cristiane de Mello Shirayama – Bibliotecária Unifesp Magda Guimarães – Bibliotecária Masp 8 ENCONTRO INTERNACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTE ORIENTAL ORIENTE-SE: AMPLIANDO-SE FRONTEIRAS APRESENTAÇÃO O Encontro Internacional de Pesquisadores em Arte Oriental, pioneiro nos estudos de Arte Asiática e aberto a pesquisadores com chamadas por edital no Brasil, tem como objetivo discutir, a partir das recentes revisões historiográficas, a produção artístico-cultural do Oriente, principalmente do Japão, da China e da Índia, bem como de sua circulação e recepção em diferentes geografias. Organizado pelo Programa de Pós-Graduação de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Guarulhos, e o Grupo de Pesquisa Outros Orientes, esse encontro pretende reunir os pesquisadores de arte oriental do país, juntamente com os especialistas internacionais e nacionais convidados, visando uma inovação no entendimento da Arte e da História da Arte, geralmente ainda circunscritas ao Ocidente em nosso país. A importância do Evento reside na necessidade de uma compreensão mais equilibrada entre a História da Arte Ocidental e Oriental, algo que já ocorre em muitos outros países. Propõe-se, a partir da ampliação das fronteiras Oriente/Ocidente, questionar os paradigmas que fundamentaram essas áreas de pesquisa por um longo período, apostando na compreensão do mundo global que reconhece a fecundidade das diferenciações culturais e concebe a pluralidade de suas manifestações. O Grupo de Pesquisa Outros Orientes, dedicado ao estudo da Arte Oriental no Brasil, tem como histórico, primeiramente, a realização do fórum “Oriente-se: Estado da Questão”, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2012, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nesse evento, foram apresentados artigos sobre Arte Asiática de nove pesquisadores convidados. Em 2013, foi realizado o simpósio “Entre Orientes e Ocidentes” no 22° Encontro da ANPAP (Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas), organizado pela Universidade Federal do Pará, de 16 a 20 de outubro, no qual 14 pesquisadores apresentaram seus textos sobre a Arte do Oriente. Este evento, de espectro internacional, ”Oriente-se: Ampliando Fronteiras”, tem a intenção de proporcionar o acesso às pesquisas recentes da área bem como o conhecimento mútuo, o intercâmbio entre os pesquisadores nacionais e estrangeiros e, sobretudo, uma gradativa consolidação dos estudos da Arte Asiática em nosso país. 9 PROGRAMAÇÃO Quarta-feira, 21 de maio | Teatro Marcos Lindenberg Rua Botucatu, 862 09:00 - 09:30 Inscrição 09:30 - 10:30 Abertura 10:30 - 11:30 PALESTRA INAUGURAL • PROF. PARTHA MITTER Os equívocos interpretativos do Ocidente sobre a arte sacra Indiana 11:30 - 12:30 PALESTRA • PROFA. SILVIA SELIGSON Esplendores da arte oriental na sociedade Mexicana 12:30 – 14:00 Almoço 14:00 - 14:30 Abertura da Sessão de Comunicação Afonso Medeiros | Japonismo, mas “non Troppo”: a história da arte como campo privilegiado da dissimulação etnocêntrica 14:30 - 16:30 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES Arte: Tradição/Transformação 16:30 - 18:00 18:00 - 18:30 18:30 - 20:00 FERNANDO CARLOS CHAMAS | O vazio na arte Zen-Budista KATIA MARIA PAIM POZZER | Memória cultural na gênese da arte islâmica RAFAEL TADASHI MIYASHIRO | Linha e expressão na caligrafia japonesa MARIA FERNANDA LOCHSCHMIDT | O exercício da cópia na arte chinesa NEIDE HISSAE NAGAE | Yamato-e e waka - A pluralidade da arte japonesa SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES Arte: Tradição/Transformação KARINA AYUMI EKAMI TAKIGUTI | A imagem da máfia: uma análise sobre as tatuagens da yakuza YUKIE HORI | A cor e a linha nos jardins em estilo karesansui ANA PAULA DOS SANTOS SALVAT | O display e as questões culturais: o caso dos guerreiros de Xi’an MARCO ANTONIO BAENA FERNANDES FILHO | As exposições de Zhāng Dàqiān no Brasil: fragmentos de uma aproximação incompreendida VINÍCIUS DE ASSIS | 30 dias em dharamsala: residência com um pintor tibetano Intervalo SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES Arte: Moderno/Contemporâneo LUIS CARLOS BARROSO DE SOUSA GIRÃO | A narrativa pictórica na “Trilogia da margem” de suzy lee SIMONIA FUKUE NAKAGAWA | Basara em: shôjo e shônen mangá LAÍS MIWA HIGA | sobre mãos e coisas que (não) existem mais: arte e memória no regime visual da comunidade okinawana em são Paulo PAULO ANDRÉ GOMES SOARES | O canto da cigarra: mono no aware na obra de hirokazu Koreeda JUILY JYOTSNA SEIXAS MANGHIRMALANI | Bollywood, identidade cultural e representação 20:00 - 21:00 PALESTRA • PROFA. MARIA ANTÓNIA P. DE MATOS As mais antigas porcelanas encomendadas pelos europeus à China Quinta-feira, 22 de maio | Pinacoteca do Estado de são Paulo Praça da luz, 2 10:00 - 12:30 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES Arte: Diálogos/Circulações ANA TAGLIARI / SARKIS SERGIO KALOUSTIAN | Jardim japonês e Usonian house: proximidades conceituais ANGELA BRANDÃO | um Oriente para Tarsila do Amaral CIBELE ELISA VIEGAS ALDROVANDI | De outras imagens: uma topografia imagético-discursiva do Mahāparinirvāṇa do Buda no Sudeste Asiático MARCOS HORÁCIO GOMES DIAS | O gosto orientalizante na arte mineira do século XvIII MICHIKO OKANO | A estética kawaii: Origem e diálogo JENS BAUMGARTEN | Circulação da arte colonial no Brasil e nas filipinas: uma abordagem para uma análise comparative 12:30 - 14:00 Almoço 14:00 - 16:00 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES Arte: Cinema CECILIA MELLO | Cinema, espaço e intermidialidade em Em Busca da Vida de Jia Zhang-Ke MARÍLIA AIKO KUBOTA | A escrita na pele ou a marca da morte na literatura e no cinema japonês MARI SUGAI | O cotidiano familiar em Seguindo em frente LÚCIA RAMOS MONTEIRO | Ruínas em deslocamento. Still life (2005), de Jia Zhang-Ke, os filmes de barragem e a resposta da arte chinesa à hidrelétrica das três gargantas GUSTAVO HENRIQUE LIMA FERREIRA | Diferentes faces da arte nos filmes de Takeshi Kitano 16:00 - 17:30 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES JUNIORES Arte: Diálogos/Circulações MARIA APARECIDA CORDEIRO KATSURAYAMA | A influência da arte japonesa na representação da espacialidade impressionista VICTOR RAPHAEL RENTE VIDAL | Mira Schendel e a pintura chinesa BRUNO PEREIRA DE ARAÚJO | Na face oculta da lua: o Japão de Claude LéviStrauss - Alguns comentários REGIANE AKEMI ISHII | O corpo e a câmera em Tóquio – Dois viajantes: Chris Marker e Wim Wenders CAROLINA CARMINI MARIANO LUCIO | Rupturas e continuidades – As percepções da produção de artistas japoneses e nipo-brasileiros a partir das quatro exposições 17:30 - 18:00 Intervalo 18:00 - 19:00 Apresentação de Pôsteres 19:00 - 20:00 PALESTRA • PROF. HIROTOSHI SAKAGUCHI A abertura do Japão: mudanças provenientes da ocidentalização e a atualidade da arte japonesa 20:00 - 21:00 PALESTRA • PROF. AKIRA TAKAGISHI Estudos do emaki: passado, presente e futuro Sexta-feira, 23 de maio | Pinacoteca do Estado de são Paulo Praça da luz, 2 10:00 - 12:30 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES Arte: Corpo/Expressão CASSIANO SYDOW QUILLICI | O “grupo de Arte Ponkã” e a vanguarda teatral paulista da década de 80 MATTEO BONFITTO JUNIOR | A dimensão tácita como eixo do trabalho do ator nos teatros orientais ÂNGELA MAYUMI NAGAI | Nô Brasil: aspectos da tradição hoje JORGE LÚZIO MATOS SILVA | O legado das esculturas e templos védicos em composições estéticas da dança clássica indiana SAULO DE AZEVEDO FREIRE | Quando a flecha atinge a si mesmo – A arte zen do kyûdô como campo de mediações de contatos interculturais entre Oriente e Ocidente 12:00 - 13:30 Almoço 13:30 - 15:30 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO: PESQUISADORES SENIORES Arte: Moderno/Contemporâneo 15:30 - 16:00 16:00 - 17:00 17:00 - 18:00 ANA AMÉLIA CORAZZA GENIOLI | Encontros na obra de Lee Ufan ROSANA PEREIRA DE FREITAS | sobre a arte de prever o futuro MARIANY TORIYAMA NAKAMURA | Arte e cultura pop nipo-brasileira: A estética e o fazer artístico em tempos de interação e participação, formas de sociabilidade na sociedade da informação ERIKA KOBAYASHI | Coletivo de artistas moyashis: novos olhares sobre a cultura japonesa CÍNTIA MARIZA DO AMARAL MOREIRA | Tradição e modernismo europeu e chinês em retratos de fan Tchunpi: uma introdução Intervalo PALESTRAS DE ENCERRAMENTO PROFA. MADALENA HASHIMOTO CORDARO A transição de uma era em sua mais florida expressão PROF. JOSÉ ROBERTO TEIXEIRA LEITE Acerca de Chinoiseries SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 9! PROGRAMAÇÃO................................................................................................................................. 10! PALESTRAS ........................................................................................................................................ 17! WESTERN MISREPRESENTATIONS OF INDIAN SACRED ART - Partha Mitter ............. 18! DESTELLOS DEL ARTE ORIENTAL EN LA SOCIEDAD MEXICANA - Silvia Seligson .... 30! AS MAIS ANTIGAS PORCELANAS ENCOMENDADAS PELOS EUROPEUS À CHINA Maria Antónia P. de Matos.................................................................................................. 48! THE OPENING UP OF JAPAN: CHANGES BROUGHT ABOUT BY THE WESTERNIZATION OF JAPANESE FINE ART, AND THE PRESENT DAY SITUATION Hirotoshi Sakaguchi............................................................................................................ 78! EMAKI STUDIES: PAST, PRESENT, AND FUTURE - Akira Takagishi ............................. 88! A TRANSIÇÃO DE UMA ERA EM SUA MAIS FLORIDA EXPRESSÃO - Madalena Hashimoto Cordaro ........................................................................................................... 103! ACERCA DE CHINOISERIES - José Roberto Teixeira Leite........................................... 119! SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES SENIORES .................................................... 128! JAPONISMO, MAS “NON TROPPO”: A HISTÓRIA DA ARTE COMO CAMPO PRIVILEGIADO DA DISSIMULAÇÃO ETNOCÊNTRICA - Afonso Medeiros ................... 129! O VAZIO NA ARTE ZEN-BUDISTA - Fernando Carlos Chamas...................................... 141! MEMÓRIA CULTURAL NA GÊNESE DA ARTE ISLÂMICA - Katia Maria Paim Pozzer .. 156! LINHA E EXPRESSÃO NA CALIGRAFIA JAPONESA - Rafael Tadashi Miyashiro ........ 168! O EXERCÍCIO DA CÓPIA NA ARTE CHINESA - Maria Fernanda Lochschmidt ............ 186! YAMATO-E E WAKA - A PLURALIDADE DA ARTE JAPONESA - Neide Hissae Nagae . 200! JARDIM JAPONÊS E USONIAN HOUSE - Ana Tagliari / Sarkis Sergio Kaloustian...... 217! UM ORIENTE PARA TARSILA DO AMARAL - Angela Brandão ...................................... 237! DE OUTRAS IMAGENS: UMA TOPOGRAFIA IMAGÉTICO-DISCURSIVA DO MAHĀPARINIRVĀṆA DO BUDA NO SUDESTE ASIÁTICO - Cibele Elisa Viegas Aldrovandi.......................................................................................................................... 253 O GOSTO ORIENTALIZANTE NA ARTE MINEIRA DO SÉCULO XVIII - Marcos Horácio Gomes Dias........................................................................................................................ 273! A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO - Michiko Okano...................................... 288! CIRCULAÇÃO DA ARTE COLONIAL NO BRASIL E NAS FILIPINAS: UMA ABORDAGEM PARA UMA ANÁLISE COMPARATIVA - Jens Baumgarten ............................................ 308! CINEMA, ESPAÇO E INTERMIDIALIDADE EM EM BUSCA DA VIDA DE JIA ZHANG-KE Cecilia Mello....................................................................................................................... 323! A ESCRITA NA PELE OU A MARCA DA MORTE NA LITERATURA E NO CINEMA JAPONÊS - Marília Aiko Kubota ....................................................................................... 338! O COTIDIANO FAMILIAR EM SEGUINDO EM FRENTE - Mari Sugai ............................ 348! RUÍNAS EM DESLOCAMENTO. STILL LIFE (2005), DE JIA ZHANG-KE, OS FILMES DE BARRAGEM E A RESPOSTA DA ARTE CHINESA À HIDRELÉTRICA DAS TRÊS GARGANTAS - Lúcia Ramos Monteiro ............................................................................ 362! DIFERENTES FACES DA ARTE NOS FILMES DE TAKESHI KITANO - Gustavo Henrique Lima Ferreira...................................................................................................................... 382! O “GRUPO DE ARTE PONKÔ E A VANGUARDA TEATRAL PAULISTA DA DÉCADA DE 80 - Cassiano Sydow Quillici............................................................................................ 402! A DIMENSÃO TÁCITA COMO EIXO DO TRABALHO DO ATORNOS TEATROS ORIENTAIS - Matteo Bonfitto Junior................................................................................ 416! NÔ BRASIL: ASPECTOS DA TRADIÇÃO HOJE - Ângela Mayumi Nagai ....................... 428! O LEGADO DAS ESCULTURAS E TEMPLOS VÉDICOS EM COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS DA DANÇA CLÁSSICA INDIANA - Jorge Lúzio Matos Silva ........................................... 447! QUANDO A FLECHA ATINGE A SI MESMO – A ARTE ZEN DO KYUDÔ COMO CAMPO DE MEDIAÇÕES DE CONTATOS INTERCULTURAIS ENTRE ORIENTE E OCIDENTE Saulo De Azevedo Freire .................................................................................................. 463! ENCONTROS NA OBRA DE LEE UFAN - Ana Amélia Corrazza Genioli........................ 479! SOBRE A ARTE DE PREVER O FUTURO - Rosana Pereira de Freitas ......................... 490! ARTE E CULTURA POP NIPO-BRASILEIRA: A ESTÉTICA E O FAZER ARTÍSTICO EM TEMPOS DE INTERAÇÃO E PARTICIPAÇÃO, FORMAS DE SOCIABILIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO - Mariany Toriyama Nakamura ................................... 507! COLETIVO DE ARTISTAS MOYASHIS: NOVOS OLHARES SOBRE A CULTURA JAPONESA - Erika Kobayashi .......................................................................................... 526! TRADIÇÃO E MODERNISMO EUROPEU E CHINÊS EM RETRATOS DE FAN TCHUNPI: UMA INTRODUÇÃO - Cíntia Mariza do Amaral Moreira ................................................ 542! SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES JUNIORES .................................................... 553! A IMAGEM DA MÁFIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS TATUAGENS DA YAKUZA - Karina Ayumi Ekami Takiguti ....................................................................................................... 554! A COR E A LINHA NOS JARDINS EM ESTILO KARESANSUI - Yukie Hori .................... 572! O DISPLAY E AS QUESTÕES CULTURAIS: O CASO DOS GUERREIROS DE XI´AN - Ana Paula dos Santos Salvat ................................................................................................... 588! AS EXPOSIÇÔES DE ZHĀNG DÀQIĀN NO BRASIL: FRAGMENTOS DE UMA APROXIMAÇÂO INCOMPREENDIDA - Marco Antonio Baena Fernandes Filho........... 601! 30 DIAS EM DHARAMSALA: RESIDÊNCIA COM UM PINTOR TIBETANO - Vinícius de Assis ................................................................................................................................... 620! INFLUÊNCIA DA ARTE JAPONESA NA REPRESENTAÇÃO DA ESPACIALIDADE IMPRESSIONISTA - Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama ....................................... 638! MIRA SCHENDEL E A PINTURA CHINESA - Victor Raphael Rente Vidal ..................... 654! NA FACE OCULTA DA LUA: O JAPÃO DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS – ALGUNS COMENTÁRIOS - Bruno Pereira de Araújo ..................................................................... 673! SOBRE MÃOS E COISAS QUE (NÃO) EXISTEM MAIS: ARTE E MEMÓRIA NO REGIME VISUAL DA COMUNIDADE OKINAWANA EM SÃO PAULO - Laís Miwa Higa ................ 684! RUPTURAS E CONTINUIDADES: AS PERCEPÇÕES DA PRODUÇÃO DE ARTISTAS JAPONESES E NIPO-BRASILEIROS A PARTIR DE QUATRO EXPOSIÇÕES - Carolina Carmini Mariano Lucio...................................................................................................... 703! A NARRATIVA PICTÓRICA NA “TRILOGIA DA MARGEM” DE SUZY LEE Luis Carlos Barroso de Sousa Girão ................................................................................................... 720! BASARA EM: SHÔJO E SHÔNEN MANGÁ - Simonia Fukue Nakagawa ....................... 733! O CORPO E A CÂMERA EM TÓQUIO – DOIS VIAJANTES: CHRIS MARKER E WIM WENDERS - Regiane Akemi Ishii ..................................................................................... 747! O CANTO DA CIGARRA: MONO NO AWARE NA OBRA DE HIROKAZU KOREEDA Paulo André Gomes Soares ............................................................................................. 756! BOLLYWOOD, IDENTIDADE CULTURAL E REPRESENTAÇÃO - Juily Jyotsna Seixas Manghirmalani ................................................................................................................... 766! PÔSTERES ........................................................................................................................................ 786 A CRIAÇÃO NO UNIVERSO DO RYÛKYÛ BUYÔ: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA INDIVIDUAL - Alexandre Cardoso Oshiro ......................................................... 787! A FUNÇÃO DAS TRADIÇÕES TEATRAIS ORIENTAIS NO TRABALHO DE CRIAÇÃO DO THÉÂTRE DU SOLEIL - Aline de Almeida Olmos............................................................ 804! A ARQUITETURA JAPONESA DEPOIS DO TSUNAMI - Lorea Ariadna Ruiz Gómez .... 821! FU BAOSHI E UMA ANÁLISE DA PINTURA MODERNA - Beatriz Faria Santos............. 831! A MEMÓRIA MATERIAL DO INTERCÂMBIO CHINA-PORTUGAL NA ARTE SACRA PAULISTA: CAPELA DE SANTO ANTÔNIO EM SÃO ROQUE E IGREJA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO NO EMBU DAS ARTES - Beatriz Vicente de Azevedo.......... 848! ơw!ƪ: A HISTÓRIA DO SUPORTE - Camila Ferreira Iquiene da Silva ..................... 859! O IMAGINÁRIO NA EDUCAÇÃO CLÁSSICA INDO-TIBETANA - Daniel Confortin ......... 869! HISTÓRIA DAS TÉCNICAS DA ARTE DO CHARÃO NO JAPÃO - Francis Jean Yves Marie ................................................................................................................................... 888! UM OCIDENTE ORIENTAL - Hannah Basilio Ferreira da Cunha ................................... 909! AS METÁFORAS DO VENTO EM HAYAO MIYAZAKI - Kamilla Medeiros do Nascimento ........................................................................................................................ 920! CHÁ: A EXPERIÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM A CULTURA ORIENTAL Rebeca Chiarini Alcântara.............................................................................................................. 931! ANÁLISE DE PERCURSO E ESTUDO DE RELAÇÕES ENTRE ORIENTE E OCIDENTE NO ACERVO DA FUNDAÇÃO CULTURAL EMA GORDON KLABIN EM SÃO PAULO – SP Vinícius Angelon Scopin .................................................................................................. 949! A RECEPÇÃO CRÍTICA DE UMA EXPOSIÇÃO DE ARTE JAPONESA NO RIO DE JANEIRO EM 1921 - Vinicius Moraes Aguiar / Arthur Valle ........................................... 965! ARTES SACRAS DO BUDISMO TIBETANO – HISTÓRIA, SÍMBOLOS E PRÁTICA – Tifanni Hollack Gyatso...................................................................................................... 975! PALESTRAS WESTERN MISREPRESENTATIONS OF INDIAN SACRED ART OS EQUÍVOCOS INTERPRETATIVOS DO OCIDENTE SOBRE A ARTE SACRA INDIANA Partha Mitter Emeritus Professor University of Sussex and Wolfson College, Oxford ABSTRACT: My talk will be based on my work, Much Maligned Monsters, History of European Reactions to Indian art, which traces the evolution of western misrepresentations of Indian art from their roots in the Middle Ages. Even today, judged by western standards, the many-armed Hindu gods are viewed as monsters, in other words irrational. The origins of such clash of Indian and European taste go back to the fabulous tradition of Indian monsters inherited from the Greeks, and to the Christian tradition of demons of the Apocalypse and hell imagery. The early European travellers to India often saw monsters where artists had intended gods. When they published descriptions of Hindu gods, they preferred to quote what they had read in Pliny rather than trust their own sight. These stereotypes of monsters fill the pages of travels accounts and masquerade as Indian gods. The stereotypes were partly the result of ignorance of Hinduism. The talk will end in the late seventeenth century, when at last the monster stereotype was discarded as Hindu gods began to get back their true forms. With the rise of British Rule, colonial archaeology helped consolidate the knowledge of ancient Indian monuments that laid the foundation of Indian art history. However, even with such impressive accumulation of knowledge there remained the problem of understanding, whose origins go back to late medieval period. Keywords: Indian art, Hindu gods; Western stereotypes; Early European travellers; Culture clash. RESUMO: Minha palestra será baseada no meu livro Much Maligned Monsters, History of European Reactions to Indian Art [Monstros Muito Malignos – a História das Reações Europeias à Arte Indiana], que traça a sucessão de equívocos interpretativos sobre a Arte Indiana desde as suas raízes, na Idade Média. Mesmo hoje, julgado pelos padrões ocidentais, os deuses hindus de braços múltiplos são vistos como monstros, em outras palavras, irracionais. As origens deste choque entre o gosto indiano e europeu remonta à fabulosa tradição de monstros indianos herdada dos gregos, e à tradição cristã de demônios da imaginária do Apocalipse e do inferno. Os primeiros viajantes europeus na Índia frequentemente viram monstros onde os artistas pretenderam divindades. Ao publicarem descrições dos deuses hindus, eles preferiram citar o que haviam lido em Plínio, ao invés de confiarem em seus próprios olhos. Esses estereótipos de monstros preenchem as páginas das narrativas de viagem, disfarçados como deuses indianos. Esses estereótipos foram em parte o resultado do desconhecimento sobre o Hinduísmo. A palestra se encerra no final do século XVII, quando finalmente o estereótipo do monstro foi descartado à medida que os deuses hindus começaram a tomar suas verdadeiras formas. Com o estabelecimento do Governo Britânico, a arqueologia colonial ajudou a consolidar o conhecimento dos antigos monumentos indianos que formaram as bases da História da Arte Indiana. No entanto, mesmo com esse acúmulo impressionante de conhecimento o problema de entendimento persistiu, cujas origens remontam ao período medieval tardio. Palavras-chave: Arte indiana; deuses hindus; estereótipos ocidentais; primeiros viajantes europeus; choque entre culturas. 18 The English conquest of India in the 18th century laid the foundations of colonial archaeology, which systematically documented the remains of ancient Indian Buddhist and Hindu art. It prompted the creation of an Indian art history by the end of the 19th century. The man who wrote the first history of Indian art and architecture was James Fergusson. He famously said that the main feature of Indian art was that it was written in decay, unlike western art, which continuously progressed until it reached its apogee in his period, namely, the Victorian era (see FERGUSSON, 1876, p. 34; MITTER, 2003, p. 264). Fergusson claimed to trace the decay from the early simple Buddhist art of Sanchi and Amaravati their florid ornamentation and complicated designs of Hindu temples of the later period. However, the main European antipathy was directed towards the many-armed and many-headed Hindu gods. Two leading 19th century thinkers, the German philosopher Hegel and the English art critic Ruskin put this succinctly. Hegel puts his own gloss on the monstrous gods: Particular shapes are drawn out into colossal and grotesque proportions in order that they may, as forms of sense, attain to universality… as in figures with many heads, arms, and so on, by means of which this art strains to compass the breadth and universality of the significance it assumes. (HEGEL, 1920, p. 53 ff. apud. MITTER, 2003, p. 214) Ruskin laments the absence of nature in Indian art: It is quite true that the art of India is delicate and refined. But it has one curious character distinguishing it from all other art of equal merit in design – it never represents a natural fact… if it represents any living creature, it represents that creature under some distorted and monstrous form… it will not draw a man, but an eight-armed monster. (RUSKIN, 1905, p. 265 apud. MITTER, 2003, p. 245) The art historian Vincent Smith generously awarded ancient Indian art a respectable second rank among world art, but it could hardly compare with the perfection of a Classical Apollo or an Aphrodite (MITTER, 2003, 268). Until very recently, judged by western classical standards, the many-armed Hindu gods and goddesses were seen as monsters, in other words, irrational, contra naturam. While colonial knowledge of ancient Buddhist and Hindu art and architecture was impressive, proper aesthetic appreciation of ancient Indian art remained 19 inadequate. Why? To understand this curious anomaly we need to go back to the first European explorations of the non-western world. The 13th-century Italian merchant Marco Polo was one of the first western explorers of Asia. He also helped arouse European curiosity about the manners and customs of the peoples of East. He lived many years in China, and made only a brief visit to South India. His description of Indian religious customs was nonetheless a refreshing change from the earlier fabulous stories that circulated in the Middle Ages. However, one passage in Polo deserves our close attention. It describes an idolatrous practice in South India: They have certain abbeys in which there are gods and goddesses to whom young girls are consecrated (…). And when the nuns of a convent desire to make a feast to their god they send for the consecrated maidens who dance and sing before the idol with great festivity. (MITTER, 2003, p. 4) We do not know if Polo saw actual Indian temple dancers or was simply repeating what he had heard. This passage however inspired a great medieval artist, the Boucicaut Master, to try his hand at an exotic painting. This painting, The Dance of the Slaves of God, occurs in the famous 14th-century manuscript, Le Livre des Merveilles, a prize possession of the Bibliothèque Nationale in Paris. Now, if the caption had not informed you, surely you would find it impossible to recognize it as a painting of Indian temple dancers dancing before a Hindu deity. There is hardly any resemblance between these European nuns and Indian temple dancers, and the statue placed on a platform between two classical columns bear little relation to a Hindu goddess (In medieval times all pagan gods were placed on classical columns as a shorthand device for non-Christian, that is Greco-Roman gods). So what is going on here? The famous art historian E. H. Gombrich had alerted us to a curious phenomenon. In the Liber Chronicarum, better known as the Nuremberg Chronicle (1493), the illustrator Michael Wolgemut wanted to represent different cities of the world such Damascus, Mantua and Milan. Unless we are prepared to accept that all these cities looked the same, the phenomenon needs some explanation. What Wolgemut did here was to select from his storehouse of stereotypes an appropriate cliché for a city and then apply it to all these cities. Gombrich calls this the adapted stereotype, which made sense to the medieval reader when captions were added! (GOMBRICH, 1960, p. 60). 20 This medieval tendency of using a pre-existing schema to represent an object was also common to the Boucicaut Master whom I just mentioned. It is however an extreme form of a universal principle. Whenever we attempt to understand something unfamiliar we go from the known to the unknown. The human mind can only process information by classifying it under a known category, such as here in the case of Marco Polo: the Christian nuns standing for Indian temple dancers. In art, a preexisting schema serves as a starting point, which may be adapted in the light of the actual subject. However, when that starting-point is too far removed from the subject itself, as in the case of the dancing nuns of Coromandel, the representation bears no relation to the object represented. We are unconvinced by the stereotyped image here because we have better access to facts. Boucicaut followed Marco Polo’s text faithfully but could not translate the literary description into a visual image convincingly, as he had no first-hand experience of India. Thus the incongruity of the Indian nuns dancing before this idol hits us today with some force (MITTER, 2003, p. 3-5). Boucicaut’s nuns were an exception. Far more widespread were the stereotypes of monsters that fill the pages of travels accounts and masquerade as Indian gods. In fact, the roots of such ideas went back to the medieval period, and to the Greco-Roman tradition it had inherited. In the Middle Ages, India had been reduced to a fabulous name. Here was located the earthly paradise and here lived monsters described lovingly by the Greeks and faithfully compiled by the Roman historian Pliny the Younger. Stories of monopods, cynocaephali, martikhora and many-armed creatures formed the collective fantasy of the educated. Rudolf Wittkower’s path-breaking essay, The Marvels of the East: A Study in the History of Monsters, shows that many of these monsters were of Indian origin. He comments that the Greeks “rationalized [their instinctive] fears in another, non-religious form by the invention of monstrous races and animals which they imagined to live at a great distance in the East, above all in India” (WITTKOWER, 1942, p. 159-197). Pliny’s monsters were anomalous creatures but utterly harmless. The situation changed around 1000 CE when terrifying images of monsters and demons were imagined during the fearful days of the first Millennium, which collapsed conceptions of hell, demonology and the Antichrist of the Apocalypse. By the late Middle Ages an 21 elaborate and in many ways frightening imagery of demons and hell had grown up, consisting of elements from diverse sources. The classical monsters and the Christian demons converged at some stage in medieval history. The meeting of the classical and the Christian tradition was made easier by St. Augustine. He asserted that pagan gods were mortal just like other creatures and subject to the same Divine Will which they were powerless to contravene. In short, classical monsters and gods, Biblical demons and Indian gods were all indiscriminately lumped together with congenital malformations under the all-embracing class of monster. In this twilight region it is difficult to say with certainty where the line was drawn between the world of facts and that of the imagination. Significantly, the Nuremberg Chronicle includes among its monsters, an anomalous multiple-armed creature, which was really a garbled version of a Hindu god (WITTKOWER, 1942, p. 9). The representation of Hindu gods as monsters had an amazing persistence. When the first travellers arrived in India in the 14th and 15th centuries, they preferred to trust what they had read in Pliny rather than the actual deities they saw with their own eyes. This clash of classical and Indian taste is important of course. But perhaps even more important is the religious dimension to early western responses to Indian art. First of all, the Indian art that the travellers saw was profoundly religious, namely, Hindu temple sculpture and architecture. Secondly, early European interest in Hindu sacred art is not surprising at all, given the fact that this was the age of faith in the West. Scepticism and scientific rationality that we have come to take for granted is only as old as the Victorians, or perhaps even later. The reaction to Hindu gods demonstrate the clash of two major faiths, Christianity and Hinduism: one a religion of the book that believed in unity, uniformity and suppression of dissent, while the other was a form of pluralism that embraced a bewildering variety of views and beliefs accumulated over millennia. From the moment, early explorers set foot in India, after a long and hazardous land or sea journey, they were faced with the problem of making sense of what they identified as the vast theatre of idolatry that was India. For, if, as the early Church Fathers had admonished, and the Bible confirmed, that monotheism was God's precious gift to 22 Adam, how was it that he had left such a large region of the globe in the dire abyss of idolatry? Idolatry fascinated as well as perplexed the first visitors. Early reports, which contributed to the growing image of the Hindus, their religion and their religious art, were at once, fragmented, and disparate, and yet so sensational that they were extensively published in a number of European languages, widely read and endlessly discussed by the educated. The full extent of idolatry, practiced by pagans the world over, only slowly dawned on the Europeans. Initially, travellers felt confident (with some justification) that Indians had been converted to Christianity by St Thomas, and they would prove to be valuable allies against the Moors or Muslims, who were threatening western Christendom. There is the story of the Portuguese explorer Vasco da Gama's arrival in South India in 1498 and his misinterpretation of a Hindu temple. I quote it here: In Calicut, they took us to a large church built of stone. Inside the chapel was a small image, which they said represented our lady. Major da Gama and we said prayers, the priests sprinkled water and white earth. Many saints were painted on the walls. (VELHO, 1995, p. 52.4) Only later did the Portuguese discover to their fury that the Brahmin priests were celebrating the worship of the local goddess, Mari Ammai. One of the undoubted gains of the early European travellers was their firsthand experience of India and its people. Yet they could not help constantly recalling medieval legends they often knew by heart. Brahmins, named the naked philosophers or gymnosophists by the ancient Greeks, for instance, demonstrated in their simple lives all the traits of the Christian saint and philosopher. The legend was confirmed by the medieval text, Alexander Romance, which described how the Brahmins had taught Alexander the folly of pride and worldly riches in a typical Indian fashion that has continued to hold westerners in its grip (ROSS, 1963; DREW, 1987, p. 145-182). For the early travellers, the country was virtually a terra incognita. Hence one can appreciate the enormous problems they faced. From the outset, there were persistent attempts to fit the new material on Indian idolatry into the familiar mould of Biblical literature – the accommodation of the unfamiliar into a familiar mind-set. Naturally, they took as their guide the memorable passages in Pliny or the Alexander 23 Romance. The English compiler of voyages, Reverend Samuel Purchas, for instance, devotes long chapters of a weighty volume to travellers to the East from the ancient times to his own period (PURCHAS, 1613; HODGEN, 1964, p. 171, 215-218, 235238, and passim.). Western perceptions of alien religions, more than any other aspect of culture, take us to the very heart of the problem of translating concepts and values of one system into another very different one. When we engage in the act of translating, we in fact search for equivalents that may make sense. But the problem was that Christianity and Hinduism represented two entirely different world-views. From their perspective, European travellers faced a central problem of faith: were the Hindus monotheistic or polytheistic? One may argue that this is not the sort of question that engages the Hindus. The binary opposition between monotheism and polytheism - if God is not one then he must be many – only makes sense in Christianity. In monotheism, God's divinity is absolute, and he necessarily represents the Other, and is in sum, what humans are not. Thus monotheism must have polytheism as its binary opposite in order to make sense. The Indian religious universe is very different in its relativism. It is populated with living beings, hierarchically ordered, from the lowest to the highest, and joined in a unifying chain of reincarnation. From this perspective, the supreme God in Hinduism is a transcendental one but at the same time he can descend on earth and relate to the devotee on a human level. Thus divinity in Hinduism can exist on a number of levels, ultimately reaching the supreme godhead. The problem of making sense of idolatry arose among Christians initially in connection with the gods of ancient Greece and Rome, as I mentioned. The question posed was: how did the error of idolatry arise in view of God's gift of monotheism to mankind? Europeans were influenced by the following prevailing views about nonChristians: a) Christianity, the most ancient religion, taught monotheism to pagans; b) pagans let this knowledge lapse; c) pagan cults were caricatures of the holy sacrament and; d) the higher forms of paganism prefigured the arrival of the evangelists, notably, the Greek philosopher Plato or the Indian Brahmins (see Schmidt, 1988, p. 13-91).1 24 Given this framework, European visitors to India set about recovering the ‘monotheism’ concealed behind the garbled forms of Hindu polytheism. (In so doing, they became aware of the syncretistic tendency of Hinduism to reconcile and unify different belief systems.) One of the best-known early visitors to India was the Italian gentleman traveller, Ludovico di Varthema, in the 16th century. He concluded from his visit that even though the Hindus had received the revelation, they nonetheless persisted in worshipping many false gods. According to him, the Indians acknowledged one god, who created heaven and earth. But they also held that, as god did not wish to take on the task of judging, he sent his spirit, namely, the devil, to dispense justice. Having established the ultimate terms of Hindu monotheism to his satisfaction, Varthema (1510) then devoted most of his attention to the demon worship of Calicut, based, as he claimed, on observation. Here is the famous passage: In the midst of the chapel of the king of Calicut sits a devil made of metal on a seat in the flame of fire; he has four horns, four teeth and wears a triple crown like that worn by the Pope, and most terrible eyes. The said devil holds a soul in his mouth with the right hand, and with the other seizes a 2 soul by the waist. (VARTHEMA, 1510 apud. MITTER, 2003, p. 19) This was no Hindu god, but a conflation of different images of Anti-Christ in the Middle Ages. Varthema (1510) claims that he had visited the chapel of the king of Calicut; why then did he use medieval stereotypes to describe a Hindu god? We know that he wished to translate an unfamiliar image into a language understood by his contemporaries. But at this time, knowledge about Hinduism was rudimentary. So Varthema was forced to fall back upon his inherited values. And these values in turn were determined by his Christian background, which considered all non-Christian religions as inspired by the devil. His German illustrator, Georg Breu knew at once what Varthema (1515) was talking about and turned to several European traditions for this engraving. The towering figure of Satan devouring sinners, while his attendant creatures torture the damned, reminds us of the great fresco by Francesco Traini at the Campo Santo in Pisa. The triple papal crown alludes to Popes in hell; the most notable one is in The Inferno, the first part of Dante’s great poem, the Divine Comedy. The reference to three crowns, four teeth and four horns plays on numbers, reminding us of the dragon of the Apocalypse (see VARTHEMA, 1515, p. i, iii). 25 Varthema (1510; 1515) popularized the tradition of demon worship in India, a tradition continued right down to the 17th century. The Dutchman, J. H. van Linschoten, who stayed briefly in India at the end of the 16th century, took part in the Inquisition in Portuguese Goa. He accepted that the Hindus acknowledged one god, but that this knowledge was perverted by devil worship. Finally, Linschoten offered the prayer that God grant the Hindus enlightenment, because “they are like us in all other respects, made after god's image and He will release them from Satan's bondage” (BURNELL, 1885, p. 289; MITTER, 2003, p. 21-22). Predictably, for his description of the Hindu gods, he turned to Varthema's celebrated devil of Calicut. Varthema's description was also used by Linschoten's engraver, Baptista á Doetechum, who placed this monster in the actual setting of the temple at Elephanta, which is an island off the coast of Bombay (modern Mumbai). The illustration gives a panoramic view of two non-Christian faiths, Hinduism and Islam. On the right, one sees a version of a Muslim mosque while on the left is the rock-cut temple of Elephanta with Varthema’s Deumo presiding over the scene. The English traveller Sir Thomas Herbert thought it appropriate to illustrate Hinduism in his travel account and he duly used the stereotype made popular by Varthema. The other image of an Indian monster god is enshrined in Sebastian Münster’s famous Cosmographia Universalis (MITTER, 2003, p. 22-27). The 17th century marks a turning point that opened the way towards a more objective study of Hinduism. This is anticipated in a very different tradition that used a classical framework to explain Hinduism. The circle of humanists that included the great painter Rubens and the mythographer Lorenzo Pignoria consisted of foremost intellectuals and collectors of exotic objects, and expressed a genuine curiosity about other religions. In 1615, Pignoria republished Vincenzo Cartari's standard work, Images of the Gods, in which he included a Hindu god, this time not a monster, but based on authentic sources. Interestingly, Pignoria traced the origins of the Hindu god Ganesha in Egyptian idolatry. In fact, his circle had the ambition of formulating a universal theory of religion based on a comparative study of pagan religions. This Ganesha was a composite image, based on two sources: the information was sent by the Jesuits located in Goa between the years 1553 and 1560. One information was about the elephant-headed Hindu god. The other was on the great four-headed Shiva 26 figure in the rock-cut temple of Elephanta. It is possibly the most famous Indian image in the West since the 16th century (CARTARI, 1615, pl. xlviii). By the time we reach the year 1651, we encounter an event that was to have a profound effect on the western worldview of other cultures. That year Abraham Rogerius's posthumous work, The Open Door to the Mysteries of Hinduism, was published (ROGERIUS, 1917). It was greeted by contemporary scholars with enthusiasm. Although the Dutch pastor did not live to see the warm reception of his work, he had every reason to feel satisfied. Nothing perhaps expresses better the elation of having at last cracked the 'secret code' of pagan mysteries than Rogerius' title, The Open Door. A spirit of scientific enquiry informs the text, which is a painstaking investigation of Hindu doctrines and practices. The title page itself finally sheds the monster stereotype of Varthema (1510), offering a general view of Hinduism, though the actual drawing is rather poor. The publishing trend continued with the appearance in 1672 of Philip Baldaeus' A True and Exact Description of the most celebrated coasts of Malabar and Coromandel, containing a full and sober account of Hinduism (BALDAEUS, 1672). Baldaeus claims his work to be superior to that of previous authors in its reliability and there is no doubt about the quality of the text. What is in question is his authorship. There is evidence that the text was by the Jesuit priest Jacopo Fenicio, who had meticulously interviewed Brahmins for his sources (FENICIO, 1933). This text was in the possession of the Dutch artist, Philip Angel, who had illustrated it with actual Indian paintings. Angel had presented it to the governor of Batavia in order to ingratiate himself with him. Baldaeus was tutor to the governor's son, and he quietly took possession of it. Baldaeus subsequently published it in his own name – a blatant case of plagiarism. Here are two examples from the work – an Indian miniature from Angel’s manuscript of the famous battle in the epic, Ramayana, and the Dutch illustrator of Baldaeus reworking the Indian original (MITTER, 2003, p. 57-58). I would like to end this talk by going back a few years to 1667, and to the most famous work on idolatry, China Illustrata, written by Athanasius Kircher. He was the papal librarian and belonged to Pignoria's circle of comparative mythologists, who traced the origin of all religions back to Egypt. Kircher's brand of cultural diffusionism, with its mixture of encyclopaedic learning and superhuman industry, with a slight lack 27 of common sense, has often been ridiculed. But his importance lies in being one of the first to try and make sense of non-Christian religions, instead of dismissing them as forces of darkness. India fascinated Kircher and he had a long section on it, including an early though garbled account of the importance of Buddhism in Asia. His German compatriot, father Heinrich Roth, who was based in India, supplied him with texts and images of Indian religions. Kircher provides among others an illustration to the Purushasukta cosmological myth from Book 10 of the oldest Hindu religious text, the Rig Veda. The myth describes how the four great castes emerged from the different parts of the body of the creator god, Brahman (MITTER, 2003, p. 55-57, 6061; GODWIN, 1979). With Rogerius, Baldaeus and Kircher we reach the end of this long period from the end of the Middle Ages to the threshold of change that took place in the 18th century with the establishment of British rule in India. At last the monster stereotype was discarded and Hindu gods began to receive back their own true forms. The incidental details also became more convincing. However, it was still another eight years before archaeological researches of the British Empire would be able disseminate faithful images of Hindu gods, and accurate studies of Indian antiquities. But that did not necessarily lead to a greater understanding of Hindu sculpture and architecture, which has continued to pose problems of appreciation for the western art historian. One may say that even with greater knowledge, the stereotypes of Indian monster gods remained as exemplified by Hegel and Ruskin. Notes 1 See on the debate on polytheism from Patristic literature to the end of the Middle Ages that influenced European thought until the modern times and affected the early travellers, Schmidt, F. (1988, p. 13-91). 2 The Itinerario de Ludovico di Varthema Bolognese was published in Rome in 1510. Bibliographical References BALDAEUS, P. Beschreibung der Ostindischen Kusten Malabar und Coromandel. (Amsterdam, 1672). A Collection of Voyages and Travels, III. CHURCHILL, A & CHURCHILL, J. (trads.). London, 1703. BURNELL, A. C. The Voyage of J. H. van Linschoten, I. London, 1885. CARTARI, V. Le vere e nove imagini degli dei degli antichi, II. Padua, 1615. DREW, J. India and the Romantic Imagination. Delhi, Oxford Universty Press, 1987. FENICIO, J. Livro da seita dos Indios orientais. Uppsala, 1933. 28 FERGUSSON, J. The History of Indian and Eastern Art and Architecture. London, John Murray, 1876. GODWIN, J. Athnasius Kircher: A Renaissance Man and the quest for Lost Knowledge. London, Thames & Hudson, 1979. GOMBRICH, E.H. Art and Illusion: a Study in the Psychology of Pictorial Representation. London, Phaidon, 1960. HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Ästhetik (Werke 10), English translation by P. B. Osmaston, The Philosophy of Fine Art, II. London, 1920. HODGEN, M. T. Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1964. MITTER, P. Much Maligned Monsters: a History of European Reactions to Indian Art. 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Especializado em Arte Indiana e a sua recepção no Ocidente, suas pesquisas mais recentes tratam da interface entre Oriente e Ocidente e das questões que envolvem as trocas culturais na era da globalização. 29 DESTELLOS DEL ARTE ORIENTAL EN LA SOCIEDAD MEXICANA ESPLENDORES DA ARTE ORIENTAL NA SOCIEDADE MEXICANA Silvia Seligson Museo Nacional de las Culturas RESUMEN: Los objetos que los pueblos del Este asiático han creado a lo largo de su milenaria historia son resultado de sus necesidades y aspiraciones fundamentales. En ellos plasmaron sus ideas a través de símbolos que intrigan a otros pueblos. Con el pasar del tiempo dichos objetos han sido apreciados y coleccionados como obras de arte. Esta conferencia nos acerca a ese mundo pletórico de simbolismo, a través de las piezas exhibidas en las salas permanentes dedicadas a China, Corea y Japón del Museo Nacional de las Culturas. Destacaremos la relevancia del Museo y de su acervo, al ser la única institución en México dedicada exclusivamente a las culturas del mundo, como por sus antecedentes históricos y sociales. Mencionaremos las actividades que realiza, bajo un nuevo enfoque: presentar las culturas asiáticas de manera integrada a través de temas específicos que evidencian tanto sus manifestaciones artísticas, como la elegancia y complejidad de sus costumbres y creencias tradicionales. Este enfoque pretende mostrar la diversidad cultural e histórica (hasta inicios del siglo XX) de China, Corea y Japón, semejanzas y peculiaridades en un contexto que trascienda las fronteras nacionales actuales, contribuyendo así a profundizar el conocimiento y la apreciación de la unidaddiversidad estructurado en temas comparativos. Palabras clave: Colecciones; Arte; Culturas Este de Asia; Diversidad. RESUMO: Os objetos que os povos do leste Asiático criaram ao longo de sua história milenar são resultado de suas necessidades e aspirações fundamentais. Ali, eles combinaram suas ideias por meio de símbolos que intrigam outros povos. Com o passar do tempo, esses objetos foram apreciados e colecionados como obras de arte. Esta conferência nos aproxima desse mundo pletórico do simbolismo, através das peças exibidas nas salas permanentes dedicadas à China, Coreia e Japão do Museu Nacional das Culturas. Destacaremos a relevância do Museu e de seu acervo, por ser a única instituição no México dedicada exclusivamente às culturas do mundo, bem como a seus antecedentes históricos e sociais. Mencionaremos as atividades que ali se realizam, sob um novo enfoque: apresentar as culturas asiáticas de maneira integrada através de temas específicos que evideciam tanto suas manifestações artísticas, como a elegância e complexidade de seus costumes e crenças tradicionais. Este enfoque pretende mostrar a diversidade cultural e histórica (até o início do século XX) da China, Coreia e Japão, as semelhanças e peculiaridades em um contexto que transcende as fronteiras nacionais atuais contribuindo, assim, para o aprofundamento do conhecimento e da apreciação da unidade e diversidade estruturados em temas comparativos. Palavras-chave: Coleções; Arte; Culturas; Leste da Ásia; Diversidade. El Museo Nacional de las Culturas es la única institución en México dedicada exclusivamente a las culturas del mundo. Comprende una amplia colección de objetos procedentes de civilizaciones antiguas y de pueblos de diversas culturas y 30 áreas geográficas. El edificio que aloja al museo, ubicado en el centro histórico de la ciudad de México, data de principios del siglo XVIII (1734), siendo entonces y durante la época colonial la Casa Real de Moneda donde se acuñaban las monedas de plata proveniente de las minas virreinales o novohispanas. En 1865, tras la independencia de México de España, se fundó en dicho recinto el primer “Museo Público de Historia, Arqueología e Historia Natural” con un conjunto de piezas dispersas pero representativas de símbolos históricos y culturales de la identidad nacional, “los fundamentos de la nación por vía de los valores comunes preservando los testimonios de un pasado remoto o cercano” (MANRIQUE, 1993, p.16)1. El actual Museo Nacional de las Culturas se estableció a fines de 1965 con los objetos donados por coleccionistas privados y por los gobiernos de otros países como gesto de hermandad y amistad con México. En sus salas es posible apreciar la historia y riqueza cultural de pueblos milenarios de todo el mundo2. Una de sus funciones principales ha sido relacionar los contenidos de sus exposiciones con los de cursos de historia universal impartidos en las escuelas3. Desde 2009 el museo está inmerso en un proceso de renovación tanto arquitectónica como académica y/o educativa. Los investigadores y curadores comparten la opinión de exponer las piezas, más que guiadas por un orden cronológico, ordenadas por otros referentes que tengan que ver con las circunstancias particulares de los individuos que las crearon, ubicando las piezas en su contexto con una temática que ofrezca al visitante información alternativa que enriquezca su visión de la realidad, que fomente la reflexión (SINGER, 2002). Con este nuevo enfoque se busca resaltar los objetos exhibidos como vectores de identidad, valores y significados, tanto a nivel colectivo como individual, utilitario y simbólico; cambios que representan sin duda un gran reto para el museo, debido en parte al limitado presupuesto que el gobierno otorga al rubro de recreación y cultura4, como a las características de sus colecciones: una amplia variedad de más de 14,000 objetos recabados, seleccionados y catalogados con base en la idea tradicional de un acervo total o enciclopédico y fragmentado de acuerdo a las ramas de la Antropología, constituyendo así “ una especie de partición precisa…como si la materia museable (sic) fuera una especie de queso que se corte en tajadas precisas”(MANRIQUE, 1993, p.21). En la curaduría renovada de las salas dedicadas 31 a las culturas del Este de Asia, se ha intentado plasmar la diversidad cultural e histórica (hasta inicios del siglo XX) a través de los siguientes temas comparativos: concepción de la muerte, creencias religiosas y ceremonias tradicionales, intercambios comerciales, aportaciones culturales, así como aspectos de su impacto en la sociedad mexicana. Introducción China: El Reino del Centro China, uno de los países más grandes y poblados del mundo, vio nacer una civilización asombrosa cuyos orígenes se pierden al paso de los milenios. Pero siempre ha conservado la continuidad cultural que todavía hoy la distingue. De la cosmovisión del pueblo chino se desprendieron sus creencias y símbolos, reflejados en el taoísmo y el confucianismo. Las ideas del mundo divino y natural, la vida y la muerte, la veneración a los ancestros, entre otras múltiples concepciones, han sido fuente de inspiración e inagotable creatividad. Hace más de 5,000 años, esa ideología conformó la base de lo que los chinos aún consideran su máximo signo de civilización: la escritura; fundamento para el desarrollo de inventos y avances tecnológicos, plasmados en artes tradicionales que abarcan desde el neolítico tardío (hacia 4,000 a.C.), hasta fines del periodo imperial en 1911; entre ellas destacan la pintura, la poesía, la caligrafía, la escultura, la música y la danza. El jade, el bronce, la seda y la porcelana, entre otros, fueron materia prima de impulso creativo y que motivó a los chinos a recorrer el mundo y transmitir e influir con su legado cultural no sólo a pueblos vecinos, también a otros lejanos5 Corea: Tierra de la Calma Matutina La cultura milenaria de Corea traza su origen legendario al momento en que Dangun, nieto del dios del Cielo, fundó el estado arcaico de Go-Joseon (Ko-Choson) en 2,333 a.C., de donde deriva el calificativo que la hace ser conocida como “la tierra de la calma matutina”. Debido a su ubicación geográfica en el este de Asia, a lo largo de su historia Corea fue vulnerable a invasiones y a la influencia cultural de sus vecinos. Sin embargo, esas circunstancias favorecieron, a la vez, el desarrollo de 32 una cultura peculiar y un estilo artístico propio. En las manifestaciones artísticas de los coreanos priva un sentimiento de libertad, del ritmo natural de la vida; sobresalen sus aspiraciones espirituales y estéticas, así como su profundo sentido de identidad nacional, plasmadas en ofrendas funerarias, pinturas, documentos, indumentaria, instrumentos musicales y porcelanas6. Japón: Tierra del Sol Naciente El equilibrio contrastante entre el aislamiento y el contacto con el mundo exterior ha modelado a la compleja sociedad japonesa. La cercanía del archipiélago japonés con el continente asiático contribuyó a la adopción de elementos culturales de China y Corea. Pero, a la vez, su ubicación geográfica y su condición de isla coadyuvaron al florecimiento de una cultura propia. Sus ritmos históricos rompen con los procesos de desarrollo de otras sociedades: la manufactura de objetos de cerámica tuvo lugar diez milenios antes del surgimiento de la agricultura en Japón, sus primeros registros escritos datan del siglo VI d.C. y el feudalismo se prolongó hasta mediados del siglo XIX. En el contexto de una combatividad impetuosa y una notable sensibilidad estética, la cultura tradicional enfatiza la unión de lo utilitario, lo bello y lo espiritual. Ese contrastante Japón fue cuna de fieros samurai y de un mundo altamente refinado, regido por códigos de comportamiento en armonía con la naturaleza. El aprecio de lo sencillo, exaltado por el budismo zen, ha caracterizado las artes del pincel, la ceremonia del té, las artes marciales y el teatro clásico Noh; éstas expresiones, unidas a las creencias shintoístas autóctonas, crean una cosmovisión que ha dejado una huella permanente en la textura de la vida de los japoneses y que, además, ha determinado tendencias filosóficas y estéticas en el mundo contemporáneo7. 33 Concepción de la muerte Desde tiempos antiguos los chinos creyeron en la continuidad de la vida después de la muerte. Por ello, proporcionaban a los difuntos todos los objetos de uso cotidiano y ritual necesarios en el otro mundo, mostraban en cantidad y calidad su jerarquía y posición social. Las ofrendas incluyen recipientes de cerámica, jade y bronce, otras son figurillas de animales y personas que con el tiempo sustituyeron a los familiares, músicos, sirvientes y guerreros enterrados para acompañar al difunto. Las esculturas más espectaculares son las del famoso ejército de terracota de tamaño natural halladas en las fosas que rodean la tumba del primer emperador, Qin Shihuangdi (221-206 a.C.)8 . El jade fue ampliamente usado en los ritos funerarios desde el Neolítico tardío (5,200–3,000 a.C.) hasta fines del periodo imperial en 1911. Se consideraba fuente de energía vital o qi, símbolo de poder e inmortalidad. Se cosían fragmentos de este material en las mortajas y, para los soberanos, se confeccionaban trajes completos9 . Los artesanos produjeron una amplia gama de objetos de bronce durante la Edad de Bronce (2,100 a.C.- 300 a.C.); destacan los recipientes rituales con más de cincuenta formas diferentes, clasificadas según su función y el tipo de ofrendas que contenían para honrar a dioses y ancestros, cuya veneración ha sido desde entonces una característica de la cultura china. Los motivos ornamentales de los recipientes representan a las deidades mediante signos y efigies de animales míticos y totémicos, ya sea de manera realista o estilizada. Algunos poseen inscripciones que se refieren a acontecimientos o circunstancias de su elaboración. Generalmente se localizan en el interior con la intención de que tanto vivos como difuntos las leyeran al consumirse las ofrendas. Según las creencias autóctonas de Corea, la muerte significa el retorno a la fuente de la existencia, el regreso al hogar para disfrutar de una vida eterna. El cuerpo del difunto es concebido como la semilla que dará un fruto, por lo que la muerte es la oportunidad de tener una nueva vida; además, es el proceso mediante el cual el ancestro se perpetúa en sus descendientes y, de esa manera, vive eternamente. Lo anterior se refleja en las tumbas coreanas. Como ejemplo, en 34 tiempos remotos, cuando moría un niño, su cadáver era amortajado y colgado de la rama de un árbol, a semejanza del capullo de una crisálida cuya vida latente dará lugar a una mariposa. Otras tumbas constituían en grandes montículos de tierra que evocaban a las montañas donde se hacían ritos propiciatorios. En Gyeongju, la capital del Reino de Shilla, se han conservado 155 túmulos de la realeza -cuyas dimensiones varían entre 30 y 80 metros- que datan de los siglos V y VI d.C. En el interior se hallaron suntuosas ofrendas de oro: coronas, cinturones, collares y aretes. La corona es emblema de la autoridad suprema del rey. Según las creencias chamánicas su aro ondulado representa el océano del inframundo, tres prolongaciones simbolizan el árbol cósmico y las otras dos semejan los cuernos del venado sagrado asociado con el movimiento del sol. Sus laminillas y pendientes de jade son amuletos que aluden a la fertilidad y longevidad. Las tumbas de los soberanos de la dinastía Joseon (1392-1910) estaban rodeadas por un muro semejante a un capullo y edificadas en sitios basados en la geomancia, o sea, rodeados por colinas para bloquear los vientos, una corriente de agua para mantener el flujo continuo de la energía vital de la tierra e hileras de cipreses y pinos, por ser concebidos como símbolos de larga vida. Estos sepulcros tenían una estructura similar a la de los palacios: un pabellón principal para las ceremonias, amplia explanada, área residencial o cámara funeraria cubierta por un gran montículo rodeado de esculturas de granito de funcionarios de la corte y animales protectores. Poseen una estela con el nombre póstumo, el registro de los méritos del difunto y un altar de piedra en honor del dios de la montaña. Las creencias tradicionales japonesas sobre la muerte suponen que el alma deja el cuerpo y se marcha al País de la Sombra, lugar impuro del cual es liberada mediante ritos oficiados por sus deudos. Hecho esto, el alma parte hacia el ámbito donde se reúne con sus ancestros para, luego, retornar a esta vida y renacer en alguno de sus descendientes. El otro mundo es concebido como un reflejo del nuestro, pero ahí el orden espacial y temporal se encuentra invertido. A finales del período Yayoi (hacia 300 a.C. a 250 d.C.) se erigieron los primeros montículos funerarios para los líderes religiosos y políticos de los clanes. En los siguientes tres siglos el número y tamaño de dichos túmulos –kofun- se incrementó cuando el clan Yamato consolidó la dinastía imperial que persiste hasta 35 la actualidad. Se caracterizan por estar rodeados con figuras huecas de arcilla denominadas haniwa que representan a los seres y objetos más apreciados por el difunto. Algunas evidencian el contacto con China y Corea, así como el deseo de la nobleza japonesa de vestir y comportarse como sus contrapartes asiáticas. En la cima del montículo se colocaba una haniwa en forma de casa; hoy persiste la costumbre de cubrir las tumbas con una “casa para el espíritu” elaborada con papel, madera y flores. Creencias y costumbres tradicionales En China Taoísmo. Sistema místico, filosófico y religioso que se originó en creencias milenarias chinas acerca de la vida, la muerte, el carácter humano, la sociedad, la naturaleza, los dioses y espíritus, así como en las enseñanzas del Maestro Laozi (siglo VI a.C.), quien escribió el Tao Te King, Libro del Camino y la Virtud. El Tao remite a lo indefinido e infinito. Representa el camino del ser humano y el principio que rige el universo en cambio permanente, cuya base son las fuerzas Yin y Yang: los opuestos complementarios en equilibrio dinámico, creados por el Uno Supremo o Taiji que influye en todo lo existente: relaciones entre las estaciones, los puntos cardinales, los astros y los planetas, las notas musicales, los colores, olores y sabores, las partes del cuerpo humano y la actitud moral. Deriva con el tiempo en una vertiente del taoísmo como religión popular que hasta la actualidad se manifiesta en ceremonias familiares y festivales anuales. Destaca el festival QingMing -“Claro y Brillante”- que se celebra en abril en memoria de los difuntos y ancestros10. Confucianismo. Kongfuzi o Confucio (551-479 a.C.) es uno de los personajes más sobresalientes de China y de la humanidad. Consideraba que era posible alcanzar la sabiduría mediante el conocimiento interior, la devoción al Mandato del Cielo -poder cósmico, espiritual y moral- y la veneración a los ancestros. Concebía el ritual y la música como vías ideales para cultivar la virtud, la armonía y la comunicación con los difuntos y el universo. 36 Las enseñanzas del Maestro fueron recopiladas en la obra Lun Yu (Conversaciones o Analectas) que, junto con otros textos antiguos sobre ceremonias, historia y literatura comentados por él, son conocidos como los Clásicos del Confucianismo y han sido por milenios las lecturas básicas de la educación china. Más que una religión, el confucianismo es una filosofía cuyos valores son fuente de inspiración y ejemplo de las relaciones entre individuos en todos los niveles: familiar, comunitario y nacional. La residencia de Confucio en la ciudad de Qufu se convirtió posteriormente en un templo consagrado a su culto; es un imponente conjunto de edificios11 donde se han celebrado anualmente ceremonias oficiales acompañadas con milenarios instrumentos de percusión para venerarlo. En la cosmovisión china la música es vínculo entre el Cielo y la Tierra. Existen 72 instrumentos diferentes (atribuidos al legendario emperador Fuxi) y se dividen en ocho categorías según su sonido y material. La música también tiene papel predominante en la famosa Ópera de Beijing, espectáculo chino por antonomasia; combina drama, canto, mímica, acrobacia y danza basado en las enseñanzas de Confucio, acontecimientos históricos o anécdotas tradicionales. Carece de escenografía y la atención se centra en los actores quienes se maquillan a sí mismos; el laborioso maquillaje es un arte que expresa la identidad y el temperamento del personaje. En Corea El musok, conocido como chamanismo coreano, es la religión nativa cuyo origen se remonta a casi 5,000 años. Se basa en la creencia en dioses y espíritus de la naturaleza, del cielo y de personajes legendarios e históricos, representados en pinturas sagradas. Los chamanes –mudang- invocan a las deidades con colorida indumentaria y transmiten sus mensajes a través de rituales –kut–, acompañados de instrumentos musicales de percusión. El budismo fue introducido a Corea a través de China en el período de los Tres Reinos (siglos IV-VII) y alcanzó su apogeo con la dinastía Goryeo (918-1392), 37 al decretarlo la religión oficial. Se consideró que, al igual que el musok, otorgaría buena suerte y protección contra conflictos internos e invasión externa. Con el patrocinio de los gobernantes se edificaron templos y monasterios, así como esculturas de gran calidad artística, algunas de ellas integran elementos de ambas religiones. Los monjes coreanos difundieron las doctrinas de las escuelas budistas y compilaron, comentaron, transcribieron e imprimieron una amplia variedad de textos12, desarrollando un distintivo estilo coreano. Durante la consolidación política y económica de los Tres Reinos, las enseñanzas de Confucio sentaron las bases del orden social; sin embargo, su mayor impacto en la sociedad fue durante la dinastía Joseon (1392-1910), al reemplazar al budismo como religión nacional. A través del neoconfucianismo los gobernantes instauraron un firme régimen centralizado. Concebían el servicio público por encima de los intereses privados y su ética se fundamentó en las relaciones de autoridad y obediencia, desde el Estado hasta la familia. Una estricta jerarquía rigió la vida cotidiana y tuvo amplias repercusiones en la educación, el arte y la ciencia. Los materiales, estilos y colores de la indumentaria estaban codificados según la rígida jerarquía confuciana, por lo que variaban de acuerdo a la posición social, rango, estado civil, sexo y edad. Así, la sencilla ropa opaca de los plebeyos contrastaba con la espléndida y colorida vestimenta de seda de la aristocracia. La vivienda tradicional coreana, hanok, constaba de dos espacios: el del frente reservado para los hombres y el del fondo destinado a las mujeres. El de estas últimas acondicionado a sus necesidades, labores domésticas y habilidades del bordado que se convirtió en un excelso arte, evidente en el colchón y asiento de seda13. Otro elemento imprescindible en su habitación era el biombo con motivos de flores y aves acordes con las estaciones del año y evocadores de armonía conyugal. En cambio, en la habitación masculina prevalecían elementos de las artes del pincel distintivas del erudito: poesía, caligrafía y pintura. Temas y estilos pictóricos respondían a objetivos gubernamentales de promoción de la educación, lealtad a la autoridad y veneración a los ancestros. Igualmente, para el fortalecimiento de la identidad nacional, los eruditos recorrieron el país para pintar detallados paisajes y escenas cotidianas. Con una visión crítica, crearon obras de gran vitalidad, dinamismo e ironía. A la vez, surgieron 38 manifestaciones artísticas populares en una amplia gama de danzas-drama con máscaras que, además de ofrecer entretenimiento y diversión, tenían significados mágicos y religiosos. Sus intérpretes –únicamente hombres- portaban expresivas máscaras para mostrar mediante la crítica, sátira e ironía la manera en que el oprimido pueblo percibía la situación social prevaleciente durante la dinastía Joseon. En Japón El conjunto de creencias y tradiciones nativas japonesas, entre ellas la veneración a los ancestros, a seres mitológicos e históricos y a fenómenos naturales, se conoce como shinto (“la senda de los dioses”, “el camino a casa”). Comprende un vasto conjunto de deidades denominadas kami, seres animados e inanimados. Los santuarios shintoístas son construcciones sencillas -similares a las casas rurales tradicionales- donde el entorno natural forma parte del recinto. Ahí se realizan festivales anuales y ceremonias del ciclo de vida y agrícola. Los campesinos acostumbran elaborar figuras de animales asociados con el cultivo del arroz y tablillas alusivas a sus deidades y plegarias. La ceremonia nupcial tradicional es shintoísta y tiene como principal rito el brindis que alude a la unión de dos familias. El atuendo de la novia consta de varios kimonos cuyos colores y motivos simbolizan pureza, elegancia, nuevo inicio, felicidad y larga vida. Al igual que en las otras sociedades asiáticas agrícolas, las estaciones y los principales acontecimientos de la vida están marcados por ceremonias y festividades relacionadas con el cultivo del arroz y se rigen por el calendario lunar; así, la primavera inicia tras los festejos del año nuevo. Entre los festivales japoneses más tradicionales está Tango no sekk. Se acostumbra montar un altar con muñecos que representan a guerreros legendarios e históricos junto con objetos relacionados con sus hazañas. Su finalidad es transmitir el ejemplar comportamiento del samurai quien, a los cinco años de edad, recibía de su padre el sable que usaría como adulto. Se festeja a nivel nacional el 5 de mayo como el Día de los niños varones, mientras que el Día de las niñas –Hina Matsuri- se celebra el 3 de marzo colocando un altar con muñecos alusivos a los miembros de la corte imperial del periodo Heian (7941185), auge de la cultura clásica japonesa. 39 El budismo fue introducido a Japón a través de Corea e instaurado como religión oficial entre los siglos VI y VIII. Fue entonces que se incorporaron elementos de la cultura china en todos los ámbitos, desde la organización política, económica y social, hasta las costumbres y expresiones artísticas; entre ellos algunas ceremonias budistas en la música y danza de la corte. Los japoneses adoptaron la escritura china, con la que registraron sus primeros documentos históricos, y la caligrafía, que se convirtió también en un objeto de culto. La habilidad para escribir con signos chinos –kanji- y componer poemas fue característica de la elite educada. Un siglo después, floreció una cultura distintiva con la creación de un sistema complementario para escribir el japonés, consistente en silabarios o kana que fueron medios de expresión para las damas de la corte. Describieron el lujo, refinamiento artístico y social que caracterizaron a la nobleza del periodo Heian14. Surgió también un estilo de pintura secular -yamato-e, y un formato que permite combinar textos e ilustraciones con la finalidad de narrar acontecimientos diversos en rollos horizontales llamados emakimono; fueron al poco tiempo un medio adecuado para difundir las enseñanzas budistas e ilustrar pasajes de obras literarias y célebres batallas. En el largo período del régimen feudal (1185-1868), el sistema político y social se fundamentó en la lealtad entre el señor y sus vasallos. Se elevó la posición de los guerreros, denominados samurai o “servidores”, regidos por un código de comportamiento basado en el confucianismo, creencias nativas y del budismo zen, que enfatizaba la austeridad, autodisciplina y meditación. El “alma” del samurai era su sable, en su elaboración se requería de la habilidad de diferentes artesanos, el forjado implicaba un largo proceso para obtener hojas de insuperable calidad, de acuerdo a las cambiantes tácticas de combate en los siglos de lucha por la hegemonía. Con la centralización del poder y pacificación del país en el periodo Edo (1603-1867), la atención se canalizó a ornamentar las vainas y empuñaduras concebidas, por ende, como obras de arte. Los monjes del budismo zen impulsaron el cultivo y el hábito de beber el té, propiciando así la llamada ceremonia del té, el florecimiento de las artes marciales, la pintura monocroma sumi-e y el teatro Noh. Todos sus aspectos reflejan la estética zen y sus principios: apreciación de lo natural, lo cotidiano y simple. Lo sugerido, 40 pequeño, sencillo y asimétrico es más valorado que lo evidente, grandioso y artificial. En el drama lírico denominado teatro Noh, los actores, con meticulosos movimientos y pausadas danzas, representan historias trágicas cuyos personajes son fantasmas de memorias pasadas; la suntuosidad de su indumentaria contrasta con la escenografía limitada a ilustrar un estilizado pino, símbolo de los dioses. Algunas aportaciones De China Nos encontramos aquí ante una amplia gama de invenciones tanto utilitarias como de gran belleza que motivaron a los chinos a recorrer el mundo y transmitir su legado cultural. El cultivo de la seda y su manufactura, la elaboración del papel, la imprenta y las artes relacionadas con la escritura, así como las técnicas para crear objetos de gran valor artístico en bronce, jade y porcelana, entre otros inventos. Los primeros pictogramas datan del cuarto milenio a.C., grabados en huesos de animales, después en objetos de bronce, piedra hasta el desarrollo de la escritura que adquirió un valor estético a través de la caligrafía. La pintura es considerada la más prominente de las expresiones artísticas. Su belleza contenido espiritual y perfección técnica se aprecia en la representación de paisajes con la figura humana en armonía con la imponente naturaleza que no se ilustra de manera realista, la esencia del objeto para el autor es un microcosmos. Los poetas encontraron inspiración en esas imágenes y escribieron en ellas sus poemas, conjuntando así en una sola obra las tres Artes del Pincel. Resulta interesante mencionar que el aprendizaje del manejo del pincel comienza con el dibujo de rocas, árboles y bambú, que tienen una importancia equiparable a la del cuerpo humano en el arte occidental. Ejemplos sobresalientes de la gran influencia de dichos inventos en la humanidad son la llamada “Ruta de la Seda” y los viajes transpacíficos de la célebre Nao de China. La Ruta de la Seda fue establecida por los chinos a mediados del siglo II a. C. a través de Asia Central hasta llegar al Imperio Romano. Llegó a cubrir más de 7,500 kilómetros y propició el intercambio no solo de mercancías tan apreciadas como la seda y los caballos pura sangre, sino también estilos artísticos y creencias religiosas como el budismo. El milenario proceso de elaboración de la 41 seda fue secreto monopolizado por China hasta aproximadamente el siglo VI d.C. en que se difundió primero a Corea, Japón, el sudeste asiático y a Medio Oriente y después de ahí a Europa. La seda fue valorada como moneda común de intercambio y por la belleza de sus coloridos y variados bordados. Suzhou, “la ciudad acuática y de jardines del Este de China”, ha sido la cuna del arte del bordado desde hace 2,600 años; ahí se elaboraba la indumentaria de la corte imperial con motivos alusivos a su autoridad y poder: un par de dragones emblema del emperador, la perla flamígera, el disco solar y las montañas15. El término “porcelana” refiere a toda pieza elaborada con caolín (arcilla blanca refractaria cuyo nombre proviene de la montaña Gaoling donde abunda) y horneada a más de 1300° C. Mil años antes de que la técnica se conociera en Europa, en China ya se producían y perfeccionaban piezas de porcelana. Con sus innovadoras técnicas de impresión, grabado, incisión y dibujo, los artesanos crearon, a partir del siglo XIV, una amplia gama de formas, estilos y motivos, algunos inspirados en los antiguos recipientes de bronces o en modelos occidentales y otros más novedosos, e incluso lograron trasladar a la porcelana imágenes de pinturas y caligrafías con la misma calidad obtenida en la seda o en el papel. Para fines del siglo XVIII, produjeron piezas destinadas a la exportación, con frecuencia de calidad inferior a las nacionales. Desde el siglo XI floreció el comercio marítimo de China a lo largo de puertos costeros en el este y sudeste asiático. A finales del siglo XVI, con el establecimiento de la ruta del Galeón de Manila o Nao de China, su influencia comercial se extendió por Occidente. Hasta 1815 se mantuvo un tráfico ininterrumpido entre Filipinas y la Nueva España, a donde llegaban provenientes de China y otros sitios de Oriente (la India, Japón y las “islas de las especias”) innumerables productos: madejas de hilos y de seda cruda, telas y prendas de sedas lisas o bordadas – entre las que destacan los famosos mantones – porcelanas, esculturas de jade y marfil, así como arcones y escritorios de “maderas exóticas” laqueadas. En Manila, los sangleyes – chinos establecidos en ese puerto– abastecían a las embarcaciones e intercambiaban sus mercancías por la plata de las minas novohispanas. Los siglos de intercambio con Asia dejaron huella en la sociedad mexicana, tanto en usos y costumbres, como en la elaboración de objetos de inspiración 42 oriental; un ejemplo de ello es la cerámica producida en la ciudad de Puebla durante el siglo XVII, conocida como Talavera. Recibió un importante influjo de la admirada porcelana china al grado que el gremio de artesanos poblanos incluyó en su reglamento de 1653 un inciso exhortando a los ceramistas a imitarla en sus formas, motivos, colores y acabados. Otro ejemplo son los mal llamados “mantones de Manila”, ya que se dice que tienen alma árabe y cuerpo chino 16 Los novohispanos copiaron los motivos ornamentales de los mantones chinos, traídos por el Galeón de Manila, en sedas policromas embellecidas con hilos de seda, oro y plata. Son sobresalientes en México los trajes de las juchitecas y tehuanas que portan en la Fiesta de la Vela del Istmo de Tehuantepec. De Corea Destacan las piezas de porcelanas de color verde celadón con tonalidades evocadoras del jade, estilizadas formas y elegantes motivos ornamentales. La innovadora técnica de incrustación llamada sanggam, que ya usaban en los objetos de madera laqueada, ha sido muy apreciada mundialmente, incluso en China y Japón. También perfeccionaron instrumentos astronómicos y meteorológicos, como relojes de sol y de agua, esferas armilares, mapas y cartas astronómicas, debido en parte a la importancia otorgada por el gobierno, principalmente del rey Sejong “El Grande” (1418-1450) a necesidades prácticas de elaborar calendarios agrícolas y mejorar la vida de la población. Cabe mencionar que su interés por educar al pueblo, crear súbditos leales y reforzar las virtudes confucianas, dio por resultado la creación del alfabeto coreano Hangeul, un eficiente sistema que ha facilitado el estudio del idioma coreano y que incluso ha sido adoptado por pueblos que tienen su propia lengua pero carecen de escritura17 De Japón Se desconoce la fecha exacta en que empezaron a manufacturase objetos laqueados en Japón pero sorprende lo pronto que surgió como un arte tan distintivo. 43 Lograron suma perfección y calidad con diversas técnicas como el grabado, incrustación de diversos metales y primordialmente en el método empleando polvo u hoja de oro, conocido con el término genérico maki-e, “pintura esparcida o rociada”. Esta técnica es conocida en México como “maque”, de gran influencia desde la época virreinal en sitios como Chiapa de Corzo, Pátzcuaro y Olinalá. El impacto es evidente en el perfilado de oro, la incrustación y el rayado. Los biombos son objetos originarios de China pero la palabra “biombo” deriva del japonés byo-bu, “detener el viento”. Utilizados en principio como paneles para dividir los espacios, obtener privacidad y proteger de corrientes de aire, florecieron en el período Edo en una asombrosa variedad estilística y temática. Los artistas aplicaron hoja de oro para fondos y ornamentaciones usando los mismos métodos que en objetos de laca creando así obras apreciadas como valiosos obsequios. De hecho, así llegaron a la Nueva España en el siglo XVII y a partir de entonces tuvieron gran influencia en las manufacturas locales. En los centros urbanos y mercantiles del periodo Edo, surgió una cultura popular con manifestaciones literarias, teatrales y pictóricas denominada ukiyo, “mundo flotante”, por concebirse como efímera y placentera. Este mundo fue plasmado en xilografías con temáticas de mujeres cortesanas o geisha, personajes y actores del teatro Kabuki y famosos paisajes. En su elaboración participaban pintores, grabadores e impresores, quienes desarrollaron técnicas orientadas a producir vistosas xilografías policromas, nishiki-e (“estampas de brocado”) que tuvieron gran demanda tanto en el exterior18 como en el mercado local donde incluso se utilizaron para anunciar las representaciones del teatro Kabuki, atractivo y célebre espectáculo que se distingue por sus imponentes escenografías y dinamismo, a diferencia del austero teatro Noh limitado a la aristocracia. Sus obras constan de varios actos basados en temas de la vida cotidiana o legendarios e históricos con los samurai como protagonistas; incluyen danzas acompañadas por instrumentos musicales, entre ellos el shamisen de origen chino. La indumentaria de los actores (únicamente hombres) no solo dictaba la moda de la época sino que influyó en el atuendo nacional contemporáneo. La porcelana empezó a producirse en Japón a inicios del siglo XVII por los coreanos establecidos en la región japonesa de Arita, quienes además introdujeron 44 el horno de múltiples cámaras. Las piezas resultantes se conocen como Imari, nombre del puerto donde se embarcaban al resto del país y a ultramar. Los mercaderes holandeses llevaron a Japón la porcelana china de las dinastías Ming y Qing, que sirvió de modelo a los ceramistas japoneses para crear obras nuevas que tuvieron gran demanda en el exterior. Algunos diseños respondieron a la idea europea de “lo exótico”; otros, más refinados y con características propias, dieron origen a las porcelanas blancas con azul cobalto y policromas con aplicaciones de oro. CUADRO CRONOLÓGICO CHINA Dinastía Shang (1760-1100 a.C.) Dinastía Zhou (1100-249 a.C.) Dinastía Qin (221-206 a.C.) Dinastía Han (206 a.C-220 d.C.) Fragmentación del Imperio (220-589) Dinastía Sui (589-618) COREA Gojoseon (2333-185 a.C.) Edad Bronce (1100-300 a.C.) JAPÓN Periodo Jomon (c.7500-250 a.C.) Gestación de los Reinos Shilla, Goguryeo, Baekje (18 a.C.-300 d.C.) Periodo de los Tres Reinos (300-668) Periodo Yayoi (250 a.C.- 250 d.C.) Periodo Kofun (250-552) Periodo Asuka (552-710) Dinastía Tang (618-906) Shilla Unificado (668-935) Periodo Nara (710-794) Dinastía Song (960-1279) Dinastía Yuan (1279-1368) Dinastía Ming (1368-1644) Dinastía Goryeo (935-1392) Periodo Heian (794-1185) P. Kamakura (1185-1333) P. Muromachi (1333-1573) P. Azuchi-Momoyama (1573-1603) P. Edo o Tokugawa (1603-1867) P. Meiji (1868-1912) Dinastía Qing (1644-1911) Dinastía Joseon (1392–1910) Notas 1 Su acervo se incrementó paulatinamente por lo que fue necesario crear nuevos espacios: El Museo de Historia Natural (1909), El Museo Nacional de Historia (1944) en el Castillo de Chapultepec -que había sido hasta entonces la residencia de los presidentes mexicanos- y el renombrado Museo Nacional de Antropología e Historia en 1964. 2 Hasta fines del 2009: Mesoamérica y los Andes, aborígenes de Norte América, Mesopotamia, Egipto, Israel, Grecia y Roma, Europa Oriental, África, Medio Oriente, Sudeste de Asia, China, Corea y Japón; así como Oceanía, cuya sala cuenta con objetos de la colección particular del célebre antropólogo Bronislaw Malinowski, 45 donada por su viuda, la pintora Valleta Swann, quien colaboró con él en sus estudios sobre los mercados campesinos mexicanos en 1940-1941. 3 La materia de Historia Universal es impartida a los alumnos del quinto año de primaria y del tercer año de secundaria en las escuelas mexicanas, e incluye visitas de requisito al Museo. Estos estudiantes constituyen el 42% del total de visitantes anuales (un promedio de 263,800 en años recientes:2005-2009)., 37% son estudiantes de otras escuelas y universidades y el 21% restante público en general, entre ellos 6% extranjeros. 4 En 2006 representó solamente el 0.4% del PNB y el 4.6% otorgado para educación (INEGI). 5 Recientemente, gracias a la generosa donación que hizo en 2010 el gobierno de la República Popular China al pueblo de México con motivo del Bicentenario de la Independencia y Centenario de la Revolución, el Museo Nacional de las Culturas enriqueció su importante colección. Las piezas donadas son réplicas del tesoro artístico del pueblo chino y fueron elaboradas por reconocidos artesanos bajo la supervisión del Ministerio de Cultura, con los mismos materiales y técnicas que las originales. Por lo tanto, son obras de extraordinaria factura que sólo difieren de las originales por la fecha en que se produjeron. 6 Aproximadamente el 75% de las piezas exhibidas, varias de ellas excelentes réplicas de obras maestras decretadas “Tesoros Nacionales”, fueron donadas en 2000 por la Fundación Corea y el Museo Folklórico de Corea. 7 Algunos objetos exhibidos son también réplicas de “Tesoros Nacionales” donados por el gobierno japonés. 8 Este mausoleo fue designado Patrimonio de la Humanidad en 1987; mientras que el proyecto de rescate, restauración e investigación a cargo de un grupo chino multidisciplinario, recibió el Premio Príncipe de Asturias en Ciencias Sociales en 2010. 9 Un ejemplo sobresaliente es el traje del príncipe Liu Sheng (Dinastía Han del Oeste -206 a.C.-8 d.C.) Su traje-mortaja con forma de armadura fue concebido como protección contra los espíritus malignos y la descomposición del cuerpo. Se compone de doce secciones hechas con 2,498 placas de jade unidas con hilo de oro. 10 Este festival fue ilustrado en la famosa y emblemática pintura El festival Qing-Ming a la orilla del Río de Zhang Zeduan (1085-1145) donde se aprecian con gran detalle las actividades previas al festival en Kaifeng, capital de la dinastía Song del Norte (960-1127) un período de gran desarrollo urbano y comercial en China. Existen numerosas representaciones de esta enorme– de más de 5 metros de longitud- obra de arte. 11 El pabellón Dacheng sobresale por sus inigualables diez columnas de piedra esculpida con motivos de dragón y es exhibido en la Sala del museo en un modelo en madera labrada de excelente factura. 12 Entre ellos es sobresaliente Tripitaka, “Las Tres Canastas” que contienen enseñanzas de Buda, comentarios y reglas monásticas. Estos textos se imprimieron en el siglo XI pero los 5,048 volúmenes resultantes fueron destruidos en 1231 por los mongoles al invadir Corea. Entre1235 y 1251, se reeditaron usando 81,258 planchas de madera grabadas en ambas caras; son valoradas por la exactitud del contenido, elegante caligrafía y calidad del grabado. Se resguardan desde entonces en el templo Haein-sa, ambos Patrimonio de la Humanidad. 13 Sus motivos ornamentales aluden a los populares diez símbolos de larga vida de origen chino taoísta: venados, grullas, tortugas, hongos de la inmortalidad, pinos, montañas, rocas, nubes, cascadas y la roja esfera del Sol. Los colores también son emblemáticos: el blanco corresponde a la modestia y pureza, el rojo a la felicidad y buena suerte, el azul a la constancia, el amarillo al centro del universo y el negro al infinito y a la creación. 14 Es sobresaliente la novela Genji Monogatari, obra maestra de la literatura universal escrita por la dama Murasaki Shikibu a principios del siglo XI. Con evocador lenguaje, intercalado con poemas que acentúan lo estético de la narración, describe con detalle los acontecimientos cotidianos y oficiales de la corte Heian. 15 Actualmente se produce ahí una quinta parte de la exportación total mundial de bordados en indumentaria u objetos decorativos. La técnica “mágica” o bordado de doble cara, es la más sobresaliente y laboriosa ya que sobre la tela de base se borda con finísimos hilos la misma imagen o imágenes diferentes dando la impresión de ser pintadas debido a la calidad y vivacidad de sus matices. 16 Tras la reconquista del territorio español, los Reyes Católicos prohibieron a las mujeres árabes llevar el rostro tapado, por lo que optaron por usar un chal, costumbre que copiaron las cristianas y de ahí esta prenda evolucionó hacia las mantillas españolas. El chal era de uso común entre las chinas desde la dinastía Tang (618907) y con el pasar del tiempo crearon diversos estilos bordados que se exportaron después a Manila. 17 Por ejemplo, las etnias Cia-Cia de Indonesia y Aymara de Bolivia. Cfr. Korea.net Newsletter, 30 de julio de 2010 y 4 de mayo de 2011. 18 Las primeras xilografías llegaron hacia 1815 a Europa a través de los holandeses, quienes las usaron para envolver las mercancías japonesas que exportaban por el puerto de Nagasaki; por lo tanto, no fueron entonces apreciadas por sus méritos artísticos, sino hasta que se presentaron en las Exposiciones Internacionales de Londres (1862) y París (1867). 46 Referências Bibliográficas BAIRD, M.C. Symbols of Japan: Thematic Motifs in Art and Design. New York: Rizzoli International Publications, INC., 2001. BARTHOLOMEW, T.T. Hidden Meanings in Chinese Art. San Francisco: Asian Art Museum, 2006. DURÁN Solís, L. Un nuevo marco conceptual del MNC. 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Ha publicado varios textos e impartido cursos sobre estas culturas del Este de Asia, Arte Prehispánico, Religiones Comparadas y Arte Budista. 47 AS MAIS ANTIGAS PORCELANAS ENCOMENDADAS PELOS EUROPEUS À CHINA Maria Antónia Pinto de Matos Museu Nacional do Azulejo Contexto Histórico As viagens marítimas dos portugueses nos séculos XV e XVI mudaram radicalmente a relação da Europa com os remotos mundos asiáticos e as porcelanas tomaram verdadeiramente o caminho do Velho Continente. Embora houvesse relatos que consagravam a imagem mítica da China rica e magnificente idealizada durante a Idade Média, as informações inéditas recolhidas em primeira mão pelos portugueses sobre novas terras e novas gentes, os seus modos de viver, as suas formas de pensamento e as suas criações requintadas e originais, revolucionaram a visão tradicional do mundo e tornaram mais tangível as míticas civilizações orientais que alimentaram o imaginário colectivo medieval. As mercadorias exóticas, como as especiarias, as drogas, as sedas e as porcelanas, passaram a estar mais acessíveis. Entre as novidades absolutas recolhidas pelos portugueses nos portos do Industão encontrava-se a China, que cedo começou a gerar expectativas mercantis1. Em 1499, quando Vasco da Gama regressou da sua viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia (1497-1499), entre os vários produtos asiáticos apresentados na corte exibiu porcelanas compradas em Calecut2. Em 1501, Pedro Álvares Cabral, que quando se dirigia para a Índia descobriu o Brasil, também ofereceu ao rei fermosas porcelanas que havia recebido do capitão de uma nau de Cambaia, algures entre Cananor e Melinde3. Em 1502, o chamado planisfério de Cantino, de origem portuguesa, apresentava pela primeira vez uma imagem minimamente realista de muitas regiões asiáticas, onde figurava a terra dos chins, de onde vinham pérolas e almizquer e porçolanas finas e outras muitas mercadorias, e é o primeiro documento em que a porcelana aparece associada a uma região concreta, que é simultaneamente o seu lugar de fabrico. 48 E as porcelanas terão agradado tanto a El-rei D. Manuel I que, em 1507, solicitou a D. Francisco de Almeida, o primeiro Vice-rei da Índia, que lhe enviasse sempre em cada viagem (...) das porcelanas fynas e booas e em booa cantydade e nas melhores por que se poderem aver (...)4. Este é talvez o primeiro testemunho de uma encomenda real ou um incentivo à encomenda de porcelana. Em 1508, o monarca português concedeu um Regimento a Diogo Lopes de Sequeira, a quem encarregara da primeira viagem de exploração da Península Malaia, com instruções precisas de carácter mercantil, antropológico, defesa, entre outros, onde espelha o seu interesse pelo Império do Meio: pregumtarees pollos chiins e de que parte vêem e de cam lomge e de quamto vem a Mallaca ou aos lugares em que trautam e as mercadarias que trazem e quamtas naoos delles vem cada anno e pellas feyçõees de suas naoos e se tornam no anno em que vêem e se teem feitores ou casas em Mallaca ou em outra allguma terra e se sam mercaores riquos”5. No ano seguinte, Sequeira contactou com mercadores chineses em Malaca que descreve serem hommens allvos e bem despostos, com maneiras polidas e vestidos à europeia, com quem chegou a partilhar um repasto durante o qual se bebeu muyto vinho de pallma bramco em porçellanas6. Em 1511, Afonso de Albuquerque conquista Malaca e, em 1512, informa que a China era grande consumidora de pimenta e exportava enormes quantidades de sedas, porcelanas, almíscar, ruibardo, aljôfar, cânfora e pedra-ume. Nesse mesmo ano, Albuquerque enviou um chim a Lisboa e, em 1513, mandou a primeira expedição à China, tendo o capitão Jorge Álvares, o primeiro português que foi à China, chegado à ilha de Tamão, também designada ilha da veniaga 7 , nas imediações de Cantão. Dois anos mais tarde, Rafael Perestrelo empreendeu a mesma viagem a bordo de embarcações malaias, tal como o primeiro. Ambas as viagens se revelaram um sucesso, atingindo o valor da carga de produtos de luxo asiáticos lucros vinte vezes superiores ao montante investido inicialmente. A viagem da China revelou-se tão rentável como a Carreira da Índia, que ligava Cochim a Lisboa, que além de morosa exigia vultuosos investimentos. 49 Estas duas lucrativas expedições ao Império do Meio tiveram também importantes consequências bem patentes no aparecimento dos primeiros tratados geográficos portugueses sobre o Oriente onde a China assume lugar de destaque: a Suma Oriental (1512-1515) e o Livro do que viu e ouviu no Oriente (1516), de Tomé Pires, boticário real e eminente orientalista, e Duarte Barbosa, funcionário da feitoria de Cananor, respectivamente. Pires revela as primeiras imagens de alguns aspectos da vida chinesa, de âmbito político, administrativo, cívico e mercantil, dando-nos a dimensão e variedade de porcelanas “Vem se em jumcos a Malaca com mercadarias, e trazem seda bramca e damascos e sitins de cores, e brocados à sua gisa, muito alljofar, imfinidade de porcelanas de muitas sortes, cobre, pedra hume, allmisquer, cofres de folhajens de ouro, avanos rricos e muitas outras cousas que não sam em memória”8. A obra de Duarte Barbosa confirma as informações de Pires, acrescenta outras inéditas e, entre os produtos chineses, descreve o fabrico da porcelana Fazem em a dita terra muitas porcelanas, que é muito grande mercadoria para toda a parte, as quais se fazem de búzios moídos, e de cascas de ovos e de claras e de outros materiais do que fazem uma massa que lançam a curtir debaixo da terra por espaço de tempo, a qual massa têm por grande herança e tesouro, porque assim como se vai chegando o tempo de a haverem da lavrar, assim vale mais; depois de chegado o tempo a lavram de muitas maneiras e feições, delas grosseiras e finas. Depois que são feitas as peças, as vidram e pintam.9. Como preconizado no projecto imperial de Afonso de Albuquerque, que previa o estabelecimento de bases portuguesas em locais estratégicos do Oceano Índico ligadas entre si por poderosas armadas, e muito semelhante ao que fora posto em prática em algumas regiões do Golfo Pérsico, da costa ocidental da Índia e da extremidade da Península Malaia, as notícias sobre as potencialidades da China levaram D. Manuel I a delinear um ambicioso plano de fixação no litoral chinês, baseado na implantação de fortalezas. Esta estratégia procurava, por um lado, que Portugal se apropriasse de uma parcela importante do movimento comercial estabelecido entre o litoral meridional chinês e as principais cidades portuárias do Sudeste Asiático e, por outro, antecipava-se às pretensões espanholas de intervenção política e comercial no Extremo Oriente10. 50 O primeiro passo do projecto manuelino foi a organização de uma embaixada à China, saindo do Tejo, em 1515, uma grande armada destinada à China capitaneada por Fernão Peres de Andrade, que em 1517, deixa Malaca levando como embaixador Tomé Pires. A expedição portuguesa, ocorrida em 1517-1518, revelou-se um enorme sucesso comercial, mas um grande fracasso diplomático devido à conjugação de vários factores adversos: as queixas do filho do sultão de Malaca, vassalo do imperador chinês, que acusou a embaixada portuguesa de ter por finalidade a organização e a conquista daquele país; o facto de os portugueses se terem apresentado como siameses para contornar o preceito que proibia a recepção de embaixadas oriundas de países desconhecidos; as cartas diplomáticas de D. Manuel I abordavam o imperador da China em pé de igualdade segundo o costume europeu; e, além da imagem de comerciantes gananciosos e guerreiros sanguinários, os portugueses eram também acusados de raptores de mulheres e canibais. Tomé Pires chegou a Pequim em 1520-1521, não foi recebido pelo imperador Zhengde (1506-1521), regressou sob escolta a Cantão com os seus companheiros, tendo desaparecido em condições mal esclarecidas. A política encetada pelos portugueses noutras regiões asiáticas revelou-se completamente desajustada na China. Para o insucesso desta missão e degradação das relações oficiais sinoportuguesas contribuíram também a atitude violenta de Simão de Andrade contra os chineses, e as suas infracções à lei, ao recusar-se a pagar tributos, bem como a chegada a Tamão, em 1522, da frota comandada por Afonso Lopes Coutinho, cujo propósito era restabelecer as relações entre os dois países, mas que resultou numa batalha naval entre os dois povos e a morte e a prisão para muitos portugueses. Em consequência disso, as relações entre portugueses e chineses foram legalmente inexistentes até 1554, data da assinatura do acordo de Leonel de Sousa com as autoridades cantonenses, para oficializar as relações de paz e comércio. Os mercadores lusos eram obrigados a recuar para regiões mais meridionais frequentadas pelos juncos cantonenses e de Fujian – Zangzhou, Quanzhou e Liampo – onde estabeleceram um comércio activo, ilegal e clandestino, graças à cumplicidade das autoridades locais. Paralelamente os chins foram desencorajados 51 a rumar a terras estrangeiras. Em 1530, o porto de Cantão foi aberto aos estrangeiros, salvo aos portugueses que, porém, continuaram as suas actividades clandestinas. Apesar de todos os incidentes, no âmbito da porcelana salientamos uma carta de 1522, escrita na Índia, sobretudo sobre o trato, em que se declara que os navios que forem à China traram de lá hos retornos desta maneira: a terça parte em ouro, e outro terço em seda branqua e alljofar pera Cambaya, e outro terço em porcellanas e damascos, he pregadura e pelouros de ferro c[our]o e cousas d allmazem que forem necassarias.11. Em virtude dos interesses comerciais em jogo, no final da década de 1520 pareceu notar-se uma aproximação, como se infere das cartas do capitão de Malaca, Jorge Cabral, para el-rei D. João III. A primeira, datada de 10 de Setembro de 1527, refere a vinda de dois juncos de Chimcheo, reino sogeito a el Rei da china, e (…) também lhe ncomendey algumas peças louçãas pera vosa A. Se vierem eu as levarei12, constituindo um documento de extraordinária importância na história da porcelana, muito provavelmente o primeiro na Europa a fazer alusão a uma encomenda. A segunda carta de 5 de Setembro de 1528 dá conta, entre outros assuntos, da seriedade dos chineses que voltaram com as peças que lhe haviam sido pagas antecipadamente o ano passado emcomend[e]y a hum capitão dos chyns que aquy veyo que me mandasse lla fazer algumas peças pera V. A. Elle mas trouxe mas não são tais como eu desejava / quaes são as tera V. A. Quando eu for e peraquy sabera que são os chyns çertos em malaca poys se comfia delles fazenda e tornão co ella13. Os portugueses regressaram aos portos da China a partir de 1533 e em 1542 ou 1543, os portugueses atingiram pela primeira vez o Japão, facto que teve repercussões extraordinárias no futuro das relações luso-chinesas. O Japão vivia um clima de guerra, que dera origem à criação de muitos bandos armados, os wako, que faziam incursões ao litoral chinês, levando ao corte de relações diplomáticas entre as autoridades de Pequim e a Terra do Sol Nascente e à interdição de relações comerciais, impedindo o abastecimento da seda chinesa tão desejada pelos japoneses e a entrada da cobiçada prata japonesa no Celeste Império. Os mercadores portugueses aperceberam-se rapidamente das extraordinárias 52 possibilidades mercantis criadas por tal situação, impondo-se num curto espaço de tempo como intermediários indispensáveis no tráfico sino-japonês. A partir dos anos 1544-1545, as viagens dos portugueses ao Japão intensificaram-se, dando origem a um lucrativo comércio triangular, unindo a praça portuguesa de Malaca aos portos chineses e estes aos do Japão, com base na troca da pimenta da Insulíndia pela seda chinesa e desta pela prata japonesa, que era de novo trocada por seda e assim sucessivamente. Além destes produtos dominantes, eram ainda transaccionados enxofre, salitre, azougue, almíscar, armas e abanos, entre outros14. Deste grande movimento de homens e navios que rumaram periodicamente aos portos da China e do Japão, resultaram a fundação em 1557 de um estabelecimento português no litoral cantonense, Macau, e a proliferação de relatos manuscritos rigorosos e circunstanciados sobre regiões asiáticas antes desconhecidas. Sete anos depois, o desenvolvimento de Macau era fulgurante, e, em 1583, adquirira já um estatuto de relativa autonomia perante o governo de Cantão, elegendo inclusivamente o seu próprio Senado, que haveria de reger os destinos da povoação até à nomeação do primeiro capitão geral, no século XVII15. Macau manteve durante largos anos o exclusivo dos contactos com a China, os seus mercadores eram os únicos a ter acesso às feiras de Cantão, e os jesuítas destinados às missões chinesas tinham obrigatoriamente que passar pelo território. Apesar de as embarcações chinesas demandarem também às Filipinas e alguns outros portos da Insulíndia, era através deste entreposto lusitano que as principais mercadorias de origem sínica eram encaminhadas para a Europa, a partir da Índia, através da rota do Cabo. À semelhança da importância assumida no âmbito do trato, e posteriormente no campo religioso, Macau tornou-se o lugar privilegiado de recolha de informações sobre a China, as quais foram objecto de intensa produção textual, incontornável para conhecer o mundo sínico daquela época. Os primeiros relatos respondiam essencialmente a questões de carácter prático: comércio, política, defesa. Depois começaram a acrescentar outro género de questões no âmbito dos usos e costumes, crenças, práticas religiosas e sociais, organização política, formas de administração, ordenamento urbano, etc.16, dando uma imagem o mais global e rigorosa possível do 53 Celeste Império, que os portugueses descrevem em tom apologético, considerandoa uma sociedade modelo, excepto no que se refere ao aspecto religioso. Em meados da centúria de Quinhentos, começaram a aparecer numerosas relações, tratados, cartas, itinerários redigidos por mercadores e religiosos, que haviam visitado a China, de que destacaremos a título de exemplo Algumas coisas sabidas da China (1553-1563), de Galiote Pereira, que esteve lá prisioneiro durante alguns anos, tendo ficado muito impressionado com a extensão do território e a organização administrativa e judicial, passando por outros sectores da realidade sínica. Deixou-nos inclusivamente um apontamento importante sobre o local de fabrico da porcelana: Ha outra província que se chama Quianssi e he esta tambem o nome da principal cidade e cabeça das outras. E he ai que se faz toda a porsolana fina de Çulljo pera sima, sem se fazer em nenhuma outra parte, e de Çullio em todas as cidades da China. E como esta cidade de Qiansi esteja mais perto de Liampo que do Chincheo e não de Cantão, ha sempre em Liampo muita porselana e barata, e come ate aqui os Portugueses sabião tão pouco desta terra, avião muitos que cuidavão e afirmavão que se fazião em Liampo, mas esta he a verdade.17 Entre muitas obras de vulto da literatura portuguesa ultramarina onde a admiração e o interesse pela China estão bem patentes, merecem especial realce no que diz respeito à história da porcelana o Tractado em que se contam muito por estenso as cousas da China, com suas particiularidades e assi do reino de Ormuz, da autoria do dominicano Frei Gaspar da Cruz, impressa em Évora por André de Burgos, em 1569-1570, primeira obra impressa na Europa, exclusivamente dedicada à China. O processo de conhecimento e idealização da civilização chinesa culminou na publicação da Frei Gaspar, além de traçar uma vasta panorâmica da China aborda ainda as relações luso-chinesas desde a conquista de Malaca e acrescenta aspectos não registados pelos outros observadores, como o uso da escrita chinesa, a antiguidade da tipografia, a descrição da Grande Muralha, o uso do chá, a compressão do pé feminino, o poder quase indiscriminado dos mandarins, a pesca com corvos marinhos, e é o primeiro a deixar uma descrição do fabrico da porcelana, liberta das fantasias que rodeavam este mistério chinês: “O material da porcelana é uma pedra branca e mole, e alguma é vermelha, que não é tão fina, ou para melhor 54 dizer, é um barro rijo, o qual depois de bem pisado e moído é deitado em tanques de água, os quais eles têm muito bem feitos de pedra de cantaria, e alguns engessados, e são muito limpos. E depois de bem envolto [o barro] na água, da nata que fica de cima fazem as porcelanas muito finas; e assim quanto mais abaixo, tanto são mais grossas, e da borra do barro fazem umas muito grossas e baixas de que se serve a gente pobre da China. Fazem-nas primeiro deste barro, da maneira que os oleiros fazem outra qualquer louça; depois de feitas as enxugam ao sol. Depois de enxutas lhe[s] põem a pintura que querem de tinta de anil, que é tão fina como se vê. Depois de enxutas estas pinturas, põem-lhe o vidro, e vidradas cozem-nas”.18 Frei Gaspar da Cruz informa-nos também que há porcelana de barro comum que se usa por toda a China e toda a Índia, e menciona que “há muita porcelana grossa e outra muito fina. E há alguma que não é lícito vender-se comummente, porque só usam dela os regedores por ser vermelha e verde, e dourada e amarela. Vende-se alguma desta, e muito pouca e muito escondida 19 . Assim, o autor português coloca o leitor ao corrente de um problema de contrabando: a exportação de peças amarelas destinadas à corte, um tema que continua a ser objecto de estudo para os especialistas da actualidade que se interrogam se toda a porcelana era exportável. A instalação da missão jesuíta na terra dos chins veio alargar e aprofundar o conhecimento europeu sobre o Império do Meio, de que De Missione Legatorum Iaponensium, da responsabilidade do padre Duarte de Sande e impresso em Macau em 1590, é um excelente exemplo. Este Tratado, que relata a viagem de quatro jovens embaixadores japoneses à Europa, inclui um vasto capítulo onde são registadas algumas novidades recolhidas por Ricci. Entre as várias tipos de mercadorias em que a terra da China está mais bem provida do que qualquer outro reino20, mereceram especial atenção o ouro, a prata, entre muitos metais em que a China é rica, a seda, as especiarias e o fabrico da porcelana e as diferentes tipologias delas feitas: Tratemos agora dessa substância barrenta ou moldável a que vulgarmente se chama porcelana, que é completamente branca e que deve ser considerada como o melhor material do género que há no mundo, com o qual se fabricam muito engenhosamente vasilhas de todos os géneros. Digo que é o melhor barro do mundo por três razões a saber: a sua pureza, a sua beleza e a sua 55 resistência. […] Esta substância não é extraída em toda a China, mas apenas numa das quinze províncias, em Qiansi, onde muitos trabalhadores são empregados continuamente nessa tarefa. Não fabricam com ela apenas peças pequenas, como taças, pratos e saleiros, jarros e outros que tais, mas também vasilhas e jarrões enormes em grande quantidade, muito fina e habilidosamente lavrados, os quais, em virtude do perigo e dificuldades envolvidos no seu manuseamento, não são transportados para fora do reino, mas são usados apenas no interior dele, e especialmente na corte do rei. A beleza deste material é muito realçada pela variedade de pinturas, as quais são feitas em certas cores, aplicadas logo após o fabrico, às quais se mistura ouro, o que faz as ditas vasilhas parecerem ainda mais belas.21 Outro aspecto importante não escapou aos observadores, o apreço despertado pela porcelana e os países para onde era exportada: É admirável o apreço que os Portugueses têm por estas peças, uma vez que, com enormes dificuldades, as transportam não só para o Japon e para a Índia, mas também para vários países da Europa.22 A porcelana no comércio português Desde a chegada dos portugueses ao Oriente, tanto na documentação avulsa como na produção textual relativas à epopeia portuguesa ultramarina, a porcelana está sempre presente não apenas como valioso presente, mas também em quantidades significativas. A porcelana, contrariamente à pimenta que constituía monopólio da coroa, era uma mercadoria do comércio menor praticado por particulares na Índia e, a título de liberdades23, uma forma recorrente, além do soldo, para angariar homens de armas para as armadas d’El-rei na Índia e servir nas coisas que o capitão-mor lhes ordenava. Isto é, eles podiam comprar livremente alguns produtos, entre os quais porcelanas, até uma determinada quantidade. Logo após a conquista de Malaca, a porcelana foi uma das mercadorias traficada na ordem das dezenas de milhar pelos portugueses no comércio inter-asiático, como aconteceu nas viagens ao Pegu24 e utilizada aqui como presente para as autoridades locais 25 , para se obterem 56 vantagens e estabelecer condições favoráveis para o nosso comércio naquelas paragens, como a redução dos direitos alfandegários aos navios lusos26. A porcelana era também abundante em Lisboa desde o início da centúria de Quinhentos, como se infere da documentação avulsa, de que citaremos alguns exemplos27. O alvará de 27 de Julho de 1511, de El-rei D. Manuel I, ordena aos contadores que levem em conta e despesa ao tesoureiro das especiarias da Casa da Índia, João de Sá, duzentas e sete porcelanas, um cofre dourado e uma colcha de pano branco, que despendeu por mando da rainha28, e as seiscentas e noventa e duas porcelanas, entre outros produtos exóticos e pedras preciosas e semipreciosas, recebidas pelo mesmo João de Sá nos armazéns reais entre Fevereiro de 1511 e Abril de 151429. Em 25 de Setembro de 1517, outro alvará do monarca manda que os contadores levem em conta, novamente a João de Sá, quarenta e sete porcelanas, vinte papos de almíscar e duas arrobas de bejoim30. Na segunda metade do século XVI, a chegada de porcelanas a Lisboa deveria ser enorme e já deveria fazer parte do quotidiano das classes superiores, pois, em 1555, a rainha D. Catarina comprou trezentos e vinte peças de porcelana para a sua mesa, pela substancial soma de 22.420 reais, pagando 1400 reais por cada corja31. Também no inventário post mortem de D. Teodósio I (c. 1510-1563), 5º Duque de Bragança, um espelho da riqueza e opulência da Casa de Bragança no século XVI, datado de 1563, constam 400 peças que cremos tratar-se de porcelana da China, embora o local de fabrico não seja referido, no valor de 47,300 reis, e 78 objectos designados por persolanas (procelanas, percelonas, perçolanas) no valor de 12.600 reis, que se encontravam armazenados na casa dos vidros e persolanas do palácio de Vila Viçosa, na casinha dos vidros da Senhora D. Catarina e algumas oferecidas por D. Constantino de Bragança, 7º Vice-rei da Índia e 20º Governador, na casa dos vidros e porcelanas da duquesa viúva D. Brites, no mesmo palácio. Nesse mesmo ano de 1563, o uso da porcelana ao serviço da mesa era uma realidade, como se confirma pelas críticas do dominicano D. Frei Bartolomeu dos Mártires, no decorrer de um jantar com o Papa Pio IV, durante o concílio de Trento, ao ver a luxuosa baixela de prata sobre os aparadores papais “Temos (...) em 57 Portugal um género de baixela que, com ser barro, se aventaja tanto à prata em graça e limpeza, que aconselhara eu a todos os príncipes (...) que não usaram outro serviço e desterraram de suas mesas a prata. Chamamos-lhes em Portugal porcelanas, vêm da Índia, fazem-se na China. É o barro tão fino e transparente que as brancas deixam atrás os cristais e alabastros, e as que são variadas de azul enleiam os olhos representando uma composição de alabastro e safiras. O que têm de quebradiço recompensam com a barateza. Podem-se estimar dos maiores píncipes por delícia e curiosidade, e por tal se têm em Portugal”32. Percebendo a crítica velada do Arcebispo, o Sumo Pontífice solicitou-lhe que, quando voltasse a Portugal, lhe enviasse dessas porcelanas para substituir as pratas. Por diligência do embaixador foi remetido de Lisboa para Roma grande número e variedade de peças. Em 1565, ocorreu em Lisboa o casamento por procuração de Maria de Portugal, filha do Infante D. Duarte (irmão de D. João III) e de D. Isabel de Bragança, com Alexandre Farnèse, durante o qual tiveram lugar vários banquetes onde foram degustadas iguarias e bebidas oriundas de todos os cantos do Império português. No repasto oferecido pelo tio da noiva, D. Constantino de Bragança, em 11 de Setembro de 1565, foi servido à mesa parte em prata e parte em pratos e outro vasilhame de porcelana preciosíssima mais considerada do que a própria prata e o próprio ouro sendo certo que alguns desses vasos foram muito admirados pela sua grandeza e beleza. Havia também uma credência fornecida de prataria dourada e uma outra de belos vasos da Índia quase tudo como jóias tidas em alta estima por aqueles que entendem o seu valor, com toalhas e guardanapos de finíssimo damasco” 33. Ao ser usada em tão importante ocasião fica claramente demonstrado o apreço e o alto estatuto em que era tida a porcelana chinesa em Portugal. Em 1603, quando as potências estrangeiras eram uma ameaça constante aos interesses dos portugueses em terra e mar do Oriente, também uma das três baixelas usadas nas festas do casamento de D. Teodósio II, duque de Bragança, com D. Ana de Velasco, filha do duque de Frias e 7º Condestável de Castela, em Vila Viçosa, era de porcelana34. 58 À semelhança do que acontecia no reino, em Goa toda a louça de mesa usada no Hospital do Rey Nosso Senhor era de porcelana da China35. A abundância de porcelana subjacente a estes exemplos é confirmada pela sua presença em inventários e testamentos, até da aristocracia e burguesia de província. A documentação confirma ainda que chegavam de forma mais ou menos contínua ao reino cargas significativas de mercadorias exóticas e porcelanas, até meados do século XVII, fazendo de Lisboa uma cidade muito admirada pelos estrangeiros que a visitavam. No relato anónimo da viagem dos embaixadores Tron e Lippomani, enviados a Lisboa em 1582 pela Republica de Veneza, para cumprimentar Filipe II pela conquista de Portugal, ao falar da bela Rua Nova “ornada de uma infinidade de lojas cheias de diversas mercadorias (...) Entre ellas ha quatro ou seis que vendem objectos trasidos da India como porcellanas finissimas de varios feitios, conchas, cocos lavrados de diversos modos, caixinhas guarnecidas de madreperola (...)”36 Cerca de quarenta anos mais tarde, o padre Nicolau de Oliveira, em 1620, afirmava que existiam dezassete mercadores de porcelanas chinesas e que “chegavam muitos conjuntos de porcelanas, em muitas das naus dois ou três mil conjuntos, cada um com vinte peças”37, o que correspondia a 40.000 ou 60.000 exemplares. Além da documentação sobre estas grandes cargas que alimentavam o mercado português e as feitorias lusas na Europa, há testemunhos indesmentíveis do volume desse comércio e da qualidade das porcelanas que nos chegavam da China. Entre estes o mais impressionante é o conjunto do convento de Santos, transformado numa luxuosa residência pelo mercador Fernão Lourenço que a cedeu a D. Manuel I, tornando-se a partir de 1501 residência real até ao desaparecimento do jovem rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, em 1578. Este palácio (hoje residência do Embaixador de França em Lisboa), propriedade das “Comendadeiras de Santos”, foi vendido pela sua abadessa em 1589 a D. Luís de Lancastre, venda regularizada apenas em 1626 em benefício de seu filho D. Francisco Luís. No decorrer do século XVII, especialmente no tempo de D. José Luís de Lancastre, entre 1664 e 1687, a ala do século XVI do palácio foi submetida a importantes obras, datando provavelmente desta época a instalação do tecto da pequena “Casa da 59 Porçolanas”38. Esta colecção, que a partir do reinado de Zhengde se desenvolveu em paralelo com a de Ardebil Shrine, reflecte a evolução da porcelana de exportação com uma continuidade sem falhas durante uma centena de anos. Ela constitui a única colecção que pode testemunhar as primeiras fases da chegada das porcelanas azuis e brancas à Europa Ocidental. Esta colecção, única e rara, compreende essencialmente porcelanas chinesas azuis e brancas do século XVI e inícios do século XVII, um pequeno número da segunda metade do século XVII e alguns pratos, poucos, do século XVIII, sem dúvida peças de substituição de outras que terão caído. Este conjunto invulgar conta 261 pratos de alta qualidade técnica e decorativa, fruto das melhores criações das eras da Zhengde (1506-1521), Jiajing (1522-1566), Longqing (1567-1572) e Wanli (1573-1619). Além de pratos existem também algumas peças de forma: um gomil azul e branco com um modelo raro, mas clássico do período Jiajing, com medalhões relevados deixados em biscuit, com decoração vazada e dourada, encastrado num pendente da madeira dourada suspenso do topo da pirâmide; um outro gomil, grande e pesado, primorosamente decorado com Xi Wang Mu; duas taças, os três últimos em depósito no Museu Guimet; dois potes e ainda três grandes pratos de porcelana de Zhangzhou, mais conhecida por “ Swatow”. Além da colecção do Palácio de Santos, Portugal alberga outro conjunto incontornável: cerca de cinco mil fragmentos escavados no mosteiro das monjas Clarissas de Santa-Clara-a-Velha, em Coimbra39. Eles constituem um importante testemunho da produção chinesa desde finais do século XV / inícios do século XVI até 1667, ano em que a comunidade monacal teve que abandonar o mosteiro medieval, vítima das cheias do rio Mondego, para se instalar num novo mosteiro sobre o vizinho Monte da Esperança. Com os fragmentos encontrados foi possível reconstruir cerca de 200 peças, das quais dois exemplares documentam o início do comércio no dealbar da centúria de Quinhentos, cerca de 80% das peças encontradas – 120 taças e 47 pratos – foram manufacturadas nos reinados de Jiajing (1522-1566) e de Longqing (1567-1572). Embora a maioria dos fragmentos sejam de porcelana branca decorada a azul sob o vidrado o conjunto também incorpora uma taça com decoração kinrande e outra totalmente revestida de esmalte 60 amarelo. Este monocromo, designado “amarelo imperial” e portador da marca do reinado de Jiajing muito bem caligrafada, integra o grupo restrito de peças imperiais que conseguiram escapar do palácio e um pequeno número de cerca de dezassete objectos comummente designado por kraak-porselein, de finais do século XVI/inícios do século XVII. A qualidade e a quantidade das porcelanas carregadas pelas naus que asseguravam a Carreira da Índia, podem ser atestadas por alguns exemplares e milhares de fragmentos que 500 anos depois continuam a dar à costa junto dos sítios onde ocorreram naufrágios de navios portugueses na África do Sul: São João (1552) em Port Edward, São Bento (1554) na entrada do estuário da ribeira Msikaba, Santo Alberto (1593) em Sunrise-on-Sea, Espírito Santo (1608) em Haga-Haga e São Gonçalo (1630) na baía de Plettenberg40. Muito mais eloquente e significativas são as cerca de 1500 peças, das quais 501 intactas ou semi intactas, recuperadas junto ao Forte de São Sebastião, na Ilha de Moçambique, que constituem a mais antiga e maior carga de porcelana chinesa de exportação conhecida de um navio europeu, muito provavelmente o Espadarte, que ali naufragou em 155841. Este conjunto, hoje parcialmente exposto no Museu de Marinha, na Ilha de Moçambique, é maioritariamente de porcelana branca decorada a azul-cobalto vivo sob o vidrado com figuras humanas e motivos inspirados na natureza, no bestiário mágico e na mitologia, muitos deles desenhos taoistas que reflectem os interesses do imperador Jiajing. As tipologias mais representadas são os pratos e as taças, mas também se encontra um gomil e algumas caixas. De todas as peças, o prato decorado com uma lebre branca reveste-se de uma importância particular por ostentar uma marca cíclica com data correspondente a 1553 no calendário moderno, o que nos permite datar a carga dos anos 1550. A porcelana, presente privilegiado Além de servirem nas mesas dos Grandes, as porcelanas, consideradas ainda um objecto raro e precioso na Europa, constituíram também deste o início de Quinhentos um presente privilegiado da coroa portuguesa para as outras cortes europeias e para a Igreja, como se infere da presença de alguns artigos brancos e 61 brancos decorados de azul constantes do inventário de 1504 de Isabel, a Católica, e ainda “uma grande porcelana azul e branca, do tamanho de uma bacia de barba, a qual foi enviada como presente pela Senhora rainha de Portugal numa caixa de madeira branca”42; das ofertas de doze porcelanas aos conventos de protecção real da Madre de Deus, Santa Maria da Pena e Nossa Senhora de Belém (Jerónimos), o primeiro em 1511 e os dois últimos em 151243. D. Manuel mandou dar a sua mulher, a rainha D. Maria, pelo édito de 22 de Junho de 1513, “todo o almizquere e ambar, beyxoim, panos”, 156 de “pequenas e grandes porcelanas”, que montou ao quarto de Sua Alteza das naus que vieram da Índia nesse mesmo ano44. Também seu filho e sucessor, o rei D. João III, e a sua mulher D. Catarina de Áustria ofereceram ao núncio papal em Portugal, de 1550 a 1553, Pompeo Zambeccari, uma taça azul e branca, do reinado de Jiajing (1522-1566), com uma montagem de prata dourada, provavelmente feita por um dos prateiros ao serviço da rainha, com a inscrição em latim “Pompeius Zambecarius Sulmonensis – Nuntius – Ad Regem – Lusitan.M-D.L.IIII” (Pompeo Zambeccari, de Sulmona, Núncio no Reino de Portugal, 1554), hoje propriedade do Museu Civico de Bolonha. O cardeal D. Henrique (r. 1578-1580), que assumiu o trono português após o desaparecimento de seu sobrinho el-rei D. Sebastião em Alcácer Quibir (1578), enviou, em 1580, um magnificente presente ao Xerife de Marrocos para resgatar o jovem monarca português. Aquele incluía, além de um catere de ouro e prata, um pavilhão de tafetá e outros adereços para o catere, búzios, mesas e escritórios, dois caixotes com duzentas e setenta peças de porcelana chinesa, de várias tipologias e decorações, em que a maioria, parece, seria policroma e com muito ouro45. O arquiduque Alberto de Áustria, vice-rei de Portugal de 1583 a 1593, deve ter enviado para o Castelo de Ambras objectos asiáticos de uma qualidade superior, dos quais constavam mais de 250 porcelanas azuis e brancas da dinastia Ming e 30 taças kinrande, etc. 46 Também de Portugal eram as 99 porcelanas chinesas inventariadas depois da morte de Isabel de Áustria (1554-1592). Mais tarde, após a restauração da independência e a subida ao trono de D. João IV, o monarca enviou os seus embaixadores às diversas cortes europeias, portadores de presentes de que destacamos o da rainha Cristina da Suécia, emérita 62 coleccionadora e grande apreciadora de porcelanas, constituído por um impressionante par de talhas azuis e brancas, decoradas com o motivo dos “cem gamos”, com 72cm de altura, feitas no reinado de Wanli (1573-1619), que se encontra actualmente no Museu Östasiatiska, Estocolmo. As primeiras encomendas Testemunhando a primeira fase das relações sino-portuguesas existe um grupo de cerca de 150-200 porcelanas decoradas a azul-cobalto sob o vidrado, que constituem as mais antigas encomendas personalizadas conhecidas feitas por europeus à China47. Estes objectos, os primeiros a ostentarem decoração e ou forma europeias, comprovam o pioneirismo dos portugueses em tão profícuo comércio. Constituindo um dos mais interessantes e originais conjuntos de porcelanas destinadas ao comércio externo, tais peças encontram-se hoje disseminadas por várias colecções públicas e privadas em Portugal e no estrangeiro. Elas foram encomendadas, primeiro, através dos chineses que frequentavam Malaca, e, posteriormente, através de Macau. Para o efeito, os portugueses forneceram desenhos e talvez gravuras com os motivos que gostariam de reproduzir sobre as peças, bem como um ou outro objecto para servir de protótipo à forma desejada. Embora achados arqueológicos provenientes da escavação da residência real em Lucera, na Puglie, indiquem que a porcelana chinesa alcançou a Europa antes do século XIV48 e a mais antiga referência a porcelana numa colecção europeia pareça ocorrer no testamento da rainha Maria de Nápoles e Sicília em 132349, das porcelanas que terão chegado ao Velho Continente antes de 1500, só três são conhecidas. De entre elas, o mais antigo é o vaso “Gaignières-Fonthill”, uma garrafa qingbai, c. 1300-1320, que terá sido adquirida em 1338 por Luís, o Grande, rei da Hungria, quando da vinda de uma embaixada enviada pela Comunidade Cristã Nestoriana da China ao Papa Bento XII. Em 1381, recebeu uma montagem de prata dourada e esmaltes com as armas da Hungria, que a transformou em gomil. 63 Posteriormente foi oferecido pelo rei da Hungria, a Carlos III de Anjou-Sicília, quando da sua ascensão ao trono de Nápoles em 1381. Esta peça, hoje no National Museum of Ireland, Dublin, pertenceu, entre outros proprietários, ao duque de Berry (inventário de 1416), ao Delfim (inventário real de 1689), e a William Beckford em Fonthill Abbey, ao Hamilton Palace, em cuja venda, em 1882, a peça apareceu já desprovida da sua preciosa montagem. A segunda peça é uma taça, de céladon, provavelmente de Longquan, de fim do século XIV - início do século XV, transformada em cálice por uma montagem de prata dourada com o brasão de Phillip von Katzenelnbogen, antes de se tornar conde de Dietz em 1453. A taça, que segundo um inventário de 1594 foi trazida do Oriente por um dos condes de Katzenelnbogen – provavelmente adquirida em Acre por Philipp, o Velho, conde de Katzenelnbogen, durante a sua peregrinação à Terra Santa entre 14 de Julho de 1433 e 3 de Maio de 1434 – encontra-se actualmente no Hessisches Landesmuseum, Staatliche Kunstsammlungen, Kassel50. O terceiro objecto é um prato de céladon, de Longquan, oferecido pelo sultão do Egipto Qā´it Bāy a Lourenço de Medicis em 1487, hoje no Palácio Pitti, Florença51. Além de qingbai e céladons também era certa a presença de porcelana azul e branca do século XV, como a reproduzida na pintura da autoria de Giovanni Bellini e Ticiano O Banquete dos Deuses, c. 1514-1529. As porcelanas mais antigas para o mercado português juntam à decoração tipicamente chinesa – animais mitológicos mais comuns, emblemática budista e taoista, cenas quotidianas – as armas reais portuguesas, sempre em posição invertida e, por vezes, muito deturpadas, indiciando que foram copiadas de um desenho incipiente, a esfera armilar e o monograma IHS, as iniciais do nome de Jesus em grego. Um encontro de dois mundos, onde os elementos se apresentam justapostos sem verdadeira comunicação. Durante os reinados de D. João II (1481-1495) e D. Manuel I (1495-1521) ocorreu a primeira emergência do absolutismo régio português e uma nítida evidenciação do poder do Rei, com as consequentes modificações ao nível da imagética mental e da iconografia régia52. Todo o poder instituído gera a sua própria imagem, que procura ser instrumento de legitimação e de reforço desse poder. 64 Ora D. Manuel, que era duque de Beja, subiu ao trono após sete mortes de personalidades que o precediam no direito à sucessão, pelo que tinha que se afirmar perante uma corte habituada a vê-lo como duque. Assim, todas as iniciativas do seu reinado, nas quais se inclui toda a produção cultural, foram marcadas por símbolos tradicionais do poder régio português e outros que o significam a ele próprio53. A esfera armilar foi a divisa concedida a D. Manuel por seu cunhado e antecessor, El-rei D. João II, coisa que pareceu de mistério e profecia, porque lhe deu a esperança de sua real sucessão54. A partir de 1504, D. Manuel associou sistematicamente ao escudo de Portugal as duas esferas que passam a constituir a sua divisa. A representação da esfera armilar, como nas gravuras das Ordenações Manuelinas, que substituíram o corpus legislativo afonsino, apresenta, por vezes, uma faixa com a empresa: Spera in Deo et fac bonitatem (Confia em Deus e pratica o Bem). A associação do poder de Deus ao poder régio faz-se normalmente pela presença de dois ou mais anjos ladeando o escudo, onde desempenham um duplo papel o de figuras heráldicas correspondentes aos reis de armas e figuras celestes. Por vezes, há notações directas da presença divina: um anjo único: S. Miguel, o anjo de Portugal; Deus-Pai que surge no céu; o tema régio dos evangelistas S. João e S. Lucas; o rosto de Cristo e o monograma IHS. Por isso, não é de admirar que os símbolos do poder real e a presença divina apareçam associados também sobre as primeiras porcelanas encomendadas para o mercado português, certamente com destino à corte, já que só o rei podia usar a sua divisa e era grande apreciador das finíssimas porcelanas. Dada a decoração do tardoz, enrolamento com grandes flores com tratamento muito similar ao das peças de finais do século XV e início do século XVI, e à proximidade do escudo de Portugal encimado por coroa aberta, com a representação do escudo de Portugal no tempo de D. Manuel I, tudo indica que foram manufacturadas no decorrer do reinado de Zhengde (1506-1521) e do seu contemporâneo português o rei D. Manuel I. Do mesmo período e para o mesmo monarca serão o gomil com as armas reais, em posição invertida, do Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque55, gomis com duas esferas armilares, uma sobre cada face: dois com a marca de Zhengde, da colecção 65 RA e da Fundação Dr. Ricardo Espírito Santo Silva56 , e os outros dois, um na Fundação Medeiros e Almeida e outro numa colecção particular, ambos com marca apócrifa de Xuande (1426-1435) e com forma e decoração diferentes dos primeiros57. Ainda dos inícios das relações entre Portugal e a China, existem garrafas em que o bojo é apenas decorado com quatro esferas armilares no Pusat Museum de Jacarta58, na Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, e na Colecção RA. Os dois símbolos do poder real – conjunto escudo e coroa e esfera armilar - e a presença divina no tema régio, através do monograma do Santo Nome de Jesus – IHS, estão também presentes num conjunto de pratos covos que associam alguns dos motivos mais populares da gramática decorativa chinesa como o dragão entre nuvens e vagas, duas fénix a voar sobre enrolamento de lótus e medalhões com paisagens naïf com porco ou ave e outros motivos de acompanhamento, em colecções públicas e privadas como na Fundação Medeiros e Almeida e Fundação Carmona e Costa, ambos em Lisboa, na Colecção RA e numa colecção particular portuguesa 59 . Em alguns exemplares as armas reais e a esfera armilar estão toscamente representados, não respeitando sequer os elementos heráldicos, o que realça a hipótese de terem sido copiados por mão de decorador-ceramista de um pequeno forno de província, com incompreensão do desenho, ou por este ser rude ou ter chegado danificado ao seu destino. 66 Do período de Jiajing (1522-1566), primeira metade do século XVI, são os três gomis conhecidos portadores das iniciais IHS entrelaçadas de forma original e encimadas pelo sinal de abreviatura, propriedade do Museu Nacional de Arte Antiga, da Fundação Carmona e Costa, ambos em Lisboa, e de uma colecção particular. Dos anos de 1540 são o interessante conjunto de taças decoradas com os mesmos símbolos e a inscrição em latim: “AVE MARIA GRATIA PLENA”. A presença da esfera armilar em peças manufacturadas já com D. João III no trono do reino de Portugal, deveria, pela lógica, ter o mesmo destino das outras divisas: cair em desuso. Mas a esfera armilar, símbolo universalmente conhecido, manteve-se na imagem régia da Leitura Nova e também em peças de porcelana chinesa. Nos frontispícios joaninos da Leitura Nova a esfera armilar apresenta um arco exterior suplementar, que serve de ligação com o suporte. Além disso, as esferas surgem envolvidas por um outro lema: SPES MEA IN DEO MEO”, próprio do novo rei60. Encontramos dois tipos de taças, uma com bordo evertido com o tema dos leões a brincar com bola de brocado no fundo e a inscrição em volta do bordo, no interior, na Fundação Medeiros e Almeida 61 e na Fundação Carmona e Costa 62, ambas em Lisboa, e duas taças, uma na Colecção RA e outra no Peabody Museum, Salem, com bordo direito e legenda exterior, em que as armas reais portuguesas estão representadas um pouco mais rudemente e a dificuldade na cópia da legenda é mais notória. De entre estes quatro objectos, os dois primeiros são similares na forma e na decoração exterior a uma taça do Topkapi Saray Museum de Istambul63, que repete o escudo no interior e a legenda “EM TEMPO DE PERO DE FARIA DE 1541”, inscrição retomada sobre duas escudelas: uma ornamentada com uma cavalgada, o exemplar do Museu Rainha Dona Leonor, Beja64, e outra com o tema das crianças a brincar e as armas da família portuguesa dos Abreus, do Museu Duca di Martina, em Nápoles65. Os três objectos exibem a mais antiga inscrição e também a mais antiga data conhecida sobre peças de fabrico chinês para o mercado europeu. A legenda aqui presente, não é indicadora de que as mesmas tenham sido encomendadas pelo capitão de Malaca, mas sim que a encomenda ocorreu durante o segundo mandato, entre 1537 e1543, de Pêro de Faria como capitão de Malaca, praça que ajudou a conquistar em 1511, ao lado de Afonso de Albuquerque e de António de Abreu, o descobridor das ilhas Molucas, Banda e Timor. 67 Estas peças juntamente com as nove garrafas portadoras de decoração vária com motivos florais, elementos aquáticos e gamos numa paisagem, e a inscrição “ISTO MANDOU FAZER JORGE ALVRZ [ÁLVARES] NA ERA DE 1552 REINA”, são a prova da existência de um comércio clandestino entre os portugueses e os chineses, apesar do corte de relações oficiais entre os dois países no período compreendido entre 1522-1554. Jorge Álvares era sócio do mercador escritor Fernão Mendes Pinto, membro do comércio luso-sínico-nipónico e autor em Malaca, em finais de 1547, da primeira obra em língua portuguesa sobre o Japão – Informação das cousas do Japão – oferecida a seu amigo S. Francisco Xavier. Ainda do reinado de Jiajing, existem dois gomis, um na Fundação Medeiros e Almeida, Lisboa66, e outro no Victoria and Albert Museum, Londres67, reflexo de uma síntese harmoniosa de influências: a chinesa, a islâmica e a portuguesa, decorados com o brasão de armas atribuído a António Peixoto, um navegador português que, juntamente com António da Mota e Francisco Zeimoto atingiu o Japão em 15421543. Estes objectos, com a marca de Jiajing, mostram um brasão copiado 68 fantasiosamente em que o elmo foi transformado em barrete e o paquife em folhagem. Do reinado de Wanli (1573-1619) datam os três pratos, kraakporselein (Museu do Caramulo, Portugal 68 , Museu Guimet, Paris 69 , e British Museum, Londres70), e o kendi em forma de elefante (Topkapi Saray Museum)71, de cerca de 1575-1600, com um brasão de armas das famílias Melo ou Almeida, atribuído a D. João de Almeida, capitão-mor da viagem em Macau em 1571 e 1572 e 1581 e 1582, e um prato exclusivamente decorado com as armas de Matias de Albuquerque, capitão de Malaca e Ormuz e 16º Vice-rei da Índia, entre 1591-1597, do Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa72. O facto de um fragmento de porcelana com a mesma decoração ter sido encontrado em Ormuz, hoje no Museu de Colónia, indicia que terão sido encomendados quando Matias de Albuquerque era capitão daquela praça. Da mesma época, manufacturadas entre cerca de 1590-1610, existe uma série de garrafas com as armas identificadas com as das famílias portuguesas Vilas Boas e Faria ou Vaz, que pecam por omissão de alguns elementos e por aumentarem outros. Apesar de poder ter sido um dos vários elementos destas 69 famílias o seu comanditário, o nome mais consensual tem sido o de Álvaro Vilas Boas, Cavaleiro e Comendador da Ordem de Santiago da Espada, que foi à Índia dezoito vezes. Ainda fruto de uma encomenda personalizada e prova de que, apesar da guerra civil no território sínico e da concorrência das grandes potências estrangeiras, os portugueses continuaram ininterruptamente o seu comércio de porcelana, é a bilha com forma portuguesa e as armas das famílias lusas: Pinto, Pereira, Guedes e Pimentel, propriedade da Fundação Carmona e Costa, em Lisboa, manufacturada no decorrer do reinado de Chongzhen (1628-1644), o último exemplar conhecido a encerrar a dinastia Ming73. Exemplos de uma encomenda muito singular, são os pratos do tecto da sala das porcelanas do palácio de Santos74 e do Peabody Museum e as taças decoradas com um brasão, contendo hidra alada com sete cabeças, duas das quais transformadas em cabeças de homem e mulher, ornamentado com filactera 70 portadora da inscrição “SAPIENTI NIHIL NOVUM” (“Para o sábio não existe nada de novo). Há autores que defendem que estas peças, de cerca de 1575-1585, são provavelmente de encomenda portuguesa75 , ainda que uma taça com a mesma decoração apareça representada numa pintura holandesa da autoria de W. C. Heda, datada de cerca de 1638, talvez devido à presença da hidra de sete cabeças, uma das quais transformada em cabeça de diabo, na decoração da fachada do Colégio de São Paulo em Macau. Existe ainda um prato e uma taça com decoração compartimentada típica da kraakporselein que ostenta as armas da família espanhola Cordero, ou eventualmente da família portuguesa Cordeiro, que teve a sua origem remota naquela. Esta peça pode ter sido objecto de uma encomenda espanhola, pois à semelhança dos portugueses os espanhóis também operavam no Oriente. Em 21de Novembro de 1564, partia a expedição de Miguel López de Legazpi, do porto de La Navidad (Nova Espanha) que haveria de chegar à Ilha de Cebú, em Abril de 1565, fundou Manila em 1571 no arquipélago das Filipinas, dando início à profícua Rota do Oriente (1565-1815). Os produtos orientais que antes eram exportados de Lisboa para a Europa seriam, a partir de agora, também trazidos pelos galeões de Manila que ligavam Manila a Acapulco. Esta não seria apenas uma rota comercial, mas também um agente cultural. Dos têxteis, especiarias, mobiliário, marfins, jade, lacas, jóias, chá, entre muitos outros produtos orientais, poucos eram os que seriam embarcados em Veracruz para Sevilha ou, a partir de 1717, para Cadiz. Com o intuito de acabar com o monopólio da Nova Espanha sobre o comércio asiático e com medo de perder as Filipinas pelo seu valor estratégico, Carlos III (1716-1788) criaria a Rota do Ocidente, para a partir de Espanha controlar as relações comerciais com o Oriente. A partir da abertura da rota do galeão de Manila ou Nao da China, a porcelana passou a ser um dos produtos mais procurados, como atestam os fragmentos escavados em Manila ou cidade do México, as peças e fragmentos encontrados nos sítios onde naufragaram os galeões que se dirigiam para Acapulco - San Felipe (1576), San Agustín (1595), San Diego (1600), Santa Margarida (1601), Nuestra Señora de la Concepción (1638) - e ainda nos barcos que navegavam de Veracruz para España como Nuestra Señora da Atocha (1622) e Nuestra Señora de 71 la Limpia Y Pura Concepción (1641), carregados com porcelana, incluindo kraakporselein e porcelana de exportação Zhangzhou, na esmagadora maioria azul e branca. À semelhança dos portugueses, os espanhóis após a sua chegada às Filipinas não se contentaram com a porcelana disponível no mercado, procedendo à encomenda de objectos personalizados com brasões de armas, moda que só cerca de cem anos mais tarde seria retomada pelas outras potências europeias. Para o monarca espanhol foram encomendadas garrafas com as armas de Leão e Castela, inspiradas num cantil de peregrino. Não é de excluir a hipótese de ambos os objectos terem sido encomendados por via portuguesa, visto a partir de 1580 Filipe II cingir as duas coroas. Este monarca também devia apreciar muito a porcelana, pois o inventário dos seus bens móveis faz referência a 1803 objectos de porcelana, em que um dos cântaros apresenta “un escudo de las armas reales en el cuerpo”76, mencionando quatro garrafas uma pintada de cores e três azuis e brancas, mas não indica que qualquer delas fosse armoriada. A maioria das peças destinavase à mesa, onde predominava, por ordem decrescente, os pratos (920), escudillas e albornias decorados principalmente a azul, mas também as havia de cores, brancas e douradas. Antes um prato com armas individuais de Garcia Hurtado de Mendoza, 4º marquês de Canhete, e de sua mulher Teresa de Castro Portugal Y de la Cueva, possivelmente a mais antiga encomenda para o mercado espanhol, datável de cerca de 1590-1600 Rocio Díaz, 2010, pp. 87-91), nº 3) Na senda das porcelanas que imortalizavam as armas do reino, a divisa de El-rei D. Manuel I, o IHS, os feitos e armas de homens de armas e mercadores em terras e mares do Oriente também as Ordens religiosas e a Companhia de Jesus encomendaram peças que evocam a missionação. Durante as primeiras décadas do século XVI, operavam no terreno evangélico na Índia “os sacerdotes de armada”, assim designados segundo as fontes coevas. Eram constituídos essencialmente por franciscanos e tinham como principais funções: confessar as tripulações, assistir os enfermos, dar o conforto da estrema 72 unção aos moribundos, dizer missa nos portos de escala, incitar os soldados portugueses, ou combater o seu lado”77. Tal como aconteceu em África e posteriormente no Brasil a evangelização na Índia não tinha um verdadeiro espírito missionário, baseado num programa “coerente, concertado e autónomo de evangelização” 78 . Salvo raras excepções, eram sobretudo os estratos mais baixos da população que aderiam ao cristianismo. A situação modificou-se substancialmente com a entrada em cena dos padres da Companhia de Jesus vocacionados para a cristianização do Oriente, para quem a China ganhou especial importância.. Nos seus últimos anos de vida, entre 1549 e 1551, Francisco Xavier, o “Apóstolo das Índias”, planeou a conquista espiritual do Celeste Império, sonho que não chegou a concretizar, tendo morrido em 1552 em Sanchoão, na baía de Cantão, às portas da China. Só em 1582, os padres residentes em Macau conseguiram autorização dos mandarins cantonenses para a abertura da sua primeira missão em solo do Império, estabelecendo-se em Zhaoqing, importante cidade da província de Guangdong, e dando início à obra missionária do Celeste Império. A Companhia manteve-se sozinha na cristianização da China até 1631, exclusivo quebrado com a vinda dos dominicanos, dos franciscanos, dois anos mais tarde, dos Agostinhos em 1680, e, por último, dos padres das Missões estrangeiras de Paris, desligados do Padroado Português e ligados à Congregação da Propaganda Fide79. Não é de admirar que ao interesse pela porcelana, presente na obra e cartas dos padres da Companhia, se associassem algumas encomendas especialmente concebidas para o serviço religioso e quotidiano dos jesuítas. São disso exemplo os três potes, hoje na Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Lisboa80, British Museum, Londres81, e numa colecção particular, com profusa decoração e seis medalhões, dois com o emblema da Companhia, e quatro com as iniciais “S” e “P” de São Paulo, nome dos seus colégios, de cerca de 1620-1644. 73 Por serem os únicos a operar na China ou porque há uma tendência em atribuir aos jesuítas os objectos decorados com o IHS e outros motivos religiosos, feitos no século XVI e início no século XVII, os padres da Companhia são apontados como comitentes dos pequenos potes com cabeças de querubim e os Instrumentos da Paixão. À semelhança dos jesuítas, outras Ordens Religiosas, nomeadamente os agostinhos, franciscanos e dominicanos, encomendaram na China alguns objectos. Entre esses contam-se alguns potes com a insígnia da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho (OESA) e um erudito programa iconológico e uma garrafa, de cerca de 1620-1644, pintada com elementos que evocam a Paixão, a Morte e Ressurreição de Cristo, entendida por alguns autores como uma encomenda dos dominicanos devido à presença do cão com a tocha acesa, símbolo da fé. A atribuição do mercado de destino de ambas as peças não é igualmente linear. Notas 1 Para uma história geral sobre o assunto, ver Loureiro, Rui Manuel, Fidalgos, Missionários e Mandarins. Portugal e a China no século XVI, Lisboa, Fundação Oriente, 2000 2 Correia, Gaspar, Lendas da Índia, Porto, Lello & Irmão, ed. 1975, vol. I, p. 141 3 Idem, ibidem, p. 226. 74 4 IAN/TT, Cartas dos Vice-Reis da Índia, doc. 168 IAN /TT, Corpo Cronológico, parte I, maço 6, nº 82 6 Loureiro, Rui Manuel, “Portugal em demanda da China: viagens e mercadorias,imagens e vivências”, in Azul e Branco da China. Porcelana ao tempo dos Descobrimentos. Colecção Amaral Cabral, catálogo de exposição, Lisboa, IPM, 1997, p. 14 7 Veniaga ou beniaga, mercadejar, comerciar 8 Loureiro, Rui Manuel, O Manuscrito de Lisboa da “Suma Oriental” de Tomé Pires. (Contribuição para uma edição crítica), Macau, Instituto Português do Oriente, 1996, p. 146 9 Barbosa, Duarte, Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente (1517), manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 11008, Lisboa, Edição Publicações Alfa, ed. 1989ed. 1989, p. 156 10 Loureiro, 1997, p. 17 11 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 3ª, maço 8, doc. 1. 12 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 22, doc. 80; publicada em Loureiro, Rui Manuel, A China na Cultura Portuguesa do século XVI. Notícias, imagens e vivências, 2 vols. (dissertação de doutoramento na Faculdadede Letras da Universidade de Lisboa, 1994, vol. 2. 13 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 41, doc. 29; publicada em Loureiro, 1994, vol. 2. 14 Loureiro, ibidem, p. 20 15 Idem, ibidem, p. 22 16 Idem, “Portugal às portas da China. Breve história de uma relação exemplar”, in Caminhos da Porcelana. Dinastia Ming e Qing / The Porcelain Route. Ming and Qing Dynasties, Lisboa, Fundação Oriente, 1998, p. 34 17 D’Intino, Raffaela, Enformação das Cousas da China – Textos do Século XVI, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 19891989, p. 102 18 Cruz, Frei Gaspar da, Tratado das Coisas da China (Évora, 1569-70), Introdução, modernização do texto e notas de Rui Manuel Loureiro, Lisboa, ed. 1997, p. 150 19 Idem, ibidem, p. 149-150. 20 Um Tratado sobre o Reino da China dos Padres Duarte Sande e Alessandro Valignano (Macau, 1590), introdução, versão portuguesa e notas de Rui Manuel Loureiro, Macau, Instituto Cultural de Macau, 1992, p. 40 21 Idem, ibidem, p. 44 22 Idem, ibidem, p. 47 23 Matos, Artur Teodoro de, Na Rota da Índia. Estudos de História da Expansão Portuguesa, Colecção Documentos e Ensaios, n.o 8, Lisboa, Instituto Cultural de Macau, 1994, p. 15 24 Thomaz, Luís Filipe Ferreira, De Malaca a Pegu. Viagens de um Feitor Português (15121515), Lisboa, Instituto de Alta Cultura Centro de Estudos Históricos, Anexo à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1966, p. 72 25 Idem, ibidem, p. 164 26 Idem, ibidem, p. 303 27 Para uma visão geral sobre o assunto, ver Pinto de Matos, Maria Antónia, “Chinese Porcelain in Portuguese Written Sources”, in Oriental Art, vol. XLVIII, n.o 5, 2002-2003, pp.36-40; e Idem, Cerâmica da China. Colecção RA / The RA Collection of Chinese Ceramics. A Collector’s vision, Londres, Jorge Welsh Books, 2011, pp.123-139 28 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 10, doc. 69 29 Freire, FREIRE, Anselmo Braancamp, “Cartas de Quitação del Rei D. Manuel”, Archivo Historico Portuguez, vol. IV, 1906, p. 75 30 IAN/TT, Corpo Cronológico, Parte I, maço 13, doc. 10 31 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 96, doc. 147. Gschvend, Annemarie Jordan, “O Fascínio de Cipango. Artes Decorativas e Lacas da Ásia Oriental em Portugal, Espanha e Áustria (1511-1598)”, catálogo da exposição Os Construtores do Oriente Português, Porto, p. 206. 32 Sousa, Frei Luís, A vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, Lisboa, 1984, pp. 256-257. 33 Bertini, Giuseppe, Le Nozze Di Alessandro Farnese. Feste alle corti di Lisbonna e Bruxelles, Milão, Skira, 1997, p. 86. 34 Ferrão, Bernardo, Mobiliário Português, dos Primórdios ao Maneirismo. Anexos, Porto, Lello e Irmão, 1990 volume IV, p. 228 35 Voyage de Pyrard de Laval aux Indes orientales (1601-1611), prefácio de Geneviève Bouchon, organização do texto e notas de Xavier de Castro, 2 vols, Paris, Ed. Chandeigne, 1998, p. 532. 36 Herculano, Alexandre, “Viagem dos Cavaleiros Tron e Lipomani”, Opúsculos, Lisboa, Viúva 5 75 Bertrand, 18861886, vol. VI, p. 120 37 Oliveira, P.e Nicolau de, Livro das Grandezas de Lisboa, 1.a edição 1620, Lisboa, Colecção Conhecer Lisboa – Vega, 1991, p. 462. 38 Para um estudo completo, ver Lion-Goldschmidt, Daisy, “Les porcelaines chinoises du Palais de Santos”, in Arts Asiatiques, T. XXXIX, Paris, Annales des Musées Guimet et Cernuschi, nova edição, 1988 (1.a edição, 1984) 39 Para uma visão geral sobre o assunto, ver Santos, Paulo César, “The Chinese Porcelain of Santa Clara-a-Velha, Coimbra:Fragments of a Collection”, in Oriental Art, vol. XLIX, n.o 3, 2003-04, pp. 24-31 40 Esterhuizen, Laura Valerie, “Chinese Ming Blue and White Porcelain Recovered from 16th and 17th Century Portuguese Shipwrecks on the South African Coast”, in Taoci, N.o 1, Paris, Outubro 2000, pp. 93-99; e Idem, “History written in porcelain sherds. The São João and the São Bento two 16th Portuguese shipwrecks”, in Taoci, N.o 2, Paris, Dezembro de 2001, pp. 111-116 41 Aguarda-se a publicação do estudo integral da carga por Mensun Bound, director da escavação. 42 Archivio general de Simancas, Contaduria mayor, primera época, legajo 178, folio 42, citado por Desroches, Jean-Paul, “Les porcelaines”, in Le San Diego. Un trésor sous la mer, catálogo de exposição, Paris, Réunion des musées nationaux e Association française d’action artistique, 1994, pp. 308-309. 43 Pinto de Matos, Maria Antónia, “Chinese Porcelain in Portuguese Written Sources”, in Oriental Art, vol. XLVIII, n.o 5, 2002-2003, p. 37 44 IAN/TT, Corpo Cronológico, parte 1ª, maço 13, doc. 10. 45 Sousa, D. António Caetano de, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, nova edição revista por M. Lopes de Almeida e César Pegado, Coimbra, Atlântida – Livraria Editora, Lda., 19481948, vol. III, pp. 525-526 46 Gschwend, Annemarie Jordan, “O Fascínio de Cipango. Artes Decorativas e Lacas da Ásia Oriental em Portugal, Espanha e Áustria (1511-1598)”, catálogo da exposição Os Construtores do Oriente Português, Porto, 19981998, pp. 218-219 47 Para uma visão geral sobre o assunto, ver Pinto de Matos, Maria Antónia, “Porcelanas de Encomenda. Histórias de um Intercâmbio Cultural entre Portugal e a China”, in Oceanos, n.o 14, Lisboa, CNCDP, 1993, pp. 40-56; Idem, Caminhos da Porcelana. Dinastia Ming e Qing / The Porcelain Route: Ming and Qing Dynasties, Lisboa, Fundação Oriente, 1998; Idem, “Macao and Porcelain for the Portugues Market”, in Oriental Art, vol. XLVI n.o 3, 2000, pp. 66-75: Idem, Cerâmica da China. Colecção RA / The RA Collection of Chinese Ceramics. A Collector’ vision, Londres, Jorge Welsh books, 2011, pp. 123-205 48 Massing, Jean Michel, “Gaignières-Fonthill Vase” e “Katzenelnbogen bowl”, in Circa 1492 Art in the age of Exploration, Washington, National Gallery of Art, 1991, p. 131, no 15 49 Idem, ibidem 50 Idem, ibidem, p. 132, nº 16 51 Morena, Francesco, Dalle Indie orientali alla corte de Toscana. Collezioni di arte cinese e giapponese a Palazzo Pitti, Ministero per i Beni e le Attività Culturali – Soprintendenza Speciale per il Pólo Museale Fiorentino, Florença,Giunti, 2005, p. 22-23 e 121, no 1 52 Alves, Ana Maria, Iconologia do Poder Real no Período Manuelino. À procura de uma linguagem perdida, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985, p. 13 53 Idem, ibidem, p. 15 54 Resende, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973, pp. 70-71 55 Le Corbeiller, Clare Le, China Trade Porcelain: patterns of exchange. Additionsto the Helena Woolworth McCann collection in the Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, Metropolitan 55 Museum of Art, 1974, p. 12, no ; Corbeiller Clare Le, e Frelinghuysen, Alice Cooney, The Metropolitan Museum of Art Bulletin, Inverno de 2003, p. 6, no 1 56 Pinto de Matos, 2011, pp.144-147, no 57. Idem, in Antunes, Mary Salgado Lobo, Porcelanas e Vidros, Lisboa, FRESS, 1999, pp. 45-47. 57 Idem, “Porcelanas de Encomenda. Histórias de um Intercâmbio Cultural entre Portugal e a China”, in Oceanos, n.o 14, Lisboa, CNCDP, 1993, p. 41; Idem, Maria Antónia e al., Caminhos da Porcelana. Dinastia Ming e Qing / The Porcelain Route: Ming and Qing Dynasties, Lisboa, Fundação Oriente, 1998, pp. 134-135, no 1 58 Abu Ridho, Oriental Ceramics. The World’s Great Collections, vol. 3, Museum Pusat Jakarta, 76 Tóquio, Nova Iorque, São Francisco, Kodansha America, 1982, no 201; França, António Pinto da, Portuguese Influence in Indonesia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 25 os 59 Pinto de Matos e al., 1998, pp. 136-143, n 2-5 60 Alves, 1985, p. 134 61 Pinto de Matos, 1993, p. 43 62 Pinto de Matos e Salgado, Mary, Porcelana Chinesa da Fundação Carmona e Costa, Lisboa, Assírio e Alvim, 2002, pp. 38-43, no 3 63 Krahl, Regina, (John Ayers, ed.), Chinese Ceramics in the Topkapi SarayMuseum Istanbul, Londres, Philip Wilson Publishers, 1986, vol.II, pp. 589-590, no812 64 Pinto de Matos, Maria Antónia, “Porcelanas de Encomenda. Histórias de um Intercâmbio Cultural entre Portugal e a China”, in Oceanos, n.o 14, Lisboa, CNCDP, 1993, p. 42 65 Caterina, Lucia, Catalogo della porcellana cinese de tipo bianco e blu, Roma, Museo Nazionale della Ceramica “Duca di Martina” di Napoli, 1986, p. 6, no 3, 3a e 3b 66 Pinto de Matos, ibidem, p. 47 67 Kerr, Rose “Chinese porcelain in early European Collections”, in Encounters. The meeting of Asia and Europe 1500-1800, Londres, V&A Publications, 2004, p. 225, no 17.3 68 Pinto de Matos, ibidem, p. 49 69 Desroches, ean-Paul, “Gomil”, in Do Tejo aos Mares da China: Uma Epopeia Portuguesa, catálogo de exposição, Paris, Réunion des Musées Nacionaux, 1992, p. 99, no 44 70 Harrison-Hall, Jessica, Ming Ceramics in the British Museum, Londres, The British Museum Press, 2001, p. 313, no11:103 71 Krahl, ibidem, vol. II, p.730 , no 1295 72 Pinto de Matos, 1993, ibidem, p. 48 73 Pinto de Matos e Salgado, 2002, pp. 50-53, no 5 74 Lion-Goldschmidt, 1988 (nova edição), pp. 44-45, fig. 80, 81 e 82 75 Gray, Basil, “A Chinese blue and white bowl with Western emblems”, in British Museum Quarterly, Vol. XXII, nos. 3-4, 1960, pp. 81; Harrison-Hall, 2001, pp. 300-301, no 11:63 76 Sánchez Cantón, F. J., Archivo Documental Español publicado por la Real Academia de la Historia, Tomo XI, Inventarios Reales Bienes Muebles que pertenecieron a Felipe II. Edição, Introdução e Índices por F. J. Sánchez Cantón, vol. II, Madrid, Archivo Documental Español, 19561959 vol. II, 1956-1959, p. 265 77 Alves, Jorge Manuel dos Santos, Portugal e a Missionação no Século XVI. O Oriente e o Brasil. Edição bilingue português-inglês, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1997, p. 18 78 Idem, ibidem, p. 17 79 Idem, ibidem, p. 76 80 Pinto de Matos, Maria Antónia, A Casa das Porcelanas. Cerâmica Chinesa da Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves, Londres/Lisboa, Philip Wilson Publishers Ltd., 1996 , pp.138-139 , no63 81 Harrison-Hall, 2001, p.379, no 12:73 Maria Antónia Pinto de Matos Diretora do Museu Nacional do Azulejo desde 2008, conservadora e assessora do Museu Nacional de Arte Antiga (2005/2008). Foi diretora da Casa Museu Dr. Anastácio Gonçalves (1994/2005); diretora do Instituto Português de Museus (1996/1997) e chefe de divisão de museus na mesma instituição (1992/1994). Licenciada em História, é autora de importantes publicações sobre coleções portuguesas e brasileiras de porcelanas como Companhia das Índias. 77 THE OPENING UP OF JAPAN: CHANGES BROUGHT ABOUT BY THE WESTERNIZATION OF JAPANESE FINE ART, AND THE PRESENT DAY SITUATION Hirotoshi Sakaguchi Professor, Tokyo University of the Arts My ! name is Hirotoshi Sakaguchi, and I'm Japanese.! I currently teach at Tokyo University of the Arts' !Painting Department.! Thanks to Professor Okano's kind invitation, I'm here in Sao Paulo for the first time ever. Today, I'm truly happy to be able to exchange opinions with all of you on the topic of oriental art.! ! First of all, I'd like to tell you that I'm not a dedicated researcher on the topic of Asian Art History, so I'll be addressing the matter from my very own standpoint, which is that of a contemporary artist. I believe that as we take a look at the following images together, we will be able to make light of the way in which Japan has recre-ated and updated its Art by reflecting about its own!history.! img. 1 Repeatedly, in the long history of Japan, there have been times of sudden influx of foreign technology and ways of thinking, followed by times when there was almost no exchange with overseas countries. The Japanese, living in an island nation that is physically separated from the continent, have been able to promptly absorb newly introduced elements belonging to foreign cultures, having a special talent to rapidly transform them into cultural elements infused with a peculiarity that could be thought of as uniquely Japanese, and seamlessly integrating them in the context of a permanent quest to perfect esthetic experience in their daily life.! Now, let us take a simple historical look at the influx of foreign culture. Looking into the country's pre-historical era, we could trace back the origin of Japan to the period between the 2nd and the 5th century CE, the point in which the introduction of rice cultivation techniques began to shape a particular way of life.(Image 1) Then, during the first half of the 6th century, we had a second event of great importance, which was the introduction of Buddhism. That process was accompanied all the way into the late 7th century by the adoption of the social structural patterns of T'ang dynasty's China, which also influenced the development of a great deal of Asian nations, and which we refer to in Japanese as ritsuryou. That process brought with itself the introduction and further development of many highly influential technical processes, specially those of architectural construction and metal casting. At the same time,!the contemporary flourishing of the 'Silk Road' trade route also had a img. 2 very strong influence in Japan, as is evident in many examples of Buddhist Art and the craft of everyday objects of the time. (Image 2) 78 I would like us now to take a look at the old's longest standing wooden structures: Horyuji, a group of Japanese Buddhist temples dating back to the 7th century. By looking at the murals of its walls, we can unmistakably perceive the influence of the paintings on India's Ajanta caves as well as those of the Mogao caves in China, all of it channeled through a style that was very well informed of T'ang China's tendencies of the time. (Image 3-1,3-2)G! ! Now, allow me to jump much forward, to the year 1468, and let us take a look at the work of Sesshu, who had spent two years in early Ming dynasty China studying the ways of ink painting (suibokuga) (Image 4)! ! Then, we have this folding screen from 1580, known as the Nanbam Byobu, the work of the painter Kano Naizen. In it, we can see a portrayal of Momoyama era's reaction to the country's first contacts with foreign traders sailing in from Portugal.(Image 5)! ! img.3-1., 3-2! ! ! ! ! ! ! ! ! ! img. 4 img. 5! ! Here, on the other hand, is one of the earliest examples of western style oil painting produced in Japan, by the hand of whom is known as the country's first 'oil painter', Edo period born Takahashi Yuichi (1828-1897), who had actually never visited the west, but whose technique in this work, simply and aptly titled "Salmon", nevertheless achieved surprisingly realistic effects. (Image 6-1,6-2)! img. 6-1 img. 6-2 79 During the Edo period (1600 - 1868), which transpired under a warless national isolation brought about by policies such as the strict prohibition of Christianity, people enjoyed stable everyday lives, and boasted world-class education and technology. Concurrently, craft-related subcultures became extremely popular and widespread among all classes, and cultural manifestations like kabuki theater, ukiyo-e woodblock prints, and other specifically Japanese crafts took on highly developed forms. Under the influence of the affluent middle classes and the growth of Japan's largest cities, Art saw a clear departure from the chiefly religious themes of the past, transitioning into secular themes characterized by highly sophisticated and stylized representations of the gritty particularities of city life, suffused with a sense of humor that permeated as well the renovated visual portrayal of fantastic folk tales. (Image 7) img. 7 ! Around the middle of the 19th century, Japanese ne arts (in particular ukiyo-e prints and a variety of handicrafts, including! textiles, ceramics and many others) attracted a great deal of attention at both the Second Paris International Exposition (1867) and the Vienna International Exposition (1873), thus spearheading the global art movements of Japonism and Art Nouveau. There was also a strong influence on avant-garde artists of the time, such as Van Gogh and Monet. (Image 8-1,8-2) If I were to simply sum up Japan's 'modern' phase, I would say it began on 1868 with the Meiji Restoration and finished in 1945 with the surrender at the end of the Second World War. I believe everything that has been done from 1945 until today, can be safely described as 'Contemporary'.! 'Art' (as defined by the Japanese word Bijutsu) was a concept extrapolated from the west, and expressly introduced in Japan by the government as part of the modernization agenda of the Meiji Administration, that also happened to establish the Tokyo School of Fine Arts (Tokyo Bijutsu Gakkou) which much later merged with other similar public institutions to become the national university at which I teach, which is called, as I said at the beginning, Tokyo University of the Arts (Tokyo Geijutsu Daigaku).! ! ! ! ! ! ! img. 8-1, 8-2 The original Tokyo School of Fine Arts was created by the Meiji government with the aim of instilling in Japanese people an imported way of feeling and looking at things, right down to the adoption of the western way of drawing, painting and sculpting. (Image 9)! img. 9 80 In 1876, ninth year of the Meiji era, in order for the government to advance modernization in the fields of city planning and architecture the Technical Fine Arts School was opened, and a proper Western ne-arts education curriculum was taught by foreign lecturers such as Antonio Fontanesi. "Fine art" of the Western type was introduced, and European painting techniques, such as perspective, were disseminated. ! img. 10! However after the initial period of modernization, Japanese national pride gained strength, and the ideal of western painting was challenge after a re-appraisal of the excellence of Japanese ne arts was campaigned by Ernest Fenollosa and Tenshin Okakura, who were at the time teaching at Tokyo School of Fine Arts, the predecessor of the present Tokyo University of the Arts. A few years later, Kiyoteru Kuroda and others of his generation returned to Japan after studying abroad in France and later became professors of the Tokyo School of Fine Arts, brought with themselves images of the newest movements in turn of the century Western painting, thus expanding the rigid stance that had! by then solidified in the academic environment. (Image 10) ! During the same temporal frame, after returning from studying abroad in Europe, a member of the Kyoto circle of painters, traditionally trained artist Seihou Takeuchi, became a co-founder of a new ethnic art category: ‘Nihonga’(Japanese Painting). ! img. 11! ! ! In 1907, the first Ministry of Education organized ‘Bunten’ exhibition inviting applicants from the public was held, and works of Japanese painting, oil painting, and sculpture were exhibited at the same place for the first time ever.! Next from the Taisho era to the prewar Showa period, cosmopolitan Western ne art aesthetics (Rodin, Cezanne, Van Gogh, Gauguin) and literature were introduced, in the magazine Shirakaba ("White Birch”) which was started in 1910.! During the expansion of national power symbolized by the victory of the Russo-Japanese War, a counter current to this could be seen amongst young artists, whose interest in fauvism, cubism, etc. was a search for free forms of expression in which naturalistic avant-garde painting symbolized freedom and individuality. (Image 11) The bilateral character of the currents, which reflected the blockade situation of times, such as control of art, and war, depression, etc. by national power, ! simultaneously became the feature. In the 1930s, the restriction and suppression of free art activities became remarkable. The number of artists serving in the war also increased in number and ne-arts organization was dispersed. Under wartime, for the national will-to-fight upsurge, many painters, including Tsuguharu Fujita, painted battle pictures and cooperated in war e orts. (Image 12) img. 12 81 img. 13! After defeat in 1945 and the collapse of an era's values, artists earnestly examined the past and groped for a future of Japan to be aimed at. It is still being questioned now how the experience of atomic bombs, pollution, earthquakes, and nuclear power plant disasters could be overcome. (Image 13)! In the 1970s in the middle of the frantic urbanization and computerization typical of the "Japanese miracle" high economic growth period, Otaku (nerd) culture was born. Art expression taken from the domain of popular mass media technologyrelated subcultures (comics, anime, games, personal computers, SF, special effects, doll figures) rapidly flourished, and has spread out into the world as its incredibly complex and particular categories continue to develop up to this dayMImage 14N img. 14 As a consequence of all of the process that I've outlined so far, and many others, current day Japan is a society fueled by a very and complex patchwork of highly eclectic cultural elements, assimilated into our culture in an unique way that constantly gives birth to highly original products whose wide-spread international appeal allows Japan to compete with foreign countries in matters of contemporary art, fashion, architecture, etc.! Before we go any further into our overview of Contemporary Art in Japan, I would like to briefly introduce my own work through a few images. 82 img.15 img.16 img.18-1 img.19-1 After studying painting at Tokyo University of the Arts from 1969 until 1975, (Image 15) I relocated to Germany and spent the period between 1976 and 1983 studying at Munich's Academy of Fine Arts. It was during that period in which I initially began my departure from academic drawing and conventional painting. I was inspired by the spirit of the times to undertake a search for a much freer way of expressionǣImage 16ǤStill at that moment, just like in Japan, one could still see how Germany had taken the toll of losing the war. Yet at the same time, I was appalled at the way the students freely expressed their thoughts, even in front of their teachers. It was thus, that I received a strong direct influence from Germany's contemporary Art movement, including figures active at that time like Joseph Beuys and Sigmar Polke. I studied ways of approaching media like sculpture, painting, architecture or installation, always from the conceptual standpoint of drawing. Upon returning to Japan, I mainly developed the work towards a practice which integrated painting and installations with large scale projects planned for open air venuesMImage 17-1, 17-2NHGAt the same time, I've always had a big interest in looking at the way in which the relationships between inner and outer space and the body are dealt with in Japanese Gardens and Japanese Tea Room Architecture. Another very strong interest that informs my work is the way in which Ink Painting (suibokuga) deals with space within the theme of landscapes, capturing vastness through the smart use of very reduced elements. (Image18-1, 18-2) Upon becoming a teacher at my alma mater in 1991, I had the chance to experiment with img.18 Environmental Art and Social -2 Projects (Image19-1, 19-2) while also committing myself strongly to activities that fostered international exchange, including exchange exhibitions, collaborations with sister schools, and of course tutoring a fair share of foreign students of many nationalities. Having given you a brief outlook of my interests and my work, let us proceed to this lecture's part concerning post war contemporary Japanese Art. img.19-2 img.19-3 83 A good starting point I believe, would be to present a group of very important artists and curators who have so far participated in the different editions of the Sao Paulo Biennale since 1951.! img. 20! ! img. 21! img. 22! img. 23! +"GShikouGMunakata who participated in 1951 (Top Prize) A woodblock printmakerGwith a very strong admiration for Van Gogh G(Image 20)! ! &AGTaro Okamoto who participated in 1953 With a very strong influence from the mexican muralistsGKSun TowerL1970G(Image 21)! ! <GKaoru Yamaguchi who participated in 1957, a Japanese Artist with a penchant for imaginary landscapes.G! ! ' 6GTadashi Sugimata who participated in 1961 an abstract painter E)-AGJiro Takamatsu who participated in 1973GPainter of white shadows  =GTetsumi Kudo who participated in 1977G(Image 22)! 7%DGKishio Suga who participated in 1981 A member of Mono-haG(Image 23)G img. 24-1 img. 24-2 img. 25-1 img. 25-2 , GTadanori Yoko who participated in 1985 a proponent of Pop PaintingG(Image 24-1,24-2) .GTadashi Kawamata who participated in 1987 presenting an installation made out of wood! (Image 25-1,25-2)! *.G Masato Kobayashi who participated in 1996GA PainterG(Image 26)GG ?@1G Michihiro ShimabukuroGwho participated in 2006GWorks by traveling worldwide performing and doing installations and video work all aimed img. 26 img. 27 G at finding new ways of communication. (Image 27)! From the side of the curators, I'd like to mention three people, Nakahara Yusuke JC2 A Ichiro HaryuJand (B:# Homei Tono! 84 Next, a brief overlook of the most important Contemporary Art movements and some of their members:! img. 28! ! img. 27-1! img. 28 img.30-1 ! img.31-1 img. 27-2! ●K 8>LGutai (Concrete) was a movement mainly formed in the kanas (western) region of Japan, and whose activities mainly took place in the period between1952-1972. Their objective was to cut links with the tradition of modern painting, and revive primitive unthought of ways of expression. Yoshihara in particular, rallied their ranks under with messages like "We won't imitate any humans! Let's make things that have never been yet!" their work is a very good example of an informalist ethos combined with a very Japanese approach. They achieved international notoriety and their legacy is currently being reexamined in Japan and abroad. img. Their members were: 09GJiroGYoshiharaK L 29! the ! leaderG(Image 28)! 3!GAtsukoGTanaka A female painterG(Image 27-1,27-2) 5FDGKazuoGShiraga who invented a unique way of working, which consisted of placing his canvases and paints on the floor while suspending himself with a rope from the ceiling and treating the surface with his bare feet. (Image 28) /.GSadamasaGMotonaga (Image 29) img.30-2! ● K Neo Dada Organizers L a movement founded in 1960 which had a very short duration of about 6 months, but which spawned a mass migration of many of its members to New York City where some are still active today.  $  4 G Ushio Shinohara, who experimented with corrugated cardboard sculptures depicting subject matter like motorcycles, and also developed a unique way of painting by boxing. Many of you might have heard of him, as he was recently the focus of a popular documentary. (Image 30-1,30-2) ;  Shusaku Arakawa whose work includes poetic painting derived from diagrambased motifs, and other media such as architecture and landscape art. (Image 31)! 85 86 Hirotoshi Sakaguchi Professor de pintura a óleo da Faculdade de Belas Artes da Tokyo University of the Arts, desde 1991. Como artista realizou várias exposições individuais na Alemanha e nas cidades de Tóquio e Fukuoka, no Japão e participou de exposições coletivas em várias cidades japonesas e países estrangeiros como na Austrália, China, Alemanha e França. 87 EMAKI STUDIES: PAST, PRESENT, AND FUTURE ESTUDOS DO EMAKI: PASSADO, PRESENTE E FUTURO Akira Takagishi The University of Tokyo ABSTRACT: Illustrated handscrolls, or emaki, have a history spanning over a thousand years and have held a special place in Japanese painting history since their inception in the eighth century. The handscroll format, in which a length of silk or paper is wound around a dowel and unrolled from right to left, creates an additional temporal dimension ideally suited to the depiction of narrative. Their subject matter ranges from courtly tales to stories of the miraculous origins of temples and shrines, to illustrated biographies of eminent monks, war tales and beyond. During the twelfth to sixteenth centuries artists came up with many conceptual innovations, a situation we might loosely compare to the dynamic changes in the graphic visuality of today’s manga and anime. Emaki also provide valuable information about the societies that produced them that cannot be gleaned from documentary sources. This presentation introduces the historical development of emaki and outlines the ways emaki have been taken up in recent scholarship in the fields of art history, history, literature, and Buddhist studies. It aims to contribute to the foundation of a distinct field of “emaki studies” with an ambitious global vision that includes the comparative study of western illuminated manuscripts. Keywords: narrative painting; handscroll; emaki; Japanese art history; comparative art history. RESUMO: Pinturas em rolo ilustradas ou emaki possuem uma história que se estende por mais de mil anos e tem um lugar especial na história da pintura japonesa desde o seu início, no século VIII. A pintura de seda ou papel, cuja sua largura se apresenta em rolo, é desenrolada da direita para a esquerda e cria uma dimensão temporal adicional, combinada de modo ideal com a descrição da narrativa. Seus temas abrangem desde contos da corte até estórias de origem milagrosa de templos e santuários para ilustrar biografias de monges eminentes, contos de guerra e do além. Durante o século XII até XVI artistas introduziram muitas inovações conceituais que podem ser, de modo amplo, comparadas às dinâmicas mudanças na visualidade gráfica do mangá e animê atuais. O emaki representa a essência da sociedade histórica que o produziu, algo que não é possível de ser detectado num material documental. A palestra irá introduzir o desenvolvimento histórico do emaki e descrever modos pelos quais o emaki tem sido abordado em recentes pesquisas nos campos de história da arte, história e literatura japonesas e estudos budistas. Pretende-se contribuir para a fundação de um campo distinto de “estudos do emaki”, com uma visão global ambiciosa que inclui o estudo comparativo com as iluminuras manuscritas ocidentais. Palavras-chave: pintura narrativa; pintura em rolo; emaki; história da arte japonesa; história comparada da arte. 1 Inception: Emaki during the Eighth to Twelfth Centuries Today I would like to introduce a special genre within Japanese art history, the illustrated handscroll, or “emaki” in Japanese. As objects emaki represent a 88 distillation of the historical societies that produced them, and as such they transcend the usual boundaries of “art” as we are usually accustomed to thinking about it, providing valuable information on the lives and livelihoods of people of the past that cannot be gleaned from documentary sources. This makes emaki a rich resource for historians working in a range of fields in addition to art history. This presentation will introduce the historical and stylistic development of Japanese emaki and outline the ways in which emaki have been taken up in recent scholarship in the fields of art history, Japanese history, Japanese literature, and Buddhist studies. Many aspects of life in ancient Japan were strongly influenced by the culture of her larger continental neighbor, China. In the sixth century, Buddhism arrived in Japan from China via the Korean peninsula, and with it came Chinese characters, paper, and writing utensils. The Buddhist scriptures (or sutras) were written on sheets of paper in columns of Chinese characters, top to bottom and left to right. The individual sheets were joined together to form long handscrolls. The illustrated handscroll, or emaki, developed out of this format when paintings were added to the text. On average emaki are about 35cm high and range from 10 to 20 meters in length. Many emaki in fact comprise sets of several scrolls. The largest extant set of emaki today consists of a total of forty-eight scrolls that cumulatively measure over a kilometer in length. The oldest surviving emaki is known as the Illustrated Sutra of Cause and Effect (E-inga kyō) and dates to the eighth century. It tells the story of the early life of Siddhârtha, the prince who renounced the world and eventually became the Buddha. The bottom half of the scroll is devoted to the text, while the top half is taken up with the accompanying images. At this stage in its development, the format of the emaki closely followed that of Tang dynasty sutras and Buddhist paintings. At the end of the eighth century a system of governance was established with the emperor and an aristocratic court at its center, located in what is present-day Kyoto (then known as Heian-kyō). This period in Japanese history is known as the Heian period and continued until the end of the twelfth century. Over the four hundred years of the Heian period the Kyoto aristocrats devoted themselves to cultural and scholastic pursuits. While they continued to be influenced by continental culture and imports from Song China, it was during the Heian period that the 89 foundations for what is today perceived as truly “Japanese” culture were laid. This included the development of the native hiragana syllabary, the waka poetic form, and yamato-e, or classical Japanese-style (as opposed to Chinese style) painting, all of which came into being during the course of the ninth century. The Tale of Genji, often called the world’s first novel, was composed by Lady Murasaki Shikibu in the early eleventh century and includes a several episodes that indicate the appreciation of emaki was an integral part of courtly life. Murasaki offers a number of precisely worded evaluations of various emaki that cumulatively suggest emaki had evolved into a highly sophisticated art form by this time. However, unfortunately, not a single emaki dating from the ninth to eleventh centuries is extant today. The courtly cultural efflorescence of the Heian period peaked at the end of the twelfth century, just as the aristocrats’ hold on power began to weaken under threat from the emerging warrior class. The latter half of the twelfth century was dominated by wars and battles, and in the midst of the instability of these conflicts, the court turned inwards, focusing ever more attention on cultural pursuits. Some of the most celebrated emaki were produced at precisely this time, including the Genji monogatari emaki (Illustrated Scrolls of the Tale of Genji) the subject of which is courtly love; the Ban Dainagon emaki (Illustrated Scrolls of Grand Counselor Ban) which tells the story of a political conflict between urban-dwelling aristocrats, and the Shigisan engi emaki (The Miraculous Origins of Mount Shigi), which depicts the miraculous origins of a temple on Mount Shigi. During the eleventh and twelfth centuries the Song emperors in China amassed enormous collections of artworks. This practice was imported to Japan where during the twelfth century the emperor and court also collected works of art and built treasure houses in which to store them. The collection of emaki amassed by Emperor GoShirakawa (1127–1192) and stored in a specially constructed storehouse known as the “Lotus Treasury,” was pre-eminent among these collections. The foundations of aristocratic society in late twelfth century Kyoto were shaken by the emergence of the warrior class, and it was against this background of profound political instability that Emperor GoShirakawa commissioned a number of remarkable emaki that addressed the state of the world and the human condition for his 90 collection. GoShirakawa’s aim appears to have been to somehow shore up the increasingly insecure position of the emperor in the realm by commissioning and dedicating these scrolls. One of these scrolls was the Nenjū gyōji emaki (Illustrated Scrolls of Annual Events), a set of scrolls that illustrated the annual program of ritual and festive events held in the capital. The depiction of these gorgeous spectacles simultaneously communicated the harmonious state of the realm under the leadership of the ideal ruler, the emperor. The Yamai zōshi (Scrolls of Diseases and Deformities) depicted those afflicted with strange diseases and the physically and mentally challenged in the city of Kyoto and its surrounding areas; the Jigoku zōshi (Hell Scroll) and the Gaki zōshi (Scroll of Hungry Ghosts) depicted the hellish fates to which wrongdoers were consigned after death. Collectively these scrolls pictorialized both the idealized real world and the path of evil as explained in the Buddhist scriptures, and effectively cast GoShirakawa as ruler of both this world and the next. The twelfth century is of particular significance in Japanese art history as it represents the apex of 300 years of intense cultural activity centered among the aristocrats of Kyoto who, while absorbing the latest objects and styles imported from Song China, refined and Japanized them to create what we now perceive as classical Japanese culture writ large. This is also true in the field of emaki production as ever more sophisticated techniques were developed to create powerful narrative visualizations of cherished stories. The late twelfth century emaki known as Shigisan engi emaki (The Miraculous Origins of Mount Shigi) is a prime example of the high levels of sophistication reached in late twelfth century narrative painting in Japan. This three-scroll set is a designated National Treasure and is one of the best known of all Japanese paintings. 2 The Miraculous Origins of Mount Shigi and Myōren Mount Shigi is located about 20 kilometers from Nara and there is a temple known as Chōgosonshiji at its summit. The protagonist of the scrolls is a monk named Myōren who was active on Mount Shigi during the tenth century. Myōren possessed super-human powers and he performs various miracles in the course of 91 the story, thanks to which the temple developed from a small mountain retreat into a thriving religious establishment. The scrolls simultaneously tell both the story of Myōren’s life and the miraculous founding of the temple and are therefore classifiable under the categories of both “sacred biography” and “miraculous origins.” It is important to note that while the scrolls were created in the late twelfth century, the story itself—in which objects that are brought to Mount Shigi are transformed into the relics that substantiated the miraculous stories surrounding the temple’s origins— harks back more than 250 years to the beginning of the tenth century. None of the relics of Chōgosonshiji temple originated on the mountain. All were miraculously “transported” to Mount Shigi from distant places. The focal point of the scrolls is Myōren, who never takes a step off the mountain, and the main themes are the movement or transportation of objects, deities, and persons to Mount Shigi. The first of the three scrolls tells the story of the miracle of the “flying granary” (tobi kura in Japanese). In the second scroll, Myōren succeeds in healing the emperor who has fallen sick sixty kilometers away in Kyoto. The third scroll tells the story of how Myōren’s older sister, from whom he had been separated since childhood, set out on four hundred kilometer-long journey to find him, and of their miraculous reunion at Mount Shigi. The Flying Granary Scroll The first scroll is known as the flying granary (tobi kura) scroll, or alternatively as the Yamazaki Landlord scroll (Yamazaki chōja no maki in Japanese). This scroll is unusual among illustrated handscrolls in that it contains no written text. However, a very similar story is recorded in a twelfth century anthology of Buddhist vernacular tales, allowing scholars access to the narrative framework of the story despite the fact that the scroll itself lacks a written text. The date is 900 A.D. and the stage is residence of a wealthy landlord in Yamazaki in the suburbs of Kyoto. Yamazaki is located on the Yodo River, which links Kyoto with the Inland Sea, and it flourished as a way-station for river traffic making this journey. The family and employees of the landowner are startled as the 92 granary in which rice is stored in the landowner’s compound suddenly begins to shake. The granary is made of wood and the shaking motion is conveyed by the falling ceramic roof-tiles. Then a golden bowl of about a meter in diameter suddenly bursts out of the granary. This magical flying bowl had in fact been sent by Myōren from Mount Shigi to the landlord’s compound, as it had been on numerous occasions before, to request rice as alms. Although in the past the landlord had always complied, for some reason this time the bowl’s request irked him and he had thrown it into the granary where the rice was stored and locked the door. After escaping from the granary, the bowl then lifts the granary off its foundations and begins to fly off slowly into the sky with it. The local inhabitants follow its progress along the river in open-mouthed surprise. If you look carefully you can see the fine ink lines used to depict the flow of the river. Since historically rice was the equal of today’s hard currency, the storehouse effectively represents the entirety of the landlord’s assets. The landlord, facing financial ruin, mounts a black horse and follows the flying bowl and granary accompanied by a group of his men. Given the geographical distance covered in the story, the bowl seems to be traveling at about 10 kilometers an hour. After about half a day, both the granary and the landlord arrive at Mount Shigi, about 50 kilometers to the south of Yamazaki. The bowl stops only when it reaches Myōren’s secluded mountain hut. The landlord apologizes to Myōren for not having donated the requested rice and asks him to return the granary and the rice stored within it. You can see the granary shown just to the side of Myōren’s hut. Myōren escorts the landlord and his party to the granary and tells them that he will return the rice, but not the wooden granary itself. He then orders the landlord’s men to load the rice bales inside the granary onto the golden bowl. At this time rice was stored packed in straw bags to preserve it, and a single bale weighed around 60 kilograms. Once the bales are loaded the golden bowl sets off into the sky again and the rice bales follow it one after the other, like a flock of geese. This time it is the mountain deer that are startled by this strange phenomenon and they are shown looking up at the sky in surprise. We then return to the landlord’s compound. One of his men has rushed back to warn the household of the imminent return of the rice bales. The landlord’s wife 93 and the women working in the kitchen are taken by surprise at the return of the golden bowl, followed by the rice bales. The skill of the artist is particularly evident in the visualization of Myōren’s powers via the depiction of the flying granary and rice bales. In the end, after all this movement of people and objects, what remains on Mount Shigi is the empty granary. The Scroll of the Healing of the Emperor in the Engi era (901–923) The second scroll tells the story of how Myōren cured the emperor of illness. The reign of the Emperor Daigo (885–930) in the early tenth century, approximately a hundred years after the capital had been moved to Kyoto, was characterized by political stability and as such was recalled as a golden era by later generations. The scroll begins with a section of text, as the majority of handscrolls do. The Emperor Daigo is taken ill and all the most powerful priests at the most powerful temples in the capital Kyoto are engaged to pray for his recovery, but the emperor shows noimprovement. Rumors of Myōren’s powers had reached Kyoto by this time following the flying granary incident, and an imperial messenger is dispatched from the capital to Mount Shigi. The messenger is the figure in the green robe with the red sleeves. The messenger arrives at Mount Shigi, sixty kilometers to the south of the capital, and meets with Myōren, whereupon he requests that Myōren come to the capital to cure the emperor. But Myōren refuses to go to Kyoto saying that he will not leave the mountain, but that he will pray for the emperor’s recovery from Mount Shigi. The messenger asks how they will know, when the emperor recovers, that his recovery was due to Myōren’s prayers and not to anyone else’s. Myōren replies that if the emperor recovers after seeing a child-deity covered in swords in a dream, they will know that his recovery was due to Myōren’s prayers. The messenger then returns to the capital and reports this to the emperor’s retainers. As the emperor was considered to be a divine being, it was taboo to depict his figure explicitly. In this painting the emperor is lying sick behind the blinds. 94 Three days pass and the emperor see the sword-boy in a dream, just as Myōren predicted, and he recovers from his illness. In the painting the depiction of the sword-boy arriving at the imperial palace is followed by the depiction of his flight through the sky. The extreme speed of his arrival expressed here in the swiftly revolving wheel is symptomatic of his power as a Buddhist deity. The cloud on which he arrives has a long tail, like a jet trail, which reaches all the way back to Mount Shigi. Finally, a messenger is dispatched from the capital to thank Myōren. The messenger communicates the emperor’s gratitude and offers him a large estate, but Myōren refuses as he has no interest in notoriety or money. In the course of the second scroll, the imperial messenger makes two return journeys to Mount Shigi from Kyoto, and in between the sword-boy flies from Mount Shigi to the capital; no objects are left on the mountain in this scroll. The Nun’s Scroll The protagonist of the third scroll is Myōren’s older sister, who has become a nun. Myōren was the son of a wealthy provincial family of Shinano. At the age of about twelve or thirteen, he declared his intention to become a monk, left his parents and sister in Shinano, and set off for Nara. In Nara he practiced the requisite religious devotions and studies for ordination at Tōdaiji, the temple where the enormous Great Buddha already mentioned was installed. Some tens of years subsequently passed during which time Myōren was unable to contact his family. Myōren’s sister, now an elderly nun, decides that she wishes to see her younger brother again and sets out on a journey to discover his whereabouts. She travels the more than four hundred kilometers from Shinano to Nara and asks the heads of each village she passes through on her way for news of her brother, but no information is forthcoming. At the end of what must have been a journey of several weeks, the elderly nun arrives in Nara and goes to Tōdaiji to pray before the Great Buddha. Japanese of the day believed very strongly in the power of dreams and visions, and the practice evolved of spending the night in the precincts of a temple in the 95 hope of receiving a revelation or vision from the deity of the temple. The nun decides to spend the night praying to the Great Buddha that she and her brother might be reunited. The nun appears several times in the painting of this episode which covers the span of the night, from her arrival, to sleeping, to having the anticipated dream, and finally her departure the next morning. The Great Buddha sends the nun a dream in which Myōren’s whereabouts are revealed. The nun receives instructions to go to the holy mountain wreathed in purple clouds to the south-west of Nara. When the nun sets off in a south-westerly direction, sure enough she finds Mount Shigi, wrapped in purple clouds. Today the pigments are abraded and appear brown, but originally they would have been purple. When the nun arrives at Myōren’s hut she calls out to him, and the painting illustrates the emotionally charged reunion of brother and sister. Myōren’s sister then gives him a sweater she had made for him back in Shinano. The sister remains on Mount Shigi thereafter, caring for Myōren. The story ends here in the handscroll. However, there is something painted right at the end which demands our attention, namely the roof of the granary which flew to Mount Shigi in the first scroll. This device returns the end of the story to the beginning again, creating a circular narrative structure. In the course of the third scroll Myōren’s sister and the sweater are brought to Mount Shigi. The Movement of Objects, Deities, and People and the Generation of Relics Around the year 900 two objects, a granary and a sweater, were transported to Mount Shigi. In the third scroll of this set, dating to around 1170, it says that Myōren wore the sweater his sister had made for him until it was quite worn out and that when he could no longer wear it, it was stored in the granary. Pilgrims to Mount Shigi subsequently began taking fragments of the sweater home with them as protective charms. Eventually, the wooden granary also began to crumble and people also began to take small pieces of wood. It is said that the main icon of the temple is made from wood from the flying granary. 96 This is the story told in the handscroll known as the “Miraculous Origins of Mount Shigi,” in which the monk Myōren performs numerous miracles without taking a single step off the holy mountain. It also depicts the process by which the movement of objects, deities, and people accumulated to generate actual relics, and an intangible sacred biography of the mountain and the temple founded there by Myōren. This sacred site is located at a distance from both Nara and Kyoto, but the various this-worldly and other-worldly powers of the successful landlord, the emperor in the capital, the devoted nun, and the monumental Great Buddha of Tōdaiji in Nara all contribute to the narrative accretions which resulted in the generation of the relics which substantiate the sacrality of the site. This makes for an interesting comparison with the forms and functions of Christian art. The patron of this set of three scrolls was without doubt a person of great influence in twelfth century Kyoto, quite possibly the emperor himself. The scrolls depict the landscape of the Kyoto-Nara region and the era of ideal imperial reign around the year 900. Not a single figure in the scrolls is motivated by evil intentions. In the twelfth century though, imperial power was waning and society was destabilized by battles between various emerging non-imperial powers, a situation that surely contrasted sharply with the idealized view of the tenth century. According to the scenario in which the twelfth century emperor commissioned the painting of this beautiful handscroll telling this charismatic story and then donated the scrolls to the temple on Mount Shigi, where it would have kept company with the sweater in the granary, the act of commissioning the handscroll itself constitutes a prayer for both the well-being of the realm, and of the current emperor himself. We might then say in closing that each of the three scrolls takes as its subject one of the three most important elements of life in this world: the first scroll deals with money, the second with health, and the third with love. 3 Development: Emaki during the Thirteenth to Sixteenth Centuries The power of the warrior classes ultimately superseded that of the aristocrats at the close of the twelfth century and the period between the thirteenth and sixteenth centuries is known as the “chūsei” or medieval era in Japanese history. During this period there were three major power blocs: aristocrats, temples, and warriors. The 97 aristocrats and temples, established in the Kyoto and Nara regions since the ancient period, continued to hold sway in these areas and scholastic and cultural pursuits remained their domain. The newly-emerged warriors by contrast were dominant in the provinces, and they continued to increase their influence though expansion of their economic and political capital. With the establishment of the position of shogun, or supreme military ruler, in the fifteenth century, the warriors also gained an important stake in the sphere of cultural production, traditionally the preserve of the court and aristocracy. Emaki continued to be produced in large numbers during the medieval period, and many extremely high quality emaki were created in the thirteenth and fourteenth centuries. The range of narrative genres also increased to include emaki that depicted battles (kassen emaki) and illustrated biographies of eminent monks (kōsōden emaki) for example. Buddhism in Japan reached a great turning point in the twelfth to thirteenth centuries. Until this point Japanese Buddhism had been largely scholastic in nature, a quality that appealed to the aristocratic elite that supported it. This type of Buddhism had gradually filtered down to reach the commoner classes, where despite pressure from the established Buddhist sects and their supporters, a new type of Buddhism began to emerge. The new sects were based on greatly simplified practices and led by individual charismatic monks who attracted large numbers of followers. Once these leaders had established sects with groups of followers, the practice developed of creating illustrated biographies of the founding priest. The Hōnen Shōnin eden (Illustrated Life of Hōnen) which dates to the early fourteenth century depicts the life of the priest Hōnen (1133–1212), founder of the Jōdōshū (Pure Land) sect and is an enormous work, complete in forty-eight scrolls. According to Hōnen, anyone could achieve rebirth in Amida’s paradise simply by chanting the Buddha’s name, or nenbutsu. This made Jōdōshū Buddhism attractive not only to the illiterate masses, but also to members of the aristocracy too and it gained large numbers of followers among both groups. The large number of scrolls in the set was not only designed to glorify Hōnen, but also as a symbolic representation of the power of the simple practices of Jōdōshū Buddhism to save large numbers of people. 98 The itinerant monk Ippen (1234–1289) also preached the practice of reciting the Buddha’s name to achieve salvation. He traveled all over Japan preaching the so-called odori nenbutsu, a practice according to which believers danced while chanting. Ippen’s unique method of proselytizing is depicted in the Ippen Hijiri-e (Illustrated Life of Ippen), dated 1299. The activities of both Hōnen and Ippen invite comparison with those of their counterparts in medieval Europe. The kassen emaki, or handscroll illustrating battle scenes, is a representative medieval genre. There are records of kassen emaki being produced in the late twelfth century in GoShirakawa’s salon, and with the rise of the warrior class in the early thirteenth century, the production of kassen emaki also increased. The Mōko shūrai emaki (Illustrated Account of the Mongol Invasion) is a well-known example of this type of scroll that depicts the late thirteenth century attempted invasion of Japan by the Mongols. The scroll depicts the arrival of the foreign-looking warriors in a great armada and clearly contrasts them with the Japanese warriors, who wear domestic armor. It is clear that the scrolls were painted to record an historic event, and that the warrior class who had fought the Mongols commissioned the scrolls as a means of demanding recognition and reward from the military government for their actions to prevent the invasion. This scroll demonstrates how emaki also came to be used as a means of recording history during the warrior ascendancy. By the mid-fourteenth century, the warrior class had established a warrior government in Kyoto called the “Muromachi bakfuku.” During the thirteenth century the military administration had been relegated to Kamakura in the far East of the country. But with the establishment of the Muromachi bakufu in Kyoto, the three power blocs—the warriors, aristocrats, and the temples—were now operating in the same geographical locale in the center of the archipelago. All three groups lent and borrowed emaki amongst themselves, and similarly, all three also commissioned new emaki. The Yuzū nenbutsu emaki (Illustrated Handscroll of the Legends of the Yuzū Nenbutsu Sect) takes as its subject the practice of chanting the name of the Buddha in order to achieve salvation. The Muromachi shogunate sponsored its production in print form and copies circulated widely throughout the country. The emperor, aristocrats, and daimyo also collaborated to produce a luxury version of the scroll, brushing the calligraphy themselves. The fundamental impulse behind the creation of 99 both types of Yuzū nenbutsu emaki was the generation of merit for the spirit of the shogun’s deceased father. These scrolls represent the marriage of aristocratic and warrior culture in the fifteenth century. The demand for emaki exploded in the sixteenth century with the emergence of an affluent merchant class in Kyoto who also aspired to possession of the cultural cachet represented by emaki connoisseurship and ownership. This led to a great expansion in the consumer base for emaki, and subsequently also to the development of the new genre of the “small scroll.” These scrolls were executed in a distinctive artless style and were produced in great numbers during the sixteenth and seventeenth centuries. 4 Re-evaluation: Emaki during the Seventeenth to Nineteenth Centuries Until relatively recently only emaki produced prior to the sixteenth century were considered significant works of art. This attitude led to a lacuna in research on emaki that post-date the sixteenth century. However, many emaki in European and North American museums and libraries date to the seventeenth and eighteenth centuries and in recent years they have become the subject of enquiry by literature specialists in particular. The 250 years of the Edo period, which spanned 1603–1867 were peaceful. The military government headquarters was in the city of Edo (presentday Tokyo) and the three hundred or so provinces were administered by warrior class daimyo houses. Most daimyo, sometimes translated as “feudal lords,” had risen thanks to their military prowess during the tumultuous sixteenth century. In the peace of the seventeenth century, they turned to the acquisition of cultural expertise, and emaki caught their attention. Daimyo all over the country began to collect old emaki, and to commission new ones. The seventeenth century also saw a boom in the publishing industry and the circulation of relatively cheap illustrated printed books. Against this background, emaki quickly acquired a new status as super luxury illustrated “books.” 100 5 Emaki: Present and Future As I hope this short introduction to Japanese emaki has shown, emaki have been aspirational objects for the powerful throughout their one thousand year history, spanning the eight through eighteenth centuries. Despite the great length over which their stories literally unfold, once rolled they are compact enough to comfortably fit in one hand, a fact which also contributed to their suitability as treasured dedicatory or collectors’ items. In recent years historians have also begun to take note of emaki, making use of the data they contain about people’s lives. This approach is dubbed the kaiga shiryō ron in Japanese, indicating the use of paintings (kaiga) as historical sources (shiryō). One of the characteristics of emaki is the vivid depiction of people and their surroundings, gestures, behaviors, furniture, architecture, and townscapes and so on that although only tangentially connected to the main narrative, are nevertheless carefully depicted in the scroll paintings. Of course, these are paintings, not historical records, and they are governed by their own visual rhetoric and fictions born out of narrative necessity. For example, interior scenes are depicted according to the visual idiom known as fukinuki yatai (or blown-off roof) that allows the viewer a privileged view inside a room. Night scenes are indicated not by a darkening of the sky, but by the inclusion of oil lamps within the scene. Copying was also an important aspect of emaki production and idioms were often carried forward from specific paintings. Nevertheless, it is possible to discern historical aspects of people’s real lives if a proper understanding of these visual devices is kept in mind when examining the details of emaki paintings. The information that historians—who have overwhelmingly used textual sources to write histories—have gleaned from the examination of emaki has enlivened and enhanced our understanding of the past. The emaki is a peculiarly Japanese phenomenon, but the basic premise of turning a story into a narrative painting, and the elaboration of the main narrative thrust with images of people and their daily lives, has of course long been practiced in the Christian, Islamic, and many other cultural spheres. Going forward I believe it is of great importance that we examine such narrative painting traditions to discover their origins, patrons, relationship to religious beliefs, collecting patterns, and compositional modes in a framework that transcends regional and intellectual boundaries. This is because all such narrative paintings are based on the richly productive tension of textual and visual expression. The value of the cultural heritage 101 referred to here as “emaki” is not limited by the disciplinary boundaries of art history, nor those of what is defined as “Japanese culture.” The nature of emaki-related research should, I believe, continue to attempt to reflect the remarkable boundarycrossing capacities of the objects themselves. From this point of view, “emaki studies” as such has only just begun. References AKIYAMA TERUKAZU. Continuity and Discontinuity in the Pictorial Composition of Handscroll Painting. Acta Asiatica, Tokyo, no. 56, p. 24–45, 1989. BROCK, KAREN. The Making and Remaking of the Miraculous Origins of Mount Shigi. Archives of Asian Art, New York, vol. 45, p. 42–71, 1992. LIPPIT, YUKIO. Figure and Facture in the Genji Scrolls: Text, Calligraphy, Paper, and Painting. In: SHIRANE HARUO (Ed.). Envisioning the Tale of Genji: Media, Gender, and Cultural Production. New York: Columbia University Press, 2008. p. 49–80. MCCORMICK, MELISSA. 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Chicago: Center for the Art of East Asia, University of Chicago and Art Media Resources, 2013. p. 74 –85 Akira Takagishi Professor do Departamento de História da Arte da Universidade de Tóquio e pesquisador de História da Arte japonesa, sobretudo das pinturas medievais. Foi professor visitante na Universidade de Hiedelbreg, Alemanha, em 2010 e curador do Museu Yamato Bunkakan de 2004 a 2005. Publicou livros tais como The Enchantment of Illustrated Handscrolls of the Muromachi Period: Rebirth and Creativity, Tokyo: Yoshikawa Kobunkan, 2008 e Power and Painting in Muromachi Japan: A Study of the Early Tosa School, Kyoto: Kyoto University Press, 2004. 102 A TRANSIÇÃO DE UMA ERA EM SUA MAIS FLORIDA EXPRESSÃO Madalena Hashimoto Cordaro Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Resumo: No dia 15 de abril de 2014 iniciou-se uma exposição no Museu Afro-Brasileiro, intitulada “A arte do Ukiyo-e: a tradição da gravura japonesa”, na qual haviam trípticos em excelente estado de xilogravuras produzidas em sua maior parte na década de 1860, que bem merecem o nome pela qual eram conhecidas: “pintura-brocado” (nishiki-e NjŹ), por sua complexidade em cor, trama e superfície. Às portas da transição de poder político dos samurais Tokugawa para os adeptos do Imperador Meiji, e de tremendas transformações sociais contemporâneas, as 43 estampas da coleção Roberto Okinaka se caracterizam por rara coesão em representar uma mescla de vistas-famosas meisho-e ’ĄŹ, figuras-bonitas de profissionais do amor bijinga ƁZŞ e de atores yakusha-e íƅŹ, usos-e-costumes fûzokuga ǚhŞ, centralizadas nas elegantes modas do período Heian (794-1185), em especial na figura emblemático do príncipe Hikaru GenjiqŌķ, protagonista das Narrativas de Genji ŌķŔƫ, na grande voga de imagens que formaram um gênero em si, “pinturasde-Genji” (Genji-e ŌķŹ). Os pintores Toyohara Kunichika ƱŠŸ– (1835-1900), Utagawa Kunisada II T^ŢıןƲ (1823-80), Utagawa Yoshitora ı×ƐƜ (ativo c. 1836-82), Utagawa Kuniaki ıןđ (1835-1880), Utagawa Yoshiiku ı×Ɛâ (1833-1904), Utagawa Fusutane ăŭ (at. 1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi ĚÎƐà (1835-92), Utagawa Hiroshige II T ^ Ţ ı × ã LJ (1826-69) e Utagawa Yoshitsuya ı × Ɛ Ǝ (1822-1866) estão representados na exposição, e suas obras propiciam uma reflexão sobre o caráter também escapista de fins do xogunato, contemporâneo a estampas de violência e de assassinatos, torturas, animais assustadores e vorazes, fantasmas e monstros, turbilhões e vinganças. Serão analisadas as tópicas e retóricas concernentes, numa tentativa de interpretação de cenas de “luxo, calma e volúpia” possíveis em um momento de extrema ebulição. Palavras-chaves: ukiyo-e, família pictórica Utagawa, bakumatsu, genji-e, política e ideologia visual. Abstract: A show was opened at the Museu Afro-Brasileiro in April 15th., this year, with the title: “The art of Ukiyo-e: Japanese print tradition” in which excellent shape triptych of woodprints, most of them executed in the 1860s, well deserve the name by which they are know: “brocade-painting” (nishiki-e 8,), as they are very complex in color, texture and surface. Produced in a period of politic power transition from the Tokugawa samurais to the Emperor Meiji allies, the 43 prints from Roberto Okinaka collection show indeed rare cohesion. They represent a mixture of famous-views meisho-e ,, beautiful-figures of love professionals bijinga -) and of actors yakusha-e .,, gender-painting fûzokuga 9) , all centralized in elegant fashions of Heian period (794-1185), especially in the emblematic figure of Hikaru Genji '%, protagonist from The Tale of Genji '%(4, a massive blockbuster gender in the period, known as “Genji-paintings” (Genji-e '%,). The painters Toyohara Kunichika 5  (1835-1900), Utagawa Kunisada II *$6 (1823-1880), Utagawa Yoshitora $01 (act. 1836-1882), Utagawa Kuniaki $ (1835-1880), Utagawa Yoshiiku $0 (1833-1904), Utagawa Fusutane $+ (at. 1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi "0 (1835-1892), Utagawa Hiroshige II *$ 7 (1826-1869) and Utagawa Yoshitsuya $0/ (1822-1866) are represented in the show. Their prints make us think about a dream-like characteristic present in the shogunate end era, 103 very different but at the same time very contemporary of other prints showing violence, murders and tortures, scaring voracious animals, ghosts and monsters, turmoil and revenges. The prints are analyzed as existing topics and rhetoric, in a tentative of interpreting them as a representations of “luxury, calm and voluptuousness” still possible in an extremely boiling era. Keywords: ukiyo-e, painting family Utagawa, bakumatsu, genji-e, politics and visual ideology. O período Kaei › ĺ Ĝ (1848-55) tem sido pouco estudado no Japão, obliterado pelas notáveis reformas que os anos da chamada Reforma Tenpô (183044) ensejaram por suas medidas draconianas de busca de parcimônia e decoro que resultaram em proibições de luxo e consumo geral de supérfluos, em busca de um equilíbrio necessário nas finanças do xogunato. Tal pressão se exerce, é claro, sobre os samurais de extração mais modesta, mas principalmente sobre a crescentemente opulenta classe dos citadinos, em especial os que exerciam a atividade mercantilista. Nesse contexto, o pintor Utagawa Kunisada I ıןƲ (1786-1865) teve de fugir para Shizuoka, tendo sido proibida momentaneamente a manufatura de pinturas-brocado (nishiki-e NjŹ), o nome contemporâneo da estampa ora conhecida como ukiyo-e ŅMŹ (“pinturas do mundo flutuante”). (MITAMURA, 2008: 429) Chama a atenção o historiador MINAMI (1998: 143) que os períodos que se seguem à Reforma Tenpô são fundamentais para a transição à modernidade, pois mostram reações às reformas preconizadas e abrem caminho a novas formas de organização e expressão. De fato, ocorrendo um arrefecimento nas rédeas repressivas do período Tenpô, Kunisada retorna à cidade de Edo e tem próspera atividade, tamanha que seu modo Utagawa de representação se tornou dominante em todo o meio visual do mundo flutuante. Além disso, compreendem-se os anos de 1853 a 1867 como tendo sido fundamentais no declínio da burocracia dos samurais Tokugawa e da ascensão de uma nova ordem social e política centralizada no Imperador: é o chamado período bakumatsu ÞĞ, ou “descerrar da cortina”, i.e. “fim do xogunato”, e todas as suas implicações econômicas; é o período em que ukiyo-e se reafirma como mercadoria por excelência e se populariza em todas as searas. Embora reconhecida no ocidente como “arte”, a xilogravura japonesa era a tecnologia de informação de seu tempo, e, como tal, servia a mais díspares fins 104 (educação, entretenimento, informação, até fruição artística social mais ou menos representativa). Se são divulgados hoje ícones de atores do teatro kabuki e de figuras-bonitas de áreas-de-prazeres, vistas-famosas e cenas do cotidiano, por outro lado são pouco levados em conta numerosíssimos exemplares xilográficos híbridos ou pouco cuidadosos do ponto de vista da estética, como os guias de viagem, uma variedade de jogos de montar e colorir, convites oficiais e domésticos, mapas, notícias de grupos restritos, notações de dança e música, livros e impressos em geral). MINAMI verifica a reputação das estampas ukiyo-e no referido período Kaei ›ĺĜ (1848-55) e, perscrutando uma brochura de um comerciante da época intitulada “Diário da Casa Fujioka”, encontra a informação de que uma imagem de Utagawa Kuniyoshi ı× ŸƐ (1797-1861), um tríptico com “faces-semelhantes” (niga-o bǘ) de atores com corpos de tartarugas resultou em grande vendagem: 3.000 cópias. Quem se debruça sobre as estampas de Kuniyoshi notará que sua produção é imensa, ou talvez seja mais apropriado anotar que o estúdio Utagawa, do qual ele foi fundador e líder por muitos anos, foi pródigo em produzir estampas e pinturas com as tópicas de figuras-bonitas, vistas-famosas, atores-de-kabuki, pássaros-e-flores, samurais-de-teatro, faces-semelhantes-de-atores. Os pintores treinados no estúdio recebiam seus nomes de acordo com reconhecidos graus de excelência, e se especializavam em um ou outro gênero. Assim, os nomes-gô Kuniyoshi, Kunisada, Hiroshige e outros se outorgam a diferentes pintores conforme tópicas e modos, numa continuidade não necessariamente consanguínea nem muito menos permanente. A produção, como se nota hoje pelo imenso número de estampas que ainda sobrevivem, foi pródiga, e a repetição com ligeiras variações sem grandes discriminações de autorias dificulta ainda hoje sua classificação e atribuição de autorias. Acrescente-se o fato de que a reedição das matrizes de madeira nunca foi controlada, nem o foi o desmantelamento de livros, séries, álbuns ou, em caminho inverso, a montagem de estampas soltas ou de retiradas de outros contextos. Assim se deu com as estampas presentes na exposição do Museu AfroBrasileiro (Parque do Ibirapuera, São Paulo), da Coleção Roberto Okinaka: montadas em rolo de pintura por algum diletante no Japão, que exerceu seu olho 105 crítico e fez um recorte temático e estético das estampas de seu tempo, foi revertida de volta para seu estado original de tríptico, aqui no Brasil, mais de um século depois. Entretanto, o desconhecido diletante que concebeu a justaposição das imagens obedeceu a ponto de vista certeiro: as estampas tratam de “calma, luxo e volúpia”, para tomar emprestada expressão de um quadro de 1904 de Henri Matisse, em referência ao lirismo romântico de Baudelaire em “Convite à viagem”. Os pintores pertencentes ao supremo domínio do modo de pintura-brocado (nishiki-e NjŹ): [Utagawa] Toyohara Kunichika ƱŠŸ– (1835-1900), Utagawa Kunisada II T^Ţı ןƲ (1823-1880), Utagawa Yoshitora ı×ƐƜ (ativo c. 1836-1882), Utagawa Kuniaki ıןđ (1835-1880), Utagawa [Ochiai] Yoshiiku ı×Ɛâ (1833-1904), Utagawa Fusutane ăŭ (at. 1850-1891), Tsukioka Yoshitoshi ĚÎƐà (1835-1892) [também aprendiz de Utagawa Kuniyoshi] , Utagawa [Ando] Hiroshige II T^Ţı× ãLJ (1826-69) e Utagawa Yoshitsuya ı×ƐƎ (1822-1866) estão representados em suas florações mais vistosas, tomando por objeto essa figura esguia do cortesão dos cortesãos do período Heian (794-1185), elegante, com o topo do cabelo raspado, um penteado típico do período Edo, um praticante das artes da música, do arranjo floral, da poesia, da caligrafia, do jogo de sugoroku, de passeios ao luar e ao amanhecer, do incenso, do tabaco, das folhas de bordo e das flores de cerejeira, do saquê e do sashimi, em seus entretenimentos em luxuosos interiores, ou em excursões a rios e mares, ou em visitas a áreas-de-prazeres e locais-famosos, a testemunhar as damas do amor domesticado e mercantilizado a desfilar em pompa e circunstância, seguidas de suas auxiliares mirins e serviçais também partícipes no jogo. Mesmo ausente a figura elegante do amante maior, os elementos do refinado gosto que a caracterizam encontram-se enfatizados. Chama a atenção a fatura das imagens, produto mais que eficiente de um trabalho colaborativo conjunto que, ao mesmo tempo que torna excelente a imagem, também a pasteuriza. Assim é que as autorias se conformam em sutileza de construção e retórica mais propriamente do que em certa individualidade na execução de uma gradação, de um padrão têxtil, de um elemento de perspectiva. Justamente este excesso, esta presteza, esta minúcia já foram motivo de objeções na aceitação de tais pintores, que foram tidos, quando de sua introdução na Europa, como “decadentes”. A revalorização é recente, e estudos cada vez mais 106 aprofundados de suas obras têm sido levados a cabo nos últimos dez anos, em especial as obras de Kunichika e Yoshitoshi. O convite que os magníficos trípticos e o pentáptico da exposição em foco nos fazem, através de seu caleidoscópico colorido, é para a fruição da poesia de antanho, com os tecidos mais pródigos e as mais intrincadas texturas, com os ornamentos mais engenhosos, com a elegância mais harmônica que caracterizam a idealização do período da corte de Heian, quando ocorreu a primeira individuação cultural japonesa. Como lemos não só nas Narrativas de Genji [Genji monogatari Ō ķŔƫ] da dama da Consorte Imperial Shôshi, Murasaki Shikibu, mas também em O livro do travesseiro [Makurano sôshi ĤƓ¹] da dama da Consorte Imperial Teishi, Sei Shônagon, sua contemporânea, o vestuário ocupa grau muito alto, como se nota no verbete por nós levantado (2013: 555): Dama do Vestuário: kôi ĘƠ, servidora palaciana de posição inferior à da Dama Imperial (nyôgo), era encarregada do vestuário do Imperador; o termo kôi nomeia também a referente seção da Ala Feminina subordinada ao Setor de Costura e Vestuário (nuino tsukasa ſ). Em muito similar à obsessão por vestuário da época da rainha Maria Antonieta da França, também extremamente opulento em sua expressão, a diferença fundamental consiste justamente em sua compreensão enquanto signo de um sistema hierárquico, importado do continente asiático, sempre em coadunação com sazonalidade e sensibilidade estética. Lembre-se, também, que a Dama do Vestuário em geral também participa do leito imperial e aí encontra-se também uma das chaves para a superposição de damas da corte por cortesãs, sempre sofredoramente acessíveis aos elegantes Genjis de antanho e contemporâneos. Com a pax Tokugawa, novos modos de tingimento tornam acessíveis aos citadinos um imaginário de imagens que se intercruzam com irreverência e chegam a construir uma superposição considerada “exagerada”, “decadente”, por olhos mais ávidos de uma concepção compreendida como “essencialista”, numa idealização de certa característica orientalizante. Sobretudo ornamentais, as estampas não raro lembram as pinturas da Belle Époque europeia de fins do século XIX (nas pinturas de James Tissot, 1836-1902), e, é claro, as variações tonais de luzes em superfícies aquosas (Édouard Manet, 1832-1883) ou rugosas e ásperas (os fenos de Claude 107 Monet, 1840-1926) ou nas brumas próximas ao rio Tâmisa (James Abbott McNeill Whistler, 1834-1903), estas mais derivadas das vistas-famosas de Utagawa [Ando] Hiroshige I (1797-1858). E poesia maior não se encontraria fora de obras que já se haviam tornado cânones para os japoneses: as Narrativas de Genji ŌķŔƫ, as Narrativas de Ise ` „Ŕƫ, as coletâneas dos poetas imortais. MITAMURA chama a atenção para o fato de que, após o período Tenpô, por ter sido proibida a produção de pinturas de atores e cortesãs, torna-se grande moda substituí-los por “análogos” de Genji, no que ficou conhecido como mitate-e Ƨ ů  Ź (pintura símile, substituição, paródia), representação que os eleva e ao mesmo tempo divulga estilos de vestuários, interiores e atividades elegantes, principalmente sob os pincéis de Kuniyoshi, Kunisada II e Kunichika. E, além disso: (...) A moda de estampas de Genji e de sua intensa apreciação não é resultado apenas de uma volta simples a uma cultura dissipadora e hedonista de fins do xogunato. Ao mesmo tempo em que se trata de uma cultura dissipadora, brilhante e bela, enquanto mensagem política também foi uma mídia que fez aflorar de modo abrasador um sentimento ainda inconsciente na população de “reverência ao Imperador”, que se tornaria basilar para a realização da Reforma Meiji. (MITAMURA, 2008: 435). Analisadas deste ponto de vista, as estampas de “calma, luxo e volúpia”, então, perdem seu caráter escapista e romântico de busca de outra Citera em outros tempos mais harmoniosos, ou então fazem desvanecer seu subterfúgio de serem elevados à condição de homens e mulheres melhores, para se tornarem, então, no dizer de MITAMURA, índices mesmo da “reverência ao senhor” (sonnô ÆŖ), preceito confucionista de origem chinesa que, em fins do xogunato, encontra-se encarnado no Imperador. As “pinturas-brocado” que tinham como tema o Brilhante Príncipe do período Heian eram também chamadas de Azuma-Genji e supostamente representavam a casa xogunal (Azuma ”¶/Ģ, leste, refere a Sede do xogunato). Na verdade, a referência se aplica ao local de sua maior produção, os rincões do leste. Entretanto, no período Meiji sua ideologia se volta a reproduzir a Casa Imperial, segundo a análise de MITAMURA. 108 A autora lembra, ainda, um incidente fundamental que aponta essa identificação da figura de Hikaru Genji nas estampas com a Casa Imperial: uma estampa de Kunisada (sob assinatura de Toyokuni III), de 1861, da série Fûryû Azuma Genji ǚń”¶Ōķ (O elegante Genji do leste) apresenta um mitate Ƨů de Genji em encontro amoroso de um rapaz de 15 anos [em substituição ao xógum Tokugawa Iemochi ï × Ã ƒ , 1846-1866] com uma princesa de 16 anos [em substituição à princesa Kazu-no-miya Kôka —Âǎ¸, filha mais nova do imperador Kômei »đ] (2008: 443). Certamente, seus contemporâneos compreenderam a alusão direta da realidade, uma tentativa de sobrevida do xogunato ao se relacionar maritalmente com a nobreza, reconstruída através das figuras de antanho, mas já com forte introdução de elementos de construção visual estrangeiras: perspectiva linear com acentuado ponto de fuga, elementos de arquitetura ocidental, objetos estranhos como telescópios, espelhos, lentes, espaços de saturação e intensa agitação, tentativa de representação luz e sombra, e, sobretudo, pigmentos à base de anilinas vibrantes, em oposição às nuances sombrias dos tons vegetais e minerais sóbrios da tradição. É digno de nota que a representação do nobre Genji segue sempre o mesmo padrão: face alongada, feições delicadas, penteado de samurai do período Edo motoyui pŸ, com o alto da cabeça raspado [muitas vezes coberto por lenço púrpura, a cor simbólica da Casa Imperial, mas altamente em voga nas áreas-deprazeres], figura esguia, vestuário suntuosíssimo – por vezes até mais ornamentado do que de suas companheiras –, em atividades sempre elegantes: apreciando a lua, as flores de cerejeira, os vagalumes, a neve, ou compondo poemas, tocando a flauta ou o koto, jogando sugoroku, fazendo arranjo floral ou preparando o chá, adentrando as áreas-de-prazeres, adentrado no que se assemelha aos recônditos do palácio xogunal [ooku °²]. Em uma palavra: uma representação que pouco se distingue de uma figura feminina. Assim é, pois, que, quando traduzimos bijinga ƁZŞ, o fazemos por “figura-bonita” e não por “mulher bela” ou “beldade”, pois o gênero não é limitado ao gênero feminino; compreende também o refinado cortesão de Heian, compreende o ator maduro em papel feminino, compreende o jovem enquanto ator ou simplesmente belo. De fato, em termos taoístas, a cultura de Heian é yin, princípio feminino, e como tal foi compreendida também pelos habitantes de Edo. 109 As figuras-bonitas de fins do xogunato, à diferença das clássicas de Kitagawa Utamaro š®×ıǠ (c. 1753-1806) ou Kikugawa Eisen ƕ×īĿ (?-1848), para somente referir alguns, seriam substitutas das damas da corte de Heian e dissimulariam sua condição mercantilista de amor pago, de corpos precificados, de tempo trocado por dívidas parentais: o glamour idealizado nas estampas da presente Coleção Roberto Okinaka mostra os aspectos exteriores com rica profusão de detalhes: o número de pentes kushi į, ornamentos kanzashi Ųe presilhas kôgai Ű executados com técnicas específicas de laca, incrustação de metais e pós iridescentes de conchas, no intrincado penteado a indicar hierarquia em um dificilmente galgado sistema de valorização de suas habilidades, a superposição de ricos quimonos a elas presenteados por proeminentes clientes, a decoração interior de suas habitações próprias ou tomadas de empréstimo. Quando do primeiro momento do japonismo na Europa, são estes mesmos acessórios, objetos de laca, cerâmica, bibelôs de variedade estirpe (para quem não acha “utilidade” em caixas de laca para escrita, seus pinceis e acessórios) os alvos principais do consumo e do interesse colecionista da gente boa do lugar. A minúcia, a perspicácia, a insistência, o humor, a observação, a minudência dos gestos e da fatura ainda hoje são evidenciados nas coleções de netsuke Ĭ], escultura em miniatura que serve de fecho ao elegante citadino em suas caixas de remédios ou de tabaco [inrô ‰ų]. É a força do shokunin ƆZ, categoria genérica de carpinteiros, ceramistas, tecelões, tingidores de tecidos, entalhadores, impressores, pequenos manufatureiros de papeis, pinceis, pedras de tinta, objetos de madeira, marfim, metais, pedras, cordas. As figuras-bonitas de fins do xogunato presentes na Coleção Roberto Okinaka são possessão das áreas-de-prazeres, modelos infinitesimais de técnicas de entretenimento amoroso que fazem da sedução estética o caminho do depauperamento dos opulentos, os samurais, os comerciantes, os jovens futuros herdeiros de fortunas. Trilham seu caminham com verve e orgulho (ikiji üĸ£), com charme, sedução e gosto (iki  ), com conhecimento e reconhecimento das artes e dos meios (tsû ǀ). No período Edo, tão apreciados foram os caminhos do amor (kôshoku ´ƍ), que retomam os da corte imperial de que Genji é mestre contumaz 110 nos modos de atração e interesse (irogonomi ƍ´), que até hoje fascinam e embaralham emoções, sentimentos, falsidades e obrigatoriedades em relação a uma sociedade estratificada em um ambiente mercantilmente demolidor de fronteiras, as áreas-de-prazeres (kuruwa ç) e de teatro (shibai ƏÉ). Embora nem todas as relações tenham sido guiadas somente por sutileza, é claro, e muitas estampas e escritos literários alhures bem o comprovam. Quando estudamos historicamente o desenvolvimento das representações das cortesãs, dançarinas, gueixas e toda a hierarquia de profissionais ou diletantes das artes amatórias, notamos um direcionamento rumo à sofisticação e ao luxo presentes nas estampas da Coleção Roberto Okinaka: belos quimonos bordados de ouro, tingidos, estampados, tramados ou pintados em notáveis motivos florais, geométricos ou minuciosamente padronizados, de mangas longas ou curtas, em superposição de quatro ou cinco camadas que seguem a sazonalidade e a pretensa idade de suas proprietárias, com camadas de auxiliares e em desfile cerimonial em meio a florações de cerejeiras ou ameixeiras, quanto mais excessivas mais inebriantes. Dessa forma, revela-se a mestria que os entalhadores e impressores alcançaram, a serviço do patrono mais generoso em propagandear seus produtos, seja restaurantes, tecidos ou vestuário, seja suas preciosas cortesãs mesmas. Revela-se, sobretudo, a introdução de elementos ocidentais crescentemente acessíveis e engenhosamente superpostos aos elementos visuais da tradição: a perspectiva se constrói também pelas gradações-uma-linha [hitosuji bokashi Iű' ], o volume se percebe pelas gradações-em-aplicação [atenashi bokashi ê ' ]. Se elementos há da tradição da corte imperial (braseiros, mesinhas portáteis chinesas, cortinados, corredores internos e externos, passarelas, pontes internas e varandas), os da contemporaneidade de Edo predominam: as cidades, as áreas-de-prazeres, os palcos-de-teatro, os barcos com ou sem cobertura, sobretudo as estampas, os ornamentos, os tecidos, a expressão facial e corporal das figurasbonitas. Chama a atenção, também, que nas estampas em que Genji aparece, em geral ele é o único homem, fantasia erótica de grande poder sobre a classe dominante masculina, a seguir o conceito imperial de “um imperador, muitas consortes” que perpetua a continuidade da Casa. E, acrescente-se, que domina o 111 sistema mercantilista das fruições pretensamente pagas aos comerciantes que administram as áreas-de-prazeres, aos editores que contratam pintores, entalhadores, impressores, escritores, calígrafos, casas distribuidoras e meninos ambulantes para encher as cidades e as vilas de material impresso. A partir dos anos 10 da era Meiji (1878), analisa também MITAMURA (2008: 444), a representação feminizada e frágil do Imperador, entretanto, já não era mais desejável, e a sua identificação com a protagonista das pinturas-de-Genji vai cessando, em busca de uma imagem militar, mais propensa à era futura do Império do Japão [Teikoku Nihon ۟ďğ]. Mas não somente a imagem imperial não se coaduna mais com paráfrases e substitutos para burlar os olhos da vigilância do xogunato, que já não mais existem, como também já nos anos de 1850, como está registrado no referido “Diário da Casa Fujioka” por MINAMI (1998: 143), apenas 37% das estampas tratavam de figurasbonitas, atores, flores-e-pássaros, faces-semelhantes, samurais, com predominância de vistas-famosas. Nesse sentido, a afirmação de MITAMURA se encontra fragilizada, pois embora profícua a produção de estampas-de-Genji, mais numerosas ainda o foram as de outro gênero. A vasta produção de estampas ukiyo-e se encontra no grupo fûshiga ǚ~Ş, pinturas satíricas: 62,9%, dentre as quais 12% aludem diretamente ao fim do xogunato (MINAMI, 1998: 143). Em estampas políticas, ainda que substitutos [mitate Ƨů] de samurais de antanho, como as que representam as peças de época (jidai-geki ĕ^€), ou metamorfoseadas de fantasmas, monstros, aparentemente inofensivos peixes, tartarugas oníricas ou gatos híbridos, sapos mágicos, a sátira invade com sua retórica e corrosão as novas figuras do período de transição guerreiro para uma representatividade sob a égide imperial, imposta por novos ventos dos navios negros do americano Comodoro Perry. Também aqui, nas pinturas satíricas, ocorre o direcionamento a uma visualidade mais obliterada de flores, cores, objetos, ações, figuras-bonitas, vistasfamosas, primeiros-planos, perspectivas ao longe, como nas pinturas-de-Genji, o que confirma, mais uma vez, a reputação de “decadentes” que tais produtores de 112 imagens tiveram aos olhos ocidentais, ainda que grandemente apreciados por seus contemporâneos locais. Não deve ser esquecido, também, que embora as pinturas-de-Genji tenham se tornado extremamente numerosas a partir da colaboração artística do texto de Ryûtei Tanehiko ĩYŭì (1783-1842) e do pincel de Utagawa Kunisada ıןƲ (1786-1864) na obra Nise Murasaki inaka Genji mŷśƋŌķ (Genji das províncias da falsa Murasaki), publicada em 38 volumes, entre os anos de 1829 a 1842, as Narrativas de Genji da verdadeira Murasaki Shikibu (i.e., suas cópias remanescentes, é evidente) nunca cessaram de ser revisitadas nos períodos subsequentes, até as contemporâneas histórias em quadrinhos, animações e versões cinematográficas. E não poderia deixar de ser diferente quando os citadinos de Edo tomam a dianteira no cenário cultural do período dominado politicamente pelos samurais da Casa Tokugawa. Conforme trajetória pesquisada por Keiko NAKAMACHI (2008: 171-210), vemos que, no período Edo, desde o primeiro pintor com nome conhecido, Hishikawa Moronobu (?-1694), já traz em obra de 1683, Bijin-e tsukushi ƁZŹ  (Coleção de pinturas de figuras-bonitas), uma representação de personagem do volume Wakana jô ƑƖGK (Brotos novos / I), a Terceira Princesa, então jovem esposa oficial do brilhante Genji, na célebre cena em que é vista de soslaio por Kashiwagi, que lhes será fatal. Digno de nota é que, de todas as cenas e de todos os amores vividos por Genji, a figura melancólica dessa Terceira Princesa tenha sido, no período Edo, a escolhida em maior número de cenas: descuidada pelo protetor, solitária e desajeitada no competitivo mundo das damas da corte imperial, ela se torna motivo da grande atenção para seu quase contemporâneo em idade e com ele tem o suposto filho do já quarentão Genji, e é esse filho ilícito quem se tornará imperador. Imagens sem conta representam cortesãs de diferentes extrações em diferentes períodos e espaços, ladeadas, acompanhadas, atrapalhadas ou atraídas por um gato, e quem sabe, sabe que é o gato da ligação colateral da esposa oficial de Genji. Através das pesquisas mais recentes, de fato, atribui-se a alusão [mitate Ƨů ] exata a essa passagem da obra de Murasaki Shikibu, pois é o gato que torna possível o afastamento do cortinado atrás do qual se escondia a Terceira Princesa e 113 faz com que o jovem Kashiwagi a pudesse vislumbrar (kaimami §ǍƧ, “ver entre frestas”, é a técnica mais efetiva dos pares amorosos) e, em assim fazendo, ficar obcecado por ela. Que Moronobu tenha eleito uma desenxabida figura de cerca de quinze anos, que nas Narrativas de Genji sequer provoca compaixão, para representar uma das figuras-bonitas de seu álbum leva-nos a refletir sobre a lógica irreverente dos citadinos de Edo, que parecem, assim, se refletirem num universo de ponta-cabeça e valorizam o pequeno, o insignificante, o desajeitado. Após Moronobu, Sugimura Jihei Ġġľß (ativo 1680-1700) faz no ano seguinte Genji ukiyo fukusa-e ŌķŅMƢŵŹ (Pinturas de lencinhos do mundo flutuante de Genji) e já atualiza o universo do período Heian em sete séculos, em xilogravuras monocromáticas. Okumura Masanobu ²ġiji (1686-1764), trabalha durante os anos 1711 a 1716 em imagens que popularizam os episódios em que Genji se exila em Suma, gerando cenas incontáveis de passeios de barcos sobre mares azuis, e a heroína Ukifune nos anos 1740, também trágica, que atira seu corpo ao mar após ser amada por dois rivais. As águas, tão importantes para a escoar os produtos das províncias para as cidades, também se tornam local de apreciação, veraneio, romance e tragédia. E se ligam indissociavelmente ao elegante Genji e aos entretenimentos nos rios que cruzam a cidade de Edo. Mas sem dúvida, é unanimidade para todos os pesquisadores do período Edo, que foi o trabalho de Suzuki Harunobu ljĝĒi (?-1770) o responsável por uma elevação do vulgar (zoku h) típico dos comuns ao elegante prerrogativo dos nobres (ga ǒ ), através de um complexo sistema de substituições, alusões, jogos de palavras, trocadilhos visuais, metáforas e metonímias (mitate Ƨů), e coloca os episódios relativos a Genji no repertório citadino. Após Harunobu, mesmo alusões distantes se tornam relacionados a Genji, em especial os célebres “aromas-de-Genji” (genji-kô Ō ķ Ǜ ), espécie de brasões que referem grupos de incensos. A sensibilidade sensual dos citadinos de Edo se apropria também do sentido olfativo. Aponta NAKAMACHI (2008: 202) que a figura retórica do yatsushi - (“disfarce”, “rebaixamento”) se torna indistinguível com mitate Ƨů a partir de 114 extensas estampas produzidas por Isoda Koryûsai ŧśWŋǢũ (1735-1790) nas séries dos anos 1760 e 1770: Yatsushi Genji -Ōķ (Genji disfarçado) e Fûryû yatsushi Genji ǚ ń -   Ō ķ (Genji elegantemente disfarçado), ou seja, os citadinos identificam-se como Genjis eles mesmos, ainda que pobremente vestidos. Parece-nos importante ressaltar, em relação à afirmação citada anteriormente de que, “enquanto mensagem política [a estampa com pinturas-de-Genji] também foi uma mídia que fez aflorar de modo abrasador um sentimento ainda inconsciente na população de reverência ao Imperador, que se tornaria basilar para a realização da Reforma Meiji (MITAMURA, 2008: 435, grifo nosso), nota-se que o repertório clássico é perene, sempre vivo na cultura japonesa, embora possa ser por vezes obliterado por guerras internas ou externas ou momentos de grande penúria e ebulição. A atual floração das produções em mídias modernas que retomam, recontam e transformam as Narrativas de Genji certamente não revela nenhum sentimento inconsciente mais genérico e, neste aspecto concordamos com NAKAMACHI: “A conexão entre Narrativas de Genji e ukiyo-e diferiram grandemente, dependendo do período, do artista, e dos consumidores.” (2008: 202) E assim parece estar sendo ainda na contemporaneidade. Referências Bibliográficas CATÁLOGO. O florescer das cores – A arte do período Edo. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2008. [Textos de Célia Oi, Kobayashi Ayako, Saito Takamasa, Madalena Hashimoto Cordaro] HAGA, Tôru Ɛƴñ, org. Genji monogatari kokusai fôramu shûsei ŌķŔƫŸǑB:HE DǓā (Anais do Forum Internacional de Narrativas de Genji). Tóquio: Fundação Japão e JAL, 2009. HASHIMOTO CORDARO, M., org. Sei Shônagon O livro do travesseiro. São Paulo, editora 34, 2013. ISAO, Toshihiko ûgì. Aato biginaazu korekushon – motto shiritai Utagawa Kuniyoshi, shogai to sakuhin ǨǨǮǰdzǩdzǯǨǭdzǦǫDZǪǬǧDz ,ť0ıןƐ Śņe˜ (Coleção para iniciação em arte – para saber mais: Utagawa Kuniyoshi, vida e obra). Tóquio: Tokyo Bijutsu, 2009 [1ª ed.: 2008]. KOJIMA, Naoko ÇÖŊ¹; KOMINE, Kazuaki Çїđ; WATANABE, Kenji ʼnƽþ. Genji monogatari to Edo bunka – kashikasareru gazoku ŌķŔƫĻĂČ Gƨ 21ǒh (Narrativas de Genji e a cultura de Edo – a visualização da elegância e da vulgaridade). 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UTAGAWA YOSHITORA ı×ƐƜ (ativo c. 1836-1882) Conjunto das figuras bonitas em profusão dourada Zensei bijin-zoroe ršƁZĈ Nishiki-e Gomaitsuzuki NjŹVĦŻ, pintura-brocado pentáptico, 1864 Comentário: São as cinco maiores cortesãs de Yoshiwara com seu séquito de meninas kamuro: Karashi ™¬, Ôgura Yorokobi Èjš, Usumurasaki ƙŷ, Shikimyô ċµ, Inaba ŮƘ e seus auxiliares, que carregam sombrinhas e instrumentos musicais. 116 TOYOHARA KUNICHIKA ƱŠŸ– (1835-1900) O Príncipe Genji e as Oito Vistas de Ômi Genji-no-kimi Ômi hakkei-no zu ŌķP“ƾĻsĖPž Nishiki-e sanmaitsuzuki NjŹJĦŻ, pintura-brocado, tríptico, 1863 Comentário: Junção de tópicas vistas-famosas e pinturas-de-Genji, a estampa mostra uma panorâmica, com os oito apreciados lugares devidamente identificados ao fundo, em modo monocromático aproximado ao suibokuga chinês, e, em primeiro plano, no barco de veraneio, a profusão colorística de quimonos, penteados e adereços da moda do período Edo, em prática poética (note-se a pedra de tinta sumi sendo preparada pela dama em quimono externo geométrico) ao cair da lua. A estação é o verão. TOYOHARA KUNICHIKA ƱŠŸ– (1835-1900) Madrugada no bairro verde dos prazeres Sonota riki kuruwa-no akatsuki vśżçdžė Nishiki-e sanmaitsuzuki NjŹJĦŻ, pintura-brocado, tríptico. Comentário: Os bairros verdes assim chamados, eram referências às áreas-de-prazeres, por seu índice de folhas de salgueiro-chorão, como se vê à esquerda da estampa, hábito praticado desde o século XII. Vê-se a figura esguia de Genji na figura central do primeiro plano, com um lencinho púrpura sobre sua cabeça raspada, adentrando Yoshiwara. Note-se os índices noturnos já bem ocidentalizados. 117 UTAGAWA KUNIAKI ıןđ (1835-1880) Comentário: cena na área de prazeres Yoshiwara, com suas cortesãs devidamente nomeadas, entre elas, as célebres Kumoi e Kaoru. Notem-se, ao fundo, as paredes corrediças ornamentadas com motivos de Genji-kô ŌķǛ, fragrâncias refinadas de competição praticada por nobres de antanho. Madalena Hashimoto Cordaro Professora Associada na FFLCH/USP. Pesquisa a arte visual japonesa em confluência com sua literatura, em especial as do período Edo (1603-1868). Entre suas publicações encontram-se: Sei Shônagon O Livro do Travesseiro (org., co-trad., pref., anexos, notas; Editora 34, 2013) Ukiyo-e Pinturas do Mundo Flutuante (IMS, 2008, 2 vols), Pintura e Escritura do Mundo Flutuante: Hishikawa Moronobu e ukiyo-e, Ihara Saikaku (Hedra, 2002). 118 ACERCA DE CHINOISERIES José Roberto Teixeira Leite UNICAMP RESUMO: A palestra discorre sobre a moda das chinoiseries, que toma conta da Europa, de meados do século XVII até fins do XVIII, evocando a longínqua China em vestimentas, tapeçarias, porcelanas, lacas, paisagismo, letras, música, teatro, etc. O texto estende-se sobre sua repercussão no Brasil, onde, por ora, o conceito de chinoiserie se confunde com influência chinesa, e traz à tona a autoria portuguesa das chinesices presentes em igrejas mineiras. O pesquisador desmitifica a possibilidade dessas obras mineiras terem sido feitas por chineses que foram trazidos ao Brasil em condição de escravos durante a colônia, mesmo porque o termo chinoiserie não é aplicável a objetos feitos pelos próprios chineses, mas sim por europeus ou habitantes de suas colônias. Trata-se, portanto, da arte achinesada, epidérmica interpretação ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte da aparência. Palavras-chave: chinoiserie, chinesices, Brasil, China, período colonial. ABSTRACT: This lecture discusses upon the fashion of chinoiseries that took over Europe from the middle of the 17th century until the end of the 18th century, evoking distant China in clothes, tapestries, porcelains, lacquer ware, landscape gardening, literature, music, theatre, among others. That fashion had repercussions in Brazil, where occasionally the concept of chinoiserie is mistaken with Chinese influence in artistic production. One of the questions raised is if indeed the authors of the Chinese style mannerism found in the decoration of Minas Gerais churches were Portuguese artisans. The researcher demystifies feasibilities that the Chinese style works of art were in fact produced by Chinese brought to Brazil as slaves in colonial times, given that the concept of chinoiserie is not applicable to objects done by Chinese artisans, but by Europeans or the inhabitants of their colonies. It concludes that what is seen in Minas Gerais churches is just a Chinese-like type of art, or a Western epidermic interpretation of the complex Far-Eastern aesthetics: the art of appearances. Keywords: chinoiserie, chinese style mannerism, Brazil, China, colonial period. Durante os cento e tantos anos que vão dos meados do Séc. XVII até quase fins do Séc. XVIII a Europa resolveu achinesar-se, curvando-se à moda das chinoiseries – que só arrefeceria, sem se extinguir de todo, depois que as escavações em Spalato, Pompeia e Herculano, bem como os livros de Winckelmann, Lessing e outros, ao renovar o interesse pela Antiguidade Clássica determinaram o que se convencionou chamar de Retour à l´Antique. Foi na vigência desse período que nos bailes de máscaras Louis XIV de França se fantasiava metade de persa, metade de chinês, enquanto Monsieur seu irmão brilhava nas vestes de Grand Seigneur Chinois; que manufaturas como as de 119 Beauvais, Aubusson, Berlim e Soho lançaram sucessivas séries de tapeçarias com motivos chineses, algumas baseadas em ilustrações de livros de viajantes, outras a partir de cartões desenhados especialmente por artistas como François Boucher; que o marchand de tableaux Edmé-François Gersaint, amigo do célebre Antoine Watteau (que para ele pintou em 1721 L´Enseigne de Gersaint), decidiu trocar o nome de sua galeria Au Grand Monarche para À la Pagode, passando a comercializar, além de telas dos Velhos Mestres e dos emergentes pintores rococós, porcelanas e outra obras de arte extremo-orientais; momento em que Augusto II o Forte, rei da Polônia e eleitor da Saxônia, entregava-se com igual paixão a seus dois hobbies favoritos: fazer filhos (dizem que mais de 300!) e colecionar porcelanas, tão fanático por essas últimas que certa ocasião teria trocado um regimento inteiro de cavalarianos por 48 vasos; em que o Cardeal Richelieu se gabava de suas 400 valiosíssimas porcelanas chinesas, reis e príncipes se disputavam qual deles possuía o mais rico gabinete de porcelanas, Clemente Augusto, príncipe-bispo de Colônia, fazia-se transportar pelas ruas da cidade em vistoso palanquim e a Rainha Louisa Ulrika da Suécia ganhava de presente de aniversário uma perfeita reprodução de pavilhão chinês, cujas chaves lhe foram entregues pelo principezinho seu filho em trajes de mandarim, e em cuja festiva inauguração, concluída por um balé pseudo-chinês, todos estavam vestidos à chinesa e até lhe prestaram um simulacro de kotow; época em que os quatro irmãos Martin, visando emular com a laca, aplicavam a mesas, cômodas, caixas de relógios e até carruagens um tipo especial de verniz que lhes conserva o nome, vernis martin, enquanto Thomas Chippendale introduzia, na edição de 1754 do seu Gentleman and Cabinet-Maker´s Directory, um suplemento com 160 modelos de cadeiras, cômodas, mesas, estantes e penteadeiras ao gosto soi-disant chinês, muito adequados, segundo o texto, para mobiliar o quarto de vestir de uma dama; época, em suma, em que tudo tinha de ser chinês, ou no mínimo parecer chinês. Nascida na Corte de Louis XIV, de onde se espraiou por todo o Continente – da França à Rússia, da Inglaterra à Suécia, da Holanda à Espanha e a Portugal –, e daí ao Novo Mundo, a mania pela China e por tudo quanto a ela se referisse ou relacionasse direta ou indiretamente não brotou da noite para o dia: pelo contrário, germinou ao longo de séculos a partir das descrições das maravilhas, coisas fantásticas ou fabulosas da misteriosa Cathay feitas por Giovanni dal Carpine, 120 Odorico da Pordenone, Marco Polo ou John de Mandeville, esse último considerado com inteira justiça o maior mentiroso do mundo, e sem falar nos portugueses Tomé Pires, Galiote Pereira e Fernão Mendes Pinto, foi reforçada pelos livros e escritos de Johan Nieuhof (nosso velho conhecido do Brasil Holandês), Olfert Dapper ou Athanasius Kircher, e recebeu decisivo estímulo na quantidade descomunal de sedas e demais têxteis, porcelanas – mais de 10 milhões de peças –, lacas, marfins, leques, papeis de parede, móveis, jades, bronzes, colchas, paraventos, biombos e todo tipo de objeto exótico ou curioso trazido do Extremo Oriente primeiro pelas naus da Carreira das Índias portuguesa, e em seguida pelas embarcações das Companhias das Índias, em especial os da inglesa (fundada em 1600), da holandesa (de 1602) e da francesa (de 1664). A profusão desses objetos chineses ou mais amplamente extremo-orientais, de preço compreensivelmente elevado e por conseguinte somente acessíveis a bem poucos, acabou por despertar nos artífices e artistas europeus o desejo de lhes copiar ou reproduzir as técnicas, formas e decoração. Assim, imitações em faiança de porcelana chinesa começaram a ser manufaturadas em Delft, Dresden, Nevers, Rouen, Bristol, Faenza e em dezenas de outras cidades, antes de que por volta de 1709, em Meissen, Augusto o Forte lograsse com que Böttger, seu alquimista transformado à força em oleiro, é verdade que se beneficiando das pesquisas pioneiros do esquecido Tschirnhaus, finalmente identificasse a matéria-prima que faltava para a obtenção da verdadeira porcelana, ao que se diz após observar como sua peruca enrijecera, depois de polvilhada com uma argila abundante na Saxônia, e que outra coisa não era senão caulim. De Meissen em poucos anos o segredo da fabricação da porcelana propagouse a Viena, Ansbach, Nymphemburg, Frankenthal, St. Cloud, Chantilly, Sevres, Chelsea, Bow, Derby, Worcester e inúmeras outras localidades, em todas as quais se chegou a produzir porcelana de alta qualidade, muitas exibindo na decoração padrões chineses de nuvens e montanhas, bambus, peônias, lótus, pássaros, peixes, borboletas, morcegos, insetos, cenas mandarinescas e mesmo uns poucos motivos originais, como o Willow Pattern, criado por volta de 1790 por Thomas Minton a partir de uma romântica historieta pretensamente chinesa. 121 Também no campo do paisagismo repercutiu fortemente o impacto da China sobre os europeus, levando-os a modificar seu modo de conceber e projetar jardins e a preferir ao formalismo dos jardins de tipo francês – simétricos, regulares, dominados pelo geometrismo e pela linha reta, como se pode ver no projeto de Le Nôtre para Versalhes – a irregularidade e total liberdade visíveis nos jardins chineses, nos quais predominava aquele “arranjo desordenado” que, à falta de denominação melhor, ficaria conhecido na Europa como sharawadgi – vocábulo alegadamente de origem chinesa, mas ao que tudo indica inventado por William Temple, no livro Upon the Gardens of Epicurus, de 1685: Os chineses desprezam proporção, simetria e uniformidade. Sua enorme capacidade de imaginação é aplicada na concepção de figuras em que uma grande beleza seja capaz de surpreender o olhar, mas sem qualquer ordem ou disposição das diferentes partes, que devem ser facilmente percebidas e apreciadas. E embora dificilmente tenhamos a mínima noção do que seja esse tipo de beleza, eles possuem uma palavra para defini-la: sempre que ela os impacta num primeiro relance, eles dizem que seu Sharawadgi é belo, admirável, ou qualquer outra expressão de apreço. As 36 estampas do Padre Matteo Ripa representando vistas dos jardins imperiais de Jehol, que circularam em 1724 em Londres; a minuciosa descrição desses mesmos jardins, Yuan Ming Yuan, pelo padre-pintor Jean-Denis Attiret, em carta de 1743 depois incluída entre as Lettres édifiantes et curieuses remetidas da China por missionários jesuítas; e os escritos de William Chambers em louvor dos jardins chineses, que ele conhecera nas três viagens que entre 1742 e 1749 realizara ao País do Meio como funcionário da Companhia Sueca das Indias Orientais, ocasião em que também obteve informações sobre os mesmos junto ao pintor Lepqua, contribuíram de modo preponderante para que parques e jardins à maneira chinesa, “feitos com tanta arte que neles a arte sequer aparece” (como escreveu Attiret), surgissem primeiro na Inglaterra, e depois por toda a Europa - do Golfo da Finlândia à Sicília, no dizer de Dawn Jacobsen –, informais, cuidadosamente desordenados, aqui e ali interrompidos por grutas, lagos, pontes, pagodes, casas de chá ou pavilhões, construções essas das quais foram ou continuam sendo exemplos significativos o grande pagode dos Kew Gardens, de William Chambers, inspirado no Pagode de Porcelana de Nanquim; Pagodenburg, mandado construir entre 1716 e 1719 por Max Emmanuel, Eleitor da Baviera; Kina, em Drottingholm, na Suécia (que substituiu em 1763 a frágil estrutura em madeira ofertada dez anos antes à Rainha Louisa Ulrika, como vimos há pouco); e a Vila 122 Chinesa de Catarina II, erguida em 1762 nos arredores de São Petersburgo, abrangendo casas, um teatro (destruído em 1941), um observatório (jamais concluído), pontes, etc. Mas a moda das chinoiseries não se limitaria às porcelanas, aos jardins ou à decoração de interiores: propagou-se às letras, à música e ao teatro, do que é exemplo a História do Príncipe Calaf e da Princesa da China, publicada em Paris em começos do Séc. XVIII numa coletânea de contos de origem persa traduzidos por Pétis de la Croix. É a história da gélida Princesa Turandot (cujo nome, persa, significa a Filha de Turan), a qual, odiando os homens mas forçada a casar-se por exigência dinástica, jurou que só o faria com quem decifrasse três enigmas por ela propostos, sendo decapitados os que falhassem. Turandot, como se sabe, é afinal vencida pelo sagaz príncipe tártaro Calaf. Musicada em 1729 por Le Sage, transformada em 1762 por Carlo Gozzi numa fábula tragicômica chinesa em cinco atos, a história desde então serviu de tema a inúmeras peças de teatro e orquestrais, a lieder e a pelo menos uma dúzia de óperas, das quais a mais conhecida é de longe Turandot, de Giacomo Puccini, na qual o célebre compositor teria incluído antigos fragmentos musicais chineses, e que deixou inconclusa ao morrer em 1924. Aliás, também constituem um tipo especial de chinoiserie literária obras como L´Orphelin de la Chine, peça em cinco atos, levada à cena em 1755, na qual Voltaire retoma um drama escrito na vigência da Dinastia Yuan, que por sua vez fazia referência a uma história verídica ocorrida séculos antes, ou como The Citizen of the World, livro de 1762 no qual Oliver Smith, para criticar sem ser molestado a Inglaterra de seu tempo, inventa um personagem chinês, Lien Chi Altangi, que numa série de cartas remetidas de Londres a Fum Hoam, um amigo que ficara em Pequim, descreve suas impressões, muitas desfavoráveis, outras jocosas, sobre suas experiências naquele país. Também no Brasil tivemos no devido tempo chinoiseries, assunto já por nós enfocado com mais vagares em livro de 1999, A China no Brasil. Nessa obra, aliás, tentamos distinguir entre chinoiserie e autêntica influência chinesa, a nosso ver detectável, por exemplo, nos Cristos da sacristia da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em Cachoeira na Bahia, ou nos quatro leões funerários da igreja jesuíta do Embu, os quais, segundo Germain Bazin, um escultor da época Tang não renegaria. 123 Em nenhuma outra região brasileira, mais que em Minas Gerais, são tão numerosos os exemplos de pintura decorativa de temática ou em imitação chinesas, o que levou a originar a versão fantasiosa, até hoje arraigada no povo, segundo a qual artistas chineses teriam ali trabalhado. É fato real, aliás surpreendente, a presença de escravos chineses em Minas, nos começos do Séc. XVIII; não consta, porém, que houvesse artistas entre eles. De qualquer modo, o que se percebe nessas pinturas à primeira vista orientais que adornam certas igrejas mineiras (pois em Minas, curiosamente, é nas igrejas que se encontra esse tipo de decoração tão nitidamente profana), é que não se trata de modo algum de arte chinesa, mas de arte achinesada, epidérmica interpretação ocidental da complexa estética extremo-oriental: arte de aparência, mas não de essência chinesa, chinesice em suma. Impossível levar a sério que tais pinturas mineiras com chinesices indiquem a atividade, na região, de artistas oriundos de Macau, atraídos, como meio mundo, pelo ouro das Gerais. É no entanto o que pensam autores como Silva Teles: Essas pinturas de influência oriental – chinesices, como são denominadas, foram elaboradas, certamente, aqui mesmo, no Brasil, por artistas ou artesãos vindos das feitorias portuguesas das índias ou da China, tentados pela ocorrência dos achados de ouro na área das Minas. Conhece-se até ao momento o nome de um único artista ativo em Minas Gerais oriundo das possessões lusitanas na Ásia: certo Jacinto Ribeiro, que vemos executando pinturas na Vila do Carmo (a atual Mariana) em 1711, e que em 1744 continuava trabalhando, agora como santeiro, em Itabira do Campo. Segundo um termo de admoestação passado a 24 de fevereiro de 1721, Jacinto era “homem solteiro que vive de sua arte de pintor, natural da Índia”. Foi o ponto de partida para que, no estudo que dedicou à pintura colonial mineira, Rodrigo Melo Franco de Andrade atribuísse a esse artista a autoria das pinturas com chinesices da Capela de Nossa Senhora do Ó em Sabará, que se achava em construção em 1717: Pretende-se aqui atribuir-lhe a autoria da pintura da preciosa capela sabarense, porque a introdução das chinoiseries naquele tempo, por volta de 1720, constituiu um elemento tão exótico que torna muito mais provável caber a sua autoria a um artista originário do Oriente do que a qualquer dos demais pintores em atividade em Minas durante o mesmo período. 124 Não podemos infelizmente concordar com a atribuição proposta pelo eminente primeiro diretor do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a começar pelo fato de que chinoiserie é invenção de europeus, que por conseguinte só pode ser feita por artista não chinês, visto como por definição é a visão fantasiosa que os europeus tinham da China, ou do que pretendiam que ela fosse. Também é impossível aceitar a data de 1720 como a de execução das pinturas com chinesices de Nossa Senhora do Ó, quando é sabido que as chinoiseries surgiram na França mais ou menos pela mesma época, obra de Watteau e de outros artistas. O fato é que as pinturas da “capelinha chinesa” de Sabará são bem mais tardias, até porque seria descabido imaginar que Minas tivesse tido pinturas com chinoiseries no mesmíssimo momento em que a França, e antes até de que ocorressem no restante da Europa, sabido como em Portugal esse tipo de ornamentação só começou a ser praticado pelos meados do Séc. XVIII. Num ensaio pioneiro publicado em 1951, Eugénie Miller Brajnikov sustenta que a introdução de chinoiseries na pintura colonial mineira pode ter derivado da consulta a repertórios de ornatos como Oeuvres de fleurs, ornaments, cartouches, figures et sujets chinois, publicado em 1776 por Jean Pillement, artista francês que viveu em Portugal de 1780 a 1785. Ao que saibamos, não há registro de que esse ou qualquer outro repertório do tipo tenha circulado em Minas, mas é fora de dúvida que, se compararmos todas essas cenas de pássaros, mandarins, flores, pagodes e paisagens orientais que soem ocorrer na pintura de chinesices mineira com as cenas e paisagens orientais que os compõem, são evidentes as coincidências formais entre eles. É no arco-cruzeiro de Nossa Senhora do Ó, em Sabará, que se encontram as mais conhecidas pinturas com chinesices de Minas e possivelmente de todo o Brasil – sete painéis, sendo seis verticais, com um sétimo horizontal encimando o escudo. Mas na mesma cidade, na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, existem duas portas com chinesices em imitação de laca, uma das quais há ainda hoje quem sustente ter sido feita na China e presenteada à igreja pelo rei de Portugal – outra lenda sem qualquer compromisso com a realidade, já que tanto a técnica quanto a temática que nelas se observa apontam para uma origem provavelmente local. 125 Passando a Mariana, há admiráveis chinesices em ouro sobre vermelho no respaldar do cadeiral da capela-mor da Matriz da Conceição: são letrados e mandarins, e mesmo alguns europeus, em variadas poses e atitudes, ao ar livre ou sob pavilhões, caçando, perambulando por jardins ou entre flores e pássaros, sob guarda-sóis ou a cavalo, tudo externado em inusual vivacidade. Tal pintura, que guarda algum parentesco com as de Sabará, é atribuída pelo mesmo Rodrigo Melo Franco de Andrade a Manoel José Rebelo de Souza, de Braga, chegado a Minas por volta de 1750 e que em 1760 se desincumbia da pintura do teto da matriz marianense – uma data que também consta no respaldar. Outras pinturas com chinesices são imputáveis a Rebelo: as duas caixas do órgão da Matriz de Nossa Senhora da Conceição em Catas Altas do Mato Dentro, na qual ele documentadamente trabalhou em 1760, e as da Igreja de Santa Ifigênia em Ouro Preto. De fato, em todas essas obras pode-se detectar a fatura larga e despreocupada desse artista, que fazia uso de pinceladas soltas e de uma paleta à base de pretos e cinzas responsáveis por aquelas formas “tendenciosamente abstracionistas” que impressionaram Rodrigo, e que a nosso ver evocam remotamente as que ocorrem nos biombos namban do estilo saikaiha (ceu/mar/onda) de começos do Séc. XVII, representando os contatos comerciais entre japoneses e portugueses em Nagasaqui, por ocasião das naus de trato. Pinturas com chinesices existem também em igrejas de outras cidades mineiras, como Ouro Branco, Barão de Cocais, São João del Rey ou Tiradentes, e também foram aplicadas a oratórios domésticos, como se vê nas duas portas de um deles, conservado no Museu da Inconfidência em Ouro Preto, procedente da Fazenda do Rio do Peixe em São José da Lagoa, Nova Era. Fora do âmbito das igrejas, são raríssimos os exemplos de pinturas com chinesices em residências mineiras do Séc. XVIII. A pesquisadora Eugénie Miller Brajnikov, já atrás citada, julgou vê-las em três antigas casas de moradia de Conceição do Mato Dentro – em duas, numa decoração à base de flores e pássaros que só muito vagamente podem lembrar a China, mas na terceira, situada à Praça Dom Joaquim e onde hoje funciona uma escola, nos quatro grupos de figuras vestidas à ocidental que se equilibram sobre o que parecem ser nuvens, certamente de atmosfera chinesa, e com alguma boa vontade lembrando representações dos 126 Oito Imortais Taoístas. Essas pinturas, que segundo aquela estudiosa representariam cenas da vida dos portugueses na China, são atribuídas por Enrico Schaeffer a Silvestre de Almeida Lopes (ativo entre 1764 e 1796), mas devem datar já de começos do Séc. XIX. José Roberto Teixeira Leite Formado em Direito, dirigiu sua vida profissional para o jornalismo como crítico de arte. Lecionou em distintas universidades fluminenses e paulistas. Foi diretor do Museu Nacional de Belas Artes de 1961 a 1964. Fecundo escritor, competente pesquisador, escreveu mais de vinte livros, em sua grande maioria sobre arte e artistas, entre eles: “A China no Brasil” e “As Companhias das Índias e a porcelana chinesa de encomenda”. Membro de distintas associações e conselhos de arte. ! 127 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES SENIORES 128 JAPONISMO, MAS “NON TROPPO”: A HISTÓRIA DA ARTE COMO CAMPO PRIVILEGIADO DA DISSIMULAÇÃO ETNOCÊNTRICA. Afonso Medeiros - UFPA RESUMO: Arte e cultura orientais influenciam e são influenciadas pela arte e pela cultura ocidentais há séculos. Mais do que um exercício de alteridade, esses diálogos interculturais constituem-se mais precisamente, no campo da História da Arte, num modo mal dissimulado de manutenção do status quo dos valores estéticos da cultura europeia. Esse status quo, constituído como epistemologia desde a gênese da disciplina (seja como história do artista ou como história dos estilos), perdura praticamente intacto até a contemporaneidade. Tomando como exemplo o japonismo que vem atravessando a cultura europeia há quase dois séculos e mais recentemente a cultura norte-americana, este ensaio discute a sobrevivência da História da Arte como disciplina pretensamente geral e irrestrita, mas que ainda opera a partir de grades conceituais rígidas e excludentes, na contra-mão das questões suscitadas pela arte e pela cultura contemporâneas e sem deixar-se infectar pelo modo de ser das artes não europeias, particularmente pelas orientais. Edward Said (1996), Kakuzo Okakura (1993) e Inaga Shigemi (2011) são alguns dos estudiosos que oferecem problematizações instigantes para o escopo deste trabalho. Palavras-chave: história da arte; arte oriental; epistemologia. ABSTRACT: Oriental art and culture influence and are influenced by Western art and culture for centuries. More than an exercise of otherness, these intercultural dialogues constitute more precisely, in the field of History of Art, a thinly veiled way of maintaining the status quo of the aesthetic values of European culture. This status quo, constituted as epistemology since the genesis of the discipline (either as the artist's history or as history of styles) lasts almost intact until nowadays. Taking as an example the japanism, which has come across the European culture for almost two centuries and more recently comes across the American culture, this essay discusses the survival of the history of art as a supposedly general and unrestricted discipline, which still operates with rigid and exclusionary conceptual grids, against the issues raised by contemporary art and culture, without being infected by the way of being a non-European art, particularly by the oriental ones. Edward Said (1996), Kakuzö Okakura (1993) and Inaga Shigemi (2011) are some of the scholars who offer exciting problematizations for the scope of this work. Keywords: history of art, Oriental art; epistemology. Okakura Kakuzō (1862-1913), nascido em Yokohama, em uma família originária de Fukui, foi um dos mais proeminentes pensadores e críticos sobre as relações culturais entre o Oriente e o Ocidente. Aos 15 anos, Okakura entrou no bacharelado em Artes da Universidade Imperial de Tokyo (então uma instituição de língua inglesa), onde encontrou pela primeira vez e estudou com Ernest Fenollosa – ambos foram ferrenhos defensores da arte e da estética japonesa num momento em que o Japão passava por um intenso período de influência ocidental na economia, 129 na indústria e na cultura. Em 1890, foi um dos principais fundadores da Escola de Belas-Artes de Tokyo (Tokyō Bijutsu Gakkō), tornando-se seu diretor no ano seguinte. Depois, fundou o Instituto Japonês de Arte junto com Hashimoto Gahō e Yokoyama Taikan. Cosmopolita, Okakura viajou pela Europa, pelos Estados Unidos, pela China e pela Índia. Em 1910, tornou-se o primeiro diretor do departamento de arte asiática do Museu de Belas-Artes de Boston. Direta ou indiretamente, suas ideias impactaram importantes intelectuais, como Martin Heidegger (1889-1976), Ezra Pound (1885-1972) e Rabindranath Tagore (1861-1941). Em O livro do chá, publicado em inglês em 1906, Okakura começa sua explanação observando de forma contundente as mútuas incompreensões culturais entre Ocidente e Oriente. De alguma maneira, nós que nos dedicamos à arte oriental num pais tão equidistante (geográfica e culturalmente) tanto do Oriente quanto do Ocidente, ainda nos encontramos envolvidos com as mesmas questões que o autor apontou na introdução de sua obra mais conhecida e que, no nosso caso, poderiam ser sintetizadas da seguinte maneira: o Oriente como periferia do Ocidente no campo da globalidade, o Hemisfério Sul como periferia do Hemisfério Norte no campo político-cultural e a Arte como periferia da Ciência no campo do conhecimento acadêmico. Nesse cenário, qual o sentido de realizarmos esse Colóquio sobre Arte Oriental? Trataremos de arte oriental com as ferramentas teóricas e epistemológicas que a mesma nos oferecem a partir de seu contexto ou, ao contrário, tentaremos enquadrá-la na formatação histórica e metodológica da arte europeia? Que condições teríamos, efetivamente, de promover inserções e revisões na história geral da arte a partir do ponto de vista das estéticas das culturas orientais? Existem, de um lado e de outro, perspectivas conceituais capazes de iluminarem reciprocamente produções artísticas histórica e culturalmente tão peculiares? Esclareça-se desde já que, para muitos intelectuais e acadêmicos (contemporâneos ou nem tanto) com os quais estamos acostumados a lidar, a ideia de “ocidente” restringe-se à Europa e aos Estados Unidos; “oriente” é praticamente o oriente contíguo à Europa – com exceção dos norte-americanos que, grosso modo, consideram o oriente como o “extremo oriente” (China e Japão). No imaginário intelectual dos ocidentais do Hemisfério Norte, a América Latina, a África e boa parte 130 da Ásia e da Oceania fazem parte de uma espécie de limbo político, econômico e cultural. Além disso, não se pode perder de vista as muitas armadilhas da generalização indiscriminada; o ocidente europeu não é uma cultura homogênea: pelo menos duas grandes tradições digladiam-se até hoje, a latina e a anglosaxônica, não só no território político, mas também na língua, na filosofia, na arte e na religião. Da mesma maneira, a China do Norte, mais afeita ao confucionismo e a China do Sul, espaço privilegiado do taoísmo, não são irmãs siamesas. Entretanto, mesmo que a custa de tantas barbaridades, esses dois grandes espaços geográficos respectivamente cultivam na atualidade alguma noção de tradições comuns, auto-configurando-se como matrizes daquilo que modernamente entendemos como Ocidente e Oriente. Ressalvas feitas, vamos ao que interessa. Este é um evento que objetiva reunir sistematicamente os pesquisadores e os mais recentes estudos sobre arte oriental no Brasil e, de uma maneira ou de outra, as questões expressas anteriormente devem perpassar um evento com esse perfil e natureza. Sua realização atesta, por si só, a necessidade de revisão dos marcos epistemológicos da História da Arte, visto que discutíamos, durante sua organização, que tipos de limitações (ou se deveria haver limitações) na concepção de arte e de artista a serem consideradas para aprovação ou não das comunicações submetidas a este 2º Colóquio sobre Arte Oriental. Na História da Arte, dependendo da filiação disciplinar e epistemológica de seus profissionais, costuma-se estabelecer duas paternidades e gêneses distintas: 1) a de Giorgio Vasari (1511-1574), com a publicação de As vidas dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos (Le vite de’ piú eccelenti pittori, scultori e architettori) em 1550 (com uma segunda edição revisada em 1568); 2) e a de Johan Joachim Winckelmann (1717-1768), a partir da escrita de Reflexões sobre a arte antiga (em 1755) e da publicação de História da Arte Antiga (Geschichte der Kunst dês Alterthums) em 1764. É fato que o artista Vasari não tinha a intenção de fundar uma disciplina, mas estabeleceu, coerente com sua atividade, a ideia de que a história da arte é essencialmente a história do artista e de suas criações. Winckelmann, historiador e arqueólogo, deu início à concepção de história da arte como história dos estilos naquele século (o XVIII) que já foi chamado de “o século da 131 filosofia e da critica estética”. Em ambos, abordagens exclusivas sobre artistas e formas de arte europeias e o encantamento pela herança Greco-romana. Sob essa perspectiva atravessada primeiro pelo Humanismo e depois pelo Iluminismo, a História da Arte nasce como história da arte europeia e, mais especificamente, com uma concepção naturalista, figurativa, autoral e mimética da obra de arte, tendo a arte grega clássica como paradigma inconteste. Assim sendo, a arte das culturas que não comungavam com esses princípios estéticos dificilmente seriam aceitas imediatamente no rol das mais altas criações estéticas da humanidade, o que, de fato, só foi possível tardia, parcial e paulatinamente, sobretudo a partir das influências que as artes não europeias foram imprimindo na arte do Velho Continente desde meados do século XIX. Ainda assim, foram as artes das culturas próximas do Mediterrâneo as primeiras a serem levadas a sério pelos historiadores e arqueólogos europeus. Foi a partir das grandes navegações, mas, sobretudo a partir do século XVIII, que a Europa começou a acumular obras de outras culturas, seja como botim de guerra, seja como confisco puro e simples disfarçado de estudos históricos, científicos e arqueológicos, privilegiados pelo fato de que muitas sociedades de onde esses objetos foram roubados não davam o devido valor estético ou histórico a esses produtos de sua própria cultura. O acúmulo de objetos de outras culturas em solo europeu, além de constituir a glória atual de seus museus, facilitou o interesse multicultural de estudiosos de várias disciplinas, mas, por um outro lado, arrancados de seus contextos e concepções originais, impediu que se investigasse profunda e amplamente as concepções de arte de culturas não europeias. Dessa maneira, no auge da fúria colonialista de franceses, ingleses, espanhóis, portugueses e holandeses, foram extirpadas as possibilidades de constituição da história da arte como disciplina ampla, geral e irrestrita, visto que a própria concepção de arte e de artista foram limitadas geográfica e conceitualmente. De qualquer maneira, a História da Arte, na forma que a conhecemos hoje e sem demérito para os antigos tratados sobre arte no Oriente e no Ocidente, é uma área de conhecimento configurada em solo europeu, atravessada pelas concepções de pintura, escultura e arquitetura como produtos estéticos refinados de uma civilização cujas raízes remontavam à Grécia e à Roma e às civilizações que foram 132 consideradas geográfica e culturalmente adjacentes à cultura europeia (como a egípcia, a mesopotâmica, a assíria e a babilônica) e com as quais estabeleceu trocas e tráficos centenários. O apreço de historiadores da arte pelas artes africanas, do extremo oriente e ameríndias só se desenvolveu no século XX, sobretudo a partir do olhar diferenciado de artistas vanguardistas e antropólogos, mas o etnocentrismo na história da arte já estava instalado em suas entranhas há, pelo menos, três séculos. Edward Said, em seu já clássico Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (1990) assinala que: O Oriente era quase uma invenção europeia, e fora desde a Antiguidade um lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas, de experiências notáveis. [...] O Oriente não está apenas adjacente à Europa; é também onde estão localizadas as maiores e mais antigas colônias europeias, a fonte das suas civilizações e línguas, seu concorrente cultural e uma das suas mais profundas e recorrentes imagens do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente), como sua imagem, ideia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. O oriente expressa e representa esse papel, cultural e até mesmo ideologicamente, como um modo de discurso com o apoio de instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais. (SAID, 1990, pp. 13-14) Aos olhos europeus, o Oriente Médio não é um Outro meramente imaginado, idealizado ou mitologizado, mas um tipo de discurso que, a partir das materialidades da própria civilização europeia, se erige como narrativa que configura uma identidade cultural calcada no contraste e na diferença que minimiza, barbariza e inferioriza a produção estética do Outro. Esse discurso, também constituído pelo aparato acadêmico, fez com que a Europa “inventasse” o Oriente em seus próprios termos, diríamos, para sua própria auto-estima. Entretanto, esse processo não pode ser reduzido a um maniqueísmo entre perdas e ganhos, pois a cultura não é um campo de transplante puro e simples: por mais atroz e violenta que seja a imposição de sua visão de mundo, o colonizador sempre é infectado pela cultura do colonizado que através de sutis estratégias de resistência, acaba impondo uma rede complexa de trocas e assimilações. A percepção de Said é demolidora e se ajusta perfeitamente ao campo da história da arte, na medida em que esta contribuiu sobremaneira para a constituição 133 de um imaginário europeu sobre o Oriente: bastaria citarmos, de passagem, apenas algumas obras de Eugène Delacroix (1798-1863) e Dominique Ingres (1780-1867). A favor dos artistas europeus, torna-se necessário acrescentar que eles não só ajudaram a construir um imaginário sobre o Oriente, mas também sobre um suposto passado glorioso nas civilizações helênica e latina. Ou seja, a História da Arte surgiu no momento em que não só se constituía o modelo especular do Outro, mas se revisava e enfatizava as raízes da própria cultura europeia. Esse contexto – insistimos – fez com que a História da Arte já fosse etnocêntrica desde o berço e se constituísse como poderosa máquina de propaganda da civilização europeia. Se a arte do Oriente Médio, tão próxima geográfica e culturalmente da arte europeia teve esse tipo de tratamento na História da Arte desde seu nascedouro, o que seria do restante da arte Oriental? L’art japonais (1883) de Louis Gonse (1846-1921), L’Histoire de l’art du Japon (1890, com editoria de Okakura Kakuzō) e Hokusai (1896) de Edmond de Gouncort (1822-1896), foram os primeiros relatos mais consistentes sobre arte oriental em solo europeu. Um relato mais amplo, feito a partir do contato direto do autor com a cultura japonesa e consultando artistas e estudiosos especialistas só aconteceu quando da publicação em dois volumes (1912) do monumental Epochs of Chinese and Japanese art de Ernest Fenollosa (1853-1908) e, mesmo assim, com várias lacunas e imprecisões históricas. Se as primeiras publicações de autores franceses foram resultado do japonisme que atravessou feito febre a cultura francesa da segunda metade do século XIX, a obra de Fenollosa é resultado, paradoxalmente, do esforço (também feito febre) de europeização da cultura japonesa empreendido pelas autoridades locais – Fenollosa chegou ao Japão contratado para lecionar filosofia na Universidade Imperial de Tokyo e tornou-se Comissário das Belas Artes do Governo Japonês. Se não fundaram, aquelas obras contribuíram para a reconfiguração dos estudos do extremo oriente na história da arte e foram saudadas como clássicas, como obras de eruditos que, dessa maneira, emprestavam à própria disciplina um “verniz global”. A partir de então, os museus europeus de arte ampliaram consideravelmente seus acervos e sedimentaram os departamentos de arte oriental desses mesmos museus. Com essas obras e esses fatos e passados mais de cem 134 anos, seria de se esperar que a arte asiática assumisse algum protagonismo na história da arte, com vários de seus artistas e movimentos tornando-se paradigmáticos na história dos processos e dos produtos artístico-estéticos da humanidade. Mas não foi isso o que aconteceu, posto que a disciplina já havia diferenciado arte de artesanato, artista de artesão, colocando a pintura e a escultura de caráter naturalista no pináculo da produção artística mundial e, assim, constituindo um conceito de arte calcado na materialidade da produção estética e simbólica. Nesse momento em que a própria história da arte poderia ter reformulado seus métodos e objetos, ampliando seu suposto caráter global, boa parte da arte oriental foi considerada mero produto exótico de culturas idem orbitando o núcleo indisfarçavelmente etnocêntrico da história da arte – mais um daqueles momentos em que o discurso sobre o Outro, calcado na diferenciação excludente, serviu para blindar a identidade e a auto-estima. Apesar disso, exceções devem ser assinaladas: o já citado Okokura Kakuzō e o francês Henri Focillon (1881-1943) “tentaram estabelecer uma história da arte universal através da síntese de estudos sobre Oriente e Ocidente durante a época cosmopolita entre as duas grandes guerras” (INAGA, 2011, p. 61). Inaga Shigemi, professor-pesquisador do International Research Center for Japanese Studies em Kyoto, mestre pela Universidade de Tokyo e doutor pela Universidade Paris VII, em seu A História da arte é globalizada? (2011), assinala uma questão fundamental para a universalização da história da arte: Ainda assim, não deve ser negligenciado que no seu Livro do Chá (1906), Okakura manifesta claramente a sua má vontade em apresentar e apreciar arte oriental de maneira ocidental. Invocando escrituras taoístas e conceitos zen-budistas, Okakura tenta persuadir os leitores ocidentais que o culto oriental à estética espiritual e à beleza imaterial está em forte oposição à beleza física e material do Ocidente. Ele argumenta que o vazio da casa de chá é incompatível com a panóplia-exibição das coleções dos museus ocidentais, e a prática da cerimônia do chá não pode ser facilmente assimilável à apreciação ocidental de arte, que coloca uma ênfase excessiva na arte visual em detrimento dos outros quatro sentidos. Okakura também insiste no fato de que na história da arte asiática, as belas artes dificilmente podem ser distintas de arte e de artesanato, e ele sem sucesso, criou o termo Kogei (artes refinadas) de modo a cobrir todos os tipos de criação artística manual. Assim, uma resistência teórica à inerente falácia que tentava globalizar a história da arte foi, manifestadamente, formulada pelo pioneiro da história da arte oriental no início do século XX. (INAGA, 2011, pp. 61-62) 135 Na mesma época em que Kakuzō Okakura viveu e discutiu sobre arte oriental e ocidental, no Japão assumiu-se definitivamente o termo “bijutsu” como tradução de “belas-artes”, em detrimento do termo “geijutsu”, mais amplo e tradicional para definir as artes japonesas e esse fato contribuiu para a invisibilidade internacional dos princípios estéticos da arte oriental em geral e da japonesa em particular. De fato, Okakura tinha razão em enfatizar que a arte oriental impõe princípios práticos, teóricos e estéticos que não se coadunam com a prática, a teoria e a estética das artes plásticas verificadas na Europa entre os séculos XV e XIX. Aqui se observa uma impossibilidade de aplicação de uma única perspectiva teórica (no caso, a europeia) na história universal da arte. Para que esta fosse globalizada, teria sido necessário que o modo de ser das artes orientais infectassem a própria teoria da arte, a concepção mesma de arte e de seus produtos, ampliando horizontes, métodos e objetos. Mas não foi isso o que aconteceu. Para ficarmos em apenas três exemplos, a Cerimônia do Chá, o Jardim Japonês e a Arte da Caligrafia nunca aparecem nos compêndios canônicos da história da arte e são justamente estas formas de arte que oferecem, talvez, os mais importantes aportes teóricos e estéticos orientais para uma história geral da arte, imprescindíveis inclusive para as concepções modernas e contemporâneas da produção artística. Eis um exemplo, dado pelo próprio Okakura: Na arte a importância desse mesmo princípio [o do vazio no taoísmo] é ilustrada pelo valor da sugestão: deixando alguma coisa por ser dita expressamente, o artista dá ao observador uma oportunidade de completar a ideia original, e assim uma grande obra de arte vos atrai a atenção até vos tornardes de fato uma parte dela: aí está um vazio para que nele entreis e o enchais inteiro com vossa emoção estética. (OKAKURA, 1993, pp. 40-41) Alguém conhece alguma teoria da recepção na arte ocidental nessa mesma época (1906) tão afeita ao caráter de obra aberta da arte contemporânea quanto essa defendida por Okakura a partir da arte sino-japonesa? Sugestão, imperfeição e complementaridade da fruição são três princípios estéticos fundamentais que perpassam algumas das artes japonesas há séculos. Mais contemporâneo do que isso, impossível! Em pleno século XX, a História e a Arte, ambas enquanto disciplinas/cursos gerais academicamente constituídas, ofereceram uma nova chance para a mundialização efetiva da História da Arte. No campo da História, a verdadeira 136 revolução causada pela Escola dos Annales, inaugurada por Marc Bloch (18861944) e Lucien Febvre (1878-1956), obrigou a disciplina a ampliar seus métodos e objetos debruçando-se sobre as contribuições de outras disciplinas como a Sociologia e a Antropologia e que fez com que Peter Burke assim definisse essa revolução: Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas. Abre-se, em consequência, o leque de possibilidades do fazer historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os conceitos e os instrumentos que permitiriam ao historiador ampliar sua visão do homem. Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a individualidade, como em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas análises no econômico e no social; não se esquecia de que as estruturas sempre têm algo a dizer a respeito do comportamento do homem; e como Burckhardt, afirmava-se que o homem não se confinava a um corpo a ser mantido, mas também um espírito que criava e sentia diferentemente, em situações diferençadas. (BURKE, 2010, p. 8) “Fazer uma outra história”, “abrir o leque do fazer historiográfico” e “permitir ao historiador ampliar sua visão de homem”: eis os motes que ainda hoje podem fazer implodir o renitente etnocentrismo da história da arte. Ignorar as produções estéticas do Oriente não é só um modo de abrir mão de uma perspectiva multiculturalista na história das produções artístico-estéticas da humanidade, mas sobretudo uma relutância inexplicável em ampliar a visão do homem. Se historiadores da arte não percebem nas artes produzidas para além das fronteiras ocidentais um sopro de modernidade e/ou instrumentos e métodos capazes de arejarem a disciplina é porque, infelizmente, muitos deles (e não só os europeus) não estão dispostos a saírem de seus confortáveis nichos para ampliarem horizontes e perceberem “Quanto vazio ao redor desses bibelôs raros e de época, quanto espaço entre eles para outras objetivações ainda não imaginadas!” (VEYNE, 2008, p. 247). Talvez, as “objetivações não imaginadas” que Paul Veyne indica necessitem de um olhar muito além do ofício do historiador tradicional da arte acostumado com o campo restrito da história do artista, dos estilos e das vanguardas. No campo da Arte, a revolução aconteceu ao longo de quase todo o século XX, a partir das iconoclastias assumidas pelas vanguardas históricas e penetrando até a arte contemporânea, com efeitos teórico-críticos tanto diacrônicos quanto sincrônicos. Num arco histórico que Philadelpho Menezes (2001) chamou 137 pertinentemente de “a crise do passado” entre a modernidade e a metamodernidade, muitos dos princípios estéticos da arte europeia, por força inclusive da influência decisiva de artes não europeias (uma história ainda mal contada), foram dinamitados. A debacle da figuração de caráter naturalista, a emergência do processo em detrimento do produto, a estética do cotidiano preferencialmente às “grandes narrativas”, a assunção do corpo pornográfico em contraposição ao corpo erótico, a apropriação, o deslocamento, o pastiche, a performance, a arte pública e a afronta aos museus e aos salões de arte: tudo isso que as artes europeias e norteamericanas modernas e contemporâneas assumiram como “novidade” podem ser observadas nas artes orientais e não europeias há séculos. Se essas questões fizeram com que se reconstituíssem os marcos teóricos da arte, elas não foram pensadas como contribuições extra-ocidentais e transversais para a teoria e a historiografia da arte, perpetuando um ciclo endogenético há muito estabelecido, mas que não se sustenta na implosão de fronteiras proporcionada pela própria arte. Somente uma visão hegemônica renitentemente etnocentrista, aliada à ignorância pura e simples e ao monolinguísmo de muitos especialistas pode explicar o fato de que a arte europeia e sua historiografia, se comparadas às muitas formas de artes da Ásia, da África, da Oceania e da América Latina, atingiram tardiamente o estatuto da modernidade, inclusive no sentido que Charles Baudelaire (1821-1867) deu ao termo. Mas o fato é que a história geral da arte continua sendo contada por europeus, enquanto que o trabalho de historiadores da arte de outras plagas permanece como uma órbita periférica confinada nos departamentos de estudos orientais, ou de estudos culturais, ou de estudos visuais tanto das universidades europeias quanto das norte-americanas, das brasileiras e das japonesas. Pior do que identificar e admitir a sanha autocentralizadora do colonizador, é reproduzir acriticamente seu discurso, aplicando-o indiscriminadamente às formas de artes de quaisquer culturas. Na historiografia moderna e contemporânea da arte ainda não houve uma revolução similar à da Escola dos Annales e, muito menos, algo parecido com as revoluções estéticas orientais ou das artes modernas e contemporâneas. Nessa perspectiva, é necessário afirmar que o “fim da história da arte” (Hans Belting, 2006; Arthur Danto, 2003) e a “superação da estética” (Peter Osborne, 2010), 138 supostamente perpetradas pelas artes contemporâneas, são visões de crise da arte euro-norte-americana a partir do contexto cultural do final do século XX, mas não são necessariamente crises das artes de outras latitudes. A arte, como todo e qualquer fato humano, é rara e avessa a generalizações excludentes. A favor do diálogo imprescindível à constituição do conhecimento em termos acadêmicos, devemos dizer que há, sim, princípios e perspectivas da história da arte ocidental que podem servir de instrumentos para percepções e concepções de arte mais amplas e dialógicas. Porém, na mesma medida e com a mesma ousadia e desfaçatez, devemos expor e defender as imprescindíveis contribuições da arte oriental para a compreensão alargada e multifacetada de seres humanos e de mundos. Em síntese, a questão reside no fato de que a percepção aberta do espaço da constituição cultural do Outro nos leva por caminhos complexos e paradoxais de espelhamentos e estranhamentos. Mas não temos outra alternativa, se o que nos move é o respeito sincero pela humanidade. Referências BELTING, Hans. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 2010. DANTO, Arthur C. Después del fin del arte: el arte contemporâneo y el linde de la historia. Buenos Aires: Paidós, 2003. FENOLLOSA, Ernest F. Epochs of Chinese and Japanese art. New York: ICG Muse Inc., 2000. MENEZES, Philadelpho. A crise do passado: modernidade, vanguarda, metamodernidade. São Paulo: Experimento, 2001. OKAKURA, Kakuzo. O livro do chá. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993. OSBORNE, Peter. El arte más allá de la estética: ensayos filosóficos sobre arte contemporâneo. Murcia: Cendeac, 2010. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. SHIGEMI, Inaga. A história da arte é globalizada? Um comentário crítico de um ponto de vista do extremo Oriente. In: GREINER, Christine e SOUZA, Marco (orgs.). Imagens do Japão: pesquisas, intervenções, poéticas, provocações. São Paulo: Annablume, 2011. VEYNE, Paul. Como se escreve a história; Foulcault revoluciona a história. Brasília: Editora UNB, 2008. 139 Afonso Medeiros É professor associado de Estética, Teoria e História da Arte da Faculdade de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Atualmente, é presidente da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e coordenador do PPGArtes da UFPA. 140 O VAZIO NA ARTE ZEN-BUDISTA Fernando Carlos Chamas - USP RESUMO: A história do Japão é marcada por dois períodos de isolacionismo. A introdução do Zen no Japão, século XII, coincidiu com o segundo período. No seu primeiro, durante o período Heian (794-1185), os artistas japoneses puderam explorar a visão nativa sobre sua arte, que reagia contra as influencias do continente, mas fortemente influenciada pelo budismo esotérico financiado pela aristocracia e seus valores. No segundo, a difusão do Zen e da sua arte se voltam para os valores dos xogunatos. Em meio às dificuldades dos seus períodos iniciais de guerras civis, os artistas japoneses buscaram valores estéticos opostos aos exageros iniciais da arte budista, e se empenharam em valores existenciais tanto Zen quanto nativos, assim gerando uma arte e influenciando outras não exclusivamente do Zen. Mesmo assim, normalmente estas artes são geralmente e popularmente reconhecidas no ocidente como Visão Estética do Zen. Palavras-chave: ensō; artes-plásticas; Budismo; Japão. ABSTRACT: Japan's history is marked by two periods of isolationism. The introduction of Zen in Japan, 12th century, coincided with second period. On your first, during the Heian period (794-1185), Japanese artists were able to explore the vision about their native art, that reacted against the influences of the continent, but they were heavily influenced by esoteric Buddhism supported by the aristocracy and its values. In the second isolationism, the spread of Zen and its art turn to the values of shogunates. Amid the difficulties of initial periods with civil wars, Japanese artists looked for aesthetic values opposite to the early exaggerations of Buddhist art and themselves engaged in a search by existential values both Zen as native, thus generating an art and influencing others not exclusively of Zen. Even so, usually these arts are recognized generally and popularly in the West like Zen Aesthetic Vision. Keywords: ensō; plastic arts; Buddhism; Japan Entre os objetos que podem ser vistos com os olhos há os que existem e os que não existem no mundo real. Quando o objeto existe, ocorre chamarmos de “realismo” (o adjetivo/qualificativo é realiste) esse “desenho ao natural”, ou de “descrição objetiva”. Mesmo podendo ver com os olhos um objeto que é um produto da força da imaginação ou da alucinação visual ou do sonho, quando ele não existe no mundo real, considera-se esse desenho como surreéalisme. [...]. Vê-las como um espetáculo existencial (realismo) ou como uma “imagem” da fantasia (surrealismo) depende de o apreciador acreditar ou não em Buda. (KATŌ, 2012, p.227) 1. Introdução Notando a imagem tipicamente do Zen colocada no site deste evento, um círculo feito com um pincel à nanquim, não poderia ignorar o momento de discuti-la como um dos momentos marcantes da expressão visual Zen japonesa. É um 141 desenho que obviamente me apareceu durante minha pesquisa sobre a arte budista, por referência ao seu ensinamento mais difícil, o Vazio, que no mestrado ainda não era o momento de discuti-la, seja pela história do Zen seja pela discussão realismo x surrealismo pela leitura visual oriental. Segui o mesmo ritmo de compreensão, das origens da história da arte budista e dos próprios ensinamentos do Buda histórico, Siddharta Gautama. O significado desses ensinamentos atingiu, na arte, um veio de abstração, expressionismo e simplicidade. Agora sim posso dar continuidade ao estudo e mesmo compreender a reviravolta da arte budista para a arte Zen, ainda que insistente sobre o Vazio. Sobretudo se o Zen pode ser tomado como um resultado arquetípico oriental e também para todos os que buscam este tipo de pureza enquanto forma de expressão, nesse caso, então, não sendo uma exclusividade do Zen. É a arte que domina o estilo Zen, e não ao contrário. Não é difícil deduzir que a arte budista atingiria altos graus de abstração, simplesmente por acreditar ou não em Buda. Talvez isso seja uma verdade para a história da arte religiosa, e que, neste caso, também tem seu viés anti-iconográfico. Ninguém poderá afirmar que Buda era contra a arte. Segundo a lenda, ele apenas disse que não queria ser retratado para ser adorado como imagem. Mesmo que ele não tivesse dito nada sobre isso, não é difícil nem fantasioso deduzir que pensasse assim, como um verdadeiro mestre, acredito. Seu ensinamento sobre a ilusão da realidade material e da personalidade é fundamental, e isso obviamente incluía o seu corpo físico que envelheceu e morreu doente como homem comum. Se seu poder espiritual pudesse manter o seu corpo saudável e jovem até os dias de hoje, nenhum mestre se atreveria a fomentar tal apego ao corpo, sobretudo numa época de reis que buscavam a longevidade. Depois de muita insistência, Buda parece ter permitido o seu retrato, por reconhecer essa necessidade visual humana e também porque seria inevitável, como arte ou religião. Mesmo porque seu modo de ensinar foi poético e se utilizava de imagens simples. No Sutra de Lótus Buda afirma que sua verdade é insondável. Para isso utilizou várias histórias com relações causais, o poder imagético das parábolas, o que futuramente originará kōan(s) 1 e haicais. Mas o Corpo de um Buda teria implicações artísticas complexas e sur (reais). Enquanto os restos mortais do seu corpo físico seriam disputados para serem guardados como relíquias em pagodes, seu corpo espiritual é tido, sumariamente, como a própria manifestação do Dharma, a Lei cósmica, onde a verdade do Vazio é a natureza de 142 Buda. Assim, a arte de fazer imagens de Buda tomou dimensões expressivas multiculturais até o extremo oriente, de modo que se pode dizer que a imagem de Buda teve uma bem sucedida adaptação étnica, “tornou-se amarela”, e que o Japão possui uma população de imagens budistas e algumas cidades com mais templos que habitações comuns. Num primeiro momento, o budismo dominou a arte, mas depois é a arte japonesa que dominará seus princípios no momento da repercussão Zen. 2. O Zen-Budismo Seguir os mesmo passos da arte budista para sua compreensão significa também que, do ponto de vista histórico japonês, podemos destacar três fazes de influência do budismo ao considerar o tempo de vida de Buda, seus ensinamentos, e o tempo que as formas de budismo levavam para chegar ao Japão. Devemos sempre lembrar que o budismo demorou mil anos para chegar ao Japão e atravessou meio mundo através de monges e traduções - dos sutras que estavam sendo ainda escritos - do sânscrito para o chinês e desse ou do sânscrito para o japonês. Houve sim também um grande interesse político chinês, coreano e japonês onde a mensagem visual, como em outras civilizações, teve um papel fundamental, o que a iconografia budista tinha de sobra. Podemos destacar três ondas dessa arte e suas influências baseadas na época de um ensinamento específico durante o tempo de vida de Buda e no tempo de difusão das mesmas até o Japão que, pela distância da Índia e em dez séculos, não chegaram concomitantemente. Há uma primeira fase de intensa atividade missionária tendo a arte como um dos seus principais métodos de propagação, antes de qualquer monge e qualquer sutra, estimulando ainda mais a mística ao redor de Buda pela força presencial da escultura. Essa faceta mística, em parte vinha da Índia, e depois se somando aos xamanismos locais. Depois, a arte advinda dos ensinamentos sobre reencarnação e paraíso, respectivamente sobre a Roda da Vida (Samsara) e Terra Pura. E no fim da vida humana de Buda, uma terceira fase da arte baseada no ensinamento primordial, que não podia ser dito pela suposta lógica das palavras, o Zen. Ao seu tempo, essas influências chegavam ao Japão, da mesma forma causando três tipos de reação que aconteceram entre os séculos V ao VII, do VII ao X e por volta do XIII. 143 O Japão foi inundado não só por imagens diretamente ligadas a Buda, mas também por toda a mitologia hindu e chinesa, que pelo ponto de vista budista, converteu-se ao budismo e decidiu proteger os Budas, os budistas e os ensinamentos, que são as três joias do budismo. Foram recebidos cautelosamente como deuses estrangeiros que poderiam ou não entrar em conflito com os deuses nativos, os Kami, do xintoísmo. Isso de deu entre os séculos V ao VII. Mas os japoneses receberiam um impacto maior e para sempre marcante em suas vidas. A ideia da vida após a morte e seus paraísos e infernos. Seus deuses2 também poderiam estar presos à Samsara, e o karma decidiria para onde a alma iria após a morte, não retornando à natureza como um Kami ou qualquer outra energia, mas em algum mundo de sofrimento que só poderia ser superado ou pela Iluminação, aparentemente impossível, ou pela crença mais acessível em outros Budas que construíram Terras Puras (os paraísos budistas) para todos aqueles que cressem nele e desejassem buscar a Iluminação sem os sofrimentos diversos das reencarnações. Isso se deu entre os séculos VII ao X. Isto teve uma rica concepção inicial altamente aristocrática na construção de palácios, templos e jardins, mas depois mais popular e baseada na devoção. O terceiro impacto, porém, relativizou completamente todos os exageros anteriores em relação ao budismo e sua arte, apresentando-se sem nenhuma pretensão de se tornar uma religião, ainda que com linhagens concretas. Mesmo se tornando uma grande influência e formando muitos monges e três escolas que existem até hoje (Rinzai, Soto e Obaku), há uma resistência oriental e ocidental de colocar-lhe um ~ismo, ou mesmo reduzi-lo a uma religião ou filosofia pelos moldes científicos ocidentais. Não existe “zen-ismo”, e talvez seja mais bem entendido como “disciplina” no oriente, e uma “ciência da mente” pelo ocidente. É o ser humano colocado em sua mais simples e original posição em relação à natureza, um ser da natureza com a singularidade de, neste mundo humano, pensar, criar e poder atingir a Iluminação. A criação artística foi tanto um meio de salvação quanto uma nostalgia pelo mundo de beleza criado pela aristocracia que refinado aos seus ideais principais serviriam também à refinação da alma. Sem dúvida, essa profunda relação com a natureza foi muito bem vista pela tradição japonesa, repleta de lugares sagrados, e numa época de classes, 144 teoricamente reduzindo todos a um denominador comum de simplicidade, serenidade e relativização da vida sem um monoteísmo. Os ensinamentos budistas são revistos e desmistificados. Um sincretismo anterior entre Budas e kami(s) antes do Zen, não foi uma solução teológica tão agradável como seria a proposta da arte Zen, onde os Budas se dissolviam na harmonia da natureza. Primeiramente, o Zen adotou as técnicas da pintura à nanquim, ainda que seus princípios influenciassem outras artes. Isso se deu por volta do século XIII. Esta terceira reação japonesa ainda pode ser vista como uma única reação ao Zen, já que este se difundiu sob uma perspectiva original do Budismo, mas ainda sim baseada em atingir o estado de Buda, sendo quase redundante o uso do termo Zen-Budismo, mas muito mais adequado do que zenísmo. 3. O interesse pelo Zen Enquanto o budismo mais esotérico foi de interesse mais dos monges e dos serviços desses à aristocracia, o Zen gerou um interesse mais amplo, não menos severo. Os ideais iniciais de compaixão ao qual o budismo da corrente mahayana se gabava em relação ao budismo não esotérico, o theravada, são revistos na prática em épocas difíceis. Historicamente, seu interesse cresceu numa época em que a aristocracia estava enfraquecida com a ascensão dos governos militares, os xogunatos, que também se interessaram pelo Zen, seja para criar uma cultura diferente daquela da aristocracia, seja para criar momentos de sentido da vida em meio às guerras e à pobreza geral. Podiam se dedicar ao arranjo floral (ikebana), aos jardins de pedra e à cerimônia do chá (chadō), por exemplos, com o objetivo de contemplar a natureza, o que exigia uma disciplina que se adequava aos ideais dos samurais. Estas artes, então praticadas como disciplinas, são associações muito posteriores à origem do Zen, praticamente independentes de qualquer religião e podem também serem mais bem compreendidas se vistas apenas como arte. Dizendo ao contrário, dizer que aquelas artes levam à Iluminação objetivada pelo Zen é uma associação posterior e desnecessária, mesmo porque incita uma hegemonia religiosa sobre a arte, para o Zen um capricho inaceitável. Nesse começo, as artes ditas Zen podem ser aquelas realizadas por monges de mosteiros Zen e por aqueles que viram em algumas artes mais tradicionais um fundamento 145 Zen e a necessidade de produzir nesse sentido, da mesma forma que acontece hoje. Com o tempo e com essa própria empatia profunda com o modo mais tradicional de vida japonesa, o caráter Zen também foi se estabelecendo como uma forma de expressão e consequentemente uma forma de arte que pode ser chamada de artezen e algo como um estereótipo oriental, senão, um patrimônio humano. Por hora, me limito a mostrar a expressão Zen apenas no círculo à nanquim. Ele engloba todos os elementos que outras artes ditas nascidas do espírito Zen possuem por significar, a princípio, entrega do artista ao fenômeno criativo. Às vezes prefiro colocar a palavra “zen” com inicial minúscula na falta de uma palavra adjetiva que exprima um interesse inclusive ocidental que não é especificamente pela tradição Zen. Por um conjunto de motivos subjetivos, a evolução, difusão e popularização de um estereótipo Zen dos gostos orientais, japoneses e minimalistas podem constituir uma teoria estética chamada de designzen. A citação inicial do pesquisador Katō Shūichi coloca a nativa impressão japonesa da realidade que, sob forte influência budista e visão nativa, difere um pouco da descrição objetiva da realidade. Tende ao romantismo, ao subjetivismo e à fuga da realidade. O sentido de energia deve estar desarmado. O budismo insiste em que o mundo visível é mera aparência e só se torna importante quando percebemos que através dele se expressa a verdade eterna do Vazio. Esse é criativo, pois tudo vem do nada. Para o ocidente, vazio e nada parecem negativos, mas está mais próximo de uma natureza incompreensível. Se tudo é nada, o refinamento da subjetividade é fundamental. A importância da subjetividade artística culturalmente arraigada parece realmente estar acima de qualquer crença além das soluções harmoniosas às questões práticas do dia-a-dia e da inevitável realidade das necessidades humanas. [...], o intelecto oriental atribui uma importância particular ao fator subjetivo e, de modo especial, à primeira impressão intuitiva ou à disposição psíquica. Esse fato é sublinhado pela frase: ‘Todas as manifestações são, na realidade, nossas próprias representações, surgidas espontaneamente no espírito’. (JUNG, 1986, p. 40). Surge a pintura “realista” de paisagens e retratos de mestres ao lado da pintura com o mínimo de traços essenciais à nanquim, o suiboku. Há paisagens 146 bastante realistas até com objetivos topográficos dos donos de terras, mas tendem a ser subjetivas no sentido de perspectivas panorâmicas muito amplas, se possível do alto da mais alta montanha, com imagens de rochas, árvores, habitações e pessoas minúsculas, nessa graduação quase atingindo o imperceptível. A composição geral dá ênfase ao espaço vazio, comumente percebido como o céu e “até sob os pés”. Os estados da água em nuvens e névoas fazem as imagens mais detalhadas irem se dissolvendo num vazio, ou se materializando a partir dele, o que se pode pensar que é o desejo romântico em retratar a efemeridade. A representação da neblina da manhã ou do entardecer encobrindo uma floresta torna-se peculiaridade da diluição do nanquim e exige um grande domínio do artista, dando-lhe notoriedade. Pela capacidade de captar a impressão de um momento, o nanquim serviu a um impressionismo oriental e foi mais além no estudo da luz, sombra e cores. Dentro da tradição oriental, retratar a natureza é retratar lugares sagrados. No Japão, o cuidado com a natureza sempre teve dimensões religiosas nativas, e é difícil, mesmo hoje no Japão, não sentir o verdadeiro sentido de lugar sagrado. A natureza não é algo separado do homem e não está lá para ser dominada, mas para que o homem tenha consciência de sua relação com a natureza e se entregue ao domínio criativo, segundo a retórica Zen da Iluminação. O círculo é um modo como essa perfeita relação se manifesta no campo das artes Zen. Essa tal perfeição também foi sincretizada pelo ideal de perfeição japonês. A partir de obras pode-se afirmar que as pinturas chinesas iniciais de paisagens, que influenciaram o Japão, ao mesmo tempo em que a influência Zen acontecia, são bastante realistas. A cultura japonesa, no século XIII, que absorvia a cultura continental, se isolou, como no século IX, e reinterpretou o perfeccionismo chinês, valorizando aspectos rústicos enquanto imperfeições desejáveis de qualquer processo artístico, pois é assim que viam a natureza, perfeita com sua constante inconstância. É um estilo querido como wabi-sabi (fGÄ “quietude-simplicidade”), resumidamente sendo um estilo que “nega a perfeição”, fukinsei (L¥č), ou é a perfeição da assimetria, da irregularidade, da impermanência. Esse estilo também atinge a representação do ser humano de forma caricatural, contra a relação de perfeição simétrica-espiritual das estátuas budistas esotéricas. 147 Não obstante a influência Greco-romana para as primeiras esculturas budistas na Índia e do próprio naturalismo indiano, os artistas orientais tenderam para outros ideais de beleza, não menos abstratos ou perfeccionistas, mas com a complexidade cultural da crença em energias corporais, principalmente do hinduísmo e do taoismo. Na arte Zen isso continua de modo caricatural, mesmo porque se afasta de um ideal aristocrático de perfeição, e o homem possui uma aura de plenitude e pureza, numa taberna, entre o povo, ou numa floresta, isolado, mas isto sé dá só depois que o “círculo acontece”. Há dois tipos básicos de representação dos seres humanos na arte Zen. Em um, os seres humanos aparecem pequenos como frágeis formigas diante de uma natureza imensurável. Não há como saber se eles já são sábios ou sábios o bastante para reconhecerem sua impressionante pequenez pensante. Noutro tipo, o sábio é visto mais de perto e subjetivamente mostra sua grandiosidade simplicidade contemplativa em meio a natureza, ainda pegando ou não emprestado alguma simbologia budista de forma caricatural. O limite entre o exprimível e o inexprimível é dado pelo traço tênue de nanquim, mais ou menos diluído para os (e pelos) espaços vazios que “definem” o desenho ou expressam o Vazio da realidade, como que se desmaterializando as formas, não a arte. Não vejo como a não-arte ou a não-expressão, a não ser sob o caro conceito oriental da não-ação, em resumo, a ação que independe do ego. O Vazio da realidade é uma concepção budista, sunyata, cada vez mais atual na própria ciência, e me interessa citá-la. Visto que na cultura japonesa a ciência faz parte da sua cultura, a verdade científica do Vazio da matéria terá consequencias mais profundas. Enquanto os budistas, especialmente os tibetanos, dizem que toda a realidade material percebida é vazia, e é a ilusão da mente que nos engana, a ciência está chegando a conclusões surpreendentes. Não se trata se a matéria existe ou não. Ela existe quando se observa, mas é, essencialmente, uma manifestação de ondas de subpartículas ilocalizáveis. As subpartículas que formam os átomos surgem e somem a uma velocidade superior a da luz e, na verdade, somos apenas uma aparição aparentemente estável, somente mantida pela ilusão mental. É o vazio altamente criativo da visualidade. 148 Para o Zen, porém, estas ideias nunca foram teóricas, pois há um meio de se vislumbrar essa realidade vazia pela a Iluminação ou despertar espiritual (sânsc.: budh; jap.: satori). A Iluminação muda o observador dessa realidade. O Zen tem muito da atitude mental do budismo tibetano, sobretudo no que diz respeito ao sono e ao sonho. Um Iluminado é aquele que desperta e percebe que todos os outros estão dormindo e completamente imersos nos seus sonhos e pesadelos que são suas realidades. O mestre nos fala enquanto dormimos, nos orientando a controlar o ego e seus desejos para que não soframos tanto e acordemos. Não há outro modo de ensinar além de criar imagens com relações causais inteligíveis ao intelecto adormecido. Considero essa pequena explicação necessária para complementar as explicações a seguir. Finalmente voltando a um dos desenhos clássicos do Zen, o ensō é o círculo. Ele pode significar muitas coisas, só pelo fato de ser um círculo, um arquétipo primordial, assim como uma mandala, outro tema complexo neste momento irrealizável. Sua extrema “simplicidade” pode ser mais bem compreendida dentro de um contexto, um pequeno conjunto de ilustrações didáticas que mostram o caminho da Iluminação. Não colocarei aqui as dez ilustrações originais com suas notas. Nas ilustrações 1 a 6 há um homem que percebe que há um caminho para a compreensão da existência na qual ele se inclui e que os passos iniciais implicam na domesticação do Ego representado por um boi selvagem. Assim que o boi é completamente amansado, o homem monta nele e volta para sua casa. O sol, ou a lua que ele parece observar, já se parece com o ensō. Para Nietzsche, sem dúvida representaria o Eterno Retorno (ewig wiederkehren, em jap.: eigōkaiki 偝Ý), os ciclos repetitivos da vida que nos fazem estar sempre presos a um número limitado de fatos, o que realmente convém à concepção cíclica do tempo no oriente de uma forma muito menos dramática do que dentro da filosofia ocidental. O ensō ({ţ) aqui representa um passo da experiência da transformação da visão e a total compreensão de que o Vazio da realidade é a natureza de Buda. Este desenho expressa o momento da iluminação, o instante do não-tempo, o aqui do não-espaço, o nada do todo. Este comentário sobre o ensō é pessoal, e não exclui 149 outros comentários mais poéticos, que partem de uma experiência do não-pensar, da não-ação, o mesmo paradoxo em que um kōan (“enigma Zen”) nos coloca. (1) Três ilustrações do caminho Zen. Os mestres Zen discutem o desenvolvimento de seus estudantes com ilustrações do pensamento Zen. Estas três ilustrações 7-8-9, de dez no total, se referem, respectivamente, 7. ao fim da visão dualista; 8. à experiência do vazio essencial de todas as coisas e 9. Voltando à Fonte: “Se se pensar que o oitavo estágio é um aspecto estático da Verdade absoluta, poder-se-á dizer que o nono estágio traz uma nova apreciação dinâmica do mundo. A natureza não é meramente vazia ou sagrada, ela é. Se visto claramente, qualquer aspecto do mundo pode servir como um perfeito espelho para nos mostrar a nós mesmos” (FADIMAN, 1979, pp. 300-2). Esse círculo bem representa uma das primeiras manifestações da caligrafia desenvolvida por monges Zen para mostrar o estado puro da mente do calígrafo e uma ação física e artística espontânea: Bokuseki («ƿ: traços à nanquim), também conhecido como estilo zenga ( ū Ş : “traços Zen”). Existem ensō(s) de muitos mestres Zen. 150 São numerosos os trabalhos extraordinários de caligrafia dos monges Zen, e, entre eles, há mesmo aqueles que podem ser vistos como pinturas abstratas de nanquim. Os chineses estimavam as obras sho [escrita] dos calígrafos, e não colocavam as caligrafias bokuseki dos monges Zen acima delas, mas a maioria da caligrafia chinesa que o Japão importou era bokuseki. Esse fato mostra real e vividamente certa tendência comum dos artistas japoneses, na pintura e na caligrafia. (KATŌ, 2012, p. 229). O traço do círculo começa forte e denso como a imagem da ilustração anterior, e termina fino como a imagem mais abstrata ao estilo incorrigível do nanquim. Ele vai se esvaindo ao mesmo tempo em que o pincel vai lentamente se levantando sem tocar no início do traço. Na prática manual, é realmente um desafio fazer o mesmo com a mesma “perfeição rústica”, como se fosse um rascunho, e mesma sincronia entre tempo e pressão do pincel sobre a base. Há ensō com dois traços. O círculo também pode parecer fechado. Sobre isso pode haver uma concepção pessoal do espaço aberto ou fechado, ainda que limitado, semelhante ao simbolismo do pote vazio: este representa a personalidade que, quando se quebra, percebe-se que não havia diferença entre o dentro e o fora. Outra observação necessária: este círculo não é um ideograma e não representa uma palavra, embora lhe associemos a um conceito abstrato. É realizado num momento de fluxo livre do espírito do mestre, de não ação. Se o artista insistir em fazer o que fez ontem, nada consegue. Por quê? Por que ao insistir, o artista já está obstruindo o fluxo livre do espírito. [...] Rapidamente, as profundezas e as alturas surgem, tudo bem expresso pelo uso do pincel, e a disposição dos objetos também é perfeita, até melhor que o cenário real. Isso ocorre porque a ideia suprema [do universo] foi expressa ali (TSUNG-CH’IEN, Shen. De Chieh-chou Hsüeh Hua P’ien). In (YUTANG, 1967, p. 2004.). A natureza ou o mundo natural e seu poder são representados até que acontece a experiência da Iluminação. Depois o Vazio, e depois a natureza continua como era antes. O observador mudou. Uma vez que essa “experiência” é individual, incompreensível e inexprimível, resta-nos desbravar sua expressão plástica que aponta para aquela experiência individual. Como é andar desperto entre pessoas que não sabem que estão sonhando? Isso foi tema do filme A Origem, a seu modo cinematográfico americano e invasivo, mas antes significa um “potencial criativo ilimitado”, quando um mestre, sem ego, pode realmente manipular a realidade das imagens visualizadas pelos ainda “não-despertos”, ou mesmo a atenção que se lhes dá, de forma individual ou coletiva. 151 A natureza, enquanto cenário mais primitivo da mente, não poderia de deixar de ser o modelo inicial da pintura Zen. Semelhante ao princípio taoísta inicial de que o Céu é dotado de senso moral, a contemplação da natureza é o exercício que traz o sentimento mais próximo de um princípio moral quando a consciência despertou no ser humano. E ela é clara e calmante, oposta à escuridão e ao medo. Deste modo, o Zen promove a observação da natureza e a encontrar nisso o prazer de se deixar levar a um estado mais consciente, meditativo e criativo. O afastamento do mundo e a renúncia aos prazeres associados à vida terrena não deve ser uma “via de fuga da realidade”, embora se observe, atualmente, um tom pejorativo de alienação e passividade doentia, mesmo para o sentido de “vazio”. Longe disso, na última ilustração da mesma série acima, o Iluminado volta ao mundo. (2) Entrando na praça do mercado com mãos serviçais. “Este é o estágio final, o estágio do 3 bodhisattva que está livre para se associar com todos os outros seres e ajudá-los sem limitações. O mercado se refere ao mundo secular, em contraste com o mundo solitário do templo Zen ou retiro de contemplação. Ele quer compartilhar de todos os divertimentos e atividades do mundo, não por desejos ou ligações pessoais, mas a fim de ensinar os outros. “O portão de sua casinha está fechado e mesmo os mais sábios não podem encontrá-lo”. Seu panorama mental desapareceu por fim. Segue o seu próprio caminho não tentando seguir os passos de antigos sábios. Carregando uma cabaça (de vinho), passeia pelo mercado; apoiado em seu bordão, volta para a casa. Ele guia os estalajadeiros e peixeiros no caminho de Buda”. O mestre Zen, que “sabe” que tudo é Buda, pode agora voltar às atividade dos estágios iniciais com uma perspectiva diferente. (FADIMAN, 1979, p. 303) Esta imagem é o estereótipo popular do homem-zen, calmo, sossegado, sem crise. Não vale a pena sofrer. Enquanto arquétipo, não é coisa desconhecida no ocidente, lembrando dois exemplos: o “bom selvagem” de Jean-Jacques Rousseau a Alberto Caeiro de Fernando Pessoa. As características da poesia de Caeiro servem de exemplo clássico ao panorama Zen ocidental, ainda que as convenções sociais sejam repudiadas. O “guardador de rebanhos” é antimetafísico, nunca 152 introspectivo e rendido à ordem natural das coisas cujo único sentido é existir, e Deus está apenas nessa simplicidade. Aproximando-se do cristianismo, há muito da controversa entrega à “não-ação” em Mateus 6: 26-29: “Olhai para as aves do céu, [...]. Olhai para os lírios do campo...[...]”. Como na arte, é uma opção resumirmos esta sensação como sendo Zen, não obstante com raízes largas no oriente. Os sábios do Tao e do Zen [...] eram verdadeiros artistas da vida, e o Tao é a arte de viver, a arte do wu wei, da ação através da não-ação. A pessoa é o artista, seus instrumentos, ou seja a tela, o pincel, tom e a espátula são seu corpo, seus sentidos e seus sentimentos. A vida com as suas ações é a arte executada e deixar acontecer as coisas torna-se a obra. (FISCHER, 1999, p. 117) Na pintura abaixo, o título da obra poderia ser apenas “mestre dormindo”, mas a chamaria de também de ensō. O ser humano, enfim, é um ensō, dormindo, Desperto (Iluminado), talvez sonhando... (3) Zhuangzi sonhando que era uma borboleta (Ɣ–¯Ɲ). Data e autor desconhecidos. Ou “Uma 4 borboleta sonhando que era Zhuangzi”, segundo Thomas Cleary. 4. Observações finais Tomando os princípios do Zen como meios para uma interpretação inicial das artes tradicionais do Japão, considera-se que suas concepções podem se expressar de várias formas com diferentes meios diretamente ou não ligados ao Zen. Aqui, por exemplo, apenas se focou o ensō na pintura à nanquim valorizada pelo Zen em traços essenciais, simples e espontâneos. Transpõe-se um valor já dado à caligrafia para a caricatura humana e à abstração sob a concepção de Vazio da realidade. Deve ficar claro que embora o Zen possa até ser proprietária original de alguns princípios artísticos, a importância japonesa dada ao sentido do Vazio, ajuda a 153 compreender o Zen, sua arte no Japão e algumas de suas peculiaridades em várias artes. Notas 1 Kōan é uma palavra ou frase que desafia a lógica e condicionamentos adquiridos por hábitos mentais repetitivos. Estes hábitos foram, num primeiro momento, importantes para a adaptabilidade e sobrevivência, mas também pesa no processo da imaginação e no inconsciente individual e coletivo. Os kōan devem quebrar uma forma habitual de pensar e permitir a soltura da mente para estados mais sutis e não objetivando em si a resposta ou a solução para o kōan. Os sagrados ensinamentos e a poesia são um. 2 Normalmente se evita misturar os deuses do hinduísmo com os deuses do xintoísmo, e que só aqueles estariam presos à Samsara. Embora se igualem como deuses de temperamento humano, para as aristocracias asiáticas, descendentes dos seus deuses, foi mais adequado vê-los como Budas ou simplesmente ignorar qualquer discussão teológica sobre isso. 3 Bodhisattva em sânscrito (bosatsu, em japonês) significa “corpo iluminado pela compaixão absoluta”. Na hierarquia budista, é um estágio anterior à iluminação para então ser um Buda. Popularmente, há este tipo de representação extremamente simplória com uma grande barriga e com uma cabaça de vinho dependurada nos ombros. 4 Thomas Cleary (nascido em 1949) é um prolífico autor e tradutor de clássicos budistas, taoístas, confucionistas e muçulmanos, e da Arte Chinesa. Ele vive em Oakland, Califórnia, Estados Unidos. Referências Bibliográficas Livro Katō, Shuichi. Tempo e Espaço na Cultura Japonesa. Trad. Neide Nagae e Fernando Chamas. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Religião Oriental. São Paulo: Licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editora Vozes da Obra Oestliche Religion, a segunda parte de Zur Psychologie estlicher und östlicher religion de 1963.Trad. Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, O.S.B. Petrópolis: Vozes, 1986. YUTANG, Lin. The Chinese Theory of Art. Nova York: G. P. Putnam’s Sons, 1967. FISCHER, Theo. Wu Wei, A Arte de viver o Tao. Trad. Ulrike Pfeiffer. São Paulo: Árvore da Terra, 1999. FADIMAN, James e FRAGER, Robert. Teorias da Personalidade. Coord. Da trad. Odette de Godoy Pinheiro. Trad. Camila Pedral Sampaio, Sybil Sofdié. Parte II: Introdução às Teorias Orientais da Personalidade: Zen-budismo, pp. 286-315. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1979. Dissertação CHAMAS, Fernando Carlos. A Escultura Budista Japonesa. A Arte da Iluminação, Tomos I e II. Orientação da Profa. Dra. Madalena Hashimoto Cordaro. Dissertação de Mestrado no Programa em Língua, Literatura e Cultura Japonesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8157/tde-09112007-150941/>. Acesso em: 24 jan. 2014. Imagens (1-2) (FADIMAN, 1979, pp. 300-3). (3) Zhuangzi sonhando que era uma borboleta (Ɣ–¯Ɲ). 154 Ficheiro: Zhuangzi-Butterfly-Dream.jpg. Altura: 296 pixels. Largura: 384 pixels, tamanho: 42 kB, tipo MIME: image/jpeg. 96 dpi. 24 BIT. Compactado. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Zhuangzi-Butterfly-Dream.jpg>. Acesso em: 30 jan. 2014. Fernando Carlos Chamas Graduação em Letras e Mestrado em Escultura Budista Japonesa no Programa de Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela FFLCH-USP, com a orientação da Profa. Dra. Madalena Hashimoto, e Doutorando em Arte Zen-Budista no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais pela ECA-USP, com a orientação do Prof. Dr. Marco Giannotti. 155 MEMÓRIA CULTURAL NA GÊNESE DA ARTE ISLÂMICA Katia Maria Paim Pozzer - UFRGS RESUMO: A presente comunicação tem por objetivo discutir a transmissão da memória cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições mesopotâmicas na região do Oriente Próximo, delimitada aos seus principais componentes arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, englobando os seus componentes formais e iconográficos. Partimos do pressuposto de que a arte islâmica está enraizada em tradições culturais que remontam à babilônios e assírios e que estes fatores renovam-se e permanecem ativos como princípios desta arte. O estudo da transmissão das informações estéticas por meio de conexões culturais de longo curso fundado por Aby Warburg vê que a transmissão de elementos de intensidade expressiva, juntamente com a linguagem das supertições, da estética, das convicções e da dinâmica cultural, conformam o fundo literário, artístico e religioso de cada cultura e de como isso é vivido em um dado ambiente cultural. É a partir desta concepção que iremos empreender a análise das formas da arte e da arquitetura islâmica no ambiente do Oriente Próximo, isto é, de uma história da memória cultural da região. Palavras-chave: História da Arte Oriental, Arte Islâmica, Arte do Oriente Próximo, Memória Cultural. RÉSUMÉE: Cette communication vise à discuter la transmission de la mémoire culturelle dans la genèse et le développement de l'art islamique, en vue des traditions mésopotamiennes dans la région du Proche-Orient, bordé de ses principaux éléments architecturaux: mosquée, madrasa et palais, englobant leur composantes formelles et iconographiques. Nous supposons que l'art islamique est enracinée dans les traditions culturelles remontant aux Babyloniens et les Assyriens, et que ces facteurs sont renouvelés et restent comme principes actifs de cet art. L'étude de la transmission de l'information esthétique par des liens culturels fondées sur de longues distances par Aby Warburg voit que la transmission des éléments d'intensité expressive, avec le langage de superstitions, de l'esthétique, de la croyance et de la dynamique culturelle, forment le fond littéraire, artistique et religieux de chaque culture et comment elle est vécue dans un environnement culturel particulier. C'est à partir de ce concept que nous allons entreprendre l'analyse des formes de l'art et de l'architecture dans l'environnement islamique du Proche-Orient, c'est à dire, une histoire de la mémoire culturelle de la région. Mots-clés: Histoire de l'Art Oriental, Art Islamique, Art du Proche Orient, Mémoire Culturelle. A presente comunicação visa apresentar as linhas gerais do projeto de pesquisa em fase inicial e que tem por objetivo investigar a transmissão da memória cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições mesopotâmicas na região do Oriente Próximo. A temática proposta é fruto de nossa formação em História Antiga Oriental e das últimas pesquisas que vimos realizando no campo da história da arte oriental, a saber, da relação entre a guerra e a religião 156 nos relevos parietais assírios (séculos VII-VI AEC). Partimos do pressuposto de que a arte islâmica está enraizada em tradições culturais que remontam à babilônios e assírios, e que estes fatores renovam-se e permanecem ativos como princípios desta arte. O estudo tem, ainda, como objetivo, a produção de material didático, visual e escrito, para o ensino de graduação e pós-graduação destes temas. Visa também a constituição de uma iconoteca e sua disponibilização, bem como a produção de textos, em língua portuguesa, para o estudo desta temática como uma forma de contribuir para preencher uma lacuna editorial neste campo do conhecimento no país. As imagens existem sobre suporte material, são produtos históricos de seu tempo, feitos de matéria e transmitidos como patrimônios, acervos e linguagens. A memória cultural é compreendida como memória estética, sendo realizada em uma linguagem na qual há carga expressiva depositada nos artefatos, que, por sua vez, produzem tradições idiomáticas. Quando afirmamos que arte é mimese, que cultura é imitação, pressupomos que existem modelos e transformações, que a memória cultural islâmica mimetisa formas e conceitos mesopotâmicos e romanos, entre outros, e que esta transmissão mimética da informação é formadora de tradições culturais. O passado é uma construção social marcada pela necessidade de sentido e de referências de um dado presente. O passado não existe no estado natural, ele é uma criação da cultura. Cultura e sociedade são as condições fundamentais da humanidade para a produção de identidade, seja ela individual ou coletiva, e esta identidade é reflexiva, pois ela se dá através da comunicação e da interação com o outro. Na medida que a identidade pessoal se forma na relação do indivíduo com o outro, é necessário que exista um mundo de sentido simbólico comum, que é a própria cultura. Mas para o homem se adaptar ao mundo de sentido simbólico da cultura, com suas regras e significações, deve existir um distanciamento entre o mundo e si próprio. Assmann (2010, p. 123-4) afirma que: "A cultura institucionaliza esta distância", e cita Warburg: "O estabelecimento consciente de uma distância entre si mesmo e o mundo exterior pode ser caracterizada como o ato fundamental da civilização humana". 157 Como assinala o teórico alemão Jan Assmann (1995, p. 132), formulador do conceito de memória cultural: O conceito de memória cultural compreende o corpo reaproveitável de textos, imagens e rituais específicos de cada sociedade em cada época, cujo cultivo serve para establizar e conduzir a auto-imagem daquela sociedade. Sobre tal conhecimento coletivo em sua maior parte do passado, cada grupo baseia sua consciência de unidade e particularidade. Podemos estender essas condições culturais da imagem também ao mundo islâmico, com destaque para os elementos arquitetônicos que, localizados em templos e palácios, supõem rituais que envolvem os processos dinâmicos do tempo e que implicam em perceber a natureza do discurso, compreendendo a fenomenologia da imagem dentro dessa cultura. Nessa fenomenologia, que enuncia e produz imagens, temos o poder religioso e político, de reis guerreiros associados ao divino, como sujeitos desse discurso monumental e com a autoridade para realizar o disciplinamento dos corpos e dos espaços. Foucault (1984, p. 154) explicita essa questão quando afirma que: uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior (...); a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos, (...) e reconduzir até eles os efeitos do poder. Na cultura islâmica, o espaço é produzido para que a mente seja dirigida para a cidade de Meca; criam-se artifícios de ordenamento para que o "centro do mundo" presida o espaço e esse efeito demiúrgico terrificante dos poderes sagrados e de seu mediador, o rei, se concentra na estrutura arquitetônica. O estudo da memória cultural ou da transmissão das informações estéticas por meio de conexões culturais de longo curso fundado por Aby Warburg vê que a transmissão de elementos de intensidade expressiva, juntamente com a linguagem das supertições, da estética, das convicções, e da dinâmica cultural, conformam o fundo literário, artístico e religioso de cada cultura e de como isso é vivido em um dado ambiente cultural (Didi-Huberman, 2013). Para Warburg (2013), há uma longa história iconográfica que adquiriu formas de um poder explicativo superior e essas formas são transformadas no tempo e no espaço. Existem vários cenários nos quais um signo ou um símbolo, um conceito, uma ciência, um conhecimento são 158 transformados por cada civilização. Em sua teoria da memória cultural, Warburg (2013, p. 453) diz que a forma específica que concentra esse poder manifesto é o que ele chama de pathosformeln, formas carregadas de paixão ou expressividade. Um dos elementos que ele investiga é a construção de gestos, fórmulas e símbolos que, por sua qualidade expressiva, se tornam componentes que carregam afetos, ideias fundamentais para a arte e que irão explicar os principais cânones da expressão artística, como a melancolia, o amor, a potência, a vida amorosa, objetos piedosos, poder, etc. Estas formas são também indícios de cosmologias complexas, expressando as linguagens e a condição histórica das culturas. Estes modelos são aperfeiçoados em uma linguagem cuja principal finalidade é realizar este poder expressivo, tornando este ícone inteligível indiferentemente do idioma, da época e do local. O que se refere ao ícone aqui se aplica às estruturas espaciais e seus ornamentos, igualmente relevantes como expressão estética da cultura. Para Warburg, o que interessa é como o idioma da arte se elaborou ao longo dos milênios, como ele se constituiu enquanto linguagem, repertório de temas e de índices, e de como esses ícones se estabeleceram como forma de energia expressiva. Na sua grande obra, não finalizada, o Atlas Mnemosyne, ele passou a aproximar imagens, identificando fractais que estabeleciam uma similaridade e, a partir disso, ele abria uma enquete: se houvesse similaridade visual, haveria uma chance explicativa. Warburg (2010, p. 23) identificou no Painel 1 do Atlas Mnemosyne as concepções orientais mesopotâmicas como a raiz profunda de um legado cultural que ele chamou de "Projeção do cosmos sobre uma parte do corpo para fazer vaticínios. Astrologia oficial babilônica. Prática originária do Oriente". John Lundquist (2000, p. 74), em seu estudo sobre o legado babilônico na arte europeia, mais especificamente sobre o estilo românico na escultura, reconheceu que: Temas sumero-babilônicos como heráldicas com pares de animais entrelaçados, grifos e outros monstros (...) aparecem em inúmeras obras arquitetônicas, sobretudo nas catedrais românicas. (...) A rota de transmissão deste motivos é através dos texteis islâmicos que adotaram motivos vindos da arte sassânida, os quais reutilizaram os originais sumerobabilônicos. Os escultores românicos receberam estas influências de Bizâncio e da Síria e as reinterpretaram a partir de designs texteis em relevos esculpidos. 159 Zainab Bahrani (2003, p. 121) afirma que o sistema de representação assíriobabilônico é concebido como uma cadeia pluridimensional de aparências possíveis, isto é, a representação é entendida como uma parte do real. Para assírios e babilônicos, a narrativa verbal e a narrativa visual não estão separadas, seu significado está imbricado e possuem uma relação de interdependência em um mesmo sistema simbólico. Assim, a arte islâmica, tributária da cultura antigo-oriental, pode ser estudada como uma faceta de um amplo sistema simbólico. Neste sentido, o presente projeto de pesquisa pretende contribuir para a existência de estudos neste campo do conhecimento (Cline; Graham, 2012). Breedekamp e Diers, no prefácio à edição dos estudos de Aby Warburg (2012, p. xviii) afirmam que "A iconologia de cunho warburguiano parte da forma das obras de arte e da migração dos motivos pictóricos, mas desenvolve a compreensão dessas figurações no contexto de uma combinação precisa e ampla da história da cultura". É a partir desta concepção que iremos empreender a análise das formas da arte e da arquitetura islâmica no ambiente do Oriente Próximo, isto é, de uma história da memória cultural da região, em seus principais componentes arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, em suas linguagens e efeitos sociais históricos. Em sua obra La Mémoire Culturelle, Jan Assmann (2010) discute a questão da construção social do passado e retoma as teses de Maurice Halbwachs, que defendia que a memória dependia de pressupostos sociais, nos quais a memória individual só poderia se conservar dentro de um contexto de memória coletiva. Isto é, que a coletividade determina a memória de seus membros, ou seja, que a memória de um indivíduo se elabora dentro de um processo de comunicação entre os grupos sociais. Maurice Halbwachs (1925, p. 240) explica que as ideias devem tomar uma forma sensível antes de chegar à memória e que existe uma ligação inextricável entre conceito e imagem: Todo personagem e todo fato histórico, quando ele penetra nesta memória e se transpõe em um ensinamento, em uma noção, em um símbolo; ele recebe um sentido; ele torna-se um elemento do sistema de ideias da sociedade. E deste confronto entre os conceitos e as experiências nasce o que chamamos de figuras-lembranças. Elas se caracterizam mais especificamente por três coisas: a relação concreta ao tempo e ao espaço, a relação concreta a um grupo e a reconstrutividade como processo autônomo. 160 Assim, estas figuras-lembranças, que podem se referir tanto a formas icônicas quanto a narrativas, têm materialidade em um espaço e um tempo determinados, mas não se restringem a um espaço geográfico e histórico estabelecido. No domínio espacial, podemos incluir o mundo dos objetos, a cultura material que nos cerca, bem como as estruturas arquitetônicas, os códigos urbanísticos e todas as formas de ordenar e disciplinar a expressão do poder no espaço e nos corpos mobilizados por estas estruturas. Já a temporalidade pode ser aquela ligada ao calendário de festas civis ou religiosas, especialmente, no caso islâmico, a oração e a peregrinação, que impõem calendários diários e de vida dirigidos ao centro geográfico e cultural da fé, Meca, e a suas conexões locais, as mesquitas. Ademais, nas mesquitas há um cenário mimético que inclui o local em uma referência maior, o universo das mesquitas e dos grandes centros de peregrinação. Nisto tudo há fenômenos que refletem um tempo vivido coletivamente e se realizam como memória cultural expressa em acervos de arte e arquitetura. Um sistema simbólico comum permite a formação da identidade coletiva, isto é, a consciência de pertencimento a um grupo social, que depende de um saber e de uma memória comuns. É possível incluir neste sistema simbólico não só a linguagem, mas também "ritos, motivos e ornamentos, monumentos, imagens. Tudo pode tornar-se signo para codificar este caráter comum." (Assmann, 2010, p. 125). Além disso, é necessário entender a produção material da arte como resultado de trabalho, como na produção de artefatos, de manipulação de matéria, do uso de linguagens, de formas de mecenato, de aquisição, de transmissão, de valorização e conservação da arte. Enfim, é preciso entender todo o ciclo que produz materialmente o fenômeno da arte. O principal objetivo deste projeto é investigar a transmissão da memória cultural na gênese e desenvolvimento da arte islâmica, tendo em vista as tradições mesopotâmicas no território muçulmano da Mesopotâmia, da Síria-Palestina, do Egito, da Ásia Menor, da Pérsia até o Indus, delimitada aos seus principais componentes arquitetônicos: a mesquita, a madrasa e o palácio, englobando todos os seus componentes formais e iconográficos. O recorte cronológico do estudo está situado entre os grandes impérios mesopotâmicos da Babilônia e da Assíria até o século XV, que marca o advento do império otomano. (Grabar, 2008, p. 18). 161 O primeiro ponto para uma investigação warburguiana da história da cultura é entender quais são os elementos constitutivos mais relevantes no espaço, nas linguagens, na tradição científica, artística e religiosa. Isso permite que se encontre os fenômenos de troca formativos em todas as artes do Oriente Próximo. É preciso identificar como cada patrimônio é transformado e levado a uma determinada forma, com um sentido completamente diferente daquele que foi criado. Assim é preciso realizar uma análise comparativa e uma análise formal de ícones presentes na gênese e no desenvolvimento da arte islâmica. Para a análise das imagens utilizaremos, de forma complementar, a metodologia proposta na obra de Erwin Panofsky (1995, p. 19), cujo postulado divide o processo de análise visual em iconografia e iconologia, com três operações distintas: descrição pré-iconográfica; análise iconográfica e interpretação iconológica. Entendemos iconografia como o estudo do tema ou assunto, e iconologia como o estudo do significado do objeto. A iconografia é o tema e o significado das obras de arte em contraposição a sua forma e iconologia é o estudo de ícones ou de simbolismo na representação visual. As operações de pesquisa descritas abaixo devem ser realizadas em um mesmo processo orgânico e indivisível (Panofsky, 2007, p. 64-65): 1ª operação: realização da descrição pré-iconográfica, isto é, a enumeração dos motivos artísticos para cada temática. Devem-se analisar séries de imagens e não imagens isoladas. Motivos artísticos são as formas puras (linha, cor, volume) que representam objetos naturais (seres humanos, animais, plantas, casas, ferramentas, etc.). 2ª operação: realização da análise iconográfica, ou seja, identificação de imagens, estórias e alegorias. Isto é, a combinação de motivos artísticos com assuntos/temas e conceitos. Motivos artísticos portadores de significados são imagens, e as combinações de imagens criam estórias e alegorias. Neste passo, devem-se identificar estas combinações, descrevê-las e classificá-las. 3ª operação: realização da interpretação iconológica, ou seja, a descoberta e a interpretação dos valores simbólicos nas imagens. A iconologia é uma iconografia 162 que se torna interpretativa. Devemos nos familiarizar com aquilo que os autores das representações liam e sabiam, e isto deve ser feito a partir de fontes literárias. Mas, Panosfky (2007, p. 63) alerta que é preciso corrigir nossa experiência e nosso conhecimento para cada etapa, compreendendo que, sob diferentes condições históricas, objetos e fatos foram expressos de uma determinada maneira (história dos estilos); que temas e conceitos foram expressos por objetos e fatos (história dos tipos); e que as tendências gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temas específicos e conceitos (história dos símbolos). As fontes documentais utilizadas neste estudo serão obtidas através de publicações da área, referenciadas e/ou disponibilizadas nos sites de importantes museus em diversos continentes. Além destes, contamos com o acervo fotográfico pessoal constituído nos últimos anos em visitas técnicas a museus, reservas técnicas e sítios arqueológicos. Para exemplificarmos os primeiros indícios dessa herança cultural apresentamos a seguir dois elementos: um, arquitetônico; outro, motivo decorativo, presentes na arquitetura e na arte islâmica, mas oriundos de tradições artísticas anteriores, a saber, mesopotâmica e romana. Fig. 1 - Plano Hipostilo da Mesquita do Profeta Maomé Construída em 710/AH 91. Medina, Arábia Saudita. 163 Fig. 2 - Plano da Fortaleza Romana Construída no início século I EC. El-Kastal, Arábia Saudita. Fig. 3 - Rosácea Detalhe da Via Processional de Babilônia 7m de altura; 196m de comprimento. 605-562 AEC. Nabucodonossor II Tijolos vitrificados. Museu do Pérgamo, Berlim, Alemanha. 164 Fig. 4 - Rosácea Palácio Qasr al-Hayr al-Gharbî. Elemento de friso de uma sala do andar superior. Primeiro terço do VIII séc. Madeira esculpida e pintada. H: 0,280m; L: 0,230m; Esp: 0,60m. Museu de Damasco, Síria. A figura 1 apresenta o plano hipostilo da primeira mesquita construída sob as bases da antiga residência de Maomé na cidade de Meca, assim como o plano da fortaleza romana inscrita na figura 2. Ambos os prédios são orientados nos pontos cardeais e têm plano quadrangular com pátio interno. Temos aqui um exemplo de ordenação do espaço com similitudes a serem exploradas. O segundo exemplo trata de motivo decorativo floral, tido como um clássico na arte do período islâmico. Na figura 3 temos um detalhe das rosáceas em tijolos esmaltados presentes na Porta de Ištar e na Via Processional de Babilônia, cujos imponentes vestígios arqueológicos encontram-se no Vorderasiatisches Museum, no complexo muséal do Pérgamo, em Berlim. E este mesmo motivo aparece (figura 4), com grande semelhança, em um detalhe do friso de uma das salas do Palácio Qasr al-Hayr al-Gharbî, que teria sido contruído pelo califa al-Walid (705-715 EC) da dinastia omíada, no deserto sírio. Neste sentido entendemos que o estudo de ícones, símbolos e estruturas presentes na arte islâmica é representativo de uma memória coletiva, de uma memória cultural que necessita ser explicitada, desvendada e que assim, possa explicar sua gênese e seu desenvolvimento. 165 Referências Bibliográficas AMIET, P. Introduction à l'histoire de l'art de l'antiquité orientale. Paris: Desclée de Brouwer, 1979. ASSMANN, J. Collective Memory and Cultural Identity. New German Critique. Nº 65, Cultural History/Cultural Studies, 1995, p. 125-133. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/488538>. 2012. Acesso em: 13/03/2012. ___________. La Mémoire Culturelle - Écriture, souvenir et imaginaire politique dans les civilisations antiques. Traduit par Diane Meur. 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É Professor Adjunto do Curso de História da Arte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em 2011 atuou como Pesquisador Visitante no Grupo de Pesquisa Histoire et ARchéologie de l’Orient Cunéiforme (HAROC), na Maison René-Ginouvès, Arqueologia e Etnologia - CNRS, Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne e Université de Paris Ouest-Nanterre - La Défense, na França. Atua na área de História da Arte Antiga e Medieval, com ênfase em História Arte Oriental e História Antiga Oriental. http://lattes.cnpq.br/9408053472324588 167 LINHA E EXPRESSÃO NA CALIGRAFIA JAPONESA Rafael Tadashi Miyashiro - UNICAMP RESUMO: Entre os vários clichés relacionados à cultura japonesa, o que relaciona um suposto “zen” à escrita talvez seja o mais presente. Imaginamos a caligrafia como algo que remete à plenitude, à iluminação, a algo estático.No entanto, a caligrafia japonesa – conhecida como shodô e sho, especialmente – supera, em muito tal imagem: ela é dinâmica, viva e é uma arte da linha. Foi especialmente depois da II Guerra Mundial, no Japão, que calígrafos começaram a explorar o significado dessa linha, experimentando materiais, repensando a tradição, e propondo outros rumos, no que ficou conhecido como a caligrafia de vanguarda, o zen’ei’sho. Possivelmente, o legado principal desse movimento foi o de reafirmar a caligrafia japonesa como expressão pessoal e artística. Este artigo procura relacionar as contribuições do zen’ei’sho, contextualizando-o, para, depois procurar, na caligrafia japonesa praticada em São Paulo, resquícios e influências desse movimento no trabalho dos seus praticantes. Palavras-chave: caligrafia japonesa, shodô, sho, expressão, linha ABSTRACT: Among cliché imaginary that involves Japanese culture, the one relates “zen” to its writing is the most common. We imagine calligraphy as something that is filled with fullness, enlightment, stillness. However Japanese calligraphy – known as sho and shodô – is bigger than this: it is dynamic, alive and an art of line. In Japan, specially after the World War II, calligraphers start seeking the meaning of line, making experimental works, rethinking tradition e proposing other paths, in what has been known as zen’ei’sho. The main legacy of this trend seems to be the rethinking of Japanese calligraphy as personal and artistic expression. This paper intends to look at zen’ei’sho, by contextualizing it to, later, seek in Japanese calligraphy practiced in São Paulo its vestiges and influences in their practicing. Keywords: Japanese calligraphy, shodō, sho, expression, line Considerado como o país que concentra o maior número de descendentes de japoneses vivendo fora do Japão, o Brasil presenciou nos últimos anos uma popularização de eventos ligados à cultura japonesa, em cidades que concentram esses descendentes, como São Paulo. Nessa cidade, por exemplo, o número de festivais e festas ligados à cultura nipônica são altos, promovidos por associações que reúnem japoneses e descendentes com diferentes interesses: kenjinkai, associações de comerciantes, organizações nipo-brasileiras etc1. Chama atenção, também, que haja interesse por essa cultura por não-descendentes, que não apenas frequentam esses eventos, mas também propagam e difundem os domínios do manga, da culinária japonesa, do butoh, da cerimônia do chá etc. A cultura japonesa 168 tornou-se pop, rompendo os domínios étnicos e misturando-se a outros interesses na cultura brasileira. Ao mesmo tempo em que esse interesse é admirável, a presença de certos clichês ligados ao Japão é visível em alguns espaços onde essa cultura nipônica se manifesta. Um rápido passeio pelo bairro étnico Liberdade, em São Paulo, revela o comércio de camisetas e chaveiros escritos em japonês, com dizeres como “felicidade”, “pureza”, “amor”, associando à escrita japonesa estados e sentimentos de bem-estar. Estar “zen”, é uma frase bastante utilizada, e pode significar estar em um estado de “graça” e “iluminação”, em que não se é afetado por nada. Frequentemente, esse “zen” se associa à cultura japonesa e ao seu imaginário, cristalizando um sentido que não corresponde a sua natureza. O zen é uma das seitas (escolas) do budismo. Ele foi introduzido no Japão, vindo da China, no final do século XII, depois de várias tentativas frustradas de incursão, por monges que tinham estudado na China. O termo zen deriva do verbo zazen, que significa meditar. Através do zazen alcança-se o satori (iluminação) e vale ressaltar que o modo de pensar do zen se opõe ao pensamento ocidental dominante, racional e dualista: “Exclusão e limitação (características do pensamento dualista) restringem a liberdade e a unidade” (WESTGEEST, 1997, p. 12). A relação com a natureza é valorizada, pois a consciência de si mesmo se expande à ideia de que o ser humano também é parte da natureza (IBIDEM, 1997). É possível que algumas imagens presentes no imaginário coletivo, como a conhecida reverência às pessoas (no contato social e nos esportes de combate, por exemplo), uma suposta boa educação relacionada à etnia nipônica, ou mesmo aquelas propagadas pela mídia (como o professor de artes marciais no filme Karate Kid, de John G. Avildsen, feito em 1984), ajudem a manter essa ideia do “zen” da imaginário com a cultura japonesa. Isso obscurece, no entanto, a ligação mais profunda que as artes podem ter com o zen. Helen Westgeest (1997), cita algumas conexões entre o zen e as artes: o vazio e o nada; o dinamismo; o espaço ao redor e indefinido; a experiência direta do aqui e agora; e o não-dualismo e o universal. Na caligrafia japonesa algumas dessas características são bastante presentes, e, pode-se dizer, foram incorporadas ao 169 longo dos séculos, sem que haja qualquer menção explícita ao zen. Por exemplo, a caligrafia japonesa valoriza o momento presente, é uma arte que não admite o retoque, considerando este intervalo único e singular – seu praticante deve estar comprometido com o seu fazer, consciente do seu corpo e das relações que esse trava com o ambiente, junto com pincel, tinta, papel e o espaço em que está sendo feito, em relações que são complementares, mas nunca dualistas. A não dualidade também está presente nas relações entre linha e espaço: a linha ativa o branco, valorizando a composição e o branco dá profundidade à linha. Uma arte com essas características nunca poderia ser estática, pois a caligrafia depende do modo como o praticante lida com elas. Percebe-se que cada um, com suas singularidades e idiossincrasias, dará um toque pessoal à(s) palavra(s) que escreve. “Há uma crença no Japão e na China que a caligrafia de uma pessoa reflete ou revela a sua personalidade (isto é conhecido sho wa hito nari, literalmente ‘a caligrafia é como a pessoa” (NAKAMURA, 2007, p. 83). Se a caligrafia é a pessoa, isso fica visível, especialmente, pela estrutura da sua linha. Essa linha não acontece naturalmente: são necessários anos de prática, em que o calígrafo vai corporificando o conhecimento da caligrafia, nos estudos de clássicos conhecido como rinsho, e se fundindo à própria história da caligrafia, desenvolvendo seu trabalho, sua linha. Mas é ela – a linha expressiva – que foi a grande protagonista da história da caligrafia japonesa no século XX, sendo revisitada, repensada, ruminada e ampliada. Ela foi o grande motor que transformou o mundo do shodô, especialmente a partir do Pós-Guerra. Linha e expressão na caligrafia A reverência à linha é remota – vem da caligrafia chinesa, e pode ser encontrada em escritos antigos chineses, tais como os ensinamentos atribuídos a Lady Wei2, professora de Wang Hsi-chi3, no século IV: A escrita de alguém que tem a força do pincel “tem osso”e a escrita de quem não tem a força “tem carne”. A escrita que tem osso com pouca carne é chamada de “muscular”; a escrita que tem carne e pouco osso é chamada banha de porco. A escrita que tem muita força e é rica em músculo é 4 sagrada; a escrita sem força e sem músculo é doente . Cada uma é usada de acordo com a situação (DRISCOL e TODA, 1934: 45). 170 Na interpretação desse texto, Christine Flint Sato (2001) diz que a linha deveria ser vista como algo tridimensional, escultural, tendo propriedades do corpo humano que revelam uma estrutura que não é apenas superfície, mas profunda, em diversas camadas, como osso, músculo, carne e pele. Essa linha, com essa profundidade, corta o branco do papel, interagindo com ele. A linha energiza o branco (ibidem, 2001, p. 24) e também é responsável por conduzir o trabalho de caligrafia: […] o calígrafo se preocupa principalmente com o ritmo da linha. É através desse ritmo que a energia da linha é controlada. Enquanto o trabalho está sendo feito, o ritmo minuciosamente penetra os movimentos do corpo/braço/pincel. Torna-se uma base inconsciente interior que o permite escrever com liberdade. A caligrafia não é uma repetição mecânica ou viciada de pinceladas, mas um conjunto que é vivo e que responde aos impulsos criativos do calígrafo no momento (IBIDEM, 1999, p.12). Foi a busca dessa caligrafia “viva”, expressiva, que pautou a caligrafia japonesa na primeira metade do século XX. Entre o século XIX e XX, o Japão passou por profundas transformações econômicas e sociais, sobretudo no período Meiji (1868-1912) – em que seus portos foram abertos para o comércio com nações estrangeiras, depois de anos de reclusão, e ocorreu um interesse pelo “de fora”, com expedições ao redor do mundo – e com políticas com o intuito de modernizar o Japão. Isso gerou discussões tendo como objeto a validade da cultura japonesa tradicional e suas manifestações, como a caligrafia, e sua relação com a modernidade. É importante contextualizar essa prática nesses anos: a caligrafia do fim do século XIX e início do XX é aquela que começa a viver o seu declínio enquanto uma arte “utilitária”, perdendo sua relevância ao lápis e às canetas, e a sistemas de impressão como a tipografia, por exemplo, provocando uma questão quanto a sua identidade (Nakamura, 2006, p.55). Também é nesse período que o mundo da caligrafia – shodôkai, em japonês – atual começou a tomar forma: lentamente vão se organizando as exposições de caligrafia, bem como, na década de 1920, começam a ser criadas as primeiras associações de caligrafia (Ibidem, 2006), dois alicerces fundamentais no seu presente. Hidai Tenrai (1872-1939) é figura chave no período. Sua visão de caligrafia diferia daquela dominante na caligrafia, na qual os alunos aprendem a partir do 171 tehon (modelo) do sensei. Esse calígrafo permitia que seus discípulos reproduzissem a caligrafia diretamente a partir dos clássicos e acreditava que a linha caligráfica deveria ter força e ser interpretada. Ele cunhou o termo hitsu i, o “espírito do pincel”. Era através desse espírito, pelo qual o calígrafo se expressava, que se via se o trabalho funcionava ou não (Sato, 2001, p. 20). Tenrai acolheu discípulos nos anos finais da sua vida, e vários deles tiveram um papel de destaque no pósGuerra, estabelecendo a caligrafia japonesa moderna. Para Hidai e seus discípulos, a caligrafia era um meio de expressão pessoal através da linha. Isso significava que, mais importante que a leitura de uma caligrafia era a sua expressão. O período após a Segunda Guerra Mundial é um tempo em que as discussões sobre a caligrafia, como a legibilidade e a expressão, estiveram bem acirradas. Dois exemplos são frequentemente citados quando se reflete sobre o gendaisho, a caligrafia moderna: o trabalho Den no variation “variação do raio”, mostrado numa exposição de arte de 1946; e o de Ueda Sokyu, Ai. Lembrando o conselho de seu pai que deveria voltar aos clássicos sempre que estivesse preso com novas ideias, [Hidai] Nankoku subitamente lembrou de caracteres chineses antigos listados no dicionário de Ku-Wen. Ainda que essas linhas ou pinceladas tenham origem em palavras, elas não podem ser identificadas como tal. [...] Não foi exibido em nenhuma exposição de caligrafia [apenas numa exposição de artes], mas atraiu uma considerável atenção dos calígrafos. Levantou uma discussão a se o trabalho deveria ser considerado caligrafia ou não (NAKAMURA, 2006: 67). 172 Figura'01:'Den'no'Variation'(1945)'e,'ao'lado,'em'negativo,'exemplos'dos'caracteres'antigos'da'palavra' den.'(Fonte:'Nakamura,'2006).' Já o trabalho de Ueda Sokyu foi submetido à Exposição Nitten em 19515. O júri da exposição recusou o trabalho, alegando que, embora o título fosse Ai, “amor”, o trabalho lembrava shin, “mercadoria”, e deveria ser nomeado como tal. Ueda se recusou, pois, na verdade, a inspiração vinha de ver o neto aprendendo a engatinhar. Embora o Nitten se fechasse a trabalhos de vertente mais moderna, uma outra exposição, surgida em 1948, patrocinada pelo Jornal Mainichi, no entanto, acolheu esses trabalhos, e constitui, até hoje, um importante espaço de divulgação da caligrafia japonesa contemporânea. Cabe notar que os exemplos dados mostram ideogramas que se afastaram da sua representação mais trivial, flertando com a arte abstrata, num estilo que hoje é conhecido como zen’ei’sho, ou caligrafia de vanguarda moderna; mas desenvolveram-se outros estilos, como o kana com tamanho maior; a representação de textos modernos kindai’shibun’sho, em oposição aos poemas clássicos e sua forma de representação tradicional; o ichiji’sho, escrita expressiva de poucos caracteres; e o dai’ji’sho, cujos formatos tem grande dimensão. A exploração de materiais como a tinta se intensificou, como o uso da tinta tamboku, a princípio reservada para o luto, em trabalhos de expressão artística. Hoje é comum o uso de tinta, para treinamento, vendida pronta, em garrafas – mas essa é uma invenção moderna, que veio depois do Pós-Guerra, devido à necessidade dos calígrafos em terem uma quantidade de tinta razoável já pronta para seus trabalhos. Diante de tantas transformações, essa caligrafia mais expressiva também se assumiu com outro nome: É simbólico também que, após séculos chamando a caligrafia japonesa de shodô ou o caminho da caligrafia, no estilo do estudo formalizado criado no Japão durante o período medieval, a caligrafia tenha se tornado sho, ou simplesmente caligrafia (TAMIYA, 1998 [não paginado]). A caligrafia de vanguarda continuou se desenvolvendo com os anos, flertando com a arte abstrata, a experimentação e o uso de materiais alternativos. Houve diálogo com artistas como Pierre Alechinsky, do Grupo CoBRA, e a experimentação de materiais e formatos. A calígrafa Shinoda Toko (nascida em 1913), por exemplo, 173 é neta de um famoso calígrafo de carimbos na Era Meiji e aprendeu caligrafia com seu pai – o que poderia indicar a continuidade de uma linha tradicional da caligrafia. Mas ela conta que, a partir de um forte desejo interno, aos 15 anos, depois de nove anos de prática disciplinada, era necessário sair do caminho tradicional: Eu me cansei disso e decidi tentar meu próprio estilo. Meu pai sempre ralhou comigo por ser levada e sair do rumo tradicional, mas eu tive que fazer isso [...] . Isso é [o ideograma] kawa ×, o caractere caligráfico aceito para rio [...]. Mas eu queria usar mais do que três linhas para mostrar a força do rio [...] O kawa simples da linguagem tradicional não era o suficiente para mim. Eu queria achar um novo símbolo para expressar a palavra rio [...] o sentimento do vento soprando levemente (KENRICK, 2003). Ao mesmo tempo em que ensinava caligrafia tradicional, Toko se dedicou a trabalhos pessoais (GRAY, 1983). Durante a 2ª Guerra Mundial, ela se aproximou do abstrato e, no Pós-Guerra, morou em Nova York por dois anos (KENRICK, op. Cit.). Seu trabalho é bastante versátil e ampliou as fronteiras de suportes da caligrafia: há uma mistura de caligrafia com gravura, mas também encontram-se padronagens de cortinas de teatro, relevos em cerâmica para prédios, entre outros. (ibidem). Em 2013, houve uma grande exposição no Musee Tomo Japão em comemoração ao seu centenário de nascimento6. Outro calígrafo importante no período Pós-Guerra foi o Inoue Yu’ichi, conhecido pela força expressiva de suas performances de caligrafia. Em 1955, Yu’ichi registra em seu diário o desejo de sair de um shodôkai estagnado, criando um caminho próprio: Torne seu corpo e alma num pincel... NÃO a tudo! Pro inferno com isso! Trace com toda sua força – qualquer coisa, de qualquer modo! Espalhe a sua tinta ennamel e deixe escrever com força! Respingue todos aqueles enganadores que adiam a caligrafia com um C maiúsculo... Eu vou cavar meu caminho, vou abrir meu caminho. A ruptura é total. (INOUE, 1955 citado por HOLMBERG, 1998). Seu registro é forte e radical: seu trabalho caminha nas fronteiras da caligrafia, mas de um modo distinto ao de Shinoda Toko, tanto pela presença do corpo em seu trabalho, como pelo estilo da sua linha. Na década de 50, registros fotográficos desse calígrafo munido de um grande pincel, mostram um trabalho bastante visceral. Já num vídeo de Yu'ichi fazendo caligrafia, bem mais velho, décadas depois, vê-se que a presença física que se vê nas fotos ainda está lá, mas de forma diferente. O 174 calígrafo utiliza um pincel grande e traça um ideograma num papel de grande dimensão. Os corpos nos dois registros propõe ritmos distintos, embora seja evidente que as linhas, nos dois casos, são expressivas. As imagens de Inoue Yu'ichi mais velho parecem indicar serenidade e, ao mesmo tempo, percebe-se a presença da força interior que o conduzia quando jovem. Entretanto, tais imagens, ainda que separadas no tempo por décadas, propõe um projeto artístico em continuidade. Figura 02: Inoue Yu'ichi em dois momentos. Na parte superior, no calor da vanguarda, escrevendo o ideograma "osso" (Munroe, 1994); embaixo, o calígrafo, já com mais idade, realizando uma demonstração em vídeo sobre seu trabalho (Youtube, 2008). Décadas depois do início do shodô moderno, há críticas que mencionam que, embora a caligrafia moderna tenha indicado novos rumos, ela, com o tempo, se cristalizou, tanto pelas estrutura das exposições de caligrafia (além do Mainichi, outra grande exposição de caligrafia é aquela promovida pelo Jornal Yomiuri), quanto pelas associações ligadas a essas exposições, e que reúnem outras associações menores, numa estrutura guarda-chuva. Cotas de trabalhos sendo negociadas e concordadas em exposições; prêmios recebidos em função da ligação do participante com determinado sensei; a manutenção de estilos consagrados, em detrimento à busca de estilos individuais; são alguns dos problemas apontados por Fuyubi Nakamura em sua tese de doutorado sobre caligrafia japonesa (Nakamura, 2006). 175 Christine Flint Sato aponta como parte do problema da estagnação o sistema de ensino: Parte do problema reside no modelo do Leste Asiático de aprendizado, que é baseado em copiar velhos mestres, geralmente através do modelo do professor. Em teoria, o primeiro estágio é o da duplicação, o próximo da interpretação, levando finalmente à composição livre. A reprodução de exemplos por mestres antigos e pelo do professor é parte do processo e é por conta do estudante que ele desenvolva seu próprio estilo. No entanto, a pressão social é forte, e é impossível mostrar trabalhos muito diferentes quando se exibe em grupo. Apenas alguns calígrafos se separam para exibir independentemente, e menos ainda escolhem trabalhar sozinhos [...]. Um fator que é mais prejudicial à criatividade particular do calígrafo é o método de treinamento e o sistema de escola de caligrafia hierárquico. Isto limitou a segunda e terceira geração de calígrafos de vanguarda. Trabalham no estilo da escola à qual pertencem. É irônico que muitas das ideias da livre expressão que os líderes desses grupos expuseram não se reflitam mesmo no trabalho dos pupilos (SATO, 2002: 29-30). Isso não significa que a caligrafia japonesa esteja de todo estagnada. Mesmo em participantes de exposições como a do Mainichi, como o sensei Morimoto Ryûseki7, há uma visão bastante crítica ao shodôkai e um incentivo à busca da individualidade do calígrafo – cada um tem uma força e um caráter diferente, e, portanto, interpreta e aplica-os de forma distinta na escrita. Comentando-se sobre o kindaishibunsho, ele frisou que a primeira condição para a escrita nesse estilo é ter a consciência que a escrita será feita com a sua palavra (letra), ressaltando algo bastante pessoal. Convém acrescentar que, fora da estrutura do Mainichi e Yomiuri, também há calígrafos independentes e semi-independentes que procuram manterse fora dos domínios das grandes organizações de caligrafia, ou, ao menos, não tão dependentes da sua estrutura, porque também exibem fora do circuito das grandes exposições. Esses calígrafos têm, como na vanguarda moderna, procurado expandir o significado do fazer caligráfico, e, com isso, tem feito trabalhos que exploram novos materiais e formatos ou que apenas buscam uma expressão livre descomprometida com rígidas estruturas8. Tsubasa Kimura, calígrafa de Kyoto, é uma delas. Seu trabalho inclui, além de obras em papel, instalações e intervenções no ambiente. A caligrafia moderna não foi ignorada dentro da história da caligrafia. Parece que o legado mais importante foi a revalorização da linha, reforçando a relação linha–expressão pessoal – que já existia em tratados antigos chineses, como o de 176 Lady Wei, e em alguns trabalhos do monges zen budistas. Na discussão da expressão versus o legibilidade, a caligrafia aproveitou para repensar e explorar o seu campo de atuação e sua essência, através de trabalhos como os de Hidai Nankoku e Ueda Sokyû. O trabalho com o corpo, evidente com Inoue Yu’ichi e sua caligrafia, juntamente com a particularidade do “momento único” da escrita, lembra o caráter performático que a caligrafia pode proporcionar. A visão peculiar de Shinoda Toko ressalta o quanto o gesto caligráfico está embutido na subjetividade de quem escreve, ligado aos seus desejos mais profundos. Sendo shodô o caminho da escrita, é interessante pensar nos caminhos paralelos dessa escrita, nas suas bifurcações: por exemplo, quando este caminho se estende para o outro lado do mundo e inicia um novo caminho, como acontece no Brasil, especialmente devido à imigração japonesa no século XX. De imediato, é possível dizer que a caligrafia aqui não pode se dar nas mesmas condições que no Japão, tanto em número de espaços que ensinam caligrafia, quanto nas exposições que a promovem. Tampouco o acesso a materiais e à bibliografia é abundante como no Japão. Um fato marcante é que, se no Japão a caligrafia é uma das artes tradicionais devido à sua relação com a história e à cultura nipônica, no Brasil ela é praticada por poucos, e pode ser considerada uma arte de resistência, que procura sobreviver e manter seu patrimônio imaterial em território brasileiro. O que parece unir essas duas caligrafias separadas geograficamente, no entanto, é a possibiliidade de ser a expressão viva de quem escreve, como se pode ver em seguida. No Brasil, em São Paulo: expressão e linha Embora a caligrafia japonesa estivesse presente na vida de imigrantes japoneses no século XX no Brasil, como se vê em alguns relatos9, é possível situar na década de 1970, em São Paulo, o momento em que há um grande interesse na prática da caligrafia japonesa, estimulado pela exposição de 1975 ocorrida no MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand). Essas pessoas criaram Associação Shodô do Brasil, conhecida como Shodô Aikokai, organização que está ativa até hoje (Wakamatsu, 2004; Miyashiro, 2009). Embora seja a mais antiga associação de caligrafia em São Paulo, vale mencionar que a caligrafia é ensinada 177 em outros espaços em São Paulo, como associações de província, ateliês particulares, associações de anciões, escolas, entre outros. As reuniões do Shodô Aikokai acontecem duas vezes mensalmente, momento em que praticantes e os sensei se juntam para fazer caligrafia. Atualmente, há cerca de 30 pessoas, cujas idades, perfis e interesses variam. Nota-se uma faixa mais jovem de praticantes, com perfis ligados especialmente às artes e do design, o que confirma um interesse já levantado em Miyashiro (2009), quanto a sobrevivência do shodô em São Paulo estar vinculada à divulgação dessa arte para pessoas das áreas do design e das artes. São três os sensei nessa associação10, sendo que dois deles tem seu grau reconhecido através do sistema de caligrafia ligado ao Mainichi Shodô Ten (Exposição Mainichi de Shodô): Etsuko Ishikawa e Takashi Wakamatsu1112 , que possuem mais de 30 anos de prática caligráfica cada um. Fora o trabalho no Aikokai, ambos os sensei tem seus grupos particulares de caligrafia, ligados à Associação de Caligrafia Hokushin, presidida pelo sensei Morimoto Ryuseki, mencionado anteriormente. Através dessa relação é que são dados os dan, graus que avaliam a prática de cada um, e que é possível participar da Exposição Mainichi. Sendo um imigrante, o Sensei Wakamatsu retomou a prática do shodô no Brasil por incentivo da sua primeira esposa, já falecida, que era praticante. Seu contato inicial com a caligrafia havia sido na escola, no Japão, onde fez a maior parte dos seus estudos. Da mesma forma, a sensei Ishikawa veio do Japão e completou seus estudos no Brasil, mas só retomou a caligrafia depois de adulta. Embora apresentem um contexto parecido (a imigração, a volta à caligrafia depois de anos), ambos tem trabalhos completamente diferentes, visíveis nas imagens abaixo. 178 Figura 03: Demonstração de caligrafia: à esquerda, o sensei Takashi Wakamatsu; e, à direita, a sensei Etsuko Ishikawa (fonte: Rafael Tadashi Miyashiro). As linhas tem força, mas são bem diferentes. No caso do sensei Wakamatsu, que tem preferência por estilos antigos, como Reisho e Tensho, a linha é expressiva, tem força e sua forma é definida. Em seus trabalhos percebe-se uma atualização contemporânea da caligrafia: há a referência do estilo antigo (o reconhecimento do mesmo), mas com uma linha que não é simples reprodução de modelos; para trabalhos para exposições, o sensei muitas vezes escolhe tamanhos grandes (trabalhos com mais de 1,20m de altura, que dialogam com os formatos grandes da caligrafia moderna). Observando gravações em vídeo13 de demonstrações de shodô, vê-se que o corpo do sensei permanece quase estático, canalizando toda a força do corpo para o braço que escreve sobre o papel. Já em gravações da sensei Etsuko Ishikawa, vê-se que ela trabalha com o corpo movimentando-se frequentemente – o que pode-se perceber na posição dos pés, que se alternam, no percurso que o pincel faz ao escrever os ideogramas, na força de suas linhas verticais e horizontais, no controle de linhas que tem variação de espessura, em efeitos como o kasure, em que a tinta fica “falhada” e nas micro pausas que acontecem durante o gesto. Quanto a esse estilo pessoal, diz a sensei: [...] de repente surgiu, um dia... de repente, passou a idéia na minha cabeça e minha mão já estava fazendo o movimento. Eu não tinha nem planejado... Fazer um trabalho pequeno é um sacrifício, mas agora, trabalho grande, de 179 repente eu estou pulando... sai da cama, pega o pincel e, de repente, escreve... dá vontade de chutar a tinta na parede! (ISHIKAWA, 2008) Não à toa, essa sensei define a caligrafia como “ [é] vida... é expressão!” (ibidem). Quando se viu no vídeo, sua expressão foi de alegria e comentou: “estou dançando [...] Nossa... eu estou fazendo sho! [risos] um pouquinho exagerado [riso]” (ibidem). Em seguida, disse: [...] o corpo movimenta. O shodô não se faz apenas com a ponta do dedo. Na verdade o maior prazer, para mim [...] é quando faço trabalho grande. Quando faço treinamento, tenho consciência de que é estou treinando para fazer um trabalho futuro. Kana, eu nunca entrei... porque não dá pra fazer uma “grande aventura”. (ISHIKAWA, 2008) Embora se apresentem de forma distinta, parece haver um diálogo entre a caligrafia de Inoue Yu’ichi quando jovem e a de Etsuko Ishikawa no que tange ao corpo. A consciência corporal parece estar mais presente, e se tira proveito disso para a produção de linhas mais violentas. Ao mesmo tempo, força e serenidade parecem se complementar na caligrafia de Inoue Yu’Ichi já mais velho e a de Takashi Wakamatsu. Essa linha peculiar de cada um é construída no gesto caligráfico, envolvendo as relações travadas entre o corpo, o ambiente e os “quatro tesouros da caligrafia”: tinta sumi, papel kami, pincel fude e o recipiente de tinta suzuri. Esses “tesouros” tem várias propriedades, que podem diferir bastante dependendo do material utilizado, como os pelos do pincel. Diferentes pelos de animais permitirão efeitos distintos: alguns são macios, e serão mais difíceis de controlar; já os de pelo duro, serão marcados pela sua precisão. Dependendo da pedra do suzuri, a tinta que é friccionada nele se apresentará de formas distintas, ou mesmo a qualidade da pedra ditará o ritmo em que o sumi vai tomando forma, a partir do bastão e da água e da fricção do primeiro sobre a pedrao. Os papéis, que são feitos de fibras distintas, também permitirão maior ou menos grau de absorção, que influenciará diretamente na palavra escrita sobre o papel. O uso dos materiais está diretamente ligado à escolha subjetiva do calígrafo, e pode se revelar em detalhes sutis como a cor, já que não existe apenas uma tonalidade de sumi. Tradicionalmente, um trabalho de caligrafia clássico, que tem como suporte o papel, apresenta dois tons: o preto da linha, feito pela tinta sumi, de carvão, e o branco do papel hanshi, papel oriental altamente absorvente. Existe um terceiro tom, 180 o vermelho, que é tanto usado no carimbo inkan, a “assinatura” do trabalho, que confere autenticidade e completude, quanto na correção da prática dos alunos da caligrafia; mas o vermelho, em ambos os casos, não corresponde, no caso do shodô sobre papel, a uma opção estética no traçado das linhas. Earnshaw (1996, p. 103) menciona quatro tipos de tinta sumi: preto puro, preto com uma folha de ouro ou alguma substância dentro dela, cinza e um cinza escuro que produz um efeito “borrado” nas bordas da linha traçada. Em entrevista realizada durante uma das aulas em maio de 2007 na Associação Shodô do Brasil, em São Paulo, a sensei Ishikawa mencionou 7 tonalidades de cinza, criadas a partir do preto do carvão tradicional. O sensei Wakamatsu, na mesma data e local, por outro lado, descreveu as tintas tintas tamboku: A tinta de carvão preta tem várias cores.. dentro do preto, por exemplo, coloca-se azul, geralmente marrom ou azul. Tem o preto, mas tem no fundo o azul, o marrom. Além disso, também tem a tinta que chamamos tamboku, que é uma tinta “mais leve”... [seu uso] depende do professor. Não dá para falar qual é melhor. No seu trabalho pessoal, o sensei declara a sua preferência: Para mim, eu prefiro a tinta leve. A tinta preta dá muita força. Por isso que para mostrar a força do pincel, para dar aquela impressão forte, é melhor usar a tinta preta. Mas para mim, mesmo para letras grandes [trabalhos de grande dimensão], acho que precisa ter uma sensibilidade maior. E a tinta leve, quando escrevem quando cruza a linha, sai uma linha branca. Fica muito delicado esse cruzamento. É muito interessante. Por isso eu uso essa tinta leve. Isso não significa que o sensei não use a tinta preta intensa. Há trabalhos grandes que essa tinta aparece, muito provavelmente por ele ter achado que o caractere pedia tal tratamento. Já a sensei Ishikawa fala da sua opção, relacionando força, expressão e cor: Eu gosto mais da tonalidade forte. O [estilo] kaisho, que é a forma mais tradicional, correta, exige tonalidade forte. 181 Considerações finais Pode-se perceber que a linha caligráfica de ambos os sensei reflete suas visões pessoais de caligrafia, com suas escolhas, desejos e forma própria do corpo escrever. Quando Lady Wei menciona as qualidades da linha, que devem ter osso, carne, músculo, trata-se de um entendimento profundo de que uma linha nunca é algo chapado – ela possui vários níveis que marcam a sua profundidade, inclusive na sua relação cromática. A caligrafia de vanguarda, no Japão, entendeu e levou isso ao extremo, fazendo a caligrafia ser, mais que uma linha que escreve ideogramas, uma arte de linhas que expressam o que o seu ser, o que o calígrafo quer. Por estarem ligados à estrutura de caligrafia do Mainichi, os sensei Takashi Wakamatsu e Etsuko Ishikawa certamente foram influenciados, mesmo que indiretamente, por toda herança do Mainichi Shodô Ten, tanto nos aspectos positivos quanto negativos: pelo fato de ser uma das maiores exposições de caligrafia no Japão; pela estrutura, que pode se revelar estagnada em alguns pontos; mas também por ter sido uma exposição que aceitou ser ousada num momento decisivo da caligrafia moderna, acolhendo seus trabalhos. Vale mencionar, no entanto, que, por estarem fora do Japão, ao mesmo tempo, eles podem usufruir de uma liberdade maior dentro do Brasil. Para expor um trabalho em São Paulo, até mesmo por terem grau de sensei, eles podem fazer qualquer trabalho sem interferência de uma autoridade hierárquica maior do Japão. Se em seus trabalhos não se encontram grandes discussões sobre até que ponto um ideograma, a princípio, não é reconhecível, como na vanguarda, isso talvez se deva a uma visão pessoal deles: eles expressam aquilo que querem, da forma como querem. Não é necessário exigir deles um passo a mais, que talvez não expressasse seu ser. Mas um ponto oportuno a se colocar aqui diz respeito as suas responsabilidades como sensei na promoção e difusão da caligrafia japonesa. Como no Japão, existe uma relação mestre-discípulo, de certa forma, dentro do Aikokai. E é interessante pensar no que essa relação produzirá de frutos no futuro. 182 No último ano, 2013-2014, mais frequentemente, tem havido uma dinâmica em que os praticantes buscam expressar de forma pessoal um determinado caractere. Na parte final da aula, os trabalhos são colocados lado a lado e os sensei expõem críticas, comentando o que ficou bom e o que poderia ser melhorado. O que eles têm frisado é uma busca de expressão pessoal e o que faz uma boa caligrafia. Não existe uma “conformação” ao trabalho de cada um, mas sim estímulo. Isso se afasta, a princípio, do que parece ser um problema apontado como estagnação no Japão, e pode propor potências a serem descobertas ou desenvolvidas. É possível que a incentivada expressão pessoal nessas dinâmicas, e nas aulas como um todo, proponham novos olhares aos participantes, e talvez, daí, surjam possibilidades de um caminho próprio da caligrafia japonesa em São Paulo. Figura 04: Os sensei Takashi Wakamatsu e Etsuko Ishikawa fazendo colocações sobre o trabalho criativo dos alunos no Shodô Aikokai (fonte: Rafael Tadashi Miyashiro). Notas 1 Uma rápida pesquisa na internet mostra essa diversidade. Websites como http://editorajbc.com.br/agenda/ mostram alguns exemplos. 2 Em japonês: Eifujin. 3 Em japonês: Ogishi, considerado um dos melhores calígrafos da caligrafia chinesa. 4 Em japonês, também se fala de uma “escrita magra”. 5 Nitten continua, até hoje, uma exposição tradicional de artes japonesas. 6 Em: http://www.japantimes.co.jp/culture/2013/05/22/arts/power-and-mastery-of-the-blank-space-tokoshinoda/#.UzjNo14mA3A 7 Essa conversa aconteceu de modo informal, durante a visita do sensei Morimoto em São Paulo, por ocasião da exposição no MASP “Mestres do Sho Contemporâneo”. 8 Para maiores detalhes, ver as diversas publicações de SATO e NAKAMURA, nas referências bibliográficas. 9 Ver Miyashiro (2009) para maiores detalhes. 183 10 Já fizeram parte do Shodô Aikokai diversos sensei, inclusive aquele que é reconhecido como o grande calígrafo de São Paulo, o falecido sensei Watanabe – grande incentivador do estilo de shodô alfabético, que trabalha técnicas de caligrafia japonesa com caracteres romanos. 11 A ordem dos nomes foi padronizada como: sobrenome e nome para japoneses vivendo no Japão; e nome e sobrenome para japoneses que vivem no Brasil, como no caso dos sensei. 12 Monica Jury Terada é a mais nova sensei, sendo de geração mais jovem que a dos outros sensei mencionados. 13 Esta e as demais demonstrações de vídeo utilizadas neste artigo se encontram em https://www.youtube.com/watch?v=Y6UlSPT9dxw. Acesso em 31/03/2014. Referências Bibliográficas DRISCOLL, Lucy; TODA, Kenji. Chinese Calligraphy. Chicago: University of Chicago Press, 2007. EARNSHAW, Christopher. Sho: Japanese Calligraphy. Tokyo: Charles E. Turtle, 1988. EXPOSIÇÃO da arte da caligrafia moderna do Japão 1975. Tóquio, Mainichi Newspaper, 1975. [catálogo]. HOLMBERG, Ryan. Dragon knows dragon. Tese (Doutorado). 1998. Art History Department, Boston University, Boston. KENRICK, Vivianne. Toko Shinoda: personality profile. The Japan Times online. Disponível em http://search.japantimes.co.jp/cgi-bin/fl20030322vk.html. Acesso em 03/07/09. GRAY, Paul. Works of a Woman’s Hand. Times. Monday, Aug. 01, 1983. Disponível em http://www.time.com/time/magazine/article/0,9171,921335-2,00.html. Acesso em 03/07/09. MUNROE, Alexandra. Japanese Art after 1945: scream against the sky. Nova York: Harry N. Abrams (Inc), 1994. NAKAMURA, Fuyubi. Creating new forms of "Visualized" Words: An study of Contemporary Japanese Calligraphy. 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São Paulo: 25/05/2008, formato digital de vídeo e áudio. 15’. Wakamatsu, Takashi. Takashi Wakamatsu: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro. São Paulo: 08/06/2008, formato digital de vídeo e áudio. 10’. _____, Takashi. Takashi Wakamatsu: depoimento. Entrevistador: Rafael Tadashi Miyashiro. São Paulo: 13/07/2008, formato digital de vídeo e áudio. 20’. Vídeo Youtube. Calligrapht Abstract Expressionism. Disponível em https://www.youtube. com/watch?v=tFsa1sL3YJo&index=6&list=LL1LBte6T0z1rpYqEZuoNWAA. Acesso em 31/08/2008 [retirado do ar]. Rafael Tadashi Miyashiro. É mestre em Artes pelo PPG-Arte/Unicamp e doutorando do PPG-Artes Visuais/Unicamp, sob orientação da profa. Dra. Anna Paula Silva Gouveia. Tem experiência na área do design gráfico e é docente no curso de Design na Universidade Presbiteriana Mackenzie. 185 O EXERCÍCIO DA CÓPIA NA ARTE CHINESA Maria Fernanda Lochschmidt - Pesquisadora Autônoma RESUMO: Copiar na arte chinesa possui conotações muito distintas às do Ocidente. Na China, a reprodução ou imitação de um objeto por um artista persegue na maioria dos casos a conservação de tradições, assumindo assim matizes positivos em vez de negativos. Em uma cultura milenar que reverencia o passado, a cópia torna-se um importante instrumento de conservação estrutural através de gerações. Este trabalho tem os seguintes objetivos: analisar o exercício da cópia como um conceito presente em textos chineses antigos sobre estética; pretende nomear algumas das diferentes funções que a reprodução de objetos de arte cumpriu na longa História da Arte chinesa – como autoafirmação artística, conservação de tradições chinesas sob domínio estrangeiro, aumento da oferta de obras de arte em épocas de auge do colecionismo, legitimação de poder, entre outros – e, finalmente, elucidar recentes estudos realizados e publicados sobre a matéria no Ocidente. Palavras-chave: cópia, História da Arte chinesa, Xie He, pintura chinesa, colecionismo. ABSTRACT: Copying has very different connotations in China and in the West. In China, the reproduction or imitation of an object by an artist has in most cases the intent of preserving traditions, thus taking positive rather than negative implications. In an ancient culture which reveres the past, the copy becomes an important instrument for structural conservation across generations. This paper has the following objectives: to analyze copying as a concept in ancient Chinese texts on aesthetics; to name some of the different functions that the reproduction of art objects has fulfilled in the long history of Chinese art – such as artistic self-assertion, conservation of Chinese traditions under foreign rule, to increase the supply of works of art in peak times of art collecting, legitimization of power, among others – and finally to elucidate recent studies conducted and published about the subject in the West. Keywords: copy, History of Chinese Art, Xie He, Chinese painting, art collecting. Nos primórdios da História da Arte chinesa, quando ambas as artes, a caligrafia e a pintura, começam a ser apreciadas e colecionadas por indivíduos, o exercício da cópia no processo criativo, já era reconhecido nos mais antigos textos sobre estética. Eles datam do período dos Três Reinos 3Ee Seis Dinastias =^ (220 - 581), época que se segue à queda da dinastia Han ŏě(206 a.C. - 220 d.C.) e que se caracteriza pela fragmentação do território chinês e pela tensão política reinante. Não encontrando mais respostas no confucionismo, filosofia que havia conduzido os Han durante quatro séculos, os intelectuais e artistas chineses voltamse ao taoísmo e ao budismo em busca de inspiração. 186 É nessa época que o pintor e teorético de Nanjing ˆX, Xie He ƯƷ (ativo ca. 500-535 d.C.), escreve “Os Seis Princípios Estéticos que tornam uma pintura valiosa”, hui hua liu fa ƀ ş u ŀ , que são os textos chineses sobre estética completos mais antigos que se conhecem. Os ”princípios” podem ser traduzidos como cânones, leis ou elementos pelos quais as pinturas e os pintores podem ser julgados. Sua influência na crítica de arte chinesa perdurou e eles continuam sendo referência no presente. Os “princípios” constituem a formulação inicial de toda reflexão sobre a pintura chinesa (KNEIB, 1999, p. 449). Sua importância pivotal na teoria da arte reside na quantidade de autores que estudaram esses cânones, tanto no Oriente como no Ocidente, dandolhes distintas interpretações e diferentes traduções para o inglês. O texto de Xie He ƯƷ é relativamente curto: não ultrapassa 2000 ideogramas. Os Seis Princípios são: 1 – “Animação pelo espírito de consonância”, ou “ritmo harmônico do alento, vitalidade” (KNEIB, 1999, p. 449) “Harmonia espiritual” (SULLIVAN, 2008, p. 102). Este primeiro princípio é, como acontece com muitos conceitos na História da Arte chinesa, impreciso, dando lugar a múltiplas interpretações. Segundo Alexander Soper, o pintor deve perceber o qi &, a essência, o sopro, a força cósmica vital dos seres animados e inanimados, e transportá-lo a sua pintura (SICKMAN e SOPER, 1971, p. 112). De sua parte, o observador deve poder percebê-lo imediatamente. A capacidade acima referida, de perceber a essência vital das coisas e transportá-la por meio de um pincel à seda ou papel, é uma qualidade relativa à genialidade do artista e não pode ser adquirida pelo aprendizado técnico. Trata-se de uma qualidade fundamental na História da Arte chinesa, pois separa o artista letrado do artesão. 187 2 – “Método estrutural no uso do pincel”. Esta regra deriva da caligrafia chinesa e se refere ao movimento do braço e da mão, à coreografia corporal no ato da pintura. 3 - “Fidelidade ao objeto ao retratar as formas”. No caso, refere-se ao desenho e pode ser interpretado como uma maneira de realismo na representação. 4 - “Conformidade com o objeto ao aplicar as cores”. Na época, as pinturas chinesas eram quase sem exceção coloridas. A pintura monocromática debuta séculos depois. 5 - “Planejamento adequado ao colocar os elementos temáticos na pintura”. Neste princípio, a preocupação era com a composição. 6 - “Transmissão da experiência do passado realizando cópias”. Este princípio deve ser entendido como uma recomendação feita por Xie He ƯƷ aos artistas, a utilizarem a cópia como elemento de aprendizagem (SICKMAN e SOPER, 1971, p. 113). O pintor deve copiar os mestres do passado a fim de compreender a execução de grandes obras de arte. O exercício da cópia demanda grande observação do objeto. Somente após compreender o estilo e método de mestres da antiguidade, o pintor pode proceder na evolução de seu estilo. Este cânone parte da ideia de que a arte não é um esforço humano isolado, mas está relacionada com a tradição e o diálogo cultural contínuo. A prática da cópia na pintura e na caligrafia como método de aprendizagem consta em textos sobre estética ainda anteriores aos “Seis Princípios” de Xie He Ư Ʒ. Gu Kaizhi ǙýQ (344-406), autor de uma das mais antigas pinturas chinesas sobreviventes – “Admoestações à Donzela da Corte”, hoje no British Museum – explica em seu “Tratado de Pintura” lun hua Ʈş os procedimentos técnicos da cópia a aprendizes, através da própria experiência. Detalhadamente, Gu refere-se ao modo de uso e colocação da seda ou do papel para efetuar cópias; explica como 188 manejar o pincel e adverte sobre a utilização de cores ao desenhar montanhas, figuras, bambus, pinhos, etc. no ato da reprodução (BUSH e SHIH, 1985, p. 32-35). Copiar como método de aprendizagem nem sempre foi encorajado. Durante a dinastia Tang ™ě (618-907), a era mais cosmopolita da história chinesa, a arte torna-se exuberante, realista, refletindo o vigor da sociedade e do governo aristocrático e expansionista. O Império do Meio, cujo maior símbolo é a Grande Muralha, estava na era Tang ™ě aberto a estímulos externos. Nos textos sobre estética da época, a tendência era pintar em conformidade com as aparências. Isto é, a partir da observação visual e não de um modelo. Zhang Yanyuan éǃ (815-877) foi um pintor da província de Shanxi ÌƦ e autor de vários textos sobre arte e caligrafia, entre eles “Pintores famosos através da história” li dai ming hua ji ^’şƩ. Em seu estilo próprio de escrever, Zhang combina fatos históricos com crítica de arte. Para ele, a originalidade e a criatividade devem ser privilegiadas, opondo-se à estereotipação da pintura. No que concerne à transmissão de técnicas do passado, Zhang desencoraja a transmissão (de técnica) pela cópia, reprodução ou imitação (BUSH e SHIH, 1985, p. 53-55). Durante a dinastia Song ¿ě (960-1297), a China retorna aos ensinamentos de Confúcioº¹(551-479 a.C.) fazendo do neo-confucionismo sua ortodoxia de estado. O maior arquiteto do neo-confucionismo, que combina princípios do confucionismo com o budismo e taoísmo, foi Su Shih: ƛƻ (1037-1101). Su foi o primeiro a definir as diferenças entre o pintor letrado e o pintor artesão ou profissional. Baseado em ideias taoístas e do budismo zen, mantinha que o poder de total concentração no momento de pintar e a criação espontânea eram mais importantes do que praticar técnicas de pintura (BUSH e SHIH, 1985, p. 193). Su Shih ƛƻ advogava contra a reprodução de aparências visuais na pintura, e a favor de colocar a representação pictórica nos limites da imaginação do artista e do observador (BUSH, 2012, p. 26-27). O famoso imperador Song, Huizong ò À , (1082-1135), poeta, calígrafo, músico, colecionador e conhecedor de arte, criador da Academia Imperial de Pintura, 189 a Han Lin Hua Yuan ƃĥşǏ, foi um prolífico pintor e copista de obras antigas de artistas famosos. Segundo fontes bibliográficas, deixou “cerca de mil pinturas” de motivos auspiciosos. Grande parte dessas pinturas, as próprias e de sua coleção, foram perdidas. Em 1126, a capital Kaifeng njÅ foi invadida pelos Jin tártaros e Huizong òÀ, levado prisioneiro, falece em cativeiro em 1135. Segundo crônicas da época, que relatam sobre a vida do imperador artista, bastava o soberano produzir uma pintura, para que imediatamente membros da Academia se apurassem em copiá-la no estilo ortodoxo palaciano e, se tivessem sorte, teriam suas obras inscritas pela mão imperial (SULLIVAN, 2008, p. 187). Entre as pinturas ainda existentes atribuídas a Huizong òÀ encontra-se o rolo horizontal “Damas da corte preparando a seda recém-tecida”, de começo do século XII, hoje no Museu de Belas Artes de Boston. Trata-se de uma meticulosa interpretação de uma pintura de Zhang Xuan éƗ (713-755), onde os finos traços e as cores elegantes refletem o gosto imperial na reprodução. Zhang Xuan éƗ era um pintor da dinastia Tang ™ě(618-907), que após ganhar duas cópias de suas obras da mão do imperador Huizong TI, tornou-se indispensável para o estudo da pintura daquela época, principalmente pela organização composicional (WU, 1997, p. 76). Figura 1: Detalhe do rolo horizontal de Huizong òÀ, (1082 -1135), cópia de “Damas da Corte preparando a seda recém-tecida”, de Zhang Xuan éƗ (713-755). 37,1 por 145 cm, tinta, cores e ouro sobre seda, Museu de Belas Artes de Boston Fonte: Three Thousand Years of Chinese Painting, 1997, p. 78 / Japanese and Chinese Special Fund 190 No final do século XII, os mongóis sob o comando de Ghengis Khan (11621227), conquistam grande parte da Ásia. O neto do Grande Khan, Khubilai öôŒ (1215-1294) conquista a China, recebe o Mandato do Céu e inaugura a dinastia Yuan pě(1297-1368). O domínio mongol fez com que muitos intelectuais chineses optassem por viver em reclusão, recusando-se a servir seus governantes bárbaros. Uma exceção foi o pintor e calígrafo, descendente da família imperial Song ¿, Zhao Mengfu Ƹ¼ (1254-1322), quem decide servir a corte de Kubilai Khan öôŒ (1215-1294) a fim de perpetuar a tradição chinesa. Seu estilo, tanto na caligrafia como na pintura, derivava de modelos arcaicos que demonstram a clara intenção de preservar a continuidade cultural em vez de deixá-la minguar nas mãos dos invasores. Em suas pinturas de paisagem, Zhao reviveu as tradições do passado criando seu próprio estilo através da cópia de pinturas antigas (BUSH, 2012, p. 118-119). Durante a era Ming °đ (1368-1644), o poder é restaurado aos chineses Han k e a sociedade vive quase três séculos de paz e prosperidade. Com a melhoria das vias de comunicação e o incremento do comércio, surge em meados do século XVI uma nova classe social afluente: a dos comerciantes. Esta nova classe social, de donos de grandes fortunas, gerou novos patronos e colecionadores de arte, os quais não pouparam recursos para adquirir antiguidades, obras de arte e contratar artistas. Tradicionalmente, segundo os preceitos do confucionismo, um pintor letrado não vendia suas pinturas, mas as ofertava. Já os pintores profissionais, tidos na China como artesãos, pintavam por encomenda e muitos deles eram copistas profissionais. O pagamento ao pintor profissional era feito com dinheiro, oferecendo antiguidades ou simplesmente através da hospitalidade, recebendo alojamento, comida e amenidades (CAHILL, 1994, p. 65). 191 Qiu Ying 6z (1494-1552), um dos Quatro Mestres da dinastia Ming °đ, passou vários períodos de sua vida profissional trabalhando como pintor residente para distintos patrões, copiando álbuns de pinturas antigas (CAHILL, 1994, p. 67). Um caso mais extremo foi o do famoso mestre de Suzhou ƛØ, Zhou Chen D x (1460-1535), que foi forçado a passar dois meses em NanjingˆX, na residência do poderoso ministro Yan Song œÕ (1480-1567), provavelmente copiando antigas pinturas de sua coleção e produzindo pinturas de paisagens (CAHILL, 1994, p. 67). Em meados da dinastia Ming °đ (1368-1644) diminui o patronato imperial das artes em duas capitais, Beijing †X e Nanjing ˆX. O período coincide com o surgimento de um importante grupo de artistas e intelectuais na cidade de Suchow ƛØ, entre os quais estava Zhu Yunming Ũođ (1461-1527). Zhu e seu círculo seguiam a tradição caligráfica da dinastia Song do Norte † ¿ě (960-1127), que se distinguia por um estilo direto e natural, opondo-se ao estilo ornamentado da corte. No entanto, diferentemente de seus antecessores da era Song ¿ě, que desenvolveram seu estilo como expressão de individualismo, Zhu e seus seguidores utilizaram estilo como meio de engajamento filosófico e político, praticando sua arte como forma de educação moral. De acordo com a doutrina confucionista, quando a reforma política é necessária e as oportunidades dos intelectuais de se engajar são limitadas, resta como única solução de melhoria a responsabilidade do próprio intelectual de cultivar seu caráter. Em muitos de seus textos, Zhu expõe sobre questões sociais e políticas rejeitando a ortodoxia neo-confucionista. Em sua mais famosa peça caligráfica de 1515, o rolo horizontal intitulado “Copiando o Clássico Amarelo de Wang Xizhi”, Zhu exemplifica sua busca pela tradição clássica. 192 Zhu passou toda sua vida de calígrafo copiando “O Clássico da Corte Amarela” Huang Ting Jing åź, datada 356, de Wang Xizhi ŖƂQ (307-365), o pai da caligrafia no Oriente. A cópia mais antiga realizada por ele da qual se tem conhecimento, foi realizada em 1486. Zhu continuou copiando a obra mestre até chegar à cópia ideal, realizada em 1515 (WEN, 1996, p. 381). Figura 2: Zhu Yunming Ũođ (1461-1527), cópia de “O Clássico da Corte Amarela” Huang Ting Jing åź de Wang Xizhi ŖƂQ (307-365). Datação: ca. 1515. Detalhe do rolo, tinta sobre papel, (21,3 por 73,2 cm). Museu Nacional do Palácio, Taipé. Fonte: Possessing the Past, 1996, p. 380 / NPM 193 Em 1644 os Manchus, povo seminômade do nordeste da China, tomam a capital Beijing †X e gradualmente a integridade do território chinês, fundando a dinastia Qing Ňě (1644-1911). A pesar de terem adotado os princípios da civilização chinesa e trazido bem estar material e paz ao povo chinês, os Manchus precisaram criar estratégias para obterem aceitação popular. Uma delas foi a divulgação da própria imagem. É notável a quantidade de retratos oficiais e privados que foram produzidos, principalmente de dois imperadores, Kangxi æœ (1662-1722) e Qianlong 5 (1736-1795). No Museu do Palácio, em Beijing † X , existem quatro retratos muito semelhantes do imperador Qianlong Rǐ. Nas quatro versões, quase idênticas, ele é retratado sentado em frente a um biombo, sendo atendido por um servidor, em ambientação típica reservada a estudiosos, mestres e intelectuais chineses de antigamente, rodeado de antiguidades.’ Uma delas é provavelmente da autoria do pintor profissional da corte Yao Wenhan ·Čő (ativo 1739-1756), e as outras três são anônimas (STEUBER, 2012, p. 161-164). Elas são uma interpretação de um protótipo que mostra um letrado chinês, também sentado diante de um biombo, sendo servido por seu criado e rodeado de antiguidades, exemplificando e idealizando a imagem de um intelectual chinês. O protótipo é uma pintura anônima da dinastia Song ¿ě(960-1297), parte do acervo do Museu Nacional do Palácio em Taipé Ž † , que pertenceu ao imperador Qianlong Rǐ. As versões de Beijing †X são interpretações do protótipo de Taipé Ž†, e seriam apenas quatro das muitas réplicas que devem ter sido produzidas para divulgar a imagem do imperador como letrado e seguidor dos preceitos confucionistas. Imagem que serviria para legitimar sua posição como filho do céu diante da sociedade chinesa. 194 Figura 3: Pintor anônimo, dinastia Song ¿ě (960-1297), “Letrado”, tinta e cores sobre seda, (29,0 por 27,8 cm) Museu Nacional do Palácio, Taipé Ž† Fonte: Art and Culture of the Sung Dynasty, 2000, p. 180 / NPM Figura 4: Yao Wenhan, ·Čő (ativo 1739-1756), detalhe do rolo “Qianlong como letrado”, tinta e cores sobre papel (46,5 por 198 cm), Museu do Palácio, Beijing Fonte: Original Intentions, 2012, p. 162 / Palace Museum Beijing 195 Figura 5: Três versões de “Qianlong como letrado” Acima: pintor anônimo da corte (ca. 1740-1750), tinta e cores sobre papel (77,0 por 142,2 cm) Museu do Palácio, Beijing Esquerda: pintor anônimo da corte, tinta e cores sobre papel (76,5 por 147,2 cm) Museu do Palácio, Beijing Direita: pintor anônimo da corte, tinta e cores sobre papel (193,0 por 243,5 cm) Museu do Palácio, Beijing Fonte: Original Intentions, 2012, p. 162 e 163 / Palace Museum Beijing Na China existem ao menos três tipos de técnicas para reproduzir pinturas. Uma denomina-se mó Į, que é realizada pelo traçado feito diretamente em contato com a obra a ser copiada. A outra se chama lin Ɖ, que é quando o pintor copia a obra que está à sua frente, e a terceira é fang ǝ, que é a interpretação livre de uma obra por um artista (SICKMAN e SOPER, 1971, p. 228). Sobre a técnica mó Į , realizada pelo traçado direto sobre a obra, o historiador de arte, poeta, calígrafo e pintor Zhang Yanyuan éǃ (815- ca. 877) da dinastia Tang ™ě (618-907) comenta: [...] quando se encontra um rolo de pintura excepcionalmente fino, aqueles que a copiam pelo traçado ajudarão a entesourá-lo. Pois após guardar o original, a cópia poderá ser mantida como documentação da mesma (BUSH e SHIH, 1985, p. 71; tradução nossa). 196 A autenticação e atribuição de uma pintura chinesa ocorrem através de assinaturas, colofões, inscrições e também pelo reconhecimento do estilo. Por sua vez, a identificação de um estilo é feito pelo estudo de obras do mesmo autor e suas similaridades, e através de elementos ou conjunto de elementos que tipificam um período (SULLIVAN, 2008, p. 175) O “connoisseurship”, ou a capacidade de reconhecer a mão de um artista, saber se uma obra é um original ou uma cópia, discernir de que período data, etc. são tarefas realizadas por um especialista, isto é, um conhecedor. A qualidade de “connoisseurship” é muito valorizada e respeitada na China, e é considerada uma arte em si já há séculos. Possuir experiência e sensibilidade visual, conhecer obras e textos antigos sobre estética, etc. eram e são requisitos fundamentais para ascender à condição de “connoisseur”. O poeta e pintor Yao Tsui ! (535-602), ao expor sobre a apreciação e crítica pictórica mantinha que [...] somente uma pessoa com profunda percepção e experiência pode julgar uma obra, senão, como pode ela distinguir entre o fino e o vulgar, vencer armadilhas e ciladas para finalmente poder alcançar a verdade?[...] (BUSH e SHIH, 1985, p. 41; tradução nossa). O historiador de arte Zhang Yanyuan éǃ (815- ca. 877) mantinha que “...de fato, a menos que uma pessoa seja dotada de um espírito acima do comum, grande conhecimento, sensibilidade superior e caráter afável, senão, como pode-se começar a falar em "connoisseurship"?" (BUSH, 2012, p. 49) E agrega: Hoje, muitos daqueles que têm conhecimento sobre caligrafia sabem sobre pintura também e, desde tempos antigos, os que as colecionam são numerosos. Por isso, alguns dos que colecionam não chegam a ser “connoisseurs”; outros chegam a ser “connoisseurs”, mas nunca chegam a gozar daquilo que vêm; há ainda outros que aprendem a observar e gozar de suas aquisições, mas são incapazes de realizar as montagens das obras; e finalmente, há aqueles que sabem como realizar montagens de pinturas, mas são totalmente ignorantes para classificá-las. Todas essas são falhas do amante da arte [...] (BUSH e SHIH, 1985, p. 73; tradução nossa). 197 No caso da caligrafia, considerada a mais nobre das artes na China, o reconhecimento de obras valiosas e a prática da cópia também estão bem documentados. Zhang Huaiguan éĀ , calígrafo e crítico de caligrafia da dinastia Tang (618- 907), em seu livro “Discussões sobre Caligrafia” ęƮ, trata das dificuldades de ser um “connoisseur”. Zhang queixa-se de que alguns críticos de caligrafia careciam de conhecimento literário e de habilidade para a arte, e, portanto eram incapazes de compreender e descrever peças caligráficas (BUSH, 2012, p. 49). O poeta, calígrafo e oficial do governo da era Song (960-1297) Huang Tingjian å©(1045-1294) mantinha que: [...] ao estudar caligrafia, pode-se chegar pela cópia à semelhança formal de peças importantes. No entanto, somente ao apreciar de perto peças caligráficas antigas, chega-se a um estado de completa elevação do espírito. Quando estamos diante de peças excepcionais, não devemos nunca desviar a nossa atenção, a fim de podermos alcançar o ponto de completa elevação espiritual. Quando mestres de outrora estudavam caligrafia, eles não copiavam com exatidão outros modelos, senão que os colocavam na parede e os observavam em completa absorção, para depois, ao colocarem o pincel sobre o papel, poderem estar de acordo com suas ideias [...] (BUSH e SHIH, 1985, p. 205; tradução nossa). Concluindo, o peso da tradição na China e o acúmulo de reconhecidas obrasprimas em séculos de História da Arte criaram padrões e modelos dos quais os pintores e calígrafos não podiam escapar. Com isso, o exercício da cópia tornou-se parte da vida artística e veio a cumprir funções das mais diversas e edificantes na arte chinesa. Para citar algumas, aprendizagem, conservação de estilos, preservação da tradição, documentação, legitimação de poder, entre outros. Sua prática foi sempre vista sem criticismo e aceita como um dos pilares de preservação cultural. O conceito de obra falsa realizada pela cópia existiu e existe. A diferença radica na intenção de quem a manipula. 198 Referências Bibliográficas BUSH, Susan e SHIH, Hsio-yen, Early Chinese Texts on Painting, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985 BUSH, Susan, The Chinese Literati Painting, Su Shih (1037-1101) to Tung Ch'i-ch'ang (1555-1636), HARVARD UNIVERSITY ASIA CENTER, Hong Kong, 2012 CAHILL, James, The Painter's Practice, How Artists Lived and Worked in Traditional China, Bampton Lectures in America, Columbia University Press, Nova Yorque, 1994 KNEIB, André, Arts et Histoire de Chine, Volume 2, Presses de l'Université Sorbonne, Paris, 1999 STEUBER, Jason, Original Intentions, Essays on Production, Reproduction, and Interpretation in the Arts of China (Cofrin Asian Art Series), University Press of Florida, 2012 SULLIVAN, Michael, The Arts of China, University of California Press, 2008 WU, Hung, Three Thousand Years of Chinese Painting, Yale University Press, New Haven, Connecticut, 1997 WEN, C. Fong, Possessing the Past, Treasures from the National Palace Museum, Taipei, catálogo da exposição do Museu Nacional do Palácio no Museu Metropolitan de Nova Yorque, 1996 Maria Fernanda Lochschmidt É pesquisadora autônoma brasileira, residiu em Pequim de 1986 a 1989, em Taipé de 1995 a 2002, onde foi orientadora no Museu Nacional do Palácio por quatro anos e onde teve programa próprio de rádio em espanhol sobre arte e cultura chinesa na Rádio Taipé Internacional. É formada em História da Arte pela Universidade de Viena (Mag. phil.) 199 YAMATO-E E WAKA - A PLURALIDADE DA ARTE JAPONESA Neide Hissae Nagae - USP RESUMO: Utilizando exemplos de obras como Sanjûrokunin kashû, a Antologia de poemas dos 36 poetas divinos, produzida no início do século XII, classificada como Tesouro Nacional do Japão, e baseando-nos em estudiosos como NAKANO; HIRATA & SANO (1990) e IENAGA (1972, 1982), propomos a apresentação de um tipo de arte japonesa que integra poesia, pintura, caligrafia e artesanato. Tendo começado como poemas em biombos decorativos, essa forma artística evoluiu para pinturas que ilustravam as quatro estações do ano (shiki-e), as atividades mensais (tsukinami-e) e lugares pitorescos (meisho-e), compondo o universo da pintura japonesa conhecida como yamato-e, que frutificou nos famosos emakimono (pintura em rolo), como Genji monogatari emaki (Pintura em rolo das Narrativas de Genji). Palavras-chaves: yamato-e; Sanjûrokunin kashû; poesia, caligrafia e pintura japonesa. ABSTRACT: Using examples of works like Sanjûrokunin kashû, the Anthology of Poems of the 36 Divine Poets, produced in the early twelfth century, classified as a National Treasure of Japan, and based on scholars as NAKANO; HIRATA & SANO (1990) and IENAGA (1972, 1982), we propose the introduction of a type of Japanese art that integrates poetry, painting, calligraphy and craft. Having started as poems on decorative folding screens, this artistic expression has evolved into paintings that illustrated the four seasons (shiki-e), monthly activities (tsukinami-e) and scenic places (meisho-e), composing the universe of Japanese paintings known as yamato-e, which bore fruit in the famous emakimono (scroll paintings), like Genji monogatari emaki (Scroll Painting Narratives of Genji). Keywords: yamato-e; Sanjûrokunin kashû; poetry, calligraphy and Japanese painting. Sobre a obra A obra Sanjûrokunin kashû (Antologia de poemas waka dos 36 poetas divinos), de data desconhecida, é considerada Tesouro Nacional do Japão desde meados do século XX. Trata-se de uma compilação das antologias poéticas particulares dos 36 poetas mais famosos escolhidos por Fujiwarano Kintô (966-1041), estudioso de poemas waka. Os exemplares transmitidos até o presente são conhecidos pelos nomes de Nishi Honganji bon, Kasen kashû bon, Gunshû ruijû bon, entre outros. O primeiro deles é uma cópia do início do século XII da antologia poética e foi o escolhido para este trabalho por ser a compilação mais antiga que se tem das coletâneas particulares desses poetas e pelo seu admirável teor de elaboração. A começar por 200 dicionários como Kôjien e enciclopédias como Britannica, essa obra é apontada como possuidora de um elevado valor artístico que vai além do poético literário. Yotsutsuji (1990) explica que foram utilizados mais de 60 tipos diferentes de papéis elaborados por uma técnica altamente sofisticada. Com plasticidade artesanal, uns apresentam cor única, outros cores de combinações diversas, podendo apresentar aplicações de pó ou folhas laminadas de ouro e prata em quantidade e tamanhos variados e apresentar pinturas. Segundo o estudioso, transmite-se que a coletânea foi elaborada em comemoração aos 60 anos do Imperador Shirakawa completados em 1112. Em 1549 foi outorgada pelo Imperador Gonara (1496-1557) a Shônyo (1516-1554), monge responsável da décima geração do Templo Honganji, sede da religião Jôdo Shinshû, e, originariamente, era composta por 39 cadernos com poemas das coletâneas particulares dos 36 poetas. Dividindo as coletâneas de acordo com os 20 exímios calígrafos1 que as compilaram, a distribuição apresentada por Yotsutsuji (1990, p. 205) é a seguinte: 1. Hitomaro I e II; Tsurayuki I 2. Tsurayuki II; Shitagô e Nakatsukasa 3. Mitsune 4. Ise; Tomonori; Saigû Nyôgo 5. Yakamochi; Yoshinobu I e II 6. Akahito e Komachi (suposição) 7. Narihira, Sosei e Kanesuke (suposição) 8. Henjô; Yorimoto; Toshiyuki 9. Sarumaru; Atsutada e Koremori 10. Asatada; Kintada 11. Takamitsu; Nakabumi 12. Tadamine 13. Shigeyuki; Kiyomasa 14. Muneyuki; Ko Oogimi 15. Saneakira 16. Okikaze 17. Motosuke 18. Motozane 19. Tadami 20. Kanemori Segundo a enciclopédia Britannica, os poetas Kakinomotono Hitomaro Īğ Zǟ•ǣZǠǤ , Ôtomono Yakamochi °aÃĆe Yamabeno Akahito ÌDžƶZ estão entre os mais antigos e constam na coletânea de poemas japoneses Man’yôshû organizada no século VIII; o Monge Henjô nIJǁē, Ariwarano Narihira 201 ¢Šĭß e Onono Komachi ÇLjÇŝ são os três dos seis poetas divinos da dos séculos VIII e IX; Kino Tsurayuki ŴƳQ, Ôshikôchino Mitsune |Ľzƹú, Ise `„, Monge Sosei ŶøŀÜ, Kino Tomonori Ŵ‹, Sarumaru ŕO°±, Fujiwarano Kanesuke ƚŠyƼ, Mibuno Tadamine ­ŚõÍ, Fujiwarano Toshiyuki ƚŠĉƞ, Minamoto no Muneyuki Ō À U , Fujiwarano Okikaze ƚ Š Ɗ ǚ e Sakanoueno Korenori ¤KĔ são os poetas da época em que se organizou a primeira antologia de poemas waka Kokin wakashû, editada por ordem imperial e concluída no início do século X; Fujiwarano Atsutada ƚŠĊõ, Minamotono Kintada Ōtõ, Fujiwarano Kiyotada ƚŠŇIJ, Ônakatomino Yorimoto °NƈǗ¨, Mibuno Tadami ­ŚõƧ, Minamotono Saneakira Ōiđ, Fujiwarano Asatada ƚŠěõ, Fujiwarano Motozane ƚŠpŤ, Minamotono Shitagô Ōǖ, Nakatsukasa N‚, Saigûno Nyôgo Ď³î, Tairano Kanemori ßyš, Kiyoharano Motosuke ҊpƼ e Ônakatomino Yoshinobu °NƈƇÁ são poetas da época da antologia oficial de poemas waka Gosen wakashû organizada em meados do século X; Fujiwarano Nakafumi ƚŠ_Č, Fujiwarano Takamitsu ƚŠǜq, Kodaino Kimi Ç°“ e Minamotono Shigeyuki ŌLJ Q são poetas da época da antologia oficial de poemas waka Shûi wakashû, organizada no início do século XI. Essas antologias oficiais e particulares e as classificações em poetas divinos, por exemplo, mostram a importância da poesia na vida dos japoneses da época. Alguns dos poetas do Sanjûrokunin kashû possuem mais de uma coletânea nessa obra. A quantidade de poemas não é uniforme e algumas chegam a ter 6500 poemas (SASAKI, 2007). Como sintetiza o dicionário Kôjien trata-se de uma obra valiosa, tanto do ponto de vista da qualidade do papel pela sua riqueza e beleza, como da caligrafia em fonogramas kana do final da Era Heian (794-1185). Desse modo, encontramos reunidas em uma só obra, as belezas da pintura yamato-e, da arte da caligrafia, do papel artesanal decorativo e dos poemas waka. Assim, para apreciar a antologia dos 36 poetas divinos Sanjûrokunin kashû, discorreremos um pouco sobre cada uma dessas formas artísticas. 202 Antes, porém, cabe lembrar que existe uma obra facilmente confundível pela semelhança de nome e de conteúdo, igualmente valiosa, conhecida como Sanjûrokkasen emaki (Pinturas em rolo dos 36 poetas divinos), que traz um retrato de poetas e poetizas renomados da época, cada qual, acompanhado por uma sinopse de seu histórico e um poema de sua autoria. Havia muitas obras semelhantes, e a mais renomada é a que pertenceu à antiga Família Satake. Conforme Nakamura (1968, p. 108), “essa obra era composta por 2 volumes e foi pintada por Fujiwarano Nobuzane, famoso artífice, hábil em retratos nise-e, e caligrafado por Gokyôgoku Yoshitsune / Fujiwarano (Kyûjô) Yoshitsune”. Atualmente, contudo, encontra-se dividida nas partes correspondentes a cada poeta e os fragmentos são mantidos por diferentes famílias. As diversas poses, expressões, coloridos das vestimentas, desenhos minuciosos, imagem equilibrada, mostram o refinamento dessa obra (NAKAMURA, 1968) além, obviamente, da beleza da caligrafia, do poema waka e do papel decorativo e outros materiais utilizados. Podemos citar como exemplo a figura da dama Saigûno Nyôgo (929-985) na versão Agedatami bon2 de meados do século XIII com 27,9cmX 51,14cm, acervo do Freer Galery of Art de Washington. Com uma cortina ao lado e diante de uma caixa com material para caligrafia, Saigûno Nyôgo está compondo um poema vestida com o quimono de gala com várias sobreposições, conhecido como kasaneuchigi, em que o tecido de cima é estampado e o forro é de seda de colorido forte (a figura da dama é semelhante ao do Satake bon no qual ela também está sobre o tatame mas não é possível atestar qual o mais antigo). Conhecida como famosa poetiza da época, seu pai era o príncipe Shikibukyô Shigeakira Shin'nô e sua mãe, Kanshi, filha de Fujiwarano Tadahira. Tornou-se Saigû em 936 e vai a Ise em 938, mas deixa o ofício em 946 devido à morte da mãe. Em 948, torna-se dama da corte e no ano seguinte vira dama (nyôgo) do Imperador Murakami, passando, então, a ser chamada de Shôkyôden Nyôgo. Falece em 985 aos 57 anos de idade. É autora da obra Saigûno Nyôgo Onshû (Coletânea da Dama Saigû) escrita em terceira pessoa, sem divisão temática (budate) ao estilo de uma narrativa monogatari, com poemas requintados, mas que mostram um sentimento bastante profundo, como o que segue: 203 ř!ǕÒ!ģǚǀ$/d2!Ž.0Ƭ&}+6 Leitura: Kotononeni/ minenomatsukaze/ kayourashi/ izurenooyori/ shirabesomeken Sentido: O vento dos picos ressoam nas cordas do koto. Qual delas teria iniciado essa bela melodia! Essa composição corresponde ao poema 45 no tema Diversos do Tomo VIII da antologia oficial Shûi wakashû, a terceira das vinte e uma antologias oficiais de poemas waka. Isto é, faz parte de um imenso acervo de poemas compostos pelos japoneses desde os tempos mais remotos até os dias de hoje. O poema waka, também conhecido como yamato uta, assim passou a ser identificado em contraposição ao kanshi, poema chinês, chamado de kara uta, e representa o valor das características japonesas que ficaram ofuscadas pelo brilho da cultura chinesa continental importada. Após o encerramento das expedições ao continente chinês em 894, iniciadas em 607, o Japão passou a desenvolver e aprimorar suas características autóctones, e houve o florescimento dos poemas e outros gêneros literários graças ao advento dos fonogramas kana, desenvolvidos a partir dos ideogramas chineses. A riqueza dos poemas waka, que se consolidam na forma de 31 fonogramas, é resultados desse longo processo histórico, assim como as demais produções artísticas e culturais como o yamato-e. Sobre a pintura japonesa yamato-e Ao explicar o que é yamato-e, a estudiosa Senno Kaori (1960), aponta a imprecisão do termo e diz que a palavra provavelmente realizada com o som de yamato-e, grafada com os ideogramaskŹ surgiu nos registros escritos mais no final do século X e foi sofrendo modificações com o passar do tempo. Por isso, ela utiliza a definição dada por Akiyama Terukazu em 19643 e que o definiu de modo científico por volta de 19414 e 19425 tendo por parâmetro o conceito de Heian, ou seja, pinturas com motivos japoneses em contraposição a kara-e, pinturas com motivos chineses. Também designava as pinturas feitas em shôji e biombos com uma dimensão bem maior que os quadros e encadernações. Após a introdução das 204 pinturas monocromáticas chinesas na Era Chûsei (1185-1603) e os ensaios japoneses que imitavam os quadros chineses, estes são chamados de kara-e, enquanto yamato-e mudava de sentido passando a designar todas as pinturas japonesas desde Heian e assumindo essa imprecisão. Senno utiliza yamato-e no sentido utilizado no período Heian e explica que na época shôji designava não apenas as portas corrediças que deixavam passar a claridade tendo as esquadrias quadriculadas forradas com papel japonês. Designavam também as corrediças forradas com papel mais grosso conhecido como fusuma e outros utensílios divisórios portáteis que ficavam em pé, geralmente feitos de madeira forrados com tecido ou madeira. Os biombos, por sua vez, diz Senno, não diferem tanto do que a palavra designa hoje. Compostos por duas ou mais pranchas, também serviam para divisão de ambientes. Dobráveis, podiam ser guardados quando necessário, sendo utensílios indispensáveis para as pessoas de Heian. Assim, yamato-e está presente nas representações dos eventos anuais, dos costumes e das mudanças da natureza, tanto em biombos e shôji, como em leques e nos papéis coloridos shikishi. Essas pinturas japonesas temáticas ficaram conhecidas como tsukinami-e (pintura de cada mês) ou como shiki-e (pinturas das estações). Esta última, conforme explica a enciclopédia Britannica, constituiu a base das produções japonesas até o período pré-moderno, unificando a temática da constituição das pinturas em rolo, das pinturas monocromáticas e das pinturas dos biombos com temas da natureza, tradicionalmente, montanha, água, flor e pássaro. Essas pinturas são produzidas com função decorativa em utensílios cotidianos da aristocracia da época, cuja base eram a madeira e o papel washi. Sobre washi, o papel japonês Matsuda Koichi (1994), apresentando o papel japonês washi, lembra que o papel foi transmitido ao Japão cerca de 500 anos depois de ter sido inventado na China. Desenvolveu-se entre o final do século VI e início do século VII pelas mãos de técnicos coreanos que usaram o linho para produzir o papel manualmente. Passou a ser muito utilizado desde o século IX, como se pode atestar pela várias obras literárias e registros escritos e pelos utensílios domésticos da aristocracia japonesa feitos à base de papel. Como diz o estudioso na Introdução, “washi é um 205 papel tipicamente japonês que vem sendo produzidos há quase 1300 anos. Sua principal característica é a fabricação manual, a partir de fibras de floema de vegetais como kozo, gampi e mitsumata” (MATSUDA, 1994, p. IX). Ele registra que em 907 o governo japonês tinha capacidade para produzir vinte mil folhas de papel por ano e 42 províncias pagavam seus impostos com papel e cita a obra Sanjûrokunin kashû como uma mostra do apogeu da produção do papel japonês. Enquanto mitsumata era utilizado para o papel moeda, kôzo foi utilizado para os papéis de shôji, guarda-chuva, xilogravura e ganpi para papéis finos, resistentes, bonitos e lustrosos, utilizados para a compilação de sutras e na época Heian, muito apreciados pelas mulheres da corte imperial quando coloridos para serem utilizados como lenços (Britannica). Washi, por sua vez, é uma denominação que surgiu na Era Meiji (1867-1912) para designar a técnica manual de fabricação de papel em contraposição ao papel ocidental produzido por máquinas, mas que hoje já não se distinguem pela técnica. Segundo a enciclopédia Britannica, além do papel “branco”, existia o papel colorido shikishi. Ele é mais espesso, apresenta tamanhos e formatos variados, geralmente em cores que vão do branco ao creme. Pode, ainda, ter outras cores, ser decorado com desenhos, enriquecido com chamuscados ou laminados de metais como ouro, prata, bronze ou zinco e outros materiais de base vegetal ou animal como pelos e penas. É utilizado como um cartão ou quadro para se escrever poemas, pinturas e recordações. Em geral, seguem uma medida padrão de 19,4 cm X 17 cm; 18,2cm X 16cm e 9 cm X 9 cm. Há, ainda, os de 27,2 cm X 24,2 cm que são usados tanto para caligrafia quanto para pintura. Ogura shikishi que se diz ter sido escrito por Fujiwarano Sadaie, ou Teika como ficou conhecido, é considerado o mais antigo. Embora coberto de incertezas, acredita-se que a obra conhecida como Hyakunin isshu (Um poema de cem poetas) corresponda a esses shikishi, segundo os registros constantes em Meigetsuki, o diário de Teika, vai desde 1180 até 1235. LAMARRE (2000) denominou a superfície do papel utilizada para caligrafar e pintar de “paperscape” literalmente um papel-cenário a exemplo de landscape e naturescape produzindo uma combinação fantástica como num trabalho de patchwork. De fato, essa técnica milenar continua sendo utilizada em cartões, envelopes, quadros de caligrafia e outros objetos decorativos feitos em papel, 206 atualmente produzidos em computador, mas ainda causando uma sensação de trabalho manual elaborado de modo artesanal. Sobre a caligrafia Juntamente com a invenção do papel no período Han posterior (Gokan 20220) da China, a melhoria dos pincéis propiciaram o desenvolvimento da técnica de caligrafia a pincel a qual prosperou com Wang Xi-zhi (Ôgishi 303-361,) e Wang Xianzhi (Ôkenji 344-386), na época de Wei (Gi) e Jin (Shin) e foi transmitido ao Japão. A enciclopédia Mypedia define a caligrafia como uma arte plástica que utiliza as letras e que se desenvolveu na China, Coreia e Japão. E neste último, após a criação dos fonogramas kana, surgiu Onono Michikaze ou Tôfû (894-964) que criou a caligrafia em estilo japonês, mais suave e balanceada e que deu origem a escolas como a Kyôgoku, Shôren’in e Sesonji. A exemplo da chinesa, a caligrafia japonesa utiliza pincel e tinta nanquim, o que propicia formas e estilos de escritas diferentes de acordo com o emprego do pincel. Em linhas gerais, a forma kaisho executa os traços das letras um a um, obtendo-se um resultado semelhante às letras impressas; a forma gyôsho resulta em uma escrita mais solta, em que a passagem de um traço para outro é acompanhado por um leve arrastar do pincel e a forma sôsho, por sua vez, é produzida por um deslizar do pincel nos traçados imprimindo maior ou menor pressão nos traços. Resulta em letras desmanchadas pelo modo suave e veloz de deslizar o pincel na hora da escrita. Sobre o poema de Shigeyuki Dentre as contempladas pelos catálogos de artes, escolhemos para esta apresentação a obra que traz o poema da coletânea particular de Minamotono Shigeyuki (?999-1003?) na coletânea Sanjûrokunin kashû dos 36 poetas divinos. A enciclopédia de famosos poemas waka e haiku Meika meiku jiten apresenta 67 poemas seus selecionados para as Antologias Oficiais a partir do Shûi wakashû, a 207 terceira, organizada no início do século XI, supostamente pelo Imperador Kazan e os poetas que o serviam. Conforme os levantamentos realizados por SHIMADA (1968), listamos abaixo os poemas de Shigueyuki constantes nas coletâneas oficiais, com sua numeração, seguida pelo número recebido em sua coletânea particular entre parênteses, quando for o caso: Shûi wakashû - 14 poemas: 4 (221), 81 (241), 83 (239), 223 (287), 262 (300), 349 (132), 385 (não tem), 412 (extraído do primeiro poema do rolo Fuji VI), 591 (3), 705 (não tem), 938 (301), 1072 (244), 1304 (212), 1097 (não tem); Goshûi wakashû - 15 poemas: 168 (242), 216 (264), 219 (Livro da 2ª linhagem 210), 447 (147), 515 (218), 597 (103), 598 (não tem), 685 (306), 828 (305), 973 (87), 977 (205), 1062 (140), 1117 (138), 1129 (4), 1153 (144); Kin’yô wakashû - 3 poemas na primeira versão: 101, 334, 390; 3 poemas na terceira e última versão: 1, 269 e 338; Shika wakashû - 2 poemas: 6 (225) e 210 (303); Shin kokin wakashû - 11 poemas: 28 (106), 119 (67),120 (123), 553 (275) ,612 (247), 644 (54), 864 (315),1013 (308), 1216 (245),1218 (não tem),1351 (28); Shin chokusen wakashû - 1 poema: 76 (não tem); Shoku goshûi wakashû - 5 poemas: 44 (223), 256 (263), 646 (não tem), 742 (302), 1259 (29); Shoku Kokin Wakashû - 1 poema:1248 (269); Gyokuyô wakashû - 11poemas: 218 (232), 1112 (34), 1230 (36), 1640 (270), 1654 (268), 1655 (272), 1843 (191), 1874 (112), 1949 (266), 2100 (314), 2101 (294); Shoku goshûi wakashû - 2 poemas: 142 (228) e 1223 (Shigeyuki no Musumeshû); Shin senzai wakashû - 1 poema: 551 (24); Shin shûi wakashû - 3 poemas: 146 (não tem), 848 (211), 1894 (203); 208 Shin goshûi wakashû, 1 poema: 647 (não tem); Shin shoku kokin wakashû - 2 poemas: 82 (230) e 387 (34). Shigeyuki também faz parte dos poetas que compõem a obra Ogura hyakunin isshu (Um poema de cem poetas de Ogura), organizado por Teika, a qual consolidou-se como cartas de jogos poéticos para deleite ou competições. Seu poema é o de número 48, o mesmo que consta no Tomo 7 da Antologia Oficial Shika wakashû: ǚ5)ÏŁ! Leitura: kazeoitami/ !2!)Ŧ,!÷$3 iwautsunamino/ onorenomi/  kudaketemono/ omoukokorokana Sentido: Fico a pensar na onda que se quebra nas rochas / e em mim que se quebra de amor Desse modo, é possível observar a presença marcante dos poemas de Shigeyuki no cenário poético da época, o que lhe fez merecer a inclusão entre os 36 poetas considerados mais renomados por Fujiwarano Kintô e consequentemente, ter a sua coletânea particular incluída no Sanjûrokunin kashû. Conforme listou SHIMADA (1968), o poema que apresentamos é o último da coletânea de Shigeyuki e recebe o número 323: 4  "1%, *,2ĝ" , ,(/ %1  Leitura: edawakanu/haruniaedomo/mumoregiwa/moemomasarade/toshihenurukana Significado: Deparo-me com a primavera nos ramos não novos e a árvore petrificada brota com esplendor. Ah, mais um ano se passou! SHIMADA (1968) acredita que essa coletânea particular tenha sido organizada logo após a morte de Shigeyuki ou por pelo próprio em vida. Existem cinco versões com outras ramificações, entre as quais figura a principal e mais completa. É a coletânea de propriedade do templo Nishi Honganji com 323 poemas 209 e que pertenceria à linhagem 1 denominada de Nishi Honganji bon 36 nin shû kei por Komachiya Teruhiko (1973). A segunda linhagem é conhecida como Shôho ban Kasen Kashû bon kei - Coleção de Poemas dos Exímios Poetas da edição da Era Shôho (1645-1648) com 279 poemas, dentre os quais 5 são exclusivos. Como, porém, a sua constituição é a mesma do Nishi Honganji bon, sabe-se que faltam alguns. A terceira linhagem, chamada de Shoryôbu zôhon (501/161) que é preservada pela Kunaichô, (Imperial Household Agency - órgão burocrático que administra tudo que se refere aos assuntos nacionais ligados à corte imperial e às atividades nacionais do Imperador, incluindo os livros e os túmulos), possui 214 poemas, dentre as quais três exclusivas em relação ao Nishi Honganji bon, duas delas comuns a Kasen kashû bon. A quarta linhagem é a mesma Shoryôbu zôhon (501/271) com 151 poemas, com dois poemas exclusivos. Apresenta a mesma forma do livro da terceira linhagem, mas além de faltarem alguns poemas, há misturas com a coletânea de Sei Shônagon. A quinta linhagem é a que se transmitiu como caligrafia de Yukinari, de propriedade do Museu Tokugawa. Mesmo assim, pensa-se que a Coletânea de Poemas de Shigeyuki é oriunda de um único original e que o Nishi Honganji bon tenha preservado um formato próximo do original. E, como se sabe pela Coletânea de Caligrafias de Yukinari, a antologia Hyakushu (Cem poemas) parece ter existido de modo independente. Shigeyuki era bisneto do Imperador Seiwa e tornou-se governador da Província de Rikuô, onde veio a falecer. Na segunda metade de sua vida andou pelas regiões de Kyûshu e Ôshû e tornou-se um poeta viajante, tendo entre suas composições notáveis as que cantam lugares pitorescos. A antologia Hyakushu (Cem poemas), oferecida ao Imperador Reizen em meados da Era Heian quando lhe prestou serviços, é a mais antiga. Shigeyuki recebe o número 138 no Shikashû taisei (Grande coletânea das antologias particulares), e seus poemas são registrados da página 667 à 676. Apreciações da combinação artística do fragmento Os poemas, sem dúvida, são o ponto de partida da coletânea de poemas dos 36 poetas Sanjûrokunin kashû, como demonstra o seu nome, e, dada a relevância da poesia na vida da aristocracia da época, os próprios poemas bastariam para 210 compor o conteúdo de uma obra comemorativa do aniversário de 60 anos de um Imperador. No entanto, o requinte estético da época permitiu a criação de uma obra magnífica que, ao poema waka, associou a arte da caligrafia e o yamato-e. A sua classificação como Tesouro Nacional demonstra o valor de todas essas artes e técnicas resultantes do desenrolar histórico e estético que tentamos aqui expor, utilizando, como exemplo, o fragmento de Minamotono Shigeyuki6. Seu poema é caligrafado artisticamente em tinta nanquim sobre um papel artesanal com 20 cm de altura e 31,4 cm de largura. Para que se possa ter uma ideia geral sobre a combinação variada desses elementos artísticos, o poema foi transcrito abaixo, conforme a sua disposição na obra, seguido pelo registro do nome da coletânea de Shigeyuki. Cabe lembrar que a transcrição segue o original que deve ser lido verticalmente da direita para a esquerda. Logo abaixo, segue um esboço gráfico simplificado da obra com seus principais recortes e coloridos descortinando a pintura yamato-e do barco, mais ao centro. As folhagens dos ramos, os pigmentos menores decorativos em tonalidades de prata ou em tinta nanquim e que lembram pequenas aves e rochedos em meio a outros barcos menores não foram contemplados, mas podem ser conferidos por meio da imagem da obra referenciada. Fig. 1: Transcrição do poema de Shigeyuki. 211 7 Fig. 2: Esboço do papel artesanal sobre o qual está o poema de Shigeyuki O poema de Shigeyuki pode ser visualizado sobreposto na reprodução do esboço do papel artesanal. Como se pode observar, ele não aparece dividido em versos de 5, 7, 5, 7, 7 fonogramas, que seriam mais comuns. Dada a dificuldade de reproduzir a escrita na vertical com sua respectiva transliteração para o português, transcrevemos o poema na horizontal para que se observe sua distribuição em sete linhas disformes, com trechos mais longos e mais curtos, e ao final, na 8ª. linha, o nome da coletânea particular do poeta. 1I. linha 2I. linha 4 "1%, haruniaedomo *,2mumore 3I. linha ĝ"giwa 4I. linha 5I. linha 6ª. linha 7ª. linha 8I. linha edawakanu , ,(/moemomasarade %toshihe 1 nurukana ŌLJQǓ MinamotonoShigeyukishû Assim, o poema e o nome da coletânea de Shigeyuki em letras desmanchadas estilisticamente pela caligrafia misturam-se às pequenas ilustrações, aos fragmentos decorativos e aos ramos verdes que Yotsutsuji (1990, 205) considera como caniços de água ou junco (Phragmites communis), um tipo de 212 vegetação que se desenvolve o ano inteiro em lugares úmidos, como na beira de rios e lagos. O poema começa com uma ideia de divisão expressa pelos ramos de uma vegetação esparsa, mas suave como a primavera. A partir desses ramos pincelados com leveza na parte central do “quadro” em uma discreta cor verde é possível entrever um barco de madeira clara que repousa sobre uma margem de areia. O quadro é composto com uma temática da natureza, a primavera, como as costumeiras divisões das coletâneas de poemas waka. E a primavera é a estação que dá início a um novo ciclo, tornando clara a passagem do tempo, a conclusão de um ciclo que se foi. O barco está ali, de uma maneira abstrata, podendo significar a chegada ou a partida. O tempo tem um poder surpreendente. Até a árvore petrificada, seca, que parecia sem vida, representada por uma lâmina de metal, em cor escura, na parte inferior extrema do quadro, bem ao centro, contém em si o poder de fazer despontar novos brotos, cheios de energia, bastando para isso que se dê tempo ao tempo. Nada é o que parece ser, tudo está em constante mutação e também comporta significados múltiplos. Num quadro concreto, uma abstração extrema. O cenário é sugestivo, como se da árvore escura surgissem os ramos em verde claro que se estendem sobre o barco e essa paisagem se descortinasse com a energia emanada da árvore e que divide o quadro. A água com seus redemoinhos quase imperceptíveis abre-se para dar passagem ao cenário criado por essa energia, ou seria o gelo que cobre a água começando a derreter para dar passagem à primavera? A brancura que se abre de baixo para cima tendo a parte escura como divisória ao centro, cria um contraste, quase um estranhamento. Essa mancha escura que lembra uma pedra, faz supor que o tronco da árvore esteja fincado na terra com seus galhos estendidos de modo a que não possamos vê-los a não ser por suas extremidades de onde surgem os brotos que pendem sobre o barco, proporcionando uma vista aérea. As cores dão um toque de transição do inverno para a primavera, mas ainda incipiente pelo tom de surpresa presente no poema quanto à passagem do tempo. Um cenário com predominância no pastel do inverno, apesar da folhagem em verde 213 de tonalidade bem clara e a parte quase negra que parece representar o tronco de uma árvore, como foi mencionado acima. O quadro, por sua vez, apresenta uma assimetria como um todo, característica já bem conhecida da cultura japonesa (KATO, 2011), e que constitui um dos padrões de beleza e harmonia. Considerações finais O Japão, após os primeiros contatos com a China e a introdução dos conhecimentos adquiridos do continente asiático, desenvolve uma cultura peculiar como resultado da somatória de características próprias, que será continuada mesmo com o declínio da sociedade aristocrática que atingiu um crescente grau de sofisticação. Obras como o Diário de Tosa de 935, de autoria de Kino Tsurayuki, renomado poeta da corte, por exemplo, recebeu uma versão pintada tão logo se tornou conhecida. Isso mostra que essa prática era, de certa forma, comum na época. As 21 coletâneas oficiais e inúmeras outras particulares, acrescidas das obras em prosa das quais costumam fazer parte vários poemas, mostram a presença da poesia waka na vida da aristocracia da época e que perdura até hoje entre o povo japonês. As já mencionadas cartas de Ogura hyakunin isshu, contendo um poema de cem poetas, são exemplos de uma união da beleza da pintura, da caligrafia e do poema. O famoso artista Ogata Korin (1658-1716) também criou um conjunto dessas cartas integrando a pintura e a poesia e produziu outras combinações de caligrafia e cerâmica com seu irmão Ogata Kenzan (1663-1743), igualmente renomado, numa demonstração de um pensamento integrador das artes. Se as pinturas e poemas caligrafados decoravam as moradas da aristocracia desde Heian, atualmente, a vida cotidiana dos japoneses, é um reflexo dessa rica mistura. Uma herança em certa medida vinda da China, que foi adquirindo um colorido cada vez mais japonês, passando por tradições outras, e fazendo aflorar suas peculiaridades. Tal riqueza pode ser observada na cultura japonesa, como 214 tentamos explorar por meio do fragmento que destaca o poema de Shigeyuki entre os 36 poetas divinos nessa obra preservada pelo Templo Nishi Honganji. Foi possível constatar, assim, que a pintura yamato-e daquela época não buscava uma independência artística como ocorreu com a pintura japonesa na posteridade, muito pelo contrário, apresentava uma forte tendência para uma arte integrada unida com a literatura, para tentarem complementar-se mutuamente (IENAGA,1982). E o resultado dessas artes integradas podem ser vistas atualmente aplicadas aos recursos gráficos e impressos cada vez mais avançados. Notas 1 Embora não haja certezas absolutas, pelas comparações feitas entre várias obras caligrafadas existentes, supõe-se que o caderno 1 tenha sido caligrafado por Fujiwarano Sadazane, o 2º. por Fujiwarano Sadanobu e o 3º. Pela dama Fujiwarano Dôshi, e os demais, embora desconhecidos, deveriam ter sido calígrafos que serviram ao Imperador Shirakawa (YOTSUTSUJI, 1990). 2 disponível em http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:Saigu_Nyogo.JPG acesso em: 10 fev.2014. 3 AKIYAMA, T. Heian jidai sezokuga no kenkyû. Tokyo: Yoshikawa Kôbunkan, 1964. 4 AKIYAMA, T. Heian jidai no kara-e to yamato-e I, Bijutsu kenkyû, Tokyo, V. 120, p. 377-389, 1941 5 AKIYAMA, T. Heian jidai no kara-e to yamato-e II, Bijutsu kenkyû, Tokyo, V.121, p.8-24, 1942 6 disponível em http://ja.wikipedia.org/wiki/%E3%83%95%E3%82%A1%E3%82%A4%E3%83%AB:36poets_collection_SHIGEYU KI.JPG acesso em: 10 fev. 2014 7 Esboço feito pela autora deste artigo, acompanhando possíveis recortes visualizados na obra Sanjûrokunin kashû Shigeyuki. Referências Bibliográficas BRITANNICA JAPAN CO. LTD. Buritanica kokusai daihyakka jiten: shôkômoku denshi jishoban encyclopaedia britannica. Tokyo: Britannica Japan Co. Ltd., 2009. Casio EXword dataplus 5 XD A6800. IENAGA, S. et al (Org.) Nihon bunkashi 2: Heianjidai. Tokyo: Chikuma. 1972. IENAGA, S. Nihon bunkashi. 2. ed. Tokyo: Iwanami, 1982. (Iwanami shinsho, 187) SENNO, K. Yamato-e. In: AKIYAMA, T. Genshoku Nihon no bijutsu 8: emakimono. Tokyo, Shogakkan, 1968. P.160 KATO, S. Tempo e espaço na cultura japonesa. Tradução de Fernando Chamas e Neide Hissae Nagae. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. LAMARRRE, T. Uncovering Heian Japan - An archaeology of sensation and inscription. Durhan & London: Durhan University Press, 2000. MATSUDA, K. Washi: o papel artesanal japonês. Tradução de Takeomi Tsuno e Raimundo Gadelha. São Paulo: Aliança Cultura Brasil-Japão, 1994. NAKAMURA, Y. Sanjûrokkasen-e. In: AKIYAMA T. Genshoku Nihon no Bijutsu 8 Emakimono. Tokyo: Shogakukan, 1968. P.108. NAKANO, M; HIRATA, Y. & SANO, M. Nihon bijutsu zenshû 8: Ôchô emaki to sôshoku kyô. Tokyo: Kodansha, 1990. 237p. 215 SASAKI, T. Sanjûrokuninshû. In: SHOGAKUKAN. Nihon rekishi daijiten. Tokyo: Shogakukan, 2000, 2007. Casio EX-word dataplus 5 XD A6800. SHIMADA, R. Minamotono Shigeyuki shû. In: SHIMADA, R. Heian zenki shikashû no kenkyû. Tokyo: Ôfûsha, 1968. P.750-762. Komachiya T. In: WAKASHI KENKYÛKAI (Org.) Shikashû taisei chûko I. Tokyo: Meiji Shoin, 1873. p.831. HAYASHI, O.; ANDÔ, C. & TAISHUKAN. Kogorin koten bungaku jiten; Meika meiku jiten. Tokyo: Taishukan. 2004-2009. Casio EX-word dataplus 5 XD A6800. 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Suas áreas de interesse são Literatura Japonesa, Tradução e Pensamento Japonês. . 216 JARDIM JAPONÊS E USONIAN HOUSE PROXIMIDADES CONCEITUAIS Ana Tagliari - Universidade Anhembi Morumbi Sarkis Sergio Kaloustian - Universidade Anhembi Morumbi RESUMO: A primeira vista parece complexo estabelecer relações entre o Jardim Japonês e o projeto da casa comum americana, a Usonian House (década de 1930) de Frank Lloyd Wright, representação do modo de habitar moderno ocidental, com influência inclusive na morada paulistana. No entanto, esta relação se apresenta muito próxima quando analisamos os conceitos que os fundamentam. Princípios de percepção espacial e visual, simplicidade, harmonia com o local permeiam a construção destes projetos. É importante entender a essência, atributos e princípios subjacentes aos projetos, e não apenas sua aparência. O importante não é apenas o visto, mas sim, o imaginado. A partir disso nesta pesquisa procurou-se delinear as principais características do projeto e concepção de uma Usonian House e do Jardim Japonês, para que desta maneira fosse possível tecer uma relação de analogia conceitual entre espaço e forma. Selecionamos o Jardim da Cerimônia do Chá e três Usonian Houses para análise. A análise realizada por desenhos, fotos e textos é fundamentada a partir dos conceitos e princípios que permeiam estes projetos. São eles: Organização Geométrica/Assimetria, Visuais, Acessos e circulação, Espaços (percurso/tempo), Cores, Elementos construtivos, Materiais naturais e iluminação. Palavras-chave: Jardim Japonês, Jardim da cerimônia do chá, Frank Lloyd Wright, Usonian House, Análise gráfica. ABSTRACT: At first sight it seems complex to create relationships between the Japanese Garden and the common American house design, the Frank Lloyd Wright Usonian House (1930s), representation of the Western way of modern life. However, this relationship appears very close when we analyze the concepts that underlie them. Principles of spatial and visual perception, simplicity and harmony with the local permeate the construction of these projects. It is important to understand the essence, attributes and principles behind the projects, not just their appearance. What is important is not only seen, but the imagined. From this research it was sought to delineate the main features of the project and design a Usonian House and Japanese Garden, so this way it was possible to make a relation of conceptual analogy between space and form. The Tea Ceremony Garden and three Usonian Houses were selected for the analysis, which were created by drawings, photos and text, based on the concepts and principles underlying these projects. They are: Geometric Organization / Asymmetry , Visual , Access and circulation spaces ( track / time ) , Colors , constructive elements , natural materials and lighting. Keywords: Japanese Garden, Tea ceremony Garden, Frank Lloyd Wright, Usonian House, Graphic Analysis. 1. Introdução “Na sala da cerimônia do chá, é deixado ao convidado, para sua imaginação, completar o efeito total em relação consigo mesmo”. (Kakuzo Okakura, The Book of Tea, 1906, p.69). 217 O Jardim Japonês é conhecido, entre outras características, por criar nas pessoas que o apreciam, diferentes sensações. Os espaços interferem na percepção de cada indivíduo, como numa reflexão sobre a própria existência no mundo. Nada é casual ou banal. Todos os elementos, espaços, formas, visuais, materiais e estímulos aos sentidos são cuidadosamente pensados de maneira a criar condições para o individuo pensar, refletir, valorizar e imaginar. Frank Lloyd Wright, arquiteto norte-americano do século XX, criou as Usonian Houses na década de 1930. O projeto desta casa unifamiliar era uma representação do modo de viver moderno, da era industrial, aos olhos de Wright. Esta representação moderna de habitar desenhada por Wright apresentou conceitos de percepção do espaço no tempo, de valorização espiritual, de cuidado com a natureza e os materiais, advindos de seu conhecimento e admiração pela cultura, arte e arquitetura japonesa. O arquiteto propôs uma mudança no projeto residencial norte-americano, buscando a apreciação e valorização de cada espaço e elemento da arquitetura. A casa de Wright não era uma máquina de morar, mas sim um espaço sensível para celebração, reflexão e engrandecimento da existência humana. Esta pesquisa propõe um estudo original da relação entre o projeto da Usonian House e do Jardim Japonês da cerimônia do chá, procurando relações conceituais entre os projetos. Apesar de a primeira vista parecerem um tanto distantes, as relações se tornam muito evidentes a partir da leitura de textos escritos por Wright, seus críticos, clientes e pesquisadores, além da análise de seus projetos. Selecionamos o Jardim da Cerimônia do Chá e três projetos de Usonian House para o estudo. Este texto reúne por meio de desenhos e textos, as análises que revelam tais relações de proximidade conceitual. Primeiramente apresentamos considerações sobre o Jardim Japonês, depois sobre Frank Lloyd Wright e sua relação com o Japão, e posteriormente as análises. 218 2. O Jardim japonês De modo geral a ideia ou a imagem de jardim japonês remete a uma paisagem em miniatura com pouca ou nenhuma vegetação e algumas pedras sobre uma base de areia ou cascalho. Esses jardins não impressionam pela magnificência ou tamanho e sim, procuram mais o silêncio, a pureza da forma, a delicadeza e a perfeição cuidadosa nos detalhes. O importante não é o visto, mas sim o imaginado. Os tipos de jardim japonês revelam diferenças quanto à sua concepção espacial e aos materiais usados em sua criação. Quase sempre são naturais ou simbólicos em relação à natureza contrapondo-se à linguagem geométrica dos jardins ocidentais. Na cultura japonêsa, Wabi e Sabi, são duas formas de expressão estética do despojamento material nos objetos e no espaço e que se revelam fisicamente em muitos aspectos do jardim e do quarto da cerimônia do chá. Wabi, termo mais geral que faz referência a uma vida associada ao despojamento, insuficiência ou imperfeição, mas mais ainda, uma postura de uma mente tranquila adquirida no percurso sequencial do espaço de entrada da cerimônia do chá. Sabi, termo mais específico, referenciando objetos individuais e o ambiente num conceito de evocação despretensiosa e seu poder de extrair sensações de uma produção artística. Aparece na literatura e no desenho dos jardins, mais explicitamente no jardim da cerimônia do chá. No século VI o Budismo foi trazido da Índia e da China, via Coréia, e trouxe consigo uma visão de cosmos que influenciou profundamente a arte do jardim japonês. O intercambio com a China através de nobres e monges introduziu a rica cultura da dinastia Tang, dentre ela, cenários de marinhas que foram então reproduzidas nos jardins. O pensamento Budista foi a força do desenvolvimento da arte dos jardins. Na metade do período Heian (794-1185), o movimento Budista Jodo (Terra pura) ganha força no Japão. A Terra pura, localizada nos limites do oeste do 219 Universo Budista era composta de belos pavilhões com vistas para espaçosos lagos, perenemente cheios de lótus. Nesse primeiro momento dos jardins baseados no pensamento Jodo, entre os séculos VIII a XI, os desenhos eram relativamente simples, geralmente um amplo lago com lótus, centralizado em frente ao edifício principal do templo. A partir do século XIII, seu tamanho foi sendo reduzido e entre os séculos XV e XVI o jardim seco prevaleceu agora pela presença do Zen Budismo. A doutrina Zen foi a base filosófica e estética do segundo momento da transformação do jardim japonês, trazida da China pelos monges Eisai (1141-1215) e Dôgen (1200-1253). Na era Muromachi (1392-1568) a filosofia Zen influencia o desenho dos jardins com o conceito de um (nada ou expressão do vazio) pensamento simbólico para atingir o satori (estado de iluminação) ideal único do Zen. O próprio caráter despojado da arquitetura xintoísta, com o uso de seus materiais na forma natural colaborou numa atitude de adoção suave dos ideais Zen cuja influência nas artes foi magistral, e nos jardins trouxe refinamento, simplificação, diminuição da escala e representação simbólica da natureza. A maioria dos pesquisadores categoriza os jardins japoneses em cinco tipos, baseados pelo modo de arranjo espacial, da área ocupada e pelo uso prioritário dos elementos que os caracterizam: 1) Jardim de passeio com lago: Pertencem a este tipo os jardins que devem ser percorridos pelos visitantes e que ocupam grandes áreas em terrenos com vários desníveis contendo lagos e ilhas, pontes, riachos com cascata em miniatura, arranjos variados de rochas, e caminhos direcionados no sentido da descoberta de cenários inesperados. 2) Jardim de contemplação: Sua estrutura é similar ao jardim de passeio com lago sendo, porém menor em escala. Permite o percurso em volta de um lago, mas com igual ênfase na possibilidade de ser observado de um ponto fixo, geralmente ao longo de uma varanda de um edifício. 3) Jardim de paisagem seca: Pertencem a este tipo os famosos jardins de composições de rocha, areia e musgo, muito mais sugerindo do que imitando uma paisagem real. São pequenos e contidos em limites formados por muros ou divisas de terrenos e usam poucas plantas, normalmente azáleas e camélias em formas abstratas. É o jardim de tratamento abstrato, cujo caráter não iconográfico traz uma extrema dissociação da realidade, induzindo a apreciação estética em busca de diversos 220 graus de simbolismo. 4) Jardim Mínimo: É o jardim secreto em espaços restritos que permitem apenas a construção de um jardim com muito poucos elementos. Aparece dentro do pequeno espaço livre da residência do morador, no jardim público de alguns templos, em restaurantes mais luxuosos e na área interna de pousadas tradicionais de Kyoto (Ryokan). 5) Jardim da Cerimônia do Chá: O chá era admirado pelas suas propriedades medicinais, e foi apreciado mais tarde pelos adeptos do Zen por seu poder estimulante para manter a disciplina mental durante longas horas de meditação. Shukó fundamentou os principais ideais artísticos e mais tarde Senno-Rykyú(1520-1591) estabeleceu e codificou os cânones e as formas estéticas da cerimônia do chá, bem como do desenho do jardim ou Roji (caminho ao ar livre) que consideramos aqui como um estilo de jardim de identidade própria. Apesar de não ser um jardim no sentido tradicional é o jardim-espaço que forma o conjunto jardim-quarto da cerimônia do chá. É uma “amostra de jardim” chamado “Roji” palavra rica em significados que vão desde uma descrição do espaço físico (espaço aberto) até uma ideia filosófica(jornada de purificação). O "Roji" aparece na Era Momoyama (final do séc16) como apoio a cerimônia do chá. Do início e até a metade da Era Edo (do século XVII ao século XVIII) o jardim da cerimônia foi definitivamente estabelecido como um tipo. A experiência sequencial do espaço e seu tratamento plástico são primordiais na consideração do espaço japonês e da construção do jardim. Essa ideia tem uma magistral aplicação no percurso do jardim do Roji. A experiência da cerimônia do chá em seu processo de limpeza espiritual e preparo da mente serena, feitas no pequeno e contido espaço externo antes de adentrar o minúsculo quarto da cerimônia em si, reflete este aspecto da experiência do espaço mais do que seu caráter descritivo objetivo. Sua função é a de um breve percurso desde o espaço externo em direção à pequena construção onde ocorre a cerimônia do chá (Chashitsu). Nesse percurso que é mais mental do que físico está o esforço estético dos mestres no tratamento espacial para induzir o sentimento de “wabi”. A maioria dos mestres da cerimônia do chá e que fundamentaram os cânones do Roji eram monges e não artesãos nem arquitetos no sentido moderno dos termos. 221 Os principais elementos cênicos e práticos de uso deste jardim são os caminhos de pedras, a bacia de água para a lavagem das mãos, as lanternas de pedra, as pequenas cercas e a vegetação existente segue um estilo simples e sóbrio. Princípios espaciais do jardim japonês no percurso da cerimônia do chá (Roji) Assimetria: É o princípio fundamental da organização espacial, o que evita toda a simetria que não é natural. Sua aplicação prática jamais permite qualquer tipo de alinhamento retilínio, ortogonal, seja em planta ou elevação. Esse princípio cria toda a tensão espacial presente nos arranjos de rochas e nas massas de arbustos e árvores. Surpresa Visual: A princípio, um cenário é propositalmente escondido do observador através de elementos que não permitem a sua visualização direta. Esses elementos podem ser um muro ou uma cerca de bambu trançado, uma massa vegetal, um caminho de pedras irregulares que forçam o observador a olhar para baixo, cuidando de seus passos, e no momento seguinte, com o corpo em repouso, aparece a surpresa. Uma paisagem maravilhosa explode em nossos olhos literalmente suspendendo a respiração. Paisagem emprestada: Uma das mais notáveis formas de manipulação espacial do jardim japonês, mas que não aparece em todos os jardins da cerimônia do chá, principalmente naqueles que tem área menor e são mais enclausurados espacialmente. Essa técnica permite que as linhas visuais vazem rumo ao horizonte além dos limites naturais dos terrenos dos jardins, seja por cima de muros baixos ou vazios entre maciços arbóreos. Isso traz uma expansão brutal no tamanho da paisagem, criando vários planos paralelos de elementos dos jardins. Vias e caminhos: Tem a função estrutural de direcionar os percursos e guiar os passos de forma controlada no tempo. Seu material primordial são as pedras planas ou irregulares. Os diferentes arranjos no piso, seja por sua proposital regularidade ou não, provocam os comportamentos de percurso ou de parada e atenção. Assim determinadas áreas de parada num percurso, permitem a contemplação de determinadas vistas escolhidas. 222 3. Frank Lloyd Wright e o Japão A formação cultural e profissional de Wright é derivada de diferentes vertentes, desde educadores, escritores e poetas, até artistas e profissionais atuantes de sua época. A cultura e a arte japonesa influenciaram conceitualmente, de maneira intensa, sua obra artística. Importantes autores, como Peter Collins, Bruno Zevi, Giulio C. Argan, Vincent Scully entre outros, afirmam que há uma grande influência da arte e arquitetura japonesa na obra de Wright. As características mais evidentes são: a relação harmoniosa com a natureza, a percepção filosófica dos espaços, a simplicidade, modulação e o uso honesto dos materiais. No entanto, como veremos, algumas características mais conceituais e filosóficas podem ser identificadas e relacionadas. Wright confirmava que a semelhança entre a sua arquitetura e a oriental residia no aspecto orgânico e admitiu ter aprendido o processo de simplificação e eliminação do insignificante analisando as gravuras japonesas: “(…) Gravuras japoneses (...) me ensinaram muito. A eliminação do insignificante, um processo de simplificação na arte (…)”. (WRIGHT, 1943, p. 194). Sua admiração pela arquitetura e arte japonesa existia antes mesmo de sua primeira visita ao Japão em 1905. Seu conhecimento era advindo principalmente de estudos como publicações de Edward Morse (Japanese Homes and Their Surrondings, 1886) e nas pesquisas e palestras de Ernest Fenollosa em Chicago (NUTE, 2000). Além de seus estudos sobre arte japonesa, Wright viveu durante os anos de 1915-1922 no país, devido ao projeto e construção do Hotel Imperial em Tóquio. Neste período Wright projetou e construiu algumas residências no Japão como em 1917 para Aisaku Hayashi, em Tóquio e para Arinobu Fukuhara, em Hakone. Em 1918 para Tazaemon Yamamura, em Ashiya. O projeto residencial Usonian: Simplicidade Grande parte da obra construída de Wright são residências, chegando à quase 80% de seu conjunto. Este conjunto é dividido em três fases: As Prairie Houses (1900-1914), as Textile Block Houses (1917-1927) e as Usonian Houses 223 (1936-1959), considerada a sua mais madura e rica. Selecionamos três obras construídas significativas da fase Usonian: Herbert Jacobs I (1936), Loren Pope (1939) e Stanley Rosenbaum (1939) As residências Usonian tiveram como características principais o fato de serem pequenas, moduladas e econômicas. Após a Grande Depressão norteamericana (1929), Wright se dedicou ao projeto e construção dessas casas com baixo custo até 1959, ano de sua morte. Estas residências demonstram muito do que Wright acreditava como sociedade e cidade mais democrática. A sigla USONIAN, supostamente criada por Wright, significava algo norte-americano. United States of North I America (Estados Unidos da América). Na busca de economia e simplicidade Wright, em seu livro The Natural House (1954) definiu em seus escritos diretrizes principais a serem seguidas na concepção das Usonian (WRIGHT, 1954, p.78): Eliminação de todos os elementos e espaços considerados supérfluos tais como garagem, telhado, sótão e porão; Criação de uma cozinha integrada com o setor social e espaço para refeições, o workspace, mais prática e funcional, onde seu volume une a área molhada de maneira a racionalizar e economizar na construção; Uso de materiais naturais de acordo com sua natureza sem revestimentos ou pinturas; Mobiliário, iluminação, aquecimento e ornamentos integrados ao edifício; Definição do programa em apenas um pavimento. Ao analisar as residências Usonian notamos a coerência constante do arquiteto em aplicar sistematicamente tais conceitos e princípios escritos por ele. Construções leves de madeira, a concepção das Usonian também refletem muito a experiência de Wright de ter vivido seis anos no Japão (1916-1922). Wright afirma em seus escritos que a residências japonesas representavam um exemplo supremo de eliminação do insignificante, limpeza e simplicidade. Segundo o arquiteto não havia nada sem significado numa residência japonesa (WRIGHT, 1943, p.196). Além disso, Wright projetava a residência com previsão de alterações futuras como a adição de mais cômodos, resumida na sua teoria da cauda do girino (WRIGHT, 1954, p.167), onde a casa cresce de acordo com as necessidades da família. Segundo o arquiteto, a arquitetura orgânica não é algo terminado, mas sim em constantes transformações e progressos (1943, p.196). 224 A nova maneira de implantar o edifício, voltado para o interior do lote, proporcionou um maior aproveitamento do terreno. Wright posiciona a casa próximo da rua deixando livre o terreno na sua parte posterior. A fachada principal não representa tanta importância, ao passo que a fachada posterior é a mais significativa da casa, que se volta para o jardim. Além disso, na maioria dos casos o projeto é resolvido em apenas um pavimento e sua implantação parece abraçar o jardim. Kevin Nute (2000) analisou algumas relações projetuais e conceituais entre uma casa tradicional japonesa e as Usonian Houses de Wright. Na casa tradicional japonesa a alcova é um espaço considerado especial e simbólico. Este tesouro, como Wright se refere à alcova (WRIGHT, 1943, p. 199) (tokonoma), é marcado pela simplicidade e limpeza formal, assim como Wright concebe as lareiras. As residências norte-americanas tinham a tradição da construção em madeira, da mesma maneira do que a japonesa. No entanto a grande diferença residia no fato de que nos Estados Unidos os espaços interiores da casa eram divididos e separados rigidamente. No caso da arquitetura japonesa as divisões eram feitas por diferentes alturas de pisos, alturas de pé-direito ou divisórias leves com telas de correr, o que permitia a abertura e integração de vários espaços num só. A diferença de alturas de pé-direito é uma característica marcante das obras de Wright, especialmente na sua fase das Usonian. Wright cria diferentes alturas de lajes de modo a provocar sensações às pessoas na passagem entre os ambientes internos e ao mesmo tempo proporcionar um movimento externo dos planos horizontais. Ao eliminar o telhado, não apenas por motivos econômicos, mas e por considerá-lo um espaço inútil (WRIGHT, 1954, P.82), Wright cria lajes em diferentes alturas, propiciando ao mesmo tempo variações de pé-direito, dilatações e contrações do espaço. Além disso, cria beirais extensos para proporcionar ao habitante a sensação de abrigo, desempenhando a mesma função que o antigo telhado exercia. Wright aponta que não há necessidade de paredes em todo o perímetro, deixando espaço para vidros. A parte mais alta da parede pode ser de vidro para que penetre luz natural de forma a não tirar a privacidade, mas proporcionando visibilidade para quem está no interior e orientando a vista para o céu, característica 225 das casas tradicionais japonesas. A transição entre o espaço interior e exterior, propiciado pela varanda, é outra característica da casa japonesa presente nas obras residenciais de Wright, principalmente na fase das Usonian. A casa japonesa não possui uma rígida demarcação entre interior e exterior, a integração da casa com o jardim é algo que acontece naturalmente: “Na casa japonesa, não há clara demarcação entre interior e o exterior”. (YAGI, 1982. p.9). Esta característica encantou Wright (1943, P.197) que afirmou: “Para o prazer dos eventos não se pode dizer onde o jardim termina e onde ele começa”. A ideia da modulação dos tatames da casa japonesa (aproximadamente 0,90mX1,80m - 3X6 pés) pode ter influenciado Wright na modulação de suas residências Usonian na busca da limpeza, simplicidade e economia. Os materiais empregados nesta fase respeitam os módulos e os sub-módulos, tanto em planta como em elevação. Wright sempre afirmou que a mania de grandeza (grandomania)1, presente na cultura norte-americana não o atraia. Ele considerava uma cultura de imitação, pobre em originalidade, que pretendia parecer quem na verdade não era. Acreditamos que o encanto pela cultura japonesa foi devido a ideia de simplicidade elegante, mais conhecido pelo termo sabi, que era o contrário desta cultura de imitação e excessos. Segundo Wright (1954, p. 187) “Uma das características essenciais da arquitetura orgânica é uma simplicidade natural”. 4. Análises e discussões Apresentamos as análises individuais do Jardim da Cerimônia do Chá e das Usonian Houses para posteriormente estabelecer relações entre os projetos. Os itens de análise são: Organização Geométrica/Assimetria, Visuais, Acessos e circulação, Espaços (percurso/tempo), Cores, Elementos construtivos, Materiais naturais e iluminação. 226 Análise do jardim (Roji) Figura 1: Implantação geral de um Jardim da cerimônia do chá com diagramas indicando a sequência do percurso. Fonte: Desenho Sarkis Kaloustian, 2014. Análise do espaço (percurso/tempo) no Roji, que pode ser decomposto em cinco etapas ou partes. 1. A porta de entrada coberta, (rojiguchi) com muros altos ao redor, a partir de onde se abandona a complexidade do mundo externo e se inicia o caminho rumo à simplicidade e à calma da cerimônia do chá. Depois de entrar os convidados sentam- se num pequeno banco coberto (soto koshikake) onde se agrupam e descansam. 2. A partir desse ponto iniciam o percurso até o portão do meio (mukaetsuke), onde o anfitrião os aguarda e recebe. Este portão é simbólico, pois é feito de uma simples grelha de bambu, mas que marca claramente outro nível de penetração no espírito da cerimônia. Figura 2: A colagem de fotos mostra as visuais e o percurso desde a entrada até o espaço de espera, e depois até o portão do meio. Fonte das imagens: Sarkis Kaloustian,1990. 227 Sequencia: Vista da rua / acesso pelo portão coberto / vista geral do roji / banco coberto de espera/ caminho de pedras / portão do meio 3. O portão simboliza a entrada do abrigo dos eremitas nas montanhas. Seu estilo é simples, e bem como em sua pequena cobertura, pode ser de materiais variados, bambu, madeira, galhos, telhas. Esse percurso no pequeno jardim é direcionado pelas pedras planas sequenciais. Sua razão prática é a de se caminhar sem molhar os pés. Estas pedras não são para serem admiradas e seu arranjo serve para valorizar a delicadeza e a maciez do musgo ao seu redor. 4. A partir desse ponto e sempre pisando no caminho de pedras os convidados chegam ao arranjo da bacia de pedra (tsukubai, lugar onde se inclina), que existe em todas as casas da cerimônia do chá, sempre perto da entrada. É o elemento mais importante do jardim e que fica entre a porta do meio e a casa. A sua função não é apenas a de lavar as mãos e a boca simplesmente, mas nesse ritual está vinculado um sentido de purificação espiritual. Simboliza o peregrino que se abaixa para se purificar em algum riacho perto de um templo nas montanhas. 5. A última fronteira é a pequena e baixa porta de entrada da casa de chá (Nijiri-guchi), que é uma pausa para concentração e preparação para o espaço interno. Essa porta é propositalmente dimensionada e posicionada a fim de obrigar o visitante a se dobrar para entrar, assim determinando que todos são igualmente humildes. Uma vez dentro, o suave cheiro de incenso recepciona os convidados que assim estão mentalmente preparados para o momento. O primeiro quarto de chá foi construído pelo shogun Ashikaya Yoshimasa (séc.XV) na Vila Ginkakuji (Era Muromachi, 1392-1568). A rusticidade e a simplicidade de seus materiais, madeira e bambu em seu estado natural, vem da inspiração dos casebres das montanhas e vilas de pescadores. Usa pilares naturais curvos, paredes de argamassa, forros de bambu, telhados de palha de duas águas, janelas de grelha de bambu, e possui claraboia. É elevada em relação ao solo para mantê-la longe da umidade. A ênfase na assimetria dos materiais naturais contrasta com a precisão do desenho do piso, cuja área de quatro tatames e meio (cada tatame mede 1,90m x 228 0,95m) tornou se um padrão mínimo para as necessidades de movimento humano, de no máximo cinco convidados na cerimônia do chá. Possui um nicho (tokonoma) na parede frontal aos convidados, com a função de apreciação de uma pintura, caligrafia e arranjo de flores. Esse arranjo é sempre sutil e jamais chamativo por formas e cores. Sua origem é a do altar despojado dos templos Zen, um local de meditação. As janelas são em número elevado, o que permite dosar a iluminação exata com uma luz discreta. Figura 3: A colagem de fotos mostra as visuais e o percurso desde a espera, até a casa da cerimônia do chá. Fonte das imagens: Sarkis Kaloustian, 1990. Sequencia: Bacia de pedra para lavagem das mãos / A casa da cerimónia do chá vista através do portão do meio / Casa da Cerimônia do chá / Entrada baixa(nijiriguchi) / Espaço interno e detalhes arquitetônicos. Análise das Usonian Houses Os projetos analisados são Usonian com planta em “L”, que caracteriza a primeira versão de Usonian proposta por Wright em 1936, com a residência Jacobs. No entanto, a relação também pode ser lida nas Usonian com planta linear como a residência Baird, de 1940, ou a Winckler, de 1938. The Natural House, livro publicado por Wright em 1954, revela de maneira detalhada o projeto e concepção das Usonian Houses. Neste livro Wright dedica um capítulo para tratar da relação da sua Arquitetura Orgânica e o Oriente. O arquiteto também revela (1954, p. 220) que recebeu de presente o livro de Kakuzo Okakura “The Book of Tea” (O Livro do Chá), do Embaixador do Japão nos Estados Unidos. Lendo o livro, Wright afirmou: “A realidade de um espaço estava para ser descoberta no espaço configurado entre coberturas e paredes, não na cobertura e nas paredes propriamente ditas”. Ou seja, o espaço era o mais importante para o arquiteto. Um aprendizado do Oriente para sua arquitetura orgânica. 229 Figura 4: Diagramas resultantes das análises dos espaços das Usonian analisadas. Percurso e visuais. Planta, corte, elevação e axonométrica interna. Sequencia: 1-Vista da rua / 2-acesso /3- percurso em espaço estreito e baixo / 4-descoberta do espaço aberto após /5- visual da lareira. Fonte: Desenhos Ana Tagliari, 2014. A partir do conhecimento da admiração de Wright pelo livro de Okakura, buscamos relacionar afirmações contidas no livro com as análises realizadas. Figura 5: A colagem de fotos mostra as visuais e caminhos na descoberta das Usonian estudadas. Fonte das imagens: PFEIFFER, 1991. Sequencia: Vista da rua / acesso / descoberta do espaço aberto após percurso em espaço estreito e baixo / lareira / alguns detalhes. Nesta pesquisa identificamos relações entre os espaços das Usonian e o conjunto do Jardim da cerimônia do chá, incluindo também relações com a casa para a cerimônia. 230 A sala da cerimônia do chá não impressiona em aparência. É menor do que a menor das casas japonesas, enquanto os materiais utilizados na sua construção são planejados para sugerir ausência de refinamento. No entanto, devemos nos lembrar de que tudo isso é resultado de um profundo planejamento artístico (...). (OKAKURA, 1906, p.56) Esta afirmação de Kakuzo Okakura referente à sala da cerimônia do chá poderia ser utilizada para apresentar uma Usonian. Sua aparência é relativamente simples e não impressiona por seu tamanho ou grandiosidade. É relativamente pequena com espaços com pé-direito baixo. Os materiais naturais utilizados são deixados ao natural de maneira simples e sem ostentação. Sua combinação, no entanto, revela um refinamento de uma obra artística não casual. Na Usonian cada espaço é projetado para causar sensações nas pessoas. O percurso é tão importante quanto as visuais. Os sentidos, as visuais e os elementos da arquitetura e da natureza formam um conjunto expressivo. Pontuamos a seguir os itens analisados. 1 – A aparência da casa vista da rua é simples e despojada. Com janelas altas (clerestório) para preservar a privacidade das pessoas. Não há um projeto chamativo de fachada. Wright procura não ser óbvio, banal ou previsível. A composição é assimétrica, característica adotada também no conjunto do Jardim da cerimônia do chá, como observou Kakuzo Okakura: “(...) a arte do extremo oriente evitou propositalmente a simetria como expressão de algo não completo, mas em construção. Uniformidade do projeto era considerada fatal para a clareza da imaginação”. (OKAKURA, 1906, p.69) 2 – Onde é o acesso? A afirmação abaixo de Kakuzo Okakura sobre o caminho (roji) que a pessoa deve percorrer no jardim da cerimônia do chá até chegar a casa da cerimônia, é muito adequada na análise da Usonian: “O roji foi planejado para quebrar a conexão com o mundo externo, e produzir uma sensação nova favorável ao prazer da estética da sala de cerimônia do chá propriamente dita”. (OKAKURA, 1906, p. 59). O arquiteto não banaliza a localização da entrada da casa. Wright não é óbvio e cria um acesso discreto, geralmente localizado em um plano vertical não paralelo a rua. O percurso é importante para apreciar e entender o espaço. Neste caso o percurso já se inicia na procura e descoberta do acesso da casa. O pé-direito e mais 231 baixo, a porta é pequena, ao entrar o espaço é estreito, relativamente escuro, com iluminação necessária apenas para se locomover lentamente. Um percurso se inicia para descoberta do coração da casa, onde se localiza a lareira. 3 – “A simplicidade da sala de cerimônia do chá e sua liberdade do vulgar faz isto verdadeiramente um santuário longe das banalidades do mundo externo”. (OKAKURA, 1906, p.71). O espaço central da casa. O espaço social integrado com a cozinha e também visualmente com o espaço externo, contínuo e fluido. Banhado por luz natural, com pé-direito mais alto. Os materiais deixados ao natural criam um espaço despojado e livre de ostentação, muito diferente das casas norte-americanas do mesmo período. O arquiteto (WRIGHT, 1954, p.167) afirmou que a arquitetura orgânica não é algo terminado, mas sim em constantes crescimentos e transformações, por meio da dinâmica das pessoas. Okakura (1906, p.69) observa que a casa da cerimônia do chá: “Verdadeira beleza poderia ser descoberta apenas com alguém que completasse o incompleto. A virilidade da vida e arte reside nas possibilidades do crescimento”. Nas Usonian não há a sensação de um espaço estático e enclausurado. Wright define amplos campos de visão, internos e externos, e cria um espaço complexo, caracterizado pela sua Arquitetura Orgânica e seus princípios de simplicidade, integridade, continuidade e plasticidade. Wright tinha o domínio dos espaços criados e dos campos visuais que seriam provocados a partir de ambientes de permanência, como, por exemplo, a visão a partir da mesa da “sala de jantar” (JACOBS, 1978, p.26). 4 - A lareira, considerada o núcleo central, o coração da residência, não se localiza de frente para o acesso da residência. Deve-se percorrer um espaço, gradativamente, até atingir o ambiente principal, o núcleo, onde está a lareira. A concepção da planta parte “de dentro para fora” (from within outward). O centro irradiador é a lareira. 232 Na fase Usonian, Wright posiciona a lareira no centro articulador da casa, numa disposição assimétrica, tanto com relação ao conjunto como do espaço em que se encontra. A forma da lareira segue essa assimetria, proporcionando uma simplicidade extrema na sua composição dos materiais deixados ao natural. Wright acreditava que a lareira nunca deveria ser a protagonista, pois o fogo sempre o seria. Na casa da cerimônia do chá, a preparação do chá pelo monge é o acontecimento mais importante do espaço. Os convidados devem entrar com roupas discretas, sem fazer barulhos ou movimentos chamativos. O único som que deve ser ouvido e apreciado é o da água (Na Usonian é o fogo). Borbulhando para a preparação do chá: (...) os convidados devem entrar um por um em silêncio (...). O anfitrião não entra a sala até que todos os convidados estejam sentados e a paz reina sem que nada quebre o silêncio exceto o som da água fervento na chaleira de ferro. (OKAKURA, 1906, p.62) 5 – Algumas combinações de materiais forma o “ornamento orgânico” nas casas de Wright. Uma característica da casa da cerimônia do chá, observada por Okakura, pode também ter uma interpretação na Usonian: “A coluna do tokonoma deve ser de um tipo diferente de madeira das outras colunas, num tipo diferente de madeira das outras colunas, no sentido de quebrar qualquer sugestão de monotonia na sala”. (OKAKURA, 1906, p. 70) A combinação dos materiais naturais, normalmente madeira e tijolo, revelam a qualidade do tratamento artístico dos elementos construtivos. Os elementos arquitetônicos como piso, forro, janelas, mobiliário, são dispostos de maneira a criar combinações variadas sem repetição óbvia, unindo cores e texturas diferentes. As cores costumam ser advindas dos materiais utilizados como marrom e amarelo, do tijolo e da madeira dependendo do tipo (vermelha ou amarela). Não há cores aplicadas nos materiais naturais. Cores primárias como vermelho, amarelo ou azul são adotadas apenas em algum detalhe como na tapeçaria ou no estofado do mobiliário. A justaposição de diferentes materiais naturais permite evidenciar texturas e características inerentes de cada material, fazendo com que isso se torne o 233 ornamento inerente à estrutura, como algo que acontece naturalmente e revela a beleza natural do material. Wright desenvolve um projeto único, onde mobiliário, iluminação e ornamentos fazem parte do conjunto. A iluminação é desenhada embutida para ser discreta e difusa. O arquiteto afirmou em seu livro “The Natural House” (1954) que a iluminação artificial é quase tão importante quanto a natural e deve ser parte integrante da casa (do projeto). Wright diz que esta iluminação deve estar “escondida” e embutida, pois seu efeito será muito mais natural. Luzes externas brandas também são importantes para valorizar a construção. Conclusões finais A partir das análises realizadas pudemos observar as relações conceituais entre o Jardim Japonês e o projeto das Usonian Houses de Frank Lloyd Wright, baseado numa interpretação original fundamentada em escritos, desenhos e fotos. A assimetria, presente em todo o conjunto do Jardim da Cerimônia do chá, é uma característica marcante das Usonian Houses. Atributo geométrico que contribui para evitar o óbvio, a repetição e o previsível, criando condições para que as pessoas exercitem a imaginação. O acesso, percurso, visuais, além da surpresa visual e da paisagem emprestada, que são cuidadosamente pensados para criar sensações e percepções nas pessoas que apreciam e vivenciam o espaço destes projetos, tanto no Jardim do Chá, como na Usonian. O acesso discreto, que conduz a um espaço onde o individuo deve se locomover com atenção, levando à visuais e espaços que despertam sensações e descobertas. Os materiais utilizados revelam o despojamento e simplicidade. A combinação entre os materiais mostram a riqueza do trabalho artístico, com simplicidade. As cores neutras advindas da natureza dos materiais contribuem para não desviar a atenção das pessoas que passam por um momento de limpeza mental e simplicidade. A iluminação branda também contribui para a criação de um ambiente sereno e calmo. Acreditamos na existência da relação conceitual intensa entre os projetos das Usonian Houses e os espaços do Jardim da Cerimônia do chá. Espaços de 234 enriquecimento do espírito humano, distante da banalização e do óbvio, enaltecendo o trabalho artístico e profundamente sensível. Uma celebração do espaço e da percepção humana. Notas 1 Wright cita este termo ao se referir a um pensamento que dominava a maioria dos cidadãos dos Estados Unidos. Grandomania significa uma “mania de grandeza”, principalmente imitando estilos clássicos europeus que nada combinavam com o modo de vida dos norte-americanos do século XX. Referências Bibliográficas DURSTON, Diane. Kyoto Seven Paths to the Heart of the City. Tokyo: Kodansha, 1987 ITOH, Teiji, The Gardens of Japan. Tokyo: Kodansha, 1984 JACOBS, Herbert A. Building with Frank Lloyd Wright. Chicago: Southern Illinois University Press, 1978. KALOUSTIAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês. a magia dos jardins de Kyoto. São Paulo: Editora K, 2010. KAUFMANN, Edgar. Frank Lloyd Wright: Writings and Buildings. USA: Meridian Books,1960. NITSCHKE, Gunter. Japanese Gardens. Colonia: Taschen, 1993 NUTE, K. Frank Lloyd Wright and Japan. London / Nova York: Routledge Taylor & Francis Group, 2000. OHASHI, Haruzo. The Tea Garden. Tokyo: Graphic-Sha publishing, 1989 OKAKURA, Kakuzo. The Book of tea. New York: Stone Bridges Press, 2006. (Primeira edição de 1906 publicada por G.P. Putham’s Sons, New York). PFEIFFER, B. Brooks. Frank Lloyd Wright Selected Houses. Tokyo: A.D.A. Edita Co.Ltd., 1991. POPE, Loren. “The Love Affair of a Man and His House” (1939/1948). House Beautiful 90, August 1948, p.32-34, 80,90. Re-publicada em BROOKS, Allen. Writings on Wright. London: MIT Press, 1981, p.51-57. SERGEANT, J. Frank Lloyd Wright’s Usonian Houses: the case for organic architecture. New York: Watson-Guptill Publications, 1976. TAFEL, E. Years with Frank Lloyd Wright: apprentice to Genius. New York: Dover Publications, 1979. TAGLIARI, Ana. Frank Lloyd Wright: princípio, espaço e forma na arquitetura residencial. São Paulo: Annablume Editora, 2011. WRIGHT, F. L. The Natural House. New York: Horizon Press, 1954. WRIGHT, F. L. An Autobiography. UK: Promegranate Communications, 1943. YAMASHIRO, José. História da Cultura Japonesa. São Paulo: Ibrasa, 1986 ZEVI, Bruno. Towards an Organic Architecture. London: Faber & Faber Limited, 1949. Ana Tagliari Arquiteta (FAU Mackenzie), 2002, Mestre (IA UNICAMP), 2008 e Doutora (FAUUSP), 2012. A dissertação de mestrado sobre a obra residencial de Frank Lloyd Wright foi agraciada com o Prêmio Franklin Delano Roosevelt de Ciências Sociais da Embaixada do EUA, em 2009. É autora do livro “Frank Lloyd Wright. Princípio, Espaço e Forma na Arquitetura Residencial” (Annablume, 2011), que recebeu Menção Honrosa na Premiação IAB SP, 2011. 235 Sarkis Sergio Kaloustian Mestre pela Universidade de Kyoto, Japão (1990), onde viveu por quatro anos. Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie (1979). Autor do livro “Jardim Japonês - A Magia dos Jardins de Kyoto” (2010). Docente da Universidade Anhembi Morumbi com vinte e dois anos de experiência de ensino nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, Artes, Design do Produto, Comunicação Visual, e Publicidade e Propaganda. OBS. Tradução das citações dos autores. 236 UM ORIENTE PARA TARSILA DO AMARAL Angela Brandão - UNIFESP RESUMO: Alguns artigos escritos por Tarsila do Amaral para o Diário de São Paulo nos anos 1930 dão margem a entender que a artista compreendia-se, enquanto desenhista, como escriba. Comentaria, aqui, que “na China o desenho pertencia às artes da caligrafia (...) porque escrever os caracteres complicados daqueles idiomas, por meio de tinta da China e pincéis finíssimos, é desenhar.” Em outro artigo, a pintora mostrava seu interesse pelo tema da invenção da escrita: “Um simples traço pequeno foi desenvolvido por Fo-Hi, na formação de trigramas combinados de modos diversos aos quais se juntaram mais tarde pequenas figuras mais ou menos realísticas dos objetos, formando o hieróglifo chinês”. Estaria interessada no processo de simplificação dos objetos através dos ideogramas, como forma de representação do mundo por meio de sinais abreviados? É tentador combinar as palavras da artista sobre o processo de codificação do mundo no sistema de escrita ideogramática – a representação feita por desenhos inteiramente terminados ou por uma taquigrafia, em que só se desenhava parte do objeto – com seus desenhos, como uma interpretação muito própria da ideia de Oriente e um esforço para a criação de códigos fixos que representam uma síntese da modernidade e de suas contradições. Palavras-chave: Tarsila do Amaral; escrita oriental; desenho. ABSTRACT: Some articles by Tarsila do Amaral for the Diário de São Paulo in tne 1930th permit us to understand that the artist recognized herself, as drawer, like a scriber. She wrote: “in China draw belonged to calligraphic art (…) because writing the complicated character from those idioms, by using Chinese ink and very thin brushes is to draw”. In another article, the painter demonstrated her interest on the invention of writing: “one single trace developed by Fo-Hi, in the constitution of trigrams combined in different ways that were joined, later, with little figures more or less realistic from the objects, forming the Chinese hieroglyph”. Would be Tarsila interested on the process of simplifying objects through ideograms, as a method of representing the world by abbreviated signs? It is a temptation to compare the artist’ words about the process of codifying things through the system of ideogram writing – the representation done by objects fully finished drawings or through a shorthand, in which we draw only part of the object – and her drawings, like a very particularly interpretation of the idea of Orient an like an effort to create fixes codes that represented a synthesis of the modernity and its contradictions. Keywords: Tarsila do Amaral; Oriental characters; draw. Epígrafe Os limites espaciais do Ocidente nunca foram precisos: construção histórica, mais do que geográfica, campo de cruzamentos e transposições culturais, mais do que de fronteiras. Se as origens da ideia de Ocidente mergulham em civilizações antigas, como a egípcia e a mesopotâmica, cujas características teriam se estampado sobre o desenvolvimento da civilização grega, seus parâmetros 237 históricos são igualmente imprecisos. O historiador italiano, Arnaldo Momigliano, ao escrever sobre os limites da helenização como interação cultural das civilizações grega, romana, céltica, judaica e persa, propôs que os encontros entre Ocidente e Oriente sempre se fizeram, são mundos em oposição e em comunicação. Em suas palavras: “Da relação entre Ocidente e Oriente viveu a humanidade (...) desta relação vive a humanidade ainda hoje [sem grifo no original]” (MOMIGLIANO, 1990, pp. 9-18). Caligrafia oriental e arte moderna Parte da arte moderna resultou das experiências de transposições da arte não ocidental para o trabalho dos artistas ocidentais – ou pelo menos de uma ideia que os artistas ocidentais modernos construíram acerca do Oriente e do não-ocidental. Esta visão era também uma seleção e uma transformação de formas transpostas e adaptadas ao que se queria entender como Oriental. Henri Matisse (1869-1954), em 1952, escrevera em uma carta a um jovem artista, afirmando que, se nas escolas europeias se aprendia o desenho imitativo, os orientais procuravam, ao desenhar uma árvore, a “sensação de subir”. Ao invés de detalhar, era preciso, para ele, encontrar a sensação do objeto na totalidade, na posição exigida pelos sentimentos retidos na memória. (MATISSE, 1972, pp.156, 157.) De modo semelhante, a influência dos traços da escrita oriental se faria presente na obra de Wassily Kandinsky (1866-1944). O quadro ricas pretas I (1913) mostra um jogo igualmente dissolvido de sonoridades de cores fugazes e de sinais gráficos que aí se gravam. A oposição entre os traços e cores ardentes variadas e a execução dos sinais gráficos é aqui expressa ainda mais nitidamente, lembrando as caligrafias japonesas que Kandinsky admirou em toda a sua vida.” (DÜCHTIN, 1994, p. 48) A escrita oriental, ideogramática, baseada em gestos precisos de nanquim sobre papel, inspirou uma série de reflexões para a arte moderna. Sob a perspectiva do surrealismo, como expressão de um automatismo psíquico no universo da obra de Joan Miró (1893-1983), a escrita oriental assumiu um caráter de modelo de síntese e de gesto criador e revelador. 238 O uso abundante de arabescos sugere uma inclinação pela arte decorativa oriental. De fato, neste período – década de 1910, Miró sentiase impressionado com a divertida expressividade e a riqueza formal da ornamentação japonesa; a quando das duas exposições dos expressionistas, realizadas em Barcelona durante a guerra, pudera estudar a influência da arte oriental na pintura francesa. A art nouveau também recorria a motivos ornamentais de todas as culturas do mundo. Mas havia um excessivo romantismo, ou seja, literatura, nesse regresso ao passado, nesta eterna busca gauguinesca do paraíso perdido em que o espírito da Europa anterior à guerra, farta de tanto debate, procurava refúgio. Por volta de 1918, contudo, o mundo parecia estar curado destes anelos românticos. Miró, que conhecia bem a decoração profusamente colorida, graças à arte popular catalã, viu nestes símbolos o vigor do primitivo. (...) A arte do oriente não se limita ao ornamento exuberante, inclui também uma tessitura delicada e florida da pintura miniatural. (...) o uso de motivos orientais na obra de Miró assume também um novo significado. Este processo permitiu-lhe apresentar o velho e familiar de um modo novo e vibrante. (ERBEN, 1997, pp. 161,162) O interesse pela arte oriental, sobretudo no que se refere à arte da escrita, foi revelado por Miró: “Acontece por vezes que ilustro os meus quadros com frases poéticas e vice-versa – os Chineses, esses grandes seigneurs do espírito não faziam exatamente o mesmo?”, (Apud. ERBEN,1997. p. 214.) Ou, ainda, Miró escreveu numa carta a Michel Leiris, datada de 1924, que o artista japonês Hokusai “queria tornar perceptível uma linha ou um ponto, simplesmente”. Miró tentava criar em seus quadros o mesmo efeito que o haicai japonês, a quintessência de uma percepção recente e breve. Sua arte manifestava, desde o anos 1920, este desejo caligráfico. (MINK, 1994). A escrita oriental parecia ter algo em comum com os símbolos adotados pelos quadros de Miró. Duas exposições do pintor catalão, uma em Tóquio e outra em Kyoto, em 1966, inspiraram-no ainda mais em direção à arte japonesa da caligrafia. Em 1967, Miró criou uma série de litografias chamadas Haiku – uma indicação clara de sua abertura à influência japonesa. Os títulos dos quadros desse período são igualmente influenciados pela poesia japonesa. Mas sua “concepção da pintura como uma espécie de poesia visual não tem nada de novo e não nasceram após seu contato com a arte do extremo Oriente. De fato, são um traço típico de sua obra desde os anos 20.” (ERBEN, 1997, p. 224). O interesse em torno da grafia oriental, entre outros, presente na abstração de Kandinsky ou nas criações de Miró, possivelmente influenciaram as obras de pintores a partir dos anos 1950, como Franz Kline (1910-1962) ou Mark Tobey (1890-1976). 239 Desenhos de Tarsila do Amaral e a poesia de seu tempo A poesia de Blaise Cendrars (1887-1961) foi comumente comparada aos desenhos de Tarsila do Amaral (1886-1973) – não somente aqueles que ilustram o livro do poeta franco-suíço, Feuilles de Route, mas com os desenhos de Tarsila de modo geral – pelo mesmo desejo de síntese, pela anotação rápida da realidade imediata e fugidia. Tem-se em Feuilles de Route, como nos desenhos de Tarsila, a impressão de um diário de viagem muito breve, onde a natureza e a arquitetura se aproximam de formas geométricas: “casas cúbicas”, “árvores esféricas” ou “montanhas triangulares”. É, talvez, a mesma percepção compacta da paisagem e das vistas que se tem por meio dos desenhos de Tarsila (CENDRARS, 1925). O poeta escreveria em 1951, em seu livro Brasil: Vieram os Homens: Em vez de fotografias que eu não podia tirar (...) disparava imagens verbais instantâneas graças ao dom que possuo de imprimir e de não dizer tudo à descrição, bilhetes postais mentais (...) Se tivesse viajado de avião nunca teria sido levado a fazer fotografia verbal e a endereçar estas imagens aos meus amigos sob a forma de poemas despojados (...) [sem grifo no original] (CENDRARS, 1996) Pareciam evidentes tanto a associação entre poesia e imagem, quanto a satisfação pela capacidade de produzir poemas breves. Insistia, Cendrars, neste aspecto por meio de expressões como “imagens verbais instantâneas”, “bilhetes” ou “poemas despojados”. Entende-se, daí, o mesmo sentido instantâneo dos desenhosbilhetes que Tarsila do Amaral realizou em todas suas viagens, a mesma intenção de fornecer imagens/mensagens rápidas apreendidas durante o percurso, “poemas escritos em trânsito”. Nos anos setenta, Alexandre Eulálio entenderia, em Etc...,etc... (Um livro 100% brasileiro), que a partir da visita do poeta franco-suíço, nos anos 1920, o Brasil se tornava “a encarnação definitiva do mito da viagem”: “ele [Cendrars] jamais se restringe a uma reprodução literal da matriz. Trata-se antes da síntese radiográfica, versão livre de uma realidade que nos textos de Cendrars se reincorpora com surpreendente agudeza (...) deformar para formar o traço justo, o seu retrato do Brasil é fiel à essência, não ao pormenor” (EULÁLIO, 1976, pp.32-33). 240 Na introdução ao livro de poesias de Oswald de Andrade, Pau Brasil, Paulo Prado escrevera que para os novos temas, para o “pluralismo cinemático de nossa época”, “época apressada de rápidas realizações, a tendência é toda para a expressão rude e nua da sensação e do sentimento, numa sinceridade total e sintética”, para a expressão da “concisão lapidar” do haicai japonês, em “minutos de poesia” [sem grifo no original] (PRADO, P. in ANDRADE, O. 1925, pp.7,8,10). Esta nova forma poética, de síntese, coincidia com o estilo dos desenhos de Tarsila e com as orientações que recebera, provavelmente, de um de seus professores no cubismo, em Paris, André Lhote (1885-1962). Para André Lhote, o desenho era a organização harmoniosa de “signos representativos sobre o papel”. Mais do que os povos primitivos, os Orientais reduzem, segundo ele, o modelo para substituí-lo ao ornamento ou ao signo, nos quais são abolidos todos os detalhes. “Aqui, as coisas são reduzidas ao ornamento absoluto unicamente pelo traço, a cor é demasiado pura para suportar a imitação em relevo do que quer que seja: é por isso que os objetos são significados ao invés de serem imitados”. Observava, ainda Lhote, que os japoneses, quando crianças, aprendiam a desenhar utilizando formas geométricas e acostumavam-se, assim, a ver a realidade geometricamente. Como num jogo, círculos, retângulos, triângulos eram dados de antemão para que, justapostos, formassem figuras de homens e animais. Como as crianças orientais, os jovens pintores deveriam, segundo Lhote, habituar-se a “considerar como inseparáveis a geometria e a verdade e a apresentar toda representação da realidade como um jogo”, adotando uma “escrita plástica geometrizada”, reduzindo as coisas ao signo puro. O “espírito de síntese” percebe as coisas apenas de modo geral, produzindo imagens da “sensação global”, das “linhas dominantes”. (LHOTE, 1948, p.76 ). Para citá-lo diretamente: O paisagista deve reter apenas, ao observar o mundo, suas direções dominantes que são levadas para o esboço, partindo de cada canto do quadro e sem se preocupar com os pontos onde se localizarão os objetos. Estas direções: galhos, linhas do terreno, tetos das casas, linhas de sombra ou brilhos de luz, acumular-se-ão em um sentido dado (...) O pequeno jogo dos japoneses (...) obrigando aos principiantes a sentir a natureza através de formas com uma unidade de estrutura, obrigava-os também a conceber a disposição das formas somente através de uma rede rítmica simples[sem grifo no original] (LHOTE, 1948, p78-79) Eram, portanto, poesia ou desenho concisos, de acordo com as orientações de André Lhote e como manifestado na introdução de Paulo Prado para a Poesia 241 Pau Brasil, próprios para expressar “a nossa época apressada”. As relações entre a obra de Tarsila do Amaral, especialmente de seus desenhos, e a literatura, foi bastante averiguada e compreendida. É preciso ir um pouco adiante e procurar entender até que ponto os desenhos de Tarsila podem ser entendidos também como uma forma de escritura. Tarsila do Amaral e o desenho como ideograma oriental Michel Leiris escrevera que o primeiro problema insolúvel, para a crítica de arte, seria definir o limite no qual a escrita se faz caligrafia e por que um X é caligráfico, enquanto um Y não o é, em suas palavras: “Premier problème – irrésolu et peut-être insoluble – de la critique d’art: déterminer le point où l’écriture se fait calligraphie. Pourquoi X est-il calligraphe, alors que Y ne l’est pas?” (LEIRIS, 1971) Mário de Andrade havia refletido sobre a natureza do desenho como uma forma de escrita. O desenho seria, para ele, uma manifestação sutil e transitória, uma “fala”, “mais caligrafia que arte plástica”. O desenho implicava, segundo Mário de Andrade, num desenvolvimento intelectual maior que não é encontrado nem mesmo entre povos que conheçam os processos primários da pintura. Assim como as pinturas primitivas do corpo, os desenhos possuem uma “essência caligráfica”. São, portanto, “para serem lidos como poesias, haicais, sonetos. Mesmo croquis, esboços, como desenhos completos”. E ainda, o desenho é “a definição para a compreensão intelectual. É como um provérbio, uma frase feita, emprega processos essenciais da manifestação poética, é da natureza descrevedora e raciocinante da prosa” (ANDRADE, M. 1975, pp. 69-77). Ideias como essas a respeito do caráter caligráfico da arte do desenho podem ter conotações sugestivas para compreendermos os desenhos de Tarsila do Amaral como ideogramas. Da mesma forma, André Lhote, havia escrito ainda em 1910 as seguintes observações: “O ritmo na arte é a dança das linhas. Os acadêmicos, tomados de paixão pelo contorno exato, não podem ter ideia desta embriaguez plástica à qual os músculos, as rugas e os ossos não podem resistir; os únicos que podem senti-lo são aqueles entre cujas mãos um lápis se torna o prolongamento balanceado de si mesmos, delírio espontâneo, escrita inspirada [sem grifo no 242 original]”. Como já se viu antes, André Lhote apontava, em seu Tratado da Paisagem, uma semelhança entre o desenho e a escrita. Os japoneses, realizavam, idealmente este cruzamento entre a escrita e leitura geométrica da realidade. A arte de desenhar equivaleria, neste ponto, “à adoção de uma escritura plástica geométrica”, à redução das coisas a seu signo puro (LHOTE, 1948, pp.58-59). A prática do desenho pertenceria, sob esse ponto de vista, a um campo intermediário entre a arte e a escritura. Lembra-se que em grego desenho e escrita têm a mesma raiz etimológica. O desenhista seria, assim, uma espécie de escriba, assim como o escritor empregaria signos. Seria de difícil determinação o ponto em que a escrita se faz caligrafia e em que o desenho se faz escritura, como queria Michel Leiris (LEIRIS, 1975, s/p. e GROWE e FRANZ, 1984, p. 24). No que se refere aos desenhos de Tarsila, Aracy Amaral já revelara sua relação com a escrita. Ao comentar sobre os desenhos da artista para o livro de Blaise Cendrars, Feuilles de Route, a autora escreveria: ilustrado por Tarsila, cujo domínio da linha plenamente adquirido a partir de 1923 já lhe permitia, não apenas a estilização, como a simplificação, numa redução máxima de elementos gráficos quase que ideogramáticos. Nãodiscursos, os desenhos realizados, sobretudo na viagem a Minas – e desse tempo em diante nos anos vinte – são registros rápidos, telegráficos, que se casam admiravelmente com o conjunto de poemas da viagem de Cendrars ao Brasil, sua poesia, por sua vez, plena de referências sobrepostas, numa construção rítmica.[sem grifo no original] (AMARAL, A. 1975, pp. 157-158) Comentaria, ainda Aracy, ao introduzir o livro de desenhos de Tarsila do Amaral, que o hábito do desenho havia se tornado, para a artista, como a “palavra escrivinhada, às pressas pelo poeta”, porque Tarsila “escreve desenhando, fala pela imagem” (AMARAL, A. 1971, s/p). Esta mesma autora lembraria, no catálogo da exposição da artista, em 1969, que Tarsila abandonara suas incursões na poesia, deixara de escrever poemas à medida em que se agilizava sua capacidade no desenho, como se a necessidade de expressão escrita e poética tivesse sido canalizada para o desenho. No ano seguinte, Aracy ainda comentava que, nos desenhos de Tarsila, bichos, vegetais e pedras se confundiam “no fluir linear de sua escrita gráfica horizontal e organizada”. (AMARAL, A. 1970) Na biografia de Tarsila do Amaral, escrita por Nádia Battella Gotlib, pode-se ler que a admiração que a pintora tinha pelas palavras a havia levado a escrever 243 poemas cujas “imagens traduzem gestos da artista plástica, que aí verseja desenhando linha e fazendo traço”. Refere-se e cita o poema Tédio de Tarsila: “Linha reta, infinita, onde a vista erradia/ Em vão busca tactear um relevo que agrade.../ Vago traço de união entre o erro e a verdade, (...)” . Etc. Neste poema, para a biógrafa, haveria evidentes elementos plásticos, de onde se poderia concluir a relação intensa entre palavra e imagem presente no procedimento criativo de Tarsila, tanto na escrita quanto no desenho (GOTLIB, 1978, pp. 37-39)1. Flávio de Carvalho observou, na homenagem a Tarsila feita através da Revista Acadêmica de 1940, que a arte desta pintora respondia a quatro períodos. A pré-pintura, a poesia, a fase sombria e o período cor de rosa. O período da poesia corresponderia à fase pau-brasil, quando a “poesia invade fortemente sua vida, a sua arte”, a poesia da simplicidade (CARVALHO, 1946). Frederico Morais via, ao contrário, que em certos trabalhos gráficos de Tarsila “tudo vira desenho, a linha, o vazio, a palavra e até a assinatura”, o T.24 com “precisão e elegância” (MORAIS, 1985, p.3). Mais uma vez, escrita e desenho se confundem. Mas todas estas observações seriam desnecessárias se apenas observássemos com atenção alguns dos desenhos de Tarsila do Amaral, como Acrópole II, Vista de Rodes ou Vista de Ouro Preto. É muito provável que as intenções de produzir imagens de síntese contivessem para a artista uma reflexão sobre desenho como escrita. Alguns de seus artigos para o Diário de São Paulo2, nos anos 1930, dão margem a entender que a própria artista compreendesse seu trabalho, enquanto desenhista, como uma espécie de exercício de escriba. Ao tratar, por exemplo, da Pintura na Arte Japonesa, Tarsila comentaria a arte de Kano Massanobu, de princípio do século XVI, com as seguintes palavras: Fundou uma escola nova, baseada nos processos caligráficos dos antigos mestres chineses, adaptando-os ao verdadeiro estilo japonês. Deve-se notar que na China o desenho pertencia às artes da caligrafia e que, mesmo atualmente, todo chinês e todo japonês culto sabe desenhar, porque escrever os caracteres complicados daqueles idiomas, por meio de tinta da China e pincéis finíssimos, é desenhar. Mas agora, que o Japão inunda os mercados europeus e americanos canetas tinteiros [sic], ainda continuam a escrever com pincéis. (...) 244 O espírito, a graça, a pureza da linha são os característicos da pintura japonesa. A linha é o que pode haver de mais convencional, já que ela não existe na natureza. A esse respeito, lembro-me da insistência de Robert Delaunay, o pintor da Torre Eiffel, em fazer pintura sem linhas. Delaunay, quando o vi pela última vez, há quatro anos, andava obcecado por essa ideia, mas os seus painéis decorativos de turbilhões de cores luminosas sem pretensão a naturalismo, não puderam entretanto evitar o convencionalismo. Os pintores japoneses não evitam esse convencionalismo e servem-se dele francamente como o seu melhor meio de expressão. E está me parecendo que pintar ou desenhar sem linhas, como quer Delaunay, é o mesmo que falar sem palavras [sem grifo no 3 original] (TARSILA, T., 1937, p.6) . O elogio à linha não é o único aspecto importante deste artigo sobre arte oriental para esclarecer o próprio trabalho da artista. Chama a atenção seu interesse em aproximar desenho e palavra. A palavra que, para ela, “entre todos os sinais de exteriorização do pensamento, tem a supremacia”. A palavra representava, de acordo com Tarsila, a “expressão máxima do pensamento” ao lado das outras formas de linguagem: “o gesto, os processos gráficos abrangendo todos os sinais escritos – números, hieróglifos, artes do desenho, música4 (TARSILA,T., 1937, p.6)”. No artigo seguinte, sobre a Escrita, a pintora mostrava seu interesse pelo tema da invenção da escrita. Depois do gesto, o primeiro sinal de exteriorização do pensamento, depois da palavra, a mais completa destas exteriorizações, vem a escrita, abrangendo genericamente todos os processos gráficos. Os cálculos de raciocínio se fazem apoiados na palavra mental, articulada ou escrita, sendo esta última a melhor das formas. No desenvolver de um pensamento complexo, instintivamente lançamos mão de anotações para não perder o fim das ideias. Já que a simples palavra mental ou articulada se tornam, nesse caso, insignificantes. Esse processo é o único eficaz para a maioria dos espíritos, só podendo ser dispensado por uma alta elite intelectual. O homem em geral prefere concretizar o pensamento: pela palavra escrita, retratá-lo em formas sensíveis para depois o aperfeiçoar. O grande serviço que a escrita presta ao pensamento vista da maneira lenta por que é executada, obrigando o homem a medir, pesar e afirmar o que escreve, enquanto a palavra articulada retrata o pensamento num instantâneo não fixado. Muitos povos têm reivindicado para a invenção da escrita. Os chineses atribuíramna ao imperador Fo-Hi, o filho do arco-íris nascido 3.300 anos antes da nossa era. Conquanto seja um filho luminoso do a existência de Fo-Hi está comprovada por documentos, e a China dá-lhe categoricamente a primazia da invenção na escrita composta de simples traços combinados de diversas maneiras para substituírem as cordas nodoadas que então se usavam como processos mnemônicos para as leis e fatos históricos. (...) Numa tal exuberância criadora, não era de admirar que inventasse também, por meio da escrita, a maneira de perpetuar sua memória. Os historiadores na maioria estão de acordo em que a arte de escrever se deve aos egípcios. 245 A escrita na sua trajetória tem três fases bem definidas. A figurativa, ou hieroglífica, representando aspectos e ideias por meio de figuras; a fase transitória ou simbólica, com a representação convencional de ideias e objetos; a fase alfabética pura ou fonética, adaptada pela matéria dos povos atuais com a representação fonética da voz humana. À fase figurativa ou hieroglífica pertencem os primeiros hieróglifos egípcios e os primeiros sinais da escrita chinesa. A fase transitória ou simbólica representa os hieróglifos egípcios chamados hieráticos, a escrita chinesa atual, a japonesa e algumas outras. A fase fonética compreende todas as escritas baseadas no alfabeto. Um simples traço pequeno foi desenvolvido por Fo-Hi, na formação de trigramas combinados de modos diversos aos quais se juntaram mais tarde pequenas figuras mais ou menos realísticas dos objetos, formando o hieróglifo chinês. Depois se reuniram duas ou mais figuras para exprimir uma ideia. Assim, a ideia de luz era representada por um sol e uma lua, um homem sobre uma montanha significava um eremita; uma orelha e uma porta, o verbo ouvir; uma boca e um pássaro, cantar; um olho junto à água, chorar; a imagem de um coração, a abstração dos sentimentos. [sem grifo no original](...) 5 (AMARAL, T. 1937, p.6) Tarsila publicou, portanto, uma série de três artigos, nestes anos, depois de já ter publicado o estudo sobre a pintura japonesa, tratando do tema da palavra, da escrita e dos hieróglifos, mostrando-se muito interessada em compreender estes sistemas gráficos de expressão, especialmente os sistemas orientais. Estaria preocupada, talvez, com o processo de simplificação dos objetos através dos ideogramas, como forma de representação do mundo por meio de sinais abreviados. Tarsila do Amaral não era, certamente, como vimos, a única artista de vanguarda a interessar-se pela arte e pela escrita oriental. Os hieróglifos egípcios, porém, lhe pareciam igualmente um tema pertinente nesta série de artigos: A pedra de Rosetta foi a pedra de toque animadora que levou o cientista Champolion, o jovem, a estudar e a decifrar os hieróglifos egípcios. (...) Os gregos e os romanos, habituados à escrita fonética, desorientaram-se diante do sistema gráficos dos egípcios, constituído pelos sinais figurativos ou hieroglíficos com a representação dos objetos desenhados e pelos sinais simbólicos com a representação convencional desses objetos (...) Champolion demonstrou que no tempo da dominação grega e da tomada do Egito o sistema gráfico compreendia um certo número de figuras de valor puramente fonético, por meio dessas figuras os nomes dos soberanos gregos e romanos foram gravados hieroglificamente em alguns monumentos do Egito e de estilo egípcio. Afirma também que o verdadeiro alfabeto egípcio vem das épocas mais antigas da história deste povo. No Précis du Systhème Hieroglifique, publicado em 1824, ele determina quais os sinais hieroglíficos que não pertencem ao alfabeto fonético e divide esta escrita através da forma natural dos sinais em três modalidades. Primeiramente a hieroglífica propriamente dita, que se compõe de sinais representativos do mundo físico, objetos, animais, plantas, árvores, cuja representação é feita por desenhos a traço ou inteiramente terminados e mesmo coloridos. A segunda modalidade é a hierática, uma verdadeira taquigrafia da hieroglífica, assim, só se desenhava uma parte do objeto em vez de desenhá-lo inteiro. A terceira modalidade é a demótica ou popular, igual à precedente porém reduzida. Era empregada relativamente à vida comum. 246 Quanto ao valor dos sinais são eles figurativos, simbólicos e fonéticos. Os figurativos exprimem simplesmente a ideia do objeto desenhado: um boi representa simplesmente um boi. Os sinais simbólicos exprimem uma ideia metafísica através da imagem que tenha analogia direta ou indireta com a ideia que se queira expressar. Os sinais fonéticos exprimem os sons da língua falada. Todos estes sinais aparecem conjuntamente na mesma inscrição e longe de complicar, facilitam a 6 interpretação [sem grifo no original].(TARSILA, 1937, p.6) É tentador combinar as palavras da artista sobre o processo de codificação do mundo no sistema de escrita hieroglífica – a representação feita por desenhos inteiramente terminados ou por uma taquigrafia, em que só se desenhava parte do objeto – com sua produção de desenhos em forma de sínteses das cidades pelas quais viajou. Se aceitamos como válida esta combinação, trata-se de entender os desenhos de Tarsila do Amaral como uma espécie de invenção de escrita, um esforço para a criação de códigos fixos – como o templo grego reduzido a traços ligeiros ou a igreja barroca sintetizada em poucos elementos geométricos. Estas ideias coincidem com o que foi proposto por Haroldo de Campos, ainda no final dos anos1960, de que a obra de Tarsila seja “uma leitura estrutural da visualidade brasileira: reduzindo tudo a poucos e simples elementos básicos (...) codifica em chave cubista nossa paisagem ambiental e humana”. Para este autor, a redescoberta do Brasil por parte de Tarsila era mesmo esta releitura de modo seletivo. Por esta releitura, a artista “vivenciava a realidade” que seria “decodificada” para ser “recodificada” na tela. O “mundo icônico” de Tarsila era, para Haroldo de Campos, constituído de “elementos privilegiados”, “figuras demarcadas e lúcidas”. O caráter de síntese na obra de Tarsila e a produção de “códigos visuais”, com valor simbólico estaria, contudo, fundamentado, a seu ver, pelas cores “geometrizadas nas casinhas que modulam o cenário tarsiliano, são também índices (...) qualidade concreta” (CAMPOS, 1969 apud AMARAL, A. 1975, pp. 484-485). Carlos Zílio confirmou, com outras palavras, a ideia de Haroldo de Campos, em A querela do Brasil, ao explicar o sistema de Tarsila. Adotou, portanto, a ideia de que se tem, em sua obra, a constituição de signos (ZILIO, 1982, p.82). Para o crítico Mário Barata, Tarsila conseguiu justamente “codificar os elementos da visualidade brasileira numa síntese mental-imagística” que coincidia com o seu “sintetismo 247 plástico”. Através do cubismo de Léger, para ele, a artista construiu uma “visão codificada, nova, pura e modernista do Brasil” (BARATA, 1969). Mas, desde o catálogo da exposição de 1929, um dos textos reunidos já apontava que Tarsila tentava “domar a aspereza de certos símbolos naturais da nossa terra, estilizando-os para uma futura arte decorativa genuinamente nossa. Em sua tela que representa a baía de Guanabara, nota-se essa preocupação digna de ser incentivada. O Pão de Açúcar, ali já passou por várias transformações sem perder as suas linhas mestras (...) Ora, essa maneira criadora de estilizar os motivos de arte brasileira vai proporcionar a esta terra um novo campo de pintura [sem grifo no original]” (SILVEIRA, 1929, pp. 44-45) A compreensão que se teve, já em 1929, a respeito da capacidade de estilizar os símbolos nacionais, transformando-os sem perder suas linhas principais, tomando aqui como exemplo o Pão de Açúcar que ilustra a Poesia Pau-Brasil, deveria valer também para a criação de um outro símbolo – transformado e estilizado nos desenhos da viagem a Minas Gerais de 1924: a igreja barroca. A visibilidade do passado produzida pela pintora modernista proporcionou a criação de imagens sintetizadas que serão repetidas – como códigos fixos. Tarsila teria criado, assim, uma espécie de escrita, onde uma das palavras era a igreja de duas torres e de frontão curvo, como um ideograma, um “hieróglifo taquigráfico” elaborado em seus desenhos e recorrente em seus quadros. Henri Matisse diria que “a importância de um artista mede-se pela quantidade de novos sinais que tiver introduzido na linguagem plástica”. E ainda: “Um sinal para cada coisa. É um progresso do artista no conhecimento e na expressão do mundo, uma economia de tempo, a indicação mais sumária do caráter de uma coisa. O sinal. (...) Com sinais pode compor-se de uma maneira livre e ornamental.” (MATISSE, p.197) É curioso observar a maneira inesperada como o “código da uma igreja barroca” aparece, por exemplo, em quadros como EFCB, de 1924 ou no Vendedor de Frutas, de 1925, onde se pode observar o modo como se extrai da realidade e se transforma a fachada da igreja colonial, erguendo-a como um símbolo que se 248 sobressai na vista da cidade histórica, no desenho e na obra final de Lagoa Santa, ambos de 1924. Uma vez tendo sido possível entender os desenhos de Tarsila do Amaral como uma espécie de escrita e de criação ideogramática, estabelece-se por um outro caminho a permeabilidade entre arte e literatura, entre imagem e texto. Tendo sido entendido o desenho – os ligeiros traços sobre o papel – como hieróglifos ou ideogramas, o que dizer do imenso vazio que o circunda? Sendo o desenho a “palavra”, o vazio do papel ganha o sentido de silêncio. O branco, ou o nada, do papel como silêncio já faz parte do problema da disposição gráfica da escrita poética. O espaço “em branco” ao redor do texto poético pode ser percebido como uma moldura de silêncio em contraste com a palavra escrita. Poderiam ser lembradas, mais uma vez, as palavras de Henri Matisse acerca do desenho e do papel branco sobre o qual não apenas se apoia, mas dialoga: “modifico diferentes partes do meu papel branco, sem tocar nelas, mas por vizinhanças”. Ou lembrando, outra vez, a arte oriental, escreveu: “Tinha já observado que nos trabalhos dos orientais o desenho dos vazios deixados à volta das folhas contava tanto como o próprio desenho das folhas.” (MATISSE, 1972, pp. 154, 158). É interessante sempre levar em conta o exemplo significativo do desenho de Constantinopla feito por Tarsila do Amaral sobre papel celofane, que faz parte da Coleção de Artes Plásticas Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), pois aqui a ideia de papel como vazio é ainda mais literal. A tinta alcalino-ferrosa destrói cada vez mais o suporte em celofane, fazendo do desenho uma peça “programada” para autodestruir-se e desaparecer. Toda definição de detalhes foi abolida, nas vistas desenhadas por Tarsila, em nome de uma unidade que sugere continuidade entre espaço e tempo, sugere a desmaterialização da paisagem. Repete-se que se o desenho é a escrita, o “não-desenho”, o vazio do papel, é o silêncio. Oswald de Andrade havia se referido, poeticamente, à obra de Tarsila como “silêncio emoldurado” (ANDRADE, O. 1924)7. Observemos, finalmente, um último desenho: “Cidade com Bondinho”, também pertencente ao IEB-USP. Com uma dezena de traços verticais e horizontais, 249 a pintora sintetizava, provavelmente, um aspecto da cidade de São Paulo como paisagem em transformação. Ao mesmo tempo em que se reconheceu a obra de Tarsila como uma adequação estética à modernização de São Paulo, leva-se em conta também a dose de nostalgia e bucolismo que contém (SEVCENKO, 1992). O pequeno desenho de Tarsila refletia esta ambiguidade. Por um lado registrava a estrutura metálica em vertical e o bonde elétrico, portanto uma paisagem marcada pelas transformações industriais; por outro, conservava, com bucolismo e nostalgia, uma frágil arquitetura colonial no canto direito inferior do papel. Poderíamos compreender este desenho como um ideograma para a modernidade e uma apropriação de elementos da caligrafia oriental, uma interpretação muito própria da ideia de Oriente. Tarsila teria inventado um certo Oriente pelos caminhos da arte moderna ocidental e por suas “viagens”, por assim dizer, pela leitura de seus “17 elefantes”, como ela carinhosamente se referia os 17 volumes de seu inseparável “Grand dicitionnaire universel du XIXème siècle”, aficionada por dicionários e enciclopédias (BRANDINI, 2008, p.30). O Oriente extremo que a pintora do Abaporu jamais conhecera, já que suas viagens a levaram somente até Moscou e ao Oriente Médio. No entanto, em seus desenhos e artigos, Tarsila do Amaral foi capaz de inventar seu próprio Oriente, pois, talvez, os ideogramas orientais representariam para ela e para a arte moderna, de um modo mais geral, a síntese e a gestualidade desejadas, assim como um aparente espontaneísmo que tanto o desenho como a escrita oriental supostamente permitiriam. Notas 1 A autora lembra que Tarsila publicou, pelo que se sabe, cinco poemas (Artista, Harmonia, Panteísta, Tédio e Alegria), numa revista do ginásio Oswaldo Cruz, Castália, entre 1918 e 1920. A biógrafa estabelece a relação desses escritos com a criação plástica e com a obra de Gilka Machado. 2 A transcrição completa do conjunto de crônicas e escritos de Tarsial do Amaral pode ser lida em BRANDINI, Laura Tadei. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Campinas-SP, Editora da UNICAMP, 2008. Ver também AMARAL, A. Tarsila Cronista. São Paulo: Edusp, 2001. 3 AMARAL, Tarsila. A Pintura na Arte Japonesa. Diário de São Paulo, 12 jan., 1937, p.6 4 AMARAL, Tarsila. A Palavra. In Diário de São Paulo: 23, mar. 1937, p.6. 5 AMARAL, Tarsila. A Escrita. In Diário de São Paulo. 31, mar. 1937, p.6 6 AMARAL, Tarsila. Hieróglifos. Diário de São Paulo, 7 abr., 1937, p.6 7 ANDRADE, Oswald. Atelier. In Pau-Brasil. Paris: Sans-Pareil, 1925. 250 Referências Bibliográficas AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra, seu tempo. Série Estudos. São Paulo: Perspectiva, 1975. AMARAL, Aracy. Tarsila: Raízes da Terra. Jornal do Brasil: Rio de Janeiro, 28 ago. 1970. AMARAL, Aracy (org.) Tarsila Cronista. São Paulo: Edusp, 2001. AMARAL, Tarsila. A Pintura na Arte Japonesa. Diário de São Paulo, 12 jan., 1937, p.6 AMARAL, Tarsila. A Palavra. In Diário de São Paulo: 23, mar. 1937, p.6. AMARAL, Tarsila. A Escrita. In Diário de São Paulo. 31, mar. 1937, p.6 AMARAL, Tarsila. Hieróglifos. Diário de São Paulo, 7 abr., 1937, p.6 ANDRADE, Mário. Do Desenho. In Aspectos das Artes Plásticas no Brasil. 2 ª ed. 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Angela Brandão Cursou História na Universidade Federal do Paraná, Especialização em Arte e Cultura Barroca na Universidade Federal de Ouro Preto e Mestrado em História da Arte e da Cultura na UNICAMP. Doutora em História da Arte pela Universidade de Granada, Espanha, com a tese “A Invenção do Barroco pelo Modernismo Brasileiro” (2002). É professora no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UNIFESP. 252 DE OUTRAS IMAGENS: UMA TOPOGRAFIA IMAGÉTICO-DISCURSIVA DO MAHĀPARINIRVĀṆA DO BUDA NO SUDESTE ASIÁTICO Cibele E. V. Aldrovandi – MASP e USP RESUMO: A presente comunicação discorre sobre alguns aspectos do desenvolvimento do repertório imagético-discursivo associado ao Mahāparinirvāṇado Buda Śākyamuni com ênfase no Sudeste da Ásia – abordando-o a partir de conceitos como heterotopia, hibridismo e terceiro-espaço. A gênese e o desenvolvimento inicial dessa representação de caráter narrativo ocorreu na região de Gandhāra, no noroeste da Índia, e remonta aos séculos I ao III d.C. Esse esquema formal, que representa os momentos finais e a transcendência suprema do Buda histórico – originalmente com figuras em lamentação ao seu redor –, tornou-se canônico e propagou-se ao longo dos séculos nas demais regiões asiáticas sob a égide do budismo. No entanto, uma peculiaridade observada no Sudeste Asiático – objeto da presente investigação –, é a transformação da imagem canônica do Mahāparinirvāṇa, naquela do Buda Reclinado sem o lamento. As evidências apontam para uma hibridização hindu-búdica – entre as representações do deus Viṣṇu Anantaśayana e do Mahāparinirvāṇa do Buda –, que será discutida sob a ótica de um deslocamento heterotópico e transcendente da representação imagética, associado ao contexto discursivo de indianização daquela região. Palavras-chave: Mahāparinirvāṇa, budismo, hinduísmo, hibridismo imagético-discursivo. ABSTRACT: This presentation discusses some aspects of the development of an imagetic and discursive repertoire associated with the Mahāparinirvāṇa of the Buddha Śākyamuni with emphasis on Southeast Asia – which will be approached through concepts such as heterotopy, hybridity and thirdspace. The genesis and early development of this representation, of a narrative character, occurred in the region of Gandhāra in northwest India, and dates back to the I to III centuries AD. This formal scheme, which represents the final moments and the ultimate transcendence of the historical Buddha – originally with mourning figures around him – became canonical and has spread over the centuries in other Asian regions under the Buddhist aegis. However, a peculiarity observed in Southeast Asia – the main subject of this investigation – is the transformation of the canonical image of the Mahāparinirvāṇa into that of the Reclining Buddha without any mourning figures. Evidence points to a Hindu-Buddhist hybridization between the representations of the god Viṣṇu Anantaśayana and the Mahāparinirvāṇa of the Buddha – which will be discussed here from the perspective of a heterotopic and transcendent displacement of the imagetic representation, associated with the discursive context of Indianization in that region. Keywords: Mahāparinirvāṇa, Buddhism, Hinduism, imagetic and discursive hybridism. I. Introdução Esta comunicação é uma oportunidade de retomar uma questão que permanece latente há alguns anos, qual seja, a de refletir sobre alguns aspectos do desenvolvimento do repertório imagético-discursivo associado ao Mahāparinirvāṇa do Buda Śākyamuni encontrado no Sudeste da Ásia (SEA). Em particular, sobre 253 uma peculiaridade observada naquela região: a transformação da representação canônica do Mahāparinirvāṇa – cuja gênese esteve associada à escola de Gandhāra, no noroeste da Índia, entre os séculos I-III d.C., sob a égide da dinastia Kushan –, naquela do Buda Reclinado e sem o lamento ao seu redor. Além disso, pretendemos dar início à investigação de uma possível hibridização hindu-búdica – entre as representações do deus Viṣṇu Anantaśayana e aquelas do Mahāparinirvāṇa do Buda –, que procuramos discutir sob a ótica de um deslocamento heterotópico e transcendente da representação imagética. Para tanto, utilizaremos conceitos como heterotopia (FOUCAULT, 1984), hibridismo e terceiro espaço (BHABHA, 1994; SOJA, 1996) – com vistas a verificar e buscar compreender alguns mecanismos manifestos na transposicão dessas representações imagéticas, para além do território indiano, em direção ao SEA. A referência direta à palestra de Foucault – “Des espaces autres” [“Of other spaces” (De outros espaços); proferida em 1967 e publicada em 1984 e 1986] –, presente no título deste artigo, é utilizada aqui como uma maneira de se estender o conceito de heterotopia, ali desenvolvido, às imagens e, assim, buscar compreender os deslocamentos, transformações, inseminações e contaminações que um repertório imagético está sujeito ao longo de seu percurso, em particular, quando transposto para outros lugares ou regiões, que funcionam em condições de alteridade e, portanto, de outras imagens. A heterotopia foi um termo utilizado originalmente pela medicina para designar um tipo de tecido específico que se desenvolve em outro lugar, algo deslocado, não necessariamente um tecido doente ou maligno mas, simplesmente, que surge em um outro lugar, que não o usual (v. LAX, 1998, p. 114). Foucault (1984), por sua vez, se apropriou do conceito utilizando-o em termos espaciais, Mas, de todos esse sítios, interessam-me mais aqueles que têm a propriedade curiosa de se relacionar com todos os outros sítios, mas de uma forma que suspeita, neutraliza, ou inverte a rede de relações por si designadas, espelhadas e refletidas. Espaços que se encadeiam uns nos outros mas, no entanto, contradizem todos os outros (...). Existem também, provavelmente em todas as culturas, em toda civilização, lugares reais – lugares que existem e que são formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-sítios, uma espécie de utopia efetivamente criada na qual os lugares reais, todos os demais lugares que podem ser encontrados dentro da cultura, são simultaneamente representados, contestados e invertidos. Lugares desse tipo estão fora de todos os lugares, 254 embora seja possível indicar sua localização na realidade. Em razão desses lugares serem absolutamente diferentes de todos os outros locais que eles refletem e discutem, eu os chamarei, por contraponto às utopias, heterotopias. (FOUCAULT, 1986, p. 24-25; tradução nossa) Desde a época em que a palestra de Foucault foi proferida, até os dias atuais, muito se discutiu a respeito das heterotopias. Esse conceito foi amplamente utilizado pela geografia e em diferentes abordagens nas mais diversas disciplinas1. Ao mesmo tempo, também se desenvolveu uma literatura crítica sobre esse conceito com interpretações, muitas vezes conflitantes, acerca daquilo que Foucault teria realmente afirmado. Alguns autores consideraram sua abordagem estruturalista falaciosa, incompleta e até mesmo incoerente (v. SOJA, 1996, p.162). No entanto, a narrativa proposta por Foucault celebra, como vemos no excerto supracitado, as descontinuidades, os desvios, as inversões, as contestações, as ambivalências e as contradições presentes em certos espaços. Algo semelhante pode ser pensado, por extenção de sentido, sobre as imagens. Dessa forma, a heterotopia é, aqui, pensada em relação às representações imagéticas que – assim como os espaços –, ao serem deslocadas passam a acumular mais camadas de significação que, por sua vez, criam diferentes relações com outras imagens e espaços. Certamente, bem mais numerosas que aquelas aparentemente encontradas em sua superfície ou seu contexto inicial. A heterotopia imagética, nesse sentido, refere-se às outras representações que passam a refletir significados duplos ou, mesmo, múltiplos – imagens iminentemente polissêmicas e, em alguns casos, polinômicas (v. TULADHAR-DOUGLAS, 2005, p.60). Isto porque, quando deslocadas de seu contexto geográfico original, apresentam elementos residuais, descontinuidades, inversões e, em certos casos, se encontram imbuídas de contradições e ambiguidades. Esses repertórios de imagens diferentes podem ser estudadas sistematicamente sob a ótica cultural e social e, de alguma forma, vir a desafiar ou contestar determinadas imagens e espaços tradicionalmente conhecidos. Além de fazer uso do conceito de heterotopia e dos princípios por ele engendrados, também procuramos incorporar, neste artigo, outras abordagens que nos pareceram válidas na investigação desse deslocamento pelo qual as representações do Mahāparinirvāṇa do Buda passaram, ao serem transpostas para as diferentes regiões do SEA. Isto porque, uma vez inseridos em outros contextos, 255 um repertório imagético – heterotópico – apresenta graus variados de hibridismo e, como bem observou Bhabha em uma entrevista a Rutherford, O próprio ato da tradução cultural (tanto como representação e como reprodução) nega o essencialismo de um original anterior ou cultura original, assim todas as formas de cultura estão continuamente em processo de hibridismo. Mas, para mim, a importância do hibridismo não é a de ser capaz de traçar dois momentos originais dos quais um terceiro emerge, hibridismo para mim é o ‘terceiro-espaço’ que permite o surgimento de outras posições. Esse terceiro-espaço desloca as histórias que as constituem e estabelece novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas. (BHABHA, in RUTHERFORD, 1990, p. 211; tradução e grifo nossos) Esse hibridismo cultural, concebido por Bhabha (1990; 1994), pode provocar o surgimento de forças de representação cultural desiguais no chamado terceiroespaço (BHABHA, 1994, p. 55) e, muitas vezes, ambivalentes, em razão da intervenção da alteridade nesse processo tradutório. Mas a importância do hibridismo é que ele carrega os traços daqueles sentimentos e práticas que o informam, como uma tradução, de modo que o hibridismo une os traços de certos outros significados ou discursos. Ele não lhes dá autoridade de serem anteriores no sentido de serem originais: eles são anteriores apenas no sentido de serem precedentes. O processo de hibridismo cultural faz surgir algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova era de negociação e representação. (BHABHA, in RUTHERFORD, 1990, p. 211; tradução nossa) Pois, “a organização, o uso e o significado do espaço são um produto da tradução, da transformação e da experiência social” (SOJA, 1980, p. 210). Esse conceito de terceiro-espaço, foi aplicado por Soja (1996) – a partir da trialética espacial de Lefébvre (1974), surgindo como, “um-Outro modo de compreender e agir para mudar a espacialidade da vida humana, um modo distinto de consciência espacial crítica [...], que surge no reequilíbrio trialético entre espacialidadehistoricidade-socialidade” (SOJA, 1996, p. 57; tradução nossa). A partir dessa tríplice dimensão – o espaço, o tempo e o ser social – é possível analizar as transformações contínuas das práticas sociais. Esse instrumento conceitual inclusivo, cujo movimento se expande para além das dualidades, cria uma “trialética acumulativa que se abre radicalmente à alteridade, à ampliação contínua do conhecimento espacial” (SOJA, 1996, p. 61), a partir, justamente, da heterotopologia de Foucault (1967), mas também daquela em Said (1978), que podem, por sua vez, ser aplicadas a qualquer período e região (v. FRANK, 2009 p. 72). 256 O terceiro-espaço é concedido, portanto, como um conceito transcendente que está sempre em expansão para incluir “um-Outro” e possibilitar a contestação e renegociação das fronteiras e da identidade cultural, tendo como referência a ideia de que todo processo ou dinâmica de des-territorialização significa uma reterritorialização em novas bases – de entrecruzamento, alteridade, oposição, simbiose, fissura e sutura – ou ainda uma multiterritorialização (SOJA, 1996, p. 131et seq.). Assim, os territórios geográficos que se interpenetram são também espaços ideológicos, historicamente construídos e, por isso, também imersos em suas estruturas de poder. O que, por sua vez, valida e legitima os processos de abertura simbólica oriundos desse entrecruzamento de fronteiras e das dialogias daí resultantes, uma vez que esses são diálogos múltiplos. As possíveis narrativas contidas num repertório imagético heterotópico podem, portanto, ser vislumbradas nesse terceiro-espaço – híbrido, de fronteira e multiterritorializado – revelando-se, como veremos, em muitos sentidos, não apenas ambi-, mas multivalentes. II. Heterotopias Imagéticas 1. Os Antecedentes do Mahāparinirvāṇa em Gandhāra O repertório imagético associado ao Mahāparinirvāṇa do Buda foi o objeto central de nossa análise durante o doutorado (v. ALDROVANDI, 2006) e seu desenvolvimento inicial2, na região de Gandhāra, possuiu um caráter preponderantemente narrativo e doutrinário, centrado nos momentos finais da biografia do fundador do budismo. Nele, as representações forneceram recorrências que indicam um paralelismo estreito com os cânones budistas como aqueles presentes no Mahāparinibbāṇasutta [MHP], mas, ao mesmo tempo, ali também se encontram desvios e ambiguidades muito interessantes. Nos exemplares do Mahāparinirvāṇa provenientes de Gandhāra, criados em revelos para adornar estupas e monastérios, o Buda Śākyamuni está invariavelmente deitado sobre seu lado direito, com o braço direito flexionado sob o corpo enquanto a cabeça, com auréola, repousa sobre a mão direita, tendo a palma voltada para cima, sobre um ou mais travesseiros. O cabelo, preso no alto, forma o uṣṇīṣa típico. O braço esquerdo está disposto ao longo do corpo, e a mão esquerda está geralmente recoberta pelo manto que termina em pregas na altura dos pés. As pernas paralelas, aparecem levemente flexionadas; o panejamento do manto pode 257 apresentar pregas ao longo do corpo, que seguem o esquema formal das figuras em pé, como se o Buda não estivesse deitado. O leito fúnebre, semelhante a uma klíne grega, pode estar recoberto por um tecido que pende entre as pernas torneadas e um ou dois colchões, simples ou decorados, assim como os travesseiros, dependendo do grau de detalhamento da cena; em alguns casos, pode haver um pequeno apoio para os pés na frente do leito. O Buda está cercado por seus discípulos e devotos leigos, alguns em posturas explícitas de lamentação, outros em gestos reverentes, num esquema formal que remete às cenas de próthesis gregas. Entre os discípulos identificados estão: Subhadra, o último convertido pelo Buda; Ānanda, seu discípulo mais próximo e que lamenta pesarosamente; Anuruddha, um monge ancião; Vajrapāṇi, que não é mencionado nas fontes textuais associadas ao MHP, e se tornou o protetor do Dharma budista; Mahākāśyapa, um célebre asceta bramânico convertido, que geralmente conversa com um ājīvika; e Upavana, um monge que segura um abanador de moscas (camara), mais raro nessa iconografia. Vajrapāṇi Mahākāśyapa Anuruddha Ānanda Subhadra Figura 1. Cena do Mahāparinirvāṇa do Buda Śākyamuni, Gandhāra, séculos II-III d.C., xisto cinza, 23,8 X 35 X 8,4 cm (Fonte: © Trustees of the British Museum). Atrás e nas laterais do leito fúnebre aparecem figuras com turbantes e ornamentos, geralmente identificadas como os nobres Malla de Kuśināgara; na maior parte das vezes são figuras masculinas, muitas delas em postura de lamentação. Outras figuras, mais raras, representadas no entorno da cena incluem divindades, como os deuses védico-bramânicos Brahmā e Indra, ou seres celestiais. Nas cenas em que as árvores śāl gêmeas aparecem, elas são representadas nas laterais do leito fúnebre (v. ALDROVANDI, 2006, p. 387 et seq.). Essa padronização imagética, com o Buda deitado e cercado por figuras em lamentação, se estabeleceu como um modelo tradicional de representação desse episódio e tornou-secanônico, fornecendo a base do esquema formal para as 258 demais regiões asiáticas para onde o Budismo se propagou. A ênfase temática nas outras escolas artísticas – indianas e estrangeiras –, esteve associada quase que exclusivamente à cena principal do Mahāparinirvāṇa, diferente de Gandhāra, onde o repertório desse ciclo da biografia do Buda possuiu uma diversidade narrativa consideravelmente maior. 2. Heterotopias do Mahāparinirvāṇa no Sudeste Asiático Uma parte desse repertório imagético ainda se encontra nos próprios sítios arqueológicos ou nos templos e nos estupas, onde ainda são objeto de devoção popular contemporânea. As representações que permanecem in situ são geralmente aquelas de tamanho monumental, cujas evidências arqueológicas indicam um desenvolvido a partir do século V d.C., um fenômeno que esteve diretamente associado à divinização da persona do Buda. O que se revela fundamental nas represetações colossais do Mahāparinirvāṇa, nos períodos subseqüentes, é que os discípulos antes esculpidos junto ao Buda foram se reduzindo, quer em quantidade, quer em proporção. Possivelmente, porque o esquema formal presente nos relevos narrativos, naquela época, já era suficientemente conhecido. Essa banalização da representação pode ter favorecido a gênese da tipologia colossal que propunha uma mudança fundamental no foco de atenção visual e, consequentemente, na práxis ritual budista. Também se observa que o padrão iconográfico de lamentação, presente na grande maioria das representações de Gandhāra, cedeu lugar, paulatinamente, a um tipo diferenciado de ritual: são os devotos vivos que realizam as reverências diante da figura monumental do Buda, no Mahāparinirvāṇa. Assim, o visitante toma parte da ação ritual ao redor da imagem, realizando o pradākṣiṇa – circum-ambulação – e lhe rendendo homenagens ou, talvez, lamentando a partida do Iluminado, algo que ocorre até os dias atuais (v. ALDROVANDI 2006, p. 441 et seq.). Trata-se de uma importante mudança no paradigma representacional pois, a monumentalização alterou a forma como o devoto se relacionava com a imagem adorada, criando o que podemos chamar de, um meta-discurso imagético. Entre o repertório imagético das demais regiões asiáticas, as representações do Buda Reclinado se destacam numericamente. Nelas, o Iluminado aparece 259 deitado, seu cotovelo na maior parte das vezes está apoiado no solo e o braço, fletido, apóia a cabeça na mão direita cujo rosto, sereno, esboça um leve sorriso. Essa é uma representação bastante recorrente e popular no SEA, onde substituiu o modelo canônico do Buda envolto em lamentação. Muitos exemplares têm tamanho humano natural, mas grande parte das imagens costuma ser monumental, com vários metros de comprimento, as mais recentes chegam a alcançar 70m. Quando há alguma imagem ao redor do Buda, são monges em postura reverente, geralmente com as mãos postas, em añjalimudrā. Figura 2. Imagem do Buda reclinado com devotos ao fundo em añjalimudrā. Pedra com vestígios de douramento. Wat Arun, Bangkok, Tailândia (Fonte: AISO, 2007). No conjunto de imagens levantado até o momento, que soma 36 exemplares, a representação mais antiga do Mahāparinirvāṇa no SEA aparece em um relevo de Borobudur, na Indonésia, atribuído ao século IX d.C. Os exemplares subsequentes aparecem em Pegu, atual Myanmar; e em Prasat Hin Phimai, um antigo templo bramânico de origem Khmer, na atual Tailândia, ambos do século X d.C. e de caráter monumental. Os séculos seguintes, especialmente do XI ao XIII d.C., preservaram uma grande quantidade de representações, em suportes distintos (relevos biográficos, estatuetas, plaquetas votivas e esculturas monumentais, muitas delas em grutas), nas antigas regiões que hoje são parte de Myanmar, Tailândia e Camboja. A partir desse período, o crescimento da recorrência dessas representações é evidente, possivelmente associado à ascendência dos Theravāda, e se estende também ao Laos e ao Vietnã. A ênfase na figura do Buda Śākyamuni está de acordo com as crenças típicas do budismo Theravāda, embora as datas da chegada desse ramo budista ao SEA sejam imprecisas, geralmente, atribuídas ao século V d.C., com os sthaviravāda; somente nos séculos XII-XIV d.C. há registros associados aos theravādin singaleses 260 (v. LAVY, 2012, p. 59). Um monge tailandês da University of Pune nos informou, em 2004, que entre os Theravāda, essa representação do Buda Reclinado é geralmente associada ao momento em que o Buda proferiu seu último sermão [MHP VI.5-10], pouco antes de entrar nos estágios sucessivos de meditação e atingir o parinirvāṇa (informação oral; v. ALDROVANDI, 2006, p. 441, 779-780). Durante esse deslocamento heterotópico da representação do Mahāparinirvāṇa para o SEA, o lamento foi suprimido pois naquela nova topografia, ele perdeu seu sentido sociocultural. Ao mesmo tempo, a ênfase discursiva sobre a morte do Buda cedeu lugar, gradualmente, à uma discursividade sobre a sua Transcendência (ALDROVANDI, 2006, p. 463-464). III. Heterotopias Sagradas As análises sobre o espaço ampliaram-se consideravelmente nas últimas décadas, tendo abarcado também questões relativas aos locais sagrados, que ocupam, muitas vezes, um lugar preponderante na tecitura do espaço secular. Tais lugares estão mutuamente imbridados, de modo complexo, dinâmico e relacional, sendo passíveis de decodificação por meio da investigação de suas diferentes dimensões, propriedades e aspectos, todos eles multidimensionais (v. KNOTT, 2005, p. 153-154, 161). Além disso, é preciso lembrar que o repertório imagético aqui tratado está diretamente associado a esses espaços sagrados. Num estudo sobre topografia sagrada, Deeg (2007) verificou que embora a cultura material – incluídas, aí, as imagens – tenha um aspecto espacial, ela só é capaz de se referir à topografia sagrada na qual certos eventos ocorreram. Em outras palavras, “a ligação entre a narrativa – o convite para imaginar visualmente o espaço – e o lugar concreto é, frequentemente, a peregrinação, que surge como a forma mais física e ulterior de contato com o espaço” (DEEG, 2007, p.147; tradução nossa). Essa demarcação de certos lugares e espaços com algum tipo de associação religiosa, reflete fatores históricos ou topográficos, que encorajam a peregrinação até tais locais (v. PARK, 1994, p. 258) – o que, como vimos, nos coloca diante de um deslocamento heterotópico. Além disso, estudos de caso demonstram que uma determinada região, lugar ou sítio não está necessariamente restrito à geografia sagrada de uma única religião (DEEG, 2007, p. 149). 261 A situação indiana é um processo de constante empréstimo e recuperação de um poço de ‘memória cultural’ comum, que pode ser claramente observado em ação nas narrativas das diferentes tradições. Como essas narrativas eram mais cedo ou mais tarde – senão sempre – associadas a alguma topografia concreta, a construção do espaço sagrado foi frequentemente uma questão de mapeamento do espaço comum – ou, na terminologia de Smith (1978), território – o que significa que uma narrativa foi atribuída a um determinado sítio, quer seja ela a mesma, ou diferente daquela respectiva tradição religiosa. (Deeg, 2007, p. 150; tradução nossa) Em épocas mais recuadas, as práticas religiosas não eram necessariamente excludentes, as crenças podiam ser naturalmente amalgamadas (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p. 38). A peregrinação ocupa um lugar central tanto no budismo quanto no hinduísmo3 (v. PARK, 1994, p. 273 et seq.). Nesse caso, as narrativas lendárias têm uma agenda comum bastante clara: o mapeamento desse espaço sagrado compartilhado. As imagens do Mahāparinirvāṇa se inserem perfeitamente nesse contexto, uma vez que, no budismo, os lugares de peregrinação foram estabelecidos e demarcados pela narrativa canônica. No Mahāparinibbāṇasutta [V, 16-32], texto de tradição pāli, o Buda recomenda que os locais dos principais eventos de sua vida e os locais em que suas relíquias seriam depositadas fossem, a partir de então, visitados (v. ALDROVANDI, 2006, p. 766 et seq.). Esses lugares de peregrinação criaram uma topografia sagrada que, com o passar do tempo, se multiterritorializaram em diferentes regiões da Ásia. Assim, a narrativa da vida do fundador do budismo foi projetada para a paisagem e visitar esses lugares significa afirmar essa realidade sagrada criando um grau mais elevado de participação soteriológica: a geração de mérito – puṇya (v. DEEG, 2007, p. 148), algo que ocorre entre os budistas até os dias atuais. Os locais de peregrinação hindus – tīrtha –, por sua vez, são descritos nas narrativas sobre os deuses presentes nos Purāṇa (v. HOLT, 2004, p.15). Na paisagem sagrada hindu, Viṣṇu e Śiva figuram entre os principais deuses associados à peregrinação. A cronologia e as vias da chegada do bramanismo e do budismo ao SEA ainda são incertas (v. JUSSEP, 2004, p.12 et seq.), mas os estudiosos estão de acordo quanto à primazia inicial do bramanismo. Em relação ao budismo, o peregrino chinês, Fa-hsien, não encontrou, no século V d.C., formas de budismo muito desenvolvidas na Indonésia, mas I Tsing, no final do século VII d.C., registrou uma paisagem bastante diferente e chegou a passar meses estudando num 262 importante centro budista em Srivijaya (v. REICHLE, 2007, p. 15-16). A maneira pela qual essas fronteiras sagradas se ampliam, se alargam, se redefinem e, muitas vezes, se contaminam e se reacomodam, faz pensar até que ponto isso também permanece visível no campo imagético, legitimando outras forças socioculturais envolvidas em uma dinâmica espácio-temporal específica. No caso do SEA, esse deslocamento do budismo e do hinduísmo para outro espaço pode, portanto, ser analisado em termos de uma heterotopografia sagrada. IV. Heterotopias Discursivas e o Sudeste da Ásia A questão do deslocamento heterotópico de um repertório imagético entre a Índia e os antigos reinos indianizados do SEA –, nos interessa também porque, justamente, nos faz refletir a partir de uma direção pouco usual. Se a maior parte da literatura e teoria crítica pós-colonial – desenvolvida por expoentes indianos contemporâneos (v. MITTER, 1977; SPIVAK, 1988 ; BHABHA, 1994) – esteve acostumada a descrever e refletir sob a ótica do colonizador ocidental e o colonizado oriental, no caso aqui tratado, o suposto poderiocolonizador é o da própria Índia. Nesse sentido, a presente investigação pretende também, em um momento futuro, compreender de que forma a transformação do repertório imagético do Mahāparinirvāṇa é capaz de nos esclarecer sobre as estratégias de dominação política empreendidas pela potência regional da época – a Índia pré-colonial –, e em que medida essa visão esteve associada ao contexto discursivo de indianização daquela região que foi, durante muito tempo, formatado a partir dos discursos acadêmicos coloniais. Os estudos mais antigos existentes sobre a arte do SEA repetiram durante décadas uma mesma fórmula: a de que a indianização daquela região foi pacífica e teve um caráter associado primariamente ao comércio. Como vemos, nesse, entre tantos outros exemplos existentes, A penetração da cultura indiana nos países do Sudeste Asiático apresenta um caráter duplo muito excepcional na história mundial. Não somente ela ocorreu de maneira totalmente pacífica, mas a tradição indiana também não conservou outras provas, do que narrativas lendárias ou míticas, alusões literárias e, por vezes, epigráficas. De tal maneira que foram necessários estudos contemporâneos e modernos para que a Índia se desse conta do papel que teve além-mar. (...) A implantação da civilização indiana não foi o resultado nem de uma colonização política, nem de uma conquista deliberada. Ela se deu a partir de uma série de empreendimentos de 263 comerciantes, aventureiros, de letrados e monges que, utilizando os enclaves indianos fundados a partir do século I [d.C.], propagaram a cultura altamente refinada da Índia entre as populações, nas quais o estilo de vida se adaptava perfeitamente às doutrinas bramânicas e budistas. (AUBOYER,1968, p. 154; tradução e grifos nossos) Muitos outros autores da mesma época compartilhavam dessa visão colonialista e difusionista que foi perpetuada nas décadas seguintes: a de uma terra inóspita – o Sudeste Asiático – pronta a receber a cultura e a arte de uma civilização mais desenvolvida, i.e., estamos mais uma vez diante do já conhecido discurso acadêmico etnocêntrico ocidental que, nesse caso, ironicamente, é transplantado como uma verdade histórica à Índia pré-colonial. Nele, a Índia, um país supostamente pacífico e tolerante, teria sido responsável pela influência fundamental e unilateral sobre essa região vizinha, a ponto de ter legado suas duas principais religiões – o bramanismo e o budismo – de modo pacífico e perene. Nesse discurso, a ideia da conquista pacífica e de cunho cultural e religioso é recorrente, Sobretudo, a indianização se traduziu pela adoção do sânscrito como língua oficial e sagrada, a introdução das religiões indianas, o budismo e o bramanismo, com seus mitos, filosofias, suas tradições; e a implantação de uma estrutura política aparentada àquela que existiu na Índia antiga. No domínio da arte, a inspiração devida à Índia foi um fator determinante (…), como se essas regiões não tivessem possuído arte que lhes fossem próprias. (AUBOYER, 1968, p. 156; tradução e grifo nossos) Por vezes, como vemos, esse discurso obsessivo é também contraditório ou oscilante, demonstrando um certo receio, zeloso, que busca equilibrar ou reconciliar a visão etnocêntrica subliminar embutida nas entrelinhas (AUBOYER, 1968, p. 157). O desconhecimento acerca das regiões e das culturas que compunham a topografia do SEA tornou-o um lugar ideal para se deslocar e, assim, impor essa discursividade colonial própria da época em que viveram esses historiadores da arte ocidentais. Apenas recentemente é que esse tipo de visão começou a ser questionada e encontramos abordagens mais equilibradas acerca do assunto, mais voltadas ao contexto sociopolítico de desenvolvimento do SEA, do que propriamente com a ideia de indianização da iconografia e dos estilos (v. BROWN, 1992; LAVY, 2003). Como bem lembrou Mitter (2001, p. 9), a arte não surge porque é imposta por um agente externo, mas em razão das necessidades internas de uma sociedade. Isso vale para a matriz cultural indiana, tanto quanto para as culturas do SEA. As análises vêm demostrando que as esculturas e a escrita se transformaram de modo semelhante e paralelo no contexto do SEA. A datação das imagens mais 264 antigas de afiliação hindu são ainda controversas, alguns autores propõem os séculos IV e V d.C., enquanto os demais preferem datas mais tardias, entre os séculos VI e VIId.C. Os exemplares budistas mais antigos que se preservaram costumam ser datados do século VII d.C em diante. As inscrições mais antigas em sânscrito encontradas datam de c. 400 d.C. (v. BROWN, 1992, p. 40-41; 2000, p. 10; GRIFFITHS, 2014, p. 53; LAVY, 2014, 153). Atualmente, as pesquisas revelaram que a extensão da chamada indianização da antiga região de Champa (atual Vietnã) pode ser posta em cheque ao se analisarem as inscrições sânscritas, pois o“hibridismo e solecismo denotam um conhecimento imperfeito da língua e, provavelmente, um conhecimento superficial da cultura indiana devido, possivelmente, à vontade de assimilar as religiões indianas às crenças e práticas locais” (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.38). Interessante notar também que o surgimento das inscrições sânscritas associadas aos complexos religiosos é contemporâneo ao surgimento daquelas encontradas em solo indiano (séc. IV-VI). A mais antiga delas, descreve um patrono khmer em peregrinação para fazer um pūjā ao deus Śiva. O que se observa, portanto, são soberanos dos reinos indianizados participando efetivamente do desenvolvimento das práticas bramânicas e budistas e não meros depositários da práxis religiosa indiana (cf. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p. 146). Para explicar o desenvolvimento imagético no SEA, Brown (1992, p. 42, 45) propôs uma mudança do paradigma da cópia e modelo indianos. Sua análise estabeleceu que a iconografia e o estilo das esculturas mais antigas ali encontradas já eram tipicamente um desenvolvimento interno. Esses tipos e estilos se encontram em áreas muitas vezes bastante distantes e não apresentam regionalizações específicas, ou seja, agrupamentos trans-regionais e uma paisagem política flutuante é algo evidenciado em vários estudos recentes (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.145). Para Brown (1992, p. 49), os estilos do SEA se desenvolveram a partir de estilos autóctones e não de um conjunto heterogêneo de estilos indianos e esses reinos antigos tinham um contato muito próximo entre si. Os modelos indianos foram modificados imediatamente após sua chegada, sem um período longo de cópia e experimentação. Outros elementos importantes para compreender o registro escultórico fragmentário em pedra e bronze do SEA são as esculturas em madeira, que não se preservaram, mas que são parte de um substrato ignorado pelos estudos 265 mais antigos (v. BROWN, 1992, p. 50). No entanto, dada a imprecisão das cronologias e as incertezas acerca das relações entre o Sul e o Sudeste Asiáticos, os desenvolvimentos iconográficos ainda não estão suficientemente esclarecidos pelos estudiosos para determinar uma sequência mais precisa da imagética no SEA. A maior parte dos autores, entretanto, os considera de caráter autóctone e não externo (v. LAVY, 2014, p. 166, 169). Se tomarmos as palavras de Bhabha, na entrevista que deu a Rutherford (1990, p. 209), sabemos que, A suposição de que, em algum nível, todas as formas de diversidade cultural podem ser entendidas com base em um conceito universal específico (...), pode ser tão perigoso quanto limitante ao se tentar compreender o modo como as práticas culturais constroem seus próprios sistemas de significado e organização social. (BHABHA, in RUTHERFORD, 1990, p. 209-210; tradução nossa) Assim, o hibridismo, a diferença e a ambivalência, discutidos no início deste artigo, são alguns dos elementos fundamentais para conseguirmos compreender os modos como os povos colonizados interagiram com o colonizador. Essa questão certamente merecerá ser aprofundada em uma oportunidade futura, mas é preciso agora retornar às imagens do Mahāparinirvāṇa para analisar até que ponto a chamada indianização do SEA pode ter favorecido, ou não, uma outra questão relacionada ao hibridismo das imagens do Mahāparinirvāṇa. V. Hibridismo e Terceiro-Espaço Imagéticos Viṣṇu Anantaśayana e o Mahāparinirvāṇa do Buda Durante a investigação do deslocamento heterotópico da imagem do Mahāparinirvāṇa do Buda para o Sudeste Asiático, nos defrontamos com uma questão que talvez permita elucidar algumas das razões possivelmente relacionadas às mudanças na representação desse repertório imagético, mencionadas anteriormente. Uma outra camada nessa estratigrafia discursivo-imagética, pode estar associada à hibridização da imagem budista do Mahāparinirvāṇa à do deus Viṣṇu, em sua forma Anantaśayana. Anantaśayana é a célebre forma do deus Viṣṇu em que ele está reclinado sobre o deus-serpente e o oceano cósmico, associada à criação do Universo. A palavra sânscrita ananta, é um epíteto de Viṣṇu – que significa eterno, infinito –, pelo qual ele é designado durante a criação simbólica do universo, reclinado sobre as 266 águas primordiais. A palavra śayana, por sua vez, significa reclinado, adormecido ou descansando. Mas, ananta, também é o nome do deus-serpente de mil cabeças (śeṣa, ou ādiśeṣa) – que representa a eternidade e as águas primordiais –, sobre a qual Viṣṇu está reclinado. Os vários níveis simbólicos contidos nesse simples composto (ananta-śayana) são típicos e recorrentes na língua sânscrita. As fontes narrativas, como o Viṣṇudharmottarapurāṇa, descrevem esse episódio da cosmogonia bramânica (v. LUBOTSKY, 1996, p. 74).4 O mito cosmológico da criação do universo parece ter sido popular durante o século VII no Camboja e em Champa. Muitos linteis ilustram esse tema com Viṣṇu Anantaśayana na arte Khmer préangkoriana, há exemplares de Champa com apenas 2 braços (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p. 183, 185, 328). Para tentar compreender esse fenômeno, iremos nos debruçar brevemente sobre um elemento intrigante presente numa narrativa histórica sobre o Camboja, escrita por um general chinês – Zhou Daguan (c. 1270-1350), que visitou aquela região em 1296 e permaneceu durante onze meses em Yaśodharapura, a atual cidade de Angkor –, registrado em suas Memórias dos Costumes do Camboja, traduzidas por Pelliot (1902) e, mais tarde, por Harris (2007). Num excerto, logo no início do texto, o general descreve a grande cidade fortificada, suas muralhas, torres e portões (gopura) de ouro e as estátuas do Buda. Uma dessas estátuas nos chamou a atenção, pois o militar chinês a descreveu como um Buda reclinado de bronze. Na tradução de Pelliot, temos: O Lago oriental se encontra a dez li a leste dos muros, ele pode ter cem li de perímetro; ele contêm uma torre de pedra e pequenas casas de pedra. Dentro da torre está um Buda reclinado de bronze, cujo umbigo deixa constantemente fluir água (DAGUAN, in PELLIOT, 1902, p.144; tradução 5 nossa) A passagem é interessante por vários de motivos, um deles, certamente, porque indica que o general tinha conhecimento acerca das esculturas do Buda reclinado. A tradução de Harris (2007, p. 48), por sua vez, fornece informações semelhantes.6 Os estudos mais recentes, entretanto, vêm demonstrando que existe, aqui, uma possibilidade de ter havido um equívoco do general a respeito dessa identificação. As evidências indicam que a escultura que esteve no centro do lago era, provavelmente, do deus Viṣṇu e não a de um Buda, como descrito por Zhou Daguan. Nada, como observou Harris (2007, p. 97, n.16) indica que ali tenha havido 267 um Buda, pois o que foi encontrado foram os fragmentos de uma escultura monumental de bronze, do deus Viṣṇu Anantaśayana. Essa imagem foi escavada por arqueólogos franceses, em 1936, com a ajuda de um camponês, do outro lado de Angkor Thom, próximo ao templo Mebon Oeste, no Baray oeste e, atualmente, se encontra no Museu Nacional de Phnom Penh (v. GLAIZE, 1963, p. 270; JESSUP, 2004, p. 126-127). Dois outros estudiosos (FREEMAN e JACQUES, 1999, p. 188) já haviam sugerido que a escultura monumental de Viṣṇu reclinado poderia ter sido aquela mencionadacomo um Buda, no século XIII d.C., pelo general Zhou Daguan. Um estudo mais recente reconstituiu a escultura do deus Viṣṇu por meio de um programa de modelagem digital em 3D, a partir dos fragmentos existentes e de estudos iconográficos comparativos com outras imagens Khmer de Viṣṇu Anantaśayana (FENELEY et al., 2008). De acordo com as onservaçõesdestes últimos pesquisadores, o camponês teria dito à equipe francesa que ele sonhara com o Buda e, no sonho, ele lhe pedira para “libertá-lo do lugar em que estava enterrado sob terra e pedras”. O rapaz também lhes trouxe um dedo de bronze e os levou até a plataforma do templo no centro do Baray oeste. Ali, 1m abaixo da superfície, eles encontraram fragmentos da escultura de Viṣṇu, não a de um Buda. O próprio arqueólogo pensou, inicialmente, tratar-se de um Buda colossal, mas ao encontrar o torso com 4 braços, pode identificá-lo como uma imagem do deus hindu (v. FENELEY et al., 2008, p. 74-75). Os resultados da modelagem 3D indicam que a escultura teve mais de 5m de comprimento, com o deus Viṣṇu reclinado sobre seu lado direito, suas pernas ligeiramente dobradas e os pés sobre o colo de Lakṣmī, que estabilizava a escultura – elementos típicos das esculturas Khmer dos séculos X e XI d.C. A análise estilística revelou que a escultura está associada ao estilo Baphuon, do final do século XI e XII d.C. Uma observação interessante desses estudiosos menciona ainda que as imagens Khmer mais antigas de Viṣṇu Anantaśayana, dos séculos VIII e IX d.C., sem a deusa aos seus pés, são raras e apresentam, as pernas retas e os dois pés juntos (FENELEY et al., 2008, p. 77, 80). 268 Viṣṇu reclinado de bronze, Mebon Oeste, Angkor, Camboja, final do século XI d.C., medindo 122 X 222 X 72.5 cm, Museu Nacional de Phnom Penh (In: JESSUP, 2004, p. 126-7). Esse possível equívoco do general chinês tem implicações muito interessantes e converge, coincidentemente, com o mesmo engano do camponês cambojano que ajudou o arqueólogo francês a encontrar o suposto Buda que era, na verdade, um Viṣṇu. No entanto, o que nos interessa aqui é que, nesse caso, não se trata de uma mera adaptação ou transposição de um esquema formal de uma imagem reclinada, para outra, pois ambas as narrativas, tanto budista quanto hindu, mencionam figuras reclinadas. Aqui, a ambiguidade e o hibridismo ocorrem, nos parece, em uma outra dimensão, num terceiro-espaço, criando um metadiscurso visual – uma meta-imagética – apropriado ao milieu do SEA. Existe, ainda, um precedente que nos parece fundamental para compreensão desse possível hibridismo entre a imagem budista e hindu aqui analisadas. Trata-se da absorção da figura do Buda pelos vaiṣṇavas que, no século VIII, passou a ser considerado o nono avatar (skt. avatara) do deus Viṣṇu [v. Viṣṇupurāṇa, 4.18] entre algumas afiliações hindus (v. NICHOLSON 2010, p. 97; HOLT, 2004, p. 15, 18; TULADHAR-DOUGLAS, 2005, p.61). Essa assimilação do Buda ao milieu hindu é extremamente interessante e, ao mesmo tempo, ambígua – já que o Buda era originalmente um śramaṇa com tendências fundamentalmente distintas às do bramanismo. Isso coincide, historicamente, com a substituição do Buda como divindade suprema nas cortes indianas por deuses hindus, que se tornaram, nessa época, divindades imperiais dentro dos sistemas cosmopolíticos indianos (v. INDEN, 1998, p. 55, 67; HOLT, 2004, p.12). A interdependência estreita entre estado e religião constituiu um traço dominante na Índia e em muitas regiões do SEA (v. BAPTISTE e ZÉPHIR, 2005, p.65; DUNCAN, 1990, p. 17-20, 24-25). Nesse sentido, 269 as formas híbridas de deuses hindus, conjugavam numa só representação diferentes concepções de soberania muitas vezes, também, ambíguas (v. LAVY, 2003: 22). VI. Considerações Finais A lógica recorrente por trás das adaptações e empréstimos entre divindades budistas e hindus sempre teve caráter de subordinação, uma procurando apropriarse de outra para reafirmar a superioridade da primeira, o mesmo costumou ocorrer entre os diferentes ramos do hinduísmo (GELLNER 1997, p. 283-284). Essa habilidade de uma imagem possuir, simultaneamente, múltiplas identidades sempre desafiou os acadêmicos ocidentais. Existem, no mundo hindu e budista muitos exemplos em que, ao invés da confrontação, uma colaboração implícita entre diferentes afiliações religiosas passou a ser orquestrada, a partir de determinado momento. Quando confrontados por outra tradição, vaiṣṇavas, śaivas e budistas empregam estratégias próprias e híbridas (TULADHAR-DOUGLAS, 2005, p. 57, 60). Assim é possível adorar deuses de outros cultos sem a necessidade de conversão. A paisagem é certamente muito mais complexa do que aquela apresentada pelas explicações superficiais geralmente pautadas por discursos ocidentalizados sobre as religiões e divindades budistas e hindus (GELLNER 1997, p. 286). Esta é uma pesquisa em desenvolvimento e, portanto, fornece e discute os principais elementos a partir dos quais esse repertório imagético heterotópico vêm sendo pensado. Seu potencial reside no aprofundamente da análise das imagens do Mahāparinirvāṇa nas antigas topologias do Sudeste Asiático, assim como, na verificação da sua associação à imagem do deus Viṣṇu, em sua forma Anantaśayana. Somente desse modo, as questões que envolvem os deslocamentos discursivos desse conjunto imagético, ainda pouco conhecidas e estudadas, poderão ser trazidas à luz. Notas 1 Owens (2002),no estudo do sítio budista de Swayambhunath no Vale do Katmandu, examina as forças e intersecções de diferentes interesses que modificam esse espaço. 2 A questão das supostas representações anicônicas iniciais do Mahāparinirvāṇa – relevos com estupas –, não será discutida aqui por questões de limite de espaço. 3 Embora problemática e cunhada na época colonial, utilizaremos a palavra hinduísmo para nos referir aos ramos do bramanismo a partir da era Gupta, nos séculos IV-VI d.C., no caso, aqui,especialmente de afiliação vaiṣṇava e śaiva. Para períodos anteriores, usaremos a denominação bramânica, ou védico-bramânica. 4 De acordo com essa fonte, a serpente Śeṣa deve estar deitada sobre as águas e o “deus dos deuses”, com quatro braços, deve estar adormecido. Um dos pés do deus deve estar sobre o colo de Lakṣmī, sua esposa, o outro sobre a cauda da serpente. Uma mão deve estar esticada sobre o joelho, outra deve estar próxima do 270 umbigo, a terceira deve apoiar sua cabeça e a quarta deve segurar um buque de flores santāna. Sobre o lótus, que emerge do lago em seu umbigo, contendo toda a Terra, deve estar o deus Brahmā, que cria, então, o mundo. Viṣṇu Anantaśayana, nessa fonte textual, é chamado Padmanābha – aquele com o lótus emergindo do umbigo (cf. LUBOTSKY 1996, p. 74). 5 “Le Lac oriental se trouve à dix li à l'Est des murs, il peut avoir cent li de tour; il contient tour de pierre et maisonnettes de pierre. Dans la tour est un Buddha couché en bronze, dont le nombril laisse con stamment couler de l'eau” (PELLIOT, 1902, p.144). 6 “Ten li east of the city wall lies the East Lake [East Baray]. It is about a hundred li in circumference. In the middle of it there is a stone tower with stone chambers. In the middle of the tower is a bronze reclining Buddha with water constantly flowing from its navel” [Dez li a leste do muro da cidade fica o Lago Leste (Baray leste). Ele tem cerca de cem li de circunferência. No meio dele há uma torre de pedra com câmaras de pedra. No centro da torre está um Buda reclinado de bronze com água fluindo constantemente de seu umbigo]. (DAGUAN, in HARRIS, 2007, p. 48; tradução nossa) Referências Bibliográficas ALDROVANDI, C.E.V. As exéquias do Buda Śākyamuni: morte, lamento e transcendência na iconografia indiano-budista de Gandhāra, Vol. 1. 2. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 977 p. São Paulo, 2006. AUBOYER, J. Les Arts de l’Inde et des pays Indianisés. Paris, Presses Universitaires de France, 1968. BAPTISTE, P.; ZÉPHIR, T. Les Trésors d’art du Vietnam: la sculpture du Champa VeXVe siécles. Paris, Musée des Arts Asiatique Guimet, 2005. BHABHA, Homi K. The Location of Culture. London: Routledge, 1994 (2004). BROWN, R. L. 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De lá eram trazidos tecidos, especiarias, porcelanas e móveis, bem como uma produção europeia que imitava aqueles motivos segundo a sua própria visão do Oriente. As vestimentas e túnicas do Oriente próximo cobriam os personagens religiosos do Antigo e do Novo Testamento. Na decoração interior de igrejas e capelas, encontramos elementos que trabalham com motivos que imitam a laca chinesa, nas cores dourado e vermelho. Essas obras retratam casais em passeio, cenas de caça, fontes e ruínas como aquelas representadas pela porcelana chinesa. Em uma análise mais apurada, percebe-se que essas obras, na verdade, revelam como os olhos ocidentais entendiam a vida distante dos povos asiáticos. De uma maneira própria, os artistas mineiros apresentavam temas da etiqueta de corte europeia disfarçados pelo gosto oriental. A presença desses elementos na distante colônia revela como a moda do oriente se expandiu durante o século XVIII e revela Portugal com uma rede de comércio intensa com estes países. Palavras-chave: Minas Gerais; Barroco; Rococó; Orientalismo, Chinoiseries. ABSTRACT: In the eighteenth century, the preference for the exoticism and interest in other parts of the world, attached to the trade with Asia, created a fashion toward the Eastern and Chinese themes. Lots of fabrics, spices, porcelains and furniture were brought from there, besides a European production that imitated these themes, according to their own view. Vestments and tunics of the Near East covered all religious characters of the Old an the New Testament as well. Also, we can find in the interior decoration of the churches and chapels elements that reproduce the Chinese lacquer in gold and red colors. Additionally, these masterpieces show couples walking around, hunting scenes, fountains and ruins like the ones reproduced in the Chinese porcelain. In a deep analysis, it can be perceived through these masterpieces/them the Western/Ocidental eyes for the most distant Asian countries. Otherwise, the "mineiros" artists represent these themes of etiquette of the European court disguised by an oriental taste.The presence of these elements, in a general way, reveals how the fashion of the East had been spread during the eighteenth century, and shows Portugal with a strong network of trade with these countries. Key words: Minas Gerais, Baroque, Rococó, Orientalism, Chinoiseries. Introdução A arte em Minas Gerais, no século XVIII, caracteriza-se por dois grandes estilos: Barroco e Rococó. Mesmo não sendo reconhecidos por essa nomenclatura pelos próprios contemporâneos, podemos agrupá-los em algumas características comuns. O Barroco, fruto da Contrarreforma religiosa e do Absolutismo monárquico, preza pelas formas substanciosas, decoração rebuscada, igrejas suntuosas e profusão de imagens. Revela, por meio de um discurso teatral, o poder grandioso do 273 papa e dos reis da Europa, ameaçados que estavam pela Reforma Protestante e pela ascensão da burguesia. O Rococó, em um período posterior, garante leveza para a arte e respira a atmosfera do IIuminismo francês. Para a racionalidade do século XVIII, o Barroco tradicional seria considerado de mau gosto e não corresponderia mais ao espírito das luzes da época. Essa arte atenderia ao gosto dos pequenos salões da nobreza e se notabilizaria pelo uso do dourado sobre o branco. Esses dois estilos contam com uma série de obras e peças decorativas que parecem resumir toda a informação possível e necessária para reconhecer o discurso da época: brasões, escudos, armas militares, lanças, trombetas, capas, coroas, cetros etc. Essas imagens podem ser personificações de figuras nobres, tradicionais, mitológicas e simbólicas que são resgatadas conforme o costume da representação religiosa, bem ao gosto dos mineiros do momento. Imagens que lembrassem o oriente eram importantes, na medida em que ambientavam as histórias sagradas e traziam legitimidade ao discurso religioso. Minas Gerais e o Oriente Próximo Para localizar os fatos dessas narrativas históricas e sagradas, o artista mineiro compunha fundos de cena que retratavam paisagens distantes e rostos exóticos. Para a geografia do Antigo Testamento e da Terra Santa pintavam desertos, seres fantasiosos e palmeiras. Temos personagens com costumes árabes: túnicas amarradas na cintura, capas e turbantes. Esses costumes são representantes do imaginário europeu e da construção que os ocidentais faziam do oriente próximo. Na arte mineira, os trajes e os chapéus dos velhos sacerdotes, a escrita hebraica e os candelabros ajudavam a compor os cenários das pinturas que faziam referência a Abraão, à Isaac, às tribos de Judá, aos profetas etc. Os artistas da capitania retratavam esses personagens com trajes e vestimentas orientalizantes que faziam menção ao Oriente Próximo, ou mesmo, ao norte da África. Aleijadinho é um desses mestres que usavam desses elementos na composição de suas obras. 274 A fonte inicial para essa rica iconografia encontrava-se no livro do Gênesis. O primeiro livro do Antigo Testamento narra a história desde quando “Deus criou o céu e a terra” até a morte de José, filho do patriarca Jacó. Essa narrativa retrata a história das origens da nação hebreia, a vida dos patriarcas hebreus como Abraão, Isaac e Jacó. Acoplada a essa tradição iconográfica, temos aquelas imagens relativas aos Dez Mandamentos, representadas também como a tábua de Moisés, e aos eventos que anunciam a sua aparição. Sua referência encontra-se no Êxodo, livro que narra a partida dos judeus do Egito e sua chegada ao Monte Sinai. Esse livro registra os eventos ocorridos entre a morte de José, no Egito, e a ereção do Tabernáculo do Sinai pelos israelitas.1 Seguindo essa narrativa iconográfica, a arte em Minas Gerais ressaltava, ainda, a figura de juízes, reis e profetas da nação judaica. Na composição dessas pinturas referentes ao Antigo Testamento, os pintores mineiros, geralmente, optavam por representar figuras vestidas com o talit (xale de oração), objetos como o hanukká (candelabro de oito braços usado em celebrações) e as costumeiras tábuas com os dez mandamentos. O Rei David, diferente dos outros personagens, é sempre representado como um monarca europeu. A imagem que os indivíduos da época tinham sobre o oriente pode ser vista na casa de fundição de Sabará, atual Museu do Ouro. A Ásia é representada por dois homens com costumes árabes: túnica branca amarrada na cintura, capa vermelha, turbante e bigode. Os personagens estão entre vestígios arquitetônicos e colunas que mostram a antiguidade do continente. Sobre uma base de formato quadrangular, geralmente usada como suporte de estátuas, encontra-se um globo, que é a invocação do poder absoluto sobre um território determinado2, ideia que os ocidentais europeus tinham dos Estados despóticos do Oriente. 3 Em uma placa arquitetônica, vemos esculpido um turbante encimado por uma meia-lua, símbolo dos “infiéis” de tradição islâmica. A Ásia lembra os árabes e a corte persa, que também encantou os europeus como lugar de luxo e fonte de especiarias. 275 Figura 01: Ásia, Museu do Ouro, Sabará (séc. XVIII). Fonte: Foto do autor. Esses são os modelos para os profetas de Congonhas. Segundo Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, os modelos para as roupas exóticas utilizadas por Aleijadinho nos profetas estão ligados à pintura flamenga do final da Idade Média. Esses modelos foram introduzidos em Portugal no período de D. Manuel I (1495 – 1521). Segundo a autora: Foi, por conseguinte na Europa do Norte, e especialmente na região de Fladres, que se estabeleceu o tema da caracterização dos profetas, patriarcas e outros personagens bíblicos de procedência ‘oriental’ com vestimentas exóticas e complicadas, incluindo longos casacos e mantos debruados de faixas bordadas, complementados por barretes em forma de turbantes à ‘moda turca’. Sim, porque os turcos, sem dúvida os mais próximos vizinhos orientais da Europa e seus mais temidos adversários, sempre exerceram um certo fascínio na imaginação e conseqüentemente na criação artística européia, tanto no que se refere à literatura quanto às artes visuais (OLIVEIRA, 1984, p. 56). 276 Figura 02: Profeta Jeremias, Aleijadinho (séc. XIX) Basílica de Bom Jesus dos Matosinhos em Congonhas. Fonte: Foto do autor. As biografias desses profetas que inspiraram a arte mineira são uma lembrança do passado remoto da religião cristã, ao mesmo tempo em que são usadas como admoestação aos fiéis da época. Guardando as devidas proporções, a iniquidade dos homens do oriente próximo poderia ser uma alegoria da iniquidade do homem europeu ou colonial, fato esse que deveria ser evitado. A redenção deveria acontecer e a ira de Deus precisava ser aplacada. Os governantes e os homens comuns deveriam se lembrar das palavras sagradas.4 Para os personagens do Novo Testamento, por sua vez, temos um cenário codificado pelo drama e pela tragédia. Essas obras buscavam o passado grecoromano ao retratar vestígios arquitetônicos e colunas que mostravam a antiguidade. Esse é o momento de legitimação do mundo cristão e o afastamento da barbárie oriental representada pelo Antigo Testamento. Jesus Cristo seria o personagem principal que significaria a passagem para um novo mundo europeu que tem no Papa, em Roma, seu grande sucessor. Os Reis Magos seriam legítimos representantes da extensão desse mundo que, agora, se curva à verdadeira civilização. 277 São três magos ou sábios (Baltazar, Gaspar e Melquior) que vieram do oriente para adorar o Menino Jesus. Vindos do oriente, são retratados de maneira europeia e reservam um lugar para o personagem negro. Sempre estão acompanhados por objetos ou animais representativos de uma região exótica. Os artistas tentavam exprimir nesses três personagens a totalidade do mundo conhecido, variando suas características e tornando-os universalmente demonstrativos. A iconografia dos Reis Magos dialogava, desde o século XVI, com os descobrimentos, que aumentavam as partes do mundo a serem representadas. Esse tema serviu para a exaltação dos feitos da Igreja pelo mundo e para referenciar o poder de reis e príncipes.5 Podemos encontrá-los em igrejas, palácios, festas de recepção, cortejos, etc.6 Essas imagens faziam parte de um universo que dialogava com os grandes mapas que estavam sendo realizados no momento. Esses mapas também estavam a serviço dos Estados Nacionais, que queriam delimitar suas posses e riquezas. Os conhecimentos em relação à astronomia, cartografia e geografia eram fundamentais e diziam respeito aos Estados absolutos.7 Os reis magos eram apresentados na iconografia mineira em trajes régios e em cenas do presépio, ajoelhados ou em pé diante da manjedoura. Trazem como atributos um pote e uma urna8. Essa iconografia é utilizada, portanto, para reforçar a ideia da extensão da figura de Jesus pelo mundo, o poder geográfico da Igreja e a conversão de figuras importantes, como os reis pagãos. Posteriormente, as figuras bíblicas que conviveram com Jesus Cristo, e os santos que se fazem a partir daí, usam roupas da antiguidade clássica ou são vestidos à moda europeia do momento, acompanhando as últimas tendências das cortes absolutistas. Mesmo assim, o oriente próximo continua uma inspiração para os artistas do momento. Maria seria a própria representação de mistura de referências e estilos que buscavam no oriente suas referências. Como nobre, é caracterizada pela graça e refinamento dos gestos. Representada dessa maneira, a Virgem Maria acaba por ser tornar uma alegoria. Germain Bazin diz que: Animada pelas múltiplas expressões da vida, a Virgem do Ocidente é uma mulher. Herdeira da tendência grega ao tipo, mas estilizada pelo fluxo dessa corrente profunda que do velho Oriente remonta à superfície, a arte bizantina submete a Virgem a coações canônicas que fazem dela um ícone, vestimenta formal de um conceito” (BAZIN, 1989, p. 130). 278 As próprias narrativas biográficas desses personagens sagrados fariam referências a essa geografia. Não podemos esquecer a influência do mundo bizantino que, por sua vez, trazia uma série de informações sobre oriente antigo e sobre as culturas que o povoaram. A devoção à Sant’Anna e a São Joaquim é um dos exemplos. Partindo do oriente, remonta ao século VI. No ocidente, sua devoção inicia-se por volta do século VIII, momento em que suas relíquias foram levadas da Terra Santa à Constantinopla (c.710 d.C.)9. Nesse sentido, é muito importante citar as representações dos doutores da Igreja Grega ou Oriental. Quando buscamos a história da Igreja, vemos que um dos atos mais influentes do Imperador Constantino foi a decisão de mudar a capital do Império Romano para Constantinopla em 330 d.C. Essa cidade tornou-se um importante foco intelectual e religioso do cristianismo oriental. Enquanto isso, o cristianismo ocidental foi se centralizando na figura do papa, em Roma. Os principais centros do cristianismo no oriente eram Constantinopla, Jerusalém, Antioquia e Alexandria. Esses centros tinham uma vida intelectual e espiritual vibrantes, na qual foram presididos concílios e discussões importantes sobre a fé e os dogmas da religião.10 Com o tempo, esses centros seriam alvo da expansão do Islamismo11. O maior desafio do artista mineiro, na representação dos personagens que participaram desse momento da história da Igreja, era fazer alguma referência a essa geografia de forma a deixar clara e verossímil essa narrativa. Eles representavam, geralmente, basílicas ou paisagens áridas como contextualização. Minas Gerais e a arte chinesa Minas Gerais caracteriza-se, na realidade, pela arte rococó. Podemos perceber que o clima de fantasia proporcionado por esse estilo pode ser vislumbrado também pelo gosto pela Commedia Dell’Arte italiana, com palhaços e arlequins. O Rococó apropria-se, ainda, de muitos temas da literatura, como o Arcadismo e as mais diversas fábulas. O Arcadismo foi o gosto literário que deixou clara a posição da velha classe aristocrática frente às mudanças do mundo ocidental e à ascensão da burguesia12. Nele, pastores de ares nobres e senhoras elegantes desfrutavam da natureza, evocando o ócio e o saber viver da aristocracia. Esses personagens seriam a própria imagem da educação e da civilização do tempo13 . Esse gosto 279 aparece em obras de artistas franceses, como Jean Honoré Fragonard, François Boucher, Antoine Watteau e Jean-Marc Nattier14 e destacou-se por uma produção de retratos que privilegiava a representação de uma postura nobre e aristocrata de forma mais elegante do que a forma artística anterior 15 . O gosto orientalizante também foi uma marca do estilo16 e pavilhões e torres chinesas foram construídas nos palácios de toda a Europa17. O gosto pelo exotismo e o interesse pelas outras partes do mundo, aliado ao aumento do comércio com a Ásia, criou uma moda voltada para os temas chineses e orientais reconhecida como “chinoiseries”18. De lá eram trazidos tecidos, especiarias, porcelanas e móveis, além de uma produção europeia que imitava aqueles motivos segundo a sua própria visão do oriente.19 O interesse por produtos orientais lançava os europeus na busca do segredo da laca e da porcelana. Com o passar do tempo, tratados são escritos com ilustrações explicando os métodos de execução ou imitação da arte chinesa. Esmaltava-se as superfícies e depois aplicava pincel com motivos dourados ou imitava-se azulejos, em cores azuis e brancas, adornando com motivos orientais. 20 Alguns pintores usam do tema e o retratam à sua moda. Dalva abrantes comenta sobre Boucher: A China para esse pintor é um país bonito e elegante, as pessoas passam o tempo como os europeus [...]. Interessante notarmos que as mulheres sempre têm a expressão das faces europeias [...]. Os homens são mais chineses, as pessoas estão geralmente conversando como nas obras rococó, tête-a tête, com etiqueta de corte, cena típica da aristocracia francesa. (ABRANTES, 1992, p. 120). O gosto nobre influencia mesmo a produção dos orientais que, para satisfazer a demanda europeia, incluíam cenas de caça e de passeios em tecidos e porcelanas, retratando a própria visão que os ocidentais tinham deles. 21 Portugal já se destaca, no século XVIII, pela produção de sua porcelana. A porcelana oriental já era conhecida pelos portugueses antes do interesse por suas peças em outros países europeus. Devido à facilidade que tinha de acesso aos materiais orientais, Portugal conhece muito cedo o gosto pela louça decorada com temas chineses. No período pombalino, temos o funcionamento da Fábrica do Rato em Lisboa, que produz louças, pratos ou pequenas estatuetas que representam 280 casais apaixonados, moças no campo ou animais domésticos. 22 Os temas de produção estão ligados, geralmente, à vida cortesã e a lembranças do mundo do oriente. A própria ciência europeia estava interessada nas terras orientais. A ciência, aliada a essa maior interatividade com as outras partes do mundo e o seu caráter investigativo de querer compilar toda a sabedoria da época, classificava as espécies animais e vegetais, usando desenhos e lâminas de agudíssima precisão. Essa técnica é levada para a arte decorativa, que reproduz em objetos e manufaturados as plantas e flores, que são os motivos principais de sua ornamentação. O rococó faz uso da concha orgânica e assimétrica, num arranjo que perde em volumetria, se comparada ao barroco, e marca definitivamente o estilo. Nesse sentido, o gosto pelo orientalismo estava ligado ao gosto pelos temas galantes e de sedução baseados na convivência dos salões europeus. João Adolfo Hansen fala sobre a difusão de temas amorosos durante esse período: O tema, aliás, torna-se lugar-comum nas discussões cortesãs e na poesia lírica da época, quando proliferam os Diálogos sobre o amor, fundindo o neoplatonismo florentino, a tradição medieval do amor-cortês, a caridade paulina, o culto medieval da Virgem, as místicas do Oriente, como o sufismo etc. (HANSEN, 1986, p. 79). A partir de imagens pretensamente orientais, os artistas reafirmavam os mesmos temas das cenas galantes europeias e trabalham com cores similares aos chineses: vermelho e dourado. Essas cenas retratavam com olhos ocidentais a vida distante dos povos asiáticos. A moda do oriente se expandiu, dessa forma, durante o período rococó e colocava Portugal em uma intensa rede de comércio com estes países. No caso das Igrejas mineiras, o maior exemplo é a igreja de Nossa Senhora do Ó em Sabará. Esse templo já retrata, em sua arquitetura em forma de pagode chinês, em plena fase barroca inicial da capitania, o gosto pela moda chinesa, que iria imperar nas décadas seguintes. 281 Figura 03: Interior da Igreja de Nossa Senhora do Ó Sabará. Fonte: Foto do autor. No interior dos templos, os temas religiosos estão localizados nas partes altas dos tetos, paredes e altares, deixando as partes baixas reservadas para as pinturas com um conteúdo “não religioso”. Essa última pode representar imagens de cunho galante frívolo, cenas chinesas ou painéis sobre as estações do ano23. Como já dito, anteriormente, podemos encontrar essas imagens na igreja de Nossa Senhora do Ó em Sabará, na igreja do Pe. Faria em Ouro Preto, na igreja de Santa Ifigênia, em Ouro Preto, no cadeiral da Igreja da Sé, de Mariana, e no antigo para-vento da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana24. A iconografia tridentina coloca, em seu devido lugar, a heresia e o profano. Segundo Dias: As cenas galantes aparecem nas paredes laterais da capela-mor, fazendo parte de toda a teatralização composta a partir do altar. A pintura ilusionista parietal serve como ornamento e espaço reservado para determinadas iconografias. Muitas vezes, são imagens de representação arquitetônica, como a pintura de imitação de azulejos, podendo apresentar imagens de dogmas e mistérios relativos à fé. A pintura arquitetural surge numa hierarquização dos espaços e está inserida num contexto em que os altares das igrejas são organizados de forma emblemática, como as páginas de um livro, que na medida em que é lido faz revelar seus segredos e mensagens. As cenas galantes aí têm seu lugar específico, pois apresentam-se num plano baixo, sinal da superioridade religiosa sobre as coisas do mundo; seguram o peso e estão inferiorizadas diante dos símbolos sacros” (Dias, 2000, p. 177). 282 Figura 04: Cadeiral da Sé de Mariana (séc. XVIII). Fonte: Foto do autor. A capela do Padre Faria, em Ouro Preto, apresenta cenas de caça numa pintura de perfeita imitação de azulejo. A igreja da Sé de Mariana apresenta cenas de caça e passeios, com fontes e ruínas, numa pintura que imita a laca chinesa nas cores dourado e vermelho. A Igreja de Santa Ifigênia, em Ouro Preto, apresenta uma pintura que lembra aquela encontrada no cadeiral da Sé de Mariana, nas cores azul e branca, também numa tentativa de imitação de azulejo. Poderíamos observar, ainda, as pinturas de gosto oriental com temas galantes e paisagísticos que se encontravam no para-vento da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, e que foram queimadas no incêndio de 20 de janeiro de 1999. Nas pinturas de gosto orientalizante de Minas Gerais a luz é absoluta e espraiada, a perspectiva não produz profundidade, as figuras estão estáticas e com pouco movimento nos corpos. Os contornos são nítidos, o que realça a graciosidade dos personagens e permite a percepção da natureza. Nelas podemos ver casais andando aos pares, mulheres com sombrinhas, cenas de caça e ruínas em jardins. No caso da pintura parietal, segue as formas da azulejaria e da “chinoiserie”. A disposição dos elementos apresenta-se de forma chinesa e as cores usadas são o 283 vermelho e o dourado, que imitam a laca, e o azul e o branco, que imitam os azulejos. Figura 05: Para-vento da igreja do Carmo em Mariana (séc. XVIII). Fonte: Foto do autor. Esse repertório percorre, ainda, espaços mais distantes e de usos exclusivos como sacristias e consistórios. Os diversos serviços que esses cômodos podiam oferecer representavam um espaço privilegiado para a sociabilidade de religiosos, irmãos, crentes e pessoas comuns. As sacristias, por exemplo, eram de extrema importância, no Brasil colonial, pois eram locais de convivência social e de importantes resoluções da comunidade.2526 Como dito acima, as chinesices das igrejas mineiras também representavam cenas da nobreza europeia em estilo orientalizante, assim como na própria Europa27. Minas Gerais, fazendo parte do império colonial português, consome produtos vindos do oriente e se depara com tecidos e porcelanas que os próprios orientais adaptavam ao gosto Ocidental para poder satisfazer o consumo europeu28. A China representada pelos mineiros era, na realidade, uma sociedade europeia travestida pelas cores do Oriente e servia à elite colonial mineira como ponto de ligação aos seus pares na Europa. Considerações Finais Esses temas caíam bem ao gosto do homem ocidental nesse momento da colonização em Minas Gerais. A história desses personagens é uma referência constante às monarquias e aos governos do Oriente Médio. Para os europeus do século XVIII, a Ásia contemporânea seria uma terra de governos despóticos e supersticiosos. A filosofia política da ilustração não cansava de caracterizá-los dessa 284 maneira. Para Montesquieu, por exemplo, o poder despótico seria uma espécie de monarquia no qual todas as ordens da sociedade seriam abolidas e os indivíduos ficariam sob o julgo de um só governante. Esse soberano absoluto teria em suas mãos todos os poderes e governaria por meio do terror. Montesquieu, em O espírito das leis, identificava o governo despótico com os governos que existiam no Oriente. A arte utilizava-se, então, de modelos iconográficos para reproduzir o discurso político teológico da época, explicando aquilo que era considerado infiel, anticristão e sinônimo de má política. O cristianismo de Roma teria se deslocado para a Europa por ser o lugar da civilização e da verdadeira religião. A partir da ignorância religiosa das populações, servia ainda para educar o observador nos preceitos de uma ordem estabelecida. A arte direcionava a visão e o corpo do observador, apresentando uma estrutura numérica, geométrica e racional. Como fascínio e repugnância andavam juntos no campo da arte, o orientalismo garantia também o vocabulário suntuário das obras em Minas Gerais. A pintura imitava a laca chinesa, tecidos preciosos (seda bordada, adamascado, brocado), azulejos embutidos, mármores policromados, ouro, prata e fios preciosos. O orientalismo em Minas Gerais pertencia, assim, a um universo muito amplo que abrangia a literatura, a pintura, a porcelana, os azulejos, as formas de convívio etc. Sua presença garantia para a elite colonial um elo com o gosto artístico europeu e, por isso, estava visualmente marcada em vários pontos da arte mineira do período. Notas 1 “Impelidos pela fome ou pela falta de segurança, clãs semíticos foram, com seus rebanhos, para o Egito e se estabeleceram pelo menos na região do Delta do Nilo. A sua permanência aí deve-se ter prolongado bastante, já que as crianças nascidas nesse período receberam nomes egípcios. A mais conhecida dessas crianças é a que desempenhou mais tarde um papel determinante na formação do povo de Israel, isto é, Moisés, o qual, embora tendo nome egípcio, pertencia, segundo Ex 2,1, à tribo de Levi. As relações entre os egípcios e esses clãs semíticos foram perturbadas quando um faraó obrigou a estes últimos a trabalharem na construção das cidades de Pitom e Ramsés (Ex 1, 11), situadas no Delta oriental e mencionadas nos textos egípcios do século XIII a. C.” In. ISRAEL E JUDÁ, 1985, p. 35. 2 CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 472. 3 Montesquieu, em O espírito das leis, identifica o governo despótico, algumas vezes, com os governos que existiam no oriente. 4 BOTTÉRO, 1993, p. 108. 5 Devemos levar em consideração, neste contexto, que a Oceania nunca foi considerada na representação das partes do mundo. 6 Podemos encontrar tais representações espalhadas pela Europa, dando destaque ao forro da nave da Igreja de Santo Inácio em Roma, onde o padre Pozzo homenageou a obra missionária dos jesuítas, e aos afrescos de Tiepolo. Em Portugal podem ser vistos em Lisboa, no salão do Palácio Centeno e na varanda da Quinta dos Inglesinhos; em Franca de Xira, no Palácio dos Sacotos, de cerca de 1745; e em Évora, em uma sala 285 de aula da antiga Universidade, datado de 1747. No Brasil, encontramos no forro da portaria do Convento de São Francisco, no forro da nave da igreja de Conceição da Praia e nas pinturas laterais sob o coro da igreja de Nossa Senhora da Palma, em Salvador. Em Minas Gerais, podemos encontrar em algumas residências particulares. O número quatro está assim relacionado a uma divisão do mundo em partes, nas quais um meridiano e um paralelo dividem a Terra em quatro setores. “Em todos os continentes, chefes e reis são chamados: Senhores dos quatros mares...dos quatro sóis...das quatro partes do mundo...etc.: o que pode significar, ao mesmo tempo, a extensão da superfície de seu poder e a totalidade desse poder sobre todos os atos de seus súditos”. In. CHEVALIER & GHEERBRANT, 2009, p. 759. 7 Essa temática é também identificada com a tradição do espetáculo teatral do Barroco, percebida na fonte de Bernini, que se encontra na Piazza Navona em Roma. Na fonte, estão quatro rios: o Ganges, o Rio da Prata, o Danúbio e o Nilo, que, segundo alguns historiadores, seriam a alegoria dos quatro rios do paraíso. Estes teriam uma nascente única, representada pela rocha do centro da fonte de onde saem os jorros d’água. São ainda uma alusão à extensão do poderio da igreja pelos quatro cantos do mundo, assim como a pintura que se encontra no teto da igreja de Gesú, também em Roma, que mostra a expansão dos jesuítas pelos quatro continentes. As esculturas que representam os rios apresentam atributos e características que as identificam com a região a que pertencem. A escultura que representa o Nilo, por exemplo, tem como atributo um crocodilo que se agita na parte baixa da fonte. A cabeça da escultura que representa o Rio da Prata tem feições negroides, numa alusão ao que eles entendiam dos primitivos habitantes do novo mundo. In. SCHAMA, 1996, p. 302-7. 8 MAIA, 1990, p. 66. Podemos ver essas representações na igreja de Nossa Senhora do Ò, em Sabará, onde temos no altar-mor a representação do Nascimento de Jesus, da Visitação, da Criação de Jesus e dos Reis Magos. 9 LODI, 2001, p.273-275. 10 GOUGH, 1961, p. 100-115. 11 HOURANI, 2006, p. 121. 12 CÂNDIDO, 1967, p.61. 13 BOSI, 1970, p. 58. 14 MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO, 1978, p 46-54. 15 BAZIN, 1993, p. 213. 16 PIMENTEL, 1987, p. 358-61. 17 ABRANTES, 1992, p. 120. 18 PIMENTEL, 1987, p. 358-60. 19 PIMENTEL, 1987, p. 358-60. 20 PIMENTEL, 1987, p. 360-1. 21 DEL PRIORE, 1996, p. 212-26 22 PEREIRA, 1989, p.183-184. 23 Esta ordem não é, necessariamente, seguida. Em muitas igrejas, podemos ver, nos mesmos espaços, representações de temas sacros. Quando o tema é profano, ocupa especialmente esses lugares. 24 As pinturas, de gosto oriental, temas galantes e paisagísticos, que se encontravam no pára-vento da igreja de Nossa Senhora do Carmo, em Mariana, foram queimadas no incêndio de 20 de janeiro de 1999. 25 Podemos encontrar um desses exemplos na igreja da Ordem Terceira de São Francisco em São João Del Rei. 26 BIANCARDI, 1981, p. 32-4. 27 ESQUITA, s.d., p.118-9. 28 DEL PRIORE, 1996, p. 212-26. Bibliografia ABRANTES, D. Chinoiserie no barroco mineiro. São Paulo: ECA/USP, 1992. Dissertação de mestrado. A CRIAÇÃO E O DILÚVIO: segundo os textos do Oriente Médio antigo. São Paulo: Paulinas, 1990. BARDI, P. M. História da Arte Brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1975. BAROCCO E ROCOCÒ: Architettura, scultura, pittura. Novara: Instituto Geográfico DeAgostini, 1991. BAZIN, Germain. História da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989. _____. Barroco e rococó. São Paulo, Martins Fontes, 1993. BIANCARDI, C. S. C. 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Atualmente é professor da Universidade São Judas Tadeu (USJT) e do Centro Universitário Assunção (Unifai). 287 A ESTÉTICA KAWAII – ORIGEM E DIÁLOGO Michiko Okano - UNIFESP RESUMO: Apresenta-se um estudo do conceito estético japonês kawaii, hoje conhecido internacionalmente pelos mangás, animês e games que circulam por diversos países. Ilustradores como Takehisa Yumeji e Nakahara Jun’ichi foram os primeiros a desenvolver tal estética no período moderno. Na contemporaneidade, ela foi transposta para as artes plásticas por artistas japoneses como Murakami Takashi, Nara Yoshitomo ou Takano Aya. Os ilustradores, no início do século XX, tinham mais liberdade no seu processo criativo que os artistas plásticos hoje e, influenciados pela cultura ocidental, passaram a produzir meninas delicadas e graciosas, com os olhos cada vez maiores. Os contemporâneos ficaram mais circunscritos à estética dessas ilustrações, que fazem parte da sua vivência juvenil, e representam-na diretamente. No Brasil, pode-se estabelecer um diálogo entre o kawaii e alguns artistas, como Rogério Degaki e outros que trabalham com grafite, como Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz. Esse intercâmbio é um dos objetos da discussão que será apresentada a seguir. Palavras-chaves: kawaii, artista moderno japonês, artista contemporâneo japonês, artista brasileiro. ABSTRACT: This study refers to the Japanese art of kawaii, internationally known as manga, anime and games that are popular in many countries throughout the world. The Illustrators Takehisa Yumeji and Nakahara Jun’ichi were the first ones to develop the kawaii style. Contemporary Japanese artists like Murakami Takashi, Nara Yoshitomo and Takano Aya treated this aesthetic style as fine art. Illustrators, at the beginning of 20th century, enjoyed more freedom in their creative process than contemporary artists and, influenced by Western tastes, developed the delicate and cute girls with eyes bigger and bigger. In the universe of manga, the contemporary artists work directly in the kawaii style in their anime and games, as it was an important part of their youth. In Brazil, we can establish a dialogue between kawaii and the story has been adopted and inherited by some artists, especially those who work with graffiti, such as Erica Mizutani, Nina Pandolfo, Toz and Rogério Degaki. This exchange is one of the subjects of the discussion that will be presented bellow. Keywords: kawaii, Japanese modern artist, Japanese contemporary artist, Brazilian artist A palavra kawaii, proveniente do universo da cultura pop japonesa (mangá, animê, cosplay e game) é hoje conhecida por muitos brasileiros, principalmente pelos jovens. Kawaii faz referência às coisas fofas e bonitinhas, como Hello Kitty, Pokémon e meninas de olhos geralmente grandes, com gestos e ações infantis, entre outros elementos. Tal estética é hoje um símbolo nacional e está sendo adotada como estratégia cultural pelo governo japonês, que pretende divulgá-la em âmbito global. 288 Algumas brasileiras aderem a essa tendência, seguindo a Moda Lolita, originária do Japão do final da década de 1970 para o início de 1980. Trata-se da evocação da beleza de meninas vestidas como bonequinhas, cujas roupas têm babados, fitas e estampas de doces, animais, flores e frutas. As cores variam de acordo com o sub-estilo adotado: sweet, gothic, classical, princess, punk, natural ou walori (à moda japonesa). Temos uma Embaixadora Kawaii do Brasil, título concedido, em 2013, à Lolita brasileira Akemi Matsuda, pela Japan Lolita Association. A investigação da origem da palavra kawaii, mostra que ela não surgiu nestas últimas décadas no Japão, mas tem raízes mais profundas. Apesar da sua procedência ser japonesa e de ter o seu desenvolvimento dentro do território nipônico, tal estética tornou-se, a partir da Era Moderna japonesa, um produto híbrido de circulação e de conexão entre ideias e conceitos estéticos do Oriente e do Ocidente. Essa hibridização pode corroborar a aceitação dessa estética no Ocidente, como aconteceu com a famosa xilogravura A Grande Onda de Kanagawa, de Katsushika Hokusai, a qual incorporou a técnica ocidental de pintura (luz e sombra, perspectiva linear), o que permitiu uma identificação maior dos estrangeiros com a obra. Uma vez que essa estética híbrida circula para os outros países, e sabendo que os signos se modificam de acordo com as novas relações estabelecidas com o contexto, procura-se estudar, neste texto, ainda que em estágio incipiente, algumas similaridades e diferenças encontradas nas representações visuais do kawaii no território brasileiro. Origem do kawaii O termo kawaii é antigo, originário da palavra kawayushi ou kawowayushi, cujo registro pode ser encontrado na literatura Konjaku monogatari (Narrativas do presente e do passado) do século XII, final da era Heian. Contudo, Kawayushi tinha outra semântica, diferente da que conhecemos hoje: significava ter pena, ter vontade de fechar os olhos por estar diante de uma situação dolorosa1. A palavra kawayushi foi substituída, após a Segunda Guerra Mundial, por kawayui, que mais tarde se 289 transformou em kawaii, como a conhecemos atualmente. O vocábulo que era utilizado com o significado atual do kawaii era utsukushii (utsukushiki). A literatura clássica japonesa da era Heian (794-1185), Makura no Sôshi (Livro de Cabeceira ou Livro do Travesseiro), de Sei Shônagon, ilustra esse uso de “utuskushiki”: Utsukushiki mono – Coisas que são graciosas Coisas que são graciosas. Rosto de criança desenhado em um melão. Pardalzinho que vem saltitando, ao imitarmos guinchos de rato. É muito graciosa a criança de dois, três anos, que engatinha rapidamente e, com vivacidade, descobre um pequeno cisco no chão, pega-o com seus dedos muito encantadores e mostra-o a cada um dos adultos. É graciosa também a menina de cabelo cortado rente aos ombros como o das monjas, que, para ver alguma coisa, inclina o rosto ao invés de afastá-lo quando este lhe cobre os olhos. (SHÔNAGON, 2013, p. 7) Como vemos, utsukushiki é utilizado com a semântica de coisas graciosas que se relacionam ao tamanho reduzido, como pássaros e crianças, referindo-se aos seus gestos e às suas aparências. Essas características de ser “pequeno” e “infantil” são apontadas na descrição do conceito de kawaii dos pesquisadores japoneses estudados (Ôtsuka, Miyadai, Yomota). Segundo Cordaro e Wakisaka, emanam do livro de Sei Shônagon, que descreve o cotidiano da vida da corte do século XI, “a ética e a estética que doravante se tornarão basilares da cultura japonesa, naturalmente filtradas por uma autora que possuía um olhar, digamos assim, múltiplo e multifocal” (SHÔNAGON, 2013), o que demonstra que o utsukushii, isto é, o atual kawaii é um elemento estético fundamental da cultura japonesa existente desde a era Heian. O kawaii tem, portanto, raízes profundas na sociedade japonesa, o que nos permite classificá-lo em três fases: a primeira, é a tradicional, sobre a qual acabamos de discorrer; a segunda é o seu desenvolvimento no período moderno, quando a sociedade japonesa, da era Meiji (1868-1912) até início da era Taishô (1912-1926), recebe intensa influência ocidental; e a terceira é o kawaii contemporâneo, que nasce na década de 1970. Kawaii moderno e suas representações Contrastando com a era Edo (1603-1868), quando o Japão fechou os seus portos para as nações estrangeiras, com exceção da Holanda e da China, a era 290 Meiji é marcada pela abertura do país ao Ocidente, com a gradual absorção da cultura e da estética ocidentais. Foi nesse contexto de intenso acesso à cultura externa que ocorreu a segunda fase do kawaii, na qual ele foi representado pelas ilustrações de artistas como Takehisa Yumeji (1884-1934), Nakahara Jun’ichi (1904-1986), Matsumoto Katsuji (1913-1983) e Mizumori Ado2. Essa representação foi divulgada, sobretudo, pelas revistas femininas. A categoria kawaii é analisada pelo sociólogo japonês Miyadai Shinji (2007, p. 120-122) por meio de três variáveis: o ergonômico, o romântico e o gracioso. A primeira faz referência à leveza, maciez e brancura resultantes da busca de algo ergonômica e sensitivamente carinhoso, representado, por exemplo, pelos bichos de pelúcia. A segunda tem relação com a romantização de si e do que está ao redor por meio de uma visão subjetiva, como o desejo de construir “um universo envolvido pelo amor”. O último aspecto, o gracioso, faz parte do que é infantil, inocente, puro, alegre e dinâmico. O romântico pode ser correlacionado com o conceito de kawaii elaborado pelo pesquisador japonês Yomoi Inuhiko (2006), que define essa estética como algo que tem um sentimento de nostalgia, frágil e efêmero, ao passo que a questão do “gracioso” corresponde, na visão do mesmo autor, a algo vulnerável que provoca um desejo de proteção ou remete à utopia construída pela inocência e a imaturidade. Ao cruzar esses conceitos desenvolvidos por Miyadai e Yomota, podemos sinalizar que Takeshita Yumeji e Nakahara Jun’ichi trabalham, principalmente, com a variável do romântico – as figuras por eles retratadas são frágeis e possuem ar de nostalgia – e que Matsumoto Katsuji e Mizumori Ado elegem o gracioso como representação das suas imagens – na maioria shôjo, isto é, meninas com ar infantil, imaturas, fofinhas e bonitinhas. Matsumoto adota o gracioso infantil, diferentemente de Mizumori, que vai além e introduz o erótico gracioso nos seus desenhos. Takehisa Yumeji foi um dos pioneiros a criar a estética kawaii moderna. Ele recebeu influências ocidentais como art nouveau, que foram trazidas, no início do século XX, por artistas recém-chegados da Europa como Kuroda Seiki e o renomado escritor Natsume Sôseki. “As mulheres bonitas estilo Yumeji”, são típicas das obras 291 de Takehisa, e ainda guardava alguns vestígios da estética das “mulheres bonitas” de ukiyo-e, com seus corpos e rostos alongados, vestidas de kimono, com delicada sinuosidade própria das mulheres japonesas da era anterior, mas com a grande diferença de que, para ele, a sua obra não existiria sem o desenho de observação (ISHIKAWA, 2010, p. 13), que é um método ocidental de elaborar a pintura. Os rostos brancos das mulheres contêm uma maior expressividade, com olhos e bocas mais pronunciados e os braços, também esbranquiçados, são longos. Os traços são mais soltos e há a ênfase do desenho do rosto em perfil, raro nas épocas precedentes, e mostra a lateralidade do pescoço, que transmite uma delicada sensualidade. É importante observar que Yumeji não teve uma educação artística acadêmica e, provavelmente por esse motivo, sentiu-se mais livre para receber a influência ocidental. No entanto, nota-se também a aprendizagem da pintura tradicional nihonga3 por intermédio de sua mulher, Kishi Tamaki, viúva de um artista desse estilo, que se tornou seu modelo enquanto durou o relacionamento. Vê-se, desse modo, um amálgama entre os elementos ocidentais e japoneses representado nas suas criações. Fig.1 Obras de Takehisa Yumeji (lado esquerdo), Nakahara Jun’ichi (centro superior), Matsumoto 4 Katsuji (lado direito superior) e Mizumoro Ado (lado esquerdo inferior). O início da carreira de Takehisa data de 1908, no caso de Nakahara Jun’ichi, isso ocorreu mais tarde, em 1932, por meio das ilustrações da capa da revista feminina Shôjo no tomo (Amiga da mocinha). 292 As meninas de Nakahara são melancólicas, poéticas, imbuídas de uma elegância e refinamento citadinos (Fig.1). Os olhos grandes são reforçados por cílios pronunciados, ora em representações de garotas japonesas, ora ocidentais, modelo que se tornou fonte de inspiração dos mangás atuais. As pupilas estão quase sempre direcionadas para cima, conferindo um ar sonhador às figuras, cuja composição da delicadeza se completa com queixos pontiagudos, sobrancelhas finas e levemente arqueadas, bocas pequenas em biquinhos e faces rosadas. Foi também Nakahara quem introduziu a moda de roupas ocidentais por meio de ilustrações, ensinando também como uma moça deveria comportar-se em algumas ocasiões específicas, ensinando modos de andar, de sentar-se na cadeira, no tatame, de descer as escadas, etc. A sua afinidade com o Ocidente pode também ser notada na descrição que o artista faz da arquitetura de interiores europeus, cujo detalhamento só pode ser explicado pelo fato de ele ter convivido, desde a sua infância, com um jesuíta europeu, pois seu pai era cristão. A figura de shôjo (menina) evidenciada por Nakahara corresponde a uma fase intermediária em que a mulher não é nem criança, nem adulta: Modo de se sentar: a forma correta de se sentar é juntar a parte superior dos joelhos e deixar ambas as pernas encostadas. Pode ser frontal, mas é uma pose bonita e delicada inclinar um pouco as pernas, mantendo-as 5 coladas uma à outra. (UCHIDA, 2013, p. 82) Para as shôjo japonesas, as cores kawaii são as que mais combinam. 6 (UCHIDA, 2013, p. 83) Essa valorização da fase shôjo é explicada pelo pesquisador e crítico social Ôtsuka Eiji (1997), no seu livro Shôjo minzokugaku (Etnologia da shôjo). O autor afirma que shôjo é um produto inventado pela sociedade moderna, porque, antes disso, havia apenas as meninas sexualmente imaturas que passavam, a partir do momento da menstruação, a ser mulheres maduras prontas para assumirem o papel de reprodutoras e de força de trabalho. Essa obra esclarece, ainda, que essa fase intermediária, em que as meninas deveriam ser conservadas e “sem uso”, como um objeto de troca futura, foi criada pela sociedade de consumo. Para tanto, a educação da era Meiji trazia, como ideal da sociedade moderna, a formação de uma “boa esposa e mãe inteligente” (ryôsai kemboƌ¶Ƶĵ). 293 Dessa perspectiva, shôjo, cujo comportamento era criado pelas normas publicadas na revista feminina, configurou-se como uma jovem que, apesar de ter corpo de adulta, e, portanto, ser capaz de procriar, era colocada fora da linha de produção, em compasso de espera. No entanto, esses sonhos interromperam-se com a entrada do Japão na Segunda Guerra Mundial, quando as meninas tiveram de repetir “não desejaremos nada, até a vitória” ǣHoshigarimasen, katsumade wa İ 0(6ƒ("). Introduz-se, então, outro tempo de espera para as shôjo, desta vez por razões diferentes. Na época pós-guerra, Matsumoto Katsuji e Mizumoto Ado foram os formadores das figuras femininas representativas da estética em estudo. Matsumoto ficou conhecido, sobretudo, pela criação da personagem de mangá intitulado Kurumi-tchan (Fig.1), que apesar de ter estreado em 1938, teve a sua continuidade pós-guerra, de 1949 até 1954. Trata-se de uma menina com idade inferior às outras kawaii, mais infantil, cuja alegria, simpatia, energia e amorosidade conquistavam as fãs. Apresenta uma cabeça enorme em relação ao corpo e um rosto mais largo, proporções do corpo de uma criança, uma boca grande, olhos redondos e um laço grande em volta dos cabelos. Mizumori Ado é uma artista múltipla – cantora, atriz, ilustradora – e destacase por introduzir o kawaii erótico, o que era tabu até então. Em suas obras, as shôjo vêem-se representadas na proporção de menina, com uma cabeça que ocupa um terço do comprimento do corpo, mas com sapatos de salto alto e nádegas arrebitadas. Podem ser retratadas dando um beijo, sempre de modo gracioso. (Fig.1) O desenho torna-se mais caricatural, os olhos mais simplificados, as bocas ora rasgando o rosto, ora em biquinhos. Em uma de suas obras, temos a aparição conjunta da menina com um menino. De acordo com Miyadai (2007), a subcultura japonesa pode ser subdividida em quatro períodos: o primeiro começou no final da era Meiji, chegando ao início da era Taishô, até 1950, e corresponde, no nosso caso, à fase de Takehisa Yumeji e Nakahara Jun’ichi. Nessa época, as meninas deveriam ser “inocentes, corretas e alegres“ (ŇIJđ1), traços que correspondem ao momento em que se 294 buscava um padrão perfeito, idealizado, e, portanto, inexistente. Segundo o mesmo autor, estabeleceu-se, assim, o modelo da “experiência substitutiva”, no qual o leitor, ao apreciar as obras, se colocava no lugar do personagem. O segundo período, que compreendeu de 1950 até 1970, era o tempo em que não se procurava mais o restabelecimento da ordem, mas um coletivo de jovens que se revoltavam contra os adultos. Originou-se, assim, um “modelo relacionável”, por meio do qual os jovens podiam sentir-se unidos e as relações construídas eram extremamente próximas à vida real. As personagens, portanto, teriam de ser facilmente reconhecíveis como pessoas reais existentes ao seu redor. Se, na primeira fase, a relação entre a mãe e a filha era enfatizada, nesta segunda, é o coletivo de jovens que convivem nas escolas que se destaca. A grande diferença entre a expressão do kawaii nesses dois períodos é o fato de o corpo de shôjo tornar-se sexualizado como denotam os personagens kawaii eróticos de Mizumori. Kawaii contemporâneo e suas representações Seguindo a divisão da subcultura japonesa realizada por Miyadai, o terceiro período (de 1973 até os dias atuais) corresponde à dissolução de um código comum marcado pela dualidade adulto/jovem e surge a busca exclusiva do “eu”, da “minha felicidade” ou do “meu amor”. Adota-se o “modelo identificável”: as leitoras identificam-se com as personagens de mangás e animês, que são similares a elas, incompreendidas pela sociedade. Na quarta fase (de 1983 até os dias atuais), que convive com a terceira, tem-se uma complexidade do “modelo relacional”, no qual surge o fenômeno otaku9, em que a sexualidade é introduzida e o mundo apocalíptico é frequentemente representado. Talvez possamos entender essa busca do “eu” da terceira fase concebida por Miyadai, na formação de tribos urbanas como Lolitas, cosplays, gyarus: essas identificações têm ocorrido muito mais em grupo de afinidades, muitas vezes extremas. Nesses grupos, as meninas encontrariam uma compreensão mútua nas pessoas a eles pertencentes. Uma vez que se trata de um coletivo que parte da busca individual, é distinto daquele da segunda fase, que almejava o ideal de um grupo. 295 É justamente neste terceiro período, no início da década de 1970, que há a emergência do termo kawaii contemporâneo que, vinculado à sociedade de consumo, cria fancy goods (produtos da fantasia) inspirados em mangás e animês. Tais artefatos serviriam para construir um ambiente de fantasia, geralmente nos quartos das meninas, para que elas, com corpos de mulher, mas sem possuir tal função social, possam viver enclausuradas até chegar o momento de se tornarem adultas, conforme Ôtsuka, ou na busca do “eu”, do “meu amor” e da “minha felicidade” segundo Miyadai. Houve até mesmo o surgimento de caracteres redondos com ar infantil escritos na horizontal, criados pelas jovens que escreviam poemas para si mesmas, os quais eram trocados entre elas. As revistas femininas representativas dessa estética na década de 1970 eram an-an e non-non. Em maio de 1975, um artigo da revista an-an introduzia o novo conceito de kawaii: Brinque! Kawaii! Procure um tema jovem! A gente quer sentir, mas as roupas parecem ser de mulheres velhas! É a hora de expressar quem você realmente é. Seja o que for, coordenar um tema muito jovem é ser kawaii. Tente usar coisas como uma combinação francesa e, para acessório, uma pulseira pequena e graciosa. Mas veja! Vc vai parecer mais kawaii se você não usar materiais exclusivos de alta qualidade. Um plástico com aparência graciosa e madeira compensada parecerá mais jovem. (KINSELLA, 1995, p. 229) Da mesma forma que a revista Shôjo no tomo ditava as normas para ser kawaii nas eras Meiji e Taishô, as revistas femininas continuaram, na década de 1970, a informar o que deveria ser feito para se ter uma aparência kawaii. No entanto, o enfoque não é mais no modo pelo qual as meninas deveriam se comportar, mas, sobretudo, no consumo das roupas e dos acessórios como um meio para alcançar a felicidade. A relação direta entre a estética e o consumo é detectada pela socióloga pesquisadora da subcultura japonesa, Sharon Kinsella: “kawaii pareceu ser acessível exclusivamente pelo consumo”, fato este que tem suas origens em dois fatores: o aumento de renda das jovens na década de 1980 e a inventividade da indústria japonesa em fornecer produtos de valores razoáveis para fazer parte da cultura kawaii (KINSELLA, 1995, p. 245). Acrescenta a antropóloga americana especializada em sociedade contemporânea japonesa, Anne Allison (2004, p. 41).: 296 “Kawaii não se tornou apenas uma mercadoria, mas também equivalente ao próprio consumo”. Kinsella ainda esclarece a função do kawaii na sociedade de consumo: “o que o processo capitalista despersonaliza, um bom design kawaii repersonaliza” (KINSELLA, 1995, p. 228). A difusão do kawaii pode ser mais bem visualizada em diversas áreas da sociedade japonesa, como em companhias e bancos de renome como Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo, Sanwa, etc., e até em lojas de pachinko (jogos eletrônicos) que são, geralmente, administradas pela máfia japonesa yakuza. Dentsu, uma das maiores companhias publicitárias japonesas, explica o motivo pelo qual os símbolos kawaii são apropriados para expressar a identidade pessoal, corporativa, grupal ou nacional: é porque “une a sociedade pela raiz”. (DENTSU, apud ALLISON, 2004, p. 40). Verifica-se, assim, a importância dessa cultura no seio da sociedade japonesa. A infantilização dos adultos é outro tema que pode justificar essa preferência japonesa. Para Kinsella, a fase adulta para os japoneses não é vista como propiciadora de liberdade e independência, mas como repleta de responsabilidades para com a sociedade e a família, como sinônimo de obrigação, restrição e falta de tempo livre. Conforme a autora, as manifestações japonesas e ocidentais se diferem: A moda kawaii foi uma espécie de rebelião ou rejeição da cooperação com o valor social estabelecido e a realidade. Foi mais uma modesta, uma pequena rebelião do que uma manifestação consciente, agressiva e sexualmente provocativa, típica da cultura jovem ocidental. (KINSELLA, 1995, p. 243) Esse desejo de permanecer na adolescência pode ser também correlacionado com o que o historiador Igarashi Yoshikuni (2011, p. 81) chama de “narrativa fundadora do pós-guerra japonês”, associada à derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial, episódio que foi o deflagrador da “conversão do Japão de um Estado militarista para um Estado pacífico”. Essa narrativa faz do Japão um personagem que se coloca em posição de submissão e consequente infantilização perante os Estados Unidos. A correlação entre a história japonesa e o modo de ser kawaii da fase contemporânea teria assim, uma ligação direta, refletindo naquilo que alguns consideram como a base da cultura japonesa atual. 297 Tal estética representativa da infantilização é objeto da obra de alguns artistas como Murakami Takashi (1962-) Takano Aya (1976-) e Nara Yoshitomo (1959-). Em seus trabalhos pode-se perceber a complexidade sinalizada por Miyadai no quarto período kawaii, em que esse estilo se manifesta ambíguo e híbrido, como no kawaii sexual que, diferentemente daquele erótico, fundamentalmente gracioso, é a mistura de menina e de adulta, na sua qualidade de ser sexual. Visível em obras como Hiropon de Murakami, a menina parece personagem de animê, com um corpo alongado, pernas compridas e um busto avantajado no qual o biquíni mal consegue esconder os seios. Hiropon, com olhos enormes de personagem de mangá e cabelos volumosos, ora azuis, ora cor de rosa, derrama leite pelos seios, que se transforma em uma corda para pular: é a representação do kawaii sexual. É precisamente a cultura otaku7 que motiva Murakami na produção de suas obras: (...) a cultura otaku é o fato mais importante no Japão pós-guerra, entendendo por otaku algo similar à pop art, mas algo particularmente japonês e específico, possível de ser criado numa situação econômica pobre, combinado à sexualidade. (...) uma sexualidade que os otakus possuem internamente e tentam expressar em mangá ou animê (Entrevista de Murakami Takashi, no Japanorama). 8 Mestre e doutor em nihonga5, Murakami é um artista que traduz elementos da arte tradicional japonesa, quer seja da escola Rinpa, do ukiyo-e ou da Kanô, de modo contemporâneo, misturando-os com elementos da arte pop japonesa, sobretudo do animê e do figure. Ele afirma que o mangá foi importante por constituir um modo de “entretenimento razoável numa situação economicamente difícil”12, e, portanto, acessível a todos. Cunhou o termo Superflat, que faz referência à bidimensionalidade da arte japonesa, bem como à planificação rasa da sociedade de consumo nipônica. Takano Aya é discípula de Murakami, pertencente à companhia Kaikai Kiki, a qual dirige. Takano é uma artista tímida, sorridente, graciosa e cria meninas com olhos enormes que, muitas vezes, se assemelham a buracos no rosto que parecem não olhar a lugar nenhum. Algumas delas mostram o corpo apenas com calcinha ou nu e outras, em relação sexual. Seus corpos são retos e sem seios, de pré298 adolescentes. Elas voam, convivem com animais, localizam-se na cidade ou num mundo fantástico e num tempo futuro. A estética kawaii presente nas obras de Takano é, portanto, fundamentada numa ambivalência em que coexistem a graciosidade do corpo de menina e atitudes adultas, estranhas e obscenas, como fazer malabarismos nuas no céu ou passearem nuas com os cachorros pela cidade. O romantismo que a sua obra emana confronta-se com a apresentação crua dos corpos assexuados das garotas. A mesma ambivalência pode ser encontrada nas obras de Nara Yoshitomo, que reside, desde 1988, na Alemanha. Sua expressão do kawaii retrata menininhas que possuem um corpo cujas proporções infantis divergem da forte e adulta expressão do seu rosto. Os seus olhos são grandes, em algumas pinturas sobem diagonalmente, como se elas estivessem bravas ou revoltadas e, em outras, apresentam certo ar de mistério ou pavor. O artista declara que a sua obra vem da memória da infância e é espelho da sua pessoa: a revolta, a solidão são representações dele mesmo e que, se existe uma mensagem, ela é direcionada a ele próprio.9 O kawaii é representado nesses artistas contemporâneos japoneses de modo ambivalente, misturado a elementos conflitantes como sexo, pavor, ira e revolta, que transpõem a graciosidade da era moderna para chegar a uma estética híbrida. No caso de Nara, é a infantilidade que se associa à ira e, em Takano e Murakami, a graça e a sexualidade, com a diferença de que a primeira adota o corpo de uma menina pré-adolescente e o segundo, o de uma mulher adulta. A circulação do kawaii contemporâneo Se o Japão foi conhecido mundialmente, desde a década de 1970 até 1990, pelo seu processo econômico na produção de eletrônicos de alta qualidade, como Sony e Toyota, com o subsequente estouro da bolha econômica e da recessão, o crescimento da indústria de jogos eletrônicos foi uma das poucas histórias de sucesso após 1990 e a estética Kawaii faz parte dessa manufatura que hoje atinge vários países do mundo. 299 Trata-se do fenômeno que um jornalista americano denominou GNC (Gross National Cool), léxico do “cool”, “Japanese cool”, que se tornou “(...) rapidamente referência de como os produtos de diversão japoneses são vendidos com sucesso, fora do país” (ALLISON, 2007, p. 1), revelando-se também uma estratégia política do governo japonês para disseminar a sua cultura no exterior. Com essa mesma orientação política, Aoki Misato, Fujioka Shizuka e Kimura Yu foram nomeadas Embaixadoras Kawaii entre fevereiro 2009 e março de 2010 pelo Ministério de Relações Exteriores do Japão e visitaram também o Brasil. Quatro anos depois, a brasileira Akemi Matsuda seria nomeada Embaixadora Kawaii do Brasil. Da mesma forma que se estabelece um diálogo entre as Lolitas japonesas e as brasileiras, alguns artistas brasileiros conversam com os artistas contemporâneos japoneses no uso da estética kawaii nas suas obras. Foram pesquisadas as obras de quatro artistas: os descendentes nipobrasileiros Érica Mizutani e Rogério Degaki, e os não descendentes Nina Pandolfo e Toz. Não à toa, os três, exceto Degaki, têm a arte do grafite como elemento comum nas suas obras, provando que o espaço dominante é a área da subcultura. Erica trabalha com ilustração em aquarela e ponta seca, tela, parede e design de produtos como bolsas e agendas. As meninas do universo de pintura da Erica possuem, geralmente, uma veste ora preta cheia de pelos animalescos, ora de flores e folhas, em tons aquarelados e suaves, que as envolvem da cabeça até o joelho e escondem as linhas do seu corpo. É comum elas calçarem botas pretas e meias listradas branco e preto. Os rostos são brancos com olhos redondos e bochechas marcadas por uma bola vermelha e a boca pequena, quase um traço. Os cenários em que as meninas se situam são, muitas vezes, fantásticos, repletos de árvores, flores estilizadas, cogumelos voadores, nuvens, lua povoada de minhocas, em contextos e atitudes inusitados e graciosos, como uma menina que puxa a corrente da chuva que se prende a uma nuvem (Rain Yourself) ou que segura uma vara que prende o regador que rega a si mesma (Love Yourself) (Fig. 2) etc. 300 Existem sonho e romance revelados nas suas obras e as graciosas meninas são capazes de fazer chover, de molhar a Terra ou a Lua, de voar e de balançaremse no cosmos. Em uma entrevista realizada em março de 2014, as palavras-chaves que ela mesma adota para exprimir suas obras são: “aconchego, pink, cócegas, proteção e choro”, que perfazem um diálogo interessante com as peculiaridades do kawaii, como a procura da proteção e aconchego, chorar e cócegas que são qualidades infantis, e a feminilidade representada pela cor pink. Fig. 2 Obra Love Yourself de Erica Mizutani. Imagem fornecida pela artista. Fig.3 Obra Fugir e fingir de Nina Pandolfo. Imagem fornecida pela artista. Erica define a sua própria obra como um “cheirinho da infância” e ressalva que a sua obra “é kawaii para quem quer carinho”, mas não pode ser resumida apenas a isso, e que existem “muitas outras mensagens para quem a observa com maior concentração”. Em seus trabalhos, portanto, o kawaii não se restringe ao gracioso da era moderna, mas está no âmbito do complexo e contemporâneo, que reserva outras semânticas. A brasileira Nina Pandolfo trabalha com tinta acrílica sobre tela, tecido, parede, instalação e bonecas. As meninas da Nina são graciosas, rostos geralmente largos como os das crianças, olhos enormes, cílios pronunciados e revelam seus sonhos e seus medos. As suas pinturas são extremamente coloridas. (Fig.3) Nina declara que seu trabalho é “como um alegre ecossistema de fantasias no qual a inocência ou a memória de felicidade inata que sentíamos como crianças não fossem corrompidos.” Ela descreve as suas obras como “um trabalho onde o 301 lúdico e a realidade se intercalam, trazendo um pouco de nostalgia misturada com sentimentos de amor, paz, alegria” e as palavras-chaves escolhidas por ela para suas obras são: onírica, cores, olhar, sensual, ingênuo e feminilidade. (entrevista dada em março de 2014). Assim, ela procura a inocência inata das crianças, a memória infantil, a nostalgia, num espaço entre o fantástico e o real, o que faz que as suas meninas sejam kawaii. A qualidade concomitante do sensual e do ingênuo traz uma ambiguidade que muito dialoga com as obras de Takano. A artista começou pintando nas ruas, porque era o que gostava de fazer. Sobre a sua escolha temática, conta que é “provavelmente porque as meninas estão sempre correndo para crescer, para se tornarem mulheres. Apesar de pintar as meninas, as suas emoções nos seus olhos, suas expressões refletem desejo de crescer.” (Mid Day Mumbai, November 13, 2008). Se as meninas kawaii japonesas espelham, como vimos, a vontade de parar de crescer, as de Nina, ao contrário, retratam a aspiração de se tornarem adultas, o que demonstra as diferenças sociais e culturais inerentes aos dois países. Tomaz Viana, o Toz, brasileiro, artista plástico e grafiteiro, relata que seu trabalho é autobiográfico e trata de situações e possibilidades inerentes ao seu cotidiano. As palavras-chaves escolhidas para refletir sua obra são: amor, alegria, renovação, sugestão e energia (entrevista concedida em março de 2014). Uma das suas personagens, Nina, uma mocinha linda e flutuante que, frequentemente, ganha uma cauda de sereia, tem geralmente um rosto largo, olhos afastados, representados por linhas localizadas nas extremidades do rosto, traços quase idênticos às sobrancelhas, a bochecha em círculos rosados abaixo dos olhos, uma boca vermelha e pequena, em bico, e um nariz que é apenas uma linha horizontal acima da boca. Os cabelos são compridos e divididos ao meio na nuca.(Fig.4) Ele afirma fazer “uma versão brasileira de mangá” e que “sua obra é kawaii pelas formas e técnicas utilizadas”, contudo, diferem das japonesas por usar “mais cores, talvez por ser brasileiro” (entrevista dada em março de 2014). O uso de 302 múltiplas cores bem como de tonalidades fortes parecem ser um dos diferenciais dos brasileiros, principalmente em Toz, Nina e Rogério. Erica é mestiça e conviveu com a cultura japonesa desde a sua infância, assim os estilos orientais aparecem, para ela, de forma natural, ao passo que Toz, apesar de ser baiano, cresceu vendo “seriados japoneses de super-robôs e ficou encantado ao ver desenhos animados e produtos orientais”. Dessa maneira, é possível ver a influência japonesa em ambos os artistas, embora, em cada um, ela seja distinta. Entretanto, para Nina, que curiosamente tem, dentre os artistas brasileiros mencionados, um desenho mais parecido com os personagens de mangá japonês, diz não ter nenhuma ligação direta com a cultura japonesa e esclarece que os olhos grandes surgiram em sua arte como uma expressão da auto-representação, o que corrobora o fato de que na multiplicidade das representações artísticas não é possível estabelecer uma relação automática entre o kawaii, os olhos grandes e a influência japonesa. A similaridade entre os três artistas pode ser verificada no grafite, que conta com a característica da efemeridade, muito presente na cultura japonesa, além de fazer parte da subcultura e arte urbana. No entanto, é pelo mangá e pelo animê que eles recebem influências, embora em níveis distintos: Nina, apesar de mais distante da cultura japonesa, diz ter recebido influência de Hayao Miyazaki (Time Out Mumbai, November 1-27 2008, vol. 5 issue 6: 52). Rogério Degaki (1974-2013) foi um artista nipo-brasileiro que introduziu na sua obra uma mistura de elementos de mangá, animê, obras de Jeff Koons e Takashi Murakami. As suas obras escultóricas, feitas de resina plástica, fibras de vidro e polietileno expandido e pintadas com tinta automotiva cromada, possuem a estética kawaii não só pela temática – geralmente de animais, figuras, doces e objetos – mas também pelo seu colorido alegre e brilhante (Fig.5). 303 Fig.4 Obra Mãe de Toz no muro da Gávea. Fotografia fornecida pelo artista. Fig.5 Obra Art Nouveau, 2013 de Rogério Degaki. Extraído do site http://www.rogeriodegaki.com. As suas pinturas, cujos personagens, que não são meninas como nos casos anteriores analisados, vêm do universo lúdico e infantil da cultura pop e de estampas de roupas de crianças, imitam o bordado ponto cruz. Ultimamente, Rogério vinha desenvolvendo a série mockup, na qual reproduzia alimentos do cotidiano em uma dimensão agigantada. As suas obras são ambivalentes: a pintura apresenta uma aparente visualidade do bordado e o suposto tema infantil traz problemas desconcertantes relacionados a corpo, sexualidade, melancolia e morte, trazendo à tona uma ambivalência semelhante à vista nos trabalhos dos outros artistas. Na obra Felix II, Rogério dialoga com as flores sorridentes de Murakami Takashi, difundidas mundialmente pelas bolsas Louis Vuitton. Essas flores foram transformadas em doces e expostas no chão, como as balas de Felix Gonzalez Torres, mas são não consumíveis e agigantadas. É uma obra que carrega em si a reflexão a respeito da imagem que muda de material, dimensão e cor. Considerações finais O capitalismo atual é marcado pela transição do enfoque dos produtos materiais para a imaterialidade da informação, comunicação e afeto, segundo o teórico literário e filósofo político estadunidense Michael Hardt (1999). O trabalho imaterial tem duas formas principais: aquele intelectual e computacional, o qual envolve ideias, códigos e símbolos, e outro que trata do trabalho afetivo que engaja sensações como bem-estar, excitação e tranquilidade. Os produtos J-cool japoneses simbolizam esse segundo tipo de capitalismo pós-moderno, pois proporciona tais afetos, intimamente relacionados ao contexto biopolítico, nesta sociedade 304 estressante que caracteriza a contemporaneidade. Conforme o filósofo Uchino Tadashi (2008, p. 136), depois de 1995, após o estouro da bolha econômica e de duas catástrofes, o terremoto de Hanshin-Awaji e o ataque de gás sarin da seita Aum Shinri-kyô nas linhas do metrô de Tóquio, as palavras para se entender o Japão são: kireru (estourar-se), hikikomoru (recolher-se) e iyasu (curar-se). As pessoas, no limite do seu stress, suicidam-se, matam-se sem motivo aparente (“kireru”), recolhem-se dentro das suas casas (“hikikomoru”) ou tentam curar-se adotando uma alternativa menos radical (“iyasu”) – uma viagem a Bali, uma simples massagem ou aulas de dança. Muito utilizados nos contextos metropolitanos japoneses, os três verbos intercalam-se para representar o seu estado de espírito. Nesse contexto, a fuga para o universo nostálgico da infância, da dependência, da vontade de não crescer é uma das modalidades de “iyasu” que proporciona a tranquilidade, a proteção, o conforto, e faz emergir o trabalho imaterial afetivo apontado por Hardt. É justamente pela aquisição desenfreada dos produtos kawaii que as pessoas expressam o desejo de serem confortadas e tranquilizadas, num processo de “curar-se” da realidade da sociedade atual. Esses produtos contêm algo que o antropólogo japonês Nakazawa Shin’ichi (1997) denomina “pensamento selvagem” (LjŚ!÷Ƅ). O autor afirma que uma das características do Japão pós-moderno é o fato de este ter conservado o “pensamento selvagem”, a capacidade inata de criar arte e mitos, que se manifesta em seus jogos industriais, os quais capturam a imaginação das crianças e dos adultos. Tal conexão do iyashi10 high-tech com essa inconsciência primitiva é materializada na mercadoria que o Japão exporta agora para o resto do mundo. Vimos assim, no decorrer do texto, a transformação do kawaii ao longo dos séculos, de sua origem na antiguidade, verificável na literatura da era Heian, passando pela modernização e consequente ocidentalização japonesa, pelas quais se torna um kawaii mais híbrido, até configurar-se, na atualidade, como uma estética que oferta o conforto perante as vicissitudes da pós-modernidade. O kawaii, hoje, é transnacional, talvez pela necessidade contemporânea global do trabalho afetivo, a qual pode variar de acordo com grau de afetividade que cada povo expressa. No Brasil, por exemplo, a função do iyashi pode ser minimizada. 305 Verifica-se, nos artistas brasileiros entrevistados, uma multiplicidade de posições, de influências, japonesas ou não, mas o que fica evidente é a força com que todos representam o seu “eu” emocional. Segundo Érica, sua criação é “um momento de intensidade emocional”; Nina ressalta: “estou 100% nas obras que faço, não é um autorretrato, mas tudo que gosto, vejo, quero e sonho”, e Toz afirma: “Acho que faço tudo com muito amor e isso aproxima as pessoas”. Miyadai classificou kawaii em três variáveis – o ergonômico, o romântico e o gracioso – mas verifica-se aqui, talvez, uma outra vertente: o afetivo centrado na emoção do artista. Além das diferenças entre o kawaii japonês e o brasileiro, esses depoimentos revelam, talvez com mais intensidade que no caso nipônico, como o kawaii está fortemente vinculado ao aspecto afetivo emocional do artista, e isso tem conquistado seus fãs brasileiros, e vem enraizando a estética transnacional como resposta às mudanças das sociedades, o que faz desse fenômeno um objeto riquíssimo para estudo. Notas: 1 Kogo Daijiten - Grande Dicionário de Palavras Antigas. 2 Hashimoto Cordaro, 2013:7. 3 Foi atriz, cantora, ilustradora e artista, com uma forte aparição entre os anos de 1945 e 1965, mas a data de seu nascimento não é informada. 4 Nihonga é pintura tradicional japonesa, assim denominada a partir da era Meiji, para distinguir do Yôga (pintura ocidental). É uma pintura feita com pigmentos à base d’água, de origem mineral ou vegetal, cujo suporte é geralmente papel artesanal washi ou seda. 5. Imagens respectivamente extraídas de http://chasingbawa.com/2012/03/09/my-life-in-books/; http://gallery.minitokyo.net/download/568810;http://www.mattthorn.com/shoujo_manga/prewar_shoujo/index.php; http://sumato.net/33007/%E6%B0%B4%E6%A3%AE%E4%BA%9C%E5%9C%9Fandroid%E7%94%A8/ acesso no dia 30/03/2014 6 Publicado na revista Shôjo no tomo de dezembro de 1938. 7 Publicado na revista Shôjo no tomo de maio de 1940. 8 Otaku é um termo genérico que se refere àqueles que se viciam em formas da subcultura fortemente relacionados com animê, vídeo, games, computadores, ficção científica, filmes de efeitos especiais, figurinos de animê. (Azuma, 2009, p. 3) 9 Entrevista de Murakami Takashi, no Japanorama, disponível no site https://www.youtube.com/watch?v=5-qoRmeDd-8(acesso no dia 14.03.2014) 10 Entrevista com Nara Yoshitomo disponível no site https://www.youtube.com/watch?v=_t8gLVNhXAs 11 Iyasu é verbo no infinitivo e significa curar-se. Iyashi é o substantivo cuja semântica é a cura. A grafia dos nomes japoneses estão na forma original, em ordem de sobrenome e nome. Referências Bibliográficas ALLISON, Anne. Millennial Monsters: Japanese toys and the global imagination. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1006. 306 ______________. Cuteness as Japan’s Millennial Product. In TOBIN, Joseph (Ed.), Pikachu’s Global Adventure: the rise and fall of Pokemon. Durham: Duke University Press, 2004. (pp.34-49) ______________. The Cool Brand, Affective activim and Japanese youth. In Theory, Culture and Society. Los Angeles, London, New Delhi e Singapore: Sage Publications, 2009. Vol. 26 (2-3): 89-1 ______________. “J-brand: What image of youth is getting sold in Japan’s “gross national cool”?”. Berkeley: University of California, 2007. CRUZ, Amada, MATSUI, Midori e FRIIS-HANSEN, Dana. Takashi Murakami: the meaning of the nonsense of the meaning. New York: Center for Curatorial Studies Museum, Harry N. Abrams, 1999. HARDT, Michael. Affective Labor. 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Annablume), pesquisa a arte japonesa e suas circulações e transferências em diferentes localidades. 307 CIRCULAÇÃO DA ARTE COLONIAL NO BRASIL E NAS FILIPINAS: UMA ABORDAGEM PARA UMA ANÁLISE COMPARATIVA Jens Baumgarten - UNIFESP Resumo: Nesta palestra gostaria de analisar as relações entre o Brasil colonial e as Filipinas coloniais em diferentes patamares de compreensão conectando os sistemas Pacífico e Atlântico que, por sua vez, devem ser inseridos nas suas tradições ibéricas com as suas condições culturais e estruturais. Isso permite analisar os processos de encontros complexos em uma abordagem transcultural. Estas questões são relacionadas também ao discurso sobre a experiência sensorial e a sua percepção emocional. Apresentarei casos de diferentes lugares do mundo ibérico, que demonstram a relação entre a percepção corporal, sobretudo os sentidos olfatório e “kinestesia”, no Brasil e nas Filipinas. A conexão é constituída através da experiência corporal e o seu impacto nas emoções do indivíduo. O Colonialismo era profundamente “material”, os diferentes centros foram conectados mutuamente via um intercâmbio contínuo que engloba todas as formas diferentes de objetos. Isso coincide com a maior consideração de “embodiments” (corporalizações), enquanto buscando identificar uma nova relação entre corpo, aparato de percepção e prática cultural. Outras questões devem ser relacionadas à circulação de esculturas e a sua função no Brasil e nas Filipinas. A compreensão das relações de encontros “barrocos” e “neobarrocos” pode ser utilizado de uma forma válida para uma história da arte que permite outros regimes de percepção de sociedades não ocidentais a serem considerados. Palavras-chave: Anacronismo, arte colonial, marfim, Brasil, Filipinas. Abstract: In this paper I would like to analyse the relations of colonial Brazil and the Philippines on different levels of understanding connected by the Pacific and Atlantic systems that should be understood in their Iberian tradition with similar cultural structural conditions. I will shed light on the processes of complex encounters in a transcultural approach. These questions are related also to the discourse about the sensual experience and the emotional perception. Firstly, I shall discuss cases from different places of the Iberian world, which present the relationship between bodily perception, especially for the olfactory and the kinesthesia senses, in Brazil and the Philippines. The connection is constituted by the bodily experience and its impact on the emotions of the individual. Colonialism was profoundly “material”, the different centres connected to one another via a continuous exchange that encompassed all forms of objects. This goes hand in hand with giving greater consideration to “embodiments” when seeking to identify a new relationship between body, perceptual apparatus and cultural practice. Keywords: Anachronism, colonial art, ivory, Brazil, Philippines. Nesta palestra gostaria de analisar as relações entre o Brasil colonial e as Filipinas coloniais em diferentes patamares de compreensão conectando os sistemas Pacífico e Atlântico que, por sua vez, devem ser inseridos nas suas tradições ibéricas com as suas condições culturais e estruturais. Isso permite analisar os processos de encontros complexos em uma abordagem transcultural. 308 Estas questões são relacionadas também ao discurso sobre a experiência sensorial e a sua percepção emocional. Apresentarei casos de diferentes lugares do mundo ibérico, que demonstram a relação entre a percepção corporal, sobretudo os sentidos olfatório e “kinestesia”, no Brasil e nas Filipinas. A conexão é constituída através da experiência corporal e o seu impacto nas emoções do indivíduo. O Colonialismo era profundamente “material”, os diferentes centros foram conectados mutuamente via um intercâmbio contínuo que engloba todas as formas diferentes de objetos. Isso coincide com a maior consideração de “embodiments” (corporalizações), enquanto buscando identificar uma nova relação entre corpo, aparato de percepção e prática cultural. Outras questões devem ser relacionadas à circulação de esculturas e a sua função no Brasil e nas Filipinas. A compreensão das relações de encontros “barrocos” e “neobarrocos” pode ser utilizado de uma forma válida para uma história da arte que permite outros regimes de percepção de sociedades não ocidentais a serem considerados. Com relação à coleção de entalhes de marfim asiático pode ser comprovado o fato de que as várias esculturas de marfim, importadas, sobretudo da Índia, foram em sua maioria produzidas por artistas não cristãos. Elas não representam todavia deuses hindus ou budistas, mas seguem a iconografia cristã com suas imagens de Cristo, da Virgem Maria e dos santos (BAILEY, 2002, p. 60). O acervo completo não foi até hoje analisado, nem quantitativa, nem qualitativamente. Isto vale tanto para as coleções em posse dos portugueses quanto para as respectivas variantes nos territórios espanhóis. Existem publicações individuais em catálogos por vezes suntuosos, as quais analisam os artefatos no esquema tradicional dos termos ‘exotismo’ e ‘hibridismo’, preocupadas sobretudo com a procedência de cada objeto (DEAN e LEIBSOHN, 2003, pp. 5-35).1 Como já fora afirmado anteriormente, a iconografia destas pequenas esculturas luso-indianas engloba as formas conhecidas de representação mariana e cristológica, assim como diversos santos pós-tridentinos. Nesta última categoria agrupam-se especialmente representações de São João Batista, o ‘santo de estado’ português Antônio de Pádua e os santos das ordens missionárias Francisco, Inácio e Francisco Xavier (v. TAVARES E TÁVORA, 1983; MAIA, 1987).2 309 Para a argumentação a seguir é significativo, sobretudo o acento na iconografia do Jesus Menino. Dentro da representação dos ciclos da vida de Cristo chama a atenção particularmente a quantidade de imagens relativas a seu nascimento e infância. Diferentemente da iconografia europeia, a qual mostra o Menino Jesus como criança a dormir ou ainda nos braços da Virgem Maria, tais imagens isolam a figura de seu contexto familiar, apresentando-o nu ou em vestimentas de cerimônia, ostentando instrumentos de tortura, o globo terrestre e em gesto de abençoar, ou ainda de pé sobre o globo terrestre. Estas representações manifestam paixão e domínio do mundo. Uma segunda tradição mostra Jesus como o Bom Pastor e também aqui, por oposição à tradição europeia, o Bom Pastor não é apresentado como Jesus jovem, mas como criança, sentado em um trono ou em tamanho maior que o natural sobre um monte populado por ovelhas. De olhos fechados, a cabeça, levemente inclinada para o lado, é sustentada por sua mão direita, o que ocorre aparentemente sem esforço do corpo. As pernas estão cruzadas abaixo dos joelhos. Evidente, e destacada pela literatura, é a semelhança da postura da figura de Cristo com Buda. Esta posição corresponde aquela da ‘yoga’ ou ‘lótus’. Neste sentido o status de criança – a divindade ainda não representada em sua plenitude – é equiparado com Sakyamuni, à etapa correspondente na vida de Buda (NAVARRO de PINTADO, 1985, pp. 76-77). A representação hindu-cristã reflete na postura da mão ao mesmo tempo a posição correspondente do Buda deitado. Esta posição das mãos pressupõe um desenvolvimento posterior, correspondente à paixão de Cristo, e o mostra no momento que antecede sua chegada ao Nirvana. Tais formas de hibridismo são típicas para pretensões missionárias, particularmente aquelas dos jesuítas nas regiões asiáticas, os quais para fins de conversão de determinados grupos na Índia e na China toleravam o emprego de correspondentes transferências estilísticas. Tal empenho era evidente também na postura individual dos missionários que adaptavam sua forma de comportamento aos ritos chineses e hindus, o que no entanto levou dentro da Igreja católica no século XVII ao chamado debate sobre os ritos (cp. HUONDER, 1921).3 A figura do bom pastor em especial remete à vida pacífica dos animais e a uma era de paz, estabelecida pelo Menino Jesus, 310 assinalando a renovação da humanidade através da assimilação dos ‘Novos Mundos’. No entanto, esta inter-relação de representação tem que ser colocada em um contexto luso-escatológico. A ideia do retorno de Cristo juntamente com concepções utópico-sociais e conciliatórias aparecem no campo da independência de Portugal do trono espanhol concluída em meados do século XVII (MUHANA, 2005, p. 282).4 Até os dias de hoje os artefatos asiáticos foram compreendidos no contexto do mercado global, cujas produções desenvolviam-se sobre o signo dos esforços típicos de assimilação e hibridização. A frequência particular destas figuras por exemplo no contexto brasileiro pode também ser um indicador, ainda que não exclusivo, de um ‘exotismo’ da forma e de uma apreciação do valioso e dos materiais de difícil aquisição no Brasil, tais como o marfim. As câmaras de tesouro das respectivas igrejas e ordens parecem igualmente atestar este fato e relacioná-lo aos tesouros medievais e aos gabinetes de curiosidade da Idade Moderna.5 Mas exatamente a citada referência do discurso político-teológico português com relação à independência do domínio espanhol no século XVII indica a popularidade de tais artefatos provenientes da Índia para a elite colonial-portuguesa. Que relação iconográfica existe entre o gesto de poder, a alegoria da paz e o discurso de dominação no Brasil? Antônio Vieira, jesuíta, político e autor, indaga em sua pregação sobre a epifania, realizada em 1662, por que razão o continente mais populoso, a América, não é levado em consideração na interpretação de Bedas da história natalina, na qual cada um dos três santos reis magos representa um continente. Juntamente com Bernardo Vieira, ele compara os três reis magos a três entre os reis portugueses: João, Manuel e João III (VIEIRA, 1662). Por fim o autor chega à conclusão de que João IV de Portugal deve ser compreendido como o quarto rei santo, ao qual é devida a primazia, uma vez que ele, na qualidade de último rei, faz referência ao retorno de Cristo à terra. Esta interpretação messiânico-escatológica foi representada também em seus escritos História do Futuro e ainda em Clavis prophetarum, no qual “Portugal resistente” é representado como último império perante o Juízo Final, dando a seu rei João IV uma função adequada dentro desta história de salvação. Neste sentido o “Novo Mundo” é equiparado em sua 311 concretização com a Nova Jerusalém em uma conexão espacial e temporal ao Apocalipse de São João. Vieira neste caso constata que o intercâmbio dos objetos transformou tanto o antigo quanto o novo mundo.6 É interessante observar que ao final de sua pregação Vieira fala de Cristo como o Bom Pastor (VIEIRA, 1662). Por conseguinte, esta iconografia de caráter especificamente luso-indiano tem que ser interpretada pelo menos não apenas como ‘exotismo’, uma vez que especialmente a fórmula específica entre a imagem do dominador e o Bom Pastor inscreve-se no discurso teológico-político das colônias de língua portuguesa na América. Neste contexto o discurso de representação português colonial, conectado a utopias escatológicas, não pode ser mais aprofundado, ainda que pareça evidente a ocorrência de uma inserção no discurso e na iconografia do Jesus Menino de aspectos problemáticos adicionais, tais como a questão da representação e do status da imagem sacra. Neste ponto, resta apenas resumir: as esculturas de marfim valem como objetos memoriais da grandeza pretérita de um império universal, estando ao mesmo tempo inseridas na justificação escatológica de dominação dos Bragança e na independência de Portugal da supremacia espanhola.7 No caso dos próximos exemplos apresentados, trata-se de esculturas de proveniência provavelmente chinesa, as quais se encontram na decoração externa do Mosteiro Franciscano de Santo Antônio na atual cidade de João Pessoa. Os artefatos asiáticos serão analisados no que se refere à questão de seu registro no contexto subsistente. Os artefatos com duas figuras integrantes de um grupo representam uma máscara e um leão. Também, neste exemplo, a pesquisa concentrou-se extensivamente na constatação afirmativa do hibridismo, fazendo menção aos aspectos ‘mestiçantes’ da cultura colonial brasileira de preferência a questionar os aspectos funcionais. Da mesma forma, resultam eventuais conclusões não tanto sobre a descrição nesta forma fenomenológica, mas sobre os distintos sistemas visuais e suas inter-relações. Paralelamente à sua ‘procedência estrangeira’, as esculturas posicionadas na entrada e na fachada, onde estão perfeitamente integradas, podem ser vistas como figuras apotropaicas, a exemplo daquelas encontradas nas igrejas medievais dos séculos XIII e XIV em Portugal.8 312 É preciso apontar aqui a interpretação de São Francisco na pintura do teto da ordem laica, a qual pode ser compreendida como “velho Elias” e “velho Inácio”, tanto no contexto da concorrência missionária com as outras Ordens, quanto no contexto missionário, no qual o santo franciscano representa o “verdadeiro profeta” perante a população indígena, propagando em sua representação visualizada ao mesmo tempo a própria adoração das imagens (v. BAUMGARTEN, 2008). Para o contexto aqui discutido deve ser mencionada a iconografia arcaizante por exemplo da Virgem Redentora e a igualmente arcaizante pintura de caixas com a iconografia de Santo Antonio na abside da igreja principal. Seria importante investigar também detalhadamente até que ponto a arquitetura está comprometida com o ideal português do século XIV. Que importância pode ser dada, portanto, a este regresso a uma tradição – à construção do passado? E, ademais, qual a relação deste processo com os artefatos chineses?9 No que se refere à primeira questão, Alexander Nagel e Christopher S. Wood apresentaram em seu artigo sobre a pintura renascentista veneziana um novo modelo denominado “anacronismo” (NAGEL e WOOD, 2005, pp. 403-415). No exemplo de Santo Agostinho de Carpaccio, os autores avaliam os diferentes artefatos ‘citados’ pelo pintor como características de momentos históricos distintos, os quais eles, por seu turno, interpretam como uma teoria performativa da origem dos artefatos, segundo a qual cada objeto seria produto de uma performance histórica singular. Toda repetição desta performance, por exemplo em forma de uma cópia, distancia-se da cena criada originalmente (NAGEL e WOOD, 2005, p. 404). No exemplo escolhido as diversas temporalidades foram encenadas e dramatizadas em um sistema de citações anacrônico. Na opinião de Nagel e Wood (2005), todos os artefatos teriam na era prémoderna uma historicidade dupla: é possível estar ciente do fato de terem sido realizados no presente ou no passado recente e ao mesmo tempo estimá-los erroneamente, como se tratasse-se aqui de objetos antigos. Tal procedimento não é interpretado por eles como ingenuidade. Ao contrário, os autores vêem nesta atitude antes um posicionamento ignorante por parte da pesquisa da história da arte com relação ao pensamento pré-modernista e dos primórdios da era moderna. Imagens e artefatos eram compreendidos como fenômeno ou símbolo de formatos. Formatos 313 estes que estavam, por sua vez, associados a origens místicas e reforçavam uma continuidade estrutural e categorial sobre uma sequência de símbolos. Classes de artefatos eram assim conectadas através de réplicas substituíveis, as quais estendiam-se tanto no tempo como no espaço. Sob este aspecto da “substituição” foram compreendidas as cópias modernas de ícones pintados como substitutos equivalentes efetivos de originais perdidos. As circunstâncias exatas de seu surgimento e o momento histórico não tiveram demasiada relevância com relação a sua importância e função e eram vistos menos como constituintes do que como acidentais. Ao contrário, os artefatos podem ser compreendidos como inscritos em uma corrente de réplicas diacrônica (NAGEL e WOOD, 2005, p. 405).10 Neste contexto o tempo não é percebido como corrente linear, uma vez que os artefatos configuram o tempo de forma diferente: neste sistema é possível entender o processo de colapso da distância temporal como uma das funções da arte (NAGEL e WOOD, 2005, p. 408). Em sua crítica à avaliação de Erwin Panofsky da experiência temporal ‘correta’ no Renascimento, eles fazem menção particularmente ao fato deste autor jamais ter explicado a relação entre distância cognitiva do passado – o critério por excelência para explicar um período histórico em seu todo – e o resultado estético da “arte renascentista”.11 Elizabeth Eisenstein fala, neste caso, de um “contexto espacial-temporal amorfo” (EISENSTEIN, 1979, pp. 181-225)12. Assim, Nagel e Wood não buscam diferenciar restritamente entre as concepções medieval e renascentista, mas vão muito além, caracterizando esta última como reaplicação do princípio medieval de substituição ante uma cultura emergente de performance artística (NAGEL e WOOD, 2005, p. 412). Eles compreendem o surgimento da obra de arte moderna como relação dialética entre os princípios substituinte e autoral. Como inovação vale, por conseguinte, a ‘falsificação de obras de arte’ na Renascença, podendo ela ser vista ainda como substituição desmascarada de uma única performance. Assim sendo, arcaísmos, primitivismo estético, tipologias, citações, falsificações e outras disfunções temporais podem ser avaliadas como conflito entre as teorias da procedência performativa e substitutiva. De acordo com Nagel e Wood tais aspectos estão definitivamente 314 inseridos em um modelo dinâmico e histórico no âmbito do qual ocorre uma interação permanente entre as duas teorias. Após essas explanações teóricas, pretendo extrapolar estas reflexões para o contexto colonial e também para a distância espacial. Sobretudo o significado da cópia, da apropriação e do modelo de substituição desempenham um papel bastante mais importante do que a autoria performativa, aspecto que vale tanto para as colônias americanas quanto para as asiáticas. Também nas Filipinas podemos encontrar exemplos dos leões (semelhante ao local em Recife) em frente às igrejas Augustinianas em Manila, Cebu e outros. Estas esculturas podem ser datadas do século XVII e XVIII. O contexto político destas esculturas é diferente e se refere à população chinesa e a sua relação tensa com a maioria tagalog (filipina) ou com a comunidade espanhola dominante. Neste âmbito, gostaria de mencionar dois eventos ou aspectos significativos. A maioria dos artistas na primeira fase da colonização pertenceram à comunidade chinesa. No século XVII, as relações se tornaram mais violentas e a maior parte dos membros chineses foram assassinados durante uma revolta dos Filipinos em Manila. O segundo exemplo se refere a uma discussão sobre “superstição” dos chineses. Esta discussão produziu um enorme volume de documentos nos arquivos. Devem ser mencionadas as leis específicas para a conversão dos chineses, ao contrário daquelas para os tagalog (filipinos). Mas para uma comparação é importante considerar que – como no Brasil – comunidades e grupos diferentes podem ser distinguidos no sistema colonial. Nas Filipinas podemos encontrar a porta decorada que se inscreve num outro contexto espacial ou temporal com seus caixotes e ornamentos Se apresentasse apenas um paralelo formal ou iconográfico das duas esculturas, seria insuficiente para compreender as condições de produção, circulação e apropriação destes artefatos – que produziriam um “falso cognato” (false friend), um termo que discutirei mais para frente, no final. 315 Consequências teóricas: Eduardo Viveiros de Castro Num passo final gostaria de incluir algumas reflexões de Eduardo Viveiro de Castro sobre a abordagem de uma antropologia de perspectiva e o seu método de uma equivocação controlada dentro dos conceitos de forma e como sistemas visuais diferentes foram estabelecidos e como seria possível compreender os processos de conflito e negociação em contextos sagrados de alteridade. Não é uma mera coincidência que, para Castro, o método básico da antropologia se constitui na comparação bem como os métodos fundamentais da história da arte estabelecidos por e desde Wölfflin. Porém, comparatibilidade não significa tradutibilidade – o que é indispensável para analisar as sobreposições e a constituição complexa de estabelecer sistemas visuais no contexto colonial no Brasil e nas Filipinas. Castro estabeleceu uma teoria perspectivista de uma personalidade transpacífica, que é unicultural e multinatural. Ele propõe a noção de “equívoco”. Isso se refere ao processo que envolve a tradução dos conceitos práticos e discursivos dos “nativos”. O trabalho básico da antropologia significa – e como quis demonstrar com meus exemplos, isso vale também para uma história da arte que trabalha com artefatos – que comparação está a serviço da tradução e não o oposto. […] perspectivismo projeta uma imagem de tradução como um processo controlado de equivocação – ‘controlado’ no sentido que pode ser dito, andar é uma forma controlada de cair. O perspectivismo indígena é uma teoria de equivocação, isto é, da alteridade referencial entre conceitos homonímicos. Equivocação aparece aqui como modo de comunicação de excelência entre posições perspectivas diferentes – e por causa disso significa a condição da possibilidade e o limite do trabalho antropológico. (CASTRO, 2004, p. 3) Eu gostaria de adicionar que estes diferentes aspectos constituem sistemas visuais e podem ser aproximados por uma descrição densa no sentido de Greenblat. Diferença é localizada na distinção corporal entre espécies, para o corpo e seus afetos é o local e os instrumentos de uma diferenciação ontológica e disjunção referencial. O problema do perspectivismo indígena, por isso, não é algo para descobrir o referente comum de duas representações diferentes. Perspectivismo supõe uma epistemologia constante e ontologias variáveis, a mesma representação de objetos distintos, um significado singular e vários referentes. (CASTRO, 2004, p. 4) 316 Neste sentido, Castro continua afirmando que “as diferenças cruciais entre a diversidade dos sujeitos [são localizados] no plano do corpo e não do espírito.” Os exemplos apresentados aqui demonstram o momento frágil de um equilíbrio entre aqueles perspectivismos no processo das negociações transculturais. Gostaria de terminar com a idéia do falso cognato – ou melhor mal entendimento criativo. Um equívoco não é apenas uma “falha de entender”, mas uma falha de entender que compreensões não são necessariamente as mesmas e não são relacionadas aos caminhos imaginários de “ver o mundo”, mas aos mundos reais que são vistos. Uma equivocação não é um erro de percepção. Ao contrário, é a fundação da relação que implica, e isso não é sempre a relação com a exterioridade. [,,,] Consequentemente, equivocações não pertencem ao mundo da contradição dialética, porque a sua síntese é disjuntivo e infinito. Uma equivocação é indissolúvel, ou mais recursivo: colocando como um objeto determina uma outra equivocação ‘para cima’, e assim continuando ad infinitum. (CASTRO, 2004, p. 9) A última parte desta apresentação, que significa mais uma perspectiva para pesquisa no futuro, é dedicada a entender as diferenças e similaridades da reapropriação da herança colonial e sua importância para o discurso nacional bem como para a cultura pós-moderna de entretenimento. Também aqui é possível observar efeitos de resposta nas duas direções entre Filipinas e Brasil que nunca foram incluídas na análise. Para o contexto Filipino é importante analisar a construção da peregrinação e adoração do chamado “Santo Niño” (Menino Jesus), que pode ser encontrado na Basílica de Cebu, perto do lugar onde o primeiro navegador europeu, Magalhães (um português a serviço da coroa espanhola) chegou ao arquipélago e, mais tarde, foi assassinado em 1521. A circulação de imagens, as “cópias autênticas” foram importantes para o desenvolvimento da fé católica nas Filipinas e foram, na maior parte, analisadas por antropólogos. O desenvolvimento em ambos os territórios coloniais é relacionado em um sistema de redes complexo de circulações de artefatos e idéias via os oceanos Pacífico e Atlântico. 317 Como prospectiva para a esfera neobarroca gostaria de mostrar a transferência e tradução de uma encenação mulitsensorial no contexto brasileiro e filipino. A teatralização da peregrinação e da festa do Niño Jesus (menino Jesus ou Santo Niño) seguem o modelo do carnaval da TV Globo e transformá-lo também em um símbolo nacional. Como no carnaval Brasileiro representado nos carros alegóricos, por exemplo, no Rio de Janeiro e em São Paulo nos desfiles nos Sambódromos, a encenação em Manila aparece ainda menos padronizada. Final Portanto é necessário compreender tanto a distância temporal quanto a espacial sob o aspecto das estratégias de apropriação no princípio de substituição, no qual a diferença temporal e local não pode ser percebida como conectada de modo linear. Expressando de forma apaziguadora: a imitação da “idade média” portuguesa, como os leões chineses, são ambas estranhas ou pelo menos a ser compreendidas também em seu encadeamento como tipologias, isto é, o aspecto alienígena temporal e espacial é encenado e não avaliado como exotismo autoral.13 Os artefatos asiáticos podem ser compreendidos em um contexto no qual as estruturas missionárias e de dominação permanecem invisivelmente presentes, suas condições ideológicas não sendo questionadas, aflorando compactas. No caso da contextualização dos artefatos viajantes aqui apresentada é impossível tratar-se de um momento subversivo na cultura colonial ou mesmo de um contradiscurso. Porém a afirmação de que as imagens estejam inseridas em um discurso no qual a própria perspectiva europeia de significado e produção de imagens é demonstrada, contribuindo assim para a reflexão do colonialismo do ponto de vista histórico da pintura, pode ser extrapolada. Se compreendermos os discursos visuais, textuais e performativos como constituição de sistemas visuais distintos, especialmente na incorporação dos objetos asiáticos no discurso sul-americano, pode-se falar com relação aos exemplos apresentados de uma expansão e abertura das possibilidades de percepção do outro. Certamente, isto não significa a negação da primazia europeia missionária e escravagista. Exemplar para a relação da 318 relevância não necessariamente monocausal da cor da pele no contexto da escravatura é um dos sermões do padre Antonio Vieira. É preciso dizer, no entanto, que com tal afirmação ele não questiona nem o sistema hierárquico social baseado no direito romano, nem busca uma depreciação da cor de pele negra em si, mas sim a conexão direta e pseudocientífica da cor da pele com o discurso racista (cf. SCHWARTZ, 1988; LARA, 1988). Certamente, os entalhes em marfim poderiam ser antes interpretados no contexto dos gabinetes de curiosidades ou de exotismo. Porém tal exotismo não adere simplesmente à representação cortês de uma imagem idealizada da China. Os artefatos asiáticos são postos em cena de forma tão alóctone quanto aqueles da Idade Média europeia e precisam ser compreendidos como criadores de tradição no sentido mais amplo de “nation building” de Benedict Anderson (1983).14 Desta forma nivelam-se tradições europeias e não europeias. Formas iconográficas e estilisticamente ‘mistas’ não são, portanto, simples hibridizações, pois isto implicitamente pressuporia formas básicas essencializadas, concebidas dicotomicamente. Elas precisam ser compreendidas antes como tensão de sistemas visuais distintos na concepção do Atlas de Imagens Mnemosine, de Aby Warburg (v. DIDI-HUBERMANN, 2000; 2002). A análise dos artefatos asiáticos selecionados nos contextos coloniais não se deixa enquadrar em um modelo simplificado, nem de original e recepção e tampouco de sincretismo e hibridez, manifestando problemas bastante específicos em cada uma de suas localizações. Aqui desempenham um papel significativo ainda a materialidade, o contexto local e, paralelamente às qualidades comunicativas, também as qualidades visuais dos artefatos (v. FARAGO, 1995).15 Assim, elas ilustram não apenas um puro exotismo, colocando em cena exatamente a diferença representativa e abrindo o campo de discurso tanto no plano visual quanto material: a encenação do alóctone como componente da sociedade e cultura colonial experiência sua confirmação. Isto significa antes uma abertura do espaço a ser negociado, o qual em princípio conhece sua fixação jurística (elite, libertos, escravos), porém possibilita processos de apropriação, aproximação e negociação principalmente sobre os sistemas visuais paralelos. Isto se evidencia, igualmente, na absorção paralela da iconografia ‘medieval’. 319 Para terminar gostaria de retornar à questão inicial: Quais podem ser os critérios para uma comparação da arte colonial que nem segue o “olhar do colonizador” e nem cai no arbitrário. Qual é o discurso teórico de abordagens diferentes para compreender arte colonial no contexto de uma – mais geral – história global da arte. Penso que uma análise comparativa via conceitos de imagem, política corporal, encenações de diferenças locais e temporais, re-apropriações poderiam ajudar a descrever sistemas visuais diferentes em uma abordagem (perspectivista) – na qual a imagem e o artefato servem melhor para uma comparação que para uma tradução. Notas 1 Básico com relação à questão do hibridismo na arte da América Latina a partir do exemplo das colônias espanholas. 2 Para comparar v. ainda exemplos da colônia espanhola nas Filipinas (ESTELLA, 1970, pp. 151-179; GALENDE, 2001, pp. 583-601). 3 Com relação às atividades dos jesuítas, v. Scholz-Hänsel (2002, pp. 237-252) e ainda Bailey (1999). Um exemplo adicional é representado pela expansão da pintura ilusionística (cf. CORSI, 2004). 4 V. neste contexto ainda as pregações de Ardizone Spinola em Goa “Dezempenho de Christo Nosso Senhor no Nascimento da Magestade d’El-Rey de Portugal Dom Juam IV”, datadas de 1650. 5 Mais recentemente acerca dos tesouros da Idade Média, Lucas Burkart (2005, pp. 1-26). Com relação ao gabinete de curiosidades e ao instituído ato de colecionar, Barbara Marx e Karl-Siegbert Rehberg (2006); Robert John Weston Evans (2006) e Aufsatz von Horst Bredekamp (2007, pp. 121-135). 6 Vieira, Sermão de Epifanias (1662): “Desapareceu a terra antiga, porque a terra dali por diante já não era a que tinha sido, senão outra muito maior, muito mais estendida e dilatada em novas costas, em novos cabos, em novas ilhas, em novas regiões, em novas gentes, em novos animais, em novas plantas. Da mesma maneira o céu também começou a ser outro”. 7 Aqui deve ser lembrada a independência em 1640 e a perda de quase todas as possessões asiática, com exceção de Goa e Macau até 1700. 8 Cite-se aqui exemplarmente Pedro Dias (1994). 9 Em comparação à recepção da Idade Média nos séculos XVI e XVII, Cp. Johannes Zahlten (1986, pp. 80-104) e Meinrad von Engelberg (2005). 10 Aqui eles se referem às teses de Richard Krautheimers sobre a iconografia da arquitetura medieval. 11 Isto relaciona-se sobretudo às publicações de Panofsky sobre a Renascença: Erwin Panofsky (1960, p. 38; 1944, pp. 201-236). 12 Especialmente com relação às teses de Panofsky. 13 Especialmente a relatividade de perspectivas torna-se evidente, a qual é descrita também pelo antropólogo brasileiro Eduardo de Castro em sua investigação sobre o confronto dos missionários com o povo indígena, sobretudo o capítulo “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena” (CASTRO, 2002, pp. 345-400). Este fato incita a continuar a pensar acerca de um enfoque integrante de um modelo espacial multidimensional. Isto teria que funcionar como uma metateoria, sob a qual os diversos teoremas adicionais teriam que ser organizados de forma dinâmica e polivalente. 14 Phoebe Scott, “Mimesis to Mockery: Chinoiserie Ornament in the Social Space of Eighteenth-Century France”, in: www.arts.usyd.edu.au/publications/philament/issue5_Critique_Scott.htm (Status: 10.4.2008). De modo geral, Benedict Anderson (1983). O recurso aos mitos de fundação encontra-se por exemplo também em Florença da Idade Moderna (BALDASSARI, 2007, pp. 29-56). 15 Uma das primeiras tentativas globais encontra-se na antologia sobre a reavaliação da Renascença como fenômeno internacional, incluindo ainda o colonialismo da Idade Moderna (FARAGO, 1995). 320 Referências Bibliográficas ANDERSON, B. Imagined communities: reflections on the origins and spread of nationalism. Londres, Verso Ed., 1983. BAILEY, G. Art on the Jesuit missions in Asia and Latin America. 1542-1773. Toronto, University of Toronto Press, 1999. _________. 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Jens Baumgarten Professor adjunto de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, possui graduação em História Geral pela Universidade de Hamburgo (1990), Mestrado (1996) e Doutorado em História da Arte pela Universidade de Hamburgo (2002). Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Arte, Arte, Barroco, História moderna e transferência cultural. 322 CINEMA, ESPAÇO E INTERMIDIALIDADE EM EM BUSCA DA VIDA DE JIA ZHANG-KE Cecília Mello - Unifesp RESUMO: Esta comunicação é dedicada a uma análise do filme Em busca da vida (Jд Z, 2006) do diretor chinês Jia Zhang-ke, sob o ponto de vista de sua relação intermidiática com a pintura chinesa. Gostaria de sugerir que as escolhas estilísticas que guiaram a interação com a paisagem urbana efêmera empreendida por Jia Zhang-ke nesse filme revelam uma afinidade com qualidades estéticas oriundas das tradições da pintura chinesa de paisagem em rolo. Essa hipótese leva a uma reflexão acerca da noção de espaço no cinema sob a luz de revisões teóricas que sugerem um entendimento do espaço fílmico através da ideia de movimento e de toque. Ao mesmo tempo, esta análise enseja uma reflexão acerca da natureza estética e política do problema da intermidialidade, que traz uma dimensão histórica à perspectiva contemporânea tão central ao cinema de Jia Zhangke. Palavras-chave: Cinema chinês; intermidialidade; pintura em rolo; espaço cinematográfico; Jia Zhang-ke. ABSTRACT: This paper is dedicated to an analysis of Chinese director Jia Zhang-ke’s film Still Life (, 2006) from the point of view of its intermedial relationship with Chinese landscape and scroll painting. As I will suggest, Jia’s discovery of a real landscape and a vanishing cityscape in this film shares many aesthetic qualities with the shanshuiand scroll painting traditions. This leads to reflection on cinema’s spatial organization in light of current revisions in theory, which suggest that filmic space and its spectatorial experience should be considered above all from the point of view of touch and movement. It also allows for a broader understanding of Jia Zhang-ke’s oeuvre, for while it springs from an original aesthetic response to a new social conjuncture it equally brings, through intermediality, a historical dimension to a contemporary perspective. Keywords: chinese cinema; intermediality; scroll painting; cinematic space; Jia Zhang-ke. Esta comunicação é dedicada a uma análise do filme Em busca da vida (JÐ ´Z, 2006) do diretor chinês Jia Zhang-ke, sob o ponto de vista de sua relação intermidiática com a pintura chinesa. Gostaria de sugerir que as escolhas estilísticas que guiaram a interação com a paisagem urbana efêmera empreendida por Jia Zhang-ke nesse filme revelam uma afinidade com qualidades estéticas oriundas das tradições da pintura chinesa de paisagem e em rolo. Essa hipótese, relacionada a uma noção de espaço fílmico que emerge sob a luz das revisões na teoria do cinema a partir dos anos 1980, enseja uma reflexão acerca da natureza estética e política do problema da intermidialidade, tão central ao cinema de Jia Zhang-ke. 323 Primeiramente, introduzirei a obra do diretor e sua importância no panorama do cinema contemporâneo, com destaque para seu filme Em busca da vida. Em seguida tecerei alguns comentários acerca da relação intermidiática entre o cinema e a pintura, vista aqui através do prisma da revisão teórica que rechaça a ideia do espaço no cinema como herdeiro da perspectiva renascentista. Para concluir, destacarei os principais pontos de contato entre Em busca da vida e a tradição da pintura chinesa em rolo, tais como a perspectiva multifocal, o uso do trackingshot ou travelling e a noção de “espaço vazio”. O cinema itinerante de Jia Zhang-ke Oriundo da cidade de Fenyang, na província de Shanxi, República Popular da China, Jia Zhang-ke realizou 18 filmes entre 1994 e 2013, entre curtas e longasmetragens, em um primeiro momento atuando na clandestinidade dentro de seu país, com financiamento externo, e a parir de 2004 com o aval do governo chinês. Jia é considerado o maior expoente da “sexta geração” do cinema chinês, também conhecida como a “geração urbana” por seu enfoque na vida e na paisagem das cidades de seu país. Como tentarei evidenciar, sua obra procura responder à nova conjuntura histórico-social da China através de uma estética original, que nasce do problema da intermidialidade aliado a um impulso realista. Isso significa que, por um lado, seu cinema se define pela crença de cunho baziniano na vocação da arte cinematográfica pelo realismo, o que transforma sua câmera em uma fonte de poder. Por outro lado, esse enlace com o real ocorre também através de recursos estéticos encontrados em outras tradições artísticas chinesas, tais como a pintura e a arquitetura. Assim, a “intermidialidade” – que aponta para o entrecruzamento do cinema com as outras artes – e o “realismo” – normalmente associado à sua especificidade – se misturam no cinema de Jia Zhang-ke. Essa mistura, que cria suas próprias regras, afina-se a um regime estético das artes, nos termos de Jacques Rancière (2001; 2009a; 2009b), e deriva sua força da criação de um dissenso, que reúne os impulsos realista e autoral dessa intermidialidade crítica em um impulso político, produto da interação entre a História e a Poesia. Em busca da vida, vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cinema de 324 Veneza em 2006, foi inteiramente filmado em locação na região das Três Gargantas, situada em Chongqing, centro da China. A ação transcorre em uma paisagem urbana em processo de franco desaparecimento, sob o pano de fundo de uma paisagem natural carregada de significados simbólicos. FengJie, localizada às margens do rio Yangtze, é uma cidade de mais de 2000 anos que está prestes a ser submersa pela construção da represa das Três Gargantas. Será para lá que um homem e uma mulher da província de Shanxi irão viajar em busca de seus cônjuges, de quem estão separados há alguns anos. Ao chegarem, encontram uma cidade que está sendo demolida, em parte para a reciclagem de material de construção e em parte para tornar a represa navegável. Suas buscas ocorrem então em um espaço repleto de prédios desabados, muros esburacados e pilhas de entulho. A escolha da locação de Em busca da vida não se deu por acaso. Ao situar essas duas histórias em FengJie, Jia Zhang-ke deixou evidente seu desejo de lançar um olhar para uma paisagem urbana em desaparecimento de modo a observar e refletir sobre a atmosfera de transformação intensa que domina a região das Três Gargantas, assim como grande parte de seu país desde os anos 1980. Tais mudanças dramáticas são consequência da chamada Era das Reformas de Deng Xiaoping (GaigeKaifang, 1978-1992), que levou a China em direção à economia de mercado. Sob a liderança de Deng, que sucedeu a década traumática da Revolução Cultural (1966-1976), o país passou gradualmente a cultivar melhores relações com o resto do mundo e a abrir sua economia para o investimento externo. Internamente, a China reverteu a coletivização da agricultura, privatizou grande parte da indústria e permitiu o aparecimento de negócios privados. Os efeitos das reformas econômicas foram sentidos com intensidade nos espaços urbanos do país, que desde então vem passando por grandes transformações espaciais tais como a demolição extensiva de habitações tradicionais e antigas comunidades para a construção de novas avenidas, pontes, viadutos, prédios,estações de metrô e grandes shopping centres. A obra de Jia Zhang-ke, conforme afirma o próprio diretor em diversas entrevistas nos últimos anos (ver por exemplo BERRY, 2009; FIANT, 2009; JIA, 2009), é movida por um desejo de filmar o desaparecimento, de registrar e preservar – através da ontologia da imagem cinematográfica – uma paisagem urbana efêmera. Jia parece muito consciente da dimensão espacial da memória, geralmente 325 ofuscada por sua dimensão temporal, e de como um espaço em desaparecimento acarreta inevitavelmente uma perda de memória. Daí Jia deriva uma urgência em filmar esses espaços e essas memórias, urgência esta que vem atrelada, de modo aparentemente contraditório, a um estilo lento, que se empenha em observar cuidadosamente aquilo que está prestes a se transformar. Conforme mencionado anteriormente, a razão por trás do desaparecimento da paisagem urbana histórica de FengJie é a construção da Usina Hidrelétrica das Três Gargantas no Rio Yangtze. Uma das maiores obras da engenharia moderna, a represa e usina das Três Gargantas foi primeiramente proposta pelo fundador da República chinesa Sun Yat-Sen, e mais tarde, nos anos 1950, prospectada por Mao Zedong. A construção finalmente começou em 1994 e foi completada em 2012, inundando mais de 600 quilômetros quadrados de terra – incluindo monumentos arqueológicos e históricos – e deslocando mais de 1 milhão de pessoas. Por trás da grandeza do projeto estava uma das paisagens mais icônicas da China, formada pelas três gargantas do rio Yangtze. A primeira das três, e também a mais estreita e bonita, é chamada Qutang. Sua harmoniosa combinação de montanhas, canyons e a água verde do rio Yangtze lhe renderam até mesmo um lugar na nota de 10 Yuan, como pode ser observado em uma das cenas mais notáveis de Em busca da vida, na qual o personagem Sanming observa a paisagem da nota diante da paisagem real. Mas a importância e centralidade dessa paisagem para a memória cultural e coletiva chinesa se deve também à sua presença recorrente em poemas e pinturas clássicas das dinastias Tang, Song e Yuan. Hoje essa paisagem, além de tantos outros sítios históricos que ficavam às margens do rio, foi literalmente apagada pela construção da represa. A importância da iconicidade das Três Gargantas na China também guarda uma relação com seus principais elementos constituintes, ou seja, a Montanha e a Água. Como é sabido, a expressão em língua chinesa “montanha-água” quer dizer, por meio de uma sinédoque, “paisagem”. A pintura de paisagem é então conhecida como “pintura de montanha e água”, ou em chinês shanshuihua (ÌĹŞ). Conforme explica François Cheng, as montanhas e a água correspondem para o pensamento chinês aos dois polos da Natureza, que por sua vez correspondem, de acordo com a tradição confucionista, aos dois polos da sensibilidade humana, o coração 326 (montanha) e o espírito (a água). Daí é possível inferir que pintar uma paisagem é também pintar um retrato do espírito humano. A montanha e a água são, portanto, mais do que termos de comparação ou metáforas, já que encarnam as leis fundamentais do universo macrocósmico e suas relações orgânicas com o microcosmo do Homem (CHENG, 1991, pp. 92-93). Jia Zhang-ke esteve pela primeira vez em FengJieem 2005 para filmar um documentário sobre o pintor contemporâneo Liu Xiaodong intitulado Dong, que se tornou uma espécie de filme-par para Em busca da vida. Ao chegar à cidade, muito se impressionou com a potência icônica da paisagem natural e com a aparência caótica da paisagem urbana: “Chegar a FengJie de barco é como fazer uma viagem ao passado da China. A paisagem que inspirou tantos poemas e pinturas parece realmente emergir da dinastia Tang. Mas assim que o barco chega ao porto você é jogado de volta em um presente extremamente caótico” (JIA, 2008, p. 7). Não há dúvidas de que a paisagem funcionou como uma fonte de inspiração para a sofisticada superimposição de temporalidades operada por Jia em Em busca da vida. FengJie e a represa hidrelétrica, a concretização de um sonho tanto republicano quanto comunista, são afinal um reflexo e um sintoma da nova China que emergiu das cinzas da Revolução Cultural. Ao mesmo tempo, a região das Três Gargantas pertence à herança cultural da civilização chinesa, encapsulando assim não apenas os sonhos e aspirações do século XX e XXI como também dois mil anos de história da arte chinesa. Cinema, pintura, espaço A aproximação que venho tentando estabelecer entre cinema e pintura através das possíveis afinidades entre as escolhas estéticas de Jia Zhang-ke e a pintura de paisagem em rolo chinesa está em consonância com um entendimento do espaço cinematográfico a partir de uma passagem de modelo teórico dentro do campo do cinema e do audiovisual. Essa passagem significou, grosso modo, a revisão de uma série de conceitos de inspiração estruturalista, pós-estruturalista e psicanalítica que haviam guiado em grande medida a reflexão teórica sobre o cinema a partir da década de 1960. 327 Como é sabido, a teoria do dispositivo cinematográfico (BAUDRY, 1986) e o entendimento da espectatorialidade como análoga à regressão à fase do espelho Lacaniana (METZ, 1982), propostos a partir do final dos anos 1960 pela crítica de influência estruturalista, semiótica e psicanalítica, passaram por diversas revisões desde o início dos anos 1990. Em The Cinematic Body (1993), Steven Shaviro criticou radicalmente este modelo e trouxe à tona os elementos ativos e corpóreos da experiência cinematográfica. Shaviro inspirou-se, entre outros, na obra de Gilles Deleuze, que em Mille Plateaux: CapitalismeetSchizophrénie 2 (1980), com Félix Guattari, e em seu estudo sobre o pintor Francis Bacon (1981), pôs em evidência a função tátil ligada à visão. Desde então uma série de outros estudos no campo da teoria do cinema vem privilegiando a qualidade tátil do olhar, dentre os quais se destacam as noções de ‘embodied spectator’ (espectador corporificado) de Vivian Sobchack (2004) e de ‘hapticvisuality’ (visualidade háptica) de Laura U. Marks (2000). Esta função tátil recebe o nome de háptica, palavra de origem grega que designa a ciência do tato, empregada pela primeira vez no campo da estética pelo historiador austríaco Alois Riegl, curador do setor de arte têxtil do Museu de Arte e Indústria de Viena entre 1887 e 1897. Conforme observa Giuliana Bruno (2007, p. 247), Riegl se referiu à experiência háptica como um estágio inferior na evolução da percepção moderna em direção ao ótico. Foi Walter Benjamin quem subverteu essa evolução de háptico para ótico proposta por Riegl, sugerindo ao contrário que a percepção moderna seria acima de tudo uma experiência háptica, tátil. E foi além ao fazer a ligação expressa entre essa percepção moderna háptica e o cinema, em seu famoso estudo de 1935 “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”: O elemento de distração no filme é também essencialmente tátil, baseado em mudanças de lugar e de foco que periodicamente assediam o espectador. Comparemos a tela do cinema à tela da pintura. A pintura convida o espectador à contemplação; diante dela, o espectador pode se abandonar às suas associações. Ante à tela do cinema ele não pode fazê-lo. Assim que seus olhos captam uma cena ela já se alterou (1999, p. 231). No âmbito desta análise, interessa ressaltar de que modo a ênfase na natureza háptica da experiência cinematográfica pôs em xeque abordagens acerca do espaço no cinema tais como a de Pascal Bonitzer (1985), Jean-Louis Comolli (1971-72) e Stephen Heath (1976), afinadas à tradição teórica de inspiração 328 semiótico-psicanalítica e que enxergavam a superfície plana do filme como uma tela comparável à tridimensionalidade ilusória da pintura (BONITZER, 1985). Como explica Philip Rosen, Comolli e Heath “advogaram a dominação da perspectiva renascentista na tecnologia da imagem”, conectando essa persistência “ao apelo de uma posição ‘centralizada’ do sujeito, cuja construção geométrica em perspectiva eles entediam através de certos tipos de materialismo histórico e da psicanálise” (ROSEN, 2001, p. 14). A ideia da perspectiva era então ligada, para Comolli e Heath, a um “ideal visual epistemológico capaz de manifestar um padrão de conhecimento visual confiável e a imaginação de um sujeito estável, incorporados ao cinema mesmo que a composição em perspectiva esteja integrada a outros elementos do espaço fílmico, tais como o movimento” (ROSEN, 2001, p. 14). Ainda para Heath, a narrativa seria o elemento que asseguraria um posicionamento coerente ao espectador habituado ao ponto de visto estático da perspectiva renascentista, garantindo a coerência espacial a despeito da mobilidade inerente ao cinema. O processo de revisão teórica que abarcou uma reapreciação da noção de espaço cinematográfico incluiu, entre outras, a proposição de David Bordwell (1985) por um entendimento cognitivo da perspectiva e a rejeição de Jonathan Crary (1990) da existência em um filme de uma fonte de conhecimento única e objetiva. Mais central ainda é a obra da professora italiana baseada nos Estados Unidos Giuliana Bruno, talvez a mais original e inspiradora no campo teórico das relações entre cinema e espaço. Em seu monumental Atlas of Emotion (2007), Bruno elabora a qualidade sensorial da experiência cinematográfica identificada por Gilles Deleuze, que assinalou nos anos 1980 uma passagem do modelo espectatorial de ótico para háptico, contribuindo assim para um distanciamento da noção de representação na teoria do cinema (1985). Em seu Atlas, Bruno sugere que o cinema é uma arte espacial, parente da arquitetura, e transforma o(a) espectador(a) de voyeur em voyageur. Assim, segue a tendência recente de não mais enxergar o cinema como herdeiro direto da perspectiva Renascentista, e de considerar a apreciação do espaço fílmico a partir da experiência tátil e do movimento. Diante desse deslocamento de modelo teórico, pode-se afirmar que o cinema, ao invés de transportar a(o) espectador(a) de volta à fase do espelho da primeira infância, proporciona uma viagem emotiva através de espaços múltiplos (Bruno aqui 329 aproxima as palavras motion-movimento e e-motion-emoção). Evocando a conhecida frase de Michel De Certeau, “toda narrativa é uma narrativa de viagem – uma prática espacial” (2007), ela sugere ser o filme “a história de viagem por excelência. Narrativas fílmicas geradas por um lugar, e com frequência rodadas em locação, nos transportam para esse lugar” (1997, p. 46). Para Bruno, assistir a um filme é uma “forma imaginária de flânerie” (2007, p. 17). Por fim, ela chama também chama a atenção para o parentesco do cinema com a cidade ao escrever que por ser “um ‘affair’ urbano, produzido pela era da metrópole, o filme desvenda o trânsito metropolitano, e sua velocidade incessante” (1997, p. 46). Shanshuihuae Em busca da vida: conexões intermidiáticas Mas o que ocorre com a relação entre o cinema e a tradicional pintura em rolo chinesa, que de certo modo empreendia uma representação móvel e multifocal do espaço muito antes do aparecimento da imagem em movimento? Conforme explicam Linda C. Ehrlich e David Desser (1994), as artes pictóricas asiáticas não se apoiam de qualquer modo significativo na noção de perspectiva renascentista, e não guardam qualquer relação com o chamado horror vacui (o medo do espaço vazio) também característico da arte renascentista. Estaria assim a organização espacial da pintura chinesa de um modo geral mais próxima da organização espacial empreendida pelo cinema e outras manifestações audiovisuais? E de que modo esta análise estética é relevante para um entendimento mais profundo da obra de Jia Zhang-ke? As conexões intermidiáticas entre o cinema e a tradição de pintura chinesa em rolo já vêm sendo estudadas em relação à obra de alguns mestres do cinema asiático tais como o diretor japonês Kenji Mizoguchi e o taiwanês HouHsia-hsien. O termo “plano-rolo”, por exemplo, foi cunhado pelo teórico franco-americano NoëlBurch (1979/2004) para descrever justamente os planos-sequência em movimento lateral empregados por Mizoguchi em uma série de filmes, e que, de acordo com o próprio diretor, procuravam emular a experiência móvel de observação de uma pintura japonesa tradicional (e-makimono). Como explica Lúcia Nagib, “tomando como base a ideia do descentramento e da auto-reflexividade inatos à arte 330 japonesa, Burch (muitas vezes em consonância com Tadao Sato) compara a estrutura do plano-sequência de Mizoguchi com a do e-makimono (pintura em rolo japonesa), que se desenvolve de forma a mostrar as personagens de cima para baixo, ligeiramente fora de centro e numa ação contínua” (1990, p. 11). Burch via nessa opção estética do diretor um distanciamento em relação à decupagem clássica característica do cinema narrativo americano, já que o plano-sequência em movimento lateral dispensava a decomposição espacial em planos e sua junção em continuidade na montagem. Mizoguchi poderia ser visto, então, como um diretor moderno antes mesmo do cinema moderno ter emergido como conceito e tendência na Europa e nos Estados Unidos dos anos 1940, o que colocaria em questão o próprio binarismo clássico X moderno tão perpetuado nos estudos do cinema. Aqui, minha intenção é levar essas conexões em consideração para examinar a especificidade do realismo estético de Jia Zhang-ke em Em busca da vida. Creio que o foco nessa instância específica de intermidialidade permite trazer uma dimensão histórica para um filme tão firmemente localizado na China contemporânea, a China das grandes obras públicas e das transformações intensas. Ademais, enseja um tipo de investigação que abre mão da perspectiva cartográfica em prol de uma abordagem geológica, para sugerir que por trás das conexões transnacionais e cinéfilas que informam o cinema de Jia Zhang-ke há um olhar aguçado e uma recuperação consciente de traços estéticos da história da arte chinesa, revelando assim de que modo Jia Zhang-ke integra forma e conteúdo e confere força política ao seu cinema. Que relações então poderiam haver entre a pintura de paisagem em rolo e a prática espacial em Em busca da vida? O primeiro aspecto está relacionado à questão da perspectiva, que por sua vez está relacionada à revisão do entendimento do espaço cinematográfico explicada anteriormente. Conforme observa François Cheng, a perspectiva na pintura chinesa tradicional é, antes de mais nada, uma organização mental dos elementos representados, através da qual tudo se transforma em uma questão de balanço e contraste: Diferentemente da perspectiva linear que pressupõe um ponto de vista privilegiado e um ponto de fuga, a perspectiva chinesa é de fato uma perspectiva dupla. O pintor, em geral, deve estar posicionado em um ponto de vista vantajoso de onde pode observar a paisagem como um todo; mas ao mesmo tempo ele parece se mover através da pintura, abraçando o ritmo 331 de um espaço dinâmico ao mesmo tempo em que contempla a paisagem de longe, de perto e através de diferentes ângulos. [...] Mais do que um objeto a ser observado, a paisagem é para ser vivida. (1991, p. 101) Se a pintura tradicional chinesa convida o olhar do pintor e do espectador a adotar diferentes pontos de vista, seu tipo de organização especial parece bem mais afinado à experiência cinematográfica do que o ponto de fuga e a ilusão tridimensional da pintura renascentista ocidental. Em Em busca da vida, Jia parece sempre buscar uma organização especial em múltipla perspectiva similar à encontrada nas pinturas tradicionais chinesas ao empregar uma decupagem que com frequência alterna o ponto de vista do voyeur, inspecionando um espaço a partir de um ponto de vista vantajoso, com um ponto de vista à altura de uma pessoa, com a câmera parecendo estar na altura de um ombro. Eu diria mesmo que todo o filme emprega uma alternância de pontos de vista que se torna uma das chaves para sua prática espacial sofisticada. Figura 1 e 2: Alternância entre voyeur e voyageur em Em busca da vida de Jia Zhang-ke (2006) Ao mesmo tempo, a noção de múltipla perspectiva também se impõe no filme através do uso prolífico do trackingshot ou travelling, ou ainda “plano-rolo” nos termos de Burch, frequentemente associado ao plano-sequência baziniano que se tornou uma das marcas do cinema de Jia. Como explica o próprio diretor, “o rio, as 332 montanhas e a neblina são elementos fundamentais da pintura chinesa. Foi por essa razão que optei pelo trackingshot, que evoca o desenrolar de uma pintura chinesa, que se abre aos poucos” (JIA, 2008, p. 15). Assim, o uso dos planos-rolo funciona como um terceiro elemento, ao lado dos planos gerais de paisagem e dos planos à altura do ombro, para a descoberta da paisagem natural e urbana da região das Três Gargantas. Combinados, os três recursos estéticos servem a uma investigação da relação entre a figura humana e seu ambiente, trazendo à tona a superimposição de temporalidades que define a cidade de FengJie e em última análise toda a China contemporânea. Assim é que os principais personagens do filme, Sanming e Shen, são vistos contemplando um espaço, atravessando um espaço e ao mesmo tempo sendo eles próprios “atravessados” pelo olhar da câmera. Essa combinação de planos e movimentos de câmera também traz à tona a presença aparentemente eterna de uma paisagem natural em contraposição à velocidade da mudança promovida pela força humana, reforçando deste modo essas duas forças opostas em uma espécie de lamento cinematográfico pela perda da lentidão e da história. Isso porque, como aponta Fabienne Costa, Em busca da vida demonstra de que modo a construção da Represa das Três Gargantas teria impactado ou violentado não apenas a vida dos habitantes da região como também a noção ancestral chinesa de paisagem ou shanshui (COSTA, 2007, p. 46). O desaparecimento de cidades e sítios históricos, portanto, parece também sugerir o desaparecimento de uma memória cultural e coletiva conectada a essa paisagem. 333 Figura 3, 4 e 5: O “plano-rolo” em Em busca da vida de Jia Zhang-ke (2006) A relação intermidiática entre o filme e a pintura chinesa também pode ser investigada a partir da noção de “espaço vazio”, tão central ao sistema de pensamento chinês quanto o “Yin-Yang” (CHENG, 1991, p. 45). Na pintura chinesa, o “espaço vazio” significa áreas da composição visual que existem entre os principais elementos da pintura, ou seja, a montanha e a água. François Cheng nota que em algumas pinturas das dinastias Song e Yuan o “espaço vazio” chegava até mesmo a ocupar dois terços do espaço pictórico. Mas apesar do nome, o “espaço vazio” não pode ser considerado inerte, já que na verdade ele é ocupado por “sopros” que conectam o mundo visível ao mundo invisível. Isso significa que uma nuvem, por exemplo, deve ser vista como um elemento que opera uma conexão entre a montanha e a água, ocupando grande parte da pintura. O “espaço vazio” é assim essencial para evitar uma oposição rígida entre esses elementos, que se comunicam e por fim se transformam um no outro, em uma encarnação das leis dinâmicas do real dentro da tradição do pensamento chinês (CHENG, 1991, p. 47). Mas de que forma o “espaço vazio” da pintura chinesa se manifesta no cinema, e mais especificamente em Em busca da vida? Em uma espécie de 334 tradução intersemiótica, o “espaço vazio” parece subsistir no estilo narrativo “lento”, “atrasado” ou “demorado” do filme. Esse estilo “demorado”, nos termos de Laura Mulvey (2006), acaba por abrir um espaço para momentos vazios em que nada parece acontecer. Esse é de fato um filme que toma tempo, seguro de que sempre algo acontece quando nada parece acontecer. Assim, em Em busca da vida o que poderia ser visto como “pausas narrativas” servem na realidade para abrir um espaço aos personagens Sanming e Shenpara que tenham tempo de pensar e sentir. Esses “momentos vazios” também permitem ao espectador uma atitude mais reflexiva, diferente da adotada diante de uma narrativa mais rígida de causa e efeito. Para concluir esse breve apanhado das possíveis conexões intermidiáticas entre a pintura tradicional chinesa e o filme de Jia Zhang-ke, gostaria então de sugerir que, apesar de sua estética original ser uma resposta a uma nova conjuntura social chinesa ela também parece nascer do problema da intermidialidade, que traz uma dimensão histórica à perspectiva contemporânea. Assim, apesar de concordar com diversos críticos e teóricos que insistem na relação entre o cinema de Jia Zhang-ke e as monumentais transformações da China contemporânea derivadas do processo de urbanização e globalização, creio não ser possível negligenciar o modo como seus filmes se relacionam com tradições artísticas que remontam a um passado milenar. No caso de Em busca da vida, penso ser justamente a combinação de forma e conteúdo através de recursos estéticos da pintura tradicional chinesa que permite a Jia Zhang-ke uma reflexão não apenas sobre a contemporaneidade como também sobre o passado artístico e cultural de seu país. Assim é que o diretor conhecido como “o poeta da globalização” é também um “historiador” da transformação da China contemporânea (BERRY, 2008), e a combinação desses dois vetores, motivados por um olhar ao mesmo tempo contemporâneo e retrospectivo, faz emergir a atualidade e a força política de seu cinema, que parece funcionar como um diagnóstico dos nossos tempos. Referências Bibliográficas BAUDRY, Jean-Louis. “Ideological Effects of the Basic Cinematographic Apparatus”; “The Apparatus: Metapsychological Approaches to the Impression of Reality in Cinema”. In: ROSEN, Philip (Org.).Narrative, Apparatus, Ideology – A Film Theory Reader.Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 286-318. 335 BENJAMIN, Walter.Illuminations. Londres: Pimlico, 1999. BERRY, Chris. “Still Life”, Still Life DVD. London: BFI, 2008, p. 3-6. BERRY, Michael. JiaZhangke’s ‘Hometown Trilogy’. London: BFI, 2009. BONITZER, Pascal. PeintureetCinéma, Décadrages. Paris: Editions de l’étoile, 1985. BORDWELL, David. 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O eixo da discussão são as leituras de obras de ficção japonesas ou ocidentais com temática japonesa, sob a ótica da catástrofe nuclear. Essas leituras contrapõem-se a visões da tradição cultural japonesa, em que o corpo é erotizado, como no teatro Nô e Kabuki e no Ukiyoe. Investiga-se se a visão do corpo japonês foi apropriada por uma ideologia que difunde a imagem do corpo sagrado/fechado, decorrente do pensamento budista, resultando no ícone doentio emergente das cinzas atômicas, leitura preferencial de críticos de estudos culturais no Ocidente sobre as obras nipônicas ou que reportem ao Japão. Palavras-chave: escrita, corpo, bomba atômica. ABSTRACT: This paper investigates and analyzes literary and filmic representations of the body in Japanese's postwar literature and cinema. More specifically, it analyzes the relationship between body and writing, a settled theme in Japanese culture, which parallels with the concept of nature and culture duality. The discussion point here is informed by Japanese and western Japanese-themed fiction focusing on nuclear catastrophe. These readings oppose traditional cultural visions of an eroticized body, as in Noh and Kabuki Theater and in Ukiyoe. I question if a concept of Japanese body has been appropriated to reflect an ideology which spreads the image of a sacred/closed body as a Buddhist corollary. It possibly results in the sick imagery of an icon emerging from atomic ashes that composes a mainstream western reading by cultural studies on Nipponese or related literature. Keywords: writing, body, atomic bomb. As imagens divulgadas sobre o holocausto nuclear da Segunda Guerra Mundial, na grande imprensa, durante muito tempo, mostravam o cogumelo atômico, as bombas, as cidades e os monumentos destruídos em Hiroshima e Nagasaki. Pouquíssimas mostram os corpos das vítimas, a não ser nos periódicos mais sensacionalistas. De acordo com as estatísticas oficiais, 70 mil pessoas morreram imediatamente durante os bombardeios em Hiroshima e 40 mil em Nagasaki. Milhares ficaram doentes e calcula-se que no total, as duas explosões nucleares tenham feito 200 mil vítimas. Muitas delas ficaram incapacitadas e doentes por causa da radiação nuclear. Um terceiro grupo, testemunhas das explosões, mesmo não tendo adoecido, foi atingido por outro tipo de doença – a estigmatização social. 338 Para os japoneses, durante muito tempo, as palavras “bomba atômica”, “Hiroshima” e “Nagasaki” tornaram-se um tabu. As pessoas suspeitas de terem sofrido a radiação eram isoladas. Temia-se que, através de casamentos, pudessem contagiar os corpos sãos. Apenas na ficção, O cinema e a literatura denunciam, de forma alegórica ou realista, o silêncio que envolveu os marcados pelas cinzas nucleares. Neste trabalho, analiso quatro obras: os filmes Contos da lua vaga (Ugetsu monogatari), de Kenji Mizoguchi, Hiroshima meu amor (Hiroshima mon amour), de Alain Resnais, Kwaidan – As quatro faces do medo (Kwaidan), de Masaki Kobayashi, e Chuva negra (Kuroi ame), de Shohei Imamura. A que explora o tema em abordagem mais realista é o filme de Shohei Imamura, adaptação de obra homônima, de Masuji Ibuse. O autor baseou-se em diários e testemunhos para construir o romance, transformando-os nos diários de dois personagens: Yasuko, a protagonista, e seu tio, Shigematsu Shizuma. A opção pela forma do diário aproxima o leitor da narrativa, como se vê na descrição de Yasuko sobre a chuva ácida que caiu do céu radioativo de Hiroshima: A fumaça subia bem alto no céu, espalhando-se à medida que ascendia. Lembrei-me de uma foto que vi retratando tanques de petróleo se incendiando em Cingapura. Fora tirada logo após a ocupação da cidade pelas tropas japonesas; uma cena medonha, a ponto de me fazer questionar sobre a pertinência de ações daquele tipo. A fumaça elevava-se cada vez mais, atravessando as nuvens que pairavam horizontalmente, imensa, assemelhando-se a um monstro na forma de guarda-chuva (Ibuse, 2011, p. 23). Yasuko será estigmatizada como vítima da radiação e não se casará. Mais tarde, sofrerá na carne os efeitos da radioatividade, que atingirá sua pele e da qual tentará se livrar, em vão. Me dei conta de que estava cheia de algo parecido com lama respingada sobre mim. Minha blusa branca de mangas curtas também estava suja e apenas nesses locais manchados o tecido foi danificado. Percebi, ao ver-me no espelho, que tinha manchas da mesma cor por todo o corpo, exceto na parte escondida pelo capuz antiaéreo. Encarava-me no espelho quando me lembrei de que no momento em que subimos no barco clandestino, orientadas pelo senhor Nojima, já caía uma pancada de chuva negra. Creio que era por volta das dez da manhã. Nuvens negras se aproximavam, vindas da direção da cidade, com barulho de trovoada, e a chuva que delas caía parecia varas da grossura de caneta tinteiro. Apesar de ser pleno verão, fazia um frio de arrepiar. A chuva logo cessou. Era como se eu estivesse tendo uma alucinação. Imaginei que a pancada de chuva começara a cair 339 quando ainda estávamos dentro do caminhão. (...) Lavei as mãos na fonte, mas por mais que as esfregasse com sabão a sujeira não saía. Colava-se à pele. Não entendia a razão (ibidem). ! Figura 1: Chuva negra. A imagem dos resíduos atômicos da chuva ácida caindo no rosto de Yasuko, no filme de Imamura, resgata a associação entre escrita e pele. As inscrições da radiação permanecem na pele das vítimas como marcas visíveis da violência nuclear. As manchas funcionam como signos legíveis da radiação, determinando a exclusão social. Temerosos da estigmatização, os tios de Yasuko ficam em dúvida se transcrevem tais informações de seu diário. Em vários registros históricos da humanidade, o ritual de marcar a pele confirma um ato de exclusão social. Nos campos de concentração nazistas, os 340 judeus são tatuados com números, como se fossem animais de outras espécies. A marcação no corpo tem dupla função, uma desumanizadora, para que o corpo marcado perca a sua identidade, tornando-se invisível. A outra, em viés oposto, faz que a identidade seja agregada a um grupo. Nesse sentido, a tatuagem decorativa é uma forma de distinção social, uma visibilidade. Em relação à pele, o escritor Tanizaki já diz em “Em louvor da sombra”, que “a compleição japonesa, não importa quão branca seja, é tingida por delicada nebulosidade”. A bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki iniciou um novo fenômeno de inscrição, testando a capacidade do corpo humano de sustentar a força de cauterização da radiação atômica: ”seguindo a retórica de Tanizaki do corpo como uma superfície fantástica, irradiação atômica pode ser vista como criação de um tipo de fotografia violenta diretamente na superfície do corpo humano”. (LIPPIT, 2005, p.109) Fora do Japão, a primeira tentativa de se falar sobre as marcas sociais deixadas pelas cinzas radioativas foi Hiroshima meu amor. As cenas iniciais do filme alternam imagens sobre os horrores da bomba atômica em Hiroshima: corpos espalhados a esmo numa enfermaria, closes em deformações físicas, como consequência da radiação, exposição de fotos da hecatombe no museu que guarda o passado. E cenas de amor entre um casal, identificado apenas pelos nomes de suas cidades: a atriz francesa Nevers e o arquiteto japonês Hiroshima. O amor entre eles mistura cinzas e fluidos, uma fusão imagética que pretende estender um gesto de compaixão do Ocidente ao Japão. Todo o diálogo entre o casal é um embate sobre o tema da visão, da memória e da veracidade do testemunho. Nevers afirma que por ter visitado o Memorial da Paz de Hiroshima “viu” todo o sofrimento das vítimas. O arquiteto, que sofreu na carne a tragédia, rebate que ela não poderia ter visto nada em Hiroshima. A atriz, porém, tem uma tragédia individual sofrida durante a Segunda Guerra. Muito jovem, apaixonou-se por um jovem soldado alemão e foi isolada em sua cidade pela sua liberdade de amar. Teve seus cabelos cortados e ficou deprimida. Hiroshima, porém, argumenta sempre que ela nunca conheceu a dor das vítimas da cidade japonesa. O arquiteto apenas rebate suas falas, sem argumentar com um discurso lógico. A 341 suposição é que para Nevers, tanto ela como as vítimas civis da radiação nuclear foram estigmatizadas por estarem do lado inimigo na guerra. Mas, para Hiroshima, o drama individual não se compara ao coletivo. Embora a dor psicológica seja semelhante, as marcas físicas e sociais se inscreveram na pele dos hibakushas (sobreviventes da bomba atômica). Mas ambos carregam as marcas do deslocamento, de ter estado em outro lugar durante o momento da catástrofe. O breve relacionamento pode ser um sintoma de seus desconfortos, a inabilidade de ficar no lugar a que pertencem. Figura 2: Hiroshima meu amor. Não apenas obras realistas descrevem as angústias sofridas pelos que são marcados com as inscrições da chuva ácida Lippit (2005) vê inscrições da catástrofe 342 nuclear em dois diferentes filmes do pós-guerra: Contos da lua vaga, de Mizoguchi e Kwaidan – As quatro faces do medo, de Kobayashi. Ambos contêm cenas que podem ser lidas como alegorias da aniquilação atômica. O filme de Mizoguchi é uma adaptação de Contos da chuva e da lua, de Ueda Akinari, coletânea publicada pela primeira vez em 1776. No conto adaptado A Volúpia da serpente, o camponês Genjuro é seduzido por um demônio, que toma a forma de uma mulher, Wakasa. O demônio gradualmente suga a energia de Genjuro, ameaçando levá-lo à morte. Seduzido pela fantasia, ele abandona a família. Um sacerdote local percebe o estado do camponês. Vendo a sombra do fantasma em sua aura, propõe salvá-lo inscrevendo em seu corpo orações em sânscrito. De acordo com as crenças budistas, o texto sagrado protegerá o camponês dos ataques do fantasma. 343 Figura 3: Contos da lua vaga. Quando Genjuro e Wakasa voltam a se encontrar, a proteção surte efeito. Ele anuncia a intenção de ir embora e ela tenta persuadi-lo a ficar. Mas, quando tenta tocá-lo, recolhe-se em dor, queimada pelo calor do corpo do homem. São separados pela superfície da pele de Genjuro, sua carne fresca: A pele do camponês se torna mancha, rematerializada com a inscrição do sacerdote. A palavra escrita intervém como uma espécie de tela. Se Wakasa for entendida como uma metáfora da aniquilação atômica, o corpo marcado de Genjuro neutraliza a força atômica com a cauterização das feridas. Apenas quando assume a superfície da pele manchada, o camponês recupera a humanidade (LIPPIT, 2005, p.114, tradução nossa). Wakasa retira-se para as sombras, incapaz de superar a dívida que a pele marcada de Genjuro impõe. Visto dessa forma, o filme recodifica a estigmatização das vítimas da bomba atômica. Expor as marcas da violência, em vez de escondê-las, como Yasuko, faz com que o “monstro” se retraia. Seja o monstro manifestação interiorizada na psique das vítimas, seja personificado em Godzilla (Gojira, 1954), de Ishihiro Honda, a fantasmalização coletiva do terror nuclear. Já no filme Kwaidan, de Kobayashi, também adaptado de uma obra literária (uma compilação de narrativas fantásticas da literatura clássica japonesa em tradução em inglês de Lafcadio Hearn, publicada em 1904), o encontro entre fantasma e carne é similar, mediado pela escrita com tinta líquida. Não por acaso, nas cenas iniciais de Hoichi sem orelhas, manchas de tinta negra escorrem na tela. Sumi, o nanquim usado no pincel de caligrafia japonês, ou sangue coagulado? A cena antecipa a descrição da batalha de Dan-no-ura, auge de Contos de Heike (Heike monogatari). Nesse estreito acontece a batalha em que os Taira são derrotados pelos Minamoto. Muito séculos depois, a esse sítio histórico chega o monge cego Hoichi. Famoso pela habilidade musical com o alaúde (biwa), sua recitação da batalha de Dan-no-ura acaba atraindo os fantasmas. Como percebe Lippit, envolvido pelas ondas e pelas lágrimas, Hoichi aproxima-se dos espíritos dos guerreiros mortos que lhe pedem para recitar a estória da batalha. Como não consegue ver seus anfitriões, 344 acredita estar num palácio. Durante vários dias, interpreta a récita. No mosteiro, os sinais de cansaço começam a aparecer na face de Hoichi. Um dos noviços o segue em suas incursões noturnas e descobre que está tocando diante do túmulo dos Taira. O sacerdote, então, prescreve a medicina budista. O corpo nu de Hoichi será pintado com escrituras do Sutra do Coração a fim de protegê-lo dos fantasmas. Figura 4: Mimi nashi Hoichi, em Kwaidan. Durante a visita do fantasma, Hoichi estará invisível. Mas não de todo: suas orelhas estão vulneráveis. Tendo esquecido de cobrir as orelhas de Hoichi com as orações, os sacerdotes o deixaram exposto ao toque do fantasma. As orelhas são tudo o que o fantasma pode ver. E as arranca do corpo. O sem-visão Hoichi é também privado de suas orelhas. E a dupla privação no corpo do músico pode ser 345 interpretada como marcas da guerra: “A cegueira [...] também pode ser alegoricamente um efeito do flash atômico, a segunda violência com as orelhas de Hoichi nas mãos do fantasma reinscreve a memória da guerra no corpo de Hoichi" (LIPPIT, 2005, p.118). A imagem da desfiguração pode ser vista no exemplo real das “Donzelas de Hiroshima”. Em 1955, um grupo de 25 mulheres voou para os Estado Unidos para serem submetida a cirurgias plásticas gratuitas. O calor da radiação nuclear tinha deformado seus corpos, unindo seus dedos das mãos, transformados em garras. Ficaram 1,5 anos em terras americanas. Era uma experiência inédita para os americanos. Eles haviam sido poupados das imagens de Hiroshima. Jornais, revistas, televisão não veiculavam os efeitos da bomba nas pessoas. Nem todas as cirurgias foram um sucesso. Numa delas, uma donzela morreu. Suas companheiras levaram suas cinzas para o Japão no retorno. Ver e não tocar, em A volúpia da serpente. Ver e tocar uma pequena parte do corpo, em Hoichi. Em ambos os filmes, o gesto de escrever no corpo funciona como mecanismo para prevenir o contato destrutivo que ameaça absorver as vítimas em outro mundo, imaginário. Contaminadas pela semente radioativa, a princípio são intocáveis. Em outro momento, poucos não exporão suas marcas e continuarão levados pelos fantasmas da guerra. Contos da lua vaga, Hiroshima meu amor e Kwaidan só se referem às marcas deixadas na pele pela hecatombe nuclear de forma poética. Apenas depois de 1969, Ibuse rompe o silêncio, ficcionalizando os depoimentos dos sobreviventes. A linguagem poética das obras anteriores mostra como a alegoria funciona para romper, gradualmente, os tabus sociais. Essa linguagem liberta a voz de indivíduos que carregam as marcas do sofrimento, não apenas físico e psicológico, mas também o da exclusão social. A história oficial sonega a narrativa dos indivíduos que, por pertencerem ao lado dos que sofrem as perdas, têm sua voz enfraquecida ou silenciada. Confrontam-se as imagens de marcas na pele de pessoas queimadas pela bomba com a do cogumelo atômico. Essa, incessantemente exibida, causa o esquecimento e esterilização dos fatos. A narrativa dos dramas individuais em Chuva negra e Hiroshima meu amor dimensiona a catástrofe a uma escala humana. 346 A ficção antecipa o regaste da dor desses indivíduos, construindo uma visão histórica mais ampla. O reconhecimento faz que o passado seja reescrito e reinscrito na história, passando a ter uma memória, uma narrativa, que, ainda trágica para os tempos pós-modernos, aponta para uma cicatriz inesquecível: o rompimento, pelo irracionalismo, da fronteira entre o humano e não humano, a vida e a morte. A exposição da cicatriz das vítimas promove o processo da cura da ferida simbólica, evitando a repetição do trauma coletivo. Assim, tanto a representação alegórica como a realista abrem caminho para a memória apaziguada, uma representação social solidificada de um relato histórico, resgatando a convivência entre presente e passado. O passado reelaborado é uma reconciliação com o presente. Referências Filmes CHUVA negra. Direção: Shohei Imamura. Produção: Hisao Iino. Roteiro: Shohei Imamura e Toshirô Ishido, baseado em livro de Masuji Ibuse. Intérpretes: Yoshiko Tanaka, Kazuo Kitamura, Etsuko Ichihara, Shoichi Ozawa, Norihei Miki, Keisuke Ishida, Hisako Hara, Masato Yamada, Tamaki Sawa, Akiji Kobayashi. 1989. 1 DVD (123 min.) son., color, 35 mm. Título original – ǡǔ, Kuroi ame. CONTOS da lua vaga. Direção: Kenji Mizoguchi. Produção: Masaichi Nagata. Roteiro: Yoshikata Yoda. Intérpretes: Masayuki Mori, Machiko Kyô, Kinuyo Tanaka, Eitarô Ozawa, Ikio Sawamura, Mitsuko Mito, Kikue Môri. 1953. 1 DVD (94 min.) son., color, 35 mm. Título original: ǔĚŔƫ – Ugetsu monogatari. HIROSHIMA meu amor. Direção: Alain Resnais. Produção: Samy Halfon e Anatole Dauman. Roteiro: Marguerite Duras. Intérpretes: Bernard Fresson, Eiji Okada, Emmanuelle Riva. 1959. 1 DVD (94 min.) son., color, 35 mm. Título original: Hiroshima mon amour. KWAIDAN – As quatro faces do medo. Direção: Masaki Kobayashi. Roteiro: Yoko Mizuki. Intérpretes: Nakamura Katsuo, Tanba Tetsuro, Shimura Takashi (Hoichi, the Earless). 1964. 1 DVD (183 min.) son, color, 35 mm. Título original: ùƭ– Kwaidan. Livros AKINARI, Ueda. Contos da chuva e da lua. São Paulo: Centro de estudos japoneses (USP), 1996. 150 p. (SEM ISBN). IBUSE, Masaji. Chuva negra (Kuroi ame). São Paulo: Estação Liberdade, 2011. 330 p. ISBN 978-85-7448-196-8. LIPPIT, AKIRA, Atomic Light (Shadow Optics). Minneapolis: University of Minnesota Press, 2005. 214 p. ISBN 978-0-8166-4610-4. Marilia Kubota Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná, em 1992. É mestre em Estudos Literários, com a dissertação “As narrativas japonesas de Valêncio Xavier – O mistério da prostituta japonesa & Mimi-nashiOichi”, defendida em 2012. Autora dos livros de poesia “Esperando as bárbaras” (2012) e “Diário da vertigem” (2014). 347 O COTIDIANO FAMILIAR EM SEGUINDO EM FRENTE Mari Sugai – UFPB e UnP Orientador: Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães 1 RESUMO: Este texto possui como objetivo realizar uma análise fílmica da obra cinematográfica de um dos diretores japoneses mais renomados dos tempos atuais, Hirokazu Kore-Eda, e seu projeto Seguindo em frente (Aruitemo aruitemo. 2008).Para a explanação do presente trabalho, analisaremos os temas estética visual e linguagem audiovisual; e a história, que na obra em questão, possui como tema narrativo central, o cotidiano e o encontro anual dos membros da família Yokoyama; além da semelhança dos pontos anteriormente mencionados com o trabalho de outro realizador japonês, Yasujiro Ozu, e seu longa-metragem Era uma vez em Tóquio (Tokyo monogatari. 1953). Palavras-Chave: cinematográfica. Cinema japonês, Hirokazu Kore-Eda, Análise fílmica, Narrativa ABSTRACT: This text aims to analyze the cinematographic work of one of the most renowned Japanese directors of modern times, Hirokazu Kore-Eda, and his project Still walking (Aruitemo Aruitemo. 2008).For the explanation of this work, we intend to analyze the themes visual aesthetics and audiovisual language; and the story that in the analyzed film has as central narrative theme the everyday life and the annual meeting of the Yokoyama family members, besides the similarity of the points mentioned before with the work of another Japanese director, Yasujiro Ozu, and his feature film Tokyo Story (Tokyo monogatari 1953). Keywords: Japanese cinema, Hirokazu Kore-Eda, film analysis, film narrative. 1. Introdução A cinematografia japonesa chegou ao Ocidente quando os filmes de Kenji Mizoguchi ( ō Œ l T 1898 - 1956) e Akira Kurosawa ( ǡ Ő đ 1910 - 1998) começaram a participar dos festivais de cinema europeu em 19502. Um grande evento com a exibição de películas japonesas ocorrido treze anos depois, patrocinado pela Cinemateca Francesa, levou para o conhecimento de seu público, filmes inéditos de outros realizadores, desta vez da Nouvelle vague japonesa3, apresentando diretores como Nagisa Oshima (°Óň 1932 - ~), Kiju Yoshida (‘śšLJ – 1933 - ~) e Shohei Imamura ([ġĐß1926 - 2006). As obras possuíam tratamento cinematográfico sem precedentes no Ocidente e histórias 348 totalmente estrangeiras aos costumes e hábitos da época. No final da década de 1960, as películas de Yasujiro Ozu (Çł¾TDŽ 1903 1963) são tardiamente “descobertas” pelo Ocidente. O estúdio responsável por seus filmes considerava seu cinema “muito japonês” e menos “exportável” do que os de Mizoguchi e Kurosawa, e por este motivo, não houve empenho em exibí-los anteriormente nas principais capitais do Ocidente. O estilo cinematográfico do realizador também não era bem aceito pelos próprios colegas, conforme afirma Silva: [...] Diferente de Kurosawa e Mizoguchi que são consagrados em festivais europeus nos anos 50, Ozu durante sua vida é conhecido praticamente só no Japão ou por um público vinculado à cultura japonesa, reconhecido como cineasta popular e clássico dentro do Japão desde 1932, gradualmente, após sua morte em 1963, é convertido fora do Japão em autor e uma alternativa ao cinema hollywoodiano, considerado como um “formalista rigoroso” (HASUMI, 1998, p. 116), um cineasta moderno, e diferentemente, dentro do Japão, foi criticado por cineastas da Nouvelle Vague japonesa como Nagisa Oshima e Shonei Imamura (NYGREN, 2007, p. 148), tido como um cineasta conservador, tanto do ponto de vista formal 4 como dos valores morais centrados na família. (SILVA , 2011, p. 8) Porém este panorama não é o encontrado atualmente, Quase cinquenta anos após sua morte, a situação hoje se inverte: é cada vez maior o culto ao cinema de Ozu fora do Japão, tanto no ocidente quanto em outros países orientais. Multiplica-se o número de livros publicados, de palestras proferidas e de mostras realizadas em todo o mundo em torno do cinema de Ozu. No entanto, o que mais nos encanta é que, para além das honrarias a esses encantadores filmes do passado, a obra de Ozu 5 permanece viva, pulsante, atual. [...] (IKEDA , 2012) E cujo “efeito Ozu”: [...] pode ser uma possibilidade de manter ainda um cinema narrativo, clássico, que não se dissolve nas experiências radicais dos cinemas novos dos anos 60, base para a proposta conciliatória do cinema pós-moderno que emerge com a crise da noção de vanguarda nos anos 70. (SILVA, 2011, p. 8) O reconhecimento no Ocidente de Ozu e outros profissionais, ‘abriram as portas’ para os atuais realizadores conterrâneos, entre eles, Hirokazu Kore-Eda (Ĕ ħ Ƥ — 1962 - ~), “um dos diretores japoneses mais reconhecidos internacionalmente [...]. Faz parte de uma geração de cineastas nascidos na década de sessenta e que estão obtendo repercussão dentro e fora do Japão” (MORENO6). 349 Após a graduação em Literatura, Kore-Eda ingressou na produtora audiovisual TV Man Union, como assistente de direção, e iniciou sua carreira com a produção de documentários para a televisão, temática presente em alguns de seus filmes ficcionais. Ele encontra-se ainda produzindo obras, e até o dado momento pudemos contabilizar dezesseis películas para cinema e TV (entre projetos ficcionais e documentários já realizados, e outros em fase de pré-produção7), sendo nove exclusivamente para cinema. Além de diretor, ele também ocupa as funções de roteirista, produtor e editor. 2. Desenvolvimento Seguindo em frente8 é uma obra ficcional. A respeito deste gênero, Rosenfeld afirma que: [...] A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação [...]. (ROSENFELD et al.,2011, p. 48) Além de fazerem parte em um gênero, os personagens da história são integrantes de um enredo, em que “toda narrativa cinematográfica possui uma trama lógica, é uma espécie de discurso” (GAUDREAULT; JOST, 2009, p. 26). Seguindo em frente apresenta como trama principal (que será detalhada a seguir) o cotidiano familiar, que se desenvolve sem grandes reviravoltas narrativas, pertencente a uma tendência do cinema contemporâneo asiático (semelhante ao iraniano, argentino, e alguns nacionais), que parece estar produzindo a criação de um contramodelo de Hollywood, conforme afirmam Baptista e Mascarello: [...] Os roteiros são tirados da vida, da deles ou de amigos. As histórias são principalmente urbanas. A câmera é móvel, muitas vezes no ombro. A impressão é de que as imagens são feitas ao vivo, que são roubadas. Esses filmes se tornam a concretização de uma urgência: a de filmar esses destinos, a de tomar a palavra em nome dos contemporâneos. Essa nova corrente não se inscreve no esteticismo [...], e sim em um cinema humanista e documental [...]. (BAPTISTA; MASCARELLO, 2008, p. 280) O filme trata da reunião anual da família Yokoyama para recordar a morte do 350 filho mais velho, Junpei, que ocorreu quinze anos atrás, quando este morreu afogado ao salvar um garoto em um rio. A obra se passa em uma cidade próxima de Tóquio, e durante o período de pouco mais de um dia é narrada a relação entre os membros da família, composta pelo patriarca (Kyohei), matriarca (Toshiko), filho Ryota (que pode ser considerado o protagonista da película) e filha, ambos na faixa dos quarenta anos, além de seus respectivos companheiros e filhos. A película não nos situa em qual época a história se passa, informa somente que acontece no verão. Devido a localização geográfica do país, concluímos que ocorre em um dia entre junho a agosto. Neste encontro, Ryota apresenta sua esposa aos demais membros da família, o que causa discórdia principalmente por parte de sua mãe, pois a nora é viúva e tem um filho do primeiro casamento. Outro ponto apresentado como atrito, é o fato de Ryota, restaurador de arte, não ter seguido a profissão do pai e estar desempregado. Kyohei, aposentado, exercia a profissão de médico, e Junpei (o filho morto), daria continuidade e herdaria seu consultório. Pais e filhos não se comunicam, porquanto existem velhos ressentimentos e, muitas vezes, o que não é dito, o interdito, o que fica subentendido, é mais importante do que aquilo que é verbalizado. Além da temática familiar, existem outros pontos em comum com a obra Era uma vez em Tóquio9, do realizador Ozu; que trata de um casal de idosos, Shukichi e Tomi, que viaja para visitar os filhos na referida cidade do título. Porém os próprios filhos não dispõem de tempo (ou não estão interessados) para dar atenção aos pais, ao contrário do acolhimento recebido pela nora, viúva do filho morto na Segunda Guerra Mundial. Este gênero encontrado nas duas obras possui um nome específico no cinema japonês: shomingeki, também conhecido como shoshimingeki, caracterizado pelos dramas mais realísticos sobre pessoas comuns, cidadãos trabalhadores da classe média. É possível notar outras semelhanças entre as obras, além da temática 351 narrativa: na obra de Ozu, o personagem filho é o médico, e não o pai; sobre as visitas, são os pais que viajam para encontrar os filhos; tanto em um longametragem quanto no outro, há morte de idosos; e presença do 'plano-tatame'. A respeito desta informação técnica presente na obra do diretor de Era uma vez em Tóquio, Nagib; Parente (1990) destacam a câmera baixa10, praticamente imóvel, uma lente objetiva de 50 mm11, e pouco uso de close-up12. O recurso do posicionamento angular em posição baixa, utilizado por Ozu a 40 ou 50 cm do chão, pode-se dizer que esta altura está no nível dos olhos de um japonês quando sentado sobre o tatame 13 . Existem inúmeras leituras feitas por estudiosos a respeito da posição deste enquadramento de Ozu. Sobre elas, Yoshida afirma que: Deve ter provocado boas gargalhadas no diretor a interpretação que muitos vinham fazendo de que a composição da câmera em posição baixa era derivada de um sentido estético peculiar aos japoneses e expressava uma perfeita harmonia com um espaço arquitetônico – o olhar que parte de uma pessoa sentada num tatame. Para ele, não passava de uma explicação óbvia que essas cenas se mostrassem como uma expressão tipicamente japonesa, e isso nada significava. Esse tipo de truísmo era veementemente refutado por ele. (YOSHIDA, 2003, p. 140) Ozu poderia considerar esta leitura óbvia, por estar inserido neste costume, diferente dos praticados no Ocidente. Para narrar o encontro da família Yokoyama, Kore-Eda utiliza recursos semelhantes aos de Ozu. Para equiparar, faremos comparação entre os frames de ambos os filmes. 352 Figura 1 - Composição de Ozu Fotograma de Era uma vez em Tóquio Figura 2 - Composição de Kore-eda Fotograma de Seguindo em frente Apesar do filme mais antigo ser preto e branco, e o outro colorido, ambas as imagens exibem situações semelhantes, a família reunida em um dos cômodos da casa; ângulo de câmera proveniente da sua posição baixa, e plano geral da ação em um típico “plano-tatame” de Ozu; as rígidas composições geométricas construídas pelas linhas verticais em primeiro plano; as retas inferiores do tatame no chão; linhas verticais formadas pelo fusumá14; e o teto. 353 É neste ambiente residencial ilustrado acima que ocorriam os “dramas familiares” nos filmes de Ozu, que geralmente focavam, e constituíam o centro temático resultante de um núcleo familiar em degradação (os filhos vão embora, ou os genitores morrem, e etc.). Este é o panorama similar encontrado em Seguindo em frente: a evidência dos integrantes da família Yokoyama em primeiro plano. Certamente este cotidiano presente nos filmes não é exclusividade da cinematografia japonesa, podendo ser notada desde o início do Cinema, com as produções dos irmãos Lumière, que tratavam do registro e exibição de fatos dos acontecimentos de seu dia a dia (saída de funcionários da fábrica, alimentação de um bebê, chegada de trem em uma estação e outros). Sobre o cotidiano do japonês, Ozu afirma que: A vida dos japoneses é absolutamente não cinematográfica. Por exemplo, ainda que seja para simplesmente adentrar uma casa, é preciso abrir a porta corrediça, sentar-se no vestíbulo, desamarrar os sapatos, e assim por diante. Não há como evitar estagnações. Por isso, o cinema japonês não tem outra saída senão retratar essa vida propensa à estagnação por meio de mudanças que a adaptem à linguagem cinematográfica. A vida no Japão precisa tornar-se muitíssimo mais cinematográfica. (apud YOSHIDA, 2003, p. 45) Segundo Rosenfeld (et al.,2011, p. 46): “[...] O próprio cotidiano, quando se torna tema da ficção, adquire outra relevância e condensa-se na situação-limite do tédio, da angústia e da náusea”. Calil15 (2010) complementa ao afirmar que Ozu só se interessava por pessoas normais, imperfeitas, gente comum do dia-a-dia, em meio às quais não há lugar para heróis, e que a vida ordinária dessas pessoas se desenrola em sucessivos "desacontecimentos", num cotidiano levemente dramatizado. Kore-Eda também parece ter predileção por histórias e personagens com este perfil. Em seus filmes podemos perceber os protagonistas, todavia não há antagonistas, podendo estes ser os fatos corriqueiros da própria vida. A avó Toshiko, de Seguindo em frente, oferece momentos de ternura para com alguns membros da família, porém revela-se rancorosa com um fato passado envolvendo seu esposo; e sua nova nora não é bem aceita, apesar da forma educada no tratamento, algumas frases denunciam sua insatisfação com o casamento de seu filho. O roteiro e a personagem Toshiko foram criadas baseadas nas próprias 354 experiências de seu realizador, conforme ele mesmo afirma: Escrevi o roteiro de Seguindo em frente depois da morte de minha mãe. Cerca de dois anos antes de sua morte, ela foi hospitalizada por causa de um aneurisma cerebral. Até aquele momento, usei o meu trabalho como desculpa, mas eu realmente a deixava sozinha e não cuidava dela. [...] Quando minha mãe estava doente e a visitei no hospital por dois anos, tomei notas das conversas que tivemos. Essas notas que tomei foram o ponto de partida para o roteiro. [...]. A família de Seguindo em frente é muito diferente da minha. Mas os sentimentos de pesar com os membros de sua família, de ficar sem tempo, são fortemente baseados na minha própria 16 vida”. (PAYNE , 2008) Segundo Silva, o cotidiano das famílias de Ozu e Kore-Eda é mostrado pelos cineastas através dos enquadramentos de câmera já mencionados anteriormente, e também pelos: [...] chamados “pillow shots” (BURCH, 1979, p.160) ou planos de tempos mortos em que os objetos e espaços não ocupam um sentido muito explícito no desenrolar da ação não funcionam tanto como contextualização da cena, nem são apenas momentos de suspensão, paisagens ou naturezas-mortas a serem contempladas, eles apontam para um olhar que não é nem dos personagens mergulhados em sua interioridade nem do narrador onisciente, mas de “um olhar objetal ausente, invisível e caótico” (YOSHIDA, 2003, p. 196), de um olhar qualquer sem que os objetos e espaços adquiram demasiada autonomia nem a câmera se coloque em cena criando algum tipo de metalinguagem. (SILVA, 2011, p. 6) O mesmo autor complementa ao mencionar que: [...] o vazio em Ozu não fala da ausência da presença humana, de uma falta angustiante, mas o espaço e objetos quase se tornam protagonistas como os personagens que passam pela tela. É apenas um momento de escape ou de descentramento de uma lógica que se cristalizou desde a perspectiva renascentista, centrada no olhar humano, mas sem se perder no informe, no inumano que tanto interessa às experiências das vanguardas. [...] Os personagens são mais pontos no quadro do que o seu centro. (SILVA, 2011, p. 5) Estes trechos “vazios” não tem como função principal servir de ligação para a próxima cena, como normalmente aconteceria e o público assim compreenderia, remetem, porém, a um significado mais relevante, até mesmo de um “personagem”, como afirma Silva na citação anterior. Ilustraremos com dois exemplos abaixo: 355 Figura 3 – “Plano morto” Fotograma de Era uma vez em Tóquio Figura 4 – “Plano morto” Fotograma de Seguindo em frente As narrativas audiovisuais são registradas/capturadas por enquadramentos de câmera quando personagens e acontecimentos estão presentes em determinados espaços e cenários, que, conforme afirmam Gaudreault; Jost (2009, p. 105): “O espaço é um dado incontrolável que não podemos desprezar quando se 356 trata de narrativa: a maioria das formas narrativas inscreve-se em um quadro espacial suscetível de acolher a ação vindoura [...]”. Os espaços que os personagens de ambos os filmes percorrem, são, em grande parte, os cômodos residenciais. Em Era uma vez em Tóquio, são mostrados o lar do casal de idosos; e em Tóquio, os visitantes transitam pela casa do filho, da filha, um SPA, e o apartamento da nora. Enquanto que nas sequências de Seguindo em frente, resumem-se aos ambientes interno da casa dos avôs. Apesar das espacialidades das duas películas possuírem como característica os pequenos e apertados espaços, são neles que Kore-Eda e Ozu conseguem extrair os “planos mortos”, conforme citado acima. Fica claro, portanto, que Kore-eda, mesmo pertencendo a uma geração distinta de Ozu, consegue manter a tradição tanto narrativa quanto estética em seu filme. Sobre a influência do falecido diretor em seus filmes, Kore-Eda comenta: 17 Quando fiz Maboroshi - A luz da ilusão , estava ciente de minha forma de expressão a partir do estilo de Ozu ao enquadrar certas cenas [...]. Mas Seguindo em frente foi tão pessoal que realmente deixei de lado qualquer consideração de técnica, estilo ou influência e trabalhei intuitivamente. A ideia principal da família em Seguindo em frente é similar a de Maboroshi A luz da ilusão, portanto seja talvez de onde venha a comparação com Ozu. 18 (TANAKA ) Kore-Eda fornece indícios de que em algumas sequências tenha sido, mesmo que inconsciente, influenciado por Ozu, seja na história, estética e/ou na linguagem. Em Seguindo em frente esta hipótese pode ser verificada não somente na temática do filme, mas também no que se refere aos enquadramentos utilizados. 3. Conclusão Ozu, apesar de ser considerado por seus colegas, críticos e estudiosos, “o mais japonês dos diretores de cinema” (o oposto de Kurosawa), possui pontos em comum com o trabalho desenvolvido por Kore-Eda, cineasta reconhecido por suas obras no Japão ou exterior. 357 Em Seguindo em frente, ainda que seu autor não admita, podemos encontrar, mesmo tendo sido realizado décadas depois, além da temática central análoga, similaridade com a estética e linguagens audiovisuais utilizadas em Era uma vez em Tóquio. Este se firma como o estilo que Kore-Eda desenvolve em seus projetos, apesar de sua participação em um dos episódios 19 de um seriado de terror 20 produzido para a televisão japonesa. É o tema cotidiano familiar que ele escolhe para narrar em suas obras cinematográficas; além de contar com elenco infantil para interpretar os protagonistas de alguns de seus filmes, como na realização de três das nove películas realizadas por ele para a tela grande: Ninguém pode saber21, O que eu mais desejo22, e Pais e filhos23. Certamente nem todos os seus colegas seguem este estilo/estética/ linguagem/narrativa. Existem os que exploram outros gêneros cinematográficos, dentre eles: o diretor de filmes de terror, Takashi Shimizu (jd Ô 1972 - ~), que após ser ‘descoberto’ pelo Ocidente, foi convidado para dirigir obras em Hollywood, realizando inclusive a refilmagem de seu próprio longa-metragem O grito 24 , produzido no Japão; além de Takeshi Kitano ((@}ij 1947 - ~), que apesar da maior parte de seus filmes estarem relacionados à temática violência, é autor de dramas como Hanabi - Fogos de artifício 25 e Dolls 26 ; outro profissional que transita pelo mesmo gênero sanguinário de Kitano, é Takashi Miike (3eM 1960 - ~). Kore-Eda, apesar de narrar, no filme analisado neste texto, uma história do cotidiano de uma típica família japonesa, tornou-se conhecido devido a uma história que contém uma temática mundial, ou seja, que poderia ter sido desenvolvida com qualquer grupo de parentes e região, e talvez por este motivo, apesar de utilizar linguagem não usual, como por exemplo, enquadramentos com câmera baixa e sem closes, suas obras sejam reconhecidas em inúmeros locais além do Japão. Notas 1 Professor orientador: Dr. Luiz Antonio Mousinho Magalhães - Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) - Programa de Pós Graduação em Letras - Literatura e Cultura 2 Kurosawa tornou-se conhecido internacionalmente em 1950 ao ganhar o Leão de Ouro no Festival de Veneza com a película Rashomon, e Mizoguchi foi premiado no mesmo festival em 1952 por Oharu - A Vida de uma Cortesã, e recebeu em 1953 o prêmio Leão de Outro por Contos da lua vaga. 358 3 Em referência ao movimento Nouvelle vague francês, em que diretores como François Truffaut e Jean Luc Godard deram início a realização de filmagens nas ruas e áreas externas, fazendo uso de equipamento mais leve e compacto, além da temática inspirada no Neorrealismo italiano. 4 Disponível em:<http://www.uff.br/contracampo/index.php/revista/article/view/71/59>. Acesso em: 24/11/2013. 5 Disponível em:<http://www.ozu.com.br/texto_04.html>. Acesso em: 09/mar/2014. 6 Disponível em:<http://digitooluam.greendata.es//exlibris/dtl/d3_1/apache_media/L2V4bGlicmlzL2R0bC9kM18xL2FwYWNoZV9tZWRpYS8zNT Y1Ng==.pdf/>. Acesso em: 09/mar/2014. 7 Filmes que estão sendo preparados, e que ainda não foram filmados. 8 Título original: ARUITEMO ARUITEMO. (Ĵ,Ĵ,). Direção: Hirokazu Kore-eda. 2008. O título adotado em português para esta pesquisa foi o mesmo utilizado quando a película foi exibida durante o evento 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (2009), já que o longa-metragem não foi lançado comercialmente no Brasil. 9 Título original: TOKYO MONOGATARI (ĢXŔƫ). Direção: Yasujiro Ozu. 1953. 10 Tipo de enquadramento próximo ao chão. 11 Lente de câmera cujo campo de visão é a mais próximo do olho humano. 12 Plano que enquadra o rosto do personagem. 13 Espécie de tapete japonês feito de palha de arroz, coberto por uma esteira de junco. 14 Porta corrediça de madeira, coberta de papel. 15 Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il0108201006.htm>. Acesso em: 09/mar/2014. 16 Disponível em:< http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CDQQFjAB&url =http%3A%2F%2Fwww.penwithfilmsociety.co.uk%2Fsystem%2Ffiles%2Fstill_walking_0.doc&ei=6gUqU5nIIYfmk AfBkoGYBg&usg=AFQjCNFY40sM3lkPfx0smPb_Wi-tHYXoUg&sig2=nfyi7JdH0p8RpedWAlIFw&bvm=bv.62922401,d.eW0/>. Acesso em: 09/mar/2014. 17 Título original: MABOROSHI NO HIKARI (á!q). Direção: Hirokazu Kore-eda. 1995. 18 Disponível em:<http://therumpus.net/2009/06/the-rumpus-interview-with-hirokazu-koreeda/>. Acesso em: 09/mar/2014. 19 Nochi no hi. 20 Ayashiki bungô kaidan (2010). 21 Título original: DAREMO SHIRANAI. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2004. 22 Título original: KISEKI. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2011. 23 Título original: SOSHITE CHICHI NI NARU. Direção: Hirokazu Kore-Eda. 2013. 24 Título original (versão japonesa): JU-ON. Direção: Takashi Shimizu. 2000. Título original (refilmagem): THE GRUDGE. Direção: Takashi Shimizu. 2004. 25 Título original: HANABI. Direção: Takeshi Kitano. 1997. 26 Título original: DOLLS. Direção: Takeshi Kitano. 2002. Referências Bibliográficas BAPTISTA, Mauro; MASCARELLO, Fernando (organizadores). Cinema mundial contemporâneo. Campinas, SP: Papirus, 2008 GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrativa cinematográfica. Trad. Adalberto Müller, Ciro Inácio Marcondes, e Rita Jover Faleiros. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009. NAGIB, Lúcia (org.); PARENTE, André (organizadores). Ozu: O extraordinário cineasta do cotidiano. 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FILMOGRAFIA DE HIROKAZU KORE-EDA (projetos desenvolvidos para o cinema): 2013 Pais e Filhos 2011 O Que Eu Mais Desejo 2009 Boneca Inflável 2008 Seguindo em frente 2006 Hana yori mo naho 2004 Ninguém Pode Saber 2001 Distance 1998 Depois da Vida 1995 Maboroshi - A luz da ilusão SEGUINDO EM FRENTE – PRÊMIOS RECEBIDOS: - Asian Film Awards 2009: Melhor diretor Hirokazu Kore-Eda - Blue Ribbon Awards 2009: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki / Melhor diretor Hirokazu Kore-Eda - Chlotrudis Awards 2010: Melhor diretor Kore-Eda - Hochi Film Awards 2008: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki - Kinema Junpo Awards 2009: Melhor atriz coadjuvante Kirin Kiki - Mainichi Film Concours 2009: Melhor ator Hiroshi Abe - Mar del Plata Film Festival 2008: Prêmio do júri Hirokazu Kore-Eda / Melhor filme - Nikkan Sports Film Awards 2008: Melhor atriz coadjuvante Yui Natsukawa 360 Mari Sugai - msugai@gmail.com Graduada em Cinema pela FAAP/SP; Mestre pela Universidade de São Paulo (USP) – FFLCH / Cejap; Doutoranda da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - Programa de Pós Graduação em Letras - Literatura e Cultura. Docente na Escola de Comunicação e Artes da UnP (Natal/ RN), e produtora em eventos culturais e projetos audiovisuais (Cinema e TV). 361 RUÍNAS EM DESLOCAMENTO. STILL LIFE (2005), DE JIA ZHANG-KE, OS FILMES DE BARRAGEM E A RESPOSTA DA ARTE CHINESA À HIDRELÉTRICA DAS TRÊS GARGANTAS Lúcia Ramos Monteiro - USP e Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 RESUMO: Além de se referir à arte chinesa tradicional, como a pintura de rolo e a poesia da Dinastia Tang (618-907), Still Life (2005), de Jia Zhang-ke, estabelece uma série de outros diálogos. Por um lado, o filme revela a cinefilia do realizador, citando elementos docinema de Hong Kong (ChowYun-Fat e John Woopor exemplo são explicitamente convocados) e do cinema europeu (notadamente Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni). Por outro lado, o filme tece relações com a obra de artistas contemporâneos que trabalharam na região das Três Gargantas (como Liu Xiaodong e ZhuangHui). Wu Hung considera o conjunto heterogêneo de obras ligadas à construção da barragem das Três Gargantas como uma “resposta dos artistas” à transformação radical na paisagem e na vida dos habitantes das regiões inundadas. Still Life inscreve-se, mais globalmente, em uma tradição cinematográfica precisa: aquela que, desde o fim do século 19, se interessa pela construção de barragens (dos irmãos Lumière a Jean-Luc Godard, passando por Manuel de Oliveira e Alexandre Dovjenko). Minha proposta consiste em analisar algumas relações intertextuais que o filme de Jia estabelece, não apenas com trabalhos ligados à construção de barragens, mas também com a iconologia das ruínas e a temática do deslocamento, na China e fora dela. Palavras-chave: Jia Zhang-ke; intertextualidade; orientalismo; iconologia de ruínas; filmes de barragem ABSTRACT: Besides of making reference to traditional Chinese art, like roll painting and the poetry of the Tang Dynasty (618-907), JiaZhangke’s Still Life (2005) establishes many other dialogues. On the one hand, the film reveals the director cinephilia, citing elements of HongKong cinema (Chow Yun-Fat and John Woo for instance are explicitly quoted) and European cinema (notably Roberto Rossellini and Michelangelo Antonioni). On the other hand, the film can be related to the work of contemporary artists who have been in the Three Gorges region (as Liu Xiaodong and ZhuangHui). Wu Hung considers the heterogeneous collection of works related to the construction of the Three Gorges Dam as a "response of artists" to the radical transformation in the landscape and the lives of the inhabitants of the flooded regions. Still Life also suits into the cinematic tradition that, since the late 19th century, is concerned with the construction of dams (represented by the Lumière brothers, Jean-Luc Godard, Manuel de Oliveira and AlexandreDovjenko, among others). My proposal is to analyse some intertextual relations established by Jia’s film, not only with works generated by the construction of dams, but also with the iconology of the ruins and the theme of displacement, in China and elsewhere. Keywords: Jia Zhang-ke; intertextuality; orientalism; iconologyof ruins; dam’sfilms 362 Introdução Roland Barthes dedica algumas das mais belas páginas de A Câmara Clara (BARTHES, 1984) à descrição da fotografia do soldado Lewis Payne, participante do complô que havia tentado assassinar o presidente norte-americano Abraham Lincoln. Payne é um jovem confederado robusto, de cabeleira farta e olhos claros que parecem fixar calmamente a câmera. A imagem sobre a qual o semiólogo francês se debruça foi feita na prisão, onde Payne aguardava o cumprimento de sua sentença: morte por enforcamento. “A foto é bela, o jovem também: trata-sedo studium. Mas o punctum é: ele vai morrer”, escreve Barthes (1984, p. 143). Diante do retrato, o “cela a été” se dobra de um “celasera”, o que provoca no espectador estranheza, desconforto e, nas palavras de Barthes, “horror”. Aoexaminar seus retratos de família no fim da vida, o autor parece buscar essa estranheza a cada fotografia, como se as imagens pudessem contaminar-se de seu futuro (1975, 1980). Cada plano do filme Still Life Still Life – Em Busca da vida (Sanxiahaoren, 2006), de Jia Zhang-ke, opera uma colisão de mesma ordem entre “o que já foi” e “o que está por vir”, razão pela qual proponho transferir a reflexão de Barthes para o campo do cinema, ainda que sabendo de sua preferência por imagens fixas. O longa foi rodado entre 2005 e 2006 no distrito de Fengjie, pertencente à municipalidade de Chongqing, dentro da área afetada pela Barragem das Três Gargantas, um dos principais símbolos da China contemporânea e prova do ambicioso futuro que a era pós-Mao vem projetando e construindo1. À época, a barragem sobre o rio Yangtzé já estava pronta, masa represa não havia atingido seu nível final, de modo que a maior parte de Fengjie ainda estava habitada2. Quando o filme é lançado, a situação era outra: a construção da barragem estava em sua fase final, a inundação havia se completado. Talvez pudéssemos parodiar Barthes ao dizer que “o filme é belo, a cidade também; mas o punctum é: ela vai desaparecer sob as águas do Yangtzé”. Mas, à diferença do retrato de Lewis Payne, o longa-metragem de Jia Zhang-ke não captura exatamente “o” instante que antecede o desaparecimento de Fengjie. Tendo por fio condutor um roteiro ficcional, Still Life acompanha o processo de destruição – real – da cidade, sem, no entanto, chegar a mostrara inundação. Predominam imagens de prédios sendo demolidos ou semi-destruídos; a barragem em si aparece em apenas 363 um plano. A ideia benjaminiana de que construção e destruição são forças inseparáveis no curso de história (BENJAMIN, 2005) ecoa a cada vez que são vistos trabalhadores a golpear os edifícios, que vão desabando um a um ao longo do filme. Jia Zhang-ke não é o primeiro cineasta a valer-seda posição do “anjo da história”, que Benjamin descreve com base na aquarela AngelusNovus, de Paul Klee (1920). Ouso dizer que o conflito entredirigir-se ao futuro e olhar para o passadoé frequente nos “filmes de barragem”, ou seja, filmes de diferentes registros e formatos que se interessaram seja pela construção de uma barragem, seja pelo risco de sua ruptura. Em muitos casos, a destruição das áreas a serem inundadas disputa a atenção do espectador com canteiros de obras grandiosos, de modo a comprometer parcial ou inteiramente qualquer possibilidade de entusiasmo – o grau em que isso se dá é variável, e muito da força de Still Life reside na quase ausência de imagens da barragem, em contraponto à onipresença da demolição. É possível verem uma ruína aimpressão direta de um acontecimento desastroso e destruidor, como a impressão de uma imagem sobre uma superfície fotossensível. Assim, quando nos deparamos com a catedral de Berlim, que mantém muito visíveis as feridas da Segunda Guerra Mundial, é como se estivéssemos diante da imagem congelada do momento em que a capital alemã foi bombardeada. Recoberta pelas cinzas do Vesúvio no ano 79, Pompeia tornou-se um emblema dessa visão: a erupção vulcânica a um só tempo destrói e preserva a cidade romana, já que, como revelaram as numerosas escavações a partir do século 18, suas formas no momento da catástrofe mantiveram-se conservadas ao longo de quase dois mil anos. O congelamento do instante provocado pelas cinzas do Vesúvio é comparável ao processo fotográfico. Essa semelhança leva Victor Burgin a criar um formidável neologismo: Pompeia constituiria hoje um reservatório de “imagens catastrográficas”, e as fotografias de Pompeia, por sua vez, seriam duplamente “catastrográficas”, enquanto “impressão de uma impressão, índice de um índice” (2006, p. 79). Victor Burginanalisa fotografias de Pompeia feitas por Carlo Fratacci em 1864, encontradas num álbum do século 19 pertencente ao acervo do Centro Canadense de Arquitetura. Ele observa que as colunas da Basílica que vemos na imagem não 364 haviam sido abaladas pela erupção vulcânica, mas por um terremoto ocorrido uma década antes dela. Na verdade, se essas colunas aparecem incompletas na foto, é porque estavam em construção. Assim, a imagem feita por Carlo Fratacci expressa tanto o congelamento de um instante quanto a passagem do tempo (já no século 19, escritores observavam que um crescente interesse turístico estava deteriorando a cidade romana). De fato, se as ruínas são praticamente onipresentes em Still Life, em nenhuma hipótese elas oferecem um cenário fixo para que seus personagens evoluam. Ao contrário, as ruínas estão permanentemente em movimento, atraindo o olhar do espectador e fazendo com que a própria paisagem alcance o estatuto de personagem, muitas vezes em detrimentodos personagens humanos. O filme evidencia o processo de construção das ruínas e, por conseguinte, o gradual desaparecimento de Fengjie. Ao se deter sobre a fabricação das ruínas, Jia Zhangke joga luz sobre seu movimento, indo no mesmo sentido de Victor Burgin. O cineasta opera ainda um “deslocamento das ruínas”, ao valer-se de elementos de uma iconologia oriunda principalmente do cinema europeu, mas também ligados ao conjunto dos filmes de barragem e ao papel da ruína na arte chinesa. Isso se dá de diferentes maneiras: podemosfalar de empréstimo, citação, contaminação da memória ou, seguindo a proposta de Marie Martin, de “remake secreto” (2015). A presença em Still Life de elementos oriundos de uma abrangente iconologia de ruínas é o fio condutor desta comunicação. Num primeiro momento, será necessário traçar um panorama dos filmes de barragem e observar a posição que Still Life ocupa dentro dessa categoria. Em seguida, a reflexão se concentrará sobre como o longa de Jia Zhang-ke se relaciona com o que Wu Hung chama de “a resposta da arte chinesa à construção da Barragem das Três Gargantas” (2008). Still Life dialoga diretamente com a obra de artistas contemporâneos como Liu Xiaodong, Chen Qiulin e ZhuangHui, além de questionar a evolução do motivo das ruínas no âmbito da arte chinesa, principalmente a partir do século 19. Por outro lado, alguns filmes do cinema europeu parecem ter exercido influência determinante na maneira como Jia Zhangke filma ruínas de Fengjie. É o caso de Alemanha, Ano Zero (Germania, anno zero, Roberto Rossellini, 1947) e de O Deserto Vermelho (Il deserto rosso, Michelangelo 365 Antonioni, 1964). As consequências das ligações que Jia Zhang-ke estabelece com esses dois filmes serão abordadas no último ponto desta comunicação. Ao inserir Still Life num campo de forças em que atuam influências chinesas e não chinesas, asiáticas e não asiáticas, esta comunicação privilegia a “circulação de ideias”3 em detrimento da busca pelo que seria a “essência chinesa” ou “oriental” de sua obra4 . O objetivo, por um lado, consiste em ressaltar como o filmecombina influências de épocas e geografias distintas. Still Life é evidentemente fruto da cinefilia de seu realizador, de fato um profundo conhecedor da história do cinema chinês e de Hong Kong, mas também um admirador do cinema europeu. Se são explícitas suas referências a John Woo, o impacto de Antonioni e de Rossellini na maneira como Jia Zhang-ke traz à tona a problemática das ruínas é fundamental. Por outro lado, sabemos que não há um bloco coerente que possa ser chamado de “cinema oriental” ou “cinema asiático”, terminologia que, seguindo a linha de raciocínio proposta por Edward Said, informaria mais sobre quem os emprega do que sobreo objeto de estudo. Leitor de Foucault, Edward Said descreve essa dinâmica de modo a ressaltar as relações de poder e os esforços de dominação envolvidos no orientalismo (2003), concentrado que estava no modo como os Estados Unidos, a Grã Bretanha e a França passaram a se interessar pela cultura oriental no século 19, analisando principalmenteas representações do islã e da cultura árabe. Olhar para o que seria o cinema oriental a partir de um país como o Brasil consiste em um exercício diferente: do ponto de vista europeu, as populações, as artes e as produções intelectuais da América Latina seriam “não ocidentais”, sem, no entanto, poderem ser chamadas de “orientais”5. Publicado originalmente nos Estados Unidos em 1978, O Orientalismo de Edward Said ganhou traduções em diversas línguas, do francês ao sueco, do japonês ao árabe, tendo sido editado também em português (pela primeira vez em 1990). Polêmica e provocadora, a obra deu origem a muitos debates. Num posfácio escrito em 1994, Said havia profetizado que essa divisão do mundo cairia em desuso, por não corresponder “a nenhuma realidade estável baseada em um fato natural” e sim a uma “ficção geográfica” (2003). Mais de três décadas depois da publicação original, e contrariando o desejo do autor, os problemas que ele apresentou mantêm-se atuais. Gestos “orientalistas” seguem sendo praticados, 366 ainda que sob novas roupagens. Os termos “Ocidente” e “Oriente” continuam fortes, seja na política, na economia e na diplomacia, seja na universidade. Os desdobramentos dotrabalho de Said extrapolam sua área de interesse imediata, ou seja, frutificaram fora das fronteiras do mundo árabe. Destacam-se nomeadamente os estudos realizados em países do chamado “extremo Oriente”, principalmente na Índia, mas também na China. Talvez o crescimento econômico, político e militar da China contemporânea a façam disputar com o Oriente Médio o lugar de “grande outro” dos Estados Unidos e da Europa, de maneira que a atual retomada de interesse pela sinologia dentro dos estudos orientais e dos estudos culturais pode, sim, relacionar-se a um desejo de domínio parecido com o que descreve Said em seu livro. À exemplo do que faz Benedict Anderson em seu estudo sobre os movimentos de independência nas Filipinas (2009), ArifDirlik consegue escapar da dicotomia entre dominante e dominado para colocar o foco na circulação de ideias e pessoas (1996). Ele se apoia no conceito de “zonas de contato”, regiões fronteiriças em que ocidentais e orientais se encontram, de acordo com o pensamento de Mary Louis Pratt (1992)6. Segundo Dirlik, o orientalismo do século 19, pelo qual se interessa Said, foi um produto da circulação de intelectuais euro-americanos e asiáticos nessas chamadas “zonas de contato” (1996). Extrapolando o pensamento de Pratt e Dirlik, poderíamos dizer que o cinema, sobretudo no caso de Jia Zhang-ke, seria uma grande zona de contado, já que é por meio dele que diferentes culturas são postas em contato. A breve incursão que acabo de fazer por questões relacionadas à ideia de “orientalismo” é um contra-campo necessário à análise intertextual de Still Life, que desenvolvo nos três pontos a seguir, dentro de uma teia de relações que não obedece aos limites do que seria o mundo oriental. “Filmes de barragem” Quando, no início de Still Life, Sanming chega ao endereço que sua exmulher lhe havia dado no passado e descobre que a casa se encontra debaixo d’água – uma consequência da primeira etapa das inundações provocadas pela Barragem das Três Gargantas, como explica o jovem motorista do moto-táxi que o 367 conduz-Jia Zhang-ke deixa claro que seu filme se funda no embate entre o que seria uma necessidade coletiva de modernização e o impacto negativo que ela exerce sobre a vida do indivíduo comum, a brava gente do Shanxi7. Antes de Still Life, outros “filmes de barragem” foram realizados com base na atenção sobre as perdas humanas e os deslocamentos populacionais implicados nessas grandes obras de construção civil, alguns deles combinando, como Still Life, um roteiro ficcional (os graus de elaboração preliminar são variáveis) e filmagens diretas do real (seja das barragens em construção, seja da paisagem urbana em transformação). Embora barragens para fins de irrigação e de controle de enchentes tenham existido desde a Antiguidade, é na modernidade que diversos países se lançam em construções de grande porte; no século 19, as barragenspassam a inserir-se em projetos maiores, com função de acumular água para a criação de usinas hidrelétricas. Como proezas da engenharia moderna e mesmo como atração turística, as barragens logo despertam a atenção do cinema: em 1897, Alexandre Promio filma a barragem do Delta do Nilo8, a noroeste do Cairo, para o catálogo de imagens do mundo dos irmãos Lumière (filme nº 378). É o primeiro “filme de barragem” de que se tem notícia. Cinema e barragem seguiram se encontrando pelas décadas subsequentes, em cinejornais, curtas-metragens, longas-metragens de ficção, documentários, filmes experimentais e, mais recentemente, em vídeos de artista, web documentários e produções independentes. Ainda que o entusiasmo inicial do cinema pela construção de barragens se verifique em alguns filmes posteriores 9 , logo a melancolia passa a prevalecer na maneira como o cinema olhapara as barragens10. Antes de Still Life, portanto, o cruzamento entre um roteiro ficcional e a construção de uma barragem real já havia se produzido. Tanto o primeiro filme sonoro de Aleksander Dovjenko (Ivan, 1932) quanto seu último filme (Poema do Mar/Poema o more, 1958, rodado e montado por sua mulher, YouliaSolntseva, depois da morte do cineasta, com base no roteiro e na decupagem que ele havia elaborado) estão ligados à construção de barragens. No primeiro, o personagemtítulo é um camponês que vai trabalhar nas obras da Dnieprostroi, barragem sobre o Dniepr, na Ucrânia. Embora o cineasta dê destaque à monumentalidade da construção, a ambiguidade do roteiro não agradou o regime soviético: nem todos os 368 trabalhadores demonstram o mesmo comprometimento de Ivan, funcionário-modelo, e o filme inclui até mesmo uma sequência sobre operários mortos no canteiro de obras. Já o foco Poema do mar é a destruição da cidade de Kakhovka: os moradores desmontam suas casas para transferi-las para a zona elevada ocupada pela “Nova Kakhovka”, ao abrigo da inundação que se prepara. É com sofrimento que os habitantes aceitam a ideia de ver o Dniepr se transformar em mar e o desaparecimento dos cenários de suas memórias – não apenas as pessoais, mas também as históricas, já que a região, ocupada no passado pelos cossacos zapórogos, foi palco de importantes batalhas ao longo de sua história11. Roberto Rossellini filma a construção da Barragem de Hirakud durante seu “exílio” indiano 12 . O segundo dos quatro episódios que compõem o longa Índia (India: MatriBhumi, 1959) foi escrito depois de o cineasta presenciar a inauguração da obra, à convite do primeiro ministro JawahrlalNehru13. Índia combina imagens filmadas à maneira de um travelogue com sequências ficcionais, interpretadas por atores não profissionais. No episódio da barragem, o protagonista é Chakravati, jovem trabalhador migrante que, depois de concluir a construção da obra, deve buscar emprego noutro lugar. A narração em off do filme explica que o objetivo de Hirakud era controlar o rio Mahanabi, causa de enchentes terríveis durante as monções, a sua necessidade de tal obra jamais é questionada. Há, porém, um olhar melancólico, não só pela partida involuntária de Chakravati e sua família, mas também pela lembrança dos operários mortos durante a construção e pelo desaparecimento iminente do lago onde o personagem fazia seus banhos rituais, da paisagem que vira seu filho nascer. No cinema brasileiro, talvez o filme que mais se aproxime do espírito de Still Life seja Gititana (1975), de Jorge Bodansky e Orlando Senna, que contém imagens do canteiro de obras da Barragem de Sobradinho sobre o rio São Francisco. No longa, a dupla tenta repetir a combinação entre roteiro ficcional, atores não profissionais e tomadas diretas do real, usada pelos dois cineastas um ano antes, em Iracema (1974). As discussões na assembleia de trabalhadores migrantes e a atualização das figuras do cangaço, como Maria Bonita (Conceição Senna), colocam as lutas camponesas no centro da discussão sobre a barragem, problematizando o 369 tema da modernização do Nordeste. Still Life narra a história de Sanming e de Shen Hong, um homem e uma mulher que chegam à região das Três Gargantas em busca dos cônjuges, de quem estavam separados havia tempos. Enquanto não encontra a ex-mulher, Sanming (HanSanming) trabalha como demolidor e se hospeda numa pensão que vive seus estertores: o nível que a água atingirá na próxima etapa da inundação está assinalado em vermelho na parede, indicando que o lugar será demolido em breve. Como o marido de Shen Hong (Zhao Tao) não dá notícias há meses, ela o procura em seu antigo emprego, descobre que ele vive com uma rica amante e que tem um cargo importante – a seu pedido, a ponte de Wushan se ilumina. Desde o início, o filme explicita que a paisagem é muito mais do que um décor: a ponte de Wushan14, o tecido urbano de Fengjie, o rio Yangtzée o relevo escarpado de suas margens se apresentam como organismos vivos em franca transformação. Ao dar a esses lugares uma imagem a um só tempo monumental e fugidia, o filme faz com que o espectador viva diretamente a experiência de aparecimento e desaparecimento, como se pudesse partilhar da frágil situação dos personagens, que precisam evoluir sobre um terreno absolutamente instável. No filme de Jia Zhang-ke, as fontes de tensão são semelhantes às de Ivan, Poema do Mar, Índia e Gitirana: experiências de deslocamento dos personagens, do contraste entre a fragilidade da condição individual diante da monumentalidade da barragem e das necessidades do progresso; da construção da imagem de lugares cujo desaparecimento está em curso. O olhar melancólico de Sanming e de Shen Hong atualiza Ivan, Chakravati e mesmo a Maria Bonita de Conceição Senna. Mas não basta assinalar as semelhanças: Still Life tem a particularidade de praticamente não mostrar a barragem em si, e de deixar ver apenas parcialmente a paisagem que imortaliza, num gesto que alguns pesquisadores consideram como baziniano (LI, 2008: 78-79).No filme chinês, o relevo das margens está sempre encoberto por um véu esbranquiçado, fruto do encontro entre a geografia local (clima úmido e luz abundante) e as condições técnicas do filme (câmera digital usada por YuLikWai, acentuação da sensação de invisibilidade pela aplicação de filtros na pós-produção). 370 Ruínas na arte chinesa Jia Zhang-ke decide realizar Still Life quando chega à região das Três Gargantas para o documentário Dong (2006), retrato filmado do pintor chinês Liu Xiaodong. Liu Xiaodong pintava desde 2003 os trabalhadores envolvidos na construção da barragem, reunidos em Great Displaced People of the Three Gorges (2002) e Great Migration at the Three Gorges (2003). Em Dong, Jia acompanha o momento em que o artista pintava Hotbed (2005), obra composta de cinco painéis, totalizando 9 metros de comprimento, produzido sin situ. Still Life e Dong foram gravados quase simultaneamente, compartilhando não apenas a mesma paisagem, mas também algumas imagens. HanSanming, ator não profissional convocado por Jia Zhang-ke para protagonizar Still Life, chega a aparecer numa das pinturas de Liu Xiaodong. Assim como Liu Xiaodong, outros artistas chineses contemporâneos estabeleceram em seus trabalhos relações profundas com as transformações da região das Três Gargantas, lugar mítico descrito pela poesia e pela pintura da Dinastia Tang. Em 2008, o historiador da arte chinês Wu Hung realizou em Chicago a exposição Displacement, reunindo obras ligadas à construção da barragem, realizadas por quatro artistas contemporâneos – além de Liu Xiaodong, Chen Qiulin, Yun-Fei Ji e ZhuangHui. Autor de uma série de trabalhos sobre a representação das ruínas na China, Wu Hung estava em uma posição privilegiada para entender o que significava a destruição no sítio das Três Gargantas (1998 e 2012). Enquanto na Europa ruínas são representadas pelo menos desde a Idade Média ea partir do século 16 passam a enfeitar jardins, na arte tradicional chinesa elas constituem um motivo praticamente inexistente. “Havia um tabu na China prémoderna contra a preservação e a representação de ruínas: embora se lamentassem cidades abandonadas ou palácios desmoronados em palavras, pintar a imagem delas traria má-sorte e perigo” (WU, 1998, p. 60). O encontro da China com o culto europeu das ruínas fez com que suas imagens passem a aparecer na arte e na arquitetura chinesas, mas evocando calamidades enfrentadas pela nação. “As imagens de ruínas foram legitimadas; mas o que as fez ‘modernas’ (ou seja, o que as distinguia da poesia clássica chinesa de ruínas) era a ênfase no presente, o 371 fascínio pela violência e pela destruição, a encarnação de um olhar crítico e a circulação massiva” (WU, 1998, p.60). Originária da região do Sichuan, onde a barragem se localiza, Chen Qiulin viu a casa onde passou sua infância ser destruída e sua cidade natal, inundada. Seus vídeos Rhapsody on Farewell (2002) e River, River (2005) resultam de performances em que atores fantasiados que remetem a personagens de óperas ou da literatura passam pelos escombros de Chongqing. De ZhuangHui, Displacement apresentava a instalação fotográfica Longitude 109.88ºE and Latitude 31.09ºN (1995-2008), composta de trinta fotografias em preto e branco. As imagens retratam buracos que ZhuangHui vinha construindo na área próxima à represa e que, depois de seu enchimento, tornaram-se invisíveis. Alguns dos problemas de Still Life aparecem de forma fundamental na obra de Chen Qiulin e na de ZhuangHui. Como Jia Zhang-ke, Chen Qiulin faz com que seus personagens evoluam sobre um terreno instável, cheio de escombros; o encontro do roteiro ficcional com o cenário real gera tensão, ainda mais porque, estranhamente, um parece ignorar o outro. Quanto à relação de Still Life com o trabalho de ZhuangHui, pode-se dizer que ambos exploram a tênue linha que separa o visível do invisível. As centenas de buracos que ele faz em lugares próximos às Três Gargantas constituiriam, como a Spiral Jet (1970) de Robert Smithson, uma obra de land-art. Mas embora seja uma intervenção na paisagem de grandes proporções e de duração permanente, a obra de ZhuangHui está condenada à invisibilidade: ficam debaixo d’água, de modo que suas fotografias funcionam como obra em si, para além do simples registro. Jia Zhang-ke, ao filmar a paisagem da região das Três Gargantas, confere-lhe visibilidade ao mesmo tempo em que a esconde sob o véu que separa constantemente o homem da paisagem, uma relação entre figura e fundo sempre mediada pelo ar esbranquiçado, atmosfera opaca. No filme de Jia Zhang-ke, Sanming se aproxima de Mark, um garoto descolado, já na chegada a Fengjie – o garoto é o motorista que conduz o forasteiro até o endereço da ex-mulher e depois à pensão onde se hospeda, antes de, por fim, encontrar-lhe trabalho nas demolições. Em determinado momento, Mark vê a icônica cena de Um melhor amanhã (Mujeogjia, 1986) em que ChowYun-fat acende o 372 cigarro com uma nota de 100 dólares. Mais tarde, ele acende seu próprio cigarro com um pedaço de papel em chamas, numa clara imitação do ator. O filme de John Woo foi lançado em Hong Kong em 1986, ano em que o movimento Xiamen Dada, ou dadaístas do Xiamen, emerge em Pequim. Huang YongPinge seus colegas queimaram suas obras ao final da primeira exibição do grupo, um gesto sem dúvida inspirado pelo niilismo dadaísta, mas que relembra, sobretudo a queima de livros durante a Revolução Cultural. Wu Hung insere o Xiamen Dada dentro de uma dinâmica mais ampla, ocorrida ao longo dos anos 1980, de posicionamento crítico diante da Revolução Cultural, de que participa também Wu ShanZhuan. A arte chinesa estava se afastando da concepção tradicional das ruínas e passando a relacioná-las mais diretamente ao presente. Ao tomar emprestado essa cena do filme de John Woo, Jia Zhang-ke resgata o clima incendiário da época. Still Life fará referência a ruínas do passado para propor uma visão do presente. As ruínas da paisagem, em Berlim, Ravenna e Fengjie Sabemos que a existência da paisagem depende do ato de olhar e que, no cinema, apesar da realidade do objeto pró-fílmico, não há paisagem “em si”, apenas paisagem filmada. Em Still Life, Sanming e Shen Hong fazem pausas em seus percursos para contemplar a paisagem em pelo menos cinco situações. O esquema se repete: o personagem aparece em primeiro plano, de costas; ao fundo, vê-se, em alguns os casos, o relevo das margens do Yangtzé e, noutros, a ruína de prédios de Fengjie. Essas cenas revelam de maneira particularmente explícita a problemática relação que o filme constrói entre personagem e paisagem. Ao conferir densidade ao que está entre um e outro – a atmosfera translúcida tem aparência esbranquiçada –, Jia Zhang-ke evidencia sua separação. O cinema de Rossellini e o de Antonionisão emblemáticos desse tipo de relação conflituosa entre personagem e paisagem. Tanto na trilogia da guerra (Roma, cidade aberta [Roma, città aperta, 1945], Paisà [1946], e Alemanha, Ano Zero), quanto em alguns dos filmes que vieram em seguida (como Stromboli [1950] e Europa ’51 [1952]), Rossellini coloca seus personagens em ambientes de profundo desconforto. Ninguém se sente “em casa”: vive-se em vigília permanente, ou então, 373 como é o caso em Alemanha, Ano Zero, em meio às ruínas da guerra, que constituem não apenas uma triste memória, mas um solo hostil para a construção de qualquer presente. Da mesma forma, nos filmes de Antonioni o desconforto dos personagens se dá tanto em ambientes externos quanto em interiores. A paisagem se torna um personagem por si só, um verdadeiro interlocutor e às vezes um antagonista implacável com relação aos protagonistas; não se trata mais de um espelho da alma, nem de lugar da ação mas, ao contrário, de algo estranho à ação, de um lugar vasto e opaco em que os personagem correm o risco de se perder. (BERNARDI, 2006, p. 15; minha tradução) Este terceiro e último ponto de minha comunicação se concentra sobre as relações de intertextualidade que Still Life estabelece com dois filmes de realizadores italianos do pós-Segunda Guerra Mundial: Roberto Rossellini e Michelangelo Antonioni. Analiso, mais especificamente, como a relação entre personagem e paisagem que se estabelece no filme de Jia Zhang-ke faz eco a elementos de Alemanha, Ano Zero e O Deserto Vermelho. Detenho-meem algumas sequências de Still Life, que encaro como “remakes” de sequências dos dois filmes europeus. Primeiramente, a abertura do longa de Jia Zhang-ke será vista como uma releitura de O Deserto Vermelho. Em seguida, a cena da implosão e o final de Still Life serão trabalhados à luz de Alemanha, Ano Zero. A sequência de abertura de Still Life compõe-se de dez planos, rodados a bordo de um barco que conduz Sanming ao porto de Chongqing. Os três planos iniciais – três travellings – têm foco oscilante. O primeiro deles começa com a imagem fora de focodos corpos dos passageiros do barco, encontra a nitidez ao aproximar-se de alguns deles, como a garota que olha para a objetiva, e então desfoca novamente. O segundo plano inverte o esquema, começando com foco no passageiro que acende seu cigarro para, ao acompanhar a fumaça do tabaco queimado, perder a nitidez. No terceiro, o travelling conduz do desfocado para o nítido. A essa tensão entre o desfocado e o nítido, soma-se uma outra, que concerne a relação entre o interior do barco e o exterior de paisagem, e a diferença de luminosidade entre um e outro. O relevo escarpado que o Yangtzé encontra na região das Três Gargantas aparece sempre encoberto, já que a bruma característica da região é reforçada pela superexposição. O Deserto Vermelho também se inicia com um plano fora de foco. Um 374 travelling conduz o espectador da imagem inicial de algumas árvores de reduzida folhagem à silhueta das chaminés de uma fábrica, vistas com pouca nitidez. Embora os planos de Jia sejam mais longos que os de Antonioni, a maneira como os créditos de Still Life são inseridos sobre imagens pouco nítidas deixando ver (e escondendo) a paisagem portuária parece citar o realizador italiano. Assim, quando um engolidor de fogo faz seu número no deque, sua presença ali surpreende menos o ritmo das chamas: ele parece reproduzir o fogo que as chaminés da indústriaitaliana ostentam apesar da greve. É possível ainda aproximar os megafones dos grevistas dos autofalantes do barco, que anunciam a chegada à Chongqing, ponto em que as brumas da Emília Romana15 encontramseu paralelo chinês. Tanto dentro do barco quanto fora da usina, as falas dos passageiros/trabalhadores que não alcançarão o status de personagem tratam de dinheiro: “É preciso ter dólares no bolso para navegar sobre as águas”, diz o mestre de cerimônias do espetáculo a bordo a que Sanming assiste sem ter como pagar. No show, um dos números de magia é a transformação de notas de yuan em dólares. O espetáculo coletivo a que Giuliana (Monica Vitti) assiste é o da greve; ela oferece dinheiro em troca do sanduíche que um dos sindicalistas come. Figura 1: fotogramas da abertura de Still Life (planos de 1 a 9), em que se estabelece um jogo entre a nitidez e o fora de foco 375 Figura 2: fotogramas do início de O Deserto Vermelho (planos de 1 a 23), com uma série de imagens fora de foco Se a citação mais forte de O Deserto Vermelho se concentra nesse início de Still Life, ao longo do filme outros elementos lembrarão a Ravenna de Antonioni e o principal deles talvez esteja na sensação de não pertencimento. José Moure considera o desconforto com o ambiente como sendo um traço geral do cinema de Antonioni: na maior parte dos interiores que ele filma, destacamse a ausência, a não ocupação, a impressão de vazio (2001, p. 14). Mas o não pertencimento se dá também na maneira como é criada a relação do personagem com a paisagem exterior, principalmente da área industrial. Assim como a usina italiana, praticamente vazia por causa da greve, a usina que Jia Zhang-ke filma é um monumento assombrado há um tempo que passou: ela tem a cor avermelhada da ferrugem (ferrugem que dialoga com A Oeste dos trilhos [Tiexiqu, 2003] de Wang Bing) e parece sem sentido em comparação com a escala humana. O olhar para as zonas industriais como se fossem desertos metropolitanos aparece em outros filmes de Antonioni; como afirma José Moure, as lentes do realizador transformam as usinas em “mutantes fantasmagóricos”. Antonioni filma lugares de trabalho em circunstâncias de suspensão da atividade. Suas paisagens são, nas palavras de José Moure, um deserto de fim de mundo, onde o vazio aparece como resultado de uma sedimentação industrial e de uma proliferação gangrenada que acabou por asfixiar qualquer forma de vida, impossibilitando qualquer presença e condenando os personagens a sonharem com outros lugares. (MOURE, 2001, p. 32; minha tradução) Na relação entre personagem e paisagem, é importante ressaltar diferenças fundamentais entre O Deserto Vermelho e Still Life. Enquanto no primeiro a 376 hostilidade do ambiente é vivida de maneira dramática pela protagonista – Giuliana aparece “constantemente agredida pela violência arquitetural do que lhe rodeia” (MOURE, 2001, p. 15) –, no filme de Jia Zhang-ke o descolamento entre personagem e paisagem é tão profundo que por vezes tem-se a sensação de que são indiferentes. Esse descolamento, ou a inserção problemática do homem na paisagem não serve de pretexto para explorar sua psicologia. É no final de Still Life que a proximidade com Alemanha, Ano Zero se acentua. Sanming está ao lado da ex-mulher, dentro de um prédio parcialmente demolido, de onde ambos observam uma paisagem de edifícios que parecem condenados a ruir. Eles observam, de fato, a implosão de um deles. O enquadramento é construído de modo o que resta da parede emoldura os dois personagens. Anteriormente no filme, mulheres de uma casa de prostituição haviam sido filmadas em um enquadramento parecido. A moldura de destruição lembra a incursão do pequeno Edmund pelo edifício bombardeado em frente ao apartamento de sua família, em Alemanha, Ano Zero, logo depois da morte de seu pai. Convém notar que, na cena de Still Life, as paredes que restam são pintadas de verde à meia altura, costume na China comunista – Jia gosta de dizer que, como foi uma criança pequena, enxergava em sua infância sobretudo essa faixa verde, o que explica sua nostalgia para com essa cor (ANDREW, 2009). Figura 3: imagens da sequência final de Alemanha, Ano Zero. As ruínas emolduram o personagem 377 Figura 4: personagens e molduras de ruínas em Still Life A memória de Alemanha, Ano Zero acentua a fragilidade da condição dos personagens de Still Life, sem que para isso Jia Zhang-ke tenha que fazê-los viver cenas efetivamente dramáticas. Uma catástrofe é por definição um acontecimento singular e por essa razão não se pode estabelecer equivalências entre catástrofes (NANCY, 2012). O bombardeamento de Berlim no contexto da Segunda Guerra Mundial é em todos os sentidos extremamente distante da inundação de Fengjie por causa da construção da barragem das Três Gargantas. No entanto, ao resgatar a memória do filme de Rossellini, ao retomar a iconologia de ruínas que o cinema pósSegunda Guerra Mundial constrói, é como se Jia Zhang-ke afirmasse que, do ponto de vista do indivíduo, afrágil condição é parecida. Jia Zhang-ke conclui seu mais recente longa-metragem, A Touchofsin (2013) com a cena de um rapaz que, encurralado por uma série de situações que não consegue resolver, se joga de um edifício. Retoma, assim, o final de Alemanha, Ano Zero. No plano final do filme de 2006, um equilibrista é visto em contra-plongée ao caminhar sobre um fio que liga duas construções. A iminência da queda já estava desenhada ali. Conclusão Ao longo desta comunicação, colocamos em evidência algumas das relações intertextuais que Still Life estabelece: em primeiro lugar com filmes e obras de arte ligados à construção de barragens e, mais especificamente, à Barragem das Três Gargantas; em segundo lugar, com filmes fundamentais para uma iconologia cinematográfica de ruínas. Observamos como, na arte chinesa, o motivo das ruínas 378 é trabalhado visualmente com base em influências externas, principalmente europeias. Ao inscrever duplamente seu filme numa tradição pictórica chinesa e na cinefilia mundial, Jia Zhang-ke atualiza a questão da representação de ruínas no contexto chinês, apontando para problemas no presente. O cineasta contamina a imagem da construção da China do futuro de uma memória catastrófica do passado, dando uma configura atual e assustadora à alegoria do “Anjo da História”, formulada por Walter Benjamin a partir da famosa aquarela de Paul Klee. A história, sobretudo aquela vivida por indivíduos comuns, não é outra coisa senão uma sequência interminável de catástrofes. Notas 1 A barragem das Três Gargantas foi erguida em quatro fases, entre 1994 e 2007. Entre 1997 e 2003, o nível da água atingiu 135 metros e cerca de 150 mil pessoas foram deslocadas. Entre 2005 e 2007, a água atingiu 156 metros. 2 O cineasta chinês Jia Zhang-ke decide realizar o longa-metragem de ficção Still Life em meio às gravações do documentário Dong (2006), dedicado ao pintor chinês Liu Xiaodong. Liu Xiaodong começou a pintar as Três Gargantas em 2003. Dong acompanha o momento em que o artista trabalhava na pintura Hotbed (2005), composta de cinco painéis. Com 9 metros de comprimento e produzida in situ, a pintura retrata migrantes quetrabalhavam na demolição da cidade de Fengjie, que seria inundada pelas águas da represa. Liu Xiaodong havia realizado duas outras grandes pinturas da região das Três Gargantas: Great Displaced People of the Three Gorges (2002) e Great Migrationat the Three Gorges (2003) (WU, 2008, p. 131-135). 3 O historiador Benedict Anderson está entre os que se interessam pela questão da circulação das ideias, pelas dinâmicas que se estabelecem entre países e continentes (ANDERSON, 2005 e 2008). 4 Seria possível analisar Stil Life à luz da poesia da Dinastia Tang (618-907) e principalmente de certos poemas de Li Bai, que passou pela região das Três Gargantas. Still Life também se inspira na pintura chinesa em rolos. Além disso, a relação que o filme estabelece entre luz e sombra, claro e escuro, cheio e vazio, deve muito à filosofia chinesa. Outros filmes de Jia, como The World (Shijie, 2004), foram analisados à luz de estudos sobre a arte e arquitetura chinesa (MELLO, 2013). 5 No dicionário de francês Le Petit Robert, a acepção política da palavra “Ocidental” se refere ao “Oeste da Europa e aos Estados Unidos e, de maneira mais geral, aos membros da Organização do Tratado do Atlântico do Norte (Otan)”. Países da América Latina são considerados “não ocidentais”. Em inglês, a definição de “West” remete a países que não tiveram regimes comunistas. 6 Pratt define assim as “zonas de contato”: “the space of colonial encounters, the space in which peoples geographically and historically separated come into contact with each other and establish ongoing relations, usually involving conditions of coercion, radical inequality, and intractable conflict” (PRATT, 1992, p. 6). 7 Shanxi é uma região da China e, no filme, Sanming é originário de lá. “Numa época em que o ouro é idolatrado, eu gostaria de saber quem ainda se interessa pela ‘brava gente’”, afirma Jia Zhang-ke, na pré-estreia de Still Life, em 2006. Ele fazia sutilmente um contraponto entre seu filme, focado sobre o indivíduo comum, e A Cidade Proibida (2006), de Zhang Yimou, longa de orçamento milionário que entrava em cartaz ao mesmo tempo, ocupando um número muito maior de salas (JIA, 2012). 8 A construção havia sido concluída três anos antes. (BROWN, 1896). 9 Podem ser citados Opération béton (1955), de Jean-Luc Godard, e Filme-ensaio sobre a barragem do Eufrates (Film-Mohawalaan Sad Al Forat, 1969), de Omar Amiralay, embora no primeiro exemplo o tom do comentário soe irônico e, no segundo, o realizador tenha reconsiderado sua posição no filme sobre o mesmo tema que realizou em seguida. 10 É o caso, como veremos, dos filmes de Dovjenko, Rossellini, Bodansky, e também de longas que não serão mencionados neste artigo, como Sumidouro (2006-2008), de Cris Azzi, Wild River (1960), de Elia Kazan, e muitos outros. Não abordo aqui a relação que filmes hollywoodianos como Chinatown (Roman Polanski, 1974) e O Fugitivo (The Fugitive, Andrew Davis, 1993) mantêm com as barragens norte-americanas. Esse assunto foi tratado em minha tese de doutorado (RAMOS MONTEIRO, L., L’imminence de lacatastropheaucinéma. Films de barrage, filmssismiques, Universidade de São Paulo e Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3, 2014). 11 Para mais informações sobre Ivan e suas relações com a história da Rússia e da Ucrânia, ver SCHNITZER, L. e J., 1966, p. 82-91. 379 12 Rossellini havia se separado de Ingrid Bergman e sua relação com os produtores europeus também se deteriorara. Para Adriano Aprà, assim como Renoir, Rossellini vai à Índia “porque estava cansado do cinema ocidental” (APRÀ, 2006, p. 198). 13 Nehru fora apresentado a Rossellini por intermédio de Jean Renoir, que havia filmado Le Fleuve (1951) ali (ROSSELLINI, 1987). 14 A sequência em que a ponte se ilumina para atender aos caprichos de alguns dirigentes pode ser vista como uma ironia, lembrando, nesse sentido, o comentário em off de OpérationBéton, em que Godard parece estar maravilhado com a grandeza da Barragem da Grande-Dixence. 15 Antes de O Deserto Vermelho, Antonioni havia filmado a região enevoada do vale do Pó (Gente delPo, 1947), filme que também poderia ser comparado a Still Life: o filme se inicia a bordo de um barco, de onde se avista a margem sob espessa bruma.Como no filme de Jia Zhang-ke, os sinais sonoros dos barcos acompanham permanentemente Gente delPo. Referências Bibliográficas ANDERSON, B.Under Three Flags: Anarchism and the anti-colonialimagination. Londres: Verso, 2005. 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Ela foi professora do curso de cinema da Universidade Sorbonne Nouvelle-Paris 3 e integra desde 2008 o coletivo LE SILO. 381 DIFERENTES FACES DA ARTE NOS FILMES DE TAKESHI KITANO Gustavo Henrique Lima Ferreira - UFT RESUMO: O objetivo desse trabalho é apresentar e discutir questões em torno de parte significativa da obra do cineasta Takeshi Kitano, com ênfase na versatilidade de sua abordagem e destacando a relação autobiográfica e multifacetada de seu trabalho, como plataforma de uma reflexão sobre o diálogo do cinema com diferentes áreas, dentre elas o teatro, as artes plásticas e a televisão. Nesse sentido, a escolha dos filmes leva em consideração tanto uma unidade artística, como também uma unidade temporal, abrangendo os filmes dirigidos por Kitano no Japão, entre final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Essa sequência possibilita uma discussão em torno da relação autobiográfica que se desdobra de diferentes formas ao longo de cada filme. Ao abordar questões como a relação autobiográfica e a construção multifacetada, ligando o cinema com outras áreas, este trabalho visa a ampliar não apenas a reflexão sobre a obra deste artista, como sobre questões da construção cinematográfica em si, discutindo diferentes aspectos em especial a relação cinema e arte, através das artes plásticas, da televisão e do teatro. Palavras-chave: Takeshi Kitano, Cinema japonês, Artes cênicas, Artes plásticas. ABSTRACT: The aim of this paper is to present and discuss issues surrounding a significant part of the work of filmmaker Takeshi Kitano, with an emphasis on the versatility of his approach and highlighting the autobiographical and multifaceted relationship of his work as a reflection on the dialogue of the film platform different areas, among them the theater, the visual arts and the television. In this sense, the choice of films takes into account both an artistic unity, as well as a temporal unit, covering films directed by Kitano in Japan between the late 1990s and the early 2000s. This sequence allows a discussion through the autobiographical relation that unfolds in different ways throughout each movie. By addressing issues such as the autobiographical relation and the multifaceted construction, linking the film with other areas, this project aims to expand this work not only to reflect on the work of this artist, but on issues of cinematic construction itself, discussing different aspects and in particular the relationship film and art, through visual arts, television and theater. Keywords: Takeshi Kitano, Japanese Cinema, Scenic arts, Plastic arts. Takeshi Kitano, nos anos 1970, resolveu seguir carreira fazendo comédia e, na sua tentativa de conseguir se aproximar do meio artístico, aceitou trabalhar como ascensorista em uma boate de strip-tease, onde um grupo de comediantes se apresentava. Teve a chance de participar no lugar de um desses comediantes que havia adoecido e, em pouco tempo, já havia se tornado conhecido nacionalmente, ao juntar-se ao amigo Kiyoshi Kaneko, formando a dupla “Os Dois Beats”, Beat Takeshi e Beat Kiyoshi. Os dois trabalharam juntos na televisão até os anos 80, quando a dupla se desfaz. Nessa mesma década, Beat Takeshi começa a 382 apresentar seus próprios programas e a atuar em alguns filmes, interpretando papeis dramáticos. No ano de 1989, ele é chamado para o papel principal de Sono otoko, kyobo ni tsuki (Aquele homem, está sendo violento – tradução minha)1. Depois de brigas internas, a produção fica sem diretor e Kitano se oferece para exercer a função. Ele reescreve completamente o roteiro, transformando a história em um drama sobre um policial violento e corrupto. O filme conseguiu sucesso no Japão, lançando o artista em uma nova carreira. Em 1997, seu sétimo filme, Hana-bi, vence o Leão de Ouro em Veneza, chamando atenção internacionalmente. Hana-bi (1997) conta a história do detetive de polícia Nishi, interpretado pelo próprio diretor, que, envolto pela crueza do mundo marginal do crime, precisa lidar com a morte de sua filha, a doença terminal de sua esposa, Miyuki (Kayoko Kishimoto) e a invalidez do detetive Horibe (Ren Ohsugi), um de seus melhores amigos, atingido enquanto o substituía numa tocaia. Nos créditos do filme, o diretor se divide em duas figuras, usando Takeshi Kitano para assinar a direção, mas como ator, mantém o nome Beat Takeshi. Essa separação das figuras Beat Takeshi e Takeshi Kitano é um fator importante dentro desse contexto de transformação. Ao atuar em seus filmes, coisa que faz constantemente, ele se apresenta nos créditos como essas duas figuras diferentes, Beat Takeshi e Takeshi Kitano. Sua intenção, porém, não é apagar dos filmes a sua relação com a televisão, mesmo porque ele não renega o pseudônimo, mas é criar uma separação entre o espaço da direção e da interpretação, usando a figura de Beat Takeshi como um meio de se projetar na tela. “O que Kitano está fazendo aqui é fixar seu olhar na essência da questão. Ao creditar Yanagi Yurei e os outros com seus nomes reais, Kitano os mantém como objetos. Para objetificar a si mesmo, porém, ele precisa fazer de ‘Beat Takeshi’ um objeto”. (ABE, 2005, p. 38 – tradução minha)2. Kitano vai usar o espaço de seus filmes para trabalhar uma relação autobiográfica, usando o cinema como um campo onde ele se permite vivenciar experiências, tanto no sentido das experiências pessoais, vivências que são trabalhadas, retrabalhadas, deslocadas para o filme, mas também no sentido das experimentações, do confronto de referências, da apropriação de diversos elementos que vão se juntar, se amalgamar, na construção do filme. De acordo com Casio Abe, “os filmes de Kitano são organizados apenas de acordo com razões 383 pessoais a ele. Em outras palavras, Kitano começa a reconhecer o fato consumado de um Beat Takeshi que surfa nas ondas da televisão. Para contra-atacar isso, ele faz filmes”. (ABE, 2005, p. 37 – tradução minha)3. O que torna essa variação de nome singular, portanto, é que ela não se opera de fato como uma mudança, uma passagem de uma figura para a outra, já que o suposto alter ego continua existindo, mas sim como um acréscimo de facetas, usando os dois nomes artísticos, cada um com sua finalidade: além do ator e apresentador Beat Takeshi, ele passa a se apresentar também como o diretor de cinema Takeshi Kitano, distinguindo uma figura da outra. Em entrevista realizada junto à promoção do filme Hana-bi, o próprio Kitano brinca com essa relação: No Japão há o estranho hábito de alterar o nome dos atores, como no teatro Kabuki. Digamos que são nomes artísticos. É como se eu manejasse dois fantoches diferentes: um é Beat Takeshi e o outro é Kitano Takeshi. Recorro a um ou a outro consoante ao momento. Manejo os dois fantoches de forma muito consciente. Pergunto-me se não serei esquizofrênico. Mas os verdadeiros esquizofrênicos não estão conscientes dessa manipulação. (TAKESHI Kitano: Portrait d'une douce schizophrénie, 1999, 6’43’’-7’30’’) Em Hana-bi, como destaca Maria Roberta Novielli, Kitano apresenta “uma obra rica em acenos autobiográficos, oscilante entre a impiedosa hiperviolência kitaniana e as nuanças mais delicadas do amor e da amizade” (NOVIELLI, 2007). A relação com a pintura vai ser um elemento fundamental, presente através do personagem Horibe, que se torna paraplégico após sobreviver a uma emboscada. Não bastasse a relação pessoal entre os dois, Nishi carrega ainda a culpa de saber que era ele quem deveria estar de tocaia, mas foi substituído por Horibe, para poder visitar sua esposa no hospital. Para completar a situação, na tentativa de vingá-lo, Nishi acaba vendo outro policial ser morto. Horibe é, portanto, um personagem chave para a diegese do filme. Preso à cadeira de rodas, sem possibilidade de voltar ao trabalho, ele vai encontrar na pintura uma forma de passar seus dias e lidar com a realidade à sua volta. Nesse caso, a relação autobiográfica se dá pela própria história recente de Kitano, que havia se envolvido em um grave acidente automotivo que ameaçou sua integridade física e fez com ele permanecesse com parte do rosto paralisado. Assim como o personagem de Hana-bi, Kitano começou a se dedicar à pintura durante seu processo de recuperação. Michel Temman - Por que você pinta? | Beat Takeshi Kitano – Eu tive um sério acidente de moto, em 1994, e tive que cancelar tudo o que eu estava 384 fazendo na época, todo o meu trabalho na televisão e no cinema. Como eu tinha sido forçado a parar tudo por muitos meses, enquanto eu estava me recuperando, eu não tinha nada para fazer. Eu estava tão entediado que passei a pintar para matar o tempo – assim como Horibe, o personagem em 4 Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 247-248). As pinturas presentes no filme são exatamente as criadas pelo próprio Kitano, que são apresentadas na esfera ficcional como pintadas por Horibe. Fica claro então que a relação autobiográfica não se limita ao dualismo Beat Takeshi x Takeshi Kitano, mas permeia toda a esfera da obra. As pinturas servem de interlúdio para determinados momentos, participando da construção do filme, chegando ao ponto em que ultrapassam o ambiente de Horibe, como quando, por exemplo, a tinta vermelha jogada na tela, acaba por indicar o confronto sangrento vivido por Nishi. Horibe e Miyuki apresentam também um contraponto, na relação com Nishi, entre pureza e violência. Fora da força policial e buscando ajudá-los, Nishi se envolve com a máfia e até mesmo rouba um banco. A crueldade desses atos do ex-policial, porém, contrasta com a preocupação e até mesmo o carinho que ele demonstra, enviando todo o material de pintura para Horibe e saindo em viagem com sua esposa pelo país. Nesse sentido, as pinturas reforçam também a própria trajetória de Nishi, entre a pureza de sua relação com a esposa e a brutalidade e violência dos crimes que precisou cometer. Se em 1997 as pinturas de Kitano fizeram o caminho de suas telas para o filme Hana-bi, em 2010, depois de terem sido apresentadas ao público pelo filme, parte dessas pinturas, mais especificamente os animais com rostos de flores, ganharam três dimensões, produzidas para a exposição Gosse de Paintre, realizada na Fundação Cartier, em Paris, sobre o trabalho de Kitano como artista plástico. Elas tornaram-se estátuas, transformando-se efetivamente em vasos de flores, numa referência já presente no filme: Horibe pinta os animais após observar as flores numa floricultura por onde passa. No catálogo da exposição, o próprio Kitano fala sobre sua forma de conceber a pintura desses animais e, depois, de transformá-los em vasos. Michel Temman - Trinta quadros estão expostos no subsolo, alguns são mais antigos, outros mais recentes. As pinturas que vemos em seu filme Hana-bi pretendiam originalmente ser vasos ... | Beat Takeshi Kitano - No Japão ikebana é a arte de criar arranjos florais usando plantas, flores e vasos. Há muitas maneiras diferentes de organizar as flores em ikebana, e uma das técnicas mais populares é uma abordagem minimalista que usa apenas uma flor e um simples vaso. Tenho certeza de que uma relação é 385 criada entre a flor e o vaso, mas, pessoalmente, eu sempre achei que esta técnica fosse visualmente muito chata. Então eu pensei comigo mesmo: "Por que não adotar essa abordagem minimalista, baseada em uma única flor, e usá-la para criar um animal? Seu rosto seria a flor, e seu corpo seria o vaso." E foi assim que um girassol tornou-se o rosto de um leão, outra flor, o rosto de um pinguim. Este processo infantil de associação, de combinar imagens, é o que deu origem ao conceito por trás dessas pinturas. (KITANO, 5 2010, p. 247). ! Figura 1 – à esquerda, os pinguins e o leão em Ikebana, junto às pinturas, que aparecem no filme Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 110-111, 113, 173 e 180). À direita, em dois momentos de Hana-bi (13’05’’ e 1h33’), o Detetive Nishi com seu amigo Horibe e com sua esposa Miyuki. Como visto em Hana-bi, Beat Takeshi vai servir como uma ferramenta para a construção dos filmes e, nesse sentido, ele não é a única, nem necessariamente a melhor opção, a melhor escolha para Takeshi Kitano construir-se na tela. Essa questão vai se apresentar em outro filme de Kitano, Dolls (2002), e o próprio diretor deixa clara essa relação quando questionado sobre sua não presença no filme. Se eu atuo ou não em um de meus filmes depende basicamente da minha condição física. Quando eu estou cansado eu não atuo em meus filmes. Também, eu tenho de pensar sobre o equilíbrio no filme inteiro. Eu visualizo as possíveis imagens do filme e se eu achar que eu, como protagonista, consigo levar o filme do começo ao fim, então eu faço o papel. Mas se eu achar que dificilmente vou caber no personagem, eu uso outro ator. 6 (KITANO, 2002 – tradução minha) . Dolls é dividido em três histórias, que versam sobre três casais diferentes. Para facilitar a compreensão durante a abordagem dessas histórias, elas serão aqui classificadas de acordo com a sua ordem de aparição inicial. Será considerado como primeira, portanto, a história que apresenta o casal Matsumoto (Hidetoshi Nishijima) e Sawako (Miho Kanno) como os “mendigos acorrentados”. A segunda história será 386 a de Hiro (Tatsuya Mihashi) e Ryoko (Chieko Matsubara), enquanto a terceira será a do fã Nukui (Tsutomu Takeshige) e da cantora Haruna (Kyôko Fukada). O filme é permeado por uma direta relação com o teatro de bonecos japonês Bunraku, inclusive sendo iniciado com uma cena do espetáculo Meido no hikyaku, Mensageiro do Inferno, do autor Monzaemon Chikamatsu (1653-1724), principal dramaturgo desse teatro. Após esta introdução, o filme se volta para o mundo real, onde “três grupos de humanos que têm o mesmo destino das marionetes – o destino do arrependimento – aparecem na tela”. (ABE, 2005, p. 255 – tradução minha)9.Na primeira história, Matsumoto e Sawako são apaixonados, mas o rapaz é convencido pelos pais a abandoná-la para se casar com a filha de seu chefe. Após uma tentativa de suicídio, Sawako acaba sofrendo graves danos mentais, levando Matsumoto a rejeitar uma vida socialmente invejada, para se dedicar completamente à mulher que havia abandonado, em uma vida errante e sem perspectivas. Essa história vai servir como fio condutor para todo o filme e com isso, é nela onde se percebe um uso mais direto da linguagem do teatro Bunraku. Na segunda história, Hiro, um chefe da máfia, relembra do grande amor, Ryoko, abandonada por ele muitos anos antes num banco de um parque. Ryoko promete esperar por ele todos os sábados no mesmo lugar. Muitos anos depois, Hiro resolve retornar e tentar encontrá-la novamente. Na terceira história, Haruna, uma famosa cantora pop, abandona a carreira e se isola completamente após ter seu rosto desfigurado em um acidente de carro que também causa a perda de visão de um de seus olhos. Para voltar a se aproximar, Nukui, um de seus fãs mais devotos, toma uma atitude drástica, cegando a si próprio. Apesar de ser um dos poucos filmes em que Takeshi Kitano limita-se a trabalhar atrás das câmeras, é possível perceber que em Dolls a relação autobiográfica vai estar fortemente presente em todas as histórias. Voltando a pensar na figura de Beat Takeshi, Cassio Abe (2005) vai destacar essa relação ressaltando que sua presença independe deste aparecer ou não como ator. As performances de Nishijima, Takeshige e Mahashi crescem além das performances do próprio Beat Takeshi. Esta impressão é particularmente forte no jeito brusco de Nishijima e Takeshige e na língua afiada do dialeto de Tokyo usado por Mihashi. Dolls deste modo se assemelha à Hana-Bi, onde Kitano apresenta versões de si próprio em círculos concêntricos 7 através do filme. (ABE, 2005, p. 258 – tradução minha) . 387 Dentro dessa relação autobiográfica, uma das características mais importantes no trabalho de Takeshi Kitano é a constante vontade de transformar-se. “Quebrar seus paradigmas e, fazendo isso, mudar o método organizacional de seus trabalhos – esse é o espírito artístico sobre o qual Takeshi Kitano está constantemente lançando seu trabalho” (ABE, 2005, p. 253 – tradução minha)8. Mesmo neste persistente estado de transformação, trabalhando em mídias completamente distintas, certos elementos presentes em suas obras dialogam entre si, como se a transformação fizesse parte de uma autoafirmação de sua visão artística. A forma como a morte e o suicídio são abordados em Dolls é um bom exemplo disso. Estes temas são recorrentes em suas obras, mas a diferença vai estar no fato deles aparecem agora de uma forma sutil, em contraste com seus filmes anteriores, em geral ligados a uma imagem do submundo do crime. Essa sutileza, porém, não faz com que Dolls se torne menos violento que os filmes anteriores, mas revela outro tipo de violência. Nas palavras do próprio diretor, “não são armas que matam os protagonistas. É algo como o destino, inevitabilidade ou emoções concentradas que se tornam como uma única bala que atravessa os personagens.” (KITANO, 2002 – tradução minha)10. O uso assumido, pela primeira vez, de uma linguagem teatral como referência, vai se apresentar como outra diferença entre Dolls e outros filmes de Kitano, com o filme apresentando tanto uma referência dramatúrgica, como também imagética, visual ao Bunraku. Dolls realiza um transporte, um arranjo desses elementos e convenções presentes no teatro de bonecos, em contato com os elementos e convenções presentes no cinema e, mais especificamente, no cinema de Takeshi Kitano. A primeira história é a que se liga de forma mais direta à cena inicial de Bunraku, apresentando Matsumoto e Sawako como “mendigos acorrentados”. Não se trata de uma adaptação à cena inicial do teatro de bonecos, mas da apropriação de uma temática, que está presente em grande parte das obras de Chikamatsu, mas também se liga a uma referência pessoal, de uma antiga imagem guardada pela memória do diretor. Quando eu era ainda aspirante a me tornar comediante de stand-up em Asakusa (bairro tradicional de Tóquio), eu vi uma vez um homem e uma mulher amarrados um no outro com um pedaço de corda. As pessoas os 388 chamavam de “mendigos acorrentados”. Havia vários rumores acerca deles, mas ninguém sabia realmente como eles se tornaram vagabundos. A visão dos mendigos acorrentados ficou presa na minha mente e eu sempre quis fazer um filme com personagens como eles. Eu decidi mesclar essa história com outras duas histórias curtas. A ideia de cada história veio de algo que eu vi ou ouvi no passado. O tipo de histórias que são bastante comuns para 11 os japoneses. (KITANO, 2002 – tradução minha) . Esse relato demonstra uma intenção de Takeshi Kitano em trabalhar com questões da sua própria memória, organizar o filme “a partir de razões pessoais” (ABE, 2005, p. 37) num arranjo autobiográfico que vai estar presente nas histórias dos três casais de Dolls. A própria relação com o Bunraku também se apresenta no filme dentro desse viés autobiográfico. No período em que o filme estava sendo lançado, Kitano conta que sua falecida avó narrava joruri e tocava shamisen13. No Bunraku, o narrador é o responsável pelas falas dos bonecos e é acompanhado por um músico, o tocador de shamisen, um instrumento musical acústico de três cordas e braço longo. “Quando eu era bem novo, os aprendizes dela viviam com nossa família. Então eu me familiarizei muito ao Bunraku quando era criança. Toda essa coisa ficou presa no fundo da minha mente desde então.” (KITANO, 2002 – tradução minha)14. A segunda história, por exemplo, vai estar ligada diretamente ao universo pelo qual o cinema de Takeshi Kitano é conhecido, apresentando, Hiro, um gangster, como protagonista. Kitano vai explorar elementos do seu próprio cinema, como a temática da máfia, da violência das gangues. Já na terceira história, destaca-se a fragilidade desses bonecos humanos, refletida na cultura contemporânea. “A história no filme é sobre um ídolo pop e, literalmente, ídolos pop são bonecas. Uma vez que a boneca está retalhada ou quebrada e você não consegue remendá-la, ela é simplesmente jogada fora, e assim são os ídolos pop” (Kitano apud CLARKE, 2003 – tradução minha)12. É possível traçar uma relação entre o acidente da cantora Haruna no filme, com o acidente já mencionado, sofrido pelo próprio Kitano. Diferente da personagem de Dolls, Kitano voltou às suas atividades anteriores, mas precisou se isolar por um tempo de todas as atividades e, mesmo recuperado, o acidente deixou como cicatriz uma ligeira paralisia no lado direito de seu rosto. Assim como no Bunraku a música do shamisen exerce um papel fundamental na construção e compreensão do espetáculo, em Dolls a trilha sonora de Joe 389 Hisaishi vai aparecer com força, especialmente nos momentos da caminhada dos mendigos acorrentados, não se limitando a ser apenas um pano de fundo. Nesta obra, essa música assume um espaço na narrativa, na construção de sentido da cena, tal qual a música do shamisen no teatro de bonecos. Por sua vez, o estilista Yohji Yamamoto influiu não apenas nos figurinos, mas na construção estética de todo o filme. A partir da referência do autor do Bunraku Monzaemon Chikamatsu, Yamamoto apresentou para Kitano uma proposta de figurino totalmente inspirada nessa representação teatral. O diretor revelou que foi nesse momento que ele teve a ideia de ir além da referência dramática e explorar também a linguagem cênica do Bunraku. Não é como se o Bunraku inspirasse todo o filme; essa ideia veio depois. Inicialmente eu queria minha versão de uma história no “estilo Chikamatsu”, uma trágica história de amor num cenário contemporâneo. Então Yohji Yamamoto veio com todos aqueles trajes impressionantes, que me inspiraram a consolidar o conceito de uma história concebida por bonecos do Bunraku e contada na forma de um teatro de marionetes estrelando personagens humanos. (DOLLS, 2005). Dentro dessa análise, é importante observar a relação entre a pequena cena inicial, onde é apresentado um fragmento de um espetáculo do Bunraku, e o restante do filme, inclusive chamando atenção para as diferenças de tratamento entre esses dois momentos. Como Cassio Abe vai destacar, Kitano usa diferentes técnicas para esse primeiro momento. Em primeiro lugar, podemos mencionar a introdução agressiva de um trabalho de filmagem “cinético”, que se baseia nas possibilidades técnicas da câmera (sua habilidade de mover, dar zoom e assim por diante). A filmagem no começo do filme, que captura uma apresentação do drama de Bunraku de Monzaemon Chikamatsu, Mensageiro do Inferno (Meido no hikyaku), é particularmente anti-Kitano. A câmera, que circula muito próxima em torno dos bonecos, deixa que os gestos conferidos pelos manipuladores, vestidos de preto, sejam vistos alternadamente de forma parcial e total. A técnica aqui nega a unidade do próprio plano e, contudo, certa “tenacidade” difícil de agarrar aparece na filmagem. (ABE, 2005, p. 253 – tradução 16 minha) . Não é atoa que o diretor vai lançar mão dessa forma “anti-Kitano”, segundo Abe, exclusivamente para a cena inicial do teatro Bunraku, corroborando com a noção de não se tratar aqui da simples e direta transposição desse teatro. A câmera corre, aproxima-se e distancia-se, quebrando com a noção de “teatro filmado” que poderia ser causada em uma filmagem estática e de plano aberto. Esse tipo de plano também poderia criar uma falsa sensação de unidade, contraditória a ideia do 390 sangyo, dessa tríade do Bunraku, onde narração, música e manipulação se apresentam separadas, num processo que privilegia uma construção simultânea e harmoniosa, invés de uma unidade planificada. Os cortes, movimentos e planos de câmera procuram manter essa simultaneidade da cena do Bunraku no filme e, para isso, “planos de todo o palco, do narrador e da audiência também são inseridos de forma complexa”. (ABE, 2005, p. 253 – tradução minha)17. Essa construção fílmica também vai destacar o drama do casal de bonecos, com fortes closes e recortes da câmera, que, em diversos momentos, apagam da tela as figuras dos manipuladores, consequentemente, humanizando esses bonecos, dando-lhes vida própria, até que em seguida, eles ganhem total independência, quando apresentados sozinhos em um fundo preto. Então, assim que o casal principal da peça de marionetes se aproxima do seu trágico duplo suicídio e começa a olhar para o “mundo humano” de uma nova perspectiva, o sujeito dessa filmagem “cinética” se transfere da esfera das marionetes para o mundo dos humanos. Planos como o abrupto e agressivo frontal reverso, familiar aos filmes anteriores de Kitano são adicionados. Isto reforça a sensação de incongruidade que é intencionalmente criada no roteiro. (ABE, 2005, p. 254 – tradução minha)18. A cena apresenta então o revés desse quadro, quando o casal de mendigos acorrentados aparece na tela como dois bonecos vagando pelo espaço, sustentados um pelo outro por essa corda que os une. Nesse momento, o excesso de cortes, movimentos, closes, vistos na cena inicial de Bunraku vai dar lugar a planos longos, contínuos e abertos que vão ser trabalhados ao longo das três histórias, no “mundo dos humanos”. A incongruidade a qual Abe refere-se nesse momento, estaria presente na passagem da cena das marionetes para os humanos, na ligação entre esses dois momentos, que apresentam formas de realização, no que se refere ao uso das técnicas de filmagem, completamente distintas. Essa aparente incongruência, vai servir à construção dramática que Kitano pretende apresentar entre esses dois mundos, o das marionetes e o dos humanos. Ao fim da cena inicial, portanto, esses bonecos que se desvencilham de seus manipuladores, tornam-se os próprios contadores e condutores dessa história que começa: a história desses casais de humanos que se tornam manipulados. A forma como é feita essa transposição da cena dos bonecos para os atores humanos tem como base a relação traçada pelo olhar das marionetes. O casal de 391 bonecos, Chubei e Umegawa, aparece liberto da presença dos manipuladores. Eles olham-se e depois se viram na direção da câmera, não diretamente, mas para além da tela, colocando-se como observadores dessa história que vai ser contada diante delas. Já em primeiro plano, fica claro que as marionetes se reconhecem naquela história, mas faz com que o olhar do espectador seja mediado pelo casal de bonecos. O espectador observa aquelas histórias através do olhar de Chubei e Umegawa. O olhar, portanto, parte do espectador para as marionetes, delas para os personagens do filme. Ao olharem para além da câmera, o casal de marionetes olha também para o espectador em si. Esse olhar, portanto, coloca o próprio espectador em relação aos personagens dessas três histórias, que estão pra ser contadas. Toda a mediação dessa relação é então feita por Chubei e Umegawa, no papel de contadores das histórias4. Dolls poderia ser visto como ‘marionetes humanas’ interpretando uma história concebida por bonecos do Bunraku. O filme começa durante sua hora de trabalho, sua performance. E depois que o dia de trabalho acaba, eles descansam sozinhos e começam a contar suas histórias. (KITANO, 19 2002 - tradução minha) . Figura 2 – Sequência de Dolls (5’40” - 6’45”). Destaque para a relação entre os bonecos, Chubei e Umegawa, que direcionam o olhar para o casal de “marionetes humanas”, Matsumoto e Sawako. Esse primeiro momento então, com a apresentação do espetáculo Meido no Hikyaku, se apresenta como início do filme, mas não como início da diegese. Esse momento serve para definir quem serão os contadores da história, no caso o casal 392 de bonecos, e, portanto, estaria próximo de um prefácio, de uma introdução a esse universo de diálogo com o teatro Bunraku, estabelecido por Kitano ao longo das três histórias de Dolls. Um ponto importante nessa relação estabelecida, pelo olhar do casal de bonecos para com o casal de humanos, está no fato dela partir exatamente da imagem da corda que une Matsumoto e Sawako. A corda vermelha funciona como um elemento simbólico da transformação desse casal em duas marionetes, “nos mendigos acorrentados”. A cor é fundamental, já que no Bunraku, o vermelho, cor do sangue e cor do sol na bandeira japonesa, vai representar a força da vida. A corda vermelha, portanto, aparece não apenas com um simples material que as une, mas como esse último fio de vida, como esse laço que os sustenta ao longo de toda a caminhada. A esse respeito, é importante ressaltar que a cor no cinema, como ressalta Maria Helena Braga e Vaz da Costa, apresenta valores específicos e possibilita o estímulo de reações e sensações ao espectador: “seus significados simbólicos e psicológicos podem consequentemente ser explorados pelos cineastas com o intuito de obter uma faixa completa de efeitos de significação”. (COSTA, 2011, p. 118). As cores vão aparecer em Dolls de modo semelhante ao que ocorre no Bunraku, como elementos simbólicos de representação. Kitano usa toda uma paleta de cores que apresenta a caminhada desses casais ao longo das estações do ano e que, em cada estação, se desdobra em significados específicos e muitas vezes sutis. Um dos “modos cinemáticos de explorar a cor, por exemplo, é escolher as cores de uma cena exterior de acordo com a estação do ano, a hora do dia, e as condições meteorológicas”. (COSTA, 2011, p. 118). O vermelho, por exemplo, que Costa defende como sendo uma cor de impressão forte, que atrai a atenção, vai aparecer tomando praticamente toda a tela na representação do outono, apresentando as folhas de cerejeira que caem sobre o campo, assim como o sangue que se espalha dos personagens que perdem suas vidas. Observa-se, então, a relação com o vermelho “força da vida”, do teatro de bonecos, com a queda das folhas da cerejeira, que apresenta a queda dessas vidas. Também nesse momento é importante destacar pela primeira vez um recurso 393 que irá aparecer com frequência durante todo o processo da caminhada do casal. É o uso de um plano lateral de filmagem, com a câmera quase sempre parada, ou se movendo muito lentamente, mostrando os atores a percorrer todo o espaço da cena de um lado a outro da tela. Essa relação, criada pelo ângulo da câmera, corresponde diretamente ao espaço da cena no teatro Bunraku, onde do ponto de vista do espectador os bonecos executam as ações explorando a horizontalidade do palco. ! Figura 3 – Na primeira e segunda linhas observam-se diferentes momentos do filme Dolls, onde é feito uso do plano lateral de filmagem, ressaltando a horizontalidade da cena, em comparação com imagens de espetáculos do teatro Bunraku, na terceira linha. Courtesy of The Barbara Curtis Adachi Bunraku Collection, C.V. Starr East Asian library, Columbia University. Outra característica importante é que esses planos, em Dolls, são quase sempre muito abertos, apresentando lugares e cenários grandiosos, onde os personagens se mostram diminutos, como pequenos bonecos, presos a esse espaço que efetivamente tentam percorrer, reforçando essa relação com os bonecos do teatro Bunraku. O que Kitano propõe em Dolls, portanto, é uma troca, um diálogo entre questões do teatro de bonecos japonês Bunraku, com questões do seu próprio cinema. Em Aquiles e a Tartaruga (2008), a relação com as artes plásticas volta a ser o tema central, narrando em três tempos a vida do pintor Machisu, na infância (Reikô 394 Yoshioka), juventude (Yûrei Yanagi) e na fase adulta (Beat Takeshi). O paradoxo grego, criado por Zeno, no século V a.C., sobre uma aposta entre o herói ateniense e uma tartaruga serve de pano de fundo para essa história de eterna busca pelo fazer artístico. O filme se inicia com uma curta animação onde Zeno pergunta para um aprendiz se, ao apostarem corrida, Aquiles alcançaria a tartaruga, que, por ser mais lenta, receberia uma vantagem inicial. Para Zeno, independentemente da velocidade de Aquiles, quando ele alcançasse o ponto inicial da tartaruga, esta já estaria num terceiro ponto, mais à frente. Quando Aquiles chegasse a esse terceiro ponto, a tartaruga estaria em um quarto, e assim sucessivamente, de modo que o herói será mantido sempre para trás, ainda que em espaços e tempos cada vez menores – considerando uma infinita divisão desse espaço e tempo em parcelas cada vez menores, na perspectiva desse recorte temporal, Aquiles nunca alcançaria a tartaruga. A validez e relevância desse paradoxo vem sendo colocada em discussão ao longo dos séculos, mas a questão que Kitano aponta em sua leitura adapta a metáfora a uma realidade contemporânea: está focada na incapacidade de seu protagonista de alcançar o suposto destino de vender uma obra de arte sua. A tartaruga aparece aqui como esse destino, apresentado logo ao início do filme, quando ainda criança, Machisu, mostra, aos olhos orgulhos do pai, seus desenhos e pinturas e recebe ali a chancela que irá persegui-lo por toda a vida: você vai ser um grande artista. Desfeita essa atmosfera de sonho, com a crise das indústrias da família, Machisu passa de criança prodígio para órfão de pai, maltratado pelo tio, de artista promissor, para criança sem estudo e sem aparente futuro. O escopo desta fábula criada por Kitano aparenta uma superação, quando Machisu conhece Matazo, o senhor que ficava pintando à beira da estrada. Junto a Matazo, o garoto, que havia recebido uma bronca do tio por ficar desenhando em vez de alimentar as galinhas, deixa novamente de cumprir seus afazeres, para criar três enormes desenhos das galinhas no terreno em frente à casa, convencendo os tios a levarem-no para escola. Mas o fato é que a tartaruga está sempre um passo à frente e novamente Machisu encara dificuldades, sendo reprendido na escola por desenhar e tendo depois de lidar com o suicídio da madrasta e a morte de Matazo, que seguia exatamente a proposta do garoto – parar em frente ao ônibus para poder pintá-lo. 395 A morte vai traçar uma importante relação ao longo do filme. Em Hana-bi e Dolls, a morte se apresenta diretamente aos personagens, encerrando suas trajetórias, seja no duplo suicídio de Nishi e Miyuki, ou na queda de Matsumoto e Sawako. Com Machisu, porém, a relação com a morte se dá entre os que lhe estão próximos, e, de certo modo, com sua arte. Já na infância, ele perde o pai, que lhe financiava, depois a madrasta e o pintor Matazo, que eram aqueles que lhe davam apoio. Na juventude, as experimentações artísticas coletivas, que marcam a trajetória do jovem artista, cessam após a morte acidental de um dos integrantes do grupo e, já na fase adulta, acompanhamos a morte da filha, logo após ser revelado que ela se prostituía. Kitano busca mostrar de forma até mesmo cômica, o experimentalismo presente nos movimentos artísticos ao longo do século XX. O jovem Machisu tenta incansavelmente ver reconhecido seu trabalho artístico, primeiramente juntando-se a um grupo de artistas experimentais e, posteriormente, se dispondo até a copiar outros artistas numa cena em que ele apresenta uma sucessão de quadros para um marchand, que vai deduzindo o autor que serviu de referência e atestando que as versões de Machisu seriam apenas cópias de menor qualidade. O mesmo marchand segue aparecendo, de tempos em tempos, num processo quase professoral, questionando as obras de Machisu, que nunca consegue vender seus quadros. Porém, as outras pinturas presentes na galeria e que teriam um suposto valor são criadas pelo próprio Takeshi Kitano, evidenciando, de certo modo, uma crítica à noção de valor da obra de arte. O valor artístico das obras de Machisu, em última instância, estaria determinado pela possibilidade de venda, que nunca ocorre. Essa venda de sua obra é a tartaruga que Machisu persegue: o sonho de ficar famoso, de ser reconhecido como artista. 396 ! Figura 4 – Quadro de Machisu em Aquiles e a Tartaruga (1h46’). Destaque para a linha do tempo que, coloca entre outras questões, nascer, ficar famoso, rico e morrer. O experimentalismo de Machisu não cessa em sua juventude e já na idade adulta, é o suposto alter ego de Kitano, Beat Takeshi, quem vai assumir a interpretação desse papel. Nessa fase, ganha destaque a relação familiar de Machisu, num equilíbrio tênue entre o apoio da esposa Sachiko (Kanako Higuchi), e a completa rejeição de seu trabalho pela filha, que apresenta o desejo de uma suposta normalidade, expondo o olhar da vizinhança e envergonhada pelas notícias geradas pelas tentativas artísticas do casal. Mais uma vez, o valor da arte é questionado, agora pela noção de normalidade. Essa relação se apresenta numa tentativa de criar um trabalho após mais uma das intervenções do marchand, mostrando a Machisu uma reportagem de jornal. A reportagem destaca o sucesso recente em Nova Iorque de um antigo companheiro dos tempos de experimentação artística na juventude, que teria sido considerado o Basquiat japonês. Na cena seguinte, Machisu e Sachiko são vistos estudando livros sobre Basquiat e resolvendo criar uma intervenção urbana baseada nos trabalhos do grafiteiro americano, pintando as portas dos estabelecimentos do bairro onde moram. O problema é que essa tentativa é mal vista pelos donos dos locais que, descobrindo os autores, chamam a polícia e os obrigam a apagar tudo que havia sido feito, restando somente o lamento de Sachiko de que ela e Machisu teriam ficado famosos, ouvindo o marido que os vizinhos não entendem o que é arte. 397 O fato é que, ainda que algumas das práticas de Machisu e Sachiko sejam um tanto radicais, como o momento em que ela apanha de um boxeador, ou a tentativa de afogá-lo, para que pintasse no limiar da morte – que resultam em Machisu indo parar no hospital, enquanto Sachiko é levada pela polícia – o que se continua vendo é a saga desse pintor pelo reconhecimento de seu trabalho artístico, a busca desse Aquiles tentando alcançar a tartaruga. Mesmo quando é abandonado pela esposa, o que se vê ao fim do filme é uma sucessão de tentativas desesperadas, incluindo uma iniciativa frustrada de suicídio e uma radicalização nessa busca, que o leva a pintar em meio a um incêndio provocado por ele mesmo, que termina no hospital, enfaixado dos pés à cabeça. Voltando do hospital, ele encontra uma velha lata de refrigerante e tenta vendê-la em uma feira de usados. Após um casal de namorados que discute se a lata seria arte ou lixo, Machisu é surpreendido por sua esposa, Sachiko, que se oferece para comprá-la. Mais uma vez o questionamento do valor da arte se coloca, já que o momento em que Machisu finalmente consegue vender sua arte se dá com um ready made, ou ainda um objet trouvé, um objeto que não fora produzido por ele mesmo. O casal segue de mãos dadas e uma legenda final anuncia que finalmente o Aquiles alcançou a tartaruga. Porém, ele a alcança com um objeto a que nem ele mesmo dava valor, uma lata enferrujada que, logo em seguida à compra, é jogada fora por Machisu e Sachiko. ! Figura 5 – Machisu tentando vender a lata enferrujada em Aquiles e a Tartaruga (1h53’). Como pudemos observar, o diálogo estabelecido entre o cinema e outras áreas ocorre de diferentes formas nos filmes de Kitano. Em Hana-bi, a pintura aparece como um elemento que compõe a diegese do filme, enquanto em Dolls, o teatro Bunraku se coloca como uma linguagem que estrutura a própria construção 398 visual do filme. Em Aquiles e a tartaruga, por sua vez, a pintura, que antes figurava como elemento, passa a ser o mote temático, que conduz a trama. Do mesmo modo, se em Hana-bi a busca era destacar o olhar inocente invadido pela violência das ruas, enquanto em Dolls, os amores eram devastados pela violência que se impõe aos sentimentos, em Aquiles e a Tartaruga a busca é pela própria arte, que é consumida e perdida para o próprio tempo, que inexoravelmente zomba de Machisu. Em meio a essas possibilidades, pode-se inferir que a busca de Machisu é também a busca de Kitano, que por sua vez é compartilhada por artistas, acadêmicos e pesquisadores em geral: a tentativa de alcançar as tartarugas que se colocam à frente, sem nenhuma garantia de que poderão ser alcançadas, mas onde a própria busca constitui-se como a obra a ser legada em si, que nos estimulam a partir do próprio processo que se apresenta nesse buscar. Notas 1 O filme é também conhecido internacionalmente pelo seu título em inglês, Violent Cop. 2 What Kitano is doing here is fixing his gaze on the essence of matters. By crediting Yanagi Yurei and the others under their real names, Kitano keeps them as objects. In order to objectify himself, however, he had to make “Beat Takeshi” an object (ABE, 2005, p. 38). 3 Kitano’s films are organized only according to reasons personal to Kitano. In other words, Kitano starts off by acknowledging the established fact of the Beat Takeshi that floats around in television. To counteract this, he makes films. (ABE, 2005, p. 37). 4 Michel Temman – Why do you paint? | Beat Takeshi Kitano – I had a bad motorcycle accident back in 1994 and I had to cancel everything I was doing at the time, all of my television and film work. Since I was forced to stop everything for many months, while I was recovering, I had nothing to do. I was so bored that I took up painting to kill time – like Horibe ,the character in Hana-bi. (KITANO, 2010, p. 247-248). 5 Michel Temman – Thirty paintings are being exhibited in the basement, some of them are older, others are more recent. The paintings we see in your film Hana-bi were originally supposed to be vases... | Beat Takeshi Kitano – In Japan ikebana is the art of creating floral arrangements using plants, flowers and vases. There are many different ways of arranging the flowers in ikebana, and one of the most popular techniques is a minimalist approach that uses just one flower and one simple vase. I'm sure a relationship is created between the flower and the vase, but, personally, I've always found this technique to be visually quite boring. So I thought to myself: “Why not take this minimalist approach, based on a quite single flower, and use to create an animal? Its face would be the flower, and its body would be the vase.” And that's how a sunflower became the face of a lion, another flower, the face of a penguin. This childish process of association, of combining images, is what gave rise to the concept behind these paintings. (KITANO, 2010, p. 247). 6 Whether or not I act in one of my films basically depends on my physical condition. When I'm tired I don't act in my films. Also, I have to think about the balance in the whole film. I visualize the possible images of the film and if I think that I, as a protagonist, can carry the film from beginning to end, then I play the role. But if I think I can hardly fit the character, I use another actor. (KITANO, 2002). 7 The performances of Nishijima, Takeshige, and Mihashi grow out of Beat Takeshi's own performances. This impression is particularly strong in Nishijima and Takeshige's brusqueness, and in Mihashi's sharp-tongued Tokyo dialect. Dolls thus resembles Fireworks in that Kitano has placed versions of himself in concentric circles throughout the film. (ABE, 2005, p. 258). 8 To break free of self-restraint, and by so doing, to change the organizational method of his works – this is the artistic spirit on which Takeshi Kitano is currently staking his work. (ABE, 2005, p. 253). 9 Three groups of humans who have the same fate as the puppets – the fate of regret – appear on the screen. (ABE, 2005, p. 255). 10 It's not guns that kill protagonists. It's something like fate, inevitability or condensed emotions that become like a single bullet and shoot right though the characters. (KITANO, 2002). 11 When I was still an aspiring stand-up comic in Asakusa (traditional Tokyo neighborhood), I once saw 399 a man and a woman tied to each other with a piece of rope. The townspeople called them the "bound beggars." There were lots of rumors about the couple, but nobody really knew how they ended up becoming vagabonds. The vision of the bound beggars stuck in my mind and I've always wanted to make a film with characters like them. I decided to intertwine this story with two other short stories. The idea of each story came from something I saw or heard in the past, the kind of stories, which are quite common for the Japanese. (KITANO, 2002). 12 The story in the film is about a pop idol and, literally, pop idols are dolls. Once a doll is chipped or broken and you can't mend it, they're just thrown away, and so are the pop idols. (Kitano apud CLARKE, 2003). 3 Ao contrário do Kabuki, onde a presença de mulheres em cena é proibida desde o período Takemoto, no Bunraku é permitido que as mulheres exerçam qualquer uma das funções, ainda que isso seja incomum. Há ainda uma modalidade chamada otome Bunraku, onde a manipulação das marionetes e feita exclusivamente por mulheres. 4 When I was very young, her apprentices lived with our family. So I became familiar with Bunraku when I was a kid. All that stuff has been stuck in the back of my mind since then. (KITANO, 2002). 15 First of all, we could mention the aggressive introduction of “kinetic” camerawork, which relies on the camera’s technical possibilities (its ability to travel, zoom, and so forth). The camerawork at the opening of the film, which captures a performance of Monzaemon Chikamatsu's bunraku puppet drama, The Courier of Hell (Meido no hikyaku), is particularly anti-Kitano. The camera, which circles around quite close to the puppets, alternately resents total and partial view of the gestures being bestowed by the black-robed puppeteers. The technique here denies the unity of the shot itself, and yet a certain difficult-to-grasp “tenacity” appears in the camerawork. (ABE, 2005, p. 253). 16 Shots of the entire stage, the narrator, and the audience are also inserted in a complex manner. (ABE, 2005, p. 253). 17 Then, just as the leading couple in the puppet play approaches their tragic double suicide and begin to look at the “human world” from a new perspective, the subject of this “kinetic” camerawork shifts from the realm of puppets to the world of humans. Shots such as the abrupt and aggressively frontal reverse shots familiar from Kitano’s previous films are added in. This reinforces the sense of incongruity that is intentionally created in the shooting script. (ABE, 2005, p. 254). 18 Essa lógica vai ser reforçada no final do filme, quando, assim que a história é encerrada, Chubei e Umegawa aparecem novamente em uma repetição desse processo, retomando o olhar para aquela história que se encerrou e reafirmando a posição de contadores e mediadores dela. 19 DOLLS could be seen as 'human puppets' playing out a story conceived by Bunraku dolls. The film starts during their working hours, their performance. And after their day's work is done, they rest alone and start telling stories. (KITANO, 2002). Referências Bibliográficas ABE, Casio. Beat Takeshi vs. Takeshi Kitano. Tradução para o inglês William O. Gardner e Takeo Hori. New York: Kaya Press, 2005. COSTA, Maria Helena Braga e Vaz da. Cores & filmes: um estudo da cor no cinema. Curitiba: CRV, 2011. GEROW, Aaron. Kitano Takeshi. London: British Film Institute, 2007. GIROUX, Sakae M e SUZUKI, Tae. 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Roteiro: Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV Tokyo; Tokyo FM Broadcasting Co. Tokyo Theaters Company; WoWow, 2008. DVD (119 min). DOLLS. Direção: Takeshi Kitano. Produção: Masayuki Mori e Takio Yoshida. Roteiro: Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV Tokyo; Tokyo FM Broadcasting Co., 2002. DVD (113 min). HANA-BI. Direção: Takeshi Kitano. Produção: Masayuki Mori, Yauhi Tsuge e Takio Yoshida. Roteiro: Takeshi Kitano. Japão: Bandai Visual Company; Office Kitano; TV Tokyo; Tokyo FM Broadcasting Co., 1997. DVD (103 min). TAKESHI Kitano: Portrait d'une douce schizophrénie. Entrevista à Gilles Coudert. França, Triac Documentaire, 1999 DVD (16 min). Edição Atalanta Filmes, Portugal. THE LOVERS’ Exile. Direção e produção: Marty Gross. Roteiro: Marty Gross, adaptado da peça Meido no Hikyaku de Monzaemon Chikamatsu. Traduzido para o inglês por Donald Richie e Marty Gross. Japão, Canada: Marty Gross Film Productions Inc., 2006, reedição de 1980. DVD (87 min). Gustavo Henrique Lima Ferreira Professor em regime de dedicação exclusiva do curso de Licenciatura em Artes-Teatro na Universidade Federal do Tocantins (UFT). Possui graduação em Artes Cênicas - Habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010) e mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2013). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Direção Teatral. 401 O “GRUPO DE ARTE PONKÔ E A VANGUARDA TEATRAL PAULISTA DA DÉCADA DE 80 Cassiano Sydow Quilici - UNICAMP RESUMO: Este trabalho aborda a atuação do “Grupo de Arte Ponkã” no contexto de retomada do teatro de grupos em São Paulo, no começo dos anos 80. Focalizo principalmente seus dois primeiros trabalhos: “Tempestade em copo d’água” e “Apõnkalipse”. Desenvolvo uma reflexão sobre as práticas e temáticas “orientais” trazidas pelo grupo e suas contribuições singulares sobre as artes performativas, que não se enquadravam exatamente nas referências predominantes no campo teatral de então. Refiro-me especialmente a incorporação de práticas não artísticas ao treinamento dos atores (como o tai chi chuan), a aproximação entre “oriente” e “vanguardas minimalistas” (especialmente do teatro de Robert Wilson), as relações entre teatro, performance e “antropofagia”. Pretendo também estabelecer contrapontos críticos com outras formas de diálogo entre “oriente” e arte brasileira, recolocando as questões abordadas em relação ao momento atual. Palavras-chave: teatro brasileiro, Oriente, Grupo de Arte Ponkã ABSTRACT: This paper is about the acting of “Grupo de Arte Ponkã” in the context of rescuing of theatre groups in São Paulo, in the early 80’s. It focuses mainly on its first two works: “Tempestade em Copo d’água” and “Aponkãlipse”. I work on a reflection about practices and eastern themes brought by the group as well as its singular contributions about performing arts. I’m especially referring to the use of non-artistic practices in the training of the actor (such as tai chi chuan), the approximation between “ the east” and minimalistic avant-garde (especially Robert Wilson’s theatre), as well as the relationships among theatre, performance and “antropofagia”. I also intend to estabilish critical counterpoints with other forms of dialogue between East and Brazilian arts, placing the issues above in relation to present time. Keywords: Brazilian theatre, East, Group of Art Ponkã Neste trabalho, retomo alguns temas abordados na minha dissertação de mestrado sobre o teatro experimental em São Paulo na década de 80 e o Grupo de Arte Ponkã. Recoloco questões que não consegui desenvolver naquela oportunidade e também presto uma homenagem a esse grupo que teve tanta importância na minha formação, assim como na de outras pessoas da minha geração. O convívio com Paulo Yutaka, Celso Saiki e Luis Roberto Galízia 1 foi essencial na definição de meu próprio caminho de pesquisa. Naquele momento, em que se processava a retomada do teatro de grupo em São Paulo após o período da ditadura, pude me conectar com experiências de uma geração anterior. Refletir sobre o trabalho do Ponkã contribuiu para o desenvolvimento de uma ideia de 402 contemporaneidade que inclui o diálogo com tradições artísticas e culturais na construção de propostas singulares e inovadoras de atuação cênica e performática. Busco aqui tornar mais claros os elementos da trajetória inicial do grupo a partir dos seus dois primeiros espetáculos: “Tempestade em copo d’água” e “Aponkãlipse”. A meu ver, eles apresentam certo frescor no modo de abordar referências orientais e suas interconexões com questões que emergem nas artes performativas contemporâneas. Sujeitos não identificáveis O movimento de teatro de grupos no início dos anos 80 em São Paulo incluía, além do Ponkã, o Ornitorrinco (de Cacá Rosset, Luiz Roberto Galízia e Maria Alice Vergueiro), o Boi Voador (dirigido por Ulisses Cruz), o Pod Minoga (dirigido por Naum Alves de Souza), o Orlando Furioso (dirigido por Renato Coehen), o XPTO, entre outros, todos eles congregados em torno da Cooperativa Paulista de Teatro. A diversidade de propostas e linguagens desenvolvidas por esses coletivos não coadunava com a conhecida polarização entre Arena e Oficina, presente no teatro experimental da década de 60 e 70. Mariângela Alves de Lima expressou claramente as dificuldades encontradas pelos críticos em relação ao novo panorama: Essa sensação de massa indistinta, de um movimento difuso que se bifurca em incontáveis singularidades, é um desafio que o pensamento crítico sobre a atividade teatral enfrenta de má vontade teatral e por vezes com o pavor do erro. (LIMA: 1984, p.110) A pesquisadora detectava na cena paulista uma multiplicidade de perspectivas difícil de ser compreendida a partir das referências que ainda dominavam o campo artístico-cultural paulista. A polarização em torno da qual se desenvolviam as discussões poderia ser assim resumida: de um lado, um projeto de teatro “nacional-popular”, interessado no desenvolvimento de uma dramaturgia crítica brasileira e na conscientização política de um público mais amplo; de outro, a perspectiva de questionamento político-existencial do público de classe média através da radicalização dos experimentos de linguagens, ancorados principalmente na “antropofagia” de Oswald de Andrade e na contra-cultura internacional, entre 403 outras influências. Como encaixar nessa “dialética” a emergência de trabalhos cênicos que enfatizavam outras questões e distintos procedimentos criativos? No caso do Ponkã, como entender um grupo que afirmava a importância do diálogo com referências “orientais” e, ao mesmo tempo, com a linguagem da performance? Mais especificamente, o que era aquela linguagem corporal dos atores, pautada em técnicas não artísticas como o tai chi chuan? Como pensar a presença de um tratamento minimalista das cenas numa dramaturgia “ideogrâmica”, que justapunha diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema? Ou ainda, que tipo de leitura do modernismo brasileiro aparecia nos “manifestos” do grupo? Afirmava-se ali uma outra “antropofagia”, destituída do pathos da devoração do inimigo e atravessada pela ideia da hibridização e da justaposição das diferenças? A meu ver, nas primeiras montagens do grupo já se delineava uma atitude artística com traços especificamente contemporâneos, não alinhados com parâmetros predominantes em boa parte da crítica e do pensamento teatral brasileiro de então. Entendo também que o diálogo com referências orientais foi fundamental para fazer emergir tal singularidade. Para compreender esse processo é necessário retomar algumas condições que possibilitaram o surgimento do projeto do grupo. Uma delas é o contato de seus dois fundadores, Paulo Yutaka e Luiz Roberto Galízia, com artistas do teatro contemporâneo e da performance, na Europa e nos Estados Unidos. O “Oriente” do Ponkã, pelo menos na sua fase inicial, foi bastante influenciado pela leitura que artistas contemporâneos como Robert Wilson faziam deste tema. Galízia realizou seu doutorado sobre o trabalho do diretor norte-americano, publicando posteriormente um estudo pioneiro no Brasil 2 . O livro tornou-se uma referência fundamental para estudiosos e artistas posteriores que exploraram o campo da performance, como Renato Cohen (na época, orientando de Galízia). É importante sublinhar aspectos do ambiente cultural norte-americano em que germinou o trabalho de Wilson. Destaco o interesse de artistas das vanguardas do pós-guerra pelo pensamento budista e taoísta e pelas práticas meditativas. Como exemplos mais conhecidos entre nós, poderíamos citar a relação de John Cage com o zen budismo através de seu contato com D.T Suzuki 3 . O professor japonês 404 também exerceu forte influência em artistas da geração beat, tais como Allen Guinsberg e Jack Kerouac e no precursor dos happennigs, Allan Kaprow. Nesta direção, poderíamos destacar ainda a fundação, na década de 70, do Naropa Institute, no Colorado, coordenado pelo professor tibetano Chogyam Trungpa. Este centro tornou-se uma importante referência nos trabalhos de performers como Meredith Monk e foi também frequentado por Wilson. Para Galízia, o Grupo Ponkã tornou-se um espaço privilegiado de experimentação e processamento de influências que não encontravam muita ressonância em outros ambientes brasileiros. No “Ornitorrinco”, por exemplo, outro coletivo em que este artista teve importante participação, a pesquisa concentrava-se no teatro brechteano e em vanguardistas europeus como August Strindberg e Alfred Jarry. Segundo a dissertação de Ramos (1989), Galízia considerou o segundo espetáculo do Ponkã – “Apõnkalipse” – como seu trabalho mais autoral. Nele, o diretor pôde reinventar o que aprendeu com o teatro de Wilson e trocar experiências com atores interessados no diálogo entre as vanguardas e o “oriente”, num processo de criação que hoje chamaríamos de “colaborativo”. Paulo Yutaka se formou na EAD em 1973, tendo atuado na célebre encenação de “Galileu Galilei” pelo teatro Oficina, em 1974. Entre 1976 e 1980 permaneceu na Europa, participando de espetáculos do grupo Shasatsu Japanease Dance, estudando mímica, tai chi chuan e familiarizando-se com a linguagem da performance art. Antes de fundar o grupo Ponkã, em 1982, iniciou um curso de direção na ECA-USP, tendo dirigido dois espetáculos com alunos da EAD. O projeto do “Grupo de Arte Ponkã” surge com a vontade de pesquisar referências não muito comuns no ambiente teatral brasileiro. Além disso, a criação da companhia era um modo de afirmar a presença de artistas descendentes de japoneses que encontravam barreiras no mercado de trabalho brasileiro. Tanto Paulo Yutaka como Celso Saiki reclamavam da persistência de estereótipos do japonês na publicidade e na televisão brasileira, além da quase inexistência de papéis relevantes para eles no teatro comercial. Deste modo, o Ponkã expressava o desejo de pesquisar os cruzamentos entre referências orientais e teatro contemporâneo, constituindo-se como um grupo 405 “mestiço”, formado por descendentes de japoneses e outros brasileiros. Se a conexão entre “oriente” e vanguarda já era bastante evidente nos Estados Unidos e na Europa, o mesmo não acontecia no nosso ambiente teatral. Já havia, entre nós, os importantes estudos de Haroldo de Campos (1977) sobre as relações da linguagem “ideogrâmica” com a poesia e a forte presença japonesa nas artes visuais (os abstracionistas Tomie Ohtake, Manabu Mabe e Tikashi Fukushima entre outros). Em relação às artes performativas, surgiam os primeiros trabalhos do coreógrafo Takao Kusuno no Brasil. Pode-se mencionar ainda a importante pesquisa do musicólogo Hans-Joachim Koellreuter, incorporando elementos do zen-budismo e do hinduísmo na sua estética do “impreciso e do paradoxal”. No teatro, no entanto, tais diálogos eram incipientes, apesar da reconhecida importância de tradições cênicas orientais no processo de renovação teatral do século XX. A linguagem corporal e as “práticas orientais” Chamo-nos a atenção o fato do Ponkã ter se autodefinido como um “grupo de arte” e não exatamente como uma companhia teatral. A opção por uma maior abrangência na nomeação já indicava o interesse em alargar as práticas cênicas, incluindo procedimentos vindos de outras áreas. Como vimos, tanto Yutaka quanto Galízia estavam um tanto impregnados pela arte da performance e pela vanguarda minimalista. Mais do que isso, compreendiam que o teatro experimental e a performance dos anos 70 traziam uma série de inovações em relação à estética dos happenings dos anos 50 e 60, que seriam, segundo Yutaka, marcados por um menor rigor formal4. A maior elaboração composicional do teatro que propunham buscava elementos e procedimentos em outros domínios artísticos e também em práticas corporais não propriamente cênicas, como o tai chi chuan. O alargamento da noção de teatro e a pesquisa de uma linguagem cênica que rompia com convenções dramáticas permitiam a incorporação de treinamentos extra-artísticos, como o das artes marciais. O interesse pelo “Oriente” que marcou boa parte do trabalho dos encenadores seminais do teatro da primeira metade do século XX5, voltava-se principalmente para tradições cênicas como o Nô, o Kabuki, o Kathakali, a Ópera de Pequim e o Teatro Balinês. Elas ajudaram o teatro europeu a 406 repensar a linguagem do espetáculo e a própria função do teatro na cultura. Já as vanguardas do pós-guerra apropriaram-se de elementos performativos do teatro e de outras áreas para questionar as fronteiras entre arte e vida cotidiana. Nesse processo, os artistas passam a se interessar s por práticas culturais, filosóficas e espirituais orientais, tais como as artes marciais e as tradições meditativas. Como mencionamos anteriormente, ecos dessas discussões atravessavam o trabalho de alguns artistas brasileiros, não pertencentes ao teatro. O poeta Paulo Leminski, por exemplo, fortemente influenciado por Haroldo de Campos e pelo concretismo, elege uma arte marcial (no caso o judô) como uma espécie de porta de entrada para uma “sensibilidade zen”, que ele buscava desenvolver na sua poesia e nos seus hai kais. Numa biografia de Matsuo Bashô chamada “Bashô, a lágrima do peixe”, publicada em 1983, Leminski dedica boa parte do texto explorando as relações entre o exercício da escrita poética e as práticas do zen como o caminho que dará forma à vida e à obra do importante poeta: “a força determinante da vida de Matsuô era uma coisa chamada zen.” (Leminski: 2013, p.125). Mesmo expressando uma compreensão do zen muito marcada, a meu ver, pela leitura que a “geração Beat” fez do budismo (o que mereceria uma série de comentários críticos), Leminski compreende e enfatiza as articulações entre uma prática artística e um treinamento marcial meditativo, capaz de transformar a poesia numa “via” de realização existencial. No Ponkã, a prática taoista do tai chi chuan, que pode ser entendida como uma forma de meditação em movimento, tornou-se uma espécie de treinamento básico dos atores. A combinação desse tipo de exercício com a experiência artística e cênica dos membros do grupo trouxe uma singular qualidade corporal para as encenações, imediatamente reconhecida pelos críticos. Sábato Magaldi, ao comentar o segundo espetáculo do grupo, “Aponkãlipse”, no jornal “O Estado de São Paulo” (21/04/1984), apontava o Ponkã como o elenco que melhor sabia utilizar a “expressão corporal” no teatro paulista. O uso do termo “expressão corporal” 6 mostrava como parte da crítica tentava articular o trabalho do grupo com referências da década de 70, sem possuir ainda leituras mais precisas do que se dava em cena. Acrescenta-se ainda que as qualidades “não verbais” dos primeiros espetáculos do Ponkã (notadamente “Tempestade em Copo D’água” e “Aponkãlipse”) despertavam 407 certas desconfianças num ambiente teatral fortemente marcado pelos traumas da censura à palavra, na ditadura militar. As estéticas pautadas no uso das imagens e do corpo, desenvolvidas por grupos como o XPTO, Orlando Furioso, Boi Voador e depois por Gerald Thomas, eram vistas, por parte da classe teatral mais identificada com um pensamento político-militante, como “alienadas”, sintomas do processo de repressão ao pensamento perpetrada pelos governos militares. A meu ver, a utilização de técnicas como o tai chi chuan possibilitam justamente o desenvolvimento de um outro tipo de “pensamento”. Incidindo sobre processos cognitivos básicos - como a atenção, a concentração, a conexão corpomente, a relação com o espaço e o tempo – tais práticas permitem o refinamento da percepção e o afloramento de estados sutis, de grande valia para o trabalho artístico. O aprofundamento do treinamento implica na gradativa modificação de hábitos, a partir da experiência intensiva dos movimentos e das técnicas. A repetição das sequências parece criar uma espécie de “memória corporal” dos estados experimentados que se transformam em referências para a vida cotidiana do praticante. Estabelece-se assim uma ponte entre a técnica e a desconstrução dos padrões automatizados de percepção. Daí a pertinência dessas práticas num contexto artístico que se pergunta sobre as relações entre arte e vida. Tal tipo de questionamento, presente em artistas contemporâneos preocupados com a redução do trabalho artístico a uma mera mercadoria, encontra paralelos em visões orientais que entendem a arte como uma forma de “cultivo” cotidiano capaz de despertar certas possibilidades da consciência humana7. Em “Aponkãlipse”, o tai chi chuan aparecia também diretamente como linguagem cênica no último quadro do espetáculo, em que o grupo todo apresentava uma “série” de movimentos junto a um texto do Tao Te King. A beleza dos movimentos encantava os olhos, mas podia-se ver ali mais do que o simples uso de uma “forma” ou um motivo “oriental”. Os artistas buscavam outros modos de compreender o treinamento do ator-performer. Enquanto técnica não espetacular, o tai chi favorece o cultivo de estados de atenção, percepção e presença, que podem ser utilizados com grande liberdade na criação cênica. Neste sentido, o Ponkã estava sintonizado, não necessariamente de modo 408 consciente, com pesquisas sobre a arte do ator que buscavam incorporar técnica extra-artísticas no treinamento do performer. Não me refiro apenas às conhecidas investigações de Jerzy Grotowsky na última etapa de seu trabalho (“arte como veículo”), com os cantos das tradições afro-caribenhas. Penso especialmente no importante trabalho desenvolvido por Philiip Zarrilli, tomando as práticas do tai chi chuan, yoga e Kalaripayatu, como bases para a formação de um estado propício à criação. Numa perspectiva intercultural, Zarrilli relê as contribuições de Stanilawski a partir da questão da conexão corpo-mente enquanto fundamento do treinamento do ator. O pesquisador encontra nas artes marciais citadas e no yoga procedimentos muito precisos para construção de refinados modos de percepção e ação, a partir de um pensamento filosófico, religioso e estético, distinto do dualismo cartesiano. Se os artistas do Ponkã não chegaram a desenvolver todos os desdobramentos de algumas opções que realizaram, podemos reconhecer o pioneirismo de algumas intuições presentes já nos seus primeiros trabalhos. Montagem ideogrâmica Outro aspecto que merece ser destacado diz respeito às estratégias utilizadas na transformação do material cênico numa “dramaturgia” singular. O termo “dramaturgia” deve ser compreendido aqui na sua acepção ampla, incluindo tanto o texto verbal quanto a organização das ações e dos vários elementos que compõem a cena. Se tomarmos, por exemplo, o primeiro espetáculo, “Tempestade em Copo D´água”, poderemos exemplificar bem o que estou chamando de montagem “ideogrâmica”. Há um tema central: “o ser masculino com seus traumas e anseios, entre os polos caricatos do machismo e do homossexualismo” (na formulação de Yutaka). Em torno dele se desenvolverão uma série de cenas mais ou menos independentes entre si. O assunto genérico dá uma direção inicial para a pesquisa, sendo rodeado por diferentes pontos de vista que aparecem em cenas singulares. Não há, portanto, uma questão abordada dramaticamente através do desenvolvimento de um conflito numa narrativa articulada, mas uma constelação de cenas sintéticas que se organizam em torno de um motivo norteador. O processo de criação das cenas também se realiza por procedimentos não 409 dramáticos. Como nos revelou Yutaka, vários quadros foram desenvolvidos a partir de improvisações sobre memórias, impressões e imagens trazidas pelos artistas. Os materiais não representavam necessariamente situações ou personagens. Em geral eram depoimentos corporais de forte teor subjetivo. Os exercícios de improvisação poderiam gerar então uma composição mais estável, definida como “sequência coreográfica”. A partir daí eram acrescidos personagens e situações reconhecíveis, como uma camada mais superficial da composição. As personagens em geral eram estereotipadas, remetendo a referências da cultura de massa: a mulher barbada, o índio viril, os marginais e a mocinha de filmes policiais, o bailarino e assim por diante. Os objetos de cena também eram carregados pelas ideias de “gênero”, masculinos ou femininos: secadores de cabelo, barbeadores, vassouras, revólveres, sutiãs, barbas, etc. A opção pelos clichês expressa a preocupação do grupo em trabalhar com signos facilmente reconhecíveis pelo público. No processo de criação, esse nível mais legível da cena era construído em cima de estruturas coreográficas iniciais, mais abstratas e portadoras das vivências pessoais dos atores. Essas estruturas podiam ser ainda trabalhadas posteriormente pelo jogo teatral (geralmente humorístico e absurdo) com as “personagens”, o que visava dar ambiguidade e flexibilidade aos estereótipos: a mulher dona de casa “varre” os perigosos marginais para fora de casa; o índio viril faz um “strip-tease” com as penas, e assim por diante. Surge também com frequência o tema da cisão entre o comportamento verbal e corporal, como se a linguagem física pudesse revelar algo recalcado no discurso verbal. O que estou chamando de “montagem ideogrâmica” aparece, em primeiro lugar, no tipo de concatenação das cenas. Trata-se de uma dramaturgia constituída pela justaposição de fragmentos mais ou menos independentes, que possuem relações analógicas entre si. Nesse sentido, a dramaturgia remeteria a uma lógica semelhante à linguagem ideogrâmica, chinesa e japonesa, estudada por Haroldo de Campos (1977), no livro “Ideograma”. Não sei se os artistas do Ponkã conheciam a obra, mas é fato que esta acabou se tornando uma referência importante para os estudos de estética oriental no Brasil. No ensaio inicial, Campos analisa o trabalho do norte-americano Ernest Fenollosa sobre “os caracteres da escrita chinesa como 410 instrumento para poesia” e sua absorção pela poesia moderna através da leitura e divulgação feita pelo poeta Ezra Pound. Na linguagem ideogrâmica, os processos de justaposição de caracteres constelam novos significados. São vários os belos exemplos de composição de ideogramas dados no livro: coração + meio = lealdade; cinzas + coração = desespero; sol + lua = brilho. Nota-se que os significados abstratos são obtidos a partir da aproximação de referências concretas. Por isso, Fenollosa chegou a postular que os ideogramas estariam mais próximos de uma percepção direta e sensível dos fenômenos, sem se apoiarem, a princípio, em conceitos abstratos. Daí também a qualidade pictórica e icônica dos caracteres. Campos ressalta, por sua vez, a ausência de conectivos entre os ideogramas e as associações por justaposição que configuram os significados. De um modo semelhante, a primeira peça do Ponkã é formada por uma constelação de cenas em torno de um tema, sem conectivos ou vínculos lineares entre elas. O que dá certa coesão ao material são as ressonâncias analógicas dos seus elementos, que vibram como harmônicos. Para que isso aconteça é preciso desmanchar as hierarquias convencionais da linguagem do teatro dramático, que entendem o texto e a fábula como o alicerce da construção cênica. Na lógica ideogrâmica todos os materiais cênicos têm importância semelhante: objetos, espaço, gestos, movimentos, palavras, organização temporal, luz, som, ruídos. Articulam-se e “jogam” entre si de maneiras imprevistas, criando também relações transversais entre as cenas. As composições de elementos simples sugerem significados mais abertos e abstratos. A poesia se constrói a partir de percepções sensíveis que permitem apreensões metafóricas. Se há “micro-narrativas”, estas não se estabelecem como o essencial do espetáculo. São apenas mais um dos ingredientes do jogo lírico, humorado e por vezes absurdo, que pretende “desdramatizar” um assunto (machismo, homossexualismo) por demais carregado de paixões e preconceitos: “tempestades em copo d’água”. Desdramatização da “antropofagia” Os manifestos que acompanham os primeiros trabalhos do Ponkã “Manifesto Ponkã” (Paulo Yutaka) e “Teremos que ser radicais” (Luis Roberto 411 Galízia) – reivindicam, de modos distintos, uma conexão do grupo com o modernismo brasileiro na sua vertente “oswaldeana”. A experiência anterior de Yutaka com o teatro Oficina e o interesse de Galízia pelas vanguardas tornam compreensível essa aproximação da “antropofagia”, um conceito que ajuda a pensar as alteridades culturais e a experimentação artística. Pergunto-me, no entanto, sobre o sentido singular que o termo acaba assumindo no Ponkã e se ele dá conta do que parece emergir de singular no trabalho do grupo. O manifesto de Yutaka, assinado com o com o codinome Ubiratan Tokugawa e publicado no programa do primeiro espetáculo em 1982, é composto por uma série de pequenos textos de 3 linhas, que lembram hai kais. Existe uma certa despretensão, uma opção pela simplicidade e leveza, que diferencia o texto do tom que geralmente associamos a “manifestos”. ponkã é filho natural brasileiro mistura de culturas e raças ponkã mestiço ponkã é laranja mexerica da terra de nativos e imigrantes 8 ponkã brasileiro Mais do que a postura de “devoração” das influências estrangeiras como política de uma cultura colonizada (que caracteriza a “antropofagia oswaldeana”), estamos diante de metáforas vegetais e das ideias de mistura, miscigenação e hibridismo. Nesta atmosfera, as identidades étnicas se desmancham e se recombinam em diversas possibilidades, entre elas a de uma “brasilidade mestiça”. Mas essa não é a única opção expressa no texto que tem o cuidado de não se fixar numa imagem ou idéia privilegiada, abrindo-se para outras perspectivas, incluindo uma menção direta à antropofagia: ponkã é mistura do mundo tem ásia áfrica europa ponkã américa ponkã é capital são paulo respira antropofagia ponkã social ponkã nasce em fase de crise sobrevive no meio do caos ponkã fatal 412 ponkã deseja abrir saídas em caminhos fechados e buracos ponkã coragem A antropofagia é um dos elementos do manifesto, mas não sua idéia central. Ela convive com outras perspectivas, menos agonísticas, como as da mestiçagem e da hibridização. Num certo sentido, tal justaposição “desdramatiza” as várias posições em jogo, fazendo-as dançar no mesmo espaço. Sem fazer muita “tempestade em copo d´água”, o manifesto parece querer nos lembrar que qualquer posicionamento pode se tornar rígido e caricatural. Por isso, o pensamento precisa adquirir algo da qualidade do tai chi. Uma posição pode ser necessária num determinado momento, mas sempre corre o risco de perder a fluidez, desembocando no discurso da “identidade”. Daí a importância de se jogar com o fluxo constante das mutações do mundo fenomênico, tema privilegiado no pensamento taoísta e budista. A “antropofagia” torna-se apenas mais um ponto de vista, uma estratégia possível e não uma direção programática. Lembro-me da atuação política de Paulo Yutaka e de Celso Saiki na Cooperativa Paulista de Teatro. Num ambiente ainda por demais polarizado entre os partidários de um teatro político militante e os adeptos da corrente “antropofágica”, os dois artistas, que foram presidentes da instituição, buscavam muitas vezes as frestas para outras possibilidades de ação. Nesses momentos, a postura estética do Ponkã se desdobrava numa ética e numa política. As altas temperaturas dos debates ideológicas e a hybris modernista de desejar o novo a qualquer custo pareciam ceder terreno para um jogo mais sutil e eficaz. É certo que o Ponkã também se alimentou de um romantismo contracultural, em que o “Oriente”, em geral, tem um assento garantido9. Mas era possível sentir ali o frescor de outros ventos, uma vontade de ir mais fundo naquilo que se vislumbrava, movimento este bruscamente interrompido pela morte de vários membros do grupo. O trabalho do Ponkã se desdobrou posteriormente numa pesquisa mais vertical de matrizes do teatro clássico oriental, que geraram o espetáculo “Pássaro do Poente”. A respeito dessa peça outros pesquisadores, como a atriz Alice K e o diretor Márcio Aurélio Garcia, participantes ativos desse processo, podem nos fornecer abordagens 413 aprofundadas. Notas 1 2 Cito aqui o nome dos artistas com quem tive maior contato. A tese foi publicada pela editora Perspectiva, com o título “Os Processos Criativos de Robert Wilson”, em 1986. 3 A este respeito ver LARSON (2012) A leitura de que os happenings dos anos 50 e 60 eram mais caóticos e improvisados do que as ações performáticas foi propagada também pelos trabalhos teóricos de Renato Cohen, importante precursor dos estudos e práticas da performance no Brasil. No entanto, os estudos da pesquisadora Thaíse Nardin sobre os roteiros dos happenings de Allan Kaprow mostram que a questão é mais complexa. 5 Referimo-nos à reinvenção das referências orientais nos trabalhos de Meyerhorld, Craig, Artaud, Dullin, Copeau, Brecht entre outros. 6 O termo “expressão corporal” designava uma série de práticas de forte conteúdo improvisacional, utilizadas como exercício na área de dança e do teatro. Um treinamento, portanto, distante do tai chi chuan, que se utiliza de Katis e sequências fixas. 7 Como nos mostra YUASA (1987)(1993), boa parte das técnicas encontradas nas artes marciais (Ken dô), na poesia waka, no teatro Nô e na medicina tradicional, derivam de práticas contemplativas advindas do Budismo. Elas perseguiriam a construção de um estado de “unificação” do corpo-mente como modo de obtenção do satori , ou iluminação. 8 Os textos citados pertencem ao “Manifesto Ponkã”, publicado no programa do espetáculo “Tempestade em Copo d’água”, em 1983. 9 Pode se ler no manifesto escrito por Galizia, “Teremos que ser radicais”, publicado no programa do espetáculo “Aponkãlipse”: “Neste Brasil em que estamos agora, o novo, o moderno, o hodierno, o transformador, a decisão radical, a afirmação contracultural, precisamos mais uma vez dar ouvidos aos loucos e aos profetas.” 4 Referências Bibliográficas Livros CAMPOS, Haroldo de (org). Ideograma: Lógica, Poesia e Linguagem. São Paulo. Editora Cultrix e Editora da Universidade de São Paulo.1977. LEMINSKI, Paulo.Vida. São Paulo. Companhia das Letras. 2013. LARSON, Kay. Where the Heart Beats: John Cage, Zen Buddhism and the Inner Life of Artists. New York. The Pinguin Press.2012. YUASA, Yasuo. The Body, Self Cultivation and Ki-Energy. New York. State University of New York Press.1993. ZARRILI, Phillip B. Psychophysical Acting: an Intercultural Approach after Stanislawski. London and New York. Routledge. 2008. -Artigos de Revista LIMA, Mariângela Alves de. Perplexidades de um crítico. Arte em Revista, São Paulo, n.8, Kairós, p.110,1984. Dissertações de mestrado QUILICI, Cassiano Sydow. Teatro Experimental: Liminaridade e Mercado.1992.152 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)- Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. RAMOS, Luis Fernando. Galízia: uma poética radical no teatro brasileiro. 1989. 140 f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas)- Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 414 Cassiano Sydow Quilici Professor livre docente do instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com doutorado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP e mestrado em Antropologia Social pela Unicamp. Autor dos livros “Antonin Artaud: Teatro e Ritual” (sd. Annablume e “O Ator-Performer: Poéticas da Transformação de si” (Ed. Perspectiva/no prelo) e diversos ensaios sobre teoria teatral e estudos interculturais. 415 A DIMENSÃO TÁCITA COMO EIXO DO TRABALHO DO ATOR NOS TEATROS ORIENTAIS Matteo Bonfitto Júnior - UNICAMP RESUM O: Sobretudo a partir do início do século XX no Ocidente, os processos de atuação passaram a representar no teatro um material de investigação artística constante. Nesse sentido, vários criadores teatrais ocidentais foram extremamente influenciados por diferentes manifestações cênicas orientais; bastaria citar a relação entre Meierhold e o Kabuki, Brecht e a Ớpera de Pequim, Artaud e o Teatro de Bali, e Grotowski e o Teatro Kathakali, dentre muitos outros. De qualquer forma, tais influências muitas vezes não ultrapassaram o plano das primeiras impressões e intuições. Nesse sentido, vários aspectos constitutivos do que poderíamos chamar de ‘dimensão tácita da atuação’, que envolvem por sua vez implicações técnicas, éticas e estéticas, passaram desapercebidos por tais criadores. É nesse sentido que essa pesquisa se insere, na medida em que busca olhar para a dimensão tácita da atuação a partir de experiências práticas diretas, vivenciadas em primeira pessoa, relacionadas com o Teatro Kabuki, o Topeng Balinês, o Kathakali, o Chi Kung e o Kung Fu. Não se trata aqui de buscar construir modelizações universalizantes mas de buscar perceber com os olhos da prática que os processos de atuação envolvem aspectos que vão muito além da aplicação utilitária de técnicas. Palavras-chave: tácito, alteridade, atuação, experiência. ABSTRACT: Since the beginning of the XXth Century in the Western World, acting processes have started to be seen as a material of constant investigation. In this respect, many western theatre artists were deeply influenced by a variety of eastern theatre artforms, such as the relationship between Meyerhold and the Kabuki Theatre, Brecht and the Peking Opera, Artaud and the Balinese Theatre, Grotowski and the Kathakali, among many others. Notwithstanding, such influences very often did not go beyond their first impressions and intuitions. As a result, many aspects that constitute what we could call the ‘tacit dimension of acting processes‘ was overlooked by these artists. This point represents the core of this article, since it aims at looking at the dimension already referred to using in this case firsthand direct experiences associated with Kabuki Theatre, Balinese Topeng, Kathakali, Chi Kung and Kung Fu. It is important to clarify that the objective here is not that of creating universal models but that of perceiving, through the eyes of practice, that acting processes involve aspects that go far beyond the utilitarian application of techniques. Keywords: tacit, alterity, acting, experience. A escritura desse artigo tem como objetivo refletir, ainda que brevemente, sobre a dimensão tácita que envolve o trabalho do ator em algumas formas teatrais orientais. E ao mesmo tempo, tem um sentido de reencontro que pode ser representado, em termos gráficos, por uma espiral. De fato, em meu percurso como artista-pesquisador, a minha primeira reflexão feita sobre a atuação do ator, elaborada de maneira mais consistente, se deu após uma experiência prática vivida 416 com a Dança Kabuki chamada Shosagoto.1 Apesar de ter tido já naquele momento uma trajetória variada com as práticas de atuação, senti nessa ocasião, pela primeira vez, a necessidade de aprofundar uma experiência através da reflexão e da elaboração. Tal reflexão não teve como objetivo explicar a prática, mas reconhecer uma espécie de zona de ressonância que potencializou a experiência vivida. Várias experiências diretas relacionadas com diferentes manifestações cênicas orientais aconteceram desde então mas esse processo teve uma importância particular, como se um universo tivesse se aberto. A percepção que havia tido nos diversos contextos de formação conhecidos até então, envolvia uma combinação de admiração e preconceito com relação aos atores orientais, admiração em função da destreza atlética demonstrada por eles, mas ao mesmo tempo um preconceito em relação a uma suposta falta de criatividade presente no trabalho de tais profissionais. Tal falta de criatividade era associada, em certos contextos de formação que frequentei, aos processos estabelecidos nas pedagogias teatrais orientais, aos modos de transmissão de conhecimento empregados nesses teatros, apoiados, sobretudo na imitação dos mestres pelos alunos-atores. Dizia-se, então, que a centralidade da imitação na formação dos atores orientais poderia ser vista como uma evidência de ausência criativa, em função também da não exploração de improvisações, nesse caso. Tais percepções perduraram até a minha experiência direta com a Dança Shosagoto, conduzida pelo Mestre Onoe Ozomu. Descreverei alguns aspectos dessa experiência em função do papel que ela exerceu enquanto desencadeadora de uma transformação perceptiva profunda. O material explorado aqui foi uma dança chamada Itakodejima. Desde o primeiro dia do curso vestimos o kimono (yukata), a faixa (obi), e em mãos um leque (sensu). Todas as ações eram executadas pelo mestre e reproduzidas por nós, alunos-atores. No início de cada aula repetíamos as ações aprendidas nos dias anteriores para depois passarmos às ações que deveriam ser estudadas naquele dia. Repetíamos as ações diversas vezes com e sem o acompanhamento de uma música. Em muitos momentos, enquanto observava o mestre revivia certas sensações experimentadas quando vi pela primeira vez um espetáculo Kabuki. Os gestos, as ações, tinham um alto grau de especificidade não 417 decodificável. A formalização das ações, em seus percursos cinéticos, muitas vezes não se diferenciava daquelas presentes nos códigos comportamentais, digamos, cotidianos. E, no entanto, a sua manifestação expressiva continha algo de específico. Nos momentos em que as ações eram executadas individualmente, sem a utilização da música, buscava compreender porque alguns atores, apesar de executarem o trabalho com precisão, não conseguiam produzir o mesmo fenômeno. As ações seriam realmente as mesmas? O processo de observação continuou; buscava executar com precisão as ações propostas pelo Mestre. O desdobramento desse processo me levou a perceber que aquilo que era chamado de kata não correspondia à ideia que tinha de ‘forma’. Não se tratava nesse caso de composições lineares ou espaciais simplesmente. Após algum tempo comecei a reconhecer a existência de certos elementos, a diferenciá-los internamente, além de constatar a presença de algumas constantes que se repetiam. Com o tempo outras questões foram surgindo. Por exemplo, frequentemente ações e sequências reapareciam, mas não eram exatamente as mesmas. Comecei a perceber componentes invisíveis que estariam sob o desenho e os percursos cinéticos daquelas ações. Percebi então que poderiam estar presentes em tais ações dois níveis expressivos, chamei o primeiro de ‘esqueleto estrutural’ e o segundo de ‘qualidade de energia’. O nível ‘esqueleto estrutural‘ envolve todos os elementos que podem ser reproduzidos visualmente no espaço ao passo que o nível ‘qualidade de energia‘ diz respeito ao como as ações são executadas e seria constituído por três aspectos: variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos. 2 Percebi, então, que cada kata envolvia uma relação dinâmica entre esses dois níveis expressivos, que podem ser vistos como continuums. Percebi, também, que cada kata emergia da relação entre estruturas corporais que se manifestavam espacialmente e qualidades de energia que eram produzidas pela articulação entre diferentes variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos. Essa elaboração, a qual chamei de ‘Modelo de Kata’, publicada mais tarde em meu primeiro livro (Bonfitto, 2002, 2006), emergiu da experiência prática direta, e tal fato me possibilitou problematizar a percepção simplificadora do trabalho dos atores orientais já mencionada. De fato, a imitação foi percebida a partir dessa experiência não como uma reprodução mecânica de algo já existente mas como um processo que pode envolver muitas camadas e tipos de manifestação. A leitura de Kadensho 418 feita na mesma época, obra escrita por Zeami (ZEAMI, 1968),3 contribuiu de maneira fundamental para essa percepção da imitação. Em Kadensho, Zeami faz referência a cinco princípios: princípio de imitação, princípio de verossimilhança, princípio de identificação, princípio de essencializacão e princípio de limitação. A noção generalizante de imitação, que corresponderia a uma mera reprodução da aparência das coisas, é assim dissolvida, passando a dar lugar a uma trajetória artesanal complexa. Essa elaboração de Zeami adquire uma grande relevância na medida em que nos faz perceber a imitação como processo que vai muito além da reprodução de aparências para envolver a captação de aspectos sensíveis dinâmicos que dissolvem por sua vez o dualismo que permeia a relação sujeito-objeto.4 Outro aspecto examinado nessa ocasião está relacionado com a suposta falta de criatividade observada em alguns contextos de formação do ator no Ocidente. Esse argumento estava relacionado com a aparente ausência de processos improvisacionais no trabalho dos atores orientais. Ao reconhecer a importância do nível expressivo ‘qualidade de energia’ na produção das Kata, pude problematizar também essa percepção. De fato, percebi que a articulação dinâmica existente entre variações rítmicas, impulsos e contra-impulsos produzia um ‘espaço de improvisação’ que poderia ser explorado pelo ator. Tal aspecto ficou claro em função de uma observação atenta do Mestre Ozomu enquanto ele repetia as kata. Percebi que as mesmas kata se manifestavam de maneira precisa, mas ao mesmo tempo essa manifestação envolvia diferenças quase imperceptíveis que estavam relacionadas com a articulação dinâmica referida. Ao compartilhar essa percepção com ele, o Mestre concordou mas ao mesmo tempo disse, em poucas palavras, que esse espaço poderia emergir somente após uma grande experiência do ator, de outra maneira, as kata se descaracterizariam e perderiam a própria especificidade expressiva. Além disso, a criatividade pode ser reconhecida no caso do ator Kabuki a partir da possibilidade existente para aqueles reconhecidamente experientes de criar novas kata que podem assim ser inseridas nas partituras de ações já existentes. Pude constatar através dessa experiência que a argumentação relacionada à falta de criatividade e de ausência de improvisação no trabalho dos atores orientais nesse caso do ator Kabuki - não se sustenta. Tal argumentação era apoiada, 419 provavelmente, em um desconhecimento e na ausência de experiências diretas com as linguagens de atuação orientais. Após a prática com o Mestre Ozomu várias outras experiências relacionadas com as linguagens cênicas orientais aconteceram. Tive um contato direto com John Kalamandalam, Mestre indiano de Kathakali, Enrico Masseroli, Mestre de Topeng balinês; mais tarde com o ator japonês Yoshi Oida e com o ator balinês Tapa Sudana, os dois últimos integrantes do grupo internacional de teatro de Peter Brook, com sede em Paris.5 Além de reconhecer nessas ocasiões uma certa recorrência ampliada do Modelo de Kata - em que estruturas eram articuladas dinamicamente com qualidades de energia - pude, também a partir de uma percepção mais aprofundada da questão da energia, reconhecer a centralidade da dimensão tácita nessas experiências. Esse reconhecimento me fez resgatar inclusive a experiência vivenciada com o Mestre Ozomu. Na verdade, desde a experiência vivenciada com o Mestre Ozomu, o reconhecimento da importância da dimensão tácita no trabalho do ator já estava presente para mim de forma latente. Mas o reconhecimento e a nomeação dessa dimensão, ocorridos a partir das leituras de textos de Michael Polanyi (POLANYI, 2006, 2009) potencializou essa consciência e ampliou de maneira significativa o meu horizonte perceptivo relacionado ao tácito. Ao mesmo tempo, percebo a necessidade de ir além das elaborações de Polanyi uma vez que o tácito é referido em seus textos quase sempre em relação à linguagem verbal e escrita, a necessidade de ampliar esse território a fim de inserir nele as práticas do ator. A partir dessas leituras, pude rever os processos com os mestres-atores mencionados; muitas percepções emergiram dessa revisão. Tudo o que estava em torno ao fazer passou a ser percebido como uma dimensão fundamental, e não secundária, dessas práticas pedagógicas. Percebi que, antes da execução das práticas, uma série de processos já estava ocorrendo. A qualidade de presença dos mestres, os modos de acolhimento dos alunos-atores, a preparação do espaço, que envolvia desde a limpeza do chão até o ‘acordar os materiais’ através de procedimentos de percussão,6 e a qualidade de silêncio que permeava tudo isso. É preciso criar condições para que algo aconteça, ou seja, é preciso que se instaure 420 um processo de ampliação perceptiva para que experiências mais densas possam emergir. No caso do trabalho do ator, Eugenio Barba deu uma contribuição importante para os desdobramentos das reflexões sobre a presença do ator, na medida em que apontou aspectos que estariam envolvidos em sua produção: equilíbrio precário, oposições musculares, omissão, princípio de equivalência, kraft, etc. Sem descartar essas possibilidades, pude perceber qualidades de presença nos mestres referidos que emergiram não somente de um ‘trabalho sobre si’, mas também da qualidade de contato com o Outro, processo esse entendido como exercício de alteridade. Em outras palavras, a produção de presença foi percebida nesse caso não somente como um efeito do artesanato do ator sobre si mesmo, mas igualmente como habilidade de escuta e de estabelecimento de um contato mobilizador com o Outro. Esse contato implica por sua vez não somente a transferência de conhecimentos e competências já adquiridos, mas igualmente a capacidade de compartilhamento de experiências que, assim, a cada vez, a cada momento, são presentificadas. Trata-se, portanto da presentificação de experiências que funciona assim como uma componente fundamental da construção compartilhada de conhecimento. O conhecimento dessa maneira não é algo que se transfere simplesmente, que se adquire, se compra, mas se dá em cada um que age sobre o Outro e vice-versa, reciprocamente. A ausência de instruções e de explicações sobre a prática, aspecto esse que não pode ser dissociado das observações feitas acima sobre a presença, representou uma outra componente importante desses processos. Não se trata aqui do silêncio que resisti pessoalmente durante a minha passagem pela escola elementar, um silêncio visto como ‘questão de ordem’ e como evidência de ‘bom comportamento’. Nem as minhas várias idas à diretoria conseguiram, na época, me fazer entender a necessidade de um silêncio imposto, não o silêncio produzido pela experiência, mas o silêncio burocrático, exigido para fortalecer um simulacro de processo pedagógico. Ainda hoje, ao ministrar cursos práticos de atuação em diferentes contextos, percebo frequentemente a resistência por parte dos atores, mesmo aqueles profissionais, em se lançarem nas práticas sem uma necessidade prévia de entendimento das mesmas. Dentre as perguntas frequentes que surgem nessas situações há algumas clássicas: “mas qual seria o objetivo dessa prática?”; 421 “o que você está querendo com isso que propõe”; e há ainda o frequente “estou perdido/a, não sei porque estou fazendo isso que você propõe”. Tendo vivido em diversos países ditos ocidentais, posso hipotizar que há nas culturas provenientes dessa área geográfica, uma necessidade profunda de ‘saber para fazer’, lógica essa sedimentada muitas vezes na escola elementar e na escola média. O processo histórico parece ter cristalizado um racionalismo empobrecido nesses contextos. Muitos filósofos ocidentais são testemunhas desse processo, desde Nietzsche e Shopenhauer até Heidegger, Merleau-Ponty, Deleuze, Lyotard, até o próprio Polanyi, químico de profissão, e desencantado com o suposto saber objetivo evocado pelas ciências exatas. Diante da ausência de explicações e justificativas que são dadas normalmente para manter acesa a atenção do aluno, fui levado, durante as experiências práticas referidas, a ‘inverter essa chave‘ perceptiva; tive que me dispor realmente a ‘fazer para saber’. Mas o saber aqui, apesar de ter produzido no meu caso algumas elaborações tais como o ‘Modelo de Kata‘, vai muito além da possibilidade de tradução verbal e de elaboração intelectual. Trata-se de um território que pode ser chamado de ‘saber da prática’, que é permeado por sua vez por ‘lógicas da prática’. Lidamos nesse caso com o campo do sensível que pode oferecer possibilidades variadas de intelectualização. Vários aspectos estão envolvidos com o saber da prática, tais como a exploração da intuição, da concentração, e a emergência de abduções. De qualquer forma, uma implicação que emerge desse ‘saber da prática’ merece destaque: a própria noção de saber é aqui ampliada e problematizada. O saber deixa de ser, nesse caso, somente o que é passível de nomeação e de elaboração e passa a agregar aspectos que estão envolvidos na processualidade da execução de práticas, que é muitas vezes catalisadora do invisível e do indizível. Nas experiências vividas com os mestres referidos experienciei processos de exploração e construção de saberes da prática. Presenciei, inúmeras vezes, nessas experiências, perguntas feitas por colegas ocidentais aos atores orientais. Essas perguntas se referiam em geral ao significado das ações que os atores orientais executavam em suas demonstrações. 422 Diante da ausência de explicações a reação era quase sempre a de estupor e decepção: “Mas se você não sabe o significado de suas ações, como você as executa de maneira tão viva e interessante?” Essa pergunta era frequente. Refletir sobre o ‘saber da prática’, território permeado de maneira profunda pela dimensão tácita, representa uma tarefa árdua. Desse modo, creio ser útil inserir a descrição de uma outra experiência vivida com um dos mestres mencionados. Trata-se de workshops guiados pelo ator japonês Yoshi Oida. Esses workshops exploraram diferentes tipos de procedimentos e materiais, desde textos até canções e objetos. Além disso, vários aspectos relacionados com a cultura japonesa foram referidos, ainda que brevemente. Oida falou, por exemplo, sobre a inter-relação entre hana, tai, e yu.7 No caso dos textos trabalhados nesses encontros, eles eram provenientes de várias línguas. Oida pediu para que percebêssemos a qualidade de cada som, de cada língua. Enquanto fazíamos esse trabalho, Oida observou que alguns atores não exploram as potencialidades dos sons, mas reproduzem sem perceber códigos culturais, como a musicalidade de apresentadores de televisão, etc... Explorar os sons das palavras implica escavar o feio, o estranho, o desconhecido; envolve a capacidade de sermos tocados pelo som que fazemos, assim como a capacidade de perceber a ressonância desse som em nosso corpo, e os efeitos produzidos por esse processo. Desse modo, deveríamos tentar ultrapassar nossos modelos culturais que determinam nossa musicalidade, a entonação das palavras. Podemos, nesse sentido, relacionar as observações de Oida com o que Barthes chamou de ‘o grão da voz’ (ver Barthes, 1977, 179-189). Exploramos também a relação entre movimento e ritmo. A fim de nos fazer perceber a importância desse aspecto, Oida descreveu uma cena que atuou em O Homem Que (1993), espetáculo dirigido por Peter Brook. Nesse espetáculo, ele fez o papel de um paciente que havia perdido a capacidade de perceber o lado esquerdo de seu corpo. Durante uma cena, aquela referida por Oida, os médicos de um hospital pedem para que a personagem feita por ele raspe a própria barba diante do espelho. Ele obedece. Mas uma vez que ele não tinha consciência da parte esquerda de seu corpo, ele raspou somente a parte direita de sua barba. A personagem estava absolutamente certa de ter raspado toda a barba. O mesmo tempo que fazia a barba, ele estava sendo filmado pelos médicos. Os médicos então 423 pediram para que ele virasse o rosto em direção ao monitor onde a sua imagem estava projetada. No espelho, a parte esquerda de seu rosto aparecia à esquerda, e no monitor ela aparecia à sua direita. Desse modo, ele pôde ver que metade de seu rosto estava ainda coberta com o creme de barbear. Naquele momento a personagem de Oida reconhece a existência de sua patologia. Após descrever essa cena, Oida nos explicou o modo como percebeu o estado interno de sua personagem através do trabalho com o ritmo. Ele tinha que olhar para o monitor e então olhar de volta para o espelho três vezes, a fim de comparar as duas imagens de sua face. Oida, a cada mudança de direção, mudou o ritmo de sua ação, construindo assim a conexão interna necessária para atuar essa cena. Após descrevê-la, iniciamos o trabalho com o ritmo. Executamos exercícios básicos de ritmos binários, ternários, e quaternários. Oida então se referiu ao princípio de jo-ha-kyu (início-desenvolvimento-conclusão). Ele explicou que esse princípio permeia não somente todos os aspectos da cultura japonesa, mas, como apontado por Zeami, é de fato transcultural, está presente em todos os fenômenos naturais. Executando várias ações, Oida demonstrou a aplicação prática desse princípio. O que é importante notar nesse caso é que essas três fases, jo, ha, e kyu podem ser progressivamente exploradas enquanto a ação se desenvolve. Como demonstrado pelo ator japonês, a ação de caminhar até uma cadeira e sentar-se, por exemplo, pode ser permeada pelo princípio em questão como um todo, mas se a repetirmos, tal princípio pode penetrar partes cada vez menores dessa ação. Quanto mais o ator explorar esse princípio, começando de partes maiores para então fragmentá-la progressivamente, mais sua ação será detalhada, e como resultado ele poderá produzir um efeito de organicidade. Quando explorado corretamente, o jo-ha-kyu pode gerar ressonâncias psicofísicas no ator. Após trabalhar com esse princípio, começamos a explorar improvisações. Deveríamos improvisar utilizando objetos. No meu caso improvisei com uma cadeira. Após construir uma partitura de ações que envolveu diferentes níveis de relação com esse objeto, Oida pediu para que eu explorasse um fragmento extraído do texto de Orghast, que havia sido utilizado na produção dirigida por Brook no início dos anos setenta do século XX. Eu deveria então conectar a sequência produzida com a cadeira com o trabalho desenvolvido com o fragmento de Orghast. Após construir a transição entre a sequência com a cadeira e o trabalho com esse fragmento, 424 apresentei o material para Oida, que observou: ‘Ok. Agora selecione o que deve ser mantido, e descarte o resto.’ Duas horas mais tarde mostrei a ele as partes editadas e ele fez a mesma observação. Esse processo continuou e ele repetiu o mesmo pedido. Dois dias depois, a inteira sequência havia sido reduzida, de quinze para três minutos. Percebi então que tal redução não estava relacionada ao tempo em si. O fato é que o material que permaneceu era aquele que ressoava realmente em mim; a sequência final representa o material que funcionava como um gerador de ações psicofísicas, em que meus processos interiores e exteriores estavam integrados, e nesse sentido a exploração do jo-ha-kyu cumpriu um papel importante nesse processo. Ao explorar esse princípio, as ações revelaram potencialidades expressivas que não havia percebido até então, e tal fato modificou a maneira como tais ações passaram a ser atuadas. Com relação a essa exploração, Oida comentou: “você deve saber o momento que deve desenvolver sua ação exterior, e o momento que deve permanecer imóvel. A ação não se interrompe, ele se torna mais concentrada.” Eu deveria, assim, explorar momentos de imobilidade, momentos esses que poderiam ser considerados como sendo ápices de minhas ações. No estágio seguinte do trabalho, eu deveria detalhar a minha sequência de ações psicofísicas que durava três minutos. No início foi difícil lidar com esse processo, sobretudo porque nesse caso, como apontado por Oida, o ator deve selecionar os detalhes que ele desenvolverá: “quando você conhece o material que você irá trabalhar, você deve selecionar detalhes a fim de desenvolvê-los.” Nesse ponto eu então perguntei a ele: - MB: Como posso escolher os detalhes que preciso desenvolver? Todos eles parecem ser importantes... Oida respondeu: - YO: Quanto mais você trabalha com o material, mais você percebe que há muitas diferenças internas contidas nele. Então, você verá que internamente, o material é formado por detalhes que não têm o mesmo valor, a mesma importância. Desse modo você perceberá quais são os detalhes que você precisa desenvolver. Oida me pediu, então, para desenvolver esse processo de diferentes maneiras, algumas vezes dilatando minhas ações e algumas vezes reduzindo-as, 425 miniaturizando-as. Além disso, ele disse para que eu concentrasse a energia em diferentes partes de meu corpo, enquanto a ação era desenvolvida. Observou que esse modo de trabalhar poderia ser útil porque os detalhes ao seu ver não podem ser selecionados intelectualmente. Oida comentou ainda: ‘Não tenha consciência somente das circunstâncias que envolvem as suas ações, pense sobre o fio que o conecta ao céu e à terra.’ Eu deveria voltar minha atenção para diferentes aspectos, e desse modo pude perceber que o material pode ser explorado em muitos níveis, gerando assim várias camadas expressivas. No último dia de trabalho, antes da apresentação das partituras de ações criadas por cada ator, Oida comentou sobre a qualidade de vazio permeia também a relação entre o ator e o público. O vazio, desse modo, ajuda o ator a perceber o público, a ajustar suas ações, e a estar completamente presente no que está fazendo. A descrição dessa experiência envolve em diferentes níveis a exploração dos aspectos associados ao saber da prática. De fato, além dos raros momentos de explicação e informação fornecidos verbalmente por Oida, significados e sentidos, intenções e intensões, intuições, concentração e abduções permearam significativamente esse processo. Apesar de não termos trabalhado com uma linguagem cênica oriental, o modo de construção dos materiais explorou procedimentos herdados das experiências de Oida com Brook e com o Kyogen.8 Terminamos o encontro da mesma forma como começamos, em silêncio. Mas o silêncio do final era outro, ele havia se transformado perceptivelmente, assim como nós. Essa experiência, assim como as demais mencionadas, revelam a importância do saber da prática permeada pela dimensão tácita. Reconheço nessa abordagem especificidades que podem ampliar significativamente as possibilidades expressivas do ator. Mas nesse caso, não se trata de mais um modelo, de uma aplicação utilitária de técnicas. A relação entre ética e estética é condição necessária aqui. Os procedimentos referidos implicam em uma transformação perceptiva do ator e de uma ampliação relacional que passa necessariamente pelo exercício de alteridade em diferentes níveis. Além disso, a exploração do tácito pode permitir a incorporação de uma inversão importante: o fazer para saber. Esse processo pode 426 levar à ressignificação da própria noção de atuação, que pode vir a ser uma instância que dissolve as fronteiras entre arte e vida. Notas 1 A dança shosagoto, conhecida também como furigoto é um dos vários estilos de dança Kabuki. Ela pode ser apresentada como um espetáculo em si ou aparecer como uma cena de um espetáculo Kabuki. Elas incluem alguns dos trechos mais conhecidos do Teatro Kabuki. 2 Os contra-impulsos referem-se às transições executadas pelos atores entre uma ação e outra. 3 Motokiyo Zeami (1363-1443) foi o criador do Teatro Nô, juntamente com o seu pai Kan’ami Kiyotsugu (1333-1384). Além de ator, Zeami foi um importante teórico do Teatro Nô. 4 Não se trata aqui de ampliar a reflexão sobre a imitação, tarefa essa que seria um projeto de anos de pesquisa, mas cabe observar que a noção de imitação como processo está presente também na cultura Ocidental, começando pela Poética de Aristóteles. 5 Peter Brook fundou o CICT - Centre International de Créations Théâtrales - em 1974 no Teatro Bouffes du Nord, em Paris. 6 Oida costumava ‘acodar os materiais’ antes do início das práticas. Os elementos que continham madeira, por exemplo, eram tocados ritmicamente com bastões, com essa finalidade. 7 Hana significa ‘flor’, e diz respeito a uma qualidade de presença que é produzida pelo ator. Há dois tipos de hana: aquele temporário, que é produzido quando o ator é jovem, e o hana real chamado de shin-nohana, que revela a maturidade profissional do ator. Hana envolve ainda tai, estrutura fundamental da flor; e yu, seu perfume. 8 Juntamente com o Teatro Nô e o Teatro Kabuki, o Kyogen representa uma manifestação cênica tradicional do Japão. Ele diferencia-se dos outros dois tipos de teatro na medida em que explora aspectos marcadamente cômicos e personagens tipificadas. Referências Bibliográficas ALMEIDA, R. R. de. Bunraku e Kabuki: a linguagem das animações japonesas. Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2008. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=1548 Acesso em 8/11/2013. _________ . Kungfu/Wushu: Luta e Arte. São Paulo: Annablume, 2010. BARTHES, R. Image - Music - Text. London: Fontana Press, 1977. BONFITTO, M. A pregnância do vazio: o ensino e a prática do Kabuki. Pesquisa de Especialização. 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É um dos fundadores do Performa Teatro - www.performateatro.org - e autor de vários artigos e livros sobre a atuação do atorperformer. 427 NÔ BRASIL: ASPECTOS DA TRADIÇÃO HOJE Ângela Mayumi Nagai - PUC - SP RESUMO: Este artigo se propõe a revisitar a história do teatro Nô no Brasil, focando, num primeiro momento, a trajetória do grupo Hakuyou Kai, fundado em 1939 e extinto na década de 1990; em seguida, a atualizar o percurso dos imigrantes praticantes e a formação de novos grupos e por fim, descrever as atuais atividades desses grupos, sobretudo no contato com novas gerações de artistas brasileiros. Dessa maneira, o objetivo deste artigo é centrado na reflexão sobre a transmissão do Nô no mundo contemporâneo e na singularidade do contexto brasileiro. Palavras-chave: Teatro Nô, Brasil, história, transmissão. ABSTRACT: The present paper aims, at first, to revisit the history of Noh in Brazil, which focuses on the trajectory of the group Hakuyou Kai, established in 1939 and extinct in the 1990’s; then, to update the path of performing immigrants and the formation of new groups; and finally, to describe the current activities of these groups, particularly the contact with new generations of Brazilian artists. Thus, the purpose of this article is to consider the transmission of Noh in the contemporary world, with all the peculiarities of Brazilian context. Keywords: Noh Theater, Brazil, history, transmission. Introdução O teatro Nô é uma tradição japonesa de 600 anos que foi reconhecida pela Unesco, em 2001, como Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade. Foi uma das grandes referências artísticas orientais na renovação do teatro ocidental no século XX1, sendo até hoje muito pesquisado por artistas contemporâneos. Conhecido pela emblemática beleza e refinamento de suas máscaras, esse teatro consolidou-se no século XIV sob a proteção da casta militar (o xogunato) a partir de vários elementos das artes populares camponesas (dengaku) e artes urbanas de origem chinesa (sangaku); da literatura medieval (Contos de Heike); do primeiro romance escrito por uma mulher (Contos de Genji); da mitologia Xintoísta; da filosofia e religião zen budista. É um teatro de epifanias e temas metafísicos, cujas personagens buscam a iluminação por meio da quebra dos estados de ilusão. O Nô contou com a genialidade de Zeami (1363-1443) que, além de profundo conhecedor da alma humana expressada pela poesia cantada e bailada, sublimou os conceitos de beleza, mistério e profundidade, sugeridos pelo termo yugen2. 428 A trajetória dessa arte no Brasil, bem como a existência de grupos que conservam tal tradição, ainda é pouco conhecida.Trata-se de história viva que ainda flui nos corpos de velhos atores imigrantes, amadores no sentido mais nobre e profissional da palavra, os quais vivenciam essa arte zen na sua essência, ou seja, como um caminho de autoaperfeiçoamento e aprazível contemplação. Em termos acadêmicos, o teatro Nô despertou a atenção de universitários a partir da década de 1960. Segundo um dos pioneiros, Takeshi Suzuki (apud Suzuki, 1993, p.112), naquele período, eram, em sua maioria, brasileiros intelectuais e estudiosos da língua japonesa que se interessavam pelos textos como fonte de aprendizado sobre o budismo e a literatura clássica. Já o estudo do Nô (ou de outras abordagens orientais) como base para reflexões metodológicas na formação do ator universitário tem ganhado espaço nas últimas décadas, porém ocorrendo ainda de maneira subsidiária nos programas de graduação, geralmente pautados por uma visão eurocêntrica. Como pesquisadora da arte Nô, tive a oportunidade de estudar em Quioto nos anos de 1997 e 2003, no International Noh Institute, totalizando dez meses3. Em 2011, tomei conhecimento de que vários praticantes de Nô no Brasil estavam se reunindo para apresentar trechos de canto e dança do repertório clássico, na região da cidade de São Paulo. Surpreendi-me ao saber que se tratava da união de diferentes escolas presentes no Brasil (Kanze, Hosho e Kita), já que a convivência de estilos entre as cinco escolas originais seria algo improvável no Japão. Sinteticamente, as diferenças básicas entre as cinco escolas de Nô seriam: Kanze, (a maior escola), conhecida por sua sofisticação; Hosho, pela delicadeza e dignidade de seu canto; Komparu, de estilo dinâmico e direto; Kongo, conhecida pela graça e pelo atletismo de sua dança; e Kita, a mais nova das escolas, apresenta uma forte postura marcial com a aura dos samurais4. Em 2013, fui convidada a colaborar com esses grupos como representante do estilo Kongo. Essa união resultou na fundação da Associação Brasileira de Nôgaku5. Em junho do mesmo ano, a peça Funa Benkei foi encenada no Tucarena (teatro da PUC-SP) em sua versão integral com a participação das quatro escolas. Um feito histórico sem precedentes no Brasil. 429 Com a propícia ocasião do 1º Encontro de Pesquisadores de Arte Oriental – Oriente-se: Ampliando Fronteiras, senti o impulso de rever e reverenciar a trajetória desses imigrantes, especialmente com os quais tenho tido a honra e a alegria de trabalhar e aprender, levando à comunidade acadêmica (e aos interessados) uma versão atualizada de suas atividades. Os grupos aqui abordados são: o pioneiro Hakuyou Kai (com predominância de membros das escolas Hosho e Kanze, fundado em 1939); o Brasil Hosho Kai (seguidor da escola Hosho e fundado em 1990); e o Shouyou Kai (seguidor da escola Kita, fundado em 2008 e formado tanto por imigrantes como por jovens artistas brasileiros e estrangeiros). Além desses, o grupo Houyou Kai (também da escola Kanze, criado em 1988) e uma breve menção ao recém-fundado Brasil International Noh Institute (seguidor da escola Kongo). Este artigo se organiza, num primeiro momento, revisitando brevemente um documento escrito pelos pioneiros do Nô no Brasil, com foco na história do grupo Hakuyou Kai; em seguida, apresentando entrevistas que atualizam o percurso dos outros grupos, bem como a criação da Associação Brasileira de Nôgaku; e, por fim, descrevendo e refletindo sobre as atividades da Associação Brasileira de Nôgaku (doravante identificada pela sigla ABN), no contato com novas gerações de artistas e pesquisadores brasileiros6. A fala dos pioneiros Ao se falar da origem oficial do Nô no Brasil, dois nomes devem ser lembrados: Nobuyuki Suzuki e seu filho Takeshi Suzuki (1908-1987), proeminentes intelectuais e pioneiros do teatro Nô em terras brasileiras e na América do Sul. O senhor Nobuyuki Suzuki veio ao Brasil em 1939 enviado pelo Ministério das Relações Exteriores e da Educação para divulgar a cultura japonesa. Seu filho Takeshi, arquiteto, pintor e mestre de Nô, projetou obras significativas como o Pavilhão Japonês do Parque do Ibirapuera em São Paulo. Completando o núcleo de origem, a senhora Eico Suzuki (1936-2013), filha do senhor Takeshi, arquiteta, escritora, atriz e instrumentista de Nô. Ela publicou três livros sobre essa arte7, os quais incluem peças traduzidas para a língua portuguesa. 430 O texto escolhido para embasar a primeira parte do presente artigo foi escrito pelo senhor Takeshi Suzuki, o qual inclui trechos de seu pai e patrícios. Foi coletado de uma obra em japonês que trata da arte da colônia nikkei8 no Brasil (Suzuki, 1986), desde a década de 1920 até meados de 1980, constituindo-se, assim, um importante (e bem ilustrado) documento sobre cinema, teatro, dança, música, artes tradicionais e entretenimento. O capítulo sobre o teatro Nô, foi especialmente traduzido9 para esta ocasião como “O passado e o presente do Hakuyou Kai Nôgaku – Intercâmbio cultural entre o Brasil e o Japão através de uma arte clássica”. Não sendo possível sua publicação integral, procurei um recorte que pudesse dialogar com a atualidade da prática de Nô no Brasil. Nessa difícil seleção, muitos fatos, nomes e personagens importantes não puderam ser incluídos. Por isso, desde já esclareço se tratar de uma amostragem10, cujo critério de escolha baseiase na exclusividade e/ou expressividade das narrações sobre a origem do grupo Hakuyou Kai; a resistência durante a II guerra para manter a prática viva; a convivência entre as diferentes escolas; e as reflexões a respeito da transmissão e da continuidade dessa tradição no Brasil. Dessa forma, o texto não prioriza um fluxo cronológico detalhado, mas busca destacar impressões e opiniões da época que possam enriquecer a nossa reflexão. Takeshi Suzuki introduz a história do Nô no Brasil publicando um texto escrito por seu pai: “Ao ver a edição de março de 1941 da revista de nôgaku “Houshou”, publicada antes da guerra, descubro uma publicação sobre meu pai, Nobuyuki, da época em que ele veio para o Brasil, em agosto de 1939 [...]” (Suzuki, 1986, p.107). Vejamos, a seguir, trechos do artigo Utai11 no Brasil, América do Sul, de Nobuyuki Suzuki: “Dentro do Brasil, o Estado de São Paulo é um dos lugares de clima mais agradável [...]. A Capital deste estado se chama São Paulo [...]. O número de japoneses que vivem nas proximidades desta cidade deve contabilizar uns vinte mil. Portanto, mesmo estando tão longe da minha terra, encontrava quase todo tipo de alimento que consumimos no Japão. [...] Também havia muita natureza e eu estava totalmente satisfeito quanto às questões materiais. Porém não se pode dizer que o ser humano fique feliz apenas com bens materiais. [...] Como sou japonês, estava insatisfeito por não ter um passatempo japonês. Imagine então os imigrantes e seus 431 familiares que trabalham na indústria e no comércio há muito tempo, o quão devem estar sentido o vazio em seus corações”. “No subúrbio da cidade de São Paulo há uma construção com um quintal japonês. Diziam que de vez em quando aconteciam encontros entre apreciadores de waka [poesia], mas é muito pouco para a demanda do público em geral. Há também eventos de chá, de ikebana [arranjo floral], mas não é o suficiente para atender a todos. Apesar disso, ter é melhor que não ter”. “Certo dia perguntei se por acaso, não haveria alguém que praticasse utai. Da casa de um japonês que morava nas proximidades de uma construção ocidental, dava para se escutar uma voz murmurada. Embora pensando ser impossível, já que me encontrava tão sedento de passatempos, perguntei a um dos residentes, sem muitas esperanças, se haveria praticantes de utai naquela habitação. A resposta foi além do esperado: -‘Claro que temos! Ouvi dizer que um é Kanze e outro é Hosho’, disse o residente. –‘Se é assim, que tal se você organizar uma associação?’ – provoquei-o. Como resultado deste convite, juntamos alguns apreciadores de Youkyoku12, moradores da mesma cidade, além de alguns freqüentadores do tal Clube Nippon13. Aproximadamente, um pouco mais de dez pessoas. Foi no dia 22 de outubro de 1939. Presentes [no Clube Nippon], as duas escolas: Kanze e Hosho. Sentamo-nos nas cadeiras em direção à mesa e cantamos alguns números. Este foi o primeiro encontro de Youkyoku realizado no Brasil, na América do Sul, do outro lado do mundo. Foi algo pequeno, mas não se pode negar que foi um grande acontecimento para a história do Youkyoku. Porém, quanto à habilidade dos artistas deste dia, obviamente, era algo abaixo da crítica.” “Solicitaram que eu desse um nome para a associação, já que era eu o criador. Em todo o caso, sugeri o nome Hakuyou Kai, que significa “Associação de Youkyoku do Brasil”. [...] Por mais que o Youkyoku estivesse ganhando mais adeptos, a quantidade ainda era muito pequena se comparado ao Japão. [...] A relevância reside no fato de ser um passatempo puramente japonês, ainda que num movimento pequeno [...]. No Japão diríamos que, ainda que seja um simples gramado ou uma árvore, se observados com sentimento, estes nos envolvem em uma atmosfera tipicamente japonesa. O fato de podermos respirar esta atmosfera do 432 Japão numa terra estrangeira, que não possui nada disso, é algo a ser muito valorizado. Ainda penso que fiz algo muito bom”. Aqui encerramos a narração do senhor Nobuyuki. Entre 1939 e 1941, aconteceram seis apresentações abertas de Youkyoku com um programa variado. Além do canto, havia também a prática dos bailados e dos instrumentos de Nô. Após o episódio de Pearl Harbor, em dezembro de 1941, o uso da língua japonesa sofreu severa restrição no Brasil e as reuniões se tornaram esparsas e secretas14. Terminada a conflagração, em 1945, houve tensão entre os colonos japoneses que acreditavam na derrota do Japão (os derrotistas) e os vitoristas radicais, do chamado Shindo Renmei. No grupo Hakuyou Kai, havia dois grandes amigos: o (já mencionado) ex-tenente coronel Kikkawa, vitorista, seguidor da escola Hosho e que tocava o tamboril agudo (otsuzumi) e o ex-coronel Wakiyama, derrotista, seguidor da escola Kanze e que tocava o tamboril grave (kotsuzumi). O senhor Kikkawa foi escolhido como o líder máximo do Shindo Renmei, cujos integrantes acabaram por assassinar o senhor Wakiyama. O fato levou o senhor Kikkawa a se tornar um praticante do budismo e a rezar diariamente pela alma do amigo até a sua morte15. “Certo dia, as duas filhas do senhor Kikkawa vieram me procurar, e me entregaram o otsuzumi que ele usava com tanto carinho. [...] Atualmente, o kotsuzumi que está em nossas mãos é uma lembrança do senhor Wakiyama, derrotista, e otsuzumi é uma lembrança do senhor Kikkawa, vitorista. Esta união simbólica é um dos grandes mistérios deste mundo” (Suzuki, 1986). Após os anos de interrupção, a primeira apresentação do Hakuyou Kai aconteceu em janeiro de 1960, no Pavilhão Japonês do Parque do Ibirapuera. A seguir, trechos de um artigo do Cônsul Sumiyoshi (apud Suzuki, 1986) sobre esse período: “A vida trancafiada durante a guerra, o estigma desonroso de povo do país derrotado, a rivalidade interna na comunidade nipo-brasileira entre vitoristas e derrotistas...Parecia uma grande quantidade de formigas sedentas por cultura japonesa após a dificuldade de vários anos, atacando um cubo de açúcar chamado ´Youkyoku`. Dentro do pano de embrulho que carregavam nos braços, livros de 433 Youkyoku que guardaram durante e após a guerra como se fossem tesouros – com as páginas amareladas, com manchas de chuva e com buracos de insetos – foram trazidos em conjuntos de dez, vinte livros [...]. Senti que em cada um destes livros havia marcas profundas da História da Imigração, construída com sangue e suor16”. Mesmo considerando as diferenças entre as escolas Kanze, Hosho, Kita e até Kongo, presentes naquela ocasião, o cônsul Sumiyoshi e o senhor Takeshi mantiveram os encontros semanais. Não havia uniformidade nem mesmo entre seguidores da mesma escola, já que a maioria praticava como autodidata e apegava-se avidamente às referências aprendidas no Japão. No entanto, ao longo de poucos meses, o grupo foi se aperfeiçoando e chegou a uma unidade que culminou em apresentações integradas entre as escolas Kanze e Hosho. Em 1964, um marco: pela primeira vez na América Latina foi apresentada uma peça de Nô, intitulada Hagoromo - O Manto de Plumas - com a senhora Eico Suzuki como shite (protagonista), no Museu da Arte de São Paulo (MASP). Inicialmente a peça era acompanhada apenas por vozes, pois quase não havia músicos. Apesar disso a peça fez bastante sucesso entre a plateia de brasileiros, vindo a ser apresentada muitas vezes numa versão condensada (com cerca de vinte minutos). De 1965 até 1972, foram realizadas transmissões televisivas 17 de Hagoromo, (dentre outros trechos de peças). As décadas de 1970-1980 continuaram profícuas para a difusão do Nô em terras brasileiras. Em 1984, o Hakuyou Kai comemora sua centésima apresentação de Nô no Brasil em grande estilo. Entretanto, o período de decadência do grupo já se esboçava. Em 1987 o senhor Takeshi Suzuki, presidente e mestre do Hakuyou Kai, faleceu. Com a morte em sequência de outros membros e professores18, o grupo Hakuyou Kai começa a se dispersar e se extingue nos anos 1990. Membros remanescentes (e outros dissidentes) se organizaram em novos grupos, ativos até hoje, sobre os quais falaremos adiante. Preocupação com a transmissão e a continuidade da tradição Ao final desta publicação, Suzuki (1986) traz um questionamento do professor Yoshiichi Tanaka: “Senhor Suzuki, eu fico admirado como o senhor não desgruda 434 dessa arte clássica, vindo até os dias de hoje. Mas até quando ela continuará? Nagauta e Tokiwazu [estilos de música Kabuki] já desapareceram da comunidade nikkei [do Brasil]. O Hakuyou Kai também já está com os dias contados, não é? É algo realmente preocupante. É natural que todos envelheçam e diminua o número de pessoas que possam cantar. Mas o fato de nos desentendermos a partir de coisas tolas [...] é algo que acelera o processo de extinção das artes clássicas da comunidade nipo-brasileira. Sinto na pele como é preciso tomar muito cuidado com isso”. Suzuki (1986) prossegue: “Aqui é o paraíso do samba e o povo tem sensibilidade aguçada para o ritmo das músicas. Os nisseis e sanseis [segunda e terceira gerações] que cresceram dentro desta percepção musical privilegiada estão acostumados com uma atmosfera artística totalmente diferente da dos isseis [primeira geração]. Às vezes, eu presencio pessoas que pegaram só o básico do Youkyoku, participando de alguma apresentação e cantando com uma voz como se estivessem gritando. E freqüentemente observo pessoas que escutam isso e torcem o nariz: ´O quê? Isso que é música tradicional japonesa`? Não existem pessoas que possam explicar o que é o Youkyoku, desde a composição do Nô até o significado da sua letra.[...] Já são poucos os nisseis que conseguem ler a língua japonesa. Será que existe quem consiga entender a linguagem do Youkyoku (com letras escritas na Era Muromachi, há 600, 700 anos, e com a estrutura baseada na literatura das Eras Heian e Kamakura)? [...] Acredito que uma importante tarefa que nos cabe seria explicar esta atmosfera sutil e profunda enquanto um estilo musical, não apenas para os nisseis e sanseis do Brasil, mas aos brasileiros que buscam a cultura como um todo. [...] Para que o nosso Hakuyou Kai também não desapareça [...] sinto que é necessário transmitir esta arte aos jovens nisseis e sanseis de uma forma divertida, porém precisa e correta de ensinar”. (grifo nosso). Os grupos de Nô hoje Vejamos como tem sido a “passagem do bastão” dos pioneiros aos dias de hoje por meio de entrevistas com três imigrantes. Iniciemos com o senhor Yamaguchi que integrou o Hakuyou Kai durante quase trinta anos. Ele foi escolhido 435 para representar o elo entre os dois períodos históricos abordados neste artigo, sendo o primeiro mais ligado à colônia e o segundo, com uma participação maior de brasileiros. O segundo entrevistado é o senhor Yasuyoshi Takeshita, diretor do grupo Brasil Hosho Kai. Por fim, de uma geração mais recente, o senhor Jun Ogasawara, do grupo Shouyou Kai, da escola Kita. Primeiro entrevistado: Masakuni Yamaguchi Nascido em Nagano, em 1931, o engenheiro químico, senhor Yamaguchi, chegou ao Brasil em 1961. Ele iniciou seus estudos de Youkyoku (canto de Nô) aos 19 anos, ainda no Japão, no estilo Kanze. Ao se mudar para o Brasil, passou a integrar o grupo Hakuyou Kai, no qual começou a aprender shimai (bailado) e kotsuzumi (tamboril grave) com a senhora Eico Suzuki (estilo Hosho). Retornou várias vezes ao Japão para estudar hayashi (música de nô), transmitindo, posteriormente, seus conhecimentos aos integrantes do Hakuyou Kai. Segundo ele, havia uma boa convivência entre as escolas Kanze e Hosho no Hakuyou Kai, tendo sido, ele mesmo, um praticante dos dois estilos. Perguntado sobre o que acha do futuro do Nô no Brasil, o senhor Yamaguchi se mostra apreensivo: “Acho que dura mais uns dez anos, porque os japoneses estão diminuindo e o Nô usa japonês arcaico, difícil de aprender”. Ele mantém suas atividades como mestre de flauta através da ABN e integra, também, o grupo Houyou kai19, de Mogi das Cruzes, fundado em 1988. Certamente, todos os integrantes do atual Houyou Kai (e dos outros grupos aqui abordados) teriam belas experiências que enriqueceriam a composição da história coletiva aqui retratada, mas não foi possível entrevistar a todos. Por isso, registraremos apenas os seus nomes: Integrantes do grupo Houyou Kai (Escola Kanze): Masakuni Yamaguchi - Japonês nascido em Nagano, em 1931 / Hideyo Isoda- Japonesa nascida em Mie, em 1924 / Shigeru Matsumoto - Japonês nascido em Mie, em 1948 / Youji Tsuruta - Japonês nascido em Yamanashi, em 1946 / Kimiko Nagata - Japonesa nascida em Tóquio, em 1931 /Hiroko Yamaguchi - Japonesa nascida em Tóquio, em 1932. 436 Segundo entrevistado: Yasuyoshi Takeshita Nascido em Ishikawa, em 1933, o senhor Takeshita veio para o Brasil em 1961. Ele integra o grupo Brasil Hosho Kai desde a sua fundação, em 1990, e assumiu a direção do grupo após o falecimento de seus mestres-fundadores, há cinco anos. No teatro Nô, atua na função de waki (ator coadjuvante). Em ótimo português, o senhor Takeshita nos respondeu sobre a história do grupo Brasil Hosho Kai, refletindo sobre as dificuldades de se manter uma tradição como o Nô, aqui no país. “O grupo Brasil Hosho Kai nasceu em 1990 quando o casal Yajima se emancipou do grupo Hakuyou Kai. Naquela ocasião o senhor Yajima era presidente do Banco América do Sul. Começou a dirigir este grupo de nô e me convidou a participar dos encontros semanais. Como ele era meu chefe (e colega) eu não tinha motivos para recusar. Além disso, eu nasci em Ishikawa Ken, que é considerada a terra da escola Hosho. Então ele perguntou: ´Por que não se junta a nós`? E assim nasceu o Brasil Hosho Kai”. “Uma vez ao ano, durante dez anos, realizamos apresentações só de utai [canto] na festa cultural de nossa província20. Em 2010 recebemos o convite do senhor Ogasawara, um dos fundadores do grupo Shouyou Kai [escola Kita], para nos juntarmos. Como nosso grupo só tem quatro pessoas atualmente, ficamos preocupados em perder a nossa identidade Hosho, cuja maneira de cantar e declamar é muito peculiar. Como eu ainda me considero um aprendiz, temo receber influências ao ponto de nossa identidade se misturar. Seria este o objetivo da ABN? Penso que, se as quatro escolas presentes no Brasil juntarem o que têm de melhor, a mistura acabaria gerando um canto de Nô do Brasil, algo bastante diferente do utai do Japão. Então minha dúvida é: manter a originalidade ou misturar os cantos até criarmos uma escola independente? Apesar desta preocupação aceitamos nos unir, porque um dia todos morrerão e daí não mais haverá Hosho, nem Kanze, nem outras escolas no Brasil”. O senhor Takeshita também ajuda a transmitir a arte da declamação e do canto Nô através da ABN. Ao final da entrevista, fala um pouco sobre a didática de ensino para os brasileiros. Apesar das partituras terem a tradução dos ideogramas (kanji) e fonogramas (hiragana) em alfabeto romano, ele aconselha que as pessoas 437 cantem observando também a grafia japonesa e até estudem a língua para entenderem melhor o significado do texto. Além disso, explica que cada som (mais longo, curto, interrompido, mais alto, etc) resulta de uma compreensão profunda dos sentimentos. Integrantes do grupo Brasil Hosho Kai (Escola Hosho): Yasuyoshi Takeshita –Japonês nascido em Ishikawa, em 1933 / Konami Fugimoto - Japonesa nascida em Ehime, em 1920 / Michiko Tanaka - Japonesa nascida em Nagano, em 1931 / Yasuko Tanaka - Japonesa nascida em Osaka, em 1933. Terceiro entrevistado: Jun Ogasawara O senhor Ogasawara é artista plástico, natural de Kochi e nascido em 1949. Imigrou para o Brasil em 2002. Sua entrevista foi concedida no dia 26 de fevereiro de 2014, em Cotia-SP. Ele tem uma sólida formação em Nô, pois durante vinte anos, estudou canto, dança e todos os instrumentos da tradição com o renomado ator e mestre Akio Tomoeda, da escola Kita. Sua iniciativa e seu empenho conseguiram reunir praticantes de Nô no Brasil em torno de projetos de pesquisa, performance e ensino do repertório clássico, a despeito das diferenças de escolas, gerações, idiomas, níveis de formação e nacionalidades. Dessa união, foi fundada, em 2013, a Associação Brasileira de Nôgaku (ABN). Para definir o estilo próprio da ABN, Ogasawara criou o termo Imin Nô – “Nô de imigrantes, por imigrantes e para imigrantes” - ilustrando a ideia de uma arte não condicionada a uma única pátria e produzida pelo espírito imigrante que todos nós, independentemente, carregamos. Nesta entrevista, contamos com a inestimável colaboração de Toshiyuki Tanaka como intérprete. O senhor poderia nos falar sobre o nascimento do grupo Shouyou Kai e como surgiu o impulso de reunir os diferentes grupos de Nô do Brasil? Minha história é simples. Um dia desejei fazer uma peça de cerâmica para oferecer comida à minha família, esposa e filho. Fui procurar aulas e conheci o também imigrante mestre Ikoma 21. Ao mesmo tempo, comecei a dar aulas de Nô para ele. Foi assim que nasceu a escola Kita no Brasil. 438 Em 2008, conheci o artista e professor Toshiyuki Tanaka. Apesar de ter estudado na escola Kanze, Tanaka se juntou a nós e começou a pesquisar o estilo de dança Kita. Estava fundado o grupo Shouyou Kai22 [shou=pinheiro; you=canto de Nô; kai=grupo]. Como primeiro trabalho do grupo apresentamos a peça Hagoromo com apenas quatro pessoas23 a uma comunidade carente em Itapecerica da Serra. Estas pessoas assistiram à peça de maneira muito concentrada. Em 2009, através de um amigo, conheci dois integrantes do atual Houyou Kai [senhor Yamaguchi e senhor Matsumoto]; em 2010, estendemos o convite ao senhor Takeshita, diretor do Brasil Hosho Kai. Finalmente, em 2013, convidamos a pesquisadora nissei Ângela Nagai, da escola Kongo. Minha ideia de reunir os grupos aqui existentes nasceu por três motivos: primeiro, em função da avançada idade dos imigrantes mais antigos, que têm entre 70 e 95 anos de idade. As atividades de Nô no Brasil correm o risco de desaparecer rapidamente, por isso precisamos renovar. Segundo, mostrar que no Brasil podemos criar nosso próprio estilo. No Japão, ninguém pode fazer isso, mas nós podemos continuar inovando. Respeitar a tradição, mas também a possibilidade de criação dentro dela. Para isso, temos que transcender as diferenças das quatro escolas. Por último, nossas apresentações têm despertado o interesse do público. Além disso, todos os participantes (em especial os imigrantes) estão muito felizes. Ainda creio que se sentir bem é a coisa mais importante quando se faz arte”. O senhor poderia nos falar sobre a convivência entre os diferentes estilos (escolas) nas atividades da ABN? “Há 200 anos, quando termina o período Edo e começa a era Meij, houve uma certa diluição dos estilos do teatro Nô. O governo dos samurais na era Edo preservava esta arte, mas depois o Nô não representava mais o Estado. Ficou livre, mas aconteceram muitas coisas. Atores da escola Kita chegaram a cantar em cima de pontes como mendigos, porque ninguém mais queria assistir a uma arte antiga: até o governo a desconsiderou. Depois tudo mudou, mas nessa época havia essa desvalorização. Dentro da própria escola Kita, as pessoas começaram a perder a unidade de estilo e ficou tudo muito complicado. Há 200 anos foi preciso recriar o estilo de Kita. Cada escola teve que fazer isso. 439 Sobre a preocupação com a perda de identidade, levantada pelo senhor Takeshita, penso o seguinte: primeiro é necessário termos alunos novos. Os brasileiros precisam estudar o estilo de canto Hosho, por exemplo, para que ele continue existindo. Isso é importante e urgente. Mas no futuro, gostaria de construir duas coisas: manter os estilos individuais e montar o estilo próprio de Imin Nô. Por enquanto, o senhor Takeshita é quem mais carrega esta preocupação. Na verdade, todos nós sentimos um pouco desta dor. Num segundo momento, [Toshiyuki] Tanaka e [Ângela] Nagai24 vão ter que suportar esta pressão. Devemos manter a identidade de cada escola e, paralelamente, construir a identidade de Imin Nô. São coisas quase opostas, por isso temos que estudar e pesquisar. Ainda faltam pessoas da escola Komparu. Quando tivermos as cinco escolas no Brasil, poderemos criar uma maneira brasileira. Creio, porém, que a melhor forma de se manter um estilo é mantendo o hin. Hin significa ´elegância`. Tendo hin você pode criar, mesmo dentro de uma tradição. Mas sem hin, o Nô não pode ser Nô. É preciso manter uma essência, um centro. Não se trata de um detalhe bom ou ruim, de melodia ou de tempo. Sem hin não acontece a vida do teatro Nô. Explicar hin é muito difícil. Se alguém tentar explicar sua maneira a outra pessoa, isso não será bom. Não se trata de um segredo, mas há que se evitar erros de interpretação. O famoso conceito de yugen25 fala de uma beleza que todos podem sentir, seja um deus, seja um mendigo. Já o hin existe para quem pode perceber. Quem não pode sentir, para ele não existe. Não há uma classificação de grau ou intensidade para se medir hin: ou se tem ou não se tem. No mundo inteiro, as pessoas estão perdendo hin porque só querem dinheiro. Quase não há mais hin. Nô é praticamente só hin. Dentro de Nô, existe a parte religiosa/espiritual, mas não se pode viver a arte como religião. Você pode ter um coração religioso, que é mais importante do que o estilo ou a forma da religião em si. Então, nossa proposta de transmissão é: primeiro pegar a essência e depois estudar o estilo”. Poderia falar um pouco mais sobre a questão da transmissão desta tradição no cenário brasileiro? “No Japão, apesar de nunca ter sido um bom discípulo, tive mestres maravilhosos! Tanto meus mestres de pintura quanto meu mestre de teatro Nô foram 440 muito bons. Eu não estudei só a arte em si, mas procurei estudar o coração deles. Por isso, hoje tenho este olhar. Minha convivência com meu mestre de Nô foi de intenso diálogo e reflexão artística. Ele costumava dizer para respeitarmos a arte de forma absoluta. Porém, no nosso caso aqui no Brasil, considero esta postura forte demais, porque no fundo de Imin Nô existe uma coisa básica e importante que é amor. Acho uma direção um pouco perigosa se você foca só na arte. Ter respeito por quem fez Nô anteriormente na história do Brasil é amor. Não é só fazer arte e considerar-se separado da continuidade. Ouvi dizer que a prática de Nô dentro da colônia japonesa aqui no Brasil era vivenciada de forma muito animada! Para nós do Imin Nô, é difícil realizar o ensino à maneira tradicional. É importante mantermos uma boa relação com nossos mestres no Japão, manter o estudo tradicional com a forma anterior do mestre. Mas também podemos fazer criações novas, só possíveis para nós. Aqui são quatro escolas diferentes, por isso a dificuldade. Por outro lado é uma riqueza! No Japão, isso não existe, é algo novo que só existe aqui. De certa forma, há nisso um espírito de vanguarda”. Aqui termina a entrevista concedida pelo senhor Ogasawara. Ainda sobre os imigrantes do grupo Shouyou Kai, gostaria de registrar a marcante contribuição do artista e mestre Toshiyuki Tanaka26 na formação de novos atores e atrizes de Nô no Brasil. No Japão, estudou Nô com o mestre Osamu Kobayakawa, do estilo Kanze. Paralelamente, estudou técnicas corporais modernas japonesas como o seitai-ho e o do-ho. Tanaka tem aplicado estas técnicas na preparação para a prática do Nô (com foco na transmissão dos kata27), sendo notável o grau técnico e artístico que os participantes do grupo Shouyou Kai têm alcançando. Integrantes do grupo Shouyou Kai (Escola Kita): Toshiyuki Tanaka - Japonês nascido em Tóquio em 1960 / Jun Ogasawara - Japonês nascido em Kochi em 1949 / Kenjiro Ikoma -Japonês nascido em Mie em 1948 / Célio Amino - Brasileiro nascido em São Paulo em 1970 / Fernanda Mascarenhas - Brasileira nascida em São Paulo em 1970 / Roger Muniz - Brasileiro nascido em São Caetano do Sul em 1979 / Angélica Figuera - Venezuelana nascida em Ciudad Bolívar em 1981 / Luciana Beloli - Brasileira'nascida'em'São'Paulo'em'1981'/'Beatriz(Sano(I'Brasileira'nascida'em'Santos' em'1985'/'Flavio(Caputo(I'Brasileiro'nascido'em'São'Paulo'em'1983.' Encerrando a atualização sobre os quatro grupos de Nô que integram a ABN, devo mencionar também o Brasil International Noh Institute (INI), grupo de estilo 441 Kongo, fundado por minha pessoa no ano de 2013 para integrar e ampliar minhas atividades junto à ABN. Sediado na cidade de Campinas-SP, o Brasil INI mantém-se filiado ao International Noh Institute (INI) de Quioto, conhecido por tornar acessível o aprendizado do Nô a estrangeiros, em princípio não falantes do idioma japonês. O ator e mestre Udaka Michishigue, ao lado da diretora e instrutora Ogamo Rebecca, tem alunos em diversos países do mundo, sendo alguns instrutores licenciados e pesquisadores que trabalham a questão da transmissão em seus respectivos países. Refletindo brevemente sobre a questão da convivência de estilos na ABN: passado o estranhamento inicial, mantive a atenção sobre as peculiaridades do estilo Kongo a partir de meu treinamento com o mestre Udaka. Dessa forma, tem sido mais fácil reconhecer, acolher e interagir com as diferenças de interpretação dos colegas. Considerações finais Nos quase 75 anos de história do Teatro Nô no Brasil que procuramos retratar sucintamente, houve desde um período de ostracismo em função da II guerra até uma projeção significativa dessa arte junto à sociedade brasileira, evidenciada, dentre outras coisas, pela veiculação de peças do Hakuyou Kai em programas de televisão não necessariamente destinados à comunidade japonesa 28 . Ao compararmos os momentos aqui pesquisados, vemos que algumas questões se repetem: um grau de tensão (geralmente criativa) na união e interação das diferentes escolas; a preocupação com a qualidade da transmissão e a quantidade de novos praticantes; a ideia de possível extinção ou empobrecimento desta arte em função do desconhecimento do idioma japonês. A autenticidade de uma tradição que é ensinada e praticada fora de seu país de origem costuma ser questionada por alguns pesquisadores e artistas. Pronko opina sobre o valor de se encenar uma tradição oriental (no caso, o Kabuki) por alunos ocidentais de artes cênicas, num trecho intitulado “Transposições”: O problema em jogo é menos o de conseguir imitação impecável do teatro japonês utilizando artistas americanos ou europeus, como o de rasgar novas perspectivas, quer para os atores quer para o público, e fazê-lo da maneira mais rematada e artística possível [...]. (PRONKO, 1967, p. 145, grifo nosso). 442 Ou, como afirmou o senhor Nobuyuki Suzuki: “ter é melhor que não ter”. Ainda segundo Pronko (ibidem) é preciso saber o que se quer daquilo que uma tradição oriental “tem a oferecer a nós, ocidentais”. A ABN, por meio de seu estilo Imin Nô, definiu bem os seus objetivos e limites - de quem, para quem, com quem, quando, onde, como e por que 29 - trabalhando num criterioso compartilhar de diferenças didáticas e estéticas. Tanto nas aulas oferecidas a amadores e artistas profissionais, quanto na montagem de peças, os estilos são bem delimitados, mantendo-os, ao mesmo tempo, puros em si e sensíveis entre si. O que se flexibiliza não são necessariamente os estilos, mas o espírito das pessoas ao reconhecerem o momento histórico e a cultura em que estão inseridas (bem como alguns limites, como no caso do idioma) ao praticarem uma tradição dessa natureza. São inúmeros os diálogos e os experimentos entre o Nô e as diversas outras expressões cênicas mundiais desde o início do século XX. Emmert (1997) crê que o Nô não se cristalizou com Zeami e que, a partir da observância dos fundamentos da tradição, é possível expandi-lo. Segundo Emmert, no Nô existem “elementos externos” (ou seja, o texto, as máscaras, figurinos, estrutura musical, espaço cênico, etc.) que podem ser imitados ou recriados por outras formas que nele venham a se inspirar. Já os “elementos internos” (constituídos pela técnica corporal/vocal, como o kata) não são reproduzidos ou incorporados facilmente sem uma formação continuada. O autor conclui que se os elementos internos do Nô, bem como certos fundamentos e princípios 30 forem preservados, a beleza e o fluxo de energia permanecem, podendo o Nô ganhar novas perspectivas. O trabalho do Imin Nô se insere nesse contexto, mantendo um extremo respeito aos aspectos da tradição e da transmissão, porém tendo no horizonte a criação de uma identidade própria. Além das questões geográficas, históricas e culturais, a questão da prática e transmissão do teatro Nô para amadores também tem recebido atenção dos pesquisadores. Compartilharei uma breve memória de viagem para ilustrar minha opinião sobre o assunto, ainda que o exemplo esteja situado em um contexto japonês. Conforme pude observar no International Noh Institute (INI), em Quioto, nem todos os alunos japoneses eram artistas profissionais. Havia homens de negócios, donas de casa, professores, profissionais liberais. Certo dia, durante nossas atividades normais de estudo e observação, assistíamos ao treinamento de uma colega, diretamente com o mestre Udaka. Tratava-se de uma enfermeira. Já 443 estávamos habituados a acompanhar os treinos de cada um, percebendo suas evoluções e aprendendo com as sempre impecáveis demonstrações do mestre. De repente, como num jorro de luminosidade, fomos surpreendidos por uma voz, antes pequena, vibrando de maneira muito límpida e situando com perfeição o sentimento essencial da personagem. Era como se séculos de tradição fluíssem nas cordas vocais daquela mulher, sem esforço ou interferência. Aquele momento era de uma suspensão profunda e plácida, quiçá uma autêntica manifestação de yugen, conquistada pela enfermeira após anos de um treinamento que se aproxima da ideia de autocultivo31. As tradições se transformam; historicamente, os estilos se redesenham, a maneira de se realizar um mesmo e secular kata é sempre idiossincrática. Segundo Salz (2000, p.472-473), “Ironicamente, quanto maior a especificidade dos padrões prescritos, maior a liberdade de interpretação”. Ainda do mesmo autor (ibid., p.470), “A ´tradição` se assemelha a uma canção comum, cantada por muitas vozes”. Em que pese o teatro Nô ter suas próprias, fundamentais e belas concepções de “flor” a partir de Zeami (cuja explanação, porém, não é nosso objetivo neste momento), finalizo esta reflexão tomando emprestada a imagem da flor emblematicamente presente em outra arte zen, o ikebana. Quando penso na condição do imigrante em geral e nas tradições que peregrinam e eventualmente se enraízam, amiúde me ocorre a imagem de um ikebana, arte que busca preservar uma flor em um recipiente com água, ou seja, longe da terra (natal). Princípios estético-filosóficos são aplicados ao arranjo para se conquistar uma qualidade de imanência a partir do efêmero corpo da flor. Assim, uma tradição é mantida viva em nossos (efêmeros) corpos quando ela nos revitaliza, quando não é seguida como um conjunto de dogmas. Tudo depende do que se pretende e em que nível: a liberdade de criação dentro da tradição, como enfatiza Ogasawara, é vital para que a arte e os artistas se fortaleçam. Uma tradição pode ser vivida para se curar “o vazio do coração”, “manter o hin”, “atingir o yugen”, “rasgar novas perspectivas”, “ter um passatempo”, ou para se manter a beleza da flor, onde quer que ela esteja. 444 Notas 1 Influenciou direta ou indiretamente as obras de Bertolt Brecht, Samuel Beckett, William B. Yeats, Paul Claudel, Charles Dullin, Jacques Copeau, Jean Louis Barrault, Benjamin Britten, Peter Brook, Eugenio Barba, dentre outros. 2 Das inúmeras interpretações existentes sobre o termo, escolhi a versão encontrada em Yuasa (1993, p. 24). O termo yugen foi utilizado pela primeira vez pelo poeta Fujiwara Shunzei (1114-1204). Nesta perspectiva, a condição ideal para a experiência estética da beleza (ou yugen) é buscada em analogia à experiência do satori (iluminação budista), adquirida através da arte vivida enquanto um caminho de autocultivo. 3 Graças aos programas de bolsas da Fundação Japão e da Fundação Vitae. 4 Informação verbal fornecida por Ogamo Rebecca, em Quioto, no ano de 2003, durante aula expositiva. 5 Nesse contexto, o termo gaku significa “alegria”. 6 Desde 2014, a ABN ministra, mensalmente, aulas de canto, dança e instrumentos, na cidade de São Paulo. 7 Nô- Teatro Clássico japonês, volumes I (1977), II (1993) e III (1995). Editora do Escritor, São Paulo. 8 Descendentes de japoneses nascidos fora do Japão. 9 Tradução realizada pelo senhor Carlos Hideaki Fujinaga. 10 Em Nô - Teatro Clássico Japonês (vol. 2, 1993, p. 99), de Eico Suzuki, há uma entrevista de Takeshi Suzuki concedida em 1973 a uma aluna da Escola de Comunicações e Artes da USP (cujo nome não foi revelado). Nessa entrevista, encontram-se muitos detalhes sobre as atividades e as apresentações do Hakuyou Kai entre os anos de 1939 e 1973. Utilizo algumas passagens dela para complementar minha abordagem do texto principal. Também no livro “Recordações de Papai” (1988), da mesma autora, encontram-se algumas passagens sobre a história do Hakuyou Kai. 11 Canto de Nô. 12 Termo mais recente para designar o canto de Nô. Youkyoku teria uma função análoga ao script de uma obra teatral. 13 O Clube Nippon foi citado anteriormente como um lugar onde havia a prática de ikebana. 14 Mesmo neste período de proibições e prisões por causa do uso da língua, o ex-tenente coronel Kikkawa ensinou, minuciosamente, o canto e a música da escola Hosho para Takeshi Suzuki. Até hoje, este fato é relembrado com admiração por ex-membros do Hakuyou Kai, ainda em atividade. 15 A título de curiosidade: Na peça Nô intitulada Atsumori (peça de guerreiros de autoria de Zeami), a última batalha entre os clãs Heike e Genji é retratada. Um experiente samurai Genji vê-se obrigado a decapitar o jovem guerreiro Heike, Atsumori, exímio flautista de apenas 16 anos. Arrependido, abandona a vida de guerreiro e torna-se um monge, passando a rezar pela alma de Atsumori. (N. da A.) 16 A interrupção parcial ou total da prática do Nô no Brasil ao longo de quase 20 anos evidencia com clareza a assertiva do filósofo Walter Benjamin (1892-1940) segundo a qual o trauma causado por uma guerra torna os homens “mais pobres em experiências comunicáveis” (Benjamin, 1985). Entretanto, na experiência brasileira narrada ao longo deste artigo, percebe-se que existiu um núcleo de resistência. 17 Nos seguintes canais: antiga TV 2 - Cultura, TV Cultura (Fundação Padre Anchieta), TV Bandeirantes e TV Gazeta. Mais detalhes em Suzuki (1993, p.99). 18 Últimos professores: Yoshida Noboru, falecido em 1995, e Yoshiichi Tanaka, falecido em 1999. 19 Na época de sua fundação, recebia o nome de Kanze Ryu Kenkyukai . 20 Na sede Ishikawa Kenjinkai, localizada no bairro Paraíso, em São Paulo. 21 Kenjiro Ikoma (1948). Importante ceramista, natural de Mie. Chegou ao Brasil em 1973. 22 Sediado atualmente em Cotia, SP. 23 A bailarina Cindy Quaglio participou deste início. 24 Que desempenham a função de shite ou seja, protagonista. 25 Vide Introdução. 26 Mudou-se para o Brasil em 1994. 27 Padrão de movimento e vocalização; forma; modelo. Códigos fundamentais na transmissão do Nô. Os kata foram sintetizados ao longo de séculos a partir dos movimentos do corpo na sua relação com a terra. O kata “refina as emoções pela estilização” (Salz, 2000), com maior ou menor grau de abstração. 28 Além disso, dois documentários foram realizados sobre o grupo, sendo um deles pelo respeitado diretor Andrea Tonacci, em 1969. 29 Vide entrevista com Jun Ogasawara. 30 Por exemplo, o conceito de ma (intervalo pleno de possibilidades); jo-ha-kyu (progressão rítmica); o princípio do movimento do corpo aos sete décimos e do espírito aos dez décimos; as várias metáforas da flor (hana), dentre outros. 31 Yuasa (1993). 445 Referências Bibliográficas BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios Sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. Obras Escolhidas Vol.1. Experiência e Pobreza: p. 114-119. EMMERT, R. Expanding Nô`s Horizons: Considerations for a New Nô Perspective. In: Nô and Kyôgen in the Contemporary World. Honolulu: University of Hawai`i Press, 1997. PRONKO, L.C. Teatro: Leste e Oeste. São Paulo: Editora Perspectiva, 1967. SALZ, J. Katafication: Form, Reform, Deform in Traditional Arts. In: International Society and Culture Review n. 3, p. 465-477, 2000. SUZUKI, E. Nô-Teatro Clássico japonês, vol. 2. São Paulo: Editora do Escritor, 1993. SUZUKI, T. "Hakuyou Kai no Konjyaku" Nougaku Kotengeinou de Nippaku Bunka Kouryu. In: Colônia Geinou Shi. São Paulo: Editora Gráfica Topan Press Ltda, 1986. Cap. 5, p.105118. YUASA, Y. The Body, Self-Cultivation, and Ki-Energy. New York: State University of New York Press, 1993. Ângela Mayumi Nagai Doutora em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),foi bolsista da Fundação Japão (1997) e da Fundação Vitae (2002). Em ambas as ocasiões, estagiou no International Noh Institute de Quioto, onde desenvolveu pesquisa sobre o teatro Nô. É membro do Centro de Estudos Orientais (CEO) da PUC-SP e vice-presidente da Associação Brasileira de Nôgaku (ABN). 446 O LEGADO DAS ESCULTURAS E TEMPLOS VÉDICOS EM COMPOSIÇÕES ESTÉTICAS DA DANÇA CLÁSSICA INDIANA Jorge Lúzio – PUC SP1 RESUMO: Entre os oito estilos que compõem a dança clássica indiana, destacam-se o BharataNatyan e o Odissi, os quais são considerados, segundo fontes históricas, as mais antigas formas de dança na Índia. Sistematizados a partir do NatyaShastra – tratado de origem védica normatizadora da dramaturgia no teatro e na dança – nestas expressões artísticas é possível reconhecer esculturas, gestos e manifestações do conhecimento védico e hindu codificados em movimentos e posturas que irão compor seus respectivos repertórios. Da mesma forma, vê-se nos itens coreográficos a reprodução de ritos e representações das divindades para as quais as danças eram oferecidas ou apresentadas durante cerimônias de culto ou invocação. O presente artigo busca analisar as vinculações historicamente estabelecidas e observar, nas atuais codificações da dança clássica, a perpetuação das tradições e a função da arte visual, elemento integrativo de tais linguagens. Palavras-chave: BharataNatyan, Dança, Esculturas, Índia, Odissi ABSTRACT: Among the eight styles which compound the Indian classical dance, Odissi and BharataNatyan, considered according to historical sources, the oldest dance forms in India. Systematized from the NatyaShastra Vedic origin treaty which normalizes drama in theater and dance, in these artistics expressions it is possible recognized sculptures, gestures and expressions of Hindu and Vedic knowledge encoded in movements and postures that will make their respective repertoires. Likewise you see in choreographic plays some rites reproduction and deities representations to whom the dances were offered or presented during worship or invocation ceremonies. This paper analyzes the established historical links and it observes in the current classical dance encodings the perpetuation traditions and the visual art role integrating element of such languages. Keywords: BharataNatyan, Dance, Sculptures, India, Odissi Um corpo que revela a formação de uma cultura e que, em sua multiplicidade de formas, exibe e resguarda a natureza humana, a hierarquização social, as manifestações do poder, as interações históricas; iconografias em movimento, esculpidas ou dramatizadas, interligadas pelo mito, firmadas em cenários e edificações por estes preservados e protegidos, este mesmo corpo opera como um culto à memória. Dessa ótica, um recurso para observações acerca das imaginárias indianas em sua condição de herança religiosa e espólio civil claramente presentes no âmbito artístico, de modo peculiar nas danças clássicas da Índia, que assim como os milenares monumentos e santuários históricos, igualmente são repositórios dos seus templos e esculturas. 447 Elaborada a inferência, que incide sobre o complexo de imagens e representações de corpos de divindades, venerados, esculpidos, eternizados, revividos em narrativas literárias ou coreográficas, alcança-se um liame traduzido naquilo que Aby Warburg2 classificou como “sobrevivência” e que Didi-Huberman com afinco esclarece: Warburg substituiu o modelo natural dos ciclos de “vida e morte”, “grandeza e decadência”, por um modelo decididamente não natural e simbólico, um modelo cultural da história, no qual os tempos já não eram calcados em estágios biomórficos, mas se exprimiam por estratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos sempre frustrados. Warburg substituiu o modelo ideal das “renascenças”, das “boas imitações” e das “serenas belezas” antigas por um modelo fantasmal da história, no qual os tempos já não se calcavam na transmissão acadêmica dos saberes, mas se exprimiam por obsessões, “sobrevivências”, remanências, reaparições das formas (DIDI-HUBERMAN, 3 2013, p. 25). Sobreviventes e dotadas de consciência, as imagens indianas, nutridas pelos mitos – e estes por seus devotos em seus ritos alimentados de anseios e graças, com suas dinâmicas próprias de espaço e tempo, disseminam-se no corpo, representado, documentado, ressurgido, fonte da memória, constituindo um arquivo autêntico, explanação que vai ao encontro do que propõe Vigarello: Sem dúvida, o corpo é um arquivo, Mas quando se diz que o corpo revela não se pode esquecer que ele também esconde! Novamente um paradoxo. O corpo revela e esconde, ele exprime e age e, quando ele exprime não significa, forçosamente que ele age. Por isso, existem, de fato, várias perspectivas para estudar as práticas e representações do corpo: há, por exemplo, a análise expressiva dos gestos; o que permite dizer que não há apenas uma única ciência do corpo e que aqueles que o estudam se situam 4 sempre em diversos terrenos (VIGARELLO, 2000, p. 230). Assim, se identifica o território de investigação do corpo “iconografado”, um campo ontologicamente e metodologicamente interdisciplinar, objeto que vai ao encontro das indagações sobre o convívio e as articulações entre as esculturas e as plásticas de origem védica e as estruturas coreográficas das danças clássicas indianas. De acordo com a ortodoxia hindu, a dança é obra divina, revelada aos homens por intermédio dos quatro textos védicos que deram origem aos conceitos que definem a dança como conhecimento artístico. Todavia, o ritmo perene da Criação que se renova a todo instante nas manifestações da natureza, como o murmúrio das ondas, o gorjeio dos pássaros, ou as notas do vento, exibe um padrão 448 de dança conhecido como o NrtyaDainic5, ou a dança de cada dia enquanto ações de Brahma, o deus da Criação. Como entretenimento, figuras humanas tocando instrumentos ou dispostas em formas corporais que sugerem bailados ou folias são encontradas em fontes iconográficas da antiguidade indiana. No entanto, é o caráter devocional que predomina sobre as performances, como informa Andrade6. Para este autor, indiano de origem com formação em BharataNatyan, um dos oito estilos da dança clássica, a religiosidade configura a dança, executada primordialmente nos templos e nas celebrações hindus, dentro dos princípios védicos. Justamente por isso, são apontadas quatro argumentações míticas na gênese da dança. Partindo do conceito de NrtyaDainic, os brâmanes – sacerdotes e detentores dos saberes religiosos descritos na literatura védica - atribuem ao deus Brahma toda criação artística, e, por assim ser, terá na deusa Sarasvati – sua consorte, representada com um instrumento musical de cordas sobre o seu colo, a divindade provedora da inspiração e de todas as aptidões artísticas. A vertente vaishnava ou vishnuísta, que se desenvolve em torno dos cultos de Vishnu, tem no deus Krishna uma das suas principais encarnações (avatares), e atribui a esta divindade o seu referencial na experiência da dança já que, como pastor, por tocar a sua flauta junto às gopis,suas jovens e companheiras pastoras, com elas também dança. Mas teria sido sobre a serpente Kaliya7, com quem trava uma luta nas águas do Rio Yamuna, que Krishna, como herói,celebra sobre a cabeça da víbora – o mal destruído, sua dança de vitória e poder. Para as tradições religiosas que têm em Shiva o seu cerne teológico, o deus de origem dravídica, cujo principal aspecto é conhecido como Nataraja – o Senhor da Dança, é ele o criador desta arte, já que com o seu corpo em torções e flexões, e em seus quatro braços que com agilidade protege e abençoa os seus devotos, executa seus movimentos e sua dança sobre o demônio-anão muyalaka, símbolo do ego destruído pela consciência divina. Segundo Portinari (1989) a imagem de ShivaNataraja8 foi considerada pelo grande escultor francês Auguste Rodin (1840/1917) “a mais elevada concepção do corpo em movimento”9. Nesta configuração em que a tríade hindu (ou Trimurti) mantém os seus papéis nas suas inerentes e respectivas funções de criar (Brahma), preservar (Vishnu) e transformar (Shiva), também é a prerrogativa da dança, como origem mítica, tão somente possível pela existência da divindade e do corpo, em seu potencial de força, fluidez, equilíbrio e harmonia, sintonizados com o pensamento filosófico da cultura 449 védica. Ainda assim, a tradição da dança também se remete às apsaras ou dançarinas celestiais, que na mitologia estão presentes entre os deuses e demônios, nas narrativas de enamoramento, conquistas, lutas e festejos. No mundo real, seriam as ascendentes das devadasis10, as dançarinas dos templos, que em seus cultos, em quaisquer das vertentes religiosas, e atos litúrgicos trazem na dança, no gesto e nos sentidos, a comunicação física e transcendente com as suas divindades. 11 Figura 1: Shiva Nataraja (FONTE: Grande Templo de Madurai; fotografado por Alfred Nawrath, 1938.) Outrossim, nos estudos de Gopal e de Andrade prevalecem as interpretações amplamente aceitas pelos cânones literários que normatizaram a dança e as artes cênicas – no contexto indiano indissociáveis, de onde surgem os oito12 estilos de dança clássica, que em suas particularidades históricas e geográficas agregam outros elementos em seus repertórios historicamente vinculados às iconografias templárias e espaços sacralizados - como santuários e recintos privados. Nos referidos cânones, é o corpo que viabiliza o acesso e o entendimento de cada gesto ou intenção, reproduzindo a tradição em seus ambientes e sua ancestralidade. Dois tratados principais regem a dimensão técnica da dança: “NatyaShastra” e “AbhinayaDarpanam” (são) considerados os textos mais antigos sobre a dança hindu. Eles oferecem, de certo modo, a “gramática” de desenvolvimento de todo o repertório da dança clássica hindu. Escrito 450 por volta do século II a. C., o “NatyaShastra” (literalmente, tratado sobre o teatro) é o mais antigo livro existente sobre as artes cênicas. Trata-se de uma verdadeira enciclopédia sobre teatro, em que são especificados detalhadamente todos os aspectos envolvidos em uma representação artística. Esse tratado chega a níveis de detalhamento impressionantes, como por exemplo as cores adequadas para a maquiagem, os tipos de movimento para cada parte do corpo e a maneira correta de construir dos palcos em suas exatas proporções. O “AbhinayaDarpanam” de Nandikesvara é um manual de gestos e posturas de dança e drama (século III d. C.). {...} Em outras palavras abhinayasignifica o despertar dos nove sentimentos chamados “navarasa” por meio das expressões faciais: surpresa, repulsa, coragem, amor, humor, fúria, medo, liberação e comoção. {...} O segundo termo “darpanam” significa espelho, que ajuda o espectador ver toda a linguagem articulada no palco e compreender sua condição 13 pessoal (ANDRADE, 2008, p. 86). Nos textos, as evidências da cultura védica para a concepção das artes do corpo são expostas na sistematização do conhecimento e engendradas pela intelectualidade brâmane. Para os sacerdotes, nas escrituras sagradas do Rig Veda, Yagur Veda, Sama Veda e Atharva Veda14 estavam definições também aplicadas no estudo das artes. A palavra no Rig – o veda ou conhecimento dos hinos, os gestos do Yagur – veda dos atos sacrificiais, a música no Sama – onde se encontram os cânticos rituais, e a estética do Atharva – voltado às funções sacerdotais, devoções e encantamento espiritual (bhava). Reunidos pelo deus Brahma, estes fundamentos foram compilados no chamado quinto veda que a supremacia brâmane nominou “Natya Veda”. Em seguida, o deus da criação transmitiu-o ao sábio Bharata – possivelmente um nome genérico, e conferiu ao brâmane o encargo da sua escrita que redigiu o “NatyaShastra”, a ciência da dança, da música e da dramaturgia. Algumas interpretações delegam ao estilo BharataNatyam – tal qual o Odissi estilos considerados os mais remotos, a raiz etimológica no nome de Bharata por uma divisão silábica; de “Bha” o bhava – deleite e expressão, de “Ra” o Raga – melodia e escala musical, de “Ta” o termo Tala – ritmo e movimento. Desta fusão, a própria dança. 451 Figura 2: RamGopal (1912/2003), dançarino e coreógrafo de BharataNatyan, expoente internacional, tendo ao fundo o templo de Belur, Mysore, sul da Índia. 452 Figura 3: RamGopal, como Shiva, e a deusa Parvati, sua consorte. Há que se observar que o mesmo vocábulo contudo designa historicamente a nação indiana, haja vista o épico “Mahabharata”, atribuído ao sábio Vyasa, um autor mítico, cujos primeiros textos teriam sido escritos por volta do século IV a. C., na grande epopeia dos bharatas. Do “AbhinayaDarpanam”, que se concentra na comunicação e na gestualidade, quatro aspectos da dança e da interpretação são categoricamente descritos e, assim como o Natya Veda, desenvolvido nos textos védicos: “VachikAbhinaya”/ Rig Veda, o diálogo e o discurso do texto; “SattvikAbhinaya”/ Atharva Veda, a expressão dos sentimentos e estados mentais; “AngikAbhinaya” / Yagur Veda, a linguagem do corpo; e “AharyyaAbhinaya” / Sama Veda, voltado aos ornamentos e à visualidade15. Com o processo de formação da dança clássica indiana historicamente elucidado, entra em cena uma personagem de fundamental importância na 453 historicidade das imagens e representações indianas e sua continuidade para os estudos do corpo e do movimento, diretamente vinculada ao campo dos estudos de gênero e da historiografia dos subalternstudies: as devadasis ou “bailadeiras indianas”. Na organização social da Índia védica, a arquitetura concentrou em si o panteão hindu iconografado e proporcionou o florescimento das artes templárias, já que as sociabilidades e a economia se desenvolviam em torno dos templos, construídos por soberanos ou doados por membros das cortes, eram mantidas por influentes comerciantes. Nas comunidades rurais, os aldeões os mantinham e os usufruíam, além dos ofícios religiosos, para funções educativas, nas quais músicos e mulheres ligadas ao entretenimento somavam-se aos sacerdotes, como observou Miranda 16 ao estudar as devadasis como uma das cinco temáticas mais trabalhadasem toda a produção literária em português escrita na Índia. Mostravamse, depois dos sacerdotes, como figuras proeminentes dos grupos sociais diretamente vinculados aos templos, embora fossem distinguidas como cortesãs, eram dançarinas prescritas para os ritos diários e tinham nas suas danças a sensualidade e a devoção como componentes equivalentes em oferta aos deuses. O erotismo, associado à fertilidade, e o encantamento, ilustrando o desejo visceral na realização entre criatura e criador, devoto e divindade, transformava a devadasi em instrumento de lascívia e volúpia, o que legitimava o seu epíteto, do sânscrito “servas dos deuses”, corroborando a descrição dos colonizadores portugueses em Goa, no século XVII, ao referirem-se às dançarinas – ou bailadeiras, como prostitutas dos pagodes; também citadas na obra do viajante inglês Richard Burton, já no século XIX. Com uma visão que se distancia de possíveis anacronismos, Lowen17 ao investigar as devadasis no estado de Orissa, costa leste da Índia, onde a sociedade local as evocavam como maharis, destacou sua condição de mulheres oficialmente casadas com a divindade principal do templo, que em Orissa, eram consagrados em maior parte à Jaganath, uma das representaçõesdo deus Krishna, ou deuses ligados aos cultos de Vishnu, como o deus do Sol - Surya, ou Hari-Hara – divindade decorrente da fusão de cultos vishnuistas e shivaistas. A pesquisadora descreveu a contribuição determinante das maharis – as devadasis de Orissa, em sua intensa devoção, caracterização cênica e linguagem corporal - na formação determinante da dança clássica Odissi, como uma das três escolas18 que, fundidas, 454 se fazem perceber nas performances contemporâneas. Em contrapartida, Boxer, ao analisar as relações entre as devadasis e os cidadãos da nobreza de Portugal estabelecidos em Goa, examinou extensa documentação em que as duplas funções das devadasis, ora assistentes dos sacerdotes, ora serventes sexuais de autoridades e abastados cujos lucros tinham como finalidade a manutenção dos serviços dos templos, configuravam o seu papel de mediação econômica, exercida pelo corpo, que tinha na dança o diálogo com o divino, para satisfação do gozo e deleite humano, fenômeno presente em várias outras culturas da antiguidade, como Egito, Grécia ou Suméria. No território português da Índia, os conflitos entre vice-reis e arcebispos de Goa diante das querelas sobre as devadasis eram frequentes. Os religiosos acusavam as autoridades civis de serem tolerantes para com as bailadeiras e as denunciavam como obstáculos para a promoção da prática cristã e reforma da vida espiritual dos portugueses na Ásia. Com tratado escrito em 1725, o Fr. D. Inácio de Santa Tereza, Arcebispo Primaz do Estado da Índia (1721-1740), assim se pronunciou: Aqui pertence finalmente juntar hum dos maiores escândalos da India, por pertencer de algum modo à Religião, que he o comercio e comunicação com as bayladeiras gentias, servidoras dos Pagodes, reedificações dos antigos, ornato e riqueza dos Idolos, concorrendo talvez os seos amasios com o dinheiro determinadamente para o Pagode, e existindo algum erecto com o titulo de certo cavalheiro Portuguez, que ainda hoje vive, pelo muito que deu à Bayladeira para a sua ereção. Porém adiante tocaremos alguma couza neste particular dos danos, não só espirituais mas também temporaes, que esta pessima carta de harpias e fúrias infernaes tem 19 cauzado e cauzão a todo o Estado (BOXER, 1961, p 91). O texto expõe o risco em que tinham se constituído as devadasis já que a ameaça do corpo, mais que uma infração moral, era especialmente temida devido aos desvios financeiros que ocorriam nos templos hindus e em suas representantes um foco de dispersão dos interesses coloniais. Paradoxalmente, as tensões subsistiram ao quefavoreceu a permanência das devadasis no universo cultural da Índia portuguesa, conforme apontou Miranda. O corpo físico da dançarina, fartamente adornado em detalhes e joias, que a documentação lusa ultramarina descreve como “oferta e sacrifício ao Diabo”, é acima de tudo a manifestação telúrica, a força da ancestralidade imagética, cinestésica e consciente do seu passado. Mais que reminiscências, são sobrevivências em inúmeras versões 455 representadas, musculaturas, eixos, expressões faciais, códigos e atalhos, estes, muitas vezes, a indicar sendas para o desconhecido, quiçá inacessível, senão pela leitura da gestualidade do corpo. Na mesma conjuntura, porém avançando para outra singularidade em que o corpo e a dança veem-se em conflitos de alteridade, observa-se o fenômeno dos rapazes que vestidos e adornados como dançarinas dos templos, apontam duas problematizações: em Goa, no século XVIII, sobre a proibição das bailadeiras nas terras dominadas pela Coroa portuguesa juntamente com vassalos vestidos em trajes femininos de dança, e em Orissa, a partir do mesmo período – com ênfase no século XIX, o acolhimento de garotos20 ginastas que, figurados como maharis, as devadasisde Orissa, apresentavam suas danças nas dependências externas dos templos. No caso de Orissa, há duas interpretações. Na primeira delas, na qual se apoia Andrade21, as constantes invasões estrangeiras provocaram a transferência da dança ritual das maharis para as cortes, o que fez o sistema de formação de dançarinas nos templos entrar em decadência. Concomitantemente, surgiu um movimento que fez a dança ser preservada ao alcance dos devotos, por conta da adaptação da tradição em meninos que, por um excelente domínio físico, foram treinados a incorporar a tradição das dançarinas apresentando-se como se fossem elas próprias, com figurinos, maquiagem e ornamentos femininos, mas inserindo o seu desempenho acrobático nas peças coreográficas, mantidas sob o cunho devocional. Os meninos – na língua local oryagotipuas, designação de garotos ginastas, proporcionaram o surgimento de uma escola homônima, responsável pela sobrevivência da dança ritual fora dos templos, e destes para a perpetuação da tradição. Num outro panorama, teria sido da colonização britânica o impedimento da execução das danças rituais das maharis nos espaços públicos religiosos, parte de ações restritivas impostas às mulheres indianas, numa campanha por “moralização”. Numa perspectiva de subalternidade, as duas leituras tornam-se coerentes enquanto aspectos de uma realidade mais complexa. 456 Figura 4: KelucharanMohapatra, dançarino e principal coreógrafo do repertório contemporâneo da dança Odissi, em peça expressiva (abhinaya) em louvor à Jagannatha. Figura 5: KelucharanMohapatra e SanjuktaPanigrahi no RietbergMuseum,Zurique,Suiça, 1983. Em Goa, o caráter punitivo esteve explícito, respaldado por uma legislação determinada pelo Vice-Rei João Saldanha da Gama, publicada em 28 de setembro de 1730. 457 Hey por bem, e mando que se guarda inviolavelmente a dita ley de 28 de setembro de 1730 com todas as suas clausulas, expressões e disposições assy como nella se conthem, - e outros ordeno, e mando que da publicação da presente ley em diante nenhuma mulher servideira dos Pagodes, ou das bailadeiras, nem os seus gadaras, venhão às terras do Estado sob pena de morte natural para sempre, que se executará irremissivelmente, e os vassalos do Estado, assychristãos como gentios, e mouros, não poderão mandar vestir rapazes, ou christãos ou gentios, em trajo de bailadeira para fazerem bailes, sob pena de serem degredados para Chaul por tempo de sinco anos, e pagarem quinhentos xerafins para as despesas da fazenda real, e havendo denunciante, se lhe dará a terceira parte (BOXER, 1961, p. 22 103). Clara está a força e a influência que o grupo social das dançarinas dos templos, dos sacerdotes e músicosexerciam sobre suas comunidades. Na função social estabelecida em sua condição de cortesã, era o corpo da dançarina que lhe conferia a devida dignidade, um corpo cujo possuidor era o divino; é nesta relação que se concebe arte na cultura indiana. Pelo caráter sublime da dança, o corpo, independente do gênero, era por si só o realizador da sacralidade no cotidiano da vida social. Desta forma, é pertinente a reivindicação de AbyWarburg que propôs uma ciência da cultura (Kulturwissenschaft) para tratar da história da arte em seus “entrelaçamentos”. Didi-Huberman lembrou que ao mandar gravar em letras maiúsculas a palavra grega correspondente a memória (Mnemosyne) no alto da porta da sua biblioteca, Warburg indicou ao visitante que ele estava entrando no território de outro tempo (DIDI23 HUBERMAMM, 2013, p. 41). É neste território, acessado pela visualidade corporal, que se rememora nos corpos dos deuses os sujeitos históricos, artistas, autores, artesãos, dançarinos e, sobretudo os personagens anônimos presentes nas sombras das representações de suas culturas. Desta abordagem, identifica-se a função histórica da arte visual na corporalidade indiana como linguagem transmissora de conhecimentos e saberes, e, sobretudo, portadora de um passado milenar, vivo, presente e determinante nas rupturas e permanências na trajetória cultural da Índia, em seu território assim como na diáspora, cumprindo o seu papel em promover princípios universais, em diálogo com visões humanistas, categorias epistemológicas, paradigmas e padrões culturais, muitas vezes antagônicos, mas em busca do convívio filosófico norteado por estéticas em interações e transformações, e movidos pela Cultura de Paz proposta pelo pensamento gandhiano. 458 Nos estilos clássicos de dança indiana que foram abordados nesta conjuntura, imagem-corpo-dança, BharataNatyam e Odissi, o repertório coreográfico tradicional, encenado em teatros, templos, espaços culturais, acadêmicos ou diplomáticos – frequentemente divulgadores das expressões artísticas da Índia como meio de participação política, ilustra a força da dimensão religiosa reproduzida nas apresentações. Inicialmente um ritual com percussão dos pés tradicionalmente contornados em vermelho, portando guizos nos tornozelos para os efeitos sonoros da dança e reverência com as mãos levadas ao chão e trazidas sobre a testa, indicando a saudação dos dançarinos e dançarinas à Bhumi, a Mãe-Terra, doadora da vida e do som reproduzido nos passos e marcações rítmicas, o Bhumi-Pranam; a partir deste instante é que se começa a apresentação. As peças que abrem os espetáculos, mostras ou recitais, remetem à chegada dos devotos nos templos com as oferendas de flores e são introdutórias para textos de invocação, os slokas, ou exibição de itens abstratos onde dançarinos e dançarinas exibem seu conhecimento técnico e a tradição que representam. É também o momento em que uma imagem religiosa, na maior parte esculturas, recebe um gestual de veneração, homenagem ou adoração. No Alaripu, o BharataNatyam revela-se em sua intensidade já nos instantes iniciais pela execução peculiar dos movimentos claramente inspirados em Shiva. O item correspondente na dança Odissi, o Mangalacharan, destaca-se na sinuosidade do caminhar da entrada no palco ou em direção à imagem religiosa, exibindo a devoção e o encantamento que esta dança oferece como linguagem própria do sentimento religioso, dançado, conforme a peça, em dedicação a determinadas divindades, como o deus Ganesha, invocado para os momentos auspiciosos, por exemplo, o começo de projetos, atividades ou empreendimentos; ou deusa Sarasvati, divindade das artes, aspectos de Vishnu ou de Shiva, descritos dramaturgicamente pelo artista em cena. Em seguida, o Pallavi, inteiramente abstrato e caracterizado pelas formas das imagens templárias, retrata com rigor e precisão as esculturas religiosas numa criação e combinação de movimentos, giros, saltos, gestos de mãos e expressões faciais que fazemdos espectadores partícipes da experiência da dança. No BharataNatyam, esta vivência ocorre no Jatiswaran, assim como no Pallavisão,coreografias de dança pura conduzidas por ragas, melodias específicas do sistema musical indiano, com temáticas criadas a partir das manifestações da 459 natureza ou do plano divino, o que possibilita aos gurus de dança, mestres das tradições, compor inúmeras peças abstratas, versões para a dança, originadas nas composições de música clássica, como na literatura, fontes de criação. O Shabdam e o Varnam, do BharataNatyam, e o Abhinaya ou Ashtapadi, da dança Odissi, configuram-se como itens compostos por dramaticidade, como danças interpretativas dos textos da literatura religiosa, num passado recente, exibidas por longas horas de apresentação. A expressividade predominante, algumas vezes, é enriquecida com elementos abstratos rítmicos tornando as coreografias originais em estéticas integrativas de corpo, escultura, texto e imagem em movimento. Embora sejam repertórios ricos e complexos, esta ordem, de acordo com as adaptações, acrescidas ou reduzidas em demais itens coreográficos, é finalizada com danças que têm por intuito a conclusão da experiência artística no encontro entre criador e criatura, divino e humano, artista e audiência. O Tillana, do Bharata-Natyan, e o Moksha, do Odissi, em essência, convidam para o ápice, a transcendência através das bênçãos e do encontro interno com a divindade. Os hastas, ou mudras, ampla codificação para os gestos manuais, constituem linguagem elementar na comunicação cênica, já que suas variações e multiplicidade simbólica proporcionam a gestualidade estendida às expressões faciais na comunicação e no sentido de cada instante dançado, ouvido nas letras e no cântico dramatizado, reportando os templos da antiguidade védica. Por fim, a dimensão plástica deixa de ser prerrogativa no entendimento da arte da dança indiana, já que se encontra intrinsecamente presente no deleite, no bhavadas imagens, onde beleza e sacralidade encontram-se harmonizados pelo sublime. A dança clássica indiana na contemporaneidade énão somente a herança das tradições filosóficas e visuais da Índia antiga, tradução das esculturas milenares, ou acervo vivo do patrimônio religioso. É, todavia, um campo particular de uma ciência da cultura, segundo a perspectiva warbuguiana, sobrevivente, recria-se, superando fronteiras, como via de autoconhecimento e de libertação. O sádhana, caminho existencial dos yogues rumo à redenção definitiva, a meditação em movimento e visualidade, tão somente porque os deuses dançam e se realizam quando seus devotos e suas esculturas podem também dançar, através das imagens e do dançarino no seu corpo, divinamente, humano. 460 Notas 1 Doutorando do Programa de Pós Graduação em História, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Torres Londoño; bolsista CNPq. 2 Aby Warburg (Abraham Moritz Warburg), historiador da arte nascido em Hamburgo (1866 / 1929), tornou-se um notável pesquisador, cuja obra influenciou os estudos de Erwin Panofsky, Ernst Gombrich, Walter Benjamin, Carlo Ginzburg, entre tantos outros. Foi aluno de Jacob Burckhardt e segundo seus críticos tem um pensamento marcado pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Referência impreterível para os estudos das imagens, sua obra é profundamente analisada pelo historiador e filósofo Georges Didi-Huberman, professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, que discute em sua vasta bibliografia conceitos e fenômenos apresentados por Warburg em suas investigações sobre o paganismo no renascimento italiano. 3 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo AbyWarburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. p.25. 4 GeorgesVigarello, professor da Universidade de Paris-V e diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales, em entrevista à Denise Bernuzzi de Sant’anna, intitulada O corpo inscrito na história: imagens de um “arquivo vivo”, realizada em Paris, em 10 de fevereiro de 2000. Revista Projeto História, nº 21, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, novembro de 2000, pp 225-236. 5 GOPAL, Ram e DADACHANJI, Serozh. Indian Dancing London: Phoenix House Limited. 1951. p 13. 6 ANDRADE, Joachim. Shiva abandona o seu trono: destradicionalização da dança hindu e sua difusão no Brasil. 2007. Tese de doutoramento em Ciências da Religião, PUC/SP. 7 Um conto cita Krishna e suas gopis em passatempo às margens de um grande lago enquanto seus rebanhos se abasteciam. O lago era a morada de uma serpente cujo veneno borbulhava sob as águas. Atirandose ao lago por conta da recreação Krishna notou o veneno, o mal estar dos animais e logo viu-se enrolado pela serpente Kaliya. Neste instante sua natureza divina se manifesta e em ritmo crescente, atinge um grande tamanho e seu pé passa a esmagar a cabeça do grande ofídio, em movimentos dançados vistos pelas gopis e por transeuntes na beira do lago como o triunfo de Krishna. Reconhecendo sobre si a grandeza de Vishnu revelado em seu avatar, Kalya com medo de ser morta pede à Krishna perdão explicando ser da sua própria natureza o nefasto veneno. O divino pastor a perdoa e concede-lhe a fuga. Uma versão mais ampla do mito pode ser encontrada em COOMARASWAMY, Ananda.e NIVEDITA, Irma. Mitos Hindus e Budistas. São Paulo: Landy, 2002. p. 215. 8 Um estudo específico sobre a dança em ShivaNataraja pode ser desenvolvido por conta da complexidade simbólica da sua representação. 9 PORTINARI, Mabel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p 41 10 No estado de Orissa, costa leste da Índia, correspondem às maharis, e são descritas na obra de Sharon Lowen. Ver: LOWEN, Sharon. Odissi.Dances of Índia. New Delhi: Wisdom Tree, 2004. p 19. 11 Para uma tradução dos códigos e símbolos desta imagem, ver ANDRADE, Joachim (op. cit) e Dança clássica indiana:história – evolução – estilos. Curitiba: edição do autor, 2008, 166p. 12 De acordo com o profuso trabalho de pesquisa in loko da dançarina Rita Andrade que resultou no livro “Odissi: dança clássica indiana”. São Paulo: Scortecci, 2009. pp 20/21 - o oitavo estilo clássico foi reconhecido em 2000 pela NationalAcademy for Dance and Music – SangeetNatakAcademy, segundo bibliografia de Ashish M. Khokar, o “Sattriya”, modalidade oriunda do estado de Assam, que surgiu no século XV. Junta-se ao “Odissi”, “Manipuri” e “Mohiniattam” como estilos de inspiração claramente vishnuístas, enquanto no “BharataNatyan” e “Kuchipudi” predominam as devoções e plásticas shivaístas, mais lineares e vigorosas por conta do elemento tandava (força ou vigor), atributo de Shiva. Além destes as danças “Khatak” que nasce das confluências islâmicas e hindus no norte da Índia, e “Katakali”, do sul do subcontinente indiano, caracterizam-se pelas conotações de histórias fincadas nas antigas fontes literárias e tradições orais, e do forte apelo cênico e percussivo. Nota-se que o “Katakali” é essencialmente teatralizado e tem na sua origem os cultos à deusa Kali, um dos aspectos femininos de Shiva. 13 ANDRADE, Joachim. Op. Cit. p. 86. 14 Grafia utilizada por Gopal e Dadachaanji, que não abordam cronologias, mas a temporalidade mítica na dança. GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Op. Cit. p. 17. 15 GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Op. Cit. p. 23 16 MIRANDA. Eufemiano de J. Literatura indo-portuguesa dos séculos XIX e XX: um estudo de temas principais no contexto sócio-histórico. 1995.Tese de doutoramento em Literatura portuguesa. Universidade de Goa, sob a orientação do Prof. Dr. Fr. Ivo de Mascarenhas. Mapusa. Goa. 17 LOWEN. Op. Cit. pp 19-22. 18 Além da tradição Mahari e Gotipua, uma terceira escola integra a formação da qual se evoluirá o Odissi contemporâneo, a escola Nartaki, a dança desenvolvida nas cortes de Orissa. 19 BOXER. C. R. Fidalgos Portugueses e Bailadeiras Indianas (Séculos XVII e XVIII). Separata da Revista de História. Nº 45. São Paulo, 1961. p 91. 20 A caracterização feminina em dançarinos está fundamentada no mito de “ShivaArdhanari” ou “Ardhanarishwara”. A junção religiosa de Devi (ou de manifestações da deusa) e de Shiva gerou o culto à dupla personificação de Shiva, em que se mostra metade de um corpo masculino com metade do corpo feminino. Os atributos também foram equilibrados e a divindade é representada com elementos de Shiva e de Devi – não necessariamente sua consorte já que esta ou divindades femininas do shivaísmo constituem outros mitos do 461 extenso panteão hindu. Sobre ShivaArdhnari ver: ZIIMMER, Heinrich. Mitos e símbolos na arte e civilização da Índia. São Paulo: Palas Athena, 1989. p 171. 21 ANDRADE, Joachim. Op. Cit. p 113. 22 BOXER. C. R. Op. Cit. 103 23 DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. Cit. 41 Referências Bibliográficas ANDRADE, Joachim. Shiva abandona o seu trono: destradicionalização da dança hindu e sua difusão no Brasil. 2007. Tese de doutoramento em Ciências da Religião, PUC/SP. ANDRADE, Rita. Odissi:dança clássica indiana.São Paulo: Scortecci, 2009. BOXER. C. R. Fidalgos Portugueses e Bailadeiras Indianas (Séculos XVII e XVIII). Separata da Revista de História. Nº 45. São Paulo, 1961 COOMARASWAMY, Ananda. e NIVEDITA, Irma. Mitos Hindus e Budistas. São Paulo: Landy, 2002 DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo AbyWarburg.Rio de Janeiro: Contraponto, 2013 GOPAL, Ram. e DADACHANJI, Serozh. Indian Dancing. London: Phoenix House Limited. 1951 LOWEN, Sharon. Odissi.Dances of Índia.New Delhi: Wisdom Tree, 2004. MIRANDA. Eufemiano de J. Literatura indo-portuguesa dos séculos XIX e XX: um estudo de temas principais no contexto sócio-histórico.1995. Tese de doutoramento em Literatura portuguesa. Universidade de Goa, sob a orientação do Prof. Dr. Fr. Ivo de Mascarenhas. Mapusa. Goa. PORTINARI, Mabel. História da Dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. VIGARELLO, Georges.professor da Universidade de Paris-V e diretor de estudos na ÉcoledesHautesÉtudes em SciencesSociales, em entrevista à SANT’ANNA, Denise Bernuzzide, intitulada O corpo inscrito na história: imagens de um “arquivo vivo”, realizada em Paris, em 10 de fevereiro de 2000. Revista Projeto História, nº 21, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, novembro de 2000, pp 225-236. Jorge Lúzio Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP, é mestre em História pela mesma instituição. Membro do Laboratório de Interlocuções com a Ásia – LIA FFLCH USP e do Grupo Outros Orientes, com Lato Sensu em Cultura e Arte Barroca / UFOP-MG, especialização em Yoga / UniFMU-SP, e formação em Dança Clássica Indiana Odissi /Padmaa-SP. Docente no Centro Universitário Assunção Unifai – São Paulo. 462 QUANDO A FLECHA ATINGE A SI MESMO – A ARTE ZEN DO KYUDÔ COMO CAMPO DE MEDIAÇÕES DE CONTATOS INTERCULTURAIS ENTRE ORIENTE E OCIDENTE Saulo de Azevedo Freire - UECE RESUMO: O objetivo deste trabalho é refletir acerca dos empreendimentos de apropriação de práticas e produtos culturais das sociedades orientais pelo ocidente. Proponho como ponto de partida para tais reflexões a experiência de contato com o Kyudô (a arte do arqueiro zen), desenvolvida pelo filósofo alemão Eugen Herrigel entre 1924 e 1929, quando lecionou filosofia no Japão. Dessa experiência surgiu o livro A arte cavalheiresca do arqueiro zen (HERRIGEL, 1995). Esta é uma das primeiras narrativas sobre o contato prolongado de um ocidental com o Zen, vertente do Budismo japonês, cujo desenvolvimento é marcado por inúmeras atividades práticas como o Kyudô, além de outras técnicas como a Ikebana e a Zazen. A análise das experiências de Herrigel nos apresenta um campo fértil para reflexão sobre os contatos interculturais entre oriente e ocidente. Sua narrativa experiencial sobre o Zen nos mostra um contraponto ao processo caracterizado por Benjamin (1986) como empobrecimento da experiência, que marca o ocidente desde início do século XX. Seu contato com a prática em questão diferencia-se de perspectivas desenvolvidas por orientalistas, que empreendiam contatos com as sociedades do oriente com vias de distanciamento, principalmente com perspectivas de subordinação (SAID, 2010). Palavras-chave: Arte Zen, Budismo, contatos interculturais, orientalismo, Sociologia. ABSTRACT: The purpose of this article is to reflect on the appropriation of certain practices and cultural products from eastern societies by the west. It is proposed as a starting point for this reflection the experience of contact with Kyudo (Zen Archery), developed by the german philosopher Eugen Herrigel between 1924-1929, while teaching philosophy in Japan. From this experience, the book Zen in the art of archery (HERRIGEL, 1995) was originated. This is one of the first narratives about a prolonged contact of a western with Zen, a form of Japanese Budhism which uses countless practical activities as Kyudo, besides other techniques as Ikebaria and Zazen. The analysis of Herrigel’s experiences presents a fertile field for reflections on intercultural contacts between East and West. Herrigel’s experimental narrative about Zen shows a counterpoint to the process of impoverishment of the experience as stated by Benjamin (1986), which marks the West since the beginning of the 20th century. Herrigel’s contact with the mentioned practice is different from the perspectives developed by orientalists, whose contact with other societies was based on detachment, strongly biased by perspectives of subordination (SAID, 2010). Keywords: Zen art, Budhism, intercultural contacts, orientalism, Sociology. 1. Introdução Em 1924, Eugen Herrigel, um filósofo alemão de orientação neo-kantiana é convidado para lecionar na Universidade Imperial de Tohoku, em Sendai no Japão¹. Além das atividades de âmbito acadêmico, Herrigel aproveitou a oportunidade para conhecer in locu, alguns aspectos da cultura e filosofia japonesas, tema pelo qual 463 havia desenvolvido gosto desde sua juventude. Em especial despertara interesse pelo Zen Budismo, tradição com a qual intenta aproximação logo em sua chegada ao Japão. Uma das características fundamentais da vertente Zen do Budismo é o seu desenvolvimento atrelado a inúmeras atividades ou artes de cunho prático, como as artes marciais, a Ikebana², a pintura, e inúmeras outras práticas. Em sua empreitada de descobrimento/conhecimento sobre o Zen, Herrigel escolhe o Kyudô, a arte do arqueiro Zen (kyu – arqueiro; dô – caminho), como prática que o conduziria em tal empreendimento. Suas experiências de contato com o Kyudô e com o Zen Budismo deram origem a um livro intitulado A arte cavalheiresca do arqueiro zen (HERRIGEL, 1995), primeiro relato de contato direto de um ocidental com tais práticas, e um dos primeiros textos publicados em idioma ocidental (e escrito por um ocidental) sobre o tema. São justamente as experiências de contato de Herrigel com o Kyudô, e particularmente com o Zen, que tomo como ponto de partida neste trabalho para refletir acerca dos processos de contatos e mediações culturais entre ocidente e o oriente. Sua experiência com essa prática nos mostra como uma técnica corporal, neste caso o tiro com arco, ganha significados e contornos práticos diferenciados quando seu contexto de desenvolvimento é adverso, e atravessado por diferentes campos de mediações culturais. Essa é uma problemática para a qual já atentava Marcel Mauss (2003) desde o início do século XX. Mauss foi um dos primeiros no âmbito das Ciências Sociais a chamar a atenção para a importância da compreensão dos usos sociais do corpo para a análise das dinâmicas de sociabilidade. Eis que ele denomina de técnicas corporais, as diversas formas de usos sociais dos corpos. Nesse sentido, a arte japonesa do tiro com arco, como a desenvolvida por Herrigel, será o fio condutor privilegiado sobre o qual serão delineadas as reflexões acerca desses campos de mediações, contatos e apropriações culturais entre ocidente e oriente. Para esse empreendimento trato, pois, de discorrer no primeiro tópico deste trabalho sobre as diversas perspectivas através das quais o ocidente estabeleceu contatos com os povos e culturas orientais. É o que podemos observar através dos empreendimentos de dominação colonial, tal qual aconteceu no período das grandes navegações no contexto do movimento expansionista europeu no século XV, ou do movimento recente de apropriação de diversas práticas e produtos culturais do 464 oriente tal como o ocorrido desde o início do século XX e que ganha novos contornos com os processos de globalização. O que se destaca conceitualmente, principalmente a partir da primeira perspectiva apresentada, é o surgimento de um fenômeno que Edward Said (2010) denomina de orientalismo. Essa é uma categoria de partida fundamental para as reflexões aqui propostas, pois nos mostra como esse “oriente” surge como uma invenção do ocidente, e é fruto justamente desses contatos e estranhamentos com uma alteridade distante, geográfica, cultural e socialmente, que justamente por isso é colocada em uma condição de subalternidade ante os povos do ocidente. O movimento de contatos/apropriações/mediações com o oriente que (re)emerge no início do século XX (podemos situar aí também experiências de Herrigel), ocorre em um período entre as duas grandes Guerras Mundiais, onde o ocidente vivenciava um processo que Walter Benjamin (1986) denominou de empobrecimento da experiência. Observava-se uma perda nas pessoas da capacidade de converter aquilo que era vivenciado em experiências duráveis e transmissíveis. A experiência da Guerra, a instabilidade econômica, o desemprego, somados ao domínio da técnica sobre o homem, a racionalidade exacerbada e o ritmo de vida nas grandes metrópoles, delinearam no ser humano do início do século XX certo “emudecimento” no que diz respeito á construção das experiências de vida. É nesse contexto que as narrativas experienciais de Herrigel nos apresentam campo fértil para pensar não somente o oriente, e nem só o ocidente, mas a tensão que surge a partir desse contato intercultural e dos contextos de mediações que aí se apresentam. As reflexões sobre o seu contato com a prática do Kyudô e a experiência do Zen, nos conduzirão nesse caminho de olharmos para longe para conseguirmos enxergar o que está perto. 2. Sobre a construção de um Oriente próximo O título deste tópico é uma alegoria sugestiva para o empreendimento analítico aqui proposto. Devemos perceber que a categoria “oriente”, tal qual fomos acostumados a articular, é impregnada por diversos campos de mediações culturais no contato estabelecido entre essas sociedades, e as sociedades ocidentais. Um oriente que se apresenta como “próximo” não em uma perspectiva geográfica, mas 465 na construção de um imaginário inteligível através do qual se delineiam as vias de apropriações. Com o intuito de compreender essa perspectiva é que Edward Said (2010) propõe a categoria orientalismo para problematizar esse movimento de contatos culturais, onde temos um oriente como “invenção” do ocidente. Segundo este autor: (...) o Orientalismo não é um simples tema ou campo político refletido passivamente pela cultura, pela erudição ou pelas instituições; nem é uma grande e difusa coletânea de textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo de alguma execrável trama imperialista “ocidental” para oprimir o mundo “oriental”. É antes a distribuição de uma consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), mas também de toda uma série de “interesses” que, por meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica, a descrição paisagística e sociológica, o Orientalismo não só cria, mas igualmente mantém; é, mais do que expressa, uma certa vontade ou intenção de compreender, em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, o que é um mundo manifestamente diferente (...) (SAID, 2010. p. 40) Nesse intento, Said (2010) nos apresenta três modelos básicos de orientalismo. A primeira designação, que constitui o modelo mais prontamente aceito de orientalismo, é a da esfera acadêmica. O orientalismo surge como um ramo de estudos, vinculado seja à História, à Antropologia, à Sociologia ou às ciências afins. O orientalista se apresenta na figura do pesquisador que empreende esses estudos, e o fruto do seu trabalho é, por assim dizer, orientalismo. Todavia, este é um termo cuja usualidade, mesmo na comunidade acadêmica, vem decrescendo em termos de prestígio, pois tem sido atrelado ao empreendimento do imperialismo europeu do século XIX e inicio do século XX. Os estudiosos sobre as culturas do oriente passam a rejeitar o emprego do sufixo “ismo” para designar suas atividades de pesquisa com o intuito de evitar atrelá-las a uma ciência comprometida com esse projeto imperialista³. Um segundo modelo de orientalismo, como nos mostra Said (2010), se apresenta através de um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica que é posta entre oriente e ocidente. Nessa perspectiva, as sociedades orientais são concebidas sempre em “oposição à” ou a partir de uma “diferença fundamental” em relação às sociedades do ocidente. Esse tem sido o ponto de partida para a elaboração de inúmeros romances, teorias, descrições sociais, relatos políticos, entre outros, acerca do oriente, de seus povos, costumes, 466 mentalidades, e assim por diante. Através deste modelo, tecem-se imaginários sobre esse “oriente” que o colocam sempre em perspectiva de distinção em relação ao ocidente. É esse imaginário, por exemplo, que norteou a escrita de alguns dos primeiros relatos sobre essas sociedades produzidos por escritores ocidentais através da chamada literatura quinhentista, que se constituiu em meio às narrativas e descrições das expedições marítimas portuguesas no século XVI. Os registros dessa época se estruturam a partir de um extenso conjunto de obras e de modalidades textuais, dentre os quais podemos destacar diários, roteiros, guias náuticos, relatos de experiências de viagens, tratados de geografia, etc. Partindo dessa abordagem, o terceiro modelo de orientalismo diz respeito justamente à empreitada colonizadora do ocidente com relação a esses povos, um estilo ocidental para dominar através das negociações que são feitas, declarações a seu respeito, legitimando opiniões sobre ele, descrevendo-o, governado seu curso, enfim, colonizando-o. Empreendimento que teve início nos primórdios da era moderna com as grandes navegações no século XVI, e que encontra ecos recentes com a consolidação do imperialismo britânico e francês em países como a Índia e a Argélia, na passagem do século XIX para o XX, e na atuação norte-americana no período pós-Segunda Guerra Mundial e sua intervenção no Japão, por exemplo. Este panorama acerca de como os contatos interculturais entre oriente e ocidente foram estabelecidos nos apresenta os alicerces nos quais estão fundadas estas relações. Compreender esse movimento nos leva a perceber que esse tipo de discurso sobre o oriente apresenta-se como mais um artifício fruto do empreendimento colonial do ocidente no intuito de estabelecer seu domínio em relação a outros povos e culturas. É o que ressalta Bhabha (2005), ao identificar que uma característica fundamental desse tipo de discurso é a fixidez no que diz respeito à construção ideológica da alteridade. Essa fixidez apresenta-se “(...) como um signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (BHABHA, 2005. p. 105). Como principal estratégia discursiva, é apresentada uma visão da alteridade a partir de um estereótipo, uma forma de conhecimento que vacila entre algo já conhecido, mas que deve ser repetido indefinidamente. Ou seja, o discurso sobre a 467 alteridade, na eminência de representar o entranho, deve ser trazido para o interior de categorias que produzam um “estranhamento próximo”, que possa ser mensurável e articulado dentro de padrões conhecidos e conhecíveis pelo colonizador. Como exemplos dessas manifestações ele cita a visualização de uma duplicidade essencial do asiático, o da bestial liberdade sexual do africano. Tal medida gera uma ambivalência no discurso, que para o autor: (...) garante sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individuação e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictibilidade que, para o estereótipo, deve sempre estar em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente (BHABHA, 2005. p. 106) Deste modo, como também ressalta Said (2010), é possível visualizar coisas novas, vistas pela primeira vez, como versões de algo previamente conhecido. E esta se apresenta como uma forma de controlar aquilo que parece representar uma ameaça a visão estabelecida das coisas. Por fim, a ameaça é emudecida na medida em que sua voz é deslegitimada e os valores de familiaridade se impõem. Daí, podemos perceber que o discurso colonial, enquanto aparato de poder, apóia-se no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. A legitimação dessas estratégias aparece através da produção dos conhecimentos do colonizador e do colonizado de maneira antitética. Apresenta a alteridade como uma população de tipos degenerados com base na origem racial, intentando assim uma justificativa para a conquista e o estabelecimento de sistemas de administração e instrução das outras culturas aos moldes do colonizador (BHABHA, 2005). É justamente esse movimento que faz com que diversas práticas culturais, modelos de espiritualidade e manifestações artísticas de povos como Índia, China, Japão, sejam vistos a partir de uma ótica da subalternidade. Surge um distanciamento fundamental e essencial que separa oriente e ocidente não apenas a partir da distância geográfica, mas, sobretudo de um distanciamento sociocultural. No tópico que segue proponho uma análise sobre a especificidade do movimento de contatos interculturais entre ocidente e oriente que surge a partir do início do século XX. Compreender as características dos novos campos de mediações que se apresentam nesse contexto é um percurso fundamental para lançarmos um olhar para experiências de apropriação dessas práticas e produtos 468 culturais do oriente tais como as desenvolvidas por Eugen Herrigel, e as diferenças com as perspectivas até aqui apresentadas. 3. Sobre a experiência contemporânea: do empobrecimento a destruição O desenvolvimento técnico nos mais diversos setores das sociedades ocidentais, ao mesmo tempo em que converte e cria mediadores para as experiências dos indivíduos, abre também precedentes para que ele acesse uma gama de “experiências possíveis”, outrora desconhecidas ou inacessíveis. Podemos tomar como exemplo o desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação que faz com que se acessem práticas e produtos culturais de sociedades distantes geográfica, cultural e temporalmente. Desde meados do século XX, por exemplo, é possível com um simples apertar de um botão da TV, visualizar e conhecer inúmeras terras longínquas sem mesmo levantar-se do sofá. Ao comprar determinados livros podemos ter acesso às histórias de povos dos quais mal se encontram vestígios na atualidade. Ao visitar uma loja de discos é possível adquirir trabalhos musicais de compositores dos mais diversos países do mundo. E não são apenas as novas vias através das quais acessamos essas práticas e produtos culturais dos mais diversos lugares do planeta que se modificam, como também a velocidade com a qual eles chegam até nós, e os modos gerais dessas apropriações que são transformados. Sobre esse aspecto, impulsionado, sobretudo em decorrência do desenvolvimento tecnológico, Ribeiro (1997) nos chama à reflexão: Após a revolução industrial, a velocidade aumentou significativamente e tornou-se tão capilar que se encontra naturalizada no presente. Os aparatos da velocidade fazem parte de uma genealogia que inclui locomotivas, barcos a vapor, carros, motocicletas, aviões. Todos em maior ou menor grau, símbolos da modernidade em si mesmos (Berman 1987, Foot Hardman 1988, veja também Virilio 1986). A naturalização da simultaneidade é igualmente verdadeira. Desde o telégrafo, os aparatos da simultaneidade incluem o telefone, rádio, televisão, fax e redes de computadores. Se a velocidade transforma o espaço em uma entidade obviamente relativa, a simultaneidade virtualmente aniquila o espaço e tempo. Na era dos satélites, comunicar-se de Brasília com Tóquio dissolve vários fusos horários. É o fim do espaço absoluto, o império do espaço relativo na teia global que facilita e energiza a mistura hipercomplexa de pessoas, capital e informações (RIBEIRO, 1997. p 9-10) Os exemplos citados até aqui apresentam uma mesma particularidade, que é uma das principais características da modernidade, marcante, sobretudo a partir do início do século XX, como já relatava Walter Benjamin (1986) desde 1933: a perda 469 de valor, ou o empobrecimento da experiência humana. O problema da construção da experiência no ocidente, como veremos, constitui-se de um dos principais impulsionadores para o fenômeno contemporâneo de apropriação de práticas e produtos culturais das sociedades do oriente. Benjamin (1986), em um ensaio intitulado Experiência e pobreza, constata uma perda do ser humano na capacidade de converter aquilo que foi vivido em experiência durável e transmissível. A experiência, como nos mostra o autor, é a capacidade do ser humano de construir e transmitir ensinamentos sobre a vida. Não se trata, contudo de um conhecimento erudito, escolado ou formalizado, é mais um conhecimento prático, que se adquire com o passar dos anos, que se aprendem através da vivência, e se legitima por representar também o conhecimento acumulado e repassado por gerações que nos precederam. E que, como constata o autor, parece estar se perdendo em meio ao modelo de vida que se concretiza no ocidente desde o início do século XX. Uma das evidências que levam Benjamin a essa constatação é perceptível a partir das experiências vivenciadas, por exemplo, com o advento da I Guerra Mundial. Ele reconhece que os eventos extremos, como proporcionados pela Guerra, faziam com que os soldados voltassem emudecidos dos campos de batalha, sem conseguir converter em palavras aquilo que haviam vivido. Além da experiência direta da Guerra, suas repercussões para a vida da população em geral, a inflação, a crise econômica, a destruição de cidades, a tensão e o medo que se instalaram nas pessoas, proporcionaram, segundo o autor, um novo estado de barbárie. É o surgimento de uma nova forma de miséria marcada pelo monstruoso desenvolvimento da técnica sobrepujando o homem. Uma das características mais marcantes desse período poderia ser percebida a partir de uma desilusão radical com o século, e ao mesmo tempo uma total fidelidade a ele. Um desencantamento com o presente simultâneo a uma rejeição aos signos do passado, que despoja o homem mesmo do humano, e o coloca a serviço da técnica. (BENJAMIN 1986. p. 115-116). É esse tipo de situação narrada pelos exemplos elencados desde o início deste tópico. Do humano que cada vez mais se torna dependente de mediadores da experiência, dos inúmeros apetrechos dos quais se vale para se resguardar, 470 protegê-lo mesmo de sua humanidade. E não é apenas o ser humano que cria novas técnicas, mas essas técnicas também criam um novo homem, que constantemente é modificado, que fala, comunica novas línguas, que se confundem mesmo com a das máquinas. Homens que não se “conectam” com os outros, que andam meio “desligados”, que parecem estar ficando “sem energia”, como se estivessem “quebrados”. É que seus corpos agora parecem feitos de vidro, tanto por sua fragilidade, na eminência dos perigos de sua humanidade aos quais estão sujeitos, como por sua transparência, que parece não abrigar mais nada, não ter nada mais de extraordinário a revelar em seu interior. Giorgio Agamben (2008), em seu Ensaio sobre a destruição da experiência, retoma o tema trabalhado por Benjamin anteriormente, contudo reconhece que para a destruição da experiência humana não se precisa necessariamente de um evento catastrófico, como o da Guerra evocado pelo autor anterior. Ele afirma que mesmo a existência cotidiana em uma grande cidade pode ser suficiente para esse fim. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: não a leitura do jornal, tão rico em notícias do que lhe diz respeito a uma distância insuperável; não os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; não a viagem nas regiões ínferas nos vagões do metrô nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; não a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; não a fila dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado nem os momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos – divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes-, entretanto nenhum deles se tornou experiência (AGAMBEN, 2008. p. 21-22) O excesso de estímulos, a possibilidades de acesso a uma infinidade de práticas e produtos das mais diversas partes do globo, e a velocidade com a qual eles chegam, proporcionam uma dificuldade aos indivíduos em se conectarem de maneira concreta e duradoura às experiências de vida, como constatou Agamben, ao mesmo tempo em que lhes proporcionam uma infinidade de novas experiências possíveis. É justamente em meio ao caráter ambíguo dessas condições internas de vida nas sociedades ocidental, que vão eclodir e ser impulsionados diversas manifestações de contraposição a essas lógicas. Uma iniciativa que surge a partir desse contexto, e que destaco para o presente trabalho, é a do surgimento de um novo campo de mediações para o processo de apropriação de práticas, produtos 471 culturais, técnicas corporais, terapêuticas e inúmeras manifestações artísticas oriundos das sociedades do oriente. 4. A flecha que atinge o alvo sem atingi-lo Como visto anteriormente com Benjamin e Agamben, as condições de vida nas sociedades ocidentais, sobretudo a partir do início do século XX, geraram um grande vazio de construção e transmissão de experiências. Podemos perceber também, que essas mesmas condições de vida instigaram movimentos de contraposição e de insuflação de novas possibilidades de construção de experiências de vida em meio, e a partir das próprias contradições das sociedades ocidentais. Nesse sentido, além de impulsionar movimentos de contraposição a essa lógica, o empobrecimento da experiência humana nesse período fez com que essas novas insurgências buscassem influências em tradições e perspectivas de organizações sociais oriundas de sociedades distintas daquela vivenciada até então. Sobretudo por parte de uma geração jovem, que se pretendia desbancar o estado de coisas estabelecido pelas gerações anteriores à sua, com críticas às condições de vida predominantes em seu tempo. E que para essa empreitada, tiveram também influências decisivas de tradições do pensamento desenvolvidas em contextos sociais e culturalmente distintos de sua sociedade como é o caso do Budismo, Taoísmo e da cultura Hindu. Podemos ver como nos mostra Campbell (1997), que um dos fatores favoráveis a entrada de valores fundados principalmente nos modelos de espiritualidade e tradições do pensamento oriental, reside no fato de que essas manifestações não haviam se encontrado diretamente, tais quais as religiões e filosofias do ocidente, como foco dos ferrenhos debates e criticas promovidas, sobretudo, pela ciência moderna. São perspectivas que figuraram por muito tempo como “pré-modernas” nos imaginários ocidentais, e que justamente em decorrência disso nunca haviam gozado de prestígio, nem de grandes espaços para sua difusão em tal contexto. As novas possibilidades de fluxos não apenas de pessoas, mas de práticas e produtos culturais entre diversas sociedades fez com que essas manifestações fossem acessadas no ocidente sob diversas perspectivas. 472 É o que podemos perceber através da experiência do filósofo alemão Eugen Herrigel. Desde sua juventude já havia despertado interesse pelas tradições do pensamento do extremo oriente, e como ele mesmo se refere, pela experiência mística por elas proposta4. Contudo, havia constatado que não poderia apreender essa experiência ou os ensinamentos sobre ela a partir de um ponto de vista externo e distanciado. Herrigel já havia percorrido a literatura disponível em seu tempo em busca de perspectivas para acessar àquele tipo de experiências. Desiludido com essas investidas ele chega à seguinte conclusão: (...) só quem verdadeiramente se isola é capaz de aprender o que significa o isolamento, e só quem leva uma vida contemplativa está completamente livre e desprendido de si para a união com o ‘Deus supradivino’. Eu compreendera que não havia outro caminho que conduzisse ao misticismo, a não se o da própria vivência e do sofrimento. Se faltam essas premissas, fica apenas o inconseqüente palavrório (HERRIGEL, 1995. p 26). A partir dessas constatações ele se propõe alguns questionamentos. Como se acessa o caminho místico? Como se alcança o estado do verdadeiro isolamento? E mais, como um ocidental moderno, cujas condições de vida são tão particulares (às quais foram tratadas no tópico anterior), e que está separado dos grandes mestres, temporal, cultural e geograficamente, poderia encontrar um caminho para esse acesso?5 A oportunidade de lecionar na cátedra de História da Filosofia na Universidade Imperial de Tohoku serviu como uma oportunidade para, além de conhecer o Japão e os japoneses, de entrar em contato com a prática viva de uma de suas tradições em particular: o Zen-Budismo. Herrigel se propõe a vivenciá-las através da experiência prática, não-especulativa, tal qual é proposto pelos mestres Zen. É-lhe recomendado que para esse fim deva praticar alguma arte vinculada ao Zen6. Dentre tantas ele escolhe o tiro com arco, Kyudô (o caminho do arqueiro), pois supunha que sua prática anterior de tiro com fuzis e pistolas viria a lhe servir em algo (e que posteriormente iria perceber estar enganado). Através do intermédio de um colega professor da faculdade Herrigel é apresentado Kenzo Awa, famoso mestre do arco no Japão7. Um dos primeiros questionamentos que Herrigel lança sobre a prática do Kyudô diz respeito a como o tiro com arco, que para nós ocidentais seria visto unicamente como uma modalidade esportiva, e outrora utilizado com fins de combate, poderia se constituir como exercício espiritual? (HERRIGEL, 1995. p. 16). Esse é um tema problematizado também por Marcel Mauss (2003) em seu artigo As técnicas do corpo, de 1934. Ele percebe que uma mesma técnica pode 473 adquirir significados e usos diversos tal qual variam os valores e anseios da sociedade onde é praticada. Como por exemplo, a prática do tiro com arco, que para os ocidentais adquiriu um caráter eminentemente esportivo, chegando a compor inclusive o conjunto de modalidades presentes nos Jogos Olímpicos, e que para os praticantes do Kyudô consistia em uma via através da qual poderia acessar o estágio de Zen, de propricepção, e de integração com o mundo. Ou mesmo se atentarmos apenas para a experiência ocidental, poderemos perceber que os arqueiros do século XXI não atiram do mesmo modo e nem com as mesmas finalidades dos arqueiros medievais. O aspecto relevante do trabalho de Mauss para as análises aqui propostas reside justamente da compreensão de que os usos sociais do corpo e as técnicas que dele surgem, são produções culturais diversas cujas variações dependem de inúmeros valores presentes no seio de cada sociedade. Uma técnica do corpo específica pode adquirir usos e significados diversos a partir do momento que é praticada em um contexto diverso ao de sua origem. Ao relatar sua experiência com a prática do Kyudô no livro A arte cavalheiresca do arqueiro Zen (Zen in der Kunst dês Bogenschiessens), publicado originalmente em 1948, Herrigel (1995) não pretende, pois apresentar um roteiro, ou caminho linear para a elevação espiritual. Ele também não se propõe a apresentar um manual da boa-aventurança, pois reconhece a impossibilidade de percorrer o caminho do Zen meramente com o estudo de textos, e que para isso é imprescindível a relação com um mestre. Além disso, a experiência do Zen através de uma de suas inúmeras artes só tem um sentido concreto para quem realmente as vivenciou. O que se propõe na verdade, através do relato e da descrição da experiência vivida, é apresentar essa possibilidade do encontro com ela por um sujeito ocidental moderno. Ele assume a árdua e não menos complicada tarefa de tentar transformar em palavras aquilo que somente se experimenta corporalmente na prática. Como ele mesmo narra: (...) seria irresponsável de minha parte oferecer fórmulas complicadas e paradoxais, expostas em palavras de efeito. Meu desejo é, ao contrário, fazer reluzir a essência do Zen através do modo como se manifesta numa das artes por ele eleita. Esse reluzir não é, porém, a iluminação, na acepção de um termo tão fundamental para o Zen, mas insinua, pelo menos a presença de algo, como o súbito clarão de um relâmpago longínquo que vemos através da neblina espessa. Aprendida deste modo, a arte do tiro com o arco representa, por assim dizer, um curso preparatório para o Zen, 474 pois graças a ela é possível que um acontecimento à primeira vista incompreensível se torne transparente, o que por si mesmo antes era impossível (HERRIGEL, 1995. p. 24) As experiências de contato com o oriente as quais teve acesso Eugen Herrigel apresentam-se como uma perspectiva através da qual um ocidental, forjado justamente pela orientação do pensamento científico, que concebe uma separação fundamental entre sujeito e objeto da experiência (ou daquilo que se experiencia), vivencia a possibilidade de construção dessa experiência tal qual recomenda uma das tradições mais antagônicas dessa abordagem: o caminho do Zen. Onde não há essa cisão, e indivíduo, objeto e a própria experiência se apresentam como um só, cuja perspectiva se constrói muito mais por aquilo que consegue ser vivido de maneira prática, do que por aquilo que se consegue daí refletir ou induzir. Uma possibilidade de construção de experiência que ocorre justamente em um período em que, na sociedade ocidental, como nos mostra Roszak (1972) a modernidade e a racionalidade científica que a acompanha, despojaram o ser humano comum de inúmeras competências, atribuindo assim à solução dos problemas que se apresentam na vida cotidiana a especialistas, detentores de conhecimentos específicos. Homem e natureza foram convertidos em objeto de manipulação da técnica. Nesse sentido o cidadão comum, que não consegue acessar esse saber técnico legítimo, se depara com uma realidade que transcende a sua competência. A especialização seja ela, científica, administrativa, militar, educacional, médica, transforma-se no grande artifício da sociedade tecnocrática. Desde o início de sua prática ele ressaltava uma dificuldade em manejar o arco, pois para isso desprendia de grande quantidade de força e tensão muscular. Em seguida apresentava uma preocupação com o fato de não conseguir desenvolver tiros certeiros, pois estes quase sempre escapavam-lhe das mãos. O mestre Kenzo Awa afirmara que a grande da dificuldade apresentada por Herrigel residia justamente em sua preocupação excessiva em acertar, no cálculo de seus movimentos para atingir a esse fim. O mestre fala a seu discípulo: (...) se quase todas as suas flechas atingirem o alvo, o senhor não será outra coisa além de um artista que se exibe ao público. Para o ambicioso, que só se importa com os tiros certeiros, o alvo não é nada mais que um simples pedaço de papel que ele destrói com suas flechas. Para a Doutrina Magna dos arqueiros, esse procedimento é, no mínimo, diabólico. Ela ignora o alvo erguido a uma determinada distância do arqueiro. A única meta que persegue é aquela que de nenhuma maneira se pode alcançar 475 tecnicamente, e essa meta se chama - se é que se lhe pode dar algum nome – Buda. (HERRIGEL, 1995. p. 67 - 68). Ao propor essa afirmativa, o mestre tenta destacar para seu aluno que, no caso das inúmeras artes Zen, o percurso e a prática, por si mesmos já se constituem enquanto o próprio fim de tais atividades. Semente após treinamento longo e duradouro é que o praticante consegue desenvolver (ou restaurar) em si mesmo um estado de espontaneidade, de naturalidade na execução dos movimentos. O mestre assim o é e faz, não por apresentar um domínio sobre as técnicas, ou resguardar um grande número delas, mas por não se deixar dominar por elas no curso de seus movimentos. E ainda mais, a prática corporal que desenvolve vinculada a qualquer dessas artes Zen, reverbera esse estado de espontaneidade e fluidez para os mais diversos âmbitos de sua vida. Um tipo de conhecimento que se produz e se inscreve de maneira concreta pelo corpo. Para os mestres japoneses no uso do arco: (...) a verdadeira compreensão dessa arte só é possível àqueles que dela se aproximam com o coração puro, despido de qualquer preocupação. Se se perguntar, desse ponto de vista, aos mestres arqueiros japoneses sobre esse enfrentamento do arqueiro consigo mesmo, sua resposta soará mais que misteriosa. Porque para eles o combate consiste no fato de que o arqueiro se mira e no entanto não se atinge, e por vezes ele pode se atingir sem ser atingido, de maneira que será simultaneamente o que mira e o que é mirado, o que acerta e o que é acertado. (HERRIGEL, 1995. p. 17). E por isso, a natureza misteriosa dessa arte se revela unicamente neste combate do arqueiro contra ele mesmo. Uma das constatações fundamentais de Herrigel é que para os ocidentais, acostumados a conceitos e definições claras, a um pensamento objetivo, tais proposições aparentemente “enigmáticas” podem parecer um tanto quanto difíceis de tornarem-se inteligíveis. Na verdade, muito mais do que a reflexão, o que as palavras dos mestres propõem é que seu significado real seja acessado pelo discípulo através de experiências práticas. E estas só podem acontecer de fato quando o praticante conseguir silenciar a mente racional, e extinguir a separação entre si, como sujeito, e a experiência a qual se propõe acessar, ou os meios através dos quais acessá-la enquanto objeto de tal realização. 476 5. Considerações finais Ao contrário das iniciativas desenvolvidas pelos orientalistas clássicos, a experiência de contato de Eugen Herrigel com o Kyudô e com a tradição do Zen Budismo, nos mostra uma via que nos permite uma reflexão sobre o próprio lugar do ocidental na tessitura dessas experiências. Essa é uma perspectiva que geralmente fica omissa no estabelecimento desse tipo de contato intercultural, e só o que aparece é o estranhamento na relação com “diferente”. A narrativa experiencial de Herrigel toma como ponto de partida também um estranhamento com o próprio lugar que ele ocupa nessa relação. Seus conflitos particulares durante o aprendizado do Kyudô nos apresentam exemplos do âmbito mais geral sobre tipo de problemática que se origina a partir dessa tensão no contato ocidente/oriente. As artes Zen apresentam um desafio particularmente árido para uma mente talhada na lógica e na reflexividade. O desenvolvimento de uma atividade cujo fim está em si mesmo, na própria prática, é um contraponto provocador a ânsia por um objetivo delimitador para tal empreendimento. A inexistência de uma metodologia linear de aprendizado, ou de um percurso teórico a ser contemplado, faz com que a arte Zen seja o que os mestres chamam de arte sem arte. Seja no tiro com o arco, na preparação dos arranjos florais, no caminho da espada, o que se intenta é tocar a si mesmo. A flecha pode ser disparada, pode até nem sequer sair de perto do arco, mas o arqueiro que tocou o Zen atingiu seu alvo, mesmo sem querer atingi-lo, pois sabe que terá que continuar a atingi-lo inúmeras vezes. Notas 1. Onde permaneceu de 1924 até 1929. 2. Arte japonesa de arranjos florais. 3. Eis que se tornam mais usuais expressões como sinólogo (estudioso sobre a cultura chinesa), nipólogo (estudioso sobre a cultura japonesa) entre outros, para designar alguns desses ramos de estudos orientais. 4. O emprego da categoria misticismo pelo autor consistiria em uma tentativa de utilizar uma noção para se referir, de maneira inteligível ao ocidental, a experiência contemplativa, de integração com si mesmo e com o mundo, sem que haja essa separação entre o eu interior e o mundo exterior. Vale ressaltar, pois, que “místico” não é uma expressão oriunda dos textos clássicos ou das chamadas escrituras sagradas do Zen-Budismo, tradição da qual ele trata em seus escritos. Refere-se a uma expressão utilizada pelo autor para aludir a experiência que nesse contexto é proposta, na eminência de buscar palavras para melhor descrever aquilo que nem sempre podem ser traduzido em palavras. 5. Herrigel (1995. p. 26) no que diz respeito à distância dos mestres, fala apenas do aspecto temporal. Resolvi mencionar o aspecto da distância cultural e geográfica para evidenciar o abismo que separa as sociedades, ocidental e do extremo oriental tradicional. E ainda mais, para explicitar o papel relevante do contato com o mestre no caminho para aprimoramento do discípulo como aspecto fundamental da tradição budista do Zen. 477 6. Dentre as quais podemos citar a pintura, os arranjos florais, algumas artes marciais japonesas, entre outras 7. E que inicialmente reluta em aceitar Herrigel como discípulo, pois já havia tido experiências desastrosas com alunos acidentais. Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. Infância e história - ensaio sobre a destruição da experiência. In: Infância e história – destruição da experiência e origem da história. elo Horizonte: Editora UFMG, 2008 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005 BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1986. CAMPBELL, Colin. A Orientalização do Ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio. Revista Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 5-22, 1997. FREIRE, Saulo de Azevedo. Corpos em suave movimento – técnicas corporais e apropriações culturais através da prática do Tai Chi Chuan. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2012 HENRIQUES, Antônio. Iniciação ao orientalismo. Rio de Janeiro: Editora Nova Era, 2000. HERRIGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. São Paulo: Editora Pensamento, 1995. JACKSON, Michael. Conocimiento del cuerpo. In: CITRO, Silvia (org.). Cuerpos Plurales – Antropologia de y desde los cuerpos. Buenos Aires: Editora Biblos, 2010 MAUSS, Marcel. As Técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Editora Cosac Naif, 2003. PANIKAR, Sardar Kavalam Madhava. A dominação ocidental na Ásia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1977 RIBEIRO, Gustavo Lins. A Condição da Transnacionalidade. In: Série Antropologia. Brasília: Universidade de Brasília, v. 223, p. 1-31, 1997. ROSZAK, Theodore. A Contracultura. Petrópolis: Editora Vozes, 1972 SAID, Edward. Orientalismos – o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 Saulo de Azevedo Freire É graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Ceará. Possui mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. É professor da Universidade Estadual do Ceará e membro do Laboratório de Estudos e Pesquisa Orientais – LEPO/UECE. Desenvolve pesquisas em: corporeidades e sociabilidade; artes marciais; apropriação de práticas e produtos culturais das sociedades do oriente no ocidente. 478 ENCONTROS NA OBRA DE LEE UFAN Ana Amélia Corazza Genioli - PUC - SP RESUMO: A experiência perceptiva é uma forma de pensar e entender o mundo, a partir da ligação entre corpo e ambiente. Determinadas obras artísticas procuram estabelecer o trabalho como ação mediadora entre processos internos perceptivos e de consciência e o mundo exterior. Essa visão privilegia uma noção processual que implica relações contingenciais que ocorrem na produção e exposição da obra. Esses aspectos são fundamentais nas propostas de “encontro” do artista Lee Ufan. Lee cria encontros entre materiais vistos como completamente distintos, ora industriais, ora in natura, tais como pedras, chapas de vidro ou de aço e tiras de borracha, em suas instalações. São junções de elementos inusitados, em arranjos sem precedentes. Suas obras, além de trazerem a junção de diversos materiais, também podem ser entendidas como encontros entre corpo do artista, corpo da obra e corpo do espectador. São uma espécie de “encontro às avessas”, porque nos deixam desconfortáveis num primeiro olhar. Seus encontros produzem fricção, ou mesmo um curto-circuito no pensamento ao tentarmos fazer analogias. E é justamente neste ponto que reside um dos principais interesses do artista: a abertura do sentido – no reinventar. Palavras-chave: Arte Contemporânea Oriental; Oriente/Ocidente; Orientalismo. ABSTRACT: The perceptual experience is a way of thinking and understand the world from the connection between body and environment. Some artistic works seek to establish the work as a mediator between perceptive action and internal processes of consciousness and the external world. This view favors a procedural notion that implies contingency relations that occur in the production and exhibition of the work. These aspects are crucial in the proposals for "encounter" of the artist Lee Ufan. Lee creates encounters between materials seen as quite distinct, sometimes industrial, sometimes in nature, such as rocks, glass or steel sheets and rubber bands on his installations. They are junctions of unusual elements in unprecedented arrangements. His works, besides bringing the joining of different materials, can also be understood as encounters between the artist's body, body of work and the viewer's body. They are a kind of "encounter in reverse", because they leave us uncomfortable at first glance. His encounters produce friction, or even a short circuit in thought while trying to draw analogies. And it is precisely at this point that lies one of the main interests of the artist - the opening of the sense - in reinventing. Keywords: Contemporary East Art; East / West; Orientalism. Podemos pensar obras artísticas como mapas de conhecimento. Esses mapas cartografam a experiência de “ser no mundo” em determinado meio. Desta maneira, traduzem-nos o processo transformador com o qual lida o artista ao criar novas experiências e conexões que possibilitam construir epistemologias. Essa visão privilegia a noção processual do trabalho, ao invés do foco sobre a ação artística. Dentro desse contexto observaremos quatro instalações do artista Lee Ufan que envolvem relações contingenciais na produção e exposição das obras. 479 Lee Ufan faz parte de um grupo de artistas que, na década de 1970, estava na vanguarda de uma onda internacional que separava ocidentalização de modernização e modernização de universalismo ideológico. O artista nasceu na Coreia ocupada por japoneses, cresceu no ambiente de guerra e no Japão, durante os movimentos de protesto estudantil e nas passeatas contra os Estados Unidos, viu o colapso dos ideais modernistas de progresso e racionalismo em face do genocídio, imperialismo, holocausto nuclear e industrialização desenfreada. Como jovem intelectual, Lee se engajou nas críticas à visão de um mundo moderno racionalista, no qual a consciência humana tende a objetificar os fenômenos e os determinar, criando assim um mundo de significações fixas. Sua linguagem tentou expandir as possibilidades da arte em um mundo onde colonialismo e imperialismo, o “outro” e a “diferença” tinham implicações diretas em sua vida real. Conhecedor de filosofia moderna, Lee escreve sobre estética e arte contemporânea e é reconhecido como o principal teórico do grupo Mono-ha, um movimento de arte antiformalista que ocorreu em Tóquio entre o fim dos anos 1960 e o início de 1970. Em seus ensaios, o artista constrói um sistema estético que enfatiza uma estrutura relacional através da qual as coisas apresentam sua existência. Lee busca uma dinâmica espacial que nos induza a encontrar a experiência imediata do que realmente está diante de nós, o “mundo tal como é”. O objetivo do artista é redirecionar a intervenção do artista centrada no ato da criação para a ética da mediação. A ideia de “encontro” torna-se o elemento-chave para o desenvolvimento de sua obra tanto artística quanto filosófica. Esse pensamento também é, segundo Myriam Sas (2011, p.105-107), uma das principais investigações dos artistas japoneses do pós-guerra. Como a autora declara, em suas várias formas, o conceito de “encontro” parte de uma compreensão do funcionamento da subjetividade. Por um lado, a tentativa de performar um encontro, muitas vezes, parte de um desejo de quebrar a distinção entre “arte” e “vida”. Ou talvez seja uma tentativa de desafiar a estrutura que circunscreve institucional e estruturalmente o trabalho, para distingui-lo do “resto do mundo”. A obsessão do encontro é uma herança do esforço modernista de quebrar a moldura e contestar a institucionalização da arte. Mas, por outro lado, a idealização de encontro – direto ou imediato – oculta ou desvia a ocorrência de uma mediação e as questões dialéticas do engajamento. Porém, muitos desses artistas 480 não visaram a um encontro direto, como era comum entre as ações artísticas da época, mas objetivavam complicar esse ideal com ações de interrupção, mimeses autorreflexivas e descontinuidade temporal. A noção de “encontro” norteia toda a obra de Lee Ufan. O artista cria encontros entre materiais vistos como completamente distintos, ora industriais, ora in natura, tais como pedras, chapas de vidro ou de aço e tiras de borracha. São junções de elementos inusitados em arranjos sem precedentes. São uma espécie de “encontro às avessas”, porque nos deixam desconfortáveis num primeiro contato. Suas obras, além de trazerem a junção de diversos materiais, também podem ser entendidas como encontros de todos os elementos que compõem o ambiente, o que inclui o espectador. Seus encontros produzem fricção, ou mesmo um curto-circuito no pensamento ao tentarmos fazer analogias. E é justamente neste ponto que pode residir um dos principais interesses do artista: a abertura do sentido – no reinventar. Por meio da análise de quatro obras do artista, observaremos o processo de transformação dos sentidos das coisas que, de certa forma, ressoam estratégias cognitivas do nosso próprio corpo. Relatum Phenomenon and Perception A (Fig.1), de Lee Ufan, é composto por três pedras sobre uma faixa de borracha industrial, com marcações feitas pelo próprio artista, a qual lembra uma fita métrica. A faixa esticada percorre a sala expositiva e as pedras pousadas sobre a faixa pontuam seu percurso. A dureza das pedras gera um contraste com o látex macio e flexível, enquanto seu peso permite que a faixa seja esticada alterando a precisão de suas medidas. O artista parece querer questionar a importância das medidas de contagem-padrão quando enfatiza as propriedades da faixa, especialmente sua elasticidade. Impedido de verificar as distâncias entre as pedras, o espectador encontra dificuldade em estabelecer conexões, dentro de uma lógica funcional, entre os elementos na composição da obra. Essa não interação nos leva novamente a observar os componentes para tentar estabelecer novas relações com o que de fato estamos experienciando. Na primeira vez em que tive contato com uma obra do artista, em uma galeria novaiorquina, minha sensação foi apenas de estranheza. Já no encontro seguinte, no Museu Lee Ufan, em Naoshima, me permitiu um tempo maior não para entender sua obra, mas para percebê-la melhor. 481 Fig. 1 - Relatum (Phenomenon and Perception A), 1969 Instalação no Museu de Arte de Quioto/Japão, 1969 Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other Fig. 2 - Relatum-Silence, 2012 Instalação no Museu Lee Ufan Naoshima/Japão, 2012 Fonte: Internet: http://tumblr.anthonywarnick.com/ post/919234280/lee-ufans-relatum-silence-2010via-an-island. Acesso em: jan. 2014 482 A obra Relatum-Silence (Fig. 2), exposta no Museu, era composta por uma grande pedra e uma espessa chapa de metal retangular, também de grandes proporções, encostada verticalmente na parede da sala. A pedra tinha uma angulação maior em uma das faces, como se estivesse apontada em direção à chapa de metal. No momento em que lancei um segundo olhar à pedra, senti o impacto da sua presença, seu porte, seu caráter, sua alteridade. Senti que fazia parte, juntamente com outros elementos do trabalho, de um espaço relacional. Havia estabelecido não só um contato visual com elementos, mas também um encontro corpóreo entre alteridades. Os trabalhos da série Relatum, iniciada nos anos 90, são compostos por combinações entre um número pequeno de elementos não trabalhados, tais como pedras, chapas industriais de vidro ou aço e tiras de borracha. A pedra é um elemento que aparece com muita frequência nas instalações. Sobre o seu uso, Lee (2008, p.34) relata que “pedras são coisas do mundo que não são fabricadas e também não possuem um significado direto”. Ele não as escolhe pela sua “pureza”, mas, sim, por sua alteridade, suas qualidades materiais e temporais. Para o artista (2011, p.104), “a natureza é difícil de medir ou entender por sua externalidade e temporalidade indefinida”. Em suas obras, Lee justapõe elementos normalmente olhados como completamente distintos – materiais naturais e industriais –, de forma a organizar um diálogo entre eles. O resultado se assemelha a um tipo de encontro às avessas – que ocorre não pela empatia, mas pela estranheza. Seu método parece induzir uma percepção como experiência direta corporal do ser no mundo, deslocando a definição de um sujeito cognoscitivo para um ser corpóreo que existe na intersecção entre os mundos exterior e interior. “Corporeidade” é uma questão central na proposição de encontro de Lee, a interconexão entre o corpo, consciência e o mundo. Seu objetivo reside em deslocar narrativas conhecidas para poder incorporar novas imagens sensoriais por meio da percepção. Em suas obras Relatum, nem a placa, nem a pedra exercem dominância sobre o outro; ao contrário, elas se relacionam como aspectos distintos da realidade. 483 Nossa participação nessa cena faz crescer o número de componentes e promove uma experiência do tipo “face a face” com o outro. Seus trabalhos podem ser melhor entendidos não como entidades fechadas, mas como situações, conjuntos de relações e traços de eventos físicos; em outras palavras, como convites abertos, experimentais, muitas vezes temporários ao espectador. Fig. 3 - Perception A, 1969 Instalação na Galeria SCAI Tóquio/Japão, 2000 a Fonte: Catálogo da 52 Bienal de Veneza Outro trabalho do artista, Relatum, formely Perception A (Fig. 3), é composto apenas por uma pedra e uma almofada. A princípio observamos que a almofada, com seu conteúdo macio, é pressionada pelo peso e rigidez da pedra. Podemos 484 ainda ver que a superfície áspera da pedra, marcada por manchas de sua exposição ao tempo, cria contraste com a superfície lisa e suave do tecido da almofada. Entretanto, outro elemento nos escapa à primeira vista – o piso. A almofada não apenas suporta o peso como também se situa entre os dois elementos. O leitor pode se perguntar se o piso também não teria uma função importante nos trabalhos analisados anteriormente. Com certeza ele possui, porém nesse trabalho, especificamente, não só vemos a almofada, mas simulamos mentalmente o contato do corpo com um elemento macio ao nos posicionarmos sobre o piso. A almofada faz o processo de mediação entre o peso da pedra e a dureza do solo. Algo que amortece e suaviza a pressão como um anteparo entre dois elementos rígidos sob a força gravitacional. Uma comovente metáfora sobre as relações dos seres humanos com o mundo. Uma bela metáfora sobre o papel da arte. A última obra a ser analisada, Relatum Holzwege (Fig. 4 e Fig. 5), foi instalada numa trilha no parque Haus Weitmar, em Bochum, na Alemanha. Essa instalação é composta por duas pedras calcárias e entre elas há uma placa de aço pousada horizontalmente sobre o chão. De certo ponto de vista, podemos perceber que as pedras têm uma angulação em uma das faces que apontam para a placa de metal. Os componentes da obra interagem com os elementos naturais e a ambiência do parque, formando, assim, um novo encontro. A placa, que foi alinhada com a trilha, oferece sua superfície como passagem. Uma passagem sutil, pois o tom ferrugem de sua superfície “mescla-se” com a terra. Qualquer pessoa que esteja pelo caminho pode andar sobre a placa sem tropeçar, sem notar, a princípio, sua presença. Entretanto, sentirá o metal sob seus pés, a rigidez do material contrastando com a suavidade das folhas secas no caminho, e também ouvirá um som diferente quando pisar sobre a placa. As pedras foram colocadas uma em oposição à outra, sugerindo uma linha perpendicular que cruza o caminho. A obra se torna portal, um intermediário, uma pontuação na passagem, um instante em suspensão para perceber a si e os elementos ao redor – uma metáfora para a vida. 485 Para Silke von Berswordt-Wallrabe (2008), esse trabalho promove um diálogo com o lugar sem alterar a situação existente. Para a autora, essa referência pode ser entendida como uma crítica à necessidade de controle sobre as coisas e situações. Fig. 4 - Relatum Holzwege, 2000 Vista da Instalação, Bochum/Alemanha Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other Fig. 5 - Relatum Holzwege, 2000 Vista frontal da Instalação e o artista, Bochum/Alemanha Fonte: Livro Lee Ufan: Encounters with the Other 486 Em seus trabalhos, o artista gera um encontro entre elementos vistos como desiguais. Mas os encontros que cria não são aleatórios; a partir das condições do lugar, Lee estuda detalhadamente as dimensões da placa, o número de pedras, posições e distâncias entre os elementos da obra. Para Lee (2008, p.10), se tal arranjo for percebido pelo espectador, formará um “espaço de reverberação” no qual atração e repulsão, afirmação e dissolução, limitação e abertura serão mantidas em um equilíbrio tenso e indefinido. Dessa forma, por meio do deslocamento tanto da posição do sujeito (seja espectador, seja artista) quanto da posição do trabalho de arte em si, o artista cria uma sutil moldura para a dinâmica das relações entre os componentes. Em seu texto “Um homem no meio”, Lee Ufan narra: Eu nasci na Coreia e lá vivi até os 20 anos. Depois disso, morei no Japão por 40 anos [...] Por causa do meu passado, os coreanos me veem como japonês, e os japoneses me veem fundamentalmente como coreano, e quando eu vou para a Europa, as pessoas me olham como oriental. Eu me vejo como uma bola de pingue-pongue, um homem no meio, sempre sendo trazido para trás e ninguém querendo me aceitar como pertencente ao grupo [...] As dinâmicas da distância me fizeram o que sou. (LEE, 2004, p.17) Para o crítico Tatehata Akira (2011) o estado de não pertencimento traz a Lee uma crise perpétua. Mas também esse estado se reflete positivamente através de sua aptidão para experimentar coisas desconhecidas que ocorrem nas mediações, nos intervalos ou nos deslocamentos dos eventos. O espaço ressonante, que o sentido de encontro gera nos trabalhos desse artista, repercute na noção japonesa da espacialidade Ma. A pesquisadora Michiko Okano, em suas investigações sobre o Ma, declara: A espacialidade Ma, um espaço intervalar que, ao mesmo tempo, separa e ata, aponta a possibilidade de coexistência de elementos distintos e até opostos, como o interno e o externo, o público e o privado, combinações entre a construção, a natureza e a arte. (OKANO, 2012, p.126) Para a autora, o espaço Ma é uma zona onde as coisas se mantêm “em suspensão” e os níveis de informação e descrição permanecem baixos. O receptor complementa as informações por meio de analogias ou metáforas para que as possibilidades se concretizem. Essas novas associações podem resultar em outras 487 associações, ainda inéditas, que transformam a concepção do lugar. Como exemplo, Okano cita o Museu de Arte Chichu, na ilha de Naoshima, projetado por Tadao Ando. Segundo a autora: Tem-se uma experiência de perda de referência ao se caminhar por escuros túneis, o que provoca uma desconexão com o mundo externo e torna esse trajeto uma passagem para o sublime mundo da arte, que abriga as obras permanentes de três artistas: Monet, James Turrell e Walter de Maria. O corredor labiríntico, escuro e estreito é, muitas vezes, contrastado pelo amplo espaço expositivo, o qual recebe muita luz, técnica peculiar a Ando e denominada contraperspectiva pelo arquiteto Yoshimura (1997). (OKANO, 2012, p.115) Sob a batuta do próprio Tadao Ando, no mesmo complexo artístico em Naoshima, foi construído o Museu Lee Ufan. Para a autora, a arquitetura do Ma se distingue “pela possibilidade de ação a ser nela inserida, encontros, acasos, confrontos e inter-relações entre o homem, os objetos e a memória”. É a possibilidade de ser uma passagem, um entre-espaço quando se constitui fenômeno. Os encontros promovidos pelas obras de Lee se constituem como lugar de transição, interação – um espaço relacional em um jogo incessante de estabilidade e instabilidades. Sua consciência histórica e sua visão de mundo o conduzem a presumir o “eu” além dos processos mentais conscientes. Um eu que busca incessantemente novos fluxos de imagens, de todos os sentidos sensoriais. Dessa forma, entendemos que a “noção de ser” se dá a partir do movimento, de forma processual, baseada fundamentalmente na complexa interação mentecorpo-ambiente. Perceber essas relações pode ser revolucionário. Segundo Lee, somente pelo rompimento dos limites da centralidade da autoconsciência é possível o reconhecimento do outro, da diferença, do mundo. Quanto mais externalidade é incorporada, mais o desconhecido aparece. Muitas vezes, abrir-se para o desconhecido pode significar meramente abrir-se para o conhecido de outras maneiras. Assim, torna-se possível ver o mundo “tal como é” – sentir a vida como potência, como contingência. 488 Referências Bibliográficas LEE, Ufan. The art of encounter. Londres: Lisson Gallery, 2008. LEE, Ufan. Writings of Lee Ufan. In: MUNROE, A. (Org.). Marking Infinity. Nova York: Guggenheim Museum Publications, 2011. p. 104-123. OKANO, Michiko. Ma: entre-espaço da arte e comunicação no Japão. São Paulo: Annablume; Fapesp; Fundação Japão, 2012. SAS, Myriam. Experimental Arts in Postwar Japan: moments of encounter, engagement, and imagined return. Cambridge: Harvard University Press, 2011. TATEHATA, Akira. The poetics of gaze. In: MUNROE, A. (Org.). Marking Infinity. Nova York: Guggenheim Museum Publications, 2011. p. 35-40. VON BERSWORDT-WALLRABE, Silke. Lee Ufan: Encounters with the Other. Göttingen: Steidl, 2007. Ana Amélia Corazza Genioli é artista e arquiteta formada pela PUC-Campinas, mestre e doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob orientação da Profa Dra Christine Greiner. A autora também é membro do Núcleo de Estudos de Espacialidades Contemporâneas (NEC-USP) e participante do CEO – Centro de Estudos Orientais (PUCSP). 489 SOBRE A ARTE DE PREVER O FUTURO Rosana Pereira de Freitas - UFRJ RESUMO: Esqueçam os carneiros pseudo-taxidermizados em lobo de Cai Guo-Quiang: a tirania do coletivo, a irracionalidade da multidão. Zoomorfizadas, as características humanas – vícios e virtudes – há muito tomam corpo em figuras de animais. Há tanto tempo que antes que os doze animais do Zodíaco de Ai Weiwei possam atingir a principal esfera temática proposta pelo artista – copyright e direitos civis – a obra recua a suas fontes. Como se livrar do passado que a forjou, se ela assenta-se precisamente em tal eco? Se a arte contemporânea pode confundir-se com o ativismo, a arte do passado funde-se aos discursos de poder aos quais serve. Projetadas por um jesuíta que havia caído nas graças do imperador, desenhadas, portanto, por mãos italianas em solo chinês, as peças originais integravam um projeto de gosto europeu, embora nada parecido exista em qualquer outra fonte italiana daquela época. O círculo se fecha. Em sua primeira aparição, na Bienal de São Paulo de 2010, os doze animais do horóscopo chinês travam um mudo diálogo com nosso passado comum. Palavras-chave: Arte Asiática, Arte Chinesa, Arte Contemporânea, Ai Weiwei. ABSTRACT: Forget the false-taxidermic sheeps in wolves’ clothing by Cai Guo-Quiang. Forget the tyranny of the collective, or the crowds’ madness or irrationality. Zoomorphize, human characteristics – vices and virtues – have long been embodied in animal figures. Even long before the twelve zodiac animals of Ai Wei Wei could reflect the main intention of the artist – copyright and civil rights – the work claims’ their sources. How to get rid of the past that forged it, if it rests precisely in this echo? If contemporary art can be confused with activism, the art of the past merges with the discourses of power it serves. Designed by a Jesuit brother who had fallen into the emperor's grace, by Italian hands on Chinese soil, with European taste – although nothing like it exists in Tivoli, or any other fountain of that time in Italy. The circle closes. In its first appearance in the Sao Paulo Biennial in 2010, the twelve animals of the Chinese horoscope wage a silent dialogue with our common past. Keywords: Asian Art, Chinese Art, Contemporary Art, Ai Weiwei. O presente texto busca avaliar a recepção da obra do aclamado artista contemporâneo chinês Ai Weiwei, intitulada “Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco”, em sua primeira exibição pública, ocorrida em 2010, no Brasil. Na obra em questão ele reedita, a seu modo, as doze cabeças de animais do horóscopo chinês originalmente pertencentes ao relógio de água do antigo Palácio de Verão, em Beijing. Se parte significativa da arte moderna fazia tabula rasa da tradição em seu culto ao novo, a produção contemporânea viaja no tempo e no espaço em sua busca de produção de sentido, valendo-se da cópia e do pastiche. Em uma dura crítica à política cultural de seu país, à qual atribui violência equivalente àquela praticada 490 pelos europeus, Ai Weiwei parecia, paradoxalmente, alinhar-se ao movimento chinês atual, que reclama os bronzes como patrimônio cultural a ser restituído à China. Mas ao expô-los pela primeira vez no Brasil, talvez à revelia, ele nos fez lembrar que do ponto de vista artístico não seria possível simplesmente fazer voltar ao local de origem as formas ou o gosto que as produziram. Significaria, em última instância, a inútil tentativa de restituir à Europa um capítulo da história da arte que também é nosso. A temática do horóscopo encontra-se fundida ao projeto jesuítico nos bronze de Yuanming Yuan. Animais da tradição chinesa e jesuítas habitam a arte contemporânea. Não há qualquer menção a Ai Weiwei no catálogo da exposição Alors, la Chine?1 Não se trata de mais um caso de censura. Estamos na França, de onde teriam partido os ideais que Ai tão bem incorpora durante sua estadia norteamericana – liberdade, igualdade, fraternidade –, subsumidos por lá em uma só palavra: democracia. Não há menção à sua obra no catálogo simplesmente porque ele não tomou parte da exposição. A mostra ocorreu em Paris, durante o ano da China na França, 2003-2004, integrada a uma virada no engajamento chinês em eventos culturais, à nova estratégia político-diplomática oficial. No âmbito das artes visuais tal virada começou no ano de 2000, quando o Museu de Arte de Shanghai pretendeu transformar sua bienal no maior evento artístico do país, teve seu primeiro grande evento internacional na mostra Living in Time realizada em Berlim em 2001 e culminou com a primeira participação oficial chinesa em uma Bienal de Veneza, em 2005 (KOCH, 2013). Tampouco há qualquer menção à sua participação em mostras sobre a cena artística chinesa nos anos anteriores à virada. Em The China Project, na publicação que busca reter a memória da iniciativa australiana – a APT, Asia Pacific Triennial of Contemporary Art – iniciada em 1993, na Queensland Art Gallery, em Brisbane, ele comparece em apenas duas de suas cerca de trezentas páginas. Em Why Asia? Contemporary Asian and Asian American Art, de 1998, que amplia o foco para a cena norte-americana, publicação póstuma dos textos de Alice Yang, prematuramente falecida no ano anterior (1997), não há sequer uma única referência a Ai Weiwei. Estão presentes não só expoentes da geração imediatamente anterior, como da sua: Xu Bing, Wand Guangyi, Zhang Huan, Zhang 491 Xiaogang, entre inúmeros outros. São apenas alguns exemplos, quase aleatórios, da Europa (Paris), Austrália (Brisbane) e EUA (Nova Iorque). Servem para fazer notar que Ai Weiwei é um fenômeno recente na cena contemporânea. Se o sucesso de Cai Guo-Qiang é constante desde seu reconhecimento no Japão, ainda em seus anos de formação, Ai Weiwei amargaria uma década – a de noventa – sem realizar uma só exposição individual que tenha merecido ser incluída no elenco de sua retrospectiva, e teria de aguardar o sucesso de sua participação na Documenta 12, em Kassel, na Alemanha, e sua participação como consultor artístico junto aos arquitetos suíços Herzog & de Meuron no projeto do estádio olímpico “Ninho de Pássaro” para iniciar a lista de epítetos pelos quais costuma ser anunciado hoje2. Quando era mencionado, timidamente, ele comparecia como membro fundador do grupo Stars, ou como exemplo dos artistas da diáspora chinesa. Mesmo tendo participado de algumas coletivas durante essa época, seu nome não era incorporado aos textos que pretendiam abordar a arte contemporânea de origem chinesa. Ai Weiwei parece gostar da posição “de fora” que terminaria por adquirir. Ao deixar a China em direção aos Estados Unidos, em 1981, declarou à família que seguia rumo a seu novo lar, antevendo um caminho sem volta. O que o fez retornar? O pai doente, episódio que iria coincidir com o fim do seu romance de formação, de sua estadia nova-iorquina. Os anos oitenta seriam transcorridos, a maior parte do tempo, em Nova Iorque, levando o que ele chamou de uma vida “inútil” e produzindo objetos em conformidade ao adjetivo: são ready-mades modificados, fruto de seu entendimento e emulação da obra de Marcel Duchamp. A apropriação de outra grande descoberta – Andy Warhol – seria mais apropriada para descrever sua produção após o retorno ao país natal, já de fins dos anos noventa e da década seguinte, marcada por agenciamentos e produção em escala industrial, além da exploração de múltiplas mídias. Ao retornar, segundo ele próprio como um fracassado 3 , sua produção americana conflui, como a muitos dentre os artistas da diáspora que voltavam à pátria na mesma época, à segunda fornada da chamada “Apartment Art”: 492 instalações de pequeno porte, feitas de materiais baratos e conceitos aleatórios (GAO, 2011). Remontando à década de oitenta, tal tendência iria desaparecer rapidamente em meados dos anos noventa. Graças a convites para exposições internacionais e à criação de inúmeras galerias de arte na China, os artistas “de apartamento” se abriram ao mundo. Seus trabalhos não narravam mais a própria vida, como no início de suas carreiras. Transcendiam o limite privado do apartamento rumo à arena internacional. A produção “de apartamento”, que crescia em escala, carga conceitual e capacidade projetiva com a chegada dos colegas vindos do exterior, realizada ou não – muitos trabalhos mantiveram-se em projeto – ganhou as páginas das publicações organizadas por Ai Weiwei e Zeng Xiaojun, batizadas respectivamente de Black (1994), White (1995) e Grey (1997) Cover Book. A década seguinte seria destinada à definitiva projeção de seus artistas e organizadores. Ai Weiwei chega ao Brasil já consagrado. Sua primeira aparição é na coletiva “China: Construção/Desconstrução”, apresentada em 2008 no Museu de Arte de São Paulo (MASP), onde comparece com fotos do Ninho de Pássaro. A segunda exibição de uma obra sua ocorre em 2010, e já se trata da primeira exibição mundial do “Círculo de Animais/Cabeças do Zodíaco”, que ocorreu na vigésima nona edição da Bienal Internacional de São Paulo, na capital do estado homônimo. A despeito de sua reconhecida importância no cenário internacional e de seu papel local – criada em 1951, a Bienal de São Paulo só foi precedida em termos mundiais pela Bienal de Veneza, e por ser o primeiro evento desse porte na America Latina, ela manteve durante muitos anos e mantém ainda hoje relevante impacto na cena local – até recentemente ela conservava em seu formato as tradicionais representações nacionais, oriundas, em última instância, dos pavilhões dos países nas grandes exposições mundiais. Conhecida como uma bienal tradicional, criada nos moldes da Bienal italiana, a Bienal de São Paulo manteve a plena participação das representações nacionais – portanto com autonomia para o organizador local, o comissário nacional do local de origem – até a sua 25a edição, em 2002, quando ela foi reduzida a um único artista por país. Na ocasião, a intenção dos organizadores era forçar a aproximação com o tema geral da mostra, “Iconografias Metropolitanas”. Finalmente, na edição de 2008, 493 a 28a edição da mostra paulista, a que ficou conhecida como a “Bienal do Vazio”, as representações nacionais são suprimidas de todo. A participação de Ai Weiwei na 29a. Bienal, a bienal política de Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias, respondia a um convite direto dos organizadores, e não estava portanto, de modo algum vinculada a qualquer representação chinesa oficial. É possível que ela tenha sido fruto de um convite da curadora japonesa Yuko Hasegawa, ou de outro entre os curadores convidados. Como no caso dos demais participantes, a participação do artista chinês deveria responder ao tema da Bienal, que a utilização do verso do poema “A Invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima, pretendia subsumir. Os organizadores faziam questão de lembrar que a Bienal não era “apenas sobre arte e política”, mas que ela era “um espaço político.” Usando poesia e política como motrizes, falavam de um “conceito arquipélago, sem bordas nítidas” (ANJOS & FARIAS, 2010). Reclamavam a noção de hipertexto, de polifonia. Dentre os roteiros previstos, Ai Weiwei foi elencado para “Lembrança e esquecimento”. Era o trajeto4 que versava sobre memória individual e coletiva, que pretendia tratar da história e tudo aquilo que ela preserva ou olvida. As cabeças foram produzidas na China, e viajaram até São Paulo, de onde após a exibição seguiram para New Jersey, onde ficaram em um depósito até que Larry Warsh e equipe fossem resgatá-las, durante a prisão de Ai Weiwei. A grande inauguração do tour internacional da obra estava de fato prevista para ocorrer em Nova Iorque, como o site especialmente criado para a itinerância deixava claro à época. Na ocasião, a apresentação brasileira era devidamente eclipsada, em favor da estréia americana. O fato de terem feito uma rota análoga a dos bens oriundos da China na ocasião de sua inauguração parece não ter chamado atenção de ninguém. A dissimulação da apresentação paulista tampouco. A estréia nova-iorquina seria a “grande estréia”, e assim a presença na Bienal simplesmente aparecia no site oficial da obra em espaço absolutamente à parte, apenas parcialmente mencionada. O curioso que se reportar ao site atual encontrará São Paulo no roteiro, mas isso não ocorria até que “o círculo” tivesse completado ao menos quatro montagens. 494 O trabalho foi mostrado pela primeira vez no Brasil, contrariando a intenção do artista, numa situação indoors, dentro do pavilhão do Ibirapuera. No material de divulgação da Bienal, no demo que circulou durante o período de divulgação, o “Círculo” era mostrado junto à cortina de vidro da fachada lateral, dando para o parque, mais integrado à paisagem. Mas não foi essa a montagem final. A obra que já nascia pensada para uma itinerância de dois anos, e com o irônico subtítulo de “Uma histórica exposição pública de escultura ao ar livre”, se via confinada logo de saída, e era apresentada logo à entrada do pavilhão, sem qualquer fundo verde, sem integrar o cenário de praça alguma, como previsto pelos produtores e pelo artista. A montagem de São Paulo surge, assim, como uma espécie de ensaio aberto, de experimento, que só a posteriori seria definitivamente incorporada ao circuito oficial, estendido depois em mais dois anos, e atualmente agendado até 2014. É possível que a dissimulação da montagem paulista, no site do projeto, seja derivada, ao menos em parte, do local destinado a sua instalação. Todas as montagens posteriores, sem exceção, ocorreram em praças públicas. A recepção do público parece não ter sido, porém, muito afetada por isso. O posicionamento – logo na entrada – o tamanho das cabeças, bem maiores do que as da fonte original, as hastes e as bases que as deixavam ainda maiores, a técnica de fundição tradicional, tudo isso contribuiu para uma empatia imediata com as crianças e o grande público. As Cabeças de Animais foram muito fotografadas. Em tempos de popularização da bienal, de mega eventos culturais, poucos ficaram constrangidos com a atitude Disney: “por favor, poderia tirar uma foto minha com o rato?”. Fazia parte do show, e quem já conhecia bem o trabalho do artista também sabia disso. Mas a obra integrava, ou deveria integrar, o projeto maior, temático, dos curadores. Junto ao público especializado, houve queixa. Junto à imprensa local, indiferença. A documentação disponível nos arquivos da Bienal – Arquivo Histórico Wanda Svevo – não fornece maiores pistas da reação do público, mas atesta uma eloqüente lacuna: das cento e quarenta matérias publicadas na imprensa na ocasião, recolhidas no clipping da 29a Bienal Internacional de São Paulo, só uma, precisamente a única que não versa sobre a exposição paulista, é sobre Ai Weiwei. 495 Moacir dos Anjos havia enfatizado – enquanto divulgava a mostra – o forte componente político da instalação de Ai Weiwei5. Talvez lhe possamos imputar ao menos parte do problema: expectativa frustrada. Eram duas as razões de lamento: Para começar, não era “chinesa” o bastante. E tampouco política o suficiente. Na mídia, o “Círculo” de Ai Weiwei iria competir com outras obras, com outras polêmicas, com outros animais: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) revogando a licença e exigindo a retirada dos urubus da instalação “Bandeira Branca” de Nuno Ramos6 – é bom lembrar que os três urubus de cabeça-amarela vivos, que compunham a obra do artista brasileiro, motivo da confusão, já tinham sido expostos “legalmente” no Centro Cultural do Banco do Brasil de Brasília –; a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) pedindo a retirada dos desenhos de Gil Vicente onde ele se retratava assassinando os presidentes Lula, Fernando Henrique, George Bush, a rainha Elizabeth, e outras personalidades políticas7. A única matéria sobre Ai Weiwei8 havia sido publicada por ocasião de sua agressão, feita por policiais à paisana, quando iria registrar uma queixa por outra agressão que sofrera. Tratava do episódio da delegacia de Chengdu, capital da província de Sichuan, no sudoeste da China: “Policiais disfarçados rasgaram nossas camisas e tentaram pegar nossas câmeras, havia uns dez deles (...) agora estamos sendo atacados porque reclamamos da última vez, é muito irônico.” (AI, 2011). Na ocasião, Ai levou um soco na cabeça. Um registro do ocorrido, fotos e imagens de exames – ele teve de passar por uma cirurgia, quando montava Remembering (2009), o trabalho sobre o terremoto de Sichuan, na Haus der Kunst, na Alemanha, depois que médicos detectaram uma hemorragia – seriam futuramente integrados a sua obra, gerando novos trabalhos. A instalação que apresentava quando precisou ser operado, era justamente sobre a morte dos estudantes, onde nove mil mochilas evocavam o número de vítimas e compunham a frase da mãe de uma delas: “ela viveu rapidamente por sete anos nesse mundo”. Por contraste, o sucesso de Ai Weiwei na Documenta 12 de Kassel com Farytale – 1001 Chinese Visitors (2007) e de Remembering (2009), obras de inconteste viés político, e que antecedem sua participação na bienal paulista, ajudam a explicar a forma reticente como a instalação Círculo de Animais/Cabeças 496 do Zodíaco foi recebida, e a alegação de que a obra não seria suficientemente política. Se hoje há clareza de que a posição oficial do governo chinês em relação aos bronzes originais, que reclama sua repatriação, bem como o movimento popular que a sustenta não correspondem à posição do artista, na ocasião da Bienal isso não ficou assim tão claro. A obra de Ai Weiwei reproduz, em maior escala, com poucas alterações, os bronzes ainda existentes e cria novas versões para os quais só existem gravuras antigas do conjunto arquitetônico, buscando criticar a fixação da atenção oficial e popular com o parque arqueológico de Yuanming Yuan. Era recente a colaboração do artista no projeto do Ninho de Pássaro (2005-2008) e a ambigüidade do auto-exilado que retorna ao lar e rapidamente se torna colaboradordissidente, no contexto de uma mega exposição, como era o caso, poderia facilmente passar desapercebida. A recuperação das doze cabeças originais havia se tornado uma prioridade para a China. Foram adquiridos em leilões – e a partir dos preços é possível ter uma idéia do que ocorreu no mercado nos últimos anos – o rato e o coelho, comprados no leilão da coleção de Yves Saint Laurent por quinze milhões de euros cada, em 2009, por Cai Mingchao; o cavalo, arrematado pelo magnata de Macao, Stanley Ho, que o doaria para o governo chinês, por oito milhões e oitocentos e quarenta mil dólares, em 2007, e o porco também por Stanley Ho, por apenas setecentos e setenta mil dólares, em 2003. O porco teria recebido o preço mais baixo entre todas as cabeças leiloadas, e não devido à época em que foi negociada. Isso porque o boi, o tigre e o macaco foram vendidos por preços que variaram de novecentos e oitenta mil dólares a dois milhões de dólares em 2000, pelo conglomerado chinês China Poly Group Coorporation, que com o apoio do Estado, desenvolve programas de economia criativa. Os outros ainda não apareceram. Quando arremata o rato e o coelho, Cai Mingchao, que depois se revela conselheiro do Fundo do Tesouro Nacional Chinês, recusa-se a pagar pelas peças, alegando que tratava-se de tesouro nacional pilhado, a ser repatriado a seu país, e que jamais deveriam ter ido a leilão. Pierre Berger, herdeiro de Saint Laurent que havia posto à venda toda a coleção do estilista, contra-ataca: se os chineses liberarem o Tibete, ele entregaria pessoalmente os bronzes. (DELSON, 2011). 497 Para Ai Weiwei é a noção de prioridade das autoridades chinesas que deve ser questionada. Ele chama atenção, em sua obra, para o fato de que as cabeças originais sequer foram desenhadas por chineses. E denuncia: “Eles nunca se importaram, de fato, com arte. É a natureza do comunismo. Eles simplesmente querem destruir o antigo para construir o mundo novo. O Zodíaco é apenas um ótimo exemplo da ignorância deles.” (DELSON, 2011, p. 125) Ele diz claramente: “não é patrimônio nacional. É obra de estrangeiros.” Ele questiona o problema da originalidade, da autenticidade da arte chinesa, ou do que seria autenticamente chinês. E em tal processo, e em muitas outras ocasiões, devido a sua atuação, nos lembra um perfil de artista bastante conhecido em sua China ancestral, na forma como é descrito, por exemplo, Su Tungpo, o Su Shi (1037-1101) de Lin Yutang. Um certo perfil de intelectual público. O intelectual banido pelas instancias de poder, que retorna honrado pela exclusão: Durante a primeira perseguição de intelectuais e exclusão do grupo incurso nas penas da censura, equiparado aos criminosos comuns pelo ilustre defensor do capitalismo de Estado (...) havia pelo menos uma vintena de intelectuais notáveis e homens de integridade disposta a sofrer por suas convicções. Quando (...) ocorreu a segunda perseguição, quase todos os homens decentes estavam mortos, ou iriam morrer depois do exílio. Esse solapamento das energias nacionais começou em nome da ‘reforma social’, visando evitar a ‘exploração pelo capital privado’ e tinha em mira ‘o benefício do sempre amável povo da China’, sendo insuflado por um ardente admirador de si próprio. Nada é tão prejudicial ao destino de uma nação quanto um idealista mal orientado e cheio de obstinação. (LIN, 1947, p.21) Na lista negra do regime, encabeçada pelo nome do poeta biografado por Lin, Su Shi, todos os trezentos e nove indivíduos listados, bem como seus filhos, ficaram oficialmente proibidos de ocupar cargos públicos. E por conseqüência, também honrados por nela figurarem: Visava-se, assim, extirpar, para sempre, qualquer espécie de oposição e, acreditavam-no os autores da medida, recobrir de infâmia eterna os nomes que a lista consignava. Aconteceu, porém, que a China deveria ser entregue pelos reformadores sociais ao conquistador que descia do Norte e o efeito alcançado com a organização daquela lista foi na realidade muito diferente do que o que tinham em vista os que a organizavam. Por mais de um século, os descendentes que figuravam na Relação Yuanyu mencionaram como um título de glória o fato de que seus antepassados fizeram parte da lista negra. (LIN, 1947, p.22) A lista histórica trazia também os inimigos pessoais do regime, o que não garantia, portanto, sua idoneidade, ou a pura linhagem de seus herdeiros. Que a 498 lista tenha sido destruída por um raio, como que por intervenção divina, e que o ministro de então tivesse declarado que os nomes para sempre seriam lembrados, o que de fato ocorreu, é algo de menor interesse para nossa comparação, ao menos até o presente momento. Como o poeta Su Shi, que na primeira década após sua morte teve decretada a destruição de todas as suas inscrições em pedra e a proibição de seus livros, acrescida da multa de oitocentos mil ienes pela posse dos mesmos, Ai Weiwei teve seu blog prescrito, seu direito de expressão cerceado, seus colaboradores investigados. Também como ele, sua situação era herdada de um contexto familiar: seu pai, o poeta Ai Qing (1910-1996), havia sido enviado ao campo, com a função de limpador de latrinas, à guisa de se reformar (ANDREWS, 2012). Ai Weiwei cresceu “em exílio” antes de se auto-exilar na América. Era um dos artistas da diáspora chinesa: “Meu pai era um poeta. Aos vinte e poucos anos de idade, foi condenado a seis anos de prisão, e depois exilado por vinte anos, realmente na pior situação, limpando banheiros públicos, e ainda assim sobreviveu.” (OBRIST, 2011, p.36) Ele diz que não o admira como artista, mas por sua vida. Mas é o Ai Weiwei maduro quem diz isso. Quando volta à Beijing, no início dos anos oitenta, no momento em que o pai é reabilitado, ele se diz alienado. Será sua experiência com o Ninho do Pássaro, o estádio olímpico, a abrir-lhe os olhos e ativar sua militância contra as autoridades corruptas, às quais não atribui autoridade alguma em termos de arte: Eu tinha muita experiência, por ter crescido com a geração do meu pai e por viver em uma sociedade democrática, em Nova York, mas apenas depois de 1999, quando me envolvi com a arquitetura, é que enxerguei melhor a estrutura interna do governo. Como cada acordo foi feito. Como as terras foram vendidas. Como essas pessoas enriqueceram. Como fizeram seu dinheiro. A arquitetura é uma coisa que você constrói no interior da sociedade, e tem que lidar com o governo. A arquitetura é muito política, como o estádio Ninho de Pássaro. (OBRIST, 2011, p.37) Segundo Willian Safran9, o que caracterizaria o membro da diáspora seria a vinculação, a importância fundamental da “terra natal”, a idealização do “lar ancestral”, além do comprometimento com sua restauração, e sua ligação com ela, independente da adversidade das situações. Para Safran o conceito é útil para tratar de comunidades minoritárias expatriadas, que poderiam ser identificadas por compartilhar as seguintes características: 1) os próprios agentes ou seus ancestrais teriam sido dispersos de um “centro” original para regiões estrangeiras; 2) eles reteriam o mito acerca da terra natal original (localização física, história, realizações) 499 e a memória coletiva; 3) compartilhariam a crença de que não são, nem nunca serão, plenamente aceitos na nova pátria, nas sociedades que os acolhem, permanecendo parcialmente isolados; 4) sonhariam com o lar originário, supondo que quando as condições forem favoráveis irão retornar; 5) comungariam da crença de que todos os membros da diáspora devem comprometer-se com a manutenção, restauração e prosperidade da mítica terra natal de origem; 6) seguiriam ligados a ela de muitos modos, e isso seria contribuição fundamental para definir sua consciência, identidade etno-comunitária e solidariedade (SAFRAN, 2005). Ainda que Ai Weiwei viva agora na sua China natal, para a qual retornou, a tipologia descrita por Safran parece corresponder, em boa parte, ao modelo de consciência, identidade e solidariedade ainda praticado pelo artista: “Meu trabalho sempre relaciona-se à história e à memória. Eu gosto de explorar a relação entre elas e o que as habilidades que a humanidade desenvolveu em milênios de luta”. (BROUGHER, 2012, p.39). E o modelo de intelectual a que nos referíamos, algo que aponta para uma certa tradição, tida como legítima, que excluiria as usurpações recentes. O questionamento do que seria tipicamente chinês, assim, merece ser melhor observado. A vinculação com o passado e com a atualidade, no caso da poética de Ai, é um dos ingredientes na sua receita de “chinesidade”10. Como muitos de seus colegas de geração, no caso da diáspora chinesa, prevalece a agenda da identidade. De acordo com Melissa Chiu, para os artistas que vivem no exterior, a exploração do passado e do presente, tanto simultânea como alternadamente, é uma constante em seus trabalhos. As três estratégias mais usadas são, em primeiro lugar, recuperar a iconografia chinesa como modo de resgatar o passado, a uma distância geográfica e psicológica da China; em segundo, a justaposição de memórias da China com a realidade atual, e em terceiro a modificação dos significantes chineses, como por exemplo os caracteres chineses, para torná-los acessíveis ao público não chinês. (CHIU, 2011). É aliás, por comportar-se como um artista da diáspora em solo chinês que Ai Weiwei atraiu para si a perseguição que tem sofrido. Ele acusa os políticos de não se preocuparem com sua terra natal, com seu povo, e de defenderem como política de patrimônio a preservação de obras estrangeiras, cujo índice de chinesidade não seria suficiente para alçá-las à categoria de tesouro nacional. 500 Para Ai Weiwei, como para o público da Bienal de São Paulo, as cabeças originais – e sua versão repaginada por Ai, no caso do público – não tinham exatamente uma “aparência” chinesa. Para o artista, o tratamento realista denuncia que haviam sido feitas por mãos estrangeiras. E acrescenta: “realmente não é cultura chinesa”, pois chineses não estariam interessados na “tão falada copia do real”: Eu não acho que as cabeças do zodíaco sejam um tesouro nacional. Elas foram desenhadas por um italiano, executadas por um francês para um imperador Qing que era o governante, mas os manchus da dinastia Qing de fato invadiram a China. Então se estamos falando de tesouro nacional, de qual nação estamos falando? (OBRIST, 2011, p.41) Se para Ai Weiwei o irmão jesuíta Giuseppe Castiglione é um estrangeiro em uma corte estrangeira, no Brasil a produção jesuítica cedo torna-se sinônimo de patrimônio nacional. Reclamar nossa posição desde o contexto das grades navegações é algo que nossos órgãos de proteção ao patrimônio não se furtaram a fazer. Eurocêntrica, é sempre necessário repetir, nossa história da arte foi produzida a partir de parâmetros metropolitanos, portugueses, de onde advém também, ao menos em parte, o gosto estrangeiro do qual reclama o artista. Castiglione passou cinco anos em Portugal antes de ir para a China, e é em uma missão portuguesa que permanece por lá, mesmo após a expulsão de seus colegas missionários. Ele comparece, ao lado de dois alemães, um boêmio, um austríaco, quatro chineses e cinco portugueses, na lista de jesuítas da missão portuguesa em Beijing, de acordo com a lista do Padroado na China, no ano de 1762, elaborada por Martins do Vale a partir das fontes por ele consultadas. (VALE, 2002, p.428). É importante notar que à presença jesuíta na China corresponderia um novo olhar, de natureza mais cultural, de curiosidade mais etnográfica que econômica11. O texto “Emformação da Chyna”, atribuído a São Francisco Xavier aparentemente pelo fato de ter sido ele quem formulara as perguntas do questionário que o gerou, corresponderia a essa nova tipologia. Em “Emformação da Chyna” – não há qualquer menção a informações de natureza econômica, política ou militar, como era comum nos inúmeros relatos da época. O questionário teria sido elaborado, esclarece Rui Loureiro, com base em preocupações culturais e religiosas muito precisas: se tinham livros e bibliotecas, se já tinham tido contato com outras religiões, etc.: 501 Os portugueses interessavam-se sobretudo por questões mercantis ou de marinharia: mercadorias existentes ou em falta, preços, pesos e medidas, calendários de feiras e mercados, e também portos mais acessíveis, rotas, fundeadouros, ventos e correntes. A ação inquiridora do Padre-mestre [ele se refere ao questionário enviado por São Francisco Xavier, respondidas supostamente por um comerciante português e um informante chinês] veio desperta-los para a importância do conhecimento mais aprofundado das gentes orientais, desencadeando o aparecimento de um ‘interesse cultural’ pela China. Após a chegada dos jesuítas ao Oriente, assim, começam a surgir novos dados sobre a realidade chinesa, anteriormente desconhecidos ou mesmo desprezados. Os padres e irmãos da Companhia, graças a uma sólida preparação intelectual, e em virtude de interesses muito específicos, vão desempenhar um papel de catalisadores no processo de acumulação de notícias de caráter geográfico e etnográfico. (LOUREIRO, 2000, p.406) Descrever uma sociedade, adverte Jonathan Wright, seria o primeiro passo para a conversão dessa sociedade (WRIGHT, 2006). Desde o tempo de Ruggieri e Ricci, para os quais parecia prudente agradar a elite intelectual local, ler Confúcio e produzir maravilhamentos, os relatos enviados à Europa demonstram uma alteração de conteúdo, ainda que tal inflexão seja realizada exclusivamente pro domo. Joseph Amiot descreveria de forma explícita a agenda, ou a esperança dos missionários: Dessa forma procuramos no interesse da nossa religião ganhar a boa vontade do príncipe e tornar nossos serviços tão úteis e necessários para ele que no fim ele vai se tornar mais favoravelmente inclinado em direção aos cristãos e importunar menos do que já importunou. (WRIGHT, 2006, p.94) Na esperança de não serem incomodados, os missionários iriam até mesmo produzir mapas e canhões, em uma simbiose verdadeiramente arriscada do ponto de vista militar. E construir palácios e jardins, como Yuanming Yuan. Embora Ai Weiwei não demonstre qualquer interesse pelos aspectos mecânicos da fonte, é graças a eles – ao uso da ciência – que os jesuítas lograram efetivamente aproximar-se das altas esferas de poder. Giuseppe Castiglione, o pintor que cai nas graças do imperador Qianlong, mantém outros jesuítas trabalhando consigo na corte. Castiglione gozava de prestigio incomum nos ambientes do poder à época. Durante o primeiro movimento de expulsão – com a morte do imperador – ele é convidado a ficar, enquanto muitos outros são expulsos. Se o imperador aprecia seu trabalho, não deixa de mencionar também, em seus comentários, que embora de interesse, sua pintura é inferior à grande tradição chinesa (JONES, 2006). Castiglione traduziu o tratado do Padre Pozzo – Perspectiva Pictorum et Architetorum – para o chinês. É ele o responsável não pela introdução da técnica, mas pelo desenvolvimento do 502 gosto pela pintura a óleo, a despeito do comentário do imperador. É ele o autor do projeto da fonte do Palácio de Verão. É consenso hoje que não teria havido um “estilo jesuítico”, como já apontara John Bury, ao comentar a arte brasileira que merecera tal epítome (BURY, 1999). Os jesuítas seguiam o estilo de seu tempo, e não da sua companhia. E na época da expansão portuguesa os estilos internacionalizavam-se, chegando a regionalizar-se. No Brasil, o barroco e o rococó – devidamente reabilitados – há muito se tornaram objeto de orgulho nacional, bandeira de identidade, índice de brasilidade. Nas mãos dos nossos artistas contemporâneos e curadores, no contexto da globalização, da “negociação de identidades” (RAMÍREZ, 2000) cedo foi lembrado e transformado em clichê útil – Neobarroco, Ultrabarroco –, a ser produtivamente explorado (ARMSTRONG, 2000). O público da Bienal de São Paulo, leigo ou especializado, herdeiro da nossa tradição moderna12, não via problema algum em considerar a produção jesuítica como monumento a ser preservado. É possível que tenha-lhe escapado a ironia do gesto do artista chinês. Ao artista chinês, por sua vez, parece ter escapado o processo de nativização (KUDIELKA, 2003) do gosto europeu, e mesmo de conceitos estéticos dos quais termina por se valer. Em seu típico tom ativista, Ai Weiwei se queixa do destino dado ao antigo Palácio de Verão: Eu odeio ver como eles realmente o estão destruindo mais uma vez. Deveria permanecer intocado. Agora, todo mundo fala sobre reconstrução, ou sobre adicionar algum prédio turístico. Eles estão tentando arruiná-lo. É realmente ruim – não foi arruinado pelos estrangeiros, mas verdadeiramente pelos chineses. (AMBROZY, 2011, P.57) Ele está tentando preservar o aspecto de ruína de um local ao qual costumava ir na juventude, de bicicleta, logo que se mudou para Beijing, e que foi palco de inúmeros encontros para ler poesia, organizados pelo seu círculo, pelo grupo Stars. Ai Weiwei nostalgicamente se curva diante da estética da ruína, sem perceber o quanto ela se distancia dos índices de chinesidade que ele cobra, rumo a um encontro, como poderíamos descrever os episódios da perspectiva e da pintura à óleo na China, e da chegada do estilo rococó, que caracteriza o conjunto. Encontro do qual também tomamos parte, e também ele devidamente eclipsado, como a presença de navios vindos do Oriente aportados na Bahia. (LAPA, 2000). 503 Para Wu Hung, há uma diferença marcante entre o significado de ruína, se compararmos o moderno culto europeu às ruínas e o sentido a elas dado no contexto cultural chinês. Em primeiro lugar porque o sentimento chinês em relação às ruínas era um fenômeno pré-moderno, e que teria adquirido uma carga simbólica negativa na era moderna (WU, 1999). E mesmo na China tradicional, a estetização das ruínas tinha lugar apenas na poesia. Imagens visuais delas praticamente não existem. Preservá-las seria um tabu: imagens de ruínas, nada auspiciosas, deveriam ser evitadas. Não haveria lugar para Riegl. Ai Weiwei, ao freqüentá-las com seu grupo e ao defende-las em estado de ruína, a um só tempo reverencia a China antiga e o Ocidente moderno. Mesmo sabendo que é uma impossibilidade, um tour de force, acreditamos que para entender sua obra, deveríamos observar melhor o Ai artista, deixando ao ativista o segundo plano, para repetir com ambos: “Tudo é arte. Tudo é política” (WARSH, 2013, p.24). Notas 1 O título da exposição e do catálogo que a acompanhava faziam referencia ao artigo homônimo de Roland Barthes publicado no jornal francês Le Monde, em 24 de maio de 1974. 2 Dos quais “o maior”, ou “o mais conhecido”, ou ainda “o mais influente” artista contemporâneo chinês vivo são apenas os mais comuns. 3 “When I returned to China [from the United States], I din’t have a U.S. passport, a wife, or a university degree. Form the Chinese point of view, I was a total failure”. WARSH, Larry (ed.) Weiwei-isms. New Jersey: Princeton University Press, 2013. 4 Roteiro foi termo preterido pelos organizadores, por seu uso na Bienal precedente. 5 “Temos vários artistas que, embora famosos, nunca expuseram na America do Sul, como o Ai Weiwei, um dos artistas chineses de maior destaque na atualidade. Ele trará uma instalação, uma representação de um zodíaco da cultura chinesa com forte componente político, montada na Europa [sic]. O artista indiano Amar Kanwar mostrará uma vídeo-instalação impactante, sobre o abuso sexual de mulheres e crianças em situações de conflito, pela primeira vez no Brasil.” ‘Entre 4 paredes. Moarcir dos Anjos.’ Casa Vogue, São Paulo, ago. 2010, pp.114-115. 6 Onde um membro do grupo Pixação escreveu “Liberte os urubu [sic]”. 7 LOPES, Jonas. “Adeus aos urubus”. Veja, São Paulo, 13 out. 2010. 8 “Artista Ai Weiwei volta a ser agredido por policiais na China”. In: Folha de São Paulo, 10 ago 2010. O título da matéria fala no artista, mas é o ativista a ser citado no texto. Haverá diferença? Entre nós, brasileiros, do ponto de vista da recepção, parece haver. A presença de Ai Weiwei na última edição da Rio Art Fair – a feira de arte internacional do Rio de Janeiro – passou desapercebida pelo público e pela crítica especializada. O documentário exibido no Festival [de Cinema] do Rio, “Never Sorry”, de Alison Klayman, teve melhor sorte, graças à presença de ativistas. 9 Safran não foi, é certo, o único autor a se valer do termo diáspora para se reportar a experiências análogas à judaica, mas parece ter sido ele o responsável pela mais bem sucedida tentativa de sistematizar a expressão no contexto acadêmico. 10 Nossa tradução para “chineseness”, por afinidade ao já consagrado termo “brasilidade”. 11 “A Companhia de Jesus, no seu afã de conhecer a fundo as realidades asiáticas que teria de enfrentar, adotou uma deliberada política de investigação. São Francisco Xavier, quando ainda estava nas Ilhas Molucas, recebe uma carta de Goa, enviada pelo Padre Henriques Henriques [sic], que já incluía uma breve descrição da China: “‘huum reyno muito grande’, cujos habitantes eram brancos e usavam longos cabelos negros, ‘assi homens como molheres’, para se distinguirem dos estrangeiros.” 12 Como descrito por Paulo Venâncio Filho: “The past, until then rejected as shameful, now became the object of study and analysis, as well as a source of inspiration. What had, since Brazil’s indepencence from 504 Portugal, been seen as liability was transformed into a vital asset. Architetural elements characteristic of the colonial period – the cobogó, the muxarábi, the veranda – were comibined with the ideas of such architets as Le Corbusier and Mies van der Roe. Brazil’s artistic heritage, dating back to the eighteenth century, was reinented even as it was being rediscoverd and preserved.” Rio de Janeiro 1950-1964. (BLAZWICK, 2001, p.122) Referências Bibliográficas AI Weiwei. Ai Weiwei’s blog: writings, interviews, and digital rants, 2006-2009. AMBROZY, Lee (ed.). Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2011. _____. Weiwei-isms. WARSH, Larry (ed.). New Jersey: Princeton University Press, 2013. ARMSTRONG, Elizabeth & ZAMUDIO-TAYLOR, Victor. UltraBarroque: Aspects of Post Latin American Art. San Diego: Museum of Contemporary Art of San Diego, 2000. ANDREWS, Julia & SHEN, Kuiyi. The Art of Modern China. Berkely, Los Angeles, London: University of California Press, 2012. ANJOS, Moacir & FARIAS, Agnaldo. Há sempre um copo de ar para um homem navegar: catálogo da 29a. Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2010. ARRUDA, Tereza (ed.). China: Construção/Desconstrução. São Paulo, Beijing: MASP/Museu de Arte de São Paulo, Chinablue Gallery, 2008. BLAZWICK, Iwona (ed.). Century City: Art and Culture in the Modern Metropolis. Londres: Tate Publishing, 2001. 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É membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), do Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA) e do Conselho Internacional dos Museus (ICOM). 506 ARTE E CULTURA POP NIPO-BRASILEIRA: A ESTÉTICA E O FAZER ARTÍSTICO EM TEMPOS DE INTERAÇÃO E PARTICIPAÇÃO, FORMAS DE SOCIABILIDADE NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO Mariany Toriyama Nakamura - USP RESUMO: O Japão do pós-guerra se insere no contexto do consumo mundial através dos eletrônicos, automotores e pelo entretenimento. Por meio das recentes tecnologias de informação e comunicação as referências desta indústria do entretenimento conhecido como 'japop' ou cultura pop japonesa abriram espaço pelo Ocidente e marcaram gerações de jovens que foram introduzidos à dinâmica de consumo cultural e uma nova e singular estética. No atual contexto de criação de espaços culturais e mídias sociais digitais proporcionados pela conectividade nos deparamos com o afastamento dos limites físicos que impediam a interatividade e a participação do indivíduo na criação, circulação e apropriação da informação. Esta estrutura de uma sociedade em redes possibilita ao consumidor cultural ser também mediador, o que deve ser questionado. Para a corrente do pop japonês, o gosto natural pela tecnologia compõe uma forte cultura digital que está relacionada também com o modo de encarar a arte.Este trabalho propõe o estudo das relações entre artistas nipo-brasileiros, representantes da cultura pop, com os novos espaços e possibilidades proporcionadas pelas tecnologias de informação e comunicação. Em tempos de convergência midiática estas relações podem ser tomadas como potencializadoras e transformadoras do fazer artístico. Palavras-chave: Arte; Cultura pop japonesa; Tecnologias de Informação e Comunicação; Mediação cultural. ABSTRACT: The postwar Japan fits within a context of global consumption through production of electronics, motor vehicles and entertainment. Due the latest technologies, such as information and communication technologies the references of the industry of entertainment known as “japop” or Japanese Popular Culture, have opened up space by the West, touching generations of young people that have been introduced to dynamics of cultural consume and an new and unique aesthetic. In the current context of the creation of cultural spaces and digital and social midia proportioned by connectivity we confront with the remoteness of the physical limits that prevented the interactivity and the participation of the individual in creation, circulation and appropriation of information. This structure to a networked society enables to the cultural consumer be considered as mediator, what must be questioned. For Japanese pop, the preference for technology composes a strong digital culture that is also related to the way of looking at art. In this paper, we investigate the relations between the nipo-brazilians artistes, representatives of pop culture, with the new spaces and possibilities allowed by the information and communication technology (ICT). In times of media convergence, these relations can be taken as potentiators of the artistic act. Keywords: Art; Japanese Popular Culture; Information and Communication Technologies; Cultural Mediation. Segundo Sônia Luyten (2005, p.7) a palavra “pop” é provavelmente um dos termos mais bem sucedidos nos Estados Unidos durante os anos 60 e 70, relacionado normalmente à música ouvida pelos jovens – a conhecida pop music. 507 Por outro lado, através das obras de arte de Roy Lichtenstein, com inspiração nos quadrinhos, o termo “pop art” passou a ser conhecido e trouxe o sentido de que a arte também tende a acompanhar aquilo que é transmitido pelos meios de comunicação e pela publicidade, além de se tornar popular. Fenômenos culturais recentes, a “pop art” e a “pop culture” trouxeram aos norte americanos produtos que se tornaram reflexo de gostos, hábitos e valores de uma nação que aos poucos foram transmitidos para povos diferentes que os assimilaram, ou, diante de adaptação, se apropriaram de alguns valores como lhes convinha. Durante o período pós-guerra o Japão desenvolveu uma cultura popular vibrante, criativa e comercialmente bem sucedida que posteriormente veio a se espalhar pelo resto do mundo. Hoje, a cultura pop japonesa atravessou fronteiras e deu ao Japão um impacto cultural mundial por meio de suas animações, quadrinhos, música, estética, arte e personagens que alimentaram gerações de fãs que se renovaram e, que junto do desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação, configuram um novo modo de interação e participação entre os - cada vez mais ativos - fãs e artistas que modificam a criação e circulação de informação no âmbito comunicacional. O termo cultura pop nipo-brasileira parte do pressuposto de que, a partir do momento em que recebemos estímulos do Japão nos apropriamos e criamos desdobramentos e inferências que a tornam uma cultura pop diferenciada da original. Para tanto é preciso compreender alguns aspectos expostos abaixo. Cultura pop japonesa e o fazer artístico: o início com a massa e o consumo Segundo Strinatti (1999), na modernidade, a discussão acerca da cultura popular adquire importância por se relacionar ao conceito de cultura de massa que se desenvolve com o advento dos meios de comunicação e comercialização do lazer e da cultura, a partir dos anos 1920 e 1930. O autor considera que cultura de massa é a cultura popular produzida por meio de técnicas de produção industrial e comercializada com fins lucrativos para uma massa de consumidores. Observa-se neste aspecto que a industrialização e a urbanização tenham promovido o crescimento de uma massa atomizada e anônima também sujeita à manipulações. 508 Neste ponto, considera-se que o uso de técnicas de produção em massa foi prejudicial para a cultura nas sociedades industrializadas visto que a visão de público consumidor enquanto massa é apontada por MacDonald (1957) pela perda de sua qualidade e identidade humanas. Em síntese Strinatti (1999) argumenta que a concepção da cultura de massa é caracterizada por uma cultura banalizada e padronizada que atropela a cultura folk, erudita e desafia o arbítrio intelectual estético. Sugere ainda que, hoje em dia, ninguém mais pensa em termos de cultura de massa e que agora é possível apreciar tanto a cultura popular como a erudita. Partindo desta última colocação, Strinatti (1999) considera que o pósmodernismo descreve o nascimento de uma ordem social na qual os meios de comunicação de massa e a cultura popular imperam e influenciam as outras formas de relacionamentos sociais. Além disso, há certa dificuldade em distinguir economia de cultura popular a partir do momento em que a mesma determina o consumo. O argumento é que consumimos cada vez mais imagens e signos em consequência do interesse por si mesmos, e não por sua "utilidade" ou pelos valores mais fundamentais que simbolizam. Consumimos imagens e signos precisamente porque são imagens e signos, e desconsideramos questões de utilidade e valor. Isso é evidente na própria cultura popular, em que a aparência e o estilo, ou seja, o que as coisas parecem [...] predominam sobre o conteúdo, a substância e o significado. (STRINATTI, 1999, p. 219) Sob este aspecto a linha de distinção entre arte e cultura popular torna-se mais difusa não havendo critério determinante que as diferencie. Um aspecto desse processo é que a arte se integra de modo crescente à economia, tanto por incentivar as pessoas a consumir através do papel ampliado que desempenha na propaganda, como por se tornar um bem comercial em si mesmo. Um outro aspecto é que a cultura popular pósmoderna recusa-se a considerar as pretensões e as distinções da arte. (STRINATTI, 1999, p. 220) No campo artístico as produções e manifestações costumam se constituir reflexos dos avanços de uma sociedade e têm por natureza um teor transformador das coisas existentes como McLuhan (apud Oliveira, 1997, p. 217) nos lembra: “Faz já muito tempo que ninguém contesta o poder da arte de antecipar o futuro social e os desenvolvimentos tecnológicos bem antes de uma geração”. As palavras de McLuhan ressaltam que o artista capta e visualiza os pequenos sinais das mudanças na sociedade. Os artistas japoneses também se inserem neste contexto; observam o que traz e o que significa a tecnologia no âmbito artístico com uma 509 percepção especial no que toca a formação histórica e cultural japonesa. “Questões como identidade, originalidade, espaço, noção de vida e comunicação, assim como a noção de arte, são concebidas de maneira mais ou menos diferente das ocidentais” (KUSAHARA, 2009, p.369). Bijutsu é o termo japonês que corresponde à arte e significa belas-artes em termos visuais. Geijutsu significa arte, porém em um sentido mais amplo, ou seja, inclui música, teatro e outras manifestações. Ambos os termos se estabeleceram na segunda metade do século XIX, conceito importado do Ocidente quando a abertura do Japão possibilitou seu processo de modernização. Até então esta noção de arte era desconhecida aos japoneses, o que, no entanto, não significa que as produções artísticas fossem inexistentes. De fato até o século XIX havia uma forte característica visual e cultural que muitas vezes estava integrada à vida diária. Entre os séculos XVII e XIX o desenvolvimento da técnica xilográfica, ou de blocos de madeira para impressão, possibilitou que romances ilustrados se difundissem. O gosto pela arte pictórica convergindo com as narrativas, algumas consideradas como “pré-mangá”1, como expõe Gravett (2006), explica a predominância de vendas dos mangás no mercado editorial japonês até hoje. Produzidos para que fossem consumidos e posteriormente descartados serviam como distração temporal enquanto as melhores impressões eram produzidas para contemplação. Não havia diferenças entre o que constituía arte, entretenimento ou produtos comerciais. ‘Arte’ não é uma noção óbvia que se desenvolveria automaticamente no mesmo paradigma em qualquer sociedade. ‘Arte’ como no conceito ocidental, não se formou no Japão. Em vez de separar ‘belas-artes’ de arte aplicada, do design ou do entretenimento, os japoneses englobaram esses campos como uma forma contínua de cultura visual (KUSAHARA, 2009, p.371). A inexistência de distinção entre arte superior e arte inferior proporcionou ao Japão um contexto cultural diferenciado que é essencial para que se possa refletir sobre o desenvolvimento da arte contemporânea japonesa. Takashi Murakami, artista contemporâneo da vertente pop japonesa propõe entre os de sua geração, discussões sobre a relação de consumo, arte e indústria e aponta para um novo direcionamento na recepção da estética japonesa fora do Japão, alimentando também a produção artística que se estende além dos limites do museu e da galeria. Neste caso é conveniente citar seu trabalho como produtor fundando a Hiropon Factory2, mais tarde denominada Kaikai Kiki, que aplicava a produção artística em 510 objetos como camisetas e livros. O grupo formado inicialmente por amigos foi ampliado e sua atuação visava abrir caminho para o cenário artístico internacional. Murakami sempre questionou não apenas esta relação entre produção e consumo artístico-cultural, mas também dilemas como originalidade e autenticidade das produções através do processo de distribuição. O funcionamento da produtora de Murakami já demonstra que muitos trabalhos realizados por ele são produzidos através de um sistema fabril com a participação de outros artistas e estudantes internos. Kusahara (2009) lembra que esse modo de produção era padrão na pintura tradicional Kano-ha, cujos pintores normalmente trabalhavam em grande escala reproduzindo ambientes da natureza, assim como na impressão feita com blocos de madeira. Hoje isso é aplicável a artistas populares de histórias em quadrinhos – mangá – e por estúdios de animação – anime. Nos últimos anos a produção artística japonesa tem apresentado forte marca tecnológica. Esta relação entre os japoneses e a tecnologia normalmente é positiva, apontando reflexos não apenas na arte, mas no comércio e no entretenimento. O apego tecnológico é nitidamente percebido, por exemplo, pelo forte desenvolvimento da robótica japonesa consequente da relação histórica com as ferramentas profissionais que, de acordo com seu uso tornam-se tão importantes quanto o resultado a que se quer alcançar. Havia então, a utilização da tecnologia para o entretenimento visto como algo necessário no contexto de uma sociedade estável. A restauração Meiji trouxe modernização e globalização aos japoneses e mesmo depois das bombas atômicas que devastaram Hiroshima e Nagasaki o comportamento nipônico para com a tecnologia foi o de reconhecimento de seu poder cientifico e tecnológico e de crença na otimização de seu uso. Por este aspecto é mais fácil compreender as diferenças entre o Japão e o Ocidente que pontuam a visão de arte, entretenimento e tecnologia do contexto atual. =?E(Gojira): O Japão pop O Japão manteve-se praticamente fechado ao Ocidente por mais de 1500 anos o que lhe conferiu uma configuração cultural singular. Com a Restauração Meiji 511 e a inevitável abertura dos portos diante da pressão e necessidade de desenvolvimento da economia e da indústria, influências tecnológicas e culturais do exterior foram recebidas em território japonês em um processo de troca de informações inconstante até o período pós-Segunda Guerra Mundial que marcou a passagem da imagem tradicional japonesa à sua ocidentalização, é também o momento em que o Japão se insere "no mundo do consumo" (SAKURAI, 2008, p. 342) através dos eletrônicos, automotores e, pelo que nos interessa: o entretenimento. Houve uma grande necessidade de inserção global que apagasse a humilhação da derrota. Godzilla, ou Gojira originalmente, é símbolo mundialmente conhecido da cultura pop japonesa e crítica absoluta aos ataques sofridos em Hiroshima e Nagasaki. Inicialmente projetado como um monstro cuja cabeça se assemelharia a um cogumelo de explosão atômica, gradualmente a personagem se tornou mais "suave" à medida que passava o medo e o trauma causados pela Guerra. Com a ocupação americana após a derrota, os japoneses tiveram de lidar com a abrupta ocupação das forças americanas em seu território e tão subitamente quanto o arrebatamento da perda, o Japão se viu cercado por tudo que anteriormente era considerado "inimigo" e descartado durante a guerra. Houve a invasão das referências americanas nas rádios, cinemas, jornais e revistas, estética e linguagem. A ocupação americana, com o supremo comando do general Douglas MacArthur até 1952, obteve sucesso em sua missão: rompeu as distorções e as aberrações que os líderes pré-guerra haviam inculcado na sociedade japonesa, demolindo o controle militar na política, na economia, na educação, na imprensa e no resto da sociedade. No entanto, a ocupação não atingiu a outra metade da missão: a construção de um novo Japão conforme os ideais da democracia ocidental. (LUYTEN, 2011, p. 106) Durante os anos 50 e 60 o Japão foi tomado por um ímpeto consumista levado pelo desejo por produtos que viam nos filmes de Hollywood, e que, adaptados para a realidade japonesa compunham a preferência de um “sonho pagável” nacional que marcou o início do pop japonês. A conturbada década de 70, período de agitação social e política, refletiu na cultura pop e nas artes; extremos que pairavam de obras e eventos conservadores às inquietantes manifestações culturais que vinham para quebrar regras. Com o fortalecimento e a estabilidade econômica, desde os prósperos anos de 1980, temos tido contato com um Japão 512 estilizado, predominantemente virtual e tecnológico que vem influenciando a estética e o comportamento ocidental. Os japoneses tinham, como ainda têm, preferências locais baseadas em suas condições, tradições, folclore e cultura que demonstraram ser fortes o bastante para criar e manter um amplo e rico mercado nacional. E assim se formou o pop japonês contemporâneo: ocidentalizado na forma, mas nipônico no conteúdo. (SATO, 2007, p.15) A autora ainda acrescenta que sendo um fenômeno ligado à industrialização e à sociedade do consumo é importante destacar que o pop japonês ocorreu e se beneficiou de condições culturais e econômicas favoráveis que foram conquistadas no pós-guerra, "quando o então Primeiro Ministro Hayato Ikeda implantou um histórico programa econômico, que em dez anos duplicou a distribuiu de forma ampla a renda per capta do país [...]" (SATO, 2007, p. 17) Como em qualquer lugar, a cultura pop está relacionada ao consumo e isso torna o pop um fenômeno essencialmente cultural e comercial. Tezuka Osamu, considerado pai do mangá moderno, cuja vida foi dedicada aos quadrinhos japoneses e cuja influência foi reconhecida internacionalmente. Em 1954, cria Phoenix, obra que, segundo Luyten (2011) foi seu maior desafio intelectual. A partir da figura da Fênix, Tezuka reflete sobre os sentidos de existência do passado ao futuro sob as várias encarnações de suas personagens. Não é em vão utilizar a Fênix, "Ave do Paraíso" que renasce das cinzas, para esta obra; durante o período de desenvolvimento desta história, a ocupação militar norte americana entregava, ou devolvia o Japão aos japoneses depois de "uma completa reforma agrária, uma nova constituição e as perspectivas de um reerguimento econômico". (LUYTEN, 2011, p. 110) Era o início de um novo momento de bem estar e riqueza nacional que estava ali simbolizada na obra de Tezuka. Foi através da televisão, na segunda metade do século XX, que muitos países tiveram um contato menos rígido e histórico com o Japão por meio das primeiras animações japonesas que começaram a ser exportadas. Por volta de 1910 o público japonês conheceu pela primeira vez os desenhos animados graças ao cinema. Eram curtas-metragens mudos norte-americanos que inspiraram alguns desenhistas japoneses a se arriscarem neste ramo por iniciativa própria. Seitaro Kitayama produziu, em 1913, os primeiros curtas-metragens 513 japoneses a partir de seus primeiros estudos com papel e nanquim. Foi a partir da década de 1950 que o termo anime, do inglês animation, passou a ser utilizado como sinônimo de desenhos animados japoneses. Com a difusão de produções de animação japonesa no exterior a partir da década de 1980, a palavra anime virou sinônimo de animação com a estética e a técnica desenvolvidas pelos japoneses, embora no Japão ela signifique todo e qualquer desenho animado, japonês ou não (SATO, 2005, p32). No Brasil, segundo Monte (2010), "O Oitavo Homem", animação sobre um robô androide com poderes sobre humanos, foi possivelmente o primeiro anime a ser exibido na TV, pela Rede Globo em Setembro de 1968. Daí, seguiram Speed Racer, Samurai Kid e inúmeras séries ao longo dos anos que marcaram uma geração de fãs da cultura pop japonesa. Os animes foram grandes agentes difusores de outros componentes da cultura pop japonesa como os mangás e vice e versa. Assim como produtos eletrônicos e carros, este “produto de exportação”, termo usado por Cristiane Sato (2005), tem suas características próprias, que para serem usufruídas e apreciadas em sua totalidade dependem de um conhecimento mais profundo das tradições, hábitos e valores da cultura japonesa. Com o desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, e neste caso, especificamente a Internet, o acesso à informação foi facilitado e ampliado, assim como a troca de informações e referências sobre as produções de animações, sejam elas mais antigas ou mais recentes. Este cenário cada vez mais complexo de fluxo informacional reflete na formação do consumidor cultural contemporâneo, ou, neste caso, do protagonista cultural a partir do momento em que ele se apropria de algo e passa a produzir e criar novos sentidos e significados. Canclini (1993) ao trabalhar com o conceito de consumo cultural pontua que os produtos denominados culturais possuem valor de troca e de uso de forma a contribuir com a reprodução da sociedade e às vezes com a expansão do capital, porém, neles prevalecem os valores simbólicos acima dos utilitários e mercantis. Portanto, o consumo cultural consiste no conjunto de processos de apropriação e de uso de produtos na qual o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e troca. Esta definição permite ainda incluir o consumo de bens com maior autonomia como o conhecimento universitário, as artes que circulam em museus, salas de concertos e teatros, assim como produtos condicionados por suas implicações mercantis como 514 os programas de televisão e de cunho religioso como as danças indígenas cuja elaboração e cujo consumo requerem uma estrutura simbólica de relativa independência. Segundo Almeida e Crippa (2009), o acesso à cultura, a partir do século XX, passou a se processar muito mais por meio dos produtos culturais do que propriamente pelo contato direto com a criação e apresentação artística. Percebe-se hoje, entre a geração de jovens, que é nítida a relação cada vez mais precoce com a tecnologia digital o que modifica as concepções de produção, circulação e recepção de bens culturais principalmente quando considerada a internet. A escolha por exemplos mais pontuais, apesar da existência de várias ramificações do pop japonês, mais do que remontar os diversos aspectos do consumidor cultural contemporâneo, propõe destacar as novas mediações no que toca a recepção de manifestações artísticas na rede. =?E 2.0 (Gojira 2.0): Tecnologias e um pouco de arte e estética pop japonesa O desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação transformou a sociedade não apenas no que toca a produção, circulação e recepção de produtos simbólicos, mas tornou mais complexo o cenário atual para as noções de estética e arte. Segundo Claudia Gianetti (2006) o avanço das tecnologias digitais possibilitou novas formas de criação e percepção artística que elevam as discussões sobre novos paradigmas estéticos e modificam as noções de autor, observador, objeto de arte e originalidade. A constituição de uma arte mais participativa e comunicativa também entrelaça fortemente a ideia de mediação cultural que para autores como Teixeira Coelho (2004, p.248) pode ser compreendida como "processos de diferente natureza cuja meta é promover a aproximação entre indivíduos ou coletividades e obras de cultura e arte", porém, considerando o uso das TICs pode-se pensar na abertura de possibilidades de mediação cultural que envolvam a participação dos indivíduos e grupos às dinâmicas socioculturais. A possibilidade de construção coletiva de conhecimento e a estruturação de uma sociedade em redes alteram a compreensão existente de informação e, segundo Almeida (2009), as TICs permitem a constituição de espaços de circulação da 515 informação menos hierárquicos possibilitando que o consumidor cultural, possa ser também um mediador. Machiko Kusahara (2009), em torno da vertente pop, aponta que as tecnologias da informação causaram um impacto profundo na infraestrutura da sociedade desde a segunda metade do século XX marcado pela transição de um sistema cujos valores eram baseados no material para um sistema no qual rege a informação imaterial. Hoje as tecnologias de mídias digitais estão mudando nossa concepção de vida e cultura e sob este ponto de vista, também o paradigma de arte não conseguirá permanecer o mesmo. A autora questiona a solidez dos campos de arte e estética e aponta para a necessidade de novas abordagens para a relação de arte e tecnologia considerando ainda o questionamento e a validade de uma história da arte baseada somente na noção ocidental. Segundo ela, é característica da cultura japonesa não estabelecer limites entre a arte erudita e a arte popular. No final do século XIX, quando foi introduzido o sistema ocidental de arte e educação artística, por 100 anos a arte contemporânea japonesa não apresentava traços notáveis de seu passado histórico, o que vem mudando na geração de jovens artistas mais atentos ao sentido de “niponicidade”. O gosto natural pela tecnologia compõe uma forte cultura digital que aponta para uma postura positiva com relação à tecnologia ao invés de negativa ou crítica. A relação da arte com a indústria também é uma característica que altera o sentido de produção e consumo de bens culturais. No contexto brasileiro reflexos destes apontamentos são percebidos nitidamente nas gerações que hoje convivem facilmente com um mundo menos físico e de múltiplas realidades conectadas quase todo o tempo. O pop japonês, transmitido para o resto do globo primeiramente pelos meios de comunicação de massa como a televisão foi adotado e apropriado gerando manifestações artísticas diferenciadas e atreladas à imensa gama de comunidades virtuais existentes pela rede gerando uma nova concepção que deve ser considerada nipo-brasileira. Em comunhão com as atuais tecnologias digitais o fazer artístico mudou e tornou-se inevitavelmente mais interativo e participativo. 516 Diana Domingues (1997) aponta que há cerca de trinta anos a arte contemporânea abraçou uma série de práticas artísticas assentadas no desenvolvimento tecnológico configurando novas formas de produção de arte que rompem com seu passado e caminham para um cenário dominado pela arte participativa, interativa e principalmente comunicativa. Artefatos e ferramentas são substituídos por dispositivos de múltiplas conexões que auxiliam na produção e na comunicação. A circulação e recepção desta arte colocam em xeque até mesmo figuras e estruturas de poder, como o papel do artista e sua genialidade, a figura de curadores e marchands, o espaço sagrado de galerias e museus, a mídia como instância que homologa uma arte dita qualificada. Esta arte partilhada com as máquinas entra nas casas via satélite, telefones, oferecendo-se para ser recebida, modificada e devolvida. Em CD-ROMS, websites, altamente distribuíveis, catálogos e revistas eletrônicos, trocas via rede; é o artista que assume a curadoria de seu próprio trabalho. Comunidades virtuais online reúnem indivíduos por afinidade, em que arte também afirma sua liberdade. (DOMINGUES, 1997, p. 18) É difícil apontar um momento exato do uso dos recursos da informática no campo artístico, mas alguns historiadores convergem para o período de Guerra Fria que gerou um avanço no setor tecnológico e culminou no desenvolvimento do computador. Os primeiros trabalhos artísticos que envolviam um computador faziam uso de algoritmos e normalmente eram associados à geometria ou manifestações abstratas e minimalistas. A conexão trazida pela Internet fez com que a circulação da arte na rede fluísse através da proliferação de ambientes virtuais como websites artísticos que mais uma vez retomam e aprimoram possibilidades de interação. A sociedade muda com muita rapidez e a arte atrelada à tecnologia produz manifestações que refletem as mudanças da relação do homem com o ambiente que o cerca. A arte, a rede e os espaços artísticos virtuais Um dos pontos discutidos por Christine Greiner (2008) sobre arte pop japonesa e mais profundamente por Machiko Kusahara (2003) ao trabalhar com a relação entre arte e tecnologia através do olhar oriental é o conceito de originalidade existente no Japão. Sabe-se que o uso de computadores e o desenvolvimento da telecomunicação expandiram as possibilidades do fazer artístico, não apenas quando se pensa nas formas do artista apresentar sua obra, mas mudou a relação 517 entre artista e observador. A partir do momento que dados digitais podem ser copiados e transmitidos sem perda de qualidade, questões como direito autoral e originalidade passam por mudanças necessárias para o ambiente em rede conforme o ponto de vista ocidental onde também o conceito tradicional de arte tem forte posicionamento. Para os japoneses concepções do tipo são singulares. Para que se possa ter uma ideia, os japoneses muitas vezes são julgados negativamente pelo Ocidente quando se trata de direitos autorais por frequentemente copiarem softwares e por produzirem em massa cópias ilegais de textos e vídeos. Historicamente e tradicionalmente o Japão possui uma visão diferente de originalidade. Para eles a rede é uma ferramenta para integrar tipos diferentes de imaginação, ou mesmo egos diferentes. [...] Apresentar os produtos da imaginação da pessoa é uma maneira de fazer arte; a troca de imaginações e o trabalho conjunto é outra. Aqui a idéia de fazer arte existe dentro da idéia de comunicação. Simplesmente finalizar uma obra de arte não é a meta principal (KUSAHARA, 2003, p.232) A tecnologia digital e a Internet vêm alterando o fazer artístico e o papel do artista de várias formas. Um dos aspectos que vem sendo questionado é o valor e o significado da assinatura do artista para uma obra. Machiko Kusahara (2003) traz o exemplo do RENGA que significa "imagem ligada". O RENGA foi um projeto artístico realizado por Toshihiro Anzai e Rieko Nakamura cuja primeira série foi iniciada em 1992 e exibida na exposição anual da Digital Image do mesmo ano. Neste método uma imagem produzida por um artista é enviada a outro através da rede para que possa ser modificada e transformada em outra imagem criando uma série de pinturas digitais como resultado da interação entre imaginações que as precederam e influenciaram. Neste caso específico modificar a imagem criada por outra pessoa não seria negligenciá-la, mas ao invés disso vem exigir maior compreensão de sua natureza para que seja possível compor dentro daquilo que já existe. “Ao tomar a idéia da cultura tradicional japonesa, mas usando um meio digital, o projeto mostra uma maneira de intensificar nossa criatividade enquanto questiona ao mesmo tempo a idéia tradicional de arte” (KUSAHARA, 2003, p.234). A autora ainda explica sua posição com relação às pinturas digitais cujo original e cópia tornam-se idênticos. Não havendo diferença entre eles o sistema tradicional que apóia o valor dos trabalhos de arte perderia sua base e o valor de uma obra não poderia mais se basear na originalidade física da mesma. 518 Roy Ascott (1996) reforça que com o envolvimento da Internet estabeleceu-se uma estrutura de “mente global” onde a arte não é mais unilateral nem mesmo um encontro secundário de interpretação pessoal, mas passa por transformações que a tornam interativa e fazem do observador parte integrante do sistema criativo. Se neste ambiente virtual as pessoas se aproximam e as possibilidades de interação e criação aumentam, tanto os espaços museológicos quanto artistas, público e mediadores teriam condições de estar conectados sob esta configuração de “mente global”. Neste novo ambiente o museu constitui-se mais interativo do que sua concepção tradicional; criação e curadoria estariam abertas à colaboração, mas é preciso lembrar que quando se trata de virtual a mediação não é realizada diretamente, mas sim remotamente, o que configura um novo desafio ao museu ao pensar na adequação ao público. Entretanto a possibilidade colaborativa dá oportunidade ao usuário de estabelecer por si mesmo aquilo que melhor o atende no processo de mediação cultural. Com a Internet este novo espaço seria a possibilidade de exibição de todas as obras de arte a todos os povos. Segundo Ascott (1996) há três configurações para o novo museu, que obviamente atendem à tecnologia da época; a primeira disponibiliza reproduções fotográficas ou de escaneamento de obras de arte através de páginas da Internet, que, no entanto, estão reunidas em coleções físicas; a segunda dispõe obras elaboradas por e para o meio digital fechadas à colaboração; e a terceira dispõe obras de arte produzidas por e para o meio digital que estariam abertas ao processo colaborativo e que não possuem referencial físico. Embora Ascott (1996) trabalhe com o conceito de museu virtual, ou, segundo suas palavras “The Museum of the Third Kind”, por que não pensar neste caso em espaços ou galerias de arte virtuais? Pensar em um museu de caráter digital ainda traz questionamentos como o sentido transitório e imaterial que o termo digital remete em contrapartida à permanência e solidez característica dos museus. Refletir sobre arte na rede conduz discussões que retomam a materialidade da arte contemporânea ou a perda dela, e, por consequência sua documentação que é essencial neste sentido. “O ‘museu imaginário’ de Malraux já alterara formas de documentação e arquivamento da arte que, especialmente na arte conceitual, geraram documentos de situações efêmeras” (DOMINGUES, 2009, p.33). 519 Considerando o ciberespaço, o que mantém os laços de uma comunidade já não consiste mais na territorialidade; as fronteiras se tornam mais fluidas e as trocas informacionais se aceleram e firmam a compreensão de McLuhan (1995) de uma percepção de vida diferente com as mudanças trazidas pela eletricidade e pela tecnologia, esta última como extensão do homem e portanto, determinante para entendimento das múltiplas formas de circulação, acesso e apropriação da informação. A convergência tecnológica entre computação e comunicação que gerou a internet, revolucionou as maneiras de gerar, armazenar, processar e transmitir informações. O aumento da velocidade tornou-se regra, relacionada a outros fatores como a interação, a hipertextualidade, o compartilhamento e construção coletiva, e ainda mais relevante, se o caráter comunicacional que lhe atribui um sentido de incompletude constante. O ambiente web com suas características faz a precisão e a confiabilidade das informações veiculadas ser questionada, mas ainda assim atuantes como agregadoras de grupos sociais. Segundo Castells (1999), o chamado "boom" da Internet acontece verdadeiramente pela utilização das interfaces para usuários finais, aqueles que não possuem conhecimentos técnicos avançados, mas que tiram proveito da rede para se comunicar, consumir e produzir conteúdos, acessar serviços, compras e ter momentos de lazer. A Web 2.0, caracterizada por potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de informações ainda ampliam os espaços para a interação entre os participantes do processo. Assim, segundo Primo (2007) qualquer usuário da web pode utilizar ferramentas para publicação sem conhecimento de linguagens computacionais. Lemos (2010) afirma que as novas tecnologias de comunicação e informação surgem a partir de 1975, com a fusão das telecomunicações analógicas com a informática, possibilitando a veiculação, sob um mesmo suporte - o computador -, de diversas formatações de mensagens. Esta revolução digital implica, progressivamente, a passagem do mass media (cujos símbolos são a TV, o rádio, a imprensa, o cinema) para formas individualizadas de produção, difusão e estoque de informação. As novas tecnologias de informação devem ser consideradas em função da comunicação bidirecional entre grupos e indivíduos, escapando da difusão centralizada da informação massiva. Várias tecnologias comprovam a 520 falência da centralidade dos media de massa: os videotextos, os BBSs, a rede mundial Internet em todas as suas particularidades (Web, WAP, chats, listas, newsgroups, MUDs...). Em todos estes novos media estão embutidas noções de interatividade e de descentralização da informação [...]. (LEMOS, 2010, p. 68-69) Estaríamos entrando na era da simultaneidade e da tactilidade numa integração total dos sentidos, deslocando-nos do paradigma mecânico ao orgânico. McLuhan mostra como a imprensa modificou as formas de nossa experiência do mundo, assim como nossas atitudes mentais. Se a invenção de Gutenberg encorajou o que ele chama de narcose dos sentidos, quer dizer, a exacerbação de uma só sensação (a visão para a escrita e para a imprensa), os novos media estaria favorecendo a tactilidade, o retorno à oralidade e à simultaneidade. Mais ainda, se as tecnologias são prolongamentos de nosso corpo, próteses de nossos sentidos, os media são extensão do nosso sistema nervoso central. Cultura pop nipo-brasileira: o fazer artístico em tempos de interação e participação A noção de rede no Japão remonta à constituição da própria língua e da escrita. O ideograma ou kanji que seria o caractere de origem chinesa, já trazia na sua constituição a lógica da rede, uma vez que cada pictograma nunca poderia ser reduzido a um único significado, constituindo-se sempre no contexto da frase e do pensamento. Pesquisadores que estudaram com profundidade o ideograma, identificaram aí um traço cognitivo que pode ser reconhecido em outras instâncias da cultura japonesa e se referem a modos de percepção, organização de espacialidades e temporalidades e assim por diante.(GREINER, 2013, p. 71) Henry Jenkins (2009) introduz o conceito de cultura da convergência onde as velhas e novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam e onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis. A convergência representa uma transformação cultural à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos, ela não ocorre por meio de aparelhos, por mais sofisticados que venham a ser. A convergência ocorre dentro dos cérebros de consumidores individuais e em suas interações sociais com outros. (JENKINS, 2009, p. 30) A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. (JENKINS, 2009, p. 43) 521 Como exemplo, os fãs, sejam de filmes, séries, quadrinhos, sempre foram os primeiros a se adaptar às novas tecnologias de mídia. A fascinação pelos universos ficcionais como a cultura pop japonesa, muitas vezes inspira novas formas de produção cultural, de figurinos ou fanzines ou cinema digital. Este grupo consiste, por exemplo, naquele que se recusa a aceitar apenas o que recebe e insiste no direito de se tornar um participante pleno e ativo. Assim, a web representa um local de experimentação e inovação, onde o indivíduo pode desenvolver novos métodos e temas e conteúdos que podem atrair seguidores, que criam suas próprias condições. Para este estudo especificamente é determinada uma linha de artistas que possuem a ligação da cultura pop japonesa e sua transição para nipo-brasileira. Como alguns exemplos; Erika Mizutani, filha e neta de artistas atende às referências da pop art dos anos 60 e 70 e dos grafismos orientais. Sua presença na web por meio de várias redes sociais e sites faz com que o acesso do público às suas ilustrações torne-se maior e torne seus trabalhos mais valorizados a partir do instante em que é possível acompanhar seu desenvolvimento como artista e interagir, de alguma forma, com seu fazer artístico. Hamilton Yokota, conhecido como Titi Freak é mundialmente reconhecido por seus grafites, mas passou pelos quadrinhos e por referências da arte oriental que, em suas palavras, naturalmente influenciaram seus mais recentes trabalhos, dentre eles o projeto de grafite em Ishinomaki, nos abrigos temporários para aqueles que haviam perdido seus lares para o Tsunami em 2011. Também é possível encontrá-lo em site oficial e outras redes sociais e apreciar seus trabalhos e esboços recentes bem como anteriores. Nestes dois exemplos de artistas nipo-brasileiros o contato com admiradores de suas obras é diferenciado. A interação favorecida pelas mídias digitais quebrou os parâmetros de crítica cultural e nos incluiu e rompeu com o que antes se limitava ao físico das galerias. Embora Jenkins seja um dos autores mais citados quando se trata de cultura da convergência há muitos estudos anteriores que devem ser considerados até que se possa alcançar o recente contexto digital onde também outros pesquisadores começam a propor seus estudos que relacionam interatividade e participação, caracterizam-se transformações de caráter técnico, social e cultural no qual a própria noção de convergência deve ser pensada a partir desses três níveis - técnico, social e cultural. A compreensão das interações e relacionamentos que surgem e são 522 mantidos por meio da comunicação mediada pelas tecnologias digitais tem sido uma questão central para a reflexão da sociedade contemporânea a partir do momento que as tecnologias digitais aceleram o fluxo de informações que alteram nossos modos de vida e noção de tempo e espaço. Neste sentido observamos o recente movimento que se estabelece entre blogs e outras mídias sociais digitais como adaptações às necessidades informacionais e velocidade de obtenção da informação. Atuando como facilitadores, outros canais que se conectam aos blogs, como por exemplo, os existentes facebook e twitter - redes sociais - agregam outros seguidores por meio de uma composição informacional distinta. Esta é uma relação que se estabelece naturalmente e é comumente apropriada pelos usuários e deve ser questionada. Considerações finais Considerar a cultura pop japonesa no Brasil e os recentes estudos publicados sobre seus "ecos mediáticos", termo utilizado pela pesquisadora Cíntia Dal Bello (2013) a respeito do fenômeno hikikomori3, é o cenário para o qual nos voltamos ao questionar e refletir a subjetividade e questões como identidades digitais e os conceitos de ubiquidade e mobilidade nos mais variados espaços digitais.Como um poderoso reflexo da sociedade, a cultura pop não se limita apenas ao sentido estético, mas atinge a todos em um sentido cultural mais amplo. A presença de blogs, fóruns e redes sociais na constituição de informações de modo colaborativo abre-se como possibilidade de estender a comunicação para outros ambientes da Internet. Temos presenciado um processo global de incorporação das Tecnologias de Informação e Comunicação nas atividades cotidianas sejam das formas mais simples às mais complexas. Mesmo na arte, e neste caso, o fazer artístico dentro da cultura pop nipobrasileira, contexto deste estudo, deve-se pensar como a tecnologia influencia e torna-se parte do sujeito esvanecendo as barreiras entre ele e o objeto. A rede, portanto, a partir do momento que se define como flexível e não linear, dinâmica e sem limites que possamos determinar explica a subjetividade entre sujeito e objeto cultural. 523 Notas 1 Mangá significa quadrinhos japoneses. O termo mangá foi usado em 1814 pelo artista Hokusai para designar seus livros de rascunhos excêntricos. Na década de 1980 quando os quadrinhos japoneses começaram a ser exportados passaram por uma fase de total desdém ocidental e o termo possuía uma carga negativa quando inserida na língua inglesa. Frederik Schodt co seu estudo Manga!Manga!, de 1983 foi um dos responsáveis disso quando explicava que o significado dos dois ideogramas que constituíam a palavra vinham designar imagens irresponsáveis. Completava ainda que o ideograma man “tem um significado secundário de ‘moralmente corrupto’”(GRAVETT, 2006, p.12). 2 Hiropon também constitui nome dado a uma das obras de Murakami; escultura de uma garota com seios enormes que jorram leite. O nome, segundo Christine Greiner (2008) faz referência a uma anfetamina popular durante o pós-guerra. 3 Hikikomori, termo cunhado pelo psicólogo japonês Saito Tamaki, é um desdobramento radical da cultura otaku no Japão, que, segundo Saito (2012) é resultado da relação tecnologia/consumo e da sedução pelas novas referências visuais destacadas pelas imagens de mangás e de animês. Os Hikikomoris, embora tenham características compartilhadas com otakus, estão associados ao isolamento, colecionismo e vínculo à internet, comportamento que tem se tornado caso de saúde pública no Japão recentemente. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Marco Antônio de. Informação, tecnologia e mediações culturais. 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Pesquisa nas áreas de memória e identidades nipo-brasileiras, cultura pop e mediação cultural nas atuais tecnologias de informação e comunicação bolsista FAPESP. 525 COLETIVO DE ARTISTAS MOYASHIS: NOVOS OLHARES SOBRE A CULTURA JAPONESA Erika Kobayashi - Universidade Paris Descartes – Paris V - Sorbonne RESUMO: Alguns anos antes do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, comemorado em 2008, alguns jovens artistas que não se identificavam com a “cultura japonesa” difundida no Brasil iniciaram uma produção coletiva com a proposta de fazer uma “releitura da cultura japonesa” no país. O grupo se autodenominou moyashis por se considerarem artistas em broto, e colocou em evidência um imaginário construído a partir de um olhar brasileiro que encontra referências na arte japonesa tanto tradicional quanto contemporânea. O artigo apresenta o trabalho do grupo e analisa o conjunto de sua produção como uma proposta estética composta por elementos culturais híbridos, além da construção dessa coletividade pela lógica da identificação, segundo o olhar do sociólogo francês Michel Maffesoli. Nessa forma contemporânea de ver os laços sociais, tem-se que o pertencimento ao grupo se dá pela identificação estética (no sentido amplo do termo), e que as redes sociais potencializam trocas, compartilhamento e difusão de imagens, tendo sido também um dos caminhos para que tal produção artística paralela adentrasse o cenário das comemorações oficiais pelos 100 anos da Imigração Japonesa no Brasil. Palavras-chave: arte, cultura japonesa, sociologia, identificação. SOMMAIRE: Quelques années avant le Centenaire de l’Immigration Japonaise au Brésil, célebré l’année 2008, quelques jeunes artists qui ne s’identifiait pas avec la « culture japonaise » traditionnel difusée au Brésil ont initié une production artistique colective pour faire une « relecture de la culture japonaise » dans le pays. Le groupe s’est nommé luimême moyashis, en considérant qu’ils étaient encore d’artistes en bourgeon, et il a mis en évidence un imaginaire construit à partir d’un regard Brésilien qui trouve des références dans l’art japonaise traditionnelle et contemporaine. L’article présente la production du groupe et analyse sa proposition esthétique faite des éléments culturels hybrides et comment cette colectivité construite à partir de la logique de l’identification, selon le regard du sociologue français Michel Maffesoli. Ce regard contemporain sur les liens sociaux propose qui que l’appartenance au groupe se donne par l’identification esthétique (au sens large du terme), et que les reseaux sociaux potentialisent des échanges, partages et aussi la diffusion d’images. Elles ont fonctionné également comme un des chemins pour que telle production artistique parallèle pourrait entrer dans le scénario des célébrations officielles pour le Centenaire de l’Immigration Japonaise au Brésil. Mots-clés: art, culture japonaise, sociologie, identification. O coletivo moyashis (1), grupo de jovens artistas que começou a se reunir no ano de 2006 em São Paulo e eclodiu em 2008, em plenas comemorações do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, da forma como surgiu e ganhou projeção, não caberia em outro espaço e tempo. Não apenas por ser produto de um contexto específico, mas também pelo fato de, em seu processo de formação, atuação e até mesmo de dissolução, indicar uma forma de compartilhamento 526 característica da pós-modernidade em que a estética se coloca como elemento central na criação de laços sociais. Esta abordagem da sociologia compreensiva foi introduzida pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, e considera elementos do cotidiano para analisar as formas de se estar junto no mundo contemporâneo. A utilização do termo estética por Maffesoli (1990) comporta um sentido pleno: não se restringe apenas a obras culturais ou produções artísticas, mas considera sensibilidade, sensações, sentimentos e emoções que conduzem à atração por uma paixão compartilhada. O laço deixa de ser racional e é nesse sentido que a emoção estética pode servir como um cimento social. Em seu livro No fundo das aparências, Maffesoli considera que a “cultura do sentimento é consequência da atração. A gente se junta segundo ocorrências ou desejos” (MAFFESOLI, 1990, p.31, tradução nossa). No caso do coletivo de artistas moyashis, pode-se considerar que a estética constitui um fator ligante em ambos os sentidos atribuídos pelo sociólogo ao termo, uma vez que o que une os artistas é a atração que sentem pela “cultura japonesa” tradicional e contemporânea, cujas imagens se tornam referências em sua expressão artística. Essa nova forma de solidariedade pautada em experiências estéticas propõe interações muito mais orgânicas do que a maneira como as relações eram regidas na modernidade, em que Estados-nações, partidos políticos, profissões e religiões (LYOTARD, 1993) constituíam polos de atração entre indivíduos e possuíam um caráter contratual, conferindo-lhes uma identidade. Da identidade à identificação Refletir sobre como as formas de sociabilidade são afetadas a partir do colapso do Estado do bem-estar social e do esvaziamento das instituições democráticas é fundamental para compreender o quanto a proposta do coletivo de artistas moyashis – renovar a forma como a “cultura japonesa” vinha sendo difundida no Brasil – abre para novas possibilidades também do ponto de vista social (e não apenas para a reflexão artística e cultural). Antes de seguir adiante com este raciocínio, cabe especificar a interpretação do coletivo para o termo “cultura japonesa”: consiste em manifestações apresentadas em festivais da comunidade de 527 imigrantes japoneses no Brasil como sendo exemplares de uma cultura autêntica, que inclui as artes do que na língua japonesa é chamado de do (“caminho” na tradução para o português) representadas por ikebana (“arranjo floral”), shodo (“caligrafia japonesa”), sumi-ê (“arte em nanquim”), chado (“cerimônia do chá”), além de culinária e origami. A não identificação com essa proposta não está relacionada às manifestações (com as quais muitos dos artistas do coletivo se identificam), mas ao caráter fechado da comunidade para participação de outras manifestações e grupos que não faziam parte da esfera institucional da comunidade japonesa no Brasil. A construção do pensamento pós-moderno leva em consideração uma nova configuração geopolítica que surge com um mundo globalizado e formas de comunicação geradas por um cenário cibernético tanto do ponto de vista informático quanto informacional. Esses dois fatores interferem diretamente nas relações entre as pessoas e na forma como elas se comunicam e se expressam. A velocidade e a possibilidade de compartilhamento geradas pelas novas tecnologias de informação e comunicação ampliam a circulação de informações, a produção de modismos e trazem uma grande oferta de produtos; elas conduzem a uma percepção instantânea e fragmentada de interesses, de discursos, do tempo e tudo isso interfere na forma como as pessoas consomem, criam e se relacionam. É nessa conjuntura que o conceito de identidade se fragiliza e entra em crise. O livro Identidade, que publica uma longa entrevista que o filósofo europeu (2) Zygmunt Bauman concedeu ao jornalista Benedetto Vecchi, traz reflexões de Bauman sobre essa mudança de paradigma: “No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam” (BAUMAN, 2005, p. 33), constata o filósofo. Em substituição ao modelo antigo, Bauman observa a existência de diversas identidades em um mesmo indivíduo, escolhidas tanto pela própria pessoa ou a ela atribuídas pelos que estão a sua volta. Nessa mesma entrevista, o autor ainda fala de identidades em movimento, caracterizando-as como móveis, velozes e circunstanciais, que possuem curta duração e constituem um contraponto àquela identidade fixa feita para durar toda a vida, e traz o conceito de “identificação”: 528 Quando a identidade perde as âncoras sociais que a fazem parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a quem possam pedir acesso. (BAUMAN, 2005, p. 30). A substituição da lógica da identidade pela identificação é tema recorrente em livros e conferências de Michel Maffesoli, que considera a identidade como uma forma de enclausuramento definitivo. Ele utiliza a bipolaridade indivíduo X pessoa (3) para aprofundar a discussão e mostra como essas duas modulações são causa e efeito de um zeitgest (4) específico. Segundo Maffesoli (1990), o indivíduo (fechado) possui uma identidade forte e particular, enquanto a pessoa (aberta e plural) é construída na e pela comunicação, valendo-se de identificações sucessivas e se apoiando no pertencimento a grupos cada vez que encontra correspondência em outras pessoas: ela possui um forte tom hedonista, ou então todas as potencialidades humanas: a imaginação, os sentidos, as emoções, e não apenas a razão, participam dessa construção. É isso que permite falarmos de “abertura” da pessoa, abertura aos outros e a diversas características de si mesmo. (MAFFESOLI, 1990, p. 254, tradução nossa). A pessoa funciona como uma espécie de matriz através da qual ela pode viver a totalidade de suas máscaras, em uma relação com o(s) outro(s) que vai além de uma simples correspondência ou reconhecimento. “Aquilo que se reputa como indivisível, o indivíduo, é, antes de mais nada, fragmentado”, explica Michel Maffesoli em seu livro Notas sobre a pós-modernidade (2004). A lógica da identificação, por ter uma forte carga estética e empática, fornece um desejo de fusão: “os indivíduos não se justapõem lado a lado, mas juntos reforçam uma pulsão, um vitalismo tribal” (MAFFESOLI, 2004, p. 91). O tribalismo pós-moderno foi introduzido pelo sociólogo em seu livro O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-modernas, publicado em 1998, como uma das mais fortes características das comunidades contemporâneas que se formam pautadas pela identificação. Não se trata de uma forma de identificação racional, mas emocional: “É uma questão de sentir ou não, que remete ao cheiro do sentimento” (MAFFESOLI, 1998, p. 232). Tal como as tribos primitivas, as tribos contemporâneas se reúnem em torno de um totem, elemento de agregação para a formação de comunidades afetivas. Esses totens contemporâneos são diversos e simbolizam um gosto comum, que 529 pode estar ligado ao esporte, música, prazer, gastronomia etc.: “a imagem serve como polo de agregação para diversas ‘tribos’ que formigam nas megalópoles contemporâneas” (MAFFESOLI, 1990, p. 112, tradução nossa). As tribos vão construindo um imaginário, consequência de uma produção subjetiva, e um mito do qual fazem parte. Uma nova forma de solidariedade O mito que o coletivo de artistas moyashis ajudou a construir foi o da “renovação”. As idealizadoras do movimento, a designer Flavia Yumi Sakai e eu, que na época atuava como jornalista, não foram educadas dentro das comunidades formadas pelos imigrantes, mas sabiam que algo forte ligado às suas origens (ambas descendentes de imigrantes de japoneses) pulsava dentro delas e influenciava sua expressão artística por meio de papéis e palavras respectivamente. Em viagens para fora do Brasil, elas se reconheceram em imagens de um Japão contemporâneo que ganhavam espaço na agenda cultural de outras metrópoles do mundo por meio de exposições de artes visuais, mostras de cinema, dança e performance. Tais manifestações tinham um espaço mais restrito no Brasil, um país com imigração japonesa maciça cujos imigrantes preservavam a disseminação das artes tradicionais. À inclusão de novas referências artísticas, elas chamaram de “renovação”. Simultaneamente a essa percepção, detectaram no trabalho de designers e ilustradores que não eram de origem japonesa algo que remetia ao Japão, mas não o Japão dos imigrantes que viviam no Brasil. Esse algo vinha sendo captado por diversos profissionais do mercado editorial que pesquisavam referências visuais incessantemente e o Japão era um modelo importante, não só porque estava sendo internacionalmente exaltado como inovador na moda de rua e nas artes plásticas, mas porque exercia uma forte atração sobre eles. Esse fascínio por imagens do Japão contemporâneo e também pelo tradicional foi o totem social dos moyashis. Retomando ao conceito de identificação proposto por Maffesoli, houve um reconhecimento no outro, ou ainda “a necessidade de se singularizar se inversa no desejo de fusão com um todo mais vasto” (MAFFESOLI, 1990, p. 254, tradução nossa). 530 A leitura da singularização pode ser aplicada às idealizadoras do coletivo em relação aos descendentes que cresceram dentro das comunidades de imigrantes com os quais as elas não se identificavam. O distanciamento que tiveram da comunidade nipo-brasileira durante toda a vida verteu-se para um olhar mais amplo. Elas não estavam embutidas dentro das associações de províncias (criadas pelos imigrantes e que até hoje reúnem descendentes de famílias que nasceram na mesma província no Japão) que ensinavam e divulgavam a cultura tradicional japonesa, escolas de japonês ou o Bunkyo, Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social, uma das principais instituições responsáveis pela difusão da “cultura japonesa” no Brasil. Elas se identificavam e se reconheciam em um outro que poderia ou não ser descendente de imigrantes japoneses, poderia ser qualquer um que tivesse essa admiração pelo Japão e o desejo de expressá-la artisticamente. Seguindo o paradigma estético proposto nesse artigo, um outro que desejasse sentir e viver junto essa renovação, descoberta ou, por vezes, questionamento. Na ação inaugural do coletivo de artista moyashis, esses outros eram dez. Foram produzidas ilustrações que tinham como referência um símbolo forte em seu imaginário: A grande onda de Kanagawa, que faz parte da série “36 vistas do Monte Fuji” produzidas no século 19 pelo mestre da xilogravura japonês Katsushika Hokusai. As dez ilustrações que traziam releituras do tsunami foram impressas em papéis e adesivos. Os stickers e lambe-lambes – linguagem escolhida pelo simples fato de os artistas terem uma verba limitada – foram colados em muros do bairro da Vila Madalena, em São Paulo, compondo uma galeria a céu aberto junto com grafites e outras manifestações de arte de rua. Não havia nenhuma intenção política ou intenção de arte de guerrilha nessa ação. Os muros foram ocupados por ser um espaço livre e o vídeo da ação foi difundido no canal youtube (5) e exibido em no Sarau da Santos, realizado em junho de 2006. Neste sarau, apresentaram-se artistas diversos, alguns com produção mais consistente, como a dançarina e coreógrafa Letícia Sekito e o músico Camilo Carrara, e outros reconhecidos pela comunidade japonesa, como Tamako Yoshimoto, que pratica um estilo de ikebana chamado Sogestu, que valoriza a expressão criativa do artista. O Sarau da Santos foi um chamariz para que outras pessoas se interessassem a criar com o grupo. Uma segunda ação reuniu mais de 20 artistas, 531 sendo que cerca de metade deles teve uma participação pontual nesta ação. Depois disso, alguns outros se aproximaram pelo curso “Arte Japonesa pós-anos 90”, realizado na Fundação Japão São Paulo e que teve como professora Christine Greiner, especialista em estética, corpo e Japão. O limite da definição de moyashis como um “coletivo formado por artistas brasileiros” foi extrapolado quando passei alguns anos em Paris para pesquisar mulheres japonesas que moravam na cidade e entrei em contato com japonesas que se identificavam com o que estava fora do Japão. Algumas delas também produziram trabalhos exibidos pelo coletivo. O grande salto desse movimento aconteceu em junho de 2007, quando o suplemento de cultura do jornal Nippo Brasil publicou como matéria de capa uma reportagem intitulada “O Japão sob novos olhares” na semana em que foi comemorado o aniversário de 99 anos de Imigração Japonesa no Brasil. A matéria escrita pela jornalista Erika Horigoshi tinha como objetivo mostrar como os jovens descendentes de imigrantes estavam difundindo a “cultura japonesa” no Brasil e trouxe como os principais expoentes a Comissão de Jovens do Bunkyo e o coletivo moyashis. O que poderia ser uma aparente oposição entre os grupos se reverteu em diálogo. Cláudio Kurita, líder da Comissão de Jovens, convidou o coletivo para fazer parte do tradicional festival Bunka Matsuri, que acontece anualmente na sede do Bunkyo, localizada no bairro da Liberdade, em São Paulo, e comumente apresenta manifestações culturais japonesas tradicionais. No 4º Bunka Matsuri, realizado em 2008, ilustrações, grafites, vídeos, filmes, instalações e performance de 38 artistas brasileiros e japoneses compuseram a exposição “invasão tsunami”, organizada pelo coletivo moyashis, que ocupou o saguão principal localizado na entrada da instituição. Essa exposição levou o grupo a ser convidado para integrar a Semana Cultura Brasil-Japão, evento comemorativo oficial cujo curador foi o então diretor da Fundação Japão São Paulo Jo Takahashi. O coletivo participou da programação da Semana Cultural, que aconteceu no Pavilhão de Exposições do Anhembi, com uma exposição-intervenção que recebeu o nome de “invasão moyashis” e reuniu 11 artistas, além de quatro palestras sobre temas diversos como arte em papel, cultura e quadrinhos proferidas por alguns de seus integrantes. 532 Na Semana Cultural, apesar de performarem uma “guerrilha artística”, os artistas não tinha uma atitude de confrontação política. O trabalho do coletivo suscitava uma reflexão sobre difusão cultural e questionava a maneira como ela vinha sendo feita até então (sob o discurso da “preservação da cultura”) ao apresentar novas possibilidades, mas não havia uma pretensão de que o sua proposta substituísse o que vinha sendo feito. Não havia nenhum tipo de resistência a uma coexistência dessas duas propostas diferentes, ou com outras comunidades que constituíam segmentos mais específicos de fãs do Japão que se reuniam em torno de “totens” diferentes, como o mangá ou de músicas estilo J-POP, entre outros. O coletivo moyashis considerava apenas que o Centenário da Imigração Japonesa poderia ser um momento propício para chamar atenção da comunidade nipobrasileira e dos brasileiros não descendentes para o fato de que as terceiras, quartas e futuras gerações descendentes de imigrantes tinham uma outra maneira de pensar o estar junto, e de que não descendentes também podiam fazer parte dessa vibração estética coletiva. Os convites feitos ao coletivo para que os artistas expusessem em eventos e espaços institucionais no ano de 2008 acabou sendo uma forma de reconhecimento e aceitação dessa cultura do sentimento. Outra foi o grande retorno de mídia espontânea. Por consistir uma “pauta nova”, o trabalho dos artistas moyashis foi um dos destaques da cobertura sobre o Centenário que saiu na imprensa em maio e junho de 2008. Em dois meses, suas ações foram notícia em 10 matérias de televisão (a maioria delas exibidas na Rede Globo e no canal Globonews), 2 matérias em rádio, 2 matérias de jornal, 2 matérias em revistas e cerca de 40 registros em sites e blogs. O blog do coletivo (6), que existia de forma independente na plataforma blogspot, passou a integrar no início de 2008 o conjunto de blogs da plataforma online do projeto de 100 Anos da Imigração Japonesa realizado pela Editora Abril (hoje incorporado ao Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil). A atuação dos moyashis é muito similar a um tipo de comportamento detectado posteriormente pela pesquisa “Sonho Brasileiro” (7), realizada em 2011 pela Box1824, agência de pesquisa especializada em tendências de consumo e comportamento jovem. A agência estuda o comportamento de jovens de 18 a 24 anos por considerarem essa faixa etária como um centro de influência para novos comportamentos da sociedade. Um dos principais traços de comportamento 533 detectado na pesquisa é a atuação coletiva, caracterizada como conectada e não dual e possível porque a hiperconexão pode mediar e facilitar diversas relações. Nesse contexto, pequenas ações realizadas no cotidiano podem ganhar maior amplitude. A Box 1824 chamou de “microrrevolução” essa nova forma de agir no mundo que tem como principais características a quebra da hierarquia, novas causas e atores que se espalham pelo planeta, o ganho de importância de questões culturais, sociais e ambientais e as múltiplas atitudes que são realizadas no cotidiano de forma independentes, mas carregam o potencial gerar um impacto mais global. Na pesquisa de mestrado “Memórias e identidades nipo-brasileiras: cultura pop, tecnologia e mediações”, a pesquisadora Mariany Nakamura atesta a importância da hiperconexão – outra característica pós-moderna – no processo de construção, produção e difusão do conteúdo produzido pelo coletivo: Além de manifestações e ilustrações na rua, o grupo fez uso de blogs e sites como youtube e flickr para expor, produzir e divulgar a ideia de uma cultura japonesa renovada no Brasil (...) o nome do grupo surgiu espontaneamente por meio de troca de e-mails e teve sua legitimação pelo artista japonês Tadashi Endo, quando passou pelo Brasil em 2006. (NAKAMURA, 2013, p. 78). As novas tecnologias da informação e da comunicação tiveram fundamental importância não só no compartilhamento do conteúdo produzido – afinal, “a experiência vivida deve ser dita, contada e vista” (MAFFESOLI, 1990, p. 77, tradução nossa) –, mas na captação de referências visuais pelos artistas (muitos deles nunca tinham saído do Brasil e uma minoria conhecia o Japão “ao vivo”). O desenrolar do movimento seria impensável sem essa possibilidade, que permitiu a troca de processos criativos (em alguns momentos, os artistas se encontravam em cidades, estados e países diferentes) e a descoberta de artistas que fizeram parte de ações mais pontuais. O espaço onde tudo acontecia era chamado de Espaço Cultural KIAI, que não possuía CNPJ nem sede física. No entanto, tinha uma logomarca inspirada no formato de uma espada japonesa (katana), redesenhada como se fosse uma flor, e um propósito desde o início de sua atuação. Na definição do Espaço Cultural KIAI (o termo foi escolhido por em japonês designar o grito proferido antes da luta, que traduz o espírito do guerreiro), os verbos “absorvemos, criamos e trocamos” eram usados para definir a forma de atuação do grupo e a seguinte frase explicava a não 534 existência de um espaço físico: “KIAI é um espaço cultural que não tem sede. Ele está em nossas buscas” (8). Logomarca do Espaço Cultural KIAI, arquivo pessoal. Forma que exprime seu conteúdo Havia outra expressão que sempre pontuava o discurso desses artistas: “fazer uma releitura da cultura japonesa produzida no Brasil”. Contextualizando o discurso e o grupo, estamos falando de um país do qual 1,5 milhão de cidadãos têm ascendência japonesa de acordo com o governo de São Paulo (um dos quatro estados em que mais residem descendentes de imigrantes japoneses), e do ano de 2008, em que uma centena de ações foi incluída no calendário oficial deste mesmo estado para celebrar os 100 anos da chegada dos primeiros imigrantes japoneses no Porto de Santos. Tanto esses dados quanto à repercussão que o Centenário da Imigração Japonesa teve na mídia brasileira, podemos mensurar a influência deste povo na formação multicultural do Brasil. Já nascidos multiculturais (por serem brasileiros) e se tornando profissionais atuantes no século 21, alguns integrantes do coletivo eram descendentes de imigrantes japoneses. É deles que parte o desejo de releitura e renovação do que até então era divulgado como “cultura japonesa”. Apesar de ser apresentada dessa forma, já não poderia mais assim ser considerada por ter sofrido modificações e adquirido novos significados a partir do momento em que os imigrantes japoneses chegaram ao Brasil, de acordo com uma proposição feita pelo antropólogo Koichi Mori. Em uma entrevista concedida a uma revista especial publicada pela Editora Abril em 2008, Mori se refere à “cultura japonesa” deslocada de seu contexto original 535 como um “Japão inventado”: “quando uma cultura migra para outros países, ela é modificada porque sofre intervenções locais e também porque resgata elementos de distintas regiões do lugar de origem, como se fosse uma colcha de retalhos” (MANFRINATTO, 2008, p. 8). O termo criado por Mori foi rapidamente readaptado pelos artistas para “Japão reinventado”, utilizado no texto de curadoria da exposição “Invasão Tsunami”: Há muitos países chamados Japão. Aquele tradicional, construído a partir da memória dos imigrantes. Um país futurístico divulgado pela mídia. O Japão otaku que circula na internet. Um país zen, organizado, fofo, kawaii, minimalista e colorido. Uma cultura em que imperam emoções fortes, porém contidas e que resultam na beleza suprema quando são expressadas pela arte. Perguntamos a 38 artistas qual o Japão – ou qual desses países – eles carregavam dentro deles. A resposta está nessa exposição, que reúne olhares de brasileiros – descendentes ou não de japoneses – e de japoneses nômades, com quem cruzamos pelo mundo afora e que carregam o mesmo espírito daqueles que chegaram no Brasil há cem anos. Aqui temos um Japão reinventado a partir das imagens trazidas e fincadas pelos imigrantes, das artes tradicionais por nós reverenciadas, de referências de revistas, internet, mangás, cinema, de estereótipos e símbolos. Elementos que são revistos, questionados, reapropriados e homenageados pelos moyashis, coletivo de artistas que existe desde 2006. Invadimos o Centenário da Imigração Japonesa com esta proposta, a de renovar a cultura japonesa no Brasil. (9) A fusão de elementos tradicionais e contemporâneos da “cultura japonesa” na produção artística dos moyashis não se trata de uma simples cópia do estereótipo “tradição-modernidade” comumente – e superficialmente – associado ao Japão. Quando feita por brasileiros, ela consiste em um reconhecimento de formas e conceitos que fazem parte de sua formação cultural. Quanto mais íntimo o contato que tiveram com a “cultura japonesa” – alguns dos integrantes do coletivo eram descendentes de imigrantes e muitos dos que não eram já haviam tido uma experiência de aprendizado da arte tradicional japonesa: cerâmica, dança ou artes marciais –, mais suas criações se aproximavam da essência do que pretendiam recriar e utilizá-la na composição de algo novo. A proximidade entre a essência e o que a representa também é algo pertinente às formações de comunidades – essa categoria de análise foi determinada como formismo por Michel Maffesoli e consiste 536 na “estreita conexão entre o conteúdo e o que ele contém, entre a forma interior e a força exterior” (1990, p. 105, tradução nossa). Ao explicar esta categoria, o sociólogo faz uma aproximação com o conceito japonês de kata, que pode ser traduzido como um “modelo” ou “template”. O termo é bastante utilizado em artes marciais para definir uma série de movimentos prédefinidos que representam um combate real. O jornalista francês Philippe Pons, autor de diversos livros sobre o Japão, explica que o kata não se trata de uma simples operação de imitação, mas da representação de um processo. Em seu livro De Edo à Tóquio, ele (1998) define a representação como a quintessência do que ela representa. Ele ainda completa que “em matéria de comportamento, o domínio da forma abre caminho para a aquisição da substância.” (PONS, 1998, PP.148-149) Maffesoli se utiliza do formismo para explicar a coexistência entre o arcaico e o novo nas comunidades pós-modernas. Ele lança a sociologia do imaginário, proposta pelo filósofo francês Gilbert Durand, para analisar esse processo de representação e resgata o que Durand definiu como dialética do retorno (DURAND, 1964, p. 223). No livro As estruturas antropológicas do imaginário, Durand verifica o resgate de referências do passado para a composição da essência da construção de novos modelos em que a ênfase se dá pela estética. As imagens antigas e arcaicas, consideradas representações, consistem na essência de algo. Ao serem metamorfoseadas, transformam-se em novas imagens e passam a ser reveladoras de situações atuais que introduzem novos modelos. Pode-se observar que diversas características da estética, da cultura e da filosofia japonesa aparecem de forma transversal ao trabalho do coletivo de artistas moyashis em diversas etapas, desde sua formação até a difusão de conteúdo. As características existem desde os conceitos que inspiram o nome do grupo e razão de existir (o termo shoshin, usado no zen budismo para designar o principiante, se relaciona com os brotos de feijão e define a postura dos artistas de não se fixarem em expressões culturais do passado, mas permanecerem em constante processo evolutivo no acompanhamento de tendências), passando por símbolos da cultura japonesa que se transformaram em temas para as séries de ilustrações (tsunami, flor de cerejeira, arroz e ponte), referências diversas (artistas, obras, técnicas de produção), imagens criadas e categorias de análise da formação de comunidades. 537 Além do formismo, o hibridismo também se encontra presente na própria construção cultural do Japão. O físico japonês Yukawa Hideki, no artigo Tendência moderna da civilização ocidental e particularidades culturais do Japão observa que o Japão não assimilou todas as influências estrangeiras com as quais teve contato, mas apenas elementos que são familiares ao “clima japonês” (YUKAWA, 1967, p. 57, tradução nossa). Os fragmentos de outras culturas ainda foram reeditados criativamente ao estilo japonês em sua incorporação. Até porque os japoneses são muito mais “importadores de ideias do que de produtos” na visão de Donald Richie (RICHIE, 2000, p. 37, tradução nossa), um dos mais importantes especialistas em Japão contemporâneo. Algumas ilustrações produzidas para as séries foram tão emblemáticas na composição de imagens que conseguiram associar conceitos, técnicas e símbolos tanto brasileiros quanto japoneses, como a gueixa criada pelo ilustrador Carlo Giovani a partir de uma fotografia de uma banana para a série “Tsunami” e os itens de restaurantes japoneses reunidos pelo quadrinista Gil Tokio para a série “Pontes”, associados a elementos típicos brasileiros como “pinga”, “fita isolante” e “arroz com feijão”. Gueixa criada pelo ilustrador Carlo Giovani para a série inaugural “Tsunami”, realizada em 2006 e exibida no Sarau da Santos, arquivo pessoal. 538 Ilustração do quadrinista Gil Tokio feita para a série “Pontes”, realizada em 2007 em comemoração aos 99 anos da imigração japonesa no Brasil, arquivo pessoal. De um modo geral, as produções do coletivo revelaram ter grande influência do mangá, do pop e de um erotismo que se conecta a produções do artista contemporâneo japonês Makoto Aida. Padronagens tradicionais e elementos da tatuagem foram utilizados para compor texturas, construindo uma linguagem que também se beneficiou da instantaneidade da poesia haikai. No processo criativo, os artistas absorviam materiais e técnicas de inspiração japonesa, como nanquim aquarelado, carimbos, xilogravura e uso de papéis especiais. As produções podiam oscilar entre a linguagem sintética e o excesso de detalhes de ornamentos. Por seguirem sentimentos, desejos e paixões, as comunidades contemporâneas são consideradas fluidas, com contornos porosos, e o tempo de duração de suas existências é indeterminado. As tribos se organizam de maneiras mais ou menos efêmeras, possuem uma temporalidade única e o calor da festividade, que segue o prazer do instante como se ele fosse eterno: O essencial é o estar junto suscitado pela identificação. O objeto sobre o qual se tem fascinação pode se saturar ou perder seu poder de imantação; ele será abandonado. No entanto, a estrutura perdura – o poder será atribuído a um outro objeto que por sua vez terá sua função de agregação. (MAFFESOLI, 1990, p. 270, tradução nossa). Terminado o Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, diversos fatores de ordem pessoal e profissional não permitiram a continuação de uma produção coletiva pelos moyashis. As diversas identificações discutidas e suscitadas provocaram ressonâncias em outros descendentes de imigrantes, artistas, fãs do Japão, no público em geral, independentemente de serem ou não descendentes de imigrantes japoneses. Da mesma forma como foram inspirados por diversas comunidades, os moyashis passaram a inspirar outras que já existiam e que foram reforçadas e também novos brotos, prontos para se expressarem em processos cocriativos, virtuais, comunitários. 539 Tudo o que restou / Dos sonhos dos guerreiros / Capim de verão (10) Matsuo Basho Notas (1) Moyashi é um alimento muito usado na culinária japonesa e também no Brasil, onde é conhecido como broto de feijão. O grupo escolheu este nome por ser um elemento comum às duas culturas. Na japonesa, está nas refeições e, na brasileira, é apresentado já na escola, quando crianças aprendem a cultivar brotos de feijão. O símbolo do broto foi escolhido por ser uma alusão ao termo shoshin, que no zen budismo é usado para designar o espírito de principiante em evolução constante. (2) É importante definir o filósofo Zygmunt Bauman como europeu nesse artigo, pois ele inicia o livro citado com uma reflexão sobre o conceito de identidade exatamente a partir de sua própria biografia. Nascido polonês, ele foi professor na Universidade de Varsóvia até 1968, quando foi impedido pelo Partido Comunista de lecionar e mudou-se para a Inglaterra. Apesar de ter se naturalizado britânico, Bauman sempre se sentiu estrangeiro nesse país. Quando foi receber o título de doutor honoris causa pela Universidade Charles, em Praga, escolheu o hino da Europa para ser tocada, pois não se sentia representado pelo hino de nenhum dos países citados. (3) Na versão original, em francês, Michel Maffesoli, ao falar de pessoa, faz um paralelo a palavra persona. O sociólogo apropria-se desta palavra do latim para designar um tipo de máscara feita para ressoar a voz de um ator. O termo foi apropriado pelo teatro para se referir a um personagem vivido por um ator. (4) O termo alemão zeitgeist é usado para se referir ao conjunto do clima intelectual e cultural do mundo em uma determinada época. É comumente traduzido como “espírito da época” ou “espírito do tempo”. (5) Link do vídeo no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=fowvA0-bMUs&list=HL1396312075. (6) Parte do blog ainda pode ser lida no link http://www.japao100.com.br/blog_moyashis. (7) A pesquisa encontra-se disponível no site http://osonhobrasileiro.com.br. (8) Retirado dos arquivos pessoais da autora do artigo. (9) Retirado dos arquivos pessoais da autora do artigo. (10) Em japonês, natsugusa ya tsuwamonodomo ga yume no ato. O interessante é que, nesta poesia, a palavra yume tem o sentido dúbio de sonho e ambição, pois o capim de verão, por ser alto e espesso, tem o significado de crescimento vigoroso. Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. DURAND, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1964, p. 223. GREINER, Christine; SOUZA, Marco (Orgs.). Imagens do Japão: pesquisas, intervenções poéticas, provocações. São Paulo: Annablume, 2011. HORIGOSHI, Erika. O Japão sob novos olhares. Jornal Nippo Brasil, São Paulo, 13 a 19 jun. 2007. Caderno Zashi, pp. 12-13. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1993. MAFFESOLI, MICHEL. Aux creux des apparences: pour une éthique de l’esthétique. Paris: Plon, 1990. MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. MAFFESOLI, MICHEL. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica, 2004. MANFRINATTO, Ana. Sorry, Liberdade. Especial 100 anos da imigração japonesa: as surpreendentes histórias do povo que ajudou a mudar o Brasil. São Paulo: Abril, 2008. NAKAMURA, Mariany Toriyama. Memória e identidades nipo-brasileiras: cultura pop, tecnologia e mediações. Ano. Dissertação (Mestrado em Ciências da Informação) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2013. Tese cedida pela autora em 2013. PONS, Philippe. D’Edo à Tokyo. Paris: Gallimard, 1998. RICHIE, Donald. Tokyo, extravagante et humaine. Paris: Autrement, 2000. 540 YUKAWA, Hideki. Modern trend of Western civilization and cultural particularities in Japan. In: MOORE, Charles A. The Japanese mind: essentials of Japanese philosophy and culture. Honolulu: University of Hawaii, 1967. Erika Kobayashi é jornalista e socióloga, foi uma das idealizadoras do coletivo de artistas moyashis. Formouse em Comunicação Social – Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e obteve o mestrado em Sociologia das Sociedades Contemporâneas pela Universidade Paris Descartes (Paris V – Sorbonne) com a pesquisa “Mulheres japonesas – do interior ao exterior”. 541 TRADIÇÃO E MODERNISMO EUROPEU E CHINÊS EM RETRATOS DE FAN TCHUNPI: UMA INTRODUÇÃO Cíntia Mariza do Amaral Moreira - UFRJ RESUMO: A artista chinesa Fan Tchunpi (1998-1986) frequentou entre os anos de 1910 e 1920 a ‘Academie Julian’ (Paris), a ‘Ecole de Beaux Arts’ (Bordeaux) e o atelier de Humbert (Paris) e sua formação inicial foi baseada na tradição acadêmica europeia francesa. Criticar a tradição era uma prática comum naquela época, no entanto a artista preferia representar o mundo de modo realista, mesmo quando em 1926 realizou estudos com Besnard (18491934), pintor com influência impressionista e aberto aos novos movimentos do início do século XX. A artista completou a sua formação na China a partir de 1930 ao estudar com o mestre Qi Baishi (1864-1957) e com os irmãos Gao Jianfu (1879-1951) e Gao Qifeng (18891935), fundadores da Escola Lingnan, voltada para o resgate da tradição chinesa como distintivo de identidade expressiva. Dali para frente Fan Tchunpi adquiriu intimidade com o uso da cor da pintura chinesa sobre a seda e o papel, assim como com a caligrafia e a poesia, antiga, moderna e contemporânea, através do contato com obras da coleção particular constituída em conjunto com seu marido. Na base da formação da artista de um lado está a tradição e o modernismo da cultura europeia, de outro a pintura chinesa antiga, moderna e contemporânea. Desejamos mostrar como isto emerge em alguns de seus retratos. Palavras-chave: Fan Tchunpi. modernismo e tradição. pintura chinesa. arte chinês. arte oriental. ABSTRACT: Chinese artist Fan Tchunpi (1998-1986) attended between the years 1910 and 1920 Academie Julian ( Paris) , the Ecole de Beaux Arts ( Bordeaux ) and Humbert Atelier ( Paris) and his initial training was based on the French European academic tradition. Criticizing the tradition was a common practice at that time, however, the artist preferred to represent the world realistically, even when conducted studies in 1926 with Besnard (18491934), painter with Impressionist influence and open to new movements of the early twentieth century. The artist completed his training in China in 1930 to study with the master Qi Baishi (1864-1957) and the brothers Gao Jianfu (1879-1951) and Gao Qifeng (1889-1935), founders of the Lingnan School, focused to the rescue of Chinese tradition as expressive identity badge. Henceforth Fan Tchunpi acquired intimacy with the use of color in Chinese painting on silk and paper, as well as calligraphy and poetry, ancient, modern and contemporary, through contact with private collection of works created jointly with her husband On the basis of the formation of the artist one side is the tradition and the modernism of European culture, on the other, ancient, modern and contemporary Chinese painting. We want to show how it emerges in some of his portraits. Keywords: Fan Tchunpi. Modernism and tradition. Chinese painting, Chinese art, oriental art. Inicial O início da formação artística de Fan Tchunpi (1898-1986) tem que ser pensado na perspectiva histórica do mundo cultural chinês, da primeira década do século XX, como refere Brentini1. No momento em que a família de Fan Tchunppi se 542 muda para a França, havia no mundo letrado chinês, um grande interesse cultural pelo Ocidente. Depois de radicados na França para estudar, alguns jovens optavam pelo estudo artístico. O primeiro grupo de artistas chineses em formação na França interessava-se em adquirir conhecimento prático, em ter intimidade com a matriz das técnicas artísticas ocidentais. A geração posterior de modo diferente, faria estágio no Japão, onde se podia travar um primeiro contato com o mundo Ocidental, antes de alcançar a Europa. Estes se abririam desde cedo às inovações estilísticas modernas. O caminho de Fan Tchunpi foi singular. Nos primeiros anos de sua vida viveu no seio de um ambiente letrado, de prósperos comerciantes do chá. Chegou à Paris em 1912 com a família, a qual ao final do ano se estabeleceu em Montagis onde a artista estudou chinês clássico com o educador chinês Cai Yuanpei (1868-1940), conhecido por sua avaliação crítica da cultura chinesa e propósito em efetuar uma síntese entre o pensamento chinês e o ocidental2. Com ele a artista desenvolveu a “faculdade de exprimir seus sentimentos sob a forma de poema clássico a na arte da caligrafia com pincel’, como revelou seu filho Chunglu Tsen3". Na França a artista acompanhou em regime de internato o liceu feminino em Montagis e em Bordeaux, onde a família fixou residência em 1914, por causa da guerra. Escolheu estudar arte e como era natural iniciou sua formação em contato com a arte ocidental. Deste modo estudou com mestres da tradição artística francesa, antes de entrar em contato com mestres da tradição chinesa. A formação francesa Em 1917, durante a guerra, hospedou-se por três meses num convento, a fim de se vincular à Academia Julian, a maior academia privada de Paris, com a intenção de se preparar para o exame da Ecole de Beaux Arts de Bordeaux. Bem sucedida, ali se diplomou após ter sido aprovada no concurso anual de desenho de modelo vivo, em 1920. 543 Com o fim da guerra retornou à Paris no mesmo ano e se vinculou como ouvinte ao atelier de Ferdinad Humbert, na ‘Ecole de Beaux Arts de Paris’. Em 1924 a aceitação da tela a óleo ‘La Joueuse de flûte’ pelo Salon des Artistes Français tornou-a a primeira mulher ‘do extremo oriente’ a ali expor, segundo nota crítica no periódico da época. FIG. 1. Les Analles politiques et literaires, nº 2153, de 28 set 1924, p.333. 544 FIG 2. “La Joueuse de flûte”, 1924. Fan Tchunpi Assinado “Fan Tchunpi 1924” e em chinês “Tchunpi”. Óleo sobre tela. H: 73,1 cm. L: 59,9 cm. Em 1925 a artista volta a expor no mesmo salão e devido ao reconhecimento de seu talento na França foi convidada a ensinar pintura a óleo no College Zhixin, Cantão. Ainda em 1925 participou da exposição organizada pelos irmãos Gao para angariar fundos para a construção de um memorial em homenagem a Sun Yatsen4. A artista retorna a Paris em 1926, ocasião em que inicia estudos no Atelier de Albert Besnard, pintor de formação na tradição acadêmica, mas de expressão impressionista naquele momento. FanTchunpi expõe quatro retratos a óleo (até o momento considerados perdidos) no Salon de Tuileries de 1928, do qual ela foi eleita membro. Aos trinta anos tinha alcançado o domínio da estética acadêmica ocidental, sabia como utilizar o óleo para se expressar, valia-se do estudo do tipo, do tema, numa composição, bem como fora iniciada na arte da cópia e da pintura ao ar livre. 545 As estratégias da técnica acadêmica tradicional de fins do século XIX lhe eram caras, pois seu objetivo, como de resto o dos demais artistas chineses com passagem pela Europa naquele período, era representar o mundo de modo realista. O contato com o modernismo europeu trouxe-lhe a possibilidade de abertura à experimentação expressiva quando de sua permanência posterior na China, onde se dedicou à renovação da arte chinesa. A formação chinesa Ao retornar a Cantão em 1930 Fan Tchunpi estreitou o contato com os irmãos Gao, “dois dos mais influentes artistas da escola de Lingnan, os quais também foram pioneiros no uso das técnicas ocidentais para reformular a pintura tradicional [chinesa]” como atesta Kao Mayching, (1978)5. Como quer o historiador da arte e arquiteto Tao Ho (1978)6 artistas chineses em produção na década de 1920 até o início dos anos 1930 muito se esforçaram na direção de renovar a arte chinesa, a qual havia estabelecido princípios sólidos por mais de mil anos. Ao seguir a tradição chinesa de pintura que se estende até o século XIX, alguns artistas das duas primeiras décadas do século XX primeiro valorizarem a cópia de mestres antigos para obter a maestria, depois se permitiram dialogar com os ares da modernidade, ensina o arquiteto. Este foi o caminho trilhado por Qi Bai Shi, com o qual Fan Tchunpi entrará em contato na década de 1940. Já aqueles formados primeiro na tradição artística ocidental, ao retornarem para a China complementaram seus estudos com o contato com a tradição artística e filosófica do país de origem. Este foi o caso de Fan Tchunpi. Alinhada com as premissas de seu treinamento acadêmico na França, a artista se recusou a copiar os mestres antigos, a fim de obter a técnica, antes ela persistiu estudando a natureza. No entanto sua recusa pela cópia não a fez ignorar a pintura tradicional chinesa. Por esta época Fan Tchumpi em conjunto com seu marido, deram início à coleção familiar de obras artísticas chinesas, muitas de pintura chinesa tradicional. Esta coleção, a qual em parte hoje se abriga no Baur 546 Museum de Genebra e no Museum of Fine Art Boston, provavelmente favoreceu a intimidade de Tchunpi com os mestres da pintura tradicional chinesa. Com eles se aproximou tanto da técnica no uso do pincel, do nanquim e da aquarela, quanto das escolhas da tradição ao se aproximar do modo chinês de expressar os temas: animais, flores, paisagens e retratos. Ainda segundo Tao Ho, durante os anos trinta Fan Tchunpi não apenas utiliza atributos da tradição chinesa numa pintura com características ocidentais, como o fazia até então. Ela começa a lançar mão do uso da perspectiva ocidental e do desenho, em pinturas com características chinesas e das técnicas chinesas da aquarela e do pincel nas telas a óleo. Em retratos estas duas tendências ficam visíveis. A obra a seguir, exposta em 2013 na exposição “Between Tradition and modernity: the art of Fan Tchunpi no Hood Museum of Art7, faz uso do pincel na aquarela e em ‘sumi ink’, sobre o desenho e foi executada em papel chinês". Observamos a aproximação com a China na escolha do tema, o cotidiano do homem comum habitante de pequenas cidades próximas do campo: um pedinte cego acompanhado de uma criança. O uso do desenho prévio sobressai na esquematização das duas figuras humanas e em outros objetos da cena como a bengala, o cajado e a flauta do pedinte cego. Observamos a correta anatomia das figuras, apreendida pela artista na França. O detalhe e a elaboração minuciosa da profundidade estão presentes no rosto dos personagens. Na roupa do menino é expressivo o uso da cor na camisa, na calça e na sapatilha. O cromatismo audacioso, quase abstrato, é provavelmente fruto de uma combinação entre os ensinamentos do mestre Besnard e as técnicas utilizadas pelos irmãos Gao e aprendidas da pintura tradicional chinesa. Como em muitas representações dos mestres chineses tradicionais, o fundo embora esboçado no chão e na relva na parte inferior da imagem, permanece vazio dali para cima, oferecendo uma ambiência de abstração para a obra. 547 FIG 3. Fan Tchunpi “Blind Beggar with Child”, 1936. Aquarela e ‘sumi ink’ sobre lápis em fino ‘off-white Chinese Paper’. Coleção da família da artista. Foto de Matt Hamilton. Em 1938 a casa editora do Shangai Commercial Press publica um volume a cores das obras de Fan Tchunpi com uma introdução de Cai Yuanpei8. Isto demonstra a abertura para a recepção de suas obras na China. Após a morte de seu marido num atentado em 1939, a artista deixa a China pelo Japão. Durante a estada na China no verão de 1943 a artista começa a pintar retratos à maneira chinesa, segundo Brentini9. Reserva a pintura a óleo preferencialmente para as paisagens. No entanto quando utiliza a pintura a óleo em retratos, o faz segundo a maneira chinesa. Isto fica claro na obra a seguir, atribuída a Fan Tchunpi. 548 FIG 4. Fan Tchunpi 10 incenso durante a noite, 1957. Óleo sobre tela. H: 92 cm. L: 71,5 cm. Esta obra apresenta possivelmente o mestre zen Susuki, residente na Califórnia e amigo da artista. O mestre com vestes negras está a trabalhar, olhando atentamente para um texto de meditação. A cena é ambientada num quarto simples, no qual existem materiais de leitura e um incensário de jade banco, emitindo rajadas de sândalo. Aqui novamente aflora o contraste entre a face e as mãos do mestre zen, representadas em detalhe, segundo a técnica apreendida na França, com o uso dos volumes no desenho e na representação do corpo humano, contrastando com a resolução das vestes em preto, feitas à maneira chinesa de trabalhar. As pinceladas a óleo, imitam a aquarela, de modo expressionista, quase abstrato. No fundo transpareçam tijolos de uma parede da qual o estuque se desprendeu, o que adorna a figura com um ar realista. As partes bem rebocadas da parede, envoltas pela fumaça do incensário oferecem à cena, ao mesmo tempo um ar de suspensão, a qual nos faz abstrair da realidade. 549 A partir de 1957 a artista passa a viver em Boston com um de seus filhos. Depois irá expor em varios países, demonstrando ter sua obra alcançado recepção internacional. Ainda em vida, a artista fará exposição no extremo oriente, em Tóquio, Kioto e Taipé e Hong Kong em 1966 e novamente Pequin e Hong Kong em 1978; Nos Estados Unidos irá expor em Boston, 1980/81 onde tornará pública uma parte da coleção particular de obras de pintura chinesa tradicional, a qual cultivou com seu marido; Na Europa, na França, a artista fará uma exposição retrospectiva em 1984, no Musée Cernuchi em Paris; na América do Sul, no ano 1969 Fan Tchunpi irá expor em Buenos Aires e no Rio de Janeiro. Walmir Waiala foi testemunha da exposição carioca, dando notícia dela na seção Artes da Semana. Caderno B do Jornal do Brasil. JB.02.11.1969.p.8. Caderno B do Jornal do Brasil. JB.02.11.1969.p.8. Duas esposições recentes a destacar: 2002, no Museu Baur em Genebra, Suiça e em 2013, no Hood Museum of Art, New Hanpshire, USA. Final O caminho de Fan Tchoupi vai à contracorrente da tendência chinesa de alcançar o ocidente com óculos ocidentais. Fan Tchunpi foi muito criticada por seus contemporâneos franceses e chineses. Os primeiros a reprovavam por não estar aberta às inovações da arte moderna das vanguardas históricas ocidentais europeias. Esqueciam o fato de a artista trazer consigo a mesma demanda dos artistas chineses chegados à Europa na década de 1910: buscar no estudo da tradição ocidental, aquilo que eles consideravam uma lacuna na formação artística chinesa: o conhecimento da perspectiva, o aprendizado do desenho de observação ao ar livre, a prática das “academias” e modelo vivo, em especial o conhecimento do corpo humano e como 550 representá-lo a partir do nu, até então na China considerado apenas do ponto de vista médico ou erótico. Os últimos a consideravam por demais restrita à tradição chinesa e pouco aberta à renovação moderna que a segunda geração de artistas provenientes da China, com estagio no Japão, antes de chegar à Europa estava afeita. Como revela seu filho, ao fim de sua vida a artista abandona a pintura a óleo em favor da técnica chinesa. Para redescobrir a China, ele prossegue, foi necessário reaprender pacientemente, valer-se de tenacidade e suportar todas as críticas. Para ele: Se a viagem para o Ocidente é a conquista do progresso e da razão, este raro retorno parece revelar algo diferente. Talvez o da arte, com certeza o da beleza. Para Fan Thunpi e seu marido o que a China oferecia era perfeitamente tangível: o criativo movimento do pincel, o contato sensual com uma pedra rara, as fidelidades duráveis e, enfim, uma clara consciência 11 do próprio lugar no curso universal das coisas. Se a trajetória artística de Fan Tchunpi foi de expressão intercultural, entre ocidente e oriente, sua escolha poética dos últimos anos de vida foi pela identificação com o país de origem. Isto de certo modo favoreceu ter a artista adquirido aceitação internacional e suas obras hoje serem de ampla recepção de norte a sul e de leste a oeste. Notas 1. Dunand, 2002, p.50. 2. O educador Cai Yuanpei estudou psicologia, filosofia e história na Universidade de Leipzig, na Alemanha, na década de 1900. Depois de uma estada na China onde atuou no ministério de Educação teve passagem pela França em 1912. 3. Dunand, 2002, p.18. 4. Dunand, 2002, p. 51. 5. Kao Mayching é pesquisadora senior de História da Arte e curadora da Galeria de Arte da Universidade de Hong Kong. Dedica-se ao estudo da arte chinesa moderna e contemporânea. 6. Tao Ho nasceu em Shangai, estudou arquitetura na Harvard University, foi assistente de Walter Gropius na Bauhaus. Atuou como professor e arquiteto em Hong Kong desde 1964. Foi autor do projeto do Hong Kong Arts Center em 1977. 7. Hood Museum of Art faz parte da Darmouth College está localizado em New Hampshire USA. 8. Dunand, 2002, p.44. 9. Dunand, 2002, p.45. 10. Obra atribuída a Fan Tchunpi e possivelmente proveniente de um parente da artista. Disponível em busca com o nome da artista em chinês, seguido da data da obra: \ B m 1957 e em http://www.council.com.cn/XinWen/detail.php?nid=1579 (acessado opção de língua: inglês em 29/03/2014). 11. Dunand, 2002, p. 34. 551 Referências A RETROSPECTIVE EXHIBITION OF FAN TCHUNPI. November 4-27, 1978. Pao Sui Loong Galleries, Hong Kong Arts Centre, Fung Ping Shan Museum, University of Hong Kong.Foreword: Rayson Huang, the Hon, Preface: Alan Wong, Introduction: Tao Ho, A Few Remarks on Fan Thun-pi’s Retrospective Exhibition: Chuang Shen, Fan Tchun-Pi and Twentieth-century Chinese Painting: Mayching Kao,On the works of Fan Tchunpi: Tsai YuenPai, René Grousset Hong Kong: Department of Fine Arts of the University of Hong Kong and the Hong Kong Arts Centre / Department of Fine Arts, 1978. BRENTINI, Sophie P. Wirth. An insider’s experience of a cross cultural exhibition: an autoetho ethnografhy on the process of Pavillion of marital harmony. A thesis submitted in partial fulfilment of the requirements for the degree of Master of Arts in the Faculty of Graduate Studies, Department of curriculum Studies. University of British Collumbia. Vancouver B.C., Canada. 2004. DUNAND, Frank (Ed.).The pavilion of marital harmony, Chinese Printing and calligraphy between tradition and modernity. Geneva: Baur Collection, 2002. TANG, Li.'Art for the market: commercialism in Ren Yi.s (1840-1895).'Thesis'submitted'to' the'Faculty'of'the'Graduate'School'of'the'University'of'Maryland,'College'Park'in'partial' fulfillment'of'the'requirements'for'the'degree'of'Master'of'Arts'2003.'Thesis'directed'by:' Professor'Jason'Kuo,'Department'of'Art'History'and'Archaeology.'Advisory'Committee:' Professor'Jason'Kuo,'Chair,'Professor'Sandy'Kita,'Professor'Marie'Spiro. KLARK, Jonh. Modern and contemporary Asian Art: a working bibliography. 2011 version. Cíntia Moreira Designer, Doutora em Educação, cursa o Doutorado em Artes Visuais EBA, UFRJ onde estuda o livro de artista. Atualmente é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Imaginata (EBA/UFRJ) e do Grupo de Estudos em Arte Oriental GEAO (EBA/UFRJ). Tem apresentado comunicações, publicado artigos e lecionado em universidades públicas e particulares nos campos em que atua. 552 SESSÃO DE COMUNICAÇÃO - PESQUISADORES JUNIORES 553 A IMAGEM DA MÁFIA: UMA ANÁLISE SOBRE AS TATUAGENS DA YAKUZA Karina Ayumi Ekami Takiguti - UNIFESP RESUMO: A pesquisa analisou as possíveis influências visuais que levaram os membros da máfia japonesa Yakuza a selecionarem o repertório de suas tatuagens. Com a verificação da recorrência das principais iconografias encontradas como dragões, peônias e flores de cerejeira, a pesquisa se concentrou em mostrar a relevância dos designs das tatuagens dos yakuzas em diálogo com os padrões tradicionais da arte japonesa no ukiyo-e e no baralho hanafuda. A busca pelas fontes da iconografia revelou a circulação e a transferência de imagens entre a China e o Japão, aspecto que se tornou latente após a grande verificação de elementos chineses como o dragão e a peônia presentes nas tatuagens dos gângsteres. Desse modo, pôde-se concluir, a partir da iconografia das tatuagens da Yakuza, a conexão entre a estética japonesa que possui grande influência da China. Palavras-chave: tatuagem, xilogravura ukiyo-e, yakuza. ABSTRACT: The research analyzed possible visual influences that led members of Japanese mafia Yakuza selecting the repertoire of their tattoos. With the discovery of occurrence of main iconographies like dragons, peonies and cherry blossoms, the research focused on showing the designs relevance of yakuza tattoos in dialogue with traditional patterns of Japanese art in ukiyo-e and hanafuda deck. The search for the iconography sources revealed the circulation and visual transference between China and Japan aspect that became evident after frequent viewing of Chinese elements like dragon and peony in yakuza tattoos. Thereby, we can conclude from the iconography of yakuza tattoos the connection between Japanese aesthetic that has great Chinese influence. Keywords: tattoo, woodblock print ukiyo-e, yakuza. A modificação corporal é especialmente importante entre os membros da máfia japonesa. De acordo com David Kaplan – editor representante da equipe investigativa do U.S. News & World Report – e Alec Dubro – jornalista investigativo residente em Washington (2003, p. 186), muitos membros da Yakuza ainda insistem em fazer a tradicional tatuagem com o método tebori que utiliza uma haste de bambu com uma série de agulhas na ponta. O projeto completo pode levar meses e, quando concluído, pode custar mais de cinco mil dólares. Um estudo realizado por pesquisadores japoneses do crime organizado (Fumio Mugishima, Kanehiro Hoshino e Kenji Kiyonaga), em 1971, revelou que um grande número de yakuzas (73% dos membros de grupos violentos) ainda está se submetendo à realização de tatuagens (LEBRA, 1976, p. 185-186). 554 No Japão há aproximadamente 110.000 membros ativos divididos em 2.500 grupos (POYSDEM; BRATT, 2006, p. 92). Entre algumas infrações relacionadas ao crime organizado, a máfia japonesa está envolvida com o tráfico de drogas, mercado de armas, prostituição, jogos de azar e, inclusive, atividades legalizadas. A Yakuza está implantada seguramente no mundo corporativo. Sua influência se expandiu além das fronteiras japonesas para outros continentes como a América. A máfia japonesa tem estabelecido alianças com as Tríades Chinesas, as máfias Siciliana e Americana, os cartéis de drogas da Colômbia, as esquadras Jamaicanas e outras organizações criminais ao redor do mundo (POYDEM; BRATT, 2006, p. 89-93). A máfia japonesa é uma das mais reconhecidas por ter tatuagens em seus membros. Essa sofisticada modificação corporal que trouxe popularidade aos grandes mestres tatuadores e marcou solenemente os corpos dos gângsteres da Yakuza já foi utilizada com diversas finalidades, além de ter assumido um design menos exuberante nos primeiros tempos de sua história. Para compreendermos os motivos de a máfia incorporar essa modificação corporal, assim como a estética com elementos tradicionais japoneses, é imprescindível conhecer o contexto em que essa manifestação visual se desenvolveu. Pode-se dizer que um dos propósitos que tiveram maior impacto ao longo da história da tatuagem no Japão foi o seu uso como forma de punição dos criminosos. Para os chineses a tatuagem era vista como um sinal de barbárie e usavam-na como forma de punição após o século VI. Nesse período, o governo japonês recebeu grande influência da cultura da China a ponto de ter como consequência a desaprovação da tatuagem oficialmente (RICHIE, 1989, p. 11-12). Sendo assim, as tatuagens começaram a ser destinadas a punir criminosos ou intocáveis no Japão. Foi dentro desse contexto que começou a ser delineada a relação entre a tattoo e a máfia japonesa Yakuza. Originalmente a tatuagem nos primórdios da Yakuza surgiu como forma de punição entre os bakutos, considerados os ancestrais da máfia no período medieval (KAPLAN & DUBRO, 2003, p. 7). Além do envolvimento com jogos de azar no submundo do crime, os bakutos fizeram o primeiro uso da palavra Yakuza 1 e implantaram o costume de cortar os dedos (yubitsume) quando membros quebravam as regras da gangue. A tatuagem na máfia japonesa foi socialmente 555 utilizada pelas autoridades como forma de isolamento dos criminosos. Eles geralmente eram tatuados com um bracelete negro em volta do braço por cada punição (Ibidem, 2003, p. 14). No início do século XVII, as tatuagens utilizadas no âmbito criminal possuíam um design bastante simples. Nesse período, foi desenvolvido um elaborado código de marcas de punição. Donald Richie (1989, p. 12) exemplifica alguns deles: “Na região de Tama, um criminoso possuía o ideograma “cachorro” tatuado em sua testa; em Kyoto uma dupla barra no braço superior; na proximidade de Nara, uma linha dupla circulando o bíceps do braço direito [...]”. Desse modo, era possível identificar tanto o criminoso quanto a sua localidade. É importante ressaltar que essa forma de punição existia quando não havia nada mais apropriado. Para a sociedade japonesa da época, a tatuagem era algo pior do que a prisão ou a tortura física extrema, pois poderia acarretar o isolamento social do indivíduo por toda a sua vida. Apesar dessa forte relação com o crime, uma exuberante tradição da tatuagem japonesa continuou a florescer mesmo com os esforços do governo para a sua supressão. No século XVIII, a tatuagem figurativa teve seu esplendor em conexão com a cultura popular de Edo (GILBERT, 2000, p. 78). Designs injetados na pele que cobriam o corpo todo se tornaram populares tanto entre os jogadores de azar quanto trabalhadores que apresentavam o corpo exposto como os bombeiros e os carregadores de palanquim. As marcas utilizadas em criminosos e intocáveis foram sendo abandonadas. Não significa, entretanto, que essa conexão foi esquecida. Em uma tentativa para explicar a transformação da tatuagem criminal para a tatuagem como adorno, pesquisadores indicam que poderia ser uma maneira que os criminosos encontraram para esconderem seus sinais de estigma com a sobreposição de outras imagens2. É também nesse período que as tatuagens figurativas da Yakuza começaram a surgir. As imagens geralmente cobrem uma grande extensão do corpo (dos ombros até os joelhos) e possuem um vasto acervo visual que combina diversos elementos da natureza espalhados sobre a pele (flores, folhas) com figuras no plano de fundo (nuvens, ondas, raios) e uma figura principal que pode ser da mitologia, um herói folclórico ou um animal emblemático. 556 Para encontrar os temas mais recorrentes nas tatuagens dos yakuzas, foi realizado um levantamento iconográfico, no arco temporal do século XX ao XXI, em mídias nacionais e internacionais3, banco digital de fotógrafos e fotojornalistas4 e páginas de armazenamento de imagens5. É necessário pontuar que as fotografias encontradas para a pesquisa são um recorte de olhar trazido pela mídia e por fotógrafos estrangeiros. Portanto, existe a possibilidade dos símbolos mais recorrentes nessas imagens não corresponderem de fato à realidade dos yakuzas. Sendo assim, o que a pesquisa objetiva é uma aproximação do que podem ser as imagens mais recorrentes da máfia japonesa através do material obtido. Para a seleção dos temas mais recorrentes das tatuagens da Yakuza foram consideradas tanto a entrevista 6 do tatuador Adriano Kobayashi quanto as fotografias coletadas no levantamento iconográfico. Adriano Kobayashi é um tatuador brasileiro residente no Japão. Em seu estúdio em Oizumi, na província de Gunma, ele atende clientes brasileiros, japoneses e até mesmo membros da Yakuza. Adriano Kobayashi conta que os desenhos mais pedidos pelos gângsteres são: “Dragões, deuses da mitologia xintoísta e budista e principalmente a carpa”. Os itens citados pelo tatuador foram importantes para uma primeira ideia dos elementos que os membros da máfia possuem afinidade. No levantamento iconográfico foram coletadas 98 imagens das quais 40 foram selecionadas para compor a análise visual. Os critérios de exclusão foram imagens com baixa nitidez e fotografias onde aparecem gângsteres tatuados repetidos. De modo geral, os elementos que apareceram com maior frequência foram tatuagens de animais (48) e flores (33) em contraposição às divindades encontradas 28 vezes. Apesar de Adriano Kobayashi citar em sua entrevista que os as imagens mais procuradas pelos Yakuzas são os dragões, as carpas e os deuses da mitologia budista e xintoísta, no levantamento iconográfico foram constatados que desses itens o dragão apareceu com maior frequência (33 vezes) em contraposição à carpa (10 vezes). Fudō Myōō, Tennin e Kanon Bosatsu, divindades do Budismo, apareceram 26 vezes, enquanto Raijin e Fūjin, provenientes do Xintoísmo, foram encontrados apenas duas vezes. Com a definição dos principais temas foram selecionados os dragões, as peônias e as flores de cerejeiras para contemplarem o presente estudo devido à 557 grande recorrência nas fotografias coletadas e à relevância na cultura japonesa. Diante disso, a pesquisa se concentrou na iconografia das tatuagens dos yakuzas em diálogo com as xilogravuras ukiyo-e e o baralho de cartas japonês hanafuda. Para a primeira análise será aproximada a temática do dragão na xilogravura ukiyo-e de Utagawa Kuniyoshi 7 , One hundred and eight heroes of the popular Suikoden all told (Tzūsoku Suikoden gōketsu hyakuhachinin no hitori), na Figura 1, e a tatuagem apresentada na Figura 3. A obra de Kuniyoshi retrata o herói Kumonryū Shishin do conto chinês Shui-hu Shuan (Contos a margem da água) ou Suikoden, título da versão japonesa. Para compreender a escolha dessa obra é preciso entender o conteúdo do livro e o impacto na sociedade de sua época. O Suikoden é considerado um clássico chinês desde o século XIV quando foi escrito ou compilado por um pesquisador desconhecido que utilizava o pseudônimo Shih Nai-an. O conto retrata Sung Chiang e seus companheiros rebeldes durante os anos de 1117-21. A história traz 108 foras da lei tatuados colocados no enredo como homens de honra. Cada capítulo do livro conta a trajetória de um dos guerreiros e suas aventuras. De modo geral, o que unia a todos era o sentimento de revolta contra o governo corrupto e opressor (RICHIE, 1989, p. 20-21). Devido ao caráter antiautoritário do enredo, o Suikoden logo se tornou um símbolo de resistência contra o opressivo regime do período Tokugawa e um best seller por mais de um século no Japão (GILBERT, 2000, p. 80). A tradução japonesa do Suikoden obteve vendas estáveis por volta de 1751 e, no final do século, já havia se tornado uma paixão entre o público. Tal popularidade rendeu diversas edições. Uma das mais famosas teve tradução de Okajima Kanzan (1674-1728), publicada em 1757. A versão considerada sucesso de vendas foi Shimpen Suikogaden, do início de 1800, ilustrada por Katushika Hokusai8 (17601849). Em seguida, houve uma edição que recebeu ilustrações de Utagawa Kuniyoshi (1797-1861). Diversos artistas do ukiyo-e participaram das edições contribuindo com diversas releituras das ilustrações dos personagens. A última versão considerada mais importante foi Bidan Suikoden, ilustrada por Tsukioka Yoshitoshi9 (1839-1892), onde tanto as imagens quanto os textos foram adaptados para o modelo japonês (RICHIE, 1989, p. 21). 558 As imagens do Suikoden – repletas de heróis tatuados como protagonistas e célebres ilustrações realizadas por famosos artistas do ukiyo-e – contribuíram para a proliferação da moda da tatuagem no período Edo. Nesse sentido, a tatuagem e o ukiyo-e, que tanto impressionaram os ocidentais no final do século XIX, possuem um diálogo complementar intermediados pela literatura proveniente da China. De acordo com Donald Richie (1989, p. 21), “Essas ilustrações – particularmente as de Kuniyoshi – eram aparentemente muito populares, e isso compôs tanto o estilo quanto a iconografia da tatuagem japonesa pictórica”. O mestre tatuador contemporâneo Horiyoshi III (1946) complementa: “[...] os artistas do ukiyo-e desse período desempenharam um papel principal ao prepararem os princípios do design e da composição do que agora são as tradicionais tatuagens japonesas”10. Takahiro Kitamura (2000, p. 41), tatuador japonês e autor de diversos livros sobre tatuagem, justifica: “Tatuadores copiavam os designs das tatuagens dessas gravuras e, como resultado de sua influência, a tatuagem desfrutou de grande popularidade e desenvolvimento rápido durante o final do século XVIII”. Outra interessante semelhança apontada por Donald Richie (2003, p. 41) é em relação ao público. Assim como as xilogravuras, as tatuagens afetaram primeiro e, principalmente, as classes baixas de Edo: os artesãos, os carregadores de palanquim e os gângsteres da Yakuza. Um ímpeto inicial para a popularização da tatuagem como moda foi o fato do grande número de heróis do Suikoden serem tatuados. Os artistas japoneses aplicaram com liberdade uma releitura dos heróis chineses personalizando tatuagens para dar a essas figuras um senso de valor, ameaça e emotividade. As ilustrações de Utagawa Kuniyoshi adicionaram um grande impacto visual ao colocar imensas tatuagens no corpo, além de criarem uma ambientação de conflito e melodrama por meio da postura contorcida e expressividade violenta dos guerreiros (KITAMURA, 2000, p. 50-80). Isso é possível notar na Figura 1, gravura que retrata Kumonryū Shishin. O herói é visualmente pertinente para o eixo da pesquisa, pois apresenta como característica principal tatuagens de dragões entrelaçados em seu corpo. A gravura de Utagawa Kuniyoshi, peça central de um tríptico, realizado no século XIX, mostra os companheiros Shinkigunshi Shubu e Chōkanko Chintatsu, na parte inferior da imagem, detidos pelo guerreiro Kumonryū Shishin que está prestes 559 a aniquilá-los. Os cabelos e o traje do guerreiro esvoaçam demonstrando a intensidade do golpe. O corpo desnudo do personagem revela as exuberantes tatuagens de dragões entrelaçados em sua pele. Há também feixes de fogos vermelhos espalhados sobre o fundo negro (detalhe ampliado na Figura 2). Nas tatuagens dos Yakuzas o dragão é um elemento que apareceu com enorme frequência. Em alguns casos, esse motivo foi encontrado em outras colorações como verde, cinza ou preto, posicionado em pontos de destaque como costas, tórax ou entrelaçado ao corpo do gângster, como é possível notar na Figura 3. Primeiramente, é possível trazer como aspectos semelhantes, na tatuagem e na obra mencionada, a disposição do dragão entrelaçado no braço e o design da tatuagem de grande extensão que cobre até a altura dos punhos. Outro aspecto que se pode citar são os filetes vermelhos contorcidos que aparecem nas duas imagens analisadas e representam o elemento fogo. Além desse aspecto, tanto a xilogravura ukiyo-e quanto a tatuagem tradicional japonesa apresentam como característica semelhante a falta de intenção de parecerem realistas. Não há perspectiva, nem sombreamento e volumetria exagerada. As cores das tatuagens e das xilogravuras ukiyo-e geralmente apresentam cores chapadas e opacas com as figuras em contorno preto. Tais semelhanças encontradas enfatizam o diálogo visual entre ambas as artes que se desenvolveram no período Edo. Tanto a xilogravura ukiyo-e quanto a tatuagem registraram as imagens que caracterizaram esse período onde a arte era voltada para o povo. 560 Figura 1: KUNIYOSHI, U. Tzūsoku Suikoden gōketsu hyakuhachinin no hitori (One hundred and eight heroes of the popular Suikoden all told).1827-30. Disponível em <http://www.kuniyoshiproject.com>. Acesso em 30 de mar. de 2014. Figura 2: Detalhe ampliado da figura 1. 561 Figura 3: LAITILA, J. Série Traditional Japan. 2007. Disponível em: <http://www.flickr.com/photos/sushicam/sets/72157601884105744>. Acesso em 13 de jul. de 2012. O dragão tem sua popularidade originada na China onde é elevado ao status mítico além de ser um dos símbolos orientais mais famosos. Ao contrário da cultura ocidental, o dragão na Ásia não é relacionado imediatamente com o mal, é visto como uma entidade sagrada. Na cultura japonesa ele aparece em inumeráveis lendas e contos. As associações mais comuns do dragão no design são com nuvens ou padrões de ondas que refletem sua relação com o céu e o mar (KITAMURA, 2003, p. 76). Tal aproximação é perceptível, inclusive, nas tatuagens dos gângsteres onde é comum encontrá-lo junto a esses elementos. Na Figura 3, por exemplo, o dragão é mostrado sobre esguichos de água, entrelaçado com nuvens e acompanhado de feixes de fogos vermelhos. Além da presença do dragão, outro elemento bastante recorrente nas tatuagens com influência chinesa são as peônias. A flor é um elemento popular nos naipes do baralho hanafuda. Também conhecido como hanakaruta (literalmente, “cartas de flores”) é um jogo tradicional no Japão que utiliza um baralho apenas com imagens. O hanafuda apresenta 48 cartas divididas em doze naipes. Cada naipe apresenta um conjunto de quatros cartas que são ilustradas com árvores, flores ou arbustos correspondentes a cada mês e estação do ano. Entre as imagens das cartas, há também a representação de animais como o porco, o veado, o pássaro e um inseto, a borboleta. 562 É a combinação desses motivos – de plantas semelhantes, por exemplo – que constitui a regra de um dos jogos do hanafuda, o Koi-koi, um dos mais populares. Ao conseguir uma combinação especial de cartas (yaku), o jogador pode decidir entre continuar o jogo dizendo koi-koi (pode vir) ou parar. Se a última escolha for feita, ele adquire os pontos obtidos na rodada. Se o jogo prosseguir e o oponente fizer uma combinação especial de cartas, o jogador que havia feito a combinação antes não adquire nenhum ponto. O jogo termina assim que forem atingidos 50 pontos. Dependendo das cartas distribuídas na mesa no início da rodada, os pontos podem dobrar, triplicar ou quadruplicar. Mesmo o jogador que ganhou menos partidas pode sair vitorioso, o que torna o jogo imprevisível. Somente no final do século XVIII o hanafuda surge. Embora os jogos de azar fossem proibidos nesse período, as cartas não foram banidas. O hanafuda continuou a divertir seus jogadores durante todo o período Edo (1603-1868). No final do século XIX, essas cartas se tornaram bastante atraentes como jogos de azar. Jogadores profissionais da Yakuza promoveram locais para agricultores, comerciantes, artesãos e transportadores de carga empreenderem o jogo de azar. Em troca de proteção para não serem presos ou perseguidos, os gângsteres extraíam propina dos jogadores11. A Nintendo tornou-se famosa em uma área completamente distinta dos jogos eletrônicos. Em 1889, o fundador da empresa, Fusajiro Yamauchi, criou sua própria marca de hanafuda feita artesanalmente seguindo a técnica tradicional. As cartas produzidas pela Nintendo eram as mais populares em Kyoto e fizeram tanto sucesso no Japão que a Yakuza começou a utilizá-las em seus cassinos. Foi nesse período que a Nintendo atingiu suas maiores vendas. Os gângsteres eram um dos maiores compradores do hanafuda, pois iniciavam cada jogo com um novo baralho (FIRESTONE, 2011, p. 15-17). O envolvimento da máfia japonesa em jogos de azar envolve atividades como a organização de cartas, dados e jogos de roleta (bakuchi); apostadores profissionais; e pachinko12. Já o sistema do jogo de azar cobre do lançador de dados a escalas de viagens de luxo que incluem voo, acomodação, entretenimento e anfitriãs. Entre os naipes do jogo de azar hanafuda, a peônia foi o motivo floral que apareceu com maior frequência nas tatuagens de acordo com o levantamento de 563 imagens que registrou 26 ocorrências. Os chineses consideram a árvore da peônia o rei das flores, um símbolo de boa fortuna e grande honra (BAIRD, 2001, p. 60). Apesar da existência de peônias com tonalidades suaves como o rosa claro, o branco e o lilás, nas tatuagens dos gângsteres ela é representada com cores intensas como o vermelho, o roxo, o laranja ou azul. De todas as cores, a mais encontrada nas tatuagens de peônia dos yakuzas é a vermelha que pode ser aproximada com a carta do hanafuda (Figura 4) que apresenta a mesma coloração intensa para essa flor. Na fotografia de Jeff Laitila (Figura 3), a tatuagem cobre grande parte do corpo do gângster como um traje de mangas compridas. A peônia é tatuada como se caísse naturalmente sobre a água. O impacto de seu peso contraposto à resistência aquática forma esguichos com formas que se assemelham a garras de caranguejo. O motivo floral aparece junto ao dragão que está entrelaçado ao braço do gângster. Ambos os símbolos possuem forte influência chinesa. Figura 4: Fotografia da autora. Naipes de peônias e flores de cerejeiras do hanafuda. 2012 O segundo motivo floral mais encontrado nas tatuagens foi a flor de cerejeira (sakura), encontrada cinco vezes no levantamento de imagens. A coloração rosa claro e seu tamanho relativamente pequeno trazem delicadeza a essa flor que é a mais apreciada pelos japoneses. O conceito de efemeridade é bem ilustrado pela sakura que floresce radiante, mas apresenta curta duração de vida. A flor nacional é um motivo comum na tatuagem e sugere que a vida é efêmera tanto para o guerreiro, que pode ser aniquilado em qualquer momento, como também para a cortesã cuja beleza é igualmente transitória (KITAMURA, 2003, p. 35). 564 No naipe do hanafuda a flor de cerejeira (Figura 4) é apresentada de maneira intensa com cores fortes e chapadas como o vermelho explosivo e um rosa bem distinto da cor original. Na tatuagem do primeiro plano, apresentada na Figura 5, é possível visualizar o mesmo motivo floral nos ombros e na parte central do corpo. Além desse elemento, é visível a máscara do teatro Nō sobre um fundo com sobreposição de espirais e listras que sugerem um ambiente aquático. Ainda que o motivo floral sobre a paisagem apareça grotesco com pétalas grandes em tons de laranja e vermelho, o formato da flor remete à sakura. Não só nesse caso como em outros foi bastante recorrente a representação da flor dessa maneira. Uma hipótese para a preferência da representação exuberante pode ser o fato de que a aparência grotesca da flor dê maior destaque a tatuagem. Visto que o hanafuda faz parte das atividades ligadas ao empreendedorismo da máfia japonesa e foi o jogo que batizou o nome Yakuza é possível que os elementos presentes no baralho estejam relecionados às flores nas tatuagens. Figura 5. LAI, N. Japan-tattoo-yakuza-gangsters.2013. Disponível em: <http://www.freemalaysiatoday.com/>. Acesso em 30 de mar. de 2013. Ao realizar o levantamento iconográfico das tatuagens da máfia japonesa, através da consulta de mídias brasileiras e internacionais, foi perceptível a apreensão existente por parte dos japoneses em discutirem o tema da Yakuza. Na veiculação de notícias, por exemplo, foi notável o fato dos principais jornais do Japão noticiarem menos matérias sobre a Yakuza do que a mídia estrangeira. O temor por parte dos japoneses em se envolverem em qualquer assunto relacionado à máfia pode ser um dos motivos que também podem justificar o aparecimento de um maior número de bibliografias estrangeiras discutindo o assunto. 565 Por outro lado, apesar da maior veiculação do tema através da mídia ocidental, não se pode afirmar que o que possui repercussão internacional possa ser a realidade da Yakuza. A divergência encontrada entre os principais elementos verificados no levantamento iconográfico e as tatuagens mais pedidas pelos Yakuzas na reportagem de Adriano Kobayashi pode problematizar essa questão. De acordo com o tatuador residente no Japão, os desenhos mais pedidos pelos gângsteres são dragões, carpas, deuses da mitologia budista e xintoísta. Entretanto, alguns desses elementos não foram os mesmos revelados em peso no levantamento iconográfico baseado em fotografias veiculadas na mídia e no acervo de fotógrafos estrangeiros. Entre os animais, aqueles que mais apareceram foram o dragão (31), a carpa (10), o tigre (3) e a cobra (4), totalizando 48 ocorrências. Ao cruzar os dados do levantamento iconográfico e do depoimento de Adriano Kobayashi de fato pode-se deduzir que o dragão e a carpa são elementos favoritos nas tatuagens dos Yakuzas. Todavia, a mesma lógica não pode ser aplicada no eixo de divindades e figuras lendárias. Aparece em maior destaque Tennin (12) seguida por Fudō-Myōō (7) e Kannon Bosatsu (7), totalizando 26 divindades budistas. Em contrapartida, os únicos elementos do Xintoísmo encontrados foram Raijin e Fūjin que apareceram apenas duas vezes. Nesse caso, se fossem levadas em consideração apenas as imagens do levantamento iconográfico, as divindades xintoístas não poderiam ser associadas como favoritas pelos Yakuzas. É nesse ponto que começou a se tornar aparente a divergência entre as imagens escolhidas pela mídia, por fotógrafos ocidentais e as tatuagens que de fato são adquiridas pelos Yakuzas. O que poderia ter acarretado essa grande discrepância entre tatuagens de divindades budistas e xintoístas? Seria uma consequência do acaso da escolha das fotografias? Seria pelo fato de que os outros elementos são mais familiares aos ocidentais do que os deuses xintoístas? Seriam as imagens que mais impactaram os ocidentais ou aquelas que eles mais se identificaram? A princípio, não há como trazer respostas imediatas que satisfaçam esses questionamentos, mas eles poderão ser colocados como reflexões complementares para os próximos pontos da conclusão. 566 Outro risco que pode ter permeado o levantamento iconográfico é a possibilidade de que as imagens encontradas no acervo digital de fotógrafos ocidentais podem não corresponder aos membros da Yakuza. Algumas das imagens analisadas partiram do evento Sanja Matsuri, em Asakusa, onde se reúnem um grande número de pessoas tatuadas, inclusive da máfia japonesa. Como considerar se o que é mostrado como Yakuza nessas imagens pode ser julgado apenas pelas tatuagens e as legendas colocadas pelos fotógrafos? Apesar das ressalvas, foi possível compreender o estudo da tatuagem japonesa na Yakuza através dessas discussões, do material midiático e da bibliografia. A busca pelas fontes da iconografia das tatuagens dos gângsteres revelou a circulação e a transferência de imagens entre a China e o Japão. Esse aspecto se tornou latente após a grande verificação de elementos chineses como o dragão, o tigre e a peônia presentes nas tatuagens dos gângsteres. Elementos esses que ao serem observados no campo da cultura tradicional japonesa serão encontrados em padrões têxteis, cerâmicas, leques, jogos entre outros. Sendo assim, a partir da iconografia da tatuagem dos gângsteres foi possível encontrar uma conexão com a estética japonesa que possui grande influência da China. Além desse diálogo, foi constatada outra importante relação entre a China e o Japão, mas no campo da literatura. A popularidade do Suikoden foi capaz de impulsionar a circulação de imagens com o tema da tatuagem no Período Edo. A partir das ilustrações desse romance, foi possível notar a concomitância e a conexão entre essa modificação corporal e o ukiyo-e. Foi possível perceber essa relação principalmente a partir da obra de Takahiro Kitamura (2003, p. 11): assim como personagens apareceram tatuados nas xilogravuras, muitas xilogravuras serviram como padrões para a tatuagem. A verificação dessa conexão tornou claro o motivo das tatuagens japonesas figurativas possuírem aspectos tão semelhantes com as xilogravuras ukiyo-e como no quesito do traço, da cor, das formas, do tema, do sombreamento e da iconografia. Com a aproximação entre as duas artes foi possível elaborar um estudo comparativo entre as gravuras do Suikoden e as tatuagens da Yakuza. A princípio, o aspecto que chamou a atenção para a pesquisa foi o próprio conteúdo do romance chinês que traz como protagonistas foras da lei tatuados em nome do 567 antiautoritarismo. Tanto a narrativa como o impacto gerado pelas imagens do Suikoden no campo da tatuagem foram os principais motivos que levaram à aproximação das imagens do ukiyo-e com a Yakuza na pesquisa. Foi realizado o estudo apenas com um dos heróis mais conhecidos, Kumonryū Shishin, mas a pesquisa abre margens para serem feitas análises com outros personagens. A análise da gravura de Kumonryū Shishin revelou semelhanças com as tatuagens dos Yakuzas como foi apresentado. Possivelmente o personagem pode ter exercido influência na iconografia adotada nas tatuagens dos membros da máfia japonesa, assim como o hanafuda. Por ser um jogo de azar adotado pelos yakuzas e por estampar motivos florais amplamente utilizados nas tatuagens dos gângsteres, o baralho hanafuda revelou ser uma interessante fonte para o estudo iconográfico. As flores que geralmente são associadas com a delicadeza parecem não exercer a mesma função nessas tatuagens. De um modo geral, elas são apresentadas com cores fortes mesmo que sejam distintas da coloração natural, como no caso da tatuagem de sakura na fotografia de Jeff Laitila (Figura 3). A respeito disso, o mesmo fenômeno ocorre nas cartas do hanafuda onde a coloração das flores é chapada e em cores intensas. Pode haver, nesse sentido, influência dessa iconografia nas tatuagens dos gângsteres. O que poderia elucidar a escolha de cores fortes e tamanho exagerado na representação de flores para compor a tatuagem? Uma hipótese seria o fato dos membros da Yakuza adotarem uma estética para a construção de uma imagem agressiva. Isso poderia justificar a escolha de elementos de aparência grotesca como o dragão ou os heróis do Suikoden, por exemplo, em um grupo onde a violência física pode ser um caminho para a solução. Essas observações revelaram a exaltação do corpo na máfia japonesa. Nesse sentido, qual seria a importância da tatuagem para os membros da Yakuza? Pode ser colocado como hipótese o fato de que essa modificação corporal seja uma maneira de comprovar fidelidade entre o clã. O traço inapagável da tatuagem, exceto com a realização de cirurgias, faz com que a identidade de um Yakuza seja praticamente irreversível. Além disso, a tatuagem pode ser um símbolo para adquirir status dentro da máfia, visto que pode chegar a cinco mil dólares quando completa. 568 Em suma, a pesquisa pôde mostrar a relevância da iconografia das tatuagens da Yakuza. Através da busca pelas origens dessas imagens, foi possível perceber a circulação e a transferência iconográfica em diversos níveis: entre países (China e Japão) e áreas distintas (literatura, artes plásticas, teatro e tatuagem). Desse modo, apesar de serem produtos de uma (sub) cultura, as tatuagens da Yakuza são registros que podem revelar uma longa experiência, tradição e desenvolvimento da estética japonesa. Notas 1 De acordo com uma das crenças mais aceitas, o termo é originado do pior placar no jogo de cartas hanafuda. A cada rodada, três cartas são negociadas por jogador e o último dígito é o seu total de pontos na mão. Sendo assim, a soma da combinação 8-9-3 (ou em japonês ya-ku-za) é o pior placar, pois a soma de números é totalizada em 20, porém o total de pontos corresponde ao último número, zero (KAPLAN & DUBRO, 2003, p. 13). 2 RICHIE, Donald; BURUMA, Ian. Op. cit., p. 13. 3 O Globo, Folha de São Paulo, Veja, Made in Japan, BBC, The Guardian, Tokyo-ezine, Japan Times, Yomiuri Shimbum, Mainichi Shimbum, Kyodo News Service e Asahi. 4 Anton Kusters, Jeff Laitila e Chris Rainier. 5 Corbis, Getty e Flickr. 6 MADE IN JAPAN. Tatuador de Yakuza. Disponível em: <http://madeinjapan.uol.com.br/2009/12/27/tatuador-de-yakuza>. Acesso em 22 de mai. de 2012. 7 Utagawa Kuniyoshi (1797-1861): Renomado artista da xilogravura japonesa. Retratou ícones culturais como atores do kabuki e heróis japoneses. Possui uma produção artística com temas vastos como cenas de batalha, mulheres belas (bijin) e animais míticos. 8 Katushika Hokusai (1760-1849): Um dos maiores artistas consagrados do Japão. Foi impressor e gravador de ukiyo-e. Suas séries mais famosas são Thirthy-six views of Mount Fuji, ca. 1831, e The great wave of Kanagawa, ca. 1820. 9 Tsukioka Yoshitoshi (1839-1892): Considerado por muitos como um dos últimos grandes mestres do ukiyo-e. Foi aluno de Utagawa Kuniyoshi. Trabalhou em diversos gêneros nas xilogravuras como ilustração em jornal, pinturas de mulheres bonitas (bijin), paisagem, humor e cenas históricas. 10 NAKANO, Yoshihito. The history and techniques of tattooing in Japan, in Ozuma, Kaname. Woman in tattoo. Tokyo: Tatsuma Publishing, 1995. In: KITAMURA, Takahiro. Tattoos of the floating world – ukiyo-e motifs in the Japanese tattoo. Amsterdam: Hotei Publishing, 2003, p. 17. 11 Gambling. In: KODANSHA encyclopedia of Japan. Tokyo: Kodansha, 1983. v.3, p. 5. 12 Pachinko: Jogo de azar que se assemelha a uma mistura de pinball e caça níquel. A máquina do Pachinko possui um painel com vários pinos, uma tampa de vidro e dispositivos elétricos. O jogador compra uma quantidade de pequenas esferas de metal e as usa para jogar. Essas esferas são lançadas e rebatidas nos pinos. Quando entram em locais específicos, o jogador ganha mais delas. Com as esferas novas ele pode continuar a jogar ou trocá-las por prêmios. Referências Bibliográficas ADELSTEIN, Jake. Tóquio Proibida: uma viagem perigosa pelo submundo japonês. Tradução: Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. BAIRD, Merrily. Symbols of Japan: thematic motifs in art and design. New York: Rizzoli International Publications, 2001. FELTER, Peton. Yakuza – An analysis of Japanese mafia’s legal system. 2010. 26 f. Trabalho apresentando como requisito de aprovação parcial da Disciplina Legal systems very different from ours. 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Foi educadora da 29ª Bienal de Artes de São Paulo; monitora do Curso de Formação de Professores da Região de Pimentas e seu Entorno; merchant na Photoarts Gallery e atualmente é coordenadora de cursos no Atelier Paulista e professora de História da Arte na Universidade Aberta da Pessoa Idosa. 571 A COR E A LINHA NOS JARDINS EM ESTILO KARESANSUI1 Yukie Hori - USP RESUMO: Com foco na cor e na linha em três jardins de autoria do paisagista japonês Mirei Shigemori (1814-1875) – Kishiwada-jo, 1953 (Osaka), Ryōgin-an, 1964 (Quioto) e Sekizo-ji, 1972 (Hyogo) – confrontados com o famoso Ryoan-ji, 1450 (Quioto), exemplo máximo do jardim em estilo karesansui (jardim de paisagem seca) tradicional, o estudo objetiva expandir a compreensão do jardim como obra tridimensional relacionando-o com a escultura e a instalação no contexto das Artes Plásticas. A discussão perpassa também pela leitura monocromática da pintura Zen apontando a cor e a linha como elementos compositivos inéditos na prática do karesansui e estabelecendo conexões entre a modernidade (as artes das vanguardas europeia) e a tradição (artes japonesas e chinesas) presentes nos projetos de Shigemori. Palavras-chave: karesansui, jardim de paisagem seca, Mirei Shigemori, escultura, instalação. ABSTRACT: Focusing on the color and line of three gardens by the Japanese landscape designer Mirei Shigemori (1814-1875) – Kishiwada-jo, 1953 (Osaka), Ryōgin-an, 1964 (Kyoto) and Sekizo-ji, 1972 (Hyogo) – compared with the famous Ryoan-ji, 1450 (Kyoto), upmost example of traditional karesansui (dry landscape garden), this study has aimed to expand the understanding of the garden as a three-dimensional artwork related to sculpture and installation in the context of Visual Arts. The discussion also pervades the reading of Zen monochromatic painting pointing to the color and the line as inedited composing elements in the practice of karesansui establishing, as well, connections between modernity (European avant-garde) and tradition (Japanese and Chinese arts) according to the vision of Shigemori, which are manifested in his projects. Keywords: karesansui, dry landscape garden, Mirei Shigemori, sculpture, installation 1. O cultivo de uma paisagem seca Não é por acaso que os primeiros jardins conhecidos tenham nascido no meio do deserto (na Mesopotâmia), devido a um trabalho de irrigação que pareceu fazer surgir do nada um oásis de fecundidade e frescor. O jardim realiza o mito da ilha encantada que, protegida dos ventos do cosmos e da história, torna-se a se fechar num espaço tranquilizador de sedentário [...] (RIBON, 1991: 107) Como espaço de natureza domada para o deleite e para a observação de uma paisagem ficcional, o jardim é tomado como análogo ou microcosmo da natureza2. Na imagem de uma área de flora domesticada ou “renaturalizada”, prática anunciada pela filósofa francesa Anne Cauquelin que implica em vigiar, proteger, selecionar plantas adaptadas ao clima e favorecer seu crescimento, descobrir novas espécies, o jardim seria criado como “um mundo à medida de uma atividade 572 paisagística ‘ecológica’”3. Embora a conhecida imagem do jardim de pedra japonês pareça atuar em oposição ao colecionismo botânico e à natureza pela redução a quase um único elemento compositivo, a rocha – em suas diferentes apresentações como pedra em escalas diversas, cascalho e areia, matéria inorgânica e objeto de culto desde tempos remotos na cultura nipônica –, mesmo destituída de vida4 não se contrapõe à temporalidade do desenvolvimento biológico: Nesse lugar de imobilidade e silêncio, nenhuma teatralidade; aí não se ouve ninguém; a mediação e a procura de si oscilam entre a marca do tempo (as flores, os arbustos) e a eternidade (a água e o montículo de rochas). O objeto só é necessário a contemplação do sábio: estranhamente escavada pela natureza, basta-lhe uma pedra, para entender, através de um rosário de grutas imaginárias, um circuito místico no cosmo, a fim de se tornar mais 5 leve (RIBON, 1991: 109). O estilo kare-san-sui6 枯山水, que define o jardim de pedras, é literalmente traduzido como “montanha da água seca” e pode se referir também a um “jardim de paisagem seca”7. O termo foi citado pela primeira vez no manual de jardinagem Sakuteiki eåƩ, escrito no final do século XI e considerado uma espécie de livro secreto da arte tradicional dos jardins japoneses. Nesse estilo de jardim as pedras sugerem ilhas e montanhas, enquanto os planos de cascalho ou areia aludem a cascatas secas (kare-taki ĨŎ) ou ao fluxo de água seco (kare-nagare Ĩń). Pela semelhança com a paisagem monocromática da pintura Zen esses jardins foram também chamados de suiboku sansui-ga-shiki teien Ĺ« ÌĹŞ èå (jardim em estilo da pintura suiboku)8. Embora a origem dos jardins de pedra seja historicamente incerta, sabe-se que o cascalho e a areia eram estendidos no piso de palácios e santuários xintoístas em rituais de purificação do solo, conforme dados colhidos nos primeiros registros históricos japoneses. Recorrente como parte menor de jardins de grande extensão, o karesansui se tornou uma espécie de local isolado e independente no século XVI com o auge de seu desenvolvimento no período Muromachi (1392-1573) e seu uso considerado apropriado para a prática da meditação (KOREN, 2000: 69). Nesse mesmo período, nota-se a valorização do monocromático em oposição ao rico colorido da aristocracia do período Heian (794-1185) cuja sensibilidade estética era centrada na contemplação das cores vinculadas ao kigo ½ƫ, termo 573 sazonal relacionado à observação da natureza através do transcurso das estações do ano. Tal aspecto estava vivamente presente no cotidiano da corte Fujiwara (em vestes como o kimono) e nos registros minuciosos na literatura e na pintura da época como os textos e ilustrações de Genji Monogatari ŌķŔƫ (O conto de Genji). Segundo Toshihiko Izutsu, especialista japonês em religiões orientais, o monocromático presente na pintura budista enfatizaria a importância de se perceber no mundo a existência da não-forma e da não-cor, uma realidade eterna além do fenômeno dos formatos e das tonalidades. Só pela ausência cromática seria possível uma relação mais profunda entre a visualidade e o valor estético de uma presença interna da cor. Nesse espectro, a redução da paleta ao preto e ao branco do papel traduziria, portanto, o conceito do Zen de vazio no sentido de que a cor mais fundamental é a cor que não é uma cor9. 2. Escultura Derramada: Possíveis aproximações entre o karesansui e as Artes Visuais contemporâneas No jardim karesansui os planos de cascalho ou areia fazem alusão à essência mínima da água, mas sem trazer esse elemento fisicamente. Tal aproximação sugestiva traz a possibilidade de representação até mais profundamente do que seria possível com a água em sua substância real 10 . Essa relação sugere um conceito que manifesta a ideia de contradição no princípio fundamental do Zen na representação água com seu elemento oposto11. Nesse espaço em que não seria permitida a ação da entropia, o rasteio, o desenho ou o modelado da atividade regularmente mantida por um monge ou jardineiro, deixa evidente o exercício que convém a manutenção dos significados simbólicos. Se o jardim passou a ser incorporado como ambiente para a meditação ou contemplação, também poderia ser trazido como experiência análoga à atitude do indivíduo em quarto fechado na prática do zazen ¦ū. O praticante senta-se com as pernas cruzadas, sobre a beira de uma almofada dura e desconfortável, com o corpo voltado para uma parede, olhos semicerrados em um esforço exaustivo de concentração mental para manter constante a consciência do aqui e agora na percepção por todos os cinco sentidos do tempo e do lugar onde se encontra. Nesse âmbito, pode-se sugerir que essa construção abstrata de pedras no jardim pode 574 servir também às experiências fenomenológicas. Um lugar que permite a ampliação da leitura do karesansui, no contexto da produção tridimensional das Artes Visuais (escultura, instalação, intervenção), especialmente na prática de projetos site specific visíveis nos jardim de Mirei Shigemori é o que será aprofundado a seguir. As fronteiras pouco delimitadas entre o exterior e o interior, seja na invasão da paisagem externa que completa a visão no enquadramento proposto por um jardim, ou a relação bastante ambígua entre esse local com o edifício que o contém, oferecem instrumentos importantes para pensar a criação de uma instalação cujo entorno, as escolha dos materiais e as relações não só físicas, mas perceptivas, psicológicas e das memórias com o lugar devem ser incluídos e percebidos nos procedimentos poéticos do artista. 3. Jardim Ryoan-ji (Templo do dragão da paz), 1450 O jardim de pedras do templo Ryoan-ji em Kyoto, nomeado Patrimônio Mundial da UNESCO, é um dos exemplos mais representativos do estilo karesansui tradicional. Com área retangular de 248 metros quadrados tem aproximadamente 25 metros de extensão e 10 metros de profundidade. O jardim é emoldurado por um muro baixo de barro delimitando o campo visual no nível do plano de pedriscos e permite que as copas das árvores no outro lado dessa fronteira sejam vistas complementando a paisagem miniaturizada. O plano com linhas em relevo de pedriscos é pontuado com composição de precisão matemática12 por 15 grupos de pedras irregulares e musgo, sugerindo ilhas e montanhas, em uma paisagem associada às cenas históricas da mitologia chinesa13. O acesso ao interior desse jardim é proibido, e deve ser contemplado por uma plataforma de madeira ou pelo salão no interior do templo onde cada ponto de vista configuraria uma nova paisagem, sendo impossível, porém, capturar a totalidade das pedras em um único lance do olhar. Até o século XX, foram poucas as interferências estéticas nesse estilo de jardim que se restringiu ao aumento no contraste entre as áreas de cascalho e as “ilhas” de pedras, musgo e plantas. Embora a origem do jardim Ryoan-ji não esteja definida, admite-se a autoria de Hosokawa Katsumoto (1430-1473), importante shogun (samurai) do período. O 575 jardim seria fundado com a inauguração do complexo de templos Ryoan-ji, em 1450, que incendiado durante Guerra Onin (1467-1477), foi reconstruído no final do século XV por Masamoto Katsumoto, filho de Hosokawa. Os primeiros achados com as descrições do jardim, que o situam claramente na frente do salão principal, foram constatadas somente em documentos históricos que datam dos anos de 1680 a 1682, cuja composição apresenta somente nove grupos de pedras representando os “Jovens tigres atravessando a água” 14 . Após o segundo incêndio, em 1779, o escritor e especialista em jardins japoneses, Akisato Ritō (?-1830), reconstruiu o jardim sobre os escombros dos edifícios queimados e jogados nesse espaço reconfigurando-o para quinze grupos de pedras. Atualmente é celebrado como importante ponto turístico de Kyoto. Ademais, não foram encontradas evidências de monges budistas que tenham trabalhado no jardim, além da manutenção dos relevos no leito de cascalho branco15. Assim como as pinturas suiboshi, o jardim é predominantemente cinza, como ensina os textos antigos da arte dos jardins japoneses. Os contrastes deveriam ser evitados. Lembro-me que durante visita ao Ryoan-ji, o branco do cascalho, o marrom alaranjado do muro e o verde próprio da vegetação local na estação do verão davam a impressão de reduzir a escala daquele espaço, sensação intensificada pelo grande número de visitantes naquela ocasião16. Ainda pouco familiarizada com os conceitos por trás do estilo karesansui, era natural imaginar esse lugar como um desenho de paisagem composto por um oceano seco, ilhas em alta resolução pela grande nitidez em contraste com um horizonte desfocado pelas manchas do muro e do céu de nuvens verdes. “Aparentemente simples e destituído de significados, este jardim se revela aos poucos na imaginação daquele que se entrega a seus segredos. É considerado como a mais perfeita síntese dos preceitos do Budismo Zen e permite a experiência visual e filosófica numa viagem contemplativa rumo à busca de um sentido pleno”17. 4. Mirei Shigemori e os jardins de modernidade atemporal Mirei Shigemori18 nasceu na província de Okayama em 1896, falecendo em Kyoto em 1975. Graduado em nihonga (pintura tradicional japonesa) pela Academia Nacional de Artes de Tokyo, completou sua formação acadêmica em História da Arte, Estética e Filosofia Oriental na mesma instituição. 576 Como pesquisador acadêmico publicou 81 livros, entre eles: o compêndio de 52 publicações sobre a história, a estética e o levantamento catalográfico dos jardins tradicionais do Japão; 19 livros relacionados ao ikebana (arte dos arranjos florais) e alguns outros sobre a cerimônia do chá e temas ligados à cultura tradicional japonesa além de manter em vida periódicos sobre jardins e a arte dos ikebanas. Como paisagista criou aproximadamente 250 jardins em todo o Japão. Mirei se posicionava contra os manuais de prática dos jardins japoneses populares no período Edo (1603-1868) os quais, segundo o paisagista, limitavam-se a receitas medíocres que estagnaram a prática do jardim. Também era desfavorável à imitação ou à influência dos jardins ocidentais, especialmente dos estilos francês e inglês19. O paisagista suíço e pesquisador de jardins japoneses, Christian Tschumi, atribui o conceito de modernização enunciado por Mirei como influência direta da formação acadêmica em Belas Artes (onde teve especial interesse nos estudos da arte abstrata e das ideias Modernistas) somada à memória cultural e manutenção de valores tradicionais nas crenças dos sistemas do Taoísmo, Confucionismo, Budismo Ortodoxo e Zen e principalmente Xintoísta pelo poder primordial atribuído às forças da natureza, princípio da religião do Japão20. Com esses dados em vista, seguimos pelos três jardins em estilo karesansui desenhados por Mirei Shigemori. 577 4.1 Kishiwada-jo, 1953 (Osaka): O jardim da formação das oito batalhas, do castelo Kishiwada Fig.01 Kishiwada-jo. Fotos: Yukie Hori. Mapa: TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2005. p. 37. O jardim, que integra a área do castelo Kishiwada, abandona o formato retangular e se localiza na frente da edificação principal. Normalmente os jardins karesansui são instalados no interior, atrás ou nas laterais dos edifícios. O desenho faz referência à planta baixa do projeto original do castelo construído para ser um forte ou base militar, tema que permitiu a Mirei se aproximar do episódio da história chinesa “Formação do campo de batalha óctupla”21. Configurado em três pavimentos concêntricos e irregulares, o jardim é delimitado por linhas grossas em aoi-ishi22 e concreto, além de ser preenchido por pedriscos cinzas em tons levemente avermelhados nas áreas centrais e mais frios no terceiro nível. Nove grupos de rochas aoi-ishi são espalhados nesses degraus representando animais, objetos ou fenômenos das mitologias orientais. A imagem total do jardim só é possível do alto do castelo, ponto de vista onde foi notável23 a percepção dos níveis que são acentuados pelo efeito óptico produzido pela leve diferença tonal entre os pavimentos e é reforçado pelas linhas grossas destacadas 578 pelo leve azulado em contraste com os tons de cinza do chão. Já no nível do jardim, a sensação aplanada é determinada pelas linhas diagonais convergentes que deixam também imperceptível o desnível entre os pavimentos e, ao mesmo tempo, parecem recortar a paisagem que o estilo karesansui tenta reproduzir. Tive a impressão de que estava diante de uma colagem. O “Acampamento do capitão”, grupo com o maior número e as maiores pedras no centro do jardim, pareceu ganhar peso e força no desenho concêntrico da cena pela estranha tonalidade azulada e cinza escura do mineral, em contraste com a superfície cinza avermelhada sutilmente rastejada em relevo que sugere a superfície da água. As cores de matizes bastante sutis pareceram-me claramente visíveis naquela tarde de céu encoberto. No projeto desse jardim previa-se ainda que as pessoas pudessem caminhar sobre as linhas e pular por entre as estruturas que demarcam os três níveis da construção tornando-o primeiro karesansui de entrada livre. Mirei pensou ainda em diversas possibilidades de uso como exposições ao ar livre ou palco para apresentações performáticas24. “Minha ideia foi criar um desenho referindo-se às origens do castelo Kishiwada, de uma vista aérea, algo que nunca havia sido feito antes”25. Nessa sentença, o autor reforça seu apreço pela modernidade além de demonstrar a notável autoconsciência da radicalidade com os padrões do estilo karesansui até então presentes nos jardins como o Ryoan-ji. Nesse viés, é perceptível a crença de Mirei na liberdade da criação individual como força motriz para a continuidade da tradição. 579 4.2 Ryōgin-an Hōjō Teien, 1964 (Kyoto): O eremitério do dragão cantante26 Fig.02 Ryōgin-an Hōjō Teien. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel: Birkhäuser Architecture, 2007. p.116-121. O projeto do Ryōgin-an Hōjō Teien foi criado como um trajeto que compreende três jardins no entorno do templo Ryōgin-an, parte do complexo de templos Tōfuku-ji, em Kyoto. No início do percurso, na entrada do tempo Ryōgin-an, estende-se o jardim Leste onde, à primeira vista, destaca-se a superfície de cascalhos avermelhados pontuados por pedras aoi-ishi. O cenário representa a cena da lenda de Daimyō Kokushi, famoso senhor feudal Kokuji, antigo morador do templo27. Nas pedras aoi-ishi há uma criança (pedra central), protegida por dois cachorros (duas pedras de tamanhos intermediários) cercados por três lobos (pedras 580 menores). O vermelho intenso da superfície, que acentua a dramaticidade violenta da cena, cria uma reação impactante quando o visitante se aproxima do jardim seguinte, o Sul. Tal ambiente apresenta uma área retangular, de maior extensão do que o primeiro jardim, coberta unicamente por shirakawa suna (areia do rio branco) e é delimitado por cercas de bambu decorado. Nesse jardim o visitante pode se sentar em uma área destinada à contemplação. Há uma vista marítima, clara, absolutamente plana e silenciosa onde é possível descansar os olhos e deixar a mente vagar pelo vazio. Esse jardim se encontra entre dois espaços cheios de ação. No jardim Oeste, Mirei formata nuvens em cascalho de tons cinzas escuros e claros delineados por concreto de linhas quase brancas criando diferentes planos de cor. O grupo de pedras aoi-ishi forma o desenho de um dragão que parece se tridimensionalizar, pelo contraste com fundo monocromático bastante pictórico, e ganhar movimento a partir do deslocamento do observador. O jardim Oeste seria um dos primeiros em estilo karesansui que, ao invés de reportar-se ao mar, voltaria-se para o céu que, por sua vez, refletiria-se nos oceanos28. 4.3 Sekizo-ji, 1972 (Hyogo): Os deuses protetores dos quatro pontos cardeais Fig.03 Sekizo-ji. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2005. p. 78-79. 581 Na ocasião do convite para construção de um jardim na entrada do santuário, o Sekizo-ji era um templo abandonado. Originalmente foi construído dentro de uma floresta próxima a uma iwakura Ïj (pedreira considerada morada dos deuses e sagrada no Xintoísmo) que estava escondida pela mata, mas voltou a se tornar visível durante a renovação do edifício e limpeza da área. Inspirado nessa história Mirei buscou referências no conceito chinês shinshin soo (os quatro deuses protetores das quatro direções do céu). Com quatro áreas definidas por quatro cores predominantes que simbolizam os quatros pontos carteais e suas respectivas entidades protetoras na cosmologia chinesa, o jardim se divide em: [4] LESTE: Com superfície em cascalho cinza escuro, centralizada por uma pedra aoi-ishi de forma alongada que simboliza o dragão. É associado à cor azul e ao elemento madeira; [3] SUL: Associada à cor vermelha e ao elemento fogo, a fênix, representada nos grupos de rochas avermelhadas e pontiagudas, está pousada sobre o leito de areia alaranjada. A ave é considerada a guardiã do fogo; [2] OESTE: Apresenta predominância do branco, cor associada ao elemento metal. Uma grande rocha branca de formas curvilíneas e relativamente lisas representa um tigre deitado sobre uma cama de areia branca. O animal é considerado o guardião dos ventos; [1] NORTE: Sobre pedriscos cinza escuro, descansa uma tartaruga, animal associado à cor preta e considerado o guardião das águas. É representado por uma ilha formada por um grupo de pedras escuras arredondadas e musgo. O jardim é delimitado por muro de bambu decorado com ideogramas. As quatro divisões são demarcadas por passarelas retilíneas que dão acesso ao templo. Tal percurso me fez recordar os jardins que antecedem a entrada para a casa da cerimônia do chá também por conta do movimento de caminhada que faz parte do 582 ritual. Numa leitura pictórica, o jardim me pareceu bastante “figurativo” e me fez associá-lo a um manga (histórias em quadrinhos japoneses) ampliado onde cada quadro apresenta uma personagem em seus respectivos planos de ação. 5. Algumas considerações finais Na discussão dos três projetos de Mirei é possível aferir a combinação de elementos compositivos tradicionais do estilo karesansui e a inclusão de procedimentos pessoais, pontuados por Tschumi 29 , que inserem elementos, até então inéditos, nos nove séculos de história dessa categoria de jardim: - O uso do concreto e suas técnicas de tingimento; - O uso de cascalho, areia e rocha em cores além do cinza; - A representação do céu ou das nuvens; - Motivos nas cercas ou muros baixos que emolduram os limites dos jardins; - Motivos espiralados. É importante mencionar que as cores nos jardins de Mirei estão presentes enquanto matéria e não como superfície cromática aplicada. As pedras, os cascalhos, a areia, o musgo e o concreto passam a estabelecer relações mais profundas e complexas entre as partes do jardim e o seu entorno. Embora a presença marcante das cores no estilo karesansui seja uma inovação, ao mesmo tempo, é possível perceber a influência da palheta chinesa do "Sistema de graduação das 12 classes de boinas”30 como guia das escolhas materiais no caso das quatro divisões do jardim Sekizo-ji, por exemplo. Trata-se, portanto, da aproximação da cor na sua apresentação tradicional. A inclusão de uma planta baixa – como no jardim do castelo Kishiwada ou da história do lugar onde o jardim é instalado como no caso do jardim Leste do tempo Ryōgin-na –, os aspectos “mais modernos” nos projetos de Mirei, a meu ver, convivem harmonicamente com as referências históricas das mitologias antigas. Fiel 583 às tradições culturais de seu país e atuando criticamente como historiador, pesquisador e realizador, Mirei lança mão dos procedimentos transgressores e das influências ocidentais como na sua já mencionada aproximação com as artes plásticas, particularmente, das ideias modernistas. Tschumi também atribui ao ikebana uma das principais fontes de inspiração do paisagista pelos ideais de renovação ou modernização. Da dedicação do paisagista à prática frequente e disciplinada do arranjo floral, desde jovem em Okayama até o final da sua vida, Tschumi extraiu a visão da arte e da natureza de Shigemori. Em trechos do texto de autoria de Mirei, “Exploração – A arte do arranjo floral”31, que integra as Obras completas sobre os arranjos florais japoneses, vol.632, publicadas de 1930 a 1932, seguem-se a versões abaixo: Pela destruição da natureza, e não somente fisicamente, que nós devemos pautar a arte. As linhas e as cores devem ser guiadas pela pura 33 criatividade . É verdade que na arte de arranjo de flores a coisa mais importante é trazer a natureza para a vida. Mas isso não significa necessariamente trazê-la viva de uma forma realista. Trazer a natureza para a vida significa traduzi-la dentro de mim. E, a fim de torná-la uma coisa de mim mesmo, tudo ou parte da natureza precisam ser transformados: transformado para campo da natureza, para o campo da arte, enfatizando a distinção entre a natureza e a arte. Para trazer a natureza para a vida, as linhas e as cores da natureza 34 são feitas para as linhas e cores de arte . Mirei não apenas propõe, como é característica da visualidade japonesa, uma aproximação não mimética com a natureza, mas vê a abstração ou a geometrização das formas como caminhos para uma natureza sugerida que se tornaria viva pela arte. A abstração, nesse sentido, proveniente também da aparente modernidade atemporal (seu grande objetivo de vida), é exercitada rompendo limites na criação dos jardins karesansui. Isto é algo que parece condizer com as palavras do pintor cubista George Braque: “Em arte, o progresso não consiste na extensão, mas no conhecimento dos limites. A limitação dos meios determina o estilo, cria nova forma e impulsiona a criação”35. Notas 1 Este artigo é parte da pesquisa em desenvolvimento no Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - ECA/USP, sob orientação do Prof. Dr. Marco Garaude Giannotti. 2 Natureza será definida ao longo do texto como as ações do mundo, ou a existência das coisas do mundo, sem a interferência humana. 584 3 CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marco Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 167 4 Embora tenhamos a predominância dos materiais inorgânicos nos karesansui tradicionais, é comum a presença de musgo, pinheiro ou outras árvores não floríferas, arbustos cuidadosamente podados. É notável que esses vegetais conservam-se verdes a maior parte da vida sendo, portanto, mais próximos das rochas do que dos bordos ou das cerejeiras, consagrados como símbolo da efemeridade ou marcas da passagem do tempo. 5 Segundo o filósofo Michel Ribon, o jardim chinês e japonês seria oposto ao Jardim de Versalhes que apresenta um “[...]vasto espaço de prazeres ordenado que a aristocracia dos intendentes e dos príncipes reserva para si, o da Corte e do monarca, cujo poder deve ser teatralizado para aumentar seu prestígio. Tornando-se parque, o jardim, prolonga para o exterior o espetáculo do poder que se dá no interior do aparato faustoso do castelo” (RIBON, op. cit., p. 109). 6 Neste trabalho respeitaram-se as normas do sistema romanizado Hepburn para os termos em língua japonesa e os nomes pessoais foram descritos da forma ocidental (prenome seguido de sobrenome). 7 A expressão “jardim zen” não seria adequada devido à ocorrência de jardins em estilo karesansui em palácios, castelos, templos xintoístas e residências de importantes samurais. Conforme esclarece Wybe Kuitert, professor do departamento de Estudos Ambientais da Universidade Nacional de Seul, no livro Themes in the History of Japanese Garden Art (2002), não há menção ao karesansui como expressão da filosofia Zen na literatura dos jardins japoneses escritos nos séculos XVII, XIX ou XX. Os jardins presentes em templos e residências de samurais foram instalados para criar um “ambiente de aprimoramente cultural”. 8 Verbete karesansui adaptado da consulta do dicionário online Jaanus. Disponível em: <www.aisf.or.jp>. Acesso em 05 de nov. de 2013. 9 IZUTSU, Toshihiko. The elimination of color in far eastern art and philosophy. In: Color Symbolism. Six Excerpts from the Eranos Yearbook 1972. Dallas: Spring Publications, 1972. p. 176-177. 10 Referência traduzida do trecho em inglês: “The [kare-san-sui] Garden is an attempt to represent the innermost of water, with out actully using water, and to represent it even more profoundly than would be possible with real water”.In: KOREN, Leonard. Gardens of Gravel and Sand. California: Stone Bridge, 2000. p.68. 11 Op. cit, p.32. O pesquisador norte americano de design e estética japonesa Leonard Koren esclarece que o termo “jardim Zen” (Zen garden) surgiu pela primeira vez em 1935 no livro publicado em língua inglesa One Hundred Kyoto Gardens, de autoria da jornalista havaiana Loraine Kuck, e acrescenta que o “Zen não estaria presente no projeto de criação do jardim, como resultado de insights ou ações espontâneas associadas as ‘artes Zen’ da pintura, arquearia ou da cerimônia do chá. O desenho de um jardim requer planejamento e um extensivo período de construção. [...] Muitos jardins não foram projetados ou construídos por praticantes do Zen”. Sugere-se, portanto, que a relação do Zen com o jardim de pedras seria uma proposição ocidental, sem fundamento em pesquisa histórica e criticada por gerações seguintes de estudiosos dos jardins japoneses. Não coloco em questão as relações do Zen na criação dos jardins karesansui, sendo relevante para minha pesquisa, o modo como um espectador percebe esses espaços. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Japanese_rock_garden>. Acesso em 05 de nov. de 2013. 12 Encontrei alguns artigos científicos (Gestalt e outras leituras com base na geometria matemática) referentes aos efeitos visuais detectados nos elementos compositivos do jardim Ryoan-ji e análises do layout de outros jardins em estilo karesansui. Essas bibliografias não serão referenciadas nesse trabalho, cuja discussão se foca na relação das cores na observação do jardim. 13 Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Ryōan-ji>. Acesso em 5 de jan. de 2014. 14 Em inglês: “Tiger Cubs Crossing the Water”. 15 KUITERT, WYBE. Themes, Scenes, and Taste, in the History of Japanese Garden Art. XXX p. 114-124, 293-295. 16 Minha primeira visita ao Ryoan-ji foi no verão de 2008. 17 KALOUSTIOAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês - A magia do jardins de Kyoto. São Paulo: Editora K, 2010. p.156. 18 Ao 19 anos, Shigemori adotou o prenome Mirei em homenagem ao pintor francês Jean-François Millet (1814-1875) cujos trabalhos naquela época eram populares no Japão. Tomarei a liberdade de me referir ao paisagista pelo primeiro nome, fato que me interessou por revelar o espírito progressista e visionário do paisagista. 19 TSCHUMI, Christian. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel: Birkhäuser Architecture, 2007. p.18. 20 Ibid., 44-47. 21 Do inglês “Eight-fold battlecamp formation”, evento cuja liderança foi marcada pela importante personagem mítica do século III, Zhuge Liang. In: TSCHUMI, Christian. Mirei Shigemori – Modernizing the Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2010. p.35. 22 Rochas azul-esverdeadas, comuns na ilha de Shikoku no sul do Japão. São declaradamente as preferidas de Mirei Shigemori. 23 Em visita ao jardim em março de 2013. 24 Ibid., 38-40. 25 SHIGEMORI, Mirei. Nihon Teienshi Taikei, p. 97, aput TSCHUMI, ibid., p. 42. 26 Em inglês: “The Chanting Dragon’s Hermitage”. 27 Com fonte em TSCHUMI (2007), op. cit. p.118: A lenda conta que Kokushi, uma criança estranha, dotada de poderes sobrenaturais e concebido maneira mística quando pequeno, foi abandonado em uma 585 montanha onde era costume se abandonar e deixar a morte, crianças que contraíram doenças graves. Nesse dia, um monge avistou dois cachorros, um preto e um branco que seguiam o jovem Kokuji, que atacado em duas ocasiões por de lobos selvagens, foi defendido pelos os dois cães. Ao presenciar essas cenas, o monge conclui que a criança deveria possuir dons especiais e a leva para Kyoto, criando-a como seu discípulo. Kokushi se tornaria mais tarde um importante monge em Kyoto. 28 Referências sobre jardim Ryôgin-an Hôjô Teien, ibid., p. 117-123. 29 Ibid., p. 64-65. 30 Sistema de graduação das 12 classes de boinas: sistema de cor de origem chinesa que orientaria a hierarquia da guarda imperial pela cor dos uniformes, reconhecida e atribuída segundo classificação cromática baseada nas seis qualidades confucionistas e nos seis elementos míticos chineses. Essas cores foram conhecidas no Japão como kinjiki Ūƍ (cores proibidas) com seu uso autorizado e exclusivo a funcionários do governo das mais altas patentes. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Twelve_Level_Cap_and_Rank_System>. Acesso em 15 de out. de 2013. 31 Em inglês: “Exploration — The Art Flower Arrangement”. Ibid., 36. 32 Em inglês: “Complete Works of Japanese Flower Arrangament”. Ibid., 36. 33 “By destroying nature, and not just physically, we must establish the art. The lines and colors of art must be guided by pure creativity.”, ibid. 34 Em inglês: “It is true that in art of flower arrangement the most important thing is to bring nature to life. But this doesn’t necessary mean bringing it alive in a realistic way. Bringing nature to life means to translate it inside myself. And in order to make it a thing of myself, all or part of nature has to be transformed: transformed from the field of nature to field of art, emphasizing the distinction between nature and art. To bring nature to life, the lines and colors of nature are made into the lines and colors of art.”, ibid. 3535 BRAQUE, George. “Pensando e Reflexões sobre a Arte”. In: CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2. ed. p. 264. Referências Bibliográficas BRAQUE, George. Pensando e Reflexões sobre a Arte. In: CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 2a Ed. CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. Tradução de Marco Marcionilo. São Paulo: Martins Fontes, 2007. IZUTSU, Toshihiko. The elimination of color in far eastern art and philosophy. In: Color Symbolism. Six Excerpts from the Eranos Yearbook 1972. Dallas: Spring Publications, 1972. KALOUSTIOAN, Sarkis Sergio. Jardim Japonês - A magia do jardins de Kyoto. São Paulo: Editora K, 2010. p.156. KOREN, Leonard. Gardens of Gravel and Sand. California: Stone Bridge, 2000. KUITERT, WYBE. Themes, Scenes, and Taste, in the History of Japanese Garden Art. Honolulu: University of Hawaii Press, 2002. RIBON, Michel. A arte e a natureza. Tradução Tânia Pellegrini. Campinas: Papirus, 1991. RICHIE, Donald. A Tractate on Japanese Aesthetics. Berkekey: Stone Bridge, 2007. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori: Modernizing the Japanese Garden. Berkeley: Stone Bridge, 2005. TSCHUMI, CHRISTIAN. Mirei Shigemori - Rebel in the garden. Basel: Birkhäuser Architecture, 2007. Sites ATSUMI INTERNATIONAL SCHOLARSHIP FOUNDATION. Disponível em: <http://www.aisf.or.jp>. 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Yukie Hori É artista visual e mestranda no Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA/USP. 587 O DISPLAY E AS QUESTÕES CULTURAIS: O CASO DOS GUERREIROS DE XI´AN Ana Paula dos Santos Salvat - UNIFESP RESUMO: O estudo do display das obras de arte é uma abordagem recente que consiste em investigar o modo de mostrar uma peça ou uma coleção em uma exposição e as mensagens associadas a essa visualização, as quais atribuem um significado que conduz o olhar do visitante. O conceito de "arte" tal qual aplicamos hoje é uma criação ocidental do final do Renascimento. No entanto, engloba-se nesse conceito tudo o que foi produzido antes desse período bem como a cultura material de povos não-ocidentais, ou seja, artefatos que não foram feitos para serem obras de arte, mas que, hoje, são considerados como tais. Ao exibir essas peças no Ocidente, o desafio é remover sua própria lente cultural e deixar que cada povo fale por si com seus próprios conceitos. Esta pesquisa pretende levantar as questões referentes ao display dos soldados de terracota de Xi´an, em exposições no Ocidente, em comparação com a visualidade em seu local original, com destaque para o conceito e a prática da reconstrução e da cópia de elementos da cultura material na China. Palavras-chave: display, exposição, cópia, China, Exército de Terracota ABSTRACT: The study of the display of works of art is a recent approach of investigating the way to show a piece or a collection in an exhibition and the messages associated with this view, which ascribe a meaning which leads the visitor's eye. The concept of "art " as we apply today is a creation of the end of the Renaissance in western world. However, this concept includes all that was produced prior to this period as well as non-western peoples material culture, in other words, artifacts that were not meant to be works of art, but today, they are considered as such. When viewing these pieces in the West, the challenge is to remove our own cultural lens and let each people speak for themselves with their own concepts. This research intends to raise issues relating to the display of the terracotta warriors in western exhibitions comparing them with the visuality in their original place, with emphasis to the concept and practice of reconstruction and copying elements of material culture in China. Keywords: display, exhibition, copy, China, Terracotta Army O presente estudo pretende abordar os diferentes tipos de display aos quais os Guerreiros de Terracota de Xi´an são submetidos, desde seu contexto original de produção na China e suas especificidades culturais, até suas aparições no Ocidente por meio de exposições museológicas. Apesar de surgirem outros temas relacionados ao mausoléu do Imperador Qin Shi Huang Di, como a questão do realismo das figuras ou os prováveis motivos da construção do complexo funerário, a ênfase recairá sobre as implicações decorrentes dos diversos modos de mostrar as peças, e da cópia como uma questão cultural oriental. 588 Introdução ao estudo do display O contato do público com artefatos e obras de arte de outras culturas e épocas ocorre, sobretudo por meio das exposições, cujo formato atual teve origem no Século XVIII com o advento dos museus. No entanto, tais mostras não são absolutamente neutras ou ingênuas, mas preparadas para conduzir o visitante a um “modo de ver” proposto por meio da mediação, da informação textual e do modo de apresentação do objeto e sua relação com os demais. O display é justamente o “modo de mostrar” uma peça ou uma coleção e as mensagens associadas a essa visualização, intencionais ou não, estando intimamente ligado ao contexto cultural de um determinado local em uma determinada época, regido por questões sociais, políticas e econômicas. Essa abordagem é recente na História da Arte e tão importante que, pela primeira vez, o The Getty Reserarch Institute dedicou dois biênios consecutivos (2009/2010 e 2010/2011) ao estudo do display. Os textos de apresentação dos Programas Acadêmicos trazem reflexões sobre o conceito: Mostrar um objeto é afirmar que ele é digno de ser visto. (...). A criação de determinadas condições de visualização reúne ideias e objetos, criando narrativas que atribuem significados de modo que nossa experiência com qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam de acordo com o modo de exposição. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2009, tradução nossa) Display é uma força motriz no mundo da arte, reunindo ideias e objetos e criando narrativas que atribuem significados. Nossa experiência com qualquer objeto e o significado que apreendemos dele mudam com os contextos sociais, políticos, econômicos e culturais da sua exibição. Em alguns casos, os objetos só se tornam obras de arte em virtude de serem mostrados [como tais]. (THE GETTY RESEARCH INSTITUTE, 2010, tradução nossa) Desta forma, o conceito de display está diretamente associado a exposições e museus. No entanto, sua análise pode ser estendida aos períodos anteriores à própria noção de arte, como entendemos hoje. Conforme afirma Susan Vogel (1991, p. 191, tradução nossa),"quase nada exposto nos museus foi feito para ser visto neles. (...). De alguma maneira, atribuímos à arte ou aos artefatos de todos os períodos os nossos próprios valores". Essa afirmação é essencial para a compreensão do que se vê nas instituições. Em 589 museus de arte ocidental moderna e contemporânea pode-se de dizer que grande parte dos objetos exibidos aspiravam aquele local. No entanto, os museus históricos ou os etnográficos, ou mesmo todos aqueles que guardam e expõem objetos anteriores ao século XV e/ou de povos não-ocidentais, reúnem coleções de peças funcionais de determinadas épocas e regiões. Além dessas peças não terem sido feitas para museus, a segunda parte da afirmação de Vogel é igualmente importante e destaca a ação do olhar contemporâneo, e todas as questões culturais que o forma, sobre o objeto. Introduzir um objeto, seja ele qual for, em um museu ou numa exposição, é, por princípio, reterritorializá-lo, ou seja, implica na retirada do objeto de seu local original de produção ou de funcionalidade e na inserção do mesmo em um outro contexto, o museu, ou seja, um espaço artificialmente criado para recebê-lo, conservá-lo, estudá-lo e relacioná-lo com outras peças da mesma coleção ou de uma mesma exposição. Desta forma, a partir da musealização, cria-se uma nova mensagem por meio do modo de mostrar o objeto ou a coleção. Esse novo modo de apresentar um ou vários artefatos reflete os conceitos de quem concebe essa exposição. Partindo da premissa de que os objetos não foram feitos originalmente para serem expostos em museus, a mensagem que se passa não é a originalmente concebida por quem os produziu. No entanto, é primordial que essa "intenção original" seja conhecida pelo espectador para evitar ideias equivocadas a respeito da origem e do percurso dos objetos vistos. De fato, nenhuma exposição é neutra, cada elemento escolhido é carregado de significados que produzem efeitos entre si, com os objetos, com a arquitetura, com o visitante. O historiador da arte britânico Michael Baxandall considerou que uma exposição seria um campo onde três agentes ativos jogam um jogo diferente num mesmo lugar. Esses agentes são: o autor do objeto, o idealizador da mostra e o visitante. O primeiro agente, o autor, é o que "compreende sua cultura de maneira mais imediata e espontânea do que qualquer outro (incluindo o idealizador da exposição e o visitante)" (BAXANDALL, 1991, p. 35, tradução nossa) e, portanto, o objeto produzido é fruto de um contexto intrínseco a ele. O segundo agente, o curador, ou idealizador da exposição, tem como propósito montar uma mostra instrutiva sob a rubrica de uma teoria da cultura. Por fim, o terceiro agente é o 590 espectador, o visitante, o qual quer ver objetos de interesse visual de outra cultura e entendê-los. O seu modo de olhar é influenciável pelo modo de mostrar. Nessa perspectiva, pretende-se apresentar os diferentes modos de olhar os Guerreiros de Xi´an a partir dos diferentes modos de mostrá-los, bem como discutir a questão da produção de suas cópias no contexto do intercâmbio das culturas oriental e ocidental. Os Guerreiros de Terracota de Xi´an As esculturas dos Guerreiros de Terracota em tamanho natural são peças tumulares feitas por ordem de Qin Shi Huang Di, que unificou a China e proclamouse o primeiro imperador da Era Qin em 221 a.C., tendo falecido em 210 a.C. Sua obsessão pela imortalidade e controle levou-o à construção desse complexo fúnebre para si, iniciado logo após sua ascensão ao trono e que demorou cerca de 40 anos para ser finalizado (ASIAN ART MUSEUM, 2013), segundo escritos do historiador Sima Qian (ca.145 - 95 a.C.). A região do túmulo, descoberta por acaso por lavradores locais em 1974 em Xi´an, capital da Província de Shaanxi, foi explorada apenas em parte, pois estende-se por mais de 90 km², mas calcula-se que já foram descobertas 1.900 peças de um total previsto de 8.000 (ASIAN ART MUSEUM, 2013). Em 1979 foi instituído no local o Museu do Exército de Terracota, o qual recebe cerca de 5 mil visitantes por ano (NUWER, 2013) que observam não apenas guerreiros, mas também acrobatas, dançarinos, músicos, carruagens e cavalos: O exército de terracota foi construído para proteger o Imperador na vida futura e supervisionar questões militares. Mas, recentes descobertas provaram que o Primeiro Imperador estava preocupado com sua administração civil após a morte. Em 1999, onze acrobatas e homens vigorosos foram encontrados perto no monte da tumba, os quais eram designados para entreter o Imperador na vida após a morte. Oficiais civis e escribas de terracota foram encontrados em Outubro de 2000, e, um ano mais tarde, um pássaro, um ganso em tamanho natural, cisnes e gruas de bronze (THE BRITISH MUSEUM, 2007, tradução nossa). Os guerreiros são as figuras mais numerosas e possuem características tidas como individuais e realistas1. Há, no entanto, muitas teorias sobre o realismo das peças, e Ladslav Kesner chama a atenção para as desproporções e certos exageros em partes dos corpos, bem como para as posturas e gestos das figuras de acordo com a função de cada personagem (KESNER, 1995, p. 118). Quanto aos rostos, 591 Kesner (1995, p. 120, tradução nossa) afirma que "enquanto certas figuras mostram um notável grau de individualidade, a maioria dos rostos podem ser melhor descritos como um conjunto de unidades expressivas e representativas pré-fabricadas", ou seja, as peças possuem "aparência de individualidade sem sua substância, realismo sem retrato" (KEIGHTLEY, 1991 apud KESNER, 1995, p. 120, tradução nossa). Além das diferenças fisionômicas, a diversidade entre as peças ocorre sobretudo pela variedade e detalhamento nas roupas, acessórios e penteados: Há exemplos impressionantes de realismo visual na arte chinesa antes do exército de terracota de Qin; mas não há precedente para esse massivo desenvolvimento de verossimilhança, especialmente evidente na produção de artigos de vestuário e peças de armadura e adornos. Cintos e ganchos, botas e sapatos, fechamento de colarinho, coques e tranças são intransigentemente reproduzidos de maneira plástica. (KESNER, 1995, p. 118, tradução nossa) O sítio arqueológico de Xi´an é um grande campo de estudos e a cada período são anunciados novos achados, sejam na área da arqueologia, da conservação ou da história da arte, por exemplo. Há três pontos abertos de escavação do Exército de Terracota e, novas descobertas são feitas de tempos em tempos: "a primeira escavação formal do sítio durou seis anos, de 1978 a 1984 e produziu 1.087 figuras de argila. Uma segunda escavação em 1985 permaneceu por um ano mas foi logo interrompida por razões técnicas" (LIE, 2010, tradução nossa), embora Brook Larmer (2012, p. 115) também acrescente que "um operário roubou a cabeça de um guerreiro e foi executado ali mesmo". A última delas iniciou-se em 2009, e em 2012 foi anunciado o desenterramento de 310 peças, dentre as quais, "100 soldados de terracota e cavalos de guerra, dois conjuntos de carruagens, bem como algumas armas, tambores e um escudo" (MORE..., 2012, tradução nossa), sendo que esses últimos nunca haviam sido encontrados antes em nenhum dos pontos de escavação. Recentemente, o britânico Lukas Nickel, da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, publicou o artigo "O primeiro Imperador e a escultura na China" (2013) pontuando o aparecimento súbito da escultura representando seres humanos em tamanho natural na China, sem precedente similar, a partir do interesse do Imperador Qin Shi Huang Di por essa manifestação artística, a qual "pode ter sido resultado do contato com o mundo contemporâneo 592 Helenístico [século III a.C.]" (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa), uma vez que naquele século havia influência grega na Ásia Central, em especial, na Índia: Durante a vida do Primeiro Imperador, o reino Greco-Bactriano de Diodoto abrangeu toda a Ásia Central, do Jaxartes ao Indus, incluindo o Vale de Fergana, e a cultura Helenística (e a escultura Helenística) floresceram não apenas na distante Europa, mas dentro do alcance do crescente império chinês. (NICKEL, 2013, p. 413, tradução nossa) Nickel (2013, p. 442, tradução nossa) menciona ainda que "as esculturas encontradas na tumba do Primeiro Imperador da China permanecem isoladas na história da arte chinesa", devido ao seu caráter particular. Outra descoberta foi a respeito do colorido que as figuras de terracota tinham originalmente. Em algumas peças é possível verificar vestígios de cor, mas o contato com o ar rapidamente desprendeu os pigmentos da argila. No entanto, recentemente foram encontrados soldados bem preservados: Uma escavação que durou três anos no mais famoso sítio de Xian, o fosso 1, produziu mais de uma centena de soldados, alguns com feições pintadas, incluindo cabelo preto, faces rosadas e olhos castanhos ou negros. Os mais bem preservados foram achados no fundo do fosso, onde uma camada de lama, criada por inundações, funcionou como uma espécie de tratamento cosmético, que se estendeu por mais de 2 mil anos. (LARMER, 2012, p. 115) Esse fato modifica a imagem comum que se tem do conjunto em cor de terra e permite criar imaginativamente uma nova visão do grupo em cores. Um grande exército colorido feito para ser enterrado, uma ostentação escondida dos olhos humanos. Display dos Guerreiros: da necrópole ao museu A primeira questão a respeito do grande mausoléu de Xi´an é justamente que ele foi feito para não ser visto. E assim permaneceu por mais de dois mil anos, desde seu completo enterramento até o início de sua descoberta em 1974, quando, então, tem-se revelado para o mundo como um impressionante sítio arqueológico e campo de pesquisa. Quem visita o local de um ponto de vista panorâmico tem oportunidade de vislumbrar a extensão territorial e a grande quantidade de peças, ou seja, obtém 593 uma imagem de um conjunto que emerge de dentro da terra. Essa visão privilegiada só pode ser experienciada pessoalmente por aqueles vão até o Mausoléu do Primeiro Imperador Qin, inscrito como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura em 1987 (UNESCO, 19922014). No entanto, na década de 1980 começou-se a organizar exposições em museus ocidentais com pequenos grupos de Guerreiros de Terracota, sejam sozinhos ou em conjunto com outras peças dentro de diversos contextos da cultura chinesa, ampliando o acesso do público às peças. O primeiro lugar a mostrar essas peças fora da China foi a Art Gallery of New South Wales na cidade de Sydney, Austrália, em 1983 (TERRACOTA..., 2010). A Europa recebeu-os pela primeira vez por meio de uma exposição na Suécia em 1984, que voltou a mostra-los em 2010, no Museu da Ásia Oriental, em Estocolmo, em comemoração ao 60º aniversário do estabelecimento de relações diplomáticas entre China e Suécia (FANG, 2010). Finalmente, eles chegaram à América em 1985 numa mostra realizada no Instituto de Artes de Minneapolis, Estados Unidos (MINNEAPOLIS INSTITUTE OF ARTS, [2012]). Vinte anos após a primeira exposição do Exército de Terracota fora de seu local original, eles chegaram ao Brasil. Entre 21 de fevereiro e 8 de junho de 2003, o Pavilhão Lucas Nogueira Garcez (Oca) no Parque Ibirapuera, São Paulo, recebia centenas de peças oriundas de 18 museus de Shaanxi e do Museu do Palácio Imperial da Cidade Proibida, entre as quais treze esculturas de terracota (onze guerreiros e dois cavalos) para a mostra "Os Guerreiros de Xi´an e os tesouros da Cidade Proibida"2 vista por 817.782 pessoas, que fizeram dela a exposição mais visitada do país3. Esse evento foi fruto de acordos políticos de cooperação bilateral, assinados em 2001, entre Brasil e China, que iniciaram suas relações diplomáticas em 1974. Nesse contexto de exposições museológicas, a espacialidade muda a visualidade das peças. Evidentemente perde-se a visão do conjunto do local original, mas, por outro lado, as peças são observadas em sua individualidade, com uma proximidade que permite a apreensão dos detalhes, impossíveis de serem notados com tanta acuidade à distância no sítio arqueológico. 594 A museografia das exposições é variável, mas um fator primordial é a proteção das frágeis esculturas, o que leva os conservadores, muitas vezes, a colocarem-nas sob cúpulas de vidro individuais, como foi feito na exposição em São Paulo. Em outros locais, como na Itália, em 2010, os guerreiros, sem cúpulas, foram agrupados sobre uma plataforma baixa na Curia Julia, Fórum Romano, próximos a antiguidades locais, na mostra "Os dois impérios: a águia e o dragão", a qual celebrava duas grandes potências do passado: Roma e China (BALLESTRAZZI, 2010). Apesar de mais restritiva à primeira vista, as cúpulas permitem uma maior aproximação e uma vista de 180º das peças, enquanto a base limita a visualização de certas partes das esculturas, apesar de não existir nenhum anteparo visual entre os olhos e a obra. Os tipos de guerreiros selecionados dependem da curadoria de cada mostra, mas, em geral o que se observa é que as escolhas sugerem certa variedade, enfatizando as diferenças entre eles e trazendo à tona o tema da individualidade e do realismo, já abordados no item anterior. A questão da reconstrução como ato de preservação no Oriente A China é uma civilização não-ocidental milenar, "a mais antiga das culturas ainda vivas" (SULLIVAN, 1971, p. 10), onde arte e vida se misturam. Uma característica essencialmente oriental é a preservação da cultura material mediante a produção de cópias, ato reverente de manter sua aparência, seu material e seu modo de produção. Prática comum na China, no Japão e em outros povos, a reconstrução remete a uma visão cíclica do tempo e da preservação dos costumes, da alimentação e do sistema social por séculos: As dinastias ascendem e caem, são substituídas por novas, mas como a Cidade Proibida emergindo de seu último incêndio, permanecem fundamentalmente as mesmas: cada novo grupo governante mantém o "mandato do céu". Na Era Imperial, os chineses contavam os anos pelas dinastias, de modo que o tempo recomeçava a cada uma que se renovava (STILLE, 2005, p. 73). No entanto, a produção de cópias é impensável no Ocidente, especialmente no campo da conservação e restauro de obras de arte, e até mesmo considerada como fraude. E essa é uma questão na qual se insere, diretamente, o Exército de Terracota: 595 Quando Michele Cordaro, diretor do Instituto Central de Conservação Italiano, foi visitar o famoso exército de guerreiros de terracota em Lintong, nos arredores de X´ian, ficou em estado de choque com o que aconteceu: seus colegas chineses o levaram diretamente do antigo sítio arqueológico para uma fábrica que estava produzindo réplicas modernas dos soldados do túmulo do imperador (STILLE, 2005, p.71). Os Guerreiros de Xi´an são peças frágeis e de grande valor econômico e a China tem limitado a quantidade deles que saem do país, fato destacado nas reportagens sobre as exposições das peças em diferentes países ao redor do mundo. Em 2012, por exemplo, ao divulgar a abertura da exposição "Tesouros Chineses" no Museu do Palácio de Topkapi, em Istambul, Turquia, o Jornal Daily News afirmou que "de acordo com a lei chinesa, é proibido levar mais de cinco soldados de terracota para fora do país" (CHINESE..., 2012, tradução nossa). No ano seguinte, o Museu de Arte Asiática de São Francisco, EUA, anunciou a exposição "Guerreiros de Terracota da China: o legado do primeiro Imperador", apresentando "dez figuras de terracota em tamanho natural - o número máximo permitido fora da China numa única exposição" (ASIAN ART MUSEUM, 2013, tradução nossa). Anos antes, em 2007, o Museu Britânico, em cooperação com alguns museus norte-americanos, organizou uma exposição itinerante de dois anos intitulada "O primeiro imperador: o exército de terracota", a respeito da qual um artigo na Revista do Instituto Smithsonian, em Washington DC, anunciava a participação do maior número de Guerreiros de Terracota fora da China, admitindo a presença de réplicas de peças de bronze: Além de mostrar descobertas recentes, as exposições apresentam a maior coleção de peças de terracota já mostrada fora da China. A estatuária inclui nove soldados dispostos em formação de batalha (oficiais armados, soldados de infantaria, em posição de pé e arqueiros ajoelhados), bem como um cavalo de terracota. Outro destaque é um par de carruagens de bronze, cheias de detalhes, de três metros de comprimento, cada uma, puxadas por quatro cavalos de bronze. (Demasiado frágeis para serem transportadas, as carruagens são representadas por réplicas). (LUBOW, 2009, tradução nossa) Quando a exposição foi para o High Museum, em Atlanta, o museu norteamericano também divulgou que era "a maior coleção de figuras que deixou a China" (BALL, 2008, tradução nossa). No entanto, o episódio mais controverso ocorreu na Alemanha, em 2007, quando o Museu de Etnologia de Hamburgo recebeu a exposição "Poder da Morte", organizada pelo Centro de Artes e Cultura Chinesas (CCAC), com oito Guerreiros de 596 Terracota, dois cavalos e sessenta peças menores. A questão polêmica foi a divulgação de que os guerreiros eram cópias. O diretor do Museu de Hamburgo disse não saber que as peças não eram originais e que a CCAC havia mostrado um certificado de autenticidade das peças. Dois anos antes, a mostra havia acontecido na cidade de Leipzig com a clara divulgação de que os guerreiros não tinham dois mil anos. Autoridades da cidade de Xi´an confirmaram que, na época, a única permissão dada para empréstimo de peças originais para exposição em locais distantes foi para o Museu Britânico, na mostra, já mencionada, que ocorria no mesmo ano. O caso foi considerado um crime no mundo da arte (CONNOLLY, 2007). Quanto à exposição no Brasil, com curadoria de Cristiana Barreto e Luís Donisete Benze Grupioni, e inaugurada em 20 de fevereiro de 2003 com a presença do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, não houve menção à existência de cópias e o número total de peças divulgado variou conforme a fonte. Na edição eletrônica da Revista Época (OLIVEIRA, 2003) falou-se em mais de 350 peças, enquanto Edemar Cid Ferreira, Presidente da BrasilConnects, entidade organizadora da exposição no Brasil, escreveu em seu site que vieram 260, e que a lei chinesa só permitia a saída de 140 obras (FERREIRA, 2011). De qualquer forma, a presença de treze peças do exército de terracota, sendo onze guerreiros e dois cavalos, ultrapassa qualquer limite de quantidade de obras originais a deixar a China, conforme mencionado anteriormente em outras exposições. Conclusão Desde que foram despertados de seu sono milenar os Guerreiros de Xi´an atraem grande atenção. As exposições museológicas tornaram o acesso do público a essas peças mais amplo, pois ocorrem em diversas partes do mundo. No entanto, a experiência visual no sítio arqueológico tem um impacto que nenhuma exposição reproduz, pois é possível contemplá-lo em visão superior como conjunto que se estende à distância, o que permite dimensionar sua amplidão. As mostras temporárias apresentam poucas peças, as quais são dispostas em vitrines ou plataformas que as deixam praticamente no mesmo nível visual do visitante, permitindo a apreciação de seus detalhes e enfatizando sua dimensão humana. Desta forma, a produção das peças de maneira individual e distinta é muito melhor 597 contemplada não em seu local original, mas no ambiente construído pelas mostras, ou seja, se no sítio tem-se a percepção do poder do Imperador, na exposição, contempla-se o trabalho humano do artesão. No que se refere à produção de cópias das peças, seriamente executadas com habilidade pelos chineses, a obsessão do Ocidente pela autenticidade da matéria de seu patrimônio histórico e artístico torna a questão bastante polêmica. Devido às restrições da lei chinesa quanto à exportação temporária das obras e pela própria fragilidade delas, algumas das exposições devem ter apresentado réplicas, sem que o visitante soubesse ou mesmo pudesse notar a diferença. Esse fato levanta a questão da possibilidade de fruição da obra e da apreensão de suas características, o que não é um debate exclusivo dos Guerreiros de Xi´an, mas está presente também em obras manipuláveis ocidentais contemporâneas, como nos Bichos, de Lygia Clark, por exemplo. No entanto, a exposição das réplicas respeita o contexto cultural tipicamente oriental de produção de cópias, o que "tem sido tradicionalmente parte importante do treinamento artístico na China - encarado como uma espécie de reverência, em vez de falta de originalidade"4 (STILLE, 2005, p. 74), e que tem seu valor para estudo, afinal, o copista foi quem melhor observou a peça. Além disso, como notou Michele Cordaro, entre o original e a cópia, ambos feitos pelos chineses, "ninguém consegue distingui-los" (STILLE, 2005, p. 70). As constantes descobertas que surgem com o contínuo trabalho de escavação em Xi´an e os temas levantados com o estudo do local e das peças, como os que foram aqui abordados, mesmo que polêmicos, produzem conhecimento em várias áreas da atividade humana, fazem do Exército de Terracota um assunto constante na mídia, e, com isso, garantem que se cumpra o último desejo do Imperador Qin Shi Huang Di: sua imortalidade. Nota 1 Os soldados foram representados em diferentes patentes e graduações de acordo com a roupa e adornos nas cabeças. 2 De fato, o título unificado refere-se a duas exposições concomitantes: "5 Mil Anos de Civilização: Relíquias de Shaanxi e os Guerreiros de Xi´an" e "Tesouros da Cidade Proibida: Símbolos da Autoridade Imperial". A redução do título tornou mais prática a divulgação do evento e foi adotado no Guia de Visitação da exposição, mas, nos catálogos (um para cada mostra) foram mantidos os títulos oficiais, os quais denotam os dois grandes núcleos da exposição: Shaanxi e Pequim. 598 3 A exposição sobre a China na Oca teve o maior público em um único edifício, pois a "Mostra do Redescobrimento" (2000) teve um público total de 2,1 milhões de pessoas, mas abrangeu três edifícios dentro do Parque Ibirapuera e durou 6 meses (MOSTRA..., jun. 2003). 4 No mesmo texto, Alexander Stille cita o pesquisador Ken DeWoskin, professor de estudos chineses da Universidade de Michigan, o qual explica as duas palavras que a língua chinesa tem para cópia: Fang Zhipin e Fu Zhipin. A primeira "é o termo mais aproximado do que chamamos de reprodução - uma réplica que se pode comprar em lojas de museus -, já Fu Zhipin é uma cópia de alta qualidade, algo de valor que pode ser estudado ou colocado em um museu" (STILLE, 2005, p. 74). Referências Bibliográficas ASIAN ART MUSEUM. China´s Terracotta Warriors: the first emperor´s legacy. São Francisco, 2 jan. 2013. Disponível em: < http://www.asianart.org/about/press-releaseterracotta-warriors>. Acesso em: 28 jan. 2014. BALL, M. Exhibit: chinese terra cotta army wins in Atlanta. Nola.com, Atlanta, 23 nov. 2008. Disponível em: < http://blog.nola.com/millieball/2008/11/exhibit_chinese_terra_cotta_ar.html>. Acesso em: 29 jan. 2014. BALLESTRAZZI, C. I due imperi. L´aquila e il dragone. Osservatorio mostre e musei, Pisa, [dez.] 2010. Disponível em: < http://mostreemusei.sns.it/index.php?page=_layout_mostra&id=804&lang=it&complete>. Acesso em 11 mar. 2014. BAXANDALL, M. 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Embora tenha exposto seus trabalhos em galerias e museus de dezenas de países do Ocidente e do Oriente, desde o período em que aqui viveu até os dias de hoje, só houve cerca de 10 exibições de seu trabalho e apenas uma de suas obras figura nos acervos de museus nacionais. Os registros dessas exposições são escassos, seu imenso jardim chinês foi desapropriado e inundado para a construção de uma represa, a memória da passagem desse importante artista, 30 anos após sua morte, está em vias de se apagar. O presente artigo visa reunir e organizar os registros disponíveis das exposições de Zhāng em museus e galerias do Brasil, provas da aproximação desse artista que nunca aprendeu o português, mas que através de sua obra se comunicou com o país que escolheu para viver e que, infelizmente, até hoje ignora sua existência. Palavras chave: Zhāng Dàqiān, Chang Daí-Chien, Exposições, Brasil. ABSTRACT: Considered by many as one of the most important Chinese traditionalist painters of the XX century and reaching billionaire numbers in some of the most important auctions in the world, Zhāng Dàqiān ( ) still unknown in our country, even if he has lived 17 years in the city of Mogi das Cruzes, where he painted important works of his career and construed his famous “Eight Virtue Garden” ( ). Although he had exhibited his pieces in galleries and museums of many countries from East and West, since the period that he lived here up unto now, there were approximately 10 exhibitions of his work and only one of his pieces figures in a public collection. The registers of these exhibitions are scarce; his immense Chinese garden was expropriated and flooded for the construction of a dam. The memory from the passage of this important artist 30 years after his death may soon fade away. The present article aims to gather and organize the available data of Zhāng Dàqiān exhibitions in museums and galleries from Brazil. These exhibitions are evidence of the relationship of this artist with the country that he chose to live, even without ever learning Portuguese, and where his history unfortunately still remains neglected. Keywords: Zhāng Dàqiān, Chang Daí-Chien, Exhibitions, Brazil. Introdução Pintor, poeta, calígrafo, escritor, paisagista, colecionador, estudioso, filósofo, professor, literati e viajante, são só alguns dos adjetivos que classificam Zhāng Dàqiān¹, sem dúvida um dos maiores artistas do século XX, considerado um dos maiores pintores chineses dos últimos 500 anos, dono de um imenso legado artístico 601 e de uma história de vida curiosamente espetacular. Tendo vivido por 17 anos no Brasil, onde produziu algumas das obras mais importantes e esteticamente inovadoras de sua carreira, além de ter exposto em importantes museus e galerias de nosso país. A ideia desse artigo surgiu da necessidade de reunir informações e materiais disponíveis em acervos, bibliotecas, publicações acadêmicas e jornalísticas sobre essas exposições, visando uma melhor organização das referências necessárias para que outras pesquisas possam ser desenvolvidas e tendo como objetivo a preservação da memória da passagem desse grande mestre pelo Brasil, além da divulgação de sua obra para o público, gerando massa crítica sobre o artista, a pintura chinesa e a arte Oriental como um todo. Zhāng Dàqiān nasceu em 1899, em Neijing, na província de Sichuan, China, aprendeu a desenhar com a mãe e os irmãos, que também eram artistas. Em 1916, logo após passar três meses em poder de sequestradores, foi para Quioto, no Japão, onde aprendeu tinturaria e tecelagem industrial por cerca de 3 anos. Em seguida, voltou para a China, mudando-se para Xangai, onde aprofundou seus estudos em escrita chinesa de diversas épocas com os calígrafos Nung-Jan e Li Mei-An, nessa época, também teve contato, por meio de seus professores, com as obras de Shitao e Bada Shanren (Zhu Da), dois dos maiores pintores clássicos chineses e referências assumidas do artista, de quem passou a reproduzir as obras até desenvolver sua técnica a um nível que seus trabalhos se tornaram quase indistinguíveis dos velhos mestres (TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 381 ; JOHNSON, 1999). Seguindo sua filosofia de viajar buscando acumular um repertório daquilo que o artista chamava “paisagens mentais” (DAQIAN, 1965), Zhāng Dàqiān iniciou o que seria uma longa série de viagens pela China que durariam uma boa parte de sua vida, conhecendo a natureza e as obras de arte que o influenciariam ao longo de sua carreira. Foi durante essas peregrinações que, em 1940, visitou as grutas de Mo Gao em Dunhuang, famosas por manterem conservadas centenas de esculturas e pinturas murais de arte budista, compreendendo um período que vai desde meados da dinastia Han (206 a.c – 220 d.c) até a dinastia Tang (618 d.c-907 d.c). Zhāng Dàqiān passou um período de 2 anos reproduzindo as obras-primas presentes nas 602 grutas, em um trabalho que resultou em cerca de 110 cópias e a publicação de um livro sobre sua experiência. As exposições dessas obras foram as que o tornaram um artista mundialmente conceituado, mesmo já tendo realizando exposições de grande repercussão desde 1925 no Japão, Coréia, França e diversas partes da China (HSIAO & ROSS, 2011; TEIXEIRA LEITE, 1999). O Brasil e o “Jardim Ba De” Por volta de 1950, após ter conhecido grande parte da China, Zhāng Dàqiān começa uma longa série de viagens pelo mundo, embora retornando regularmente a sua terra natal, se estabelece por longos períodos em países como a Índia, onde estudou as grutas de Ajanta e expôs em Nova Deli e, mais tarde, na Argentina, onde viveu por cerca de um ano e expôs em Buenos Aires, até se mudar definitivamente com toda sua família, por volta de 1953, para a cidade de Mogi das Cruzes, no interior do estado de São Paulo, onde adquiriu uma enorme área de 6 Alqueires (cerca de 145,2 Km²) no distrito de Taiaçupeba. Zhāng Dàqiān daria inicio a um longo projeto de construir um imenso jardim tradicional chinês que nomeou como "Ba De Yuan" (sð ), do chinês, o "Jardim das Oito Virtudes". Para entender a obra de Zhāng Dàqiān e sua passagem pelo Brasil, precisamos refletir sobre o que era e o que significou o Jardim Ba De para o seu trabalho. Na estrada da Capela do Ribeirão, Km 18, localizava-se a entrada do sítio, um enorme corredor de bambuzais que dava acesso à imensa propriedade, onde o artista organizou ordenadamente enormes pedras naturais do Brasil nas quais entalhou, simbolicamente, ideogramas chineses, também mandou cavar um imenso lago que nomeou como "Wu Ting Hu", do chinês, “Lago dos cinco pavilhões”, que foi possível graças a um pequeno desvio no curso de um dos rios que cruzava o imenso terreno. O artista também plantou diversas espécies de plantas chinesas e brasileiras, seguindo a antiga paisagística chinesa aliada a seu gosto pessoal, manteve, também, uma enorme criação de Penjing trazidos do Japão e árvores frutíferas das quais, aliás, não colhia as frutas por razões estéticas, sendo notáveis seus numerosos pés de caquis, também plantou diversas espécies de flores que serviam 603 de inspiração para muitas pinturas, além de vários animais, dentre eles, os bugios, pelos quais tinha muito apreço e costumava carregar nos ombros, tema frequente em muitas de suas obras. O pintor chegou a criar 10 macacos dessa espécie, o maior número que jamais criara (GEISSMAN, 2008), também haviam 2 cães da raça São Bernardo que foram trazidos da Suíça pelo próprio artista e que são provavelmente os primeiros exemplares desses animais no Brasil (BARROS FERREIRA, 1966, p.10; TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 379; HSIAO e ROSS, 1999). Zhāng Dàqiān também construiu ali seu ateliê, denominado “Pavilhão Da Feng”, do chinês “Grande Vento”, onde produziu uma parte muito importante de suas obras que seriam expostas em diversos países nas suas constantes viagens para o exterior e onde desenvolveu um estilo de pintura inovador. Com problemas de visão devido a diabetes, Zhāng Dàqiān passou a adaptar sua produção às condições que lhe foram impostas, sintetizando cada vez mais as pinceladas e chegando, muitas vezes, a resultados abstratos e às vezes, até mesmo, esparramando a tinta sobre o papel, formando manchas, a partir das quais dava continuidade às pinturas, que às vezes eram mescladas a elementos figurativos. Alguns críticos chegaram a comparar essa estética com o expressionismo abstrato que se desenvolvia no Ocidente, Zhāng Dàqiān, no entanto, respondia dizendo que se tratava apenas de uma antiga técnica tradicional chinesa conhecida como “PoMoFa” ou “Pocai”. (TEIXEIRA LEITE, 1999, p. 385) Esse ateliê, e também sua própria residência foram construídos com influência da arquitetura chinesa, transformando o lugar em um pequeno pedaço da China em pleno Brasil. É necessária a reflexão de que, em momento algum, o artista e sua obra se separam seu jardim, sua filosofia de vida, seus poemas e suas pinturas, além da própria figura do mestre, a longa barba e o peculiar jeito de se vestir dos literati chineses, andando sempre com um cajado à mão. Avistar o artista era um verdadeiro choque cultural em plena década de 60 no Brasil. Em sua propriedade, além de alguns discípulos e membros da comunidade chinesa no Brasil, Zhāng Dàqiān recebeu diversos jornalistas, artistas, curiosos e personalidades brasileiras, sempre muito abertas à nossa sociedade. Foram os registros dessas pessoas, fruto da simplicidade e boa vontade do mestre, que nos permitiram imaginar como era grandioso e importante o local onde ele passou 17 604 anos de sua vida e que, infelizmente, foi desapropriado e inundado para a construção da represa de Taiaçupeba. Zhāng Dàqiān, que na época, também possuía uma propriedade de menor porte em Carmel, no estado da Califórnia, mudou-se em definitivo para os EUA, levando consigo sua família e toda sua imensa coleção de arte, que além de seu próprio trabalho, incluía obras de diversos períodos da história chinesa e até mesmo de artistas como o espanhol Pablo Picasso, que havia conhecido na década de 60, durante uma de suas muitas viagens (HSIAO e ROSS, 1999, p. 94; MONTEIRO, 1960; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1966; FERREIRA, 1966; DIÁRIO DA NOITE, 1969). VI Bienal e o início das exposições Brasileiras Quando a primeira exposição com obras de Zhāng Dàqiān aconteceu no Brasil em 1961, o artista já morava em Mogi há cerca de 8 anos. Em 1960, já havia notícias de jornal sobre o curioso fato de um dos mais importantes artistas chineses estar morando em um sítio no Brasil, incluindo uma grande reportagem escrita pelo jornalista Jeronimo Monteiro para a Folha da Manhã(Vide figura 1), relatando como encontrou o “Jardim Ba De” por acaso, enquanto buscava um certo chinês que criava macacos por indicação do Zoológico de São Paulo (MONTEIRO, 1960).Zhāng Dàqiān que, naquela época, havia completado 60 anos de idade e já era um artista mundialmente famoso, inclusive tendo exposto naquele mesmo ano em Genebra e Paris, ocasião na qual teve algumas pinturas adquiridas pelo MAM de Nova York. Quando se inaugurou a “VI Bienal de São Paulo”, com curadoria de Mário Pedrosa e obras de importantes artistas de diversos países como o brasileiro Alfredo Volpi, o francês Eugène-Louis Boudin, o alemão Kurt Schwitters, dentre vários outros, talvez tenha sido uma feliz coincidência que a delegação do Museu Nacional de Taiwan, responsável pelas obras chinesas da exposição, tenha trazido de seu acervo 7 pinturas de Zhāng Dàqiān. Feliz coincidência, pelo fato de que diversas matérias de jornais da época, ao tratar da VI Bienal e das obras da delegação chinesa, citavam as obras do artista mas, em momento algum, que o mesmo morava em nosso país. Nem mesmo no catálogo da exposição, onde um texto conta com 605 detalhes a vida e a trajetória do mestre chinês citando, inclusive, o nome de seu estúdio, não há nenhuma informação sobre os anos em que o mestre já vinha vivendo e produzindo no Brasil. Talvez ofuscado por artistas ocidentais, a imprensa brasileira simplesmente ignorou que um dos mais importantes artistas da exposição, morava há apenas poucas horas de distância de onde era realizado o evento Um ano depois, em 1962, o Embaixador da China no Brasil homenageou os organizadores da exposição e os participantes chineses, citando inclusive sua importância internacional, porém, também não citou sua vida no Brasil. No catálogo publicado na época, podemos encontrar detalhes da sala da delegação chinesa, que contou com obras de 8 artistas, além de Zhāng Dàqiān, que possuía uma sala especial com 7 Pinturas: 2 de suas grandiosas composições de Lótus, com 6 painéis cada; “O Barco”, que conta com um poema onde se pode ler “Escrito no Pavilhão do Grande Vento” (talvez o motivo pelo qual o nome de seu ateliê tenha sido citado no catálogo da exposição); 3 Paisagens tradicionais com poemas e inscrições; e uma tela retratando um Bugio, todas pertencentes ao Museu Nacional de Taiwan. (HOFFMANN, 2011; MUSEU DE ARTE MODERNA, 1961; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1961, 1962a, 1692b; CORREIO PAULISANO, 1960; JORNAL DO COMÉRCIO, 1961). Entre julho e agosto de 1963, o importante fotografo chinês Long JingShan veio ao Brasil visitar seu amigo de longa data, com quem havia fundado, por volta de 1927, a Sociedade Huang, que congregava amantes da natureza (TEIXEIRA LEITE, 1999, p.383). O fotógrafo veio também admirar e conhecer o Jardim Ba De, onde registrou alguns trabalhos que seriam futuramente publicados em dois livros, alguns deles, inclusive, em parceria com Zhāng Dàqiān Nessa ocasião, Long JingShan expôs algumas de suas obras no Rio de Janeiro e no Foto Cine Clube Bandeirante, onde foi nomeado membro honorário e homenageado em uma cerimônia solene. Seu amigo, Zhāng Dàqiān, entretanto, ainda demoraria 3 anos para receber suas primeiras homenagens em terras brasileiras. Nesse meio tempo, o artista teria suas obras expostas em Hong Kong, Malásia, Singapura, Tailândia, Nova Iorque, Alemanha e Inglaterra, tendo inclusive vendido muitas de suas obras para importantes acervos, incluindo uma composição de lótus em 6 painéis, vendida por 140 mil dólares, maior preço já pago por uma pintura chinesa (LAI e KIN-KEUNG e EDWIN, 2000). 606 Figura1. Zhāng Dàqiān com macaquinho aos ombros em seu “Jardim Ba De”, foto tirada na ocasião da reportagem de Jerônimo Monteiro, originalmente publicada na “Folha da Manhã” em 01/07/1960. Fotografia de Jerônimo Monteiro. MASP e MNBA: A Descoberta de Zhāng Dàqiān Às 18 horas do dia 29 de março de 1966, Zhāng Dàqiān finalmente realizou sua primeira exposição individual em nosso país, no Museu de Arte de São Paulo, na época ainda localizado na Rua 7 de Abril. A imprensa e a sociedade brasileira finalmente haviam notado sua presença. Assis Chateaubriand, dono dos “Diários Associados”, e que praticamente comandava a imprensa na época, além de ser um dos fundadores do MASP, homenageou o pintor em uma cerimônia de inauguração em sua residência, conhecida como a “Casa Amarela”. Contando com a presença de diversos figurões da sociedade paulistana, o embaixador da China no Brasil ChiHsien Mao, magnatas, diplomatas, personalidades e, inclusive, personagens ligadas 607 aos anos de chumbo da ditadura militar que, dali poucos anos viveria seu auge de repressão e censura como o Coronel Amary Kruel e Henning Boilesen, provavelmente interessados em ver de perto esse dissidente da China Maoísta. Na cerimônia de inauguração da exposição ocorreu outro fato digno de nota, durante a cerimônia, Zhāng Dàqiān doou uma de suas valiosas “Paisagens Suíças” para o acervo do MASP, fato que foi celebrado pela imprensa da época como um grande acontecimento. Estava, assim, inaugurada a exposição, contando com 23 obras da coleção particular do artista, algumas delas produzidas em Mogi e já apresentando a estética inovadora da tinta espirrada no papel. Eram elas: “Ink Play”; “Montanha de Nuvens”; “Montanha e Barco a vela”; “Pescando sob o Rochedo”; “Visitando amigos na montanha de outono”; “Montanha na Primavera”; 5 “Paisagens Suíças”; “Montanha Omei”; “Garganta Wu sobre o Rio Yangtze”; “Retiro do poeta TuJu”; “Subindo as alturas no nono dia do nono mês”; “Pinheiro Velho”; “AutoRetrato aos 30 anos”, “Cascata no lago Geneva”, “Montanha Hwang”, “Pico da montanha Ynmen”; “Lótus Branco”; e “Passeio ao longo do rio observando as flores de ameixeiras”, que foi adquirida por Assis Chateaubriand e doada ao acervo da Pinacoteca de Porto Alegre. Após a exposição, o artista foi assunto de diversas reportagens e matérias de revistas, o Jardim Ba De passou a ser frequentemente visitado e Zhāng Dàqiān deu início a uma série de exposições no nosso país (O DIÁRIO DE SÃO PAULO, 1966; DIÁRIO DA NOITE, 1966; O ESTADO DA GUANABARA, 1966). Logo após a exposição realizada no MASP, em 3 de Maio de 1966, outra exposição individual de peso foi inaugurada, dessa vez no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Denominada “Chang Daí-Chien: Grande Pintor da China Contemporânea”, a exposição prova que o artista finalmente havia adquirido reconhecimento em nosso país. O museu carioca contou com 36 obras do grande mestre, 13 a mais que o MASP, sendo a maior exposição realizada pelo pintor no Brasil. A cerimônia de inauguração foi presidida pelo embaixador chinês ShaoChang Hsu e contou com a presença de diversas personalidades diplomáticas, jornalistas, estudiosos e curiosos em geral, tendo cobertura da mídia carioca (v. Figura 2). Na ocasião foi publicado um catálogo com uma pequena biografia do 608 artista, além de uma introdução do embaixador Chang-Hsu, na qual se pode ler a seguinte passagem: É desejo sincero do próprio Chang Dai-Chien e de todos os seus compatriotas-admiradores que através da presente exibição aqui no Rio de Janeiro, a mesma consiga transmitir uma mais ampla e melhor apreciação do que há de melhor na arte chinesa, a fim de contribuir para um maior Inter fluxo cultural entre os dois países. (MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, Catálogo de Exposição,1966) No catálogo, também foram publicadas reproduções em preto e branco de 4 obras e a relação das pinturas expostas. Eram elas: “Montanha na Primavera”; “Montanha sob a Chuva”; “Vale Solitário”; “Poço d’Água ao por do sol”; “Bambus”; “Precipício Fragoso e Lago Límpido”; “Eremita”; ”Montanha Solitária antes das chuvas”; “Dois Picos no Ocaso”; “Riacho Tranquilo e a cascatinha”; “Casa Velha na Montanha Deserta”; “Picos Maravilhosos” ;”Legumes”; “O Velho e os Crisântemos”; “Imagem invertida da montanha num lago solitário”; “Pescadores no rio Stang”; “Moradores a entrada de um vale”; “Rochedos Fragosos ao Crepúsculo; 2 obras retratando Peônias; 5 de suas “Paisagens Suíças”; “Barco a vela no desfiladeiro Wu no rio YangTze”; “Ancião com pinheiro e rochedo”; “Lótus Branco”; “Petúnias”; “Lótus na chuva”; “O Eremita e o Pinheiro”; “Dois Anciões em cima da montanha Huang”; “Cascata no Outono”; “O Pico supremo de Heng-Shan”; e “Um claro da floresta no outono”. Essa exposição no MNBA gerou grande repercussão da imprensa da época (JORNAL DO COMÉRCIO, 1966; CORREIO DA MANHÃ, 1966; MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, 1966). 609 Figura 2. Zhāng Dàqiān na abertura de sua exposição no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro em 1966. Foto publicada originalmente no jornal “O Estado da Guanabara” no dia 04/05/1966. Um ano depois, no dia 27 de Junho de 1967, às 18 horas, foi a vez dos 4 discípulos, que vinham estudando a técnica do velho mestre e convivendo com ele no Jardim Ba De, inaugurarem a primeira exposição. Eram eles: Shang Yiu-Cho, Wong Tan-Tan, Sun Chia-Chin e Shen Chieh, também conhecida como Judy Shen, que vive até hoje no Brasil e cedeu gentilmente uma entrevista para o desenvolvimento desse artigo. A exposição “4 Pintores Chineses” contava com 16 obras, 4 de cada artista. Na ocasião, cada discípulo doou uma obra para o acervo do museu, sendo elas: “Flor de Lótus” de Shang Yui-Cho; “O Pescador” de Shen Chieh; “O Gibão” de Sun Chia-Chin²; e “Mestre Passeando” de Wong Tan-Tan, todas elas doadas por Assis Chateaubriand para o MAAC de Campina Grande, durante sua campanha de “Museus Regionais” e que hoje integram o acervo dessa Instituição. Nesse mesmo ano, o artista realizaria uma importante exposição com os traçados de Dunhuan no Museu Nacional de Taipé (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1967). 610 Exposições comerciais: MAM e Galerias particulares No dia 21 de Junho de 1968, às 19:00 horas, dois anos após a sua última exposição no Brasil, iniciava-se a primeira exibição de caráter comercial de Zhāng Dàqiān, na galeria paulistana Atrium, localizada na Rua São Luis, onde foram expostos e disponibilizados para venda 18 trabalhos, dentre eles “Pescando na Primavera”. Na ocasião, o Jornalista José Geraldo Vieira escreveu um pequeno texto de caráter poético sobre o mestre para a “Folha de São Paulo”, e o jornalista Geraldo Ferraz escreveu para o “O Estado de São Paulo” um texto de análise e apresentação das obras do pintor. Nesse mesmo jornal, no dia 20 de junho, foi publicado um pequeno texto com o título “Mestre Chinês Expõe Amanhã”, em que o autor relata uma visita ao Jardim Ba De, ocasião na qual o velho mestre teria comentado que escolhera o Brasil para viver graças a algumas semelhanças com a sua terra natal, como o clima, a alimentação e também o espírito pacífico do povo. Irônica coincidência, naquele mesmo ano estaria proclamado o Ato Institucional Número 5 – AI-5, dali para frente o país viveria um dos momentos mais violentos de sua história (VIEIRA, 1968; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1968). As próximas exposições demoraram 3 anos para acontecer, nesse meio tempo Zhāng Dàqiān realizou exposições em Taiwan e nos EUA, onde construiu uma propriedade de menor porte denominada Choupana Bi Hua. Em 9 de Janeiro de 1969, o jornalista Barros Ferreira publicaria uma grande reportagem sobre a vida do artista e o Jardim Ba De, na revista “O Cruzeiro”, intitulada “O Fabuloso Mundo de Chang Dai-Chien”, na qual descreve detalhes do Jardim Ba De e de um banquete do qual participou, além de uma série de fotografias de alta qualidade (FERREIRA, 1968). No ano de 1971, já com 72 anos, realizou uma exposição com 2 dos seus discípulos que ainda estavam trabalhando no pavilhão do Grande Vento, o Professor Sun Chia Chin, que na época lecionava mandarim na USP (WAY NEVES LIMA,2012), e Paulo Chang, filho do mestre. Dessa vez a exposição aconteceu no Museu de Arte Moderna, o MAM, localizado no Parque do Ibirapuera. A mostra teve início às 19:00 horas do dia 12 de janeiro, nessa exibição, que também possuía caráter comercial. Zhāng Dàqiān e seus discípulos expuseram 55 quadros, com valores entre 400 e 6.000 cruzeiros, além de 5 obras que o mestre, como relataram 611 os jornais da época, “só cederia a colecionador muito interessado”. Na cerimônia de inauguração Zhāng Dàqiān não pode comparecer por problemas de saúde, como escreveu Tavares de Miranda em sua coluna para a “Folha de São Paulo” (DE MIRANDA, 1971; DIARIO DO GRANDE ABC 1971; FOLHA DA NOITE, 1971; CORREIO BRASILIENSE, 1971; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1971). Naquele mesmo ano, aconteceria mais uma exposição uma galeria comercial, dessa vez na “The Chelsea Art Galleries” localizada no número 1530 da Rua Augusta, contando com 21 obras que variavam de 100 x 80 cm a 300 x 200 cm, com preços entre 3.000 e 30.000 cruzeiros. A mostra, patrocinada pelo Embaixador Chinês Fung Sung-Chu, foi inaugurada no dia 27 de outubro e teve publicado, na ocasião, um pequeno convite com uma reprodução de uma das obras expostas, além de textos do escritor Lin Yutang, do professor de Princeton, Wen Fong e do proprietário da galeria Chelsea, Romy Fink, texto esse que teve trechos publicados em diversos jornais da época (THE CHELSEA ART GALLERIES, 1971; A TRIBUNA, 1971; FOLHA DA TARDE, 1971). Dois anos após a exposição no MAM, Zhāng Dàqiān realizaria mais uma exposição em uma galeria comercial, dessa vez na “A Galeria”, de propriedade de Belinha e Waldemar Szaniecki, localizada no número 1.111 da rua Haddock Lobo em São Paulo, sob o patrocínio do Embaixador Fu-Sung Shu. Inaugurada às 20:00 horas do dia 11 de Junho de 1973, com o que a imprensa da época chamou de “Uma Grande Festa para Chang Dai-chien”, que chegou à Vernissage com seus filhos e netos, trajando suas roupas típicas e apoiado em seu cajado, encontrando um grande número de chineses que aliás, arremataram quase todas as suas obras com valores entre 5.000 e 10.000 cruzeiros. Foram disponibilizadas 26 pinturas, dentre elas: “Casa do Amigo”; “Nuvens de Outono”; “Contemplando a Montanha”; “Barco Voltando”; “Moradas de Anacoretas”; “Cascata”; “Morada do Ermitão”; “Grama na primavera”; “Veleiro no fim da Tarde”; “Lótus Vermelho”; “Montanha no outono”; “Velho Templo” e “Pássaro no outono”. Naquele ano, Zhāng Dàqiān vivia entre a Choupana Bi Hua e o Jardim Ba De, expondo com frequência nos EUA e em Taiwan. Na época, perguntaram ao artista o que a pintura representava em sua vida, sua resposta foi divulgada largamente pela imprensa, Zhāng Dàqiān teria respondido 612 que “a pintura é sua própria vida, que só pintava em momentos de alegria e que mesmo assim suas obras carregavam a nostalgia que sentia em relação a sua terra natal” (FOLHA DA TARDE, 1973). Ironicamente, essa foi a última exposição de Zhāng Dàqiān no Brasil, no período em que aqui viveu, e a última exibição individual realizada até hoje (DIARO DE SÃO PAULO, 1973a, 1973b; FOLHA DA TARDE, 1973). No ano de 1976, foi construída a represa de Taiaçupeba que englobava a área onde o Jardim Ba De estava localizado(SOLIA, FARIA, ARAUJO, 2007). Não se sabe ao certo quando foi expedida a ordem de desapropriação, mas Zhāng Dàqiān, que já vinha se alternando regularmente entre o Jardim Ba De e sua Choupana Bi Hua, se mudou, voltando poucas vezes para o Brasil. Após a inundação de seu Jardim, nunca mais voltou, no mesmo ano da construção da represa, Zhāng Dàqiān voltou para perto de sua terra natal, dessa vez na Ilha de Taiwan, onde o governo lhe cedeu uma imensa propriedade em que o artista construiu um novo ateliê e jardim. O maior pintor chinês do século XX faleceu 7 anos depois, na cidade de Taipé, sua última casa é hoje um Museu, administrado pelo Museu Nacional do Palácio, em Taiwan. A notícia de sua morte saiu em poucos jornais do Brasil e passou quase despercebida (HSIAO e ROSS, 2011; JOHNSON, 1999). 613 Figura 3. Capa da reportagem de Barros Ferreira, publicada na revista “O Cruzeiro” em 09/01/1969, páginas 66 a 71, Fotografia de Walter Freitas. Exposições póstumas e a redescoberta de Zhāng Dàqiān Após a morte de Zhāng Dàqiān, pouco se ouviu falar do pintor na imprensa brasileira, contudo, em 1999, o pesquisador José Roberto Teixeira Leite dedicaria um capítulo exclusivo à passagem do mestre pelo Brasil, em sua tese “A China no Brasil” (TEIXEIRA LEITE, 1999), primeiro trabalho acadêmico a citar os anos brasileiros do artista. Depois disso, o pintor só voltou a ser assunto por volta de 2002, quando suas obras começaram a bater recordes no crescente mercado de arte chinês (GORGULHO,2003). Também em 2002, quase 30 anos após sua última exposição, obras de Zhāng Dàqiān finalmente puderam ser apreciadas em um museu brasileiro. Dessa vez no Museu de Arte Brasileira – MAB, da Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, que realizara naquele ano a exposição “Tesouros da China”, uma mostra de grande porte e abrangência sobre arte chinesa, com obras de diversos períodos da 614 história da arte chinesa do acervo do Museu Guimet, na França. Dividida em três eixos, “Arte do Contemporâneo”, “Arte do Cotidiano” e “Arte dos Imperadores”, esse último tema contando com cerca de 10 obras de Zhāng Dàqiān. Um catálogo, com reproduções e detalhes técnicos de todas as obras foi publicado na ocasião da mostra (MUSEU DE ARTE BRASILEIRA, 2002; GORGULHO, 2003) Somente 8 anos depois, em 2010, obras do artista seriam novamente expostas no Brasil, na exposição “Guignard e o Oriente”, que aconteceu em junho daquele ano no “Instituto Tomie Ohtake” e, em setembro, no “Museu de Arte do Rio Grande do Sul”. A exposição visava analisar as possíveis influências orientais na obra do pintor brasileiro Alberto da Veiga Guignard. Com 45 quadros do pintor, foram expostas xilogravuras japonesas, mobiliários da época e algumas pinturas de Zhāng Dàqiān (MARTÍ, 2010). Em 2012, ano em que bateu novos recordes em leilões, a TV Cultura, em seu programa “Cultura Documentário” exibiu “Morada da Ilusão”, de Richard Gordon e Carma Hinton, documentário produzido em 1993, sobre a vida de Zhāng Dàqiān, focando nas reproduções de obras antigas e tratando dos conceitos de cópia e falsificação nas culturas Ocidentais e Orientais. O próximo ano, 2013, foi muito importante para a memória de Zhāng Dàqiān e para a arte Oriental no Brasil. No dia 4 de Maio, a “Pinacoteca do Estado de São Paulo”, recebeu a exposição “Seis Séculos de Pintura Chinesa”, a maior exposição sobre o tema já realizado no país, com 120 obras do acervo do Museu de Chernuschi, de Paris. Com grande repercussão, a mostra contou com obras de alguns dos mais importantes artistas de diversos períodos da arte chinesa, incluindo 10 pinturas de Zhāng Dàqiān. O catálogo da exposição foi disponibilizado em versão digital, embora não se aprofunde muito na passagem do pintor pelo Brasil, devido a amplitude histórica da mostra. Nesse ano, uma grande reportagem foi publicada pelo jornalista Guilherme Gorgulho no Jornal da UNICAMP (GORGULHO, 2013; PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO,2013). Em 18 de Julho, aconteceu no Paço Municipal de Porto Alegre, a exposição “Expressa do Oriente”, com obras dos acervos das Pinacotecas Rubem Berta e Aldo Locatelli, a mostra contou com obras de artistas como Manabu Mabe, Tomie Otahke 615 e uma agradável surpresa, a obra “Passeio ao longo do rio apreciando as flores de ameixa” de Zhāng Dàqiān, que havia sido adquirida na década de 60, por Assis Chateaubriand, e que estava sem identificação na Reserva Técnica da Pinacoteca, em 2003, o jornalista Guilherme Gorgulho havia publicado em reportagem para “A Folha de São Paulo” a possibilidade de essa obra estar naquela Instituição (GORGULHO, 2003). Atualmente, a obra é a única pintura de Zhāng Dàqiān que figura em acervos nacionais, já que “Paisagem Suíça” doada para o MASP em 1966 e repassada para o MAC de Olinda, na campanha dos Museus Regionais, infelizmente hoje não se encontra registrada no acervo daquele Museu podendo, assim como “Passeio ao longo do rio (...)”, talvez possa estar armazenada sem identificação na reserva técnica da Instituição, não existem registros de que a obra tenha sido exposta, entretanto no Acervo do MASP, sobreviveu uma pequena reprodução fotográfica em preto e branco (Figura 4) da doação de Zhāng Dàqiān para o museu (GORGULHO, 2003, 2013). Considerações Finais Por manter-se focado na passagem de Zhāng Dàqiān pelo Brasil, o trabalho não se aprofunda nos acontecimentos paralelos ocorridos na mesma época em que o artista aqui viveu, só a análise conjunta de todos os dados referentes a longa existência desse grande mestre nos permitirá vislumbrar a grandiosidade de seu legado. Por se tratar de um levantamento documental, o presente artigo é um trabalho em aberto, o surgimento de novas informações pode fazer com que novas conclusões sejam tiradas, os fragmentos da passagem de Zhāng Dàqiān pelo Brasil continuam espalhados embora uma pequena parte esteja reunida neste trabalho. Só compreenderemos os anos que o artista passou no Brasil, e a maneira com que se aproximou e contribuiupara nossa cultura, se reconstruirmos a história desse importante mestre. 616 Figura 4 - Único registro existente da “Paisagem Suíça” doada em 1966 para o MASP, atualmente a obra está desaparecida. Imagem gentilmente cedida por “Acervo e Desenvolvimento Cultural do MASP” Notas 1 O método de romanização Piyin foi o escolhido para esse trabalho, entretanto, em ocasiões especiais, o nome de Zhang Daqian é grafado no método Wade-Giles, lendo-se Chang Daí-Chien. 2 Sun Chia-Chin, faleceu em 2010 em Taiwan, veio para o Brasil em 1953 junto com Zhang Daqian, aqui, lecionou na FFLCH-USP, colaborou com trabalhos acadêmicos e realizou exposições, além da obra no MAAC de Campina Grande, existe uma obra sua no acervo do MASP, doação do Embaixador Fausto Godoy. Referências Bibliográficas LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Editora da Unicamp, 1999. LAI;KIN-KEUNG;EDWIN. The life and art photography of Lang Jing shan (1892-1995). The University of Hong Kong Press, 2000. HSIAO, LI-LING; ROSS, DAVID A. Dancing with Degas: Zhang Daqian's Balletic Lotus. 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DE MIRANDA, Tavares. 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Atualmente, cursa o 4º ano do Bacharelado em Artes Visuais no Instituto de Artes da UNESP, o 3º semestre do curso de Mandarim do Instituto Confúcio e é estagiário da Coleção Asiática do MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. 619 30 DIAS EM DHARAMSALA: RESIDÊNCIA COM UM PINTOR TIBETANO Vinicius de Assis - UNESP RESUMO: O seguinte artigo se refere às anotações e estudos de quatro semanas de aula no estúdio de Karma Sichoe, em Dharamsala, Índia, durante os meses de março e abril de 2013.Lá, conceitos como, história, técnica e temática da thangka (pintura tradicional tibetana) foram comentados, explicados e praticados.Temas que foram vistos superficialmente devido ao pouco tempo, mas que já exibiam a força tradicional e milenar da pintura tibetana. Passando por sua história pessoal e indo até o seu fazer diário, como pintor tradicional e contemporâneo, Karma abordou temas básicos: medida e cânone da cabeça do buda, composição de paisagens, desenho, composição e cores dos elementos, fogo,ar ( nuvens), água (cachoeiras, rios e lagos), terra (montanhas, rochas, abismos, árvores, flores) e princípios artesanais, demonstrando o ofício nas artes, a feitura de pincéis, pigmentos minerais e preparo da tela.Além dos estudos tradicionais, numa mão dupla, houve a participação de Karma num projeto do Coletivo RAGA (pintura e muralismo, do qual faço parte) na execução de uma pintura mural em Dharamsala, sobre a difícil situação política de protestos na região do Tibete. Palavras-chave: thangka, pintura tradicional, cânone, sagrado, ofício. ABSTRACT: The following article refers to the notes and studies of four weeks of classes in Karma Sichoe’s studio in Dharamsala, India, during the months of March and April 2013. There, concepts such as history, technique and themes of thangka (Tibetan traditional painting) were discussed, explained and practiced. Themes that were seen superficially regarded the short time, but already displayed the traditional and millennial strength of Tibetan painting. By his personal history and daily routine as a traditional and contemporary painter, Karma addressed basic issues: measurement and canon of the Buddha's head, composition of landscapes, design, composition and colors of the elements, fire, air (clouds), water (waterfalls, rivers and lakes), earth (mountains, rocks, abyss, trees, flowers) and craft principles, demonstrating the craft in the arts, the making of brushes, mineral pigments and preparation of canvas. In addition to traditional studies, as in a two-way road, there was the participation of Karma in Coletivo RAGA's project (to which I belong, doing paintings and murals) in a mural in Dharamsala, about the difficult political situation and the protests in the Tibetan region. Keywords: thangka, traditional painting, canon, sacred, crafts. Prefácio A vivência com uma linhagem tradicional de pintura tibetana, só foi possível graças a uma confluência de fatores: o interesse partilhado com o Coletivo, a introdução à thangka e viagem com Tiffani Gyatso e a disponibilidade e desejo de troca de Karma Sichoe. Aqui segue uma breve biografia e histórico desses fatores, que darão o devido contexto ao artigo. O Coletivo RAGA é formado pelos artistas visuais Felipe Ikehara, Rafael de Assis e Vinicius de Assis. Seus integrantes 620 partilham o estudo de referências em arte tradicional de diversos povos, com foco específico na arte oriental (Índia, Nepal, Tibete, China, Japão e Tailândia) com a mistura de suas peculiaridades, paridades estéticas e conceitos. Tiffani Hollack Gyatso nasceu em São Paulo em 1981. Em 2000, ela viajou até a Mongólia, onde teve seu primeiro contato com a arte sacra do budismo tibetano. Determinada a estudar thangka, três anos depois, Tiffani se mudou para India. Em Dharamsala ela foi aceita como a primeira aluna ocidental no Instituto Norbulingka, fundada por S.S. o Dalai Lama e lá estudou pintura por três anos, onde conheceu o trabalho de Karma Sichoe.Em 2006, ela retornou ao Brasil e no fim de 2007 foi convidada a trabalhar no templo budista Caminho do Meio fundado por Lama Padma Samten em Viamão, no Rio Grande do Sul, um projeto que levou quase 4 anos para ser completado. Nesse ínterim, Tiffani retorna mais uma vez a Índia e tem 3 meses de aulas com Karma. Em 2013, Tiffani lidera uma viagem de estudos de arte budista na Índia e Nepal, com visitas a templos e um workshop com Karma.Karma Sichoe, 38 anos, é um pintor tradicional e artista contemporâneo, residente em Dharamsala. Órfão e refugiado, Karma foi criado e educado no TCV (Tibetan Children’s Village School) em Dharamsala. Ele recebeu seu treinamento formal em pintura thangka no Centro Tibetano de Artes e Ofícios em Dharamsala (hoje Instituto Norbulingka) sob a orientação do renomado mestre pintor Rinzin Paljor, que foi um dos principais pintores da corte Potala no Tibete e no exílio continuou trabalhando diretamente para Sua Santidade o Dalai Lama. Depois de se formar em 1993, Karma tem trabalhado principalmente como um artista independente em encomendas particulares, mosteiros, escolas e dedica grande parte de seu tempo e energia para diversas atividades políticas dentro da comunidade tibetana no exílio, bem como para o estudo da diversidade de estilos da pintura Thangka e formas de arte. Introdução No início de 2013, o Coletivo viajou à Ásia (Índia e Nepal) com Tiffani Gyatso, onde visitamos templos, museus, ateliês, monumentos (locais sagrados) e conhecemos Karma Sichoe. Após um mês de viagem nos despedimos de Tiffani e retornamos para Dharamsala, para realizar uma residência de trinta dias com Karma em seu ateliê. Além dos estudos tradicionais, alguns trabalhos foram produzidos 621 durante essa vivência e foram apresentados ao público, juntamente com pinturas murais de instalação na exposição do Coletivo RAGA “Oriente-se” de agosto a dezembro de 2013, no Sesc Santana. O presente artigo tem como base, estudos, anotações e exercícios que foram produzidos no período da residência em Dharamsala com Sichoe, além de referências bibliográficas. Aulas A thangka nos era familiar por estudos em livros e por um curso ministrado por Tiffani Gyatso em 2010 para o Coletivo RAGA. Por isso, já sabendo das inúmeras e complexas categorias temáticas que a thangka se aplica: os seres iluminados (budas, gurus e bodhisattvas), yidams (deidades pessoais), dharmapalas (guardiões/protetores), mandalas, estupas, ilustrações e símbolos do dharma e yantras (amuletos), optamos numa reunião inicial com Karma, por focar nossos esforços e estudos nos elementos primordiais da paisagem (os cinco elementos da natureza, composição, estilo e pintura) e na feitura e preparo da tela (thangka). Motivação e Intenção Quanto ao artista tibetano, ele sabe que sua própria habilidade, seja ela grande ou pequena, deve, sob o risco de incorrer na autodestruição, ser tanto inspirada pela Norma espiritual determinante como dedicada a Ela; e essa Norma, em sua própria revelação, é negadora do ego, excluindo por princípio todo o exibicionismo individualista. Esta é a natureza ou a inspiração artística no mundo tibetano: quanto mais somos capazes de nos identificar com esse ponto de vista, mais próximos estaremos de compreender sobre do que se trata a pintura tibetana. (PALLIS, 1949, apud 1 PAL ,1983, p. 3) Karma iniciou a residência falando sobre motivação e a intenção do artista que se dedica ao tradicional e ao sagrado. Para esse artista, devem ser claras as intenções ao pretender seguir os rigorosos e complexos cânones da tradição tibetana. Pois o incentivo inspirador reside no respeito, confiança e admiração com o conhecimento que será retratado, no caso o Dharma, a doutrina do Buda. De acordo com o Lama Tarthang Tulku (2002, p. 23). 622 “O artista poderia ser um mestre realizado, treinado nos textos e nas linhagens orais de sua tradição, sua visão aperfeiçoada por meio da realização meditativa, sua mão refinada pela prática de uma longa aprendizagem”. Porém, na maioria dos casos,“[...] frequentemente, o artista era uma pessoa leiga, treinada em regras e estilos de representação, que havia trabalhado por muitos anos sob a supervisão direta de um artista mestre”. O fato de um artista ser leigo não o isenta de possuir certos atributos, como bom humor, humildade, honra, diligência e ser dedicado ao Dharma (TULKU, 2002). Portanto, o artista deve se submeter as regras e se elevar aos padrões do sagrado representado (ou assim deveria operar), pois Karma dizia que a pintura é como um espelho da mente, se perturbada por emoções negativas, como ansiedade ou raiva, esse substrato ficará nítido como um reflexo na pintura, trazendo assim condições não auspiciosas ou inadequadas para o modelo sagrado retratado. Seguindo o raciocínio, para uma pintura harmônica, hierática e solene, exigese em medida, determinação, paciência e esmero. Mesmo o esforço intenso do pintor é logo identificado e creditado ao sagrado que se fez através dele. Logo, uma arte tradicional não é autoral, nem pertence a um indivíduo, mas sim, a uma corrente de sabedoria reconhecida pela tradição, que tem origem no sagrado, primordial ou divino. O artista tradicional comunga e participa disso. Cânone e cabeça do buda Por sua essência qualitativa, a forma ocupa uma posição, na ordem sensível, análoga à da verdade, na ordem intelectual; este é o significado da noção grega de êidos. Assim como uma forma mental, como um dogma ou uma doutrina, pode ser o reflexo adequado, ainda que limitado, de uma Verdade divina, assim também uma forma sensível pode representar e expressar uma verdade ou realidade que transcende tanto o plano das formas sensíveis quanto o plano do pensamento. (BURCKHARDT, 2004, p. 18) Antes da pintura, as thangkas são cuidadosamente desenhadas, e cabe ao pintor seguir certas convenções e padrões. Uma delas é um sistema exigente de medição (tsomo) destinado a garantir que toda a composição seja desenhada em proporção adequada. 623 Tradicionalmente, no ensino da pintura tibetana, o aluno deve no início estudar e praticar muito o desenho e as proporções canônicas. A ênfase está completamente voltada em adquirir maestria sobre cada etapa do processo. Tais cálculos, medidas e formas tem uma razão de ser. Cada deidade possui medidas geométricas exatas, estudadas e escritas em antigos manuscritos. Essas medidas são baseadas por exemplo, na astrologia, no corpo humano, na natureza e em outros cálculos secretos. Junto com a exatidão das linhas e da forma das imagens que possuem importância simbólica, há também as cores, a posição do corpo e das mãos, os instrumentos exibidos e as oferendas dadas. Devido à importância iconográfica de cada elemento, seguir fielmente o cânone é uma maneira segura e responsável de garantir a validade espiritual e litúrgica da pintura, entendida no contexto budista como um utilitário espiritual, uma ferramenta poderosa para práticas de meditação, visualização e culto. Como na maioria das tradições budistas, a pintura tibetana é copiosamente geométrica. Cabeça, cotovelos, mãos, olhos, orelhas e objetos ritualísticos são dispostos em uma grade metódica de ângulos e linhas de interseção. Tarthang Tulku (2002, p. 25) diz que “Quando a grade proporcional é desenhada, o artista se apóia nela como se fosse a planta de um projeto.” O início da grelha canônica se dá com a linha central, e a partir dela todo o desenho deve ser feito, isso ajuda na simetria das figuras. Karma chama essa linha central de “linha de Brahma”, numa analogia ao princípio criador.2 Um artífice habilidoso geralmente tem acesso a uma variedade de itens definidos para conceber uma composição. Desde árvores, nuvens e objetos, até o drapeamento da indumentária, a forma, o tamanho e ângulo dos olhos de uma figura. A sutileza e cuidado com os detalhes era explícita quando Karma utilizava de metáforas e poesias visuais para se explicar. Os olhos (de acordo com ele) “deveriam ser como pássaros comendo alpiste”, as sobrancelhas “como o trigésimo dia da Lua” e a boca “como um pássaro distante”, essas preciosas recomendações dizem respeito ao formato e forma de tais detalhes, os olhos devem ser no formato de pássaros comendo alpiste (Figura 1), as sobrancelhas finas e delgadas como a última fase da lua minguante e a boca como uma silhueta de um pássaro. Apenas seguir as medidas de maneira sistemática não basta, o método exige profundo 624 conhecimento da simbologia envolvida para capturar o espírito ou essência das formas. A arte tibetana é explicitamente religiosa, por vezes evoca simbolismo e alusão, estes, devem estar alinhados com as condutas rigorosas estabelecidas nas escrituras budistas. Possuir uma compreensão religiosa hábil, se torna imprescindível para um artista tradicional. Ele deve ser devidamente treinado, ter domínio, conhecimento e experiência para conceber uma thangka precisa e adequada. A etapa de estudo das medidas e desenhos na tradição tibetana costuma tomar integralmente o primeiro ano de aprendizado, somente nos anos seguintes que é introduzida a pintura, demais deidades e cânones mais complexos. Figura 1 - Estrutura canônica da cabeça do Buda. Caderno de anotações 2013. 625 Os cinco elementos na paisagem tibetana. Toda paisagem na pintura tibetana deverá conter os cinco grandes elementos: terra, água, fogo, ar e espaço. Há uma interdependência e interação entre os elementos que deve ser reconhecida e representada (ex: a água ganha forma sobre a terra e com o ar). Um elemento estará sempre cercado de outro elemento. Numa menção metafórica, nota-se um pensamento filosófico budista, o da lei da “originação interdependente dos fenômenos” ou “originação dependente”, em sânscrito: pratītya-samutpāda e tibetano: rten cing 'brel bar 'byung ba.3De um modo geral, se refere a um dos conceitos chave da tradição budista, de que todas as coisas surgem na dependência mútua de múltiplas causas e condições. Isso nos revela a potencialidade de leitura e relação intrínseca dos textos sagrados com a arte sagrada budista. Na paisagem, o elemento terraé representado por formações rochosas, cavernas, campinas e montanhas; a água por lagos, rios e cachoeiras; o fogo pela luz, motivos flamejantes, auréolas e anéis de fogo; o ar por formações de nuvens; e o espaço pelo céu, auras e arco-íris. Segundo (BEER, 2004),anatomicamente falando, a terra representa o corpo ou esqueleto da natureza, a água o sangue e veias, o fogo o calor e a compleição, o ar é o fôlego e o espaço a consciência. Na tradição tibetana, o símbolo primordial da terra é representado por um quadrado amarelo, a água por um círculo branco, o fogo por um triângulo vermelho, o ar por um semicírculo ou crescente verde e o espaço por uma gota azul se dissolvendo. Existe a relação dos elementos com as cores sagradas do Budismo Tibetano (Vermelho/ Fogo, Verde/ Água, Amarelo/Terra, Branco/Ar e Azul/Espaço) e com os Cinco Budas da Meditação (em sânscrito: os Dhyani Budas). Os elementos no entorno da imagem central, através de cores e iconografias dizem a respeito de sua natureza. Paisagem e composição Descrições de dimensões onde tudo é permeado com luzes arco-íris, cores iridescentes, perfume divino e música celeste, servem somente para elevar as percepções da realidade visionária do artista. Aqui, onde uma paisagem 626 está iluminada por dentro, perspectiva, escala e sombras perdem sua solidez lógica. (BEER, 2004, p. 4) A pintura de paisagens, é regida por muitas leis e princípios. Ao artista é dado livre arbítrio para expressar sua visão em detalhes sutis, como tonalidades, linhas e curvas , porém ele deve se ater ao fato que uma paisagem deve ser bela, agradável, inspiradora e em acordo com sua temática composicional. Beer (2004, p. 3) atenta para “as pinturas que retratam temas biográficos, como eventos nas vidas de lamas ou iogues, geralmente possuem locais reconhecíveis ou construções pintadas em forma estilizada”. No caso dos que viajaram de maneira errante através das regiões himalaicas como ascetas nômades, em geral essas composições são completamente imaginadas, já que esses lugares raramente seriam conhecidos ou visitados pelo artista. Beer (2004, p. 3) comenta “[...] O isolamento geográfico do artista junto com o platô tibetano, deu a arte tibetana uma qualidade visionária específica e única”. A beleza contrastante do imenso céu azul rarefeito com os profundos vales e escarpados picos, corrobora e se integra com as descrições da vida contemplativa e ascética de iogues e lamas. De maneira essencial e com sua típica naturalidade, a cultura tibetana facilmente soube relacionar os aspectos da natureza com a vida espiritual. Beer (2004, p. 3) sintetiza essa relação, “A alma da paisagem se torna a essência da visão interna do artista”. Mesmo as incríveis e arrebatadoras paisagens com elementos em cores fascinantes e maestria em pinceladas refinadas, são entendidos apenas como uma visão menor e inferior dos mundos visualizados internamente através das práticas espirituais tântricas (BEER, 2004). Numa alegoria às qualidades da prática espiritual, cores e formas são retratadas em tons brilhantes, como se compostas pelas cinco substâncias preciosas: ouro, prata, coral, pérola e pedras preciosas. Muitas vezes esses elementos são adicionados aos pigmentos ou utilizados na pintura como oferendas meritórias. As thangkas mais refinadas, seja no rigor e complexidade iconográfica, seja no uso de materiais nobres e valiosos, revelam mais do que atributos materiais, toda composição exibe uma relevante estrutura integrada com graça sublime. A arte chinesa é familiar para a cultura tibetana desde o século VII. Os primeiros reis do Tibete eram casados com princesas chinesas e o primeiro 627 monastério budista erigido, Samye (construído no século VIII), de acordo com a tradição teve um dos andares feito e decorado à maneira chinesa (PAL, 1983, p. 121). Mas foi a partir do século XIV, com a aproximação tibetana com os príncipes mongóis e imperadores da dinastia Yarlung (PAL, 2000, p. 121), que a paisagem chinesa se tornou mais notória na arte tibetana (até então muito influenciada pela arte indo-nepali). Um tema clássico chinês que influenciou a pintura tibetana foi o dos Dezesseis Arhats. Beer (2004) comenta sobre a pintura dos dezesseis arhats à maneira chinesa: [...] a coreografia do movimento e a relação espacial entre as figuras, paisagem, flores, árvores, vida selvagem e oferendas, exibem um fluente vocabulário na linguagem da linha. As cores são graciosamente sombreadas, rochas brilham com um calor interno, uma flor irradia sua pureza intrínseca, a imagem da graça divina é capturada e mantida naquele momento.(BEER 2004, p. 4) Terra Como foi explanado, só o aspecto da paisagem na pintura tibetana tradicional já possui o potencial de se tornar um abundante arcabouço de significados e símbolos referentes à doutrina budista. Sobre o elemento terra, ficamos limitados a flores e árvores. Como na composição toda e na figura central, as flores e plantas necessitam também de eixos centrais quando esboçadas. Como dito por Karma, essa linha central é a “linha de Brahma” o eixo de equilíbrio da composição. As pétalas de uma flor devem ser suaves e delicadas. E as folhas exibir harmonia e equilíbrio. Uma recomendação auspiciosa revelada, foi de desenhar as flores preferencialmente em suas três fases de maturação, o botão (fechado), a flor jovem (semi aberta) e a flor aberta. Até detalhes mínimos como esse podem guardar profundos significados, aqui mais uma vez uma analogia com o conceito chave budista, a impermanência, em páli: anicca e em tibetano: mi rtag pa.4 Água A composição da água com fluidez e harmonia, se dá pelo cuidado com o formato e volume das ondas. As curvas devem ser interdependentes, onde linhas e camadas de níveis se repetem, sendo posteriormente sombreadas e realçadas suas 628 características tridimensionais. A composição de águas turbulentas e agitadas pode ser extremamente complexa e difícil de se realizar. Quanto mais distante estiver a água, ela é retratada com ondas largas e calmas, quanto mais próxima do primeiro plano, mais agitada a água se torna, com redemoinhos, cristas no pico das ondas e pequenas esferas esvoaçantes de água, transmitindo assim, expressão e dinamicidade ao elemento. Rios e lagos mostram movimentos mais lentos, pequenos riachos e cachoeiras possuem um movimento rápido, isso faz variar os tons, dos mais escuros nas águas calmas e mais claro nas águas agitadas. Geralmente na base das cachoeiras a água é mostrada de maneira efervescente com cristas e espuma branca. A cor e sombreamento da água exige muita paciência. Basicamente cada onda é sombreada individualmente, assim o pintor deve ater-se aos detalhes e degradês. Geralmente o sombreamento se dá em camadas horizontais, indo do azul escuro no fundo, passando pelo azul médio até o topo e com detalhes brancos no alto das ondas. O profundo azul desses lagos naturalmente se concilia com o reflexo do céu em sua calma, como uma superfície espelhada. A sutil forma da crista da onda, longa e graciosamente curva pode ser muito expressiva, pode-se quase sentir a força da correnteza na água. Sombreamento à seco (Dry Shading) O sombreamento é um detalhe importante e notório da arte tibetana, junto com a força da composição e com o trabalho detalhado e paciente do sombreamento, a pintura é finalizada com o delineamento afiado e seguro de uma mão treinada. Karma nos disse que em pinturas de templos, usualmente o artista mestre faz os desenhos, alunos iniciantes fazem o preenchimento, alunos adiantados fazem os degradês e os alunos mais avançados fazem o delineamento. No período com Karma, apenas fizemos o sombreamento de dois elementos, a água e o ar (nuvens). O sombreamento a seco, consiste numa técnica muito sutil onde num ponto de aquarela (com a tinta bem fina) se faz a base do objeto (lago ou nuvem) e gradualmente com o pincel vai se sobrepondo camadas com um tom mais escuro, secando o pincel a cada camada, deixando cada vez o tom mais suave. No início é difícil não deixar o gradiente granulado, o empenho deve ser de um artesão, 629 pacientemente e suavemente fazer camada por camada, o sombreamento é a parte sem dúvida que toma mais tempo na thangka. Figura 2 - Estudo de nuvens (composição, contorno e sombreamento), Caderno de anotações 2013. Ar Como na água, a composição de nuvens pode ser complexa com grandes massas de nuvens se contorcendo, emoldurando a pintura e cercando figuras como mestres ou deidades. Seu volume e forma devem corresponder ao movimento interdependente de suas linhas e curvas, a harmonia reside no trabalho minucioso de retratar a ação colossal das nuvens através de curvas, arcos e agloremados interdependentes. Uma grande habilidade é empregada na descrição de nuvens na pintura thangka. De acordo com Beer (2004) por sua composição simétrica em espirais e curvas, criam-se vários pontos de convergência (centro) com níveis e camadas entre as nuvens. Esses centros espiralados das nuvens são pintados com uma cor escura. Esse “centro” é descrito na arte chinesa como na forma da metade do símbolo yin yang, e representa o vórtice ou ‘essência semente’ que nutre a nuvem eque se torna fértil com a dádiva da chuva.Nuvens frequentemente são sombreadas de uma base branca no topo para um leve tom colorido na base. 630 Elas nunca são pesadas ou sombrias, mas sempre cheias de luz, cor, forma e movimento. Nuvens rodeiam elas mesmas entorno dos altos picos, velando-os em mistério. Fogo O elemento fogo é representado desde a sutil luz solar que se revela nas matizes coloridas da paisagem e figuras, até a sua manifestação potente e vigorosa em labaredas, línguas de fogo e auréolas flamejantes que acompanham as figuras iradas. Como a água e as nuvens, o elemento fogo pode ser constituído desde pequenas e discretas chamas, até composições intrincadas com línguas e flamas num movimento dinâmico. Como os demais elementos, a possibilidade expressiva do fogo é imensa. Graça, equilíbrio e dinamismo devem estar presentes. Estas, desenhadas com muita habilidade e graça de movimento, ondulam e saltam e curvas de um lado para o outro. O espaço negativo das chamas é preenchido com uma cor escura, dando profundidade e realçando o fogo. Seu sombreamento é semelhante ao da água, indo do laranja intenso na base da chama até o vermelho em suas pontas. O delineamento deve ser preciso, recomenda-se treinar a habilidade com o pincel em várias direções. Espaço O vasto céu com sua imensa extensão é a maneira com que o espaço é representado na thangka. Muitas vezes o céu é a primeira parte a ser pintada pois é a mais profunda das camadas e de maneira gradual vai se pintando os elementos até chegar na figura principal, finalizando trabalho somente ao pintar os olhos da figura. O céu tem uma importância cabal, refletindo e sendo usado como símbolo da pureza inata da mente, da nossa natureza búdica acessível através da meditação e dedicação ao Dharma. Este deve ser de um profundo tom azul no alto e progressivamente ir clareando perto do horizonte em cores mais claras e contrastando com a união com montanhas e picos. O céu como toda a composição deve ser feito com o sombreamento a seco, utilizando de um pontilhismo esmerado e paciente. 631 Ofício e artesania A relação com as ferramentas e matéria prima num contexto tradicional é imprescindível ao artesão. Muitas vezes antes mesmo de começar a pintura, o artista deve ter o conhecimento de separar os materiais que usará no preparo da composição e garantir que cada etapa saia da maneira adequada, não prejudicando assim o resultado final. No âmbito tradicional oriental, não há diferenciação entre “artes” e “ofícios” sendo ambos uma unidade inseparável na cultura e sociedade. Assim, a tradição tibetana de pintura inclui nos afazeres do pintor, a extração de pigmentos, feitura de tintas, fabricação de pincéis e preparação da tela. Muitos pintores com ajudantes delegam com o tempo essas funções mais trabalhosas à ajudantes, uma maneira de transmitir o conhecimento. Karma prefere ele mesmo fazer cada etapa, dizia que assim conseguia garantir a qualidade necessária em todos os estágios. Pincel Karma aprendeu em sua juventude a fazer os próprios pincéis, apesar disso, esta é uma técnica que está morrendo, pois poucos ainda hoje fazem os próprios pincéis, recorrendo aos pincéis chineses como opção de ferramentas adequadas. Fazia anos que o próprio Karma não repetia esse método, e nos ensinar foi uma maneira de relembrar o processo. Os pincéis podem ser feitos de vários tipos de pêlos, cabra, gato selvagem, boi, porco. Os pelos de animais selvagens são melhores pois por não serem manuseados, são farpados e seguram a tinta de maneira mais eficiente. A técnica é bem simples, porém trabalhosa. Consiste em primeiramente separar dentre vários, a quantidade de fios do pincel, isso deve ser feito usando talco nos pelos, facilitando a separação destes. Uma fôrma, de massa de trigo ou mesmo argila é modelada, do tamanho de um polegar. Nela é feita com uma ferramenta pontiaguda o chanfro ou forma da ponta do pincel: chato, pontudo, fino ou grosso. Os pelos são colocados com talco dentro da pequena fôrma e amarrados com uma linha, como se fosse uma pequena vassoura. Utiliza-se cola animal na amarração e coloca-se o cabo, geralmente um bambu fino, de preferência verde, pois pode ser moldado de acordo com a preferência do pintor. 632 Pigmento O manuseio do pigmento se dá em duas suas partes. A extração mineral ou vegetal do pigmento e sua utilização como tinta. No procedimento após obter o pó mineral, uma pasta é feita adicionando água e moendo ainda mais a mistura. Por decantação é possível separar até três tons de um mesmo pigmento, esse processo acontece extraindo o pigmento mais fino, que fica na superfície da água (tom claro) e o que fica no fundo (tom escuro). Isso acontece com azuis, verdes, amarelos e vermelhos. Repete-se o procedimento várias vezes. Tradicionalmente, os pigmentos vermelhos são extraídos do vermelhão (cinabre), o azul vem do lápis lázuli, o verde do musgo ou malaquita. O enxofre provê o amarelo, e a planta índigo o azul escuro e a púrpura. O branco vem do alabastro, o laranja do chumbo. A tinta dourada é feita apartir de folhas finas de ouro puro. A tinta é feita da mistura do pigmento com cola animal e água. Após a secagem, a tinta pode ser reativada colocando-se mais água ou moendo-se novamente o pigmento para a decantação. Thangka A palavra “thangka” literalmente significa, “superfície branca” (Than – Superfície Ka- Branca). Desde os primórdios do budismo no Tibete, as pinturas em pergaminhos enrolados são utilizadas por lamas para o ensino religioso nas áreas remotas dos Himalaias. A técnica garante além da praticidade de enrolar, a fixação perfeita da tinta, na região seca e árida das montanhas. Primeiramente se escolhe um tecido (algodão ou linho), “nem muito grosso nem muito fino” disse Karma, e com atenção à direção da trama (ver para onde o tecido estica) se costura varetas (de metal ou madeira) na peça de tecido cortada, essa costura é atada à um chassi específico para esse procedimento. A técnica consiste em esticar o tecido para que a trama se abra e a goma ou revestimento penetre integralmente no tecido. Após a mistura aquecida e da consistência correta, aplica-se, através de camadas alternadas em pincelas homogêneas, a goma de calcário em pedra (cal), cola animal e pigmento em ambos os lados. Frequentemente três camadas na frente e duas atrás da tela. 633 Esperando a secagem a cada camada, vai se esticando a tela. O tecido e sua armação são então depositados em uma superfície lisa e de base firme, polido com uma pedra plana e lisa, um copo de vidro ou uma concha. Esfregando em uma única direção e aplicando uma pressão razoavelmente forte e uniforme, o artista ou aprendiz vai polindo o tecido até que se torne como um espelho acetinado, o que toma cerca de duas horas para uma thangka de tamanho médio. Figura 3 – Karma faz acabamento na tela utilizando uma pedra lisa. Aula sobre thangka, 2013. Figura 4 – A cada etapa do preparo, afina-se o chassi para que a base entre em toda trama do tecido. Aula sobre thangka. 2013 634 Considerações Como artista visual contemporâneo, ficou nítido para mim a preciosidade do contato com os preceitos e dogmas da arte antiga, ainda praticados no Oriente. Penso que o diálogo e troca com esses conhecimentos pode enriquecer, tanto na prática como na teoria e crítica, a arte que é produzida atualmente no Ocidente. Seja através da assimilação e transformação de técnicas artesanais que mostram sua aparente simplicidade e eficiência milenar, seja pela possibilidade de agregar valor e simbolismos de maneira tão profunda, seja na busca de paralelos com a cultura ocidental ou pelo acesso direto e seguro ao conhecimento transcendental e ontológico budista. Pintura Mural FREE TIBET Quando Karma soube que o Coletivo RAGA era um coletivo de pinturas murais, rapidamente conseguiu uma parede no centro de McLeod Ganj (distrito de Dharamsala). Uma das “condições” para nossa estada, era pintar uma parede nas ruas de Dharamsala com Karma. O mural foi planejado em conjunto por todos e a execução aconteceu em sete dias. A temática do coletivo não costuma ser política em nossos trabalhos no Ocidente, com foco maior em questões estéticas, mas para Karma, um ativista engajado, o poder da intervenção é político e com isso surgiu a idéia de fazer algo relacionado à causa da tibetana, sobre os protestos de auto imolação.5 Numa troca de referências, misturamos elementos tradicionais tibetanos à linguagem do coletivo que costuma ser híbrida e eclética. Sobre o fundo com as cores da bandeira tibetana e os olhos do buda, retratamos alguns arquétipos da cultura tibetana (um monge, um ativista, uma família e um devoto) simbolicamente em meio as chamas da penosa situação. Há também uma frase do Dalai Lama em tibetano e inglês, pela universalidade da mensagem: "Que o anseio pela liberdade de todo Tibete, que temos cultivado em nossos corações por tão longo tempo, tornese realidade e possamos desfrutar a fortuna da gloriosa celebração da harmonia espiritual e política" – S.S. Dalai Lama. 635 Figura 5 – Mural ‘Free Tibet’. Coletivo RAGA (Vinicius de Assis, Rafael de Assis e Felipe Ikehara) Tsering Dorjee e Karma Sichoe. Dharamsala, Índia 2013 Notas 1 PALLIS,Marco. Peaks and Lamas. 1949. In: PAL, Pratapaditya. Tibetan Paintings. A Study of Tibetan Thangkas Eleventh to Nineteenth Centuries. Nova Delhi.Índia: Bookwise New Delhi, 2000. 2 Deus hindu da criação. Comum a todas as escolas de Budismo, tanto as do veículo Mahayana quando a Theravada, ela afirma que todos os fenômenos são o resultado da existência mutuamente dependente. 4 De acordo com a tradição budista, todos os fenômenos que não o nirvana, são marcados por três características, as vezes referidas como os "três selos do Darma". Eles são anicca (impermanência), dukkha (sofrimento) e anatta (não-eu). 5 www.standupfortibet.org/learn-more/ 3 Referências Bibliográficas BURCKHARDT, Titus. A Arte Sagrada no Oriente e no Ocidente. São Paulo/SP: Attar Editorial, 2004. PAL, Pratapaditya. Tibetan Paintings. A Study of Tibetan Thangkas Eleventh to Nineteenth Centuries. Nova Delhi.Índia: Bookwise New Delhi, 2000. BEER, Robert. The Encyclopedia of Tibetan Symbols and Motifs. Chicago/IL: Serindia Publications. 2004. TULKU, Tarthang. A Arte Iluminada. Uma Perspectiva sobre a Arte Sagrada do Tibete. São Paulo/SP: Editora Dharma, 2002. 636 Vinicius de Assis Artista visual e mestrando pelo Instituto de Artes (UNESP/SP) com o Prof. Omar Khouri como orientador na linha de pesquisa Análises Teóricas, Históricas e Culturais da Arte, com foco na pintura tibetana. É integrante do Coletivo RAGA onde realiza pesquisas sobre estilos em arte tradicional. Tem passagem pela restauração, feitura de vitrais, pinturas parietais e procedimentos artesanais de pintura. 637 INFLUÊNCIA DA ARTE JAPONESA NA REPRESENTAÇÃO DA ESPACIALIDADE IMPRESSIONISTA Maria Aparecida Cordeiro Katsurayama - PUC - SP Orientadora: Profa. Dra. Sonia Régis Barreto RESUMO: O Impressionismo foi um movimento influenciado por vários aspectos culturais e artísticos que o antecederam e, dentro desta premissa, esta pesquisa enfoca a influência da arte japonesa, notadamente das gravuras Ukiyo-e do período Edo (1603-1868). A abertura dos portos do Japão ao mundo ocidental, em 1854, propiciou um maior contato cultural e artístico com a Europa, gerando um interesse crescente pela arte japonesa. O termo “Japonismo” foi criado e utilizado na segunda metade do século XIX para designar um novo campo de estudos artísticos, históricos e etnográficos recebidos da arte japonesa. Nessa época, especialmente na França, a arte realista estava sendo questionada e o contato com novos valores estéticos foi determinante para a evolução de uma inovadora representação da espacialidade nas pinturas impressionistas. Este trabalho apresenta fundamentação teórica que permite constatar que as estampas japonesas, além de inspiradoras, foram fundamentais para a ação do artista impressionista no desenvolvimento de uma linguagem artística que se entregou aos sentidos, subjetivando o espaço pictórico. Palavras-chave: Japonismo, Ukiyo-e, Impressionismo ABSTRACT: Impressionism was a movement influenced by various cultural and artistic aspects that preceded it and, within this premise, this research focuses on the influence of Japanese art, especially of Ukiyo-e prints from the Edo period (1603-1868). The opening of the ports of Japan to the Western world in 1854 provided increased cultural and artistic contact with Europe generating a growing interest in Japanese art. The term " Japonism " was created and used in the second half of the nineteenth century to describe a new field of artistic, historical and ethnographic studies inherited from Japanese art. At that time, especially in France, realistic art was being questioned and the contact with new aesthetic values was crucial to the development of an innovative representation of spatiality in Impressionist paintings. This paper presents theoretical fundamentals which confirmed that the Japanese prints, more than inspiring, were central to the action of the Impressionist artist to develop an artistic language that surrounded itself to the senses, subjectifying the pictorial space. Keywords: Japonism, Ukiyo-e, Impressionism A pesquisa tem como objetivo principal demonstrar as influências da arte japonesa, especialmente da gravura Ukiyo-e, na representação da espacialidade nas pinturas impressionistas, direcionando-as à subjetivação do espaço pictórico, uma vez que toda representação espacial observada nas estampas japonesas era concebida de maneira significativa, registrando um flagrante da consciência apreendido pelo gesto rápido e definitivo do artista. 638 A estampa Ukiyo-e, arte de representação de entretenimentos do período Edo (1603-1868) contribuiu muito com a pesquisa impressionista. Essas estampas retratavam com grande expressividade o cotidiano do homem citadino e recebia o nome de “pintura do mundo flutuante”. Tratava-se de xilografias populares, gravadas em madeira e impressas em grande escala, que representavam o efêmero, o transitório da vida e ilustravam as histórias populares no Japão. Apresentando novos conceitos como a falta de perspectiva central, enquadramentos inusitados e a irrelevância na representação de figura e fundo, a gravura japonesa influenciou a nova concepção espacial da pintura no Impressionismo. O contexto impressionista O Impressionismo foi um movimento influenciado por vários aspectos culturais e artísticos que o antecederam. Este percurso teve início no século XVIII, com a cultura do Iluminismo. Pelo uso da razão, o homem percebeu a natureza não como um modelo universal, imutável, mas como um estímulo a que cada indivíduo reage de acordo com suas percepções. O pensamento do Iluminismo não considera a natureza apenas como uma forma ou figura a ser representada ou imitada, a natureza é percebida pelo homem com os sentidos, apreendida pelo intelecto e modificada pelo agir. Nesse sentido, o “Belo” já não é objetivo, mas subjetivo. Emmanuel Kant (1724-1804), através de sua Crítica do Juízo, foi o responsável pela abertura desse caminho para o entendimento da autonomia do Belo. Benedito Nunes (2005:13) resume o pensamento de Kant: Kant admite três modalidades de experiência: a cognoscitiva (do conhecimento intelectual propriamente dito), inseparável dos conceitos, mediante os quais formamos ideias das coisas e de suas relações; a prática, relativa aos fins morais que procuramos atingir na vida; e a experiência estética, fundamentada na intuição ou no sentimento dos objetos que nos satisfazem, independentemente da natureza real que possuem. Essa satisfação começa e termina com os objetos que a provocam. Agradando por si mesmos, eles despertam e alimentam em nosso espírito uma atitude que não visa ao conhecimento e à consecução de interesses práticos da vida. É uma atitude contemplativa, de caráter desinteressado. Consequentemente, afirma-o Kant, o Belo é propriedade das coisas que agradam sem conceito e que nos causam uma satisfação desinteressada. O estilo Romântico, surgido como uma reação à corrente dominante da pintura na época, o Neoclassicismo, abrangia motivações amplas e correspondia a uma importante modificação da mentalidade artística. Os artistas românticos 639 procuraram se libertar das convenções acadêmicas em favor da livre expressão da personalidade de cada artista, com a valorização dos sentimentos e da imaginação. Paralelamente a essas revoluções do pensamento, novas tecnologias propiciaram o rápido desenvolvimento do sistema industrial, alterando sensivelmente a organização econômica e social da época. A Revolução Industrial deu à vida uma nova dimensão, gerando não só uma aceleração da produção mas também a aceleração da vida, mudando completamente a maneira de viver da população. A vida na cidade moderna significava mudanças constantes. A indústria capitalista, com o seu sentido de transitoriedade, estimulou também variações contínuas das tendências artísticas, como mencionado por Hauser (1998, p. 896): “A tecnologia introduziu um dinamismo sem precedentes em toda a atitude perante a vida – e é, sobretudo, essa nova sensação de velocidade e mudança que encontra expressão no Impressionismo”. A formação da estética impressionista também está vinculada de modo direto ao realismo de Gustave Courbet (1818-1877). Courbet realiza uma obra de ruptura, na qual o romantismo e a idealização da natureza são substituídos por uma representação da realidade, fruto da observação direta do artista que visava expressar seu posicionamento sobre a realidade social da comunidade, prescindindo de qualquer preconceito estético, moral ou religioso. A determinação de Courbet de representar o mundo tal como ele o via, implicava em certa subjetividade interpretativa, estimulando outros artistas a rejeitar o convencionalismo e a seguir apenas sua própria consciência artística. Os realistas não renunciaram à perspectiva linear, às sombras negras, aos tons sombrios, nem adotaram a fragmentação da pincelada e a mistura ótica dos tons, mas abriram espaço para os passos que seriam dados mais tarde pelos impressionistas, seus sucessores. O Impressionismo O movimento Impressionista, formado em Paris entre 1860 e 1870, rompeu de forma decisiva as ligações com o passado, abrindo caminho para a pesquisa artística moderna. O impressionismo reage às impressões externas, descrevendo a mutabilidade, o ritmo nervoso, as impressões intensas mas sempre efêmeras da 640 vida na cidade. Através de certa informalidade técnica, esse movimento parecia revelar uma visão da natureza que era ao mesmo tempo imediata e individual. Essa fidelidade à impressão individual e subjetiva passou a ser vista como uma inovação na proposta dos artistas impressionistas. A nova imagem criada pelos impressionistas era um fragmento abstraído do mundo visível familiar, que não requeria nenhum conhecimento especial ou cultura literária para ser reconhecido, ao contrário dos motivos históricos, míticos e poéticos das escolas neoclássica e romântica. Ocupavam-se exclusivamente da sensação visual, evitando a “poeticidade” do tema, a emoção e a comoção romântica. As figuras principais do grupo eram Claude Monet (1840-1926), Auguste Renoir (1841-1919), Edgar Degas (1834-1917), Paul Cézanne (1839-1906), Camille Pissaro (1830-1903) e Alfred Sisley (1839-1899). Para essa nova maneira de ver, era imprescindível uma nova maneira de pintar. Os artistas não mais representavam as formas tal como sabiam que elas eram, mas tal como as viam sob a ação deformadora da luz. Os impressionistas descobriram que embora toda visão humana seja dirigida pelo mesmo processo e sistema orgânico, os indivíduos diferem quanto às condições e aos objetos selecionados. Diferem ainda mais em suas representações daquilo que vêem, subjetivando cada vez mais o espaço pictórico. Sendo o Impressionismo uma das formas mais diretas do realismo, os temas desses jovens pintores deviam ser obrigatoriamente extraídos da modernidade que Baudelaire (1821-1867) já preconizava por meio de sua continuada defesa da autonomia da arte. Para Baudelaire, a modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável. Desta forma, o efêmero se apresenta como um valor positivo, propiciando novas abordagens artísticas. Essa modernidade podia ser percebida em duas novidades da época: a fotografia e o japonismo. A fotografia, uma técnica de criação recente, buscava também fixar a imagem da modernidade ao apreender o efêmero, o fugidio. Ela revelou aos artistas aspectos desconhecidos como ângulos inéditos, planos diferenciados e os efeitos da luz em suas diversas tonalidades ao longo do dia. O 641 diálogo com a fotografia propiciou ao pintor impressionista a observação do mundo de forma diferenciada, fazendo-o rever o seu posicionamento perante o objeto ou paisagem. O Japonismo, por outro lado, trazia uma representação pictórica totalmente diferenciada de qualquer modelo europeu, o que despertou um grande interesse por parte dos artistas. Dentro do objetivo desta pesquisa, o Japonismo foi o ponto de partida para demonstrar a ligação inseparável das gravuras Ukiyo-e com a nova representação espacial dos impressionistas. O Japonismo No período chamado Tokugawa ou Edo (1603-1868), o Japão manteve-se praticamente isolado do Ocidente. O conhecimento que os ocidentais tinham acerca dos japoneses baseava-se em alguns episódios isolados, como as lendárias viagens de Marco Polo (1254-1324), as tentativas de introdução do Cristianismo nos séculos XVI e XVII pelos Portugueses e algumas relações comerciais e intelectuais preservadas entre os holandeses e nipônicos durante o Shogunato Tokugawa. Grande quantidade de artigos de porcelana e laca foram introduzidos na Europa pelos holandeses em meados da segunda metade do século XVIII e eram objeto de desejo de colecionadores europeus. Estes produtos atraíam principalmente pelos seus efeitos decorativos e pela excelência de seus materiais e técnicas utilizadas. Finalmente, depois de mais de dois séculos de reclusão, o Japão foi forçado a assinar um acordo comercial com a Europa e os Estados Unidos, abrindo suas portas para os estrangeiros. Foi o fim do período Edo. A causa que deu fim ao período é controversa, mas considera-se a abertura forçada do Japão ao mundo pelo Comodoro da marinha americana Mattew C. Perry, em 1854, como sendo o início de uma cadeia de eventos que levaram ao fim do shogunato no Japão. A abertura dos portos japoneses ao comércio exterior propiciou o contato cultural e artístico com o Ocidente, gerando um grande entusiasmo pela arte japonesa na Europa. A descoberta de novos valores estéticos sugeriu então uma 642 nova área do estudos: o japonismo. Dentre todas as espécies de obras japonesas que chegaram à Europa, uma em particular chamou a atenção dos artistas na França e despertou grande interesse: a gravura Ukiyo-e. Nessas gravuras transbordantes de cor, os artistas europeus descobriram uma tradição pictórica que prescindia de todo o ilusionismo acadêmico que conheciam. Tratava-se de xilografias populares japonesas, gravuras que registravam a vida, a moda e os entretenimentos dos japoneses urbanos nos séculos XVII, XVIII e começo do XIX. As pinturas Ukiyo-e mostravam uma sociedade desconhecida no mundo ocidental. Por volta de 1860, foi possível para os europeus descobrir um Japão até então desconhecido. Foram realizadas múltiplas expedições e viagens. Iniciou-se um fluxo de objetos decorativos japoneses, pinturas e gravuras Ukiyo-e para a França e Inglaterra. O Japão estava na moda! E Paris tornou-se o núcleo do japonismo europeu. A palavra “japonismo” foi cunhada em 1872 pelo autor e colecionador francês Philippe Burty (1830-1890), para designar um novo campo de estudos artísticos, históricos e etnográficos recebidos da arte japonesa. Os mais importantes defensores do Japonismo foram dois irmãos, Edmond (1822-1896) e Jules de Goncourt (1830-1870). Ficaram famosos pela publicação do “Journal”, informativos diários que revelavam um detalhado retrato da sociedade da época. Dentro das páginas deste diário, que escreviam juntos, encontrava-se muito sobre a história do Japonismo, um assunto que conheciam bem como colecionadores, críticos e romancistas. Segundo nos lembra Arakaki (1989: capítulo 4): Toda cultura é constantemente atingida por informações externas, próximas ou distantes, que são absorvidas inconscientemente. Quando os antigos valores de uma cultura apresentam sinais de cansaço, aspira-se por um “revival” dos mesmos ou procura-se novos caminhos. A assimilação inconsciente das informações externas aflora na consciência e serve de ponto de partida para o rejuvenescimento da cultura e para suas inovações. O contato com a cultura japonesa transformou-se numa das principais fontes de inspiração para os artistas do Ocidente, principalmente para os pintores impressionistas. “Nada mais nada menos que uma revolução no olhar dos europeus, 643 isto é o japonismo”, dizia o escritor Edmond de Goncourt no seu jornal, e acrescentava ainda: “Gostaria de afirmar que traz um novo sentido cromático, uma nova configuração decorativa e inclusivamente fantasia e visão poética à obra artística, como nunca antes tinham... existido” (PADBERG, 2008, p. 78). A gravura Ukiyo-e era uma obra de múltiplos exemplares, feitas em séries, e inicialmente, eram oferecidas em Paris por preços módicos, incentivando a sua aquisição por vários artistas e colecionadores. A Gravura Ukiyo-e As estampas Ukiyo-e apresentam um “mundo flutuante”: mulheres e rapazes das áreas de prazeres, atores de kabuki, usos e costumes das cidades, cenas de entretenimentos e vistas famosas. As xilogravuras estavam extremamente unidas à vida dos cidadãos japoneses. Desenvolveu-se como uma apropriação cultural e constitui um expoente único em todo o mundo. Ukiyo-e pode ser traduzido por estampa xilográfica. A estampa é a cópia ou o produto final do trabalho da gravura, que é a matriz que foi desenhada, gravada e entalhada na madeira. Esta arte é o produto do trabalho de três personagens que trabalham sincronizadamente para a obtenção de uma obra de qualidade: o pintordesenhista, o entalhador e o impressor. Durante o período Tokugawa, Ukiyo era a designação para o expansivo mundo dos prazeres, do teatro kabuki e dos quarteirões do bairro Yoshiwara, onde todos os tipos de satisfação erótica podiam ser obtidos. Tanto neste bairro do prazer, mundano, como nas apresentações do teatro Kabuki, era possível derrubar as barreiras sociais. Sua força de atração atuava de igual forma sobre a nova burguesia urbana e sobre a aristocracia. No século XIX, a natureza – paisagens, plantas, animais – também passou a fazer parte daquela vida festiva. O coração dessa existência estava nas pequenas coisas agradáveis da vida cotidiana. O domínio do pincel, oriundo da escola chinesa de pintura, constituía a base da pintura e da caligrafia no Japão. O gravador retinha com minuciosidade a pegada do pincel sobre a prancha de madeira. O estudante de pintura aprendia, através de 644 instruções rigorosas, o repertório do desenho e a destreza da pincelada mediante o exercício constante, da mesma forma que aprendia o vocabulário, a gramática ou a pronúncia do idioma, até que o discurso começasse a fluir. É importante registrar que, através dos ideogramas, os estudantes conheciam e percebiam as coisas concretamente, definidas pelos traços principais que os caracterizavam. As linhas eram traçadas de uma só vez. O artista começava a pintar só quando dominava a visão e os detalhes do mundo exterior. Van Gogh (2007, p.279) escreveu sobre esse aprendizado: Ao estudarmos a arte japonesa, veremos um homem que é indubitavelmente sábio, filósofo e inteligente, que passa seu tempo fazendo o quê? Estudando a distância entre a Terra e a Lua? Estudando a política de Bismarck? Não. Estudando uma única folha de grama. Mas essa folha de grama leva-o a desenhar todas as plantas, depois as estações, os amplos aspectos das paisagens, depois os animais e então o rosto humano. Assim passa ele a sua vida, e a vida é demasiado curta para fazer tudo isto. Ora vejamos, não é quase uma verdadeira religião o que nos ensinam esses japoneses simples, que vivem na natureza como se eles próprios fossem flores? E não podemos estudar a arte japonesa, parece-me, sem ficarmos mais alegres e mais felizes; ela nos faz voltar à natureza apesar de nossa educação e de nosso trabalho num mundo de convenções. A pintura japonesa originou-se da tradicional pintura chinesa e absorveu os fundamentos estéticos e filosóficos daquela arte. Um dos fatores determinantes da estreita relação cultural com a China foi a religião, desde o Xintoísmo até o Budismo, que chegou ao Japão no século VI. A pintura antiga chinesa evoluiu de uma tradição marcada pelo realismo para uma concepção cada vez mais espiritual. Essa espiritualidade era essencialmente inspirada pelo Taoísmo e enriquecida pela filosofia Zen. Os professores de arte das academias ocidentais iniciavam o estudo da natureza baseando-se em esquemas clássicos, que pretendiam captar o mundo à base de luzes e sombras como se fora um corpo no espaço, tendo como fundamento o desenho de imitação. No Oriente, ao contrário, o olho e a mão foram adestrados mediante a cópia de modelos que concentravam com exatidão a experiência pictórica dos séculos. Entretanto, as regras não tinham como meta a imitação externa das figuras, e sim captar o sentimento que anima a pincelada, cujo movimento organicamente controlado devia coincidir com o modelo. O olhar não só comprova a forma das 645 linhas que se desenham pra criar uma flor, uma onda, ou uma prega na mão, mas também, e com o mesmo cuidado, os espaços intermediários, ou melhor dizendo, o vazio entre eles. Juntamente com os fundamentos filosóficos da dualidade do yin-yang e com a ideia do sopro divino vital, que regem todas as coisas do Universo, o vazio sempre foi o tema primordial do pensamento estético chinês. Nesse contexto, a pintura não aceita reproduzir apenas o aspecto externo das coisas, busca compreender e fixar suas linhas internas e as relações ocultas que mantêm entre si. Na pintura chinesa, a pincelada atua como vínculo entre o homem e o espírito e, embasada na noção de vazio, manifesta todas as suas virtudes. OKANO (2007, p. 202) nos esclarece algumas diferenças entre a espacialidade ocidental e a oriental: No Ocidente a espacialidade se vê preponderantemente marcada pela perspectiva, que é a expressão de relações ideais criadas pela representação, uma tradução ideológica do antropocentrismo renascentista, quando o espaço e o tempo passam a comunicar um mundo ordenado e controlado pela razão humana. A perspectiva é uma submissão da figura em coerência com o esquema geométrico, através do eixo de visão centralizado e único do observador e o espaço “vazio” intermediário é simplesmente desconsiderado na sua representação. A espacialidade oriental (Espacialidade Ma) pressupõe uma montagem, onde atua como uma zona intervalar de intermediação entre dois elementos. A existência da espacialidade Ma pressupõe divisão e intermediação, como também relação e conexão, onde a noção de fronteira se torna uma constante. O espaço ‘vazio’ do espaço Ma, se refere à sua fisicalidade, à visualidade (como a coisa aparece aos olhos da mente). As gravuras Ukiyo-e apresentavam essas inovações na representação da espacialidade. Traziam novas formas de representar o mundo, muito diferentes daquelas com que os pintores ocidentais estavam acostumados no mundo acadêmico. Era o encontro de duas culturas, apresentando uma nova concepção plástica marcada também pela assimetria, ausência de profundidade e cores chapadas que marcaram de forma significativa a arte pictórica. Principais influências observadas O Japonismo foi mais do que uma novidade para os Impressionistas. Um novo modo de olhar foi absorvido pelos artistas, que encontraram então, nas 646 gravuras Ukiyo-e, respostas fundamentais para as suas pesquisas sobre novas maneiras de representação. As emoções causadas por essa escola popular das xilogravuras japonesas, geraram grande revolução entre os pintores ocidentais e provocaram um excitante novo direcionamento para artistas como James Abbott McNeil Whistler (1834-1903), Edouard Manet (1832-1883), Edgar Degas (1834-1917), Claude Monet (1840-1926), Vicent Van Gogh (1853-1890), Paul Gauguin (1848-1903), Mary Cassat (1844-1926), entre outros. Van Gogh (2007: p.236) destacou a importância da pintura japonesa para o desenvolvimento da pintura moderna: [...] a arte japonesa, decadente em sua pátria, retoma suas raízes nos artistas impressionistas franceses. A arte japonesa é algo como os primitivos, como os gregos, como nossos velhos holandeses, Rembrandt, Potter, Hals, Vermeer, Osatade, Ruysdael. Não passa nunca [...]. Embora os impressionistas tivessem como objetivo pintar o que era realmente visto por eles, nota-se que havia uma grande preocupação com a construção da composição. O próprio jardim japonês de Monet, cenário de suas famosas Ninféias, em sua casa em Giverny, parecia fazer parte de um projeto pictórico, certamente inspirado nas estampas japonesas de sua coleção. Novos princípios da composição, observados pelos pintores impressionistas nas gravuras japonesas, definitivamente modificaram o espaço pictórico de suas obras. Bakker (2010, p. 114) cita a gravura japonesa como importante estímulo recebido por Van Gogh para rejeitar a paleta escura de seus primeiros trabalhos e abraçar definitivamente o colorido exuberante em suas pinturas. Ela diz ainda: “O impacto da pintura japonesa na arte de Van Gogh não pode ser subestimado e, no final, era maior que aquele dos impressionistas”. Por meio de várias obras podemos comprovar a influência recebida dos artistas japoneses pelos artistas impressionistas. Nesta pesquisa foram analisadas algumas dessas obras, observando questões temáticas e técnicas, tais como 647 perspectiva, composição e enquadramento, cor, forma, linha, luz e sombra. Essas influências foram absorvidas e desenvolvidas de duas maneiras: 1. Um primeiro momento de encantamento dominou os artistas impressionistas, levando-os a citar, em suas composições, elementos derivados da arte japonesa. Quimonos, leques e outros motivos da arte japonesa passaram a ser incorporados nas pinturas de vários artistas europeus. 2. Em um segundo momento, de maior importância e intensidade, é possível presenciar uma ressignificação do que é apreendido, com adaptações ao contexto de cada artista. Nesse momento, a relação com a arte japonesa está presente na concepção artística, ou seja, no processo de criação. A percepção do artista interage com as novas imagens e, através de um processo de transformação, incorpora esses recursos criativos e utiliza-os, de maneira subjetiva, na construção de seus trabalhos. No caso dos impressionistas, esses elementos foram recriados na representação de cenários, fundamentados nas técnicas japonesas selecionadas, e incorporados ao contexto francês. Observando o processo criativo desses artistas, verificamos que, através das influências japonesas, modificações importantes foram introduzidas na espacialidade da obra. A seguir, serão destacadas algumas dessas influências. Composição cortada A “composição cortada” é uma técnica japonesa utilizada pelos impressionistas que proporciona dinamismo ao objeto retratado. Nessa técnica, objetos de significado conhecido são representados apenas parcialmente,deixando a complementação por conta da imaginação do observador. Esse fator, um pouco mais tarde, as teorias da percepção vão comprovar como uma característica da representação de formas: tendemos a fechar as formas incompletas, a completá-las. 648 Descentralização da figura A descentralização da figura é outro importante fundamento das gravuras japonesas e está relacionada com a espacialidade MA, que pressupõe uma zona intervalar de intermediação entre os elementos da cena. Ao remover grande parte da composição ou do objeto retratado para um dos lados, cria-se um espaço disponível, abrindo perspectivas para o horizonte. Perspectiva Uma das características mais importantes da pintura acadêmica ocidental do século XIX era o espaço marcado pela perspectiva central, de foco único. As composições japonesas, ao contrário, sempre utilizaram pontos de vista diferenciados, que proporcionaram aos impressionistas novas maneiras de interpretar o espaço. A ilusão de profundidade para os artistas japoneses era dada por vários recursos, utilizados separadamente ou de forma simultânea, como descrito abaixo: Linhas diagonais A divisão do espaço pictórico através de linhas diagonais era uma das formas de criar a ilusão de profundidade e distanciamento. Essas linhas podem cruzar o espaço da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, ou ainda, nas duas direções, o que proporciona maior dramaticidade à cena. Perspectiva contínua As gravuras Ukiyo-e são elaboradas da mesma maneira que se “lê” um texto na escrita oriental kanji, ou seja, da direita para a esquerda/de cima para baixo; dessa forma eram feitos também os tradicionais rolos de pintura e painéis. Por esta razão, nas gravuras Ukiyo-e não existe um ponto de fuga e sim uma proposta para a leitura contínua da obra, parte por parte, criando uma perspectiva não centrada, com vários pontos de vista. O espectador tem uma visão diferente, mas oticamente 649 correta de cada ponto da pintura. Esses pontos de vista podem ser de cima para baixo, de baixo para cima ou pelos cortes em diagonal, como vimos anteriormente. Em muitas composições, a linha do horizonte é eliminada ou deslocada, criando uma nova perspectiva que altera a percepção de espaço do espectador. Contrastes cromáticos Os contrastes alcançados pelo encontro de cores não complementares eram intensamente utilizados nas estampas japonesas e influenciou fortemente a representação dos efeitos cromáticos da luz na pintura impressionista e pósimpressionista. Em 1888, Van Gogh foi para Arles, no sul da França, onde a luz e o brilho das cores da natureza lhe proporcionaram uma nova experiência, que ele relacionou com as cores encontradas na pintura japonesa. O interesse de Van Gogh pelas pinturas japonesas superava a apreciação estética de suas cores. Van Gogh alimentava uma visão utópica do Japão como um paraíso de cores e beleza, que ele reconheceu como similar em Arles. Van Gogh e seu irmão Theo colecionaram cerca de 350 gravuras japonesas, entre elas 12 estampas do artista Utagawa Hiroshige (1797-1858). Sintetização das formas A arte japonesa é marcada pela simplificação de suas formas, procurando sempre mostrar o que realmente importa, ou seja, a expressão dos objetos. O artista Katsushika Hokusai (1760-1849) sistematizou essa tradição oriental através de uma série de estudos de movimentos e expressões, que recebeu o nome de Mangá. A palavra Mangá é o resultado da união dos ideogramas Man (humor) e Gá (grafismo), semelhante à “caricatura”, que seria a tradução literal para o Português. São milhares de imagens compreendidas em 15 volumes, a primeira publicada em 1812, quando o artista tinha 52 anos. Seu trabalho começou a circular na Europa logo depois da abertura dos portos do Japão ao mundo ocidental. Nas Exposições 650 Universais de Londres, em 1862, e de Paris, em 1867, as estampas de Hokusai causaram grande impacto. Similaridades As gravuras Ukiyo-e ofereceram aos pintores impressionistas uma importante reflexão sobre os costumes correspondentes na sociedade parisiense que, também como a sociedade japonesa do período Edo, viviam um período de fascínio com as novas possibilidades de lazer e prazer, acessíveis a uma nova classe social emergente. Pintores como Hiroshige que, em sua série “Cem vistas famosas de Edo” evocava a vida urbana e da paisagem da cidade de Edo, confirmavam a visão de muitos artistas ocidentais da época, que também estavam preocupados com a experiência urbana moderna e seus arredores. Considerações Finais Uma nova maneira de ver, compreender e representar o mundo foi construída pelos pintores impressionistas. Nessa construção eles não partiram do princípio de uma concepção predeterminada do espaço pictórico, buscavam libertar a percepção visual de qualquer preconceito ou convencionalismo. As informações selecionadas e organizadas nesta pesquisa, demonstram que as estampas Ukiyo-e exerceram grande influência na concretização da proposta impressionista. Estes artistas viram na arte japonesa uma tradição que, não contaminada pelas convenções acadêmicas ocidentais, oferecia novos instrumentos para uma representação subjetiva do espaço pictórico. As estampas japonesas apontavam para a comprovação de que um novo caminho era possível, longe da artificialidade das sombras obtidas no ateliê e do ilusionismo da perspectiva de ponto único. Além disso, os artistas japoneses conseguiam captar, através da cor e da gestualidade, a essência da percepção visual. 651 Se nos dias de hoje nos parece natural aceitar a subjetividade do olhar na representação pictórica, sabemos que no século XIX, em função das convenções acadêmicas, as inovações propostas pelos impressionistas eram questionadas não só pelos salões oficiais, mas também pela sociedade. Podemos imaginar então o estímulo recebido pelos pintores impressionistas ao conhecerem uma estética tão inovadora, em que a mediação com a natureza era feita pelos olhos do artista. As novidades trazidas pelas estampas japonesas, além de inspiradoras, ajudaram a observar até que ponto as convenções européias ainda persistiam entre os próprios impressionistas. A visualização de uma experiência em que a natureza perde a sua condição de imutabilidade, contribuiu para que cada artista passasse a utilizar o seu próprio filtro de visão e, sob o domínio da impressão, utilizasse a percepção de como a luz age sobre a superfície para apreender, sem nenhum tipo de modelo ou preconceito, os reflexos produzidos por ela na tela. Referências Bibliográficas ARAKAKI, Maya Rubia Ayako. Ukiyo-e, Japonismo e um Estudo de Caso no Brasil . 1989. Dissertação (Mestrado Comunicação e Artes) - Universidade de São Paulo. ARGAN, Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; trad.: Denise Bottmann e Federico Corotti. BAKKER, Nienke. ColourandJaponisme. In: The Real Van GoghThe artistandhisletters. Londres: Royal AcademyofArts, catálogo, 2010. BAUDELAIRE, Charles. A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Literatura e Música). Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2006; trad.: Pedro Tamen. CHENG, François. 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Michiko Okano. 653 MIRA SCHENDEL E A PINTURA CHINESA Victor Raphael Rente Vidal - UFRJ Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosana Pereira de Freitas RESUMO: A presente pesquisa tem como objetivo estabelecer pontos de contato entre os trabalhos da artista Mira Schendel com a pintura chinesa. Mira Schendel, judia e suíça, radicou-se no Brasil em meados da década de quarenta após passar anos deslocando-se pela Europa fugindo de perseguições de radicais religiosos e xenófobos. Ao se estabelecer no Brasil sua carreira artística finalmente tomou forma. A obra de Mira Schendel é marcada por uma sensibilidade e melancolia muito creditada a sua falta de raízes. As suas obras, sempre questionando como estar no mundo, como ocupá-lo, são caracterizados pela presença do vazio, e é a partir dessa questão que será traçado uma ponte com a pintura chinesa. Profundamente ligada a ritos, a pintura traz em seus alicerces a noção do Vazio, presente no pensamento chinês desde O Livro das Mutações. O Vazio é tido como um espaço em potência, um espaço onde mutações estão ocorrendo, o Vazio nunca é um espaço de falta, de perda. Palavras-chave: Schendel, arte, moderna, pintura, chinesa. ABSTRACT: This research intend to explore a relation between Mira Schendel's work and chinese paintings. Jewess and born in Switzerland, Mira Schendel settled in Brazil in the middle of 40's after scape of religious and xenophobic persecution in Europe. Finaly in Brazil, her artistic carrear started. Mira Schendel's work is defined on sensibility and melancholy credited to your rootless feeling. Your artworks is always responding to the problem of who we are in this world, how we ocupy it, caracterized by the presence of the "Empty". From here will be traced a relation with chinese paintings. Deeply connected with rituals, the chinese paintings brings the notion of emptiness, presented in chinese philosophy since the “Book of Changes”. “Empty” place is understood as a place in potential, a place where mutations happens, “Empty” is never a place of lack. Keywords: Schendel, art, modern, painting, chinese. Grande parte da obra da artista Mira Schendel impressiona pela economia que carrega. Mira é enxuta em suas propostas, em alguns trabalhos a ação é quase mínima. Chama atenção o branco do papel, a tela de cor única, a transparência, como se a artista estivesse buscando captar algo etéreo, de difícil alcance. O presente texto busca estabelecer uma possível relação entre a obra da artista Mira Schendel e a pintura chinesa da dinastia Song por meio da noção do Vazio. O Vazio é um elemento do pensamento chinês encontrado em diversas manifestações culturais e que está na base de várias correntes filosóficas, principalmente daquelas provenientes do “I Ching”. Para esse enfrentamento será usado o livro do teórico François Cheng, “Vazio e Plenitude”. Os apontamentos a respeito do percurso de 654 Mira Schendel terão como suporte a crítica brasileira recente sobre a artista. Este trabalho é fruto de reflexões iniciais do que pode vir a ser uma monografia de fim de curso de graduação em História da Arte. Mira Schendel, nascida em Zurique, Suíça, chegou ao Brasil em 1949, aos trinta anos, após percorrer diversos países da Europa fugindo de perseguições antissemitas. Os anos de deslocamentos possibilitariam o aprendizado de diversos idiomas, sendo o italiano a primeira língua aprendida. De acordo com Geraldo Souza Dias no livro “Mira Schendel: do espiritual à corporeidade”, Mira seria fascinada por idiomas e suas nuances; as palavras possuiriam grande significância para a artista, fossem por suas qualidades sonoras, mutantes de idioma para idioma, fossem seus significados e as relações que eles estabeleceriam de cultura para cultura, ou ainda as qualidades gráficas que a palavra escrita seria capaz de oferecer. Nesse último ponto, muito motivada por um contato com a escrita oriental. A palavra será um dos elementos chaves na obra de Mira Schendel. Mira primeiro se estabelece em Porto Alegre juntamente com o seu marido, Josip Hargesheimer e afirma (SCHENDEL apud. MAQUÊS, 2011, p. 12) ter praticamente começado a pintar aqui no Brasil, a despeito de pequenos trabalhos realizados enquanto viveu na Europa. Em Porto Alegre, a artista diz ter encontrado um local seguro onde pôde começar a desenvolver seus trabalhos fora dos circuitos artísticos e afastada de modismos e movimentos da época. Como afirma Maria Eduarda Marquês no livro “Mira Schendel, pintora”, embora toda a sua obra seja diversa em experimentações, sendo redutor restringi-la apenas a categoria de pintora, “a pintura foi a matriz de suas múltiplas criações, que se formalizaram em processos singulares de desdobramentos, continuidades e contiguidades renovadas”. (MARQUÊS, 2011, p. 13). Durante o período passado em Porto Alegre, os trabalhos desenvolvidos por Mira possuíam uma relação muito grande com os do pintor italiano Giorgio Morandi. O tema das garrafas e copos de Morandi foi de grande referência para Mira, que pintou quadros muito similares aos dele, embora optando por um desenvolvimento ligado mais a geometria e menos a concretude dos objetos, como era o caso do pintor italiano. 655 Mira expôs algumas de suas obras ainda em Porto Alegre, mas foi apenas quando se mudou para São Paulo que a sua carreira realmente começou a tomar forma. A essa altura, Mira e Josip já haviam se separado e agora a artista assinava seus trabalhos apenas com o seu primeiro nome, talvez como uma forma de afirmar sua identidade. É preciso dizer que Mira foi batizada em Zurique por Ada Saveria e Karl Dub, seus pais, com o nome Myrrha Dagmar Dub. Como nos mostra Geraldo Souza Dias no livro “Mira Schendel: do espiritual à corporeidade”, o nome da artista foi sofrendo diversas alterações e simplificações conforme seus deslocamentos, quase como uma espécie de adaptação. O “Schendel” acrescentou-se ao seu nome apenas com o seu casamento seguinte com Knut Schendel. Participando de Bienais, frequentando exposições de artes e estando presente no meio artístico paulistano, o trabalho de Mira desse período mantinha relações com o movimento neoconcreto, “mas de uma forma singularmente despretensiosa”. (LAMBERT, 2011, p. 34). Os trabalhos de Mira dessa fase estavam interessados nas possibilidades da abstração, não apenas por uma leitura formal, mas por aquilo que elas poderiam vir a significar. Ou seja, Mira não usava a geometria como um elemento concreto no quadro, mas como um elemento carregado de significações e pessoalidades. Poderíamos dizer que a abstração de Mira está mais para Kandinsky e menos para Mondrian. Na pintura de Mira podemos estabelecer um percurso que começa com a figuração e termina em quadros marcados pela presença do vazio. A figuração dos seus primeiros trabalhos era uma figuração muito comedida, de elementos muito econômicos e de pouco naturalismo. São esses os quadros que referenciam Morandi. Após um momento dedicado a pinturas figurativas, Mira passou a pintar fachadas de casas em uma série intitulada Fachadas. No desenvolvimento destes trabalhos, Mira simplificou tanto as suas fachadas até chegar à pura geometria, embora, como também dito anteriormente, uma geometria mais intuitiva, livre, sensível e cheia de significados para a artista, longe do universo dos concretistas. É possível dizer que Fachadas marca uma transição em sua pintura entre o figurativismo e o abstracionismo de qualidade geométrica. Desses quadros geométricos Mira passa a pintar telas monocromáticas ou de duas cores com mínimos elementos povoando a composição, seja um pedaço de folha de ouro ou 656 um risco ou um elemento geométrico minúsculo. Quem encara essas pinturas de mínimas ações por parte da artista sente os olhos deslizarem por essas superfícies lisas e monocromáticas até esbarrarem inesperadamente com um elemento aparentemente perdido. Parece que fizemos uma digressão das conquistas modernas e voltamos à dicotomia figura e fundo. Mas é só impressão. Em Mira figura provém de fundo, figura é fundo. Em outro estado, em outro tempo. Experimentar essas pinturas é como captar o instante da figura, como observar o nascimento dela, o seu vir a ser. Em contato com as cartas e os diários de Mira, Geraldo Souza Dias nos aponta que durante esse período fica claro o quanto esses trabalhos eram desgostosos para a artista, que ainda procurava por aquilo que realmente a interessasse e a motivasse. Foi quando ganhou de presente blocos de papel japonês que Mira viu caminhos para desenvolver aquilo que durante muito tempo seria uma vertente forte em sua produção artística: a transparência. “(...) a ideia [é a] de acabar com atrás e o à frente, com o antes, com o depois, uma certa ideia de simultaneidade mais ou menos discutível, o problema da temporalidade, da espaciotemporalidade etc.” (SCHENDEL apud. DIAS, 2009, p. 257). Mira precisou procurar por uma técnica com a qual pudesse desenhar no papel japonês, afinal, esse é um papel muito fino que não aceita grandes quantidades de tinta ou água. Mira teve de inventar uma técnica que a possibilitasse desenhar nesse suporte, o que acabou gerando a série denominada Monotipias. A técnica inventada pela artista consistia em utilizar uma placa de acrílico que teria a sua superfície entintada de preto e salpicada por talco. O talco funcionava como uma barreira entre a tinta e o papel japonês que seria colocado por cima, fazendo com que o papel não absorvesse a tinta de imediato. Com um objeto pontiagudo, que poderia vir a ser desde a tampa de caneta à sua própria unha, Mira marcava um lado do papel fazendo surgir um desenho no outro. Maria Beatriz da Rocha Lagôa, na dissertação “Mira Schendel – Um ensaio sobre as monotipias”, aponta uma qualidade muito interessante nesses trabalhos: a matriz das Monotipias de Mira, a placa de acrílico ou vidro, não recebe ação alguma. 657 Enquanto em uma matriz de xilogravura as incisões na madeira são demarcadas por goivas, ou na matriz de metal o ácido, para produzir um desenho ou o que quer que seja em negativo e assim imprimir positivo; a matriz de Mira segue intacta. O que sofre interferências por parte da artista é o papel. Comumente em uma gravação, a matriz é ativa e o papel é passivo, na técnica inventada por Mira é o inverso; o papel é ativo, a matriz é passiva. Desse modo não é possível fazer reproduções da série Monotipias; sem uma matriz fixa não há uma qualidade uniforme no trabalho. O caráter principal dessa técnica inventada por Mira é a possibilidade de produzir diversos exemplares com imensa rapidez, o que explica essa série possuir tantos exemplares, cerca de duas mil. Um dos primeiros apontamentos que pode ser feito sobre as Monotipias de Mira é o quanto essa série enfatiza o branco do papel japonês. Maria Lagôa, após se dedicar a observação das Monotipias de Mira, propõe uma sistematização interessante dos quase dois mil exemplares da série. De acordo com a autora, as Monotipias de Mira podem ser divididas em três grupos: 1) Intervenções mínimas no papel almejando um “quase vazio”; 2) Conjuntos de letras que formam, ou não, palavras e frases associados a traços e formas; 3) Composição de formas circulares. Evidentemente que esses três “grupos” não correspondiam a uma regra estabelecida por Mira, o processo das Monotipias era um processo que abraçava o acaso e atrelava criação ao momento da concepção, ou seja, Mira deixava para o processo de concepção os problemas e as soluções que o papel japonês e a sua técnica de desenho poderiam lhe proporcionar. A visualidade que Mira nos oferece com essas mínimas intervenções, formas geométricas e letras que ora são palavras, e então signos, ora são elementos gráficos, corresponde a um espaço pouco ligado ao caráter físico e muito ao sensível. Com isso busca-se dizer que o espaço das Monotipias de Mira está voltado 658 para a sensibilização e a imaginação da artista. Tem-se a impressão ao enfrentar as Monotipias de Mira que estamos olhando um mapa de pensamentos e deslocamentos da artista; é como se as Monotipias fossem um registro sensível do que acontecia no seu ateliê, um registro sensível do seu deslocamento, por exemplo, ao redor da sua mesa de trabalho. Por esse caminho, as Monotipias de Mira podem ser lidas como trabalhos que exploram noções de espaço e tempo. Espaço porque vemos os elementos sendo distribuídos no papel de uma maneira muito particular, embora seja uma distribuição muito ligada à sensibilidade e imaginação da artista; e tempo porque incorpora no papel os deslocamentos de Mira ao redor do papel, e deslocamento implica tempo. Em um embate com as Monotipias podemos dizer que há um caráter reflexivo nesses trabalhos, um isolamento que eles parecem reclamar. Em “Mira Schendel – Um ensaio sobre as Monotipias”, Maria Lagôa afirma que parece existir um paradoxo nessa série de trabalhos. Para ela, Mira em alguns momentos estaria querendo falar sobre as origens da linguagem, mas valendo-se da sua desconstrução. Podemos exemplificar isso com as Monotipias que apresentam letras, mas não formam palavras, naquelas em que Mira mistura idiomas ou brinca com a qualidade gráfica das letras. O mesmo ocorreria naqueles trabalhos em que os círculos não são perfeitos, são quase círculos. Ainda há as Monotipias de mínimas intervenções por parte da artista, o papel está quase branco, a não ser por uma mancha aqui ou um traço ali. Mira sobre as suas Monotipias: Os trabalhos ora apresentados são resultados de uma tentativa, (…), de surpreender o discurso no momento da sua origem. O que me preocupa é captar a passagem da vivência imediata, com toda sua força empírica, para o símbolo, com sua memorabilidade e relativa eternidade. (SCHENDEL apud. SALZSTEIN, 1996, p.2) Devido à técnica inventada, os elementos desenhados por Mira parecem brotar de dentro do papel japonês. A tampa da caneta pressionando um lado do papel e marcando o seu verso, depois da secagem, nos impressiona por fazer com que o papel pareça marcado dos dois lados. As mãos de Mira apoiadas sobre o papel também rompem a barreira do talco manchando levemente a superfície do 659 papel. A espessura tão fina do papel japonês submetido a essa técnica nos oferece marcas de ambos os lados. Algumas vezes as Monotipias de Mira Schendel foram expostas fora da parede, presas ao teto, suspensas no espaço (como aconteceu recentemente na última ArtRio, em 2013), o que reforça as questões sobre transparência e simultaneidade tão importantes para a artista. O espaço nas Monotipias de Mira não é um espaço matemático representativo, ele está na ordem do espaço moderno que rompe com as ideias da perspectiva renascentista. Mira é moderna porque pensa a forma e as possibilidades da forma. O espaço modernista caracteriza-se pela desconstrução do espaço euclidiano renascentista e pela crise da representação em favor do livre uso do espaço pictórico. O legado modernista é o legado da experimentação e do novo, a arte moderna abre portas para inventar e explorar sem qualquer tipo de compromisso com a natureza ou com a arte produzida no período clássico. Devido ao processo inventado por Mira para produzir a série Monotipias não é possível que a artista faça retoques posteriores a fim de aperfeiçoar um traço ou tornar legível determinada frase ou que o seu círculo seja exatamente redondo. Dessa maneira, os exemplares das Monotipias comportam em sua estética a oscilação do traço, a hesitação, a imperfeição, o torto, o interrompido. Podemos constatar nas Monotipias que quase não há uma separação entre aquilo que é pensado com aquilo que é realizado, porque a intenção é que tudo aconteça ao mesmo tempo enquanto o processo das Monotipias ocorre. Outro importante trabalho desenvolvido por Mira Schendel utilizando o papel japonês como suporte foi a serie Droguinhas. A série Droguinhas se compõe, em grande maioria, por trabalhos espaciais feitos a partir de torção e de nós no papel japonês. É como se Mira estivesse usando o papel japonês para trançar uma enorme e delicada rede. Sua qualidade é tão efêmera que intencionando enviar tais trabalhos para Londres Mira disse não saber como transportá-los sem danificar. Na oitava Bienal de São Paulo esses trabalhos foram chamados de Droguinhas Fenomenológicas, o que torna mais claro o que Mira quis dizer ao afirmar que essa serie era um desdobramento das suas explorações no desenho, não esculturas, como a princípio poderíamos vir a pensar1; 660 embora essas nomenclaturas não façam sentido em Mira, que gostava de explorar e experimentar. Historicamente, escultura, muito por causa do pedestal, sempre se manteve afastada do mundo. Como se o pedestal, como seria com a moldura na pintura, teria como tarefa nos dizer que o que acontece sob ele faz parte de uma realidade que não é a nossa. Esse entendimento segue a linha de pensamento em que a arte é mera representação de coisas mundanas. As Droguinhas de Mira não são cópias de nada que existe no mundo, elas estão no mundo, fazem parte do mundo e atuam no mundo. Exatamente por esse motivo a ação empregada pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de expor (1966) as Droguinhas no chão da galeria para que o público pudesse manusear e interagir parece sem sentido. Primeiramente porque as obras eram de uma fragilidade enorme e segundo porque não era preciso tocar nas Droguinhas para que elas atuassem no mundo; elas já estavam atuando, uma vez que elas são mundo. Essa maneira de pensar a arte, não a retirando da esfera mundana, está em completa consonância com a visão taoísta de mundo destituída de dicotomias como espírito-matéria, figura-fundo. O entendimento é de que essas duas instâncias possuem qualidades diferentes, mas convivem juntas e formam um núcleo único. Esse pensamento além de fazer parte de certas filosofias orientais também está presente na pintura chinesa do período dinástico Song (960 – 1279), que também pode ser conhecida como pintura monocromática de paisagem, pintura de montanha e água, pintura de bambu, pintura de flor de ameixeira. Toda a literatura desse período se desenvolveu ao redor das noções estabelecidas pela pintura de flor de ameixeira. A pintura na China durante esse período esteve muito vinculada à caligrafia e a poesia. A pintura chinesa da dinastia Song possui uma enorme relação com a espiritualidade taoísta. Tao pode ser rapidamente definido como um princípio cósmico presente em todo o universo destituído de dicotomias como matéria e espírito; Tao seria formado por uma concepção única entre corpo e espírito. Essa ideia de Tao como uma entidade destituída de dualismos conferiria às suas forças a noção de infinito. 661 Sendo assim a pintura de flor de ameixeira preserva em seus alicerces umas das grandes ordens de pensamento taoísta: a noção de Vazio. A noção de Vazio está presente no pensamento filosófico e cultural chinês desde o “I Ching”, de onde diversas escolas de pensamento (budismo, confucionismo, taoismo, etc) tiveram sua origem. Várias dessas escolas filosóficas valeram-se da noção de Vazio nos desdobramentos dos seus pensamentos, mas foi a escola taoísta quem deu papel central a ele. A de ideia de Tao seria originária da combinação de duas forças: o Yin e o Yang. O Yin como o material, o orgânico, a Terra; enquanto o Yang como o imaterial, o inorgânico, o Céu. Tao seria constituído por essas duas forças que para nós, ocidentais, são vistas como contrárias umas às outras. Como dito anteriormente, Tao está completamente destituído de qualidades ambíguas, dicotômicas. E isso ocorre porque existe o Vazio. No capítulo “O Vazio na filosofia chinesa”, François Cheng nos estabelece a seguinte estrutura de pensamento: o Vazio seria o terceiro elemento da relação YinYang. O Vazio consistiria em uma força que daria movimento e funcionamento à dupla Yin-Yang. De outro modo, o Yin e o Yang seriam forças dicotômicas que se empurrariam e produziriam uma força marcada pelo estático. Com o Vazio, Yin-Yang formam uma força cíclica que animam o mundo. Visto dessa maneira, o Vazio não é uma realidade marcada pela ausência, pela falta, pelo espaço em branco, por aquilo que não está; o pensamento chinês vê o espaço do Vazio como um espaço de transformação, o espaço do Vazio como um espaço em potência, o Vazio como espaço de transmutação. Ao aprofundar mais a questão do Vazio, Cheng nos diz que na cosmologia chinesa existe aquilo que eles chamam de o Vazio Supremo, o lugar de onde emana o uno. O uno seria o Sopro Primordial, que por sua vez seria a força que anima todo o Universo, a força que gera vida. O Uno, ou Sopro Primordial, gera o Duo, que seria a força dupla encarnada no Yin-Yang. Entre o Yin-Yang há o Vazio, também chamado de Vazio Intermediário. Do Sopro Primordial deriva os Sopros Vitais que criam e animam todo o universo. 662 Podemos observar que existem no pensamento chinês diversos tipos de vazios, cada um com uma ação muito específica, mas todos compreendidos como uma força ativa. Ou seja, o Vazio nunca é uma força estática. Não se pode pensar no Vazio como um algo que apenas impede o choque entre o Yin e o Yang, mas como um algo que modifica e transforma a natureza, que dá movimento a essas duas forças. Em todo o universo está presente essa força de caráter triplo (Yin-Vazio-Yang, para tornar mais visível tal relação); é essa força que anima o Universo e é essa força que está presente em todo o Universo. Sendo Tao destituído de qualidades ambíguas, fora da relação ocidental corpo-espírito, os Sopros Vitais que animam o Universo são os mesmos que animam todos os homens, todos os dez mil seres, como diziam os primeiros pensadores ao referirem-se à criação da humanidade. Dentro desse esquema, o homem possui em seu interior a relação Yin-Yang, e por sua vez o Vazio. Imaginemos um teatro onde uma orquestra se apresenta. Tao é a música que faz todos dançar, mas é também os instrumentos, os músicos que tocam os instrumentos e o teatro onde a orquestra se apresenta. Essa noção de espiritualidade pode parecer muito estranha aos olhos católicos acostumados à separação espírito e matéria, divindade e criatura. A partir da ideia do qi, ‘sopro’, ao mesmo tempo matéria e espírito, os primeiros pensadores chineses formaram uma concepção unitária e orgânica do universo vivo em que tudo está ligado e se mantém. O Sopro constitui a unidade básica e, ao mesmo tempo, anima continuamente todos os seres do universo vivo, ligando-os numa gigantesca rede de vida em movimento chamada Tao, o ‘Caminho’. Dentro do Tao, o funcionamento do Sopro é ternário, pois o Sopro primordial divide-se em três tipos cuja interação rege a totalidade dos seres vivos, que são, o sopro Yin, o sopro Yan e o sopro do Vazio Mediano. (CHENG, s/d, p. 111) O mergulho na espiritualidade está no reencontro do homem com o Vazio em seu interior, afastado pelos prazeres da vida mundana. É dessa forma que o silêncio e a reclusão fazem parte de modo tão forte nas religiões das culturas orientais. O silêncio nunca como algo constrangedor em vista o não dito, o silêncio nunca como o não saber o que dizer, o silêncio nunca como falta de algo; silêncio como transformação, como espera, como espaço para uma mudança se efetuar. O silêncio 663 seria um “lugar” onde estaria ocorrendo movimentos internos de grandes transformações. A pintura de flor de ameixeira possui todas essas qualidades em seu interior. O pintor seria imbuído da tarefa de trazer para a pintura as relações que vimos acima. Mas não por meio de um processo didático, embora haja pinturas que sirvam a esse propósito, mas produzir uma pintura que traga em si esse movimento. A pintura chinesa antiga seguiu uma evolução onde começou marcada por um realismo para uma concepção cada vez mais espiritual. Na página 129 de “Vazio e Plenitude”, Cheng nos mostra que a noção do Vazio na pintura já estaria presente desde o período Tang (618 – 907), embora fosse uma vertente baseada no figurativismo. No período dinástico posterior isso mudará em favor de uma pintura de paisagem de qualidade monocromática. Por espiritual não se quer dizer uma pintura propriamente de temas religiosos, mas uma pintura que tendesse por si mesma a converter-se em espiritualidade; uma pintura que trouxesse entranhada em suas qualidades poderes transcendentais, uma pintura que pudesse por ela mesma ser um canal espiritual. Por espiritualidade queremos dizer uma espiritualidade essencialmente inspirada no taoísmo e enriquecida pela filosofia chan (zen). A pintura de flor de ameixeira serve a contemplação, mas não a contemplação de ordem decorativa, vaidosa, mas de caráter edificante; contemplação que busca por meio dela uma revelação. É dessa maneira que a pintura de flor de ameixeira possui uma qualidade sagrada sem necessariamente tratar de temas religiosos. Produzir um trabalho de pintura e/ou contemplar esse trabalho de pintura constitui na China quase como um rito sagrado. Nesse jogo de entrelaçamento total, o sujeito que olha é igualmente olhado, e assim o mundo olhado revela-se ele também ‘olhando’. Entre as duas entidades presentes, o cruzamento em questão transmuta-se em interpenetração. É exatamente através de um corpo a corpo e de um espírito a espírito que surge a verdadeira percepção/criação. (CHENG, s/d, p. 105) Os mesmos Sopros Vitais que animam o universo e todos os seres animam também a pintura. Ou seja, a pintura para o pensamento chinês é algo gerado pela 664 mesma força motriz (Tao) que impulsiona o surgimento do universo e dos dez mil seres; sendo assim, para o pensamento chinês a pintura é algo que está intrinsecamente ligado à vida. Colocando a pintura no mesmo nível das vivências humanas, os chineses estão propondo uma experiência onde arte e vida pisam o mesmo chão e engendram ações intercambiáveis. É nesse sentido que a pintura pode se converter em espiritualidade, porque ela age nas nossas vidas e nos modifica. Animada por estas duas ideias, a pintura não se conformaria com reproduzir o aspecto externo das coisas, buscando discernir suas linhas internas e fixar as relações ocultas que mantém entre si. (Zong Bing: o espírito não tem forma própria; cobra forma através das coisas. Se trata, então, de trazer as linhas internas das coisas mediante pinceladas habitadas por sombra e luz. Quando as coisas são assim recebidas adequadamente, se convertem em representação da verdade). (CHENG, 2004, p. 133, tradução nossa) Os pintores de flor de ameixeira estão preocupados em revelar as linhas internas que cada coisa no universo possui; linhas internas como aquilo que define o que cada coisa é, como as suas propriedades se constituem; ou seja, os pintores chineses estão preocupados em revelar as essências, não apenas as aparências. A pincelada chinesa busca discernir as linhas internas, aquilo que anima os dez mil seres, os seus sopros. (CHENG, 2004, p. 136). Levando em conta essa preocupação com as linhas internas que definem os contornos do que cada coisa no universo é, bons artistas na China são definidos pela capacidade em dar conta dos contornos internos com apenas uma pincelada. A pintura de flor de ameixeira tem como parente a caligrafia, que para eles é também considerado uma arte. De acordo com Cheng é pela arte da caligrafia que o pintor chinês empreende as composições estruturais da pintura; são os ideogramas chineses que dão ao pintor a estrutura a ser seguida na pintura, os ideogramas apresentam formas que propõe estruturas que variam em triângulos, diagonais, círculos centrados e descentrados, quadrados, e etc. Caligrafia é uma espécie de arte improvisada que demanda ser criada na inspiração do momento. Diferente da pintura, não pode ser novamente refeita, nem parcialmente apagada ou retocada. Assim sendo, os trabalhos da caligrafia são muitas vezes caracteristicamente influenciados pela casualidade. A arte da caligrafia é elevar esta casualidade para a 665 necessidade. Posto que esta qualidade não seja única para com a caligrafia. Pintura oriental, especialmente os esboços com tinta chinesa, muitas vezes têm esta qualidade. Consequentemente, no Oriente, o povo tem falado desde os tempos antigos sobre a harmoniosa unidade de caligrafia e pintura. O propósito da caligrafia é, portanto, não apenas desenho ornamental ou legibilidade. O que desejamos expressar ou que seja apreciado em nossos trabalhos são, em uma palavra, nossas ideias do mundo e nosso sentimento espiritual. (MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO, 1971, p. 7) Os pintores chineses em formação passam por longos períodos de treinamento produzindo trabalhos caligráficos. Desse modo, os artistas estão treinando o desenho, que é o aspecto mais importante para a pintura de flor de ameixeira. Enquanto por longos períodos a pintura europeia foi caracterizada pelo volume e pelos efeitos de profundidade que os artistas conseguiam produzir com a cor e as variações dela, na China a pintura se definiu pelo desenho; como afirmamos anteriormente, não por uma mera preocupação com as aparências, mas por aquilo que de interno, de essencial, as linhas podem definir no papel. O aprendizado para a pintura de flor de ameixeira compreende um grande momento destinado à observação. Primeiro o pintor deve através da visão dominar os contornos externos do mundo e por meio da reflexão alcançar os contornos internos. O aprendizado para a pintura de flor de ameixeira requer muita meditação, não é uma prática apenas de habilidade manual, mas também mental. A pincelada é o elemento central da pintura de flor de ameixeira, é o elemento que propõe um vínculo entre o homem e o sobrenatural. O pincel e a tinta formam a dupla que estruturam todo o pensamento que envolve essa prática pictórica. O pincel não tem serventia alguma sem a tinta, por sua vez a tinta não é nada sem o pincel para lhe dar forma. A comunhão dos dois remete a comunhão espiritual, comunhão que se relaciona com a noção de Tao, que abarca em sua força tanto matéria quanto espírito de maneira inseparável. Uma vez tendo tanta importância a pincelada de movimento único, que deve ser algo internalizado no corpo do artista, para surgir de maneira natural sobre o papel, a cor restringe-se muito ao preto e às variações que podem ser encontradas ao diluir a cor preta. Cheng nos apresenta seis tipos diferentes de tons, chamados de: 1) seca; 2) diluída; 3) branca; 4) molhada; 5) concentrada; e 6) negra. Esses seis diferentes tons formam três pares de contrastes: Seca-Molhada, Diluída666 Concentrada, Branca-Negra. Após um longo período dedicado a caligrafia, uma produção muito interessada no movimento da mão, na agilidade, na rapidez e na concentração, o artista chinês pode passar para o desenho e depois para a pintura. Bons pintores são aqueles que se valendo de uma única pincela, apenas um movimento, apenas um preciso movimento, são capazes de dar conta das linhas internas que definem determinada coisa no universo. Os artistas chineses dão muita importância ao movimento da mão, do pulso, e por sua vez da capacidade de se manifestar espacialmente no papel. Não se quer dizer que por internalizar o movimento da mão e fazê-lo dele natural que a pintura de flor de ameixeira era caracterizada por um ato mecânico ou inconsciente. A ideia sempre deve preceder o desenho. O pintor primeiramente devia fazer crescer dentro de si aquilo que buscava pintar para só depois fazer tal coisa crescer no papel. O pintor deve esvaziar a si mesmo para ter um espaço interno onde tais elementos a serem pintados vão primeiro surgir. O pintor deve “acessar” o Vazio interno que existe dentro de si. Sem buscar o Vazio, ele fará apenas com que as coisas no universo cresçam dentro de si matizadas por experiências anteriores, matizadas por experiências passadas e assim não poderá ver os contornos internos que desenham a essência de tudo o que existe. Há algumas características na pintura de flor de ameixeira que tratam exclusivamente do Vazio: Invisível-visível, chamado por Cheng também de yinxian, trata de um princípio em que o pintor deve se valer para não mostrar um elemento em sua totalidade, para cultivar o mistério, para manter o elemento em constante estado de formação, e dessa maneira fazer com que o Sopro Vital que o forma permaneça vivo. A ideia é que algo deve sempre estar presente e ausente, em constante movimentação, transmutando-se, propondo intercâmbios. Por exemplo, em trabalhos do artista Shitao2 vemos cadeias de montanhas interrompidas por massas brancas, pelo branco do papel, pelo Vazio. Um olhar que desconhece as correntes artísticas baseadas na noção filosófica do Vazio vê tais 667 massas brancas, exatamente dessa maneira, como massas brancas, como espaços de nada, como falta. O artista chinês vê nesses espaços a montanha em potência, a montanha em movimento, a montanha transmutando-se. De acordo com Cheng, pintar montanhas é uma questão importante para a pintura chinesa. Como vimos anteriormente, a pintura do período dinástico Song pode também ser chamada de pintura de montanha e água. Aqui o entendimento é que montanha e água formam instâncias polares, montanha como um estado posterior da água e água como um estado anterior da montanha; e entre eles existe o Vazio. A proposta de pintura de montanha e água é produzir um quadro que contenha em seu interior um movimento circular. O pintor que almeja tal efeito o consegue apenas por meio da introdução do Vazio na composição. A dupla montanha e água possuiriam conotações também com a sensibilidade humana, a montanha estaria próxima ao coração, aos sentimentos, às sensações; a água daria conta dos pensamentos, do entendimento, da razão. Fazer pintura de montanha e água, além de fazer uma paisagem, é representar o homem, tanto em suas qualidades físicas, a montanha, quanto em suas qualidades espirituais, a água. Neste contexto, pintar montanha e água é retratar o homem, não seu aspecto físico (embora este aspecto não esteja ausente), mas sim o seu espírito: seu ritmo, seu proceder, seus tormentos, suas contradições, seus temores, suas alegrias, silenciosas ou exuberantes, seus desejos secretos, seus sonhos, etc. Assim, a montanha e a água não devem ser tomadas como simples comparações ou puras metáforas; encarnam as leis fundamentais do universo macrocósmico, que mantém vínculos orgânicos com o microcosmo que é o homem. (CHENG, 2004, p. 164, tradução nossa) A relação montanha-água assemelha-se à relação Yin-Yang, assim como à relação Claro-Escuro3, que diz respeito ao papel e à tinta; Claro-Papel e EscuroTinta. Todas essas duplas precisam do Vazio para que não tornem suas relações contrárias umas às outras e para que o seu movimento não seja nulo. Maria Luisa Távora em sua dissertação sobre a artista Fayga Ostrower (1990, p. 197) nos apresenta dois outros momentos em que o Vazio comparece na pintura, dessa vez pelos traçados Kan-pi e Fei-pai. O Kan-pi é o traçado caracterizado pelo uso do pincel parcialmente seco, um pincel com pouquíssima quantidade de tinta. O resultado estético que o pincel Kan-pi proporciona ao papel é uma pincelada 668 oscilante, uma pincelada em que o rastro de tinta não é constante, em que o traço é cheio de espaços em branco. A pincelada em Kan-pi é uma pincelada que oscila presença e ausência, é uma pincelada que traz o Vazio. O Fei-pai possui uma razão semelhante ao Kan-pi: a de trazer na pincelada a presença do Vazio. Porém, o Fei-pai apresenta o Vazio não de modo oscilante como o Kan-pi, mas de maneira constante. O pincel em Fei-pai é caracterizado por pelos separados entre si para que ao ser embebido por tinta e traçado no papel, a pincelada comporte o branco, mas de maneira constante, diferente das oscilações de branco encontradas no pincel em Kan-pi. Uma pintura que possui o Vazio não é uma pintura que apresenta a falta de algo. O Vazio é um espaço em potência, um espaço onde vários elementos podem surgir. O vazio não é visto como falta, algo com qualidade negativa, mas algo que está aberto a presenças. O vazio torna o presente mais presente, o vazio reafirma aquilo que está presente. Para os chineses o Vazio e aquilo que está presente implicam uma relação que revela a existência do Céu e da Terra. Podemos começar a estabelecer similaridades entre Mira Schendel e a pintura chinesa levando em conta a questão do gesto automático e a noção de pincelada única. A técnica inventada e empregada por Mira nas Monotipias capacita a artista a produzir com muita velocidade. Sua mão parece ter deslizado com rapidez pela superfície, criando formas, letras, palavras, imagens. Nas Monotipias de composição circular nós vemos claramente círculos errantes, rasuras, descentralização. São exemplares que revelam, principalmente, o movimento da artista sobre o papel. Como foi dito, o movimento empregado é algo de muita importância nas Monotipias. Na pintura de flor de ameixeira o gesto automático se revela muito relevante, embora por automático não se queira dizer inconsciente. O movimento realizado surge com facilidade no punho, uma vez tendo o pintor passado um longo tempo meditando e fazendo o elemento a ser pintado crescer em seu interior antes de crescer no papel. Com a Mira ocorre o mesmo. Os elementos nas Monotipias são seguros e revelam reflexão por parte da artista, como se antes de ir para o papel ela conjecturasse suas intencionalidades. Não encontramos Monotipias carregadas de elementos, uma folha de papel japonês abarrotada de 669 informações; Mira se propõe a discutir tempo e espaço sendo econômica com os seus argumentos. O pintor de flor de ameixeira busca resolver seus problemas traçando o menor número de pinceladas possível. Tal economia presente em ambos os trabalhos revelam similaridade estéticas entre um e outro. Em algumas Monotipias Mira recorre à cor vermelha para demarcar determinado elemento, seja uma letra ou palavra, ou ainda um símbolo geométrico. Embora o preto seja o prevalente na pintura de flor de ameixeira, também podemos encontrar a presença do vermelho nos selos que indicam propriedade passadas e presentes daquela obra de arte. O processo das Monotipias revela um efeito em que a tinta parece sair de dentro do papel, como se tinta e papel fossem apenas um ser, fossem apenas uma entidade. Essa qualidade das Monotipias nos remete a ideia de Yin-Yang, do ClaroEscuro ou da montanha-água, onde forças contrárias tornam-se uma entidade única devido à presença do Vazio. Mira provavelmente não estaria pensando nessas relações quando idealizou o processo das Monotipias, uma vez que ele surgiu da necessidade da artista em trabalhar com um papel tão fino. Essas considerações podem ser feitas devido às similaridades de pensamentos que eles trazem. Os traços oscilantes de Mira, alguns devido à pouca força empreendida pela artista na hora de marcar o verso do papel e encerrar a barreira de talco, e outros à inconstância do seu movimento, nos remete aos pinceis Kan-pi e Fei-pai. Em menor medida o Fei-pai porque não há uma constância nas Monotipias. Sua técnica não comporta a reprodução exata. Mira poderia tentar fazer repetições, mas elas seriam manuais e nunca exatamente iguais. As Monotipias de Mira enfatizam o branco do papel, enfatizam o vazio. Partindo desses pressupostos, podemos ver os espaços em branco nas Monotipias, e em diversos outros trabalhos de Mira, não como um espaço de falta, de ausência, um espaço de desfalque; mas sim um lugar de reflexão, um espaço que não assenta os desenhos, mas os movimenta, um espaço analítico. Assim como a noção de Vazio do pensamento chinês movimenta o Yin e o Yang, não os tornando instâncias polarizadas uma à outra, e dessa maneira provocando os Sopros Vitais a animar os dez mil seres no Universo; o branco nas Monotipias de Mira torna vivo os seus 670 traços, os reafirma e os movimenta. Devido à técnica inventada por Mira, a tinta parece incidir de dentro do papel, como se a celulose fosse a sua origem, como se o desenho proviesse do papel, como se o desenho proviesse do branco, como se o desenho proviesse do vazio. O vazio da pintura de flor de ameixeira e o vazio de Mira Schendel não são espaços “entre coisas”, são espaços que provocam tensões e significações. No livro “No Vazio do Mundo”, Sônia Salzstein cita uma fala da própria Mira sobre a sua obra: “(...) de qualquer forma o que importa na minha obra é o vazio, ativamente o vazio”. Em Mira, o vazio cria a linha, assim como a linha cria o vazio, ativa o vazio. A obra de Mira é marcada por questionamentos que buscam dar conta da relação mundo-eu. Geraldo Dias aponta em seu livro as diversas leituras filosóficas que Mira empreendeu durante a sua vida e como elas tiveram ressonância pessoal e artística. Mira parece estar buscando uma forma de solucionar o problema: como estar no mundo? Para Mira, “mundo” e o “eu” são duas entidades indissociáveis, os dois são um só, o um são os dois. Notas 1 Sônia Salzstein (1996, p.16) chama as Droguinhas de Mira de “esculturas de ar”, enquanto Geraldo Souza Dias (2009, p. 216) se refere a série como “desenhos no espaço”. 2 Pintor que viveu durante a dinastia Qing (séc. XVII-XIX). 3 O Claro-Escuro na pintura chinesa não se compara ao Claro-Escura da pintura da Renascentista Italiana, um artifício da pintura europeia para produzir volume e profundidade. Essa noção é estabelecida após a criação da técnica Sfumato inventada por Leonardo Da Vinci (séc. XV). Referências Bibliográficas ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna: Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 709 p. ISBN: 978-85-7164-251-5. CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 195 p. ISBN: 978-85-9910-253-4. CENTRO DE ARTE HÉLIO OITICICA. (Rio de Janeiro, RJ) Mira Schendel, a forma volátil: catálogo. Rio de Janeiro, 1997. 79 p. CHENG, François. Cinco Meditações sobre a Beleza. São Paulo: Editora Triom, s/d. 136 p. 978-85-8546-492-9. ______. Vacío y Plenitud. Madrid: Ediciones Siruela, 2004. 276 p. ISBN: 978-84-7844-7695. COCHIARALE, Fernando; e GEIGER, Anna Bella (Org.). 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Vinculado ao projeto de pesquisa “Oriente-se: Arte Asiática em Coleções Nacionais” e integrante da equipe de apoio do I Encontro de Pesquisadores em Arte Oriental, em 2012. 672 NA FACE OCULTA DA LUA: O JAPÃO DE CLAUDE LÉVI-STRAUSS – ALGUNS COMENTÁRIOS Bruno Pereira de Araujo - UNIFESP RESUMO: O presente ensaio tem como ponto de partida os escritos de Claude Lévi-Strauss reunidos no livro A Outra Face da Lua publicado em 2012. O livro apresenta reflexões sobre a cultura, a organização social, a mitologia e, seu aspecto mais marcante e mais decisivo para Lévi-Strauss, a estética japonesa. O objetivo visado é pensar o potencial de transformação que a imagem do Japão construída por Lévi-Strauss possui, tendo como eixo norteador a dupla recusa japonesa, segundo o antropólogo francês, frente ao pensamento “ocidental”; isto é, a recusa ao Sujeito e a recusa ao Discurso, elementos centrais na metafísica do “Ocidente”. Essa dupla recusa será discutida seguindo descrições tanto do teatro Nô quanto da arte do monge budista Sengai. Em suma, a proposta é de como tornar possível, através dessa imagem levi-straussiana sobre o Japão, construir um espaço de novas experimentações para nosso próprio pensamento. Palavras-chave: relações Japão/Ocidente, pensamento japonês, Claude Lévi-Strauss, transformação. ABSTRACT: This essay has as a starting point the articles written by Claude Levi-Strauss gathered in the book A Outra Face da Lua published in 2012. The book presents thoughts about Japenese culture, social organization, mythology and, its most remarkable and most decisive aspect for Lévi-Strauss, the Japanese aesthetics. My intent is to think about the transformational potential that de image of Japan conceived by Lévi-Strauss has. For that, I use as a guideline the Japanese double refusal, according to the French Anthropologist's characterization, agaisnt “Western” thinking; that is, the refusal of the Subject and the refusal of the Discourse, key elements of “Western” Metaphysics. That double refusal will be discussed through accounts of both Noh Theatre and Sengai’s art. In short, my proposal is of how to render possible, by this levi-straussian image of Japan, to set up a space of new experimentations for our own thinking. Keywords: Japan/Western transformation. relations, Japanese Thinking, Claude Lévi-Strauss, “Que som faz uma só mão que bate?”1 Começar essa apresentação com um koan me parece adequado. Segundo Lévi-Strauss, esses enunciados “bloqueiam o espírito num impasse e o obrigam a procurar uma saída numa dimensão exterior ao pensamento racional” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 78). O que pretendo aqui é simular uma experiência análoga a um “bloqueio do espírito”. Através da imagem do Japão construída por Lévi-Strauss, busco tornar possível um deslocamento da imagem que se constitui junto a essa: a imagem do Ocidente. Lévi-Strauss comenta que durante uma de suas visitas ao Japão – no total 673 foram um pequeno número de cinco – sua presença era tomada pelos japoneses como uma “ocasião, jamais plenamente satisfeita, de olharem para si mesmos na imagem que deles eu formava” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 45). Aqui, a imagem que Lévi-Strauss formou em seus escritos sobre o Japão possibilita que olhemos a nós mesmo na imagem que se forma concomitante a ela — uma imagem do “nós”2. Retornando aos koan, se estes possibilitam uma “contemplação da palavra”, espero que meu empreendimento possa possibilitar a experimentação de outra imaginação3. Busco a possibilidade de permitir ao Japão operar uma “verdadeira reviravolta em [nosso] pensamento e em [nossa] vida” (Ibid., p. 39). Contudo, cabe a mim fazer uma pequena explicação. Ao falar no Japão, não busco me referir ao Japão tal como ele é, mas, sim, falar em um Japão construído por Claude LéviStrauss. Uma construção não menos realista (ou menos impactante) por ser uma construção. Devo salientar também que não pretendo, em nenhum momento, apontar onde Lévi-Strauss possa ter se equivocado em suas caracterizações; receio que meus conhecimentos sobre o Japão sejam muito incipientes. Reivindico para mim algo que Lévi-Strauss repete frequentemente em seus escritos: falo apenas como “um ignorante e um neófito”. Lévi-Strauss dizia-se fascinado pela música japonesa devido a sua capacidade de despertar em seus ouvintes um sentimento de “pungência das coisas”. As descrições, ou melhor, as impressões do autor sobre o Japão também despertam essa pungência, o que nos revela a grande sensibilidade que possuía Lévi-Strauss, assim como, seu amor e fascínio pelo país4. Ao ser interpelado sobre o lugar da cultura japonesa no mundo, o antropólogo francês se diz impossibilitado de responder a tal pergunta, mas indica, de maneira bastante convicta, que o lugar conquistado pelo Japão se deve ao fato de sua capacidade em conciliar categorias, ideias e movimentos que parecem inconciliáveis para nós, ocidentais. Nas palavras do autor: “Essa alternância de empréstimos e de sínteses, de sincretismo e de originalidade, me parece a mais apropriada para definir seu lugar e seu papel no mundo” (idem, p. 22). A sensibilidade de Lévi-Strauss em suas caracterizações produz uma forma que, se me permitem, agencia um efeito estético impressionante. Os primeiros 674 ocidentais a descreverem o Japão, de acordo com o autor, frequentemente diziam que este era “um mundo do tudo pelo avesso”. A oposição, o avesso, é uma poderosa imagem para produzir uma comparação5. Como diz o antropólogo, A simetria que se reconhece entre duas culturas as une ao opô-las. Elas parecem a um só tempo semelhantes e diferentes, como a imagem simétrica de nós mesmos, refletida por um espelho, que nos permanece irredutível embora nos reconhecemos em cada detalhe” (idem, p. 85-6). Aqui está o efeito que falei e aquele que busco. A partir da relação que se estabelece entre Japão e Ocidente, espero que possamos constituir um entre-lugar habitável que nos permita experimentarmos algo que deixa de ser nós, mas não se confunde com eles. Um entre-lugar onde há o máximo de diferença na semelhança; onde podemos, finalmente, experimentar uma condição de Outro, uma intensidade que nos torna capaz de estranhar o familiar. Para tornar possível constituir esse espaço, seguirei o que Lévi-Strauss descreve como a “dupla recusa” do pensamento japonês: a recusa do Sujeito e a Recusa do Discurso. Comecemos então pelo Sujeito, este grande mimado da filosofia moderna. Gostaria de apresentar duas formas expressivas que insiro dentro dessa divisão entre nós e eles, e que me permite tornar visível esta diferenciação. Primeira imagem: poema de Lord Tenniyson – séc. XIX6 “Flor na muralha fendida,/Eu colho-te das fendas,/Seguro-te aqui, raiz e tudo, na minha mão,/Pequena flor – mas se eu pudesse compreender/O que tu és, raiz e tudo, e tudo em tudo,/Eu deveria saber o que Deus e o homem é”. Segunda imagem: haiku japonês – XVII7 “Quando olho cuidadosamente/Vejo o florescer das nazumas/Ao longe!” O poema de Lord Tenniyson precipita o “espírito cartesiano” no qual o Eu, que existe porque pensa, se relaciona com o mundo imbuído de uma vontade de conhecer “tudo em tudo” através da razão, isto é, utilizando o Discurso. Já no haiku, 675 vemos uma atitude diferente. As flores nazumas não são colhidas de seu lugar; elas são contempladas com um olhar cuidadoso, característico daquilo que Lévi-Strauss chamou de um “cartesianismo estético ou sensível”. Há também aqui atitudes diferenciadas em relação à “Natureza”. Em uma das ocasiões de suas visitas, o antropólogo comenta que trabalhava em seu laboratório na França, junto a outros pesquisadores, sobre as diferentes maneiras que as pessoas de diferentes culturas se relacionavam com o trabalho. Tendo buscado nessa visita conhecer tintureiros, tecelões, pintores de quimono, ferreiros, ceramistas etc., Lévi-Strauss comenta que: Deles tirei preciosas informações sobre a representação que fazem os japoneses do trabalho: não como ação do homem sobre uma matéria inerte, ao modo ocidental, mas como execução de uma relação de intimidade entre o homem e a natureza. [...] A relação do homem com a natureza, que, ao pensar no Japão antes de visitá-lo, eu idealizara um pouco demais, me reservava outras surpresas. Viajando pelo país, percebi que o culto das belezas naturais, ilustrado, aos olhos do Ocidente, por seus maravilhosos jardins, pelo amor às cerejeiras em flor, pela arte floral e até mesmo pela cozinha, podia se acomodar com uma extrema brutalidade diante do meio natural. (p. 98-9) Talvez a imagem transmitida por Lévi-Strauss seja forte ao pensar essa relação com a Natureza em termos de amor e brutalidade. No entanto, penso que em tempos de catástrofe ecológica global, causada em grande parte pelo dominação do Sujeito Racional que transforma a Natureza passiva através de seu Trabalho, pensar em uma relação de intimidade entre ambos esse polos torne nossa relação apropriativa e exploradora em algo mais consciente e, talvez, mais saudável. Porque, como diz o antropólogo francês, o Japão oferece ao ocidente um modelo de “higiene mental”. Analogias com a física mecânica feitas por Lévi-Strauss transmitem boas imagens para pensarmos a diferença entre as concepções de sujeito, ou melhor, os diferentes modos de subjetivação do Ocidente e do Oriente. O Sujeito, tal como expresso em nosso pensamento, é o ponto de origem de tudo. A experiência do Eu é fundamental para a existência do mundo. Basta pensarmos no mito de criação judaico-cristão, o mundo em toda sua totalidade surge de um ponto único, ponto este que tem todas as características de um sujeito, ou melhor, um hiper-sujeito ou um sujeito ideal. Dessa forma, Lévi-Strauss diz que a filosofia do Sujeito ocidental é centrífuga, enquanto no Japão, o sujeito exerce uma força centrípeta. 676 Portanto, antes de ser uma total recusa ao Sujeito, temos um outro sujeito, um sujeito provisório, que não é uma causa da ação, mas sim um resultado, ou melhor, um efeito. O teatro Nô, penso, nos oferece uma poderosa imagem a esse respeito. Poderia utilizar aquela descrição bastante recorrente que conta sobre a relação do ator com a máscara; diz-se que é esta última, a máscara, que “veste” o ator para a composição do personagem-protagonista (KUSANO, 1988) – ou seja, o personagem-protagonista parece ser o efeito de uma relação em que ambos, máscara e ator, se usam mutuamente –, não há nesse caso, me parece, uma ação de um sujeito centrado que através de um instrumento inerte causa uma boa “representação teatral”. O que é significativo para mim, é que o sujeito, neste caso o personagem-protagonista, é o efeito de uma relação. No entanto, não é esse aspecto do Teatro Nô que pretendo desenvolver. Focarei aqui em uma análise retirada de um artigo de Richard McKinnon (1953) sobre Zeami e suas concepções acerca do treinamento de atores. A audiência tinha um lugar central nas performances de Nô. Isso se evidencia na necessidade, expressa por Zeami, de que um ator deveria ter versatilidade e flexibilidade para poder “encantar” um público heterogêneo sem acabar com a harmonia da peça. Nas palavras de McKinnon, que traduzo aqui, ele diz: [...] um verdadeiro grande artista deve ter flexibilidade o bastante para variar sua performance com o intuito de agradar uma audiência de uma região menos sofisticada [assim como a audiência sagaz de um distrito capital]. Através da variação da apresentação, Zeami foi capaz de evocar na audiência um sentimento de inovação e frescor, ou mezurashiki, que ele sentia que era necessário para o sucesso. (1953, p. 210-11) O sucesso poderia ser compreendido pelo agenciamento de um efeito estético chamado de yūgen, traduzido belamente por Haroldo de Campos (2006) como “charme sutil”. Para Zeami, segundo descreve McKinnon, era esse efeito, yūgen, que deveria ser levado em consideração pelo ator em seu processo de aperfeiçoamento. Contudo, algo permanece ainda no ar: como podemos relacionar essa concepção acerca da “produção” do yūgen e o tema da recusa do Sujeito apresentado por Lévi-Strauss? Aqui certamente farei um salto interpretativo muito grande, espero que o exercício faça valer o risco8. Para Zeami, o artista para poder agenciar, ou melhor, elicitar um efeito 677 estético yūgen, precisa desenvolver/ter aquilo que ele chama de hana9. Como uma qualidade que parece ser intangível, para que o artista saiba/conheça sua eficácia (hana) ele necessita da “objetificação”10 causada pelo yūgen; esse efeito seria a “constatação” da eficácia do artista, isto é, seu hana. Dessa forma, me parece que o yūgen pode ser visto antes como o índice de uma capacidade de elicitar na audiência uma certa resposta do que como uma característica intrínseca à apresentação e que deve ser deduzida passivamente pela audiência. Assim, o sujeito (nesse caso, o artista) parece ser precipitado nessa relação; através do yūgen provocado na audiência, ele conhece a si próprio, tem a certeza de ser um agente, se constitui como sujeito. No entanto, o yūgen não parece ser apenas o índice do hana do ator. A audiência parece também ser “beneficiada” na produção desse efeito. Elicitar um efeito na audiência também a constitui como um sujeito. Isso parece claro, quando McKinnon descreve o que Zeami designou por kan, traduzido como um tipo de “percepção intuitiva”. Kan, segundo McKinnon (1953), não é um conceito facilmente definível. Para o autor, é aquilo que “possibilita o artista a se tornar um mestre em seu meio, e através do qual, dar marca pessoal à performance” (p. 212 – tradução nossa). Seguindo a analogia feita por Zeami que comparava a situação do ator à uma marionete, McKinnon afirma: “Ele [Zeami] reconheceu que assim como uma marionete requer fios para que tome vida, um artista de Nô precisa da percepção e do entendimento como “fios” invisíveis para que sua atuação ganhe vida” (Ibid., p. 212 – tradução nossa). Se a percepção e o entendimento, isto é, kan, agem como fios que dão vida à performance, quem movimenta esses fios? Aqui gostaria de propor que poderíamos pensar que é a audiência. O autor afirma que o kan é a maneira que o artista estabelece uma conexão com a audiência. Mas e se tentássemos perceber isso como sendo a conexão criada pela audiência? Dessa forma, a audiência não parece mais apenas o recipiente de onde o artista elicita um efeito, mas passa a ser também um elemento ativo que incita o artista a buscar criar o efeito, o yūgen. Portanto, o yūgen também pode ser compreendido, proponho, como o efeito 678 da eficácia de um duplo movimento de relações que constituem dois sujeitos: a audiência satisfeita e o artista triunfante. Uma relação em que a audiência controla a atuação incitando uma ação a partir de sua capacidade de afetar o kan do artista. E outra relação, em que o artista incitado pela audiência, através de seu hana é capaz de extrair de sua audiência um efeito, uma resposta adequada, o yūgen. O sujeito parece ser, como já indicado por Lévi-Strauss, o resultado de como as pessoas se encaixam umas nas outras, isto é, a realidade do sujeito é “como o último lugar em que se refletem seus pertencimentos” (2012, p. 35). Direcionemo-nos então para a segunda recusa: o Discurso. Espero que a exposição acerca da recusa do Sujeito tenha sido o suficiente, apesar de parecer certamente um pouco confusa. O Discurso tem igual importância para nós, ocidentais. Acreditamos que “um discurso bem construído coincide com o real, atinge e reflete a ordem das coisas” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Já no pensamento japonês, diz Lévi-Strauss (Idem), todo discurso é irremediavelmente inadequado ao real. A natureza última do mundo, a supor que essa noção tenha algum sentido, nos escapa. Ela transcende nossas faculdades de reflexão e de expressão. Nós não podemos nada conhecer dela, e portando nada dizer a seu respeito. Contudo, a recusa do Discurso não implica necessariamente sua negação absoluta. Lévi-Strauss aponta que a recusa japonesa se desdobra em uma desconfiança a um “espírito de sistema” imbuído de “preconceitos tenazes” como a ideia de que os fenômenos da vida tem uma racionalidade e uma necessidade lógica. O antropólogo francês utiliza a filosofia do Zen Budista para ilustrar a maneira que o discurso, que assume a forma de sabedoria, parece ser construído. Esse discurso é uma sabedoria que desconfia de si mesma, Lévi-Strauss (2012) afirma que o zen é uma prática da meditação que deve conduzir à sabedoria, e se essa sabedoria consiste em se distanciar do mundo das aparências, numa última etapa a sabedoria descobre que, prisioneira de outras ilusões, também deve desconfiar de si mesma. Ora, um saber que duvida de si não é um saber. Ter atingido esse conhecimento supremo que tudo é não conhecimento liberta o sábio. Ao ponto em que chegou, para ele isso equivale saber que nada tem sentido, e, como se tudo tivesse um sentido, a partilhar como homem ordinário a existência de seus contemporâneos. (p. 81-2) Neste ponto, gostaria de introduzir outra imagem que pode deixar mais claro a questão da recusa ao discurso. Desta vez não pretendo me voltar ao teatro Nô, me 679 aterei ao belíssimo ensaio de Lévi-Strauss sobre Sengai. Sengai (1750 – 1837) foi um monge budista da escola Rinzai – conhecida pelos seus ensinamentos de difícil entendimento assim como pelo uso dos koan. Lévi-Strauss o situa na linhagem do pensamento que fez escola com a designação de “arte do imperfeito”. Oriunda das cerimônias do chá, a arte do imperfeito tem um apreço pelos produtos que foram produzidos sem uma pretensão estética de tornarem-se obras de artes; valoriza-se as irregulares, assimetrias, descontinuidades, ou seja, a imponderabilidade da vida. Contudo, como salienta Lévi-Strauss, devemos ser cautelosos para não apressarmos uma analogia entre a arte do imperfeito e o interesse de artistas ocidentais em “encontrar a liberdade do gesto criador aquém das regras convencionais” (2012, p. 75). O que estava em jogo nessa opção estética era “se livrar de qualquer dualismo para atingir um estado em que a oposição do belo e do feio não tem mais sentido: estado que o budismo chama de ‘Assimdade’, anterior a todas as distinções, impossível de definir senão pelo fato de ser assim” (Ibid., p. 75). A arte de Sengai também é uma forma de fazer com que os dualismos bastante comuns ao nosso pensamento se desmontem e percam sua eficácia como categorias de análises. Uma arte em que “a negligência e a elegância se confundem” (Ibid., p. 75) requer que a olhemos de outros ângulos. O primeiro desafio das obras de Sengai é o uso da “caligrafia” com a “figuração”. Contudo, essa distinção é nossa, devemos lembrar que o próprio Sengai afirmava que seu “jogo” com o pincel e a tinta “não é nem pintura nem caligrafia”11, a composição torna texto e desenho indissociáveis, eles “se respondem um ao outro” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 80). Voltemos a recusa do Discurso e sua relação com a arte de Sengai. Essa arte é marcada pelo que Lévi-Strauss chama de uma “economia de meios”, aspecto derivado do fato do Japão ser uma “civilização de tons”, onde as coisas significam mais. Dada a incomensurabilidade entre discurso e mundo, a economia de meios empregada por Sengai ajuda a expressar a coincidência, “o encontro inesperado da realidade com um gesto” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 76). “A obra não imita o modelo. Ela celebra a coincidência, mais valeria dizer a fusão, de dois fenômenos transitórios: uma forma uma expressão ou uma atitude, e o impulso dado ao pincel” 680 (Ibid., p. 76). A própria noção de “obra de arte” precisa ser repensada nesse encontro com um discurso que parece sempre está mudando, pois desde o começo nunca foi realmente adequado. Mais que uma forma espacial, a arte de Sengai assume uma forma temporal. A produção de Sengai se apresenta muitas vezes enquanto uma série onde a individualidade se transforma a partir de uma mistura, sucessão e repetição. “Em tal arte, o quadro não existe, à maneira dos nossos, como um objeto [uma obra]: é algo que chega e se apaga atrás de outro quadro igualmente passageiro” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 79). Outra questão que se desdobra da arte de Sengai é a autoria. Qual o papel assumido por Sengai na produção de seus trabalhos? A dupla recusa japonesa nos coloca diante das questões, já que o sujeito não é um a priori e tampouco o discurso é adequado à realidade, de quem figura como autor? E sobre o que a autoria se exerce? Lévi-Strauss é enfático ao contrapor a concepção de autoria ocidental à concepção japonesa afirmando que “o monge do zen quer ser o lugar insubstancial em que alguma coisa no mundo se expressa através dele” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 79) enquanto o “autor” ocidental busca através de um gesto criativo “expressar sua personalidade na obra” (Ibid., p. 79). Novamente a relação parece algo importante. Ao se tornar o lugar insubstancial, Sengai é capaz de permitir que o mundo se anuncie através do resultado desse encontro: a arte. Pois como diz Lévi-Strauss (Ibid., p. 79): “o eu é o meio pelo qual o signo se expressa e, subsidiariamente, assume a individualidade de quem o escreve”. A arte de Sengai é fruto dessa relação, em que mundo e pessoa (sujeito) se compõem mutuamente. O antropólogo francês estava certo, a arte de Sengai é uma “arte de se acomodar no mundo” e de deixar o mundo se acomodar em si! Novamente voltamos para o contraste que Lévi-Strauss percebe entre o pensamento ocidental e o pensamento japonês – aquele entre o centrípeto e o centrífugo. E aqui, já me encaminho para a conclusão. No início desse ensaio usei um koan como analogia para o efeito que tentei criar. O efeito era um efeito de 681 alteração. Como se alterar a partir de um encontro com a alteridade? O Japão de Lévi-Strauss é uma imagem complexa porque certamente o Japão é uma realidade que nos escapa. E isso ele nos ensina: que o discurso é irremediavelmente inadequado para o mundo. Esse ensaio, sendo a construção sobre outra construção, pode parecer potencializar essa inadequação. Mas espero, que algo ele possa nos ensinar: que ao lidarmos com o Outro precisamos ser criativos para poder diminuir o máximo possível a inadequação de nossos conceitos ao descrevermos os conceitos dele. E para isso não há um lugar seguro, apenas um entre lugar extremamente perigoso, pois é um entre lugar que pode nos transformar. E quem melhor que o Japão, uma cultura que vive se reinventando, para mostrar que isso é possível e apreciável. Notas 1 Esse ensaio é uma versão modificada e estendida de uma apresentação feita em 2013 no Grupo de Estudos A Arte Japonesa: Diálogos, coordenado pela Prof. Dr. Michiko Okano. Agradeço pelos comentários feitos pelos presentes na ocasião, em especial, Michiko Okano e Karina Ayumi. 2 A inspiração aqui vem de Roy Wagner (2009) e a maneira como ele pensa a antropologia. Para o autor, a antropologia é oriunda de uma relação – entre antropólogos ou antropólogas e nativos – em que os primeiros, para lidar com o que comumente chamamos de choque cultura, inventam para esses últimos uma cultura. Contudo, nesse processo de inventar uma cultura para o Outro, o antropólogo ou antropóloga inventa uma cultura para si. Portanto, ao se construir uma imagem sobre o Japão, construímos no mesmo ato uma imagem sobre nós mesmos; a tarefa seria, então, deslocar essas imagens de tal modo que o antropólogo ou a antropóloga seja capaz de familiarizar o “estranho” e estranhar o “familiar”. 3 Tomo emprestada a expressão de Viveiro de Castro (2002, p. 123 – grifo nosso): “A expressão 'experiência de pensamento' não tem aqui o sentido usual de entrada imaginária na experiência pelo (próprio) pensamento, mas o de entrada no (outro) pensamento pela experiência real: não se trata de imaginar uma experiência, mas de experimentar uma imaginação”. 4 Junzo Kawada, o autor do prefácio de A outra face da lua, descreve que encontramos no livro um “Lévi-Strauss amoroso do Japão” (p. 9 – grifo do autor). 5 A negatividade é uma estratégia antropológica de descrição, que consiste na afirmação de que certo conjunto de conceitos não se aplica ao material etnográfico (STRATHERN, 2006). A negatividade também nos informa muito sobre a importância de determinados conceitos em sua metafísica de origem. 6 Retirado de Tennyson (2009). 7 Tradução nossa. Retirado de Scheper-Hughes e Lock (1987). 8 Confesso que essa análise foi inspirada pela análise que Strathern (2006) faz das concepções melanésias acerca da pessoa e da ação. Também devo muito de minha inspiração para essa análise ao fascinante artigo de Benito Ortoloni (1972) sobre a importância da audiência no Teatro Nô. 9 Outro texto de McKinnon (1952) me ofereceu pistas que também contribuíram para a análise. 10 O termo provém de Strathern (2006) que define objetificação como “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação” (p. 267). 11 A frase completa atribuída a Sengai é: “Meu jogo com o pincel e a tinta não é pintura nem caligrafia; ainda assim pessoas desavisadas pensam equivocadamente: isto é caligrafia, isto é pintura” (tradução nossa – retirado de STEVENS, s/d). 682 Referências Bibliográficas CAMPOS, Haroldo de. Hagoromo de Zeami. São Paulo: Estação Liberdade, 2006. KUSANO, Darci. O que é teatro nô. São Paulo: Brasiliense, 1988. LÉVI-STRAUSS, Claude. A outra face da lua: escritos sobre o Japão. 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Lisboa: Editora Saída de Emergência, 2009. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo. Mana, v. 8, n. 1, abr. 2002. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Bruno Pereira de Araujo Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Faz parte do Grupo de Estudos A Arte Japonesa: Diálogos na mesma instituição. Tem como interesse de pesquisa o Teatro Nô. 683 SOBRE MÃOS E COISAS QUE (NÃO) EXISTEM MAIS: ARTE E MEMÓRIA NO REGIME VISUAL DA COMUNIDADE OKINAWANA EM SÃO PAULO Laís Miwa Higa - USP RESUMO: A partir da etnografia e participação como dançarina numa escola de dança de Ryukyu (Tamagusukuryu Senjuka iSaito Satoru Ryubu Dojo), em São Paulo, investigo o aprendizado do universo da arte okinawana e sua performance articulados a processos de elaboração de discursos sobre identidade e cultura okinawana. O regime visual do grupo é construído no imbricamento da performance artística com a memória. A arte, além de ter um universo próprio constituído e regrado, permite a visualização de um passado constante nas narrativas sobre a história de Okinawa/Ryukyu e da imigração ao Brasil. Dessa forma, procuro refletir sobre a ryukyubuyo como índice e agente de outras relações sociais (Gell, 1998) e construto de espaços e coisas da memória (Carruthers, 2011). Palavras-chave: Okinawa; imigração; memória; regime visual; dança. ABSTRACT: By ethnographic work and as a dancer member in a Ryukyuclassical dance school (Tamagusukuryu Senjukai Saito Satoru RyubuDojo), in São Paulo investigate the learning process of okinawan art universe and its performance articulating them to elaboration process of okinawan identity and culture discourses. The visual system is constructed by interweaving artistic performance to memory. Art, besides it belongs to a stablished and ruled universe, allows the visualization of a constant past in the narratives about Okinawa/Ryukyu history and immigration to Brazil. In this sense, I reflect about ryukyu buyou as index of other social relationships (Gell) and constructs of spaces and things of memory (Carruthers, 2011). Keywords: Okinawa; immigration; memory; visual system; dance. Composição estética de sacerdotisas de Ryukyu: Kamigami, a dança dos deuses e sua atmosfera de perigo Em 2010, a escola de dança clássica ryukyuanaTamagusukuryuSenjukai Saito SatoruRyubuDojo apresentou um número de dança junto com o grupo de tambores okinawanos (taiko) RyukyuKokkuMatsuriDaiko(RKMD) em diversos eventos da comunidade okinawana de São Paulo, chamado Kamigami (Deuses). A vestimenta era composta de um quimono típico de Okinawa, kasuri, preto com grafismos quadriculados em branco e obi, a faixa que prende o quimono, estreito e vermelho; sobre ele vestimos um quimono branco não atado. Em nossos cabelos era preso um aplique para alongar o rabo de cavalo preso na altura da nuca e no topo da cabeça vestíamos uma coroa de folhas sobre um lenço branco amarrado em torno da cabeça cujas pontas escorriam junto aos cabelos. Depois da maquiagem 684 feita, em nossas mãos eram pintadas figuras geométricas que compunham nossa representação performática de sacerdotisas kaminchu(literalmente, gente de deus ou deusas),de Ryukyu (nome do reino na ilha antes da anexação ao Japão, hoje Okinawa). A sacerdotisa principal, noro, vestia mais uma camada de quimono e um colar de contas pretas e um pingente de pedra em forma de vírgula (magatama, que figura também a forma de um feto, símbolo importante na cosmologia okinawana) [Figure 01]. As tatuagens que pintávamos utilizando esmalte preto para unhas sobre a maquiagem de dança em nossas mãos chamam-se hajichi [Figure 02]. Durante os ensaios, SatoruSaito, mestre da escola, nos mostrava algumas fotos de mãos de sacerdotisas com as tatuagens. Todas as imagens eram de mãos envelhecidas, enrugadas com grandes formas pretas ou azuladas. Quando estudara em Okinawa, na Faculdade de Belas Artes de Ryukyu, um professor levara a turma para Kudakajima, uma pequena ilha onde ainda existem essas mulheres de mãos tatuadas. Elas pouco falavam e o que falavam não podia ser repassado, seus cantos não poderiam ser cantados num palco ou ao acaso pois suas palavras são todas sagradas. O intuito da ida a Kudaka era pedir autorização para o uso de uma história sobre o relacionamento amoroso de uma norocom um dos reis de Ryukyu para a produção de um kumiudui(ou kumiodori, teatro clássico de Ryukyu, considerado patrimônio imaterial da humanidade pela UNESCO desde 2008). De acordo com Saito, elas autorizaram o uso da história desde que os ritos e os cantos tivessem alguns movimentos e palavras trocadas, pois “não podiam ser de verdade, era só para imitação” (grifo meu – com. pessoal). Durante um dos ensaios, o colar de Satoru quebrou e o chão se cobriu de contas negras que rolavam enquanto observávamos o rosto do mestre coberto de pavor. No intervalo, fumando um cigarro ele me dizia que estava preocupado, pois é muito perigoso “mexer com essas coisas”, mas que ele havia “rezado” e pedido autorização para os deuses e ancestrais nos protegerem. Ele se perguntava se alguns problemas que estávamos enfrentando se davam por conta da performance e associou o ocorrido a uma outra história. Na sede de sua academia, em Okinawa, sua mestre coreografou “A princesa da Lua” (KaguyaHime), uma lenda japonesa. Nas duas vezes em que apresentaram esse espetáculo, as protagonistas faleceram no processo. E concluiu: “Kaguyahime também fala dos céus, de deuses... tem coisa que a gente não pode mexer, mas acho que a gente vai perceber casoKamigami 685 seja perigoso”. Como de costume, jogamos sal no camarim e no palco antes da apresentação para purificar o local e nos proteger das energias ruins. A abertura da performance consistia num vídeo exibido num enorme telão com imagens dos mares e praias de Okinawa e a narração de um texto sobre NiraiKanai, o “paraíso”, a ilha sagrada onde habitam os deuses e ancestrais, de onde estes olham e protegem o arquipélago de Ryukyu e onde reside o duplo das sacerdotisas kaminchu, consideradas materialização em corpo de gente das deusas protetoras da ilha. Segundo Saito, nem todas as kaminchue noro tinham as mãos tatuadas e parece não haver nenhum significado religioso relacionado à sua função. Ele conta que há duas versões que explicam as hajichi: as mulheres eram tatuadas para não serem vendidas a prostíbulos e os pais obrigavam as filhas a usarem as hajichi para não serem raptadas para a China. Figure 1. Apresentação de Kamigami. Senjukai Saito SatoruRyubuDojo. Okinawa Festival, Vila Carrão, São Paulo, 2010. Foto: CintiaTiemiHiga, São Paulo, 2010.Acervopessoal de Laís Miwa Higa. Figure 2. Hajichi nas mãos das dançarinas e do mestre Saito, feitas por Sueli Asato. Okinawa Festival, Vila Carrão, SP. Foto: Cintia TiemiHiga, 2010, São Paulo. Acervo pessoal de Laís Miwa Higa. 686 Narrativas: tatuagens, mulheres casadas e sacerdotisas Em geral, conta-se que as hajichi eram usadas pelas sacerdotisas, mas também por mulheres comuns. Nesse caso, elas marcavam que tais mulheres eram casadas através de flechas desenhadas nos dedos numa só direção.Isso significava que uma mulher casada sai da casa de sua família para nunca mais voltar. Outras formas desenhadas também representavam a vila em que a mulher residia pois, dizem, marcadas de tal maneira estariam prevenidas dos raptos de mercadores chineses e japoneses e, caso isso acontecesse, pela tatuagem seria fácil devolver a mulher ao seu respectivo marido. A hajichi era feita por mulheres utilizando lascas de bambu para cortar a pele e inserir uma tinta feita de carvão vegetal. Os imigrantes okinawanos aqui no Brasil contam que essas tatuagens foram banidas em Okinawa logo após a Restauração Meiji (1869), em 1899, pois eram consideradas pelos japoneses como símbolos de barbárie e associadas ao mundo do crime. Ao chegarem ao Brasil, a mesma associação foi feita e as hajichi se tornaram mais um elemento de preconceito contra os okinawanos. Somente as pessoas muito idosas hoje já viram ou conheceram mulheres com as mãos tatuadas. Disseram-me que as hajichi foram banidas por volta de 1905, no entanto, seu início, como muitas coisas de Okinawa, se deu num passado longínquo e inacessível, pois aquelas que as conheciam estão mortas [Figure 04]. Mesmo em Okinawa, atualmente, somente sacerdotisas de ilhas menores como Miyako, Iheya e Kudaka ainda são tatuadas. Figure 3. Uma das poucas imagens de imigrantes okinawanas no Brasil com hajichi e vestida com o bingata, quimono de Ryukyu. Acervo pessoal de Paulo Higa, s/d. 687 Kudakajima é uma ilha sagrada, nas quais a nobreza de Ryukyu buscava ajuda e proteção, onde as sacerdotisas e deidades exercem suas funções. Foi lá que brotaram os primeiros grãos com a ajuda dos deuses, segundo o mito. Kudaka, no imaginário okinawano, é também a ilha do sonho. Somente as mulheres exercem funções espirituais na cosmologia ryukyuana, os homens exercem somente funções de adivinhação e mágica, já praticamente inexistente. É perigoso entrar nessa ilha, afinal, é preciso efetuar rituais e promessas para obter permissão dos deuses – estes não podem falhar sob ameaça de tragédias. Ouvi histórias sobre as punições espirituais recebidas por aqueles que ousaram tocar com sua impureza a natureza de Kudaka, permeada em cada folha pelos deuses da natureza: um menino faz xixi numa árvore e adoece quase à beira da morte; um turista recolhe pedrinhas e as traz ao Brasil como souvenir onde todas as tragédias acometem sua vida fazendo com que ele volte a Okinawa para restituir as pedrinhas que tirou de lá e realizar rituais de perdão e oferenda àqueles que insultara. Uma descrição similar pode ser encontrada em “Heródoto no mar da China”, de Lévi Strauss (2012) na qual o autor relata sua viagem às ilhas de Ryukyu. A hajichipermanece de alguma forma na memória e nas histórias sobre Okinawa e sobre a imigração, inclusive porque ela foi um dos elementos que justificavam a proibição da imigração de okinawanos feita pelo Estado brasileiro. Penso aqui numa questão formulada por Mary Carruthers (2011), em A Técnica do Pensamento, “esse foi um fato de esquecimento ou recordação?” (p.97). Ela diz ainda que a maneira de responder essa pergunta depende completamente do ângulo, da rede de associações que a pessoa cria em sua cartografia da memória a partir disso. Uma resposta constante as minhas perguntas sobre as tatuagens femininas foi “elas não existem mais”. E, de fato, além dos muito idosos, somente as pessoas mais engajadas nas narrativas sobre cultura e identidade okinawana já tinham ouvido falar das hajichi: jovens que foram estudar em Okinawa, artistas, lideranças. Partindo das hajichi como elementos indexicais (Gell, 1998), ou seja, como índices que apontam e agenciam outros tipos de relação social sem necessariamente possuírem um significado em si, gostaria de refletir sobre sua existência na cartografia da memória pública ou comum (Carruthers, 2011) dos 688 okinawanos. Como se pode perceber pela descrição feita acima, essas tatuagens, apesar de “não existirem mais”, quando mobilizadas funcionam como espécie de mote para se falar de certos temas como religião e mulheres. Além disso, é importante notar que o conhecimento e o falar sobre as tatuagens se concentra em dois grupos distintos: imigrantes idosos, que viram as hajichi e são considerados os melhores contadores de história da comunidade, e pessoas que têm interesse em difundir, especialmente para os mais jovens, a cultura e a história de Okinawa e da imigração ao Brasil. A questão, ou o desafio, neste paper é desenvolver uma interpretação das narrativas que envolvem as hajichi tendo como pano de fundo a construção das narrativas sobre Okinawa/Ryukyu e como ambas tecem espaços na memória do grupo. Ora, como membro deste grupo de estudantes que já ouviu falar sobre a hajichi, meu próprio processo de busca por material, notei então, seguiu um determinado percurso de associações que acredito ter aprendido com aqueles que me falaram da tatuagem, em especial o mestre Saito e o ex-presidente da Associação OkinawaKenjin do Brasil (AOKB) que cego, pediu que eu escrevesse um texto ditado por ele sobre as hajichi para ser publicado em sua coluna na Revista OK1. Memória comum, coisas da memória e suas realocações Em A técnica do pensamento, Mary Carruthers (2011) reflete sobre a arte da retórica monástica na Idade Média. Segundo ela, a retórica monástica enfatizava a “invenção”, “uma arte para a mneme, ‘memória’” (p.26). Pede então aos leitores um grande esforço de imaginação ao longo de todo este estudo, para conceber a memória não apenas como “repetição”, a habilidade de reproduzir algo (seja um texto, uma fórmula, uma lista de itens, um incidente), mas como a matriz de uma cogitação reminiscente, que mistura e confronta “coisas” armazenadas em um esquema ou conjunto de esquemas de memória de acesso aleatório – uma arquitetura da memória e uma biblioteca construídas ao longo de toda a vida, com a expressa intenção de serem usadas inventivamente. (p.27). O meu intuito aqui é refletir sobre a teoria da memória apresentada pela autora contrastando-a com as narrativas já parcialmente descritas no início deste paper e sobre as quais me deterei mais adiante. A “repetição” das informações nas 689 narrativas okinawanas que trazem como elemento as hajichi dizem mais sobre a construção de espaços na memória por técnicas mnemotécnicas do que sobre a reprodução de eventos, histórias. Ou seja, as hajichi são “lugares” construídos na memória que “agem sobre” outras coisas proporcionando uma memória de acesso aleatório e estabelecendo padrões de associação sobre as quais se pode construir comparações e concordâncias com outros materiais (p.43). Além de seu conteúdo em si, interessa-me o fato de que as hajichi são mobilizadas constantemente no discurso de Shinji Yonamine, ex-presidente da AOKB, fundador do grupo Urizun (exbolsistas de Okinawa no Brasil), do grupo Seisonenkai (grupo que reúne pessoas de meia-idade) e de diversos outros grupos e associações nacionais e internacionais envolvendo a rede okinawana. Yonamine, engenheiro civil, se autodenomina palestrante e já realizou palestras em todo o Brasil, em Okinawa, Argentina, Bolívia, Peru e China, nas quais o hajichi é elemento essencial em sua narrativa sobre a espiritualidade e relações de gênero entre os okinawanos2. A inventio de que fala Carruthers engloba tanto o sentido de criação (invenção) como o de inventário. Portanto, “tal afirmação pressupõe não apenas que não se pode criar (“inventar”) sem um depósito de memória (“inventário”) a partir do qual e com o qual inventar, mas que também tal depósito de memória está efetivamente “inventariado”, que seus materiais se encontram em “locais” prontamente recuperáveis” (p.37). Em Okinawa: The HistoryofanIsland People, de George Kerr (2000 [1958]) e Dancing withtheDead: Memory, Performance, andEveryday Life in PostwarOkinawa, de Christopher Nelson (2008), os autores indicam que após a colonização japonesa do arquipélago de Ryukyu e o banimento do reino houve um processo de japonização da ilha. Após a Segunda Guerra Mundial – e o livro de Kerr é um exemplo disso, pois foi encomendado pelo Exército Norte-Americano – iniciou-se um processo de recuperação das coisas de Ryukyu. Por um lado, a ocupação militar tinha interesse em desjaponizar os okinawanos com o intuito de diluírem o sentimento nacionalista japonês dos cidadãos de Okinawa. Por outro lado, as manifestações culturais e artísticas antes banidas puderam emergir de alguma maneira e muito do que havia sido imposto ao esquecimento pôde ressurgir na 690 memória dos habitantes – de maneira pública. As hajichi, assim como outras coisas que “não existem mais” como o NiraiKanai, as noro, lavar os ossos dos mortos depois de sete anos do falecimento, surgem assim como tropo na arquitetura da memória okinawana: são metáforas para sua diferenciação como grupo étnico e cultural particular e para identificação dos okinawanos como membros de uma comunidade que partilha de elementos comuns, de narrativas e lembranças localizadas no passado distante da ancestralidade. Mais ainda, são tropos que agenciam a construção de narrativas e ativam a memória individual e comum (no sentido de comunitária, como aponta Carruthers em sua crítica à ideia de memória coletiva) criando espaços para novas e outras associações. Estes tropos estabelecem também um sentido de história desvencilhado da disciplina História, mas não completamente cindido ou separado dela, mas que são realocados na passagem da memória impelida a se tornar uma história. A fala recorrente de meus interlocutores “Não sei direito pois quem conhecia já morreu” indica uma noção de história ou narrativa de passado fortemente baseada na oralidade. Quando eu e meus colegas conversamos com nossas avós e imigrantes perguntando das coisas de Okinawa ao invés de buscarmos uma biblioteca estamos agindo da forma que aprendemos o que é aprender sobre essas coisas em nossa comunidade. Nesse sentido, é pela memória que todas essas coisas são ditas e reconstruídas. O trauma da destruição de monumentos e documentos em Okinawa durante a Segunda Guerra Mundial reforça a ideia de que é preciso ouvir os mais velhos para acessar uma outra história3, ainda não descrita nos estudos sobre imigração japonesa ao Brasil. A memória, portanto, de acordo com Carruthers, tem uma dimensão individual, ou “secreta”, pois seu trabalho acontece na mente de um indivíduo. É uma atividade moral. No entanto, é também social e política, uma vez que trabalha com materiais de construção comuns a todos. Dentre esses materiais estão as res memoriais: os blocos construtivos de novas composições (2011:51). A autora oferece o exemplo de constelações estelares comparadas a animais que eram ensinadas a partir de padrões e formas que a posteriori poderiam ser nomeadas pela sua semelhança 691 com algum animal. Porém, a ideia dessa técnica era tornar acessível e facilmente identificável aquilo que era necessário para os homens se guiarem à noite: as estrelas. Elas, então, formavam um inventário reconstrutível, são ferramentas mnemotécnicas que podiam ser encaixadas em narrativas e bem “situadas” na memória das pessoas. As narrativas okinawanas que partem das hajichi situam os elementos considerados bárbaros pelos japoneses e brasileiros: tatuagens, nudez, línguas, xamanismo. Porém, diferentemente das narrativas que partem desses outros elementos, a hajichi sempre serve para situar o “lugar” da mulher nas narrativas okinawanas. No artigo produzido por Shinji Yonamine, e publicado na Revista OK (2012), ele parte da tatuagem para contar a função da mulher na imigração okinawana ao Brasil: No Brasil, a tinta do hajichi foi desaparecendo das mãos de nossas mulheres, mas estão marcadas em nossa memória, na lembrança das mãos delas, que lutaram pela prosperidade e pelo espaço do okinawano em nosso país. Essas mulheres trouxeram para o Brasil o modo de vida okinawano em que os homens trabalhavam na agricultura ou na pesca e as mulheres comercializavam o produto [...]. Também através do hajichi o okinawano protegia o que tinha de mais precioso, a sua mulher que além de trabalhar, era ela quem cuidava da vida doméstica e das relações sociais da família. [...] Há histórias de líderes, mas não de suas mulheres que lutaram e sofreram tanto quanto eles, devemos agradecer às obachan [avós], grandes batalhadoras e submissas, que conseguiram deixar um grande legado, a família okinawana... Na narrativa de Shinji, é possível perceber uma realocação das hajichi “marcadas em nossa memória” numa narrativa de gênero. Ao mobilizar o tropo do preconceito e especificidade cultural busca-se contar uma história. Assim, o hajichi não é esquecido, mas é ressignificado. Essa tentativa de nivelar o papel do homem e da mulher, no entanto, não apaga da memória individual a situação de muitas mulheres no pós-guerra: a prostituição forçada ou não e a posição de trabalhadoras mal pagas e informais. No blog “Okinawa Information.com”, o post relacionado ahajichi, inicia-se com a seguinte sentença: “Some ofyoumayknowaboutthehajichitattoos. But some ofyoumightnot, whichis a shamebecause it is quite aninterestingoldOkinawatradition”. Assim, como outros tropos do passado imemorável de Ryukyu, elas são muitas vezes impostas à memória dos okinawanos. Se em 1958, ano de publicação da obra 692 de George Kerr, elas eram citadas apenas como mais um elemento que voltava à memória dos okinawanos no pós-guerra, atualmente elas são colocadas na memória do grupo como elemento para se conhecer Okinawa. O autor do post, autodenominado “HaisaiOkinawa” [Olá Okinawa], finaliza o artigo dizendo que há especulações de que o banimento das tatuagens foi usado como subterfúgio para prender líderes comunitárias, mulheres que tinham contato com o mundo dos espíritos. De acordo com Carruthers (2011), um dos princípios da mnemotécnica é que recordamos de maneira vívida e tocante especialmente aquilo que é estranho e emocionalmente tocante. As narrativas mais difundidas na comunidade okinawana brasileira são narrativas orais. A maioria possui elementos de grande sofrimento (fome, pobreza, preconceito) que são contrastados com a vida atual dos descendentes de okinawanos (comida, dinheiro, conforto, educação). As res memorabiles, as coisas da memória, obtêm sucesso de longo prazo ao reter personagens, eventos ou linhas gerais de uma história. O que importa então não é o que elas lembram, mas as formas que tomam, como despertam na memória. Essas coisas se tornam populares por sua consonância com a atualidade da comunidade em que estão inscritas. Contudo, se as técnicas mnemotécnicas analisadas por Carruthers tinham o objetivo de tornar o pensamento criativo e fornecer ferramentas para o debate e para facilitar a apreensão do mundo, não é possível, me parece, estabelecer objetivos estanques para os materiais que trago aqui em minha análise. Pois as fontes que utilizo são diversas e seus autores agenciam diferentes tipos de relações sociais e se posicionam também em diferentes lugares no grupo. No entanto, provisoriamente, posso dizer que, em última instância, os tropos e os tipos de narrativas construídas para que a história dos okinawanos seja memorizada, ou memorializada, estão envoltas numa dinâmica de apreensão do mundo e de criar um tipo de pensamento que é próprio de quem passou pelas colonizações japonesa e norte-americana e migrou com a acusação dos que ficaram de que estariam fugindo ou esquecendo o sofrimento e dedicando sua vida para reconstruir uma terra outra. O sofrimento torna-se, como podemos ler na publicação da AOKB sobre os 90 anos da imigração ao Brasil e como pude constatar em debates com jovens de 16 a 30 anos, o fio que 693 tece todos os tropos e eventos narrativos da história okinawana. O mais importante disso é que é explicitamente imposto às novas gerações o não esquecimento desse sofrimento, seja pelas narrativas trágicas seja pela caracterização dos imigrantes como pessoas fortes, corajosas e vencedoras. Mesmo na ryukyubuyou, conhecida pelos japoneses e okinawanos como uma modalidade artística que contrasta com a japonesa por se alegre e vibrante (e, portanto, menos sóbria), o sentimento de sofrimento é essencial na performance e nas releituras de coreografias clássicas. No espetáculo Kizuna – corações unidos pela dança, de 2009, da escola de Saito, o enredo contava a história de Ryukyu e de Okinawa. A Segunda Guerra Mundial foi representada pela dança clássica feminina Kashikaki, na qual uma mulher tece tristemente um quimono à espera de seu companheiro que fora lutar ou trabalhar num local distante. No áudio da música foram acrescentados os sons dos bombardeios em Okinawa e, num telão ao lado do palco, imagens da guerra acompanhavam o som do sanshin e o dançarino. Apesar da associação não ser comum nas narrativas oficiais, muitas pessoas nos procuraram para dizer o quanto ficaram emocionadas. Nelson, em Dancing withtheDead (2008), conduziu sua pesquisa sobre memória e performance em Okinawa. Ele conta que com a presença militar norteamericana na ilha, os habitantes vivem cotidianamente com a instabilidade da emergência de uma guerra, de um enorme acidente militar e ainda com as marcas da Batalha de Okinawa. Assim, “não tem sido fácil para os okinawanos lidarem com o passado” (p.4). A luta coletiva dos sobreviventes da guerra, ativistas e testemunhas secundárias para reexaminar o passado desenterra traços complexos inscritos na memória e nas representações gráficas. Não apenas o terror e a perda sobressaem desses traços, mas também, diz Nelson, o passado okinawano é uma arena de possibilidades que tem se mostrado um potente arquivo de práticas e imaginários romantizados. O autor sugere ainda que as imagens do passado de Okinawa são sempre ambivalentes pois suscitam perda e esperança, terror e prazer, origem e apocalipse e que os okinawanos voltam a elas justamente por conta do poder que emerge dessa ambivalência imagética. O que se pode saber hoje sobre as hajichi é que eram tatuagens feitas nas mãos de mulheres ryukyuanas, de sacerdotisas ou casadas. Elas permanecem na 694 memória, mesmo daqueles que nunca as viram, como um quadro ou cena que diz sobre as relações de gênero, sobre a espiritualidade e também sobre questões políticas e sociais atuais. Como aponta Gell (1993), na introdução de Wrapping in Images, a modificação corporal, como a tatuagem, pode ser entendida como parte das técnicas de uma sociedade na qual sua reprodução se dava. No caso dos polinésios, a tatuagem produzia uma sujeição (no sentido foucaultiano de produção de sujeitos) que, em contrapartida, perpetuava formas políticas e sociais do grupo. Atualmente, no Japão, as hajichi desapareceram dos corpos – somente os Ainu, os tatuadores da máfia Yakuzae os estúdios de tatuagem norte-americana mantêm suas técnicas atualmente. No entanto, elas mantiveram enquanto foram marcadas nos corpos de mulheres o controle de sua circulação matrimonial e a construção do corpo das sacerdotisas comunitárias. Ao ser realocada para a criação de uma memória contemporânea do grupo, as hajichi são desvencilhadas do sistema hierárquico do reino de Ryukyu como técnica construtora do corpo feminino e do corpo xamânico para serem realocadas para um espaço memorial que cria associações com as questões atuais da comunidade. A atmosfera de perigo que surge nas narrativas sobre as noro e sobre as coisas sagradas, ou femininas, se mantêm. Porém o sagrado vai se diluindo na esfera cotidiana e acaba por se concentrar em momentos específicos, como os ritos funerários e o envelhecimento dos avós e pais que vão passando para a esfera do mundo dos ancestrais. As hajichi marcavam a pureza, a periculosidade, de mulheres casadas e mulheres sagradas. Para minha avó, imigrante, “antes tinha tatuagem, agora tem anel”. As filhas mais velhas são conselheiras espirituais da família. Isso indica que elas devem ser respeitadas e sua voz, ouvida. Porém, como aponta Susan Sered (1997), o caráter sagrado de uma mulher nunca suprime suas obrigações domésticas no seio da família e sua posição feminina na sociedade. Este é um contraponto para o privilégio de herança dos primogênitos. Segundo Yonamine, o homem detém a materialidade da casa e a mulher, a espiritualidade. Hoje, as técnicas corporais das mulheres casadas passam por outros movimentos: 695 vestimentas, cabelo, postura. A garantia de matrimônio está vinculada ao círculo social construído pelos pais desde a mais tenra infância e, ainda hoje, as filhas são ensinadas a serem boas esposas okinawanas e criadas para serem parte de outra família, como percebo nas narrativas de mulheres okinawanas em São Paulo. O lugar da religião okinawana na memória da comunidade é também o lugar do matrimônio e da troca de mulheres. Processos de aprendizado da ryukyubuyoue na antropologia Nos primeiros relatos sobre a imigração japonesa ao Brasil, TomooHanda descreve o som do sanshin tocado pelos imigrantes okinawanos misturado ao das ondas batendo no navio KasatoMaru. Em filmes, narrativa orais e nas escolas de arte de Ryukyu, a arte aparece como elemento de superação e conforto diante das adversidades. Se a arte clássica de Ryukyu nasceu como forma de entretenimento aos diplomatas chineses que vinham ao reino negociar, ela foi recuperada no pósguerra como reconstrução da ilha, do coletivo e das pessoas. Na Okinawa devastada pela Batalha do Pacífico, novas formas e novos revestimentos foram tomando os instrumentos e a arte de Okinawa se renovou: sanshin eram feitos com latas de biscoito, encontrados nos lixos das bases americanas, surgiu a vidraçaria okinawana a partir dos restos de vidro americano, acabaram as proibições de mulheres na ryukyubuyou. Imigrantes contam que cantavam ao som do sanshin para conseguir lidar com as tragédias da guerra, com a fome, com a perda de parentes e entes queridos. A dança popular, com seu ritmo alegre e passos soltos,servia de catarse. Em São Paulo, as conversas que tive com minhas colegas na escola do mestre Saito mostram como a dança faz parte do aprendizado subjetivo e consciente de se tornar uchinanchu (okinawano, na língua da ilha). Para elas, dançar é ter orgulho de suas raízes, manter a cultura de seus ancestrais para que ela possa chegar aos seus filhos e netos, é reconhecer o sofrimento de seus ancestrais sem passividade, resistindo a muitos aspectos da modernidade que, nessa perspectiva, destrói as tradições. Em geral, as professoras de dança de Ryukyu no Brasil apoiam-se em vídeos 696 gravados em Okinawa para passar as coreografias para suas alunas. Poucas, como o professor Saito, dedicam-se a criar novas danças e ensinar as técnicas. Satoru Saito, 27 anos, é o único mestre de ryukyubuyou do sexo masculino, no Brasil, e dos mais jovens. É o único que vive de sua arte. Satoru começou a ensaiar seus primeiros passos em frente à TV enquanto sua avó assistia a vídeos de dança ryukyuana, ao 4 anos de idade. Aprendeu a dançar copiando os vídeos e começou a se apresentar nas festas de casamento e aniversário da comunidade. Ainda criança, foi a Okinawa dançar com outro menino e fez sucesso no canal nacional do Japão, NHK, pois além de ser um brasileiro talentoso em sua arte, só falava a língua de Okinawa. Porém, ao escolher sua escola, a mestre lhe disse: “Aprenda japonês. Enquanto criança é bonitinho só falar uchinaaguchi. Mas aqui ninguém mais fala e não vou lhe tratar de modo diferente. Se quer entrar nesta escola, só volte falando japonês”. Assim, no Brasil, começou a colorir revistas infantis japonesas. Voltou e foi aceito pela diretora da escola TamagusukuryuSenjukai. Hoje, é o primeiro brasileiro a vencer todos os concursos de ryukyubuyou, em Okinawa. Conheci Satoru em janeiro de 2009, quando resolvi buscar atividades fora da academia para diversificar minha vida. Estavam no meio da montagem do espetáculo Kizuna. As alunas mais velhas me perguntavam meu sobrenome, onde eu morava e tentavam associar as redes de parentesco nas quais estávamos envolvidas. Satoru, no intervalo, conversou comigo: “Você já fez nihonbuyou (dança clássica japonesa). Mas é diferente. Para entrar, é preciso gostar muito, pois é uma atividade muito estressante, exige dedicação, empenho e tempo”. Entrei. Nas primeiras aulas, ele ensina o andar, inspirado no teatro No. Acompanho as coreografias do espetáculo, sua organização e os ensaios de madrugada e fins de semana. Nos intervalos, ele explica o significado das danças, até onde suas origens podem ser remontadas, o que foi modificado com o tempo. Na escola de Saito, entramos num universo paralelo. Só é permitido ensaiar com o yukata devidamente amarrado, cabelos presos e sem o uso de acessórios como brincos, relógios, etc. Ao entrar, reverenciamos o dojo, espaço que contém o ensaio, o kamidana, deuses protetores, e as diretoras da escola e seu fundador. O ensaio inicia-se ao nos sentarmos à moda japonesa de frente para o professor. Um leque é posicionado do lado direito de nosso corpo e o outro, colocado à nossa frente, na horizontal. Aprendemos a nos reverenciar com o leque estabelecendo a hierarquia e os limites 697 entre mestre e aluno. A partir de então, nossas relações sociais mudam: toda a dinâmica passa a ser a do ensinamento e aprendizado. É exigida uma postura corporal e de atitude nesse espaço e nesse tempo da ryukyubuyou. Ali, aprendemos através da dança, dos quimonos e acessórios, a história de Ryukyu e de Okinawa. Ouvimos histórias sobre o povo mais simples, pescador. E histórias sobre o reino, a corte. Tudo o que envolve o dojoe a casa da família Saito, onde aquele está instalado, remete aos costumes okinawanos e japoneses. A comida levada aos camarins é protegida por uma folha seca e estreita na qual se dá um nó. Ouvimos conversas nas línguas da ilha, sua mãe e avó preparam jantares e almoços com comidas típicas. Somos reconhecidas como parentes. Aprendemos que somos “da casa” quando sua avó nos manda “servir chá para as visitas” ou até a prepara-lo. Elas cuidam para que estejamos bem alimentadas e nos tratam com carinho para estarmos sempre bem no palco. As técnicas corporais, a melodia das músicas e dos jeitos de falar, os elementos e acessórios da ryukyubuyou começam a dar materialidade às histórias que ouvimos em casa de nossas próprias avós. Além do mais, materializam através da sociabilidade construída nesse espaço ao que os okinawanos costumam chamar de “espírito okinawano”. Trata-se da composição de uma pessoa vinculada tanto às suas ações em relação a ideia de “Okinawa” quanto aos sentimentos que aprendemos a dedicar aos nossos parentes. E parentes aqui passam a ser todos aqueles unidos pelo sentimento comum de grupo, de coletividade e subjetividade okinawana. A aprendizagem da ryukyubuyou é para muitos jovens o aprendizado de uma identidade étnica e também a busca por um passado. Para mim, além de me tornar okinawana para meus amigos e parentes, tornei-me também “nativa relativa”, para usar a expressão de Eduardo Viveiros de Castros (2002), ao decidir tomar como objeto de pesquisa meu próprio grupo.Segundo Favret-Saada: Ora, entre pessoas igualmente afetadas por estarem ocupando tais lugares, acontecem coisas às quais jamais é dado a um etnógrafo assistir, fala-se de coisas que os etnógrafos não falam, ou então as pessoas se calam, mas trata-se também de comunicação. Experimentando a intensidade ligada a tal lugar, descobre-se, aliás, que cada um apresenta uma espécie particular de objetividade: ali só pode acontecer uma certa ordem de eventos, não se pode ser afetado senão de um certo modo. Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de 698 conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. (2005:160). Ao aceitar ser afetada pelo meu campo e ocupar o espaço que me foi aberto, pude então também conhecer a possibilidade da etnografia. Visões do passado As coisas okinawanas que não existem mais são visualizadas pela comunidade especialmente através da arte. A ryukyubuyou oferece uma visualização do passado de Ryukyu e de Okinawa especialmente fundamental para a construção da memória comum. Através dela os professores e dançarinos compõem representações do que teria sido a corte e os costumes dos tempos antigos. Descrevi, no início desse ensaio, a composição estética das sacerdotisas de Ryukyu na performance da coreografia Kamigami. Toda a composição da performance foi pensada para envolver o espectador no mundo da arte okinawana, através da emergência de uma atmosfera de espiritualidade ryukyuana: as imagens no telão, a narração sobre NiraiKanai, a entrada dos tambores (utilizados principalmente no Eisa, performance de dança e música que celebra a volta dos mortos à terra). Num outro espetáculo, em 2009, chamado Kizuna: a dança unindo corações, citado acima, o primeiro número contava a construção do Castelo de Shuri, onde habitava o rei de Ryukyu. Dentre os quimonos utilizados para essa dança havia um feito de fibra de bananeira, produzido antes da Segunda Guerra Mundial. Este tipo de quimono era usado cotidianamente pelos habitantes da ilha. É claro que nem tudo na ryukyubuyou busca representar o passado em sua “realidade”, pois a realidade de seu mundo é outra. Fica como tropo misturado a visualidade dos tecidos, as narrativas sobre identidade: “um povo alegre e caloroso como as cores do bingata” [Figure 08]. Nas aulas de Satoru, mesmo se não interrogado, ele diferencia a estética de sua arte da estética utilizada na corte, os modos da arte e os modos da população. 699 Figure 4. Bingataamarelo, quimono típico de Ryukyu. Apresentação da dança JuriUma, representação de um número apresentado por prostitutas okinawanas uma vez por ano quando podiam rever seus pais. Marília, São Paulo, 2012. Marília JapanFest. TokieYonamine, MayumiAguena, Sueli Asato, MiwaHiga e Satoru Saito. Foto: Leonardo Siqueira Antonio, Marília, 2012. Acervo pessoal de Laís Miwa Higa. Líderes e pesquisadores da comunidade incessantemente buscam fotos, imagens e artefatos que, por vezes, nos são dadas dentro de caixas sem referência alguma de data e local. E que vão sendo encaixadas em narrativas a partir do que a memória comum nos conta. Foi o que aconteceu, por exemplo, na curadoria da exposição de abertura do Memorial do Imigrante Okinawano (MIO), Tinsagu nu Hana: história da imigração okinawana ao Brasil (2011, GrupoUrizun). As imagens do passado okinawano são tecidas com as narrativas, intercaladas por artefatos antigos e não datados, como um capacete militar utilizado como panela de arroz durante a guerra, como imagens de praias paradisíacas e as cores e padronagens dos quimonos okinawanos. No fim, estudantes e descendentes de okinawanos viajam a Okinawa e ao voltarem nos dizem: “ao pisar na terra dos meus ancestrais a sensação era de voltar a um lugar para o qual eu nunca havia ido”. Nessa fala, que ouvi de diversos colegas e interlocutores sobre sua primeira viagem ao arquipélago, refere-se a um lugar material, a uma terra. Mas a sensação que descrevem é a sensação desse lugar da memória, desses espaços construídos por coisas memoráveis e narradas incessantemente, criadas a partir de diversos tropos e que compõem o aprendizado da pessoa okinawana e de sua apreensão do mundo. Quando em Okinawa, ao invés de ouvir os CDs que trouxera comigo do Brasil de MPB, samba e forró, o que mais me fazia lembrar de casa eram as músicas folclóricas da ilha. 700 Shinji me disse uma vez: em frente ao butsudan (altar domiciliar no qual realizamos os ritos okinawanos) quando um netinho e uma avó se colocam a rezar e pedir proteção aos ancestrais, a avó passa sua mão na cabeça da criança (e ele passa então sua mão sobre minha cabeça) dizendo-lhe todas as coisas que devemos lembrar, aprender e criar (para garantir nossa sobrevivência). O cotidiano dos jovens que vivem com seus avós também são fonte de tropos para memória. Gestos, posturas, expressões nas línguas de Okinawa tornam-se motivos de debates calorosos entre eles. São coisas comuns, ordinárias e coletivas, das quais se aprende a partilhar, a contar e a situar na memória. Os domingos são cheios de parentes e músicas okinawanas. A estante da sala, repleta de vídeos de teatro popular okinawano e espetáculos de dança e música. São coisas da arte, do cultivo e também da materialidade da criação de uma identidade étnica e da invenção de modos de vida. Notas 1 Essa publicação é mensal e de distribuição gratuita. Seu objetivo é publicar matérias de interesse da comunidade nipo-brasileira. O proprietário da revista é descendente de okinawano e talvez isso colabore com o fato de a publicação manter um espaço fixo para temas de Okinawa, o que não costuma acontecer em outras publicaçõesque se dedicam aos asiático em geral no Brasil 2 Acompanhei cotidianamente Shinji Yonamine entre fevereiro e julho de 2012, período em que trabalhei para a Associação OkinawaKenjin do Brasil na elaboração do perfil do Memorial do Imigrante Okinawano (MIO), durante a gestão de Yonamine como presidente da instituição. Na época, por conta da diabetes, ele começava a perder a visão e eu o ajudava com os textos que publicava para a Revista OK, na elaboração de suas palestras e de um livro que, infelizmente, não foi ainda concluído. 3 Somente pela conversa com tais pessoas é possível redescobrir uma história que não está escrita nos livros sobre imigração japonesa no Brasil. Foi assim que minha colega socióloga, Ana Luiza Nakamoto, descobriu o Perukudari, ao questionar por quê sua avó sempre falava de Pacha Mama: seu avô migrara para o Peru e fugira da perseguição aos chineses, na virada do século XIX para o XX, atravessando os Andes e adentrando o Brasil pelo Amazonas. Foi assim também que eu e muitos de meus amigos descobriram que seus avós e pais “escolheram” um nome para si depois da Segunda Guerra Mundial pois seus documentos haviam se perdido. E foi assim, que descobri que meu avô nascera no Peru, voltara para Okinawa e casara anos depois com minha avó, nascida em Saipan, Ilhas Marianas, quando o arquipélago era colônia japonesa. Essas memórias apontam para uma clivagem entre a narrativa oficial, ou pública, da comunidade okinawana que busca se transformar em história oficial e a vivacidade com que a história foi e é vivida pelas pessoas comuns da comunidade. Referências bibliográficas CARRUTHERS, Mary. A técnica do pensamento. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. FAVRET-SAADA, Jeanne. “Ser afetado”, Cadernos de Campo, nº13, 2005. GELL, Alfred. ArtandAgency: AnAnthropologicalTheory. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998. . Wrapping in Image. Nova Iorque: Oxford University Press, 1003. KERR, George. Okinawa: The HistoryofanIsland People. Tóquio: TuttlePublishing, 2000 [1958]. 701 LEVI-STRAUSS, A Outra Face da Lua: escritos sobre o Japão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. NELSON, Christopher. Dancing withtheDead: Memory, Performance, andEveryday Life in PostwarOkinawa. Durham: Duke University Press, 2008. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O nativo relativo”. Mana8 (1), Rio de Janeiro, 2002. Laís Miwa Higa Bacharel em Ciências Sociais (2011) pela Universidade Federal de São Paulo. Mestranda em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (PPGAS USP), sob orientação da Profª Drª Lilia Katri Moritz Schwarcz, “Umi nu kanata – Do outro lado do mar: memória, história e etnicidade na comunidade okinawana brasileira”. 702 RUPTURAS E CONTINUIDADES: AS PERCEPÇÕES DA PRODUÇÃO DE ARTISTAS JAPONESES E NIPO-BRASILEIROS A PARTIR DE QUATRO EXPOSIÇÕES Carolina Carmini Mariano Lúcio - UNESP RESUMO: Exposições de artes são importantes instrumentos de percepção de mentalidades de um dado período frente à determinada produção artística. Vindos do Japão ou nascidos em colônias de imigrantes no país, as obras desses artistas apresentaram-se como um desafio a geração de críticos de arte, historiadores da arte e curadores - e para o público visitante - que encontraram nessas obras um paradigma em relação à arte ocidental e um diálogo intenso com a arte brasileira. A partir do estudo de quatros exposições organizadas por curadores ocidentais e realizadas na cidade de São Paulo: “Artistas Nipobrasileiros” (1966), “Artistas Japoneses na Coleção do MAC” (1985), “Artistas Japoneses e Nipo-brasileiros Contemporâneos” (1995) e “Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori” (2008), pretendemos compreender a inserção dos artistas japoneses e nipo-brasileiros no sistema das artes brasileira e a importância para historiografia da arte no país. Palavras-chave: Artistas Japoneses; Artistas Nipo-brasileiros; Curadoria; Exposições. ABSTRACT: Art exhibitions are important instruments of perception of a given period mentality, compared to the artistic production. Coming from Japan or born within japanese colonies in Brazil, the works of those artists stand as a challenge to art critics, art historians, curators - and the visiting public -, who find in the works a paradigm in relation to Western art and an intensive dialogue with the Brazilian art. From the study of four exhibitions organized by Western curators and held in São Paulo “Artistas Nipo-brasileiros” (1966), “Artistas Japoneses na Coleção do MAC” (1985), “Artistas Japoneses e Nipo-brasileiros Contemporâneos” (1995) and “Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori” (2008), we intend to understand the integration of Japanese and the JapaneseBrazilians in the Brazilian arts and its importance to the historiography of art in the country. Keywords: Japanese Artists, Japanese-Brazilian Artists, Curators, Exhibitions. Em 1908, a primeira leva migratória de japoneses chegava ao Brasil. A aproximação advinha do “Tratado da Amizade, Comércio e Navegação entre o Japão e o Brasil”, firmado ainda em 1895, buscando estabelecer relações comerciais e diplomáticas entre ambas as nações. No entanto, mais que relações econômicas, a vinda dos japoneses ao país constituiu uma forte ligação artística entre os países. Sua produção poética hoje representa um capítulo fundamental na história da arte brasileira, com obras pertencentes aos acervos de grandes museus e coleções. Mas essa inserção no universo das artes brasileira percorreu um longo 703 processo de busca de entendimento e aceitação que, na atualidade, aparenta simplicidade, mas que foram necessárias décadas para se firmar. De um lado, temos um grupo de imigrantes que se uniu, não apenas para manter vivas as raízes de sua cultura natal, mas para entender o novo contexto ao seu redor e recriar suas experiências. Lembramos que nenhuma outra comunidade de imigrantes no Brasil teve uma participação e suscitou tanto interesse no meio cultural quanto a de origem japonesa, principalmente na cidade de São Paulo, local com a maior concentração de japoneses fora do Japão. Do outro, temos uma série de críticos de arte, historiadores da arte, diretores de museus, colecionadores e curadores pautados pelas bases do Modernismo brasileiro, mas buscando compreender sob as mais diversas chaves da história da arte essa produção artística paradigmática. Nesse sentido, as exposições de arte, nas quais participaram diversos artistas japoneses e nipo-brasileiros, apresentam-se como principal campo de embate entre modos de ver e compreender a arte em princípios gerais e a própria arte brasileira. Ao elegermos os museus como espaços de legitimação de um fazer artístico, entendemos suas exposições como modos de percepção sobre determinada produção. Modos de percepção muitas vezes distintos, e que sofrem alterações no decorrer dos anos, motivadas por questões culturais, históricas e econômicas. Através das exposições Artistas Nipo-brasileiros, de 1966, Artistas Japoneses na Coleção do MAC, de 1985, Artistas Japoneses e Nipo-brasileiros Contemporâneos, de 1995 e Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori, de 2008, pretendemos analisar os mecanismos de compreensão de determinados personagens da arte brasileira sobre os trabalhos dos artistas participantes dessas mostras e a sua importância na produção da historiografia das artes no país. Um cenário ainda carente de estudos e onde os catálogos das exposições são as melhores e mais completas fontes de análises, desde décadas anteriores, onde o foco dos estudos sobre o impacto da vinda dos japoneses ao Brasil, sempre se recai nas questões históricas e sociológicas: “Nas estatísticas e comentários dos sociólogos que estudam a comunidade japonesa no Brasil a ausência de interesse pela acuidade artística é uma lacuna facilmente observável.” (ZANINI, 1966, p.01). Um campo de estudos ainda a ser pesquisado e compreendido, sendo que as principais bibliografias sobre esses artistas advêm das 704 exposições realizadas desde a década de 1960. Algumas exposições de artistas japoneses e nipo-brasileiros no Brasil Nesse contexto as exposições realizadas no Brasil tendo como problemática a produção de artistas japoneses e nipo-brasileiros, se estabelecem como importante documentação crítica e material historiográfico para a compreensão e estudos sobre trabalhos que ainda carecem de maiores análises e até mesmo reconhecimento dentro da história da arte brasileira. Devemos salientar que os artistas japoneses sofreram uma forte perseguição e restrição no Brasil, devido ao direcionamento tomado pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma são obrigados a interromper suas atividades, incluindo as reuniões artísticas e outras trocas profissionais. Até mesmo a participação em exposições e salões é limitada, quando não anuladas. Um dos únicos eventos que conseguem organizar no período foi I Salão de Artistas Japoneses, mostra coletiva realizada em 1938, no Nippon Clube (Clube Japonês), localizado na capital paulista e idealizado pelo Grupo Seibi1. Posteriormente a este período, diversas instituições em momentos distintos apresentaram em seus espaços obras de artistas japoneses e nipo-brasileiros. Essas mostras demonstram o importante papel dos museus e outras instituições culturais na difusão e reconhecimentos da produção dos artistas expostos. A Pinacoteca do Estado de São Paulo, desde a década de 1950, já incluía em suas exposições coletivas e itinerantes obras de artistas japoneses pertencentes ao seu acervo. O Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, por sua vez, durante a gestão de Walter Zanini estabeleceu uma série de contatos com artistas e curadores japoneses e, como resultado, foram realizadas as mostras ISPAA Internacional Society of Plastic and Audio-Visual Art2 e Cosmos3. Sem contar as exposições Atelier Nord4 e Prospectiva 745, que traziam obras de artistas japoneses integrados a contextos expositivos. Durante a gestão de Lina Bo Bardi, no Museu de Arte Moderna da Bahia – sediado no Solar do Unhão em Salvador – foram exibidas 705 mostras de Flávio-Shiró, Manabu Mabe e Iwakishi Tsukaka, além da exposição realizada em 1963, Novos pintores japoneses, extrapolando o eixo Rio-São Paulo, como espaços habituais de exibição. Outros museus dedicaram-se também a mostras coletivas cuja problemática era exclusivamente a produção desses artistas, como a exposição Seibi-kai no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1964, a mostra Grupo Seibi – Grupo Santa Helena: década de 35-45 no Museu de Arte Brasileira da Fundação Álvares Penteado em 1977, Vida e arte dos japoneses no Brasil no Museu de Arte de São Paulo em 1988, São Paulo: visão dos nipo-brasileiros no Museu Lasar Segall em 1993, Nipo-brasileiros no acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2008, entre outras propostas curatoriais. Inclusive diversas mostras internacionais – algumas promovidas pela embaixada do Brasil -, como a Nippo Brazilian Painting Today, no ano de 1965, e que circulou por Washington, Oakland e Tóquio. Um exemplo emblemático foi a exposição Nipo-brasileiros: mestres e alunos em 50 anos, realizada em 1983 por Maria Cecília França Lourenço 6 , em comemoração aos 75 anos da imigração japonesa. A mostra era composta por noventa trabalhos de 44 artistas 7 e expunha a produção dos primeiros artistas japoneses chegados ao Brasil até obras de artistas mais contemporâneos. Em sua abertura houve a performance de Paulo Yutaka, grupo Ponkã, e do grupo de dança Hassagassakai, além da apresentação do ciclo de filme japoneses. O catálogo desta exposição representa uma rica documentação composta por textos críticos, biografias e documentação fotográfica. Ocorreram ainda mostras individuais, como as da artista Lydia Okumura em 1981, sob a curadoria de Aracy Amaral e em 1995 sob a curadoria de Johan Medelson, ambas realizadas na Pinacoteca do Estado de São Paulo, ou a exposição analítica Destaque do mês8, da qual participaram Tomie Ohtake com a obra “Pintura” (1969), em 1978, Lydia Okumura com “For the Double Image” (1974), em 1983, no mesmo ano em Yoshiya Takaoka apresenta “Auto-retrato” (1950), e Flávio-Shiró com “Auto-retrato” (1947) em 1985. No entanto, devemos frisar que apesar da visibilidade existente com as exposições citadas acima, a assimilação das obras japoneses e nipo-brasileiros 706 sofreu alguns revezes no pensamento da crítica e dos curadores de arte, principalmente em relação à produção dos artistas pioneiros. Um exemplo a citar, é o caso lembrado pelo professor Paulo Roberto Arruda de Menezes sobre a Bienal Brasil Século XX: Seu esquecimento institucional fez-se definitivamente, em maio de 1994, quando se inaugurou uma exposição com o pomposo nome de Bienal Brasil Século XX. O curador da maior mostra retrospectiva já montada sobre a arte brasileira simplesmente ignorou todos, os pintores da primeira geração do grupo Seibi, jogando uma pá de cal sobre aqueles que araram o terreno sobre o qual agora florescem estes nomes tão conhecidos. (MENEZES, 1995, p. 104) Podemos perceber que a produção dos artistas japoneses e nipo-brasileiros japoneses estava inserida nos sistemas das artes brasileiras, participando de mostras coletivas, salões e tendo trabalhos adquiridos em acervos de museus. Era latente – e ainda permanece – o interesse dos críticos, curadores e historiadores da arte em compreender a produção desses artistas no Brasil. Exposições como produção historiográfica Durante o século XX, o campo de maior visibilidade para a arte e seu pensamento foi realizado pelas exposições. É neste espaço de contato com o público que a arte tem seu local de reconhecimento e reflexão. Elas passam a ocupar um papel central, pois também possuem o poder de re-significar, construir e desconstruir conceitos e rever a história da arte: [...] o principal local de troca na economia política da Arte, onde a significação é construída, mantida e ocasionalmente desconstruída. Em parte espetáculo, em parte evento histórico-social, em parte dispositivo estruturante, as exposições - sobretudo, as exposições de Arte contemporânea – determinam e administram os significados culturais da Arte. (OBRIST, 2010, p.16) Recentemente a história das exposições/curadorias ganhou espaço no mundo acadêmico, atraindo a atenção de estudiosos. Em mais de um século de exposições, apenas nas últimas décadas os estudos sobre as exposições/curadorias têm sido realizados na Europa e nos Estados Unidos. Se internacionalmente ainda se delineia os caminhos para análise da produção das exposições, no Brasil recentemente começamos entender as mostras de artes e sua função nos sistemas da arte. 707 Quando refletimos sobre as exposições de artes e seus curadores, é possível compreender como essas produções geram reflexões sobre a história da arte e seus próprios personagens, e até mesmo rupturas de paradigmas estabelecidos no decorrer das décadas. No entanto, tanto as problemáticas da ação curatorial quanto a própria pesquisa curatorial, se perdem na trama da história, nos arquivos das instituições, na memória de quem vivenciou: Ver y pensar las exposiciones como entidades significantes en sí mismas es una tendencia reciente: hasta poco nos ocupábamos sólo del arte y los artistas. El atraso en reconocer la importancia de las exposiciones resalta si pensarnos que la obra de arte nunca se comunica en una suerte de estado puro, e num limbo, sino formando parte de un discurso visual tramando por su relación con otras obras, con una locación, un espacio, una iluminación, una presentación y un recorrido dados, entre otros factores físicos. (MOSQUERA, 2008, p. 09) O crítico e curador Gerardo Mosquera nos lembra de que o advento das exposições não significou efetivamente um entendimento sobre elas. As instituições pautam-se na documentação da obra e entendem muitas vezes as mostras como espetáculos para o público. Desta forma, não reconhecemos o resultado das exposições como o espaço de concretização de uma pesquisa, o local onde a obra de arte ganha sentido, dialoga com outras obras e propõe visões para o entendimento da arte. Nas últimas décadas vemos o crescimento da atenção pelos exhibitions studies e o aumento de espaços e publicações dedicadas não apenas a análise da profissão curador, mas em resgatar e compreender o papel de importantes exposições realizadas no mundo: A primeira dimensão da história das exposições de arte moderna se desdobra diretamente desses primórdios, e está ligada ao modo como as exposições exploraram, negaram e confundiram a apreciação e a experiência da arte, como algo que pertence propriamente à arena pública. [...] A tensão entre público e privado, entre o coletivo e o individual, evoluiu de maneira irregular durante o decorrer do século XX, irregular devido ao uso desigual dos desenvolvimentos de vários espaços – cívico, comercial e social – que vieram definir as exposições de arte. Não é difícil observar que no fim do século, com a saturação do mercado de arte e de uma cultura de consumo, o conceito de “exposição” perdeu qualquer especificidade que poderia ter possuído como forma cívica na arena pública. [...] Como as exposições transgrediram os limites burgueses entre público e privado, social e doméstico, tornando-se similarmente difusas e ao mesmo tempo diferenciadas, é preciso traçar as consequências que isso traz para a experiência da arte comercialmente, individualmente ou criticamente engajada. (WARD, 1996, p. 325) 708 Como relembramos anteriormente, exposições relevantes foram ponto de ruptura para compreensão da arte contemporânea e somente agora nos debruçamos sobre elas de maneira crítica: “El retraso en considerar el papel activo de las exposiciones y su impacto emana también del hecho de que aquellas son un fenómeno reciente.” (MOSQUERA, 2008, p. 09) Desde o ano de 2008 é desenvolvido o projeto Exhibition Histories, numa parceria da Afterall9 juntamente com a Academia de Belas Artes de Viena e Van Abbemuseum, Eindhoven e com o apoio do Conselho de Artes da Inglaterra e MUDAM, Luxemburgo. Cada publicação recupera através de entrevistas, textos e fotografias, uma exposição ou um grupo de exposições de arte contemporânea dos últimos 50 anos que mudou o modo de ver e fazer arte10. No Brasil, recentemente o tema entrou em pauta com teses apresentadas aos programas de mestrado e doutorado das universidades. As exposições no Brasil sofrem com o seu caráter efêmero. A quase ausência de olhar crítico para a produção curatorial reflete o nosso próprio entendimento sobre a importância das exposições: Una razón colateral para la falta de reflexión acerca de las exposiciones es su condición efímera. La temporalidad es un componente de mayor importancia en el fenómeno exposición. Es cierto que quedan los catálogos, pero ellos solo proveen un testimonio limitado e en ocasiones son muy modestos. La facilidad actual para la documentación fotográfica y en vídeo ha mejorado un poco las cosas. No obstante, los estudiosos que han emprendido investigaciones se quejan de la escasez u precariedad de los vestigios dejados por muchas exposiciones, la carencia de archivos, y la consecuente dificultad para realizar su trabajo. (MOSQUERA, 2008, p. 10). As mostras e sua história são pouco valorizadas por nossas instituições. Após a sua realização, apenas alguns vestígios permanecem: fotografias, releases, reportagens de jornais, alguns relatórios e catálogos. Sobre os catálogos, estes se mostraram a melhor documentação de uma exposição, a forma se contatar algo que não existe mais e muitas vezes a única. Eles acabam sendo a memória da exposição, sendo o resultado material de um ato tão efêmero. Frequentemente eles apresentam uma visão limitada das exposições, quando não são muito modestos. Na atualidade, exposições de qualidade são embasadas em extensas pesquisas, que estão ao alcance do público através dos catálogos em 709 um país em que a publicação de livros enfrenta tantas dificuldades. Desta forma, essas publicações assumem o papel de bibliografias fundamentais. E é dentro desses catálogos que podemos recuperar o discurso curatorial muitas vezes perdido. Pois, é nas exposições que os profissionais mais qualificados se despendem a fazer nos museus, com contato direto com as obras e documentação de artistas, que é construída a História da Arte Brasileira de maneira crítica. E, em um país onde os maiores subsídios para pesquisa são para as áreas de exatas e biológicas, não dar o valor necessário as pesquisas realizadas nos museus é uma atitude contraditória. Não estamos construindo nossa história, nem mesmo avançando em discussões, e auxiliamos a perda da memória ao permitimos que o único registro de uma exposição seja seu nome. Quatro exposições significantes Ao selecionarmos esses quatros trabalhos curatoriais em meio a tantas outras exposições, buscamos estabelecer uma linha na compreensão da arte japonesa e nipo-brasileira pelas instituições e curadores brasileiros. Nas mostras selecionadas Artistas Nipo-brasileiros, Artistas Japoneses na Coleção do MAC, Artistas Japoneses e Nipo-brasileiros Contemporâneos e Um Círculo de Ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o Jovem Mori, podemos perceber que em todos os casos a base de entendimento e discurso curatorial, a noção que a produção de cada um dos artistas deve ser analisada de maneira única, assim como sua introdução e atuação nas artes brasileiras: A produção dos artistas visuais japoneses em nosso meio não deve ser observada como uma categoria à parte, como um fenômeno ilhado em nosso desenvolvimento. Vários dos pintores abordados neste primeiro estudo coordenam ativismos e uma visão local. Valores que agem completamente. Desde os fatores retinais da atmosfera em que vivem até às reações sociais e psicológicas de toda a sorte que trabalha inconscientemente na sensibilidade, há interferência decisivas na sua categoria criativa e estilística que por sua vez pode retribuir ao meio. Mas, como ocorre com os artistas nascidos no Brasil, é pelo grau de consciência hiper-nacional que sua comunicação terá maior validade. (ZANINI, 1966, p.4) As exposições são exemplos de pesquisas realizadas por suas instituições e curadores, e refletem esse direcionamento de uma análise que contextualiza cada 710 obra e artista em seu momento de produção e sua formação, não se esquecendo de inseri-los no contexto da própria colônia: Não podemos estudar os artistas visuais japoneses residentes no Brasil segundo uma fórmula homogênea. Há os que vieram como filhos de lavradores e foram lavradores eles mesmos até descobrir os apelos íntimos da vocação e há os que foram atraídos pelo Brasil nestes últimos anos, aportando com uma profissão artística definida. (ZANINI, 1966, p.02) São trajetórias distintas, muitas vidas duras, formação diversificada – muitos chegaram ao Brasil com formação consolidada no Japão, outros completaram seus estudos no país - mas que objetivavam no fim o mesmo reconhecimento artístico: “[...] as motivações são complexas e envolvem problemas que vão desde a procura de melhores condições de existência até os de afirmação num meio que promove uma Bienal internacional de arte.” (ZANINI, 1966, p. 02). Entre os meses de julho e setembro de 1966, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, sob a direção Zanini, apresentou a mostra Artistas nipo-brasileiros11. A exposição realizada foi a primeira curadoria da crítica e historiadora da arte Aracy Amaral. Organizada por ocasião do I Colóquio Brasil-Japão, a mostra foi pioneira em reunir uma série de artistas japoneses e nipo-brasileiros de períodos diferentes, apresentado ao público sua produção através de um estudo histórico e crítico sobre a presença deles no Brasil. Como afirma Amaral (1966, p. 5) no objetivo de estabelecer com a exposição: “uma visão conjunta, histórica e artística, assim como um levantamento primeiro sobre o desenvolvimento da contribuição dos artistas japoneses que vieram se fixar em nosso país.” Para a curadora o Brasil não é apenas o país de maior população japonesa, fora do Japão. A união dos países é mais profunda e complexa, sendo o Brasil um exemplo de uma relação artística única: [...] é rara essa coexistência artística oriente-ocidente num mesmo país, deve-se chamar a atenção para o fato de que hoje em dia não há envio representativo para o exterior das artes do Brasil em que não figurem pelo menos dois ou três artistas nipo-brasileiros. (AMARAL, 1966, p.5) Mais do que lançar um estudo crítico sobre a produção nipo-brasileira, a curadoria de Amaral buscou estabelecer um olhar desprovido do exotismo pelo Oriente, tão recorrente no Ocidente até fins da década de 1980. Percebemos que a 711 visão estabelecida busca constituir os pontos de contatos entre os artistas japoneses e os nascidos no país: Formando um agregado de muitas afinidades espirituais, a participação artística japonesa na cultura moderna brasileira adquire significado particular pelos seus recursos semânticos. Atuando na comunidade mais importante, apresentando-se em todos os certames, seu exemplo moral e estético é influente. Da mesma forma podemos dizer que o meio deve acrescentar na experiência destes artistas componentes do racialismo complexo de São Paulo. (ZANINI, 1966, p.02) O próprio posicionamento da curadoria, em caracterizar todos os dezenove artistas expostos em nipo-brasileiros, é uma atitude visando entende-los como uma produção possuidora de particularidades e diferenças naturais de vivências especificas: A nosso ver, os casos extremos não têm vigência: há pintores radicados desde a infância ou à juventude no Brasil os quais pelas próprias condições de vivência, são marcadamente nacionais, não obstante seja inevitável que associem na linguagem substratos da sensibilidade oriental; outros mantém liames espirituais profundos com a pátria de origem, mas na exploração dos conteúdos básicos não podem deixar de sofrer induções de certas expressões de vida ou da natureza que integram a nova existência. (ZANINI, 1966, p. 02). Ainda mais importante é constatar que a curadoria, não buscou separar a produção entre os artistas pioneiros e contemporâneos. Assim, Handa, Tanaka, Takaoka e Tamaki, pioneiros e estimuladores de uma produção artística na colônia, e que se formaram artistas no país, estão expostos ao lado de Shirai, pertencente a um segundo momento da produção nipo-brasileiro, com uma formação e carreira mais estabelecidas. Para a realização da exposição, Amaral juntamente com Zanini empreendeu uma grande pesquisa de resgate de parte da produção destes artistas, buscando recuperar suas obras, suas trajetórias e suas biografias. Se por um lado, se faziam presentes artistas contemporâneas de trajetórias recentes como Suzuki ou Manabu Mabe, por outro, era necessário mergulhar em caminhos desconhecidos, como as vidas de Handa ou Takaoka – artistas que ainda hoje, são carentes de estudos mais aprofundados. O catálogo elaborado representa uma documentação valiosa para perceber a inserção desses artistas em seus momentos iniciais de produção e circulação nos espaços expositivos. 712 Quase dezenove anos depois, em 1985, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, neste momento sob a direção de Aracy Amaral, organiza a exposição Artistas japoneses na coleção do MAC12. Nessa curadoria, a equipe do museu se apresenta em dois núcleos expositivos com estudos críticos sobre as obras de artistas japoneses e nipo-brasileiros e a sua inserção no acervo da instituição. Apresentada por Amaral, a primeira parte da mostra: “Artistas japoneses da coleção do MAC/USP” apresenta os trabalhos de Adachi, Arai, Fukuzawa, Hamaguchi, Hirano, Horike, Inoue, Kageyana, Kawabata, Kodama, Kubota, Matsuzawa, Mio, Mori, Mukai, Munakata, Nambata, Niotou, Ono, Sakata, Shima, Shimotami, Sugano, Tabe, Takeda, Tanaka, Teshigahara, Tsutaka, Wani, Yamaguchi, Yasuda, Yoshida e Yoshitome. Esse setor da mostra, parte do ano de 1963, quando todo o acervo pertencente ao Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) foi doado à Universidade de São Paulo por Francisco Matarazzo Sobrinho, para a criação do Museu de Arte Contemporânea. Devido ao intenso diálogo internacional estabelecido através da Bienal de São Paulo, diversas obras foram incorporadas ao acervo do Museu de Arte Moderna, através das premiações organizadas pela Bienal e que seguiram para o futuro acervo do MAC: Assim, entre os onze artistas japoneses que chegam ao MAC junto com a coleção do MAM-SP em 1963, sete são oriundos de doações ou premiações das diversas Bienais (como os gravadores Munakata, Hamaguchi e Yamaguchi, este último melhor gravador estrangeiro da VI Bienal de São Paulo, além de Kawabata, Mukai, Teshigahara e Tsutaka), e os restantes quatro procedem de doações por parte de diversas possibilidades da colônia japonesa, como as pinturas que possuímos de Tatsuo Arai, além das doações, pelos próprios artistas, nos casos de Fukusawa, Kaminagai e Yazima. (AMARAL, 1985, p. 3). Somado as premiações, segue-se uma série de doações de trabalhos em diversos momentos da instituição, motivados por uma rede de relações estabelecidas durante a diretoria e os artistas internacionais, e a própria relevância do museu no cenário internacional. Assim, durante a década de 1960, obras doadas pela Aliança Brasil-Japão e artistas passam a integrar a coleção do MAC. Nos anos seguintes, uma série de exposições internacionais e nacionais com artistas japoneses atualizou o acervo com as mais recentes tendências da arte 713 contemporânea Oriental – incluindo trabalhos de arte conceitual. Interessante notar que Amaral, mantem sua tese sobre produção da arte nipobrasileira - a mesma que apresentou na exposição Artistas nipo-brasileiros -, onde os artistas que produziam no país eram entendidos diretamente como nipobrasileiros, por se estabelecerem um diálogo intenso com a arte brasileira: Evidentemente não incluímos [...] os artistas "nissei" ou "Sansei", porquanto estes já são considerados por nós como artistas brasileiros, apesar das origens ancestrais que em muitos casos os remete ao Extremo Oriente, em fusão com o comportamento ocidental terceiro-mundista, bem visível ainda em sua exteriorização plástica. (AMARAL, 1985, p. 5) A exposição realizada pontua os trabalhos dos artistas japoneses que expuseram no Brasil dentro do contexto da história da arte mundial e analisando as tendências da arte contemporânea japonesa naquele período. A mostra delineou o caminho trilhado pelo país, que só entrou na arte contemporânea após a Segunda Guerra Mundial. O momento é marcado em 1951 com a assinatura do Tratado de Paz de São Francisco e o Salon de Mai, realizado no mesmo ano em Tóquio, como sendo a mostra representativa da arte contemporânea francesa, influência decisiva na arte japonesa. Em seu segundo momento da mostra, a historiadora e crítica de arte Lisbeth Rebollo Gonçalves, responsável pela Divisão Cientifica do MAC, buscou se delinear a partir das obras do acervo a história da presença da arte japonesa do Brasil. O setor Nipo-brasileiros no acervo do MAC, trouxe os diversos momentos pelas quais as produções de nipo-brasileiros passaram como, por exemplo, o artista pioneiro Honda, buscando uma ruptura com a tradição japonesa: Desta forma, o primeiro núcleo de artistas japoneses entre nós emergidos apontarão, também, a derrocada dos valores culturais de sua tradição. Colocam, por outro lado, a indagação de "qual arte poderiam fazer no Brasil e qual seu significado". Diz Tomoo Handa que o esforço de seus companheiros e seu próprio foi no sentido de jamais imitar as formas das belas artes japonesas, e tampouco o ensino proveniente das escolas de belas artes brasileiras, produzindo em compasso com o tempo. (GONÇALVES, 1995, p. 23) Chegando a arte mais contemporânea, com a produção gráfica de Emi Mori, ou de Kondo e Yoshitame, pertencentes ao grupo Phases e participantes de diversas exposições de arte contemporânea no Brasil, foram apresentados os 714 artistas nipo-brasileiros Fukushima, Kaminagai, Kaneko, Kondo, Kosuno, Mori, Ohtake, Okada, Shimizu, Flávio-Shiró, Sakakibara, Toyota, Wakabayashi, Yazima e Yoshitome. Interessante notar que Yoshitome é inserido nos dois núcleos da exposição, o que nos permite perceber como entendimento sobre a produção dos artistas é mutável de acordo com as pesquisas dos historiadores. E, o próprio Kaminagai, deixou o Brasil fixando as raízes em Paris. Além da apresentação de uma coleção significativa sobre a produção nipo-brasileira, a mostra que possuía um forte diálogo conceitual com a mostra de 1966, também serviu para uma atualização dos dados documentais sobre os artistas e suas obras pertencentes ao acervo. A discussão entre artistas japoneses e nipo-brasileiros seriam temática de uma nova exposição do MAC no ano de 1995. Em comemoração ao centenário do “Tratado da Amizade, Comércio e Navegação entre o Japão e o Brasil”, e sob a direção de Lisbeth Rebollo Gonçalves, foi realizada a mostra Artistas japoneses e nipo-brasileiros contemporâneos13 com a curadoria de Elvira Vernaschi. Dez anos após a mostra Artistas japoneses na coleção do MAC, a exposição trazia uma clara ruptura em relação às mostras anteriores. A produção apresentada buscava estabelecer zonas de contatos entre obras de jovens artistas contemporâneos - nascidos na década de 1960 – do Brasil e do Japão. A curadoria buscava desconstruir as barreiras geográficas que ainda podiam existir na arte contemporânea e demonstrar as articulações estabelecidas pelas artes no Brasil e no Japão durante os anos, que não significavam estratégias estéticas dispares a ponto de diferenciar suas poéticas: Nesta exposição dos japoneses, de lá e daqui, a primeira e grande observação é que, realmente, não existe diferenciação nas produções que possam diagnosticar qual pertence a qual país: muitos poderão talvez ser identificados, somente, pelo nome. [...] Neste conjunto, o olhar atento conduz o cérebro a reflexões sobre a consciente profissionalização de cada um dos artistas participantes e a percorrer os caminhos que nos introduzem às novas linguagens, às inovações técnicas e às renovações estéticas. Brasileiros e japoneses se unem numa mesma forma de expressão." (VERNASCHI, 1995, p. 9/10). Relevante salientar que a mostra foi realizada com obras de seu acervo, em constante crescimento. Em 1985, o acervo possui 34 artistas, já em 1995, o número sobe para 48 artistas, com 110 obras e com as mesmas raízes no Japão. Nesse 715 momento, a chave de análise da produção é a globalização – questão inquietante e preponderante no pensamento da década de 1990. Os artistas desse momento nasceram em um período em que a arte passava por transformações na sua linguagem, o que significou outro entendimento da arte, pautada pelo esgotamento das questões do modernismo e voltadas para uma outra compreensão do mundo: “Encontra-se obras voltadas para a apresentação da realidade e não mais interessada em representá-la, como se constatam nas instalações, na utilização de materiais industriais e na referência ao descartável.” (LOURENÇO, 1995, p. 14). A mostra de 28 artistas – treze japoneses e quinze nipo-brasileiros – apresentou um espaço de diálogo entre arte contemporânea de nações distantes, mas de laços centenários. Essas relações sempre pautam de alguma maneira, as exposições realizadas no país. No ano de comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil, em 2008, Aracy Amaral voltou-se mais uma vez para a arte japonesa e nipo-brasileira e apresentou no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo a exposição Um círculo de ligações: Foujita no Brasil, Kaminagai e o jovem Mori. A mostra tornou visível a pesquisa que a curadora realiza há quase uma década, iniciada em 2000, e buscou retirar da obscuridade a presença de três pintores japoneses no Brasil - Tsuguhari Foujita (1886-1968), Tadashi Kaminagai (1899-1982) e Jorge Mori (1932) - e o período da vinda deles ao país: “A exposição objetiva expor trabalhos de três artistas bem diferenciados, em momentos insinuantes, para o meio artístico brasileiro.” (AMARAL, 2008, p.8). Nessa exposição Amaral reviveu uma antiga parceria ao convidar para cocuradoria Paulo Portella Filho. O arte-educador ficou responsável pela curadoria das obras de Kaminagai, tanto pelo seu conhecimento e proximidade com o tema, quanto pelo desejo de Amaral em desenvolver um trabalho didático sobre a obra do artista. No entanto, mais do que exposição comemorativa, percebemos nessa mostra uma questão levantada por Amaral (1966, p.6) na exposição da década de 1960: 716 “[...] não podemos falar na influência dos nipo-brasileiros na arte de seus colegas brasileiros [...]”. Se anteriormente, a curadoria não podia precisamente pontuar a influência e as relações da arte oriental no Brasil, no período dos pioneiros, nessa exposição Amaral dá os primeiros passos - de uma pesquisa que ainda possui espaço para aprofundamentos – para estabelecer um círculo de ligações entre Foujita, Kaminagai e Mori e os Modernistas brasileiros, representado na figura de Portinari. Diferente de outras modas do período, Amaral e Portella Filho, empenharam-se em revelar episódios importantes dessas relações estabelecidas a mais de um século, além de obras que há muito não entravam em contato – ou nunca entraram – com o público brasileiro. Por fim, apresentamos quatros exposições dialogantes. Não apenas por possuírem em comum a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral, como curadora de três das quatro exposições, ou o Museu de Arte Contemporânea como espaço expositivo de três das quatro mostras. O motivo destas escolhas justifica-se na percepção das mostras e a busca de seus personagens – instituições e curadores –, em estabelecer uma pesquisa, um entendimento sobre a arte japonesa e nipobrasileira e o diálogo entre nações – Brasil/Japão. A chave básica que todas essas exposições possuem no momento é a de compreender cada obra exposta para o público. Uma ligação que permanecerá latente por muitas gerações. Notas 1 Grupo Seibi ou Seibikai, foi fundado em 1935, conta incialmente com os artistas Tomoo Handa, Hajime Higaki, Walter Shigeto Tanaka, Kiyoji Tomioka, Kichizaemon Takahashi, Yuji Tamaki, Yoshiya Takaoka e o poeta Kikuo Furuno. Organizou diversas manifestações culturais e artísticas buscando difundir sua produção, mas é obrigado a dispersar durante a Segunda Guerra Mundial. Volta-se a reunir em 1947, com a inserção dos artistas Manabu Mabe, Tikashi Fukushima, Tomie Ohtake, Flávio-Shiró, entre outros. 2 Entre agosto e setembro de 1968, sob a curadoria de Kenzo Tanaka o museu trouxe a São Paulo uma série de artistas japoneses e coreanos mais atuais no momento da realização da mostra. A maioria dos artistas doou suas obras para o acervo do museu. 3 Realizada em 1974, em uma colaboração entre Walter Zanini e o Tomoshigue Kusuno. O artista japonês que já residia no Brasil há muitos anos, elaborou uma rede de contatos e estabeleceu um intenso intercâmbio internacional, com o envio de serigrafias contemporâneas através dos Correios. 4 Exposição internacional realizada em 1967, pela curadora Anne Breivik, trazia gravuras de artistas noruegueses e tinha entre seus participantes Kenji Yoshida. 5 Exposição realizada em 1974 sob a curadoria de Walter Zanini foi uma proposta inovadora ao permitir que os artistas selecionados chamassem mais um e assim por diante, criando uma extensa rede. 6 A professora Dra. Maria Cecília França Lourenço é uma das maiores pesquisadores sobre a obra de artistas nipo-brasileiros de diferentes gerações. Era diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo quando empreendeu a e exposição Nipo-brasileiros: mestres e alunos em 50 anos. 717 7 Participaram desta exposição os artistas Kiyoji Tomioka, Tadashi Kaminagai, Teisuke Kumassaka, Tomoo Handa, Kichizaemon Takahashi, Yoshiya Takaoka, Walter Shigeto Tanaka, Massao Okinaka, Tomie Ohtake, Yuji Tamaki, Mário Masato Aki, Tikashi Fukushima, João Rossi, Manabu Mabe, Flávio-Shiró, Kazuo Wakabayashi, Mari Yoshimoto, Yutaka Toyota, Hissao Ohara, Jorge Mori, Masumi Tsuchimoto, João Suzuki, Kenichi Kaneko, Tomoshige Kusuno, Yasuhei Joshita, Bin Kondo, Hissao Sakakibara, Sachiko Kochikoku, Toshie Sanematsu, Massuo Nakakubo, Megumi Yuasa, Mário Ishikawa, Carlos Takaoka, Lydia Okumura, Toshifumi Nakano, Takashi Fukushima, Laerte Orui, Lúcio Kume, Mílton Sogabe, Taro Kaneko, Hiro Kai, Yugo Mabe e Madalena Hashimoto. 8 “Destaque do mês” de divulgação didática do acervo, com uma obra exposta no saguão principal, biografia do autor e texto técnico da diretora do museu. O projeto fazia parte da iniciativa de atrair o público para o espaço da Pinacoteca, difundindo obras consagradas do acervo da instituição. O projeto teve início na gestão de Aracy Amaral (1975-1979) e permaneceu na gestão de Fábio Magalhães (1979-1982) e Maria Cecília França Lourenço (1983-1987). 9 Afterall é uma organização de pesquisa e publicação em arte contemporânea e sua relação com o contexto histórico, social e artístico. Situada em Londres, fundada em 2008 por Charles Esche e Mark Lewis. 10 A 24ª Bienal de São Paulo sob a curadoria de Paulo Herkenhoff realizada em 1998 será uma das exposições que ganhará um volume na série. 11 Participaram desta exposição os artistas Tikahashi Fukushima, Tomoo Handa, Bin Kondo, Tomoshige Kosuno, Manabu Mabe, Hissao Ohara, Tomie Ohtake, Hissao Sakakibara, Takeo Shimizu, Hissao Shirai, FlávioShiró, João Suzuki, Yoshiya Takaoka, Yuji Tamaki, Walter Shigheo Tanaka, Yutaka Toyota, Masumi Tsuchimoto, Kazuo Wakabayashi e Yo Yoshitame. 12 Participaram desta exposição os artistas Shindo Adachi, Tatsuo Arai, Ichiro Fukuzawa, Yozo Hamaguchi, Hidekazu Hirano, Tohei Horike, Bukichi Inoue, Mitsuyoshi Kageyana, Minoru Kawabata, Massao Kodama, Masuhiro Kubota, Yutaka Matsuzawa, Kozo Mio, Shoichiro Mori, Ryokishi Mukai, Shiko Munakata, Tatsuoki Nambata, H. Niotou, Tadashiro Ono, Harumichi Sakata, Kuniichi Shima, Chihiro Shimotami, Keiya Sugano, Kenzo Tabe, Nagatoshi Takeda, Kenzo Tanaka, Sofu Teshigahara, Waichi Tsutaka, Soroku Wani, Gen Yamaguchi, Haruhiko Yasuda, Kenji Yoshida, Yo Yoshitome, Tikahashi Fukushima, Tadashi Kaminagai, Kenishi Kaneko, Bin Kondo, Tomoshige Kosuno, Emi Mori, Tomie Ohtake, Yurio Okada, Takeo Shimizu, Flávio-Shiró, Hissao Sakakibara, Yutaka Toyota, Kazuo Wakabayashi e Sada Yazima. 13 Participaram desta exposição os artistas Takashi Fukushima, Akira Ishii, Mário Ishikawa, Kiyonori Kado, Hiro Kai, James Kudo, Takao Kusuno, Manabu Hangai, Midori Hatanaka, Yutaka Hatia, Nobuo Mitsunashi, Koji Nakase, Yasuo Ogawa, Oscar Satio Oiwa, Ayao Okamoto, Roberto Okinaka, Lydia Okumura, Ademar Shimabukuro, Kiyonori Shimada, Masaru Shimizu, Milton Sogabe, Nobuhiko Suzuki, Yasuichiro Suzuki, Herman Takasey, Shoichi Yamada, Takeshi Yamamoto, Susana Yamauchi e Futoshi Yoshizawa. Referências Bibliográficas AMARAL, Aracy. 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Seu trabalho de conclusão de curso foi "Aracy Amaral: percurso curatorial" sob a orientação de Dr. Cauê Alves. 719 A NARRATIVA PICTÓRICA NA “TRILOGIA DA MARGEM” DE SUZY LEE Luis Carlos Barroso de Sousa Girão - FA7 RESUMO: O mercado da literatura infantil se encontra em destaque entre pesquisadores das mais diversas áreas, especialmente no que diz respeito à relação Palavra-Imagem nos livros ilustrados. Ainda em campo fértil e inexplorado, o livro-imagem – tipo de livro ilustrado composto em maior parte por códigos visuais e quase nenhum código verbal – é uma publicação que se utiliza dos seus aspectos plásticos para contar/mostrar uma narrativa pictórica/visual. Atualmente, a autora-ilustradora sul-coreana Suzy Lee é destaque entre os artistas plásticos que desenvolvem livros-imagem. Sua “Trilogia da Margem” – composta por 거울속으로/Espelho (2003), 파도야 놀자/Onda (2008) e 그림자 놀이/Sombra (2010) – foi publicada no Brasil, sendo inclusive adotada como material didático por escolas infantis. Objetivando realizar uma análise acerca das narrativas pictóricas que compõem estas obras repletas de ilustrações em carvão e aquarelas, propomos um diálogo entre os escritos do crítico Perry Nodelman e da especialista Sophie Van der Linden com as pesquisas de Maria Nikolajeva e Carole Scott. Como suporte ao nosso raciocínio, dando uma atenção ao movimento presente nas páginas duplas desses livros, contamos com os estudos de Philippe-Alain Michaud sobre a obra do historiador da arte Aby Warburg. Palavras-chave: livro-imagem, movimento, narrativa pictórica. SOMMAIRE: Le marché de la littérature pour la jeunesse est en évidence parmi les chercheurs de différents domaines, en particulier, la relation des Images et des Mots dans les livres illustrés. Inséré dans un domaine encore inexploré et fertile, le livre d'images – espèce de livre illustré composé en majorité par des codes visuels et presque pas de code verbal – est une publication qui se sert des aspects esthétiques pour raconter/montrer un récit pictural/visuel. Actuellement, l'auteure-illustratrice sud-coréenne Suzy Lee est parmi les artistes éminents qui développent des livres d'images. Sa “Trilogie de La Marge” – composé par 거울속으로/Miroir (2003), 파도야 놀자/La Vague (2008) et 그림자 놀이/Ombres (2010) – a été publiée au Brésil et a été même adoptée en tant que matériel pédagogique destiné aux écoles des enfants. Afin d’analyser les récits picturaux qui composent ces œuvres pleines d’illustrations au fusain et à l'aquarelle, on propose un dialogue entre les écrits du critique de la littérature pour la jeunesse Perry Nodelman et de l’expert Sophie Van der Linden avec les recherches de Maria Nikolajeva et Carole Scott. En accordant une attention particulière au mouvement provenant des doubles pages de ces livres, notre ligne de pensée s’appuye sur les études de Philippe-Alain Michaud sur le travail de l'historien de l'art Aby Warburg. Mots-clés: livre d’images, mouvement, récit pictural. A tradicional relação Palavra-Imagem utilizada desde o surgimento dos primeiros livros ilustrados para o público infantil, que data do final do século XIX, é elemento primordial para a elaboração das narrativas que compõem tais obras. Dito isso, vale ressaltar que, à priori, a função dos textos visuais é auxiliar os textos escritos, característica esta presente desde o Iluminismo. 720 Dentre os estudos acadêmicos realizados atualmente acerca dos livros ilustrados infantis – os quais tomam lugar em áreas diversas como Artes, Comunicação, Design, Educação, Psicologia, entre outras –, a relação PalavraImagem é “palavra-chave” prioritária e referencial. Nesse contexto, objetivando alcançar uma tipologia dos livros ilustrados, o pesquisador dinamarquês Torben Gregersen definiu como livros-imagem as publicações literárias compostas por “narrativas pictóricas, ou seja, sem ou com pouquíssimas palavras” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 20-21). Tal definição caminha em paralelo com o termo que o crítico e especialista em literatura infantil Perry Nodelman (1988, p. 184) utiliza quando faz referência ao wordless picture book – livro ilustrado sem palavras. Os estudos do professor emérito da universidade de Winnipeg, no Canadá, são base teórica para muitas pesquisas sobre os elementos que compõem as narrativas dos livros ilustrados. Apesar de ainda pouco explorado, o território de publicação dos livrosimagem tem chamado atenção pelo crescente interesse tanto de profissionais, como autores e ilustradores, bem como das editoras e do próprio público leitor. O fato de as páginas internas destas obras serem repletas de imagens que narram histórias sem o auxílio de palavras – estas resumindo sua presença aos títulos e algumas poucas impressões ao longo da narrativa – constantemente as coloca em posição comparativa aos livros de artista. Graduada em pintura, a autora-ilustradora sul-coreana Suzy Lee começou a despontar entre os artistas plásticos que desenvolvem livros-imagem quando publicou uma versão – feita com fotografias e ilustrações recortadas – para o clássico da literatura infantil Alice In Wonderland, de Lewis Carroll, como trabalho de conclusão do seu mestrado em Book Arts, em 2002. A mesma editora que publicou seu primeiro livro-imagem, a Edizioni Corraini, foi também a responsável pela publicação do primeiro título que viria compor a trilogia que Lee concluiria alguns anos mais tarde. Lançado originalmente em 2003 sob o título 거울속으로, Espelho é a obra que primeiro apresenta a protagonista da aclamada “Trilogia da Margem”. Após cinco anos vivendo nos Estados Unidos, a artista plástica lança Onda, segundo volume de 721 sua trilogia, originalmente intitulado 파도야 놀자. Pouco depois, em 2010, vivendo em Cingapura, Lee lança o terceiro e último volume da trilogia, Sombra, cujo título original é 그림자 놀이. Comprovando o sucesso internacional de suas obras, Suzy Lee recebeu diversos prêmios com a sua trilogia, inclusive um de Melhor Livro de Imagem pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), do Rio de Janeiro, em 2011, com Sombra. Nesse período, os livros da artista já haviam sido publicados em território brasileiro pela editora Cosac Naify, que convenceu Lee a escrever e publicar um ensaio teórico, seu primeiro, sobre o trabalho com os livros-imagem. Lançado em 2012, o livro A trilogia da margem foi traduzido para outras línguas após seu reconhecimento entre estudiosos da literatura infantil. Caminhando paralelamente ao pensamento de Suzy Lee, quando a mesma afirma (2012, p. 148): “Parece que os livros-imagem dizem: ‘Eu vou mostrar pra você. Apenas sinta’”; acabamos diante das imagens encadeadas e dispostas em pranchas enumeradas que compõem o apelidado “atlas de imagens” do historiador da arte alemão Aby Warburg, intitulado Mnemosyne – que significa “memória” (WARBURG apud MICHAUD, 2013, p. 39). O referenciado estudioso da arte renascentista e da cultura dedicou anos de sua vida escrevendo sobre os mais peculiares meios pelos quais a história da arte poderia ser contada, especialmente no que se refere às possíveis ligações existentes entre momentos distintos e que marcaram épocas diferentes na história. No que diz respeito à leitura visual, temática que dialoga com a narrativa pictórica abordada no presente artigo, Warburg se dedicou ao trabalho com a Mnemosyne baseado em uma “iconologia dos intervalos” (MICHAUD, 2013, p. 295), entendimento pelo qual ele associava as imagens e textos dispostos em pranchas de tecido negro dentro de sua biblioteca particular – atualmente no Warburg Institute, localizado em Londres. Dentro deste contexto, cabe agora dar espaço à análise das narrativas pictóricas, visuais criadas por Suzy Lee, as quais são fruídas por leitores das mais diversas idades, apesar de indicadas para o público infantil. Tentar traçar uma linha de diálogo entre o movimento do passar as páginas de um livro e o movimento de 722 fruir as imagens nas pranchas da Mnemosyne. Esse movimento de mostrar narrativas. Uma narrativa mostrada Quando nos colocamos diante de um livro ilustrado tradicional, composto por textos escritos e textos visuais, a ação de nos apoiarmos em um e noutro é natural, uma vez que as imagens à nossa disposição são complementos da leitura verbal. Em casos assim, as imagens, ilustrações, fotografias que fazem parte do material formador da narrativa possuem características mais específicas em termos de significação. Essas imagens são elaboradas a partir de momentos relevantes nos textos escritos aos quais se referem. Seguindo este raciocínio, a especialista em literatura infantil Sophie Van der Linden (2011, p. 104) afirma que, “para aumentar a força sugestiva” de uma imagem, a captação de um momento a ser representado visualmente “significa restituir-lhe seu instante mais breve, reduzir ao mínimo a duração representada”. Esta efemeridade do momento representado é característica presente em quadros pintados por artistas plásticos, assim como em fotografias realizadas por fotógrafos. De acordo com a pesquisadora francesa (LINDEN, 2011, p. 104), esse momento é chamado de “instante movimento”, o que nos leva ao elemento presente tanto nos livros-imagem de Suzy Lee como nas pranchas negras de Aby Warburg: o movimento. O movimento presente em um livro ilustrado sem palavras pode se fazer por meio de uma “picture sequence” – sequência pictórica –, termo este apontado pelo renomado autor e ilustrador Uri Shulevitz (1985, p. 18). Não muito diferente do que ocorre no rolo de fotogramas de um filme para cinema, as figuras impressas nas páginas de um livro-imagem respeitam uma sequência de significação que as torna “legíveis” ao leitor, fruidor. O próprio artista polonês explica que a legibilidade em uma sequência pictórica está relacionada ao fato de “nós podermos seguir facilmente as ações de um fotograma ao seguinte, que possamos compreender o que está acontecendo” (1985, p. 21). A legibilidade de uma sequência pictórica está intimamente ligada à produção de uma narrativa pictórica, ou seja, uma narrativa 723 que é mostrada. Identificando certa semelhança de tais ações sequenciais às obras aqui analisadas, cabe trazer à tona algo que a própria autora-ilustradora sul-coreana confessa em seu ensaio teórico (LEE, 2012, p. 148): “Quando trabalho, às vezes é como se eu estivesse desenhando fotogramas de um filme de animação”. Esses mesmos fotogramas, sempre em páginas duplas – no caso de sua “Trilogia da Margem” –, mostram três momentos distintos das ações de uma garotinha em contato com o mundo da imaginação. Fazendo uso do formato do livro como cenário, fator que também impõe significações na construção da narrativa, Suzy Lee explora a margem central de suas publicações como espaço de “passagem” do mundo real, onde primeiramente se encontra a personagem, para o mundo da imaginação, onde a personagem interage com seres, à priori, inanimados – com o seu reflexo em Espelho; com as ondas do mar em Onda; com as sombras no chão em Sombra. Nesse cenário, uma “clara relação ator-palco” é determinante para a legibilidade da sequência pictórica em exibição, à mostra para o espectador, leitor (SHULEVITZ, 1985, p. 21). Dentro desta relação ator (personagem e ser inanimado com o qual interage) e palco (livro), as obras que formam a trilogia de Suzy Lee são distintamente separadas em três cenários: o primeiro cenário representado pelo mundo real; o segundo cenário representando o mundo da imaginação; e o terceiro cenário representado pela margem central do livro. É nesse terceiro cenário, invisível aos olhos, que se dá a construção da problemática narratológica das histórias à mostra. É na imersão da personagem do primeiro cenário no segundo cenário, por meio do terceiro cenário, que a narrativa se torna convidativa a questões como: o que será que aconteceu nesta passagem? Este questionamento converge na afirmação de Perry Nodelman e Mavis Reimer (2003, p. 298) quando esses dizem que “as imagens em livros sem palavras exigem dos fruidores que os mesmos resolvam o enigma de qual história elas implicam”. Ou seja, cabe a cada fruidor, leitor responder à pergunta anteriormente lançada, ressaltando que as respostas poderão ser diferentes a cada nova leitura. 724 Por este ângulo, se desconsiderássemos os títulos presentes nas capas das obras de Suzy Lee, praticamente os únicos textos verbais destes livros-imagem, as narrativas à mostra seguiriam o raciocínio, a interpretação de cada leitor a cada leitura, fruição que esse último fizesse da história contada com o passar das páginas duplas. Segundo a própria artista sul-coreana, o “significado ocorre entre as páginas e é dado pelo ato de virá-las” (LEE, 2012, p. 120). A impressão dos momentos, fotogramas em páginas duplas é também elemento de construção das narrativas pictóricas aqui analisadas. Quando Sophie Van der Linden (2011, p. 78) aborda a montagem da narrativa em um livro ilustrado pela passagem de uma página à outra, ela cita o movimento de “encadeamento das páginas duplas da primeira em direção à última”, dialogando assim com o que Aby Warburg aponta como “encadeamento de planos” na passagem do olhar de um recorte ao seguinte dispostos em uma prancha da Mnemosyne (MICHAUD, 2013, p. 52) para sua compreensão, interpretação. Reunindo em uma única prancha de tecido negro, identificada por sua numeração, recortes de reproduções de obras de arte, fotografias de monumentos, ampliações de quadros e textos verbais, Warburg elaborou um novo meio de se ter acesso à história do homem (FIG. 1). Por meio deste “fenômeno de irrupção das figuras” (MICHAUD, 2013, p. 298), o historiador da arte propôs que o ato de leitura verbal se tornasse um ato de fruição contínua, onde o movimento de ida e volta dos olhos fosse elemento inicial para a elaboração de uma narrativa visual, pictórica da história. FIGURA 1 – Pranchas 79, 45 e 46 da Mnemosyne. FONTE – NIEL, 2011. 725 Apesar de alguns espaços nas páginas duplas dos livros-imagem de Suzy Lee serem preenchidos minimamente, como é o caso de Espelho – onde podemos ver apenas a personagem e seu reflexo, além das manchas amarelas e pretas que emergem da dobra central representando o terceiro cenário –, sua narrativa vai se construindo por “efeito de concatenação” (MICHAUD, 2013, p. 137), pelo qual as imagens se comunicam imediatamente às suas seguintes. Com este contexto imagem-imagem, podemos “determinar a interpretação de uma imagem individual” (SANTAELLA; NÖTH, 2012, p. 59), fazendo com que os leitores, fruidores da “Trilogia da Margem” criem suas próprias relações de uma imagem com a sua anterior, voltando uma página, ou com a sua seguinte, passando uma página. No referente à presença do narrador em um livro-imagem, “o texto visual tem uma perspectiva onisciente” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 163), onde tudo está à mostra, à disposição para o leitor. Ao fruir a interação das imagens nas extremidades das páginas duplas, sem esquecer do papel exercido pela margem central, esse mesmo leitor poderá unir os elementos construtores da narrativa pictórica e chegar a uma história não absoluta, uma vez que “as imagens têm seus próprios meios de expressão” (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011, p. 157). Tal reflexão se aplica a um experimento realizado com Sombra, no qual há uma página dupla totalmente negra ao final, representando o mundo imaginário absoluto das sombras, de onde irrompe uma silhueta vinda do mundo da imaginação na página dupla anterior refletida por uma luz exterior ao livro. Esse experimento é apenas mais um meio pelo qual a narrativa pictórica pode se realizar devido à interferência e interpretação do leitor, fruidor. Em complemento à ação que o leitor influi passando as páginas duplas e sua interpretação ao ler as imagens, um outro aspecto construtor da narrativa deve ser destacado: a consistência. Segundo Uri Shulevitz (1985, p. 22-23): Uma sequência pictórica é uma frase escrita com símbolos visuais no lugar de palavras. […] Os primeiros fotogramas sugerem uma série de regras, ou um código pictórico, que nos diz como ler tal sequência. Esse código nos promete como a sequência será desenhada e como ela irá progredir. No caso das obras componentes da trilogia de Suzy Lee, a consistência das histórias não segue até a última página dupla aquilo que é exposto, colocado à 726 mostra para o leitor a princípio. Os momentos de “passagem” do mundo real para o imaginário, que deixam resquícios do terceiro cenário na personagem, criam ações inesperadas no percurso da história. Esta reviravolta narrativa encerra os movimentos que eram consistentes até ali. Leitura visual da “Trilogia da Margem” Utilizando-se do carvão, por seu caráter “tanto linear quanto volumoso” (LEE, 2012, p. 28), para os traços fortes e dinâmicos em seus personagens, Suzy Lee equilibra a composição de seus textos visuais com as tintas, em especial pela técnica aquarela. E tais imagens, “vistas como uma sequência” (NODELMAN, 1988, p. 176), implicam uma série de mudanças que teriam um forte efeito narrativo. FIGURA 2 – Páginas duplas de Espelho. FONTE – LEE, 2009. Publicado com um total de 28 ilustrações impressas em 48 páginas, Espelho possui um formato vertical, semelhante ao formato padrão dos espelhos, que diminui o espaço de exposição da personagem, bem como a deixa mais próxima da margem central do livro. Essa mesma margem tem um papel mais presente no desenrolar da narrativa, pois os pontos em amarelo e preto – desenvolvidos pela técnica da decalcomania – emergem da dobra no livro, sinais de presença do terceiro cenário tanto no mundo real quanto no mundo da imaginação. A personagem que, à priori, aparece solitária no canto direito da primeira página dupla – acompanhada por uma página branca, vazia à esquerda –, acaba por se confundir com o que pode ser apontado como seu próprio reflexo na página dupla 727 seguinte. A interação simétrica entre elas se dá com aspectos de diversão, porém tudo muda depois que ambas desaparecem do teatro (livro) adentrando no terceiro cenário, ação essa que deixa uma página dupla inteira em branco, vazia. Quando saem do mundo entre o real e o imaginário, elas já não mais seguem a característica simétrica de um espelho, e esta assimetria é fator determinante para o fim da interação entre personagem e seu, agora não mais, reflexo. A falta de empatia leva a personagem a empurrar e, com isso, quebrar o espelho (FIG. 2), deixando-lhe solitária novamente, porém no canto esquerdo da última página dupla – acompanhada por uma página vazia, em branco à direita. Além dos aspectos visuais, não podemos ignorar a presença do título desta obra impressa em sua capa, uma vez que a artista plástica sul-coreana encara as “palavras como imagens” em seus livros (LEE, 2012, p. 136-137). O título original em coreano, que traduzido livremente seria Dentro do Espelho, impõe uma significação verbal fiel ao que ocorre ao longo da narrativa pictórica impressa nas páginas duplas internas. FIGURA 3 – Páginas duplas de Onda. FONTE – LEE, 2008. Publicado em um formato horizontal e com um total de 20 ilustrações impressas em 40 páginas, Onda traz uma paisagem de mar, mesclando tintas acrílicas diluídas e tintas secas, tudo com um ar convidativo para a diversão. Diferente de Espelho, esta publicação possui uma ambientação nas páginas da esquerda, que representam o mundo real da personagem à priori, com imagens de dunas ao fundo. Além disso, a garota não está sozinha no mundo real, pois há um 728 grupo de gaivotas que se movimenta de acordo com o comportamento da protagonista, funcionando como “um coro” (LEE, 2012, p. 48). Enquanto isso, nas páginas da direita, temos as ondas do mar representando o mundo da imaginação. Após chegar correndo na praia acompanhada pela mãe, a garota se posiciona de frente para o mar, brincando de se aproximar e se afastar das ondas, que estranhamente não passam pela margem central do livro em direção ao mundo real. A protagonista fica curiosa com isso e decide atravessar o espaço que representa o terceiro cenário, no qual partes do seu corpo desaparecem e depois voltam a aparecer (FIG. 3), com pinceladas azuis tanto no seu vestido quanto nas gaivotas, no mundo da imaginação. Enquanto a garota se diverte no mar com as gaivotas, uma onda enorme vai se formando ao tempo que a ambientação do mundo real desaparece. Quando notam a onda gigante, protagonista e gaivotas correm em direção à página da esquerda, acreditando que a onda não atravessaria a margem central: enganam-se. Após inundar a página dupla em todas as suas extremidades, a onda deixa resquícios seus no cenário que seria o mundo real – o céu agora tem uma das tonalidades de azul da onda e há várias conchas e estrelas no mar em azul na areia da praia. No referente à significação possível com o título original de Onda, que em tradução livre para o português ficaria Ei, Onda, Vamos Brincar, o convite feito na capa se mostra verdadeiro ao longo da narrativa pictórica nas páginas internas do livro. FIGURA 4 – Páginas duplas de Sombra. FONTE – LEE, 2010. 729 Também publicado em formato horizontal, porém com uma passagem de páginas de baixo para cima – não mais da direita para a esquerda, como em Espelho e Onda –, Sombra é a história mais elaborada da trilogia de Suzy Lee. A autora se utilizou de estêncil e tinta em spray para formar as silhuetas das sombras, além de ter salpicado a tinta amarela, que representa o mundo da imaginação, com as cerdas de uma escova de dentes para, assim, conseguir um efeito gradativo de preenchimento no segundo cenário. Composto por um total de 20 ilustrações impressas em 40 páginas, o livro mostra mais de uma reviravolta em seu percurso. A garota que acende a luz do porão no canto de cima da segunda página dupla, onde identificamos o mundo real, depara-se com uma simetria de tudo à sua volta no canto de baixo, representado pelo mundo da imaginação: o mundo das sombras. Ela começa a criar formas com as mãos e com os objetos do primeiro cenário que refletem em formatos de animais e plantas no segundo cenário, como as figuras de um pássaro e de um lobo (FIG. 4). Aos poucos, com o surgimento das silhuetas nítidas no espaço em amarelo, vemos desaparecer todos “os objetos produtores de sombras” no espaço onde se encontra a protagonista (LEE, 2012, p. 72). A primeira reviravolta da história acontece com a invasão do lobo no primeiro cenário, após atravessar o terceiro cenário levando consigo resquícios do segundo cenário. As demais silhuetas interagem diretamente com a protagonista, que não demora a imergir no segundo cenário como uma sombra ela própria. O elo entre a garota e o grupo de silhuetas é forte o suficiente para revidar os avanços do lobo, numa segunda reviravolta, que logo depois é convidado a se divertir com os demais em um teatro (livro) agora completamente invadido pelo amarelo do mundo da imaginação. Porém a brincadeira não demora a ser interrompida pelo grito que surge vindo do mundo real – aqui se tornando mais um diferencial de Sombra comparado aos outros livros da trilogia, que não apresentam outros textos verbais além dos seus títulos. Com a saída da garota do porão, ficamos diante de uma nova página dupla completamente negra, vazia e que logo depois é modificada, em outra reviravolta, 730 desta vez com as silhuetas do mundo da imaginação se divertindo entre elas mesmas. Esta ausência total de presença do mundo real caminha paralelamente com o significado emitido pelo título original desta obra, que traduzido livremente ficaria Brincadeira de Sombra. É também relevante para a construção desta narrativa pictórica a presença da onomatopeia para o acender de uma luz: o “click”. Considerações Finais Fazendo uso dos livros como objetos a serem explorados em seus mais diversos ângulos e formas, Suzy Lee produz narrativas pictóricas que levam o leitor a se posicionar como o fruidor de uma obra de arte, de uma fotografia, de um filme de cinema. A própria artista afirma que o livro é um objeto “para ser pensado como uma tela que projeta uma história” (LEE, 2012, p. 102). Ao realizar uma distinção entre mundo real e mundo imaginário, esses últimos separados pela margem central do livro, a autora-ilustradora sul-coreana consegue expor, colocar à mostra suas histórias vividas por uma garotinha curiosa. Além das expressões faciais, a protagonista faz uso dos seus gestos corporais para passar subjetividade ao leitor. Estas características apenas complementam todos os demais fatores na construção de uma narrativa que é mostrada. Por ir além do que Uri Shulevitz (1985, p. 18) atesta quando diz que a “clareza de comunicação também é importante porque a apreciação do leitor depende disso”, Suzy Lee convida seus fruidores a imergirem no mundo da imaginação assim como a sua protagonista o faz. A passagem pelo terceiro cenário é inquietante, porém não deixa de ser atraente aos olhos. Quando opta por reforçar seus traços utilizando muitos fundos brancos ou negros, as ditas “páginas vazias” (LEE, 2012, p. 110), a artista sul-coreana expõe suas histórias de maneira simples e espontânea, característica que caminha paralelamente ao conceito de “parcimônia” (LINDEN, 2011, p. 43), pouco utilizado em livros ilustrados. Porém a decisão por páginas vazias é intencional para a construção da narrativa, uma vez que a existência delas no livro influi no “aspecto de criar tensão” (LEE, 2012, p. 114) da história à mostra. 731 O fato de não fazer uso das palavras para contar suas histórias é notável exatamente por não resumir o público leitor exclusivamente às crianças. No entanto, sabendo que “uma imagem é mais comunicativa que qualquer número de palavras” (NODELMAN; REIMER, 2003, p. 277), as narrativas pictóricas na “Trilogia da Margem” de Suzy Lee mostram histórias, situações que podem ser consideradas universais, ou seja, que podem acontecer com qualquer criança em qualquer lugar. Referências Bibliográficas LEE, S. A trilogia da margem: o livro-imagem segundo Suzy Lee. São Paulo: Cosac Naify, 2012. _________ Espelho. São Paulo: Cosac Naify, 2009. _________ Onda. São Paulo: Cosac Naify, 2008. _________ Sombra. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LINDEN, S. V. Para ler o livro ilustrado. São Paulo: Cosac Naify, 2011. MICHAUD, P. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013. NIEL, L. “Atlas Mnemosine”. A regra e a excepção, Lisboa, Portugal, 2011. Disponível em: http://aregraeaexcepcao.blogspot.com.br/2011/12/atlas-mnemosine.html Último acesso em: 18/03/2014, às 11:00. NIKOLAJEVA, M.; SCOTT, C. Livro ilustrado: palavras e imagens. São Paulo: Cosac Naify, 2011. NODELMAN, P. Words about pictures: the narrative art of children’s picture books. Athens: University of Georgia Press, 1988. NODELMAN, P.; REIMER, M. The pleasures of children’s literature. 3d ed. Boston: Allyn and Bacon, 2003. SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2012. SCHULEVITZ, U. Writing with pictures: how to write and illustrate children’s books. New York: Watson-Guptill Publications, 1985. Luis Carlos Barroso de Sousa Girão Graduado em Design de Moda pela Faculdade Católica do Ceará (2008) e especialista em Design Gráfico pela Faculdade 7 de Setembro (2013). Trabalhou como tradutor pelo portal SarangInGayo (2008 - 2012). Atuou na indústria fonográfica como designer e ilustrador pela gravadora Pastel Music (2010 - 2012). Tem interesse nas temáticas: Ilustração, Literatura Infantil, Palavra-Imagem, Semiótica da Cultura, Tradução e Tradução Intersemiótica. 732 BASARA EM: SHÔJO E SHÔNEN MANGÁ Simonia Fukue Nakagawa - USP1 RESUMO: Basara, antes de ser entendida como estética, é entendida pelos artistas contemporâneos japoneses como o espírito que demonstra exuberância e luxo. Foi um modo de vida dos daimyo no século XIV, os quais não se importavam em usar as riquezas econômicas das províncias para sustentar suas extravagâncias. Inspirados na história dos daimyo surgiram o Sengoku Basara e o Basara. O primeiro é título de uma história em shônen mangá, ou seja, quadrinho direcionado ao público masculino, e o último, Basara foi publicado em shôjo mangá, quadrinho voltado para o universo feminino. Por atingirem públicos divergentes, suas narrativas e poéticas visuais são diferentes. A pesquisa proposta visa analisar as diferenças tanto narrativas quanto visuais, e identificar a estética/espírito Basara nesses mangás. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram feitas leituras dos dois tipos de mangá, bem como uma busca teórica a respeito do termo Basara na história do Japão e seu uso pelos artistas contemporâneos japoneses. Palavras-chaves: mangá; estética Basara; cultura japonesa. ABSTRACT: Before being understood as aesthetics, the contemporary Japanese artists understand Basara as the spirit which shows exuberance and luxury. Basara was the Daimyo way of life of in XIV century that didn’t care about spends the wealth of the provinces to maintain their extravagances. Inspired by the history of the Daimyo the Sengoku Basara and the Basara arose. Sengoku Basara is title of a shônen manga (boy comics) story. And Basara was published as shôjo manga (girl comics). To reach different readers their narratives and visual poetics are also different. This research aims to analyze those differences and identify the Basara aesthetics/spirit in both manga. For the development of this research, readings of both manga have been made, as well as a theoretical search on the term Basara in the History of Japan and its use by the contemporary Japanese artists. Keywords: manga; Basara aesthetic; japanese culture. Introdução Existem diversos estudos no ocidente sobre as histórias em quadrinhos japonesas, porém muitos deles abordam a história, gêneros e a narrativa. Este artigo busca relacionar o mangá com uma estética japonesa empregada na arte contemporânea conhecida como basara. O mangá tem vários aspectos importantes em sua história: O primeiro deles são os olhos grandes e pode-se dizer que essa importante característica do mangá surgiu em 1935, com um jovem de vinte e dois anos chamado Nakahara Jun’ichi, o qual “traz às capas (de revistas) meninas de olhos 733 grandes e sonhadores” (FUJINO, 2002, p. 81). Neste período, os olhos grandes das personagens de Jun’ichi causaram conflito com a Divisão de Livros do Ministério de Assuntos Internos do Japão, que proibiram as capas desenhadas pelo artista argumentando: As meninas que você desenha sem sombra de dúvida são americanas, porque têm os cabelos vermelhos e olhos grandes, e no geral mostram fraqueza: são desenhos de uma doutrina derrotista. (2002, p. 82) Apesar disso, os olhos grandes passaram a ser a característica do quadrinho japonês que perpetua até a contemporaneidade e se tornou uma peculiaridade dos mangás, distinguindo-o dos quadrinhos americanos e europeus. Osamu Tezuka, além de difundir o mangá no ocidente, cria as famosas estrelas nos olhos das personagens, cuja função é intensificar o brilho do olhar. Este detalhe é muito comum nos mangás direcionados para o público feminino, porque revela a ideia romântica nas narrativas. Outro aspecto significativo no mangá são justamente as narrativas. No mesmo período de Jun’ichi, o artista Matsumoto Katsuji usa quadros para dar sequência às suas histórias, criando, assim, a sequência em quadrinhos como, por exemplo, em Pichiko to Châ-kô, que apresenta uma narrativa composta de quatro páginas sequenciais a fim de dar ritmo às narrativas (FUJINO, 2002). Mas é necessário observar que, no decorrer dos anos, alguns mangakás2, em algumas páginas, não usam a estrutura dos quadros, mas as colocam numa página inteira como se fosse um único quadro. Outro artista de relevância para os estudos das narrativas do mangá é Rakuten Kitazawa, considerado o pioneiro dos quadrinhos japoneses e o primeiro a usar a palavra mangá para designar histórias em quadrinhos. As histórias desse artista eram voltadas para narrativas de humor, elas ridicularizavam personagens que tinham “comportamento livre, que contrariavam os pais”. Essa característica se desenvolvia lado a lado com a ocidentalização no Japão pós-guerra (2002, p. 48), o que pode nos mostrar que, apesar de o ocidente influenciar o cotidiano do jovem japonês – pensemos a rebeldia dos adolescentes americanos que podemos ver em Juventude Transviada de Nicholas Ray – e, com isso, inspirar as histórias japonesas, mesmo que sendo através do deboche como Kitazawa nos mostra, a estrutura da 734 narrativa visual permanece a mesma. O ocidente, indiretamente, inspira histórias, mas não domina as estéticas. Embora o mangá apresente diversos gêneros que se distinguem pela forma e os temas que aborda, neste artigo apenas dois serão abordados, o shôjo e o shônen mangá. O primeiro é voltado para o público jovem feminino. Desenhos de estrelinhas, corações, flores, folhas e pétalas caídas, esparsos pelo cenário, sugerem uma linguagem musical imaginária. Cria-se uma atmosfera para o romance. [...] Os temas são variados, sempre enfocando o amor impossível, as separações chorosas, as rivalidades entre amigas [...]. (LUYTEN, 2000, p. 52) Já o shônen mangá se apresenta de forma oposta. [...] quase todas as revistas para rapazes são preenchidas com histórias melodramáticas, dentro da temática do samurai invencível, do esportista e do aventureiro, tendo como constante as condutas japonesas típicas de autodisciplina, perseverança, profissionalismo e competição. (LUYTEN, 2000, p. 56) Assim, este artigo procura contribuir para a pesquisa sobre o mangá apresentando uma estética/espírito japonesa – basara – presente nos dois gêneros de mangá: um shôjo mangá chamado Basara e um shônen mangá denominado Sengoku Basara II. Estética/espírito basara Basara, na sua etimologia vem da palavra sânscrita vajra, “que designa o que está firme, duro como diamante, que pulveriza todas as coisas, o instrumento que força aos maus deuses a submeter-se”3.(SATÔ4, 1995, p. 330, tradução nossa). No Japão, o termo sofreu alterações no seu significado ao longo do tempo, tornando-se mais um chavão e se manifestando como vanguarda que representa um mundo de cabeça para baixo (gekokujo), valorizando o individualismo, porque no século XIV a sociedade era violenta e procurava defender uma estética individual (SATÔ, 1995). Nessa época (século XIV), o sistema feudal, que possuía uma economia estabelecida, deparou-se com as guerras civis, caminhando, assim, para ruína. No 735 entanto, os senhores feudais conhecidos como daimyo basara passaram a ostentar roupas e casas luxuosas, alimentos raros e caros sustentados pela economia advinda das províncias. Na cultura japonesa, basara representa aquilo que ostenta exuberância e luxo, por causa desse modo de vida baseado na ostentação de riquezas dos daimyo. Diante dessas situações, o governo Muromachi passou a decretar regulamentos estritos condenando a vida basara. Porém, um famoso e polêmico daimyo basara, Sasaki Dôyo, ignorou essas proibições, mantendo espetáculos extravagantes e divertimentos de caça para os vassalos. Essa foi uma forma notável encontrada de sobreviver politicamente na sociedade diante da guerra civil. Apoiados no poder econômico que tinham, os daimyo basara fizeram uma crítica mordaz ao sistema à sua maneira, dando “[...] ao mundo a ‘licença ultrajante’, ‘livre violência’ (jiyu rôzeki) e ‘mundo de cabeça para baixo’ (gekokujo) [...].”5 (SATÔ, 1995, p. 339-340, tradução nossa). Por causa das confusões caóticas da guerra civil a sociedade e todos seus conceitos sociais entraram em colapso, mas tentava-se buscar diferentes valores daqueles veiculados pela velha ordem. Embora tenha sido proibido o comportamento basara, para se estabelecer uma ordem, as autoridades o aceitavam, e desta maneira, os daimyo passaram a ser “o lado positivo do mal”6 e a “entrar em toda extravagância suntuosa”7. Neste momento, basara passou a ser caracterizada por um “estado de ambivalência entre o distúrbio do paroxismo e beleza”8 (SATÔ, 1995, p. 340, tradução nossa). Esse comportamento às vezes rude e cruel de indivíduos marginalizados pelo sistema tradicional mostra uma sociedade que está em movimento tentando se desenvolver economicamente, politicamente e culturalmente. Como os basara, os artistas do teatro Nô, da arte floral ou do jardim, da arte dos perfumes ou da poesia coletiva (renga) também sofreram discriminação da população. Eles eram os “moradores das margens de rios (kawaramono)” 9 e podemos pensar essa marginalização como uma elite, pois eram classificados como “[...] comensais (dôsbôshû) do shogun ou os mais altos personagens do regime, isto é, viveram do 736 seu mecenato”10 (SATÔ, 1995, p. 40, tradução nossa). Dito isso, o termo basara também foi usado para designar uma estética ligada ao mundo do entretenimento. Esse comportamento extravagante e luxuoso dos daimyo inaugura o termo basara que se cristaliza como estética Na sociedade da época das guerras civis, foi feito um amplo uso do termo basara, usado para se referir tanto a “extravagância” (kasa: luxo incomum), como a “loucura” (monoguroi), o comportamento estridente ou simplesmente para descrever como a manga de roupa de uma dançarina acrobática possui graça, ou na dança dengaku, como um jogo, que intencionalmente leva o ritmo clássico para atrair a atenção. Novos ritmos espasmódicos, tons vibrantes, padrões negros, tudo o que era incompreensível para a sensibilidade tradicional foi chamado “basara”. No vestuário, como nas pinturas, eles começaram a usar abertamente as cores primárias em vez de tons pálidos e tons escuros utilizados anteriormente. Não pareciam mudanças radicais na estética da cor. Sem dúvida, um modo novo de 11 formas estranhas e incomuns tinha aparecido. (SATÔ, 1995, p. 330, tradução nossa). Assim, basara se tornou também forma de “arte” da vida, uma mistura de provocações com o anticonformismo que, aliás, alguns guerreiros, homens e mulheres das classes mais baixas procuravam como modelo a fim de se distinguirem dos demais (MOLLARD, 2007), buscando a exuberância, seguindo contra os valores autoritários, sendo extravagantes e valorizando a filosofia de que “o baixo supera o alto”12 (AZITO, 2010). Sob todas essas influências da estética basara, podemos encontrá-la na arte e cultura japonesas contemporâneas. Exemplo disso foi a exposição, com curadoria do artista japonês com tendências da “neo-arte japonesa”13, Hisashi Tenmyouya, o qual selecionou artistas contemporâneos japoneses e os exibiu na Galeria Spiral Garden em Tóquio com o tema basara (figura 1). Essa exposição teve como proposta resgatar a história e cultura japonesas e trazê-las para a contemplação dos olhares contemporâneos conectando, dessa forma, o passado com o presente, porém contrapondo os estereótipos japoneses como wabi, sabi, zen e otaku 14 , criando um movimento de “voltar e ir entre estas percepções da arte japonesa”15 (AZITO, 2010, tradução nossa). 737 Figura 1. Intertwining thought. 2009. Hisashi Tenmyouya. Técnica: Acrílico e folhas de ouro, brocado de outro, tecido velho, trança em madeira. Dimensão: 180 × 165cm. Outro exemplo da influência do espírito basara, como é nomeado na contemporaneidade, na arte e cultura japonesas contemporâneas são os trabalhos do estilista japonês Kansai Yamamoto. O estilista que, na década de 70, vestiu David Bowie na apresentação do seu sexto álbum denominado Alladin Sane, obteve sucesso internacionalmente. Suas produções valorizam as extravagâncias, misturadas às fantasias, performances e danças. Em 2013, produziu um desfile em Londres no Victoria & Albert Museum (V&A), ali ele expôs criações novas com a proposta de ser coreografada, expressando o movimento e o resultado foi o desfile “Fashion in Motion”16. Essa “rebeldia” na moda resgatou aquilo que representa o tradicional, mas reinterpretado na contemporaneidade e definida por Yamamoto como o “espírito rebelde encontrado em extrema beleza”17 ou como comenta em entrevista para revista online Shön Magazine (2013) "[...] a palavra BASARA significa se vestir livremente, com uma extravagância elegante. [...] é colorido e chamativo e que está no coração do meu projeto"18 (tradução nossa). Essas ideias e conceitos os artistas contemporâneos emprestaram dos daimyo basara. O que também aconteceu no mangá, pois a estética basara é encontrada em dois gêneros de mangás, o shôjo e o shônen. 738 Basara em shôjo e shônen mangá Ambos os mangás abordam esta estética/espírito basara de forma histórica, mas com pequenas particularidades que as distingue uma da outra. O shôjo mangá é narrado de forma fantástica e com algumas ideologias da história sobre os próprios basara. O mangá intitulado Basara (figura 2) se passa num Japão pós-apocalíptico onde o deserto domina a Terra. O conflito inicial da narrativa é a luta que os povos enfrentam contra o império tirano do Imperador de Ouro, como é conhecido. Quatro espadas – Byakko, Suzaku, Seiryu e Genbu – são forjadas como símbolo da resistência do povo, e surge uma profecia para dar-lhes esperança. Essa profecia preanunciava o nascimento de um menino que mudaria a vida da Vila Byakko. Entretanto, nascem gêmeos, Sarasa (menina) e Tatara (menino) cujo destino é libertar seu povo deste governo e tornar a vila independente. Figura 2. Basara, criado por Yumi Tamura, editado por Shôgakukan. 1990. No aniversário de 12 anos, Tatara é nomeado o “Filho do Destino” e passa a receber a espada como símbolo do seu destino. Porém, o Rei Vermelho invade a vila Byakko e um de seus guerreiros decapita Tatara, deixando o povo desesperado, pois a esperança deles havia morrido. Mas, como em muitas narrativas, surge uma esperança não revelada: Sarasa. Esta, percebendo o medo do seu povo, resolve 739 assumir o destino de seu irmão assumindo a figura de Tatara e, assim, começa sua jornada como “Filho do Destino”. Por ser um shôjo mangá, o amor é relevante e a relação percorre o caminho da impossibilidade. Sarasa se apaixona pelo Rei Vermelho que corresponde a esse amor. Como aceitar amar aquele que matou seus queridos parentes e quase destruiu seu povo? E como amar aquela que é conhecida como a salvadora do povo e está incumbida a matá-lo? Esse é o clímax do shôjo. Uma das semelhanças com a estética/espírito basara está no contexto histórico relacionado à ostentação que os daimyo basara adquiriram para comportar seus luxos, e o Rei Vermelho, no mangá, procura fazer o mesmo. Seu reino é repleto de extravagâncias, o que, de certo modo, é copiado pelos outros reinos. Logo na primeira página há a definição de basara: “O espírito nega a antiga autoridade, transcendendo as tradições e costumes. A origem da palavra é Vajra, ou seja, diamante.”19 (TAMURA, 1990, p. 1) Podemos pensar ser este o mesmo ideal dos daimyo basara em relação à antiga tradição japonesa e, no shôjo mangá, Sarasa surge para quebrar esses costumes, isto é, as tradições de seu povo e também do Rei Vermelho. Outra ligação possível é o termo vajra (figura 3). Se basara vem de vajra que significa diamante, pode-se entender que Sarasa é basara, vajra. Pois toda a narrativa coloca a personagem como assumindo a figura do irmão, e por isso ela é forte, pois não se deixa destruir, é dura no seu discernimento, como um diamante. Entende-se então, que não somente esse mangá possa ter se influenciado pelo contexto histórico dos basara, mas também pelo seu significado inicial. 740 Figura 3. Basara, criado por Yumi Tamura, editado por Shôgakukan. 1990. Já o shônen mangá intitulado Sengoku Basara II (figura 4), baseado no game da Capcom20, descreve a história das guerras civis no Japão. Como acontece em muitos games, um primeiro jogo foi lançado e seguido de outros com avanços do enredo e estratégias, suportes e melhor elaboração dos gráficos. O mangá deste game seguiu o mesmo princípio, ou seja, é possível encontrar uma variação do nome Sengoku Basara, porém, para esta pesquisa, privilegiou-se o Sengoku Basara II. Embora os personagens e cenários estejam relacionados com os trajes e lugares do Japão antigo, no game existem personagens com vestimentas e lugares diferentes da época, pois, como em muitos enredos de jogos japoneses e de publicações de shônen mangá, a história se miscigena com a fantasia criada pelo artista, no qual, dois mundos distintos, o da imaginação e o real se unem num produto dirigido a um determinado público. No entanto, os concept art (a arte da caracterização dos personagens) tanto do game quanto do mangá estabelecem semelhanças com as criações do estilista Kansai Yamamoto, pois eles foram criados a partir dos trajes e costumes daquela época para os games da contemporaneidade. Existe uma mistura do tradicional com o contemporâneo, a qual se harmoniza com as lutas entre vilões e mocinhos. 741 Figura 4. Sengoku Basara II, adaptado por Haibara Yaku, editado por Media Works, 2007. Sengoku refere-se ao período de Estados em Guerra na China e foi uma era contemporânea ao período Muromachi, mas no Japão as lutas eram pela disputa de poder entre os clãs daimyo. Os principais daimyo desse período foram Takeda Shingen, Uesugi Kenshin e Date Masamune, recuperados no game e no mangá, assim como outras personalidades históricas japonesas: Oda Nobunaga, no quadrinho, o Rei das Trevas e Toyotomi Hideyoshi, conhecido como o Senhor das Armas. (TURNBULL, 2003) Na História, sempre existiram a disputa de poder e conquista de territórios, e nesse mangá não é diferente. Aparecem dois jovens, Sanada Yukimura e Date Masamune, que a princípio são rivais, mas percebendo um poder maior tentando conquistar o Japão, eles resolvem juntar suas forças assim como fazer acordos com outros guerreiros de outras regiões para lutarem contra o Senhor das Armas. E mesmo derrotando-o, se deparam com outra ameaça para os clãs, Toyotomi Hideyoshi. Novamente os heróis unem as forças em busca da vitória. Aqui os poderes sobrenaturais se sobrepõem dando mais emoção às cenas de luta (figura 5). São poderes com nomes, como se tivessem sido aprendidos por algum mestre ancestral, e que determinam o tipo de golpe que está sendo aplicado ao oponente, característica comum nas narrativas dos mangás. É dessa forma que a 742 história do Japão entra num universo fantástico com referências históricas reais. Figura 5. Sengoku Basara II, adaptado por Haibara Yaku, editado por Media Works, 2007. Assim como o shôjo mangá Basara, este shônen mangá também aborda questões sobre as extravagâncias dos senhores feudais e o espírito da liberdade contra as tradições antigas, mas nele as personagens, inicialmente inimigas, comungam entre si para vencer um poder maior, característica comum em shônen mangá. Os dois gêneros de mangá – shôjo e shônen – se analisados na forma visual, são bastante distintos. O shôjo Basara exibe linhas e traços finos, mas mais ousados que o shônen Sengoku Basara II, ou seja, apesar de uma das características principais do shôjo mangá é ter páginas mais claras e “limpas” contrapondo-se ao shônen que, geralmente, possui páginas carregadas e poluídas, Basara ousa em sua estética carregando as páginas com nanquim e retículas. Entende-se que Basara é um shôjo mangá pela narrativa do romance, caracterização dos personagens que se expõem com traços leves e finos, olhos grandes e brilhantes, mas com uma quadrinização mais rebuscada. Já Sengoku Basara II é percebido como mangá masculino pela abordagem da narrativa que envolve lutas e disputa entre poderes, no entanto com uma quadrinização mais organizada, embora com linhas mais grossas. 743 Pode-se dizer que ambos trabalham com a questão histórica, ideológica e conceitual da estética/espírito basara. Considerações finais Se na história do Japão basara é um comportamento extravagante que leva o indivíduo a ostentação e luxo, na arte ela aparece como fenômeno relevante nos trabalhos de artistas nipônicos contemporâneos. Eles se utilizam dessa estética/espírito, influenciados pelos modos exuberantes desse termo e pelos exageros para produção de suas obras. Essa estética também é observada no mangá como elemento instituído. Entendemos a estética/espírito basara em sua história e seu desenvolvimento na contemporaneidade como sendo um conceito da percepção e liberdade na arte. Notas 1 Orientanda da Professora Dra. Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro. Mangaká é aquele que desenha mangá. 3 "[...] qui désigne tout ce qui est inébranlable, dur comme le diamant, qui pulvérise toutes choses, l'instrument qui contraint les dieux maléfiques à se soumettre." 4 Satô Kazuhiko é professor da Universidade de Artes Liberais de Tóquio. 5 Satô Kazuhiko é professor da Universidade de Artes Liberais de Tóquio. 6 [les basara] "sont la face positive du mal." 7 "s'adornner à toutes les somptueuses extravagances." 8 "cet état d'ambivalence du paroxysme entre désorde et beauté." 9 "les habitants des berges des rivières (kawaramono)." 10 "[...] qu'ils étaient tous les commensaux (dôsbôshû) du shôgun ou des plus hauts personnages du régime, c'est-à-dire qu'ils vivaient de leur mécénat." 11 "Dans la société du temps des guerres civiles, il était fait une large utilisation du term basara, employé pour désigner à la fois l' "extravagance" (kasa: le luxe hors du commun), la "folie" (monoguroi), le comportament tapageur, ou plus simplesment pour décrire la manière dont la manche du vêtement d'un danseur voltige avec grâce, ou encore, dans la danse du dengaku, la façon dont l’exécutant par son jeu, sort intentionnellement du rythme classique afin d’attirer l’attention. Les nouveaux rythmes saccadés, les tons éclatants, les motifs osés, tout ce qui était incompréhensible pour la sensibilité traditionnelles fut appelé "basara". Dans le vêtement comme dans le peintures, on commença à employer ouvertement les couleurs fondamentales à la place des teintes pales et des tons sombres utilisés auparavant. On vit apparaître des changements radicaux dans l’esthétique des couleurs. Incontestablement, une nouvelle mode de formes étranges et insolites avait fait son apparition." 12 “the low overcomes the high.” 13 “neo-japanese art” 14 O termo era usado para se referir a casa de outra pessoa, mas os japoneses o empregaram para denominar os jovens que ficavam em casa e gastavam seu salário cultivando hobbies de diversos tipos, principalmente, mangá, games e animê. Na década de 90 a palavra se tornou pejorativa implicando a indivíduos que não tinham uma vida real além da internet ou dos quadrinhos. Porém, o ocidente importou a palavra que passou a designar aquele que é fã da cultura japonesa ou mesmo nerd, para os japoneses. (GARCÍA, 2011, p. 86) 15 “to go back and forth between these perception of Japanese art.” 16 Moda em Movimento. 17 “rebellious spirit found in extreme beauty.” Matéria do site Style Bubble do Reino Unido. 18 “[…] the word BASARA means to dress freely, with a stylish extravagance. […] it is colorful and flamboyant and it lies at the heart of my design.” (2013) 19 “The spirit of denies old authority, transcending traditions and customs. The origin of the word is Vajra, meaning diamond. Traduzido para o inglês pelo site Mangafox. Fonte: http://mangafox.me/manga/basara/v01/c001.1/3.html. 2 744 20 Existem algumas versões das adaptações do game para o mangá, dentre elas: “Sengaku Basara 2”; “Sengaku Basara Rense Ranbun”; “Sengaku Basara 3” etc. Referências bibliográficas FUJINO, Y. Identidade e alteridade: a figura feminina nas revistas ilustradas japonesas nas Eras Meiji, Taishô e Shôwa. 2002. 204p.Tese (Doutorado em Comunicação e Estética do Audiovisual) – Escola de Comunicação e Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo. GARCÍA, H. A geek in Japan: discovering the land of manga, anime, zen, and the tea ceremony. North Clarendon: Tuttle, 2011.160p. LUYTEN, S. B. Mangá: o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000. 250p. TENMYOUYA, H. Basara. Tokyo: Bijutsu Shuppan-sha, 2010. 160p. TURNBULL, S. Samurai: the world of the warrior. Oxford: Osprey Piblishing, 2003. 224p. Fontes eletrônicas AZITO online Gallery of Japanese Contamporary Art. "BASARA" curated by Hisashi Tenmyoya. Disponível em: <http://www.azito-art.com/topics/exhibition/basara-curated-byhisashi-tenmyoya.html>. Acesso em: 18 nov. 2013. LANJI, R. Interview with Kansai Yamamoto. SHÖN MAGAZINE, 30 de outubro de 2013. Disponível em: <http://schonmagazine.com/2013/10/interview-kansai-yamamoto/>. Acesso em: 07 fev. 2014. MOLLARD, N. Construction d’une identité littéraire moderne à travers la relecture d’une esthétique traditionnelle: Fūryū ‚h dans les écrits de Kōda Rohan Pn: autour de 1890. (Doutorado em Letras) – Universidade de Genebra. Genebra, 2007. Disponível em: <https://archive-ouverte.unige.ch/download/unige:713/THESIS>. Acesso em: 06 nov. 2014. SATÔ, K. Des gens étrange a l’allure insolite: contestation et valeurs nouvelles dans le Japon medieval. In: SATÔ, K; BOUCHY, A. Annales: Histoire, Sciences Sociales. 50e Année, n°. 02, mar. - abr., 1995, pp. 307-340. Publicado por: EHESS. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/27584894>. Acesso em: 18 nov. 2013. Mangás TAMURA, Y. Basara. Tokyo: Shogakukan, vol. 01-27, 1990. Disponível em: <http://mangafox.me/manga/basara/>. Acesso em: 20 mar. 2014. HAIBARA, Y. Sengoku Basara II. Tokyo: MediaWorks, vol. 1-4, 2007. Disponível em: <http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/>. Acesso em: 20 mar. 2014. Fontes ilustrativas Figura 1: Disponível em: <http://www3.ocn.ne.jp/~tenmyoya/paintings/0_paintings.html>. Acessado em: 20 mar. 2014. Figura 2: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/basara/v03/c009.2/8.html>. Acessado em: 20 mar. 2014. Figura 3: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/basara/v01/c001.1/3.html>. Acessado em: 20 mar. 2014. Figura 4: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/v01/c001/37.html>. Acessado em: 20 mar. 2014. Figura 5: Disponível em: <http://mangafox.me/manga/sengoku_basara_2/v01/c002/17.html>. Acessado em: 20 mar. 2014. 745 Simonia Fukue Nakagawa Mestranda em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela USP; fez especialização em História da Arte do Século XX (EMBAP) e em Comunicação Audiovisual (PUC-PR) e é formada em Gravura pela EMBAP. Leciona mangá desde 2000 e possui pesquisas relacionadas a esta arte. 746 O CORPO E A CÂMERA EM TÓQUIO – DOIS VIAJANTES: CHRIS MARKER E WIM WENDERS Regiane Akemi Ishii - Unicamp RESUMO: A partir de dois documentários realizados em Tóquio na década de 1980 por diretores não japoneses, Sem Sol (Sans Soleil, 1983), de Chris Marker, e Tokyo Ga (1985), de Wim Wenders, buscamos investigar como as camadas visuais deste espaço urbano e seus elementos estéticos são filmados pelo corpo estrangeiro. Os ensaios fílmicos apresentam como questionamento comum o papel fundamental da câmera para a constituição de memórias. Enquanto para Marker, Tóquio seria o lugar onde os “fragmentos de guerra estão encaixados na vida corrente”, Wenders parte em busca da cidade do diretor japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes ele considera um “tesouro sagrado do cinema”. Para Marker e Wenders, o mais profano e o mais sagrado caminham lado a lado na capital japonesa. Entre as recorrências podemos citar os bares de Shinjuku, os pequenos rituais religiosos, os neons das fachadas dos prédios, a estética da culinária, as galerias subterrâneas das estações de metrô... Portanto, o que nos interessa é refletir sobre a formação de um imaginário acerca da paisagem urbana de Tóquio. Para tal, faz-se presente a ideia de emoção geográfica, desenvolvida por Giuliana Bruno em Atlas of Emotion – Journeys in Art, Architecture, and Film (2002). Palavras-chave: cidade e cinema, Tóquio, emoção geográfica. ABSTRACT: From two documentaries made in Tokyo in the 1980s by non-Japanese directors, Sunless (Sans Soleil, 1983), by Chris Marker, and Tokyo Ga (1985), by Wim Wenders, we aim to investigate how visual layers of this urban space and its aesthetic elements are filmed by a foreign body. These filmic essays present as a common question the fundamental role of the camera for the formation of memories. While for Marker, Tokyo would be the place where the "fragments of war are embedded in everyday life", Wenders goes to search the city of the Japanese director Yasujiro Ozu, whose films he considers a "sacred treasure of the cinema". To Marker and Wenders, the most profane and the most sacred go hand in hand in the Japanese capital. Between the similarities we can cite the bars of Shinjuku, the small religious rituals, the neons of the facades of buildings, the aesthetics of cooking, the tunnels of the subway stations... What interests us is to discuss the formation of a imagery about the urban landscape of Tokyo. To this end, it is importante the idea of geographical emotion, developed by Giuliana Bruno in Atlas of Emotion - Journeys in Art, Architecture, and Film (2002). Keywords: city and cinema, Tokyo, geographic emotion. Dois diretores europeus levam suas câmeras à Tóquio na década de 1980: o alemão Wim Wenders, em Tokyo Ga (1985), e o francês Chris Marker, em Sem Sol (Sans Soleil, 1983). Estamos localizados na capital japonesa do pós-guerra, que já havia exibido seus espaços reconstruídos nos Jogos Olímpicos de 1964 e provado sua recuperação econômica, mas ainda não havia sido o foco da profusão de produções audiovisuais estrangeiras como acompanhamos na última década em 747 ficções como Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia Coppola, Babel (2005), de Alejandro González Iñarritu, Enter the Void (2009), de Gaspar Noe, Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love, 2012), de Abbas Kiarostami, entre tantos outros títulos. Nos documentários de que trataremos, a presença fundamental de Tóquio convoca questionamentos sobre o próprio ato de filmar e o papel da câmera para a constituição de memórias. Como o cinema afetaria a formulação de lembranças? Os deslocamentos povoam nosso passado imaginário de maneiras diferentes quando registrados? Seria Tóquio uma cidade que “pede” para ser filmada? Frequentemente meus sonhos se passam nas lojas de Tóquio, nas galerias subterrâneas que duplicam a cidade. Começo a me perguntar se tais sonhos são meus ou se fazem parte de um conjunto, um gigantesco sonho coletivo, da qual a cidade inteira seria uma projeção. Eu me lembro daquele mês de janeiro em Tóquio ou das imagens que filmei em janeiro em Tóquio. Elas foram substituídas em minha memória, elas são minha memória. Pergunto-me como se lembram as pessoas que não filmam, que não tiram fotos, que não gravam. Como fazia a humanidade para se lembrar? (Trechos de Sem Sol, 1983, de Chris Marker) Eu não tenho memória de nada. Simplesmente não lembro mais. Eu sei que estive em Tóquio, sei que foi na primavera de 1983, eu sei. Eu estava com a câmera e fiz imagens. Essas imagens agora existem e tornaram-se a minha memória. (...) E, hoje, minhas próprias imagens parecem ter sido inventadas, como quando, após muito tempo, você encontra um pedaço de papel no qual você transcreveu um sonho na primeira hora da manhã. Você lê com assombro e não reconhece nada, como se tivesse sido o sonho de outra pessoa. (Trecho de Tokyo Ga, 1985, de Wim Wenders) Gostaríamos de ter como panorama a interdisciplinaridade entre cinema, arquitetura e corpo, proposta por Giuliana Bruno em Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture and Film, lançado em 2002. Sem uma cronologia rígida, o próprio texto da autora organiza-se como uma jornada pela história das artes espaço-visuais, inserindo o cinema como produto da modernidade e da cultura de viagem e herdeiro da função de gerar uma emoção geográfica. Aqui, o próprio visionamento de filmes é tido como uma forma imaginária de flânerie. As sensibilidades relacionadas à viagem não estão somente nas histórias e narrativas destes filmes, mas no cinema em si. A necessidade de estabelecer parâmetros espaciais e (des) localizar o corpo (...) é de fato uma obsessão emocional do filme. (...) No começo de um filme, assim como no início da visita de um viajante a uma cidade, o espectador é pensado para confrontar uma emoção geográfica. (BRUNO, 748 2007, p. 271) Para os dois diretores, o mais profano e o mais sagrado caminham lado a lado na capital japonesa. Há muitas recorrências em ambos os documentários: as vitrines, os jogos eletrônicos, os bares de Shinjuku, os adolescentes dançando nos parques públicos, os pequenos rituais em cemitérios, os carros em movimento nas vias expressas, os neons das fachadas, a estética da comida, as horas em frente à televisão japonesa no quarto de hotel, a influência ocidental, as galerias subterrâneas das estações de metrô, os tíquetes nas catracas do metrô lotado, as pessoas vistas pela janela do trem ao lado... Enquanto Wenders é marcado por uma nostalgia pelos filmes do diretor japonês Yasujiro Ozu, cujos filmes ele considera um “tesouro sagrado do cinema”, o viajante do filme de Marker conta que o “contínuo vai e vem não é procura de contrastes, é uma viagem aos dois extremos da sobrevivência”. Guiné-Bissau e Japão seriam os extremos. O primeiro viaja na primavera, quando a cidade está povoada pelas cerejeiras floridas, o segundo visita a cidade no inverno, estação em que as jovens tiram seus quimonos do armário. “O afastamento dos países repara, de algum modo, a excessiva proximidade dos tempos” é a citação de Jean Racine que abre Sem Sol. A partir daí, uma voz feminina lê as cartas escritas pelo viajante que percorre a Islândia, Japão, GuinéBissau e os Estados Unidos. Para ele, Tóquio seria o lugar onde os “fragmentos de guerra estão encaixados na vida corrente”. É importante citar que Chris Marker já havia viajado ao Japão antes. Em Le Mystère Koumiko (1967), filmado durante as Olimpíadas de 1964, apresenta a personagem Kumiko. Entre os 20 e 30 anos, “ela não é exemplo de nada, nem de classe, nem de raça”, diz o narrador. “E ao redor dela, o Japão”, prossegue. Depois de capturar o rosto de Kumiko na plateia de um grande estádio, a câmera percorre Tóquio ao seu lado, fazendo perguntas como “você vê a beleza japonesa como nós vemos?”. Intercaladas com momentos dos jogos olímpicos estão sequências da cidade à noite e suas fachadas iluminadas pelas propagandas, como também de grupos dissidentes e protestos políticos, dois elementos que serão retomados em Sem Sol. 749 Também nas proposições de Giuliana Bruno, não apenas se pensa como a arquitetura é observada, mas também como se dá a presença no espaço. São enfatizadas as conexões entre motion (movimento) e emotion (emoção), e entre sight, expressão relacionada à visão, e site, como ideia de espaço. Em artigo anterior, Site-seeing: Architecture and the Moving Image (1997), a autora inicia o texto introduzindo um jogo com a palavra sightseeing (atividade de visitar lugares como um turista). Fazendo a mudança para a expressão siteseeing, a pesquisadora propõe uma mudança teórica, um deslocamento do ótico para o háptico, trazendo o aspecto tátil para pensar o cinema dentro do terreno das artes espaciais. Para ela, o espectador de filmes havia sido fixado como um voyeur. Em relação ao novo siteseeing, o espectador seria mais um voyageur. Pensar as habitações e travessias pelo espaço próprias à imagem em movimento apenas nos limites do sight (habilidade de ver) seria insuficiente; fez-se necessário, no pensamento de Bruno, dar luz à dimensão espaço-corpórea do cinema: Percebidos por meio de hábito e tato, cinema e arquitetura são ambos uma questão de toque. O caminho háptico destas duas práticas espaciais toca a esfera física. Suas questões cinéticas são carnais. Em suas ficções arquitetônicas, há uma ligação tangível entre espaço e desejo. O espaço desencadeia o desejo. (...) Proporcionando espaço para viver e alojando lugares de biografia, o cinema e a arquitetura são constantemente reinventados por histórias da carne. (BRUNO, 1997, p. 14) Em Sem Sol, a primeira vista que temos de Tóquio é um plano geral da cidade em que um longo trem entra e sai de quadro. Em outro momento, o viajante escreve: “Tóquio é uma cidade cortada por trens, costurada por fios elétricos. Ela mostra suas veias”. Ao longo do filme, os planos gerais são mesclados com detalhes da vida urbana: a vitrine de uma loja de departamentos, o rosto de um homem no bar, os tíquetes na catraca do metrô: “tudo lhe interessava. (...) As alegrias simples da volta ao país, ao lar, à casa da família, que ele ignorava, doze milhões de pessoas anônimas poderiam dar-lhe”. A sensação de estar distante de sua terra natal permeia as imagens do documentário. São visões de quem está entregue ao anonimato, sem pudores para observar o que parece enigmático ou estranho e tecer suas próprias hipóteses. “Não compreender aumenta o prazer”, escreve o viajante. Ou, citando novamente Bruno, “o espaço desencadeia o desejo”. 750 A Tóquio de Chris Marker também apresenta figuras que geralmente passam ilesas às câmeras estrangeiras: os marginalizados, os manifestantes políticos, os pobres, como os senhores que vão até as lojas de televisão para conseguir assistir ao campeonato de sumô. Insistentemente o diretor tenta se aproximar de outras camadas da cidade, trazendo várias sequências dedicadas aos rituais, como a visita aos templos no Ano Novo: “uma prece que se insere na vida sem interrompê-la”. Enquanto o tom alucinatório permeia o filme de Marker, a nostalgia marca a Tóquio de Wim Wenders, que empreendeu uma viagem ao Japão entre as filmagens de seu longa-metragem Paris, Texas (1984). O diretor alemão parece não desistir de tentar encontrar o equilíbrio que relaciona com os filmes de Ozu, considerado por muitos “o mais japonês” dentre os diretores do país. As primeiras imagens de seu documentário são, na verdade, os créditos iniciais de Era uma Vez em Tóquio (Tokyo Monogatari, 1953), do diretor japonês. Sobre tais imagens, nos deparamos com a voz off de Wenders, que em nenhum momento do filme aparecerá ele mesmo em quadro. Para ele, os filmes de Ozu tratavam sempre das mesmas histórias, vividas pelas mesmas personagens, na mesma cidade, Tóquio. Em suas palavras, esses filmes possuíam uma visão que ainda alcançava a “ordem num mundo sem ordem”. Foi só ao ver um garotinho no metrô, um menino que simplesmente não queria andar mais, que percebi porque minhas imagens de Tóquio me pareciam como as de um sonâmbulo. Nenhuma outra cidade junto com o seu povo me parecia tão familiar e tão íntima muito antes de conseguir visita-la graças aos filmes de Ozu. Eu queria redescobrir essa familiaridade e era essa intimidade que minhas imagens de Tóquio buscavam. Nesse garotinho no metrô eu reconheci muitas das crianças rebeldes dos filmes de Ozu. Ou talvez eu apenas quisesse reconhecer. Talvez eu estivesse procurando algo que não existia mais. (Trecho de Tokyo Ga, 1985, de Wim Wenders) O passado, representado pelos filmes de Ozu, não poderia estar completamente perdido, e assim se manifesta dentre as diversas possibilidades que a câmera de Wenders empenha-se em captar. Para Gilles Deleuze, Ozu “construiu num contexto japonês a primeira obra a desenvolver situações óticas e sonoras puras” (2007, p. 23). Seus tempos mortos e espaços vazios, sem personagens e movimentos, adquirem uma autonomia que atinge o absoluto, são contemplações puras, o tempo em si. A identidade do mental e do físico, do real e do imaginário, do sujeito e do objeto, do mundo e do eu, em Ozu, aparecem como centro das 751 ambições de Wenders. Não à toa, o diretor se detém às imagens realizadas dentro de trens. As sequências de trens (e em trens) são famosas na filmografia de Ozu. Podemos relembrar filmes de diferentes fases, como Meninos de Tóquio (Otona no miru ehon Umarete wa mita keredo, 1932) e Flor do Equinócio (Higanbana, 1958), além do já citado Era uma Vez em Tóquio. Diferente do que vai ocorrer por diversas vezes na construção cinematográfica da cidade de Tóquio, a câmera de Wenders se detém em planos fixos, por vezes longos, a cada elemento. Sua atenção é conquistada pelo espelho retrovisor do táxi, pelo mapa do metrô, pelas crianças brincando no cemitério cheio de flores da primavera, pela plataforma do trem, pelo campo artificial de golfe. Tóquio como clichê de grande metrópole, conhecida pelo seu frenesi e profusão de imagens e luzes, foi bastante filmada de maneira frenética, mas não é o que encontramos em Tokyo Ga. Como uma metalinguagem poética, o diretor também faz uso de recursos formais para experimentar o modo de filmar de Ozu. Em um beco de Shinjuku à noite, Wenders posiciona sua câmera e tenta filmar com uma lente 50 mm, a preferida do diretor japonês. Há também dois depoimentos com profissionais que trabalharam por décadas com Ozu e que contam como era seu método no set. O primeiro mostra o ator Chishu Ryu, que atuou em filmes como Era uma Vez em Tóquio e Pai e Filha (Banshun, 1949). Não é à toa que o diretor escolhe filmar Ryu sentado no tatami, posição em que já foi retratado tantas vezes por Ozu. A discrição de suas memórias combina-se com imagens que tentam vislumbrar uma aproximação com essa atmosfera sóbria. Algumas vezes o ator sai de quadro para dar espaço a gotas escorrendo pelo vidro da janela ou por uma cerejeira desfocada ao fundo. Depois de perambular nas madrugadas pelos salões de pachinko, a penúltima sequência do filme (antes apenas de mais imagens de Era uma Vez em Tóquio) é também um depoimento. Yuuharu Atsuta foi diretor de fotografia de muitos filmes de Ozu e monta uma câmera em um tripé mais baixo criado especialmente para os filmes de Ozu para demonstrar qual era a altura utilizada para seus planos. Atsuta 752 também conta que as poucas sequências que não eram realizadas em set, mas sim em locações reais, eram as de trens. Após a exibição do uso da câmera e de seu depoimento emocionado sobre a transformação que o trabalho com Ozu lhe causou, Atsuta tenta segurar as lágrimas e pede para ser deixado sozinho. A câmera tenta encontrar o seu lugar e termina, um tanto quanto desajeitada, na cortina da sala de entrevista. Entre os depoimentos de Ryu e Atsuta, o filme inclui um encontro com o diretor Werner Herzog, outro nome forte do chamado Cinema Novo Alemão. No topo da Torre de Tóquio, em tom de manifesto e de denúncia, Herzog esbraveja: Isso é tão simplesmente poluição visual. Quase não existem mais imagens possíveis. Teríamos que fazer uma escavação arqueológica. É preciso vasculhar essa paisagem violada para encontrar alguma coisa. Hoje em dia, existem muitas poucas pessoas no mundo que arriscam algo em prol da necessidade de termos imagens adequadas. Temos de encarar essa guerra, a fim de solucionar tal necessidade. Eu lamento que, por exemplo, às vezes eu tenha de subir oito mil metros montanha acima para obter imagens claras, puras e verdadeiras. Aqui quase não tem isso, é preciso procurar muito. Eu viajaria para Marte ou Saturno no próximo foguete. Para mim, seria mais fácil do que aqui na Terra descobrir o que constitui as imagens verdadeiras. (Depoimento de Werner Herzog em Tokyo Ga, de Wim Wenders) Logo em seguida, Wenders prossegue e afirma, em voz off, que “não importa o quanto eu entendia a busca de Herzog por imagens transparentes e puras, as imagens que eu buscava só podiam ser encontradas aqui embaixo, no caos da cidade. Apesar de tudo, eu não conseguia não me impressionar com Tóquio”. A partir da proposição de Wim Wenders em fazer um documentário tendo como mote os filmes de Ozu e do depoimento de Werner Herzog sobre o desespero frente a uma “paisagem violada”, fica claro a diferença entre suas investigações. Enquanto o primeiro produz imagens nostálgicas, o segundo busca a todo custo, como em uma guerra, as imagens iniciáticas. Herzog tem levado ao limite a “escavação arqueológica” até os dias de hoje. Em um de seus mais recentes documentários, A Caverna dos Sonhos Esquecidos (Cave of Forgotten Dreams, 2010), o diretor acessa cavernas do sudeste francês, filma pinturas pré-históricas e encerra o filme com jacarés albinos. Aberta em 1958, a Torre de Tóquio funciona como ponto de telecomunicação e de turismo e é tido como símbolo da industrialização e crescimento econômico do 753 pós-guerra. Com 333m de altura, possui dois decks de visitação abertos ao público (150m e 250m). Em maio de 2012 foi inaugurada uma nova torre de telecomunicação que também serve como ponto turístico, a Tokyo Skytree, com 634 m de altura, reforçando a oferta de uma vista clichê sobre Tóquio a partir de grandes alturas. Ao contrário disso, Wenders permanece, na maior parte do tempo, no meio do caos da cidade. A calçada, a partir da janela de um carro, é vista na altura dos pedestres e não em direção ao topo dos prédios. O diretor parece, em diferentes momentos, tentar encontrar um ponto fixo na paisagem urbana para se descolar da “poluição visual”. Elementos que variam do mapa do metrô à vitrine de um restaurante. Depois, o diretor retornaria à cidade em Notebook on Cities and Clothes (1989), em que retrata o estilista japonês Yohji Yamamoto. O que parece unir Tokyo Ga e Sem Sol são a duração dos planos e o tempo de permanência em alguns lugares, como as galerias subterrâneas das estações de trem. Os diretores não passam correndo, parecem insistir na potência daquele visual, se detendo à cidade de Tóquio como lugar possível onde disparar suas hipóteses e reflexões. Ali, podem discorrer sobre questões relacionadas à memória e, destacadamente sobre o ato de filmar em si. Ambos da década de 1980, os filmes ainda carregam o passado da guerra e o peso da reconstrução, ao lado de certo ar futurista causado pela arquitetura intrigante. Shinjuku, iluminada por neons e cheia de becos e ruelas, e Ginza, com suas largas avenidas, são os dois bairros mais recorrentes nesta produção até os anos 80 (os filmes das décadas seguintes dariam mais atenção a regiões como Shibuya, Harajuku e Omotesando). São por suas ruas que caminham os europeus Chris Marker e Wim Wenders, com olhares e reflexões para além da dicotomia clichê entre as tradições e o frenesi da grande cidade. Também se faz presente a influência de diretores japoneses, marcadamente Yasujiro Ozu. “A imagem cinematográfica de Tóquio, ao longo das décadas do pós-guerra, se uniu com as texturas da cidade inteira em formas visuais que demonstraram a ambivalência e o poder excêntrico em que a cidade se baseou” (BARBER, 2002, p. 147). Como um complexo trânsito de identificações, onde as narrativas se 754 alimentam da relação intensa entre os corpos e o espaço urbano, o cinema aparece como o meio em que a perambulação conecta a experiência física com questões de nação. Tendo em mente que o “espaço desencadeia o desejo”, temos um terreno fértil para explorar os desejos imbricados nos fascínios e embates com a paisagem urbana a partir de quem é de fora. Gostaríamos de pensar Tóquio como uma cidade cinematográfica delineada como um mapa de passagens, migrações e erotismos. Referências bibliográficas BARBER, S. Projected cities. London: Reaktion Books, 2002. BRUNO, G. Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture and Film. Londres: Verso, 2007. BRUNO, G. Site-seeing: Architecture and the Moving Image in Wide Angle. Ohio: Ohio University School of Film, 1997. DELEUZE, G. A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007. IGARASHI, Y. Corpos da Memória – Narrativas do Pós-Guerra na Cultura Japonesa (1945-1970). São Paulo: Annablume, 2012. KOIDE, E.; orientadora Iray Carone. Por um Outro Cinema – Jogo da memória em Chris Marker. Tese (doutorado). São Paulo: Instituo de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2011. KUNIYOSHI, C. 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North Clarendon, Vermont: Tuttle Publishing, 2010. Regiane Akemi Ishii Graduada em Comunicação Social - Midialogia pela Unicamp, atualmente desenvolve a pesquisa de mestrado “Tóquio no Cinema Contemporâneo” na mesma universidade. Cursou intercâmbio na Universidade de Santiago de Chile. Atuou como jornalista cultural em diferentes veículos, trabalhando como repórter de exposições na Folha de S. Paulo. Desde 2013 integra a equipe de produção de conteúdo do Educativo Bienal. 755 O CANTO DA CIGARRA: MONO NO AWARE NA OBRA DE HIROKAZU KOREEDA Paulo André Gomes Soares - UERJ RESUMO: O trabalho proposto pretende apresentar a obra cinematográfica do diretor japonês Hirokazu Koreeda, tendo como foco de estudo a presença da estética “mono no aware” em seu trabalho. Mono no aware é um termo presente nos estudos teóricos de diferentes artes japonesas e até de aspectos sociais nipônicos que diz respeito ao pathos das coisas e se caracteriza por agregar um tom de melancolia provocado pela consciência da transitoriedade e efemeridade daquilo que nos cerca e principalmente da natureza. Já o cinema de Hirokazu Koreeda, fortemente marcado por explorar as relações familiares e suas diferentes gerações, nos convida a refletir sobre o tempo que passa e movimenta a vida. Através de análises de aspectos narrativos e visuais em sua obra, são construídas também algumas pontes com o cinema do mestre Yasujiro Ozu, grande referência no trabalho de Koreeda, de forma a tentar entender como Koreeda desenvolve sua própria poética onde o tempo pode ser considerado um dos seus pontos centrais. Palavras-chave: mono no aware, Hirokazu Koreeda, cinema, tempo ABSTRACT: The proposed work aims to present the cinematic work of the Japanese director Hirokazu Koreeda , focusing on the study of the presence of the aesthetic " mono no aware " in his work . Mono no aware is present in theoretical studies of various Japanese arts and even in social aspects with regard to the pathos of things and it is characterized by adding a tone of melancholy caused by the awareness of transience and ephemerality of the things around us and especially the nature. About Hirokazu Koreeda's filmography, it is strongly marked by exploring family relationships and their different generations, which invites us to reflect on the time that passes and moves life . Through analysis of narrative and visual aspects in his work , I also aim to build some bridges with the work of Yasujiro Ozu, the great reference work Koreeda , as an attempt to understand how Koreeda develops its own poetics where time can be considered a the central points . Keywords: mono no aware, Hirokazu Koreeda, cinema, time A percepção humana sobre o tempo sempre foi uma característica inquietante dentro de todas as sociedades, independente de seus contextos culturais e geográficos. A passagem do tempo inexoravelmente atinge a tudo e a todos sem nenhuma discriminação. A única certeza que nos é dada quanto a todas as coisas vivas é que um dia elas perecerão. E não é a toa que um grande número de obras de arte é inspirado justamente por essa noção do fluxo devastador do tempo. A própria gênese da criação artística nas artes visuais está atrelada a essa noção. Segundo André Bazin (1991), uma das forças que move as artes visuais é justamente essa necessidade de se combater o tempo, exorcizá-lo, atingindo uma 756 perenidade da forma. Dependendo do contexto histórico e cultural, essa angústia em relação ao tempo toma a forma de diferentes expressões artísticas. Enquanto que no Ocidente muitas vezes assume-se um tom obsessivo e pessimista do espectro da morte através da vanitas, o Japão surge com o conceito de mono no aware, trazendo uma melancolia agridoce por meio da contemplação das coisas. Normalmente traduzido como o pathos das coisas, a ideia de mono no aware está ligada a noção de uma consciência e apreciação da transitoriedade e efemeridade das coisas e da natureza. Ele sugere uma beleza que, apesar de frágil, cria uma poderosa experiência no observador, uma vez que ela só pode ser desfrutada em um instante ou tempo específico. Tal fenômeno não está atrelado apenas às artes, mas também ao próprio comportamento social dos japoneses. Apesar do conceito ter sido cunhado pelo intelectual Motoori Norinaga no século XVIII, a princípio para definir o sentimento evocado na literatura clássica do período Heian, o conceito também é expandido para o modo de ser dos japoneses em aspectos gerais. Um exemplo disso é o costume tradicional japonês do hanami, o ato de contemplar a beleza do florescimento em massa das cerejeiras que acontece uma vez ao ano. O acontecimento se dá na primavera, após um longo e rígido inverno, durante um curto período que pode variar entre uma semana a dez dias e mobiliza grande parte da população motivada a apreciar essa beleza de ordem tão efêmera. Mono no aware, então, carrega consigo uma carga de tristeza e melancolia banhada pela beleza e delicadeza do instante. No que diz respeito ao campo cinematográfico alguns autores japoneses, como Hirokazu Koreeda, se destacam em apresentar aspectos de mono no aware na mise-en-scene. Antes de introduzir a obra de Koreeda, no entanto, eu preciso apresentar algumas considerações sobre o cinema feito por Yasujiro Ozu, que exerce tamanha influência na obra de Koreeda. Quando falamos de um estilo característico de certo diretor, na maior parte das vezes nos referimos a uma reprodução de códigos cinematográficos que tal autor decidiu priorizar ou aprimorar, mas que de uma certa forma são herdados da 757 própria indústria cinematográfica. No caso de Ozu, durante o correr da sua carreira, veio a desenvolver uma abordagem própria do fazer cinema. Num meio caracterizado por uma linguagem grandiloquente cheia de excessos, que constantemente apela para o grotesco, o grandioso e o trágico, Ozu se foca em algo, que até então estava sempre à sombra, quase imperceptível, que é o cotidiano. O cotidiano que pertence à insignificância, um cotidiano desprovido de mistérios e aventuras, um cotidiano que aparece no cinema quase como o vazio que aparece para a pintura japonesa, e marcado principalmente pela delicadeza e leveza. Esse cotidiano passa um singelo sentimento de passagem de tempo e de fluxo da vida, com suas idas e vindas, ganhos e perdas, nascimentos e mortes, focando principalmente na casa, que se torna esse lugar de passagem e de fluxo de momentos. Tomando por exemplo o filme Era uma vez em Tóquio, o filme se concentra nas relações pessoais de uma família, e trata de questões como o casamento, o conflito de gerações, decepção e morte. O enredo é simples, sem muita ação ocorrendo na tela, mas Ozu almeja que o público preste atenção a seus personagens, e às complexas relações entre eles. Dentre as técnicas cinematográficas utilizadas, destaca-se um recurso desenvolvido por Ozu e recorrente em sua obra que são os chamados “pillow shots”, planos de corte que não exercem uma função muito nítida ou óbvia no desenrolar da narrativa. São planos de objetos, espaços vazios ou paisagens que chegam a durar por um tempo significantemente longo. Em “Era uma vez em Tóquio”, os primeiros planos servem basicamente para nos contextualizar e nos dar o tom do filme que vamos assistir. Vemos um grande monumento de pedra próximo a um rio com barcos passando, crianças indo para escola, montanhas, telhados de casas, trens. Para criar uma simetria e um ciclo fechado, Ozu termina o filme da mesma forma que começou, o mesmo monumento de pedra, outros barcos passando até terminar com um “Fim” escrito sobre um tecido de linho (que também aparece no início ao mostrar os créditos iniciais. ) Esses pillow shots servem como instantes autônomos e mundanos de extrema simplicidade que reforçam a ideia de mono no aware e são eternizados pela 758 câmera, cumprindo a função da arte examinada por Bazin. São fragmentos de imagens cristalizadas (DELEUZE, 1985) cada qual com sua carga dramática, ora para indicar um ritmo ou para contextualizar o espectador, ora apenas para nos dar um tempo de reflexão sobre o tempo que passou e o que estar por vir. Still dos primeiros planos de Era uma vez em Tóquio (1953) Outra técnica cunhada por Ozu, trata-se de um enquadramento que adaptase necessariamente a uma realidade tradicional japonesa, conhecido como “plano tatami”. Nele, os personagens são enquadrados por uma câmera estabelecida a uma baixa altura, cerca de 80 centímetros do chão, que posiciona o espectador mais ou menos na altura dos olhos de um personagem que esteja sentado de joelhos sobre um tatami, como se o próprio espectador estivesse presente na sala acompanhando os outros personagens na tela. Eventualmente Ozu utiliza planos de close-ups médios de personagens, para destacar suas falas que nunca são interrompidas. São raras as vezes em que há um corte de discurso dos diálogos de Ozu. Nos seus filmes, todos os personagens tem o direito de serem ouvidos em sua integridade. Assim, podemos apreender primeiramente o espaço em si (que muitas vezes pode aparecer vazio) que proporciona o livre fluxo de acontecimentos da vida, que passam num instante e eventualmente o esvazia novamente. Entramos na casa, que é onde os acontecimentos mais importantes se revelam, conhecemos a intimidade dos personagens que está longe de ser algo sexualizado, mas sim desdramatizado, pautado na apreensão dos sentimentos mais delicados que podem gerar dos relacionamentos e conflitos que por ali passam. 759 Por trabalhar o cinema de forma tão única em sua época, Ozu é considerado o mais japoneses dos diretores japoneses, também por incorporar em sua obra conceitos estéticos tão intrínsecos à cultura japonesa, como o mono no aware. Na contemporaneidade, Hirokazu Koreeda surge, dando continuidade a essa vertente atualizando-a ao seu tempo. Assim como em Ozu, as relações familiares (em toda sua complexidade e simplicidade) é um tema caro a Koreeda, que tem um apreço especial por trabalhar com a perspectiva de personagens infantes. Seus filmes tangem temas como o tempo, gerações, família, cotidiano, vida e morte. Principalmente em sua obra Aruitemo Aruitemo (normalmente traduzido como “Ainda a caminhar”) considerada uma grande homenagem a Yasujiro Ozu, por conta da temática e da forma de se filmar. Trata-se de uma serena comédia dramática sobre uma família que se reúne todo ano para celebrar a morte do filho mais velho. Tudo é desenvolvido de maneira bem simples, a narrativa não nos conduz a um objetivo ou meta, não há protagonistas ou antagonistas, nem clímax ou reviravoltas. O filme começa com imagens simples e orgânicas, tais como vegetais frescos sendo cortados e preparados para uma refeição, conduzidas por diálogos banais, mas que te prendem a atenção. Logo, o título do filme aparece sobre um plano pitoresco de montanhas, casas, o mar e um trem que passa cortando o quadro. De forma parecida o filme termina, lembrando muito Era uma vez em Tóquio. Tela título de Aruitemo Aruitemo (2008) Apesar da serenidade que conduz a trama, seus personagens e suas preocupações giram em torno da presença da morte. Não apenas a do filho falecido, mas também daquela que se aproxima com a velhice dos pais. E apesar de não 760 haver nenhum protagonista central, o filho mais novo do casal de idosos, Ryota, às vezes toma o centro da trama, uma vez que ele acaba por viver na sombra do irmão falecido, nunca alcançando a expectativa do pai, um médico aposentado, de seguir com o consultório médico da família, plano esse reservado ao primogênito que já não mais existe. Além disso, Ryota é recém-casado com uma viúva que traz um filho de seu antigo casamento, o que em alguns momentos gera alguns constrangimentos em relação à aceitação por parte dos pais de Ryota. E assim, durante o decorrer de um dia em que é retratado no filme, vemos como esse ambiente tão familiar vira um lar de relações mal resolvidas e de perdas. O que pode parecer à primeira vista como situações de alta carga negativa, é trabalhado por Koreeda com extrema beleza sob um ritmo delicado e até mesmo aconchegante. Assim como os pillow shots de Ozu, Hirokazu Koreeda também se utiliza dos planos tatami para retratar as situações corriqueiras de dentro de casa. Como o filme é muito pautado no diálogo, Koreeda tenta enquadrar todos os personagens em seu plano para acompanharmos o fluxo da conversa. Aqui os planos médios de close up são mais para destacar reações do que falas em si. Se em Ozu, os personagens tem o direito de se fazer ouvir, em Koreeda os personagens tem o direito de sentir e de expressar seus sentimentos. Além disso, o uso que Koreeda faz de símbolos é essencial para atribuir ao mono no aware uma importância particular, promovendo uma reflexão pessoal sobre as imagens, em vez de interpretações dramáticas pautadas na experiência. Durante uma cena crucial em que a avó se lembra com tristeza o dia da morte de seu filho através de um monólogo, ela fala sobre como ele deixou seus sapatos recém-engraxados na porta, saiu e nunca mais voltou para casa. Ao escolher não mostrar a morte do filho na tela, e por poeticamente renderizar uma única e solene imagem - um par vazio de sapatos - como um lembrete de sua saída definitiva do mundo, Koreeda capta perfeitamente a essência do mono no aware. A imagem mental dos sapatos do filho substitui o potencial melodrama de representar sua morte, oferecendo ao público algum tempo para contemplar este trágico acontecimento de forma mais singela, ao invés de forçá-los a viver com ele. Estes singelos momentos de meditação, são combinados com outros símbolos significativos no filme também. Em uma cena menor, um grupo de crianças arranca um galho de uma flor de cor rosada (que apresenta alguma semelhança com a flor de cerejeira) de uma árvore e alegremente trazem-na para 761 casa de seus avós. A flor é vista mais tarde em um plano noturno, morrendo em um copo de água, enquanto um riso leve vindo da família é ouvido ao fundo. Essas e outras questões fazem de Aruitemo Aruitemo, um filme extramente simbólico que capta o espírito mais singelo do japonês de forma tão acurada, quanto nos filmes de Ozu. O filme é todo desenvolvido sob um calor de verão que nos remete a uma aconchegante preguiça melancólica. Enquanto que esse tom quente nos é transmitido pelos leques abanando em mãos incessantes nos filmes de Ozu. Aqui ele é evocado pelos ventiladores espalhados pela casa, pelo sabor da melancia gelada e pelos incessantes sons das cigarras, cujos cantos permeiam o filme, muitas vezes sendo a principal atenção de alguns planos, como se o próprio som delas fosse a causa do calor. Still de Aruitemo Aruitemo (2008), momento em que as crianças pegam a flor Outros filmes de destaque na filmografia de Hirokazu Koreeda que explora aspectos similares a Aruitemo Aruitemo são “Ninguém pode saber”, “O que mais desejo” e o mais recente “Pais e Filhos”. Neles, Koreeda recorre a temas já abordados aqui como relações familiares e perdas, mas sob ponto de vista de crianças. A presença do mono no aware aparece principalmente na forma como as crianças apreendem um mundo que lhes é novo. Principalmente em “Ninguém pode saber” e em “O que mais desejo”, é notável uma preocupação maior em retratar detalhes e instantes em detrimento de uma narrativa muito linear de causa e efeito. 762 Ambos são filmes mais contemplativos, assim como Aruitemo Aruitemo, do que em relação ao “Pais e Filhos”, em que o desenrolar da história é mais bem elaborado de acordo com uma narrativa clássica. Ainda assim “Pais e Filhos” não negligencia os detalhes visuais para uma boa fruição da obra, segundo o próprio Koreeda (2014) foi necessário ilustrar cuidadosamente os detalhes das duas famílias retratadas para evitar que os espectadores se interessassem unicamente na história. Enquanto que “Ninguém pode saber” nos conta a trágica história baseada em fatos reais sobre quatro crianças abandonadas pela mãe, “O que mais desejo” nos mostra a história de dois irmãos de pais separados e que agora vivem em cidades diferentes. Em ambos as crianças lidam com seus problemas de forma independente, sejam eles sobreviver com a ausência da mãe ou achar uma solução para ter sua família reunida novamente. Em ambos os filmes, temos crianças que se encontram em famílias dissolvidas por forças das circunstâncias, mas ainda assim se encantam com os pequenos detalhes que as cercam. Still de “Ninguém pode saber” (2004) 763 Still de “O que mais desejo” (2011) Um caso a se citar em “O que mais desejo” é sobre o pequeno Koichi que deseja que o vulcão ativo que se encontra em sua nova cidade entre em erupção, pois assim ele poderá sair de lá e ter seus pais reunidos. Quando ele ouve dizer que quando dois trens-bala se cruzam, uma energia é gerada com força suficiente pra se realizar um milagre, ele combina com amigos e com seu irmão de se encontrar na cidade onde o encontro dos trens é realizado para juntos fazerem seus pedidos. No momento exato do cruzamento dos trens, Koichi desiste de seu pedido ao se lembrar de todos os momentos fugazes mas de grande importância para e ele e àqueles a sua volta na sua nova cidade. Uma erupção vulcânica certamente eliminaria todos esses momentos de se repetirem. Assim, os irmãos voltam para suas casas em suas respectivas cidades, não mais tão preocupados em grandes dramas familiares mas nos pequenos prazeres que a vida há de lhes trazer ao longo dessa jornada, sejam eles o gosto suave do manju feito pelo avô, o som de sinos de bicicletas ou o som das cigarras no verão. Aliás, é em “Pais e Filhos” que é revelado o grande segredo das cigarras. Nessa história, duas famílias descobrem 6 anos depois que seus filhos nasceram que os mesmos foram trocados na maternidade ao nascerem por uma enfermeira ressentida. O maior impasse entre as famílias é se eles continuarão com as crianças que criaram desde o nascimento ou se priorizarão os laços sanguíneos. Nessa história um dos pais é um rígido arquiteto decepcionado com o filho que criou 764 pois o mesmo nunca atinge o estado de perfeição exigido pelo pai. Ao fazer uma pesquisa de campo em uma floresta artificial na qual um projeto irá ser iniciado. O biólogo responsável lhe explica que levaria cerca de 15 anos para as cigarras se adaptarem a um novo ambiente, pois este é o tempo que elas levam para emergirem a superfície, deixando seu estado de larva e iniciando a fase adulta. Este fato que funciona como uma metáfora às crianças em seu novo lar, também funciona como uma metáfora ao mono no aware. Após esses quinze anos em que as cigarras são ninfas subterrâneas em busca de nutrientes, elas finalmente chegam a fase adulta, momento em que emergem à superfície para acasalar e logo após morrerem. O característico som que ouvimos durante o verão é justamente o canto de acasalamento desses insetos que muito provavelmente não vão viver por mais de uma semana. É ao mesmo tempo uma celebração de vida e morte, o que reforça ainda mais o tom de mono no aware. Assim, apenas nos resta apreciar o verão e suas belezas, pois elas são efêmeras e é preciso estar atento para apreciá-las no momento certo. Referências bibliográficas BAZIN, André. 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Disponível em: <http://www.cool-ny.com/en/archives/1927> Acesso em: 26 mar. 2014 Paulo André Gomes Soares Bacharel em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atuou como organizador e curador da mostra de cinema Oriente-se realizada no Instituto de Artes da UERJ em 2004. Atualmente estuda na Escola de Cinema Darcy Ribeiro no curso de Direção Cinematográfica. 765 BOLLYWOOD, IDENTIDADE CULTURAL E REPRESENTAÇÃO Juily J. S. Manghirmalani - UFSCAR1 RESUMO: O texto pretende tratar dos filmes Dilwale Dulhania Le Jayenge (Aditya Chopra, 1995) e My Name is Khan (Karan Johar, 2010), ambos da enorme indústria cinematográfica indiana conhecida popularmente como Bollywood, e que possuem suas diegeses constituídas também fora da Índia, neste caso, Londres e São Francisco. Com o propósito de estudar as relações entre as culturas representadas foram selecionados alguns conceitos, entre eles, o da questão de identidade nacional pós-moderna, com influências da crescente globalização. Dentro desta proposta, há o início do estudo sobre as representações dos papéis femininos nos filmes indicados, que apresentam, em ambos os filmes, comportamentos tradicionais além do início de um movimento, melhor, visto após a influência do processo de globalização. Para melhor compreensão da narrativa indiana, será necessária uma pequena introdução à sua mitologia, explanada na apresentação. Palavras-chave: Bollywood, identidade cultural, hibridismo, globalização, representação. ABSTRACT:The text aims to treat the movies Dilwale Dulhania Le Jayenge (Aditya Chopra, 1995) and My Name is Khan (Karan Johar , 2010), both from the huge Indian film industry popularly known as Bollywood, that have made their diegeses also outside India, in this case, London and San Francisco. In order to study the relationships between the cultures represented, some concepts were selected, among them the question of post-modern national identity, with influences of increasing globalization. Within this proposal, there is the beginning of the study of the representations of women's roles in the chosen films, presenting traditional behaviors as well, the top of a small movement best seen after the influence of globalization. To better understand the Indian narrative, a short introduction to Indians mythology, explained in the presentation will be required Keywords: Bollywood, cultural identity, hybridism, globalization, representation. 1. Cinema, Identidade Nacional e Hibridismo Falar de um cinema nacional é falar também da nação em que ele é produzido e na qual está inserido. Benedict Anderson (2008) criou o conceito de comunidade imaginada para se referir à ideia de nação e, através dele, podemos perceber a importância dos discursos da cultura para a constituição das identidades nacionais durante todo o século XX e, por que não, também o século XXI. Para Anderson (2008, p. 34), a comunidade nacional é imaginada, pois a maior parte de seus membros não poderá conhecer, nem ouvirá falar de todos os seus companheiros, embora exista em seu imaginário a ideia de comunhão entre eles; é soberana também, pois o conceito nasceu na época em que o Iluminismo e 766 a Revolução Industrial “estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem divina”; e por último, pensa-se em “comunidade porque, a nação é concebida como uma profunda camaradagem horizontal.” Para a nação ser constituída, é preciso que haja um vínculo que una todas as pessoas que pertençam a ela, no caso seria a história dessa cultura. Stuart Hall (2010, p. 52) selecionou cinco elementos principais para explicar como a narrativa de uma nação é contada: Há a narrativa da nação, da forma em que essa é narrada na literatura, mídia e cultura popular; “Há a ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade” onde, “os elementos essenciais do caráter nacional permanecem imutáveis”; além do conjunto de práticas inventadas, de natureza ritual ou simbólica, cultiva automaticamente, através da repetição, a continuidade com um passado histórico adequado, ou seja, inteligível; há também mito fundacional, em que a origem histórica da nação se encontra em um passado remotamente distante que torna-se mítico. Assim sendo, as tradições inventadas tornam as confusões e desastres da História compreensíveis, transformando a desordem em uma “comunidade”; A ideia de um povo original e puro, servindo de base para a identidade nacional, mas que, na realidade do desenvolvimento da nação, dificilmente este povo poderia exercer o poder. Hall (2011, p. 49) argumenta que a identidade nacional não nasce com o indivíduo, esta é “formada e transformada no interior da representação”. Não sendo uma entidade política apenas, mas um produtor de sentidos, “um sistema de representação cultural”. Ella Shohat e Robert Stam (2006), reafirmam que nação é um conceito fictício, produto moderno e imposto a um grupo de indivíduos através de histórias nacionais, que exibem continuidade de temas em grande escala. Eles utilizam o cinema como exemplo. Por ser enorme contador de histórias da humanidade, este modo de expressão não pôde ser deixado de fora, uma vez que tornou-se, com seus poucos mais de cem anos de existência, um grande construtor de representação cultural. Para Shohat e Stam (2006, p. 144), “a autoconfiança nacional, [...] a crença generalizada de que indivíduos distintos compartilham origens comuns, condições, localizações e aspirações”, associou-se amplamente às ficções cinematográficas. Já para Graeme Turner (1997, p. 128), porém, “o cinema não reflete nem registra a realidade. O cinema constrói, através dos códigos que 767 emprega, quadros de realidade capazes de representar “convenções, mitos e ideologias de sua cultura, bem como mediante práticas significadoras específicas desse meio de comunicação”. Hall (2011) afirma ainda que todas as nações são constituídas por pessoas pertencentes a diferentes classes sociais, grupos étnicos e gêneros e, por último, algumas das nações ocidentais modernas foram centros imperiais ou de influência neoimperiais, que vêm exercendo hegemonia cultural sobre boa parte das outras nações. Deve-se então, pensar culturas nacionais como constituídas por um “dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade” (HALL, 2011, p. 60). Apesar de serem atravessadas por diversas divisões internas, as culturas nacionais são unificadas e diferenciadas pelo regime de poder e de influência cultural. Uma forma de unificá-las é usar a expressão “de um único povo” ao serem representadas. A tentação de usar a etnia2 dessa forma “fundacional” acaba no mundo moderno, por ser um mito. “A Europa Ocidental não tem qualquer nação que seja composta por apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais.” (HALL, 2011, p. 63). A identidade não é mais vista como unificada e “bem resolvida” na pósmodernidade. Para explicar esta crise de identidade, Hall (2011) conceitualiza o sujeito pós-moderno como: fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. O próprio conceito de identificação, através do qual se projetam as identidades culturais, tornou-se provisório, variável e problemático. O sujeito é definido historicamente e não biologicamente, tornando-se assim, uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas que são representadas ou interpeladas nos sistemas culturais que o rodeiam. Outra consequência da intensificação do capitalismo, e que ajudou a movimentar todos esses questionamentos de nação e identidade, foi o grande crescimento da globalização. E as possíveis consequências da globalização sobre as identidades culturais, segundo Stuart Hall (2011, p. 69), são: a desintegração das identidades nacionais, resultantes do crescimento da homogeneização cultural; em contrapartida, há também identidades nacionais que estão sendo reforçadas em 768 resistência à globalização; e ainda, estão se formando novas identidades, hídridas, em função das identidades nacionais estarem em declínio. Após a Segunda Guerra Mundial e as conquistas de independência por alguns países colonizados, houve um impressionante movimento de migração entre os países. A interdependência global tornou-se inevitável. Com as fronteiras dissolvidas e continuidades rompidas, as certezas e hierarquias da identidade cultural britânica, por exemplo, foram postas em questão. “Os confrontos da Tradição são fundamentalmente desafiados pelo imperativo de se forjar uma nova autointerpretação, baseada nas responsabilidades da tradução cultural.” (ROBINS, 1991, apud HALL, 2011, p. 41). Tradução é o termo que Robins (1991) utiliza para descrever as formações de identidades de pessoas pertencentes aos movimentos de diáspora. Essas pessoas são “obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades.” (HALL, 2011, p. 77) Estes indivíduos possuem um conjunto de histórias e culturas interconectadas, possuem culturas hibridas, que são então, traduzidas – palavra vinda do latim, que significa “transferir”. “Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais.” (HALL, 2011, p. 78) Nas últimas décadas, muitos filmes têm utilizado dos híbridos pós-coloniais como tema, em que o “sujeito híbrido diaspórico se confronta com o desafio ‘teatral’ de se mover entre modos diversos de atuação em mundos culturais e ideológicos distintos.” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 81) Os filmes escolhidos Dilwale Dulhania Le Jayenge, de 1995 e My Name is Khan, de 2010, possuem protagonistas que compartilham do conceito de sujeitos híbridos. O termo “hibridismo” não tem um significado fixo e absolutamente claro; pode referir-se à imposição colonial, assimilação forçada, cooptação política, mímica cultural e assim por diante. No caso do cinema, Shohat e Stam (2006) articulam que o “Cinema do Terceiro Mundo” é definido por vários teóricos genericamente como o conjunto de filmes produzidos nesses países; outros teóricos pensam esse cinema como um projeto ideológico, ou seja, um corpo de filmes que adere a certo programa político e estético, quer eles tenham sido produzidos no Terceiro Mundo ou não. 769 Para o cinema, o eurocentrismo da cultura popular cinematográfica se dá através da indústria hollywoodiana. Shohat e Stam (2006) citam um parágrafo de um livro famoso sobre cinema clássico (sem, no entanto, nomear o título), no qual se informa que Hollywood é única na história cinematográfica e que todas as outras indústrias apenas a imitam, “quando na verdade a produção cinematográfica de base capitalista surgiu mais ou menos simultaneamente em diversos países, incluindo aqueles que agora pertencem ao Terceiro Mundo.” (SHOHAT e STAM, 2006, p. 62) E o cinema do Terceiro Mundo, longe de ser um fenômeno marginal, é, atualmente, responsável pela maior produção cinematográfico do mundo. Mesmo com todas as mudanças de hibridismo cultural, a distribuição global de poder ainda tende a fazer dos países de Primeiro Mundo transmissores culturais, enquanto os outros são majoritariamente “receptores”. Shohat e Stam (2006) expõem que tanto nos países de Primeiro como nos de Terceiro Mundo, os espectadores se relacionam ativamente com os discursos da cultura. Comunidades específicas incorporam e transformam influências estrangeiras. Agora, mesmo com as hegemonias estando mais dispersas, as redes globais de informação ainda funcionam de acordo com estruturas hierárquicas de poder. 2. O Cinema Indiano A grande influência das artes tradicionais, como a música, a dança e o teatro popular, no movimento cinematográfico dos primeiros tempos, é, provavelmente, a responsável pela inserção de música e dança nos filmes, que perdura até hoje. Estes elementos fazem de muitos filmes indianos também os mais longos já feitos em toda história do cinema mundial. Dadasabeb Phalke, considerado o “Meliès do cinema indiano”, acreditava fortemente na filosofia nacionalista de swadeshi 3 , que dizia que os indianos deveriam tomar conta de sua própria economia na perspectiva de uma futura independência. Após assistir uma adaptação da história da vida de Cristo no cinema, exibida em Bombaim em 1910, Phalke bastante impressionado, decidiu usar a nova arte de imagens em movimento para contar histórias, com as quais ele e a maioria dos indianos estavam familiarizados, pretendendo, assim, educar e 770 difundir conhecimento para a sociedade indiana. Produziu o primeiro filme popular indiano, chamado Raja Harishchandra (1913), que conta a história mítica do rei Ayodhya, nascido do sol. A profunda “indianização” desse cinema, desde seu nascimento, marcou sua identidade, mesmo antes da chegada do cinema falado de Hollywood, na década de 1930. Em 1920, o pioneirismo no cinema indiano já tinha acabado e muitas pessoas já trabalhavam no ramo. Todos os tipos de gêneros vindos de Hollywood eram usados: filmes históricos, comédia, ação e filmes com temas sociais. O sistema de estúdios dominou o cenário indiano até as décadas de 1940 e 1950. Desde o início, a influência americana nos filmes indianos era evidente. Entusiasmados pelo espírito swadeshi, associações como Bombay Cinema and Theatres e Indian Motion Picture Producers Association protestavam a favor de que filmes indianos tivessem 50% das telas dos cinemas na Índia, com a ideia implícita de sabotar Hollywood e as produções dos colonizadores, que na época era responsável por 90% dos filmes. A preocupação maior era “proteger a sociedade indiana e seus costumes da ameaça ocidental” (THORAVAL, 2000, p.18). As bases do cinema popular indiano como entretenimento e como indústria foram formadas na década de 1940, durante um período de grande mudança social e trauma nacional.. A fórmula de sucesso nas bilheterias foi criada e consistia de: canções, dança, espetáculo, retórica e fantasia. A junção e significante relação entre o consciente indiano sobre o entretenimento épico (músicas, teatros, entre outros) e a arte cinematográfica foram estabelecidas. Mais ainda, filmes estavam sendo cada vez mais reconhecidos como um instrumento vital de crítica social. Após a Segunda Guerra Mundial, a Índia obteve sua independência em 1947 e estava se movendo rapidamente em direção ao capitalismo e à modernização. Estava também enfrentando questões nacionalistas e divisões étnicas e religiosas. Segundo historiadores, a década de 1950 foi marcada por ser a “Idade de Ouro” do cinema popular indiano. O cinema é considerado uma arte urbana em todo o mundo e durante este período, o movimento de urbanização da “consciência” indiana estava acontecendo como nunca antes. Na metade da década de 1950, o 771 distinto cinema de arte indiano tomou forma com o bengalês Satyajit Ray. Pather Panchali (1955) ganhou fama internacional e reconhecimento de crítica. Pather Panchali, Aparajito (1956) e Apur Sansar (1959) ficaram conhecidos como a Trilogia de Apu, uma das obras primas do cinema mundial. Outro fator deve ser considerado para falar da indústria cinematográfica indiana é o de que não existe apenas uma e sim, cinco indústrias com características diferentes na Índia. Como no Brasil, dentro da Índia há grandes diferenças culturais separadas entre norte, sul, nordeste e sudeste, e mais ainda, entre grandes cidades. Com o crescimento avassalador da cinematografia indiana, cada região seguiu seu próprio padrão dentro desta arte, são os chamados de Cinemas Regionais. Existem sete tipos diferentes de cinema reconhecidos atualmente – o cinema bengali de Calcutá; o cinema híndi de Mumbai; o cinema canará de Karnataka; o cinema malaiala de Kerala; o cinema marata que nasceu em Nasik, desenvolveu-se em Kolhapur e Pune, mas agora tem Mumbai como sede; o cinema tâmil de Tâmil Nadu e o cinema telugu de Andhra Pradesh. E produzindo-os, existem cinco indústrias cinematográficas diferentes, cada uma com a sua uma maneira de contar histórias. O cinema híndi é, em termos de público, a mais conhecida indústria cinematográfica indiana. Essa indústria abrange o maior número de espectadores dentro do país, como também possui grande reconhecimento internacional. Para entender como o cinema indiano popular, ou cinema híndi, tomou forma e distinção, K. Moti Gokulsing e Wimal Dissanayake (2004, p.17) afirmam que é preciso analisar algumas forças que tiveram profundo impacto no crescimento do cinema nacional: os épicos – Ramayana e Mahabharata, e Hollywood. Os épicos - Ramayana e Mahabharata: Esses dois épicos indianos podem ser vistos em diferentes formatos nas artes clássicas – poesia, drama, arte e escultura – alimentando a imaginação de vários tipos de artistas e educando a consciência da nação. A influência no cinema pode ser analisada em quatro níveis: temas, narrativa, ideologia e comunicação. Em vez de narrativas realistas, lineares e diretas, bastante comuns em filmes hollywoodianos, o cinema popular indiano oferece uma estrutura narrativa que pode ser melhor compreendida a partir das características narrativas desses dois épicos. 772 O Mahabharata (Os Grandes Bharatas) gira em torno das lutas entre duas famílias principescas, os Pândavas e seus primos, os Kauravas, para possuírem um reino localizado perto da atual cidade de Déli. Além da narrativa épica, o Mahabharata desenvolve conceitos básicos do hinduísmo, os quatro objetivos de vida: dharma (ação correta), artha (propósito), kama (prazer) e moksha (liberação). O Ramayana (Viagem de Rama) celebra a vida e proeza do Príncipe Rama que é exilado por seu pai aos 14 anos sob o comando de sua madrasta Kaikeji. Rama parte com sua esposa Sita e seu irmão Lakshman. Na floresta, Sita é raptada pelo rei-demônio, Ravanade Lanka. Rama, com ajuda do exército de macacos liderados por Hanuman, recupera Sita. Mesmo sabendo que ela manteve-se pura durante o cativeiro, Rama é obrigado a afastar-se dela. Leal ao marido, Sita aceita sua condição, mas abre uma fenda no chão e é tragada pela terra. Triste com a perda da esposa, Rama se oferece ao deus da morte. Esse épico transmite os valores que regem o relacionamento entre humanos pelo hinduísmo: o caráter de pai, filho, irmão, esposa, monarca e servos ideais. O cinema popular indiano está comprometido com a manutenção do status quo. A repetição do melodrama, música e espetáculo cria a segurança do cinema, que não desafia fundamentalmente o status quo. “A ideologia central subjacente nos dois épicos é a preservação da ordem social existente e seus valores privilegiados.” (GOKULSING e DISSANAYAKE, 2004, p.18) b) Hollywood: Musicais hollywoodianos fascinaram muitos cineastas indianos, que relacionavam de forma interessante os traços do cinema clássico norteamericano com as performances indianas. No entanto, o cinema popular indiano adotou uma estratégia diferente da hollywoodiana: o enredo não era usado para ligar a narrativa ao espetáculo de música e dança. Ao contrário, músicas e danças eram – e ainda são – usadas como expressões naturais de emoções e situações emergentes no dia a dia, intensificando o elemento fantasia através do espetáculo, criando a impressão de que eram naturais e lógicas. A música constitui-se como ingrediente vital na construção das emoções culturais. Hollywood sempre buscou uma maior aproximação com a realidade, consequentemente, muitos ângulos de câmera estavam na altura dos olhos; a iluminação era discreta; cortes eram feitos em juntas lógicas no fluxo narrativo. Por outro lado, o cinema indiano cresceu 773 através de diferentes raízes, e não sentiu a necessidade de utilizar o “estilo invisível de narrar” típico do cinema hollywoodiano – os personagens são estereotipados, o mundo é fantasioso, a atuação é exagerada, todos os aspectos da experiência fílmica são melodramáticos, por exemplo, o uso da câmera é superficial (chamando atenção para este aparato técnico), a edição é obstrutiva, o centro do filme é a trilha sonora, as canções são feitas em playback e as sequências de dança são muito usadas para intensificar emoções e o espetáculo. Além dos gêneros fornecidos por Hollywood, existem outros gêneros associados ao cinema da Índia. K. Moti Gokulsing e Wimal Dissanayake (2004, p. 23) elegeram os mais significativos, que são: filmes mitológicos; filmes devocionais; filmes românticos; filmes de ação; filmes históricos; filmes sociais e melodramas familiares. Esses gêneros não são especificamente indianos. No entanto, pode-se dizer que há algo específico na forma como os cineastas indianos lidam com eles e os investem de uma caracterização cultural indiana. Os filmes populares tem um papel importante na construção da consciência popular nacional. Eles têm sido as formas dominantes responsáveis pela criação do que o público entende por heroísmo, dever, coragem, modernidade, consumismo e glamour. Independente do gênero, os filmes populares indianos têm, constantemente, engajamento cultural com a modernidade. Filmes populares indianos são basicamente peças morais, onde o bem triunfa sobre o mal, os bons valores são sempre restaurados pelos poderes em questão, normalmente pelos deuses. Estes filmes são geralmente musicais melodramáticos, que não possuem o senso ocidentalizado de neonaturalismo. As histórias não progridem linearmente mas por meandros, com desvios e histórias dentro de histórias. A narrativa circular é comum no teatro clássico e popular. Músicas preenchem um número importante de funções dentro da experiência fílmica, tais como as emoções gerais, as mensagens morais nas entrelinhas, o convencional erotismo e sexualidade que são proibidas na tela, ou seja, climas que são criados para resignificar diversas intenções em várias partes do filme. 774 3. Análise fílmica Figura 1: Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra Baldev Singh é um indiano da região de Punjab, nordeste da Índia. Imigrou para Londres, onde vive há vinte anos, porém desde a primeira cena do filme, deixa claro seu tormento pelo desejo de retornar à Índia. Patriarca tradicional, impõe à esposa e a suas duas filhas comportamentos da cultura indiana dentro de sua casa. Filhas essas que obedecem as tradições mais por dever do que por convicção. Simran, a filha mais velha, sonha em se apaixonar. Porém, está comprometida em um casamento arranjado com o filho do amigo de seu pai, que mora em Punjab. Antes de ir à Índia se casar, Simran e suas amigas fazem uma viagem pela Europa, onde conhece Raj. Ao voltarem para casa e se despedirem, percebem que estão apaixonados. Ao contar este fato para Lajjo, sua mãe, não percebe que Baldev ouve tudo e fica furioso, marcando a viagem de mudança para a Índia para a manhã seguinte. Raj viaja atrás de sua amada, passa-se por amigo do noivo de Simran para entrar na casa onde estão todos hospedados para o casamento. Lá, conquista a confiança de todos membros importantes da família de Simran. Até, que Baldev 775 encontra uma foto de sua filha com Raj em Londres, compreende tudo e expulsa-o de sua casa. Porém, ao chegar na ferroviária, em uma cena memorável do cinema indiano, Baldev deixa Simran ir com Raj. My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar Rizvan Khan é mulçumano e possui a Síndrome de Asperger4. Muda-se da Índia para casa de seu irmão nos Estados Unidos após a morte de sua mãe. Ao trabalhar na empresa do irmão, Rizvan sofre uma crise por causa dos problemas que o autismo lhe causou, com isso conhece Mandira, que o ajuda. Indiana e mãe de Sam, menino de 6 anos, Mandira e Rizvan se apaixonam e casam-se. Com a queda das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, as ameaças terroristas e o preconceito contra mulçumanos, o filho de Mandira fica exposto a diversos preconceitos que resultam em sua morte. Mandira culpa o sobrenome de Rizvan – por ser ligado a religião mulçumana – e o manda, em momento de raiva, falar para o presidente dos Estados Unidos que ele não é terrorista, que esses preconceitos não faziam de todos seguidores do Alcorão, terroristas. Rizvan, leva a “ordem” a sério e empreende esta jornada até o presidente dos E.U.A., a fim de reconstituir sua família. Com muitos problemas no caminho, Rizvan é preso e passa por torturas na prisão dos Estados Unidos. Mas um grupo de estudantes indianos consegue gravar seu real protesto e faz com que Rizvan fique famoso com sua frase “Meu nome é Khan e eu não sou um terrorista”. 3.1 Análise da relação dos personagens e a questão de gênero Em Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995), os personagens são um dos tópicos mais relevantes, pois cada um representa um estereótipo marcado pelo cinema indiano e com questões a serem discutidas. Os personagens escolhidos para serem analisados aqui foram: Baldev, Lajjo e os jovens, Simram e Raj. Começando por Baldev, pai de Simran e primeiro personagem a aparecer no filme. É integrante das primeiras gerações da diáspora indiana pós-independência na Inglaterra e apresenta questionamentos sobre sua identidade indiana e o 776 sentimento de “pertencimento”, ou seja, ele se questiona nas primeiras falas do filme, sobre o sentimento de terra-mãe e nação. Baldev encontra-se jogando migalhas para os pombos em uma das praças mais famosas de Londres e pensa: “Por 22 anos, eu vivi aqui. (...) Toda manhã, essa rua pergunta meu nome “Chaudhary Baldev Singh? Quem é você? De onde veio? Por quê está aqui?”. Após mais algumas reflexões sobre sua similaridade com os pombos e a falta que sente de “sua terra mãe”, conclui com: “Mas um dia eu certamente voltarei para minha terra. Para minha Punjab”. Baldev é um personagem que possui grande ligação com a cultura e tradições indianas. Chegando a ter um posicionamento radical ao impor costumes à sua família, fazendo com que sua esposa e filhas tenham medo de expor seus gostos pela cultura ocidental. Um exemplo disso pode ser visto na cena em que ao ouvir o pai entrar em casa, as meninas trocam rapidamente o rock que estavam ouvindo por uma música clássica indiana. Patriarca da família, Baldev impõe à sua primeira filha um casamento arranjado desde o seu nascimento. E mesmo ao descobrir que ela está apaixonado por outra pessoa, prefere manter as tradições, e a palavra dada sobre o casamento, do que pensar na possível felicidade de sua filha, vinda da paixão. Este é um tema abordado por muitos filmes indianos. A segunda personagem que aparece no filme, é Lajjo, mãe de Simran. Ela representa claramente o estereótipo da “mãe indiana” dos filmes bollywoodianos, é “carinhosa, firme na devoção familiar, alimenta e mantêm valores” ligados à tradição e à cultura indiana. (GOKULSING e DISSANAYAKE, 1998, p. 26). No entanto, Lajjo também apresenta questões ligadas à discussão de gênero e à discussão do posicionamento da mulher dentro da cultura indiana. Mesmo “alimentando e mantendo valores” da tradição, Lajjo incentiva a filha a buscar por sua felicidade com Raj, pedindo para que fujam juntos. E depois ainda, é ela quem chama Simran para ir a ferroviária no final do filme. Só foi possível compreender essas decisões de Lajjo, mesmo ela sendo o “exemplo de mulher indiana”, depois de duas outras cenas em que ela conversa com Simran sobre o papel de filha, esposa e mãe dentro da cultura, no qual demonstra grande frustração por ter se sacrificado a vida inteira por homens. 777 A primeira cena, se passa ainda em Londres quando a família de Lajjo recebe a carta sobre o casamento de Simran e Kuljit. Simran rasga seu diário no qual escreve sobre seus sonhos de se apaixonar e fala: “Eu tinha esquecido, mãe. Eu não tenho nem direito de sonhar.” E Lajjo responde: “Não, minha filha, claro que você pode sonhar. Mas não espere que os sonhos se tornem realidade.” Na segunda cena, assim que chegam em Punjab, Simran está sozinha na janela e sua mãe conta que, quando pequena, seu pai (avô de Simran) lhe ensinou que homens e mulheres eram iguais e que ela sempre acreditou nisso, porém, ao crescer, foi notando que a realidade não era bem assim. Quando pequena, sacrificou seus estudos para que seus irmãos homens pudessem ser educados, depois, como esposa e como mãe, outros sacrifícios foram sendo feitos para felicidade de outros homens, mas que ao ter Simran, prometeu que sua filha jamais passaria por nada disso por ter nascido mulher. Mas ao ver Simram sofrer por Raj, ela entendeu que “a mulher não tem nem direito de fazer promessas” e que “por suas mulheres, homens jamais fariam nem farão sacrifícios”. Figura 2: Dilwale Dulhania Le Jayenge (1995) – dirigido por Aditya Chopra 3.1.1 A mulher no cinema indiano Há poucos conceitos femininos representados no cinema indiano, o mais famoso e utilizado, é o conceito de mulher vindo de Sita que prevalece na sociedade indiana e em seus filmes. Imortalizada no conto Ramayana, Sita é a “mulher e esposa ideal”; é leal e obedece os desejos de seu marido sem questionálo. Segundo o conto, a mulher deve obedecer seu marido como se fosse um deus: 778 ele é seu amigo e seu mestre (professor). O cinema popular indiano perpetuou esta imagem dentro de seus filmes. Na sociedade tradicional, o papel da mulher é essencialmente: 5 como filha (Beti), esposa (Patni) e mãe (Ma). De acordo com o Manusmriti , a mulher deveria estar sujeita ao pai na infância, ao marido na juventude, e quando seu marido morresse, aos seus filhos. As mulheres não receberam nenhum tipo de independência. (GOKULSING e DISSANAYAKE, 1998, p. 75) Porém, o amor romântico não era proibido à mulher, pois esse poderia ser visto em outra representação, a de Radha-Krishna, conto que enfatiza o momentâneo e o desejo de aproveitar cada segundo que se passa com o outro. Caso da luta da aceitação do amor de Simram e Raj, que é representado sendo mais carinhoso, alegre e menos devocional. Filha mais velha de Baldev e Lajjo, Simran é uma jovem de cerca de 18 anos que apesar de ter crescido em Londres, foi criada primordialmente dentro de casa. Pode-se notar suas convicções e conservadorismo em diversos exemploscomo: não compartilha com suas amigas o mesmo tipo de interesse libertino por homens e festas; não se sente confortável em dormir no mesmo quarto que um homem; possui medo da perda da virgindade ligada à honra na cultura; além de sua postura em relação às tradições do casamento. Em uma cena do filme, pode se notar claramente o pensamento machista de Baldev, que se esconde com um elogio à Simran. O pai fala: “Dizem que uma filha crescida é um fardo para o homem, mas uma filha como você faz meu peito encher de orgulho”, em outras palavras, quando as filhas começam a se impor, ou quando os pais precisam arranjar o casamento, elas se tornam problemas para eles. Na resposta de Simran para Baldev, nesta cena, há a visão pessimista sobre as consequências do casamento arranjado. Simran fala que casará com alguém que nunca viu, não terá mais oportunidade de tomar suas próprias decisões e até provavelmente não verá mais suas amigas de Londres. E usa esse argumento para conseguir o que quer, permissão para viajar pela Europa. Provando que, na verdade, nunca pode tomar grandes decisões sozinha, mesmo solteira. 779 Simran é uma jovem sonhadora, que trocaria toda a sua criação tradicional, pelo primeiro rapaz por quem se apaixonou, sabendo que isso afetaria sua relação com seu pai. Por não se sentir independente o suficiente para tomar atitudes e satisfazer suas vontades, Simran compartilha com sua mãe o sentimento de frustração por ser mulher dentro da cultura indiana. Ela não aceita sua realidade com facilidade debatendo-se entre sua vivência londrina (ocidentalizada) e a cultura tradicional imposta dentro de casa. A paixão por Raj pode ter ligação com o sentimento de aprisionamento que a consome (relembrado na carta com a notícia de seu casamento arranjado), podendo também, ter expectativas de um outro futuro, ainda que dependente de outra pessoa do gênero masculino. As duas personalidades que Raj mostra no filme, representam exatamente o que a discussão sobre a negociação de culturas, já comentada. Por ter crescido em Londres e ter sido educado socialmente conforme a cultura ocidental (vista aos olhos do cinema indiano), Raj possui a persona que é vista no começo do filme, malandro e aproveitador, por ter esta dupla vivência de culturas, questiona alguns comportamentos tradicionais indianos. Ao saber que Simran está noiva de um rapaz que ela não conhece, ele pergunta, incrédulo e emocionado, como ela passará o resto da vida (divórcio é mal visto pela cultura tradicional, eles acreditam que só há um casamento por vida) com alguém que ela nem conhece. Simran responde que é assim que acontece com elas (mulheres indianas) e ele pergunta se ela é feliz com essa decisão. Raj também utiliza de seu conhecimento dessa cultura para conseguir o que quer. No começo do filme, ele fala que “um indiano deve ajudar outro indiano”, enganando Baldev para conseguir cervejas. E depois, para convencer Simram de que não tiveram relações sexuais, fala: “Eu não sou uma escória, Simran. Sou um indiano e sei o que a honra significa para uma mulher indiana. Nem nos meus sonhos eu poderia imaginar fazer isso com você”. Em My Name is Khan (2010), os personagens analisados serão a de Mandira e Rizvan. Mandira aparece no filme com aproximadamente 26 anos, mas Rizvan fala de seu passado: ela teve um casamento arranjado aos 19 anos e foi morar com o marido em São Francisco. Engravidou e teve Sam, porém seu marido a abandonou por outra mulher e se mudou para Austrália. Mandira divorciou-se (grande mudança 780 de caráter tradicional e social da cultura tradicional) e por isso não conseguiu mais acolhimento da família (provavelmente por ser tradicional, vivente na Índia), que a renegou, Mandira construiu uma vida independente nos Estados Unidos. O filme mostra a consequência possível do divórcio, que é renegado em que muitos filmes indianos mais tradicionais, como o Dilwale. Rizvan, personagem condutor do filme, nasceu e cresceu na Índia, ao lado de sua mãe. Por ter Síndrome de Asperg, tem dificuldades com mudanças e com socialização, não tem referencias afetivas com o país nem com a sociedade de onde veio (nação). Possui a educação e crenças mulçumanas mas não acredita na violência extremista (realmente existe) entre hindus e mulçumanos, que aparece algumas vezes no filme. Deve-se isso a ter aprendido com sua mãe que a única diferença entre as pessoas é se são boas ou ruins. É possível ver exemplos da rivalidade mulçumana/hindu quando, primeiro, com os ativistas que Rizvan, ainda criança, ouve pela janela: “deve-se matar os hindus, sem dó” e depois, quando Rizvan, já adulto, vai se hospedar em um motel de estrada e o dono indiano, após sofrer ataque conseqüente de 11 de setembro de 2001, grita discurso de ódio contra mulçumanos. Ou até quando Zakir, irmão de Rizvan, vai contra o casamento dele com Mandira (que é hindu), pois considera isso uma blasfêmia. Figura 3: My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar 781 3.2 Análise das representações dos países apresentados nos filmes Em Dilwale Dulhania Le Jayenge, a Europa é vista somente na primeira hora e meia de filme. Apesar de morarem em Londres e viajarem pelo continente europeu, os personagens não mantém um diálogo se quer com algum outro personagem relevante não-indiano. Na abertura do filme, Baldev anda por pontos turísticos de Londres – este filme tem como característica tornar suas locações tão atraentes para turistas, que é provável que os personagens não tenham aproveitado as belas paisagens das cidades tanto quanto os espectadores. Pode-se pensar em uma questão de marketing turístico da produção, como também, no caso da Eurorail (empresa pela qual Simram e Raj viajam) que realmente existe e para a qual o filme faz campanha publicitária. Pode-se notar influências da cultura ocidental em outros momentos do filme, como, por exemplo, quando a filha mais nova toma seu café da manhã, logo no início do filme. Ela come cereais com leite e bebe suco. Elementos da cultura indiana procuram ser mantidos dentro da casa de Lajjo e Baldev, em Londres, mas as personagens das filhas deixam mais clara os híbridos das culturas com as quais lidam, como as práticas alimentícias, por exemplo, ou no quarto onde dormem, que possui pelo menos três bichinhos de pelúcia do Pato Donald, pequena indicação de globalização, já que é figura marcada da Walt Disney, empresa norte-americana. Dilwale Dulhania Le Jayenge, foi produzindo em uma época de grande domínio de canais televisivos na Índia, de modo que, Thodaval (2000, p.137) comenta sobre a globalização, que o produtor e expert em cinema indiano Joel Farges teme que o Pato Donald se torne o próximo Ganesh. A Índia aparece, primeiramente, na língua que Baldev usa para expressar seus pensamentos. No cinema indiano, muitas vezes, a língua falada não tem ligação com a realidade cultural de quem, na diegese, está recebendo a mensagem (como se todos os personagens, entendessem o que está sendo dito, independente da língua que falam). A mistura de hindi com inglês é frequentemente feita e existe até um nome popular para isto, o hinglish. O filme tem como objetivo primordial ser entendido por indianos, por isso, muitas vezes, personagens interagem falando em hindi e inglês entre si e personagens não-indianos entendem. Mas há também 782 filmes que não seguem esse procedimento, como My Name, quando Rizvan traduz, para o inglês, falas ditas para Mandira em hindi, no encontro com o presidente dos Estados Unidos. Também há elementos da cultura indiana nos devaneios de Baldev, com saudades de “sua Punjab”; as roupas que ele usa são indianas, mesmo em Londres; sua loja de conveniência, que tem valor simbólico, os costumes impostos, os móveis da casa; as roupas de Lajjo e as caracterizações das personagens de Lajjo e Simran como representantes da “mulher indiana” que também correspondem a híbridos da cultura indiana ligadas à cultura britânica. A Índia realmente aparece apenas quando Simran e sua família já estão em Punjab. É uma Punjab ainda não tão ocidentalizada, onde todos vestem roupas indianas, as estruturas de casas e móveis são características, comidas e até o inglês é menos falado. A cena final, em um trem antigo em movimento, resgata características muito fortes de um cinema indiano mais clássico, fazendo um contraponto entre forma e conteúdo. O trem é um símbolo muito utilizado em diversos cinemas como progresso, industrialização e modernidade. A Índia de My Name is Khan, não é representada por um sentimento de nostalgia e sim por outra grande realidade indiana, a pobreza. Ela aparece somente nas lembranças de Rizvan. As cenas fora da casa de Razina, mãe de Rizvan, mostram locações reais onde é possível ver lixo pela rua, casas sem acabamento, falta de asfalto e quase nenhuma influência da cultura ocidental, como por exemplo, os mercados possuem escrituras em devanagari6. Já os Estados Unidos são mostrados como uma realidade totalmente oposta. Beleza estética e arquitetônica, pessoas bem vestidas, misturas culturais e grande tecnologia. Rizvan, que já tem dificuldades com mudanças, foi parar em um país completamente diferente do que estava acostumado – talvez essa tenha sido a sensação de Baldev, quando se mudou para Londres, deparando-se com um mundo ao qual nunca se adaptou – mas, diferentemente de Baldev, Rizvan adaptou-se com as mudanças vindas do convívio com essa nova sociedade. Faz até brincadeiras com as diferenças de cultura, como quando imita fotos de modelos 783 que representam a ideia de beleza ocidental – magras, muito brancas, quase sem vida – mas, por se adaptar, age conforme as ideias culturais de “sua nova casa”. A análise textual de um filme, vai além das possíveis significações retiradas dos personagens, das relações entre eles e com a sociedade em que vivem, e seus discursos. Como as imagens são compostas (pela fotografia, cenografia, figurino, montagem, som e outras técnicas fílmicas) podem, também, fazer significações de discursos de uma forma conotativa. Turner (1997, p. 53) afirma que 7 As imagens, assim como as palavras, carregam conotações . A imagem filmada de um homem terá uma dimensão denotativa [...]. Mas as imagens têm uma carga cultural; o ângulo usado pela câmera, a posição dela no quadro, o uso da iluminação para realçar certos aspectos, qualquer efeito obtido pela cor, tonalidade ou processamento teria o potencial do significado social. Quando lidamos com imagens, torna-se especialmente evidente que não estamos lidando apenas com o objeto ou o conceito que representam, mas também o modo em que estão sendo representados. Figura 4: My Name is Khan (2010) – dirigido por Karan Johar E através da análise fílmica, com a contribuição do breve levantamento histórico da cinematografia indiana, pode-se compreender também, as relações das identidades diaspóricas e híbridas que o cinema popular indiano está levantando nesses dois importantes filmes de sua cultura cinematográfica. Notas 1 Orientada atualmente pela professora e doutora Flávia Cesarino Costa. A etnia é o termo utilizado para se referir às características culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimentos de “lugar” – que são partilhadas por um povo. (HALL, 2011) 3 Swadeshi significa autosuficiência. O movimento swadeshi foi uma estratégia econômica destinada a remover o Império Britânico do poder e das decisões econômicas da Índia. Estratégias do movimento swadeshi envolviam boicotar produtos britânicos e revitalização dos produtos nacionais e seus processos de produção. 2 784 4 “A chamada Síndrome de Asperger é uma síndrome do espectro autista, diferenciando-se do autismo classico por não comportar nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou da linguagem do indivíduo.” 5 Trabalho textual mais importante e mais antigo do hinduísmo. Apresenta-se como o discurso proferido por Manu, progenitor da humanidade, a um grupo de videntes, ou rishis, que fala sobre o “direito de todas as classes sociais”. Caligrafia mais utilizada para escrever híndi, marathi ou nepali. 7 O conotativo é interpretativo e depende da experiência cultural do usuário. “É na conotação que encontramos a dimensão social da linguagem.” (TURNER, 1997, p. 53) Referências Bibliográficas ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. GONÇALVES, Mauricio R. Cinema e Identidade Nacional no Brasil 1898-1969. São Paulo: LCTE Editora, 2011. GOKULSING, K. Moti e DISSANAYAKE, Wimal. Indian Popular Cinema – A Narrative Of Cultural Change. Inglaterra: Trentham Books Limited, 1998. GOMES, Paulo Emílio Sales. Pequeno Cinema Antigo. São Paulo: Paz e Terra, 1996. HALL, Stuart. Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2008. ___________ A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Critica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006. THORAVAL, Yves. The Cinemas of India. Nova Delhi: Macmillan India Ltd., 2000 TURNER, Graeme. Cinema como Prática Social. São Paulo: Summus, 1997. Juily J. S. Manghirmalani Formada em Audiovisual pelo Centro Universitario SENAC, em 2012. Completou o curso com trabalho sobre o cinema da Índia e sua diaspora e agora segue como mestranda pela Universidade Federal de São Carlos, com o mesmo tema, porém relacionando aos papéis femininos e/ou de mulheres dentro do cinema popular da Índia. É integrande da pequena diaspora indiana no Brasil, trabalha e estuda para fortalecer o conhecimento da cultura indiana no país. 785 PÔSTERES 786 A CRIAÇÃO NO UNIVERSO DO RYÛKYÛ BUYÔ: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICA INDIVIDUAL Alexandre Cardoso Oshiro - USP RESUMO: Este estudo busca analisar o processo criativo das danças folclóricas de Okinawa (Ryûkyû Buyô), como meio de construção da identidade ética individual das sensei, quem as exercem. Tem-se o intuito de explorar o universo de cada professora participante, levando em consideração aspectos de suas histórias de vida, com os quais as relações e os envolvimentos subjetivos com a dança possam ser compreendidos. Imagina-se que o processo de criação desta arte, interpole o self (individual) e o other (influência do meio), fazendo da identidade um fenômeno criado sempre em oposição ao outro, transformando-se constantemente ao longo do tempo. Por conseguinte, trata-se do par imigrantes versus descendentes, calcado na combinação de múltiplos valores culturais, dados pelas origens desses indivíduos (imigrantes japoneses vivendo no Brasil). Com base nos ideais antropológicos da cultura e da arte, são propostos relatórios, filmagens, entrevistas e questionários, como forma de gerar dados para a construção de perfis e comparação dos mesmos. Palavras-chave: identidade, imigração, processo criativo, cultura okinawana, Ryûkyû Buyô. ABSTRACT: This study analyzes the creative process of okinawan folk dances (Ryûkyû Buyô), as a means of building the individual ethnic identities of two Ryûkyû Buyô sensei. It aims to explore each participant’s inner universe, according to the aspects of their life experiences, in order to understand the subjective involvements to dance. It is thought that the process of creating this art, interpolates the self (individual experiences) and other (external influences), making identity a phenomenon always created by oppositions, which is constantly transforming itself over time. Therefore, it is the immigrants versus offspring pair, based on the combination of multiple cultural values, given the origins of these women (Japanese immigrants living in Brazil). For purpose of generating data, reporting, filming, interviews and questionnaires will be made. Keywords: identity, immigration, creative process, okinawan culture, Ryûkyû Buyô. Introdução Okinawa: da liberdade à dominação Durante muito tempo, Okinawa refletiu sua energia radiante em cores, transmitindo sua liberdade e peculiar cultura. Localizado na zona tropical, ao sul das restantes ilhas japonesas, foi um belo reino independente, amplamente visitado por seus vizinhos do sudeste asiático, como a poderosa China. Inicialmente era chamada de Řŗ (Ryûkyû) e após a dominação japonesa, recebeu seu atual nome ļž (Okinawa). 787 Mesmo após a submissão ao poderio japonês, a vibrante cultura da região jamais foi apagada ou esquecida. Suas artes, por exemplo, ainda remetem aos tempo de reinado, como o Ryûkyû 1 Buyô ou danças tradicionais okinawanas. Entretando, em 1869, a região foi tomada pelos vizinhos japoneses do norte, tornando-se mais adiante uma de suas províncias. Yamashiro (1997) relata brevemente este acontecimento na passagem a seguir: Porém, com a queda do xonugato Tokugawa em 1867 e a proclamação da 2 restauração dos poderes imperiais em 1868, o Ken foi implantado como 3 substituição ao sistema Han, instalando a restauração Meiji e alcançando posteriormente Okinawa (reino Ryûkyû), privando-a de sua liberdade e autonomia […]. Em março de 1609, um exército de três mil homens partiu de Satsuma sob o comando de Hisataka Kabayama e Masumune Hirata pelo porto de Yamakawa. No caminho, dominou as ilhas Amami e Tokunoshima e em 25 de março chegava ao porto de Unten, no norte da ilha de Okinawa. Os invasores encontraram pouca resistência: os okinawanos estavam praticamente desarmados, pois já desde o reinado de Sho Shin (1477-1526) as armas estavam recolhidas num depósito de Shuri, o cujo castelo caiu em 1 de abril. Os combatentes de Satsuma dispunham de um novo armamento: espingarda introduzida no Japão pelos portugueses. A corte de Shuri, com sua velha nobreza, não tinha condições de enfrentar os aguerridos samurais de Satsuma. Em detrimento das dominações, os chamados4 Naichi cometeram vários atos perturbadores aos okinawanos, como repressões e uma postura fortemente discriminatória. Julgavam os mesmos como uma população inferior, culturalmente atrasada e dotada de pouca inteligência, refletindo, dessa maneira, um sentimento de absoluta intolerância à cultura do outro, assim como diz Pires (2011) em sua passagem, onde complementa que "qualquer manifestação cultural distante do padrão japonês era discriminada ou até mesmo, duramente perseguida”. Mais adiante, como se já não bastasse a dura e forçada interação aos moldes nipônicos, a pacífica população okinawana ainda vivenciou os horrores da guerra, devastando a região e os obrigando a se lançarem ao mar em busca de terras mais prósperas. Dessa forma, muitos países, como Brasil, Bolívia, Peru, Argentina e Estados Unidos receberam inúmeros imigrantes provenientes das ilhas ryukyuanas. O Brasil, por exemplo, é atualmente a nação com maior número de estrangeiros nipônicos e okinawanos, graças “ao 'Tratado da Amizade, de Comércio e de Navegação’, firmado em 1895, o qual regulamentava a proteção aos cidadãos de ambos os países em seus territórios, entre outros interesses comuns às duas 788 nações’’ (GOMES, et al, 2012). Em pouco tempo, os imigrantes foram incorporados em trabalhos braçais, como serviços agrícolas ou mesmo construções civis, como “o grupo de imigrantes chegado ao Brasil em 1908, quem trabalharam nas lavouras cafeeiras, primeiramente, e logo após na construção da estrada de ferro 'Noroeste do Brasil’, no sul do Mato Grosso” (NISHIMOTO, 2011). Assim, "no processo de instalação, os imigrantes okinawanos se dispuseram de maneira concentrada no estado de São Paulo e em Campo Grande, passando por um processo de urbanização em todo o Brasil” (KANASHIRO, 2000). Muitos deles se transformaram em profissionais liberais (médicos, engenheiros, entre outros) ou então do comércio e serviços de forma geral, ascendendo na escala social. Esse período foi fundamental para a integração desses descendentes de famílias imigrantes junto à sociedade brasileira. A passagem dos filhos pela universidade proporciona a possibilidade de ascensão, prestígio social e a constituição de uma camada de renda média de natureza urbana (Idem, 2000). De forma geral, essa ascensão às classes de maior prestígio pelos okinawanos ocorreu em todos os países nos quais se estabeleceram. Segundo Takenaka (2003), "depois dos cem anos de suas presenças no Peru, os okinawanos-peruanos, nas segunda ou terceira geração, são integrados economicamente e até politicamente”. Sendo assim, com as bases sociais sólidas e estáveis, os imigrantes puderam recriar um ambiente favorável à pratica das atividades costumeiras, assim como era feito na longínqua terra natal. Festas, rituais e celebrações foram reavivados, graças à criação de centros de vivência e encontro, como acontece nas atuais associações okinawanas em diversos países americanos. No Brasil, a sede principal encontra-se no bairro da Liberdade, onde frequentemente são divulgados eventos para apresentações das artes tradicionais, promovidos pelos membros da colônia okinawana da cidade de São Paulo. Ryûkyû Buyô: a arte okinawana de dançar Como uma das atividades artísticas mais recorrentes nas associações e 789 eventos realizados pelos okinawanos, a dança merece ser nomeada como um acontecimento de prestígio e grande visibilidade. Na cidade de São Paulo, existem muitas escolas e centros de treinamento, destinados a divulgar o aprendizado das mesmas para descendentes e não-descendentes. Atravessando gerações, o Ryûkyû Buyô passou por um longo processo de transformações até atingir sua forma atual, acompanhando o ciclo de mudanças sofridas pelo povo okinawano ao longo da história. Sabe-se que os primeiros registros das danças ocorreram durante a existência do Reino. As danças eram primordialmente destinadas aos membros da corte e durante muito tempo foram performadas para fins de celebração e recepção de autoridades estrangeiras. Com a tomada de Satsuma e o fim do reino, as danças clássicas foram destituídas de sua principal função real e ganham novos praticantes. A popularização das danças as transformaram em atividades mais dinâmicas, refletindo o estilo de vida plebeu e não mais a formalidade dos antigos membros da realeza. Por conseguinte, devido a criação de centros de ensino e treinamento do Ryûkyû Buyô, as características das danças okinawanas passaram por um processo de subjetivação, na medida que os estilos ganham características próprias de seus mestres ou mesmo influências de ritmos externos. Há, nesse caso, uma divisão escolástica entre elas, sendo o Kotaro kai, Gyokusen kai, Tenda no kai e Hana no kai, ou mesmo um agrupamento de ordem estilística para a origem, sendo o clássico (koten buyô), o popular (zo-odori) e as danças folclóricas (minzoku buyô). Segundo Yamashiro (1997), as primeiras referências à arte coreográfica constam do volume 9 de Ooro-Sôshi. A dança de Ryûkyû se divide, de maneira sucinta, em: Danças tradicionais das aldeias rurais do Pequeno Arquipélago, de caráter essencialmente popular; 790 Dança clássica, aperfeiçoada e desenvolvida na corte de Shuri; Dança moderna, zo-odori, criada e desenvolvida nas eras Meiji, Taisho e Showa; Ushid’ku Udui, Usudaiko Odori em japonês, dança de caráter religioso, da crença nativa, executada só por mulheres; Eisa – uma dança popular do festival dedicado aos mortos, Bon Odori Barske (2003), junto à revista Gekkan Ryûkyû Buyô (1999), propõe uma divisão ainda mais detalhada: Okinawa no Geinô (Artes okinawanas) A. Taishii Geinô (Artes Populares) 1. Shima Uta (Músicas da Ilha) 2. Minyô (Músicas Folclóricas) 3. Hayari Ongaku (Musicas Populares) 4. Sôsaku Buyô (Danças criadas/ Trabalhos Originais) 5. Okinawa Shibai (Peças/ Dramas Okinawanos) 6. Kageki (Óperas) 7. Zô Odori (Miscelânea de danças populares) a. Nuchibana (Dança de Flores Perfuradas) b. Manjuru (Dança com chapéus feitos de trigo) c. Tanchame (Dança de casais, representando a pesca e a colheita) 791 B. Koten Geino (Artes Clássicas) 1. Kumi Odori (Dança dramática em grupo) 2. Koten Ongaku (Músicas Clássicas) 3. Koten Buyô (Danças Clássicas) a. Nisai Odari (Dança para homens jovens) b. Onna Odari (Dança para mulheres) i. Muto Nuchibana (Nuchibana Original) ii. Kashiki (Dança do tear) C. Minzoku Geinô (Artes Folclóricas) 1. Eis (Dança de Obon Okinawano) 2. Bô Odori (Dança da viga) 3. Hachi Gatsu Odori (Dança de Agosto) Numa construção milenar, as danças okinawanas perpassaram anos e anos, registrando simbolicamente traços elementares e rotineiros dos habitantes nativos do antigo reino de Ryûkyû, assim como de imigrantes vindos para terras estrangeiras. Por esse motivo, acredita-se que as danças tradicionais okinawanas são verdadeiros diários de bordo sobre os acontecimentos vividos por essa população, disponibilizando detalhes sobre processos específicos e construção de suas identidades. Por esse motivo, será discutido o processo criativo das danças como meio de entendimento da identidade étnica okinawana em duas professoras de Ryûkyû Buyô, vindas ao Brasil após o período da segunda guerra mundial. Entende-se que o reconhecimento de suas histórias de vida, assim como seus envolvimentos, 792 preferências e não preferências em relação a dança sejam de fundamental importância para a criação de um panorama sobre suas identidades individuais. Para tanto, coloca-se logo em seguida a utilização da dança como arte e meio de entendimento do ser humano em si, assim como o valor de seus processo criativos, de acordo com os pensamentos antropológicos. O valor expressivo da dança Tão antigo quanto os indivíduos que a executam, a dança é uma das atividades cênicas que não permitiu a expressividade humana se emudecer. Transmiti seu valor pelos gestos e movimentos, ora cadentes ora descompassados, fervilhando em energia junto com a música, cenário, figurino que a acompanha. Não há como dançar e esquecer do seu caráter primordial de ser humano. Aquele que nasce e se finda dentro de uma esfera emocional constante, se comunicando e propagando sintonias com o universo espectador. O interessante é que não se dança apenas para o vazio, dança-se para transmitir algo, mesmo que os olhos da platéia sejam aqueles de si, refletidos em espelhos. Estudar a dança, como um objeto construído pelas humanidades não parece se dissociar da natureza do corpo e alma. É se unir a arte, entendendo-a como elemento complacente à vida. Afinal, qual transmite o outro? A arte expressa a vida? Ou é ela quem dita a arte? "A dança é tema recorrente e transversal para as humanidades, assim como para a antropologia. Coloca-se a reflexão sobre os caminhos da prática etnográfica e sobre o desenvolvimento da teoria antropológica" (GONÇALVES & OSÓRIO, 2012). O Autor prossegue seu discurso retratando que "os estudos sobre a dança agregam ainda interesses diversos, com caráter transdisciplinar e abertos a recortes e caminhos metodológicos variados, refletindo sobre a prática etnográfica e sobre o desenvolvimento da teoria antropológica” (GOLÇALVES & OSÓRIO, 2012). Assim, o desafio da Antropologia da Dança no século vinte e um, diz Camargo (2013), “não é apenas o de empregar o método etnográfico para investigar a dança, mas também o de apontar uma nova linha de investigação capaz de revelar como e porque a dança pode funcionar sobre uma ação social discursiva e afetiva 793 de uma ordem humana particular". Segundo a posição crítica de Pereira (2010), nas últimas duas décadas, a dança vem sendo colocada para a sociedade em forma de pesquisa, que gera publicações, de dança que educa, de dança que deve integrar as diferentes classes sociais e que poderá oferecer um norte a menores, que antes estariam à margem. A grande maioria dos sistemas financiadores nacionais, que premia ou apóiam projetos para os artistas independentes, exige deles uma contrapartida, que inclui organização de palestras, relatórios sobre processos de criação, oficinas, criação e direção de projetos para grupos localizados nas periferias das grandes cidades. É importante relembrar que no século passado cada profissional recebia ao longo de seus estudos formaç ão específica para a área de futura atuação. Com esta afirmação, não pretendemos sugerir uma volta ao passado, onde a maioria dos profissionais não transitava entre diferentes áreas, todavia, acreditamos ser de grande importância que os profissionais sejam preparados, para poder interagir, e dialogar nos diferentes segmentos do fazer dança. Para que a mesma não seja levada ao conhecimento da população apenas como forma lúdica, ou do descobrimento das sensações do próprio corpo, no qual a fase pré-socrática do 'descubra-se a si mesmo'. Ou ainda que dança não seja apenas sinônimo de salvar populações carentes. Kaeppler (2000) ainda discute a existência de muitos pesquisadores, tratando sobre as tradições envolvidas nas danças de suas culturas e de outras. Diz ainda que as mesmas devem ser vistas como uma parte integral do modo de vida global. ”Adiciona, ainda com a distinção entre as danças ocidentais e orientais, sobre suas principais finalidades em relação a apresentação. "Diferente da dança do oeste, em muitas outras partes do mundo, a dança não é apenas entretenimento" (KAEPPLER, 2000). Todavia, quando são tratados os recursos expressivos da dança, é ressaltado o valor de seu processo criativo como meio efetivo para o reconhecimento dos fazeres humanos. Por esse motivo, ao eleger este assunto como fundamental, rapidamente se associa com os processos formadores da identidade individual ou de grupo, sendo este o motivo pelo qual esta pesquisa se voltou a este assunto. Observa-se a proximidade do processo criativo, como vestígio íntimo humano aos alicerces da construção da identidade individual nas palavras de Ostrower, a seguir. Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse 'novo', de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato 794 criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado de um dom singular: mais do que 'homo faber, ser fazedor, o homem é um ser informador. Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que ocorrem ao redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele se configura em sua experiência de viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que o homem faz ou nas soluções que encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o homem relaciona e forma (OSTROWER, 1977). O Ryûkyû Buyô, então, como uma dança antiga e extremamente associada ao desenvolvimento daqueles que a exercem, parece claramente ser uma ferramenta elaborada para o entendimento dos okinawanos (nativos e imigrantes) e de sua cultura, tendo os adventos históricos como o reinado, a tomada da região pelos naichi, a transição das artes para o meio popular e não mais como uma atividade da nobreza, etc. Em virtude de atender as atribuições deste estudo sobre a dança à compreensão do indivíduo e ainda as marcas dos valores subjetivos depositados simbolicamente nos processo de criação da arte, vê-se o momento de calcar tais afirmações em conceitos antropológicos, cuja proposta é justamente lidar com experiências de um indivíduos para a construção de sua identidade. Caso seja considerado a expressividade da dança e seu processo criativo como um conjunto de experiências acumulados pela vida, compartilhados com o outro, chega-se, enfim, às bases mínimas para discussões antropológicas sobre a identidade e alteridade, elaborados a seguir. Contribuições da Antropologia O conhecimento preliminar sobre os objetivos desta pesquisa e a composição do corpus propõe uma abordagem teórica compatível com transformações sincrônicas e diacrônicas em sistemas estruturais complexos presentes no processo de construção das identidades individuais das professoras de Ryûkyû Buyô. Já é permitido saber que o objetivo desta pesquisa perpassa dois momentos distintos dos okinawanos, ao passo que se subentende um primeiro ocorrido antes das imigrações para terras estrangeiras, ou seja, todo o momento do passado históricocultural construído percorrido pelas membros selecionados para a pesquisa; o segundo momento, quando as okinawanas migram para terras longínquas e lá se 795 estabelecem, e por fim, o terceiro momento, no instante que os costumes tradicionais são desenvolvidos nos país estrangeiro. Observa-se que as três etapas são bem definidas e de extrema importância para o entendimento sintetizado de todo o processo vivenciado pelas imigrantes. Assim, estabelece-se uma relação direta com os trabalhos desenvolvidos pela antropologia cultural. "O campo dessa disciplina especial é vastíssimo, pois ela se propõe a estudar a obra humana. Ora, a obra que se denomina cultura é este conjunto complexo citado anteriormente" (MELLO, 2002, p.37). Para tanto, é importante observar, não somente a cultura, mas suas interações em prol da construção da identidade étnica, levando-se em consideração sua própria definição. "Identidade é, então, o conjunto de caracteres próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc” (LIMBERTI, 2007). "A noção de identidade tornou-se um dos conceitos mais importantes de nossa época, na medida em que o conhecimento da diversidade passa pela definição das identidade étnicas” (SILVA, 2006). Fala-se, a esse respeito, dos seus eixos criadores, ou seja, a interessante relação entre o self e other. Segundo Mori (2003), o termo japonês minzoku (identidade) é formado pela união dos termos citados na frase anterior, quando o self engloba a sua própria existência, enquanto o other atende ao vivenciado pelo alheio. Mori cita as palavras de Uchibori (1989) para elucidar o processo de formação da identidade étnica. “Uchibori argumenta que o processo da etnogênese envolve negociações ideológicas entre self e o other. Continuando, as afirmações feitas anteriormente estão diretamente de acordo com o conceito antropológico de alteridade, conceito primordial para esta pesquisa. A temática, no entanto, sempre esteve presente nas reflexões dessa ciência. Para ela, a alteridade se constitui, desde a sua emergência, em desafio a ser explicado, posto que a antropologia se estrutura sobre a temática cultura. Nesse sentido, tem prestado relevantes contribuições na medida em que suas investigações tratam de mostrar o outro como diferença, desvendando suas características e especificidades. Das leituras do diverso, calcadas na 796 comparação com a cultura européia que marcaram seu início ao reconhecimento e defesa das diversidades um longo trajeto foi percorrido, sendo que o desafio da ciência antropológica é hoje muito maior. Afinal, se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas pois, não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje, é próximo e familiar, mas não necessariamente é o nosso conhecido (GUSMÃO, 1999) e (ZANELLA, 2005) A antropologia “combina interesses em compreender o mundo com a preocupação em desvendar os códigos culturais da vida cotidiana, desvendando problemáticas que estão na ordem do dia sobre a produção da diferença cultural, práticas tradicionais, etc” (FELDMAN-BIANCO, 2011). Continuando, sempre esteve às voltas com a alteridade, seja em campo ou mesmo recolhendo informações de viajantes, missionários, agentes colonialistas dentre outros […] a relação de alteridade estava, e está, presente, não no contato direto com o ‘Outro’ distante, mas no contato com os informantes que com eles conviviam e que deles retiravam – mas também deixavam – impressões que se somavam, e se somam, ao vocabulário universal das diferenças – e, por vezes, semelhanças – existente entre sujeitos e culturas em todo o mundo (NASCIMENTO, 2013). Estudar antropologia cultural consiste então em promover conhecimento sobre o saber de si em relação ao outro. Perceber a existência do homem social na sua interação e interdependência com seus semelhantes, ao passo que o “euindividual” só é possível diante de um contato com o outro (outra cultura). Sendo assim, a transição cultural provocada pelo fluxo migratório pode ter influenciado as relações similares entre as estruturas culturais, induzindo a possíveis peculiaridades no processo identitário das professoras de Ryûkyû Buyô. Seus parâmetros múltiplos e modelos em transição são hipoteticamente registrados nos processo criativos. Em outras palavras, as professoras vivenciaram a aprendizagem das danças em escolas okinawanas, com mestres okinawanos e posteriormente continuaram suas aprendizagens em terras brasileiras, onde necessitaram continuar seus desenvolvimentos sob a ótica de uma nova cultura regional. Por este motivo, questiona-se sobre quais imagens criaram para si sobre suas próprias criações artísticas. Estas são obras fiéis aos ensinamentos okinawanos ou, devido a todos os efeitos transculturais, os produtos finais acabam sendo hibridados? Quais são os 797 espelhos que propagam as imagens criadoras de suas identidades? Em vista dos questionamentos, o desenvolvimento deste trabalho e de futuros, tem como objetivo principal entender a construção da identidade étnica individual nas 5sensei de Ryûkyû Buyô, através do entendimento proveniente de experiências e fatos importantes nas suas histórias de vida. Busca-se compreender o desenvolvimento das artes okinawanas no universo individual de cada professora, analisando seus momentos primordiais com as atividades artísticas, atribuindo dificuldades e motivações, as quais as levaram a aprender e evoluir como aprendizes, até se tornarem sensei. Pretende-se ainda, averiguar o processo criativo da dança como um recurso misto entre o self e o other (experiência vindas do subjetivo de cada sensei, somado aquelas adquiridas através do “outro” ou do universo alheio). Neste momento, busca-se entender cada sensei como profissional geradora da arte, quem utiliza de seus recursos subjetivos e do reconhecimento de seus aprendizes para iniciar o processo criativo do Ryûkyû Buyô. O percurso do reconhecimento Para que as informações sobre a vida das sensei e sobre o Ryûkyû Buyô se tornassem transparentes, um processo de reconhecimento de campo prévio foi de extrema importância, delegando a preocupação primeira de estabelecer contanto entre o pesquisador e as instituições envolvidas (escolas e associações okinawanas em São Paulo. Sabe-se de antemão que as professoras de dança tradicional okinawana (membros da Ryûkyû Buyô Kyokai do Brasil) costumam se reunir periodicamente no Kenjinkai chamado de Associação Okinawa Kenjin do Brasil, localizado no bairro da Liberdade na cidade de São Paulo. Felizmente, o desenvolvimento deste estudo não esbarrou em barreiras burocráticas, pois o presidente deste estabelecimento, senhor Shinji Yonamine, concedeu gentilmente as dependências do local para a realização desta pesquisa, assim como a senhora Chieko Chibana, presidente do Ryûkyû Buyô Kyokai do Brasil, quem se manifestou disponível e receptiva, representando a aceitação do grupo de 798 professoras para com as intenções do pesquisador. Graças a este bom relacionamento estabelecido, outras portas exploratórias foram abertas, uma vez que há o total interesse em desvendar as peculiaridades dos desenvolvimentos das danças em ambientes individuais, como os dojos ( ǂ ª - Escolas) de cada professora escolhida. Entende-se, na verdade, todo este processo inicial, como um momento etnográfico, sabendo-se que “etnografia" (éthnos, “povo” + gráphein, “descrever” + ia) incorpora os significados, em princípio, de escrita e descrição de algo” (SOUSA, 2000). “Entende-se pelo momento etnográfico como reconhecimento dos costumes e da vida dos povos, englobando a classificação, descrição e análise dos fenômenos culturais particulares” (MELLO, 2002). Sendo assim, as professoras de danças tradicionais okinawanas foram selecionadas de modo não aleatório, mas através de uma escolha proposital. Foi requisitado a participação daquelas, com as quais fossem possíveis reconhecer um processo de vida o mais distinto possível em comparação ao outro em diversos aspectos, como local de nascimento, vida em terra nativa, vinda ao Brasil, vida desenvolvida em terras brasileiras e experiências dadas pelo aprendizado das artes de dança tradicional de acordo com o estilo de suas escolas. Deste modo, Yoko Gushiken sensei da escola Tedahakuyo e Yoriko Shimabukuro sensei da escola Takaryu Hana foram convidadas a participar desta pesquisa. É conhecido, a pré-existência de diferenças notórias entre a vida de uma professora e outra, no que diz respeito as influências familiares no envolvimento com as artes tradicionais okinawanas, por exemplo. Numa exploração breve a esta pesquisa, constatou-se que a professora Yoko passou mais tempo em Okinawa em comparação com a Yoriko sensei, tendo ainda o pai como dono de um teatro, onde apresentações artísticas eram constantes. Dados como estes, por exemplo, denotam a intensidade com a qual a cultura de uma região e outra pode se suceder sobre cada professora. Assim, questiona-se sobre prováveis interferências da história de vida de casa sensei sobre seus processos criativos. Será possível a existência de uma legítima generalização gestual e estética na montagem e execução das coreográficas, sabendo-se da rigidez imposta pelas escolas de ensino 799 de danças tradicionais, onde todos passam pelo mesmo caminho e aprendem as danças básicas da mesma forma? Ou a vinda ao Brasil, a mudança de costumes, a pertença a estilos de ensino distintos destituíram as rédeas impostas pela cultura do “ser igual ao outro” e transformaram seus processos criativos em fenômenos mais singulares? Esses questionamento são fontes inspiradoras para outras vertentes, não somente etnográficas, mas também etnológicas. Por isso, diz Gutwirth (2001) “todo etnólogo observará em campo a existência de correlações entre os níveis de uma realidade social, analisando o desenvolvimento histórico de uma cultura e a relação entre as culturas”. Assim, como é tratado da oposição direta entre os costumes e histórias de vida, foi encontrado através de uma metáfora o eixo estrutural para basear, pelo menos em instância inicial, as argumentações sobre como os processos criativos/identidades são geradas pelo jogo didático recorrente neste processo. Para melhor elucidar os caminhos estabelecidos pela proposta deste trabalho, vale-se do belo estudo de Novaes (1993), sobre a construção da auto-imagem através da associação metafórica ao jogo de espelhos, elucidando como ocorre a construção da auto-imagem ou mesmo da identidade. Quando uma sociedade focaliza um outro segmento populacional, ela simultaneamente constitui uma imagem de si própria. A partir da forma como se percebe aos olhos deste outro segmento. É como se o olhar transformasse o outro em um espelho, a partir do qual aquele que olha pudesse enxergar a si próprio. Cada outro, cada segmento populacional, é um espelho diferente, que reflete imagens distintas entre si. Sendo vários os segmentos populacionais com que uma sociedade convive e sobre os quais ela lança seu olhar, são distintas as imagens que uma sociedade pode produzir. […] Em imagens, que se formam a partir do modo como uma sociedade se vê refletida pelos olhos do outro não são, tampouco, imagens estáticas, imunes às mudanças. São exatamente estas imagens refletidas a partir do outro que permitem alterações, tanto na minha auto-imagem como na minha conduta, e este termo deve ser aqui tomado em seu sentido literal, alter/ações - as ações que assumo em função do outro. Tomar o espelho com metáfora que permite a compreensão da auto-imagem de uma sociedade é procurar enveredar pelos processos de reflexão e especulação que ela elabora sobre si, a que o próprio termo 'espelho' induz. O jogo de espelhos é, assim, uma metáfora que me parece bastante adequada para ilustrar, tanto o processo de formação, como as transformações da autoimagem de uma sociedade em contato com grupos sociais diferentes de si própria. É fundamental compreender que a aplicação individualizada do estudo para cada sensei participante é altamente guiada pelo conteúdo teórico disposto acima. A 800 escolha sistemática das sensei, compartilha da representação metafórica dita por Novaes, na medida em que as identidades étnicas individuais parecem assumir a característica de serem criadas umas em relações as outras, assim como imagens refletidas em espelhos. Ou seja, todas as atividades do Ryûkyû Buyô, assim como formação de caráter, personalidade, costumes, entre outros referentes são imaginados como produtos de uma complexa comparação de si com os mesmos processos alheios. Somente para exemplificar, pode-se entender esta especulação através, por exemplo, da escolha dos trajes para uma coreografia específica feita por uma sensei. Após o reconhecimento sobre os elementos elegidos para um espetáculo, esta hipotética professora inicia sua criação, partindo do seu plano de experiências individuais e aquelas criadas a partir da imagem dos outros, dando assim uma auto-imagem (processo identitário) de si e de seu próprio processo criativo. Considerações Finais É observado através do contato breve com as atividades do Ryûkyû Buyô, assim como informações primeiras sobre a história de vida das sensei participantes, que o reconhecimento de uma identidade individual é uma tarefa igualmente árdua ao de grupo, pois há a necessidade de se mergulhar profundamente nos pequenos universos gerados pelos subjetivos de cada indivíduo analisado, e entender sua maneira de interação com estruturas alheias, antes mesmo de compreender os macro sistemas do coletivo humano. Por fim, aprofundar-se em questões como aquelas apresentadas anteriormente são de extremo interesse para trabalhos futuros, elaborando apontamentos superficiais e pilotos desta pesquisa sobre a identidade okinawana e sua cultura. Notas 1 Buyô: termo japonês para dança. Ken: eram províncias - novas unidades administrativas regionais, as quais substituíram o Han. 3 Han: feudos ou daimiatos de todo o território japonês. 4 Naichi: significa o termo para se referir as ilhas principais do Japão (SHINMURA, 1998) 5 Sensei: Termo japonês para professor. 2 801 Referências Bibliográficas BASKE, V. H. (2003). "Nuchibana: Okinawans Performing Peace as Historical Protest”. In Journal for the Anthropological Study of Human Movement, Illinois. CAMARGO, G. G. A. (2013). Antropologia da Dança I. Ed. Insular, Florianópolis. FELDMAN-BIANCO, B. (2011). Tendências - A antropologia hoje. Ed. Cienc. Cult. vol.63 no.2, São Paulo. GEKKAN RYÛKYÛ BUYÔ (Monthly Rynkyan-dance Magazine) (1999). 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E-mail: oshirosan@usp.br 803 A FUNÇÃO DAS TRADIÇÕES TEATRAIS ORIENTAIS NO TRABALHO DE CRIAÇÃO DO THÉÂTRE DU SOLEIL Aline de Almeida Olmos - UNICAMP Orientador: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici RESUMO: Diversos são os grupos e os diretores teatrais que têm influências orientais em suas pesquisas. Eugênio Barba, Peter Brook, Meyerhold, Artaud e Brecht são alguns dos famosos exemplos que aqui poderiam ser citados. As influências orientais presentes nos espetáculos do Théâtre du Soleil, grupo dirigido por Ariane Mnouchkine, se manifestam de maneira distinta em cada processo criativo da companhia. Neste artigo analisaremos brevemente desde as primeiras experiências de direção de Mnouchkine até o espetáculo La Ville parjure ou le réveil des Érinyes encenado em 1994, com o objetivo de evidenciar como determinadas tradições orientais foram incorporadas ao trabalho da companhia bem como quais foram as funções exercidas por estas nos trabalhos criativos do grupo. O Théâtre du Soleil se mostra como objeto de estudo exemplar para analisar outras formas de apropriação ocidental das descobertas teatrais orientais, pois o grupo se relaciona com o oriente sem deixar de com isso criar espetáculos atuais e completamente acessíveis ao público ocidental. No trabalho do grupo não se busca a imitação das tradições orientais, mas a descoberta de princípios e de mecanismos de trabalho que possam ser empregados em práticas distantes destas tradições. . Palavras-chave: teatro, interculturalismo, cruzamento entre culturas. SOMMAIRE: L'Orient exerce des influences sur les recherches de nombreux metteurs en scène et de groupes théatrales. Parmi beaucoup d'autres exemples nous pouvons nommer Eugênio Barba, Peter Brook, Meyerhold, Artaud et Brecht. Les influences orientales présentes dans les spectacles du Théâtre du Soleil, mis en scène par Ariane Mnouchkine, se manifestent de manière unique dans chaque création du groupe. Dans cet article nous explorerons les prémières éxpériences du travail de Mnouchkine jusqu'au spetacle La ville parjure ou le réveil des Érinyes, répresenté en 1994. Notre but c'est de mettre en évidence comment les traditions orientales sont introduites dans chaque travail de la compagnie, et de plus les fonctions qu'elles y entraînent. Le Théâtre du Soleil est un exemplaire de l'appropriation occidentale des découvertes théâtrales orientales, puisque le groupe est capable de créer, avec les références orientales, des spectacles actuels et accessibles au publique occidental. Cette accessibilité des spectacles ressort des efforts du groupe de ne pas reproduire les traditions orientelles, en chercheant, par contre, découvrir des bases et des mécanismes de ce travail de création théatrale qui peuvent être appliqués au théâtre occidental – ceci éloigné de ces traditions. Mots-clés: théâtre, interculturalisme, croisement de cultures. Em 1959 Ariane Mnouchkine tem suas primeiras experiências como diretora teatral na ATEP (Association Théâtrale des Étudiantes de Paris), fundada por ela mesma e alguns colegas na Université Sorbonne. Um dos principais objetivos desta associação era de investigar novas formas teatrais que auxiliassem os integrantes a 804 fazerem produções teatrais capazes de fugir da estética realista. Devido a esta busca os participantes da associação estudaram commedia dell’arte e entraram em contato com algumas tradições teatrais orientais. Também neste período o teatro francês Théâtre des Nations se empenhou em oferecer uma programação bastante diversificada em que trouxe para o público parisiense espetáculos de ópera chinesa, de kathakali e grupos como Berliner Ensemble dentre outros que ampliaram as referências teatrais dos espectadores. A primeira direção teatral de Ariane Mnouchkine se realizou nesta associação em 1961 com a peça Gengis Khan, escrita por Henri Bauchau. Este espetáculo foi influenciado pela ópera chinesa, tradição teatral assistida pela diretora no Théâtre des Nations e buscou colocar em prática os ideais defendidos e aprendidos na associação relacionados a busca por um teatro não realista. Sobre a criação do espetáculo Mnouchkine afirma: “(quando montei Gengis Khan) eu já tinha apreciado a ópera chinesa no Théâtre des Nations e já me inspirava um pouco no teatro chinês, mas eu não sabia nada na época. Apenas tentava ser meticulosa e organizada” (PASCOUD, 2011, p. 46). A partir dos poucos estudos e relatos sobre esta criação podemos inferir que provavelmente a abordagem feita pela diretora desta tradição chinesa tenha ocorrido de forma simples e intuitiva neste espetáculo, uma vez que seu conhecimento de ópera chinesa não era profundo, como ela relata. Porém, é importante notar que tal carência teórica e referencial com relação a esta tradição não impediram a diretora de usá-la como inspiração para sua criação. Neste processo criativo observa-se uma das maneiras que será desenvolvida nas próximas criações do grupo de abordagem das tradição orientais. Trata-se de uma relação que não é determinada por um conhecimento profundo e prévio da referência utilizada, mas que lida com a ideia que possuem de tal tradição e a parir dessa suposição trabalham em improvisações. Esta forma de se relacionar com uma determinada referência oriental encontrará seu desenvolvimento máximo no ciclo de peças do grupo chamado Les Shakespeares (Os Shakespeares) de 1981. É interessante notar também que já nesta primeira abordagem da companhia de uma tradição estrangeira tal referência exerce a principal função de auxiliar os atores a se 805 distanciares de uma atuação próxima da linguagem realista. Após a realização deste espetáculo os participantes da ATEP decidiram tomar dois anos de pausa antes de continuarem seus planos teatrais em conjunto. Neste período cada um pôde terminar seus afazeres pessoais como graduações, trabalhos e cursos, a fim de que, posteriormente a este intervalo, pudessem se dedicar exclusivamente a atividade teatral em grupo. Mnouchkine aproveitou este período para realizar um antigo sonho de infância: ir à China que para ela, naquele momento, representava o reino da beleza, do mistério e da aventura. Sem conseguir imediatamente o viso chinês Mnouchkine iniciou sua viagem pelo Japão onde ficou cinco meses e lá ficou impressionada com as apresentações de teatro nô e de kabuki que presenciou. A diretora relata seu entusiasmo diante da primeira apresentação de kabuki que assistiu em um teatro de Asakusa, bairro de Tóquio: Era um teatro minúsculo, onde eu tive o choque da minha vida ao observar um ator que não saberei nunca o nome. Com um simples tambor, ele representava sozinho uma batalha. Este homem, em duas horas de teatro, me ensinou tudo. Ele me mostrou que o teatro era sempre possível, que ele poderia contar tudo. Eu compreendi que mesmo nos teatros mais simples, se um ator tem coração, ele pode nos transportar até o fundos dos campos mais distantes. Era em 1963. Eu nunca saberia quem era este ator, mas ele ocupa um grande espaço dentro da minha mala de tesouros (PICONVALLIN, 2004). Além desta marcante experiência nesta viagem a diretora foi para Bangcoc na Tailândia, onde entrou novamente em contato com o teatro chinês que pode assistir em uma praça pública, depois partiu para o Camboja onde ficou maravilhada com as belezas do país e com a cultura local. Posteriormente, foi para Calcutá, onde observou de perto a fome, a pobreza e a clara presença da morte. Devido ao choque diante de tamanha carência na Índia, a diretora seguiu em direção ao Nepal onde passou um período vagando a pé pelo país. Após este momento de pausa e reflexão voltou à Índia que, segundo ela, virou seu “segundo país” (PASCAUD, 2011, p.53) e entrou novamente em contato com o kathakali, tradição indiana que já havia assistido em Paris no Théâtre des Nations. Após a Índia, a diretora seguiu viagem para o Paquistão, depois para o Afeganistão, terminando sua trajetória na Turquia sem nunca pisar no primeiro destino desejado porque no período as dificuldades eram muito grandes para se conseguir um visto chinês. Esta viagem marcou o 806 estabelecimento de relações profundas e intuitivas entre a diretora e algumas tradições orientais, que aos poucos, foram desenvolvidas nos seus futuros processos criativos. De volta à França, junto com seus colegas da ATEP Mnouchkine fundou o Theâtre du Soleil. Os primeiros dezoito anos de criação da companhia não foram marcados pela relação direta com nenhuma influência teatral oriental específica. Neste período foram criados os espetáculos: Les petits Bourgeois (Os pequenoburgueses) em 1964, Le capitaine Fracasse (O capitão Fracasso) em 1966, La cuisine (A cozinha) em 1967, Le songe d’une nuit d’été (Sonho de uma noite de verão) em 1968, Les clowns (Os palhaços) em 1969, 1789 em 1970, 1793 em 1972, L’Âge d’or (A era do ouro) em 1975 e Mephisto (Méfisto) em 1979. Este primeiro período de criações do grupo se caracteriza principalmente pela busca por uma linguagem popular, pelo estabelecimento do processo de criação coletivo na companhia e pela pesquisa da criação dramatúrgica feita pelo grupo com o objetivo de possibilitar a criação de espetáculos que tratassem da realidade que os cercava e que fossem capazes de suscitar um questionamento sobre as decisões políticas da época. Este período foi influenciado principalmente por tradições populares de teatros ocidentais como a commedia dell’arte, o trabalho com o jogo dos palhaços e princípios presentes em teatros populares realizados em ruas e feiras. As relações da companhia com determinadas tradições orientais se estabelecem claramente em 1981 quando o grupo montou o ciclo Les Shakespeares (Os Shakespeares) composto por Richard II (Ricardo II) criado em 1981, La nuit des rois (A noite de reis) em 1982 e Henry IV (Henrique IV) em 1984. O processo criativo do primeiro espetáculo iniciou-se partindo das referências mais diretamente ligadas ao universo Shakesperiano, passando por guerreiros medievais e figurinos típicos, porém, diante da insuficiência dessas referências para o trabalho de improvisação, os atores passaram a pesquisar outras fontes de inspiração e chegaram ao filme Kagemusha de Akira Kurosawa. Nas palavras de Mnouchkine: Eu quis escapar da imagem um pouco sem graça da idade média do tipo “Thierry la Fonde”. O cinema japonês, por exemplo, guardou muito mais testemunhos dos tempos de cavaleiros do que os países ocidentais 807 (SERRES, 1982 apud QUILLET, 1999, p. 83). Assim, a partir deste filme o Oriente entrou como referência básica para a criação de Richard II e Henry IV, como descreve a diretora: Quando nós decidimos montar Shakespeare, o recurso ao Oriente se tornou uma necessidade, porque Shakespeare se situa nas metáforas das verdades humanas. Nós procuramos, então, como colocá-lo em cena evitando a qualquer preço o realismo e o prosaísmo (MNOUCHKINE, 1986). Mais especificamente do que o Oriente de forma geral os dois dramas históricos shakespearianos tiveram o kabuki, teatro popular japonês, como referência para criação. O que a diretora buscava ao se valer desta tradição, como explica Anne Neuschafer era: A recriação de um ambiente específico para a aquisição de certas técnicas que permitissem que os atores alargassem seus repertórios de formas teatrais (...). Para isso, Ariane Mnouchkine sugere aos atores de trabalharem ‘como se fossem...’” (NEUSCHÄFER, 2002, p.220). Próximo ao trabalho que inferimos ter ocorrido na criação de Gengis Khan a referência do kabuki nestas encenações também passou pela imaginação e pela sugestão. A proposição da diretora era a de que os atores do Théâtre du Soleil trabalhassem como se fossem atores de kabuki. Mesmo ciente da distância existente para a realização desta forma de interpretação japonesa e dos anos de treinamento que ela requer Mnouchkine, se aproximando do conceito do “Se mágico1” proposto por Stanislavski, chamava os atores, como em um jogo de criança, para “fazerem de conta” que eram atores desta tradição. A diretora comenta este processo de criação: Vocês conhecem aquela pergunta mágica: “E se nós fossemos uma trupe japonesa?” Imediatamente, isso quer dizer que não seremos mais nós mesmos. E isso é a flor do teatro: a felicidade de não ser mais você, de deixar vir o outro, o desconhecido. “Parece até que é verdade!” Certas frases da infância nos são indispensáveis (PASCOUD, 2011, p.52). É importante notar que Mnouchkine não buscou fazer Shakespeare na forma kabuki diretamente, como ela diz: “Nada é japonês em Ricardo II: as referências ao kabuki, ao teatro nô, ao bunraku se mantêm ao lado do rito, como vestígio e não como molde” (HELIOT, 1982 apud QUILLET, 1999, p.83). Seu objetivo não era dominar ou copiar estas formas cênicas. Ao sugerir para seus atores de se imaginarem como atores desta tradição ela procurava auxiliar no desenho de seus 808 corpos, a impulsionar suas imaginações, a levá-los para um universo distante da realidade e mais próximo do da ficção trabalhada. A diretora propôs uma nova referência que auxiliou os atores a encontrarem uma forma cênica e por consequência um jogo teatral. Nós ocidentais só criamos formas realistas, Isto quer dizer que nós não criamos uma “forma” propriamente dita. No momento em que utilizamos a palavra “forma”, já se implica uma noção oriental, quando falamos de teatro. É isso que nós buscamos sempre, uma forma (MNOUCHKINE, 1986). A comédia, La nuit des rois contou com referências de danças indianas para sua criação. E em seu processo criativo os atores fizeram aulas da dança indiana bharata natyam durante as manhãs de trabalho e nos períodos da tarde e da noite improvisavam o texto de Shakespeare tendo esta prática corporal como referência. Ou seja, o Oriente trouxe ferramentas teatrais que possibilitaram o grupo a representar o complexo “homem shakespeariano” de maneira extremamente distante da convencional. Mnouchkine acredita, desta forma, ter aproximado Shakespeare dos ocidentais, pois ao abordá-lo por meio de tradições desconhecida para a grande maioria do público, ela criou um distanciamento que instigava a abertura do olhar do espectador para estas histórias. Uma vez que ao assistir os personagens guerreiros vestidos com saias volumosas e não com armaduras de ferro medievais, por exemplo, observa-se que o imaginário do espectador é obrigado a se deslocar e a se abrir para estas novas imagens. Além disso, tal aproximação foi possível pois, as referências orientais presentes no espetáculo eram acessíveis a todo o público, não se fazendo necessário nenhum conhecimento prévio de kabuki ou de danças indianas para compreende-las. As referências orientais, nestas montagens, não foram usadas apenas para o trabalho dos atores, elas estavam também claramente presentes no espaço cenográfico, nos objetos cênicos, nas maquiagem, nos figurinos e na presença constante da música, como descreve Françoise Quillet, importante teórica sobre a relação do grupo com tradições orientais (QUILLET, 1999, p. 84). O espaço cenográfico, que era igual nas três peças do ciclo, continha uma passarela que ligava o palco à coxia que era uma referência ao hashigakari, (espécie de ponte presente nos palcos de teatro nô que também liga o palco a coxia). Além disso, continha telas ao fundo e cortinas que se assemelhavam às presentes 809 nos espetáculos de kabuki e o espaço reservado aos músicos no palco estava posicionada da mesma maneira que se encontra nos palcos desta tradição, com a única diferença de que no Théâtre du Soleil esta área era completamente visível. Dentre os objetos cênicos presentes nos espetáculos destaca-se o uso de sombrinhas trazidas por servidores de cena (outra referência oriental) para sinalizar personagens ilustres, sendo esta uma referência também presente na ópera chinesa, no kathakali e no topeng, o uso do mar, em cena, feito com seda presente também no kabuki e o uso de estruturas de bambu para criação de prisões ou castelos em cena que são inspiradas nos teatros japoneses. As maquiagens eram inspiradas nas do kabuki e nas da ópera chinesa e as máscaras foram feitas a partir da referência do teatro nô e da commedia dell’arte. Os figurinos lembravam as silhuetas presentes nos espetáculos de kabuki e eram compostos por saias longas e volumosas. O ciclo dos Shakespeares contou também com a presença constante da música em suas encenações acentuando a atuação dos atores, preparando suas entradas, saídas e os climas dos espetáculos. Neste ciclo Jean Jacques Lemêtre, músico do grupo, participa de todo o processo criativo e o papel da música nos espetáculos da companhia passa a ser diretamente associado à forma como este elemento está presente nos espetáculos de kabuki devido principalmente à forte relação da execução da música com o trabalho dos atores. O uso de materiais luxuosos e de extrema beleza presentes nas encenações e a ideia oriental do “alargamento” do tempo são ainda outros pontos de contato existentes entre estas encenações e o pensamento teatral oriental. O Théâtre du Soleil ao representar em certas ocasiões os três espetáculos em sequência estabelecia tempos de representação parecidos com os propostos por algumas tradições orientais, como por exemplo o kathakali, chegando a aproximadamente dez horas de duração. É interessante notar que o Oriente que primeiro surgiu para a diretora como lugar “encantado” e misterioso antes da realização de sua viagem, só se fez realmente presente como inspiração direta para suas criações dezoito anos depois neste ciclo de espetáculos. Neste as tradições orientais tidas como referência têm como principal função ajudar o grupo a redescobrir o tesouro teatral ocidental que 810 são os textos de Shakespeare e auxiliar na descoberta de uma forma física, distante da estética realista, para que a encenação se concretize. Estas funções exercidas pelas tradições orientais revelam que o grupo busca no Oriente ferramentas e conhecimentos para redescobrir o teatro e para melhor executar seus projetos, tratase de um interesse nestas tradições que é diretamente aplicado na prática do grupo e não em uma investigação para copiar ou reviver uma outra tradição. O espetáculo seguinte criado pelo grupo foi L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge (A história terrível porém inacabada de Norodom Sihanouk rei do Camboja) de 1985. Esta peça contava vinte e quatro anos de história do Camboja (de 1955 a 1979), tendo como personagem principal o príncipe, depois rei, Norodon Sihanouk. O espetáculo mostrava o golpe de Estado ocorrido em 1970 no país que levou os Khmers vermelhos ao poder e, consequentemente, Sihanouk ao exílio em Pequim, descrevia a ditadura sangrenta estabelecida por estes novos governantes e finalizava sua encenação retratando o início do controle Vietnamita no país expulsando dos Khmers vermelhos do poder. A encenação começou a ser trabalhada em 1985 e foi finalizada em 1986. Os períodos de poder de Sihanouk no Camboja foram de 1941 a 1955 como rei e de 1955 a 1970 como primeiro ministro e depois de 1993 a 2004 como rei novamente. Ou seja, durante as apresentações Sihanouk ainda estava vivo (seu falecimento ocorreu em 2012) tendo ele assistido a uma das representações do espetáculo. A motivação para a montagem deste espetáculo tem forte relação com a viagem ao Oriente feita por Ariane descrita anteriormente. Ao visitar o país a diretora ficou maravilhada e descreve que era muito difícil imaginar que pouco tempo depois, (a diretora visitou o Camboja em 1964) ocorreria o genocídio de quase três milhões de cambojanos pelos Khmers vermelhos. Para a diretora a figura do rei Sihanouk representava: Drama individual no centro de um drama coletivo, ele se encontra no coração de uma das tragédias mais importantes do século XX, o massacre do povo khmer, e é vítima de um destino político mundial, jogado entre os americanos, os chineses, os russos e os europeus. Além disso, rei de poder divino, ele abdica para se apresentar às eleições se tornando assim a metáfora da entrada do Oriente na era democrática moderna. A escolha deste assunto satisfazia o problema fundamental do Théâtre du Soleil de religar Oriente e Ocidente, noções já caducas diante do caráter mundial da 811 política e da economia do século XX (QUILLET, 1999, p. 90). Falar da história do Camboja por meio da figura do rei Sihanouk para o grupo representava principalmente descrever a influência do Ocidente no Oriente, uma vez que os acontecimentos históricos ocorridos no país descritos na peça foram influenciados por questões políticas mundiais. Além disso, pelo fato do personagem protagonista do espetáculo representar uma importante figura histórica e estar ainda vivo durante as encenações, o espetáculo representava uma tentativa de fazer o teatro falar à sua contemporaneidade, de ligar passado e presente assim como de ligar Oriente e Ocidente. Uma das características Orientais existentes nesta peça foi a presença simultânea, em cena, de personagens representando figuras mortas e de outros representando figuras vivas. Existiam duas funções dramáticas exercidas por estes personagens “mortos” na peça. A primeira era exercida pelo personagem do pai de Sihanouk que já iniciava a peça morto e tinha a função de desenvolver as ações internas da peça, pois ouvia as confissões de seu filho e o aconselhava. Para tal personagem o ator utilizou figurino e máscara influenciados pelas marionetes e pelos atores do Camboja que atuavam nas grandes epopeias do Ramayana ou do Mahabharata. A segunda função era exercida pelos personagens “mortos” nos quais o público assistia a suas mortes durante a encenação. Estes concretizavam teatralmente a ponte entre o passado e o presente, entre o fato histórico e o público do espetáculo, pois falavam diretamente com os espectadores “agindo sob o mundo real a partir desses diálogos” (QUILLET, 1999, p. 91). Quillet, associa esta segunda categoria de personagens mortos a tradição teatral japonesa do teatro nô: Como os shite no teatro Nô, eles trazem de volta a alma não aliviada mas, ali onde o shite, cedendo à insistência do waki, obtêm a benção eterna depois de ser liberado de seus tormentos - revivendo sua passagem para a morte uma última vez -, eles não encontrarão a paz ao menos que a emoção motivada pelo drama no coração dos vivos faça-os se levantarem, para impedir na realidade tragédias parecidas (QUILLET, 1999, p. 91). A autora também enumera em sua análise desta peça elementos concretos presentes nos espetáculos que eram ecos de algumas tradições orientais, são eles: a presença no espetáculo de sombrinhas acompanhando os personagens mais 812 importantes, o deslocamento de alguns personagens da peça que lembrava a maneira como as personagens femininas da ópera chinesa caminham, a música de Jean-Jacques Lemêtre que continuava a fazer parte intrínseca do espetáculo acompanhando toda a encenação, a cortina presente no fundo do palco que lembrava os teatros da Indonésia como o topeng e o wayang wong e o cenário feito em madeira que também remetia à cena oriental. (QUILLET, 1999) L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge foi a primeira contribuição dramatúrgica que Hélène Cixous fez ao Théâtre du Soleil e representou o desejo de Ariane Mnouchkine, descrito por Quillet de “Não mais se referir ao Oriente como simples depósito de ferramentas teatrais, mas também como território político contemporâneo” (QUILLET, 1999, p. 89). Ou seja, apesar de contar com referências orientais concretas e formais, sendo elas o teatro de sombra do Camboja e as máscaras balinesas topeng a principal relação estabelecida com o Oriente neste espetáculo foi dramatúrgica. O próximo trabalho do grupo foi o espetáculo L’indiade ou l’inde de leurs rêves (A Indíada ou a Índia de seus sonhos). Esta peça começou a ser trabalhada em 1987 e teve suas apresentações realizadas em 1988. Segundo texto escrito por Hélène Cixous para o Théâtre du Soleil, este espetáculo buscou retratar a comunidade indiana. Nas palavras de Ariane: No começo, nós queríamos fazer um espetáculo sobre Indira Gandhi, cujo assassinato nos parecia revelador da situação da Índia na época. Fomos então para lá, no seu rastro, e nos demos conta de que ela não encarnava o que se passava em seu país. Seu assassinato, sim; ela, não. Para entender a história da Índia, deveríamos trabalhar pesquisando sobre Nehru, seu pai, Mahatma Gandhi e os combatentes pela liberdade, os Freedom Fighters. A geração de antes. Assim que nós decidimos isso, os personagens surgiram do nada. Estávamos lidando com esses gigantes que o teatro as vezes exige. Então, com alguns atores, fizemos uma segunda viagem, e encontramos sobreviventes do movimento pela independência, companheiros de Gandhi e de Nehru. Uma pesquisa, uma busca, durante a qual achamos grandes heróis, pequenos heróis e pessoas horríveis, já sabíamos que virariam seres de teatro (PASCOUD, 2011, p. 154). O espetáculo, de maneira geral, abordava a descolonização ocidental no Oriente através da independência da Índia, também retratava a divisão violenta deste país logo após sua independência, os confrontos fratricidas entre os hindus, 813 sikhs e muçulmanos e a criação do Pakistão. Segundo a diretora, a peça era uma “metáfora de todas as divisões e separações que nos esperam a cada dia” (PASCOUD, 2011, p. 155). Teatralmente esta história foi representada por um coro composto por personagens importantes da Índia moderna tendo como corifeu Gandhi. Tratava-se, porém, de um coro complexificado porque ele não testemunhava a ação ocorrida na peça, como tradicionalmente, mas a executava, era composto pelos agentes da história. Além disso, seus componentes não se configuravam como uma unidade sendo o coro composto por personagens opositores e divergentes. A partir desta referência grega o grupo encontrou uma forma teatral para representar as divisões internas do país e, por meio do papel do corifeu, interpretado por Gandhi, que tinha a função de reunificar o coro disperso e de reconectar as partes da nação que se opunham, a companhia retratou a delicada situação política da Índia. A música de Jean Jacques Lemêtre acompanhou toda a peça e era tocada ao vivo durante todas as apresentações estando diretamente conectada com o trabalho dos atores. O espaço cênico de L’indiade se manteve o mesmo de Sihanouk, porém, ele contava com uma passagem para entradas e saídas as vezes acessada por uma ponte móvel, metamorfose da ponte presente nos teatros nô, e em seus elementos o cenário continha referências hindus e islâmicas, religiões divididas depois da independência da Índia (QUILLET, 1999, p. 93). Neste espetáculo não havia uma forma precisa de teatro oriental tida como base de trabalho pois Mnouchkine acreditava que o cotidiano indiano era suficientemente teatral e por isso não tinha necessidade de se basear em uma tradição oriental especifica para definir a forma do espetáculo. Para se aproximarem e para melhor compreenderem a cultura indiana duas viagens foram feitas ao país, como descrito pela diretora, uma delas por Mnouchkine e Cixous e a segunda pela dramaturga e pela diretora acompanhadas por alguns atores no início do processo criativo do espetáculo. Estes dois últimos espetáculos descritos revelam uma outra função da 814 influência oriental no trabalho do grupo, neles a dramaturgia é o principal ponto de contato com o mundo oriental, o que mostra um aprofundamento da relação do grupo com tais referências uma vez que a companhia passa a olhá-las não só como fonte de referências formais para o trabalho da encenação e dos atores, mas como tema social e político a ser tratado e discutido. A próxima realização do grupo foi o ciclo de espetáculos chamado Les Atrides (Os Átridas) composto pelas peças: Iphigenie à Aulus (Ifigênia em Áulis) de Eurípedes, Agamemnon, Les Coéphores (As Coéforas) e Les Eumènides (As Euménides), trilogia que compõe a Orestéia de Ésquilo. Estes espetáculos foram montados na ordem em que foram citados sendo a totalidade do trabalho ocorrida entre 1990 e 1993. A direção e a encenação deste ciclo aprofundou a relação do Soleil com algumas tradições teatrais do Oriente, pois para estas encenações e para a criação dos coros gregos o grupo se baseou em danças balinesas, danças folclóricas do Cáucaso e em tradições indianas como kathakali, kûtiyattam e bharata natyam. Além das danças, o cenário do espetáculo também se inspirava em formas orientais. Ele era todo feito em madeira, formado por três paredes que fechavam as laterais e o fundo do palco com alguns desníveis que possibilitavam a passagem do coro, no centro da parede do fundo da cena havia uma porta de duas folhas usada para as entradas e saídas mais importantes e toda a área central de atuação era vazia, lembrando os palcos orientais. Os poucos objetos usados em cena eram trazidos, quando necessários, pelos servidores de cena, e faziam com que a encenação nos lembrasse o kathakali, uma vez que como nesta tradição os atores deveriam suprir a falta de cenário e de objetos pela sua atuação. Buscando fugir do estereótipo do uso de máscaras presente nas tragédias gregas, Mnouchkine utilizou no coro uma maquiagem-máscara inspirada na maquiagem do kathakali. Os atores ao possuírem estas maquiagens como referências criaram as suas tornando visível algumas pequenas particularidades diferentes em cada membro do coro. O figurino e a maquiagem foram trabalhados de forma que de longe o coro transmitisse uma ideia de unidade e semelhança, 815 porém de perto percebia-se que este era composto por indivíduos diferentes entre si. Neste ciclo de peças o Théâtre du Soleil estabeleceu com o Oriente a mesma relação que criou com os conhecimentos existentes acerca do teatro grego antigo. Assim como não pretendeu fazer um trabalho arqueológico, ou seja, de uma pesquisa de reconstituição das formas gregas de atuação, as traições teatrais orientais também não pretenderam ser copiadas pelo grupo, elas serviram de inspiração para que a companhia encontrasse sua própria forma. Já no trabalho direto com o texto dramático observa-se uma relação diferente nesse processo de criação. Neste espetáculo houve um detalhado trabalho de tradução para os quatro textos apresentados, sendo dois feitos por Ariane e dois por Hélène Cixous. Claudine Bensaid traduziu para o francês palavra por palavra da versão mais antiga que tiveram acesso em grego dos textos e, a partir deste trabalho Mnouchkine e Cixous fizeram as traduções francesa das tragédias usadas no espetáculo. Dessa forma a diretora buscou conectar-se o máximo possível com o texto original e com a potência dramática que poderia ter sido perdida. Neste ciclo no primeiro pavilhão de chegada da Cartoucherie havia uma espécies de instalação com estátuas que simulavam terem acabado de serem descobertas, como um campo de escavações arqueológicas. Estas representavam as figuras que depois os espectadores reconheceriam no coro do espetáculo. Tais figuras eram uma mistura de referências orientais e da Grécia antiga, não podendo ser classificadas como provenientes de um território ou época específica de nosso planeta. Uma das principais funções desta instalação era a de incitar a criação de um mundo imaginário no pensamento do espectador antes do início do espetáculo. O Théâtre du Soleil até hoje trabalha com esta preparação do público antes deste adentrar a sala de espetáculo seguindo, dessa forma, princípios que se assemelham a alguns presentes em certas tradições orientais. Mnouchkine acredita na importância da preparação do espectador para que este entre em contato com o espetáculo de forma mais profunda, para isso o grupo muda a decoração do galpão de entrada da Cartoucherie e o organiza expondo livros, fotos e referências ligadas a cada espetáculo que será apresentado de forma que os espectadores possam 816 começar a ser transportados para o mundo ficcional que em breve assistirão. Apesar de Mnouchkine não mostrar, como Artaud, identificar-se com as dimensões sagradas presentes em diversas tradições orientais, a importância dada a ritualização do espaço cênico e da Cartoucherie como um todo é o ponto que mais aproxima o grupo, guardadas as devidas proporções, da dimensão espiritual presente em algumas destas tradições. Este ciclo de peças quando encenado em sequência no mesmo dia, assim como as representações totais do ciclo Les Shakespeares montadas pelo grupo, também lembravam o ritmo de narração das grandes epopeias atuadas nos teatros orientais devido a sua duração. Neste trabalho as tradições orientais têm como função, assim como no ciclo de espetáculos de Shakespeare, o distanciamento capaz de revelar e potencializar a dramaturgia ocidental e além disso, nestas peças se mostram também como uma referência formal fundamental para a redescoberta de uma maneira de existência cênica para o coro grego. Em seguida a companhia criou La Ville parjure ou le réveil des Érinyes (A cidade do perjúrio ou o despertar das Erínias) encenado em 1994. O grupo estava trabalhando em um espetáculo que tratava da queda do império soviético quando decidiu-se mudar completamente o rumo dos ensaios e tratar do escândalo ocorrido na França durante a década de 80 chamado L’affaire du sang contamine (a questão do sangue contaminado). Tal escândalo tratava do caso real acontecido na França de que sangue contaminado pelo vírus HIV foi disponibilizado para transfusão levando a óbito centenas de crianças e adultos. A mudança de tema para a criação do próximo espetáculo da companhia foi impulsionada pois em 1994 ocorreu o julgamento dos médicos e políticos responsáveis pelo ocorrido. O caso que muitas vezes foi retratado em jornais como um “acidente” mostrava, sob o ponto de vista do grupo, o descaso do ministério da saúde e do poder público diante da sociedade, por isso, a companhia buscou questionar e tornar pública suas reflexões a cerca deste acontecimento extremamente atual da sociedade francesa da época, por meio de seu espetáculo. Nas palavras de Hélène 817 Cixous: O tema da contaminação contagiou todos os círculos da sociedade. Um acidente? Mas o teatro não tem por motor e por razão de existir ser um vigia? Ele não foi inventado para questionar o acidente, para revelar os segredos do “acidente”? Para nos mostrar que na verdade estamos cegos, quando pensamos enxergar? (CIXOUS, 2010). Para retratar este episódio da história francesa o grupo se inspirou em um cemitério da cidade do Cairo conhecido como “A cidade dos mortos” onde os túmulos, diferentemente dos túmulos ocidentais são uma espécie de casa capaz de abrigar a família do falecido durante 40 dias (tempo de duração do luto). Este cemitério, que existe até hoje e se estende por mais de 10 quilômetros ao longo de uma autoestrada onde vivem oficialmente cerca de 1 milhão de pessoas e extra oficialmente certa de 2 milhões, foi tomado como referência pois representava uma maneira singular de convivência da vida com a morte. No teatro o cemitério foi transposto no cenário do espetáculo, composto por um palco praticamente vazio rodeado por túmulos-casas nas laterais direita e esquerda e por um portão que representava a entrada do cemitério localizado no fundo da cena, além destes elementos no meio do palco existiam três tumbas não identificadas. Em uma entrevista Sophie Moscoso, assistente de direção de Ariane Mnouchkine, revelou que elas representam as tumbas de Ésquilo, Shakespeare e Hokusai colocadas como homenagem a estes três mestres. Da mesma forma que em Les eumenides assistia-se a um tribunal de julgamento de Orestes pelo seu matricídio, nesta peça um tribunal sobre um crime de estado se instaurava, nele a personagem principal buscava justiça por ter tido seus dois filhos mortos devido ao sangue contaminado. Por meio desse julgamento oficial o espetáculo pretendia trazer luz ao caso real francês, não no sentido jurídico, mas espiritual e moral. Segundo Quillet, esta peça, extremamente baseada nas tragédias gregas, utilizava-se dos recursos oferecidos pelo teatro oriental, neste caso principalmente do teatro nô, para ser capaz de colocar em cena personagens que, hoje e na época da encenação, não eram tão facilmente representados como o eram na época das tragédias gregas, sendo eles: o Destino, os Deuses, a Noite e neste caso também as 818 divindades chamadas Erynes. Para a autora a referência oriental citada auxiliou o grupo no sentido de evitar uma espécie de formalismo frequentemente associada a representação desses personagens abstratos. Neste último espetáculo descrito observa-se um processamento de todas as referências teatrais orientais usadas pelo grupo nos espetáculos precedentes culminando na elaboração de uma linguagem própria da companhia. A função das tradições orientais nesse espetáculo é, portanto, a de capacitar o grupo a criar um discurso e principalmente uma forma cênica própria e contemporânea de retratar o que é chamado por Quillet de tragédia contemporânea. Por meio destes exemplos, percebe-se que a relação do grupo com as diversas tradições teatrais orientais com as quais entrou em contato neste período de sua trajetória é complexa e capaz de exercer diferentes funções. Françoise Quillet em seu livro L’Orient au Théâtre du Soleil defende que as tradições orientais foram gradativamente sendo abordadas pela companhia com a função definida de se encontrar uma linguagem própria para o grupo que o tornasse capaz de retratar cenicamente a realidade que o cercava, para a autora “Ariane Mnouchkine se inspira no Oriente como Van Gogh ou Gaugin se inspiraram nas estampas japonesas, para alimentarem suas próprias criações que são completamente pessoais e originais” (QUILLET, 1999, p. 101). Acreditamos que por se debruçar em determinadas tradições orientais para redescobrir princípios teatrais e a sua linguagem própria o Théâtre du Soleil exemplifica uma maneira singular de se relacionar com o Oriente principalmente pautada na livre inspiração, na recriação a partir de um exemplo e na reformulação de tradições. Notas 1 A partir do momento em que se manifesta o (mágico) Se, o ator se transporta do plano da vida real para o plano de uma outra vida, criada e imaginada por ele. (...) Isto não significa que deva se entregar a algo parecido com uma alucinação, (...) muito pelo contrário. (...) Deve perguntar-se: “Se tudo isso fosse real, de que forma eu reagiria? O que eu faria?” (...) E então, normalmente e naturalmente, (...) este Se funciona como uma alavanca que lhe permite alcançar um mundo (...) de criatividade. (STANISLAVSKI, 2001, p.125) 819 Referências Bibliográficas FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine – Erguendo um monumento ao efêmero. Tradução de Marcelo Gomes. São Paulo: SENAC, 2010. MNOUCHKINE, Ariane e PASCOUD, Fabianne (ent.). A Arte do Presente : Entrevistas com Fabianne Pascoud. Tradução de Gregório Duvivier. Rio de Janeiro : Cobongo, 2011. MNOUCHKINE, Ariane. Catalyse, Paris, n. 4, junho, julho e agosto, 1986. NEUSCHÄFER, Anne. De l’improvisation au rite : l’épopée de notre temps. Le Théâtre du Soleil au carrefour des genres. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002. PICON –VALLIN, Béatrice. L’Orient au Théâtre du Soleil : le pays imaginaire, les sources concrètes, le travail original - rencontre avec Ariane Mnouchkine et Hélène Cixous, 2004. Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditionsorientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/l-orient-au-theatre-du-soleil-le?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. QUILLET, Françoise. L’Orient au Théâtre du Soleil. Paris : Harmattan, 1999. SERRES, Olivier. Mnouchkine et Shakespeare à la Cour. Le Provençal, Paris, 6 de Julho de 1982. STANISLAVSKI, Constantin. Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Aline de Almeida Olmos Formada em Artes Cênicas na UNICAMP, realizou intercâmbio acadêmico na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3 onde se familiarizou com o trabalho do Théâtre du Soleil, em seu currículo possui mais de dez cursos realizados com atores da companhia e atualmente trabalha em sua dissertação de mestrado intitulada: O Théâtre du Soleil e as tradições teatrais orientais: um estudo sobre a relação entre o espetáculo Tambours sur la digue e o Kabuki. 820 A ARQUITETURA JAPONESA DEPOIS DO TSUNAMI Lorea Ariadna Ruiz Gómez - Universidad de Málaga; Universitat Oberta de Catalunya e USP RESUMO: O objetivo desta pesquisa é apresentar um estudo sobre o desenvolvimento arquitetônico observado na reconstrução do Japão após o terremoto que, seguido de um tsunami de amplas proporções, provocou uma catástrofe nuclear ao atingir a usina de Fukushima. O estudo busca evidenciar o papel do design como norteador de novos modelos visuais para os projetos de reconstrução e reurbanização das cidades japonesas. A fim de ilustrar o tema em questão, será utilizada a exposição Arquitectura Contemporánea Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami, realizada em março de 2012, na cidade de Barcelona – Espanha. Dentre as inúmeras abordagens arquitetônicas possíveis, pode-se vislumbrar um conjunto comum de princípios orientadores nos projetos analisados: um tradicionalismo presente tanto em materiais e técnicas de construção quanto nos conceitos semióticos que caracteriam a “aparência” japonesa. Outro parâmetro observado é a organicidade rigorosa, em que fica claro que o verdadeiro leitmotiv dos projetos é o uso e o aproveitamento das energias naturais em benefício da população. Palavras-chave: Design; Aparência japonesa. Tradicionalismo;.Energias naturais; Conceitos semióticos; RESUMEN: El objetivo de esta investigación es presentar un estudio sobre el desarrollo de la arquitectura de reconstrucción japonesa tras el Tsunami y la fuga nuclear de la central de Fukushima. Así pues, dentro del estudio se busca evidenciar el papel del diseño como el motor para la reconstrucción y reurbanización de las ciudades japonesas. Para ilustrar el tema en cuestión, tomaremos como eje central la exposición Arquitectura Contemporánea Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami, realizada en marzo de 2012, en la ciudad de Barcelona - España. La estructura que seguiremos será la que desarrolló la Escuela de Arquitectos de Cataluña. Entre los muchos y variados enfoques arquitectónicos, se puede discernir unos principios rectores comunes en cada uno de los proyectos. En este sentido, podemos observar la existencia de cierto grado de tradicionalismo, tanto en los materiales y técnicas de construcción como en los conceptos semióticos, así como en las fórmulas que despiertan una “apariencia” japonesa. Otro de los parámetros que veremos que se sigue en este tipo de arquitectura es el de la rigurosa organicidad. Como observaremos, éste es el verdadero leitmotiv de todos los proyectos, el uso y el aprovechamiento de las energías naturales que están al servicio de la población. Palabras clave: Diseño. semióticos.Apariencia japonesa. Tradicionalismo. Energías naturales. Conceptos Texto Em razão do aniversário do terremoto e do tsunami que arrasaram o Japão em 2011, o Colégio de Arquitetos da Catalunha organizou uma retrospectiva com os projetos de arquitetura apresentados para a reestruturação das áreas afetadas. 821 Entre os dias 08 e 31 de março de 2012, a exposição Arquitectura Contemporánea Japonesa, un año después del terremoto y del tsunami contou com um ciclo de palestras realizadas por arquitetos dos vários empreendimentos responsáveis pelas obras de reconstrução. A proposta do Colégio era aprofundar o debate em relação ao processo de recuperação do espaço e das populações assentadas no território atingido pelo terremoto. Para isso, foi instalada uma linha do tempo com os registros dos projetos executados no decurso de um ano. Dentro da grande quantidade e variedade de desenhos, foi observada uma série de ideias comuns a todos eles: por um lado, a tradição presente tanto na escolha de materiais e aplicação de técnicas de construção quanto na carga simbólica das iniciativas trabalhadas, fórmulas características da cultura do povo japonês; por outro, a estrita organicidade, identificada tanto no planejamento urbano quanto na composição e distribuição dos espaços internos de vivência –neste ponto, é importante destacar que a funcionalidade, aspecto tratado com muito zelo pela indústria japonesa, é elevada à máxima expressão nos projetos apresentados. Entretanto, o verdadeiro leitmotiv de todas as ações registradas primava pelo uso e aproveitamento das energias naturais em favor das necessidades da população (CAPITEL, 2010, p. 28). A abordagem cronológica da exposição revela que os primeiros planos de ação apresentados eram voltados à realocação e acomodação das famílias afetadas; foram instituídos módulos para que elas pudessem conservar espaços de intimidade dentro dos pavilhões de acolhimento e, uma vez limpas as áreas destruídas, ergueram-se núcleos urbanos para que a população pudesse tornar a assentar-se. A maior parte dessas iniciativas era operada tendo em vista o conceito da bricolagem. Temos o caso do projeto Heartquake Base Camp, idealizado pela Heartquake Association, que consiste em uma concentração de edifícios de baixa densidade, recicláveis e de carácter temporário, cujo objetivo é melhorar as condições de vida dos afetados pelo desastre. 822 O projeto Gassho do arquiteto Koji Kakiuchi uniu a simplicidade de formas à tradição da cultura japonesa. Sobre os concretos dos edifícios arrasados da província de Iwate, Kakiuchi propôs instalar um espaço de refúgio e de recreação para os sobreviventes. A proposta foi idealizada com técnicas artesanais nipônicas: a partir do rearranjo de tábuas de madeira, por exemplo, foi criado um telhado para a passagem das águas, uma estrutura simples e muito utilizada na arquitetura japonesa contemporânea. A forma é valorizada pela carga simbólica, uma vez que a estrutura faz alusão à posição das mãos no momento da oração. Também os escombros de concreto das casas destruídas foram utilizados para criar zonas de cultivo: cabines formadas pela sobreposição de tábuas de madeira permaneciam ancoradas sobre habitações e o espaço restante era irrigado para o plantio e a regeneração da terra. Figura 1. O arquiteto Koji Kakiuchi em seu projeto Gassho, em Iwate No âmbito do urbanismo, deve-se destacar o plano executado três meses após a catástrofe na área pesqueira de Iwate y Miyagi, afetada pelo terremoto do leste. O projeto, denominado Takadai (high land) Project, consistiu na árdua tarefa de transladar populações da zona agrícola para uma zona mais elevada, um monte próximo ao centro urbano. Para tanto, foi realizado um amplo estudo, já que era necessário levar em conta fatores como a salinidade do terreno para o cultivo. 823 Figura 2. No plano do urbanismo:Takadai (high land) Project Seis meses após o desastre, surgiu o grupo Young Architects Plaza. Jovens arquitetos, estudantes e voluntários se reuniram para discutir planos de reconstrução das áreas mais afetadas pelo terremoto, pelo tsunami e pela radiação que se espalhoudevido ao derretimento dos reatores da usina nuclear de Fukushima. Trabalhando junto aos abrigos a fim de conhecer melhor as necesidades da população, o grupo também consolava e estimulava os sobreviventes. Nesse mesmo período, os estudantes de arquitetura da Universidade de Keio – SFC Campus – idealizaram o projeto Fish Arch para reconstruir a cidade de Kesennuma. A tarefa consistia em criar um arco simbólico, uma ponte emblemática que, para além de recordar a tragédia, celebrasse o poder de superação do povo de Kesennuma, fortalecido pelo caráter gregário da sociedade japonesa. A estrutura do arco foi projetada em lâminas de madeira reciclada (proveniente das muitas toneladas recolhidas após a catástrofe) em formato de peixes que simbolizam o principal meio de sustento da comunidade: a pesca. Tal como peças de um quebracabeça, os peixes foram talhados com ranhuras que possibilitavam o encaixe para compor a ponte. As medidas estimadas para o esqueleto do arco foram de 2 metros de altura por 4 de largura. Durante o mês de agosto de 2011, 5 meses após o terremoto, o arco foi exposto em diferentes pontos da cidade e, uma vez encerradas as festas da Páscoa japonesa, as peças foram distribuídas entre os habitantes de Kesennuma para 824 reforçar os laços de união da comunidade. Figura3. Fish Arch: criação de um arco simbólico Um dos projetos mais atrativos e emocionantes foi o Ark Nova, desenvolvido pelos arquitetos Arata Isozaki e Anish Kapoor. Notória pela originalidade, a obra foi planejada para o aniversário do desastre e consistiu em um anfiteatro portátil, de estrutura inflável, ovalada, com cerca de 500 a 700 assentos. Em princípio, o anfiteatro nômade foi projetado para o Festival de Lucerna, mas foi decidido que seria magnífico apresentá-lo às populações da região de Higashi-Nihon, devastadas pelo tsunami de 11 de março. Projetado para receber concertos de música clássica, jazz, programas de dança e apresentações multimídia, o desenho foi fundamental para o planejamento dessa cápsula musical, uma vez que deveria combinar estética e ótimo aproveitamento acústico. O responsável por esses detalhes foi o especialista em acústica, Yasushisa Toyota de Nagata. 825 Figura4.Ark Nova,projeto de Arata Isozaki e Anish Kapoor Figura5.Inujima Art Project Seirensho é um projeto do arquiteto Hiroshi Sambuichi e do artista Yukinori Yanagi A dinâmica seguida pelos arquitetos e urbanistas japoneses tem sido a do reaproveitamento, da reciclagem, tanto dos recursos naturais e suas propriedades energéticas quanto dos edifícios destruídos pela catástrofe. Esse princípio do reaproveitamento pode ser identificado em um projeto muito sugestivo de 2008 que, embora esteja fora do marco cronológico que orienta este estudo, constitui um ótimo exemplo para as propostas que têm servido à reconstrução do Japão após o terremoto. Inujima Art Project Seirenshoé uma iniciativa do arquiteto Hiroshi Sambuichi em parceria com o artista Yukinori Yanagi, que pretendia reabilitar uma refinaria de cobre localizada na zona do Mar Interior de Seto. A refinaria foi inaugurada em 1999; 826 dez anos depois, foi abandonada por conta do desmoronamento dos preços do cobre e virou um museu autossuficiente. As chaminés e os tijolos Karami encontrados na fábrica foram reaproveitados e a estrutura utiliza as energias naturais, tais como a solar e a geotérmica. Além disso, foi realizado um estudo do meio ambiente nos arredores da fábrica para verificar quais plantas melhor se adaptariam a Inujima a fim de integrar um sofisticado sistema de purificação de água. Todo o projeto, que abriga as obras de arte permanentes e o próprio edifício, gira em torno de um novo conceito de sociedade que preza pelo reaproveitamento e reciclagem de materiais e recursos, deixando claro que a revitalização regional é um processo factível por meio de quatro pilares que, neste momento pós-desastres, são debatidos com grande receptividade pela comunidade científica japonesa: patrimônio industrial, arquitetura, arte e meio ambiente. Essas percepções fomentam o eixo básico do que desenvolvido na arquitetura nipônica a partir de um contexto de reconstrução, de maneira que a necessidade e a tradição cultural do país impõem a manutenção da natureza e de tecnologias capazes de aproveitar seus recursos, tal como haviam planejado os Metabolistas (MARTÍN, 1990, n. 12, p. 15-21) japoneses em meados do século XX, que enxergavam o desenho e a funcionalidade da cidade e dos edifícios como paradigmas orgânicos, inseridos em um processo biológico (KRIEGER, 2005, n. 87, p. 221-247). Assim, não podemos senão admirar um povo que sofreu tamanho revés por conta de um açoite da natureza e que, enrodilhado ainda em um longo e árduo período de recuperação, entendeu que a única fórmula capaz de sanar suas feridas se dá por um processo de catarse entre o ser humano e a natureza. Referências bibliográficas Livros BANHAM, R. Megaestructuras: futuro urbano del pasado reciente. Barcelona: Gustavo Gili, 2001. CAPITEL, A. 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Nueva imagen de la ciudad”. 830 FU BAOSHI E UMA ANÁLISE DA PINTURA MODERNA Beatriz Faria Santos - UNIFESP Orientadora: Michiko Okano - UNIFESP RESUMO: Fu Baoshi é um famoso mestre chinês do século XX. Sua obra reflete a ânsia do moderno, em que a inovação deveria ser a força motriz do artista. Seu apelo estético da “arte de ação”, na qual ele mesclava elementos tradicionais chineses a elementos expressionistas e impressionistas nos mostram que Baoshi, além de ser um artista versátil, pôde resolver com precisão o embate entre as técnicas de pintura do Ocidente e do Oriente, criando assim um híbrido que dialoga habilmente entre os dois polos. Desta maneira, podemos utilizar sua obra como ferramenta de um possível diálogo e análise da pintura moderna, já que Baoshi cria novas técnicas, mas não abandona sua criação artística original. Iremos compará-lo com Monet, que assim como o chinês, inova em sua maneira de pintar, mas permanece fiel às suas origens artísticas. Palavras-chave: Fu Baoshi, Monet, Moderno, Técnica. ABSTRACT: Fu Baoshi is a famous Chinese master of the twentieth century. His work reflects the eagerness of modern, where innovation should be the driving force of the artist. Its aesthetic appeal of "action art", in which he blended traditional Chinese elements to expressionist and impressionist elements show us that Baoshi, besides being a versatile artist, could accurately resolve the clash between Western painting techniques and East, creating a hybrid skillfully dialogue between the two poles. This way, we can use his work as a tool for dialogue and analysis of all modern painting since Baoshi creates new techniques, but does not abandon his artistic creation. We will compare it with Monet, who like the Chinese, innovates its way to paint but still remains true to their artistic origins. Key words: Fu Baoshi, Monet, Modern, Technique. Fu Changsheng nasceu em 1904 sendo oriundo da província de Jiangxi. Sua educação informal começou aos doze anos, enquanto trabalhava como ajudante em uma loja de cerâmicas. Aos 18 anos, mudou seu nome para Fu Baoshi que em uma tradução literal significa o que “abraça as pedras”, o que nos mostra seu envolvimento, ainda que precoce, como escultor profissional. Começou então a estudar artes ainda na província de Jiangxi, na escola de Jiangxi Li e acabou conhecendo XuBeihong, que viria a ser seu grande amigo e influência artística. Ainda com a ajuda de Xu, Baoshi em 1932 foi para a universidade de Belas Artes de Tokyo estudar a arte clássica chinesa e japonesa. No Japão, ele passou todo o tempo disponível estudando as técnicas clássicas da pintura e treinando sua própria técnica; onde também conseguiu realizar sua primeira exposição individual, com a 831 ajuda de GuoMoruo, literato amplamente conhecido tanto na China quanto no Japão. Em seus primeiros trabalhos é possível notar grande influência da arte moderna japonesa apesar de sua técnica mesclar traços japoneses, chineses e até mesmo ocidentais. É possível que durante o tempo em que passou no Japão Fu tenha tido amplo contato com técnicas ocidentais modernas de pintura, tais como o expressionismo e o impressionismo que neste momento faziam muito sucesso entre os artistas nipônicos. Quando voltou do Japão, Baoshi foi convidado para lecionar as técnicas japonesas e chinesas de pintura no Departamento Artístico da Universidade Central (hoje Universidade de Nanjing). Neste período, Fu Baoshi também produziu diversas pinturas e tratados artísticos. Fu era apaixonado pela China e suas paisagens. Mesmo durante suas viagens internacionais, o pintor teria comparado incessantemente as paisagens naturais do local onde se encontrava com as de seu local de nascimento. Tal patriotismo foi de grande valia durante o período da Revolução Cultural, onde Fu teria se tornado um filiado importante do Partido Comunista Chinês. Há relatos de uma grande adaptação de um poema de Mao chamado “Neve”, que o artista teria sido convidado a realizar no “The Great Hall of People” dentro do parlamento chinês. A obra, de nome “Such is the Beauty of our Rivers and Mountains” de 1955, teria sido composta por uma grande montanha coberta de neve, onde marcado em uma caligrafia leve e graciosa estariam os versos do poema de Mao. No entanto, a obra hoje está desaparecida. Vale ressaltar que apesar de fervorosamente nacionalista, Fu Baoshi conseguiu lidar de maneira harmônica todos os elementos conflitantes em sua técnica. Talvez, Fu tenha notado que não é preciso abandonar suas ideologias para buscar um instinto criativo que ditaria suas obras; instinto esse que poderia ser ligado à essência do moderno, do “fazer o novo”. Deste modo, foram criados dois grupos principais para tratar e analisar sua obra, grupos estes que consistem de três obras características: Método de Representação da Figura Humana e Método de Representação da Paisagem. 832 A presente pesquisa foi realizada baseada no conceito que o teórico e historiador da arte Giulio Argan apresenta em um de seus trabalhos, onde ele afirma que Uma história da arte só é possível e legítima se explica o fenômeno artístico em sua globalidade; não se pode fazer uma história da arte se não se admite a existência de uma relação entre todos os fenômenos artísticos, quaisquer que seja a dimensão espaço-temporal em que foram produzidos. (Argan, 1992, p. 19) A análise será feita contrapondo essencialmente a técnica e o apelo estético de Fu Baoshi e Oscar Claude Monet. Tais mestres foram escolhidos por suas grandes contribuições à pintura tanto no ocidente quanto no oriente, e à maneira como sua técnica, que invariavelmente em ambos os casos rompeu com os métodos vigentes visando buscar o novo essencial, pode ser comparada utilizando em ambos, cada um à sua maneira, seu apelo estético. O apelo estético e suas definições no contexto de Baoshi e Monet Em se tratando de Baoshi observamos que sua técnica consiste no uso habilidoso de “dots” (pontos), onde o pintor pinga o nanquim sob o papel sem o uso da cera animal, propiciando o efeito de gota ou respingo. Com esses pontos, pingados um sob os outros e o uso de nanquim mais ou menos diluído, Fu Baoshi nos dá a impressão de profundidade e perspectiva. Ele também utiliza métodos livres de traços com o nanquim e um método de criação própria que visa salpicar o nanquim sob a superfície, em uma espécie de “arte de ação”, onde o intuito de sua técnica era a execução da captação da luz do objeto sem a necessidade de semelhança à forma ou ao desenho, que se assemelha aos métodos de trabalho de artistas expressionistas e impressionista. Deste modo, posso concluir que apesar de se utilizar de temas estritamente tradicionais chineses como a composição, a técnica de Fu representa todo o seu apelo estético essencial. Apelo este no sentido de inovar atraindo o olhar do espectador, através do uso da “arte de ação” ou de seus pontos, estes que consistem em um modo totalmente não tradicional de se compor a paisagem. Utilizando tal técnica, Fu força nosso olhar em direção à sua obra, já que suas obras 833 não consistem em um traço “corte de machado” ou “patas de caranguejo” com sua tradicional composição de montanha e água. As paisagens de Fu, por muitas vezes densas e fechadas, assim como seu método livre de pintura, apelam esteticamente para o olhar do espectador que não espera encontrar tal técnica livre em um mestre chinês (ainda que moderno). Enquanto Monet apela para a tridimensionalidade de seus empastelamentos de tinta óleo na tela. Grande parte do efeito da obra de Monet se dá pelo empastelamento, já que o artista não se preocupa em reproduzir esteticamente o universo de maneira fiel. Enquanto um artista neoclássico se preocuparia em pintar uma onda se quebrando contra a praia utilizando diversos tons de azul e pintando a espuma de uma maneira que a mesma parecesse o mais fiel possível, Monet empastela a tinta nos dando a sensação da onda se quebrando, sem necessariamente representar todas as mínimas partículas de água. Método de representação da figura humana Tanto no Ocidente quanto no Oriente, a representação da figura humana é uma parte importante das temáticas compositivas da pintura. Desta forma, este tipo de composição não exclui tanto o mestre chinês quanto o europeu. É apenas interessante notar como a técnica, a estética e a composição podem se aproximar ou se diferenciar uma das outras, dependendo exclusivamente não do método criativo, mas sim do método técnico do artista. Para análise, trataremos tais obras de Baoshi: 834 Esquerda superior:Fu Baoshi, \³ó, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. Direita: Fu Baoshi,Old Man Underthe Pine Tree, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. Esquerda inferior: Fu Baoshi, Qu Yuan, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. A primeira intitulada \³ó¹, é a representação de uma jovem mulher, provavelmente aristocrática, repousando em um salão de chá. Na obra, podemos notar primeiramente a delicadeza dos traços do rosto da personagem contrastando com os traços livres e grossos de suas roupagens e do cenário. Seus cabelos são feitos também de traços livres, porém neles há um interesse estético maior já que o mesmo não foi pintado de maneira totalmente livre de intenção. Os traços são contidos pelo desenho, formando o penteado, de maneira que se tivessem sido feitos totalmente sem intenção não poderiam compor o cabelo da personagem. Podemos ainda notar suas roupagens, que consistem em camadas longas do que parece ser um quimono de cor escura, que se acumula ao chão às costas da personagem. Nestes vincos, podemos ver a “arte em ação” de Baoshi de maneira explícita. Não há vincos bem marcados e sombreados; temos ao invés disso, traços finos e grossos de nanquim diluído que nos cria a vaga sensação visual de que o quimono está naquele ponto da composição formando vincos. Ao redor, há uma total 835 falta de interesse pela perspectiva ocidental, já que a janela parece estar a uma estranha distância da personagem, perto demais para que fosse confortável sentarse a ela. Na segunda obra, intitulada Old Man Under the Pine Tree, temos a figura de um homem que se encontra ao caule de um pinheiro. Nele, podemos notar novamente os traços delicados do rosto e das roupagens, característica esta tradicional chinesa que Baoshi faz questão de enfatizar em suas obras, e o pinheiro atrás do mesmo. É curioso notar nessa obra a composição da árvore: não temos traços precisos ou sequer qualquer evidência de uma intenção formal mais realista. Nela, o caule foi feito de pinceladas grossas e rápidas de nanquim marrom postas sobre grossos pingos de nanquim escuro que nos criam a vaga impressão de profundidade. Nos galhos, há grandes borras quase totalmente diluídas de nanquim verde indicando as folhas ao fundo. Há então traços livres em nanquim preto o que nos indica que aqueles galhos e folhas estão mais á frente, perto do personagem. A terceira obra consiste em um retrato de Qu Yuan, onde a figura se destaca por um campo de vegetação baixa. Novamente, vemos os traços delicados e poucos fiéis às características humanas reais, tradicionais na arte chinesa, enquanto que a vegetação se projeta delicadamente sob a personagem em traços livres e graciosos. Após tais considerações, utilizaremos de Monet tais obras para a análise: 836 Esquerda: Oscar Claude Monet, Woman with a Parasol – Madame Monet and Her Son, 1857, óleo sobre tela, 100 cm x 81 cm, National Gallery of Art, Washington. Direita superior: Oscar Claude Monet, The Gladioli, 1897, óleo sobre tela, 60 cm x 81 cm, Institute of Arts, Detroit. Direira inferior: Oscar Claude Monet, The Red Cape, 1869-1871, oleo sobre tela, 99 cm x 80 cm, Museum of Art, Cleveland. A primeira obra, Woman with a Parasol, é composta por uma figura feminina que se projeta sob o céu em um ângulo de aproximadamente 45º se vista do solo, ou seja, de um ponto de vista formal com um olhar rebaixado. Nela, os empastelamentos nos dão a sensação do movimentando o tecido do vestido, das nuvens no céu, da vegetação baixa que toma uma parte da cena. A segunda, The Gladioli, nos mostra uma figura feminina em um jardim. Nela, o jardim se projeta sobre a personagem, e o uso de vermelho na vegetação e azul na figura humana poderia indicar um interesse em atrair nosso olhar no primeiro momento para as flores do jardim². A segunda, The Red Cape, nos mostra uma figura feminina atrás de uma vidraça. O uso do vermelho também poderia ser intencional, visando atrair nosso olhar para a personagem e não para o cenário. O que ambos os grupos tem em comum? A composição. Não somente no sentido de figura humana e fundo quase indistinto que se mesclam à personagem, como também no próprio interesse estético do papel da personagem na composição. Como por exemplo: Woman with a Parasol e \³ó se assemelham porque a figura se pronuncia em um fundo praticamente nulo além de a técnica visar enfatizar seus elementos compositivos (a técnica nas roupagens, no cabelo, no avental da senhora, na sua sombrinha) de maneira que o a própria figura dominasse o todo, se assemelham também porque Monet visa nos representar uma visão oblíqua da mulher, com seus empastelamentos que nos bloqueiam a visão exata de seu rosto, restando apenas uma vaga intenção do que ele deveria ter sido, ressaltando a experiência de olhar para o rosto da personagem e tentar imaginá-lo ao invés de simplesmente olhá-lo. Monet nos força a construir a imagem de suas feições em nossa mente, nos dando assim a possibilidade de criar uma personagem que poderá diferir da criação de outro espectador. Baoshi, por outro lado, utiliza a técnica clássica chinesa para nos descrever o rosto da personagem com traços finos e precisos. No entanto, assim como Monet, sua técnica, apesar de precisa, não nos mostra o rosto real da personagem, já que é sabido que rostos muitas vezes são similares na arte chinesa por causa de sua técnica muito peculiar. Dessa maneira, 837 temos que imaginar não somente como Woman with a Parasol seria, como também como \³ó seria. O desenho formal das personagens também pode se assemelhar. Em ambas as obras as senhoras olham para o espectador por cima dos ombros, de maneira indireta, quase como se colocassem uma barreira entre elas e a pessoa que as contempla. Ambas também parecem ter sido flagradas em um momento de grande intimidade, dado o gesto delicado e tímido de cabeça esboçado por Baoshi em \³ ó e ao olhar quase surpreso que Monet aplica em Woman with a Parasol. O fundo indistinto também se assemelha; enquanto Woman with a Parasol foi pintada oposta ao céu e à uma vegetação comum, \³ó foi posta em um salão de chá sem um interesse estético definido além de servir majoritariamente de fundo. Porém, se observamos a técnica, podemos notar que o apelo estético que cada artista utilizou não se corresponde de maneira nenhuma. Enquanto Monet visou empastelar o vestido de Woman with a Parasol e seu rosto, dando à personagem uma áurea quase etérea, sem expressão, onde o objetivo do espectador é muito mais sentir de fato o ambiente no qual a figura está imersa do que efetivamente compreender a figura, além de mesclá-la ao fundo pela cor e pelos próprios empastelamentos da personagem, Baoshi nos dá \³ó onde a figura se destaca por ter um desenho mais trabalhado (apesar da “arte de ação” das roupagens da mesma) que se sobrepõe à falta de interesse perspectivo do fundo. Desta maneira, Monet visa encobrir sua figura, mesclando-a com o fundo, enquanto Baoshi visa ressaltar sua figura, colocando-a em um fundo neutro e sem interesse estético. Desta forma, podemos esboçar que o objetivo técnico compositivo de Baoshi é muito semelhante ao de Monet, visto que seu desenho é feito de maneira que aja uma barreira quase natural na relação espectador-personagem, além do fundo que possui o interesse estético de se parecer nulo em relação à personagem. Porém, podemos também esboçar que a o objetivo formal das personagens é diferente, assim como a técnica utilizada para a representação. Enquanto Baoshi eleva sua personagem, Monet a encobre. 838 Em se tratando das segundas obras, Old Man Under the Pine Tree de Baoshi e The Gladioli de Monet, podemos notar várias diferenças compositivas essenciais. Enquanto em Old Man Under the Pine Tree o pinheiro indistinto serve apenas para elevar o personagem e fazer com que nossa atenção se foque neste, o jardim de The Gladioli encobre a personagem, de maneira ainda mais agressiva. O uso de cores, a grande profusão de plantas diferentes que se amontoam em um canto da tela, os empastelamentos feitos com maior profusão sobre as mesmas além do fundo que segue o padrão de plantas, a personagem só se destaca pela cor azul, pois em relação à composição geral seu local na perspectiva de ponto de fuga único faz com que a mesma acabe do tamanho que as plantas no jardim do primeiro plano. O uso da cor é curioso de se notar, já que é sabido que a cor azul é utilizada na pintura para afastar o olhar, enquanto a vermelha para atraí-lo. Desta forma, ao analisarmos todos estes elementos, é correto dizer que a intenção formal de Monet era esconder a personagem. Em contrapartida, Baoshi ressalta seu personagem dando a ele um fundo branco e uma árvore que, ao ser feita com uma técnica que não visava a representação fiel da forma, conduz nosso olhar ao personagem humano. Esta talvez seja a diferença compositiva principal entre as duas obras. Podemos notar também a tradicional composição “limpa”, com grandes espaços em branco e um aglomerado compositivo em um dos cantos da pintura que marcam a técnica chinesa tradicional e que Baoshi emprega em sua obra, contrastando com a obra de Monet, em que toda a composição é “pesada” pela grande profusão de elementos que se encontram no primeiro e no último plano. Na técnica, não há nada de novo a se ressaltar. As personagens de ambas as obras se assemelham porque podem ter sido criadas com concepção estética semelhante: o fato de que a personagem de Monet se encontra no plano intermediário da obra, o uso do empastelamento e a cor de seu vestido a esconde do olhar do espectador, enquanto que o traço tradicional de Baoshi, ainda que bem revelado pela técnica de traços livres com o pincel e com o nanquim, não nos diz quem de fato é a pessoa por trás do traço tradicionalista. Desta maneira, ambas se assemelham: uma por estar encoberta pela composição e outra por estar encoberta 839 pela técnica. Método de Representação de Paisagem Para a análise compositiva dos métodos de representação de paisagem, vamos utilizar tais obras de Baoshi: Esquerda: Fu Baoshi, <XoCl, sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. Direita superior: Fu Baoshi, , sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. Direita inferior: Fu Baoshi, , sem informação de data, nanquim e cores sobre papel, coleção particular. Na primeira, intitulada <XoCl (1) vemos a composição e técnica moderna de Baoshi se relacionarem de maneira harmônica com a temática chinesa clássica. Na obra podemos observar um casebre ao sopé de uma cachoeira e um monge dentro do mesmo. É interessante notar que Baoshi utiliza majoritariamente borras de nanquim para representar ambas as massas que se encontram á margem da figura, e que devido à técnica de Baoshi se tornam indistintas; seriam árvores ou montanhas?Uma que se encontra em um plano mais distante em relação ao casebre, e a outra, que se encontra em um plano mais próximo. Na mais distante, ele utiliza 840 borras mais claras e menos densas de nanquim para indicar que a mesma estaria longe e possivelmente encoberta pela névoa da cachoeira, enquanto na mais perto do espectador, as borras de nanquim se tornam mais escuras e profusas, indicando a proximidade da mesma. A água é representada por traços livres sutis e a única figura colorida em toda a cena é o monge que se veste de laranja. Na segunda obra, intitulada  (2), vemos como Baoshi consegue adaptar a composição clássica chinesa à sua técnica moderna. Nela, há um penhasco que se aglomera no canto direito da imagem, um decline suave ao fim da tela e por fim duas personagens que deslizam por um rio. Ainda podemos notar os grandes espaços vazios em composição, que são tradicionais dentre as pinturas orientais, em especial a chinesa e japonesa. Tal espaço compreende o rio, que não é representado a não ser pela quase ausência de desenho. Podemos ressaltar também que Baoshi utilizou sua técnica de “arte de ação” para criar o penhasco, que foi feito com traços livres e borros de nanquim assim como o declive na margem do desenho. Na terceira composição, chamada de  (3), é interessante notar como Baoshi utiliza uma composição de viés totalmente diferente da sua tradicional, mas consegue adaptá-la para seu tema. Na obra, há um choupo que se projeta sobre o espectador; há sua frente há um rio de águas calmas onde barcos deslizam. Talvez a característica mais interessante de tal obra seja a “quebra” que Baoshi realiza na composição ao posicionar o choupo sobre o desenho, como se o espectador estivesse olhando através dele, em direção à cena. Apesar de o rio ser praticamente representado como um espaço em branco, esse espaço “nulo” é bruscamente interrompido por Baoshi que interpõe um elemento compositivo completamente novo e não usual na cena. Porém, a maneira delicada como pintou os galhos fez com que essa interposição não fosse alienada em relação ao desenho. Com o pincel fofo e pinceladas grossas e suaves, Baoshi fez com que esse elemento, ainda que completamente novo, se fundisse graciosamente na composição. De fato, é preciso um conhecimento técnico específico para notar que se a proposta artística de Baoshi é utilizar os paradigmas da técnica compositiva tradicional chinesa, aquele choupo poderia ser interpretado como estando totalmente alheio à composição, o que não ocorre. Em Monet, vamos utilizar tais obras para análise: 841 Esquerda: Oscar Claude Monet, Bridge Over a Pond of Water Lilies, 1899, oleo sobretela, 93 cm x 74 cm, Metropolitam Museum of Art, New York. Direita superior: Oscar Claude Monet, A Cart on the Snowy Road at Honfleur, 1865, oleo sobretela, 65 cm x 93 cm, Museé d’Orsay, Paris. Direita inferior: Oscar Claude Monet, Cliffs near Deppe, 1882, oleo sobre tela, 65 cm x 81 cm, Kunsthaus, Zurique. É na primeira obra, Bridge over a Pond of Water Lilies, que vemos a temática, técnica e composição mais comuns nas obras de Monet: suas ninfeias. Na obra, há uma ponte representada sob a qual um riacho corre e várias ninfeias se encontram boiando sobre a superfície. A obra, de temática muito simples, nos impressiona pela técnica empregada pelo artista: a cena é completamente densa, e são os empastelamentos abundantes de tons de verde que nos dão tal sensação. Apesar de toda a vegetação estar concentrada no ponto de fuga único, ainda sentimos como se o bosque fosse longo, o que não torna a cena fechada já que Monet nos passa a sensação de um bosque calmo e uma ponte justamente por causa da profusão de elementos compositivos e graças à disposição das flores no rio. Na segunda obra, A Cart on the Snowy Road at Honfleur, vemos uma composição também comum de Monet: uma cena de inverno, na qual uma larga avenida é representada cheia de neve por onde uma carroça passa. Novamente, a técnica do artista nos auxilia no processo de assimilação da obra: A neve ao redor é quase completamente branca e são os empastelamentos que nos dão a sensação da neve 842 representada, assim como o céu já que a mesma não possui contornos claros e delineados. Até mesmo a carroça, aparente personagem principal da cena, é feita de traços grossos e empastelados, porém, não desprovida de senso ou interesse estético. Talvez os únicos elementos da imagem que tenham um interesse descritivo maior por parte do artista sejam as árvores, onde o mesmo descreve os galhos com atenção e empastela a tinta branca como a neve que se amontoa nos mesmos. Na terceira obra, Cliffs near Dieppe, vemos uma composição pouco comum não somente em Monet, como também em outros pintores ocidentais de quaisquer outras épocas: Monet compõe uma cena onde a personagem não é as figuras humanas ou a paisagem, mas sim um elemento intrínseco e exclusivo da cena que em qualquer outra composição não seria a personagem. Na obra, ele cria um penhasco onde em seu topo há o que se parece ser uma pequena vila ou uma residência de verão de algum senhor; e é possível ver figuras humanas que se envolvem na paisagem e parecem coerentes com os outros elementos compositivos. Porém, o que nos causa certa surpresa pela composição inesperada é a quebra repentina que o penhasco sofre nos dando assim duas cenas e três objetos de interesse artístico: a cena que ocorre acima do penhasco, a cena que ocorre na praia atrás do penhasco e que sua quebra nos permite visualizar e o próprio penhasco.Cada cena se desenvolve de maneira totalmente autônoma e podem também ser encaradas individualmente. Em cima do penhasco, temos uma cena de certa maneira aristocrática, onde há o penhasco propriamente dito que nos desperta interesse estético pelos empastelamentos em sua face cega e branca onde há o efetivo corte da cena, e temos a praia, onde pessoas se divertem na areia enquanto um barco atravessa sozinho o oceano. As obras foram escolhidas para se relacionarem por: técnica mais utilizada, composição tradicional e quebra de composição e talvez este seja o grupo no qual as semelhanças se tornem mais óbvias. A relação entre a técnica das obras <Xo Cl (1) e Bridge over a Pond of Water Lilies é gritante, principalmente pelo apelo estético de ambos que utilizam de maneira semelhante na composição e, principalmente a maneira como ambos a utilizam para ressaltar a cena não focando os empastelamentos ou borras no personagem principal, mas sim no entorno. Também é possível comparar a composição, já que ambos os artistas utilizam cenas 843 densas como método compositivo frequente. Em diferenças, podemos ressaltar a técnica propriamente europeia e chinesa que se choca em ambos os casos: o ponto de vista único em contrapartida com o ponto de vista fracionado, os grandes espaços vazios, etc. Em  (2) e A Cart on the Snowy Road at Honfleur, vemos como ambos os artistas conseguem manterem-se fiéis à sua técnica e à sua tradição compositiva: no caso de Baoshi, com o grande espaço em branco aliado aos borros e traços livres da montanha que nos dão a cena tradicional, e em Monet, seus empastelamentos que não fogem do detalhismo da pintura Ocidental. Mas talvez as obras mais interessantes ao se comparar sejam   (3) e Cliffs near Dieppe e como essa quebra compositiva tradicional, analisada no parágrafo anterior, não parece de maneira nenhuma deslocada em relação à cena. Baoshi interpõe um elemento estético na obra, o que causa um estranhamento já que tal feitio não é comum na pintura chinesa, enquanto Monet nos introduz uma quebra compositiva que nos dá não somente duas cenas como também dois pontos de vista e de fuga. No caso de Baoshi, seu choupo interposto pode ser interpretado não como um elemento puramente ocidental, mas sim um elemento compositivo com interesse estético puramente moderno, já que ele insere uma quebra na tradição representativa da cena, ainda que o elemento se funda com a composição em si. Podemos ver tal ocorrência como o cubismo de Cèzanne ou Picasso, ou o neo-concretismo de Lygia Pape. No caso da perspectiva dupla de Monet, seria talvez ousado demais e incorreto supor que sua inspiração fosse a arte oriental, mas é certo de que não foi a arte ocidental já que em toda a história da pintura uma única cena com mais de um ponto de fuga único são ocorrências raríssimas. Para situar o leitor, vamos analisar novamente a cena: o primeiro ponto de fuga está em cima do penhasco. O segundo, no penhasco em si. O terceiro na praia. Se o espectador é o marco zero posicionado em um ângulo de 90ºC focado na perspectiva única da cena em cima do penhasco, veríamos que a praia deveria estar mais longe do que efetivamente se encontra e o penhasco mais perto. Se focarmos na cena da praia, veríamos que não seria possível ver a cena em cima do penhasco, já que ela se encontraria muito além do campo de visão do espectador. Se focássemos no 844 penhasco, não veríamos nenhuma cena já que ele se interpõe entre elas. Apesar de ambas as cenas serem retratadas no sentido de ponto de fuga único, a perspectiva não é única. Utilizando tal recurso, Monet quebra de maneira a tradição representativa de ponto de fuga único e perspectiva planificada e parte para um método representativo quase oriental, representado cada pedaço da cena em um ponto de vista diferente. Conclusões Monet “cria” e utiliza seus empastelamentos como uma alternativa moderna à técnica fiel representativa, buscando assim uma maior interação da cena com o espectador, além de visar a experiência da pintura e não sua simples observação, Baoshi também faz exatamente a mesma coisa: ele utiliza borros de nanquim e traços livres, técnica esta que jamais foi empregada antes em toda a pintura chinesa, para tentar expor de maneira mais convincente a cena que ele busca representar além de visar envolver o espectador não apenas com uma técnica puramente moderna como também com a experiência da cena que ele visa transpassar. É importante salientar que, apesar de literato, a arte de Baoshi não tem a mesma auréola quase mítica e intocável da pintura feita por literatos nos séculos anteriores. Antes de Baoshi, a pintura era feita como uma forma de estudo da natureza e da filosofia. A paisagem não buscava representar o real, e sim a visão filosófica ou imaginativa do artista de como a paisagem deveria ser. Dessa forma, ainda que não inspirada em locais ou cenas reais, a paisagem ainda era representada de forma real mesmo que pelo imaginário do artista. Já Baoshi quebra essa tradição. Ele não procura pintar o real nem mesmo o que imagina; ao invés, decide tentar passar ao espectador a sensação da cena assim como o mestre ocidental. Se Baoshi não desejasse tal efeito, suas cenas de contemplação, por exemplo, não seriam feitas de montanhas densas e águas rápidas onde apenas o monge é representado com detalhes em meio ao caos da paisagem. O artista quer que nossa atenção se fixe na personagem, e nos utilizando dela, olhar para toda a cena e tentar compreender e sentir a cena como a personagem e não como um 845 espectador vazio que olha para uma tela como alguém olha para uma janela. Com tais considerações, podemos concluir que ainda que jamais tivessem se conhecido e ainda que não haja provas suficientes que afirmem que Baoshi tenha ou não se inspirado no mestre europeu, ambos os apelos estéticos dos dois mestres são similares porque ambos visam a representação da sensação da cena, ao invés da cena intrínseca em si, ocorrência essa que se deu pelo início do pensamento moderno, e tal que viria a ser repetida em vários outros mestres das belas artes e até mesmo das artes menores, até 1960. Também podemos concluir que, ainda que nos faltem evidências que comprovem que Baoshi tenha efetivamente se inspirado em Monet, as semelhanças entre ambos são volumosas demais para que possamos ignorá-las. Tudo o que podemos fazer é supor, e avaliar a obra do mestre chinês para tentar entender o que teria efetivamente acontecido. O que sabemos com certeza é que o Japão sofreu grandes influências europeias no período moderno que teriam influenciado vários artistas dentre os anos de 1920 e 1950, e também sabemos com certeza que Fu Baoshi esteve entre 1922 e 1923 no Japão estudando, pintando e expondo. Podemos supor que ele tenha efetivamente tido esta influência europeia através da cultura japonesa por estar em um lugar suscetível a tal influência, mas não há confirmação para tal fato. A única certeza que temos é que o pensamento moderno influenciou sobre medida artistas do Oriente ao Ocidente inspirando assim novas técnicas, composições e interesses estéticos. Podemos concluir então que Fu Baoshi apela esteticamente para nosso olhar por utilizar uma técnica que tradicionalmente não poderia ser empregada de maneira harmônica com a composição chinesa, enquanto Monet apela esteticamente para nosso olhar quebrando a tradição de uma representação fiel do universo e trocandoa pela sensação do representado, que se dá por seus empastelamentos. Desta forma, Baoshi e Monet podem ser citados como exemplos típicos do processo moderno porque ambos introduzem uma nova técnica de maneira fazendo com que ela seja coesa com os elementos tradicionais que ainda permanecem em suas obras (em ambos os casos a composição ou a temática) e concisa em representar não de maneira fiel, mas sim de uma maneira nova, o universo. 846 Notas ¹ Foi decidido manter os títulos originais da obra de Fu Baoshi em chinês já que muitos deles não foram traduzidos oficialmente e uma tradução superficial acabaria resultando em interpretações errôneas. ²De acordo com Baxandall (2006, pag. 151) “ No século XVIII, Newton e Locke estiveram na origem de um debate sobre a influência da cor na percepção da distância e do tamanho dos objetos. A luz de baixa refração – que ‘dá a sensação do vermelho’ – se imprime na retina com mais força que a luz de alta refração – ‘que dá a sensação do azul’ -, por exemplo. [...] É por isso que os objetos que refletem a luz vermelha parecem mais perto de nós que os objetos azuis. [...] um objeto vermelho parece estar mais perto de nós do que realmente está, também será percebido como menor do que é. Um vaso vermelho dá a impressão de estar mais perto que um vaso azul do mesmo tamanho e, como a idéia de vaso decorre da relação estabelecida pela mente entre o tamanho e a distância do objeto, concluiremos que o vaso azul é muito maior que o vermelho. Há um sugestivo grau de tensão entre a sensação e a percepção”. Referências Bibliográficas: M, BAXANDALL. Padrões de Intenção. São Paulo: Compahia das Letras, 2006. A, CHUNG. Chinese Art in the Age of Revolution: Fu Baoshi. Cleveland: The Museum of Cleveland Press, 2011. M, SULLIVAN. Modern Chinese Artists: A Biographical Dictionary.California: University of California Press, 2006. M, SULLIVAN. Art and Artists of Twentieth-Century China. California: University of California Press, 1996. ARGAN, Giulio Carlo. 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Pesquisa a arte chinesa, em especial o período moderno e o artista Fu Baoshi. 847 A MEMÓRIA MATERIAL DO INTERCÂMBIO CHINA-PORTUGAL NA ARTE SACRA PAULISTA: CAPELA DE SANTO ANTÔNIO EM SÃO ROQUE E IGREJA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO NO EMBU DAS ARTES Beatriz Vicente de Azevedo – PIME-SP RESUMO: Os movimentos missionários, principalmente dos jesuítas, promoveram um intercâmbio cultural entre Oriente e Ocidente. A necessidade de converter e ganhar almas para Cristo fez os missionários se espraiar pelo mundo, e assim nasceram as reduções jesuíticas na América. Raízes artísticas e culturais distintas passaram a conviver, em uma longa história de fecunda contaminação. Do período colonial brasileiro, na então São Paulo de Piratininga, destacam-se duas construções jesuíticas representativas dessa miscigenação: a Capela de Santo Antonio em São Roque, do final do século XVII, e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário no Embu das Artes, do início do século XVIII. Exteriormente, por exemplo, os telhados remetem aos pagodas chineses; na arquitetura interna, mais especificamente na pintura do forro dos tetos, a presença oriental se manifesta por meio da iconografia, dos arabescos florais, do vermelho-intenso. Palavras-chave: intercâmbio cultural, jesuítas, chinesices, cultura material, arte sacra brasileira ABSTRACT: The missionary movements, especially the Jesuits, promoted an exchange between East and West. The need to convert and win souls for Christ did the missionaries spread throughout the world, and so was born the Jesuit missions in America. Since then, distinct cultural and artistic roots coexist, in a long history of fruitful contamination. In São Paulo colonial period, we highlight two Jesuit constructions: the Chapel of San Antonio in San Roque, at the end of the Seventeenth Century, and the Church of Our Lady of the Rosary in Embu of Arts, at the early Eighteenth Century. Outside, for instance, are the rooftops like the Chinese pagodas, in the internal architecture, specifically in ceilings painting, oriental presence manifests itself through the iconography, the floral arabesques, the intense red. Keywords: cultural exchanges, Jesuits, chinoiserie, material culture, Brazilian religious art Qual é a relevância, e o sentido, de estudar os vestígios do oriente na cultura material paulista? O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2011) chama a época em que vivemos de “modernidade líquida”, porque, “(...) como todos os líquidos, nosso mundo jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo”. Essa denominação é muito adequada e pertinente porque nesta segunda década do século XXI, ou seja, a época do Instagram, Facebook, Twitter, o efêmero e o descartável são características onipresentes, e a cultura material é um dos contrapontos possíveis. 848 O presente artigo é sobre a memória material, e abrange um campo bastante específico e delimitado: do ponto de vista geográfico, a área de estudo se restringe ao Planalto Paulista e, do ponto de vista histórico, ao século XVII e XVIII. Cabem destacar aqui alguns pontos que podem contribuir para dar uma noção de como era o cenário em que surgiu a cultura material, principal objeto deste estudo. Desde a época das grandes navegações, os inacianos estiveram presentes nas naus que circulavam pelos oceanos, como o Padre Francisco Xavier no Oriente e Padre Manoel da Nóbrega no Ocidente. A Igreja Católica é uma das primeiras e mais antigas organizações globalizadas do planeta, e o cristianismo, em sua forma católica, era a religião oficial dos portugueses. No caso do Brasil colônia, a cultura material era, na maioria dos casos, impulsionada pela fé cristã, e isso é particularmente verdadeiro no campo das artes. Em Portugal, encarregavam-se da educação dos jovens – gramática, retórica, matemática – e do ensino das artes, incumbência que se espalhou ao redor do mundo, inclusive pelo Brasil. Partiu de São Vicente o grupo comandado pelos padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta que fundou, em 1554, São Paulo de Piratininga, um vilarejo completamente isolado em virtude da dificuldade de transposição da Serra do Mar. No altiplano, surgiu então uma sociedade segregada formada por mamelucos, fruto da miscigenação dos índios que acompanhavam o cacique Tibiriça com os poucos brancos trazidos por Martim Afonso de Sousa, que fundou São Vicente em 1531, na baixada santista, a primeira vila e capitania brasileira, e pela gente de João Ramalho, que dois anos depois fundara a vizinha Santo André da Borda do Campo. Há relatos de que os homens venciam as escarpas com muito esforço, às vezes de gatinhas, a subida era íngreme e não havia trilhas, com o deslocamento acontecendo em mato cerrado, e as pessoas abrindo caminho com facão. Somente em 1792 é que ficaria pronta a Calçada do Lorena, uma estrada pavimentada com pedras para facilitar o crescente tráfego comercial entre São Paulo e o Porto de Santos. A Calçada do Lorena ficou famosa desde que Dom Pedro I e comitiva a utilizaram montados em muares nas visitas à marquesa de Santos na primeira metade do século XIX (MENDES, 2014). 849 O século XVII começa com a iniciativa dos paulistas de organizar as grandes expedições conhecidas por entradas e bandeiras, que saíam para desbravar o interior em busca de mão-de-obra indígena, pedras e metais preciosos nos rincões inexplorados. Atividade que gradualmente arrefeceu no século XVIII (RECCO, 2014). O mundo lusófono tem vínculos históricos remotos com o Oriente, mas, no século XVI e XVII graças à ligação marítima regular e contínua entre os países do Atlântico, Índico e Pacífico, a Europa tornou-se presença marcante na Ásia. Em contrapartida, os intelectuais europeus, laicos e clericais, eram influenciados pela cultura asiática nesse encontro intercultural. É interessante verificar que os primeiros mandatários a estabelecer-se no Brasil ocuparam antes cargos oficiais no Oriente. Salvador na Bahia está a 17.000 quilômetros distante da chinesa Macau, onde o português é língua oficial junto com o cantonês. São Paulo dista cerca de 18.000 quilômetros da capital da China, Beijing (Pequim). Entretanto é possível constatar tanto no Recôncavo Baiano quanto em Sabará e Mariana, municípios de Minas Gerais, ou em cidades como São Roque e Embu das Artes, em São Paulo, influências exercidas pela China sobre o Brasil no que diz respeito à cultura material, especialmente na arte sacra religiosa. Muitos dos motivos orientais que aparecem nas pinturas das igrejas daquela época podem ter sido copiados das porcelanas e tecidos que a Companhia das Índias Orientais trazia e que por aqui circulavam e serviam de modelo. Ou pode ter sido influência direta do Oriente devido às paradas que os navios faziam nos portos brasileiros; bem como reflexo do estilo chinoiserie que ocorreu na Europa no século XVIII. É possível constatar, por exemplo, tal modismo, a atração pelo Oriente no Palácio de Queluz, em Versailles. A gênese artística brasileira tem caráter mestiço e universal, sendo na maioria das vezes interpretações de formas e temas e também reelaboração de padrões indígenas, europeus, africanos, orientais. Em forros de sacristias franciscanas de Olinda, no Recife, por exemplo, há pinturas de frutos dentro de porcelanas chinesas. Em Mogi das Cruzes, em São Paulo, em pintura deslocada de alguma outra sacristia, há não apenas porcelanas chinesas representadas como também pássaros em vôo que lembram a liberdade espacial pictórica chinesa. 850 Chinesices O crítico José Roberto Teixeira Leite escreve sobre as chinesices (1999, p.180): Chinoiserie é invenção européia e não asiática, é pintura que pode ser feita por qualquer um, menos, obviamente, por artista chinês ou oriental, visto como, por definição, representa a visão fantasiosa que os europeus, do século XVIII sobretudo, tinham da China – ou do que julgavam ser a China. No Estado de São Paulo, há algumas construções de valor artístico e principalmente histórico remanescentes da época colonial. Em duas delas encontram-se chinesices ou chinoiserie: a Capela de Santo Antonio, no município de São Roque, e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no município de Embu das Artes. Em ambos os casos, os documentos foram perdidos, e assim não se pode saber ao certo em que circunstâncias foram feitas as chinesices, mas é possível levantar hipóteses e suposições. Capela de Santo Antonio em São Roque O Sítio de Santo Antonio, onde se situa a casa bandeirista e a capela, era a antiga propriedade do patrocinador e organizador de entradas Fernão Paes de Barros. A capela começou a ser construída em 1681, sendo consagrada em 1686. O sítio foi adquirido pelo escritor modernista Mario de Andrade em 1944, que faleceu no ano seguinte sem realizar o sonho de ali criar um centro para pesquisadores. A capela foi objeto de pesquisas aprofundadas por parte do modernista, instigado pelo amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, então diretor do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (antiga SPHAN, 1937). Mario de Andrade escreveu o artigo “A capela de Santo Antônio”, publicado no número 1 da revista do Iphan, em 1937. No artigo, Mário de Andrade avaliava que as pinturas eram os melhores e mais bem conservados testemunhos da arte paulista. O urbanista Lúcio Costa (1997), anos mais tarde, no artigo “A arquitetura dos jesuítas no Brasil”, de 1941, no número 5 da mesma revista, confirma a importância da construção. A família de 851 Mário de Andrade doou as terras da capela ao governo federal, que passou a ser restaurada pelo Iphan. Tanto a casa bandeirista quanto a Capela de Santo Antonio apresentam um elemento estrutural e construtivo de flagrante conotação chinesa, ou seja, estão edificadas sobre uma plataforma de pedra, técnica comum na China desde tempos imemoriais, observação de Roberto Teixeira Leite (1999). Essa plataforma é uma peculiaridade que só as casas bandeiristas exibem e as distingue das demais residências rurais brasileiras, que pousavam naturalmente no terreno e nem sempre com o cuidado de nivelamento mais alto e amplo que destaca a construção (Figura 1). Os três níveis do telhado da capela, acachapados e com as extremidades ligeiramente arrebitadas, remetem aos pagodes chineses, o alpendre da entrada, enfim, a capela possui uma visível reminiscência asiática (Figura 2). No que diz respeito à pintura interna, a crítica de arte e historiadora Aracy Amaral escreveu (1981, p. 82): Chinesices, entretanto, não estão totalmente ausentes da pintura de Santo Antônio se observarmos com cuidado as largas faixas que, à maneira de friso, rodeiam a pintura central do forro: elementos vegetais, tratados no linearismo da maneira orientalizante, envolvem como guirlandas grandes flores (uma circundada por cada duas hastes) e na união dos elementos dessa sequência pendem delicadas cerejas. O vermelho é, significativamente, a cor dessa decoração do friso (Figura 3). 852 Figura 1 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: vista frontal com destaque para a plataforma de pedra. Foto: MEDEIROS (2013) Figura 2 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: telhados com influência chinesa. Foto: MEDEIROS (2013) 853 Figura 3 - Sítio de Santo Antônio em São Roque: detalhe da pintura do forro apresentando chinesices. Foto: MEDEIROS (2013) Igreja Nossa Senhora do Rosário no Embu das Artes A outra edificação tema deste estudo é conjunto jesuítico Nossa Senhora do Rosário, formado pela igreja e pela antiga residência dos padres, conjugadas numa mesma planta. A redução foi criada em 1623. É um dos mais importantes e preservados remanescentes das construções jesuítas em São Paulo, caracterizadas pela simplicidade das linhas retas. A igreja foi reformada na década de 1690, e a nova residência foi concluída por volta de 1735, pelo Padre Belchior de Pontes, em substituição à antiga capela da fazenda de Catarina Camacho, situada não muito longe dali, também dedicada a Nossa Senhora do Rosário. Encontram-se chinesices nos frisos dos caixotões do forro da capela-mor e mais enfaticamente nas molduras dos caixotões do forro da sacristia. 854 Sacristia No forro da sacristia, nas molduras dos caixotões dos seis painéis de formas retangulares, observam-se frisos pintados de vermelho, com flores, pássaros, pagodes, pontes e embarcações. Em um deles aparece ao centro uma caravela, e pode-se ver também um barco na pintura do friso. Os outros cinco representam cenas da paixão de Cristo: a) a coluna onde Cristo foi amarrado para ser flagelado; b) o lenço com o qual Verônica enxugou o rosto de Cristo; c) os três cravos usados para prender as mãos e os pés de Cristo; d) a lança que perfurou o coração do Cristo e outra com a esponja embebida em fel e a Ele oferecida – observar as plumas como elemento indígena na cabeça dos anjos – (figura 4); e e) o cálice com o Sangue de Cristo. Sobre essas pinturas também escrevem Myriam Salomão e Percival Tirapelli (2001, p. 96): Essa pintura decorativa, denominada “grotesco”, chegou ao Brasil por intermédios dos jesuítas, que a aplicaram na decoração dos forros de templos, seminários e sacristias de suas fundações brasileiras. Em geral tal ornamentação pictórica utiliza fortes tonalidades avermelhadas e castanhas, sendo emoldurada por elementos de influência chinesa. 855 Figura 4 - Igreja Nossa Senhora do Rosário em Embu das Artes: pintura de um dos cinco painéis no forro da sacristia com o tema da paixão de Cristo: representação da lança e esponja com vinagre. Os anjos nas extremidades utilizam plumária indígena na cabeça. Nas molduras com fundo vermelho repetem-se motivos chineses em branco. Foto: MEDEIROS (2013) Leões funerários Ainda neste conjunto, que atualmente abriga o Museu de Arte Sacra, estão quatro leões funerários de madeira que suportam o esquife que na Semana Santa sai em procissão levando a imagem do Senhor Morto. Pela postura e tratamento dado ao animal, boca, focinho, olhos, patas garras e cauda, pode-se dizer que são perfeitos leões budistas chineses. Germain Bazin em seu livro O Aleijadinho e a Cultura Barroca no Brasil cita estes leões, e escreve (1971, p. 49): “(...) quatro magníficos leões de madeira que um escultor da época Tang não teria renegado” (Figura 5). 856 Figura 5 - Conjunto funerário de madeira com quatro leões e esquife, Museu de Arte Sacra dos Jesuítas, Embu das Artes. Foto: MEDEIROS (2013) Vínculos culturais O principal objetivo deste estudo não é o rastreamento das influências e trocas interculturais, mas principalmente uma tentativa de entender os vínculos culturais por meio do patrimônio material que sobreviveu até nossos dias como memória e testemunho de uma longa história de fecunda contaminação. Referências Bibliográficas AMARAL, Aracy A. A hispanidade em São Paulo. São Paulo: Nobel/Edusp, 1981. ANDRADE, Mário. A Capela de Santo Antonio. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: Iphan, n. 26, p. 24-9, 1997. BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2011. BAZIN, Germain. O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 1971. COSTA, Lúcio. A arquitetura dos jesuítas no Brasil. 60 anos: a Revista. Rio de Janeiro, IPHAN, 1997, nº 26, pp. 105-169. MENDES, Denise. Calçada do Lorena. Historianet. Disponível em <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=606> 12 jan. 2014. 857 RECCO, Claudio. História de São Paulo. Historianet. Disponível em <http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=745> 12 jan. 2014. SALOMÃO, Myriam; TIRAPELI, Percival. Pintura colonial paulista. In: TIRAPELI, Percival (Org.). Arte sacra colonial: barroco memória viva. São Paulo: Edunesp/ Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 90-117 TEIXEIRA LEITE, José Roberto. A China no Brasil: Influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, SP: Unicamp, 1999. Beatriz Vicente de Azevedo Formada em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com pósgraduação em Administração pela Fundação Armando Alvares Penteado. Foi Diretora do Colégio Nuno de Andrade, Diretora da Sociedade dos Amigos da Arte de São Paulo e Diretora Executiva do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Atualmente colabora com o Departamento Cultural do Pontifício Instituto para as Missões de São Paulo. 858 ơw!ƪ: A HISTÓRIA DO SUPORTE Camila Ferreira Iquiene da Silva - UFRJ RESUMO: Publicado em 1951, ơw!ƪ(hyougu no hanashi), A História do Suporte (em tradução livre), Yuyama Isamu faz um panorama histórico dos tipos de suporte utilizados em obras japonesas. Começando com osąğ(Orihon), livros encadernados que consistem de folhas de papel organizadas e coladas horizontalmente, até aprofundar-se nos ćŔ(Kakemono), rolos verticais de seda. Como, até onde temos notícia, a obra não dispõe de uma tradução no ocidente, a aproximação do tema é feita a partir da leitura da obra em seu original em japonês, em que foram observadas diversas particularidades em relação aos termos utilizados, cuja maioria não possui uma tradução direta ou muito de seu significado é perdido na mesma. Além da necessidade de compreensão dos termos no original para que haja o aprofundamento no assunto, a obra de Yuyama também possui muitas informações específicas, principalmente no que tange os kakemono, desde sua função no tokonoma até seu armazenamento, tornando-se uma bibliografia necessária no estudo do tema. Palavras-chave: suporte, arte japonesa, Yuyama Isamu. ABSTRACT: Published in 1951, 2 3 (hyougu no hanashi), The Story of Mounting (in free translation), Yuyama Isamu traces an historical overview of the types of mounting used in japanese works of art. Starting with the#(Orihon), bounded books consisted of paper sheets organized and glued up horizontally, until a deep study about the( (Kakemono), vertical silk rolls. Since, as far as we know, this work was not translated in the West, the theme approach is based on the work’s reading in its original language (Japanese), in which several particularities regarding the terms used were observed, which most of it do not has a direct translation or much of its meaning is lost during the same. Besides the need of understanding the terms in its original language to have a deep understanding of the subject, Yuyamu’s work also has much specific information, most of it regarding the kakemono, since its function in the tokonoma until its storage, becoming a necessary bibliography in the study of this theme. Keywords: mounting, japanese art, Yuyama Isamu. O seguinte trabalho é fruto de uma aproximação, ainda inicial, de uma estudante de Letras Português-Japonês ao mundo das artes, que tem como ponto de partida a obra de Yuyama Isamu, presente no acervo do crítico de arte Mário Pedrosa, sobre os diferentes suportes presentes nas obras japonesas. Esta pesquisa é uma tentativa de compreensão desses suportes e visa reunir informações quanto aos mesmos, tendo em vista a fragmentação destas em diferentes bibliografias. 859 1. O significado de ơw A palavraơw (hyougu) é dada a partir da junção de dois ideogramas. O primeiro, ơ (hyou), carrega a idéia de superfície e o segundo, w (gu), pode conter tanto a idéia de mobília quanto a de ferramenta, utensílio. Esta palavra é utilizada para designar obras que foram afixadas em superfícies de papel ou tecido, como é o caso dos rolos (ÙŔ, makimono), rolos verticais (ćƺ, kakejiku), biombos (Ëǚ, byoubu), fusuma (ƥ), divisórias portáteis (Ɵů, tsuitate), dentre outros1. Por questão de praticidade, dar-se-á preferência à utilização da palavra “suporte” para designar as superfícies em que se encontram as obras. O termo hyougu aparecerá somente em caso discriminatório. A sequência e os tipos de hyougu que serão apresentados correspondem à introdução e ao panorama histórico feitos por Yuyama Isamu em ơw!ƪ (hyougu no hanashi)2. 2. ąğ(Orihon) Literalmente encadernados e “livro dobrado”, consistem de os folhas Orihon de são papel anteriores organizadas aos e livros coladas horizontalmente. É considerado um estágio entre um rolo e um códice. Ao invés do Orihon ser enrolado para seu armazenamento, este era dobrado de forma similar à de uma sanfona, fazendo com que cada página escrita encare outra também escrita quando fechado, podendo, assim, ser aberto em qualquer página. Quando eram acopladas capas sólidas na primeira e na última parte, os Orihon também eram chamados de Úƣğ (Jousoubon), cuja tradução seria próxima de “livro dobrado de tecido”3. Os Orihon eram comumente utilizados para cópias manuscritas e obras budistas. 860 3. ŹÙŔ(Emakimono) Composto pelos ideogramas Ź (e), pintura, e ÙŔ (makimono), rolo, este suporte feito de seda ou papel, amarrado a uma haste de madeira em sua esquerda com uma corda de seda trançada, data dentre o século XII e o século XIII, no período Heian. Tem como principais características sua forma horizontal, o ritmo de leitura (ditado pelo espectador, gerando uma relação com o mesmo) e cenas quadro a quadro, mantendo uma sequência narrativa. Os emakimono divergem em tamanho, tendo em média 30 centímetros de largura e podendo ter entre 9 a 12 metros de comprimento. Uma história em rolo horizontal pode apresentar entre um a três rolos no total. Os chineses utilizavam o rolo horizontal de modo a representar paisagens de forma panorâmica, com uma sucessão de cordilheiras, que possuíssem uma sensação de profundidade. Da mesma forma os japoneses descreviam pelos emakimono a natureza do homem, no qual a perspectiva era menos importante que a cena que se desdobrava. Os emakimono mais antigos do período Heian que conseguiram ser conservados até os dias de hoje são os de Genji Monogatari (O Romance de Genji), compostos por ilustrações e trechos do livro homônimo escrito por Murasaki Shikibu no início do século XI, que retrata a vida da corte imperial no período Heian. O emakimono combinava tanto narrativas escritas quanto imagens, mantendo uma relação entre a pintura e a prosa4. As obras presentes no emakimono eram principalmente sobre batalhas 5 , romances 6 , religião 7 , histórias folclóricas 8 e narrativas sobre o mundo sobrenatural9. 861 10 Figura 1. ĢÊ (Azumaya), séc. XII, Museu de Arte de Tokugawa . 4. Ëǚ(Byoubu) Muitas vezesËǚ(byoubu) é traduzido de forma literal, de modo a ficar como “parede de vento”. Porém, a palavra se origina da fraseǚ5Ë(“kaze wo fusegu”), cuja tradução seria “proteger-se do vento” 11. Sua origem remonta da China, na dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), onde sua função, originalmente, era bloquear o vento. Entretanto, nas dinastias do Norte e do Sul (386-589), adquiriu o status de ornamento de luxo pela realeza. Sua forma original era a de um painel com ou caligrafia ou pintura, sustentado por um único suporte. O byoubu japonês mais antigo data de 68612, no período Nara. Neste período, os byoubu mais comuns eram os de seis painéis, feitos de seda e conectados com tiras de couro ou seda e acoplados em uma armação de madeira. No período Heian (794-1185), essas tiras passaram a ser menos utilizadas, dando lugar às NJë (Zenigata), dobradiças de metal em formato de moeda. Também foi neste período que os byoubu se tornaram elementos indispensáveis nas residências dos senhores feudais (daimyō), templos budistas e santuários xintoístas. Foi apenas no período Muromachi (1337-1573) que o byoubu tornou-se popular dentre as massas, sendo encontrado em residências, dōjō e lojas, e também mais resistente, mais fácil de dobrar e carregar. As pinturas presentes nos byoubu podem ser tanto japonesas quanto chinesas. Estas pinturas podiam ser°—t (Yamato-e)13, Ĺ«Ş (Suiboku-ga)14 ou ČZŞ (Bunjinga) 15 . Nos byoubu japoneses em específico, pinturas que representavam a passagem das estações também eram muito comuns. Nestes byoubu, as pinturas de cada estação eram dispostas da direita para a esquerda, representando a transição das mesmas. Foi somente entre o período Azuchi-Momoyama (1573-1603) e o período Edo (1603-1858) que as pinturas dos byoubu obtiveram mais prestígio, devido à presença destes nos castelos e fortalezas. 862 5. ƥ(Fusuma) Fusuma são painéis retangulares verticais que podem ser deslizados para ambos os lados a fim de redefinir o espaço de um cômodo ou serem utilizados como portas. Embora os fusuma modernos sejam em sua maioria apenas de papel, sem nenhuma pintura, ou então com estampas e padrões industrializados, historicamente eles eram pintados geralmente com vistas contendo montanhas, florestas ou animais. O fusuma foi popularizado ao fim do período Heian. Originalmente feitos de seda, os fusuma começaram a ser produzidos em papel a partir do período Heian. Deste período até o Kamakura, (1185-1333), as pinturas em fusuma eram em sua maioria Yamato-e, passando a pinturas com carvão e aquarelas no período Muromachi (1336-1573). 6. ćŔ(Kakemono) Mais conhecido como ćƺ (Kakejiku), estes rolos verticais são feitos de seda onde então é afixada a obra a ser exibida. Por ser feito deste material, o rolo é flexível, o que o torna mais fácil de ser enrolado e armazenado. Entretanto, ao contrário do emakimono, o kakemono é feito para ficar pendurado e exposto, fazendo parte da decoração do tokonoma, uma espécie de alcova em que são expostos itens artísticos para a contemplação, sendo trocado de modo a acompanhar cada estação do ano. Quando posto numa sala de cerimônia do chá, o kakemono será escolhido de modo a complementar o arranjo floral (ikebana) exposto. O kakemono é o elemento principal do tokonoma. Escolhe-se um kakemono com uma obra de um artista distinto, pois, caso contrário, este não exercerá a influência esperada em quem o observa16. Tão preciosos são os kakemono que estes são armazenado, enrolados, em caixas feitas especialmente para os mesmos e só são pendurados quando a ocasião é apropriada, como cerimônias (quando se serve o chá, por exemplo), ao receber uma visita ou com o advento de uma nova estação. Quanto às obras afixadas no kakemono, estas podem ser pinturas do tipo yamato-e, suiboku ga, dentre outras escolas, ou uma arte caligráfica. Uma casa com 863 um tokonoma tem, pelo menos, quatorze ou quinze rolos diferentes de modo a haver essa alternância17. Sua origem remonta da China, na distania Jin (265-420)18 e seu nome vem da expressão “pendurar e reverenciar”, pois seus primeiros temas eram religiosos. Foi amplamente usado por monges, pois os kakemono ajudavam a transportar as pinturas budistas de forma mais prática. Foi introduzido no Japão no período Asuka (550-710) ainda com temas budistas, mas ao fim do período Kamakura, por influência do zen budismo e por pinturas suibokuga estarem em voga, os kakemono passaram também a serem utilizados como suporte para suibokuga com temas bucólicos e, com isso, a terem mais visibilidade. No período Muromachi, tornou-se comum ver kakemono com suibokuga nos tokonoma de salões de cerimônia do chá. Foi Sen Rikyuu19 o grande responsável pela popularização dos kakemono ao falar sobre sua importância, fazendo com que ficasse em voga dentre os entusiastas de cerimônia do chá. Foi a partir deste momento que o costume, a formalidade, de escolher cada tipo de kakemono de acordo com a estação vigente, horário e convidados teve início. Os estilos de hyougu mais comuns eram osŤ!ëè (shin no keishiki), formal, ƞ!ëè (gyou no keishiki), semi-formal, eƓ!ëè (kusa no keishiki), informal. Figura 2. Estilo de hyougu formal 20 864 Figura 3. Estilo de hyougu semi-formal Figura 4. Estilo de hyougu informal 21 22 Com a introdução do estilo de hyougu da dinastia Ming (1368-1644) no Japão durante o período Edo (1603-1868), os kakemono adquiriram um grau maior de sofisticação. Consequentemente, os demais hyougu também passaram a ser mais sofisticados, utilizando padrões de tecido complexos como°—~ (Yamatonishiki)23, ŹNj™v (e nishiko tou ori)24, dentre outros. No século XVIII, o kakemono tornou-se popular dentre os nobres e meios artísticos da época, obtendo maior prestígio. 865 25 Figura 5. Estilo de hyougu da dinastia Ming 7. Considerações finais Através da pesquisa feita, foi notada a importância de reunir informações ainda dispersas sobre o assunto abordado, uma vez que a maior parte do material que dispõe destas não se encontra com facilidade no Brasil. Até onde se tem notícia, não há a tradução de uma obra voltada especificamente para o assunto no ocidente. Portanto, para que haja um aprofundamento nesse estudo se faz necessária uma ampla pesquisa e compilação destes fragmentos e a consulta a materiais somente dispostos no original em japonês, como o caso da obra de Isamu Yuyama, utilizada neste trabalho. Notas 1 YAMAMOTO, Moto. Zouhokaitei Hyougu no Shiori. Quioto: Geibundou, 1978, p. 142. YUYAMA, Isamu. História da Moldura. Tóquio: Hyoso Bijutsu Kenkyuukai, 1958, p. 1. 3 ą0ğ. In: 9 8 < C @ 8 7 : B F H Š Ŭ S x . Wikimedia Foundation, Inc. 2001. Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%8A%98%E3%82%8A%E6%9C%AC>. Acesso em: 31 mar. 2014. 4 PAINE, Robert Treat; SOPER, Alexander – The Art and Architeture of Japan. Londres: Yale University Press, 1992, p. 134. 5 Night Attack on the Sanjô Palace, séc. XIII, Museu de Belas Artes de Boston. Disponível em<http://www.mfa.org/collections/object/night-attack-on-the-sanj-palace-from-the-illustrated-scrolls-of-theevents-of-the-heiji-era-heiji-monogatari-emaki-24523>. Acesso em: 31 mar. 2014. 6 Yadorigi. In: Genji Monogatari Emaki, séc. XII, Museu de Belas Artes de Tokugawa. Disponível em <http://www.tokugawa-art-museum.jp/english/index.html>. Acesso em: 31 mar. 2014. 7 Hekija e, séc. XII, Museu nacional de Nara. Disponível em <http://www.narahaku.go.jp/english/collection/d-1106-0-1.html>. Acesso em: 31 mar. 2014. 8 Choujyuu Jinbutsu Giga, séc. XII, Templo Budista Kouzan. Disponível em <http://www.kosanji.com/chojujinbutsugiga.html>. Acesso em: 31 mar. 2014. 2 866 9 Jigoku Zoshi, séc. XII, Museu Nacional de Tóquio. Disponível em <http://www.tnm.jp/modules/r_collection/index.php?controller=dtl&colid=A10942&t=type_s&id=11>. Acesso em: 31 mar. 2014. 10 Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%BA%90%E6%B0%8F%E7%89%A9%E8%AA%9E%E7%B5%B5%E5 %B7%BB>. Acesso em: 13 dez. 2014. 11 Ëǚ. In: 9 8 < C @ 8 7 : B F H Š Ŭ S x . Wikimedia Foundation, Inc. 2001. Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E5%B1%8F%E9%A2%A8>. Acesso em: 10 dez. 2013. 12 ǞĶů³Ëǚ†IJjǏǥ(Torigeritsujyobyoubu. Shōsō-in.) 13 Estilo de pintura japonesa inspirando pelas pinturas da dinastia Tang (618-907) e desenvolvida pelo período Heian. As principais características de uma Yamato-e são as figuras pequenas, construções e objetos ricos em detalhes, visão da cena de cima para baixo, com o ponto de fuga para fora da tela, e a omissão de partes menos relevantes da cena que são substituídos por uma nuvem. 14 Também conhecidas como Sumi-e, são pinturas feitas a partir da técnica chinesa da segunda metade da dinastia Tang, na qual se utiliza uma tinta parecida com o nanquim diluída em água (sumi), pincéis e papel à base de arroz. Tem forte relação com a caligrafia e, embora não tenham temas em específico, todos são minimalistas. 15 Bunjinga, ou, “Escola do Sul”, utilizava tintas monocromáticas e focava-se em pinceladas mais expressivas e em uma abordagem impressionista. Os temas mais comuns eram paisagens, às vezes com andarilhos ou eremitas apreciando a mesma. Também era comum a presença de poemas, ora clássicos, ora do próprio artista ou de alguém do seu meio social. 16 SAGARA, Takuzou. Tourist Library vol. 9: Japanese Fine Arts. Tóquio: Kyoudou Printing Co., 1962, p. 98. 17 Ibid, p. 100. 18 BECKER, Gabriele Fahr. Arte Asiatico. Colônia: Könemann, 2001, p. 108. 19 Sen Rikyuu (1522-1591) é considerado a figura histórica mais importante da cerimônia do chá. 20 Disponível em < http://home.m05.itscom.net/hyougu/keishiki/>. Acesso em: 31 mar. 2014. 21 Ibid. 22 Ibid. 23 Um tipo de padrão baseado na planta homônima. 24 Tipo de padrão da dinastia Tang. 25 Disponível em < http://home.m05.itscom.net/hyougu/keishiki/>. Acesso em: 31 mar. 2014 Referências BECKER, Gabriele Fahr. Arte Asiatico. Colônia: Könemann, 2001; GERHART, Karen M. The Eyes of Power: Art and Early Tokugawa Authority. Honolulu: University of Hawaii Press, 1999; PAINE, Robert Treat; SOPER, Alexander – The Art and Architeture of Japan. Londres: Yale University Press, 1992; SAGARA, Takuzou. Tourist Library vol. 9: Japanese Fine Arts. Tóquio: Kyoudou Printing Co. 1962; YUYAMA, Isamu. História da Moldura. Tóquio: Hyoso Bijutsu Kenkyuukai. 1958; YAMAMOTO, Moto. Zouhokaitei Hyougu no Shiori. Quioto: Geibundou, 1978. ć  ƺ ! ë è . Disponível em <http://home.m05.itscom.net/hyougu/keishiki/>. Acesso em: 31 mar. 2014; ą0ğ. In: 9 8 < C @ 8 7 : B F H Š Ŭ S x . Wikimedia Foundation, Inc. 2001. Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%8A%98%E3%82%8A%E6%9C%AC>. Acesso em: 31 mar. 2014; ä!Ǎ. In: ______. Wikimedia Foundation, Inc. 2001 – Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E5%BA%8A%E3%81%AE%E9%96%93>. Acesso em: 31 mar. 2014; ƥ. In: ______. Wikimedia Foundation, Inc. 2001 –. Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E8%A5%96>. Acesso em: 31 mar. 2014; ćƺ. In: ______. Wikimedia Foundation, Inc. 2001 – Disponível em <http://ja.wikipedia.org/wiki/%E6%8E%9B%E8%BB%B8>. Acesso em: 31 mar. 2014. 867 Camila Ferreira Iquiene da Silva: Graduanda em Português-Japonês na Faculdade de Letras da UFRJ. Em 2011 foi monitora do setor de língua japonesa da UFRJ. É monitora de língua japonesa no Curso de Línguas Aberto à Comunidade da UFRJ desde 2012. 868 O IMAGINÁRIO NA EDUCAÇÃO CLÁSSICA INDO-TIBETANA Daniel Confortin - UPF RESUMO: A questão da formação integral do homem e as diversas abordagens propostas em tempos e espaços diferentes constituem um tema interminável. Nesta pesquisa buscamos iniciar uma relação entre a educação e o uso das imagens dentro da cultura indotibetana exemplificada pela tradicional pintura sacra tibetana, a thangka. O termo tibetano "thangka" pode ser traduzido simplesmente como "rolo" ou "pergaminho" o que indica a forma assumida pela iconografia budista dentro do país. As thangkas são pinturas sacras com imagens que representam conceitos básicos da filosofia budista. Os principais objetivos deste artigo são fazer um apanhado histórico desta arte tibetana assim como evidenciar a relação entre educação, estética e as técnicas contemplativas dentro do contexto do Budismo Vajrayana. Palavras-chave: Educação. Estética. Imagem. Tibet. Budismo. ABSTRACT: The issue of human integral education and its approaches is a vast subject In this research we seek to start a relationship between education and the use of images within the Indo-Tibetan culture exemplified by the traditional Tibetan religious painting, the thangka. The Tibetan word "thangka" can be translated simply as "roll" or "parchment" which indicates the main fisical form of the Buddhist iconography inside the country. The thangkas are religious paintings with images that represent basic concepts of Buddhist philosophy. The main objectives of this article is to make a historical overview of Tibetan painting as well as demonstrating the link between education, aesthetic and contemplative techniques within the context of Vajrayana Buddhism. Keywords: Education. Aesthetics. Image. Tibet. Buddhism. Introdução A cultura indiana é uma das matrizes civilizatórias da humanidade. Uma notável peculiaridade de sua manifestação é a ênfase dada à imagem. Este artigo faz parte de um projeto maior que apresenta uma proposta de pesquisa acerca das características conceituais e metodológicas empregadas no uso da imagem dentro do contexto educativo indiano e, posteriormente, tibetano. Como afirma Kinnard “Se um dos objetivos disciplinares da história das religiões é criar um retrato completo das tradições religiosas, então precisamos achar espaço para ferramentas que tratem o visual” (2001, p.13, tradução nossa). Sabendo da impossibilidade de determinar uma uniformidade de espaço e tempo dentro de uma cultura tão diversa buscaremos focar nas práticas educativas que, mesmo tendo início nos primórdios da cultura ariana no subcontinente, desenvolveram-se em um panorama budista 869 determinante. Tal ênfase na imagem pode ser creditado em grande parte ao fenômeno suprarregilioso conhecido como Tantra que tomou forma em tais instituições do norte indiano e acabou por servir de base para a própria identidade cultural tibetana associada à filosofia budista que resiste até hoje. Para responder a pergunta central da pesquisa antes de tudo é necessário saber qual o conceito de educação na civilização clássica indiana, como se deu seu desenvolvimento e sua posterior difusão. Em seguida indicar o papel histórico da imagem nesse processo educativo, incluindo o atual contexto regional e a sua relação com o já mencionado pensamento tântrico comum às grandes religiões indianas. Além disso, necessitamos compreender de que forma as escolas budistas assimilaram (e contribuíram para) tal fenômeno cultural. Por fim resta determinar a possibilidade de uma análise teórica do fenômeno que fuja de qualquer orientalismo aliando aspectos do pensamento ocidental e indiano. Neste artigo procuramos nos ater as questões iniciais exemplificando a prática por meio da tradicional pintura sacra tibetana conhecida como thangka. A formação integral do homem Em uma época crítica para qualquer educador, chamado para atuar em um mundo pautado pela transformação e sem ferramentas que lhe permitam lidar com uma geração sobrecarregada de conhecimentos superficiais e fragmentados, será possível uma educação humana integral? Quando nos referimos a esse tipo de educação queremos indicar um sistema que respeite todas as fases da evolução da consciência humana e sua interdependência, como afirma Wilber (2000, p.100) “a consciência flui do arcaico para o mágico, do mágico para o mítico, do mítico para o racional e do racional para as ondas integrais, e uma educação genuinamente integral enfatiza, não só a última onda, mas todas elas, à medida que apropriadamente se revelam.” Como afirma Jung (1999, p. 87) “quando falamos aqui do homem, aludimos a uma totalidade que não pode ser delimitada e nem é susceptível de formulação, só podendo ser expressada por meio de símbolos”. Pois é justamente o papel do símbolo visual, do olhar e da imagem em si dentro da educação que queremos explorar aqui. Se é certo dizer que vivemos na “era da informação” também podemos afirmar que esta informação é predominantemente 870 visual. A simplificação torna-se imprescindível frente a um enorme volume de informação construída de maneira anárquica. O ícone se transforma, quase que intuitivamente, no meio predominante de encapsulamento de significados dentro dos múltiplos meios de comunicação de massa. Como afirma Ormezzano (2007, p. 31) “os circuitos da imagem visual podem ser os circuitos do saber, de um saber icônico que estabelece o compromisso de uma educação visual”. Então, tendo em vista este panorama, a educação estética se coloca como uma ferramenta valiosa para a educação integral. Educação estética A questão estética tem origem em Platão (428-348 a. C.), o primeiro a sistematizar uma ideia inicial de teoria estética associando-a aos conceitos de beleza e divindade, além de estabelecer o princípio da mímese na arte. O filósofo sustenta uma posição ao mesmo tempo afirmativa e negativa quanto a necessidade da estética no contexto educativo. Se por um lado a beleza era imprescindível tendo em vista que “a boa educação é aquela que oferece toda a beleza e perfeições possíveis ao corpo e à alma” (ORMEZZANO, 2007 p 16) por outro, nos trabalhos políticos do filósofo, grande parte das expressões artísticas eram vistas como subversivas dentro do modelo ideal da república. Aristóteles desenvolve uma teoria muito diferente de seu mestre, dando ênfase no processo linguístico e psicológico, como afirma Ginzburg (1998 p 138) “a interpretação da linguagem humana como convenção, proposta por Aristóteles contra Platão, convidava a explorar a fundo a gama de fenômenos que estão antes, junto e além da linguagem”. Ao contrário da teoria platônica, existe no pensamento do estagirita um viés prático para a arte onde esta pode até, de acordo com Ormezzano (2007), purificar certas paixões através da katharsis, conferindo à arte um caráter terapêutico. No fim da antiguidade, entre os neoplatônicos, predominava uma ideia de arte relacionada diretamente com o plano de desenvolvimento espiritual. Como coloca Nunes (2010, p. 31) “mais do que atividade produtiva, a Arte é também um meio de conhecimento da Verdade. (…) O que importa a Plotino é a Arte como obra do espírito. Os produtos artísticos são signos de uma outra arte, imaterial”. 871 Na Idade Média a estética assume uma função instrumental com relação a teologia. Genari (1997) citando Santo Agostinho (354-430) lembra que a única razão de significar, a produção sígnica, é de transferir claramente ao espírito do próximo o que levamos em nosso próprio espírito. Kinnard (2001) cita a explicação dada por Gregório Magno (540-604) para o uso das imagens na liturgia católica, quando, no interior das igrejas estas tinham a função de servir como libri idiotarum ou “livro dos iliterados” podendo ser lidas por aqueles sem instrução. Esta ideia nos levou por muito tempo a ver as imagens artísticas como um mero complemento das informações textuais sem uma importância além da ilustração. Mas somente após o renascimento da cultura europeia e com o advento da modernidade, especialmente através de Kant (1724-1804), Schiller (1759-1805) e Hegel (1770-1831), é que a educação estética receberá uma definição mais completa e assumirá assim um papel importante dentro da filosofia da educação. Kant cria um marco definitivo na estética a partir da publicação da obra Crítica do juízo de 1790: “Superando a dicotomia de que todo o conhecimento é inato ou adquirido pela experiência, ele encontrou na tricotomia das faculdades humanas – conhecer, desejar, sentir – o princípio dos sentimentos de prazer e desprazer” (ORMEZZANO, 2007 p. 19). Tal ênfase na subjetividade que servirá de fundação à definição de Schiller para o conceito de educação estética. Trata-se de um preparo que consiste na experiência da beleza, estado de recepção produtiva da arte e da criação artística, onde se experimenta a síntese da racionalidade e das pulsões naturais. A experiência estética pode ser interpretada como um elo no caminho da educação político-moral ou pode, também, ser entendida como possibilidade humana de experimentar a felicidade, a satisfação e a plenitude de um presente sobre o qual se esboça um futuro de esperança e vida melhor. (ORMEZZANO, 2007, p. 20) Se no Ocidente atualmente costumamos depreciar a formação estética dentro da educação formal em favor de módulos curriculares mais “práticos”, dentro da educação indiana e tibetana é impossível falar de formação integral sem levar em conta o fenômeno estético. Grande parte daquilo que compõe hoje os cânones sagrados de ambos os países é composto por imagens que acabam por desempenhar funções diversas incluindo a simples narrativa até práticas contemplativas complexas. É importante salientar que, apesar de tecer aqui um panorama daquilo que pretendemos usar como base inicial para a pesquisa 872 proposta, não faltam na tradição indiana subsídios filosóficos e teóricos para justificar e refletir acerca de si mesma. Educação indiana Muitas vezes criamos coletivamente grilhões mentais por meio de conceitos maniqueístas e generalistas com fins políticos e esquecemos de colocá-los em questão. O orientalismo, termo cunhado por Edward Said é um bom exemplo de doxa que se reproduz desde a antiguidade. Orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição autorizada a lidar com o Oriente – fazendo e corroborando afirmações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o: em suma, o Orientalismo como um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente. (SAID, 2007, p. 29) Buscando fugir desta armadilha tão comum em textos acadêmicos sobre o tema, afirmamos aqui a necessidade da interculturalidade abordando a história e a cultura da índia como a matriz responsável pelo florescimento de grande parte do pensamento asiático. Como afirma Ginzburg (1998, p.87) as “semelhanças transculturais podem ajudar a compreender a especificidade dos fenômenos de que partiram”. Tendo isso em vista uma abordagem comparativa entre a filosofia ocidental e o pensamento indiano se faz necessária para compreender a proposta da pesquisa. Analisando em uma perspectiva mais ampla podemos notar que, no decorrer da história, várias culturas desenvolveram sistemas extremamente requintados de leitura e educação por meio da imagem. Nesse sentido a experiência educacional da cultura indo-tibetana, assim como o papel central que esta atribui à imagem, é um objeto de estudo interessantíssimo. Devemos ter em mente que praticamente todos os grandes questionamentos filosóficos levantados no ocidente foram também tema de análise das diversas escolas indianas. “Não há nenhum nível de visão espiritual ou filosofia racional atingida no mundo” escreve Radhakrishnan com insatisfação com alguns estudos ocidentais do pensamento indiano“ que não tenha um paralelo na vasta extensão entre os visionários Védicos clássicos e os modernos Naiyãyikas”. Uma reação moderada para essa afirmação é que ela clama por algo muito vasto. Mas Radhakrishnan não quer dizer que a filosofia indiana contenha a lógica formal do Principia Mathematica de Russell e Whitehead, mas apenas 873 que todas as possíveis tradições de pensamento, as quais a vida do homem pensante gerou, podem ser encontradas no pensamento indiano [...] e cada uma dessas tradições tem um desenvolvimento sistemático e elaborado desde o século IV a.C. até o século XV. (RAJU, 2009 p. 14, tradução nossa) A Índia é antes de tudo uma cultura, essa característica lhe permitiu o pioneirismo como nacionalidade extraterritorial. A base dessa cultura é religiosa e todas as atividades humanas relacionarem-se a esse princípio. Como afirma Mookerji (2003, p. XXI, tradução nossa) “A educação na Índia através das eras tem sido valorizada e perseguida não em seu próprio benefício, se podemos colocar assim, mas em função, e como uma parte, da religião”. Como define Jung a filosofia indiana “corresponde a uma psicologia que há muito já advertiu a relatividade dos deuses” (1999, p. 87). A educação deve ajudar nessa auto-realização, e não na aquisição de mero conhecimento objetivo. É mais direcionada ao sujeito que ao objeto, ao mundo interno que ao externo. Mas existe um método nessa loucura […] O caminho correto é buscar diretamente a fonte da vida e do conhecimento, e não somente adquirir conhecimento é, portanto, a principal preocupação. (MOOKERJI, 2003 p. XXIII, tradução nossa) Não seria possível passar aqui por todo o desenvolvimento das diversas tradições filosóficas indianas e sua relação com a educação, porém existem similaridades culturais que resistem ao tempo que podem ser assinaladas. No princípio da civilização ariana estabelecida no subcontinente era extremamente voltada para os rituais religiosos contidos nos Vedas e na literatura épica, com o desenvolvimento das escolas na forma de tradições aos poucos o sistema dava espaço para o questionamento filosófico e ideais educativos heterodoxos sediados em Ashrams, ou seja, dentro da casa dos mestres. Desde cedo se estabelece uma relação estreita e personalizada entre aluno e mestre, como de um paciente para com seu médico, isso passa a fazer sentido quando lembramos que grande parte das tradições focavam a filosofia de vida em primeiro plano. Mookerji (2003) comenta que a Índia sempre apostou no sistema doméstico buscando fugir da educação mecânica e padronizada, mas, ao mesmo tempo, equilibrando a educação manual e vocacional para dar um rumo prático à formação humana e ensinar ao aluno como lidar com os objetos e o próprio ambiente físico. Os indianos apresentam um desprezo pelo conhecimento escrito mostrado no início da educação védica. Observando-se que os textos sagrados hindus foram escritos tardiamente e que, até o século XVII eles eram transmitidos principalmente 874 por via oral, podemos compreender tal posição. O professor era a biblioteca dentro da tradição e se considerava um sacrilégio reduzir os Vedas à palavra escrita. Nessa ânsia prática estava o embrião de uma característica que logo iria se destacar nos sutras (discursos) mas principalmente nos mantras, formas extremamente reduzidas de discurso e que, na concepção indiana, falam diretamente ao atman (espírito). Tal prática abriria caminho para a filosofia tântrica, um conjunto de métodos que abrange (e une) as principais tradições do pensamento indiano. Pontos básicos do budismo Aquilo que conhecemos como “budismo” surge no berço da cultura indiana dentro do pensamento védico e rompe com sua estrutura para se tornar a primeira religião universal do mundo. Sua origem é atribuída ao príncipe Sidarta Gotama por volta do século V a. C. nascido no território que hoje pertence ao Nepal. Mesmo sendo referido como uma religião o budismo é, antes de tudo, uma tradição filosófica composta por múltiplas escolas. Seu cânone inicial está reunido naquilo que se convencionou chamar de triptaka, ou “três cestos”, onde aparecem as bases para a o discursos filosófico (sutras), moral (vinaya) e psicológico (abidharma) que compõe o chão comum da doutrina. Em muitos sentidos o budismo foi revolucionário, renegava a organização social predominante das castas, não determinava diferenças entre os seres sencientes, não formula a ideia de um deus (ou muitos) e até mesmo nega a existência de um “eu” permanente (atman em sânscrito, ou alma). Tudo relacionado à experiência subjetiva de Buda (“iluminado”, título conferido inicialmente à Sidarta) que, através de uma enorme gama de técnicas meditativas, reconheceu sem a necessidade de uma revelação divina a verdadeira natureza da mente, do mundo e do sofrimento humano. Esse conjunto de “descobertas” recebe o nome de Dharma e que, em termos gerais, podemos resumir em três etapas ou “giros”. Na primeira etapa, Buda tratou daquilo que é conhecido como “as quatro nobres verdades” que seriam: a verdade do sofrimento, a verdade da origem do sofrimento, a verdade da cessação do sofrimento e, por fim, a verdade do caminho que leva à cessação do sofrimento. Cabe salientar que a palavra original para designar sofrimento é dukkha em sânscrito, que indica não um sofrimento no sentido comum mas sim algo 875 proveniente da confusão, ignorância e inquietação que são comuns frente ao ir e vir entre extremos da vida. A mente degradada, afirmou, provém de nosso apego à noção de uma individualidade, ou ego. Assim, o Buda demonstrou a natureza sofredora da existência no mundo e suas causas. Em seguida, mostrou a possibilidade da liberação do sofrimento ao alcançarmos o Nirvana. (THRANGU, 1997, p. 6) Os primeiros ensinamentos de Buda formam a base para as práticas de um grupo que se convencionou chamar de “Pequeno veículo” ou Hinayana, o caminho dos anciões ou dos praticantes individuais, que enfatiza a conduta correta e a aversão ao samsara (o mundo comum de ilusão e desejo, ciclo de existências infindável) em busca da paz do nirvana (a cessação do renascimento, um estado e não um plano). Durante o segundo “giro” Buda aprofundou o que havia exposto e introduziu o conceito de vacuidade e originação interdependente através da coletânea de sutras (ensinamentos) conhecida como “Perfeição de sabedoria” ou, em sânscrito, Prajnaparamita. O foco dos ensinamentos se expande e passa a abarcar todos os seres sencientes por meio da compaixão universal. A doutrina da vacuidade se baseia no conceito de originação interdependente, onde se busca salientar a impermanência e a ausência de existência intrínseca de todos os fenômenos, o que não quer dizer inexistência, e sim que vemos os fenômenos de forma ilusória. É justamente essa ausência de existência intrínseca e a interdependência de todos os fenômenos que justificam e incentivam, juntamente com as quatro nobres verdades e os princípios de causalidade, a bodhicitta, literalmente “mente do despertar”, um processo de aspiração altruística à iluminação plena de todos os seres, atitudes que caracterizam um novo elemento no budismo, o Bodhisattva. Por fim os ensinamentos de Buda tiveram uma última etapa, o terceiro giro, onde trata-se do tathagatagarbha ou “natureza búdica”, o potencial inato para a iluminação. É nessa etapa dos ensinamentos que a questão subjetiva é ampliada e questões sobre a vacuidade são esclarecidas, como o fato de que o conceito não indicar a simples “não existência” ou vazio no sentido comum mas, ao contrário, é a vacuidade que dá origem a todos os fenômenos e é continuamente expressiva. Um outro aspecto que surge é o continuum mental em todos os seus níveis. Pois é através de tal continuum, identificado como nossa natureza búdica, que os 876 ensinamentos budistas asseveram a possibilidade de todos os seres atingirem o estado último da iluminação. Surge com isso o mais tardios dos “veículos” do Dharma, o Vajrayana, onde a profusão iconográfica que nos referimos ao início ganha força. De acordo com Rao a expressão “tantra” significa inicialmente “um sistema de pensamento, um corpo de práticas ou uma coleção de livros […] O significado original aparentemente se relaciona no contexto à tecelagem em um tear” ou mesmo “um padrão ou design que surge do seu desenvolvimento ou extensão” (2008, p. 3, tradução nossa). Apesar da definição vaga o tantrismo apresenta uma gama enorme de técnicas em um contexto suprarreligioso sistematizadas em mantras e sadhanas que lidam principalmente com processos complexos de visualização de deidades e “terras puras”. Durante o século VIII os ensinamentos budistas chegaram ao país das neves através do patrocínio do rei Trisong Detsen que promoveu a vinda do abade indiano Shantarakshita. Foi ele quem fundou o primeiro monastério tibetano e, com a ajuda do grande Padmasambhava conhecido como “Guru Rinpoche” ou “mestre precioso”, instaurou de forma definitiva o Dharma em terras tibetanas. Padmasambhava foi chamado de “o segundo Buda” tamanha sua importância, ele quem desencadeou todo o processo de criação de uma cultura única misturando elementos budistas com a tradição xamânica já existente no território tibetano conhecida como Bön. Por muito tempo conhecido como “lamaísmo” pelos ocidentais, o budismo tibetano é o próprio currículo de Nalanda travestido de fatores culturais locais. Os professores tibetanos sabiam que “as imagens possen un peso pedagógico que vá más allá de su estricto carácter lingüístico” (GENARI, 1997, p. 77) e que “una mayor limpieza icónica en el nivel mnemónico favorecía la construcción mental de las imágenes” (GENARI, 1997, p.36) e com isso criaram por séculos um aparato visual sincrético, transmitindo os ensinamentos budistas em uma linhagem ininterrupta até os dias de hoje. Para os tibetanos, como comenta Beer (1999, p. xvi, tradução nossa) “a rica reunião de símbolos do Budismo Tibetano é um encapsulamento das muitas qualidades iluminadas da mente de Buda, manifestando-se como a realização absoluta de sabedoria e compaixão”. São essas características do budismo vajrayana que nos levaram a escolhê-lo como alvo de nossa pesquisa buscando entender o complexo sistema que se coloca entre o praticante meditativo que busca transformar processos mentais e as intrincadas representações visuais que são 877 empregadas em tal prática. Tendo em vista a infindável gama de objetos usados no ritual Vajrayana e a impossibilidade de espaço para tratá-los de maneira individual, tomaremos para fins de estudo neste artigo um objeto artístico típico da cultura tibetana: a thangka. As origens da thangka no Tibet Mesmo sendo um país isolado geograficamente o Tibet sempre recebeu aportes culturais importantíssimos de seus vizinhos moldando sua história em um sincretismo impressionante. Se observamos sua localização geográfica e a disposição das províncias tibetanas, podemos constatar a enorme influência de culturas antigas como a chinesa, a indiana e a mongol no processo de formação do Tibet. Outro fator de intercâmbio se dava pelo fato de que a grande maioria dos tibetanos era de origem nômade e tinha na atividade pastoril e no comércio com povos vizinhos sua principal forma de sobrevivência. Os pequenos reinos que formavam o território tibetano foram unificados somente no século VII dando início a um império gigantesco por meio do reinado de Songtsän Gampo. Foi através deste monarca que inúmeros profissionais e artífices de várias partes do mundo incluindo persas, chineses, nepaleses, indianos e até mesmo médicos gregos, foram convidados para ensinar sua arte e fortalecer culturalmente o império visando a criação de uma identidade unificada em torno da dinastia. Neste período o Tibet se destacou em várias técnicas de produção de objetos de uso cotidiano, artísticos e religiosos. Podemos citar a produção de papel e tinta, trabalhos em couro, metal e madeira, os vários processos de pintura em mural, mobiliário, ornamentos e tela, assim como o desenvolvimento incrível da fundição artística dentro e fora dos mosteiros. No interior de uma tenda dos povos nômades do Tibet ocidental, por exemplo, podia-se encontrar toda a sorte de objetos decorativos adaptados as suas condições de vida, como utensílios em prata, mobílias de madeira, altares cerimoniais e também pinturas religiosas que ficaram conhecidas como thangkas, termo que deriva da palavra thang yig que quer dizer simplesmente “rolo”, “relatório” ou “desenho”, indicando seu formato próprio de 878 pergaminho (figura 1) especialmente prático para os viajantes que caminhavam com suas famílias pelo platô tibetano e para os “mágicos” que peregrinavam transmitindo seu conhecimento nessas terras geladas. Figura 1 – Pintura thangka com brocado e suportes Fonte: JACKSON. 2006, p.143 Uma thangka pode ter vários usos, desde suporte para a prática da meditação, contar histórias de heróis ou seres iluminados, até transmitir conhecimentos bem detalhados acerca dos textos sagrados. Justamente por isso, como é comum na maioria das sociedades, pinturas e esculturas foram essenciais na vida religiosa do Tibet por representarem o principal meio de transmitir os ideais do budismo recémtrazido da Índia e patrocinado pelo império nascente. Para os tibetanos uma pintura sagrada não era um simples objeto de adoração de uma entidade (na verdade essa prática comum nas religiões teístas é estranha ao budismo) mas era sim um suporte físico, ou corporificação, da própria iluminação possível a todos os seres preconizada por Buda, o iluminado. Contar histórias e transmitir conhecimentos diversos por meio de pinturas em pergaminhos é algo comum a várias culturas e especialmente eficaz quando se trata de um público geralmente sem alfabetização. No caso do Tibet podemos considerar que foi uma prática trazida da Índia que se adaptou perfeitamente à vida nômade dos antigos tibetanos. A densidade populacional era tão baixa que qualquer viajante poderia passar meses sem encontrar uma pessoa ou povoado, o perigo de se transladar de um lado a outro era 879 enorme, comunicação entre províncias se tornava muito difícil e demorada, manter a unidade do estado era um desafio. Foi a cultura tibetana, em especial a religião e a arte dela proveniente, que conseguiu gerar uma “liga” forte o suficiente para manter o Tibet unificado por vários séculos. O uso das thangkas tem então sua origem na necessidade dos Lamas em levar histórias e ensinamentos tanto do budismo quanto da crença nativa Bön assim como lendas nacionais de antigos heróis e reis. Pintura (juntamente com a escultura) era crucial para a vida religiosa do Tibet pois era o meio pelo qual os altos ideais do Budismo eram evocados e trazidos a vida. Uma pintura sagrada era para o Tibetano um “suporte físico” - em outras palavras uma corporificação – da iluminação.(JACKSON, 2006, p. 9, tradução nossa) Sua produção era feita principalmente dentro dos monastérios estabelecidos a partir do reinado de Trisong Detsen mas, com o passar do tempo, a atividade se popularizou e surgiram estúdios dedicados somente à pintura sagrada. Existem vários estilos de thangka no Tibet, cada região recebendo maior ou menor influência de determinado estilo estrangeiro. Em alguns estilos e tipos de thangkas, as árvores são desenhadas no estilo Rajput da Índia e as pedras no estilo chinês, já a maneira de colorir o nimbo foi inspirada pela cultura persa. A representação dos Arhats (os “dignos de veneração” indicando aqueles que realizaram a iluminação de acordo com o Hinayana), cuja iconografia chegou ao Tibet através da China, utiliza tradicionalmente o estilo chinês. Inicialmente a história da thangka tibetana é feita por indivíduos anônimos, leigos e lamas. Apenas após o século XIII, já com toda uma iconografia desenvolvida e sistematizada, que surgem as primeiras escolas de thangka em torno de determinado artista e seu estilo. Nem todos os tratados escritos acerca da pintura sagrada foram preservados, muitos se perderam no tempo ou durante a revolução cultural chinesa, se todos estivessem a nosso alcance poderíamos ter uma visão muito mais rica da tradição artística no Tibet. Caracterização e tipos de thangka As thangkas tibetanas são caracterizadas, fisicamente falando, por possuírem um suporte em tecido de algodão, linho ou até mesmo seda. A base é preparada utilizando-se cola de origem animal e goma de calcário que é posteriormente polida e, em seguida, pintada com pigmentos naturais e muitas vezes prata ou ouro. 880 Quando prontas são emolduradas em brocados tradicionais de diferentes cores, de acordo com o motivo da pintura. A produção da pintura, dependendo da sua complexidade, pode demorar meses. Ao final ela é consagrada em um ritual específico para a finalidade pela qual foi produzida e as sílabas Om Ah Hum Svaha são desenhadas em seu verso. Sua moldura nunca é perfeitamente retangular, ao contrário, na base da pintura pode-se notar um trapézio que representa a “porta de entrada” da thangka em direção à deidade. Tendo em vista que, originalmente, as thangkas ficavam penduradas em tendas expostas à intempérie, como proteção as pinturas são cobertas por panos vermelhos e amarelos de seda nos quais são penduradas duas fitas vermelhas que lhes servem de suporte. Acima e abaixo do brocado são introduzidos bastões que esticam a tela e também servem de proteção para o transporte (Figura 1). Existe uma enorme diversidade de motivos retratados nas thangkas, estes vão desde elementos doutrinários com fins didáticos, pinturas geométricas como mandalas e yantras, representações arquitetônicas de stupas e templos, até as mais comuns que exibem Budas, Bodisatvas, yidams ou dharmapalas. Resumidamente podemos agrupar os motivos usados nas pinturas sagradas em oito grupos: Seres iluminados: Estão inclusos nessa categoria os Budas, Bodhisattvas e gurus. São exemplos dessa classe as representações de Buda Shakyamuni, Manjushri e Padmasambhava. Yidams: Deidades pessoais de meditação, de acordo com a constituição psicológica do praticante representam a natureza búdica para ele. Podem ser representados em formas pacíficas, iradas ou intermediárias. Dharmapalas: Os “guardiões da doutrina” são entidades assimiladas do hinduismo e do culto Bön nos períodos de implantação do budismo Ilustrações da doutrina: Existem thangkas que tem como objetivo transmitir informações sobre determinado tema complexo. É o caso, por exemplo, da “roda da existência” que explica em um só quadro a cosmologia budista, assim como conceitos fundamentes de originação interdependente. 881 Mandalas: As mandalas guardam o segredo mais profundo dos ensinamentos tântricos e estão ligadas à compreensão final da vacuidade (sunyata). Ao contrário do conceito disseminado no ocidente, mandalas não são apenas material de decoração ou, para a psicologia analítica, representações circulares que podem representar aspectos psicológicos humanos. No contexto budista e hindu elas são “plantas baixas” da consciência, representações bidimensionais de uma realidade tridimensional e fractal, do palácio da deidade e seu séquito. A mandala é uma tentativa de representar o reino da ausência de forma, o dharmakaya, através dos cinco campos da mente iluminada: Kaya (corpo), Vaca (fala), Citta (mente), Guna (qualidade) e Karma (ação). Stupas e outros elementos arquitetônicos: Uma stupa é uma representação simbólica do corpo, fala e mente de Buda, muitas vezes confundida com um templo porém não possui entradas, trata-se de uma espécie de relicário que serve como uma lembrança dos seres iluminados. Yantras: Da forma que as mandalas os yantras são modelos geométricos abstratos, mas em seu caso específico indicam um caminho ou roteiro que deve ser seguido. Sua tradução literal do sânscrito é “instrumento”, os yantras são usados nas representações dos pontos de energias do corpo (chackras), possuem um ponto de início e um fim, sendo que cada forma geométrica dentro deles tem seu significado. Deidades menores: Nesse grupo incluem-se várias deidades provenientes do panteão hindu e Bön, incluindo os Nagas, seres marítimos metade humanos metade serpente. que seriam os guardiões dos tesouros, Dakas e Dakinis, manifestações masculinas e femininas que conectam a esfera humana com planos mais elevados, entre outros. Cada detalhe do Yidam, seus ornamentos, expressões corporais, cada disposição de elementos, ou formas de expressão de um Buda, Dharmapala ou Bodhisattva a tem seu significado e, no contexto geral da prática tântrica, não existe nenhum ponto sem importância. Vários fatores são essenciais na simbologia, um dos principais são os mudras. Os mudras são gestos corporais simbólicos que expressam elementos do Dharma. Os textos sagrados descrevem centenas de mudras, cada um com vários níveis de significado e também alterando sua 882 mensagem de acordo com o contexto. Outro elemento importante são as cores da deidade, uma ótima forma de exemplificar isso é através da simbologia dos cinco Dhyani-Budas (Figura 2). Essas cinco facetas da consciência, chamadas assim por envolverem, cada uma delas, todo um séquito de outras divindades, podem ser agrupadas por “famílias búdicas” que com seus respectivos Dhyani-Budas e Yidams, formam uma das mandalas mais importantes do Vajrayana e dentro de sua simbologia provém grande parte das práticas do caminho tântrico tibetano (sadhanas). Figura 2 – Os cinco Dhyani-Budas da esquerda para a direita Ratnasambhava, Akshobhya, Vairochana, Amitabha e Amoghasiddhi. Autora: Tiffany H. Gyatso Fonte: Centro de Estudos Budistas Bodisatva Finalmente outro fator de grande importância nas thangkas é a ordenação das figuras na composição. Normalmente existem algumas regras para a composição da pintura, em outros casos porém é o patrocinador que determina quais elementos farão parte do quadro. Porém uma coisa que necessariamente deve ser respeitada é a hierarquia entre entidades, isso se dá através de tamanho e localização na composição. A ordem é expressa da seguinte forma: Gurus; Yidams; Budas; Bodhisatvas; Daka e Dakini; Dharmapala; Yaksa; Deuses da prosperidade; Deidades menores. Cabe salientar que essa ordem é relativa pois diz respeito apenas as figuras de segundo plano, excluindo assim a deidade principal da pintura. 883 Thangka como suporte para prática Existem muitos usos tradicionais para uma thangka. Como já foi dito elas podem contar histórias e transmitir conhecimentos relativos ao Dharma, além disso, também era comum no Tibet, por exemplo, thangkas serem patrocinadas em favor de um familiar doente ou de uma pessoa que acabara de falecer. Apesar de algumas aplicações estarem muito próximas da superstição (como o uso de pinturas para espantar demônios) a principal aplicação das pinturas sagradas era, e continua sendo, o suporte para a prática meditativa. Para que se possa entender corretamente o lugar da visualização dentro do contexto do budismo é preciso ter em mente as questões já abordadas da ausência de existência intrínseca nos fenômenos, da vacuidade e dos diversos níveis de expressão da iluminação. A pintura tibetana thangka foi desenvolvida principalmente para sustentar a técnica da visualização. O objetivo da visualização não é adorarmos uma divindade exterior qualquer; (…) Portanto, nessa arte não se trata, como de costume, de estimular um comportamento distanciado entre o observador e o quadro, mas o quadro deve estimular o observador a entender ativamente a forma que lhe é apresentada como um determinado âmbito da realização e, finalmente, unir-se com ela. (DUDKA; LUETJOHANN, 2009, p.18) Nunca uma prática formal Vajrayana pode ser confundida com adoração de imagens, o conceito de deidade aqui é muito diferente. Embora a palavra Yidam seja traduzida normalmente como “deidade” esse termo não é tecnicamente correto, uma vez que os Yidams representam aspectos da mente iluminada eles não são “deidades” no sentido convencional. As divindades pessoais de meditação chamadas Yidam não são deuses com caráter próprio, de acordo com o conceito ocidental de deus. Dentro da prática tântrica, representam a diversidade de formas da energia da iluminação e da realização do Buda. São aspectos de determinadas qualidades e atividades do corpo, da fala e da realização do Buda. (Ibid, p. 19) O principal meio de prática se dá através das sadhanas, traduzindo literalmente “caminhos” ou “roteiros” de prática. Essas sadhanas são normalmente textos impressos contendo recitações de orações e mantras que são associadas ao contexto principal da visualização. A visualização do Yidam revela, através da concentração em sua simbologia, processos escondidos no subconsciente e níveis mais profundos. Durante a prática meditativa além de se concentrar na forma do Yidam o praticante iniciado no Vajrayana visualiza à si mesmo como a deidade com 884 o objetivo de internalizar todas as qualidades que ela expressa como representação da mente iluminada. De acordo com o budismo a imaginação de uma deidade de meditação traz como consequência uma perfeita identificação com ela e a aproximação mais rápida das qualidades incorporadas, do que se apenas mentalizássemos e as quiséssemos desenvolver apenas pelo intelecto. Também, a partir desse ponto, o praticante aprende a experimentar todos os fenômenos como manifestações da mandala da divindade, todos os sons como mantra da divindade e todos os pensamentos como expressão de sua sabedoria iluminada. O fato de transformar a nossa visão ordinária em uma forma de observar sem julgamentos, de forma “pura”, os fenômenos estão presentes em grande parte dos tantras superiores tibetanos. Na maioria dos casos os elementos simbólicos são tantos que ficaria impossível qualquer prática sem o auxílio das imagens presentes nas thangkas. Como a visualização se dá dentro da posição clássica de meditação, inicialmente o praticante observa a deidade à sua frente, e então aplica a fórmula da vacuidade ou “o círculo perfeito dos três” onde estão presentes um sujeito, um objeto e a relação entre os dois. Podemos expressar essa “pureza tríplice” pela forma “eu não possuo existência real, a visualização não possui existência real e o ato de visualizar também não possui existência real”. Dizse que a visualização deve ser sutil, de substância transparente, de aparência vazia e luminosa, comparável a um arco-íris no céu. No final da prática a divindade visualizada é dissolvida outra vez no espaço aberto do vazio, como sinal de que todas as coisas estão livres de um núcleo essencial imutável, sua aparência é como uma ilusão, a essência pura de uma divindade da sabedoria e expressão da sua mandala. (DUDKA; LUETJOHANN, 2009, p. 23) Em resumo, a visualização criativa e outros exercícios, em que são usadas as imagens presentes nas thangkas, são, segundo o budismo, meios eficazes de reconhecer nossa natureza iluminada primordial e nos identificarmos com ela. Por “falar” diretamente com aspectos inconscientes da psique através de sua própria linguagem, os símbolos, e não apelar exclusivamente para o processo racional os tibetanos consideram este como o caminho mais rápido para alcançar a realização plena. 885 Conclusão O futuro do Tibet e dos tibetanos é ainda incerto, a cada dia que passa as chances de um estado novamente livre e soberano diminuem. Porém, inspirados pela dinamicidade de seu líder espiritual o XIV Dalai Lama, os tibetanos tem se reinventado a cada dia. Isso não é diferente no campo das artes. Através da criação do instituto Norbulingka em 1988, um centro para preservação das artes tradicionais tibetanas como pintura, escultura, entalhe em madeira e outros, criou-se toda uma nova geração de artífices com conhecimento suficiente para manter a tradição viva e aperfeiçoá-la. Além disso, mesmo pintores de thangka tradicionais têm desenvolvido estilos próprios e abordagens bem particulares aos temas religiosos apoiados por novos eruditos tibetanos com uma formação muito mais eclética e aberta que seus antepassados. No entanto é importante não separar a thangka de seu contexto original e, muito menos, observar tais pinturas como meras peças de museu. Como afirma Tarthang Tulku (2002, p.27) “quando vemos thangkas fora do seu contexto religioso, separadas dos ensinamentos que estas pinturas expressam, não podemos apreciar plenamente seu valor”. A pintura sacra tibetana faz parte de todo uma imagem maior, um complexo interligado de expressões artísticas e religiosas, e fora deste cenário perde grande parte de seu valor. Por isso é importante preservar a tradição de maneira inalterada associada a novas formas de manifestação criativa. A menos que exemplos perfeitos de todos os tipos de thangkas sejam preservados e disponibilizados amplamente, será difícil continuar a transmissão das tradições artísticas tibetanas além da próxima geração. Se assim for, a arte tibetana tornar-se-ia tão distante das tradições budistas como os antigos ícones ocidentais o são para nós hoje: canais fechados ao conhecimento, sem que tenhamos nenhuma maneira de reabri-los. (Ibid, p. 29) Da mesma forma que a arte indiana, todas as expressões estéticas da cultura tibetana provém e tem como objetivo final a realização plena do potencial humano. Pintura, escultura, teatro, dança e música unem-se em torno desta aspiração. E tal contexto, como podemos perceber adotando a thangka como exemplo, tais expressões constituem uma linguagem adequada para expressão de ideias complexas que muitas vezes escapam da verbalização. Uma das principais contribuições que a tradição educativa oriental pode nos proporcionar nos dias de 886 hoje é justamente a valorização do fator estético dentro da formação integral humana. Cada imagem é um convite e um mapa de um mar desconhecido. Finalmente é importante deixar claro que este artigo apresenta de maneira bastante humilde a tremenda complexidade tanto do processo artístico ligado à thangka quanto seu uso enquanto ferramenta contemplativa e educativa. Esperamos que através destas poucas linhas tenhamos despertado o interesse nessa cultura milenar e complexa, assim como na arte oriental como um todo, e que isso possa servir como uma ligação benéfica em busca daquilo que Buda visualizou sentado sob uma árvore 2.500 anos atrás: uma visão pura, pacífica e simples da realização de nossa própria natureza iluminada. Referências BEER, Robert. The encyclopedia of tibetan symbols and motifs. Boston: Shambhala, 1999. DUDKA, Nick; LUETJOHANN, Sylvia. A prática da meditação tibetana. São Paulo: Pensamento, 2009. GENARI, Mario. La educación estética: arte y literatura. Barcelona: Paidós, 1997. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das letras, 1998. JACKSON, David; Janice. P. Tibetan thangka painting: Methods & Materials. Ithaca: Snow Lion Publications, 2006. JUNG, Carl G. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1999. KINNARD, Jacob N. 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Desenvolveu pesquisas sobre pintura sacra e escultura em bronze na Índia e Nepal entre os anos de 2010 e 2013. Atualmente é estudante do 6° semestre de Filosofia (UPF) e mestrando em educação pelo PPGEDU (UPF). 887 HISTÓRIA DAS TÉCNICAS DA ARTE DO CHARÃO NO JAPÃO Francis Jean Yves Marie – INALCO, Université de la Sorbonne Nouvelle Paris III RESUMO: Esta apresentação tem por objetivo traçar um resumo da história das técnicas e da evolução da Arte do charão no Japão. Trata-se de um trabalho baseado em pesquisas e estudos, teóricos e práticos, desenvolvido em um dos mais conceituados institutos sobre este assunto: o Laboratório Nacional de Pesquisa dos Bens Culturais, de Tóquio. O charão é uma resina vegetal, seiva da árvore Rhus vernicifera, do Japão. Esta resina foi utilizada inicialmente por causa de duas de suas propriedades físicas: sua qualidade de cola resistente e impermeabilizante. Artefatos achados em sítios arqueológicos pré-históricos comprovam a utilização do charão no Japão desde a época Jomon (7500 a. C.). Com o decorrer dos séculos, os modos de preparação da resina bruta, sua associação com outros materiais e o aspecto decorativo ampliaram consideravelmente o leque de suas aplicações e técnicas. A utilização rudimentar do charão se transformou em uma arte sofisticadíssima, criando uma importante cadeia de produção de profissionais trabalhando a resina e artesãos produzindo objetos de base, ferramentas e implementos necessários. A sua história passou por períodos de apogeu e declínio. O trabalho com charão exige paciência, habilidade, dedicação e por estas razões foram e são poucos os que dominam esta “Arte do Urushi”. Palavras-chave: Charão, Arte do charão, urushi, resina, técnica. SOMMAIRE: Cette présentation a pour objectif de tracer un resumé de l´histoire des techniques et de l´évolution de l´Art du Laque au Japon. Ce travail est basé sur des recherches et études (théoriques et pratiques), realizés dans un institut des plus respectés sur ce sujet: le Laboratoire National de Recherche sur les Biens Culturels de Tokyô. La Laque est une résine végétale, sève de l´arbre Rhus vernicifera no Japon. Cette résine fût utilisée initialement à cause de deux de ses proprietés physiques: ses qualités de colle résistante et impermeable. Artéfacts trouvés dans des sites archeologiques pré-historiques prouvent l´utilisation de la laque au Japon dès l´époque Jomon (7500 av.J.C.). Au cours des siècles, les modes de préparer la résine brute, son association avec d´autres matériaux et l´aspect décoratif ont élargi considérablement l´éventail de ses applications et techniques. L´utilisation rudimentaire de la laque s´est transformée en un art sophistiqué, créant une importante chaîne de production de professionels travaillant la résine et artisants produisant objets de base, outils et compléments nécessaires. Son histoire a passé par des périodes d´apogée et de déclin. Le travail de la Laque requiert patience, habilité, dévouement et pour ces raisons furent et sont peu ceux qui maîtrisent cet “Art de l´Urushi”. Mots-clés: Laque, Art du laque, Urushi, résine, technique. A árvore do charão é de tipo frágil, assim, quando uma parte do tronco ou um galho estiver ferido, acontece um processo de apodrecimento a partir da área machucada. Para combater esta necrose, a seiva, com propriedade de esterilização, começa a escorrer da ferida, endurecendo rapidamente com umidade do ar, como se fosse um curativo impermeável, “cicatrizando” e protegendo a árvore de dano maior. A observação deste processo deve ser a origem da utilização da seiva. No arquipélago nipônico, a resina é extraída da árvore Rhus vernicifera, família 888 Anacardiaceae, Toxicodendron vernicifluum, com uma técnica específica, diferente dos outros países da Ásia. Três pequenas foices especiais (kama) mais um pote (urushi-tsubo) são utilizados para o processo. A primeira é utilizada para remover a casca, uma foice de duas funções serve de um lado para fazer uma incisão na árvore e do outro lado para estimular a saída do charão. Uma espátula estreita de metal completa o jogo, sendo utilizada para raspar a seiva que escoou e colocá-la dentro do pote. O ideal é extrair a resina bruta (urushi) em uma árvore de doze a vinte anos quando o diâmetro do tronco deve atingir de quinze a vinte centímetros. A extração acontece durante os meses de verão no Japão. O processo começa na metade do mês de junho e vai até o fim de setembro ou novembro, dependendo da região. As incisões são praticadas em várias partes do mesmo tronco com cinco a sete dias de intervalo. No fim do dia, o charão recolhido no pote é colocado num balde e tampado para evitar a oxidação. Nos outros países da Ásia que produzem o charão - China, Vietnã, Coreia, Camboja, Birmânia, Butão - o procedimento é diferente daquele utilizado no Japão e parecido com a colheita do látex no Brasil. A seiva escoa das incisões do tronco até um potinho fixado na árvore. Recolhida semanalmente, quando serão trocados os recipientes, esta resina tem um custo bem menor que daquela extraída no Japão. A resina chinesa é retirada da mesma árvore, Rhus vernicifera, entretanto ela é de qualidade inferior. O tempo entre as trocas de potes facilita o contato com o ar, a oxidação e a fermentação do charão. Como a extração acontece nos meses de verão, de clima quente e úmido, esses dois fatores favoráveis ao endurecimento da resina acabam alterando também suas propriedades. Pelo aspecto econômico, a resina chinesa é bastante utilizada no Japão na produção de objetos em grande quantidade para preparação das camadas inferiores e intermediárias. A seiva japonesa fica reservada para as camadas superiores e acabamento das peças. Nos ateliês mais refinados, o charão nipônico pode ser utilizado desde camadas inferiores até o acabamento (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). 889 Características do charão A seiva, ao sair da árvore, é de cor bege leitosa, em contato com o ar, ela começa a se oxidar, tomando uma coloração caramelo ou cor âmbar, tendo ela cheiro de vinagre. Para impedir sua oxidação, fermentação e endurecimento, ela deve ser acomodada em recipientes fechados sem contato com o ar. Em função do momento da colheita, o charão tem uma porcentagem de água diferente. A proporção ideal de água na seiva acontece entre a metade de julho e fim de agosto, no urushi abundante e da melhor qualidade (“sakari-urushi”) (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). As propriedades físicas do charão são múltiplas, além das qualidades de cola resistente e impermeabilizante que já foram descobertas e aproveitadas há mais de 6000 anos. A seiva endurecida é durável, isolante elétrico, resistente às substâncias ácidas, básicas, óleos, solventes e a altas temperaturas (a laqueação sobre objeto em metal passa ao forno a 150ºC por uma hora). O charão é sensível às radiações ultravioleta e se enfraquece em condições de umidade baixa (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Preparação do charão A primeira operação a ser feita é a filtragem da resina bruta (arami) para descartar, principalmente, pedacinhos de casca da árvore. O charão filtrado pode ser usado no estado bruto para as camadas de preparação de um objeto delicado, mas geralmente só uma parte desta seiva (kijômi) é guardada para usos especiais. A segunda fase de preparação da resina é a homogeneização e a evaporação da água (nayashi e kurome). No fim deste processo, a seiva passa da cor leitosa e opaca para cor âmbar e semitransparente (kijiro-urushi, tomei-urushi). Duas partes desta laca são conservadas nesta fase, uma parte para ser usada na cor âmbar ou misturada com pigmentos. Na outra parte, será adicionado um corante amarelo, caldo preparado de frutas de gardênia, que deixa a laca mais transparente (nashijiurushi), sendo utilizado em uma das técnicas de maki-e: nashiji (efeito pele de pera japonesa). Outra qualidade de urushi pode ser preparada nesta fase, adicionando de 20 a 30 % de óleo de charão preto ou semitransparente (shu-ai-urushi, nuri-tate890 urushi). Este composto é utilizado na última camada de laqueação, ele dá brilho sem precisar de polimento (hana-nuri). O shu-ai-urushi é muito usado para laqueação de objetos destinados ao uso cotidiano, como tigela, bandeja, par de palitos, sendo de fácil manutenção. O tipo semitransparente (kijiro-urushi) é usado para preparar o charão colorido (iro-urushi). O procedimento seguinte é a transformação para a cor preta (roiro-urushi). Na tradição, misturava-se limalha de ferro para obter essa cor, atualmente pode-se utilizar também hidróxido de ferro ou sulfato de cobre. Estes procedimentos são agora mecanizados, meio industrializados, com exceção do charão colorido, que é preparado pelo artesão, mas existem ainda ateliês que preferem realizar o processo completo para ter certeza da origem e da qualidade do produto. Neste caso, a oficina compra a seiva bruta diretamente do artesão que a colhe. Após estas diferentes fases, o charão está pronto para ser utilizado. Ele é armazenado em diferentes tipos de baldes de papelão ou madeira tampados com o papel oleoso e nas últimas décadas também vêm sendo utilizados tubos de estanho (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Secagem ou endurecimento do charão O charão endurece por uma reação de oxidação e de polimerização do ácido urushique (“urushiol”) e da “laccase” (catalisador), em meio úmido, 70% de umidade do ar, e temperatura de 35ºa 40ºC, estendendo-se o processo por cinco a seis horas. Para favorecer a reação química desejada, condições ideais de umidade e temperatura são criadas dentro de um gabinete “muro” onde serão colocados os objetos que acabam de ser laqueados. Esta estufa pode ser do tamanho de uma cômoda com portas deslizantes ou de um quarto, dependendo da quantidade ou do tamanho dos objetos (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Bases e suportes utilizados nos objetos laqueados A matéria-prima mais utilizada e mais antiga é a madeira. Quando a base é do tipo caixilho (sashi-mono ou ita-mono) ou de lâmina curvada, flexionada (magemono), são utilizados o cipreste, a canela ou diferentes tipo de coníferas, porque não entortam nem racham. Para objetos torneados (hiki-mono), o olmo, a cerejeira, a magnólia, a canela, a faia e o ginkgobiloba são as mais comuns. Peças são 891 esculpidas ou entalhadas (kuri-mono) em amoreira. Objetos, desde o passado remoto, são fabricados com lâminas de bambu trançadas (rantai) com couro de vaca, javali, cervo, gato e cachorro (shippi), com casca da cerejeira, em cerâmica não esmaltada (yaki-mono), com papéis fibrosos (shitai ou ikkanbari: várias camadas coladas ou papier maché) em tecidos de linho, juta, seda, algodão (kanshitsu: laca seca) e com metal (kin-tai). Muitos exemplos destes objetos existem desde século nove e são conservados no Pavilhão dos Tesouros Nacionais (Shôsô-in) em Nara (MATSUDA, 2001; MASUMURA, 1985; JAHSS e JAHSS, 1981; tradução nossa). Laqueação dos objetos Existem mais de cem aplicações diferentes do charão. As mais simples comportam de uma a quatro camadas. A mais singela de todas (kakiawase-nuri) consiste em passar sobre um objeto de madeira um extrato de caqui amargo (kakishibu), utilizado para impermeabilizar, seguido de uma única laqueação. Para realçar a beleza dos veios da madeira (mehajiki-nuri), são feitas quatro aplicações de charão semitransparente (kijiro-nuri, shunkei-nuri), na última, um óleo secante é adicionado ao charão para dar brilho. Quando uma camada de charão colorido (irourushi, vermelha, amarela ou verde) é aplicada antes da laqueação semitransparente, a técnica chama-se tame-nuri. A aplicação de múltiplas camadas acontece na técnica de charão esculpido (chôshitsu). São dezenas de laqueações sobrepostas para uma espessura de três a sete milímetros, suficiente para poder ser entalhada. (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Preparação das bases São três tipos de preparação de base (urushi-shita-ji) na história do charão: o primeiro, “verdadeiro fundo duro” (honkata-ji), preparado com pó de terracota misturado com água e charão bruto, aplicado no suporte com pincel ou espátula; o segundo, “verdadeiro fundo” (hon-ji) que contém só o pó fino e charão bruto, é aplicado duas vezes com pincel; e o terceiro, “fundo semeado” (maki-ji), é feito com várias camadas de pó semeado sobre o charão fresco. Após secagem, o processo é repetido com partículas menores, várias vezes. Na época atual, só o primeiro tipo (honkata-ji) é utilizado. Os dois outros foram abandonados no meio do século 892 dezenove, por serem irregulares e muito duros, praticamente impossíveis de retificar com polimento. (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Polimento do charão A cada aplicação de charão corresponde um tipo de polimento. Nas camadas inferiores de preparação, são utilizadas pedras para polir, usadas com ou sem água. Nas fases de laqueação, são usados diferentes tipos de carvão vegetal, preparados das árvores camélia e magnólia. Para o acabamento final do charão, são empregados pó de carvão, partículas finíssimas de pedra de polir misturadas com óleo vegetal e pó de chifre de cervo calcinado. Nas partes com decoração metálica, ouro, prata, aogin, são utilizadas partículas finíssimas moídas de pedra de amolar. O tempo necessário aos múltiplos polimentos é muito superior ao tempo de laqueação. A única exceção é quando na última camada é aplicado o shu-ai-urushi, que é a técnica de laquear sem fazer nenhum tipo de polimento após secagem (hana-nuri, nuri-tate) (MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Ferramentas e implementos utilizados no trabalho do charão Para as múltiplas fases de preparação, laqueação e decoração dos objetos, é necessária uma infinita lista de ferramentas diversas e complexas como também inúmeros implementos específicos fabricados por artesãos especialistas. Na fase de preparação do suporte ou base, misturam-se com o charão bruto pó de serragem, fibra de tecido, pó de argila ou de terracota e água (urushi-shitaji). As camadas de tecido (linho, seda, juta, algodão) são coladas (nuno-kise) com charão misturado com água e farinha de trigo (mugi-urushi) ou de arroz (nori-urushi). Para preparar e aplicar as camadas de base são utilizadas espátulas de cipreste (hinoki) de metal e nos diais de hoje de plástico também. Existe uma gama de pincéis, com múltiplos tamanhos, formatos e usos específicos, confeccionados com pelos de animais ou cabelo humano. Um pincel de crina de cavalo é utilizado para espalhar o fundo de base. Os instrumentos para desenhar com urushi precisam de mais corpo e firmeza que aqueles das artes picturais comuns. Para traçar linhas ou curvas compridas e regulares, são utilizados 893 pelos selecionados de rato, raposa, coelho, gato e texugo. Os pincéis destinados à laqueação (hake) são feitos de cabelo humano. Os “hake” são fabricados por e para gerações de artesãos, sendo parecidos, a princípio, com lapiseiras; finas plaquinhas de cabelos são juntadas, coladas e prensadas entre quatro lâminas de madeira. Quando a extremidade do pincel fica desgastada ou danificada, ela é cortada e pode ser “apontada”, removendo uma pequena faixa das lâminas de madeira, apresentando um pincel novo, pronto para usar. Na fase de decoração, são numerosos os tipos de materiais utilizados. Nas técnicas de nácar (raden), madrepérola e outras conchas, eles são utilizados de variadas formas: para incrustação, são usadas lâminas duras de dois milímetros (hatsu-gai); para aplicação em superfície, lâminas finas (usu-gai), inferiores a um milímetro, e diferentes tamanhos de partículas. O elemento de decoração em lâminas duras requer serrinha e um jogo de limas variadas para ser feito. Nas decorações, os metais (ouro, prata e estanho), são utilizados sob múltiplas formas: placa fina (hyômon) e folha ultrafina (haku). Para as técnicas de desenhos semeados (maki-e), são utilizados três metais (ouro, prata, estanho) em partículas de formatos e dimensões diferentes (são mais de 150 tipos). Esses pós-metálicos são semeados sobre uma camada de charão fresca com ajuda de canudos de bambu (tsutsu) semifechados em uma extremidade por uma gaze, tipo peneirinha, permitido espalhar direcionando o pó. Para preparação do charão de cor (iro-urushi, e-urushi), precisa-se de pigmentos específicos compatíveis, diferentes daqueles utilizados nas artes picturais comuns. O pó colorido pode ser utilizado malaxado com a resina, ou semeado numa camada fresca de charão (pigmentos puros ou misturados com partículas metálicas). Nas técnicas de incrustações, o marfim, o chifre, a cerâmica, as pérolas, o estanho, as ligas e fios de metais, os esmaltes e o casco de tartaruga fornecem uma gama de opções. Além de agulhas, estiletes e facas variadas, pequenos formões são necessários para esculpir a madeira; outro jogo de formão é utilizado para fazer as delicadas incisões na técnica do “ouro afundado” (chinkin) (BUSHELL, 1979; MASUMURA, 1985; MASUDA, 2001; JAHSS E JAHSS, 1981, tradução nossa). 894 Período Pré-Histórico (13.000 – 300 a.C) A região norte do Japão (Aomori e Hokkaido) tem 18 sítios arqueológicos da época pré-histórica (Jomon: 9000 – 300 a. C.). A mais recente descoberta de artefatos na ilha de Hokkaido no ano 2000 comprova a utilização do charão no Japão desde 6500 a. C. Trata-se de um conjunto de ornamento funerário especial, destinado a alto dignitário. Confeccionado de fibras naturais e recoberto de charão de cor vermelha, este traje oficial tem 9000 anos (URUSHI, 2014, tradução nossa). Outros objetos mais “recentes” comprovam a utilização da resina sobre outros tipos de material como madeira no Jomon precoce (5000-3000 a. C.), bambu no Jomon médio (3000-2000 a. C.), cerâmica no Jomon tardio (2000-1000 a. C.). Até esta época, o Charão de cor vermelha (à base de óxido de ferro (benigara, Fe2O3), de cinabre (sulfeto de mercúrio HgS)) ou de cor preta era aplicado diretamente sobre os objetos sem preparação (tigelas cavadas, colares, pentes, brincos, arco). Nos objetos feito de lâminas de bambu entrelaçadas, do Jomon final (1000-300 a.C.), observa-se uma nova técnica importante: o charão foi utilizado com liga, misturado com um tipo de areia para obturar as malhas do trançado. Para confeccionar os pentes deste mesmo período, a base dando suporte aos dentes de bambu, foi feita uma mistura do charão com pó de argila e de serragem. Esta liga (urushi-shitaji) de alta resistência usada nos dez pentes descobertos no sítio arqueológico de Terachi tem mais de dois mil e quinhentos anos e apresenta um ótimo estado de conservação (MATSUDA, 2001; KURAKU, NAKASATO, 1985, tradução nossa). Idade da pedra e do ferro (Yayoi: 300 a.C. - 250 d.C; Kofun: 250 d.C - 538 d.C.) Do período Jomon final até o período Asuka (538-650 d. C.), a técnica do charão entra em retrocesso e a técnica de shitaji é raramente utilizada. Entretanto, o urushi continua sendo utilizado sobre diferentes tipos de matérias como arma, armadura, cofrinho e cerâmica. Objetos de madeira encontrados em ruínas perto de Shizuoka, da época Yayoi, apresentam múltiplas camadas de charão de cor preta ou desbotada, sem decoração. São objetos de madeira feitos no torno (tigela), com encaixes (bandejas, mesinhas) ou feito à mão (conchas) (MATSUDA, 2001; KURAKU, NAKASATO, 1985, tradução nossa). 895 Período antigo (538-1200 d. C.). A partir do século seis, o Japão começa a se desenvolver como nação e durante os quatro séculos seguintes, do sexto ao nono, a arte do charão será fortemente influenciada por objetos magníficos e técnicas, chegados, da China via Coreia e também do Ocidente. O arquipélago nipônico foi neste período a ponta no extremo leste da rota da seda. Esta via ligando a Ásia, o Extremo Oriente e a Europa formava a maior rede comercial de intercâmbio cultural, político, religioso e científico do mundo antigo. Historicamente, foi a primeira globalização antes que se pudesse pensar nessa palavra (ROTA, 2014). Os objetos preciosos que influenciaram as artes neste período, vindos da Índia, do Irã, da Grécia, de Roma, da China e do Egito, estão guardados até hoje no Shôsô-in, Pavilhão dos Tesouros Nacionais, em Nara, junto com objetos refinados de produção nacional do oitavo século. Das nove mil peças do acervo, mais de seiscentos itens estão relacionados ao imperador Shômu (701-756). Uma exposição anual (Shôsô-in-ten) oferece aos visitantes durante duas semanas, mais ou menos setenta destes tesouros, dos quais alguns nunca foram mostrados. Em 2013 aconteceu a sexagésima quinta exposição (SHÔSÔIN, 2014; NAKASATO et al., 1985, tradução nossa). Da China, em particular, veio a técnica da “laca seca”, que reativou a fabricação da liga (urushi-shitaji). A laca seca (kanshitsu) é o nome utilizado para definir objetos confeccionados com várias camadas de tecidos de linhos, juta ou seda, colados com mugi-urushi e ligadas com urushi-shitaji. Os objetos fabricados com este método são leves, resistentes e duráveis. Foram encontrados, datando do oitavo século, tigelas, caixas, máscaras de teatro, caixas para textos religiosos, urnas funerárias (no túmulo de Kegoshi-zuka) e caixa de couro (sutra-bako, para textos religiosos). Vindo da Índia pela rota da seda, o budismo chegou ao Japão via Coreia em 538, e muitas estátuas representando os vários aspectos do Buda foram confeccionadas por este processo. A mais antiga deste tipo (dakkatsu-kanshitsu-zô) representa o monge chinês Ganjin (688-763), convidado pelo imperador para formar padres e aprimorar o budismo japonês. Ele fundou o templo Toshodaiji, em Nara, em 896 759. Conservada ali mesmo, a estátua de Ganjin só podia ser contemplada alguns dias por ano, no começo de junho, data do seu aniversário. Desde 2013, por ocasião dos 1250 anos de seu falecimento (atestando a resistência da laca seca), foi criada uma fiel réplica de sua estátua para ser vista agora diariamente. Existem dois tipos de estátua da laca seca (kanshitsu–zô), em que múltiplas camadas de tecidos são coladas por cima de um molde, uma alma de madeira (moku-shin): 1 - quando a imagem (mokushin-kanshitsu-zô) estiver totalmente acabada e seca, ela poderá ser instalada no santuário; 2- se sua alma de madeira for retirada (dakkatsu-kanshitsuzô), ela poderá sair do oratório e ser carregada nas procissões por ser muito mais leve. A maioria das outras estátuas, mais pesadas, são esculpidas em madeira, fundidas em cobre ou moldadas com argila. Existe ainda imagem de Buda em prata, ferro ou de papel, mas são raras. A estátua mais antiga de madeira laqueada com urushi e folheada a ouro (shippaku-zô) é do período Asuka (538 - 645). Desta época, remanesce também o mais antigo objeto conhecido decorado com charão colorido, o Tamamushi no Zushi. Construído na metade do século sete, ele é um oratório budista, conservado no templo Hôryû-ji em Nara e classificado como Tesouro Nacional (NAKASATO, et al.,1985; MATSUDA, 2001; (ELISSEEFF e ELISSEEFF, 1974; IRIE e AOYAMA, 1983, tradução nossa). A partir do século nove até o século doze, o Japão isolou-se do continente e desenvolveu sua própria arte do charão. Durante este período, foram desenvolvidas praticamente todas as técnicas fundamentais do trabalho com urushi. Estes procedimentos utilizados até hoje não são exatamente iguais, eles evoluíram no decorrer dos séculos, acompanhando o refinamento da arte. Por exemplo, na liga urushi-shitaji, que existiu no Jomon final (1000 a. C.) até o oitavo século, o pó de argila misturado com o charão (tsuchi-urushi) foi substituído, a partir do nono século, por partículas de terracota (yaki-tsuchi), e do décimo sexto século em diante, por um pó de pedra de polir (to-no-ko). Objetos do oitavo século mostram a existência nas decorações das técnicas de maki-e, de raden, de hyômon (plaquinha fina de metais, chamada também de heidatsu ou de kanagai), e do mitsuda-e (tipo de pintura a óleo, em que a tinta é preparada com óleo secante, pigmentos e com óxido de chumbo para poder aderir no charão). Constam igualmente vários tipos de fundos metálicos: fundo dourado com pó de ouro (kinji); fundo prateado (kinji); e fundo dourado897 esverdeado (aki-kinji ou koban-kinji) (ELISSEEFF e ELISSEEFF, 1974; NAKASATO, KIMURA, 1985; MASUMURA, 1985, tradução nossa). O pó de maki-e (makie-fun, de ouro e prata) utilizado anteriormente ao oitavo século era de origem natural, tipo grãos de areia (aluvial); do oitavo ao décimo do segundo século, as partículas (denominadas partículas antigas quando elas são mais finas que as limalhas) tinham principalmente formas de grãos de arroz, entretanto outras tendências como aspectos de cunhas, de triângulos ou filiformes foram observadas em função dos metais. O formato em cunha é mais comum para as partículas de prata e ouro-verde (koban ou aogin, que é uma mistura de prata e ouro), sendo que o aogin aparece também em formato de triângulo. A partir do décimo terceiro século, o aspecto oval se torna gradualmente esférico, sendo um dos diferentes tipos de pó utilizado até hoje (NAKASATO, 1985, 1990, tradução nossa). Na técnica de raden, do oitavo ao décimo segundo século, o nácar foi tirado exclusivamente do caracol marmorata linne (yakogai). O exemplo mais importante conservado deste processo de decoração se encontra no interior do Konjiki-Dô, Salão Dourado, pavilhão do templo Chûzon-ji, na cidade de Hiraizumi, terminado em 1124 d. C, mas reconstruído de 1962 até 1968 por uma equipe de especialistas. Esta sala é um mausoléu com as paredes e o teto folheados a ouro, que comporta três altares decorados com dezenas de milhares de peças recortadas em yakogai. Até hoje, há dificuldade para explicar como os artesãos desta época conseguiram cortar essa quantidade tão importante de peças. A melhor relíquia deste período com trabalho mais refinado em madrepérola é o Makie Koto. O koto é uma cítara, um tipo de harpa horizontal com sete cordas. A caixa acústica foi decorada com maki-e (ouro e prata) e peças de yakogai finamente executadas. O instrumento tradicional, classificado como “Tesouro Nacional Sagrado Antigo” é conservado no templo Kasuga, em Nara (NAKASATO, 1985, 1990, tradução nossa). 898 Período Kamakura - Nambokucho (1200-1400) É o começo da época feudal, que vai durar até 1867. Muitas guerras de sucessões de dinastias, de disputas de poder entre as classes dos nobres, dos militares e os templos, vão dividir o país até o começo do período Edo (1603). Durante este era, as influências militares e do Zen Budista são de grande importância. A técnica do nácar atingiu seu apogeu. Entre os objetos mais importantes remanescentes desta época, existem alguns bem conhecidos comprovando a perfeição nesta arte: uma caixa para cosméticos (Fusenryo-makieraden-tebako) e duas selas de cavaleiros (kura) mais destacados, entre várias (Shigure-radenkura e Sakura-radenkura). Aparece também o uso de partículas de madrepérola (mijin-gai). Todas as técnicas de maki-e (hira-makie, togidashi-makie, taka-makie) foram aprimoradas. Novos procedimentos de decoração aparecem: o kiri-gane, o kamakura-bori e o negoro (NAKASATO, et al., 1985; MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). O kirigane é um processo decorativo que consiste em colocar na camada de charão fresca, peça por peça, pequenos quadradinhos ou triângulos, de dois a três milímetros, cortados em finas folhas metálicas (ouro, prata ou estanho). O kamakura-bori, esculpido de Kamakura, é uma técnica de decoração na madeira em três dimensões, inspirada do processo chinês de esculpir múltiplas camadas de charão aplicadas sobre um objeto (tsuishu, tsuishitsu, processo que será adotado também no século dezenove no Japão, chamado chôshitsu). No Kamakura-bori, um desenho sobre um objeto em madeira é executado em relevo, esculpido com goivas e formões. A peça será submetida ao processo completo de preparação e laqueação em dezoito etapas, tendo no final uma camada de cor preta seguida de outra de cor vermelha. Um polimento cuidadoso (mizutonoko-togi) deixa aparecer a cor preta inferior, realçando o efeito do relevo. Outra alternativa de laqueação aparece, o negoro, desenvolvido no templo Neguro na prefeitura de Wakayama. Para economizar o trabalho de preparação do charão vermelho feito manualmente, os objetos de uso diário dos monges são laqueados com uma camada de cor preta, seguida de outra de cor vermelha. Com o uso repetido dos objetos, a camada superior vai se desgastando, deixando a cor preta 899 aparecer, dando um aspecto original para cada peça (NAKASATO, et al., 1985; GOTO e AOYAMA, 1973; MATSUDA, 2001; MASUMURA, 1984, tradução nossa). Período Muromachi - Momoyama (1400-1600) Nas decorações em raden, a utilização de outras conchas amplia a gama de cores. A abalone (awabi-gai: haliotis japônica), o molusco do mar (aogai: pateloida) e as ostras que produzem as pérolas (shiro-chô-gai e kurochô-gai: pinctada máxima) fornecem o verde, o azul, branco, o cinza e o vermelho. A técnica de chinkin se desenvolve nesta época. Ela existia na China desde o século cinco, chamada sôkin. O processo consiste em gravar finas incisões sobre um objeto com ajuda de pequenos formões específicos. Os sulcos são preenchidos em seguida com charão e logo depois são aplicadas folhas ultrafinas de ouro ou pó de ouro (kimpaku ou kin-keshifun). A superfície é esfregada seguidamente, deixando as partículas de ouro só nas incisões, revelando a delicadeza do desenho. Quando os sulcos são laqueados com charão colorido (vermelho em geral) e polidos depois da secagem, o processo é chamado de kimma (TAGUCHI et al., 1985; MASUMURA, 1984; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Uma mudança também é observada nos temas de decoração a partir deste período: paisagens, arquitetura, animais e silhuetas humanas vêm ampliar os padrões tradicionais de flores e pássaros retratados desde o nono século. Um novo estilo de maki-e aparece no fim da época Momoyama, chamado Kodaiji, nome do templo no qual se encontra esta decoração. Dentro do edifício erguido em homenagem a Toyotomi Hideyoshi (1536-1598), os altares e o santuário estão decorados seguindo um novo processo. A originalidade não está nas partículas utilizadas, o pó nashiji-fun (tipo flocos), que já era usado desde o século nove, a novidade está na utilização desses flocos nos próprios desenhos (e-nashiji) e não mais como fundo. Tanto as técnicas, e-nashiji e hira-makie (desenho plano) como os temas escolhidos criaram um ambiente alegre. Além dos tradicionais pinus, bambu e flores de crisântemos, as flores de cerejeira, jangadas, instrumentos de música (koto, biwa, taiko e kosutsumi), ervas da pampa, folhas de acere e flores de paulownia (kiri, brasão da família) avivavam a decoração. Esta técnica e-nashiji 900 perdura até hoje com o nome de Kodaiji-maki-e. Outras duas particularidades desta época são: o processo de dividir a área decorada em duas partes com dois temas diferentes e a utilização de elementos recortados em fina lâmina metálica (kanagai ou hyômon em ouro ou prata) (MAEDA, 1976; MASUMURA, 1984, tradução nossa). Toyotomi Hideyoshi foi um personagem importante nas Artes. No fim do século dezessete, após vários sucessos militares e mestre incontestado do Japão, ele reorganizou o país e desarmou as regiões rurais, mantendo o arquipélago em paz após séculos de guerras. Toyotomi Hideyoshi juntou os últimos mestres do urushi sobreviventes sob sua proteção no palácio Karasu em Kyoto. Foi ele também quem mandou codificar as regras da cerimônia do chá (cha no yu). Este reconhecimento oficial vai influenciar todas as profissões e as artes ligadas a este ritual: arquitetura, cerâmica, fundição, arte das flores (ikebana) e o charão, além de trazer os princípios filosóficos e estéticos do Zen para a vida cotidiana (ELISSEEFF e ELISSEEFF, 1974; JAHSS e JAHSS, 1981; MATSUDA, 2001, tradução nossa). Período Edo (Tokugawa 1603-1868) Com o fim das guerras, os fundos, que eram gastos com armamento, puderam ser investidos agora nas artes. Os senhores feudais (daimio) adotaram o exemplo de Toyotomi Hideyoshi, patrocinando artistas e ateliês particulares. Tokugawa Ieyasu, fundador e primeiro xogum do Xogunato Tokugawa, deixou Kyoto e estabeleceu–se em Edo (Tóquio). Ele convidou muitos artistas do charão a se instalar no ateliê fundado especialmente para eles (Ôkoyaba). Com o crescimento do comércio e da indústria no fim do período Edo, uma nova classe de negociantes bem-sucedidos aderiu também à ideia do patrocínio. O desenvolvimento das técnicas, as habilidades, a abundância e a riqueza das matérias utilizadas, vão favorecer a maior e mais refinada produção na arte do charão. E uma grande variação na laqueação das bainhas de espada (saya) é desenvolvida. O estojo era fabricado de modo geral com uma madeira leve, da família das magnólias (Honoki) escolhida por não afetar o corte da lâmina. A decoração da bainha era feita em função da qualidade e da preciosidade da espada a ser protegida (katana). Existem bainhas decoradas com várias técnicas de maki-e ou nácar (hanagai) desde o século oito, conservadas no Shôsô-in. Centenas de técnicas de laqueações 901 diferentes (kawari-nuri, saya-nuri) foram desenvolvidas nesta época. Os dois processos de base principais são o charão viscoso (shibo-urushi) e o charão rústico (sabi-urushi). O shibo-urushi é preparado misturando o charão refinado, preto ou colorido, com uma substância viscosa para perder sua fluidez (clara de ovo, gelatina, cola de amido). Marcas de pincel, de folhas, de sementes etc. são deixadas numa camada fresca e vão permanecer após o endurecimento. As marcas serão aproveitadas tal qual ou destacadas com cores (nanako-nuri, hake-nuri, botan shibo,...). Na técnica do charão rústico (sabi-urushi), o caráter viscoso é preparado, adicionando na seiva bruta, pó de argila e água (MASUMURA, 1984; JAHSS e JAHSS, 1981, tradução nossa). A utilização da casca de ovo (rankaku) como material de decoração se desenvolve nesta época. Para os objetos pequenos, são aproveitados os ovos de codorna, para superfícies maiores, os ovos de galinha têm mais rendimento. De todos os objetos de charão miniatura, o mais popular e mais importante é “o inrô”. Surgiu no final do décimo sétimo século e tem seu apogeu neste período: Ele é um tipo de caixinha oblonga, altamente decorativa, carregada pendurada amarrada na cintura. A altura, em média, de nove centímetros, é dividida em vários compartimentos, que se encaixam deslizando, presos a um cordão de seda amarrado na parte de baixo. Na outra ponta da cordinha, há uma pequena bolinha furada (ojime), mais um pequeno objeto de marfim ou madeira (netsuke) finamente trabalhado, que ajuda a prendê-lo na cintura. A multiplicação das formas e dos objetos decorados acompanha o crescimento das técnicas. Muitos utensílios de uso diário, como pentes, tigelas, xícaras, cachimbos, cofrinhos, caixas e caixinhas, receberam decorações refinadas. Cada província desenvolveu e se especializou em uma técnica própria, que perdura até hoje (charão multicores de Tsugaru, laqueados semitransparentes (shunkei) de Hida e Noshiro). Na técnica de nácar as, conchas nautilus (omugai) e o turbo cornatus (sazae) aumentam a paleta de cores. Todas são preparadas também em lâminas finas (usu-gai), ao natural, coloridas ou folheadas com ouro na parte detrás, antes de ser coladas no charão (MASUMURA, 1984; JAHSS e JAHSS, 1981, tradução nossa). 902 Os implementos utilizados nas incrustações (técnica de Shibayama) se multiplicam (malaquita, corais, pedra sabão, marfim tingido, ouro, prata, cerâmica, liga de metais e peças delicadas encomendadas aos mestres que fabricam as espadas). No fim do século dezenove, os objetos sobrecarregados de desenhos e elementos de decoração com técnica sofisticada representavam um gosto de luxo, cobiçados pela nova classe rica dos negociantes. Estes objetos eram encomendados por negociantes e destinados a ser exportados. De fraco valor artístico e pela pobreza estética, eles não eram representativos da perfeição alcançada pelos artistas desta época. Nos ateliês patrocinados e protegidos, destacaram-se grandes mestres, que influenciaram a arte do urushi. Pela alta qualidade de seus trabalhos, ateliês-escola ou famílias (Shibayama, Somoda, Koami, Kajikawa, Koetsu, Korin, Koma, Shunsho) ganharam renome e cresceram atraindo e formando excelentes discípulos (JAHSS e JAHSS, 1981; MASUMURA, 1984; BUSHELL, 1979, tradução nossa). Período Moderno (Meiji-Taisho-Showa-Heisei 1868-2010) O começo da era Meiji em 1868 marca o fim da época feudal. O Japão se abre ao Ocidente, a maior autoridade política é restaurada ao Imperador. Essa nova reorganização da estrutura política acabou com os patrocínios e a proteção dos senhores feudais, desmantelando os renomados ateliês de urushi. A maioria dos mestres nesta arte perdeu para sempre suas altas posições sociais. Alguns foram convidados para o ateliê de maki-e do Palácio Imperial, outros para ensinar na Escola de Artes Finas de Tóquio, fundada em 1889, na Escola de Aprendizes de Aizu, fundada em 1884, na Escola Industrial de Kanazawa, fundada em1887. Com as mudanças de estilo de vida, os objetos de charão vão perdendo espaço para os de cerâmica (situação inversa da época Nara). O trabalho do urushi entra em declínio, a quantidade de seiva colhida diminui. Para reverter tal situação, o Governo atuou em muitas frentes. Pesquisas científicas sobre o charão são iniciadas a partir de 1884. Sua composição é descoberta aos poucos: 80% da seiva japonesa é de ácido urushique (urushiol), 19% água, 1% é da enzima rhus laccase (quem permite a polimerização do Urushiol), uma pequena proporção de látex, carboidratos e 903 impurezas. O outro campo de pesquisa é sobre corantes compatíveis. Até então a paleta de cores é limitada pela dificuldade de obter pigmentos que não impeçam o endurecimento do charão e que não alterem sua cor durante ou logo depois da secagem. A cor branca deu mais trabalho, mas as pesquisas foram bem-sucedidas, e hoje todas as cores de charão são possíveis (MATSUDA, 2001; ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982; MASUMURA, 1984, tradução nossa). No plano internacional, o governo investiu na exposição de Viena em 1873, apresentando trabalhos dos mestres Shibata Zeishin e Ikeda Taishin para divulgar e promover exportações para o Ocidente. Logo depois, ele financiou uma empresa para produzir objetos e comercializá-los em Paris e Nova York, mas faliu rapidamente em 1891 por oferecer produtos extravagantes e de mau gosto. No plano nacional, para divulgar os melhores trabalhos a fim de estimular produções de qualidades, o Ministério da Agricultura e do Comércio promove, em 1913, uma exposição anual nacional premiada para as artes aplicadas, “Noten”, evento que se repetiu até 1938. A partir de 1927, a Academia Imperial inclui quatro especialidades de Artes Aplicadas nas exposições “Teiten” (charão, metal, cerâmica e têxtil). Grupos de profissionais aparecem para se aperfeiçoar, publicando jornal especializado e organizando exposições (Sociedade da Indústria do Charão Japonês, Nihon Shikko-Kai–1900, que promovia competição bienal para romper com os padrões tradicionais), Associação Crafts, (Saisai-Kai -1923), Associação sem Disputas (Mukei-kai-1926). Até 1926, a arte do charão apresenta uma grande morosidade, estagnada nos padrões antigos, ao contrário das outras artes em crafts (metal, cerâmica, têxtil), em plena renovação. As exposições em conjunto de artes aplicadas colocam em evidência o quanto a arte do charão está defasada. A Mukeikai, de pensamento moderno, vem contrapor-se à mentalidade tradicionalista da Saisai-kai e quer mudar em direção de uma estética do futuro. Em 1932, Isoya Akira junta-se ao grupo Mukei no intuito de produzir objetos com novas perspectivas e sensibilidades, incluindo ideias da Europa, transformando-se em líder da revolução no mundo do charão. Este grupo, muito ativo, apresentou novidades e originalidades, introduzindo influências do Ocidente na confecção dos objetos, tendo sido premiado por se destacar na Exposição Nacional Especial de Artes Aplicadas em 1931. Os trabalhos de charão apresentados na exposição “Teiten” do ano 1936 destacaramse pela originalidade e se distanciaram dos padrões antigos. Nos anos 30 muitos 904 mestres vêm a falecer e são substituídos por novos artistas cheios de entusiasmo, que fazem reflorescer a arte do charão. Estes novos talentos ganham importância, participando como expositores e juízes nas exposições “Shin Bunten”. Dois novos grupos apareceram: em 1935, a Sociedade das Verdadeiras Artes em Crafts (onze artistas pertenciam à Mukei-kai, agora desfeita) promove exposições premiadas, apresentando objetos de arte ligados à vida cotidiana; em 1936, é constituída a Academia Japonesa de Arte em Charão, formada pelos mais notáveis mestres da época (vinte e seis artistas), que apresentam em 1937 trabalhos novos e arrojados, executados com perfeição. As Cidades de Kyoto, Kanazawa, Wajima e Takamatsu, menos ativa que Tóquio, mas de longa história e reputação nas artes finas do charão, continuam suas tradições, abrigando organizações e mestres do urushi. Com objetivo de continuar a desenvolver a arte nas províncias, foram estabelecidos o “Instituto de Pesquisa em Arte do Charão”, de Kanagawa, em 1954, e o “Instituto em Arte do Charão”, de Wajima, em 1967 (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982, tradução nossa). Os períodos pré-guerra e pós-guerra dificultaram a arte do charão. Em 1940, as atividades ficaram paralisadas porque a resina e os metais preciosos (ouro e prata) foram considerados artigos de luxo de produção e venda restringidos por lei até 1943. Depois da guerra, as exposições anuais “Shin Bunten” (antiga Teiten com patrocínio Imperial) e “Nitten” (antiga Bunten, patrocinada pelo Ministério da Educação) reiniciaram suas atividades, mas com participações modestas. Um acontecimento especial em 1955 vai modificar totalmente o campo das artes aplicadas. Uma lei editada em 1951 sobre a proteção dos bens culturais entra em vigor, criando a Sociedade das Artes Aplicadas (Artes em Crafts). Esta associação vai promover exposições anuais premiadas e patrocinar o melhor artesão em cada especialidade. Os "Mestres" escolhidos recebem o titulo de “Guardiões dos Intangíveis Bens culturais”, mais conhecidos como “Tesouros Nacionais Humanos” (Ningen Kokuhô). Nas técnicas de Maki-e, foram escolhidos Matsuda Gonroku (1896-1986) e Takano Shôzan (1889-1976), na técnica Chôshitsu (charão entalhado): Otomaru Kôdô (1898-1997), na técnica de Chinkin: Mae Taihô (18901977), na técnica de Kimma: Isoi Joshin (1883-1964), na técnica Kanshittsu (laca seca): Matsunami Hoshin (1882-1954) e Masumura Mashiki (1910-1996), na técnica 905 Magewa-zukuri (lâmina curvada): Akaji Yûsai (1906-1984) (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982, tradução nossa). Esta valorização dos "Tesouros Humanos" permanece ainda, e hoje, dez “guardiões” escolhidos nas Artes do Charão se dedicam com apoio do governo. Em 1974, o governo legalizou um apoio financeiro para estimular e garantir a produção de objeto em charão em onze cidades. Os lugares foram escolhidos por serem tradicionais nesta arte, representando as bases de origem para formar futuros artesãos e mestres (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982, tradução nossa). Na época atual, o charão continua perdendo do metal e da argila na plasticidade. A espuma rígida de poliuretano e a fibra de vidro substituem, às vezes, a técnica de laca seca (Kanshitsu). As resinas sintéticas, derivadas do petróleo, são concorrentes mais econômicos para laqueação e impermeabilização. Entretanto, seu uso estético é garantido por se destacar por sua beleza, seu brilho e seu toque particular. Com sua riquíssima paleta de cores, novas expressões gráficas foram elaboradas, permitindo efeitos especiais impossíveis nas outras artes picturais. Os pigmentos ou partículas de laca seca colorida (kanshitsu-fun) podem ser utilizados nas técnicas de maki-e ou de chinkin e aplicados para decoração interior em painéis, telas, biombo ou peças mobiliares de linhas modernas. As técnicas tradicionais de raden, maki-e e incrustações são utilizadas hoje na decoração de capa de smartphone, tablet, tinteiro e outros objetos de uso diário. Desde 1989, acontece periodicamente a “Exposição Internacional de Ishikawa”, que, em 2014, completará sua décima edição. Esta exposição, de renome mundial na Arte do Urushi, tem por objetivo estimular a produção local com as trocas internacionais sobre a exploração do potencial do charão. Desde utensílios de uso diário até obras artísticas apresentando um novo estilo ou uma nova “sensação” são almejados. O evento atrai excelentes trabalhos nacionais e também participações, em média, de dez países diferentes em cada edição. Isto mostra o quanto o Japão tem consciência e vontade política de guardar e promover o patrimônio cultural ancestral desta Arte. O processo japonês de extração e de preparação da seiva lhe proporciona uma altíssima qualidade, permitindo assim o uso abundante das técnicas de maki-e em ouro e prata, destacando a Arte Nipônica dos outros países. Por trás das partículas semeadas, o mestre laqueador vai retificando, lixando, polindo cada 906 camada de charão, com a maior paciência e precisão do profissional rigoroso que sabe produzir o esmaltado perfeito de uma joia em charão. O mestre não pode ter pressa nem espontaneidade, e ele deve trabalhar minuciosamente, sem nenhuma precipitação. Ele deve ter inspiração, mas ela não pode ser transferida de imediato para um quadro. O resultado final vai depender de um longo trabalho preliminar, desde a fase de preparação do suporte, passando pelas camadas de laqueações, inferiores, intermediárias e de acabamento. Cada aplicação necessita de um polimento, antes de ir para a próxima etapa. Um laborioso processo é indispensável entre o momento da inspiração e o último retoque final. As palavras inspiração, habilidade, perseverança, paciência, dedicação, teimosia, técnica e criatividade compõem a lista dos requisitos indispensáveis para dominar essa arte do urushi. Assim, são poucos os mestres que dominaram e que continuam se dedicando à produção de joias laqueadas, reconhecidas e admiradas mundialmente por sua perfeição (ADACHI, OKADA e SHIRAISHI, 1982; BUSHELL, 1979, tradução nossa). Referências Bibliográficas ADACHI, K. OKADA, J. e SHIRASHI, M.. Japanese Lacquer Art. Modern Masterpieces. The national Museum of Modern Art. Tóquio. Weatherhill. 1982. BUSHELL, R.. The Inrô Hanbook. Tóquio. Weatherhill. 1979. ELISSEEFF, D., ELISSEEFF, V.. La Civilisation Japonaise. Paris. Arthaud. 1974. GOTO, S.. Kamakura Bori. Tóquio. Shufu to Seikatsu Sha. 1973. IRIE, T., AOYAMA, M.. Color Books. Butsuzô sono profile. Tóquio. Hoikusha. 1983. JAHSS, M., JAHSS, B.. Inrô and other miniature forms of Japanese Lacquer Art. Tóquio. Charles E. Tuttle Company. 1981. KIMURA, N., et al., Urushi Study Group June 10-27-1985. Tóquio. N.S. Brommelle & P. Smith. 1988. KURAKU, Y., et al., Urushi Study Group June 10-27-1985. Tóquio. N.S. Brommelle & P. Smith. 1988. MAEDA, T.. 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Acesso em: 14 fev. 2014. 907 Francis Jean Yves Marie Nascido em 31-Julho-1954 na França. 1982: Licenciatura de Japonês, Sorbonne-Nouvelle, Paris-III. 1982-85: Universidade de Tóquio e especialização em “Urushi” no Instituto Nacional de Pesquisa de Bens Culturais de Tóquio; Estágio no ateliê de “urushi” do Mestre Ogawara Enotsuke,Tóquio.1985-2009: Brasil - Participação em exposições (coletivas e individuais). 2001: Medalha do Mérito Profissional da Academia Brasileira de Arte e Cultura. 908 UM OCIDENTE ORIENTAL Hannah Basilio Ferreira da Cunha - UFRJ RESUMO: Em muitos de seus trabalhos Gilberto Freyre descreve as similaridades entre o Oriente e o Brasil. No texto “Oriente e Ocidente” - capítulo da obra “Sobrados e Mucambos”o autor faz uma descrição do Rio de Janeiro antigo, que nos permite visualizar uma cidade onde não havia apenas um “gosto orientalista”, mas onde o Oriente fazia parte do cotidiano e da paisagem. Freyre nos explica que os colonos portugueses haviam sofrido influência dos árabes, no passado, e na época da colonização lucravam com o comércio entre o Brasil e as suas colônias na Ásia. Além disso, a arquitetura, as comidas, os tecidos e até mesmo os hábitos orientais permitiam a adaptação dos europeus a vida nos trópicos. Nos séculos seguintes as peças de origem ou gosto oriental passaram a representar sofisticação e riqueza, sendo desta forma colecionada por nobres europeus. Uma prática copiada pelos brasileiros mais abastados. Assim, a partir do texto de Gilberto Freyre buscamos refletir sobre a origem de diversas peças orientais, tais como fotografias, artefatos de porcelana e leques, que hoje ocupam os acervos de instituições cariocas. Palavras- chave: Arte Oriental, Orientalismo, Gilberto Freyre, Colecionismo. ABSTRACT: In many of his works Gilberto Freyre describes the similarities between the Orient and Brazil. In the text “Oriente e Ocidente”- chapter of the work “Sobrados e Mucambos”- the writer makes a description of the ancient Rio de Janeiro which allows us to visualize a city where didn’t exist just one “orientalist taste”, but a place where the Orient was in the daily and in the landscape. Freyre explains that the Portuguese settlers had been influenced by the Arabs in the past and during colonization were profited from the trade between Brazil and its colonies in Asia. Moreover, the architecture, the food, the cloth and even Orientals habits allowed the Europeans to adapt the life in the tropics. In the centuries that followed, articles from orient or in oriental style began to represent sophistication and richness, being collected by European nobles. It is a practice also assimilated by rich Brazilians. Thereby from Gilberto Freyre’s text, a reflection is made over the source of many Oriental articles, like photography, porcelain and fan that are today in collections of Rio de Janeiro institutions. Keywords: Orient art, Orientalism, Gilberto Freyre, Collection Em exposições permanentes de diversos museus do Rio de Janeiro nos deparamos com leques decorados por cenas com pagodes e jardins chineses, vitrines onde estão a mostra peças de porcelanas adornadas com flores de pêssego e cerejeira. Surge uma pergunta: da onde vieram todas essas peças? Por que se encontram tantos objetos de gosto ou origem oriental, como tais, nos acervos cariocas? A resposta vem do fato de que a relação entre o Brasil e o Oriente é muito mais antiga e intima do que se pode imaginar. 909 Gilberto Freyre foi um dos intelectuais mais preocupados em estudar a origem da relação entre o Brasil e o Oriente. Ainda no século passado, Freyre afirmou por diversas vezes que uma integração entre China e Brasil ou Índia e Brasil seriam mais do que lucrativas, devido às similaridades que possuíam os países. “O Oriente e o Ocidente” (capítulo adicionado à segunda edição do livro “Sobrados e Mucambos” publicado em 1951) é um dos seus primeiros textos a abordar este assunto. Depois deste se seguiram muitos outros textos do autor referentes ao assunto. Anos depois de sua morte, a reunião alguns deles deu origem ao livro “China Tropical”. A partir desses escritos é possível pontuar três motivos distintos para a presença dos objetos de gosto e origem Oriental, sendo esses interdependentes e complementares. Primeiramente, deve-se lembrar de que a Península Ibérica passou boa parte da Idade Média sob o domínio e a influência de povos árabes. Estes deixaram um legado tão profundo na cultura portuguesa que se tornou difícil desassociá-los. Gilberto Freyre aprofunda a questão e descreve a durabilidade da influência não só árabe, mas Oriental na cultura lusitana da seguinte forma: “[...] no próprio Portugal, os traços orientais chegaram ao século XIX com uma vivacidade que talvez só fosse maior, na Europa inteira, na Turquia asiática ou na parte asiática da Rússia” (FREYRE, 1968, p. 427). A expulsão moura de território ibérico foi seguida de uma perseguição religiosa a estes povos, o que justificou muitas das conquistas de territórios na Ásia e na África para o reino português. Essas dominações, no lugar de afastar, estreitaram ainda mais os laços entre portugueses e árabes. Boa parte da população lusitana fora deslocada para ocupar ou proteger os portos em ocupações como, por exemplo, Omã, Ormuz, Baçaim, Diu, Azamor, Tanger e Goa da onde saía boa parte dos produtos que eram vendidos no Brasil, aonde mais impostos eram cobrados em nome da Coroa Portuguesa. Assim, abordamos o segundo motivo: o mercantilismo. Ele permitia aos lusitanos lucrar sobre ambos os lados das relações comerciais, compradores e vendedores, e através de todas as etapas da comercialização. Eles administravam os portos, faziam o transporte e o armazenamento dos produtos. Tudo conforme as 910 regras das relações coloniais; que faziam parte do mercantilismo. Como definiu Gilberto Freyre: [...] na época em que os portugueses, senhores de numerosas terras na Ásia e na África, se haviam apoderado de uma rica variedade de valores tropicais. Alguns inadaptáveis à Europa. Mas todos produtos de finas, opulentas e velhas civilizações asiáticas e africanas. Desses produtos, o Brasil foi talvez a parte do império lusitano que, graças às suas condições sociais e de clima, mais largamente se aproveitou [...]. (FREYRE, 2003, p.11) No auge do ciclo do açúcar, diversas eram as naus, tanto portuguesas quanto de outras civilizações europeias que zarpavam do Oriente, e aportavam no Brasil. As peças vindas do Oriente despertavam o interesse dos ricos senhores de engenho, principalmente os baianos e pernambucanos. Esses opulentos brasileiros gozavam da posse de produtos que nos séculos XVI e XVII só as cortes mais requintadas da Europa utilizavam: peças de porcelana da China, especiarias e roupas de seda. Nos séculos seguintes, o restante da colônia foi dominado pelos produtos de origem oriental, não apenas devido ao incentivo dos portugueses que visavam o lucro, mas também porque a utilização destes produtos, e a implantação de tais costumes representavam uma adaptação ao clima tropical. Como define o próprio Gilberto Freyre (1968, p.431): "[...] não se vence o trópico sem de algum modo ensombrá-lo à moda dos árabes ou dos orientais". E é este o terceiro motivo. Os modos de vida dos árabes e dos orientais permitiu a sobrevivência dos europeus nos trópicos. Freyre explicou que sem a roupa, a arquitetura, as comidas e os costumes do Oriente1 o português não poderia colonizar terras tão quentes e úmidas, incluindo o Brasil. Como se proteger do forte calor sem guarda-sóis e as cortinas? Como evitar a incidência direta do sol sem alpendres construídos ao redor das casas e igrejas, telhas à moda sino-japonesas, as casas caiadas de branco e os azulejos revestindo as fachadas? Como tornar mais apetitosos os alimentos sem os temperos orientais: o cravo das Molucas, a canela do Ceilão e a pimenta de Cochim? 911 Figura 1: MOTTE, Charles; ÉTIENNE, Pierre. Femmes Gouaranis civilisées allant a la messe le dimanche. 1834. 1 grav. : litografia, color., 31,7 x 20,1cm. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil) Quando a Família Real, acompanhada da nobreza lusitana, de ingleses e outros europeus, aportaram no Brasil no início do século XIX ficou, segundo o autor, horrorizada com a presença de tantos elementos orientais na cidade do Rio de Janeiro e iniciou-se um movimento de “desassombramento” 2 , como denominou Gilberto Freire. Era necessário tornar a colônia muito mais ocidental e civilizada. A cidade era iluminada por lampiões abastecidos de azeite de peixe e lanternas orientais de papel. Os telhados das casas eram caídos para os lados e recurvados nas pontas em cornos de lua, como haviam aprendido os mestres lusitanos com a arquitetura japonesa e chinesa. Palanquins e banguês cortavam as ruas transportando os mais nobres. Havia chafarizes que forneciam água aos 912 moradores. Construções como bangalôs, casas baixas com telhados de palha originárias da índia, onde moravam os mais pobres e quiosques (ou kiosques), aonde eram vendidos quitutes diversos. Os homens andavam com grandes barbas, denominados por causa destas de “turcos”, “mouros” ou “nazarenos”. Os aristocratas ostentavam longas unhas, demonstrando que não precisavam fazer nada, pois tinham quem fizesse por eles, um costume vindo da China.3 Como lazer esses mesmo aristocratas empinavam papagaios, as milenares pipas orientais. Os principais magistrados do governo se vestiam para ir ao trabalho com roupas ricamente bordadas, como as dos chineses, japoneses e indianos, tecidos muitas vezes oriundos desses países. Pagodes4, elementos arquitetônicos onde eram realizados eventos religiosos no Oriente, aqui, eram ornamentos das praças. As festas dos santos das igrejas estavam sempre acompanhadas de fogos de artifício ou fogos de vista, artefatos de origem chinesa que criavam um verdadeiro show pirotécnico. As ruas comerciais eram abarrotadas de lojas com produtos de origem orientais, devidamente anunciados em jornais da época que exaltavam a origem dos produtos. Muitos eram também os mestres chineses, indianos e mesmo portugueses (tendo este ultimo aprendido com os orientais) que produziam móveis ao estilo ou com adornos tipicamente orientais. Quem vivia no interior comprava os artigos do Oriente nas mãos dos mascates, comerciantes, inicialmente de origem árabe, da cidade de Mascate. Segundo Freyre, em outro de seus textos sobre o Oriente, “Aventura e Rotina”5, um dos diferenciais da colonização portuguesa era a presença da mulher. Um ponto positivo, pois foram elas as responsáveis por implantar valores considerados socialmente e moralmente nobres, como os preceitos religiosos, diferente do que ocorria na colonização somente pelos solteiros. Contudo, no Brasil, por motivos diversos, imperava o patriarcalismo, outro fator em comum com o Oriente. Isso fez da mulher colonial o maior exemplo da orientalização que se pode ter. Freyre descreve que elas usavam leques chineses para se refrescar e vestidos de tecido finíssimo, em suas casas, aonde andavam descalças e se 913 sentavam de pernas cruzadas nas esteiras de bambu. Elas viviam “aprisionadas” em suas casas, onde as janelas eram gelosias ou rótulas e as varandas eram muxarabis. Essas “grades xadrez” (uma expressão que Freyre extraiu de Wash) estavam presentes também nas carruagens, utilizadas pelas senhoras nos raros momentos que saíam de casa, e permitiam ver sem ser visto. Figura 2: CASA DO MUXARABI. Altura: 811 pixels. Largura: 550 pixels. 96 dpi. 24 BIT CMYK. 80,2 KB. Formato JPG. Compactado. Disponível em: <http://www.turismopelobrasil.net/turismo/admin/img_normal/G201242413318.jpg> Acessado em: 30 jul. 2012. Por pressão do “olhar estrangeiro”, cada vez mais presente com a vinda da Família Real se deu o “desassombramento” e as gelosias dos sobrados e das carruagens tiveram de ser trocadas por janelas de vidraça e varandas de ferro. Vieram artífices de todos os locais da Europa: franceses doceiros e italianos 914 marceneiros, entre outros, a fim de conquistar os brasileiros no lugar dos mouros e “chins”, que produziam os móveis ao gosto oriental como dito anteriormente. Roupas femininas vinham da França a fim de substituir aquelas de bordado indiano e de seda chinesa. Objetos de cutelaria eram importados da Inglaterra e assim os homens passaram a se barbear a moda europeia. Contudo, apesar dos esforços, o Oriente continuava presente. Não somente por conta dos mais interioranos, que insistiam em manter tais costumes e das mulheres que demoraram a aderir às mudanças. O fato é que no século XIX, quando a corte portuguesa chegou ao Brasil, um novo tipo de relação entre a Europa e o Oriente surgia. Impulsionadas pela campanha napoleônica no Egito, diversas expedições começaram a ser realizadas ao Oriente sem uma intenção necessariamente política ou comercial. Em meio a movimentos nacionalistas, Revolução Francesa, Revolução Industrial, Positivismo, Iluminismo e unificações, dentre outros fatos o deslumbre provocado pelo Oriente, desde tempos remotos, foi colocado em um novo patamar. Nas palavras de Said (2007, p.28): “[...] o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade e experiência contrastante”. Na realidade não só Portugal, mas a Europa de modo geral sempre importara objetos, usos e costumes do Oriente. Ela sempre fora fascinada pelos orientais. Vera Lúcia Tostes descreve: As viagens ao país da seda foram realizadas por gregos, romanos, bizantinos, venezianos e muitos outros que desbravaram novas rotas, penetrando no interior da Ásia e entraram em contato com conhecimentos provindos dos povos dessas regiões, nos campos da astronomia, matemática e medicina, como com as técnicas para trabalhar o ferro, o bronze e a cerâmica. (TOSTES, 2010.p.7) Os artigos orientais continuaram presentes no cotidiano brasileiro porque já haviam sido absorvidos pela cultura europeia e em muitos casos eram sinônimo de poder e riqueza. “O Chá do Oriente não faltava aos requintados da corte de D. João.” descreve Gilberto Freyre (1968, p.444). As senhoras europeias não viviam sem seus leques, oriundos do oriente e que possuíam não só a função de refrescar como também um meio de comunicação, havendo diversos códigos realizados com as posições dos leques. Os serviços de mesa de porcelana vindos da China eram 915 artigo de alto luxo, presente nas mesas mais requintadas, inclusive as dos Imperadores! Figura 3: PACHECO, Joaquim Isley. Teresa Cristina Maria, Imperatriz, consorte de D. Pedro II, Imperador do Brasil. Século XIX. 1 fot., PB, 16 x 11 cm. Coleção D. Teresa Cristina. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). Aos poucos os próprios europeus passaram a copiar essas peças com técnicas cada vez mais aprimoradas. Ainda assim, muitos eram os objetos importados do Oriente e decorados na Europa. A abertura dos portos as nações amigas não tornou mais difícil à entrada de artigos orientais no Brasil, mas o oposto. Agora era a Inglaterra (a nação amiga em questão) uma das maiores importadoras de artigos orientais, fazendo o transporte marítimo desses objetos. Além disso, havia o tráfico clandestino de produtos realizados desde o início da colonização. O Imperador D. Pedro II acompanhou o movimento Orientalista de sua época. Assim como Victor Hugo, Delacroix e Flaubert ele possuía uma fascinação pelo longínquo Oriente. Estudou diversas línguas ditas “orientais”, dentre árabe, hebraico 916 e sânscrito. Possuía livros e objetos no geral de origem oriental, muitos hoje pertencentes às coleções do Museu Imperial de Petrópolis e no Museu Histórico Nacional. Ele até experimentou realizar uma tradução de “Mil e uma noites” diretamente do texto original, assessorado por um professor. Na “Coleção D. Teresa Cristina” de fotografias pertencentes ao imperador, e que hoje se encontra na Fundação Biblioteca Nacional, existem diversos álbuns com fotografias do Oriente (Jerusalém, Egito, China e Líbano.6). Alguns comprados por D. Pedro II e outros de fotos retiradas durante suas viagens à região. Figura 4: SEBÁH, J. Pascal. Mosquée Emir Akhor. 1870. 1 fot., PB, 34 x 27cm. Coleção D. Teresa Cristina. Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). Ao longo do século XIX e início do século XX foram diversas as construções realizadas ao estilo oriental, definidas como “neos”. A construção, hoje sede da FIOCRUZ e o já demolido prédio Mourisco, que ficava no final da praia de Botafogo 917 e até hoje nomeia a região, são dois exemplos. Leituras e releituras da cultura, da arquitetura e da arte do Oriente que agora adornavam casas e prédios públicos, como o “Salão Assírio”, localizado no subsolo do Teatro Municipal, construído no início da República. Em suma os produtos, a cultura e a arquitetura do Oriente continuaram presentes no Brasil, mas a nossa relação com os países orientais mudou e se tornou similar a que havia entre estes e os europeus nos séculos XIX e XX. Gilberto Freyre constatou em seus livros que a cultura oriental exerceu uma influência tão profunda no Brasil que apesar de todas as tentativas europeias não havia como desfazer tal relação. As dinâmicas orientalistas esgarçam fronteiras e cronologias. No caso do Brasil, o gosto orientalista veio com os colonos portugueses, que haviam sofrido influência dos árabes no passado e lucravam com o comércio entre o Brasil e as colônias na Ásia. Esse gosto seguiu até o século atual e deixou seu legado em acervos nacionais onde são encontradas peças de procedências e natureza por vezes inesperadas, elas, parafraseando Gilberto Freyre, “[...] tornaram-se quase tão raros-peças de museu, arcadismo, curiosidades - como nos países de civilização mais acentuadamente ocidental da América.” (1968, p.813-814). Notas 1 Vale salientar que Gilberto Freyre considerava como Oriente também a costa da África oriental, voltada para a Ásia. Aonde os portugueses tiveram diversas colônias e dominações. 2 FREYRE, Gilberto. O Oriente e o Ocidente. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. 3 LEITE, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: Influência, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 1999. 4 Em um trecho da página 116 do livro “China Tropical”, Freyre narra sua visita a uma festividade no pagode de Queula, na Índia, sublinhando a semelhança entre esta e as festas de igreja do Brasil, com fogos, música e dança. Contudo nesse caso, o silencio se estabelecia no interior do Pagode, que é um local santo, aonde se encontrava o menino suami, “uma espécie de bispo entre os hindus”. 6 GOLDFELD, Monique Sochaczewski. O Oriente Médio no Acervo da Biblioteca Nacional. Programa Nacional de Apoio à Pesquisa- FBN/MinC, 2006. Referências Bibliográficas BOTTON, Alain de. A arte de viajar. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. CAVALCANTI, Bernadete Dias. O orientalismo no século XIX e a obra de Pedro Américo. In: Gávea, PUC-Rio, n. 5, abr./1988, p. 20-27. 918 DEL PRIORE, Mary. Cotidiano, permanência e rupturas no Rio de Janeiro à época da chegada da família real. IN: IPANEMA, Rogéria Moreira de (Org.). D. João e a Cidade do Rio de Janeiro 1808-2008. 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Foi monitora das disciplinas de História das Artes Visuais II, Historiografia da Arte II e Arte Oriental. 919 AS METÁFORAS DO VENTO EM HAYAO MIYAZAKI1 Kamilla Medeiros do Nascimento - UFC RESUMO: O animador e diretor japonês Hayao Miyazaki encanta com seus filmes e é considerado conceituado no cinema de animação mundial. O objetivo deste trabalho é compreender as faces do “vento” nos filmes do diretor, se há ou não pertinência desse elemento em sua obra. O vento carrega significados importantes na própria história do Japão, como o famoso tufão “kamikaze”, que resguardou a costa nipônica durante as invasões mongóis. E neste ano, a obra que proporcionou a criação do Studio Ghibli (estúdio de animação fundado por Hayao Miyazaki e Isao Takahaka, também diretor japonês) completa seus 30 anos de lançamento, o filme chamado “Kaze no Tani no Naushika /Nausicaä do Vale do Vento”. Neste filme, o vento toma para si o papel de protetor, mantendo longe as ameaças ao Vale do Vento. Nos demais filmes do diretor será analisado se o vento está representado para além do óbvio de seus aspectos físicos, o vento também como elemento da fantasia, da espiritualidade, do simbólico, enfim, suas metáforas. O próprio significado de Ghibli (escrito em árabe) pode ser entendido como O Quente Vento do Deserto do Saara, essa frase parece não ter sentido, mas para Hayao Miyazaki esse sopro mudaria para sempre a história da animação mundial. A genialidade artística japonesa estaria ao sabor do vento, que sopra forte na imaginação de milhares de pessoas, alçando voos longínquos. Palavras-chave: Hayao Miyazaki, Cinema de animação, Japão, Vento RESUMEN: El animador y director japones Hayao Miyazaki nos emociona con sus películas, prestigiado en el mundo de la animación cinematográfica. El objetivo de este trabajo es conocer los aspectos del "viento" en las películas del diretor, si hay relevancia de este elemento en su obra. El viento tiene un significado importante en la historia de Japón, ya que el tifón famoso "kamikaze " que protegía a la costa nipônica durante las invasiones de los mongoles. Y este año, la obra que llevó a la creación de Studio Ghibli (estudio de animación fundado por Hayao Miyazaki e Isao Takahaka, también director japonés) celebra sus 30 años de estreno, la película se llama "Kaze no Tani no Nausicaä / Nausicaä del Valle Viento". En esta película, el viento toma el papel de protector, manteniéndo alejado las amenazas para el Valle del Viento. En las otras películas del diretor, se analizará si el viento está representado más allá de sus aspectos físicos obvios, el viento también como un elemento de fantasía, espiritualidad, símbolo, por fin, sus metáforas. El significado de Ghibli (escrito en árabe) se puede entender como el viento caliente del desierto del Sahara, esta frase parece no tener sentido, pero a Hayao Miyazaki ese golpe cambiaría para siempre la historia de la animación mundial. El genio artístico japonês sopla con fuerza en la imaginación de miles de personas, elevando vuelos distantes. Palabras clave: Hayao Miyazaki, Animación cinematográfica, Japón, Viento Neste presente trabalho serão apresentadas algumas possibilidades de sentido (interpretações) que o elemento vento pode simbolizar. Para isso, serão inicialmente expostas algumas conexões necessárias para a feitura das análises dos filmes, que serão estes: “Nausicaä do Vale do Vento”, “Meu Vizinho Totoro”, “A 920 viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado” e “Vidas ao Vento”, em ordem cronológica de lançamento. Conceitos de mitologia serão empregados ao decorrer do texto, havendo a conexão entre Oriente e Ocidente. JN ƒ / Hayao Miyazaki Hayao Miyazaki é uma verdadeira lenda viva do cinema de animação mundial. É reconhecido por seus filmes, conseguindo status de “obra de arte”. Diretor de diversos filmes de animação, tais como os clássicos “Meu Vizinho Totoro”, “Mononoke Hime”, “A Viagem de Chihiro”, “O Castelo Animado”, etc. Nasceu em 1941 em Tóquio, no contexto da II Guerra Mundial, mas apesar disso, a sua família era rica e vivia em condições privilegiadas para uma época difícil como aquela. Seu pai, Katsuyiki Miyazaki, trabalhava em uma fábrica que construía peças para os caças japoneses. Sua carreira inicia-se em 1963, logo após ter se formado em Ciências Políticas e Economia. Foi trabalhar como estagiário de animação na Toei Animation (estúdio de animação), e lá conheceu seu parceiro de trabalho, Isao Takahata. Atualmente, Hayao Miyazaki, tem 73 anos, e em 2013, anunciou sua aposentadoria dos longas-metragens. Vento ghibli: o voo da animação japonesa Foi a partir do lançamento, em 1984, do filme Nausicaä do Vale do Vento2 que a criação do Studio Ghibli começa a se fazer possível. A história do filme, no entanto, inicia-se muito antes, em 1982, quando Hayao Miyazaki trabalhava no projeto de um mangá3 sobre ficção científica. Ambos os formatos contemplam a plenitude artística do diretor: mundos maravilhosos, complexos, com mensagens pacifistas e ecológicas, o gosto pela aviação, o protagonismo feminino, entre outros aspectos. O diretor é conhecido por ter um discurso ambiental forte em seus filmes, e isso é de grande relevância. O Japão é um dos países asiáticos que mais poluem o planeta, ao lado da China, segundo pesquisas recentes. Nada mais coerente do que criticar isso por meio do cinema, de modo educativo e tão belo. Um detalhe interessante é saber que parte da personalidade da protagonista do filme, foi 921 inspirada na personagem Nausicaä de Homero, em Odisséia, e também a partir de um conto do folclore japonês, A Princesa que Amava os Insetos (Mushi Mezuru Hime). Graças ao sucesso alcançado pelo filme, Miyazaki e Isao Takahaka 4 fundaram em 15 de junho de 1985, o Studio Ghibli5, estúdio de animação japonês, renomado mundialmente. O significado de Ghibli (escrito em árabe) pode ser entendido como O Vento Quente do Deserto do Saara, é o nome do vento siroco, nascido no mediterrâneo. Também pode remeter ao avião italiano “Caproni Ca.309 Ghibli”, usado na Segunda Guerra Mundial. Não deve ser à toa que vento e avião constroem juntos a simbologia do nome do estúdio. A iminência do sopro: conexões de significados “Quem viu o vento? Eu não vi, você também não. Mas quando as folhas estão quase caindo, é porque o vento está passando.” Trecho de uma fala do protagonista de Vidas ao Vento / Kaze Tachinu, último filme do diretor, de 2013. Entender os ventos é antes de tudo conhecer as suas origens e suas relações. O simbolismo do vento apresenta diversas faces, podendo representar, ao mesmo tempo, a força bruta, indicativo de sua violência e sua cegueira, e em paralelo, tendo como sinônimo, o sopro, em toda a sua sutileza. Vamos tentar conhecer algumas das variadas conexões que o vento estabelece simbolicamente. De acordo com Jung, em seu livro “A natureza da psique”, a alma era uma espécie de força vital do corpo, o sopro da vida. É interessante que nesse texto o autor menciona que em diferentes culturas as palavras ‘vento’ e ‘alma’, etimologicamente, se assemelham. Desde o alemão “seele” e do inglês “soul”, por exemplo, existe uma relação com a palavra grega aiolos que significa movimento, ou seja, a alma seria uma força em movimento, que nos dá vida. Podemos tomar também como exemplo, os nomes latinos para espírito (animus) e para alma (anima) que tem o mesmo significado de anemos, vento em grego. As conexões são muitas, ainda em grego, podemos encontrar as palavras pneuma, que designa o vento e o espírito, concomitantemente; psycho (soprar), psychos (fresco), psychros (frio), etc. Enfim, todos esses nomes dados à alma ou que possuem alguma relação só reforçam, ainda mais, o sentido de “ar em movimento”. 922 Quanto ao Oriente, na mitologia hindu, o vento, Vayu, é o sopro cósmico, o fio que une todos os mundos. Já na Bíblia, os ventos são o sopro de Deus, que através disso ordenou o caos e animou o primeiro ser. Assim como os anjos, os ventos são mensageiros, manifestações divinas que nos comunicam desde a mais doce brisa até a tempestuosa ventania. De acordo com o taoísmo dos Han, no princípio existia nove sopros que com o passar do tempo, misturaram-se e formaram o espaço físico. O espaço intermediário entre o céu e a terra é preenchido por um sopro chamado k’i. O conceito utilizado no Japão para simbolizar espaço intermediário, intervalo espaço-temporal, etc, chama-se Ma Ǎ. Michiko Okano (2007, p. 16) afirma que “a noção do Ma é muito antiga e remonta ao espaço vazio de conexão com o divino”. Se estamos tratando de intervalo, podemos conceber que a respiração em seu ritmo dual, pode estar relacionada ao tema. Ora, segundo Chevalier (2012, p. 778) para os taoístas “as duas fases respiratórias são a abertura e o fechamento da porta do Céu, respectivamente yang e yin. Respirar é assimilar o poder do ar; se o ar é símbolo espiritual do sopro, respirar é assimilar um poder espiritual.” Ou seja, a partir disso podemos entender os ventos também como intervalos, pausas necessárias no preenchimento do espaço. O silêncio também é uma forma de pausa, intervalo, segundo Eni Orlandi (1997). Para a autora, o silêncio adota múltiplas formas, ele pode atravessar as palavras, ele existe entre as palavras, ele indica que o sentido de algo pode ser outro ou pode estar presente naquilo que nunca se diz. Podemos notar semelhanças entre o silêncio e o vento, quando dizemos que o silêncio não pode ser observado de maneira verbal, ele é “invisível” assim como o ar. Ao lado do silêncio está o som, e juntos formam a onda sonora, que é constituída de um sinal (frequência) que, por sua vez, se apresenta e se ausenta. Para Wisnik (2007), sem essas interrupções (intervalos) o som não duraria, tão pouco começaria. Podemos entender a onda sonora, de um modo simples, como partidas e contrapartidas de movimentos, como impulsos e repousos. Em um outro trabalho, pesquisei sobre os sentidos do silêncio no rádio, os discursos que podemos observar. Aproveitando isso, comento a relação que a onda sonora possui com taoísmo: 923 A partir disso, pode-se observar que o som é movimento, essencialmente complementar, sempre partindo para algum lugar e ao mesmo tempo, o contrário. (...) Um exemplo claro dessa representação é o círculo do Tao, contendo o yang (ímpeto) e o yin (repouso). Vale salientar que o próprio símbolo taoísta possui uma onda, representando o movimento do som como a vida em harmonia (NASCIMENTO, 2013, p. 03). Sobre o poder invisível do vento, não podemos esquecer de comentar sobre o ar. Um dos quatro elementos da natureza, segundo as cosmogonias mais antigas, é ativo por excelência, masculino e símbolo da espiritualização. Mais uma vez, temos a representação do reino do sutil e do espaço intermediário entre céu e terra com suas diversas camadas de possibilidades. O que o vento ‘sopra’ voa, por isso, é natural que as asas se relacionem com o ar. Simbolizam o alçar voo da alma, a leveza espiritual, a liberdade. Por consequência, os pássaros e as borboletas, também possuem conexão com os ares. A fênix, por exemplo, combina os elementos ar e fogo, e é símbolo da alma imortal. Temos, portanto, o fogo como semelhante ao espírito, ao divino, assim como, o vento. Ser alado também está nos domínios do onírico. Na mitologia grega, Hermes, o deus das estradas, das viagens e mensageiro do Olimpo, possuía asas nos calcanhares, caracterizando, assim, o voo noturno dos sonhos. Bem, depois de tecermos uma exaustiva rede de significados, podemos entender que tanto o ar, o sopro, o silêncio, o som, as asas, os pássaros, o espírito, a alma, a respiração, o vazio, os intervalos, etc, constituem alguns dos muitos sentidos que o vento possui. A seguir, eles nos serão úteis no processo de vislumbrar as possíveis metáforas encontradas na obra cinematográfica de Hayao Miyazaki. Sutilezas no ar: metáforas em Hayao Miyazaki Neste momento, irei tecer comentários sobre as representações do vento a partir de alguns filmes do diretor. No entanto, não tenho a pretensão de esboçar inúmeras análises, estarei, apenas, tentando trabalhar alguns exemplos. Podemos começar com clássico aqui já mencionado, “Nausicaä do Vale do Vento”, o segundo longa-metragem dirigido por Miyazaki. Já de início, o próprio nome do filme invoca a presença do elemento ar. A história se passa mil anos após a Guerra dos Sete Dias de Fogo, quando nações inteiras padeceram devido às substâncias tóxicas 924 produzidas por elas mesmas. A personagem principal é a princesa Nausicaä, que protege seu povo das nações invasoras e da constante expansão do Mar Podre (Floresta Fukai), onde há plantas com um tipo de gás nocivo aos seres vivos, no entanto, os insetos parecem ter resistência ao gás. Diante disso, no desenrolar da história, a princesa toma para si a missão de descobrir a causa e a função da floresta e, assim, solucionar o mistério. Figura 1: Cena do filme. O vento volta a soprar no Vale, e a vida continua. O Vale do Vento situa-se às margens do mar, e de lá provém o vento auspicioso que protege o povoado da expansão da floresta de fungos, que, como podemos supor, se alastra através do ar. Ou seja, o sopro do mar se relaciona com a água como símbolo de purificação. Na Ásia, a água é manifestação da vida, da regeneração corporal e espiritual, segundo Chevalier (2012, p.15). Por isso, podemos dizer que a metáfora do vento neste filme é o de purificador, de tornar a vida possível. Claro, esse é apenas um dos possíveis aspectos que podemos observar. Há uma cena do filme que é bastante intrigante. Trata-se de uma das últimas cenas, quando a heroína Nausicaä consegue salvar o Vale o Vento. Momentos antes, o vento havia, simplesmente, parado de ‘soprar’, era um mau presságio, a vida estava em perigo. Retomamos aqui a ideia de intervalo, pausa, e literalmente o k’i e o Ma estavam abalados, o preenchimento havia sumido, aos ouvidos, ao tato, ao olfato e aos olhos (as nuvens estavam paralisadas). A força vital fora interrompida por alguns instantes. Outro filme que possui forte evocação aos ventos é o simpático “Meu Vizinho Totoro”, ( %%1, Tonari no Totoro) de 1988. Quando falamos em evocar, não necessariamente no sentido físico. O personagem Totoro (que são três, um 925 gigante, um médio e um menor) são espíritos protetores da floresta, invisíveis, exceto às crianças de coração puro. As irmãs Mei (6 anos) e Satsuki (10 anos) mudam-se com seu pai para uma vila rural no interior do Japão, para ficar perto da mãe adoentada. Animadas, elas brincam ao redor da nova casa, explorando o lugar, até que a irmã mais nova encontra uma criaturinha. Nota-se que essa criatura é um dos Totoros e possui a capacidade de invisibilidade (até para as crianças). O vento está presente nesses detalhes, essa criatura simbolicamente remete ao plano espiritual e como já dito antes, o espírito é o sopro da vida. Outro aspecto interessante desse filme, são os momentos de silêncio, e a maneira como o diretor trabalha isso. Em uma entrevista no ano de 2002, Miyazaki responde ao crítico de cinema, Roger Ebert, quando este comenta que aprecia os “momentos gratuitos” em seus filmes, onde as personagens fogem da agitação da narrativa e param por um instante, pausam para olhar a paisagem, para suspirar, para sentar, etc. O diretor, em resposta: Nós temos uma palavra para isso em japonês", disse ele. "Chama-se Ma. Está lá intencionalmente.” (...) Ele bateu palmas três ou quatro vezes. "O tempo entre o meu aplauso é o Ma. Se você só tem ação constante, sem o espaço para respirar, é uma correria só, mas se você parar um momento, então a construção de tensão no filme pode ter uma dimensão mais ampla. (Tradução minha). O que o Miyazaki quis nos dizer é que não devemos ter medo dessas pausas, desses silêncios. O vento está representado, mais uma vez, nesses aspectos. Figura 2: Cena do filme. Mei encontra um dos Totoros e o segue, curiosa. Em “A viagem de Chihiro” (A AKq€ /Sen to Chihiro no Kamikakushi), 2001, ganhador do Oscar de Melhor Filme de Animação, podemos perceber um dos aspectos do vento em uma cena que a princípio pode passar despercebida. Quando a personagem Chihiro encontra-se em apuros e é ajudada por Haku, o conselho do 926 rapaz é de que ela prenda a respiração por alguns instantes, pois só assim será seguro atravessar a ponte, a passagem para o divino. Por que ela precisou prender a respiração? O que isso tem demais? Bem, já vimos anteriormente que o vento tem descendência divina. Na mitologia cristã, por exemplo, Deus cria as coisas a partir do soprar. Sendo assim, a respiração humana, estaria impura, inapropriada para ambientes sagrados. Segundo Chevalier (2012, p. 851), há um culto eslavo ao deus Svantevit, e na véspera dessa cerimônia, “o sacerdote varreria o templo, em que só ele podia penetrar, tomando o cuidado de não respirar. Assim, toda vez que precisava expirar, corria para a saída para que o sopro humano não tocasse o deus e o maculasse”. Podemos fazer um paralelo com a cena do filme, onde Chihiro ao expirar seu ar impuro, pode chamar a atenção dos seres divinos ali presentes. Figura 3: Cena do filme. O momento em que Chihiro perde o fôlego e respira. Indo adiante, temos um filme de 2004 chamado “O Castelo Animado” ((0 ?F / Hauru no Ugoku Shiro). Nele poderemos nos atentar ao aspecto ígneo do vento. Símbolo de purificação e iluminação, o fogo também pode representar o coração, em suas paixões. Sendo um órgão espiritual, o coração simboliza, desse modo, o espírito (que é sopro) e queima. Exemplo claro disso é o personagem Calcifer, um demônio que fez um pacto com o mágico Howl, e por isso, possui seu coração (seu espírito), representação do fogo como movimento da alma. Consequentemente, Calcifer se transforma na força vital do castelo, que sem seu o calor se desfaz em pedaços. Por fim, temos “Vidas ao Vento” ( ‚ r  / Kaze Tachinu), filme de despedida do diretor, lançado em julho de 2013. A história conta a vida do designer de aviões Jiro Horikoshi, que sonha em voar e desenhar aviões desde criança. Ao que parece, Hayao Miyazaki se despede dos longa-metragem em grande estilo, e o 927 filme todo é repleto de metáforas aéreas, desde o seu título “o vento se eleva” até as cenas com aviões. Neste filme, o aspecto onírico do vento está exaltado. Como dito, o símbolo das viagens são as asas, forças criadoras, capazes de impulsionar os sonhos. Ao avião lhe é concedido o dom da levitação, e não podemos confundir o avião com o cavalo, ele é o Pégaso. De acordo com Chevalier (2012, p. 104), “dirse-á que sua decolagem pode exprimir uma aspiração espiritual, a da liberação do ser de seu ego terreno através do acesso purificador às alturas celestes”. Há também um outro aspecto, o da água. Por muitas vezes, o vento ‘soprava’ nas águas, anunciando sua passagem, com o intuito de aproximar. Nesta cena da fonte, onde a personagem Naoko está, e que perto dali Jiro se aproxima, temos a sensação de que o vento está guiando esse encontro. Para Jung, a fonte simboliza a imagem da alma, como origem de energia espiritual. Ainda nesse mesmo contexto da cena, o casal se avista e a moça no impulso de felicidade comenta que havia feito um pedido à fonte para que eles se reencontrassem. Não apenas ali, mas há vários outros momentos nos quais o vento proporcionou encontros e desencontros, sejam como brisas ou ventanias. Figura 4: Cena do filme. Naoko próxima a uma fonte. Considerações finais: o tomar fôlego Pois bem, tentei nesse trabalho, pincelar algumas metáforas, representações do elemento vento (aspecto espiritual, divino, purificador, criador, destrutivo, comunicador, etc) em alguns filmes do diretor e animador Hayao Miyazaki. Deixo claro que tais comentários são apenas uma parcela dos muitos sentidos possíveis de análise, há um vasto campo de interpretações, sobretudo, quando envolvemos o 928 Oriente, que em toda a sua riqueza cultural, facilitou o tecer dessa rede simbólica. Talvez seja raro pararmos para pensar o quanto estamos imersos em ar, preenchidos de vazios e pausas (necessários), na oscilação do movimento da nossa respiração. Salientamos, com isso, a importância do elemento vento para o cinema do diretor. E como posto no final do mangá de “Kaze no Tani no Naushika” e do filme “Kaze Tachinu”, nós temos que viver. Que os ventos continuem soprando. Ś # Notas 1 Glaudiney Moreira Mendonça Junior, orientador do trabalho e professor mestre de Narrativas, Design de Jogos e Mitologia do Curso de Sistemas e Mídias Digitais da UFC, email: glaudiney@virtual.ufc.br. 2 Título original, em japonês: ǚ!ư!A9>; / Kaze no tani no Naushika. 3 Histórias em quadrinhos japoneses. 4 Cineasta, animador, roteirista e produtor japonês. Diretor de filmes como “O Cemitérios dos vagalumes”, “Only Yesterday”, “Pom Poko” e “Meus vizinhos, os Yamadas”. 5 Título original, em japonês: aR9p!)/ / Kabushiki-gaisha Sutajio Jiburi. Referências Bibliográficas CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. – 26ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. EBERT, Roger. HAYAO MIYAZAKI INTERVIEW. September 12, 2002. Disponível em: <http://www.rogerebert.com/interviews/hayao-miyazaki-interview >. Acesso em: 17 abr. 2014. JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Tradução Pe. 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Dubladores: Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, Takeshi Naito, Yasuko Sawaguchi, Tsunehiko Kamijō, Takehiko Ono, Bunta Sugawara e outros. Japão: Studio Ghibli, 2001. 1 filmw (124 min.), son., color., 35mm. O CASTELO Animado. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Roteiro: Hayao Miyazaki. Dubladores: Chieko Baisho, Takuya Kimura, Akihiro Miwa e outros. Japão: Studio Ghibli, 2004. 1 filme (118 min.), son., color., 35mm. Baseado na obra “Howl's Moving Castle” de Diana Wynne Jones. VIDAS ao Vento. Direção: Hayao Miyazaki. Produção: Toshio Suzuki. Roteiro: Hayao Miyazaki. Dubladores: Hideaki Anno, Miori Takimoto, Hidetoshi Nishijima, Masahiko Nishimura, Steve Alpert, Morio Kazama, Keiko Takeshita, Mirai Shida, Jun Kunimura, Shinobu Otake, Nomura Mansai e outros. Japão: Studio Ghibli, 2013. 1 filme (126 min.), son., color., 35mm. Baseado no mangá “Kaze Tachinu” de Hayao Miyazaki. Kamilla Medeiros do Nascimento Estudante de graduação em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Bolsista de extensão na Rádio Universitária FM 107,9, assistência de produção. Organizadora do Cineclube de Animação “Cinuca”, na Casa Amarela Eusélio de Oliveira (UFC). Integrante do grupo do Laboratório de Estudos e Pesquisas Orientais (LEPO), na Universidade Estadual do Ceará – UECE. 930 CHÁ: A EXPERIÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM A CULTURA ORIENTAL Rebeca Chiarini Alcântara - UNESP RESUMO: Esta pesquisa busca aproximar os conceitos de “experiência” trazidos na modernidade e contemporaneidade pelos filósofos Walter Benjamin, John Dewey e Jorge Larrosa ao pensamento antigo oriental, mais especificamente o Taoismo e o Zen. Estas comparações não foram feitas apenas a partir de seus ideais, mas também através de seus desdobramentos culturais e estéticos. A cerimônia do chá foi escolhida nesta pesquisa como figura que ilustra estes princípios, por ter sido apontada por Kakuzo Okakura como símbolo do conceito de vida e arte oriental, e também por ter feito parte de minha vivência em um curso realizado no Brasil. Tanto na estética japonesa e na cerimônia do chá, assim como nas diversas definições de experiência, há a valorização da apreensão pessoal e subjetiva de cada indivíduo acerca do mundo como fonte de conhecimento. Estas noções se contrapõem às noções ocidentais de verdade neutra e objetiva presentes no discurso lógicoracional. Palavras-chave: experiência, cerimônia do chá, cultura japonesa, pensamento oriental ABSTRACT: This research aims to make connections between the modern, contemporary concepts of “experience” created by the philosophers Walter Benjamin, John Dewey and Jorge Larrosa and the eastern thought, specifically Tao and Zen doctrines. These connections were made not just by the analysis of eastern ideals but also through understanding of its aesthetics and culture. The tea ceremony have been chosen in this research as an illustration of these principles because it was appointed by Kakuzo Okakura as a symbol of eastern art and life, and also because it has been a part of my own experience in a course that I took in Brazil. In Japanese aesthetics and in tea ceremony as well as in the concepts of “experience”, we can see an acceptance of the personal apprehension of the world as a source of knowledge. That opinion is opposite to the main western notions that defend the neutral and objective truth. Keywords: experience, tea ceremony, Japanese culture, eastern thought As faces da experiência Em linguagem corrente, experiência refere-se ao ato ou efeito de experimentar ou de sofrer algo. O Michaelis atribui como um de seus significados o “conhecimento adquirido graças aos dados fornecidos pela própria vida“. A ideia de experiência habitualmente nos remete à noção de aprendizagem, por meio de algo vivido empiricamente, ou seja, anterior a teorias e métodos organizados. Experiência também faz alusão ao sentido de competência e habilidade. Aquele que se dedicou por um longo período a determinado assunto, conhecendo-o em sua abrangência e dominando suas minúcias, torna-se referência para aqueles que são principiantes, adiquirindo prestígio e reputação pelo acúmulo de saberes e situações que travou 931 durante o percurso do tempo. Experiência também diz respeito, numa noção científica e moderna, à demonstração e prova. É entendida como a apreensão visível e concreta do pensamento científico, através da utilização de aparatos e instrumento próprios. Ao buscar as raízes etimológicas da palavra, encontramos a raiz latina experiri que significa provar, experimentar. A raiz indo-européia per, relaciona-se a ideia de travessia, prova, risco. Já o radical ex, é o mesmo presente em exterior, estrangeiro, estranho. Em alemão, experiência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. De fara também deriva Gefahr, perigo. “Tanto nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo” (LARROSA, 2002, p. 25). Deste modo, podemos compreender a experiência como um encontro com algo exterior a si, sendo esta passagem marcada pelo risco e pela incerteza, por se tratar de algo desconhecido. Em Filosofia, experiência significa o conhecimento transmitido pelos sentidos, ou seja, a apreensão sensível da realidade externa (MEINERZ, 2000, p. 20). Para o pensamento platônico, nossos sentidos apenas nos dão acesso a vagas e volúveis aparências pois a verdade primeira se encontra no “mundo das ideias”, não no “mundo das coisas”. Assim como para os prisioneiros de uma caverna, as sombras que lá dentro se projetam parecem reais, todavia, são apenas simulacros, produtos de sua própria sensibilidade. No discurso filosófico, a verdade objetiva só pode ser alcançada por meio da razão, ou seja, por meio de um sistema de argumentação que pode ser comprovado, que é neutro e objetivo e independente de nós. Esta distinção entre mundo sensível e inteligível equivale, em parte, à distinção entre experiência e razão (MEINERZ, 2000, p. 20). Numa aliança entre fé e razão, o pensamento medieval coloca experiência e ciência como “campos dicotômicos, impossíveis no mesmo sujeito” (MEINERZ, 2000, p. 21). Tanto a natureza como o homem são criações divinas mas contraditoriamente, em sua visão, não são belos ou bons, mas apenas matéria mortal e imperfeita. Segundo a Igreja, o homem é fruto do pecado original, possui em seu cerne a marca intrínseca de pecador. Deste modo, o que cabia ao sujeito medieval era seguir o bem através das normas de conduta, em direção ao paraíso além túmulo. Neste pensamento que distingue o bem e o mal, o homem “conhece o 932 mal por experiência, mas só pode conhecer o bem por ciência” (MEINERZ, 2000, p.22). Com a formulação do projeto da ciência moderna por Francis Bacon no século XVI fica claro que a experiência é apenas válida no sentido de experimento, ou seja, como comprovação palpável e visível de um pressuposto teórico. No Ocidente, tanto a ciência moderna, o pensamento filosófico clássico e a doutrina cristã distanciam o sujeito e sua absorção direta do universo como fonte digna de conhecimento, preservando a convicção em uma verdade única e independente de nós. Mesmo depois de séculos, após tantas transformações sociais, ainda somos ensinados a pensar predominantemente desta maneira. Desta forma acabamos desconsiderando a experiência como fonte de conhecimento e como processo autêntico de nos relacionarmos com o mundo. Somente no final do século XIX e no início do século XX é que os autores ocidentais trazem novos olhares para o sujeito, neste contexto surgem os conceitos de “experiência”, trazidos pelos filósofos Walter Benjamin e John Dewey na primeira metade do século XX e por Jorge Larrosa na contemporaneidade. Entretanto, podemos perceber diversas semelhanças entre as noções presentes nos conceitos de “experiência” e o pensamento oriental, tanto através de suas ideias como de sua estética. Para não falarmos do Oriente somente de uma perspectiva distanciada e abrangente, tomaremos como figura a cerimônia do chá (também conhecida por chado ou chanoyu), tradição da cultura japonesa que foi reconhecida pelo escritor Kakuzo Okakura como símbolo de arte e vida oriental e que também fez parte de minha própria experiência através de um curso teórico-vivencial realizado na Casa de Cultura Japonesa da Usp representada pela Escola Urasenke. Traçaremos tais relações entre experiência e cultura oriental nos baseando em autores como Kakuzo Okakura em O livro do chá, Claude Lévi-Strauss em A outra face da lua e Junichiro Tanizaki em Em louvor da sombra e Roland Barthes em O império dos signos. Utilizamos termos como “oriental” e “ocidental”, “Oriente” e “Ocidente” como generalizações necessárias para a compreensão destas relações. Ainda que se tenha consciência do perigo das generalizações, já que dentro delas pode haver inúmeras excessões, nos atentaremos para os aspectos dominantes destas culturas nos baseando nos autores em questão. 933 O tempo da experiência O homem acumula saberes. Acumula porque não pode permanecer no zero. Da utilização destes conhecimentos depende a sua sobrevivência, e são eles quem criam uma teia na qual toda a humanidade se encadeia. O homem que descobriu o fogo, reune-se com seus companheiros para partilhar a nova descoberta. Estes alumbram-se com esta façanha desconhecida que mais lhes parece um ato de magia, e ao observarem e imitarem os movimentos de seu “professor”, são agora capazes de fabricar e utilizar a chama da vida. Cada descoberta perpetua-se na forma de tradição. Ao nascer agregamos os conhecimentos de nossos pais para podermos fazer mais. O que domina o fogo descobre nele uma nova possibilidade: não somente o protege do frio e coze seu alimento, mas o ajuda a moldar materiais para seu uso e benefício, e assim continua a escrever uma história da qual todos nós participamos. Essa experiência que se articula em comunidade, chamada de Erfahrung por Benjamin, transmite-se de pessoa a pessoa através da fala (1987, p. 198). O ambiente da Erfahrung é um ambiente artesanal, onde as relações se tecem manualmente, através do encontro, do ouvir e do gesticular. Para Benjamin, essa transmissão de saberes é o que compõe a narrativa. O narrador é a figura do homem sábio, que conta histórias de viagens a terras distantes e de tempos remotos, dá conselhos e instruções práticas. O ouvinte, ao escutar, esquece-se um pouco de si mesmo e absorve tais narrativas, incorporando em si a experiência de seu povo. A narrativa não é rígida e estática como um relatório, mas uma arte fluida, que se modifica de transmissão em transmissão, e “assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 1987, p. 205). A gravação destas marcas não pode ser evitada pois a narrativa acompanha o fluxo da vida, que nunca cessa. A experiência enfatizada por Benjamin é a coletiva, através dela o passado conecta-se com o presente e o indivíduo encontra-se como parte de um conjunto maior. Benjamin lamenta a perda da experiência nos tempos que correm, pois, segundo ele, de nada adianta haver um patrimônio histórico se não nos sentirmos ligados a ele. A quebra da experiência se deve ao esfacelamento das sociedades 934 artesanais e dos modos de vida que elas proporcionavam. A modernização, a industrialização e as guerras, tornaram o homem mais rico em artefatos, mas muito mais pobre em experiências. O soldado que volta da guerra quer esquecer o que viveu lá em vez de passar adiante. A habilidade de intercambiar experiências já não se cultiva mais e o que resulta disto é um indivíduo que hoje sente-se isolado, apartado de seus semelhantes, que vive em edifícios mas parece não dividir nada com os outros além de paredes. A Elerbnis, a experiência individual, é a busca do indivíduo solitário por esse sentido de pertencimento, ainda assim, ambas experiências possuem o mesmo caráter: o rompimento do isolamento e a busca por um sentido de religação. Apesar desse aspecto saudoso em relação à experiência, Benjamin também alerta para o seu lado negativo quando esta é usada como fonte de autoridade e comodismo. O mais velho, por ser mais vivido que o jovem, tenta lhe impedir de sonhar e experimentar, acreditando já saber como as coisas funcionam e as ditando como verdade. Esta característica de estagnação é reversa à experiência, que é um processo de constante construção. Benjamin diz que a experiência deve servir como matéria prima para a criação, para a religação do sujeito com sua história, e não para o impedimento de uma reconstrução do presente (1987, p.114). Nas ideias trazidas por Benjamin, Dewey e Larrosa, há um entendimento da experiência como processo intrísenco na relação do indivíduo com o mundo que o cerca. Segundo Dewey, ela “ocorre continuamente, porque a interação do ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver” (2010, p. 109). Há a concepção da experiência como um aprendizado que instaura uma transformação e um aprendizado ainda que Benjamin, ao contrário dos outros, não chegue a falar em termos de “educação”, mas sim naqueles saberes distribuídos pela tradição cultural. O conhecimento da experiência, é um saber finito, pessoal, subjetivo e “ligado à existência de uma pessoa ou de uma comunidade”, ao contrário da ideia científica de conhecimento como algo universal e objetivo (LARROSA, 2002, p. 27). A experiência, para Larrosa, é o que nos passa, o que nos acontece e o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca (2002, p. 21). Trata-se, em primeiro lugar, de um encontro, de uma relação com algo exterior a nós mesmos. 935 Esta relação pode acontecer em qualquer lugar ou circunstância mas ao mesmo tempo, pode não acontecer. Para viver uma experiência não basta presenciar um acontecimento, é preciso tornar-se disponível como uma “superfície sensível”, sair dos automatismos e das certezas habituais e abrir-se para que algo novo lhe penetre. Assim, quem define a experiência não é o acontecimento em si, mas o sujeito que a vive. “Duas pessoas ainda que enfrentem o mesmo acontecimento não fazem a mesma experiência” (LARROSA, 2002, p. 27). Todavia a experiência não se faz mais tão presente nos dias de hoje. Segundo Larrosa, num mundo onde tantas coisas acontecem, a experiência é cada vez mais rara. Ele aponta para o modo de vida moderno e capitalista que nos afasta da disponibilidade necessária à experiência, nos estimulando a ser apressados, a ter pouco tempo, a ser informados e cheios de opinião (LARROSA, 2002, p. 24). A informação e a opinião não permitem que se viva uma experiência pois estas armam o homem de certezas e conceitos, não deixando lugar para que algo inusitado lhe aconteça. Acumular dados e opiniões acerca de algo não pressupõe necessariamente que algo lhe toque. Em função disso, Larrosa critica a expressão “sociedade da informação” utilizada equivocadamente como “sociedade do conhecimento e aprendizagem” pois para ele a sociedade da informação é uma sociedade onde a experiência é impossível (LARROSA, 2002, p. 22). A experência precisa de tempo, ela não acontece de repente, nem se dá por choques. Se não há tempo, vivemos com pressa, pulando de uma coisa para a outra, sem cultivar este espaço onde se digere o que está sendo visto e vivido. Neste sentido, Dewey expõe a sua crítica ao nosso excesso de ação: O gosto pelo fazer, a ânsia pela ação, deixa muitas pessoas com experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais. Nenhuma experiência isolada tem a oportunidade de se concluir, porque o indivíduo entra em outra coisa com muita precipitação. A resistência é tratada como uma obstrução a ser vencida, e não como um convite a reflexão. O indivíduo passa a buscar situações em que possa fazer o máximo de coisas no prazo mais curto possível (DEWEY, 2010, p. 123). Segundo Larrosa, nos relacionamos com os acontecimentos sempre “do ponto de vista da ação” (2002, p. 23). Não temos silêncio, nem espera, nem memória. E para ele, o sujeito da experiência não se define por sua atividade, mas por sua receptividade, disponibilidade e abertura: 936 A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24). O que distingue a experiência dos outros tipos de conhecimento é o que acontece com o próprio sujeito que a vive: sua capacidade de auto-transformação (LARROSA, 2002, p. 26). No momento em que se expõe, o sujeito, assim como uma “superfície sensível”, é tocado e algo lhe acontece. Tira uma conclusão, cria algum novo entendimento e logo é transformado por este acontecimento, que agora faz parte de si, manifestando-se por sua “ética (um modo de conduzir-se) e estética (estilo)” (LARROSA, 2002, p.27). Tais experiências não acontecem de maneira passiva pois, segundo Dewey, para que haja experiência é necessária a participação ativa do sujeito. As percepções não são reconhecimentos que se imprimem automaticamente em sua consciência, mas atos constantes de criação, feitos de maneira particular no interior de sua mente. Larrosa e Benjamin opõem suas ideias de experiência à ciência - seja porque ela se baseia numa premissa de objetividade e neutralidade, que para Larrosa é contrária ao caráter pessoal e subjetivo da experiência, ou como para Benjamin, por ela ter acarretado no rompimento das sociedades artesanais e consequentemente nas suas relações íntimas e domésticas, que proporcionavam uma interrelação entre as experiências de cada geração. Dewey não se opõe à ciência, mas tampouco compreende a experiência como um processo meramente racional. Para ele, a experiência é um exercício de criação de sentido que envolve o intelecto, o emotivo e o prático, trabalhando simultaneamente através da consciência do ser que a vive. O ser centrípeto e o ser centrífugo As sociedades se desenvolveram por caminhos distintos. Singulares foram as suas condições, os seus cenários, seus desafios, suas paisagens. Diferentes também foram as maneiras como responderam a cada situação, os caminhos e conclusões a que chegaram. Cada povo possui uma história para contar, é dono de 937 uma singularidade que o caracteriza, relacionada com tudo o que viveu. Os saberes que vão sendo elaborados em cada experiência acumulam-se, como na Erfahrung, para serem incorporados pelos próximos membros criadores. Organizam-se não só de forma discursiva, mas em feição estética. Suas cores e formas talvez nos contem mais a respeito de si do que qualquer explicação verbal, pois “a vida é uma expressão, e nossos atos inconscientes são a constante traição de nossos pensamentos mais íntimos” (OKAKURA, 2008, p. 42). Segundo o antropólogo Claude Lévi-Strauss, os filósofos ocidentais vêem duas grandes diferenças entre o seu pensamento e o oriental pois este se caracteriza por uma dupla recusa. Em primeiro lugar, pela recusa do sujeito, negando o que para o ocidente constitui uma “evidência primeira”, e cujas doutrinas tentam demonstrar seu “caráter ilusório” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). O pensamento oriental critica a relação eu-mundo, tida como separação sujeito-objeto, não porque estes sejam o mesmo, mas porque influenciam-se de tal maneira que é impossível considerá-los entidades separadas e independentes. O homem que percebia-se como um ser-mundo, era um homem que reconhecia-se no tronco das árvores, no vôo dos pássaros e na chuva tempestuosa. Via se como parte de um misterioso quebra-cabeça do qual todos os elementos estavam encadeados e ele era apenas uma peça. Entretanto, esta recusa do sujeito não implica o seu anulamento, mas, como propõe Lévi-Strauss, em perceber que a maneira como Oriente e Ocidente concebem o sujeito é totalmente distinta. O sujeito ocidental coloca-se como um ser centrífugo: tudo parte dele. É o sujeito pleno e farto, que espalha suas flechas ao redor de si, podendo ser relacionado ao sujeito moderno e contrário à experiência, segundo Larrosa, aquele “que se relaciona com os acontecimentos sempre pelo ponto de vista da ação” (2002, p. 24). Já o oriental mais parece centrípeto: é o lugar que recebe e acolhe todo o seu meio circundante, é “superfície sensível” e “território de passagem”, como o indivíduo da experiência (2002, p.19). O sujeito centrífugo ocidental, em sua noção precisa e delineada de individualidade, vê-se num lugar distanciado, crê ser destacado e isolado dos demais. Sua relação com a natureza é não a de integração ou cooperação, mas a de contraste e oposição Busca, neste confronto, ser um agente transformador, 938 atribuindo à natureza a tarefa de servir-lhe como recurso a ser explorado em prol de seus próprios interesses. Neste ponto Lévi-Strauss faz uma interessante observação: conta que nas populações estudadas por ele e pelos seus colegas etnólogos não existe a palavra “trabalho”, não no sentido a que a conhecemos. A nossa maneira de supor o trabalho implica em uma “relação inteiramente ativa de um lado, o do homem, e passiva de outro, o da natureza”. Em outras civilizações, o trabalho assume um caráter de cooperação entre homem e natureza, na qual cada um dá um pouco de si. Estes trabalhos assumem um verdadeiro valor poético, “justamente porque representam uma das formas de comunicação entre homem e natureza” (LÉVI-STRAUSS, p. 39). A segunda recusa oriental é a do discurso. O Ocidente busca desde os gregos encontrar axiomas e postulados que expliquem de modo indubitável a natureza dos fatos. Para o Oriente “todo discurso é irremediavelmente inadequado ao real” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Conforme nos conta Okakura numa estória Zen, nada é real exceto aquilo que percebemos através de nossos próprios olhos, ou seja, aquilo que percebemos através de nossa experiência: Eno, o sexto patriarca, viu certa vez dois monges observando a bandeira de um pagode tremulando ao vento. Um deles disse: “É o pagode que se move”; o outro disse: “É a bandeira que se move”. Mas Eno explicou-lhes que o verdadeiro movimento não era nem do vento nem da bandeira, mas de algo do interior de suas próprias mentes (OKAKURA, 2008, p. 63). O oriental preferia formular seus conceitos a partir do contato com a vida e não moldar a vida através de premissas idealizadas. Nesse caso, a “sabedoria oriental” nada mais é que a capacidade de olhar para a natureza e tentar aprender com ela. Em tempos passados, o homem observou as mudanças sazonais, os movimentos estelares, a natureza cíclica dos seres, a pulsação inerente a tudo o que vive, e concluiu que tudo muda. Há somente o devir, a constante mutação das formas. Mas, se o absoluto é o relativo, como classificar? Pois “definição é sempre uma limitação, “fixo” e “imutável” são apenas termos que expressam interrupção de crescimento” (OKAKURA, 2008, p. 57). Segundo o físico Fritjof Capra, os chineses antigos expressavam suas ideias mais por padrões orgânicos do que por definições. Seus símbolos eram mais uma gestalt – um complexo conjunto de imagens e emoções com um forte poder sugestivo - que um signo abstrato de um conceito claramente delineado (CAPRA, 1989, p. 88). Ao “entender” racionalmente algo 939 estamos atribuindo um sentido único a tal situação, excluindo suas demais possibilidades. Já os sábios orientais, “nunca apresentavam seus ensinamentos de forma sistemática. Expressavam-se por meio de paradoxos, pois temiam dizer meias-verdades” (OKAKURA, 2008, p. 54). Compreender que a existência é complexa, não é só isto ou aquilo, mas que possui múltiplas faces ao mesmo tempo, é uma de suas características. A dualidade racional coloca as extremidades em confronto, o paradoxo as abarca sem rivalidade, preferindo entender o mundo por um estado ”anterior a todas as distinções, impossível de definir senão pelo fato de ser assim” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 75). Essas qualidades que construíram o homem na “chegada”, centrípeto, definido pela experiência, e na “partida”, centrífugo, definido por si próprio, podem ser vistas não apenas em suas formas institucionais e em seus princípios formulados, mas em gestos menores e talvez desapercebidos mas, que por sua inconsciência, talvez revelem ainda com mais força o funcionamento de suas mentes. Lévi-Strauss conta que no Japão ferramentas como serras e plainas foram empregadas com um uso invertido: para realizar o artesão puxa a ferramenta para si em vez de empurrála para frente. Do mesmo modo, as costureiras trazem o tecido em direção à agulha, ao invés de fincá-la na trama (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 84). Roland Barthes, que viajou ao Japão em 1970, enxergou nossas posturas de vida explícitas nos instrumentos que usamos à mesa: Em todos esses usos, em todos os gestos que implicam, os palitos se opõem à nossa faca (e a seu substituto predador, o garfo): eles são os instrumentos alimentares que se recusam a cortar, a espetar, a mutilar, a furar (gestos muito limitados, rechaçados no preparo da comida: o peixeiro que esfola diante de nossos olhos a enguia viva exorciza, de uma vez por todas, num sacrifício preliminar, o assassinato da comida); pelos palitos, a comida não é mais uma presa que violentamos (carnes sobre as quais nos encarniçamos), mas uma substância harmoniosamente transferida; ele transforma a matéria previamente dividida em alimento de pássaro, e o arroz em onda de leite; maternais, conduzem incansavelmente o gesto da bicada, deixando a nossos hábitos alimentares, armados de lanças e facas, o da predação (BARTHES, 2007, p. 26-28). O chá, o tao e o zen O chá, bebida feita à base da planta da espécie Camellia Sinensis, mas que em linguagem corrente empresta o nome para as demais infusões, é nativa da China 940 e foi descoberta há mais de 5000 anos. O chá era conhecido por suas propriedades medicinais e utilizado como remédio, afim de evitar fadiga, restaurar a visão, deleitar a alma – qualidades que faziam dele quase um “elixir da imortalidade” (OKAKURA, 2008, p. 43). Era muitas vezes aplicado em forma de pasta diretamente no corpo, ou era ingerido pelas folhas cozidas. Demorou séculos para que se desenvolvem técnicas de desidratração, oxidação e secagem, a fim de refiná-lo como bebida. O chá foi conquistando simpatia e se espalhando pela Ásia, logo tornou-se objeto de desejo e importante item nas transações comerciais. Na China inspirou poetas e virou entreterimento refinado. No Japão, se tornou método de autocompreensão, ganhando status de “religião estética” (OKAKURA, 2008, p.29). A cerimônia do chá, tradição que carrega as dimensões artística, religiosa e social, evoluiu de um ritual Zen no qual os monges se reuniam perante a imagem de Bodhi Dharma e com profunda reverência bebiam o chá numa mesma tigela. A chanoyu conforme conhecemos foi idealizada e organizada no século XVI por Sen Rikyu, o maior de todos os mestres “chaístas”, sob os princípios “harmonia, respeiro, pureza e tranquilidade”. O Ocidente conheceu o Oriente no período das grandes navegações. No final do século XVI os holandeses trouxeram notícias de uma bebida agradável que se fazia na Ásia a partir das folhas de um arbusto. Anos depois já havia chegado à Inglaterra, à França e à Russia. Segundo Okakura, a humanidade de repente se encontrou numa xícara de chá: É o único ritual asiático que merece apreço de todos. O homem branco escarnece de nossa religião e de nossos costumes, mas aceita a bebida marrom sem hesitar. O chá da tarde exerce hoje importante função na sociedade Ocidental. No tilintar delicado de bandejas e pires, no roçagar suave da hospitalidade feminina, na série de perguntas formais em torno do leite e do açúcar, percebemos que a “veneração ao chá” está inquestionavelmente estabelecida (OKAKURA, 2008, p. 34). Ao escrever O livro do chá em 1906, momento histórico em que o Japão via a acelerada modernização de seu cotidiano, Okakura não buscava abordar os aspectos técnicos e formais da chanoyu, e sim revelá-la como símbolo do conceito de arte e vida oriental, a fim de interpretar o Japão para o Ocidente. Nota-se por vezes um ar defensivo e preocupado em suas palavras, mas percebe-se que não se trata de uma busca por proteção ou imposição de sua cultura, mas da tentativa de 941 trazer uma compreensão entre ambas as partes, tão necessária para uma convivência harmoniosa. No cerne da cerimônia do chá está o Zen, seita que surgiu na China no século VI por uma fusão das correntes budista, taoísta e confucionista, se desenvolvendo posteriormente no Japão. Okakura enfatiza principalmente a presença o Taoismo na chanoyu, pois segundo ele, o Zen tornou visível o que o Taoismo idealizou. No princípio deste pensamento iniciado por Lao-tsé encontra-se o Tao, cujo significado é algo próximo de “o caminho”, “o curso”, “o modo”, “a natureza”. O Tao é a fonte de todas as coisas do universo, é a constante mutação que permeia todas as formas numa cadência rítmica e harmoniosa. Neste processo de transição, nada se repete ou se firma, pois cada condição é singular e única. Para o Taoismo, saber disso não implica em se afastar dos fenômenos do mundo, negando criar com eles algum vínculo, mas pelo contrário, propõe envolver-se com inteireza em cada circunstância mesmo sabendo que ela é passageira. A partir disso, compreendo que na cerimônia do chá há a extrema valorização das pequenas coisas. A profunda preocupação que presenciei em todos os detalhes que irão compor o cenário da cerimônia se justifica pela frase Ichigo Ichie, literalmente, “uma única vez, um único encontro”. A reunião para o chá faz-se assim um pretexto para a “contemplação do efêmero” e a chanoyu um meio cristalizado por meio do qual o homem se integra ao instante. O Taoismo e o Zen, diferentemente da tendência ocidental e mesmo de outras correntes orientais, não vêem esta noção de impermanência com desconfiança. Não se trata de algo falso ou negativo, mas do próprio humor do universo. De nada adianta irmos contra este movimento, assim, resta-nos apenas entrar em sintonia com ele: Mas a principal contribuição do taoísmo para a vida asiática tem sido no campo da estética. Historiadores chineses sempre se referiram ao taoísmo como “a arte de estar no mundo”, pois o taoísmo lida com o presente – nós mesmos. É em nós que Deus encontra a natureza, e o ontem se aparta do amanhã. O presente é a infinitude movente, a esfera legítima do relativo. A relatividade busca ajustamento; ajustamento é a arte. A arte da vida repousa num constante ajustamento ao nosso meio. O taoismo aceita o mundano conforme é, e diferentemente dos confucianos e dos budistas, tenta encontrar beleza em nosso mundo de angústia e inquietude (OKAKURA, 2008, p.59). Este foco no “agora” contrasta-se nitidamente com as tendências ocidentais, tais como a a promessa cristã pelo paraíso além túmulo e a segregação platonista 942 de “mundos”. O Zen reconhece que no pequeno e no grande existem as mesmas possibilidades, pois “o manifesto e o imanifesto são o mesmo” (LAO-TSÉ, 2002, p. 29). O Zen singularizou-se assim pela valorização dos assuntos cotidianos tanto quanto as atitudes tidas como espirituais. Em muitas de suas anedotas ouvimos histórias de monges tendo profundas reflexões ou insights enquanto varrem, limpam ervas daninhas no jardim ou descascam nabos. A partir disso, promoveram o exercício de ofícios como a jardinagem, o arco e flecha, a caligrafia, o arranjo de flores e o chá. Todas essas atividades são chamadas de Do, que são caminhos para a suprema autocompreensão que devem ser executados com afeto e perfeição. O Do não enfatiza o resultado, e assim como a experiência, o processo de sentir o caminhar. Apesar de toda a destreza que se pode adiquirir por meio destes trabalhos, “o mais difícil é sempre o mais básico” (SEN, 2008, p. 126). A execução mecânica duma ação, como coloca Dewey, não provoca nenhuma percepção, mas apenas um gesto de automatismo. Criar este vínculo com o agora deve ser uma meta constante, que nunca se conquista por definitivo. Okakura conta que desde os períodos do Xintoísmo, anteriores ao Zen, os japoneses já tinham o hábito da mudança (2008, p. 76). Suas construções eram feitas não de tijolos ou pedras, mas por peças de encaixe de madeira que, assim como peças de brinquedo, possibilitavam a construção e reconstrução de acordo com suas necessidades. Havia um hábito de dar uma nova casa a cada casal que se juntasse e de desmanchá-la após a morte de seu integrante principal. As capitais imperiais mudavam de lugar com frequência, e assim iam junto os seus templos e edifícios (OKAKURA, 2008, p. 76). Na cerimônia do chá este espírito de mutação está presente, por exemplo, na contínua alternância dos motivos decorativos que compõem a cena. A especial seleção dos objetos, a escolha da pintura com uma mensagem propícia ao momento exibem essa tendência de adequação. A chanoyu varia em sintonia aos ritmos sazonais, de tal forma que no fim do inverno podemos encontrar um broto de cerejeira, anunciando a chegada da primavera, e no verão nos deparar com um lírio gotejante, sugerindo agradável frescor. Desta maneira, o aposento de chá é um vazio, uma “morada do gosto” que expressa o temperamento vigente, satisfazendo a necessidade estética do momento. Segundo a pesquisadora Michiko Okano, 943 diferentemente da concepção ocidental de vazio como morte e como ausência, o vazio no Oriente é o nada que tudo contém, é toda a possibilidade de nascimento, “em que tudo pode vir a ser” (OKANO, 2012 , p. 1134). O vazio da cabana de chá é o espaço por onde a mutação transita, pois a realidade de um aposento encontra-se no espaço vazio circundado por tetos e paredes, não no tetos e paredes em si, da mesma forma que o jarro só é útil pela lacuna que permite abrigar algum líquido (OKAKURA, 2008, p. 60). A arte inacabada Ao citar César e Napoleão, Dewey exemplifica como uma ação prática pode ser estética, já que os feitos realizados pelos imperadores não decorriam de uma preocupação exclusiva com o resultado, mas culminavam como o desfecho de um processo. Do mesmo modo, a moral grega da boa conduta reproduz-se em suas formas por serem dotadas de “proporção, graça e harmonia”. Dewey explica que em uma experiência há uma relação entre moral e prática: O estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, seja pelo luxo ocioso ou pela idealização transcedental, mas é o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a uma experiência completa (2010, p. 125). Assim, compreendemos que num processo vivido através de uma experiência, seja aquele vivido por uma pessoa ou por uma comunidade, as formas que ali se encontram não são fortuitas ou aleatórias, já que não estão desgarradas do processo que as gerou. São como cartas vindas de lugares distantes, que nos contam histórias de povos e culturas de outro tempo e espaço. Os orientais, como foi comentado anteriormente, extraíam seus conceitos através de uma relação direta e pessoal com o mundo, numa direção centrípeta. Procuraram assim propor em sua estética cotidiana esta comunhão apreciativa do homem com o seu ambiente circundante. Palavras como “contemplação”, “observação”, “apreciação”, são muito comuns quando estudamos estas culturas. O escritor Junichiro Tanizaki, em seu ensaio Em Louvor da Sombra, escrito em 1933, observa a predileção dos orientais pela penumbra, qualidade de luz convidativa, característica por sua suavidade, profundidade e mistério, que os agrada muito mais 944 que a luz clara e reluzente. Essa primazia pode ser vista nos figurinos do teatro Nô, que refletem fios dourados na penumbra; na arquitetura das casas, características por seus frondosos telhados e por suas janelas forradas por papel shoji, quem filtram a passagem da luz; pelos utensílios usados à mesa, de laca ou densa cerâmica, que valorizam a apreciação da culinária japonesa. Adoram a tonalidade envelhecida e anuviada dos utensílios de estanho e a aparência dos objetos marcados por constante manipulação, fuligem, chuva e vento. “Tê-los ao nosso redor e morar em construções com suas características tranquiliza-nos a alma, proporciona-nos estranha serenidade” (TANIZAKI, 2007, p. 23). Já os ocidentais, em oposição, renegam o sebo e fazem de tudo para se livrar dele, evitando todo tipo de sombra ou escuridão. A penumbra não busca explicar ou iluminar uma realidade, mas permite a dúvida, provoca este tatear incerto, sugerindo àquele que olha uma multiplicidade de sentidos. Já a “excessiva iluminação que desvenda e exibe todo detalhe é ofensa ímpar” (TANIZAKI, 2007, p. 15). A penumbra é a qualidade de luz mais propícia para a apreciação estética, faz com que a culinária japonesa não seja apenas um alimento a ser consumido, mas que seja “digna de meditação” (TANIZAKI, 2007, p.28). Entretanto, louvar a penumbra não é só fazer um apelo ao sentido da visão, mas provocar cheiros, texturas e sabores. Na cerimônia do chá a apreciação ocorre por um conjunto sinestésico em que nada passa despercebido. Comer um doce de youkan (feito de feijão azuki), uma “massa semitransparente e nublada” de “tonalidade profunda e complexa” é fazer um agrado primeiro à mente, depois ao paladar, compondo um conjunto estético completo. É como “ter o próprio negrume transformado em delicioso bocado derretendo na ponta da língua” (TANIZAKI, 2007, p. 28). Na chanoyu, é prática usual que depois de beber o chá, nós tiremos alguns instantes para simplesmente observar a tigela em que nos foi servida a bebida, atuando simplesmente de maneira apreciativa. Os japoneses também criaram uma tendência estética chamada wabi sabi, traduzido muitas vezes como “a arte do imperfeito” ou “rusticidade”, por valorizar o simples em favor do ornamentado, formas orgânicas e irregulares, como a presente no caule rugoso de uma árvore. O objetivo do wabi é não o de ostentação de riqueza, mas uma tentativa mais singela de despertar modéstia e naturalidade. Este “culto do 945 imperfeito” também pode ser compreendido como o reconhecimento que nossas vidas nunca atingirão a plenitude dos nossos ideais, mas que mesmo em meio a todos esses defeitos e faltas, podemos aprender a apreciá-la como ela é. E assim é a cerimônia do chá: uma tentativa de encontrar beleza em meio à “sordidez dos acontecimentos diários” (OKAKURA, 2008, p. 29). Na chanoyu este ar de “pobreza refinada” pode ser visto na escolha de materiais puros como o bambu, utilizados em sua coloração natural, nas tigelas irregulares feitas à mão, e na própria tonalidade ocre da sala de chá, que busca evocar a atmosfera de uma cabana construída em meio ao campo, trazendo para dentro do aposento um sabor dos ventos lá de fora. Ao contrário dos jardins renascentistas que procuram alinhar suas plantas em rígidas formas geométricas, o japonês opta pelo natural. Porém, essa vontade de estar lado a lado da natureza não implica simplesmente cortar um arbusto e trazê-lo para dentro do aposento: primeiro deve-se captar a sua essência, e depois transportá-la através do gesto. O paradoxo do “cuidadoso arranjo destinado a evocar naturalidade” não é fruto de gestos desleixados ou displicentes, mas são resultados de “profunda reflexão artística”, e que em função de todo rigor necessário, geralmente dão mais trabalho e custos para serem produzidos do que as mais complexas e “pomposas” construções (OKAKURA, 2008, p. 69). A ideia do inacabado também pode ser percebida na assimetria, característica tida como tipicamente japonesa. Para eles, a simetria não se mostrava tão interessante pois era uma “expressão de completude”. As tigelas irregulares, por exemplo, mostram em suas marcas a valorização mais do processo e da passagem, que do acabado. A tigela não é perfeita, mas mostra o meio pelo qual a o homem se encontrou com a matéria. Do mesmo modo, a ideia de simplicidade pode ser compreendida como a síntese das formas, como o “dom de concisão” que os japoneses valorizavam e que o ocidente só veio a conhecer séculos mais tarde com as vanguardas modernistas. Tanto na assimetria quanto na síntese, podemos ver em ação o princípio do vazio: Ao deixar algo não dito é concedida ao observador a oportunidade de completar a ideia; deste modo, uma grande obra prima prende sua atenção até você ter a impressão de ser realmente parte da obra. O vácuo está ali para que você possa entrar e preenchê-lo completamente com sua emoção estética (OKAKURA, 2008, p. 60). 946 Isso pode ser visualizado, por exemplo, na máscara do teatro Nô, que sintetiza todas as emoções numa única expressão, sendo apenas sugeridas pela inclinação da cabeça do ator (OKANO, 2012, p. 1136). A neutralidade é, para eles, mais potente que a descrição, pois contém diversas facetas em estado latente, podendo gerar diferentes respostas na mente do espectador. A máscara pode nos parecer assombrada, alegre ou nervosa, isso depende apenas das circunstâncias. Seja pelo gosto pela penumbra, estética wabi, assimetria ou síntese das formas, características que remetem ao “inacabado” e “incompleto”, percebemos na estética tradicional japonesa a importância da participação do observador como criador de sua própria interpretação, já que “nada é real exceto aquilo que percebemos através de nossos próprios olhos” - assim como em uma “experiência”, que nunca é um dado de antemão, mas uma construção que se desenvolve de maneira particular em cada indivíduo. Segundo Kakuzo Okakura, “a verdadeira beleza podia apenas ser descoberta por aquele que completasse mentalmente o incompleto” (2008, p.80). O propósito da cerimônia do chá não é outro senão o de ter uma experiência: abrir-se para os sentidos, ligar-se ao aqui e o agora, criando, em um elo de comunicação com o entorno, uma percepção única e singular deste momento, que nunca se repetirá. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. O império dos signos. Tradução: Leyla Perrone Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da Cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. _____________ - Experiência e pobreza. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da Cultura. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. CAPRA, Fritjof. O tao da física. Tradução: Maria José Quelhas Dias e José Carlos Almeida. Lisboa: Editorial Presença, 1989. DEWEY, John. Arte como experiência. Tradução: Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, [1934] 2010. KOELLREUTTER, Hans-Joachim; TANAKA, Satoshi. À procura de um mundo sem vis-àvis: Reflexões estéticas em torno das artes oriental e ocidental. Tradução: Saloméa Gandelman. São Paulo: Novas Metas, 1984. LAO-TSÉ. Dao de jing. Tradução: Mario Bruno Sproviero. São Paulo: Hedra, 2002. LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Tradução: João Wanderley Geraldi. In: Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, Jan./Fev./Mar./Abr. 2002. 947 LÉVI-STRAUSS, Claude. A outra face da lua: Escritos sobre o Japão. Tradução: Rosa Freire d´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras: 2012. MEINERZ, Andréia. A concepção de experiência em Walter Benjamin. Porto Alegre, 2008. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. OKAKURA, Kakuzo. O livro do chá. Tradução: Leiko Gotoda. São Paulo: Estação Liberdade, 2008. OKANO, Michiko. Arte japonesa e suas supostas peculiaridades: espaços de onde se lança o olhar. In, Anais do XXXII Colóquio CBHA. Brasília, 2012. TANIZAKI, Junichiro. Em louvor da sombra. Tradução: Leiko Gotoda. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Rebeca Chiarini Alcântara Graduada em Licenciatura em Artes Visuais pela Unesp, São Paulo. Trabalha com Arteeducação em espaços informais, como museus e oficinas, e no ambiente escolar. É pesquisadora de culturas tradicionais e orientais. 948 ANÁLISE DE PERCURSO E ESTUDO DE RELAÇÕES ENTRE ORIENTE E OCIDENTE NO ACERVO DA FUNDAÇÃO CULTURAL EMA GORDON KLABIN EM SÃO PAULO – SP Vinícius Angelon Scopin - UNIFESP RESUMO: O trabalho propõe uma análise de percurso dentro da Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, adotando essa como método de apreciação oriental e por isso a sugerida para tal, e consiste em um estudo de relações entre as peças de origem oriental com as de origem ocidental dentro do acervo. Assim, levanta questões sobre essas peças, em torno de seu significado original em seu local de origem, como ele se insere em um contexto ocidental, como eles se apropriam de novos significados nesse ambiente e como eles se relacionam com as demais peças nos ambientes de origens diversas. No final do percurso proposto, nos levanta uma discussão em torno de uma mesa chinesa, afirmando que essa peça de mobiliário possivelmente tinha importância sentimental para a proprietária da coleção, pelo fato de se localizar no centro de seu ambiente preferido da casa, em que poucos tinham acesso. Através desse estudo, conseguimos levantar hipóteses sobre a personalidade da moradora, sua relação com as ideias provenientes do oriente, e fazer análises técnicas sobre peças de mobiliário de origem oriental presentes na residência, além de mostrar esse ambiente em que foi criado um terceiro espaço de harmonia entre oriente e ocidente. Palavras-chave: Percurso, coexistência, mobiliário. ABSTRACT: This work proposes an analysis of route inside the Ema Gordon Klabin Cultural Foundation, adopting this as a method of assessment eastern and therefore suggested for this purpose and is a study of relationships between pieces of oriental origin with those of Western origin within the acquis. Thus raises questions about these parts, around its original meaning in its place of origin, how it fits in a Western context, as they take ownership of new meanings in this environment and how they relate to other parts of the environment diverse backgrounds. At the end of the proposed route, posing in a discussion around a Chinese table, stating that this piece of furniture possibly had sentimental value to the owner of the collection, because it is located in the center of your favorite room of the house, where a few had access. Through this study, we were able to raise hypotheses about the personality of the resident, their relationship to the ideas coming from the east, and technical analysis on pieces of furniture oriental origin present in the residence, in addition to showing that environment it was created a third space of harmony between East and West . Keywords: Route, coexistence, furniture. Introdução No seu processo de compreensão do mundo em que vive, o ser humano cria uma linha e coloca atrás dessa linha tudo aquilo que não faz parte de si. Tudo que é colocado do outro lado dessa linha, é considerado não cientifico, magia, misticismo, fantasia, mito (...) objeto de estudo. Enquanto quem realiza o estudo, detém a 949 ciência, o conhecimento técnico, a verdade. De acordo com o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, assim se estuda o oriente no ocidente. Então, temos uma história do outro lado do mundo contada pelos ocidentais. O oriente segundo o Oriente. Desmistificando essa visão que torna “o outro” como objeto fonte de estudo, e o coloca num patamar inferior daquilo que é realizado em nossa cultura, esse trabalho busca mostrar a produção artística oriental que se fa presente em nosso meio, com a mesma importância que a ocidental. E esse resultado só pode ser alcançado através do estudo e do entendimento. Portanto, o local escolhido para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi a Fundação Ema Gordon Klabin. Uma casa museu localizada na cidade de São Paulo, onde podemos encontrar harmoniosamente e não subjulgadas, vinte e cinco séculos de produção de arte oriental e ocidental dividindo harmoniosamente o mesmo espaço. Ocupando lugares em um mesmo nível de importância. Sendo assim, essa casa nos será apresentada como o espaço de coexistência, onde as ideias vindas do oriente, expressas pela sua produção, poderão conviver harmonicamente com as ideias europeias fortemente estratificadas em nosso contexto social. A casa será aqui apresentada como o “terceiro espaço”, do qual François Julien nos propõe como a criação do espaço onde ideias diferentes, e até mesmo divergentes, poderão conviver com respeito e compartilhamento. Através desse trabalho, podemos compreender como a presença de elementos vindos da cultura oriental, podem não apenas enriquecer valores nossos, mas também muitas vezes resignificá-los. A relação entre a concepção, construção e uso do espaço no Oriente e no Ocidente Quase meio século se passou desde que a casa foi construída para abrigar a coleção e sua proprietária, e pouca coisa mudou nesse espaço fisicamente, e principalmente internamente. A principal mudança ocorrida nesse espaço foi sua na sua função, a transformação de casa em museu. E essa transformação ocorreu sem que um móvel sequer fosse movido de seu local original. Uma única disposição de 950 objetos foi mais que suficiente para abrigar em si duas funções muito distintas, o que nos mostra uma organização muito flexível. Dentro dessa análise de uso dos espaços, vemos uma relação com o conceito oriental sobre a flexibilidade dos ambientes que se transformam de acordo com o uso que empenharão. A casa se apropria da flexibilidade proposta pela arquitetura tradicional japonesa, porém se distingue dela em muitos aspectos. A casa japonesa em sua concepção tradicional se apresenta como um espaço aberto onde nada é fixo e todos os objetos são projetados e construídos de forma a atender todas as necessidades diárias de seus residentes de forma objetiva e prática, sem nunca deixar de lado a questão estética em que esses objetos são concebidos. Os ambientes na casa japonesa são divididos por painéis conhecidos como fusuma, que permitem que os espaços sejam divididos conforme as necessidades no decorrer do dia. Embora a casa de Ema Klabin se assemelhe com a casa japonesa em sua flexibilidade, ela se distingue da mesma quando pensamos na prédeterminação dos usos dos ambientes internos e os móveis que neles estão locados para o uso específico que o ambiente se propõe a atender. A casa japonesa se transforma de acordo com as estações do ano para melhor aproveitar o que a natureza está propondo de mais belo e promover o contato com o homem. E para aproveitar, por exemplo, a entrada da brisa refrescante do verão, os painéis de madeira são substituídos pelos ama-do, para excluir apenas a luz solar em excesso e os insetos indesejados. Essa relação entre o homem e a natureza é proposta inclusive pelo xintoísmo, onde a natureza é sagrada e representação do divino. Enquanto a casa japonesa se abre para a natureza, a casa de Ema Klabin proporciona o contato visual com o lado externo da casa através de grandes janelas de vidro que se espalham ao longo de sua galeria, porém, nos isolam das mudanças climáticas propostas pelas estações do ano com grandes panos de vidro e não nos permitem essa experiência de contato direto com a natureza. O homem ocidental isolou a natureza do lado de fora da casa para que os ciclos das estações do ano não o incomodassem. Com o ingresso feito por uma pequena escada, a casa tradicional japonesa se eleva do solo como um local sagrado onde moram os deuses e os separam do campo onde espíritos ingressam terra. Dentro dos parâmetros da arquitetura 951 ocidental, a casa de Ema Klabin se eleva do solo dando a casa uma escala de monumentalidade e uma visão superior do interno para o externo. A efemeridade e transitoriedade da vida estão representados claramente nos materiais adotados na arquitetura tradicional japonesa, que com o uso da madeira torna obrigatória a reconstrução das edificações das casas e templos em um ciclo de duas décadas, fazendo uma clara analogia a transitoriedade e efemeridade da vida do homem no mundo. Essa característica cria um vinculo de relação do homem com o tempo e espaço, com a transformação do espaço e da vida no tempo, que não existe na casa construída no ocidente, onde não há relação entre a existência da casa e a vida do morador, que, possivelmente viverá muito menos que sua residência. Revestimento de palha das paredes da galeria. Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo. Foto: Vinícius Angelon, 2014. Análise de percurso interno sugerido Diferente de grande maioria dos museus que dispõem de espaços específicos para disposição de grupos de obras, que podem ser ordenados pela origem, por um espaço de tempo, por um movimento, uma proposta estética, por semelhanças ou diferenças, o caráter de organização da coleção de Ema Klabin em sua casa, tem como princípio ordenador, primeiramente a questão estética-visual, do qual seu decorador fará a distribuição dos objetos de maior peso nos ambientes (mobiliário), e 952 em segundo lugar atingir as pessoas da alta sociedade paulistana que será recebida em impecáveis jantares de gala oferecidos pela anfitriã que Ema Klabin foi. Através de sua coleção de arte, Ema Klabin se afirmará como uma pessoa erudita e uma mulher de postura diferenciada na sociedade. Sendo educada em uma rígida educação judaica, realizada em países da Europa pela ausência de colégios judaicos em São Paulo na sua infância, Ema Klabin afirmará sua liberdade de pensamento à seus ilustres convidados, através de sua coleção e sua disposição que irá de forma sutil, brincar com objetos de diferentes religiões, logo no Hall de entrada da sua casa, onde o visitante terá seu primeiro impacto. Para discutirmos um pouco o diálogo que a arte oriental desenvolve com os espaços da casa, e sua importância e seus significados dentro desses espaços, percorreremos um trajeto pela casa que nos evidenciará a presença desses objetos tanto na área social da casa, como na pequena ala íntima. Dessa forma, adotaremos um método de análise da casa, que se assemelha com o método que os chineses irão propor para a apreciação de suas pinturas em rolos, adotaremos a leitura, compreensão e apreciação da casa como uma obra de arte, através de um percurso, em que nós caminharemos pela obra. Logo na entrada, após passarmos por um pequeno vestíbulo que dá acesso ao quarto de hóspedes da casa, nos encontramos no Hall. Ao lado direito temos dois anjos de igrejas barrocas suspensos apontando para uma cena pagã em uma tapeçaria belga do século XVIII, que nos apresenta uma cena campestre. Logo abaixo, temos um cassone onde está assentada uma imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus no colo. Ao lado esquerdo, temos as primeiras peças vindas do oriente presentes na casa. Acima do baú, encontraremos representações de sentinelas de câmaras funerárias de tumbas e câmaras mortuárias Chinesas, esculturas da Era Tang (Século VIII). Atrás dos sentinelas, temos uma tapeçaria holandesa com “A lenda de Aquiles” em uma cena de guerra. De certa forma uma maneira um tanto quanto hostil de receber seus convidados, porém talvez demonstrando uma certa naturalidade em relação com a vida e a morte, nessas esculturas que guardavam túmulos. Teria Ema Klabin partilhado das grandes ideias da filosofia oriental, da transitoriedade da vida, e teria 953 ela lidado com tanta serenidade com esse objetos a recebendo diariamente em sua casa ainda em vida? Lado esquerdo do Hall. Composição “masculina”. Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo. Foto: Vinícius Angelon, 2014 Embora não se possa afirmar com certeza se a presença dessa peças logo na entrada da casa comprove que Ema Klabin partilhasse dessas ideias, podemos afirmar com toda certeza a grande importância que a arte oriental possui dentro dessa coleção, que logo na entrada da casa, em seu primeiro ambiente, seu cartão de visitas, o local que passará sua primeira impressão ao visitante, já temos não apenas uma peça isolada, mas um grupo de esculturas vindas do oriente, colocadas em uma posição de destaque em cima de um baú. 954 Nesse primeiro ambiente já temos apresentada uma grande tensão, que nos é proposta visualmente em todos objetos que foram pensados para a composição desse ambiente. Do lado direito, temos duas esculturas produzidas para igreja católica, anjos barrocos, apontando para uma cena pagã, uma tapeçaria de proveniência belga onde a religião predominante no contexto de sua produção era a protestante. No chão temos um Cassone italiano do século XVI. Essa peça de mobiliário era usado para a futura esposa burguesa guardar seu enxoval enquanto se preparava para o casamento. Acima do Cassone, temos Nossa Senhora com o menino Jesus contrastado com essa cena pagã ao fundo. A tapeçaria nos apresenta figuras femininas, assim como a divindade católica. Essa feminilidade é realçada pela presença dos anjos, esculpidos com traços leves e delicados. Reafirmando mais uma vez o caráter feminino, temos ainda duas porcelanas turcas, pintadas com motivos ornamentas florais. Podemos afirmar que o lado direito do Hall, foi construído com caráter feminino, e com tensão religiosa apresentada em sua composição. Do lado esquerdo, temos uma composição completamente incisiva de figuras masculinas que nos apresentam expressões um tanto quanto hostis em suas representações. Na tapeçaria temos uma cena de guerra, com um soldado vestido com um traje vermelho vivo, que já nos remete a cor de sangue. Abaixo da tapeçaria em cima do baú, temos as esculturas que apresentam soldados, que em seu contexto original eram usados como sentinelas em túmulos. Essas esculturas eram usadas para dar uma falsa ilusão da presença de um exército guardando os tesouros de imperadores contra possível invasão de pilhagem de saqueadores. Podemos afirmar que a composição do lado esquerdo do Hall, possui caráter exclusivamente masculino. Além das tensões religiosas, enquanto de um lado temos possuímos leveza e delicadeza feminina, do outro lado encontramos virilidade e força masculina. Embora apresentem características opostas em suas interpretações, todas as pessoas convivem nesse espaço de maneira harmônica. Podemos então entender o Hall da residência como um espaço de coexistência, onde oriente e ocidente convivem sem que um lado subjulgue o outro lado. Onde os credos de cada cultura, influenciados 955 por suas religiões, por mais divergências apresentem, aqui podem se relacionar sem conflito. Entre o Hall e o vestíbulo, encontramos uma peça que de alguma maneira apaziguará essa tensão entre masculino e feminino, com uma figura que nos remete ao elemento infantil, à inocência. Essa peça é a cadeira infantil chinesa do século XIX. Saindo do Hall em direção à galeria que dará acesso a quase todos os ambientes da casa (exceto ambientes de serviço) e jardim, temos elementos arquitetônicos que nos conduzirão a um percurso que nos é sugerido através de obstáculos que são os degraus de saída do Hall. Deparando-se com a grande galeria em curva que nos dá uma sensação de convite à desbravar esse espaço ricamente decorado com quadros, esculturas e moveis de diversas origens, temos à nossa esquerda um obstáculo de subida, que define a área de acesso restrito da casa, a ala íntima. Embora a casa possua 900m² de área construída, a casa possui apenas dois quartos, um para Ema Klabin, e um para sua irmã Eva que morava então na cidade do Rio de Janeiro, e hospedava-se na casa de Ema em suas visitas à irmã em São Paulo. A própria disposição dos ambientes da casa nos sugere um espaço reservado nesse canto. E para nos ressaltar essa impressão, à frente do quarto da porta de Ema no fim da galeria, temos um biombo chinês do século XIX, que de uma maneira muito discreta, obstrui sutilmente a visibilidade das portas dos quartos, para quem estiver na galeria, em um nível inferior, e ainda “protege” a entrada dos quartos com mais três esculturas. 956 Os degraus que se propõem em diferentes níveis, como obstáculo ou como convite. Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo. Foto: Vinícius Angelon, 2014 O biombo chinês do século XVIII é ornamentado com motivos florais e cenas de guerra. Além de sua posição em uma das extremidades da galeria, está posicionado quatro degraus acima do nível da mesma, o que lhe atribui uma posição de destaque, que é ressaltada pela sua cor predominante, o escarlate. Em contraste com a cena de guerra, temos a sua frente esculturas japonesas serenas de uma Tríade Amida, do período Kamakura (Século XII) composta por um Buda e dois atendentes. 957 Tríade Amida, Madeira entalhada e pigmentos frios. Japão, séc. XII, Período Kamakura Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo. Foto: Vinícius Angelon, 2014. O próximo ambiente que encontraremos influências da arte oriental é o banheiro da Suíte de Ema. Revestido em placas de viro branco e com vista para o jardim, encontramos utensílios hidráulicos, como torneiras e saídas de água da banheira, com motivos de carpas entalhadas em metal na cor dourada. Temos então o símbolo de prosperidade do povo japonês, além da cor do templo Kinkakuji, e também de ser uma das cores utilizadas na ornamentação de construções chinesas imperiais e religiosas. Voltando à grande galeria, continuaremos nosso percurso pela casa, mencionando dois fatos interessantes sobre a galeria que nos remetem a visão do oriente com o espaço onde moramos. Ambos nos levam a refletir sobre a relação do povo japonês com a natureza. Aqui dois elementos nos mostram integração da natureza com a vida na arquitetura edificada pelo homem. O primeiro deles, é o revestimento com palha, que foi trazido dos países tropicais da Ásia e usados para o revestimentos das monumentais paredes de pédireito duplo dessa galeria. Aquele material que para o japonês, tornará o tatame de sua casa solo santo, onde ele tirará os calçados que usa na rua para adentrar nesse espaço dos deuses, aqui é usado como um motivo ornamental revestindo as paredes pelo acabamento estético proposto pela beleza de sua trama. Com essa 958 situação, começamos a notar como um elemento que em uma cultura é usado como algo sagrado, que tem um valor espiritual, é retirado de um espaço e em uma outra parte do mundo, é aplicado em outro contexto completamente diferente que dará um outro valor à esse elemento, nesse caso específico, o status de exotismo. A segunda relação que podemos aqui colocar em discussão, são as enormes janelas que são dispostas por essa galeria, que, quando abertas as cortinas nos dão campo de visão para apreciar o belo jardim da casa, projeto pelo arquiteto brasileiro Burle Marx. Vemos aqui outra semelhança com a visão dos japoneses sobre o jardim, de integrar a natureza ao homem. Embora por essas aberturas se dão acesso ao jardim, enquanto fechadas, ela são uma janela à contemplação da beleza da natureza. Prosseguindo nosso percurso de análise, ao fim da galeria chegaremos ao ambiente onde se encontra nosso objeto de estudo, a Biblioteca Conheceremos a mesa de centro chinesa e seus motivos ornamentais, analisaremos como ela dialoga com os demais objetos da biblioteca e qual seria sua relação de uso e sua importância para a proprietária Ema Klabin. Análise formal do objeto de estudo Mesa de Centro em madeira laçada, marfim e nácar. 86,5 x 54,0 x 31,3 cm. China, séc. XIX. Fundação Cultural Ema Gordon Klabin – São Paulo. Foto: Acervo da Fundação Ema Klabin 959 A mesa de centro de origem chinesa que está inserida na biblioteca da casa de Ema Klabin, possui características muito comuns do mobiliário chinês do século XIX. Podemos notar essa difusão dessa peça de mobiliário na China obervando catálogos de móveis dessa época. Esse tipo de móvel veio cair no gosto francês durante o governo de Louis XV. Esse contato do mobiliário chinês na Europa deu início a um fenômeno conhecido como Chinoiserie, que repercutiu em grande parte da produção do mobiliário rococó. As “chinoiseries” eram peças de mobiliário produzidos na Europa, geralmente com as formas dos móveis europeus, porém com pinturas e acabamentos realizados com técnicas de pinturas e encrustamentos chineses. A mesa é constituída de uma estrutura em madeira lisa com encrustações de Marfim em seu tampo. Esse tampo é apoiado sobre quatro pés levemente acabriolados e a mesa recebe acabamento de saiote por todas as faces laterais. Ao redor de seu tampo notamos o adorno baseado em linhas formando desenhos geométricos que emolduram a paisagem com a presença de estruturas arquitetônicas e pessoas. No decorrer da estrutura do saiote e dos pés acabriolados o mesa foi adornada com motivos florais e folhagens, como uma trepadeira que se estende por toda dimensão das laterais. Tanto o tampo quanto a estrutura possuem seu fundo laqueado em preto, característica típica do mobiliário chinês. A pintura é feita através de inúmeras camadas de tintas das mais claras para as mais escuras, de maneira que recebe assim camadas de cores gradualmente. O tampo além da pintura possui encrustamentos de Marfim principalmente nas áreas de coloração branca. Ele é emoldurado por mais um faixa com motivos ornamentais florais em cor dourada. As cores predominantes são o marrom, laranjas, vermelhos, o azul, o branco e o dourado na ornamentação das molduras. O tema colorido tem grande realce sobre o fundo negro característico da pintura de Xarão. À direita podemos observar uma construção tipicamente tradicional chinesa onde podemos ver um ancião observando o lado de fora, uma grande área aberta cercada com algumas árvores muito retorcidas e com poucas folhas , além rochas 960 dentro de um lago . Nesse espaço ao lado do templo sob as árvores se encontram três mulheres vestindo kimonos e com penteados trabalhados em seus cabelos. Talvez sejam membros da nobreza. As três mulheres encontram-se voltadas para um quinto personagem que se encontra à direita na representação. No primeiro plano vemos duas pessoas em algum tipo de interação e atrás a paisagem nos mostra um lago com algumas rochas e vegetações, além de algumas árvores de pequeno porte. A inserção na biblioteca e sua importância Para compreendermos a importância que essa mesa possuía para Ema Klabin, vamos analisar qual a importância desse ambiente para a casa e uma informação sobre a história da mesa que a torna ainda mais importante par a proprietária da casa. Não apenas a mesa, a biblioteca abriga muitas peças de origem oriental. Com função decorativa, encontramos sobre a mesa de centro estudada e os aparadores laterais do ambiente, peças de porcelana e cerâmica. A primeira questão que devemos levar em consideração, é que a biblioteca foi o espaço da casa em que Ema Klabin passou a maior parte do seu tempo em sua casa. Podemos encontrar inúmeros registros fotográficos da moradora nesse ambiente, além de ser pela mesma, declarado o seu lugar preferido na casa. Ali ficava não só seu acervo bibliográfico de valor inestimável, como exemplares raros, adquiridos ao longo de sua vida. É na sua biblioteca que está localizado sua pequena escrivania, e provavelmente era nesse espaço onde Ema podia receber seus amigos mais íntimos para uma conversa particular. E muitos fatos nos dão esse indício. A biblioteca é o menor ambiente da Ala Social da casa. Em seu interior, há um sofá e duas poltronas que acomodam confortavelmente no máximo 4 pessoas. Por ser um ambiente compacto, todas ficam muito próximas. Além dessa características, por possuir uma lareira, revestimento de paredes de madeira, um carpete mais escuro, e uma iluminação com pontos de luz baixos (diferentes da iluminação indireta presente em todos demais ambientes da casa), esse ambiente já nos emerge em uma atmosfera mais intimista pela sua estrutura e decoração. 961 Relacionando esse ambiente com as demais áreas da casa, vamos notar fatos que realçam esse caráter mais íntimo conferido à este ambiente. Além da iluminação que se difere dos demais ambientes da casa, outras características o tornam único e importante na casa. A primeira características de distinção entre as demais salas, é o fato da biblioteca não dar acesso à outro ambiente, diferente das salas de estar, jantar, música e a galeria, que dialogam entre si por várias passagens, permitindo uma circulação maior e em diferentes sentidos pelos visitantes. Outra questão que nos leva à essas conclusões é o isolamento que foi proposto à biblioteca. Ela fica no final da galeria, e depois de todos os demais ambientes, o que à atribui um determinado isolamento da casa. Ali era o espaço de Ema Klabin pensar em suas atividades de cunho social, fazer planos, escrever cartas para seus ente-queridos, e ler muito, afinal Ema Klabin era uma mulher com alto nível de erudição. Aquele espaço tinha uma importância e significado especiais para ela. E é justamente no centro desse espaço, que está inserida a mesa de centro chinesa. De todos os cantos da biblioteca, e em qualquer estofado ou cadeira em que se assente, temos vista para a mesa, que além de estar no centro da sala, por mais que ela seja uma mesa baixa, ela é o móvel mais escuro, o que lhe atrai um foco de atenção exclusivo. Além dessa questão de um posição de privilégio, não só dentro da biblioteca, mas dentro da casa em si, temos de levar em consideração a importância das poucas informações que possuímos sobre a história desse móvel. Além de ser uma peça de mobiliário do século XIX, que a torna um móvel de alto valor financeiro, para Ema, ela provavelmente tinha um grande valor sentimental, afinal, essa peça pertencia aos pais de Ema Klabin, e pertencia à Sala de Música da casa de seus pais no bairro de Campos Elísios, onde Ema passou parte de sua infância antes de ir estudar em um colégio judaico na Alemanha. Tendo a mesa de centro da biblioteca como nossa última parada em nosso percurso de análise de relações, terminamos nosso estudo dentro da casa de Ema Klabin, não apenas tendo analisado essa casa com uma nova ótica, destacando 962 toda a produção oriental que aqui hoje se encontra, mas também enaltecendo o possível valor sentimental de uma dessas peças para a proprietária da casa, que nos deixou sua coleção, fruto de um trabalho de uma vida toda, para que fosse transformada em um museu e aberta ao público. Conclusão Através desse estudo feito baseado em um discurso pautado em um percurso que nos proporciona um contato com obras que trazem consigo valores próprios de sua cultura de origem, podemos perceber que quando re-inseridos em seu novo contexto, alguns podem perder seu significado original, mas outros podem ganhar significados. E alguns até mesmo tem consigo idéias e valores que já fazem parte de nós, e são aqui representados de outras formas em outros objetos. Mas também a aquisição de muitos, podem nos incorporar valores e discussões que gerarão algo em nós. As coisas que possuímos não dizem efetivamente quem nós somos apenas por possuí-las, mas aquilo que nos rodeia, nos dá uma noção de identidade, e uma sensação de acolhimento que nos mostra um pouco de nossa identidade e relação com o mundo. Baseado nesses conceitos, Ema Klabin constrói uma casa para abrigar uma coleção que por anos mostrará ao mundo quem foi enquanto vivia naquela casa. Muito mais que uma peça de coleção, essa mesa que foi nosso objeto de estudo, objetivo final de nosso percurso dentro da casa, quase que certo representava para Ema um vínculo com seu passado e com sua história. Diferente de grande parte do acervo que foi adquirido metodicamente no decorrer de sua vida, essa é uma herança que seus pais deixam à filha, que a insere em seu ambiente preferido em sua futura residência, que é fruto de um sonho de uma casa que abrigue sua coleção, mas também, é um objeto no centro desse espaço que traz consigo uma série de memórias de uma vida e uma família, do qual Ema tinha grande apego ao seu pai, e só com sua morte, ela terá o impulso principal para começar sua coleção, para talvez, compensar a perda irreparável do mesmo, preenchendo sua vida com arte, e vivendo no meio dela. 963 Referências Bibliográficas PONTE, A. Le Mobilier Du XVIII Siècle à L’art Déco. Singapura: Editora Evergreen, 2000. MOSS, P. Asian Furniture. Editora Thames and Hudson, 2007. NUTE, K. Place, time and Being in the Japanese architecture. Londres : Editora Routledge, 2005. COSTA, P. F. Sinfonia de Objetos. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004. JULIEN, F. O diálogo entre as culturas. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2009. Vinícius Angelon Scopin Estudante de História da Arte na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. 964 A RECEPÇÃO CRÍTICA DE UMA EXPOSIÇÃO DE ARTE JAPONESA NO RIO DE JANEIRO EM 1921 Vinícius Moraes de Aguiar - Prefeitura Municipal de Vassouras Arthur Valle - Universidade Nova de Lisboa e UFRRJ RESUMO: Em 4 de janeiro de 1921, inaugurou-se, no Rio de Janeiro, uma exposição de arte japonesa organizada pelo pintor U. Tadokoro, que era, também, mestre em um ateliê de arte localizado na cidade de Yokohama. A exposição recebeu destaque nos meios de comunicação impressos cariocas e mereceu particular atenção do crítico Fléxa Ribeiro, então professor de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes. Na presente comunicação, pretendemos apresentar os resultados iniciais de nossa investigação sobre essa (aparentemente) inusitada exposição de arte japonesa no Rio de Janeiro, dando especial atenção à sua recepção crítica. Palavras-chave: Arte Japonesa no Brasil; Estudos de Recepção; Crítica de Arte SOMMAIRE: Le 4 janvier 1921, a été inauguré, à Rio de Janeiro, une exposition d’art japonais, organisée pour le peintre U. Tadokoro, qui était, aussi, maître dans un atelier d’art, situé dans la ville de Yokohama. L’exposition a reçu détache dans les médias imprimées de Rio de Janeiro et a mérité particulier attention du critique Fléxa Ribeiro, alors professeur de Histoire d’Art de l’École National de Beaux Arts. Dans cette communication, nous avons l'intention de présenter les résultats initiales de notre investigation sur cette (apparemment) inusité exposition d’art japonais à Rio de Janeiro, en donnant spécial attention pour sa réception critique. Mots-clés: Art Japonais au Brésil; Études de réception; Critique d’Art No período compreendido entre 4 e 13 de janeiro de 1921, na cidade do Rio de Janeiro, realizou-se uma exposição de arte japonesa, organizada pelo pintor U. Tadokoro, que era, também, mestre em um ateliê de arte localizado na cidade de Yokohama. As obras trazidas por Tadokoro ao Brasil foram expostas no salão do prestigioso Hotel dos Estrangeiros, localizado no bairro do Catete, um espaço referencial em termos de sofisticação e ponto de encontro para membros das elites econômicas e políticas brasileiras. Essa exposição japonesa recebeu destaque nos meios de comunicação impressos cariocas, sendo comentada em jornais como a Gazeta de Notícias, O Paiz e A Noite. Logo no dia seguinte à inauguração, a Gazeta de Noticias (5 jan. 1921, p. 3) publicou uma fotografia da mostra, na qual se pode um ver aspecto da sua instalação, no salão do Hotel dos Estrangeiros [Figura 1]. Nessa mesma edição 965 da Gazeta, eram fornecidas algumas outras informações sobre a mostra, como a quantidade de obras expostas - 260 - e de autores - um total de “13 artistas japonezes, alumnos e profissionaes do ‘atelier’ do Sr. Tadokoro” 1 (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p. 3). O Paiz (5 jan. 1921, p.4) afirmava que, dentre o montante total de obras, estavam incluídas algumas do próprio Tadokoro. Figura 1: Aspecto da instalação da Exposição de Arte Japonesa no salão do Hotel dos Estrangeiros, Rio de Janeiro, janeiro de 1921 Fonte: Arte Japoneza. Uma exposição inaugurada hontem, no Hotel dos Estrangeiros. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 5 jan. 1921, p. 3 A notícia publicada n’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) foi a que mais se deteve sobre a figura do responsável pela organização da exposição de 1921. Em um primeiro momento, o periodicista anônimo precisou que o ateliê onde Tadokoro ensinava se chamava “The Tosa Art Studio” e, em seguida, falou sobre quais seriam as intenções por trás da visita do artista e professor japonês. Ao que parece, a estadia de Tadokoro ao Brasil era apenas uma escala de uma viagem muito mais ampla, em busca de motivos para o seu próprio trabalho artístico: Com o propósito de incutir novas sensações de arte produzidas por trabalhos de paizes exóticos nos seus costumes e aspectos, [Tadokoro] já percorreu, nestes últimos treze mezes, a China, Java, Sumatra, Bornéo, Península Malaia, India Ingleza, Ceylão, África Oriental e Occidental. (A Noite, 4 jan. 1921, p. 2) O periodicista d’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) acrescentava que, após a estadia no Brasil, Tadokoro “tenciona[va] partir, depois, para a Argentina e Japão, via Chile, tendo já visitado os Estados Unidos”. Até o presente momento, nenhuma outra 966 referência a Tadokoro foi encontrada, o que demanda o aprofundamento das investigações. Outra questão que nos tem ocupado, nesse estágio inicial da pesquisa, é precisar que tipo de arte foi de fato apresentada na exposição japonesa realizada no Hotel dos Estrangeiros em 1921. Com exceção da imagem mostrada acima, ainda não encontramos outros registros iconográficos da mostra, e as notícias escritas, apesar de nos permitirem formar uma ideia geral do evento, não deixam de apresentar algumas contradições. Por exemplo, enquanto o periodicista da Gazeta de Noticias (5 jan. 1921, p. 3) afirmava que a exposição era composta exclusivamente de “pinturas em aquarellas”, n’O Paiz (5 jan. 1921, p.4) se dizia que Tadokoro expôs “uma linda collecção de aquarelas e gouaches”. O citado periodicista d’A Noite (4 jan. 1921, p. 2) acrescentou, por sua vez, que a exposição era composta de uma “valiosa collecção de aquarelas modernas e cópias de antigos mestres”. Todavia, todas as notícias publicadas nos três periódicos citados concordavam com relação a um ponto: a elevada qualidade estética da exposição como um todo. Por exemplo, o periodicista d’O Paiz (5 jan. 1921, p.4) afirmou que os trabalhos expostos eram “curiosos e finamente executados, [e] têm sido geralmente apreciados pela sua raridade.” N’A Noite (4 jan. 1921, p. 2), se asseverou: “Os quadros expostos são, de facto, de uma rara beleza e de perfeita execução, merecendo os maiores elogios”. Por fim, na Gazeta de Notícias, podemos encontrar a seguinte apreciação: A arte japoneza, na actual exposição, apresenta-nos os mais deliciosos aspectos, os coloridos mais bizarros, as paisagens mais lindas e as ‘gueichas’ mais sonhadoras, não tendo os autores perdido os meros detalhes para que seus quadros impressionem vivamente o espírito dos que os contemplam. (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p. 3) Essa noticia na Gazeta de Noticias foi a que mais se deteve na descrição das obras expostas e, através dela podemos inferir, sobretudo, os gêneros preferidos pelos expositores. Entre estes se destacava a pintura de paisagem, representada por obra que mereceram os maiores elogios. Em meio a figurações da “entrada de uma igreja [...], o interior de uma fábrica de chinellos [...], uma grande árvore ‘sakura’, com sua folhagem amarelecida em pleno inverno; plantações de arroz no Japão; 967 flócos de neve cahindo sobre casebres á margem de um rio”, (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p.3) algumas vistas se destacavam, como a de “uma paisagem á noite, vendo-se a lua despontar ao longe e, perto, uma casa com o interior encantadoramente iluminado.” (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p.3) Ou, ainda, [...] um “Pôr do Sol” que é verdadeiramente um mimo de arte. A cor avermelhada, com reflexos brilhantes, dá a impressão exacta de um sol poente, á imagem de um rio tranquillo a que alguns barcos de pescadores dão uns tons de maior poesia. (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p.3) Além de paisagens, pinturas de figuras femininas também foram abundantes na mostra de 1921. Como resumiu o periodicista da Gazeta de Notícias: Vários quadros apresentam figuras de “geishas”: uma cheia de lindas flores vermelhas “kiku”, flores muito queridas do imperador; outra, num cumprimento gracioso como se usa na sua terra, vergando o busto em sua “Karakami” e ainda uma outra dansando e atirando leques... (Gazeta de Noticias, 5 jan. 1921, p. 3) Se paisagens e figuras femininas parecem ter sido os temas mais frequentes das obras expostas por Tadokoro no Rio, é bem mais difícil fazer generalizações a respeito do estilo das mesmas. Por dirigir um estabelecimento de ensino artístico que se chamava “Tosa”, poderíamos supor que o japonês trouxe consigo, para a exposição no Hotel do Estrangeiro, obras relacionadas à famosa escola Tosa (¡c Ń), que teve um papel de grande relevância na história da arte japonesa. Com efeito, a escola Tosa teve sua origem no século XV e estava relacionada aos interesses da corte imperial; para a produção de suas obras, seus artistas referenciavam-se, predominantemente, na literatura clássica japonesa e utilizavam o estilo denominado yamato-e (°—Ź), (The Metropolitan Museum of Art, s.d.) surgido no período Heian (ß¾ĕ^, 794-1185) e considerado como o estilo clássico de pintura japonesa. Inclusive, o termo yamato-e (“pintura japonesa”) foi criado exatamente para diferenciar obras que se centravam em uma temática e uma estética estritamente japonesas, das obras que ainda carregavam descendências chinesas, denominadas de kara-e (“pintura Tang”), em referência à dinastia chinesa Tang (618-906) (WILLMANN, 2000). Uma das mais conhecidas obras literárias trabalhadas pelos artistas ligados ao estilo yamato-e e à escola Tosa, foi o Conto de Genji (ŌķŔƫ), um romance do século X escrito por Murasaki Shikibu (c.978c.1014). Para exemplificar o estilo, reproduzimos, na Figura 2, uma seção de uma 968 composição de 8 painéis dobráveis que representa cenas do Conto de Genji, e que traz as assinaturas de Tosa Mitsuyoshi (1539-1613) e de seu neto, Tosa Mitsuoki (1617-1691). Figura 2: Tosa Mitsuyoshi (1539–1613); Tosa Mitsuoki (1617–1691): Cenas de “O Conto de Genji”: “O Passeio Real” (capítulo 29), “Um barco sobre as águas” (capítulo 51), “O portão” (capítulo 16), 1573–1615 Par de tela de quatro painéis dobráveis. Tinta e ouro sobre papel dourado. Fonte: The Metropolitan Museum of Arte: Em: <http://www.metmuseum.org/toah/works-ofart/55.94.1,2>. Acesso em: 23 março 2014. Todavia, a questão de em que medida as obras expostas por U. Tadokoro no Rio de Janeiro se relacionavam à tradicional escola Tosa se coloca quando lemos as opiniões que o crítico de arte José Pinto Fléxa Ribeiro (1884-1971) fez a respeito da exposição de arte japonesa de 1921, em um capítulo de se livro O Imaginário (Pretextos de Arte), cuja segunda edição data de 1925. Poeta, crítico de arte e, então, catedrático da disciplina de História da Arte da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) do Rio de Janeiro, Fléxa Ribeiro exprimiu uma opinião radicalmente diferente daquela estampada nas resenhas anônimas da Gazeta de Notícias, d’A Noite e d’O Paiz. Ao contrário de outros comentaristas, Fléxa Ribeiro (1925) foi categórico ao dizer que a exposição no Hotel dos Estrangeiros não atingia as suas expectativas, porque não manifestava o que ele acreditava serem as qualidades intrínsecas à arte japonesa. “Onde aquela profunda e inexorável sciência do rendu de forma, de perspectiva a cavaleiro, onde o sentimento aéreo das linhas que se não conjugam no horizonte?” (RIBEIRO, p.198, grifo do autor), inquiria, decepcionado, Fléxa Ribeiro. Ele não julgava a mostra uma autêntica exposição de arte japonesa e 969 afirmava, antes, que o evento se tratava de “uma exportação, a granel, de pintura japonesa.” (RIBEIRO, p.198). Para Fléxa Ribeiro (1925), os artistas expositores2 simplesmente não apresentavam, em suas obras, resquícios de mestres como Katsushika Hokusai (1760-1849) e Kitagawa Utamaro (1753-1806), que o critico brasileiro identificava como as verdadeiras referências na história da arte japonesa. O tom de desapontamento perceptível nesse texto não se devia apenas à qualidade da exposição: Fléxa Ribeiro (1925) lamentava, de uma maneira mais geral, a respeito da infrequência de exposições de arte japonesa em solo brasileiro. O crítico advogava o valor pedagógico da vinda de uma exposição que fosse “genuinamente” japonesa ao Rio de Janeiro, pois só assim Poderíamos ter uma ideia fecunda do que é o Japão artístico, na sua forma mais impressionante e sedutora, da Escola da Vida, do Ouki-yo-yé [sic], onde irradia e se imortaliza o génio de Utamáro.(RIBEIRO, p.198) Em resumo, o que Fléxa Ribeiro (1925) sintetizava em seu texto sobre a exposição de 1921 era uma visão particular do desenvolvimento da arte japonesa: aos seus olhos, este teria sido caracterizado, a partir de meados do século XIX, por uma inexorável decadência. Não por acaso, a seção d’O Imaginário, que abrigava a resenha referente à exposição de 1921 se intitulava “A decadência artística dos Japões [sic]” (RIBEIRO, 189). Fléxa Ribeiro (1925) acreditava que a arte japonesa havia começado a declinar já a partir da morte, em 1849, do seu “incomparável e extraordinário génio do desenho” (RIBEIRO, p.189), Katsushika Hokusai, mas isso se acentuou com o processo de ocidentalização que foi consequência da chamada Restauração Meiji (]fu[), em 1868. O período do Japão que então se iniciou, caracterizado pela modernização e emergência industrial, pelo esvaziamento do sistema feudal, pela transferência da capital para Tóquio etc., teria representado o fim do fechamento cultural do país, associado ao Período Edo (ĻĂĕ^), que, para Fléxa Ribeiro (1925), fora importante justamente por frear a incorporação, de maneira delituosa, de costumes artísticos provenientes de outros centros políticos, econômicos e culturais. Todo esse desenrolar implicou, no entender de Fléxa Ribeiro (1925), na precarização da criação artística no Japão e majorou a produção que visava à exportação à Europa e às Américas. Entendemos melhor agora a razão do autor 970 brasileiro utilizar a expressão pejorativa “exportação a granel” quando se referencia à exposição de Tadokoro e de seus companheiros do “The Tosa Art Studio” no Rio de Janeiro: esta seria mais um exemplo de uma produção com fins estritamente comerciais, lançada em enormes quantidades no mercado de arte internacional, sem uma contrapartida cultural japonesa, e incentivada somente pela emergência de um modismo - a “japonesaria”. Com relação a esse ponto, em outro texto d’O Imaginário intitulado “O Contágio Europeizante”, Fléxa Ribeiro (1925) fazia uma ressalva, destacando os esforços e as boas intenções de europeus como, por exemplo, Edmond de Goncourt (1822-1896), Louis Gonse (1846-1921) e Siegfried Bing (1838-1905). Todavia, mesmo com “tenacidade, lucidez especializada, sentimento de bom gôsto” (RIBEIRO, p.190), os textos críticos desses autores e suas importações de obras japonesas também contribuíram para instaurar uma moda vulgarizadora da “japonesaria”, em detrimento “do senso, do belo original, étnico” (RIBEIRO, p.190), que para Fléxa Ribeiro (1925), singularizavam a arte japonesa e a distinguiam das concepções artísticas ocidentais. Com efeito, para Fléxa Ribeiro (1925), a arte japonesa só seria “autêntica” enquanto intocada e casta, ou seja, caracterizada pelo “imaginoso sentimento do pitoresco, [pela] riqueza espontânea e sedutora da decoração” (RIBEIRO, p.192), pela “pureza primitiva, [pelo] exotismo picante, [pela] graça absorvente” (RIBEIRO, p.190). Essas características se exibiam, por exemplo, nos kakemonos, “onde o toque é leve, quase efêmero, dando a impressão de vertiginosa rapidez, de aflitiva habilidade manual” (RIBEIRO, 191); nas cerâmicas nipônicas, que possuíam diversas variantes conforme cada região do país, e da quais um exemplo paradigmático era a produção de Nonomura Ninsei (c. 1646-1994) [Figura 3]; e na obra dos “grandes”, principalmente na do citado Hokusai. Na passagem para o século XX, para Fléxa Ribeiro (1925), essa arte japonesa “autêntica” só podia ser encontrada na obra de alguns poucos perpetuadores, como Yamamoto Shunkyo (1871-1933), Ôkoku Konoshima (1877-1938) e, sobretudo, Kawanabe Kyōsai (18311889) [Figura 4]. 971 Figura 3: Nonomura Ninsei (c.1646-1694): Queimador de incenso (koro), período Edo (1615-1868) Argila coberta com esmalte craquelado e aplicação de ouro, 17,1 x 18,4 x 18,4 cm. Fonte: http://www.metmuseum.org/toah/works-of-art/29.100.668 Figura 4: Kawanabe Kyōsai (1831-1889): Unhas no farelo de arroz, Grampos no Tofu, Período Edo (1863-1866). Tinta sobre papel Fonte: http://www.mfa.org/collections/object/nails-in-the-rice-bran-nuka-ni-kugi-clamps-on-the-t-fu-t-funi-kasugai-from-the-series-one-hundred-pictures-by-ky-sai-ky-sai-hyakuzu-461706 Apesar da visão decidida de Fléxa Ribeiro sobre a chamada “japonesaria”, podemos constatar, através de pesquisas recentes, a importância que Siegfried Bing, 972 por exemplo, teve para a formação de artistas europeus que desenvolveram produções reconhecidas de maneira positiva, a partir da expansão da arte japonesa. Poderíamos colocar esse fato como uma contraposição à ideia e ao sentimento abatidos de Fléxa Ribeiro - afinal o “boom” japonês, a partir de 1868, mesmo que sem seus valores e intentos ilesos, foi determinante para o fortalecimento das artes decorativas europeias e para o florescimento de nomes como Jean-Édouard Vuillard (1868-1940), Henri Somm (1844-1907), Henri Vever (1854-1942) [Figura 5], entre diversos outros. (WEISBERG, 2005). Figura 5: Henri Vever (1854-1942): Art Nouveau Comb, 1900 Chifre esculpido e decorado com cor e sementes peroladas, 9,5x11cm Fonte: http://www.artnet.com/artwork/424347178/119156/henri-vever-art-nouveau-comb.html À guisa de considerações finais, gostaríamos de frisar que esta comunicação procura sintetizar os dados iniciais de uma pesquisa que se encontra apenas iniciada: ela está sujeito, portanto, às insuficiências características de trabalhos do gênero, como a falta de conclusões mais definidas e a abertura de problemas conexos. Nossa intenção é aprofundar as investigações, pois acreditamos que o estudo da exposição de arte japonesa realizada no Rio de Janeiro em 1921 pode nos ajudar a compreender melhor os principais parâmetros que regeram a recepção da arte japonesa no Brasil de inícios do século XX. Notas 1 Nessa e em todas as demais citações de época, procuramos manter a grafia original com a qual os textos foram escritos. 973 2 Fléxa Ribeiro cita os nomes de como “E. Kato, After Rain, Amdmato, Kassigi”, a respeito dos quais ainda não encontramos maiores referências. Referências Bibliográficas Livros BING, Siegfried. Artistic Japan: illustrations and essays. S. Low, Marston, Searle & Rivington, limited, 1891, v.6 GONCOURT, Edmond de. Hokousaï: l'art japonais au XVIIIe siècle. Paris: E. Flammarion; Paris: E. Fasquelle, 1922 RIBEIRO, Fléxa. O Imaginário (Pretextos de Arte). São Paulo: Nova Era, 1925. - Artigos de sites, revistas ou periódicos: Artes e Artistas. Bellas Artes. U Tadokoro. O Paiz, Rio de Janeiro, 5 jan 1921, p.4. Arte Japoneza. Uma exposição inaugurada hontem, no Hotel dos Estrangeiros. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 5 jan. 1921, p. 3 Exposição de Arte do Sr. U. Tadoroko. A Noite, Rio de Janeiro, 4 jan 1921, p. 2. The Metropolitan Museum of Art: Em: <http://www.britishmuseum.org/explore/highlights/article_index/j/japanese_painting_tosa.asp x>. Acesso em: 23 março 2014. WEISBERG, Gabriel P.. Introduction: Tastemaking in the Age of Art Nouveau: The Role of Siegfried Bing.Nineteenth-Century Art Worldwide, v. IV, 2005. Em: <http://www.19thcartworldwide.org/summer05index?id=192>. Acesso em: 26 março 2014. WILLMANN, Anna. Yamato-e Painting. In Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Em: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/yama/hd_yama.htm> Acesso em: 23 março 2014. Vinícius Moraes de Aguar Graduado em Belas Artes pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Desenvolve pesquisa acerca dos escritos do poeta, crítico e historiador da arte José Pinto Fléxa Ribeiro (1884-1971). Atualmente é Professor de Artes (20h) da Prefeitura Municipal de Vassouras (PMV) e Professor Docente I - Artes (16h) da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC-RJ). Arthur Gomes Valle Professor Adjunto do Departamento de Artes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DArtes/UFRRJ). Atualmente é Pós-Doutorando no Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa/Portugal. Seus temas de pesquisa principais, referentes em particular ao campo artístico do Rio de Janeiro entre 1890 e 1930, são: Intercâmbios Artísticos entre Brasil e Portugal; Sistema Expositivo; Ensino Artístico. 974 ARTES SACRAS DO BUDISMO TIBETANO – HISTÓRIA, SÍMBOLOS E PRÁTICA Tiffani Hollack Gyatso – FADM RESUMO: O texto introduz fatores históricos sobre o desenvolvimento da arte budista no Tibete, denominada “Thangka” – ícones de um grande panteão de deidades canonizadas dentro de regras geométricas, através das quais busca-se alcançar a simetria perfeita, reflexo simbólico dos ensinamentos de Buda, ou do dharma. A arte de thangka busca definir os códigos budistas de acordo com uma anatomia espiritual, representando Buda através de 80 marcas menores e 32 marcas maiores. O texto esclarece as técnicas de produção destas obras, bem como símbolos e seu uso dentro da prática do budismo tibetano, a partir da imagem do Buda histórico, Sakyamuni.Procura-se esclarecer o papel do artista com relação a esta arte sacra – seu treino, motivação e reconhecimento –, que difere da arte ocidental. Apresentam-se exemplos da experiência da autora como a primeira aluna, estrangeira e mulher, a frequentar por 3 anos o Instituto Norbulingka, na Índia, onde passou por um treinamento em thangka. Além disso, mostra-se a experiência da artista no retorno ao Brasil e na execução das pinturas do templo budista de Viamão (RS), em um projeto de 5 anos. Dentro do aprendizado de thangka, comparam-se também os modos didáticos do ensino oriental e do ocidental e a relação professor/mestre e aluno/discípulo. Palavras-chave: arte budista, arte tibetana, símbolos do budismo, thangka ABSTRACT: The text introduces historical factors regarding the development of Buddhist art in Tibet, so-called Thangka painting – icons from a vast pantheon of deities, canonized by the rules of sacred geometry, aiming to attain the perfect symmetry that reflects symbolic teachings of the Buddha, known as the Dharma. The art of thangka painting aims to define the Buddhist codes through a spiritual anatomy, by means of which the Buddha is represented with the 80 Minor Marks and the 32 Major Marks. The text explains basic production techniques, as well as symbols and their uses in Tibetan Buddhism, using the image of the historical Buda, Sakyamuni. The essay also tries to clarify the role of the artist in this sacred art – his/her training, motivation, and recognition – which is different from Western art. Examples are given of the artist’s experience as the first student, being foreigner and woman, to join for three years the Norbulingka Institute, India, where she studied thangka painting. Furthermore, the artist’s return to Brazil to paint a Buddhist temple in Viamão (RS) – a 5-years project – is provided. The text also compares the educational method between East and West, including the pupil and teacher relationship. Keywords: buddhist art, tibetan art, Buddhist symbols, thangka História e símbolos Thangka, a arte do budismo vajrayana1 praticado no Tibete, tem em grande eminência seus princípios de composição, delineando fórmulas visíveis e simbólicas do universo metafísico da espiritualidade, observado pelo budismo. Em sua natureza, os temas da iconografia tibetana são abstratos, por isso a necessidade, em seu estudo objetivo, de se atribuir a eles uma linguagem clara e pré-definida de símbolos. 975 A abundância e complexidade simbólica do thangka exibe a característica íntima de uma cultura única e de uma linguagem específica, tanto nos temas abordados, quanto na sua expressão. O thangka – que, traduzido do tibetano para o português, significa “tela branca de enrolar” (scroll painting em inglês) – co-emergiu com a oficialização do budismo no Tibete em meados do século 700 D.C., com a vinda do excêntrico e esotérico praticante do budismo tântrico da Índia, Padmasambhava, também conhecido como Guru Rimpoche, ou seja, “precioso professor”. Guru Rimpoche veio ao Tibete a convite do rei Trison Dechen, que se deparava na época com dificuldades de oficializar o budismo em sua terra onde o Bon predominava – uma religião animista, praticante de sacrifícios e crente em um panteão de divindades locais. Hoje, o Bon é inserido dentro do budismo com diversas adaptações, assim como o budismo vajrayana também incorporou algumas deidades do Bon. Guru Rimpoche reforçou a fundação do primeiro mosteiro de Samye, idealizado pelo mestre indiano Shantarakshita. Para o processo artístico do mosteiro de Samye, foram chamados artistas da Índia, Nepal e China, que na época eram locais de grande incentivo nas artes, sendo seus artistas muito recomendados. Ao produzirem as pinturas e murais do templo, treinando conseqüentemente artistas locais, um estilo artístico único surgiria no Tibete, junto com a religião que predominaria pelo resto do milênio. A arte no Tibete tomou forma inseparável do budismo e se desenvolveu dentro de diferentes escolas de estilo. Curioso observar que o próprio Buda Sakyamuni, nascido como Sidharta Gautama, pediu que nenhuma imagem dele fosse feita, pois imagens de Buda desviariam a atenção do praticante para uma imagem de adoração, ao invés de manter seu foco em si mesmo e reconhecer-se como um Buda. Dessa forma, é de grande importância entender como a imagem do Buda é usada no budismo vajrayana. Ela não é usada especificamente para representar a figura histórica, mas principalmente para representar o corpo do dharma2, ou seja, da verdade entendida por ele. A idéia é que o Buda atingiu nirvana 3 (a iluminação) e não apenas compreendeu o dharma, mas se tornou o dharma. Quando observa a imagem do Buda, o iniciado entende que olha para o dharma ‘escrito’, sendo assim corretamente entendido e identificado. Além disso, o iniciado reconhece o Buda 976 desperto dentro de si mesmo e é por essa intenção especifica que a imagem do Buda é reproduzida hoje. Historicamente, as primeiras representações do Buda eram imagens de um trono vazio, um guarda-sol ou as pegadas de seus pés. Mas, quando o império grego, com Alexandre o Grande, conquistou grande parte da Pérsia e parte do norte da Índia, cerca de 332 A.C., houve grande influência da arte grega e de sua mitologia na crença em um deus-homem. A escola artística de Ghandara, originada no Kashmir, norte da Índia e parte do Paquistão, deu características de um rosto e corpo perfeito ao Buda, como os deuses gregos – de cabelos ondulados, olhar perfeitamente sereno, corpo esguio, um manto que cobria seus dois ombros e uso de sandálias. Os arabescos desse estilo eram muito floridos, ocupando todos os espaços vazios de murais e afrescos, com os pilares lembrando motivos corintianos. O estilo nepalês Newar – mais tarde conhecido também como Beri – vem especialmente do vale de Kathmandu, onde artistas contribuíram para um estilo de detalhes arquitetônicos, jóias com o formato de gotas e o uso do azul índigo e abundantemente do vermelho profundo. Durante a época da dinastia Gupta na Índia, entre séculos IV e V, a escola Mathura, de origem inteiramente indiana, desenvolveu estátuas de pedra-sabão rosa que ficaram muito conhecidas no resto do país por sua delicadeza e formosura. Por volta do século X, a arte budista declinou na Índia, com a predominância do Islã e do hinduísmo. Mas, paralelamente, o budismo se desenvolvia na China, Japão, Tibete, Tailândia e outros países no sul da Ásia. À medida que o budismo se espalhava por toda a Ásia, os meios artísticos de expressar os ensinamentos do Buda foram sendo mesclados com a arte já estabelecida de cada país. 977 Figura 1 - Coluna estilo corintiano. (Imagem web) Figura 2 - Coluna tradicional tibetana. (Imagem cedida por Dawa Lama). Há duas importantes ramificações no budismo, também chamados como “veículos”: o Mahayana 4, que se expandiu mais ao norte dos Himalaias (Nepal, Tibete, Butão, China, Coréia, Japão e Vietnam), e, mais ao sul, o Theravada 5 (Myanmar, Sri Lanka, Tailândia, Cambodja e Laos). Dentro de cada um destes dois veículos, outras veias filosóficas do budismo e da arte se ramificaram. A intensificação do comércio pela Rota da Seda – que cruzava os Himalaias e parte do 978 oriente médio, e pela qual mercadores e peregrinos carregavam consigo achados dos outros países – contribuiu imensamente para a conscientização dos novos desenvolvimentos de artefatos e filosofias que aconteciam no oriente e no ocidente. A imagem do Buda, dentro de cada linha artística, sempre manteve seu cânon de regras de proporção em relação à perfeição do estado mental, retratado simbolicamente, acima do realismo anatômico. Buda disse: “Quem vê o dharma, me vê, quem me vê, vê o dharma”. Por exemplo, a sola de seus pés são lisas, sem muitas curvas, pois o meio como ele caminha é macio, suave e sem desvios, podendo-se dizer que ‘as pedras do caminho’ não moldam seus pés e sim, o modo de sua conduta prevalece representado. Essas marcas, conhecidas como lakshanas, definem o reconhecimento de 32 Marcas Maiores e 80 Marcas Menores de um Chakravartin, “líder do universo”, após atingir a iluminação. No nascimento do Buda, videntes do palácio de sua família previram o futuro de Sidharta Gautama, o Buda: que ele seria um líder universal ou um grande monarca, através de 108 marcas na sola dos seus pés. A famosa e monumental estátua do Buda na posição de sua morte (paranirvana), em Bangkok, na Tailândia, mostra esses detalhes. Figura 3 - 108 marcas na sola dos pés de Buda, reconhecido como um chakravartin no momento de seu nascimento. Wat Pho temple, Bangkok. Foto por Tiffani Gyatso. Sem entrar nos detalhes da vida do Buda, mas sim focando no significado de sua estrutura, conforme manifestada na arte budista, podemos aqui listar em resumo algumas das 32 marcas maiores de um Chakravartin, conforme divulgado pelo 979 Victoria and Albert Museum, Londres, com detalhes adicionados da apostila “Path to Liberation” (2001), do mosteiro de Sechen, Kathmandu: 1. Ele tem a sola dos pés planas (por nunca desviar do caminho). 2. Desenho da roda do dharma juntamente com outros símbolos que seguem, na sola dos seus pés e na palma de seus mãos. 3. A pele da sua palma e da sola são mais macios do que o comum (por praticar generosidade). 4. Dedos das mãos e dos pés compridos (por salvar aqueles que estão presos). 5. Ha uma membrana entre seus dedos (por sempre manter união entre os outros). 6. Pés que firmam perfeitamente ao solo. 7. Ossos da canela são discretos. 8. Pernas como as de um antílope. 9. Estrutura superior do corpo alta e ereta. 10. Braços que alcançam até os joelhos quando em pé. 11. Genitália contraída (por guardar ensinamentos secretos). 12. Cabelos macios encaracolados para a direita. 13. Pelos que crescem apontando para cima. 14. Pele macia e delicada. 15. Pele dourada (quando nasceu, ele brilhou como o sol). 16. Sete Partes do Corpo especiais: dois calcanhares largos, duas mãos largas, dois ombros largos e pescoço largo. 17. Torso como o de um leão. 18. Ombros delicadamente curvados. 19. Peito largo. 20. Circunferência do corpo tem as proporções de uma figueira. 21. Tórax de um leão. 22. 40 dentes, ao invés dos 32 normalmente encontrados. 23. Não há espaços entre os dentes. 24. Os dentes têm todos o mesmo tamanho. 25. Dentes muito brancos (fala, corpo e mente de acordo com o dharma). 26. Um senso de paladar excelente. 27. Uma língua longa e esguia (por sempre dizer a verdade). 28. Voz forte e atraente, como a dos deuses. 29. Olhos da cor de safira (por sempre olhar os outros com compaixão). 30. Cílios longos. 31. Bindu, marca ou pelos entre suas sobrancelhas (insight espiritual). 32. Ushnisha, uma protuberância no topo de sua cabeça (iluminação). Essa lista pode ter diferentes definições, dependendo das escrituras interpretadas. Outras marcas que são usadas, sem serem definidas como lakshanas, são as orelhas compridas e furadas. Especialmente na imagem do Buda, estas recontam uma cena de sua vida, quando ele renuncia às vestes de príncipe, inclusive suas pesadas jóias de ouro, as quais deixaram apenas furos alongados. 980 Essa passa a ser uma importante marca de renúncia e, conseqüentemente, de uma linhagem nobre. Adotando a imagem do Buda Sakyamuni para estudarmos as marcas, símbolos e significados, é importante também reconhecer, além dos lakshanas, os mudras (posição das mãos) e asanas (posição do corpo). O Buda Sakyamuni, na tradição tibetana, é visto frequentemente na posição de lótus, ou seja, de pernas cruzadas. Ele se senta sobre um trono de flor de lótus aberta. A flor de lótus é um símbolo muito repetido e usado no budismo, pois simboliza uma perfeita metáfora de como nós nos encontramos dentro de samsara – termo em sânscrito que designa a roda do viver e morrer. Samsara aponta para uma visão de mundo na qual todo ser se encontra preso no ciclo infindável dos quatro sofrimentos: nascimento, envelhecimento, doença e morte. De acordo com o budismo, estamos todos inevitavelmente sujeitos à morte e ao renascimento, condenados assim a sofrer as experiências de samsara. A flor de lótus, que nasce no lodo, ergue-se por cima da superfície escura para receber o brilho do sol. E é assim que – conforme explica o budismo – devemos estar sobre samsara: com nossas raízes se alimentando no lodo, mas erguendo-nos para um estado mental soberano, através das práticas que Buda nos legou. Por isso a imagem do Buda, bem como a das deidades, sentam-se sobre uma flor de lótus aberta, erguendo-se sobre o lodo. Uma observação sobre o estilo das flores em thangka é que, como o budismo foi trazido da Índia para o Tibete, muitas flores e animais não eram conhecido pelos tibetanos, então eles pintavam o que era descrito e não observado por eles. Assim surgiu um estilo de flores e animais únicos, de raças híbridas e até investidos de poderes fantásticos. A flor de lótus, tradicionalmente representada em thangka, muitas vezes sequer será reconhecida por aquele que não é familiar com a arte tibetana. Seguindo os símbolos, temos a representação de Buda Sakyamuni sentado em postura de pernas cruzadas, também chamada postura do lótus, em tibetano conhecido como a posição vajra, ou em sânscrito, dhyana asana, (posição do corpo de meditante), assim como sua mão esquerda representa o dhyana mudra (posição de mão do meditante). Dentro do trono de lótus, há um disco amarelo deitado, representando o Sol, e por cima do disco do Sol há um disco da Lua – muitas vezes 981 apenas o disco da Lua será visto. De acordo com a descrição Jonathan Landaw e Andy Weber em “Images of Enlightment” (1993), o Sol simboliza a sabedoria (Skt. prajna): assim como o Sol dissipa a escuridão brilhando sobre o mundo, assim é a sabedoria que compreende a natureza dos fenômenos e elimina nossa ignorância, nossa cegueira – a causa de todo o sofrimento. A Lua simboliza método compassivo (Skt. upaya): assim como ela brilha branca e branda, acalma nossas aflições para receber e praticar o método com compaixão. As duas qualidades indispensáveis representadas pelo Sol e pela Lua devem andar juntas para o alcance da iluminação (Skt. nirvana). O Sol e a Lua também aparecem no topo de quase toda composição em thangka, esclarecendo e reforçando a importância de sabedora e método compassivo serem ambas cultivadas, pois método sem sabedoria é cego e sabedoria sem método é estéril. Buda senta-se sobre o trono de lótus, o disco da Lua e o disco do Sol, que, ao se apresentarem em conjunto, simbolizam os Três Aspectos Principais para atingir o nirvana, consecutivamente: renúncia de todas as causas do sofrimento gerado em samsara; sabedoria penetrante sobre a realidade da natureza dos fenômenos que se manifestam em sua impermanente existência; e compaixão, a motivação verdadeira e altruísta de beneficiar os outros. A mão esquerda do Buda apresentase em dhyana mudra, o qual suporta um pote de mendicância que até hoje é praticada pelos monges, e a mão direita apresenta-se em bhumi mudra, em sânscrito “mudra terra”. Esse mudra se relaciona em especial com uma cena da vida do Buda: o momento de sua iluminação, quando ele estava sentado debaixo da árvore Bodhi (um tipo de figueira), em Bodh Gaya, Índia, cerca de 600 A.C. Buda, sentado em estado de meditação profunda, encontra o senhor das ilusões, Mara, que se apresenta ao Buda em três formas: primeiro, na forma de um mensageiro com uma carta de seu pai, pedindo que Buda voltasse à corte onde nunca mais havia voltado, pois seu pai estava morrendo. Buda compreende que essa é uma ilusão criada dentro de sua própria mente, baseada nos resquícios de seus medos, anseios e conceitos; por isso, ele não se move de seu lugar. Então, belas donzelas dos cinco sentidos aparecem das formas mais sensuais e atraentes, porém Buda enxerga a impermanência de seus corpos feitos de carne, osso e sangue, e tudo se dissolve; ele não se move. Por fim, um grande exército, construído de ira, guerra e terror, se manifesta em sua frente lhe impondo destruição, mas Buda enxerga que 982 ele é parte de tudo e não há ali uma identidade separada, tanto da morte, quanto da vida, e todas as flechas que são lançadas contra o Buda por esse exército se transformam em pétalas de flores. Mara se enfurece e lhe questiona na tentativa de semear dúvida e confusão, “Como ousa não me responder? Você que nasceu príncipe e se embebedou de todos os prazeres e agora acredita poder chegar onde qualquer outro melhor que você não chegou? Quem você pensa que é?”. Buda estende sua mão direita e chama a própria terra para testemunhar a sua iluminação. Por isso, o bhumi mudra é o momento que Buda supera seus últimos testes e atinge o nirvana. Figura 4 - Desenho de Buda Sakyamuni de acordo com as proporções tradicionais tibetanas. Desenho pela autora. Buda usa um manto de monge cor de açafrão ou avermelhado, cores mais fáceis e baratas de se achar. Seu manto é feito de retalhos de tecido simples. A roupa não toca sua pele e por isso é visível, em algumas partes, o avesso do manto mostrando outra cor. Seu corpo emana tamanha energia que a roupa fica suspensa e folgada. 983 O pote em suas mãos pode ser visto na maioria das vezes cheio de iogurte, que também corresponde à outra cena da vida do Buda. Quando o Buda abandona sua vida de príncipe no palácio e renuncia a tudo, ele percorre um caminho de máxima austeridade, meditando por seis anos sem se levantar, alimentando-se apenas do que escorria para sua boca. Uma imagem bastante reproduzida, especialmente pelos artistas de Bodh Gaya, é a imagem do Buda esquelético. Depois desses longos anos, ele escuta ao longe, na margem de um rio, um professor de sitara, instrumento indiano, passando instruções ao seu aluno, “se você esticar demais a corda, ela arrebentará, e se afrouxá-la demais ela não produzirá nenhum som.” Ao ouvir isso, Buda se deu conta do caminho radical que estava praticando e, quando uma camponesa chamada Sujata, aparece lhe oferecendo uma cumbuca de iogurte, ele aceita. Mesmo que seus companheiros meditadores se indignassem com essa reação, Buda se levanta, fraco, e decide trilhar pelo “caminho do meio” – e, por isso, o caminho do budismo até hoje é conhecido assim, inclusive a escola Madhyamika, fundada por Nagarjuna, tem esse nome (literalmente significa “caminho do meio”). Porém, o pote que Buda Sakyamuni segura também pode ser exibido, em algumas ocasiões, vazio – referindo-se a um conceito importante e central no budismo tibetano, o significado do termo “vacuidade” (Skt.: sunyata), especialmente discutida na escola Madhyamica. Nas escrituras do Sutra prajnaparamita, Buda recita: “vazio é forma e forma é vazio”. Esse termo é elaborado em detalhe, ao observar a arte, pelo professor tibetano Chogyam Trungpa, em seu livro “True Perspective – the path of dharma art”. Trungpa discorre sobre a percepção do objeto como agregados de partes conjuntas; e as partes, por sua vez, como um agregado de partículas. No momento em que são observadas como partes, perde-se o sentido da forma pela qual o objeto é distinguido convencionalmente. Por exemplo, se separarmos as partes agregadas de uma cadeira – o pé, o assento, o encosto, o tecido, a borracha – a questão surge: onde está a cadeira? Ninguém será capaz de apontar para algo distinto que se chame “cadeira”, apenas para partes que pertencem à cadeira; mas onde está a cadeira? O sentido do objeto já é dado antes da observação da sua forma física – o sentido do objeto é uma idéia. Sob esse ponto de vista, a cadeira não existe – é uma 984 idéia, uma ilusão. É a partir dessa perspectiva que avançamos percebendo que nossa própria identidade enquanto pessoa é uma idéia construída pelos fenômenos visíveis. É essa distorção da realidade que o budismo busca compreender com grande profundidade. Entendendo a forma, entendemos o vazio da forma. Estudar a imagem do Buda é recordar-se das construções de símbolos que damos involuntariamente e instintivamente a todas as formas que se apresentam, pois a imagem do Buda é construída por idéias baseadas no estudo do dharma – e não do corpo dele de fato, nem como ele foi fisicamente percebido no mundo ‘convencional’. O estudo do budismo se foca na realidade não distorcida pelos sentidos físicos, porém, paradoxalmente, é apenas através dos sentidos que também percebemos aquilo que é real, bem como o efeito de distorção daquilo que é real ou verdadeiro. Noções de espaço e proporções No desenho das proporções de Buda Sakyamuni, observamos linhas de medidas que cruzam pela horizontal, vertical e diagonal. Ao iniciar o desenho, com a superfície ainda inteiramente em branco, o artista define o ponto e linha vertical central, denominado em tibetano tsan-tik: tsan significa a idéia de Brahma, o deus Criador, (parte da trindade de deuses do hinduísmo, Brahma, Vishnu (preservador) e Shiva (destruidor)). Tsan é o inicio da criação, a primeira linha manifestada. Tik significa o sêmen de Brahma, a semente da criação – o ponto no universo de Bhrama grávido da existência e de todo o potencial. Então tsan-tik é o eixo central encontrado a partir de um ponto sobre a superfície. A partir do ponto central, todas as outras linhas que atravessam o desenho tomam um sentido e uma estrutura organizada. Como explicado por Alice Boner, no livro “Principles of composition in hindu sculpture” (1962), o centro é um ponto de referência para o qual todas as partes convergem, por isso toda estrutura se torna “co-centrada”. A existência desse ponto central cria logo uma hierarquia de valores, onde as partes deixam de ser equivalentes e assumem um peso diferente na sua importância. A importância de qualquer parte diminui diretamente em proporção da distância ao centro. Entre o centro e as partes exteriores, acima e abaixo, o singular e o plural, cria-se uma tensão de polaridades e ao mesmo tempo um ritmo orgânico na composição. O 985 ponto (Skt. bindu) em si é um símbolo universal – estando ele no centro de um quadro ou em uma esfera, sua existência determina a organização das formas que formam por si um todo. A partir do ponto, podemos iniciar a noção básica das seis direções. A imagem do Buda se inicia a partir da linha vertical centralizada, e o tamanho de suas proporções são medidas em unidades denominadas tsomo. O artista nos estudos de thangka O estudo filosófico é em particular um requisito para o artista de thangka, promovendo um compromisso pessoal de conduta coerente no seu trabalho. Ainda assim, não podemos definir de modo geral que todos tenham esse compromisso, porém seria o ideal dentro dos parâmetros esperados na arte budista. Espera-se – e, mais do que isso, confia-se – que um autêntico pintor de thangka, ao reproduzir a imagem de Buda e de todas as divindades e mandalas que fazem parte da elaboração e explicação visual em busca de nirvana, tenha como premissa as expectativas sacras, a reprodução artística sem distorção do que já foi pré-definido pelos mestres de sua linhagem, que alcançaram a perfeita visão de sunyata (vacuidade). Posteriormente, aquele que receber o thangka e o tiver exposto durante sua pratica de meditação, poderá sintonizar-se com o sentido simbólico dos traços e proporções intencionadas da imagem e da composição, que também seguem normas pré-definidas por sua linhagem religiosa. Finalizando, podemos usar um simples exemplo para comparar a importância destes símbolos com um logo de qualquer produto. Quando avistamos o logo de uma marca conhecida, associamos imediatamente com todas as qualidades e eficiências do produto e somos remetidos a uma realidade de entendimento daquilo que vai muito além do que o próprio logo, simples em sua forma, mas vasto e complexo em sua realidade. Essa é a intenção quando o praticante avista a imagem repetida do Buda. De acordo com o sistema de estudo do Instituto Norbulingka, em Dharamsala, Índia, o estudante de thangka se forma em 6 a 7 anos de estudo. Mas, como diz o mestre de pinturas Temba Chopel, do Instituto Norbulingka, thangka é uma arte que 986 se aprende a vida inteira. Os primeiros dois anos na escola se passam apenas aprendendo sobre as proporções, desenhando repetidas vezes a mesma imagem, dando explícita ênfase na importância de manter as proporções e os símbolos perfeitamente representados. Esse treino não faria sentido, se o artista não estudasse as deidades do budismo, seus significados, símbolos e a filosofia que sustenta sua representação. Quando há profundo entendimento, o desenho e a pintura do artista refletirão o estado mental alcançado por ele através da prática de paciência, concentração, perseverança e humildade, guiado pelo seu mestre. É nesse ponto que se mostra tão clara a importância de um mestre e a relação que se desenvolve tradicionalmente, no oriente, entre mestre e discípulo. Essa conexão desenvolve, tanto no discípulo quanto no próprio mestre, a dedicação intensa e necessária para trilhar o caminho e chegar à perfeição definida na arte de thangka. No ocidente, parte deste aspecto se perde, por conta da relação completamente impessoal entre professor e aluno. A pedagogia da educação no ocidente não tem a intenção de reconhecer o valor nesse tipo de relação compromissada, que desperta a vontade íntima de mergulhar no tema e dar o máximo de sua potencialidade. Porém, no oriente, nas escolas mais tradicionais, esse método de transmissão do conhecimento ainda é usado e de forma muito eficiente. Essa relação cria uma ligação que se funde no propósito de vida da pessoa e, por isso, seu estudo será de grande dedicação. Um verdadeiro estudante de thangka não pode alcançar sua excelência sem: (1) ter interesse pela filosofia dos temas tratados na pintura, (2) ter um mestre de longa trajetória e de reconhecida linhagem e (3) sentir despertada essa dedicação em forma de propósito existencial. A minha experiência como estudante de thangka no Instituto Norbulingka, em Dharamsala, Índia, fundado por S. S. o Dalai Lama, foi também um marco para o próprio instituto, que até então não havia aberto vagas para nenhum estrangeiro, e nos últimos 10 anos havia aceito apenas uma mulher. Em meados de 2003, iniciei meus estudos na arte tradicional de thangka, até o inicio de 2006. Ao retornar ao Brasil, fui convidada para coordenar e executar as pinturas do templo budista Caminho do Meio, na comunidade do CEBB (Centro de Estudos Budistas Bodisatva), liderado por Lama Padma Samten (Prof. Alfredo Aveline), em Viamão, RS. Novamente, como a primeira não tibetana, estava na coordenação de execução das 987 pinturas. O trabalho foi iniciado no fim de 2007 e completado no fim de 2012. Algumas adaptações tiveram que ser feitas em relação ao modo tradicional de execução. Figura 6 - Tiffani Gyatso pintando as “Oito Manifestações de Guru Rimpoche”, em um dos painéis do templo do Caminho do Meio, Viamão, RS, 2008. Tradicionalmente, o desenho é feito em papel vegetal, para que possa ser transferido para a superfície e para a parede, através da técnica do spolvo – um segmento de furos feitos em cima do traço do desenho e pulverizado com pó de giz marcando o desenho na parede. Porém, essa técnica, usada também antigamente na Europa, se mostrou desnecessária, com o uso de papel de carbono de costureira mostrando-se mais eficiente. Ainda segundo a tradição, o uso de pigmento mineral junto a um aglutinante orgânico é usado em toda pintura, tanto em tela quanto em murais, porém hoje em dia é comum os artistas tibetanos substituírem o pigmento pela tinta acrílica, por vários motivos, como: maior disponibilidade, menor custo e facilidade na execução. Esta foi a opção adotada no templo de Viamão. No teto, havia quatro painéis inclinados. Ao invés de pintar diretamente sobre a parede, como foi feito no restante do templo, optou-se por doze telas de tecido, coladas diretamente ao teto com cola de álcool polivinílico. 988 Conclusão Quanto mais inusitados e preciosos os instrumentos de medida criados, mais perspectivas de observação da realidade surgem e com elas as mais diversas análises, aplicações e avaliações. Por mais sofisticados que sejam, tais instrumentos não tem condições de oferecer uma visão real da realidade. (SAMTEN, Padma. A Roda da Vida. São Paulo, Peirópolis, 2010) Para a arte de thangka propiciar seu verdadeiro objetivo, além de ser obra de arte e tradição, seu propósito de origem é ser um instrumento de percepção da realidade da nossa existência em uma linguagem além do verbal, representada pelos aspectos simbólico, iconográfico e filosófico. A riqueza de thangka está no encontro do olhar que busca um sentido existencial e se permite ser guiado pelo seu universo de significados, que refletem a representação da existência humana. Notas 1 Vajrayana: A escola Vajrayana, praticada no Tibete, também conhecido como Lamaismo ou Tantrismo dentro da vertente do Mahayana. Em tibetano “vajra” significa “diamante” e yana significa “veículo”. 2 Dharma: os ensinamentos do Buda, entendido como a Verdade. 3 Nirvana: Iluminação, o entendimento da realidade e dissolução da identidade como separado do todo. 4 Mahayana: Uma das duas principais vertentes do budismo com maior número de seguidores. Acredita no voto de boddhisatva – um voto de compaixão por todos os seres atingindo iluminação apenas após ter ajudado todos os outros. 5 Theravada: Uma das duas principais vertentes do budismo, mais praticadas no sudeste da Ásia, praticada com maior austeridade seguindo literalmente os passos do Buda, de renuncia e voto de pobreza. Referências BONER, Alice. Principles of Composition in Hindu Sculpures. Holanda, Brill, 1962. JACKSON, David & Janice. Tibetan Thangka Painting. New York, Snow Lion, 2006. LADREPA, Konchog. The Path to Liberation: the tsering art school manual for the basic gradual stages of study of deity drawing. Kathmandu, Sechen monastery, 2001. LANDAW, Jonathan. Images of Enlightment. New York, Snow Lion,1993. SAMTEN, Padma. A Roda da Vida. São Paulo, Editora Petrópolis, 2008. Tiffani Hollack Gyatso Nascida em Cotia, SP, 1981, viajou por vários países – morou em um veleiro, conviveu com os aborígenes no deserto da Austrália e explorou a Rússia e a Mongólia de carro. Estudou alemão e design gráfico em Munique, Alemanha, e arte tibetana no Norbulingka Institute, Dharamsala, Índia. Desde 2013 mora em Brasília, DF, onde faz sua graduação em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. 989 990