Miguel Geraldo Mendes Reis
Alfredo Storni e seu Zé Macaco:
a pedagogia da subjetividade moderna
nas historietas de O Tico-Tico
Tese de Doutorado
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pósgraduação em Comunicação do Departamento de
Comunicação Social da PUC-Rio
Orientadora: Prof.ª Tatiana Oliveira Siciliano
Rio de Janeiro
Março de 2021
Miguel Geraldo Mendes Reis
Alfredo Storni e seu Zé Macaco:
a pedagogia da subjetividade moderna
nas historietas de O Tico-Tico
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da PUC-Rio. Aprovada
pela Comissão Examinadora abaixo
Prof.ª Tatiana Oliveira Siciliano
Orientadora
Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio
Prof.ª Claudia da Silva Pereira
Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio
Prof. Marcelo Gantus Jasmin
Departamento de História – PUC-Rio
Prof. Octavio Carvalho Aragão Júnior
Escola de Comunicação – UFRJ
Prof. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Rio de Janeiro, 17 de março de 2021
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização da
universidade, do autor e da orientadora.
Miguel Geraldo Mendes Reis
Graduou-se em Comunicação Social (PUC-Rio) em 1990.
Atua profissionalmente no setor editorial com enfoque em
cartilhas de campanhas públicas, livros paradidáticos,
histórias em quadrinhos e livros ilustrados infanto-juvenis.
Mestre em Comunicação Social (PUC-Rio). Vencedor do
Troféu HQMix 2017 de Melhor Dissertação de Mestrado na
área de Quadrinhos.
Ficha Catalográfica
Reis, Miguel Geraldo Mendes
Alfredo Storni e seu Zé Macaco : a pedagogia da
subjetividade moderna nas historietas de O Tico-Tico
/ Miguel Geraldo Mendes Reis ; orientadora: Tatiana
Oliveira Siciliano. – 2021.
246 f. : il. color. ; 30 cm
Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação
Social, 2021.
Inclui bibliografia
1. Comunicação Social - Teses. 2. O Tico-Tico. 3.
Alfredo Storni. 4. Histórias em quadrinhos. 5.
Processo civilizador. 6. Mediação. I. Siciliano, Tatiana
Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III.
Título.
CDD: 302.23
Para Patrícia, Bruno, Iris,
Accacio, Geraldo e Acacir;
para Ziraldo e
todos os cartunistas amigos.
Agradecimentos
A minha orientadora Doutora Tatiana Siciliano, por ter me admitido como seu
primeiro orientando em pós-graduação, por suas contribuições fundamentais para a
condução do trabalho, por todas as indicações de leitura, pelo exemplo brilhante de
comportamento acadêmico e por seu apoio e incentivo, sempre generosa antes de
tudo.
Ao saudoso professor Miguel Serpa Pereira e a meus antigos professores Fernando
Ferreira, Eduardo Neiva Jr. e Sandra Korman, por terem ajudado a reconduzir-me
à vida acadêmica.
Aos professores e funcionários do Departamento de Comunicação Social da PUCRio, com menção especial às secretárias do Programa de Pós-graduação Marise Lira
e Juliana Pecis.
Às alunas e alunos meus contemporâneos dos cursos de mestrado e doutorado, pelas
contribuições críticas e pelo acolhimento no grupo. Abraço especial às participantes
do Grupo de Estudos em Narrativas da vida moderna na cultura midiática, de tantas
reuniões memoráveis das sextas-feiras.
À amiga e colega de redação de gibis Fátima Valença, pelo empréstimo de valiosos
livros para a pesquisa.
Aos pesquisadores amadores Francisco Dourado (HQ Retrô) e João Antônio Buhrer
(Arquivos Incríveis) pelo interesse demonstrado na pesquisa e fornecimento de
informações valiosas sobre o material empírico analisado. É ponto a favor das redes
sociais que interligam pessoas por suas afinidades, quando não viram campo de
batalha.
A meus pais Geraldo e Acacir, minhas irmãs Mariela e Doriana e minha própria
família pelo ambiente propício ao desenvolvimento intelectual e artístico formado
em nossos lares.
A Ziraldo Alves Pinto, Doutor Honoris Causa da UFRJ, por ter me selecionado e
permitido meu ingresso na genial confraria de pessoas que publicam cartuns e
trabalham em revistas em quadrinhos, desde 1989, sem o que esta pesquisa não teria
sido feita. Agradeço pelas contribuições intelectuais, pelos contatos profissionais e
pela estabilidade que contribuiu para o desenvolvimento de minhas atividades de
pesquisa.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Portanto, agradeço à Capes, à Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos da PUC-Rio
e ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, pela concessão de bolsas
de estudo e pesquisa que viabilizaram o longo trabalho.
Resumo
Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana Oliveira. Alfredo Storni e
seu Zé Macaco: a pedagogia da subjetividade moderna nas historietas de
O Tico-Tico. Rio de Janeiro, 2021. 246 p. Tese de Doutorado – Departamento
de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A pesquisa se volta para o estudo de histórias em quadrinhos da revista
ilustrada para crianças O Tico-Tico (1905 – 1962). O recorte é a série Aventuras de
Zé Macaco e Faustina, de autoria do caricaturista Alfredo Storni, no período de
1909 a 1922. Tal objeto permite uma perspectiva privilegiada para observar
processos de mediação cultural por meio da arte da caricatura na imprensa, num
período histórico em que se aceleram as transformações técnicas e as ebulições
sociais. Entende-se que o sentido é uma construção social, que a produção de
narrativas veiculadas nos meios de comunicação é uma ação coletiva, como
conceitua Howard S. Becker, e que o consumo de tais narrativas tem um papel
mediador nos processos de representação social, de assimilação de mudanças, de
subjetivação como indivíduo moderno e na pedagogia do consumo moderno e do
comportamento civilizado. Para o estudo, todas as histórias do recorte foram lidas
e geraram uma tabela analítica, a qual permitiu uma análise interpretativa do
conteúdo balizada pelo estudo do campo profissional dos caricaturistas e seu
habitus. Considera-se que o conjunto de histórias publicadas em série constitui uma
obra artística e que o princípio gerador dessa obra deve ser estudado a partir do
mapeamento das sucessivas posições ocupadas pelo artista no campo profissional
desde o início, e que essa trajetória emula sua trajetória social. Uma vez que
interessa descrever mais profundamente como se dão os processos citados acima,
uma seleção de historietas de Storni é interpretada em detalhe sob fundamentação
teórica a respeito das relação entre pessoas e objetos, da pedagogia civilizadora e
das ferramentas artísticas da caricatura e do grotesco. Conclui-se que, no seu
conjunto, as narrativas do Zé Macaco tecem um relato ambíguo sobre a sociedade,
ao mesmo tempo ajudando o leitor a se familiarizar com a modernização e
ridicularizando a adoção superficial de novas modas e hábitos.
Palavras-chave
O Tico-Tico; Alfredo Storni; histórias em quadrinhos; processo civilizador;
mediação.
Abstract
Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana Oliveira. (Advisor).
Alfredo Storni and his Zé Macaco: pedagogy of modern subjectivity in
comicstrips from O Tico-Tico. Rio de Janeiro, 2021. 246p. Tese de
Doutorado – Departamento de Comunicação, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
This work aims the study of comics in the children's illustrated magazine O
Tico-Tico (1905 - 1962). The highlight is the series Aventuras de Zé Macaco e
Faustina, by the caricaturist Alfredo Storni, from 1909 to 1922. This object allows
a privileged perspective to observe cultural mediation processes through the art of
caricature in modern press set in a historical period when technical transformations
and social upheavals accelerate. It is understood that meaning is a social
construction, that the production of narratives conveyed in the media is a collective
action, as conceptualized by Howard S. Becker, and that the consumption of such
narratives has a mediating role in the processes of social representation,
assimilation of changes, modern individual subjectivation and pedagogy of modern
consumption and civilized behavior. For the study, all the stories in the clipping
were read and fed to an analytical table, which allowed an interpretative analysis of
the content based on the study of the professional field of caricaturists and their
habitus. The work assumes that sets of comicstrips published in series constitute
artistic works and that the generating principles of that works must be studied by
mapping the successive positions occupied by the artists in the professional field
from the beginning, and that his trajectory emulates his social trajectory. Since it is
interesting to describe more deeply how the processes mentioned above take place,
a selection of Storni's comicstrips is interpreted in detail on a theoretical basis
regarding the relationship between people and objects, the civilizing process and
the artistic tools of caricature and the grotesque. As a conclusion, it is set that, as a
whole, Zé Macaco’s stories weave na ambíguous account about brazilian Society,
at the same time helping readers to become familiar with modern changes and
mocking the superficial adoption of new fashions and habits.
Keywords
O Tico-Tico; Alfredo Storni; comicstrips; civilizing process; mediation.
Sumário
Introdução ................................................................................................ 11
Páginas para pequenos: um retrato de O Tico-Tico ................................. 15
O Tico-Tico para historiadores e pedagogos: uma revisão bibliográfica .. 20
O Tico-Tico para a Comunicação Social: um objeto em posição
privilegiada ............................................................................................... 26
Considerações metodológicas: percurso de pesquisa ............................. 32
Organização do texto: a narrativa de uma pesquisa ................................ 43
1. O contexto das historietas ilustradas .................................................... 46
1.1. O prazer infantil da velocidade e da confusão ................................ 47
1.2. Tiras em quadrinhos, uma onda na virada de século ...................... 61
1.3. O Tico-Tico, representante local de um modelo internacional ........ 63
2. O campo da caricatura ......................................................................... 70
2.1. “Encantadora, a festa da arte”: o Rio de Janeiro no início do
séc. XX ............................................................................................ 75
2.2. Na oficina e nO Malho, o habitus do caricaturista ........................... 80
2.3. A trajetória de Alfredo Storni ......................................................... 105
2.4. A estratégia de Storni .................................................................... 122
3. A cômica interação entre pessoas e coisas nas aventuras de Zé
Macaco ............................................................................................... 131
3.1. Considerações teóricas: a modéstia dos objetos .......................... 133
3.2. Sujeitos e objetos; corpos e coisas ............................................... 136
3.3. Um inventário de objetos nas histórias de Zé Macaco .................. 149
3.4. Zé Macaco e Faustina, engenhosos ............................................. 153
4. O processo civilizador ........................................................................ 167
4.1. Aventuras no cinema..................................................................... 176
4.2. A moeda de troca de Zé Macaco .................................................. 183
4.3. Quem é o civilizado, quem é o incivil? .......................................... 186
4.4. A face grotesca de Zé Macaco ...................................................... 193
4.5. Representações grotescas e sua ambiguidade ............................ 204
5. Desenhando, uma caricatura fala sobre a sociedade ........................ 210
6. Considerações finais .......................................................................... 232
7. Referências bibliográficas .................................................................. 236
Lista de figuras
Figura 1: O menino prodígio e o gramofone. ............................................ 11
Figura 2: Chiquinho leva escovadas ........................................................ 29
Figura 3: Autobonecografia de Yantok ..................................................... 36
Figura 4: Anúncio da volta de Zé Macaco ................................................ 41
Figura 5: Zé Macaco volta rico e de automóvel ........................................ 48
Figura 6: A família de publicações da Sociedade Anônima O Malho ....... 52
Figura 7: Faustina tem objetos retirados de seus olhos ........................... 55
Figura 8: Concurso com quebra-cabeças visual de silhuetas .................. 59
Figura 9: Coisas vistas do alto ................................................................. 60
Figura 10: Comparação La Jeunesse Illustrée com O Tico-Tico - A. ....... 64
Figura 11: Comparação La Jeunesse Illustrée com O Tico-Tico - B ........ 65
Figura 12: História de Buster Brown em versão italiana ........................... 67
Figura 13: Charge cartão de boas festas de Storni para O Malho ........... 71
Figura 14: Foto de reunião social na casa de Luiz Edmundo ................... 75
Figura 15: Brinquedo de armar de O Tico-Tico montado ....................... 101
Figura 16: Autocaricaturas de Storni jovem e velho ............................... 107
Figura 17: Charge de Storni caricaturando Pinheiro Machado ............... 108
Figura 18: Charge de Storni ambientada na Exposição Nacional .......... 111
Figura 19: Charge de Bluff com um conjunto de figuras cômicas .......... 114
Figura 20: Anúncio de J. Carlos com grupo de personagens ................. 117
Figura 21: Desenho de leitor com família Zé Macaco, Chiquinho e
Jagunço ................................................................................ 118
Figura 22: Charge de Storni para Careta com traço similar a J. Carlos . 120
Figura 23: Caricatura da família Nogueira Accioly por Bluff ................... 123
Figura 24: Charge de Storni para Careta sobre desfile de Carnaval ...... 124
Figura 25: Comparação entre capas de J. Ramos Lobão e de Storni .... 128
Figura 26: Historieta ilustrada O mundo em 1920 .................................. 132
Figura 27: Historieta. Baratinha quer passar a roupa com rolo
compressor ............................................................................ 137
Figura 28: Historieta por Leônidas. Passeio na Capitá .......................... 140
Figura 29: Historieta traduzida. A ampulheta encantada ........................ 146
Figura 30: Historieta por Leônidas. Menino e bomba d’água ................. 148
Figura 31: Historieta. Zé Macaco lança seu aéreo-burro ....................... 151
Figura 32: Historieta. Faustina toma sorvetes e fica congelada ............. 156
Figura 33: Historieta. Faustina inventa radar para salvar Zé Macaco .... 159
Figura 34: Historieta. Faustina mal pode andar com grilhão na saia ...... 161
Figura 35: Historieta. Homens indígenas tiram roupas de Zé Macaco ... 164
Figura 36: Historieta. Recepção chic no palacete da família
Zé Macaco ............................................................................. 168
Figura 37: Historieta. Família Zé Macaco dá vexame na sala de
cinema ................................................................................... 177
Figura 38: Historieta. Família Zé Macaco produz fita de cinema............ 180
Figura 39: Historieta. Zé Macaco e Faustina dançam no teatro. ............ 183
Figura 40: Historieta. Zé Macaco e Faustina viram artistas ricos ........... 185
Figura 41: Historieta. Família Zé Macaco no circo yankee ..................... 188
Figura 42: Historieta. Zé Macaco briga com boneco de corda ............... 189
Figura 43: Historieta. Guarda espanca Zé Macaco desmemoriado ....... 192
Figura 44: Quadro de historieta de Kaximbown por Yantok ................... 196
Figura 45: Detalhe de historieta de Storni com Zé Macaco
carbonizado .......................................................................... 196
Figura 46: Detalhe de historieta de Augusto Rocha com João
Garnizé .................................................................................. 200
Figura 47: Quadro de historieta com Faustina e o cão Serrote .............. 201
Figura 48: Quadro de historieta com mosquito gigante/ aeroplano ........ 209
Figura 49: Quadro de historieta com homenagem a Zé Macaco............ 210
Figura 50: Tira em quadrinhos de Bruno Drummond ............................. 222
Figura 51: Capa de O Tico-Tico com cabeça de Zé Macaco ................. 229
Figura 52: Esquema demonstrando o macaco na face de Zé Macaco .. 230
Introdução
Na edição nº 16 da revista ilustrada O Tico-Tico, publicada em 1906, no Rio
de Janeiro, o público leria esta historieta em quatro quadrinhos: Joãozinho, que,
conforme a legenda, manifestava “grande vocação para mecânico”, um dia tem a
ideia de pegar um funil comum, espetá-lo numa caixa de papelão sobre a mesa,
esconder-se debaixo da toalha e começar a cantarolar. Assim, “os manos de
Joãozinho, admirados diante de tal maravilha, passaram o dia inteiro a ouvir
gramofone” (ver Figura 1).
Figura 1: Página 16 de O Tico-Tico nº 16, 1906.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
12
Lida hoje, mais de cem anos depois, essa historieta adquire certo significado,
se estivermos conscientes do contexto histórico daquela publicação. O gramofone,
um dos primeiros aparelhos a reproduzir sons gravados, era uma das maravilhas da
tecnologia da virada dos séculos XIX para XX. Nos termos usados na atualidade,
seria o “sonho de consumo” de nove entre dez famílias burguesas abastadas, bem
como o telefone, a iluminação elétrica e o automóvel. Joãozinho, o menino da
historieta, não tinha, ainda, um aparelho desses, mas sabia que deveria ter. Sabia
também como simular tê-lo. Joãozinho era “um menino prodígio”, educado nas
noções de engenharia, as mesmas que os adultos utilizavam nas iniciativas
industriais que estavam trazendo, em ritmo veloz, o progresso material para o país.
Um gramofone podia ser chamado de “maravilha” pois, na época, a julgar pelas
narrativas das revistas ilustradas, a crença no progresso era inabalável, e sua face
material representava também o progresso cultural: o Brasil, depois de estabilizado
o regime republicano, caminharia a passos largos para se ombrear com as maiores
nações do mundo.
Para isso, cumpria educar a juventude em ciências e letras, afastando para
sempre as crendices e os costumes primitivos. Civilidade era o eixo balizador.
Entretanto, Joãozinho, engenhoso, apenas imitou a forma externa de um gramofone
e começou a cantar impropérios para caçoar de seus irmãos: “Mariquinhas é feia...
Juquinha tem cara de gato... Pinduca é manhoso...”. Parece que o mau
comportamento dos meninos seria difícil de refrear, mesmo com tantas conquistas
materiais. A civilização, portanto, seria apenas um verniz, uma máscara? Talvez o
caricaturista tivesse intenção de levantar essa dúvida. Essa amostra de historieta
ilustrada representa processos que ambos, autores e leitores, estavam atravessando,
e nos fornece dados de como se davam e, provavelmente, se dão ainda tais processos
socioculturais. Este trabalho parte do princípio de que é possível abordar essas
publicações ilustradas para crianças do início do século XX a fim de entender
melhor como se dão determinados processos de mediação e construção da
subjetividade moderna.
Esta pesquisa buscará compreender como o conteúdo de O Tico-Tico, nas
primeiras décadas do século XX, especialmente as historietas ilustradas,
posteriormente chamadas “histórias em quadrinhos”, criadas por profissionais do
campo da caricatura, mediaram mensagens que contribuíram no processo
civilizador e na construção da subjetividade dita moderna entre jovens e crianças
13
leitoras. Para tal, foi analisado um recorte da obra formada pelas historietas de Zé
Macaco e Faustina, criadas por um dos caricaturistas da revista, Alfredo Storni.
Tais processos de mediação, nesta pesquisa, são aqueles em que algumas
categorias de atividade, como políticos, sacerdotes, professores e comunicadores,
transitam entre grupos sociais distintos traduzindo informações e valores entre eles.
As mediações têm potencial para acelerar transformações, mas também para
manutenção de valores e reprodução do status quo. Contudo, não são deterministas;
tais mediações são sempre atravessadas por interações e negociações. O conceito
foi expresso dessa forma pelo antropólogo Gilberto Velho (2013) e pôde ser
aplicado ao trabalho dos caricaturistas e cartunistas na minha dissertação de
Mestrado sobre cartilhas ilustradas (REIS, 2016).
Por subjetividade aqui se entende a maneira de o indivíduo “estar no mundo”,
sociabilizar-se, obter conhecimento e manter-se material e espiritualmente.
Subentende uma maneira de ver o mundo e é construída socialmente no processo
histórico. Ou, em outras palavras, uma ficção necessária construída no mesmo
tempo em que se expressa:
A experiência de si como um eu se deve, portanto, à condição de narrador do sujeito:
alguém que é capaz de organizar sua experiência na primeira pessoa do singular.
Mas este não se expressa unívoca e linearmente através de suas palavras, traduzindo
em texto alguma entidade que precederia o relato e seria “mais real” do que a mera
narração. Em vez, disso, a subjetividade se constitui na vertigem desse córrego
discursivo, é nele que o eu de fato se realiza (SIBILIA, 2008: 31)”.
A subjetividade, portanto, é expressa com os elementos disponíveis no
ambiente social e cultural do indivíduo, e responde às transformações históricas. A
subjetividade dita “moderna” poderia, assim, ser identificada como um “modo de
existir” gestado nessa era de transformações tecnológicas.
A pesquisa lidou com o termo Modernidade como uma fórmula abreviada
para denominar amplas e profundas transformações sociais, econômicas e culturais
que vão se estendendo pelo mundo sobretudo do século XIX até a atualidade. O
termo surgiu para denominar uma era de contínua transformação para algo que está
sempre por vir (KOSELLECK, 2006). É uma era caracterizada pela tradição de
ruptura (PAZ, 1984), a noção de que deve haver descontinuidade com o passado,
de que “a ruptura é a forma privilegiada de mudança” (PAZ, 1984, p.18) e, assim,
negando qualquer manutenção de tradições, “a modernidade nunca é ela mesma: é
sempre outra” (idem). É caracterizada também pela autocrítica apaixonada, uma
14
paixão “pela crítica e seus precisos mecanismos de desconstrução” (idem, p. 21). A
“racionalidade instrumental” é a principal moldura de ação; é um tempo de
aceleração do ritmo das mudanças tecnológicas e sociais calcadas em
“industrialização, urbanização e crescimento populacional”, com a vivência de
“choques físicos e perceptivos” que se dão no ambiente urbano (SINGER, 2004, p.
95). Dois tipos de novidades técnicas fomentaram as transformações: as máquinas,
fontes de energia e processos que aceleraram a indústria e o transporte de um lado,
e novos meios de comunicação ajudando a construir um mercado consumidor de
massa, de outro (ORTIZ, 1991 b). No tocante ao progresso material, ao
desenvolvimento da comunicação e do comércio, à propagação do ideário
racionalista e ao avanço da interiorização do indivíduo, os valores da Modernidade
mesclam-se com os valores da Civilização.
O estudo da produção midiática de determinada época colabora não só para
descrevê-la, mas também para entender por que meios os produtos midiáticos, eles
mesmos, cumprem papel no processo histórico de transformação da sociedade. É
possível observar um recorte da pioneira revista infantil O Tico-Tico com a
perspectiva de que suas diversas seções e historietas ilustradas podem ter
funcionado como recurso pedagógico informal para educar crianças e jovens da
elite social brasileira a circular pelos novos espaços urbanos e sociais que foram
sendo construídos durante o início do século XX, especialmente na Capital Federal,
o Rio de Janeiro. Se já eram o meio de comunicação que apresentava às crianças e
jovens da capital os gramofones, aeroplanos e telefones com que deveriam se
acostumar, mais importante ainda eram para os moradores do interior, que apenas
imaginavam o que seria viver numa cidade com transporte público e casas de
espetáculo. O cotidiano da capital estava desenhado em O Tico-Tico, para todos se
prepararem para os choques sensoriais e o hiperestímulo (SINGER, 2004) típicos
das grandes cidades (SIMMEL, 2005) que ainda acabariam chegando a todos os
núcleos urbanos. O cinema foi um meio importante para essa pedagogia, e as
histórias em quadrinhos podem ter feito o mesmo papel sobretudo no público
infantil.
15
Páginas para pequenos: um retrato de O Tico-Tico
O Tico-Tico foi uma revista ilustrada para público infantil editada pela mesma
empresa responsável pelo semanário satírico O Malho, do Rio de Janeiro. Sua
publicação é iniciada em 1905 e só termina em 1962, quando já sofria com a
competição de outras publicações e não tinha mais regularidade semanal. Em todo
esse período, cronistas e pesquisadores concluem que O Tico-Tico manteve sua
linha editorial de oferecer aos jovens leitores um combinado de entretenimento e
instrução (ROSA, 2002; MERLO, 2003). Dentro da composição editorial de O
Tico-Tico consagraram-se as histórias em quadrinhos de autores brasileiros, como
J. Carlos, Max Yantok, Luiz Sá e Alfredo Storni, entre outros. O caricaturista ítalobrasileiro Angelo Agostini criou o primeiro logotipo da revista e colaborou nas
primeiras edições.
Tal modelo editorial corresponde a publicações de outros países, como La
Semaine de Suzette, semanário francês lançado no mesmo ano de 1905, Corriere
dei Piccoli, suplemento infantil italiano lançado em 1908 ou, na América do Sul,
El Peneca, lançado em 1908 no Chile, e Biliken, revista infantil argentina lançada
em 1919. As histórias em quadrinhos americanas do início do século XX eram uma
referência, tanto que o personagem Chiquinho – que, de tão popular, se tornou o
mascote de O Tico-Tico – era cópia decalcada do personagem Buster Brown do
americano Richard F. Outcault (1863 -1928), sem que lhe fosse dado o crédito
(CAGNIN, 2005).
Tão importantes quanto os contos de fantasia e as historietas ilustradas, com
seus personagens consagrados, eram as seções escritas sobre curiosidades (Lições
do Vovô, Sr. X e sua Página, Gavetinha do Saber) e as seções de cartas (A gaiola
do Tico-Tico e Correspondência do Dr. Sabetudo). Ao longo das primeiras décadas
do século XX, publicou também muitas fotos de turmas escolares e fotos das
crianças dos assinantes, registrou a vida social e esportiva, ensinou a fazer
“brinquedos para dias de chuva” e a armar presépios e miniaturas cujas partes para
recortar, dobrar e colar vinham impressas nas páginas centrais coloridas.
A sucinta descrição não fica completa se não citarmos a importância dos
concursos semanais oferecidos aos leitores e a profusão de anúncios de varejistas
do centro do Rio de Janeiro. Os concursos propunham enigmas e quebra-cabeças
aos leitores que escreviam e colavam um selo da revista na carta. Os prêmios
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podiam ser em dinheiro, no início, mas em geral foram edições do Almanaque d’O
Tico-Tico, brinquedos, peças decorativas, serviços de fotografia e outros bens de
consumo (ROSA, 2002).
Embora sediada na Capital Federal, cidade do Rio de Janeiro, a publicação
foi lida em quase todo o Brasil, a julgar pela origem das cartas recebidas (ROSA,
2002). Ainda que seus textos e ilustrações focassem os interesses da elite urbana,
os cronistas asseguram que ela era consumida também pelas classes trabalhadoras
e pequena burguesia (idem). Durante as três primeiras décadas de publicação, o
semanário não tinha rivais no mercado editorial infantil. Desde as primeiras cartas
do editor, a proposta de O Tico-Tico fica claramente estabelecida: ao mesmo tempo
em que entretém, educa moral e intelectualmente – inclusive servindo de incentivo
à prática da alfabetização. Ler a legenda de uma ilustração divertida era mais
instigante do que ler os severos livros de leitura do início do século XX.
A publicação de livros criados especialmente para as crianças brasileiras foi
uma preocupação pública durante o final do século XIX e início do século XX. A
classe intelectual criticava a falta de material próprio para as crianças aprenderem
a ler, que tinham à disposição, quando muito, livros editados em Portugal, com
vocabulário muito diverso do brasileiro e, ainda por cima, com temática europeia.
Segundo as pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007, p. 24 - 42), é
do início do século XX também a preocupação de produzir livros infantis que
colaborassem na formação do sentimento nacional e patriótico, como Através do
Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, entre outros. A proposta editorial
de O Tico-Tico corresponde a tal movimento intelectual.
Assim, antes de tudo, adota-se aqui a ideia de que a revista ilustrada pode ser
uma fonte de pesquisa histórica. De fato, o estudo das transformações do Rio de
Janeiro durante as reformas urbanas da Primeira República, por parte de
historiadores, se apoiou na leitura dos periódicos da época. O material, onde se
discutia e se difundia os projetos para o futuro, ajudou, inclusive, a entender as
transformações nos hábitos e percepções dos moradores, convivendo pela primeira
vez com automóveis, bondes, cinemas, fonógrafos e outros aparelhos elétricos, e
em conflito com os novos padrões sanitários, habitacionais e estéticos que foram
violentamente impostos. O pesquisador só precisa ter cautela, como diz Tânia de
Luca (2008), para não identificar linearmente a narração do acontecimento com o
próprio acontecimento. Afinal, “a imprensa periódica seleciona, ordena, estrutura e
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narra, de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o
público” (LUCA, 2008, p.139). Essa questão, antes de ser um empecilho, é
justamente o ponto que mais interessa neste trabalho, pois os periódicos podem ser
entendidos como obras coletivas, que são produzidas dentro de um jogo entre
redatores e leitores e que agregam pessoas em torno de ideias, crenças e valores.
Importa menos o que aquela sociedade estava fazendo e mais o que ela “pensava
que estava fazendo”.
Desde esse ponto de vista, O Tico-Tico não será visto apenas como um
produto de mercado totalmente controlado pelos proprietários da Sociedade
Anônima O Malho, mas como uma representação coletiva da sociedade, conforme
formulação de Howard S. Becker (2009). Sob a mesma linha editorial, ao longo de
incontáveis semanas, grande número de colaboradores, cada qual com sua formação
artística e intelectual e sua identidade social, tentaram sempre conjugar suas
próprias percepções com o interesse dos leitores, os quais se manifestavam
profusamente por carta, inclusive mandando colaborações amadoras. Becker
defende que:
Levar em conta as maneiras como as pessoas que trabalham em outros campos —
artistas visuais, romancistas, dramaturgos, fotógrafos e cineastas — e os leigos
representam a sociedade revelará dimensões analíticas e possibilidades que a ciência
social muitas vezes ignorou serem úteis em outros aspectos (BECKER, 2009, p.19).
De modo geral, os autores de historietas ilustradas de O Tico-Tico reportavam
a vida real de seu tempo, em vez de formular fantasias como as publicações de
super-heróis e animais antropomórficos que a sucederam. Assim, a coleção de
ícones visuais extraída do semanário apresenta o vestuário e mobiliário burgueses,
as novidades tecnológicas, os veículos, os ambientes profissionais urbanos, a
arquitetura da metrópole, os sonhos de consumo da classe média e os objetos
envolvidos na educação considerada ideal para crianças.
O contexto da criação de O Tico-Tico é o de rápidas transformações no mundo
e, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Affonso Botari, aquele que sustenta –
com fortes argumentos – ter sido o primeiro leitor do semanário, relembrou a
sensação, numa entrevista:
Como dizia, surgiram muitas revistas luxuosas – as que me lembrei e outras mais –,
não só pelos avanços técnicos da impressão litográfica, inclusive com cores, e pelo
desenvolvimento da arte do desenho caricatural, como também por um surto de
18
ideologias modernas, de modernidade, como o nascimento do século XX... Parecia
que o progresso tinha finalmente chegado! (BOTARI, 2005, p. 229)
O historiador Nicolau Sevcenko, analisando o espírito dessa época na Capital
da República, pondera que as novas técnicas transformaram o ambiente e
transformaram os indivíduos também por dentro. Elas podem alterar a cognição.
Segundo ele, parece que as pessoas presenciavam novos efeitos “mágicos”, que elas
tinham seu poder multiplicado facilmente e que a todos, até o homem mais humilde,
era concedido imaginar novos projetos de vida (SEVCENKO, 1998, p. 520).
A importância da imprensa (especialmente a imprensa satírica e ilustrada)
para a experiência da modernidade corre o risco, hoje, de parecer diminuta, mas,
pelo contrário, Elias Thomé Saliba afirma que o humorismo (em todas as suas
mídias, imprensa ilustrada inclusive) teve condições vantajosas de servir à
representação da nacionalidade brasileira em formação e dos processos de
transformação da modernidade, na virada do século XIX para o XX:
As próprias formas de representação humorística (concisão, brevidade, trucagens,
rapidez, reversibilidade de significados, desfamiliarização, etc.) se prestavam a
servir de recurso típico de representação, dada a sua saliente afinidade com a
fragmentação, a velocidade e, em termos humanos, com os deslocamentos de
sentidos e a subsequente alienação; em síntese, a afinidade dos procedimentos mais
comuns à representação humorística com tudo aquilo que – segundo descrição
famosa – “era sólido e se desmanchava no ar” (SALIBA, 2002, p.33).
A representação humorística já tinha tradição desde o Segundo Reinado, mas
ganhou cada vez mais espaço na imprensa brasileira, até que, no início do século
XX, os jornais começam a assumir perfil mais informativo e as revistas semanais
ilustradas se separam deles, na primeira década do século XX, levando consigo os
chargistas e ilustradores. São elas a Revista da Semana, Kosmos, Fon-fon!, Careta,
Paratodos e O Malho, da qual se origina O Tico-Tico, que lhe pegou emprestado
ilustradores e escritores, além da direção editorial. Eram veículos de grande sucesso
em sua época e disputavam uma massa de leitores em que se incluíam até os
analfabetos, que apenas “ouviam ler” (VELLOSO, 2010).
Daí, para entrar no rol dos veículos populares, torna-se imprescindível contar
com o suporte de imagem, pois as charges, as caricaturas, as ilustrações e as
fotografias possibilitavam uma leitura coletiva e oral das informações. Afinal, para
as modernas revistas ilustradas, tais como Fon-fon! e O Malho, o indivíduo iletrado
estava integrado ao mercado de leitores da imprensa (SICILIANO, 2014, p. 136).
19
A prática da leitura não deve ter sido a única coisa que O Tico-Tico ensinou
às seguidas gerações de crianças brasileiras que tiveram acesso a suas páginas. É
possível sustentar que a produção midiática de qualquer natureza tem papel
pedagógico na construção da subjetividade dos leitores enquanto indivíduos
modernos (com todas as dimensões, da política ao consumo), servindo de vitrine
para novos itens da cultura material e recomendando novos hábitos e
comportamentos. Neste trabalho, leva-se em conta que, além de representar a
sociedade, publicações têm agência no processo civilizador, conforme descrito por
Norbert Elias (2011). Pesquisando um corpus de manuais de civilidade publicados
ao longo de séculos, Elias fez evidente que as noções de vergonha, de nojo e de
ridículo foram se transformando historicamente, e o padrão de comportamento
considerado natural de nossas sociedades atuais foi objeto de conflitos e de muito
empenho pedagógico.
O comportamento dos indivíduos tem sido objeto de admoestação e correção
segundo normas sociais. Para poderem participar de grupos de maior distinção e,
até certo ponto, para se adequarem minimamente a qualquer interação social, os
indivíduos, principalmente aqueles apontados como “primitivos”, “rústicos”,
“incivilizados” e “pueris”, precisam interiorizar normas de decoro. A maneira como
o indivíduo se apresenta exteriormente (inclusive como olha o interlocutor e como
posta seu corpo), acredita-se, deve comunicar, mais do que simular, certas
qualidades interiores socialmente valorizadas. Por isso, há muito, por diversos
meios, patrocina-se o aprendizado da etiqueta à mesa e demais modalidades de
encontros sociais. Mais do que isso, considera-se necessário aprender a maneira
civilizada de utilizar os objetos modernos e a fazer absolutamente qualquer coisa
em público, ou seja, aprender a circular pelos novos espaços sociais que estavam
sendo criados. O humor, mais uma vez, é o instrumento acionado para ridicularizar
os comportamentos indesejados a ponto de convencer os “incivilizados” a se
enquadrarem. Como lembrou o filósofo Henri Bergson (2001), o riso é a correção
imediata dos desvios dos indivíduos e da sociedade, ressaltando e reprimindo não
exatamente a imoralidade, mas sempre a insociabilidade.
Para fazer, em poucos anos, as crianças alcançarem o grau de civilidade e
desenvolverem os adequados sentimentos de decoro pessoal e de nojo típicos dos
adultos, a sociedade como um todo, através da religião, da escola, da família e de
“milhares de outros instrumentos” além da educação dada pelos pais, faz pressão
20
sobre a nova geração (ELIAS, 2011). É possível abordar o semanário O Tico-Tico
como um desses instrumentos.
O Tico-Tico para historiadores e pedagogos:
uma revisão bibliográfica
Os dois principais trabalhos que servem de referência para pesquisas sobre O
Tico-Tico são os de Zita de Paula Rosa e de Maria Cristina Merlo. A primeira
publicou em 2002 o livro O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e
pedagógica. A segunda produziu também um trabalho pioneiro na forma de sua
Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, em 2003,
com o título O Tico-Tico: um marco nas histórias em quadrinhos no Brasil (1905
– 1962). Ambas realizaram um extenso trabalho descritivo da publicação, com uma
leitura longitudinal, percorrendo seus mais de cinquenta anos de existência.
Rosa (2002) conta a história da fundação de O Tico-Tico e de suas
transformações ao longo das décadas. Traça um quadro da relevância da revista por
meio das referências na literatura, na crítica literária e em entrevistas com antigos
leitores. Faz um inventário dos personagens mais famosos e longevos e reconhece
os principais colaboradores, todos cartunistas. Zita de Paula Rosa aborda a revista
pela perspectiva da disciplina da Pedagogia e, ao longo de seu trabalho, vai
problematizando as mensagens civilizadoras e reprodutoras da ordem social que
encontra no conteúdo das diversas seções do semanário. Um exemplo dessa
abordagem, nas suas considerações finais:
Mantendo-se sintonizado com as expectativas mais amplas da sociedade em relação
à infância e se identificando predominantemente com os valores e comportamentos
das classes privilegiadas, O Tico-Tico insistiu e investiu em sua autoimagem de uma
publicação modelar, voltada para a formação sadia do cidadão. Mais por intermédio
de mensagens, contos, aconselhamentos e apresentação de vidas exemplares de
personalidades e anônimos do que propriamente por intermédio das histórias em
quadrinhos, a revista construiu essa imagem, aceita e reconhecida, principalmente a
partir dos anos 40, por grande parte dos seus admiradores adultos (ROSA, 2002, p.
262).
Se realmente as histórias em quadrinhos não contribuíram na imagem
modelar de O Tico-Tico, talvez possam ter contribuído sim na formação dos leitores
segundo valores e contingências de sua época, como pretendemos investigar.
Em contraste, a dissertação de Mestrado de Maria Cristina Merlo, integrante
da disciplina da Comunicação Social, é completa na descrição do formato da
21
publicação, e aborda a série de “histórias em quadrinhos” do personagem
Chiquinho como exemplo do material predominante. Sustenta que O Tico-Tico é a
primeira revista de histórias em quadrinhos do Brasil, tendo influenciado o campo
de atividade que se abriu a partir daí1. Merlo também se preocupou em transcrever
entrevistas com desenhistas de O Tico-Tico e referências à publicação em textos de
escritores e intelectuais brasileiros, para atestar sua relevância cultural. As
transcrições das entrevistas, em especial, e todas as listas e tabelas de informações
objetivas, como as que Merlo montou com as carreiras dos cartunistas, serão sempre
muito úteis para fundamentar novas pesquisas. A autora também observa que a
revista foi “retrato dos bons costumes e dos acontecimentos do cotidiano, fatos
sociais, econômicos, políticos e culturais de época de publicação” e celebra que ela
“foi escola e descobrimento de muitos talentos, como desenhistas, redatores,
escritores e colaboradores”, sendo, mesmo seguindo modelos estrangeiros, “um
marco, um exemplo de orgulho” (MERLO, 2003, p. 348 - 349).
Dois livros comemorativos do centenário de O Tico-Tico são também
fundamentais na exibição de um amplo leque de facetas que o semanário ostentou,
em tantas décadas de publicação. O Tico-Tico: centenário da primeira revista de
quadrinhos do Brasil (2005), organizado pelos professores Waldomiro Vergueiro
e Roberto Elísio dos Santos, tem, na forma de anexo, o fac-símile da primeira edição
da revista. Além disso, conjuga uma série de artigos de diferentes pesquisadores,
abordando aspectos como as “dimensões” educativa, cultural, literária, lúdica e
comercial, além de se voltar para a história do personagem-símbolo, Chiquinho,
entre outros lembrados. Também transcreve depoimentos e entrevistas com leitores,
como o Sr. Afonso Botari, que podia sustentar ter sido a primeira criança que leu O
Tico-Tico em 1905. Tal depoimento é de especial interesse para contribuir na
discussão das questões desta tese.
O segundo livro comemorativo foi publicado em 2006, com o título
Almanaque d’O Tico-Tico: edição comemorativa. Com curadoria do acadêmico
Arnaldo Niskier e tendo vários redatores, o livro apresenta um “panorama” de tudo
que se podia encontrar nas páginas da revista Conclui-se que, no seu conjunto, as
narrativas do Zé Macaco tecem um relato ambíguo sobre a sociedade, ao mesmo
tempo ajudando o leitor a se familiarizar com a modernização e ridicularizando a
1
A alegação, no entanto, não é exata, porque anteriormente havia sido publicado no Brasil o Jornal
da Infância (1898) já nos moldes franceses (CARDOSO, 2008).
22
adoção superficial de novas modas e hábitos., desde os fantasiosos contos ilustrados
às páginas sobre ciências e invenções; desde os modelos de “modas infantis” e
“reclames” até as quadrinizações de fatos históricos. Na forma própria de um álbum
de curiosidades ou almanaque, esse livro elenca os “principais artistas gráficos”:
Angelo Agostini, Luís Gomes Loureiro, Alfredo Storni, Max Yantok, J.Carlos e
Luiz Sá.
A esses trabalhos se soma a Tese de Doutorado em História de Roberta F.
Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense, de 2019. A autora traça a história
de O Tico-Tico como uma ferramenta pedagógica informal, dentro do projeto
político republicano, ou seja, que desejava que as crianças desenvolvessem uma
identidade nacional, uma sensibilidade moderna e um comportamento civilizado.
Para esse projeto contribuíram mais algumas seções da revista do que outras.
Histórias do Brasil, histórias em quadrinhos e atividades lúdicas foram as
principais. Abordou o lado empresarial, a proposta cívica, o uso da história, a
formação de leitores e as várias formas de engajamento nos hábitos de consumo
modernos. Optou por um olhar amplo pelos anos de circulação da publicação para
notar como a pedagogia da revista pouco se transformara. A autora delineou o
projeto editorial da revista lendo todas as edições comemorativas de aniversário, ou
seja, debruçou-se sobre a construção da imagem da revista por si mesma, a partir
de referências à própria memória.
Roberta Gonçalves descreve Zé Macaco e Faustina como criações de Storni
que mostravam a inadequação do indivíduo ainda com valores arcaicos na vivência
da cidade moderna, com seus problemas cotidianos. Faz referências aos inventos e
adaptações que geram as piadas do personagem, além do racismo implicado em
relação ao mestiço Zé Macaco e ao status dos personagens negros que surgem nas
narrativas. A violência autoritária dos policiais também é citada como tema
recorrente. E a autora chama atenção para o desenvolvimento do personagem, um
dos mais longevos da revista, que na década de 1910 dizia viver num palacete em
Copacabana, e na década de 1940 passa a viver no bairro de Cascadura, longe do
centro, tendo a mudança de endereço como uma metonímia da mudança de status
social, que passou a ser de classe média.
Muitos pesquisadores têm se debruçado sobre recortes da extensa e variada
produção de textos e imagens de O Tico-Tico para responder a suas questões. Sem
23
afirmar que todas essas pesquisas foram detectadas, é interessante apontar algumas
delas.
Autora que se tornou referência para outros pesquisadores, Patrícia Hansen
escreveu, em 2007, sua Tese de Doutorado em História Social pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com o título Brasil, um país novo:
literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na
Primeira República. De O Tico-Tico, a autora analisou as colunas “Lições do
Vovô” e “A arte de formar brasileiros” (período 1905-1921). Também leu algumas
cartas e colaborações de leitores. Analisou o primeiro concurso (enquete) da revista:
“o que é que o menino quer ser?”. No resultado, a vocação mais apontada foi a da
Marinha, seguida de perto pela do Exército. Naturalmente, as meninas poderiam
responder, mas os editores não esperavam isso.
O tema geral da tese de Hansen é o conjunto de textos de “feição cívicopedagógica” do período republicano, principalmente livros para crianças e jovens
sobre a Pátria (Sílvio Romero, Olavo Bilac, Coelho Neto, Rodrigo Otávio, Afrânio
Peixoto, entre outros), a ascensão do ideal da criança brasileira, a noção de País
Novo e o ufanismo. Assim, também, as lições sobre família, solidariedade, saúde,
trabalho, estudo, conhecimento do país e seus símbolos cívicos. Nessa tese, a
escritora Julia Lopes de Almeida é lembrada como voz dissonante da literatura do
“nacionalismo marcial e espartano”: ela punha foco sobre atividades profissionais
das mulheres. Hansen vê nuança no “discurso de dominação paternalista” que,
nessa época, não é mais o “senhorial”, ostentador de direito natural ou divino ao
mando (e obrigação de caridade) e passa a ser o autoritário moderno, com direito
pelo “mérito” da elite (e incorporação do ex-escravo à sociedade, desde que
condicionado à civilização e à modernidade). Apela-se pelo “esquecimento” das
desigualdades para a construção do país novo. Afinal, no país, “tudo ainda está por
se fazer”.
Exalta-se a criança “precoce e viril” como base do projeto de país. O projeto
continuou com mais determinação no período pós-1930 e os mesmos assuntos
voltam ressignificados no período de ditadura militar. Segundo a pesquisa, as
manifestações dos leitores eram alinhadas aos textos editoriais. As crianças
desejavam para o Brasil mais pujança militar e subida no rank das maiores nações
do mundo, exibindo mais cidades e menos sertão bruto. Nesse tempo, criança tinha
que crescer rápido. O “Vovô” das “lições” não admitia pergunta boba ou
24
sentimental. Ele jogava com os estereótipos do menino burguês, muito estudioso e
civilizado, filho de profissional liberal, valorizado em relação ao filho do
latifundiário, mimado, rico e bruto. Também jogava com estereótipos de gênero:
meninos salvadores da pátria contra futuras mães cuidadoras da família. Mais
discursos apontados: a abolição de tudo que fosse sobrenatural na literatura infantil
pedagogicamente correta; e a condenação da influência “prejudicial” da babá negra
com suas “superstições”.
Marilda Queluz produziu o artigo Utopia e nonsense nas cidades imaginárias
de Max Yantok para o evento das 3.as Jornadas Internacionais de Histórias em
Quadrinhos (2015). Ela disserta, com base em teoria sobre a utopia e a arquitetura
representada em quadrinhos, e dentro do contexto da Belle Époque, como, nos
quadrinhos de Max Yantok, em O Tico-Tico, são criadas paisagens imaginárias, tais
como Fantasiópolis, Estapafurdópolis e Pandegolândia, com muito “nonsense e
ironia, exotismos e orientalismos intercalados com construções modernistas”.
Com o mesmo objeto, a obra do cartunista Max Yantok, Mario Luiz Gomes
publicou, na Revista de História da Biblioteca Nacional, em 2015, Onde andará
Kaxinbown?, um artigo celebrando a originalidade daquele artista, dono de um
traço fortemente caricatural que traduziria melhor “a essência mambembe de seus
tipos populares” entre “bocós e espertalhões, ingênuos e audaciosos”, sempre em
busca de “boa fortuna”.
Patrícia M. G. Alencar produziu sua Dissertação de Mestrado em Educação
na Universidade Estadual de Maringá, em 2015, estudando a seção “Meu Jornal”
de O Tico-Tico entre 1935 e 1940, na qual os leitores se manifestavam. A pesquisa
sistematiza os temas mais recorrentes dentro do conjunto de 1060 desses textos
“infantis”. Associa os temas ao projeto educativo do semanário e às propostas
educacionais dessa época. Pode ser que os temas delineiem o quadro de interesses
dos leitores como consumidores. também. Fez uma tabela sobre temas de anúncios
entre 1935 e 1940. Numa olhada rápida, não se diferencia da pauta normal de uma
revista para família. Por exemplo: os anúncios mais numerosos são aqueles de
outras publicações. Em segundo lugar, vêm os de medicamentos, fortificantes e
higiene pessoal. A autora fez também a tabela quantificando as páginas dedicadas
a cada seção da revista. Por exemplo: “Lições do Vovô” e “Gavetinha do Saber”
são as mais publicadas. Nessa época, a publicação está muito mais voltada para a
“vida escolar”. A autora não contabilizou as histórias em quadrinhos. Como a seção
25
dos leitores tem 45% dos temas na categoria entretenimento, 31% na de formação
moral, cívica e educacional e 24% na de informação, a autora sugere que o leitor
atuava para puxar a balança a favor de pautas divertidas em detrimento de
educativas. A dissertação também tem uma parte longa sobre contexto histórico.
Também em 2015, Carlos Herold Junior publicou artigo na Revista da Escola
de Educação Física da UFRGS com o título Corpo e educação no escotismo a partir
da revista O Tico-Tico (1921-1933). O autor verificou que o escotismo foi
divulgado no Brasil como uma prática educativa moderna. Benjamin Sodré
assinava uma coluna sobre escotismo no semanário. Segundo se afere desses textos,
o escotismo almeja um tipo de reaproximação à natureza, porque a vida urbana e
moderna teria dela nos afastado. Aponta vícios corporais e como corrigi-los.
Reclama que a escola se esquece da educação do corpo. Nesses textos, se
levantavam as questões da falta de energia do povo brasileiro (seria preguiça?) e
dos desvios da vida urbana e abastada dos “almofadinhas” (tais como “alienar-se”
no cinema e fingir-se de homem com cigarrinhos no canto da boca). O escotismo
era pela moderação nas atividades. O futebol, segundo a doutrina, era um vício,
porque exauria o corpo e exaltava a rapaziada. Não se deveria especializar num só
esporte e sim praticar vários. Suponho que o processo civilizador fica bem
caracterizado aí, porque sua lógica é a de corrigir os desvios dos processos
modernizantes não voltando atrás, mas introjetando mais disciplina e novas
mudanças comportamentais nas subjetividades.
Voltando ao campo da Pedagogia, indica-se a Tese de Doutorado em
Educação pela PUC-Rio de Luciana Borges Pátroclo: As mães de famílias futuras:
a revista O Tico-Tico na formação das meninas brasileiras (1905-1921), de 2015.
Seu recorte é o conteúdo publicado sob a seção “para meninas”, desde a fundação
da revista até a última edição em que havia essa seção. O ponto de partida é que os
editores defendiam que meninos e meninas tinham papéis sociais distintos, sendo
que as meninas eram preparadas para a maternidade e o cuidado da família. Isso é
sustentado pela leitura das representações das meninas e mulheres nas histórias, nas
“lições” e até nas ilustrações dos anúncios. A personagem Faustina, a esposa de Zé
Macaco, criada pelo cartunista Alfredo Storni, é analisada como uma representação
ambígua: ao mesmo tempo capaz de ridicularizar a mulher e de catalisar
sentimentos libertários.
26
Um ensaio que, como tantos outros, sustenta que o semanário era um espaço
informal de educação, colaborando com a formação de leitores e escritores, mas
reproduzia representações sociais seguindo o ideal burguês é Para a petizada
inocente: encanto, diversão e lições de conduta na revista O Tico-Tico (19051910), publicado na Revista Teias em 2015, por Cíntia B. Almeida e Aline S. Costa.
As autoras citam algumas produções de leitores e outras matérias durante sua
análise.
Em 2016, Ivan Gomes e Roberta F. Gonçalves publicam um artigo na Revista
Maracanan, com o título Imagens de uma República infantil: Ângelo Agostini nas
revistas O Malho e O Tico-Tico. O texto aborda as mudanças na arte do caricaturista
Ângelo Agostini, que já um veterano, entre o humor político, desenvolvido em O
Malho, e a arte civilizadora, voltada para a infância, na qual se engajou, nos
primeiros anos de O Tico-Tico, com a seção “a arte de formar brasileiros”.
O Tico-Tico para a Comunicação Social: um objeto em posição
privilegiada
A aceitação das histórias em quadrinhos como objeto acadêmico sofreu
oposições mal-informadas ou preconceituosas, chegando muito mais tarde do que
o foi para o cinema, mesmo sendo ambas as formas de arte, cinema e história em
quadrinhos, gestadas no mesmo período histórico e desenvolvidas para o consumo
de massa. Na atualidade, porém, conforme se constata do acompanhamento da
produção acadêmica, o interesse teve crescimento vertiginoso e “é possível
desenvolver pesquisas sobre histórias em quadrinhos, no Brasil, em praticamente
todas as áreas de conhecimento” (VERGUEIRO, 2017, p. 74).
Conforme exposto na seção anterior, muitos trabalhos já descreveram bem o
volumoso conteúdo de textos e imagens de O Tico-Tico, e alguns se aprofundaram
em questões pedagógicas e ideológicas. No entanto, voltar a estudar essa publicação
justifica-se porque pouco ainda se estudou com meios e finalidades da área de
Comunicação Social. Isso pode ter ocorrido porque ainda poucos se voltaram para
as obras em forma de histórias em quadrinhos publicadas na revista. Os
pesquisadores do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP
Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos consideraram que “[...] este
título merece muito mais atenção do que já recebeu até hoje” (SANTOS e
VERGUEIRO, 2005, p.17) e que há muito ainda a ser esmiuçado.
27
Assim, a escolha desse objeto de estudo se fundamenta no argumento de que
ele permite uma posição privilegiada na observação de tais processos de mediação
e subjetivação. As vantagens são o tempo histórico em que nasceu, a longevidade
da publicação, a composição do seu público e a presença importante de narrativas
sequenciais (que hoje são categorizadas como histórias em quadrinhos) dentro de
seu conteúdo editorial.
Publicado desde outubro 1905, o semanário estreia em meio às reformas
urbanas na cidade do Rio de Janeiro, Capital da República, sede da redação,
endereço de todos os anunciantes e comunidade de origem de muitos de seus
colaboradores. Tais reformas tinham sentido prático, provocando mudanças de
hábitos na população, e sentido ideológico, consolidando os valores do regime
republicano, que começava a se estabilizar. Há relações entre o conteúdo publicado
– as historietas ilustradas em particular –, as alterações no cotidiano dos habitantes
da capital e o projeto modernizador republicano.
Tendo sido publicada sem interrupção durante as primeiras décadas do século
XX, até ser extinta em 1962, quando já não tinha periodicidade semanal, a revista
atravessou gerações de leitores e colaboradores2. A marca das transformações nos
costumes, visões de mundo, linha editorial e matrizes artísticas deve ficar evidente,
se pudermos observar o conteúdo de uma seção ou uma série narrativa ao longo de
tantos anos.
Antes da estreia de O Tico-Tico, seus editores já se expressavam no outro
semanário da empresa, O Malho, anunciando aos leitores que já chegara o tempo
de oferecer uma revista para o público infantil. O processo de setorização da
imprensa estava estabelecido. Por que, escreviam eles, só os pequenos não teriam
uma revista para chamar de sua? Artistas como Angelo Agostini, autor do primeiro
logotipo, já exercitavam historietas ilustradas dedicadas à educação das crianças,
aliando entretenimento e lições morais. O projeto editorial de O Tico-Tico, ainda
que pareça apenas uma imitação do que se fazia na Europa, foi pensado dentro da
estratégia comercial dos editores e modelado conforme as necessidades e visões de
mundo daqueles que realmente tinham interesse em assinar o semanário. Relacionase com as feições da sociedade brasileira da Primeira República, com todas as suas
contradições. Sem mesmo levar em conta os índices de sucesso comercial, é preciso
2
Literalmente: entre seus ilustradores, estavam Alfredo Storni e seu filho, Oswaldo Storni, que
nasceu quando o pai já trabalhava na revista.
28
reconhecer que a influência legada por essa publicação atesta que seu modelo foi,
durante décadas, aprovado pelo público.
Havia uma direção editorial atuando no sentido de proporcionar variedade de
leituras agradáveis para as crianças e jovens que, ao mesmo tempo, colaboravam
no processo civilizador e na construção da subjetividade delas como indivíduos
modernos e elementos de uma nação que, segundo expressavam editores e leitores,
queria, um dia, “ombrear-se” com as nações mais civilizadas e poderosas do mundo.
Mais de um pesquisador, ao se debruçar sobre o conteúdo de O Tico-Tico, percebeu
as mensagens ideológicas mais ou menos implícitas naquelas narrativas. A divisão
do trabalho por gênero, por exemplo, é um conceito evidente. Segundo essa linha
editorial, meninos devem estudar e ser disciplinados para adotarem profissões e
sustentarem famílias; meninas devem aprender como serem mães prendadas das
famílias de que vão cuidar, tudo pelo bem do país. Durante a década de 1910, a
“seção para meninas” apresentava apenas modelos para fazer vestidinhos e
trabalhos manuais decorativos3.
Conforme as teses educacionais da época, as crianças eram, ao mesmo tempo,
puras – a ponto de terem que ser protegidas da contaminação e da promiscuidade –
e selvagens – a ponto de terem de sofrer castigos físicos toda vez que seguem seus
instintos e atuam conforme seus desejos. Essa visão foi desenvolvida ao longo da
história. Educadores, tanto religiosos quanto laicos, desde o século XVII,
“recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam
nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e
disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar” (ARIÉS,
2015, p.105).
Curiosamente, a leitura das historietas civilizadoras do início do século XX
pode causar fortes reações de rejeição em educadores da atualidade (ver figura 2).
O espancamento é representado como normalidade; os sentimentos de desforra são
um tema constante. Quando um dos amigos apanha, o outro ri e aprova. O estudo
de Elias (2011) faz concluir que o processo civilizador é cumulativo, continua em
andamento e não está sendo dirigido a um ponto final determinado. Assim, é notável
3
A divisão do trabalho por gênero nunca teve uma forma única. Segundo historiadores, a fórmula
de “homem, público; mulher, privada” que se difundiu pelo Ocidente, como se fosse algo natural,
foi gestada entre burgueses evangélicos britânicos durante o século XIX. Aos rapazes seria indicada
uma formação profissional, se possível, longe de casa; às meninas não se orientava estudar, mas
apenas aprender com a mãe as tarefas domésticas (HALL, 2009).
29
que lições dadas às crianças no passado são, elas mesmas, consideradas indecorosas
séculos depois. Uma vez que as matérias da revista ilustrada foram editadas
especialmente para o público infantil, haverá riqueza de dados para responder a
questões relacionadas ao papel que obras midiáticas podem ter nos processos de
transformação social apontados.
Figura 2. Página 24 do nº 649 de O Tico-Tico (1918). Depois de aprontar muito com as visitas,
Chiquinho leva “escovadas” como castigo, enquanto seu companheiro Benjamin tripudia dele: “Aí,
nego!... Chucha que é cana doce!”.
Último dos pontos a ressaltar na defesa de O Tico-Tico como objeto de estudo
no campo da Comunicação Social, seus autores de historietas ilustradas deixaram
um legado. Ainda que os principais nomes das publicações em quadrinhos
brasileiras para crianças, como Maurício de Sousa e Ziraldo, não tenham sido
leitores dele4 e busquem em outras referências a origem de seus projetos em
histórias em quadrinhos, a publicação atravessou gerações de artistas como modelo
de revista infantil. Foram dezenas de anos publicando, semanalmente, muitas vezes
na primeira página, histórias em quadrinhos feitas por brasileiros com personagens
4
Maurício de Sousa respondeu uma pergunta direta por mensagem de e-mail. Não era leitor de O
Tico-Tico. Ziraldo comentou sobre o assunto em conversas pessoais. As histórias que liam na
infância eram, principalmente, as norte-americanas traduzidas.
30
locais ou adaptados ao cenário local. Mais ainda: não eram heróis mágicos, animais
antropomorfos ou seres de fantasia, mas adultos, meninos e meninas vivendo suas
vidas cotidianas e, muitas vezes, circulando pelos espaços da Capital da República.
A escolha de temas, a caracterização de personagens e as técnicas narrativas,
ainda que tenham buscado matrizes artísticas nas publicações estrangeiras, foram,
ao longo de anos, moldadas por um campo de artistas amadurecido na mídia mais
bem difundida de seu tempo. Seus caricaturistas partiam da cópia de publicações
americanas e francesas mesclando as influências com as experiências da caricatura
política e de costumes já de longa tradição no país.
Exemplar é o caso das historietas do garoto Chiquinho. Começaram como
cópia das histórias do norte-americano Richard Outcault, autor do personagem
Buster Brown. O desenhista Loureiro, posteriormente, ganhou a tarefa de realizar a
adaptação semanal. Por vezes, os editores decidiram copiar outra história, de
Winsor McCay, chamada Little Nemo, mas colocaram Chiquinho no lugar do
personagem de McCay (DE ROSA, 2005). Muitas edições depois, como o material
norte-americano não estava mais à disposição, Loureiro ficou incumbido de
continuar a história de Chiquinho, de muito sucesso, com textos fornecidos pelo
redator Renato de Castro. Depois Loureiro acabou assumindo a criação completa
das histórias, tendo até introduzido o personagem Benjamin nas piadas, para dar
tom local à série. A explicação foi dada pelo desenhista numa entrevista gravada
para o MIS-SP e transcrita na dissertação de mestrado de Maria Cristina Merlo
(2003).
A reflexão sobre o ofício do cartunista brasileiro – é preciso explicitar – é o
eixo que acompanha todo este percurso. Em pesquisa anterior, para minha
dissertação de mestrado (REIS, 2016), a participação de cartunistas brasileiros na
produção de cartilhas de campanhas publicitárias e institucionais já tinha sido
abordada. Esses livretos gratuitos têm passado despercebidos mas, há décadas,
difundem narrativas ilustradas (muitas vezes em forma de revista em quadrinhos)
com narrativas que mediam a comunicação entre as esferas científica e cotidiana da
cultura, além de convidarem o leitor a ajustar seu comportamento e aprender novas
rotinas que colaboram com o desenrolar do processo civilizador. Parte importante
dos dados da dissertação veio de entrevistas com alguns cartunistas, e eu mesmo
podia acrescentar informações sobre esse tipo de obra, por experiência acumulada.
31
A preocupação com o campo profissional sempre acompanhou minha
trajetória de pesquisador. A percepção é de que ainda falta reflexão acadêmica sobre
esse ofício. A reflexão sobre “o fazer” já foi preocupação de antropólogos, tais
como Roberto da Matta (1978), Clifford Geertz (2014) e Gilberto Velho (1978).
Tendo trabalhado a vida inteira com produção de revistas em quadrinhos e outras
aplicações comerciais do desenho caricatural, e ainda hoje vendendo roteiros para
revistas em quadrinhos infantis, pude lançar um olhar “de nativo” sobre o objeto,
com todas as vantagens e desvantagens inerentes. A vantagem principal é ser
familiarizado com o objeto exótico; a desvantagem é não conseguir olhar o familiar
com distanciamento crítico.
Pesquisar a produção de historietas ilustradas de O Tico-Tico sob o ponto de
vista de seus caricaturistas é, conscientemente, defender um campo. Esse tipo de
artista sempre lutou contra ser inferiorizado, mesmo dentro do campo artístico geral
que nunca gozou de muito poder nem de muita autonomia. Na virada do século,
caricaturistas e escritores de humor descobriam o potencial meios de comunicação
e faziam experimentações narrativas e estéticas, tanto quanto literatos e artistas
plásticos. Vários deslizavam entre obras para teatro, imprensa ou mesmo música.
A maioria dizia que fazia as caricaturas simplesmente porque havia demanda e elas
é que pagavam suas contas. Entretanto, se os literatos e artistas plásticos “de
galeria” podiam manter pelo menos aparência de autonomia artística e pleitear
pleno valor cultural, os caricaturistas, cuja arte só existia na imprensa, um meio de
comunicação de massa, bem como os escritores de humor, não o conseguiam. Logo
ganhavam a pecha de “engraçadinhos arrependidos”, conforme expressão de Elias
Thomé Saliba (2002), quando tentavam enveredar por caminhos mais “sérios”
como a pintura, a literatura e até mesmo as obras técnico-científicas. Participar dos
debates acadêmicos, nem pensar. Era como se, uma vez tornado humorista, o artista
nunca mais seria levado a sério.
Em seu único texto para uma revista acadêmica, o cartunista contemporâneo
Ziraldo (1970), convidado a refletir sobre “o humor”, formulou que, na verdade, há
dois tipos de profissional: o humorista e o “risista” (um neologismo criado por ele).
O primeiro se preocupa em traduzir, numa obra sintética de traços, textos ou ambos,
uma verdade “escondida” no cotidiano. O bom humor, segundo Ziraldo, é o prazer
de uma descoberta. Às vezes, faz rir. O segundo profissional vive de provocar riso
com quaisquer meios, sem preocupação com o conteúdo. Costuma estar nos palcos
32
de espetáculo. A sociedade privilegia o segundo, porque o prazer hedonista sempre
tem mais demanda do que o perigoso prazer da descoberta. Assim, o humorista que
melhor se mantém no ofício é aquele que consegue também fazer rir. Para a
sensibilidade geral, entretanto, parece que os dois tipos se confundem num só. Ai
do humorista que pensa não ser tomado por “risista”!
Em conclusão, é preciso saber que existe um campo artístico dos cartunistas,
que é um campo que se agita muito na busca de legitimação e defesa de autonomia,
e que o pesquisador ocupa uma posição nesse campo, o que pode interferir com as
tomadas de posição no ofício e na pesquisa. A objetividade eficaz só é alcançada se
o cientista admite que não inicia de uma posição de isenção. É a reflexividade que
Pierre Bourdieu exigiu de si mesmo em suas pesquisas sobre o mundo acadêmico e
que aconselha a todos. Bourdieu chama de “objetivação participante” o método de
levar em consideração o fato de que a pesquisa de um campo em que o pesquisador
está envolvido pode ser também “uma arma nas lutas no interior do campo”. Devese “reintroduzir na análise a consciência dos pressupostos e dos preconceitos
associados” ao ponto de vista do pretenso “observador imparcial” (BOURDIEU,
1989, p. 52). No caso desta pesquisa, isso significa levar em conta que lanço um
olhar preferencial sobre os criadores de historietas ilustradas e que esse olhar tende
a buscar fatos que valorizem essa atividade.
Considerações metodológicas: percurso de pesquisa
O Tico-Tico, com suas historietas ilustradas e seções diversas, é um objeto
que propicia o aprofundamento de questões relevantes da Comunicação Social:
como narrativas veiculadas por meios de comunicação mediam as representações
sociais e são instrumentos do processo civilizador, dentro do qual contribuem
também para o processo de subjetivação.
A abordagem desse objeto foi feita com cautela. Às vezes, corre-se o risco de
tratar um meio de comunicação como um ente dotado de caráter, que segue um
projeto coerente e uma estratégia retilínea. Howard Becker (2009) descreve as
produções artísticas e técnicas como uma colaboração entre “produtores” e
“usuários” de representações ou narrativas da sociedade. O autor figura entre os que
consideram as obras artísticas e técnicas relatos sobre a sociedade com potencial de
gerar conhecimento sobre ela. Como as narrativas produzidas em veículos de
33
imprensa são realizadas por muitas pessoas em luta pelo controle do discurso,
inclusive os assinantes, é preciso expor as engrenagens da produção para observar
as contingências e o peso de cada decisão artística e cada decisão editorial naquele
arranjo. O olhar “de nativo”, conservado a partir da minha experiência profissional
com narrativas em quadrinhos em revistas, jornais e livros, auxilia a flagrar indícios
e a abordar essas tais engrenagens de produção por trás da imagem pública.
Tentar observar um processo social enquanto estamos mergulhados nele e em
suas contingências pode nos desorientar. Podemos assumir como naturais decisões
que são discutíveis e damos peso demais a decisões que são circunstanciais,
urgentes apenas pelo calor do momento e da proximidade. Por isso, o estudo
baseado num objeto que já está afastado no tempo, como as historietas de O TicoTico, tem a vantagem de se dar com distanciamento. Ainda assim, aquelas
narrativas foram produzidas num contexto histórico que rivaliza com a atualidade
em termos do grau e velocidade das transformações.
Marialva Barbosa (2018) defende o estudo da história da imprensa não como
uma compilação linear de acontecimentos, mas como reflexão sobre processos
históricos, movimentando-se pela temporalidade, entre presente e passado. Ela
enuncia muito bem um dos fundamentos desta pesquisa:
Ao falarem de si mesmos e, assim, se constituírem em fontes para sua própria
história, os meios de comunicação, por outro lado, produzem uma fala memorável
em que o passado é apresentado como portador de significâncias que dizem respeito
muito mais a um ideal presumido do que deve ser fixado no futuro. Mas é dessas
entranhas que devemos extrair significados sobre aquele mundo. (BARBOSA, 2018,
p. 23)
Ou seja, revelam não o que aquela sociedade era, mas o que os produtores
de representações pensavam que era – ou que seria: o “ideal presumido”. Nossos
assuntos em Comunicação não são os meios em si, mas efeitos criados na vida
cotidiana através dos processos mediados pela atividade de comunicação.
A autora lamenta que o campo da Comunicação “privilegia as pesquisas que
dizem respeito ao presente absoluto em que vivemos”: meios e técnicas utilizadas
contemporaneamente. Assim, o número de estudos que possuem dimensão histórica
é inexpressivo diante da produção sobre objetos contemporâneos nos programas de
pós-graduação em Comunicação. Infelizmente, para ela, há pouca “síntese
histórica”; apenas uso instrumental da narrativa histórica (BARBOSA, 2018, p. 23).
34
A pesquisa em Comunicação tem essa característica de ser feita com a
confluência de teorias e métodos de outras disciplinas de ciências humanas e
sociais. Ela é produtiva exatamente quando faz as interligações possíveis entre elas.
O método deve ser um percurso que se faz em função da questão e do objeto
(BOURDIEU, 1989; MILLS, 2009).
Conforme C. Wright Mills (2009), métodos são úteis para orientar a
objetividade da pesquisa, mas não nos deixam prescindir da “imaginação
sociológica”. Criatividade e imaginação de pesquisador é o que distingue o cientista
de um técnico. É o que permite dar conta da complexidade da realidade social, com
suas várias faces e tramas. A condição de fazer o preconizado “artesanato
intelectual” é integrar experiências sociais e culturais, leituras amplas em temas, o
hábito da autorreflexão e a segurança de abandonar caminhos estéreis. É necessário
amadurecer como pesquisador. É necessário aprender enquanto trabalha, como o
artesão.
Lógica e quase cronologicamente, traço agora o percurso metodológico que
me trouxe até aqui. Minha dissertação de mestrado havia aberto perspectivas de
pesquisa no tratamento dos cartunistas como comunicadores. O entendimento do
papel deles no processo civilizador era a maior curiosidade. As transformações da
modernidade, que nosso grupo de pesquisa5 considera ainda em curso, são muito
evidentes no período da virada do século XIX para XX. As histórias em quadrinhos
voltadas para crianças, um dos pontos de meu interesse, estavam florescendo nesse
período. Assim, foi consequente a escolha de O Tico-Tico como objeto para onde
confluíam essas correntes. Preparei o projeto de doutorado nessas bases.
Antes mesmo de iniciar o curso de doutorado, fiz o levantamento básico
sobre o tema, lendo o livro de Zita de Paula Rosa. Fato curioso é que uma amiga se
mudou para um apartamento menor, começou a se desfazer de livros e deixou sob
minha guarda dois dos principais compêndios sobre a revista infantil: O Tico-Tico
– 100 anos e Almanaque d’O Tico-Tico: edição comemorativa. Mais uma vez,
graças à rede de contatos pessoais, uma contribuição para a pesquisa surge no
momento mais apropriado, fenômeno mais comum do que parece, no meio
acadêmico, conforme ensaio de Howard S. Becker (1995). Comecei o enlace com
o objeto, descobrindo grandes artistas e publicações que ainda não conhecia;
5
Grupo de Pesquisa Narrativas da Vida Moderna na Cultura Midiática.
35
prospectando fontes de pesquisa empírica e contatos que tinham o mesmo interesse
de pesquisa.
A partir daí, começamos, minha orientadora e eu, a traçar estratégias de
abordagem. Teria que ser pela caricatura. Essa categoria englobava as histórias em
quadrinhos, no período estudado, e era bem coberta por teoria. O trabalho empírico,
de leitura e interpretação das historietas, podia começar, mas deveríamos fazer o
recorte da pesquisa, escolhendo entre personagens e autores. Havia várias opções,
inclusive pesquisas comparativas ou guiadas por eixos temáticos.
Nesse ponto do curso pude visitar duas ou três vezes a grande exposição de
originais de J. Carlos, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (2017). Nosso
mais famoso desenhista, no entanto, já não estava na frente da corrida para ganhar
total atenção. A leitura das histórias do jocoso Zé Macaco me convenceu que esse
personagem, ainda não abordado pela academia, era a melhor escolha para realizar
este trabalho, com todos os significados em que se relaciona com o processo
civilizador. Do personagem cheguei ao autor, Alfredo Storni (1881 – 1966), cuja
carreira começou a me encantar quando comecei a conhecer seu trabalho fora de O
Tico-Tico, e passei a ler também edições de O Malho e de O Filhote.
Assim, para dar conta do objeto, que eram as narrativas, foi preciso abrir
nova frente de pesquisa, conhecendo bem melhor o grupo de caricaturistas a que
Storni pertenceu, e seu ambiente sócio-cultural.
Pierre Bourdieu, com sua teoria sobre campos, a qual já me interessava no
curso de mestrado, foi trazido, nesse ponto, como a base teórica que escolhemos
para dar conta do tipo de perguntas deveríamos lançar ao objeto. Bourdieu, em seu
trabalho As Regras da Arte (1996), defende que analisar a obra literária por uma
abordagem que relaciona as decisões do autor no processo criativo com as suas
decisões de vida pela dinâmica de seu “campo artístico” faz com que se chegue à
“fórmula geradora” da obra6. Nem deixa de relacionar a obra à estrutura social, nem
nega ao artista sua individualidade e prestígio. Isto será desenvolvido adiante, no
capítulo 2.
6
A abordagem de Bourdieu se dirige tanto à vida do autor quanto às obras dele. Para estudar Gustave
Flaubert, por exemplo, Bourdieu analisou A Educação Sentimental e tirou desse romance um retrato
da estrutura do campo literário e político segundo era vista pelo autor, em sua própria época
(BOURDIEU, 1996).
36
Para descrever o “campo da caricatura” no modelo de Bourdieu, precisei
estudar a biografia de dezenas de artistas e a trajetória de algumas publicações.
Infelizmente, os relatos em primeira pessoa são poucos. O que eles expressaram na
imprensa ficou prejudicado por conta da pecha de “engraçados” que, numa análise
de Elias Thomé Saliba (2002), impedia que os humoristas do início do século XX
fossem levados a sério, mesmo quando buscavam reconhecimento do campo
intelectual.
Quando falavam de si, por exemplo, no especial de fim-de-ano da revista D.
Quixote (edição de 25 de dezembro de 1918), usavam uma “máscara” que
disfarçava a configuração de suas obras e suas carreiras artísticas. Em vez de
redigirem suas biografias, a pedido de Bastos Tigre, poeta diretor da revista, eles
faziam “autobonecografias” e “autocalungografias”, ou seja, biografias divertidas,
ilustradas com autocaricaturas. Max Yantok, por exemplo, descreveu sua rotina
como se fosse um teatro surrealista (ver Figura 3). Já o aplaudido J. Carlos, dono
de traço bastante sofisticado, descreveu-se como um iniciante humilde, sentado
para sempre no primeiro degrau da escada da Glória. O assunto será tratado
novamente adiante.
Figura 3. Uma das ilustrações que Yantok fez de si mesmo para sua “autobonecographia”, na p. 37
do número 85 de D. Quixote (1918).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
37
Em vista das fontes disponíveis, optei pelo recurso de tomar o relato
autobiográfico de Álvaro Marins, o Seth, como moldura para organizar os dados de
vida e obra de um grupo de caricaturistas que, por sua vez, foram escolhidos pelo
critério de representarem posições significativas no mesmo campo profissional em
que Storni se inseriu.
O recorte histórico para as análises são as três primeiras décadas do século
XX, quando o regime republicano se estabiliza, reforma-se a Capital Federal e o
progresso parece uma certeza, mas essa certeza é abalada pela deflagração da
Primeira Guerra Mundial. Portanto, a leitura exploratória se concentra nas edições
desde 1905 até o final de 1929, lembrando que o regime se altera com a Revolução
de 1930. Durante a leitura exploratória foram destacadas historietas de diversos
autores, como Loureiro, J.Carlos e Max Yantok, para análise posterior e
compreensão do campo da caricatura. As de Loureiro, especialmente, foram
coletadas por apresentarem o personagem Chiquinho, símbolo da revista, e por
implicarem na problemática do processo civilizador. No caso do Zé Macaco de
Storni, foram lidas todas as histórias disponíveis, também publicadas nos anos
1930, 1940 e 1950.
A melhor fonte de dados empíricos sobre a questão é mesmo a leitura das
obras publicadas na imprensa. Felizmente, em respeito ao legado dessa publicação
na cultura brasileira, imagens de quase todos os exemplares de O Tico-Tico estão
disponíveis para leitura na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. De início,
foi feita leitura exploratória do conteúdo da revista, com justificável atenção para
as páginas de historietas. Essa leitura preliminar gerou anotações de um “diário de
campo” sobre saídas e entradas de artistas em cena, estreias de personagens,
aparição de temáticas inesperadas ou historicamente marcantes, aparição de novas
seções, conteúdo das capas, conteúdo das páginas coloridas, colaborações de
leitores na forma de desenhos e outros apontamentos. Nessa fase foram coletadas
algumas imagens que parecem se articular com as questões da pesquisa. Nem todas
foram utilizadas na tese. As notas de leitura também foram conservadas para
estudos posteriores.
Depois, fiz uma leitura completa das histórias de Zé Macaco e Faustina
disponíveis, criando uma planilha de observações organizadas a que pude recorrer
a todo tempo para tirar dúvidas e fazer associações de ideias. Para cada história lida,
foram anotados os seguintes dados: ano de publicação, edição, página onde saiu a
38
história, quais dos quatro personagens principais estão presentes (Zé Macaco,
Faustina, Baratinha e Chocolate), quais personagens coadjuvantes apareceram,
resumo do enredo, trechos significativos das legendas (para possível citação), qual
é o espaço onde ocorre a cena (se possível, identificado geograficamente) e
observações gerais. Para cada abordagem crítica aplicada sobre a obra haverá
observações específicas. Por exemplo, no estudo sobre a interação dos personagens
com as novidades do progresso material, foram anotados de cada história a lista de
objetos utilizados na cena e a lista de ações realizadas pelos personagens com esses
objetos. A leitura da tabela tanto apoia a investigação das questões da pesquisa
quanto sugere relações não percebidas antes da organização dos dados.
Para fundamentar a leitura e interpretação das histórias, foi necessário buscar
Roland Barthes (2004) como teórico do jogo de significação nas narrativas com
conteúdo visual. Barthes admite ser um “pensador impuro”, semiólogo sem rigor,
que ama a História como a ciência humana de maior precedência. Crê na força da
“escritura” como meio de produção de conhecimento. Vê a semiologia como uma
disciplina que presta apoio a certas ciências:
Assim, a parte da semiologia que melhor se desenvolveu, isto é, a análise das
narrativas, pode prestar serviços à História, à etnologia, à crítica dos textos, à
exegese, à iconologia (toda imagem é, de certo modo, uma narrativa) (BARTHES,
2004).
Negando que a semiologia seja “chave” de decifração, ou método de
apreender diretamente a realidade, prefere que a disciplina “soerga” evidências para
estudo. Barthes tem essa afinidade com os estudos de Comunicação. Opta por tratar
de narrativas do tipo do teatro, do cinema e da publicidade, onde se controla
artificialmente os signos, fazendo ser mais fáceis de discernir os significantes e
significados (BARTHES, 1993, p. 245 -255). Assim é a arte do caricaturista,
controlador de signos gráficos articulados em conjuntos denotadores de sentido
segundo uma série de normas discernível e compartilhada entre os artistas e leitores.
A caricatura é uma técnica de representação. Todas as descobertas pictóricas
são técnicas baseadas não em transposições e semelhanças, mas em equivalências
ou substituições, segundo Ernst Gombrich (1986, p. 289 - 313). O autor expõe que
os primeiros artistas que refletiram sobre o desenho caricato estavam revelando
novas formas de ver, ou seja, legando aos artistas posteriores uma potente
ferramenta de representar emoções humanas e de produzir imagens com fórmulas
39
aprendidas na prática e memorizadas, encaradas como linguagem e arranjadas em
algum tipo de gramática. Essa técnica de representação demanda do leitor certa
participação intelectual (suplementar mentalmente as coisas que o artista omitiu,
como numa leitura); assim, o leitor empenha mais sua subjetividade na fruição
daquele desenho do que de uma transposição do natural e abre-se espaço para que
ele associe os grafismos à sua realidade particular. Não há leitura fixa, nem
significado universal, uma vez que caricaturista e público precisam compartilhar de
uma cultura para lidarem com aquelas convenções.
Isso é o que fazem os Estudos Culturais de que o teórico Stuart Hall (2016) é
representante. Eles se voltam àquele arcabouço de cultura visual de uma dada
sociedade, tendo noção de que seus elementos não são universais, mas relativos a
tal sociedade, em determinada época, e descrevem regimes de representação com
que a sociedade opera e reproduz sua ordem. Representação é entendida aqui como
um processo pelo qual membros de uma cultura usam sistemas de signos para
produzir significado. Quando se tem a intenção de marcar algum tipo de diferença
social (por exemplo, marcações de gênero, raça ou classe) e salientar divisões e
categorizações, passa-se a ter um regime de representação. Compreende-se que tais
representações não são ingênuas, nem neutras; são construídas a partir de posições,
estratégias e interesses de grupos, envolvendo lutas e acordos. A análise do
material, aos olhos de hoje, flagra atravessamentos de questões de gênero, raça e
classe, todas produzindo significado conforme a posição social dos produtores das
imagens.
Entre muitos significados potenciais, o pesquisador deve buscar aqueles que
seriam preferenciais para os produtores das imagens (HALL, 2016, p. 143). As
imagens, é preciso atentar, não significam quando estão isoladas, “Elas acumulam
ou eliminam seus significados face às outras por meio de uma variedade de textos
e mídias” (HALL, 2016: 150). Uma imagem se refere às outras, seu significado é
alterado pela leitura no contexto de outras imagens, ou seja, a leitura é intertextual.
Especialmente nos suportes midiáticos, como as revistas ilustradas, os títulos e
legendas servem para fixar ou, ao menos, dirigir o significado, reduzindo a
ambiguidade fundamental das imagens.
A caricatura é, por definição, feita por convenções e categorizações dos
elementos humanos. Sempre tipifica. Assim, pode ser instrumentalizada para a
estereotipagem. Não é a técnica da caricatura que estereotipa por si só. Os
40
estereótipos são construções sociais que costumam se expressar pela caricatura. A
análise do corpus de imagens deste trabalho é guiada pelas considerações acima.
Em dado momento do percurso, testei se os procedimentos metodológicos se
aplicavam a produzir conhecimento. No trabalho de conclusão do Curso Teorias
das coisas: contribuições para pesquisas da Comunicação, da Profa. Cláudia
Pereira (PUC-Rio), busquei a leitura de historietas de Zé Macaco para pensar como
o artista estaria lidando com as relações de seres humanos e coisas naquele contexto
histórico de muitas transformações materiais. O resultado foi positivo e, ampliado,
constituiu o capítulo 3.
Em seguida, trabalhei com a abordagem que estava desenvolvendo desde o
início do curso de doutorado: o processo civilizador. O interesse vinha do meu curso
de mestrado e ganhou corpo quando frequentei o curso do Prof. Marcelo Jasmin
(História – PUC-Rio) sobre os conceitos de civilização, violência e suas
correlações. O resultado do ensaio de conclusão de curso contribuiu para o conteúdo
do capítulo 4.
Em vista desse percurso, se podemos determinar a metodologia usada na tese,
foi uma análise interpretativa de discurso narrativo fundamentada em Barthes e
Bourdieu.
Resta desenvolver os motivos da opção por Alfredo Storni e seus
personagens, já abordada acima. O próprio artista apresenta o grupo (ver Figura 4):
41
Figura 4. Página 13 do número 272 de O Tico-Tico (natal de 1910). Anúncio da volta das histórias
de Zé Macaco, que, segundo narra o autor, passara uma temporada na Europa. De lá, trouxe sua
esposa, Mme. Zé Macaco (nesse momento, ainda sem nome próprio) e o filho Baratinha. Nos céus,
aproxima-se o aéreo-burro, veículo criado por Zé Macaco e que ele usou em várias histórias. Fonte:
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Storni foi um dos autores mais populares dessa época e é lembrado como um
cartunista crítico da sociedade. O autor do maior compêndio sobre caricaturistas
brasileiros, Herman Lima, assim o descreve: “Satirista de aguda veia humorística,
42
segundo vemos, desde cedo soube Storni fixar os excessos da moda e do arrivismo
que dominariam o Rio por volta da pré-Guerra de 1914, entrando também
vantajosamente na competição às historietas estrangeiras já então em voga [...]”
(LIMA, 1963, p.1231-1232). Seu personagem Zé Macaco vem da linhagem das
caricaturas do povo. A figura do “Zé Povo”, um homem empobrecido e
desconfiado, que podia levar ou não esse nome, aparecia com frequência nas
charges políticas dos jornais satíricos, principalmente O Malho. Esse homem do
povo sofria com os fatos e fazia os comentários que os autores supunham ser
necessários na correção dos rumos da política.
Seguindo a tradição entre caricaturistas, Zé Macaco surge como mais um da
série de homens do povo em visita à Capital, onde não entende os códigos de
comportamento, nem as modas, e passa alguns apuros cômicos. Sua vida, volta e
meia, está em risco, entre quebra-quebras, enchentes e problemas com a polícia. A
cor de sua pele é representada em tom amarelado, em comparação com outros
personagens pintados com tons rosados. O tom amarelo é interpretado como signo
caricatural da herança indígena. O termo “caboclo”, de fato, é frequentemente
usado nas legendas para se referir ao personagem.
Segundo Deborah de Magalhães Lima (1999), o conceito de “caboclo” é
complexo, com cruzamentos de relações raciais, sociais e de classe, além de
determinações regionais. Indica, a princípio, a origem mestiça do indivíduo, mas
não somente isso. A mestiçagem já foi objeto tanto de reprovação quanto de
esperança no discurso de ideólogos do desenvolvimento brasileiro. “Caboclo” é a
denominação local para o indivíduo camponês amazônico. Também é nome para
um tipo regional, construído por motivos didáticos, assim como “gaúcho” ou
“sertanejo”. Na linguagem popular, carrega estereótipos negativos. Para os fins
deste estudo, importa o que a pesquisadora explicita:
“os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem qualidades rurais,
descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que
contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada” (LIMA, 1999, p.7).
A observação se confirma pela interpretação das primeiras histórias de Zé
Macaco. No entanto, adiante, no capítulo 5, será discutido se uma interpretação
ambiguamente positiva do tipo caboclo está também presente na série de Alfredo
43
Storni, ou se ele desenvolveu o personagem em torno de outras relações com o
conceito de “caboclo”.
Storni produziu histórias do personagem durante muito tempo, o que permite
estudá-lo com a expectativa de flagrar as mudanças e permanências ao longo de
décadas. A publicação começa no final de 1908, e sofre uma interrupção em 1910
até o início de 1911, quando Zé Macaco volta reformulado, com mulher e filho e, a
partir daí, é publicado por muitos anos, com interrupções devido a compromissos
com outras revistas. Em 1958, o desenhista, aos 77 anos, ainda produzia página das
Aventuras de Zé Macaco e Faustina na revista, que tinha se tornado mensal.
Organização do texto: a narrativa de uma pesquisa
A tese foi organizada em duas partes. Na primeira, estudei o contexto em que
o autor produziu a obra. Na segunda, apliquei análises para relacionar a obra com
grandes temas, na busca de estudar a inserção dela em processos de mediação e
subjetivação. A conclusão é a formulação do princípio gerador da obra, sua
especificidade, o arranjo de elementos através dos quais a obra produziu significado
e se tornou um relato social.
No capítulo 1, descreve-se o contexto histórico e cultural em que a publicação
circulou. Busquei as matrizes do semanário, que estavam em publicações europeias,
especialmente as francesas. Na América do Sul, Chile, com El Peneca, e Argentina,
com o Biliken, também investiram num tipo de publicação que levasse
entretenimento “responsável” e “educativo” a seus jovens e crianças, com muitas
narrativas – e muitos desenhos. Abordei também as condições da chamada
Modernidade, aplicando-se sobre os artistas e leitores.
No segundo capítulo fiz a descrição do campo artístico em que foram geradas
as historietas ilustradas. Podemos chamar tal campo de “o campo dos
caricaturistas”, porque, na época, não havia distinção entre os desenhistas que
faziam portrait-charge7 e os que narravam estripulias cômicas para crianças. Não
existia, ainda, o termo “história em quadrinhos” nem se usava o termo “cartunista”.
7
Caricatura apenas do rosto de uma pessoa famosa, com função ilustrativa. Esse era o termo usado
na época. Hoje esse trabalho seria chamado simplesmente de caricatura. Na atualidade, costuma-se
denominar caricatura apenas o desenho estilizado, grotesco ou não, de um rosto humano. O desenho
caricato aplicado à formulação de uma piada visual, com presença de texto (balões, legendas, título)
ou não, a qual aborda um tema universal e perene, é chamado cartum, versão brasileira da palavra
inglesa cartoon. O desenho caricato aplicado à formulação de uma piada visual centrada no
44
Capítulos 3 e 4 formam a segunda parte da tese. Toda obra narrativa ilustrada
é um trabalho de representação social. No capítulo 3 foi descrito o tratamento que
Storni dá aos objetos e hábitos ditos “modernos”. A iluminação elétrica, o bonde, o
cinema, o sorvete, o rádio, a medicina, as modas em matéria de roupas e chapéus,
entre outros objetos, todos foram representados e articulados com ações de seus
personagens. Esse autor, sem dúvida, tinha intenções civilizadoras, mas precisava
se equilibrar entre pregar a conservação de valores e o progresso. Para
fundamentação teórica, nesse capítulo, recorremos a filósofos e antropólogos que se
ocuparam da interação entre indivíduos e coisas.
No quarto capítulo, os dados extraídos das tabelas de leitura permitem abordar
como Storni tratou do comportamento moderno e civilizado. Produzindo narrativas
cômicas no início do século XX, o caricaturista lidou o tempo todo com modas,
invenções e interações sociais que exigiam o aprendizado das corretas etiquetas,
nem que fosse apenas para exibição. A tensão que se dava entre a necessidade de
expor pulsões incivilizadas e a de contê-las era motor de efeito cômico. Os fatos da
Primeira Guerra Mundial, com explosões de violência nos territórios mais
civilizados do mundo, entraram na pauta de Storni e solicitaram dele e outros
artistas reflexões sobre o assunto. Elias segue como uma âncora teórica e Freud
(2010), autor do seminal O mal-estar na civilização, também fornece fundamentos, entre
outros filósofos, historiadores e antropólogos.
O quinto capítulo recupera parte das formulações e análises para sintetizar uma
interpretação da obra de Storni e dos processos comunicativos em que ela se insere.
Antes de entrar na exposição dos resultados, no entanto, cabe uma ressalva. Nas
historietas de O Tico-Tico todos os personagens negros são estereótipos racistas, o que é
evidente a partir de seus nomes (Giby, Chocolate, Lamparina, Azeitona, entre outros),
passando por sua fala (na forma oral e fora da norma culta) e sua representação visual
(black face), até seu papel nas narrativas (criados obedientes e trapalhões, tendendo à
superstição e à ignorância, sem freio de suas pulsões). No entanto, esses fatos não serão
problematizados na tese, porque mereceriam um levantamento teórico e empírico muito
maior do que seria possível dentro deste trabalho. Entende-se que é um regime de
comentário de um tema do noticiário ou ataque a uma personalidade pública em evidência no
noticiário é chamada charge. Nesse caso, a dita personalidade é desenhada na forma de uma
caricatura. Essa terminologia guia as inscrições de trabalhos em diferentes categorias nos salões de
humor brasileiros. Para definições, ver RABAÇA e BARBOSA, 2014.
45
representação e se relaciona ao projeto político ao qual o conteúdo das revistas ilustradas
adere: modernização do país a partir de modelos idealizados dos países industrializados,
o que levava à representação da população negra da sociedade brasileira como se fosse
inepta para o projeto, quando não era meramente invisibilizada. O “embranquecimento”
da população seria necessário para viabilizar o progresso do país, segundo a elite
ascendente no início do período republicano, inclusive com o aval de “homens de
ciência” (SCHWARCZ, 1993).
Segundo Nobu Chinen, autor da obra O negro nos quadrinhos do Brasil:
O preconceito e os estereótipos, primos em primeiro grau, permanecem com
presença constante nas relações sociais cotidianas e sempre foram refletidos nos
meios de comunicação, que, por sua vez, ajudaram a disseminá-los, num círculo
vicioso que se perpetua continuamente, em prejuízo daqueles que sofrem a
discriminação (CHINEN, 2019, p. 45).
Obras como as historietas ilustradas cômicas costumam cultivar essa
autorreferência, recorrendo às fórmulas de representação que já circulavam. Daí, o
círculo vicioso que perpetua o estereótipo.
Uma última explicação: na transcrição de textos de O Tico-Tico optei por usar
a norma ortográfica vigente na atualidade, para que a leitura flua sem ruído, uma
vez que o interesse nessas transcrições se dá mais pelos valores semântico e
narrativo do que documental. Portanto, por exemplo, transcrevi “máquina” no lugar
de “machina”.
1. O contexto das historietas ilustradas
O pai de Affonso Botari era o engenheiro mecânico italiano que cuidava das
máquinas impressoras da Sociedade Anônima O Malho. Um dia, trouxe do Rio de
Janeiro para sua casa, em São Paulo, uma novidade: o primeiro número de O TicoTico. Antes mesmo da data de lançamento, 11 de outubro de 1905, Affonso, com
seis anos de idade, tomou apaixonadamente o exemplar e foi ler sozinho, no seu
canto. Por isso, sustenta ter sido o primeiro leitor da revista infantil. A paixão de
vida levou Botari à imprensa (trabalhou no Correio Paulistano), aproximou-o do
caricaturista Belmonte e do historiador Herman Lima. Viveu um tempo no Rio de
Janeiro, ficou amigo de “diretores, editores, redatores, desenhistas, gráficos” de O
Malho e de O Tico-Tico, e continuou lendo e colecionando a revista, com prazer,
enquanto ela existiu. Concedeu uma entrevista publicada no livro O Tico-Tico –
100 anos e morreu exatamente no aniversário de 100 anos da revista, em 11 de
outubro de 2005.
Na entrevista, o sr. Affonso discorreu sobre inúmeras curiosidades sobre seus
redatores e artistas, suas seções e personagens. Fez uma apologia da revista e
entregou, de primeira mão, o relato do contexto social e cultural em que O TicoTico se desenvolveu. No início do relato, disse que havia livros para crianças
disponíveis, principalmente das livrarias Quaresma e Bertrand, mas não havia
periódicos infantis:
Quanto aos adultos... Papai e mamãe tinham muito o que ler. Afora os jornais diários,
os muitos livros editados, havia as revistas hebdomadárias. A belle époque da
imprensa brasileira conheceu um esplendor febricitante com a publicação de revistas
irônicas... de ironia ferina... ricas em caricaturas [...] quase todas impressas em papel
finlandês, tipo couché (BOTARI, 2005, p.228).
Tal “esplendor febricitante” era vivido pelo setor da imprensa e pelos
participantes privilegiados da onda modernizante do início do século XX. Envolvia
os leitores na assimilação de novidades técnicas, artísticas e científicas, ainda que
o comportamento exigido de jovens e crianças fosse o mesmo de sempre. Botari
acentua como foi criado no respeito à ordem e à religião, e como recebeu o primeiro
exemplar de O Tico-Tico vestido com a indefectível roupa de marinheiro. Jovem,
se encantou com os movimentos na Rússia e com as modernas ideias socialistas,
para abandoná-las como ilusão mais tarde. Vivenciou o tempo em que football era
jogado apenas por rapazes de alta classe, e que o máximo para uma criança era ter
47
seu nome impresso, em letras miúdas, entre dezenas de participantes dos concursos
de O Tico-Tico. Mais do que isso, teve o contentamento de ter seu retrato impresso
numa edição em 1909. O normal era ler O Tico-Tico até 16 anos de idade, segundo
ele. A infância era mais longa.
Essa época lembrada sob o signo da velocidade, do estímulo visual e do
rompimento com a tradição não deve ser entendida sem levar em conta as forças
contrárias: fortalecimento da ordem social e da disciplina civilizadora. As narrativas
veiculadas na época, sob diversos suportes e formatos, tendiam a impulsioná-la.
Marialva Barbosa, em sua História Cultural da Imprensa (2007), faz uma
leitura das transformações do setor na virada do século XIX para XX a partir da
página do Jornal do Brasil na edição comemorativa de 15 de novembro de 1900:
“O Jornal do Brasil se apresenta a seu público como um calidoscópio de imagens,
nos quais cenas em que procuram reproduzir a realidade figuram ao lado de
alegorias” (BARBOSA, 2007, p. 32). Não só pelo índice de analfabetismo ser alto
na época, mas também pelo progressivo desenvolvimento da “cultura visual” de
todos, a imprensa investiu em fotografias, ilustrações a traço e caricaturas,
justapondo signos visuais mais ou menos alegóricos, todos produzidos com a
intenção de traduzir a realidade em narrativas.
As histórias em quadrinhos vicejam nesse substrato. Os artistas e editores
descobrem a potência dos personagens de tiras em quadrinhos. Zé Macaco e
Faustina, de Storni, são criados nesse contexto, percorrem as décadas e
acompanham o cotidiano de grande público. O entrelaçamento da prática do autor
das historietas com as condições que lhe são dadas pela sociedade é o primeiro
enfoque desta tese.
1.1. O prazer infantil da velocidade e da confusão
O que tais personagens são vistos fazendo, em cada publicação, corresponde,
de alguma forma, às expectativas da sociedade que os lê e consome. Numa das
edições de O Tico-Tico, Zé Macaco é desenhado, na primeira página, a bordo de
um automóvel com “chauffeur” (ver Figura 5).
48
Figura 5. Capa de O Tico-Tico n.196 (1909), edição em que a vida de Zé Macaco sofre uma virada
de sorte, antes da suspensão de sua série.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
49
A legenda da história é bastante esclarecedora e voltará a ser assunto de
análise no Capítulo 2 (p.115). Sem aprofundar-se demasiado, é possível fazer uma
leitura dos signos com que o caricaturista montou a imagem, à maneira de Roland
Barthes (1990). O automóvel vem espalhando poeira (indicada pelo desenho de
nuvens brancas por trás da máquina), devido à velocidade com que trafega pela
Avenida Central8 do Rio de Janeiro (indicada pela forma dos postes de luz elétrica
instalados na reforma de 1906). Zé Macaco vem vestido com cartola, casaca e luvas
brancas (conotação de riqueza), reclinado de lado sobre o assento do veículo,
enquanto fuma um charuto (conotação de prazer e conforto). A expressão facial do
personagem (sorriso, olhos semicerrados) confirma a sensação.
A imagem do automóvel em velocidade vinha sendo usada em várias capas
de revista. Na capa de O Malho número 167 (1905), desenhada por J. Ramos Lobão,
o presidente Rodrigues Alves desfila de carro pela nova Avenida Central, ao lado
dos engenheiros Paulo de Frontin e Lauro Muller, para afrontar o “carrança” (velho
contrário às reformas) e animar o “Zé Povo” (que se manifesta a favor do progresso:
“É pra frente, sempre!”). Por sua vez, na capa da edição 311 (1908), desenhada
também por Lobão, o presidente Afonso Pena conduz velozmente “o carro do
Estado” em direção a um precipício, com a Lavoura, a Indústria e o Comércio,
desesperadas, no banco de trás. Já a revista Fon-Fon! não apenas trazia o desenho
de um automóvel em corrida desabalada no seu logotipo, mas também traduzia seu
“programa” (linha editorial) em jargão automobilístico. Oferecia aos leitores
matérias alegres e críticas bem-humoradas aos “velhos costumes”, apertando
sempre a “sirene” (buzina) para interromper “os graves problemas da vida” e o
discurso “com feições de filosofia” (FON-FON! de 13/04/1907).
O automóvel, raro, caríssimo e distintivo, era um dos signos que melhor
traduzia os valores que se convencionou chamar de “modernos”: velocidade,
cosmopolitismo, individualismo, progresso material, urbanidade, polifonia,
visualidade, iluminação. No Brasil, esses valores foram associados, na cultura e na
política, à consolidação do regime republicano e às reformas urbanas da Capital,
como apontam historiadores abordados a seguir.
Segundo José Murilo de Carvalho (1990), nos primeiros tempos da
República, houve disputa política e ideológica entre várias correntes participantes
8
A Avenida Central da cidade do Rio de Janeiro foi rebatizada de Avenida Rio Branco em 1912 e
este é seu nome atual.
50
da derrubada do Imperador para munir os brasileiros de heróis e de símbolos, tais
como a “Marianne” francesa, jovem e forte mulher que representava a República
em vários países. Aqui, tal figura foi rapidamente vilipendiada e, apesar de
constante nas charges políticas (inclusive algumas de Storni, citadas no capítulo 2,
p.128), não obteve mobilizar as “almas” nacionais.
Após a mudança de regime, a sociedade continuava esperando por um sinal
de que o país avançara. O sinal viria a ser a reforma da Capital (1902 -1906), ideia
plantada pelos que visitavam Paris, após reformas do Barão Haussmann (na
segunda metade do séc. XIX), e Buenos Aires, após reformas entre 1880 e 18859.
Assim, a partir de 1903, começam as demolições, sob aplausos de uns e lamentos
de outros. A formulação irônica de que aquilo era uma “condenação ao progresso”
veio de Euclides da Cunha. No final de 1904 explode a Revolta da Vacina, reação
mais às remoções da população pobre do que à imposição da vacina contra febre
amarela. O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo porto e capital, conforme o plano dos
dirigentes da República, tinha que ser uma cidade salubre e organizada, para exibir
uma imagem moderna do País aos estrangeiros e aos próprios brasileiros (NEVES,
1992).
Ela irradiaria modas e modelos de comportamento para toda a população,
num sentido quase didático, uma vez que a própria circulação pela cidade e uso de
seus novos sistemas de comunicação e transporte já colocavam o neófito em
situação de aprendizagem. Até o simples relato midiático de interações entre
humanos e máquinas no cenário urbano moderno funcionaria pedagogicamente,
como podia acontecer com as historietas de Zé Macaco e Faustina10. Durante as
primeiras décadas do século XX, até o início da Primeira Guerra Mundial, o
discurso geral era de certeza no plano de progresso e, por parte de alguns, de euforia
com as perspectivas (SEVCENKO, 1998; SCHWARCZ, 2013).
9
Para reconhecer como o processo de reforma urbana do Rio de Janeiro tem paralelo no processo
de Buenos Aires, ao menos no discurso oficial e midiático dos motivos da empreitada, referir-se ao
artigo de ARAÚJO, 2016.
10
Na história de Zé Macaco publicada em O Tico-Tico de 13/09/1911 (310), Faustina é obrigada a
se utilizar do telefone público de emergência instalado num poste da Avenida Central (o chamado
“chave cidadão”) para pedir um carro da “Assistência” (ou seja, uma ambulância) e socorrer seu
marido desfalecido. Por meio dos desenhos, o leitor espalhado pelo Brasil vivenciava a prática do
uso de telefone e de automóvel no início dos 1900. Não foi a única menção a esse novo dispositivo
técnico nas historietas de Alfredo Storni, que costumava colocar seus personagens em situação de
experimentar todas as modas e todos os aparelhos ditos “modernos”. Em 8 de maio de 1912, na
edição 344, Yantok faz a mesma piada, botando o personagem Sábbado para usar a “chave cidadão”
e chamar os bombeiros... estando numa geleira do Polo Norte!
51
O dramaturgo e escritor Artur Azevedo, por exemplo, narrava a polifonia e
a multiplicidade dos pontos de vista características da vida urbana, satisfeito com
as reformas e satirizava, em suas revistas do ano como Guanabarina (1906) os
“carranças” defensores do “atraso” e do “velho” (SICILIANO, 2014).
Essa foi a grande época das revistas ilustradas, que levantavam a bandeira do
“avanço” e, tanto em forma quanto em conteúdo, solicitavam adesão aos projetos
de modernização. Eram elas um canal de celebração de projetos individuais e
coletivos, além de fomentadoras de polêmicas passageiras. A indústria gráfica tinha
começado a sofisticar seus processos de impressão para reproduzir fotos, ilustrações
e gráficos a cores. O conteúdo pleno de anúncios, seções de “fatos diversos” e
entretenimento (jogos, partituras de canções para piano, piadas), além da publicação
de fotografias dos novos prédios e avenidas, levavam aos leitores as últimas modas
e apresentavam o comportamento civilizado desejado de todos que circulassem
pelas metrópoles nacionais. As revistas se tornavam o meio preferencial de
popularização dos literatos, e seu sucesso apoiava iniciativas de publicação de
livros por parte das mesmas editoras. Suas redações eram, também, ambiente para
experimentações técnicas, por parte dos gráficos, e estilísticas, entre poetas e
caricaturistas. (MARTINS, 2008; VELLOSO, 2015).
A empresa que criou O Tico-Tico e onde Alfredo Storni trabalhou durante
decênios estava plantada firmemente nesse mercado. Oferecia um leque de produtos
jornalísticos que, de um lado, atendiam à demanda do público que se segmentava
e, de outro, educavam o público geral a se segmentar conforme a estratégia da
empresa. Uma evidência disso é o anúncio em forma de caricatura publicado no
número 187 de O Malho (1906). Nele, os veículos da empresa são personificados
como integrantes de uma família burguesa. O pai da família, que personifica O
Malho, com o característico gorro, apresenta ao “Zé Povo” os integrantes todos: a
esposa, Caricatura, a filha mais velha, Leitura para todos, o filho O Tico-Tico,
muito levado e, à parte, o filho mais velho, que só trabalha uma vez por ano, o
Almanach. Indagado sobre “o que fazem por estas alturas?” o pai responde “Cá
vamos! Cá vamos!”. Isso é um trocadilho com a expressão “cavar” que, na época,
era uma gíria para arranjar dinheiro (ver Figura 6).
52
Figura 6. Charge na página 20 da edição 187 de O Malho (1906), desenhada por J. Carlos.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
As revistas ilustradas foram, nesse período histórico, os mais influentes canais
de mídia. A um só tempo correspondiam, com suas características de forma e
conteúdo, aos valores culturais de uma sociedade em transformação para a chamada
Modernidade, e ajudavam a construir as mesmas subjetividades “modernas”, que
soubessem interpretar e que valorizassem aquelas características (VELLOSO,
2015).
A atenção dispersa devido à multiplicidade de estímulos, o prazer de estar na
multidão, o gosto pelo ritmo acelerado da vida, a interpretação subjetiva e
individual das imagens, a promoção do cotidiano como objeto da arte, a entrega de
si ao movimento mecânico, o embarque em modas passageiras e eventos
sensacionais, a quebra das auras simbólicas e dos interditos sociais em favor da
lógica de mercado, todas essas são faces da “modernidade” que pensadores e
artistas têm associado à produção e consumo das revistas ilustradas.
O poeta Baudelaire (1996), em seu texto que descreve a modernidade
florescente de sua época, usa a obra do amigo Constantin Guy, “pintor do
cotidiano”, “homem do mundo”, como metonímia dessa modernidade. Guy teria
53
sido aquele artista tardio, autodidata e habituado a viajar, que desenvolvia sua
carreira na imprensa europeia como ilustrador. Ele tinha a qualidade de se entregar
à observação da metrópole desde os primeiros raios do sol, para absorver todas as
imagens da atividade quotidiana e, à noite, febril e velozmente, traçar, de memória,
lutando contra o papel, aquelas imagens com frescor, naturalidade e singularidade.
Tais trabalhos tinham aparência de obras inacabadas mas, por isso mesmo,
representavam melhor os objetos do artista, talvez por apenas aludi-los, de forma a
conquistar o esforço de complementação subjetiva do espectador. O imperador, por
exemplo, representado em cenas de pompa, era um “croqui infalível”, uma pequena
caricatura, quase uma rubrica, que aludia perfeitamente ao figurão, pois que era
uma fórmula já amadurecida pelo artista, e compunha-se apenas dos poucos traços
que um espectador, observando de longe e em movimento, teria visto se estivesse
presente.
Baudelaire não usa o termo, mas Constantin Guy era um caricaturista, não no
sentido de pintor de retratos exagerados, mas de artista visual que representa
imagens com um repertório de fórmulas simplificadas. Como Baudelaire sugeriu,
“Para o croqui de costumes, a representação da vida burguesa e os espetáculos da
moda, o meio mais expedito e menos custoso, evidentemente, é o melhor”
(BAUDELAIRE, 1996, p. 11), querendo dizer que ela exige do artista velocidade
na execução. E que a litografia se prestava bem a esse papel, justamente a técnica
de reprodução de imagens artísticas que acompanhou o florescimento das revistas.
A metáfora do flâneur, que vive “no numeroso, no ondulante, no movimento, no
fugidio e no infinito” (idem, p. 19) é uma descrição dos caricaturistas das revistas
ilustradas, vivendo de atiçar as polêmicas passageiras e registrar os choques e
perplexidades observados no cotidiano. Constantin Guy tinha, de acordo com
Baudelaire, seus objetos preferidos: o dândi, a mulher muito enfeitada, carruagens
e militares. O mesmo poderia ser dito de J. Carlos, o desenhista dos janotas e das
melindrosas, ou Rian, caricaturista das damas da classe alta.
Walter Benjamin (1994) se referia a Baudelaire e apreendia, do quadro da
modernidade, alguma coisa além do que o poeta: o literato – ou qualquer sujeito
“moderno” que se inspirasse no artista – ia à feira com paixão, pensando que era
para consumir tudo com o olhar, mas não percebia que já estava lá se oferecendo
como mercadoria. Empresários da imprensa alistavam escritores e caricaturistas na
produção de literatura que vendia rápido, literatura que emulava os prazeres da
54
flanerie: panoramas da cidade, lista de tipos humanos da metrópole, escritos como
bestiários ou livros de botânica, histórias de sensação, sátiras, paródias, literatura
que não desafiasse a ordem, ainda que fizesse troça das hierarquias. Esse poeta
moderno percorria a cidade catando restos e marginalidades que pudessem ser
reaproveitados em obras, com uma boa embalagem.
Para conseguir isso, esperava-se que o poeta – ou qualquer sujeito “moderno”
que se inspirasse no artista – abordasse o quotidiano com olhos “puros” ou
“infantis”, sem preconceitos cegantes, e capazes de extrair de todas aquelas
informações sensoriais uma “idealização forçada”, uma “percepção aguda, mágica,
à força de ser ingênua”. A percepção dos artistas educaria a percepção dos homens
modernos. Para isso, o artista deveria ser como Constantin Guy, sempre com “a
memória e os olhos repletos” (BAUDELAIRE, 1996, p.22 -23).
Imersos nesse caldo cultural, os caricaturistas brasileiros das revistas
ilustradas não podiam evitar se referir a essas questões filosóficas, mesmo que não
se dessem conta, com a reflexão atropelada pelo trem da periodicidade semanal e
dos múltiplos empregos. Uma imagem grotesca de Alfredo Storni, na aventura de
Zé Macaco e Faustina de 1912, é metáfora para as condições da modernidade (ver
Figura 7).
55
Figura 7. Uma metáfora para a visualidade na experiência da vida moderna. Página 14 do número
338 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Dois números antes, a personagem Faustina tinha sido atingida pelo
personagem Kaximbown (de Yantok), na brincadeira de carnaval, com um jato de
lança-perfume muito forte. Os olhos de Faustina ficam inchados. No exagero
grotesco da caricatura, ela chora baldes de lágrimas e seus olhos ficam do tamanho
de melões (primeiro quadro). O marido Zé Macaco corre a acudir e tem a ideia de
56
chamar certas curandeiras chinesas que andavam pelo Rio de Janeiro na época11.
Operando palitinhos, as chinesas vão tirando de dentro dos olhos de Faustina tudo
o que estava entupido ali: objetos cotidianos. Um monte de bens de consumo que a
senhora tinha visto ultimamente se acumulam ao lado: relógio despertador, garrafa
de parati, buzina de automóvel, caixa de fósforos, lata de sardinhas, cachimbo,
penico, botas, sapatos, chinelos, o horário da Light, o programa do Odeon e até um
gramofone tocando “A Viúva Alegre”. Deve ter passado na cabeça do artista a ideia
de que só poderia ser uma cornucópia de objetos de consumo aquilo que estaria
oculto, enchendo os olhos de uma senhora de classe alta do início do século XX.
Ou seja, de certa maneira, “apreender” se iguala a “ver”. A maneira de
entender, absorver e possuir objetos na modernidade passa pela visão. Não foi
sempre assim. O sentido que era o modelo do processo de conhecimento vinha
sendo o tato, o contato material. A própria visão, nos primórdios dos estudos
científicos, era encarada segundo esse modelo de contato material (os olhos
supostamente teriam o poder de “tocar” os objetos com raios invisíveis). Jonathan
Crary (2012) estudou essas transformações no modo de percepção como resultado
de um complexo jogo de forças histórico no campo da representação, do
pensamento, da arte e da ciência. Para ele, técnicas de observação seriam práticas
que dominaram seus períodos históricos e forneceram modelos epistemológicos e
de subjetividade. Cada uma dava diferente papel para o observador, ou posicionavao de outra maneira no processo. O uso da ilusão de perspectiva - a “perspectiva
renascentista”, por exemplo - punha o espectador no centro da cena que era seu
objeto.
O olhar iluminista, que, de certa forma, é dominante até hoje em nossa
sociedade, era aquele, segundo ensaio de Sérgio Paulo Rouanet (1988), que se
pretendia educado para vencer as imperfeições da visão. As ilusões de óptica
costumavam ser usadas por pensadores da Ilustração como metáfora para as
dificuldades de se conhecer a realidade apenas pelo sentido da visão. O ideal era
que tudo fosse visto, e que não houvesse áreas obscuras em que o poder autoritário
atuasse, nem interdições por motivo de ordem. O recurso aos olhares dos “outros”
11
Em O Malho n. 497, de 23 de março de 1912, uma charge desenhada por Loureiro comenta sobre
o “truc” das “chinesas desmascaradas”. Elas traziam escondidos na boca bichos (larvas?) que
simulavam tirar de dentro dos olhos dos pacientes, manipulando pauzinhos. Era comum Storni usar,
nas piadas Zé Macaco, os assuntos comentados na semana.
57
para confrontar e aprimorar sua própria percepção seria uma das lições que produzia
o olhar “competente”. Por outro lado, a concepção desses pensadores da Ilustração
teria munido os detentores de poder de nova forma de controle, de tipo “panóptico”,
onde todos são vistos pelo poder central, sob luz cegante e inescapável, enquanto o
poder central não era visto. A relação do cientista com a amostra, no laboratório,
servia de metáfora para essa previsão distópica.
De modo geral, segundo Crary (2012), houve uma virada desde a percepção
objetiva, dominante no pensamento e na prática dos séculos XVI e XVII, em que a
visão, imperfeita ou não, era encarada como espelho da realidade, para a percepção
subjetiva, de expressão e criação individuais, já nas primeiras décadas do século
XIX. A câmera escura, por exemplo, servia de paradigma para o conhecimento
objetivo, quando sujeito e objeto do conhecimento são separados. No século XIX
outras técnicas são chamadas a demonstrar que a objetividade é ilusória, como as
que exploram o fenômeno da persistência das imagens na retina (lanterna mágica).
Máquinas começaram a criar efeitos visuais, como o estereoscópio, que produzia
profundidade de imagem artificial, e que se destacava na representação fotográfica
de composições abarrotadas de objetos como tesouros, galerias de arte e vistas
metropolitanas. Fazia sucesso numa época encantada com a flânerie.
Esse dispositivo era apenas um dos que alimentavam a tendência de
racionalizar o fenômeno da visão, combinando homem com máquina e instruindoo como fazer para ver uma ilusão do real. Essas técnicas precedem o Cinema mas
não são pré-cinema, segundo Crary.
Tanto o uso prático das técnicas quanto a produção de narrativas sobre os
dispositivos de ilusão compõem a pedagogia do olhar “moderno”. Daí, a frequente
pauta sobre a fotografia e o cinema, enquanto técnicas, nas revistas ilustradas. Em
O Tico-Tico, as edições 135 e 161, ambas de 1908, trouxeram experiências fáceis
de fazer que exploram o fenômeno da ilusão de movimento devida à persistência
da imagem nas retinas, fenômeno que fundamenta a técnica do Cinema
(VERGUEIRO, 2005). No número 533, de 1915, a seção “Brinquedos para dias de
chuva” apresenta um esquema para produzir “um estereoscópio fácil de fazer”. A
descrição didática da técnica fotográfica – falando de “tempo de exposição”, “prova
negativa” e “prova positiva” – foi assunto da coluna Lições de Vovô nos números
667 e 668 (1918).
58
Há também uma historieta exemplar dessa preocupação moderna. Na edição
344, de 8 de maio de 1912, conta-se a história da menina Nini, que tem uma
máquina fotográfica de caixa e, tentando fazer fotografias em casa, comete 3 erros
diferentes, produzindo “chapas” monstruosas. No final, um gato, só de fuçar na
máquina, consegue fazer uma fotografia muito melhor do que a menina. Funciona
como uma instrução de como bem preparar um “instantâneo” e, além disso, é um
comentário irônico sobre os hábitos civilizados.
O cultivo das técnicas do observador abre duas vertentes, segundo Crary: uma
trata de disciplinar a visão como um instrumento de produção (identificar nãoconformidades, distinguir classes de objetos, ler com rapidez e outras
competências) e de consumo (interessar-se por fotografias, assistir ao cinema,
acompanhar modas estilísticas, etc.); outra vertente trata de elevar a visão a uma
prerrogativa individual, uma expressão da subjetividade (aderindo às estéticas
romântica e modernista).
A leitura de imagens, portanto, passa a ser uma das pautas pedagógicas e uma
das qualificações pertinentes ao perfil de indivíduo moderno e civilizado. Os
artistas visuais (pintores, escultores, arquitetos e caricaturistas) têm, ao longo do
processo histórico, estabelecido renovados códigos de representação da realidade,
que Ernst Gombrich nos ensina ser um jogo de equivalências. Artistas visuais não
só traduzem impressões da realidade em configurações materiais que os objetos
artísticos consigam suportar; os artistas chegam a estabelecer como a realidade
deveria se parecer. O código de como representar a paisagem natural na pintura é
que construiu o conceito de que a natureza “correta” deve ser “pitoresca”
(GOMBRICH, 1986).
As revistas ilustradas investiram bastante em publicação de fotografias,
narrativas ilustradas (ou histórias em quadrinhos) e “quebra-cabeças” visuais. O
Tico-Tico lançou concursos para os leitores desde o primeiro número. Era uma
estratégia para fidelizar assinantes. Alguns eram jogos de linguagem, mas muitos
eram desafios de leitura de imagens. Os pedidos eram, às vezes, reconstituir
imagens que vinham cortadas em pedaços (ver Figura 8) ou completar partes vazias
de uma imagem completa.
59
Figura 8. Desafio aos leitores que participam de um concurso na edição 334 de O Tico-Tico (1912).
A tarefa é recortar as formas ao meio e reconstituir as silhuetas de quatro animais, juntando as
metades correspondentes. Isso exige a competência em leitura de caricaturas, ou seja, representações
simplificadas de seres do cotidiano – animais domésticos – apropriadas para reprodução na
imprensa. A propósito, a solução exige que o leitor identifique, misturados às metades e girados em
diferentes ângulos, um pássaro, um asno, um gato e um peixe.
O bom desempenho nos concursos exigia dos leitores um tipo de
“alfabetização visual”, capacitação para ler signos imagéticos usados na imprensa
e outros meios de comunicação com destreza e envolvimento subjetivo. O trabalho
de Rudolf Arnheim, produzido nos anos 1950, pesquisado e divulgado no Brasil
por Fayga Ostrower nos anos 1980, fundamentou a concepção de que, imersos
numa cultura visual, os indivíduos modernos precisavam aprender a ver e ler dados
visuais, o que exige domínio de códigos socialmente estabelecidos. Arnheim
categorizou os elementos da imagem com que o espectador precisa lidar: equilíbrio,
figura, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e
expressão. Donis Dondis, nos anos 1970, introduziu o conceito de “alfabetização
60
visual” e propôs um sistema pedagógico que permite a todas as pessoas a
compreensão de mensagens visuais (SARDELICH, 2006).
Os artistas da imprensa exploravam as possibilidades de representação visual
pela linguagem da caricatura, e faziam com que os leitores desenvolvessem a
capacidade de ler e interpretar imagens que, antes da era das revistas ilustradas,
podiam se tornar ininteligíveis, por falta do domínio do código. Um exemplo é o
teste que O Tico-Tico publicou no número 991, em 1924 (ver Figura 9). São duas
representações: um homem carregando um saco nas costas e um homem cavalgando
um burro de carga. A representação sob o ponto de vista de cima para baixo e
composta apenas por linhas torna difícil “ler” o que são as figuras. À primeira vista,
os desenhos são interpretados como rostos, uma tendência universal do ser humano.
Uma vez que o leitor tenha brincado uma ou duas vezes com esse tipo de figura,
torna-se apto a interpretar outras figuras representadas a traço, sob um ponto de
vista pouco usual; capacita-se mais um pouco na leitura de narrativas como as
histórias em quadrinhos, infográficos e anúncios.
Figura 9. Parecem “cabeças de velhos horríveis”, mas não são. Ilustração do nº 991 de O Tico-Tico
(1924), sem autor.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
61
Essa foi a “era de ouro” dos anúncios publicitários ilustrados com desenhos e
caricaturas, o que compôs a renda de muitos artistas empregados na imprensa. A
contrapartida é que os leitores se acostumavam tanto a ler quanto a se expressar
pelos códigos da caricatura, contribuindo com desenhos dos seus personagens mais
queridos. Alguns chegaram a ponto de se tornar profissionais da área, como Álvaro
Marins, conhecido como Seth (abordado no Capítulo 2, p.83), e como A. Perdigão.
O historiador da caricatura brasileira Herman Lima, na juventude, era um fã de O
Tico-Tico e alguns de seus desenhos foram aproveitados, com destaque para a capa
de Natal do número 481 (em 1914), em que desenhou Zé Macaco, um “Papai Noel
de nova espécie”, pulando o muro de uma casa, todo suado pelo calor de dezembro.
A difusão da “alfabetização visual”, o interesse por temas do cotidiano urbano
e moderno no consumo de narrativas, a pujança do setor editorial, a disponibilidade
de artistas e poetas do traço em trabalhar nos meios de comunicação, tudo isso fez
com que essa época, desde as últimas décadas do século XIX, fosse aquela onde o
gênero das tiras de histórias em quadrinhos se estabeleceu.
1.2. Tiras em quadrinhos, uma onda na virada de século
Buster Brown era o nome da série de historietas ilustradas que Richard F.
Outcault criou e que foi copiada pelos editores de O Tico-Tico, dando origem ao
personagem-símbolo da revista, o Chiquinho. O mérito de Outcault é ter se
destacado em meio a um movimento de artistas e empresários que estava criando,
na virada dos séculos XIX para XX, as bases de um gênero narrativo adequado à
mídia impressa a cores. Herdeiro dos desenhos satíricos, no ambiente da
competição capitalista americana, tornou-se um “sucesso popular e um
empreendimento lucrativo” (SANTOS, 2012, p.87). Hoje chamamos esse gênero
narrativo de tira em quadrinhos.
O processo foi impulsionado, de um lado, por um campo de artistas visuais
habilidosos, interessados nos assuntos do cotidiano e nas transformações da
modernidade e dispostos a explorar o potencial comercial da imprensa; de outro,
por empresários da imprensa que se batiam para conquistar mais mercado e explorar
o potencial publicitário do conteúdo ilustrado a cores. No meio comparecia o
público da imprensa, cada vez maior e mais diversificado, educado na leitura de
62
imagens e carente de representações visuais de si mesmos (GORDON, 1998;
SANTOS, 2012).
Richard F. Outcault circulou pelas duas grandes cadeias de jornais norteamericanos que estavam sendo construídas pelos concorrentes Pulitzer e Hearst. De
sua página ilustrada Hogan’s Alley extraiu o personagem do Yellow Kid, que se
tornou uma febre. Segundo Ian Gordon (1998), foi o primeiro personagem a
mobilizar os leitores, o que valorizava, ao mesmo tempo, os centímetros de
publicidade do jornal e o contrato do desenhista. Sabendo do potencial comercial
que sua arte tinha conquistado, Outcault tentou, pela primeira vez, registrar um
personagem de quadrinhos como se fosse uma patente. Não havia precedente na
proteção do direito autoral. Mas o jornal tomou posse do nome da tira e apenas
mandou outro artista assumir os desenhos quando Outcault demitiu-se e ingressou
no concorrente. Lá continuava a publicar seu personagem do mesmo jeito, apenas
dispensando o uso do título, que havia perdido.
Hearst “comprou o passe” de Outcault e montou um time de desenhistas de
tiras de sucesso. Em conjunto, as tiras formavam uma página completa a cores.
Hearst também vendia as tiras para jornais de outras praças, no modelo de
“syndication”. Os elementos básicos do gênero foram consolidados entre os que
provocavam melhor resposta do público: a) divisão do espaço em quadrinhos
sequenciais; b) disposição do texto em balões de discurso livre dos personagens; c)
criação de personagens protagonistas, que dão título à tira; d) repetição da estrutura
narrativa (iteração, segundo ECO, 2015, p. 148). Mais tarde, nos anos 1930, George
Gallup começa a empreender pesquisas sobre o hábito de leitura de jornais, e
divulga que a página de quadrinhos era uma das seções mais lidas dos diários e mais
ainda das edições dominicais. Tiras eram populares entre adultos, tanto de classe
média quanto operários. Os americanos estavam, já, quase plenamente
“alfabetizados” na leitura da combinação de “texto com figuras”, de modo que a
publicidade vem a seguir a tendência (GORDON, 1998).
O Buster Brown de Outcault, criado com observação das tendências de
sucesso, não seria o primeiro nem o último menino travesso das tiras em
quadrinhos. Porém, era o único representado como um pequeno lorde vitoriano e o
único com a humana ambiguidade de, após o castigo, refletir e prometer se
regenerar, apenas para que o leitor já antecipasse a armação de nova “pegadinha”
na semana seguinte. Segundo Gordon (1998), a “receita” permitiu que Buster
63
Brown fosse o único personagem de tiras a ser contratado para um leque mais amplo
de produtos de consumo, enquanto os concorrentes ficavam restritos a figurar em
brinquedos ou livros. Também foi explorado em shows de teatro e filmado numa
série de curtas-metragens. A marca de sapatos infantis Buster Brown ainda existe
em 2020.
1.3. O Tico-Tico, representante local de um modelo internacional
Os editores que criaram O Tico-Tico estavam cientes do sucesso das tiras em
quadrinhos norte-americanas como Buster Brown, mas suas matrizes eram também
dos semanários franceses. A princípio, associou-se a origem de O Tico-Tico
diretamente ao semanário La Semaine de Suzette (ROSA, 2002). Ambos tinham
surgido no ano de 1905. Segundo relato de Affonso Botari, editores contaram-lhe
que essa era a referência que deram ao empresário Luiz Bartolomeu para investir
no projeto de semanário infantil. Mas, anteriormente, a França já editava vários
semanários ilustrados com histórias em quadrinhos, e o material de Le Petit Journal
de la Jeunesse e de La Jeunesse Illustrée era mais copiado em O Tico-Tico do que
as histórias de La Semaine de Suzette. Para Athos Eichler Cardoso (2008), Le Petit
Journal de la Jeunesse (1904 – 1914) era a principal fonte de material copiado pelo
O Tico-Tico no seu início, por causa da qualidade de impressão e porque seu
formato (23 x 30,3 cm) “facilitava a leitura, a conservação em coleções
encadernadas, o armazenamento, o transporte, e inclusive a remessa pelo correio
para os assinantes” (CARDOSO, 2008, p. 13). La Jeunesse Illustrée (1903) e Les
Belles Images (1903) não seriam apropriados, segundo o autor, por terem formato
standard (26 x 37 cm); e La Semaine de Suzette não seria apropriado por ser dirigido
às meninas. Pesquisa empírica feita por Eichler Cardoso identifica contos e
ilustrações de Le Petit Journal de la Jeunesse copiados nos primeiros anos de O
Tico-Tico.
Quando se trata de historietas ilustradas, no entanto, é notável que La
Jeunesse Illustrée também forneceu material para O Tico-Tico. Esse semanário
criou e manteve por muito tempo um modelo de historieta padronizado. Podiam ser
12 quadrinhos em formato quadrado, numa grade de 4 linhas para 3 colunas, com
64
um bloco de texto do narrador sob cada quadro12. Os tamanhos de todos os
quadrinhos da página eram idênticos. Às vezes, a história ocupava duas páginas.
Via de regra, não usavam o recurso dos balões de fala.
O mesmo modelo pode ser observado em muitas edições de O Tico-Tico na
mesma época. Os caricaturistas da equipe “decalcavam” os desenhos franceses em
novos originais, enquanto faziam adaptações para o cenário local (por exemplo,
desenhar a farda do policial do Rio de Janeiro, ou o modelo de poste de luz da
Avenida Central). Por exemplo, as histórias “Turlututu chapeau pointu”, de
Valvérane, e “Negligence”, de Benjamin Rabier, publicadas em 25 de novembro de
1906 geraram “O chapéu de Paschoal” em O Tico-Tico número 201 (1909) e “Um
descuido” em O Tico-Tico número 258 (1909) (ver Figuras 10 e 11).
Figura 10. Capa do número 196 de La Jeunesse Illustrée (1906), com a historieta do autor
Valvérane comparada à publicada em O Tico-Tico número 201 (1909).
Fontes: Hemeroteca Digital da Bibliothèque Nacionale Française (Gallica) e Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
12
Encontra-se, também, como exceções experimentais, historietas com divisão em 16 quadrinhos
quadrados, 25 quadrinhos quadrados, 24 ou 15 quadrinhos retangulares e outras divisões que
mantêm a regularidade da “grade” que sustenta a diagramação. Por exemplo, uma história feita com
quatro quadrinhos verticais (quatro colunas) onde são representados quatro andares de um edifício,
obedecendo, assim, à grade de 16 (na edição de 13 de agosto de 1905). Fonte: Bibliothèque
Nacionale Française (site Gallica). Disponível em: <https://gallica.bnf.fr> . Acesso: 10 nov. 2020.
65
Figura 11. Última página do número 196 de La Jeunesse Illustrée (1906), com a historieta do autor
Benjamin Rabier comparada à publicada em O Tico-Tico número 258 (1909).
Fontes: Hemeroteca Digital da Bibliothèque Nacionale Française (Gallica) e Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
Diversos semanários franceses e as edições dominicais dos jornais norteamericanos forneceram matrizes para o projeto editorial de O Tico-Tico, conforme
se constata empiricamente, na comparação das publicações precedentes. A tradução
de historietas estrangeiras não foi, no entanto, o material principal, apesar de estar
presente em muitas capas de alguns períodos. Os artistas locais, desde o início,
exercitaram seus traços no material infantil. Ainda nas páginas de O Malho, o
caricaturista Angelo Agostini publicava histórias para crianças sobre erro e castigo.
Leônidas fazia o mesmo e J. Carlos também contribuía com uma história em
quadrinhos. Nos primeiros anos de O Tico-Tico, J. Carlos providenciaria a história
de um menino travesso, o Juquinha, para preencher a capa da revista, eclipsando o
importado Chiquinho, desde fevereiro de 1906 até o final de dezembro de 1907
(CARDOSO, 2009).
Outras publicações também surgiram a partir de projetos e matrizes
identificáveis em O Tico-Tico. Na Itália, em 1904, uma revista para crianças, Il
Novellino, publicou, a cores, o personagem Yellow Kid do norte-americano Richard
Outcault. Em 1906, em Florença, o escritor de sátiras e de ficção científica Vamba
lança o infantil Il Giornalino dela Domenica, elegendo a centralidade da imagem
66
como uma abordagem pedagógica mais moderna. E, em 1908, é lançado na Itália o
Corriere dei Piccoli, semanário ilustrado infantil que já nasce com projeto
pedagógico. Segundo o pesquisador da indústria cultural italiana Fausto Colombo
(1997), havia um projeto assumidamente educativo de responsabilidade de Paola
Lombroso, filha do afamado antropólogo criminal13. Preocupada com o nível de
analfabetismo nacional, avaliava que o povo tinha resistência ao ensino tradicional
e seria melhor atacar o problema na infância, que é mais flexível, e que se deveria
usar o divertimento como meio de atração.
Os criadores do corrierino se inspiravam em modelos ingleses e franceses,
principalmente Le Petit Journal de la Jeunesse. Assim como a proposta de O TicoTico, o projeto dos italianos também previa seções dedicadas a concursos e jogos,
seção de cartas, literatura ilustrada e histórias em quadrinhos coloridas. Publicariam
autores infantis estrangeiros e autores italianos que não escrevessem apenas para
crianças. Paola Lombroso não assumiu a direção do semanário mas redigiu as
respostas da seção de cartas. Ela rompe com o diretor da revista quando da Guerra
da Líbia, por ser pacifista e anticolonialista.
Para o autor, essa iniciativa fez nascer na Itália um modelo de mídia original,
a meio caminho entre o modelo norte-americano e o livro ilustrado, uma vez que os
italianos abandonavam os balões de fala em prol da legenda redigida na forma de
versos, sob cada quadrinho. Assim, defendiam-se da crítica de que a história em
quadrinhos era uma leitura preguiçosa. Seus versos eram quase uma paródia dos
versos clássicos, beiravam o kitsch. Os desenhistas escreviam também, o que fazia
o texto “conversar” perfeitamente com a imagem: “Em breve, a coerência entre
versos e desenhos atinge o nível de um código expressivo elaborado” (COLOMBO,
1997, p. 57, tradução minha). A criação de historietas ilustradas para crianças seria
um campo de experimentação e de apuro narrativo para os caricaturistas brasileiros,
tanto quanto os italianos. A adaptação de material estrangeiro fazia parte da
experimentação. Assim como Buster Brown foi adaptado para o Chiquinho
brasileiro, também era adaptado no Corriere dei Piccoli, conforme se vê na Figura
12, apenas refazendo o texto em versos, sem mudar as imagens de Outcault.
Cesare Lombroso (1835 – 1909), médico e psiquiatra italiano, adepto da filosofia positivista e
proponente de uma associação direta da delinquência com certa regressão atávica a estágios
primitivos da humanidade, criou uma doutrina penal que prescrevia pena de morte e prisão perpétua.
Paola Lombroso (1871 -1954) foi jornalista e pedagoga, tomando parte com a irmã Gina em
periódicos socialistas, sempre tratando de assuntos sobre a infância e a alfabetização.
13
67
Figura 12. Página 13 do número 2 de Corriere dei Piccoli (1909), Itália, em cuja versão Buster Brown
é Mimmo e o cão Tige é Medoro. No estilo italiano, a legenda traz dois versos rimados para cada
quadrinho. Fonte: facsímile publicado em GADUCCI, F. e STEFANELLI, M. Il Secolo del Corriere
dei Piccoli. Milão: Rizzoli, 2008.
No mesmo ano de 1908 estreia El Peneca, “semanário ilustrado para niños”
criado no Chile. Assim como O Tico-Tico, era iniciativa de um grupo editorial
importante, Editorial Zig Zag. Foi dirigida por Enrique Blanchard-Chessi, e saía
aos sábados sempre com 16 páginas14. Diferente da revista brasileira, começou
impressa apenas em preto com capa e uma página a duas cores, sem anúncios. Seu
projeto editorial era totalmente paradidático: poesias, contos, peças de teatro,
músicas e lições de história, línguas, desenho, ciências e trabalhos manuais, para
que o leitor se destacasse nos estudos. Conforme fazia O Tico-Tico, publicavam
também muitas fotografias de crianças na escola ou na família, com seus trajes
burgueses.
No primeiro número, além da apresentação editorial, publicam uma carta do
Presidente da República Pedro Montt e do Ministro de Instrucción Pública.
14
Conforme apresentação no site da Biblioteca Nacional Digital de Chile. Disponível em:
http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-printer-3397.html . Acessado em: 07 abril 2020.
68
Segundo a carta, o conhecimento prático, a higiene e a moralidade são as três
principais matérias que querem cultivar. Assim, dirigem-se aos pais: “As crianças!
Esse encanto da família, que faz as delícias do lugar, terão nosso carinho...” (EL
PENECA, 23/11/1908). No primeiro número a única história em quadrinhos é uma
sequência moralizadora sobre o hábito do fumo. Um menino é representado
fumando o cachimbo do pai, por imitação, e termina se contorcendo de amargor na
boca e dor no estômago. Uma nota do editor explica que aqueles desenhos são do
famoso artista espanhol Apeles Mestres, e que os pequenos leitores podem admirar
nessa e outras páginas que ainda trarão, a qualidade estética do trabalho, assim,
começando a formar “su gosto artístico”. No segundo número em diante aparecem
historietas ilustradas no modelo francês, com blocos de legendas sob 12 quadrinhos
de medidas padrão na mesma página. Na página 8 da edição 163 de El Peneca
(1902) é fácil identificar uma historieta copiada da francesa La Jeunesse Illustrée,
uma vez que a fórmula é aquela de 16 quadrinhos de igual tamanho e porque um
exemplar daquela revista aparece desenhado no quadrinho final15.
Assim como O Tico-Tico, El Peneca quase atravessou o século XX. Foi
publicada durante 52 anos por várias equipes, tendo Roxanne (Elvira de Rosas)
como condutora na década de 1940, auxiliada pelo caricaturista e ilustrador Coré
(Mario Silva Ossa) que começou a trabalhar lá em 1932.
Esse é o contexto em que Alfredo Storni desenvolve sua obra. Ele era um
entre muitos jovens que começavam a fazer da atividade artística um meio de vida,
estimulados pelo crescimento da indústria cultural, principalmente seus produtos
impressos, cada vez mais desejados pelo público e muito importantes para os
projetos políticos e culturais de modernização. Artistas de todo o mundo estavam
compartilhando modelos de expressão que mobilizavam o público e o mercado
consumidor. Não deixavam, no entanto, de explorar as possibilidades desse meio
de expressão localmente. A busca de consagração era um motor para não se
acomodarem, e a rotina da produção industrial era o mecanismo do estabelecimento
de processos de produtividade e qualidade. Estavam construindo um novo campo
artístico, cuja dinâmica seria responsável pela feição que tomariam suas obras. A
investigação do campo artístico da caricatura na Capital do Brasil, o Rio de Janeiro,
15
Conforme leitura de fac-símiles na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de Chile.
Disponível em http://www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/visor/BND:593414 . Acesso: 10 nov.
2020.
69
no início do século XX, quando Alfredo Storni fez parte dele, é o assunto do
capítulo seguinte.
2. O campo da caricatura
Num determinado momento, o artista ocupa uma posição no seu campo
profissional e tem diante de si o “espaço dos possíveis”, conforme a teoria de
Bourdieu (1996), ou seja, um número de opções finito e condicionado a partir da
trajetória que vinha fazendo. Os artistas do mesmo campo compartilham um código
de convenções que baliza tais opções. Não há relação automática entre a posição
ocupada e a “tomada de posição” que a sucede. Cabe ao artista escolher, dar um
lance no jogo, sacrificando alguma coisa para ganhar outra. Esses lances são novas
obras, e podem ser também manifestos, discursos, investidas, alianças e outras
medidas estratégicas. No início da carreira, o leque de opções é mais amplo. Na
medida em que “progride” e “envelhece”, excluem-se certas opções e o fechamento
do leque é irreversível. A trajetória dos artistas é singular, irreproduzível. Bourdieu
(1996) aconselha estudar tal trajetória a partir do princípio, e não do fim, como
fazem os analistas que acreditam que a obra já consolidada determina a carreira
retroativamente.
Assim, ganha significado um desenho publicado na revista ilustrada O Malho,
em 29 de dezembro de 1906, última edição do ano (ver Figura 13).
71
Figura 13. Ilustração na página 18 da revista O Malho n. 224 (1906).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Nesse momento, Alfredo Storni, com 25 anos, vivia no Rio Grande do Sul,
sua terra natal, e mandava colaborações para o semanário satírico da Capital
Federal, que o festejava como “correspondente gaúcho” da revista (na mesma
edição, quatro outras charges de Storni foram publicadas). Às vésperas do ano de
1907, Storni fazia planos de se mudar para o Rio de Janeiro, caso tivesse trabalho
suficiente para se sustentar como caricaturista. O “cartão de natal” feito na forma
de autocaricatura precisa ser interpretado como um apelo para que a direção da
revista “assuma a relação” e o contrate em definitivo. De fato, é possível que o
acerto já estivesse apalavrado, e o cartão ganha significado também de um
agradecimento antecipado à direção. Dentro da gramática combinatória da arte da
72
caricatura, Storni compôs uma ilustração com signos que denotam o que se afirmou
acima.
A figura humana que, em cima do galho de uma árvore, acena, foi
representada com os signos que evocam o personagem “gaúcho”: chapéu, lenço no
pescoço, bombachas e botas. Não é qualquer homem gaúcho, no entanto: na mão
esquerda ele leva um instrumento de desenho. O cartão é assinado “Felicitações do
correspondente Alfredo Storni, R. Grande do Sul”. Não há dúvida de que o homem
é o próprio artista. Interessante a modéstia com que ele se representou, de costas,
sem mostrar o rosto. Ao caricaturista não interessa aparecer caricaturado, em geral,
assim como o jornalista evita se transformar em notícia.
Há um motivo adicional para o homem estar de costas. O personagem de
costas estabelece um ponto de vista em que o leitor é levado a dar importância para
os signos que o personagem vê. O foco da composição passa a ser o horizonte,
deliberadamente observado pelo personagem, que se posicionou no alto da árvore.
No horizonte é fácil de ver o sol nascente, que é o ano de 1907, e o logotipo da
revista O Malho. Um pouco mais difícil de ver é que tem uma cidade grande no
horizonte, embaixo de O Malho. É apenas uma silhueta em preto, mas nota-se que
a cidade tem prédios altos e morros que evocam o Pão-de-açúcar e o Morro da Urca.
Dispensando uma legenda, a cidade é identificada como o Rio de Janeiro, sede da
revista. Cômica e infantilmente, o homem sobe no galho de árvore mais alto que
consegue, porque precisa enxergar muito longe no horizonte. Estando no Rio
Grande do Sul, precisa de um ponto de observação muito alto para enxergar a cidade
do Rio de Janeiro. Acrescente-se que ele observa o recorte do litoral brasileiro, e
não o interior do país, confirmando a interpretação.
Com sutileza, manobrando apenas os signos do desenho caricato, Storni está
afirmando que seus desejos para 1907 são a cidade do Rio de Janeiro e a redação
de O Malho. Todos estão no seu horizonte, ao fim de 1906. O homem acena para a
revista, como quem agradece os bons momentos passados e quer ser lembrado no
futuro. De fato, Storni vinha publicando um número cada vez maior de desenhos na
revista, e o ano de 1907 é aquele em que é contratado e muda-se para o Rio. Sob
contrato, um ano depois, ele começa a desenhar também em O Tico-Tico, da mesma
empresa, e cria o Zé Macaco.
O cartão de felicitações de Storni a O Malho evoca a estrutura do campo da
caricatura. Nesse desenho, ele se coloca como jovem profissional, aspirante a uma
73
posição melhor no campo, no qual já tem investido um bocado. O jovem da periferia
nacional só não tem certeza se investiu o suficiente: somente o convite dos editores
da revista da Capital poderia confirmar isso. Assim, convém expressar modéstia!
Bourdieu teria gostado de ver essa ilustração como se fosse um instantâneo
das lutas e tomadas de posição descritas na sua teoria dos campos artístico e literário
(BOURDIEU, 1996). O jovem Storni estava desenvolvendo sua obra dentro do
também jovem campo da caricatura brasileira, conforme fazia opções em relação
às oportunidades que se apresentavam. Desenvolvia sua obra em forma e em
conteúdo, tanto em técnica de desenho quanto na escolha de alvos e na técnica
narrativa.
Bourdieu, com a teoria do campo, faz uma composição entre teorias que
privilegiam o fator imponderável da criatividade humana e teorias que formulam
estruturas determinantes dessa produção. Ele rejeita o determinismo por fatores
externos ou abstratos; afirma que são os agentes que produzem as transformações
no campo, relacionando-se entre si. No entanto, seriam mitos a independência total
do artista e o gênio original, o criador “não-criado” por coisa alguma. Todo membro
de um campo está sujeito à estrutura do campo e produz sua obra conforme vai se
movimentando nessa estrutura que, inclusive, se modifica historicamente como
resultado de suas lutas e tensões. Voltando ao caso de Storni, sua obra, construída
semana após semana, na imprensa ilustrada, não estava determinada desde o início,
não era um plano original e nem emanava diretamente da individualidade do autor.
Apenas em análise retrospectiva podemos criar uma narrativa que enxerga,
desde o início, o fim da trajetória. Bourdieu recomenda que o pesquisador faça o
caminho inverso, e acompanhe a trajetória do artista a partir do início, anotando as
sucessivas tomadas de posição e compreendendo as sucessivas encruzilhadas
implicadas. No início, Storni tinha tido experiências com a imprensa satírica em seu
Estado. Teve desenho publicado pela primeira vez no semanário ilustrado O Bisturi,
em 1889 (8 anos de idade), e criou uma revista própria em 1904 (23 anos), O
Gafanhoto (LIMA, 1963). Porém, se ele almejava posições de maior prestígio e
melhor recompensa, precisava trabalhar na Capital Federal. Essa era a estrutura do
campo da caricatura em sua época. Ele entendia a “regra do jogo”, pactuava com
ela, sabia que essas eram as condições. Suas opções passam a ser trabalhar para um
dos diversos periódicos com sede no Rio de Janeiro. Precisa optar por alguns deles,
e produzir arte que aqueles editores considerem valiosa. A partir daí, não pode
74
desenhar livremente; o que ele desenha passa a ser condicionado pelos critérios do
editor que deseja conquistar.
No caso de O Malho, Storni descobre um caminho para ultrapassar a barreira.
Oferece uma caricatura de Pinheiro Machado, político gaúcho que era um dos mais
fortes da República, na época. Ele foi representado à galope, no cavalo, enquanto
laçava uma figura alegórica da “opinião pública” (ver Figura 17, p.108). Foi a
primeira colaboração aprovada e publicada no número 190 (1906). Supostamente,
o fato de ser um caricaturista político vivendo no Rio Grande do Sul interessava ao
editor de O Malho como uma dose de tempero regional à receita da revista. Assim,
Storni, tendo dado seu lance, ganha essa aposta e assume uma posição nova no
campo: ele é o “colaborador de O Malho no Rio Grande do Sul”. Sua obra, a partir
desse lance, toma novo rumo. Algumas opções são perdidas; outras surgem. Storni
volta a oferecer charges de políticos gaúchos, pois são aquelas que O Malho aprova.
Também manda e consegue publicar desenhos sobre o tipo gaúcho. Eventualmente
publica uma charge crítica aos hábitos políticos republicanos. O que ele não pode
fazer, nessa posição, é, por exemplo, desenhar historietas infantis, nem piadas sobre
a elite. Ele precisa continuar a fornecer charges com caricaturas bem-feitas de
políticos do regime. É esse tipo de obra que encontra aprovação.
O que Storni produz, nesse momento da carreira, precisa ser “mais do
mesmo”. Ele não tem capital suficiente para recusar essa posição e tentar outro
lance. O importante é que, por reforço, sua arte vai se desenvolvendo no sentido de
torná-lo um expoente na área da charge política, e somente nela. Aí está, no
exemplo do nosso objeto, como a obra é produzida pelo artista, mas se condiciona
pela estrutura do campo.
Algumas tarefas são necessárias antes de formular conclusões sobre a arte de
Alfredo Storni. Antes de mapear sua trajetória, é preciso mapear o próprio campo
onde ele se movimentou. Por sua vez, o campo dos caricaturistas precisa ser descrito
a partir do entendimento do campo literário da mesma época, com o qual se
relacionava. Os pesquisadores e cronistas auxiliam na enumeração dos principais
caricaturistas na época de Storni. O estudo das carreiras deles ajuda a delinear o
mapa do campo. Um quadro analítico dos principais caricaturistas ajuda a encontrar
as relações de colaboração artística e de competição por postos de trabalho com
Storni. E os relatos que os próprios caricaturistas faziam sobre si e sobre os colegas
também forneceram dados para mapear o campo.
75
2.1. “Encantadora, a festa da arte”: o Rio de Janeiro no início do séc.
XX
Luiz Edmundo (1878 – 1961), jornalista e escritor, reúne, para um sarau em
sua residência, “um pequeno grupo seleto de senhoras e senhoritas, poetas, literatos,
caricaturistas, pintores, musicistas, escultores, etc” e a revista O Malho faz a
reportagem, no tom de coluna social (O MALHO, nº213, 13/10/1906). Durante o
encontro, em homenagem a um “fidalgo escultor” chamado Corrêa Lima, poetas
recitam, músicos tocam e desenhistas da imprensa “de fusain em punho, traçam à
la diable magníficas caricaturas”, entre uma rodada e outra de chopp ou groselha.
O curioso salão era decorado com caricaturas (ver Figura 14) que, depois, foram
oferecidas aos convidados.
Figura 14. Fotografia na página 18 do nº 213 de O Malho (1906).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
O escritor Viriato Corrêa estava presente, ao lado de vários artistas do traço:
Raul Pederneiras, Calixto, J. Carlos, Amaro Amaral, Leônidas e Thoreau, todos
artistas de O Malho. Alfredo Storni não poderia estar. Ele ainda vivia no Rio Grande
do Sul. Raul, a alma da festa, além de caricaturar, também contava piadas e fazia
imitações de atores e acadêmicos.
76
No início do século XX, o grupo dos caricaturistas era muito próximo dos
literatos e cronistas. Personalidades como Luiz Edmundo e Bastos Tigre
fortaleciam os elos entre todos os artistas que difundiam suas produções pela
Imprensa. Os campos literário e da caricatura tinham semelhanças, com a diferença
principal sendo o tipo de relação que tinham com aquele meio de comunicação.
Os literatos partiram de uma posição em que, em geral, não podiam “viver de
arte” e publicavam na imprensa sem remuneração, mas tinham liberdade criativa,
com prestígio por seu valor artístico, para uma virada de século (XIX para XX) em
que eram lidos por muito mais pessoas e eram remunerados na medida em que
assumiam posições mais comerciais e mais alinhadas com o gosto burguês no
mercado editorial e de espetáculos. Ainda assim, mantinham o prestígio artístico
por meio da institucionalização do campo, com a fundação da Academia Brasileira
de Letras (1897). Por sua vez, os caricaturistas, desde o início, eram remunerados
pelo mercado editorial, e tinham sua arte desenvolvida e condicionada por ele.
Podiam “viver da arte”, ainda que perseguissem empregos mais estáveis. Eram
famosos e eram convidados a encantadoras festas de alta classe. No entanto, nunca
angariaram o mesmo respeito que os literatos tiveram. Continuaram fora das
instituições distribuidoras de prestígio artístico, sob “suspeição social”, taxados de
artistas menores, não por falta de técnica (Raul Pederneiras era professor na Escola
de Belas Artes), mas por se dedicarem ao humorismo (AZEVEDO, 2019;
BALABAN, 2003; EL FAR; SALIBA, 2002; SICILIANO, 2014).
Luiz Edmundo, em seu livro O Rio de Janeiro do meu tempo, detalhada
crônica sobre o início do século XX, publicado em 1938, descreveu a cena cultural
e os costumes da época, reforçando-a com anedotas sobre as principais
personalidades da Capital Federal. Dedica vários capítulos a duas cenas: a dos
jornais diários e a dos cafés e confeitarias, onde palestravam poetas, jornalistas,
estudantes de nível superior, políticos e, também, caricaturistas. Alfredo Storni é
mencionado por Luiz Edmundo como um dos caricaturistas que frequentavam o
Café Paris, no Largo da Carioca: “[...] Gil, Vasco Lima, Lobão, Arnaldo Gonçalves,
Cândido, Albert Thoreau, J. Arthur e Storni” (EDMUNDO, 1987, p. 220). O Café
Paris não era o mais bem recomendado deles. Luiz Edmundo esclarece desde o
início que, entre os cafés, essa casa tinha uma instalação “chué”, acanhada, com os
assentos poídos, e que atendia principalmente à “freguesia barata de mingau e de
médias, de poucas xícaras de café e muitos copos d’água” (ibidem).
77
Diferentemente, os caricaturistas da turma de Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro,
irmãos Crispim e Amaro Amaral e outros se encontrava no Café Papagaio, na Rua
Gonçalves Dias, no mesmo quarteirão do café mais “chic”, que era o Café do Rio.
Um trecho nos ajuda a imaginar a relação do círculo social boêmio com a atividade
dos caricaturistas:
É dessa roda que nascem: O Mercúrio, o Tagarela, o Avança e O Malho, este último
ainda hoje cheio de vida e de saúde. Vezes emendam-se duas ou três mesas, à tarde,
ou à noite, para horas e horas de cavaco. No Papagaio é que se forjicam, entre dois
dedos de palestra, um café e um maço de cigarros (como se fuma nesse tempo!), as
legendas que no dia seguinte hão de completar os bonecos que surgem nos jornais e
nas revistas de melhor nome (idem, p. 206).
Por sua vez, os poetas de maior fama, como Olavo Bilac, Emílio de Menezes
e Guimarães Passos se reuniam na Confeitaria Colombo, na mesma Rua Gonçalves
Dias. Os jovens poetas Bastos Tigre e Martins Fontes, entre outros, eram aceitos no
círculo. Julião Machado, influente e respeitado caricaturista português, um pouco
mais velho do que os desenhistas já citados, circulava nesse meio. Ou seja, o rank
dos cafés do centro do Rio de Janeiro estabelecia uma hierarquia entre os grupos de
artistas locais. Ou, como observou Bourdieu (1996) na obra de Flaubert, o espaço
estruturado e hierarquizado é usado para evocar as posições e os deslocamentos
sociais.
Em crônicas que relembravam a cena cultural do início do século XX, Bastos
Tigre, notabilizado por emprestar sua habilidade poética para a nascente indústria
dos “reclames”, é capaz de retratar como se estruturava o campo literário. O próprio
autor representa uma das típicas posições na hierarquia. Mandado pela família a
estudar engenharia no Rio de Janeiro, foi introduzido por Emílio de Menezes na
roda da Colombo, e desenvolveu lá seu talento para as letras. Também para Bastos
Tigre, o meio cultural era um pequeno território pontilhado de cafés e confeitarias
na Rua do Ouvidor e um trecho da Rua Gonçalves Dias: “Daí em diante, começava
o sertão” (TIGRE, 2003, p. 55). Os artistas se acomodavam por lá, à tarde, e, entre
um aperitivo e outro, se dividiam entre a política e a boêmia. Pensavam, debatiam,
projetavam novas revistas de arte, jornais “de combate”, novos livros... mas
raramente os realizavam. A criatividade literária era fruída apenas pelos que os
ouviam à mesa, e se manifestava preferencialmente em “intermináveis palestras
salpicadas de ditos de espírito, de sátiras e trocadilhos, perfídias com os mandões
78
da época, notabilidades efêmeras de quem, já hoje, ninguém recorda o nome”
(idem).
O mais notável do gênero era Emílio de Menezes, filho de família abastada
do Paraná, mandado para o Rio de Janeiro com fortuna, perdida rapidamente em
jogadas na Bolsa de Valores. Um amigo jornalista o introduziu nas rodas literárias,
onde conquistou espaço tanto pelos versos quanto pela personalidade. Logo suas
tiradas (ou boutades) eram repetidas, por graça, nos cafés, livrarias e barbearias.
Até mesmo piadas lidas nas revistas estrangeiras acabavam sendo atribuídas a
Emílio. Esse tipo de humor exigia conhecimento extenso de mais de um idioma.
Era aprendido nas revistas francesas da época, repletas de jogos de palavras,
disparates, oxímoros, calembures16 e trocadilhos. Não podia nunca deixar passar a
oportunidade da piada. Não eram frases lançadas exatamente para magoar, mas para
atacar a ignorância, num tipo de frívola cruzada civilizatória. Olavo Bilac também
apreciava esse jogo, assim como o caricaturista Raul Pederneiras, capaz de produzir
surpreendentes legendas para suas charges.
Políticos, burocratas e empresários costumavam frequentar a Colombo para
“gozar a palestra faiscante de Bilac e a verve cáustica de Emílio”. Eram “turistas da
República das Letras: a visitavam e, como de justiça, pagavam as despesas”
(TIGRE, 2003, p. 69). Os literatos emprestavam graça e cosmopolitismo à elite da
capital. Os artistas, no entanto, nunca tinham dinheiro. Emílio de Menezes era um
adepto da prática da “dentada”, na qual se emprega um discurso envolvente para
pedir dinheiro emprestado aos conhecidos, a perder de vista. É que, apesar da fama,
os escritores não eram pagos para publicar em jornais e revistas. Contentavam-se
com a divulgação de seu nome. As companhias editoras, no máximo, os pagavam
com alguns exemplares dos livros ou uma única parcela de direitos autorais para
todo o sempre. Olavo Bilac, entre os escritores, era um dos que obtinha mais renda
do seu trabalho, além de ter um emprego estável como inspetor escolar. O livreiro
Francisco Alves encomendava-lhe livros didáticos, que vendiam mais do que a
literatura. Ainda assim, o poeta lamentava que lia-se pouco no país, e só pelos
jornais podia difundir um pouco mais sua arte. Ele tentou organizar uma sociedade
para defender os interesses os escritores, mas não foi para frente. Com a criação da
16
Oxímoro é figura de linguagem em que se justapõem palavras contraditórias, criando paradoxos;
calembure, do francês calembour, é um outro nome para trocadilho, muito usado pelos artistas
citados. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
79
empresa O Malho, dirigida por Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (1864 – 1932),
inaugurou-se uma prática mais responsável, com o pagamento dos colaboradores,
tanto desenhistas quanto escritores (Olavo Bilac, Guimarães Passos e Emílio de
Menezes inclusive) (TIGRE, 2003, p. 132 – 133).
Essas crônicas e análises auxiliam a desenvolver uma noção do que foi o
campo literário da Capital do Brasil, no início do século XX. Bourdieu (1996)
teoriza que um campo literário, bem como qualquer tipo de campo da sociedade,
tem todas as características de um campo de luta política ou econômica: “relações
de força, capital, estratégias, interesses”. São, porém, manifestadas nas formas
próprias ao campo. Fundamentalmente, num campo, os participantes disputam
posições numa estrutura hierarquizada, pois ocupá-las é receber prêmios e, sob
condições, aumentar seu capital. O estabelecimento da natureza dos prêmios e das
condições do aumento de capital está sempre em disputa, uma vez que os novos
integrantes têm interesse em mudar e desenvolver as regras do jogo, enquanto os
mais velhos e bem estabelecidos hierarquicamente lutam para não mudá-las e,
principalmente, para controlar o acesso ao campo.
Bourdieu (1996) também afirma que o campo literário é um campo dominado,
ou seja, seus movimentos ainda são muito dependentes da ordem dos campos
político e econômico. Assim, os integrantes com capital político e financeiro lutam,
em condições privilegiadas, com os integrantes mais radicais e sem renda, pelos
princípios regentes do campo. Na prática, o campo literário viveu a disputa entre os
que faziam “arte burguesa”, agradável à elite e fácil de ser remunerada, e os
partidários da “arte pela arte”, com valores autônomos, sem lugar no mercado, mas
capazes de propiciar saltos na hierarquia, pelo alto valor artístico de uma obra
eventual, dado por princípios de legitimação do próprio campo (o reconhecimento
dos pares). Na prática, passar fome, viver de expedientes ou de empregos paralelos
é uma estratégia de “desinteresse” que troca o valor econômico pelo valor
“carismático”. Consiste em permanecer como vanguarda, sem renda suficiente, o
tempo necessário para ter acesso a “lucros” em capital simbólico, convertível,
posteriormente, em capital financeiro.
Para André Nunes de Azevedo (2019), cada membro daquele campo literário
sofria o dilema dessa luta dentro de si, como se existissem dois “martelos”
constantemente batendo em cada lado de suas cabeças: de um lado, pressão para
agradar à ordem política e econômica da jovem República, usufruindo da
80
legitimação (via instituição da ABL), da boa fama (via Imprensa) e de alguma
renda; de outro lado, pressão existencial para que sua obra fosse uma contribuição
à arte, com idealismo e autonomia.
Os que se inclinaram para o primeiro lado partiram de uma posição em que
viviam um desregramento boêmio e chegaram a outra, de formalismo
“academicista” e imitador de franceses que emprestava glamour à alta sociedade.
Por sua vez, esta os suportava com empregos na burocracia estatal ou nos grandes
periódicos, e os mimava com encontros chics em salões privados ou na Academia
(AZEVEDO, 2019).
As posições se hierarquizavam desde baixo, com os estudantes aspirantes a
poeta, sustentados pela família, passando pelos escritores que tinham empregos na
burocracia ou no magistério, até os que tinham empregos na Imprensa e os que
gozavam de prestígio e grande público, capazes de receber uma boa renda por suas
obras. As estratégias eram fundamentalmente de duas naturezas: escrever o que não
desafiava a ordem social e agradava à burguesia que o sustentava, ou escrever obras
que seriam valorizadas pelos pares, apesar de não “terem mercado” em seu tempo.
Cada um adentrava o campo já com “trunfos” e “handicaps” relacionados com sua
origem familiar, racial e social (MICELI, 1977). A cada tomada de posição, o artista
precisava optar entre duas alternativas inconciliáveis, herdadas de um passado de
disputas. São justamente essas decisões que vão, com o tempo, modelando a obra
que o artista lega à posteridade (BOURDIEU, 1996).
2.2. Na oficina e nO Malho, o habitus do caricaturista
O campo da caricatura do início do século XX no Rio de Janeiro, sendo um
campo artístico, tinha semelhanças com o campo literário descrito acima. Mais do
que isso, eram campos entrelaçados, com membros dos dois campos dividindo os
espaços de convivência – como os cafés e teatros – e sendo colegas de trabalho
eventuais na Imprensa. Isso acontecia quando os escritores se dedicavam a textos
de humor e sátira. Além disso, não era incomum um caricaturista tentar a sorte como
autor teatral de comédias ligeiras. E, se considerarmos os livros ilustrados para
crianças como literatura (o que, aos olhos de hoje, é muito justo), vários dos
caricaturistas de O Tico-Tico foram autores muito atuantes no mercado editorial. É
possível pesquisar como os caricaturistas, responsáveis, muitas vezes, pelos textos
81
das legendas de suas charges e histórias, compartilhavam matrizes artísticas com
seus colegas, escritores que colaboravam na Imprensa.
Um entusiasta da colaboração entre humoristas das penas e dos lápis, o poeta
e redator de “reclames” Bastos Tigre, citado acima, começou em 1917 a editar o
semanário satírico D. Quixote, convocando boa parte dos caricaturistas da época,
tais como Julião Machado, Raul Pederneiras, K.Lixto, Helios Seelinger, Romano,
Yantok e o nosso Alfredo Storni, para colaborarem ao lado de Emílio de Menezes,
Humberto de Campos e o próprio Bastos Tigre, que assinava ali como Dom
Xiquote. A edição de 25 de dezembro de 1918, inclusive, foi dedicada aos
caricaturistas. Bastos Tigre compôs poemas cômicos saudando cada um dos
caricaturistas amigos, na seção “Os Pinta-monos”, e convidou os maiores deles a
redigirem suas “autocalungografias”, que eram textos biográficos de tom jocoso
combinados com autocaricaturas.
Essa edição natalina de D. Quixote é rica em dados sobre o campo da
caricatura nessa época e foi referenciada em mais de uma pesquisa. No entanto,
revela, sobre a vida dos caricaturistas, mais pelo que eles evitam dizer do que pelo
que dizem. Carreando piadas e trocadilhos sobre suas trajetórias, “desde a infância”
brincando de desenhar e fazendo graça, eles mais escondem do que exibem, com
um tipo de modéstia que pode ser interpretada como estilo de época mas também
como uma estratégia de sobrevivência no campo.
Como exemplo da distância entre a posição do artista no campo e a posição
que o artista admite ocupar, o aclamado Julião Machado (citado acima como
frequentador da Confeitaria Colombo), em seu texto publicado, mal consegue ver
importância em sua trajetória e diz que só escreveu alguns parágrafos porque é uma
pessoa obediente e nunca negaria uma ordem do editor. J.Carlos, já considerado um
expoente do desenho em nível internacional na época, escreve naquela edição que,
“a contragosto” revelaria seu início. Conta que, jovenzinho, bateu à porta da
“Glória” para mostrar seus desenhos, mas a “senhora” o mandou esperar sentado
no primeiro degrau da escada. Para nossa surpresa, conclui que vinte anos depois,
ele ainda continuava lá sentado. Por sua vez, Yantok publica um texto
absolutamente anárquico e fantasioso no lugar de contar como é sua rotina de
trabalho. Infelizmente, Alfredo Storni não tem um texto autobiográfico nessa
edição. Nem mesmo ganha um poeminha cômico como os outros.
82
Enquanto o estudo do campo literário pode se debruçar sobre volumoso
material escrito por e sobre os escritores desse período, o campo dos caricaturistas
não oferece tantas biografias, autobiografias, homenagens, críticas e diários. No
entanto, é o material publicado na imprensa da época que forneceu dados para a
descrição do campo da caricatura neste trabalho. No trabalho de interpretação, é
preciso levar em conta que essas informações biográficas são produto do próprio
campo artístico e são atravessadas pelas estratégias do momento, em meio às mal
iluminadas lutas do campo, tanto internas (por posições) quanto externas (em defesa
da legitimidade do campo como um todo).
Sobre o método de abordagem desses dados biográficos, o sociólogo Sérgio
Miceli (1977), quando estudou a geração de escritores brasileiros do início do
século XX que precederam a ruptura modernista, fundamentou-se na teoria de
Bourdieu. Selecionou, para estudo, apenas aqueles literatos dos quais havia
biografias e memórias. Apesar de isso parecer uma decisão discriminatória,
segundo ele, se justifica, porque as biografias são parte do “aparelho de
consagração” social, apontando aqueles autores que tiveram maior evidência. As
memórias são recurso dos autores menores, que não foram consagrados com
biografias e tiveram que “fazer o serviço” por si mesmos. Por sua vez, os grandes
autores só tecem memórias de infância, as quais têm maior potencial estético, para
compor sua obra. No estudo de Miceli contribuíram mais memórias do que
biografias. Faz sentido, pois, segundo ele,
convém salientar que esses dois tipos de fontes fornecem informações diferentes. Se
a celebração biográfica é uma maneira de reconstituir vidas exemplares num registro
apologético, dissimulando-se os mecanismos reais que regem as trajetórias sociais
e intelectuais, os memorialistas, por sua vez, não escondem o jogo de que participam,
pois sua própria situação lhes faz enxergar melhor os móveis da luta de cujas
gratificações mais importantes se veem excluídos (MICELI, 1977, p. 17).
No caso do campo dos caricaturistas, as biografias são livros relativamente
recentes, exceto o grande compêndio de Herman Lima, contemporâneo deles, e o
do cartunista Álvarus, contemporâneo de alguns. Várias entrevistas e relatos
pessoais estão espalhados pelas publicações em que os artistas trabalharam.
Infelizmente, não tendo autobiografias, diários conhecidos, nem entrevistas
transcritas por inteiro, as informações sobre Alfredo Storni são dados de segunda
mão. Para começar a descrição do que era o campo da caricatura em que a obra de
83
Storni se desenvolveu, foi escolhido um ponto de partida heterodoxo: as memórias
do cartunista Álvaro Marins, mais conhecido como Seth.
Álvaro Marins, dez anos mais jovem do que Alfredo Storni, foi um
caricaturista bem-sucedido, no sentido de ter vivido sempre de seu trabalho como
artista. Desenhou muito para publicidade e se aventurou em desenhos animados.
Assim como Storni, nasceu fora do Rio de Janeiro e migrou para ter condições de
realizar seus planos. A julgar pelos fatos narrados, era próximo a Storni, o qual
conheceu quando trabalhou na redação de O Malho. Aos 56 anos de idade, publicou
suas memórias no Suplemento de Ciências, Artes e Letras da Gazeta de Notícias,
ao longo de 1947 (disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional).
Chamou-as de Viagem de um artista em torno de si mesmo. Um detalhado resumo
dessas memórias pode ser lido na tese de doutorado em História de Lúcio Picanço
Muruci (PUC-Rio), defendida em 2006.
O relato de Álvaro Marins é todo centrado nos movimentos da carreira e suas
mutações artísticas, o que ilumina o “campo dos possíveis” para que o pesquisador,
hoje, possa investigar a trajetória de qualquer dos caricaturistas daquela época.
Além disso, descreve a rotina do seu ofício, o que nos ajuda a flagrar o mecanismo
do habitus,17 conforme a teoria de Bourdieu (1996), configurando a estrutura do
campo. Esses dados são confirmados pelo estudo das biografias e relatos de artistas
que conviveram com ele.
Nasceu em Macaé, interior do Estado do Rio de Janeiro, em 1891, tendo se
mudado para Campos, uma cidade maior, aos 14 anos. Ainda vivendo no interior
de fortes características rurais, Marins conseguiu publicar uma colaboração em O
Malho, em 1906, com o pseudônimo de Junqueira. Não era bom que a família
soubesse que ele pretendia trabalhar como artista. Aos 17, com verba da família,
vai para o Rio de Janeiro. Seu plano, naquele momento, era se empregar na Capital
como farmacêutico – o que agradava à família – e, nas horas vagas, tentar entrar no
ramo da caricatura. Ele escreve que era tímido mas, para alcançar seus objetivos,
comportava-se com determinação e arrojo, falando pessoalmente com homens “de
alta importância” na política e nas artes. Seus sábados eram usados para ser
17
Conceito fundamental na teoria de Bourdieu, leva em conta que grupos sociais, ao longo do tempo,
na repetição de suas atividades, reproduzem a estrutura que os organiza. Habitus seria um “sistema
de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas” em
que se encaixam suas rotinas, modos de fazer, modos de pensar e expectativas (BOURDIEU, 2015
b, p.201-202).
84
introduzido nos “meios artísticos da imprensa carioca”. Visitou Julião Machado,
tendo um desenho seu corrigido, e muitos outros.
O Rio era, segundo Marins, “a terra da promissão” de seus sonhos, onde se
sentia “dentro de um mundo de maravilha”, onde chamavam atenção os novos
edifícios, o asfalto liso, os automóveis e os bondes elétricos. A Capital não só
concentrava as pessoas que interessava conhecer, mas também proporcionava
relações com a materialidade moderna.
Sendo 10 anos mais jovem do que a geração de Storni, Álvaro Marins vinha
sendo leitor das revistas nas quais iria trabalhar, aprendendo desde cedo os critérios
e padrões editoriais dos semanários de humor. Educava-se nas “convenções” que,
segundo Howard S. Becker (1977), são fundamento da “ação coletiva” que
caracteriza a produção de arte. Nas memórias, ele exalta O Malho como responsável
por estabelecer de vez o gosto do público pela caricatura. Ele conta de duas grandes
fases: a primeira, fundadora, com Crispim do Amaral, Raul e K.Lixto, além de
Angelo Agostini; a segunda, que lançou e firmou muitos nomes, foi a de J. Ramos
Lobão (suas elaboradas capas marcaram época), Leônidas (desenhava com muita
personalidade), J. Carlos (o príncipe dos caricaturistas), Storni (especializado em
charge política), Vasco Lima, Aryosto Duncan, Luís Loureiro, Augusto Rocha e
outros. Admirava aqueles que, além de desenhar, escreviam.
Inicialmente, adotou o pseudônimo de Guido e, com ele, deve ter recebido o
primeiro pagamento como desenhista, em O Tico-Tico. Só largou o emprego numa
farmácia de Copacabana quando foi contratado pelo O Malho, mas era para ajudar
na oficina litográfica: 200 mil réis por mês, copiando ilustrações de jornais
franceses no papel pelure (especial para litografia). Faziam um time de litógrafos
Guido, Yantok e Vasco Lima. Segundo ele, era trabalho “de artífice”, mas todos os
artistas da casa “eram obrigados a fazê-lo”, em se tratando do colorido de suas
próprias ilustrações para O Tico-Tico. Essa foi a “primeira etapa” de suas
“aspirações de artista”. A mesma função introduzira o artista Loureiro naquela
empresa.
O relato conta que até os mais ilustres trabalhavam sem luxo. No terceiro
andar do prédio, numa pequena sala, aglomeravam-se J. Ramos Lobão, Storni,
Leônidas, Aryosto e Loureiro. O espaço, mais uma vez, estruturava a hierarquia.
Os três mais novos ficavam na oficina abaixo, mas podiam fazer os próprios
desenhos eventualmente. Durante o trabalho, trocavam piadas e filosofias. Certa
85
hora, todos se reuniam na sala de cima, para conversar. Saboreavam e estudavam
as revistas de humor que acabavam de chegar da Europa, cujos ilustradores se
estabeleciam como matrizes para o trabalho dos brasileiros. Havia os mais piadistas
e havia os muito quietos, como J. Ramos Lobão, com o rosto colado ao papel,
concentrado em seus desenhos e aquarelas meticulosos. Aryosto Duncan,
simpático, sempre dizia que o lugar de Guido na empresa era entre os caricaturistas.
Aí se expressa o habitus do caricaturista de início do século, aprendido na repetição
das tarefas em grupo, quando o novo reproduz o que faz o velho.
Marins, o Guido, confirma o que é relatado por Loureiro e outras fontes: na
revista O Malho, a charge política tinha lado: o lado do patrão. Na campanha
eleitoral para a Presidência da República em 1909, notória por ter oposto os
candidatos Rui Barbosa e General Hermes da Fonseca, O Malho só descia em Rui
Barbosa, acusado de inflamar o povo irresponsavelmente. Isso aconteceu porque a
empresa tinha como sócio o Senador Antônio Azeredo (jornalista e político matogrossense), e este, passando procuração ao diretor Luiz Bartolomeu de Sousa e
Silva, mandava apoiar a candidatura Hermes. Para os caricaturistas, receber os
bilhetes de Bartolomeu com as charges já escritas era como “aviar receita” na
farmácia. Álvaro Marins lembra que seu pessoal em Macaé não o perdoava por isso.
Muitas vezes, as ideias de charges pedidas pelo patrão não faziam sentido, eram
impossíveis de desenhar, e os caricaturistas se perguntavam se isso acontecia
também nas revistas europeias.
Queriam liberdade artística. Assim, o jovem Marins partiu para uma aventura
com seu colega da oficina litográfica Vasco Lima: fazer o próprio semanário de
humor, chamado O Gato. Não foi a única vez em que um caricaturista “traiu” o
patrão com uma publicação concorrente, conforme se vê várias vezes nos relatos
deles. O Gato foi feito às escondidas. Começou com o título de Álbum de
Caricaturas de Seth e Hugo Leal (1911).
Nesse ponto do relato, observamos o que Bourdieu quer dizer quando adverte
que o campo artístico é um campo bastante dependente, e decisões “heterônomas”
dos campos econômico e político implicam na conformação dos artistas. Suas obras
são forçadas a responder aos movimentos externos ao campo artístico ou
colaborando ou se rebelando. A decisão é tomada com a consciência da posição que
cada artista ocupa no campo. É mais provável que um artista jovem opte por se
rebelar, o que é um investimento pequeno para ele, do que um artista estabelecido,
86
que tem mais a perder. Alfredo Storni fez as charges contra Rui Barbosa que foram
mandadas e evitou sair da empresa. Marins ficou lá até sua “traição” ser descoberta.
Vasco Lima, no entanto, saiu logo.
Vasco Lima (ou Hugo Leal), de origem portuguesa, tinha “tino comercial”.
Conseguia crédito e apoio para publicar. Além disso, dominava todas as técnicas
do setor editorial. Chamou o jornalista, político e fundador da ABL Alcindo
Guanabara para ser redator final de O Gato. A revista foi um sucesso “de crítica”.
Conforme as memórias, vendeu para a elite intelectual, tinha leitores fiéis, mas não
ficou popular. O Gato atacava o eleito Hermes da Fonseca e o homem-forte
Pinheiro Machado. Ridicularizava a ordem burguesa. Propagava o ideário
socialista. Álvaro Marins abandonou o pseudônimo Guido, mudou seu estilo de
desenho e adotou o pseudônimo Seth, com o qual ficou mais conhecido. A escolha
do nome seguiu as matrizes francesas, pois já havia outros desenhistas com nomes
curtos tirados da Bíblia, como Cham e Sem.
O esforço individual para realizar o semanário era extremo e não
recompensou os artistas que faziam quase tudo sozinhos. Em suas memórias, Seth
avalia essa fase da caricatura como romântica e juvenil, muitas vezes feroz e
excessiva, mas justificada pelo calor das disputas políticas. Retrospectivamente,
expressando-se aos 56 anos, lamenta a “incontinência da linguagem jornalística” e
se diz a favor da liberdade, mas com responsabilidade. Quando publica as
memórias, o país havia saído há dois anos do regime fechado do Estado Novo. Além
disso, Seth desenvolveu a maior parte da sua carreira longe da arte radical. Após o
fim de O Gato, ele e Hugo Leal se empregam no jornal A Noite. Seth começou a
trabalhar como ilustrador. No ano de 1913 participa de várias publicações de
colegas, como A Caricatura, de Renato de Castro (redator de O Tico-Tico) e
Figuras e Figurões, de Amaro Amaral. Desenhou também para a revista Fon-Fon.
Casou-se quando foi efetivado no jornal A Noite e acabou trabalhando lá até se
aposentar. Seth diz que gostava do ambiente da redação e tem lembranças boas do
patrão Irineu Marinho.
Conformados ou rebeldes, todos os caricaturistas sofriam com o fechamento
do regime. Em 1910 o Presidente Hermes da Fonseca decreta estado de sítio. Amaro
Amaral é preso; J. Carlos foge para São Paulo; Seth pega dinheiro emprestado com
Leônidas e Aryosto e foge para Macaé. Yantok publica da edição 433 de O Malho
uma autocaricatura que demonstra, jocosamente, sua estratégia: durante o estado de
87
sítio, o caricaturista se comporta como se fosse um santo! Yantok distribui pelo
desenho signos que nos informam de quão quieto ele pretende ficar, e toda a cena
evoca as ilustrações que os monges copistas da Idade Média costumavam fazer dos
santos escritores. No desenho, Yantok possui também uma auréola! Anos depois,
na presidência de Artur Bernardes, em 1924, baixa-se estado de sítio novamente.
Seth havia feito charges contra o presidente na revista D. Quixote, e a repressão
empastelou o atelier que o caricaturista já mantinha, na época, para seus serviços
publicitários. Avisado antes, Seth se refugiou na casa de Storni, em Niterói,
segundo relato de sua filha ao pesquisador Muruci (2006). Os caricaturistas, como
membros de um campo artístico, competiam entre si pelas posições mais
valorizadas ao mesmo tempo em que colaboravam pelo bem coletivo, sendo
bastante solidários com os colegas em diversas ocasiões.
Seth descobre como se posicionar no campo para ter estabilidade. Mantém
um emprego na imprensa diária, colabora com outras publicações, tanto políticas
quando infantis, e adentra o mercado publicitário. Tentou lançar uma revista infantil
própria, João Pestana (1923), com um personagem sonhador, desenvolvido por ele
na D. Quixote, mas não foi para frente. Foi preciso montar sucessivos ateliers no
Centro do Rio de Janeiro até que o terceiro deles “pegou”. Era uma época em que
não havia competição com as empresas de publicidade americanas e os
caricaturistas frequentemente ganhavam uma renda extra ilustrando anúncios. J.
Carlos e K.Lixto fizeram muitos anúncios e até Alfredo Storni teve sua cota18. Nas
memórias, Seth diz que sempre tentou fazer ateliers “com o propósito de trabalhar
com independência”. A sede ficava na Av. Central, chegou a ter dez colaboradoresalunos trabalhando “num ritmo contínuo, dentro de uma atividade disciplinada”.
Durante os anos 1930 ficaram famosas suas ilustrações cômicas para os anúncios
do varejo Casas Mathias. Falar que eram dele os anúncios das Casas Mathias era
um cartão de visitas.
Seth estabeleceu para si uma estratégia que o colocava numa posição
confortável no campo. Não era uma posição alta, mas era o suficiente para satisfazer
as aspirações do rapaz que lia O Malho em Macaé. Fazia trabalhos conformados,
voltados para o mercado, enquanto desenvolvia sua técnica com independência.
Além de trocar de pseudônimos, Álvaro Marins trocava de estilo artístico. No
18
Segundo Herman Lima, destacaram-se Gil, K.Lixto, Julião Machado, J.Carlos, Luiz Peixoto,
Correia Dias e Seth. (LIMA, 1966, p. 700)
88
tempo de O Gato, sua matriz era o norueguês Olaf Gulbransson, lido na revista
alemã Simplicissimus. Mais tarde se encantou com as gravuras de Gustave Doré e
desenvolveu um estilo cheio de hachuras a bico de pena, totalmente diverso do
primeiro. Seth avalia a si mesmo como um artista que sempre estudou muito,
propenso à minúcia na reprodução da realidade e à dedicação para corrigir defeitos.
Era um autodidata, não tinha formação em Belas-Artes. Nas memórias, Seth
não quer se posicionar nem como “rico”, só por ser proprietário de um atelier, nem
como “comunista”, “pelo simples fato de distribuir percentagens sobre o lucro do
nosso trabalho” (GAZETA, 24/08/1947). Investiu na autoria de livros
paradidáticos, compondo uma “Coleção Seth”, criada no “Atelier Seth” e
distribuída pela Sociedade Anônima O Malho. Tinha títulos como Meu Brasil,
Nosso Mundo, Primeiras letras, Primeiros traços, Primeiras regras de desenho e
Figuras Geométricas. O Atelier Seth também lançou o álbum de História O Brasil
pela imagem: quadros expressivos da formação e do progresso da pátria brasileira
desenhados a bico de pena. Esses livros circularam nas décadas de 1940 e 1950.
Em 1936 Seth publicou, com o próprio dinheiro, um álbum chamado Exposição,
em que publicou sua obra-prima Flagrantes Cariocas. Esse livro é aquele tipo de
obra feita para se autolegitimar, na falta de outras comendas de prestígio dadas pelas
instituições artísticas ou políticas. Na apresentação, Seth inclina-se na defesa de
suas decisões no campo, sob o princípio consagrado da “arte pela arte”:
O PÚBLICO, que é parte integrante das preocupações do artista, dará seu parecer
sobre este trabalho. Fruto espontâneo de minha vocação, não tendo sido
encomendado por interesses alheios ao meu gosto, executei-o com sinceridade, sem
me preocupar com novas fórmulas estéticas ou preconceitos em voga. Educado sob
a influência da mentalidade sadia que, em arte e literatura, fez a inexcedível grandeza
cultural do século passado, entreguei à livre expansão de minhas tendências a escolha
do caminho a seguir.” (MARINS, Álvaro (SETH) apud MURUCI, 2006).
Seth clama a aprovação do público, porque lhe falta a aprovação acadêmica,
e exalta o caráter autônomo do seu estilo. O orgulho de ser um autodidata, aliado à
exaltação das matrizes artísticas do século anterior, leva a interpretar que Seth era
um artista formado a partir do habitus19 de classe da pequena burguesia, conforme
análises que Bourdieu (2013) fez para gerar sua sociologia do “gosto” ou
Embora Bourdieu use o termo “habitus de classe” no título do capítulo 4 do livro A economia das
trocas simbólicas (2015), o conceito abordado aqui pode ser entendido também como ethos, um
padrão de comportamento interiorizado e inconsciente como se fosse uma natureza. Optei por
manter o termo habitus tanto para os grupos sociais profissionais quanto para os grupos de classe.
19
89
“julgamento”. Para o autor, o pequeno-burguês é ansioso por inclusão na burguesia
e, por isso, tem atitude de “boa vontade” e reverência às obras de arte da cultura
“legítima”. Encara sua “propensão” a buscar progresso como um valor moral que
compensa a falta de capital, na luta por ascensão à burguesia; insistir na trajetória
de ascensão é um traço que o define. Para tal, sacrifica-se com ascetismo e
economia de recursos.
O autodidatismo é a saída para compensar a falta de graus acadêmicos que
são padrão na burguesia. Bourdieu disserta que, para o pequeno-burguês, de
maneira tragicômica, o acúmulo de conhecimento e cultura “legítima” é levado a
sério demais: “o autodidata ignora o direito de ignorar atribuído pelos brevês do
saber” (BOURDIEU, 2013, p. 308), ou seja, não é o acúmulo de conhecimento que
dá o grau superior; o grau superior é ganho “por nascimento” na classe superior,
conferindo uma familiaridade com a cultura e a arte que prescindem de
conhecimentos aprendidos “na escola”.
O pequeno-burguês – continua – é sempre candidato a se introduzir nas
“novas profissões” de seu tempo. Elas não cobram diplomas para entrada, e não têm
limites para a remuneração, mas também não têm garantias de sucesso. São
atraentes porque oferecem uma ilusão de que o sucesso chegará a quem tiver a
devida “vocação”.
É precisamente o caso da carreira de caricaturista, ilustrador e comunicador
na emergente indústria cultural do início do século XX. Entre os membros do campo
da caricatura, havia os pequeno-burgueses e havia os filhos da burguesia, como se
verá adiante. Alfredo Storni, até onde se sabe, assim como Álvaro Marins, estudado
acima, tinham o habitus da pequena-burguesia.
Em comparação com a trajetória de Álvaro Marins, explicitada em suas
memórias, é possível percorrer a carreira de outros caricaturistas e anotar suas
principais tomadas de posição e estratégias artísticas. Conforme foi abordado na
introdução, interessa aqui estudar o campo circunscrito ao entorno de Alfredo
Storni (no espaço e no tempo). Assim, das dezenas de artistas envolvidos na história
da caricatura brasileira, foram estudados aqueles contemporâneos de Storni, que
geraram um quadro analítico, e, desse quadro, foram selecionados poucos que são
mais pertinentes a esta pesquisa.
Durante a pesquisa, foram coletados dados biográficos dos principais
caricaturistas do período, atuantes no Rio de Janeiro, segundo os cronistas e
90
pesquisadores Max Fleiuss (1916), Herman Lima (1963), Maringoni (2006), Elias
Thomé Saliba (2002), Joaquim da Fonseca (1999), Pedro Correia do Lago (1999),
Laura Nery (2000, 2005), Antonio Edmilson Martins Rodrigues (2002), Julieta
Sobral (2004), Isabel Lustosa (2006), Giovanna Dealtry (2009), Marissa Gorberg
(2019).
A primeira lista de caricaturistas foi composta por Angelo Agostini (1843 –
1910), Crispim do Amaral (1858 – 1911), Julião Machado (1863 – 1930), Raul
Pederneiras (1874 – 1953), Amaro Amaral (1875 – 1922), K. Lixto (1877 – 1957),
Alfredo Storni (1881 – 1966), Max Yantok (1879 – 1964), Leônidas Freire (1882 –
1943), Vasco Lima (1883 – 1973), J. Carlos (1884 – 1950), Rian (1886 – 1981),
Romano (1888 – 1953), Loureiro (1889 - 1981), Aryosto (1890 – 1960), Seth (1891
– 1949), Oswaldo Navarro (1893 – 1965) e Belmonte (1896 – 1947). A partir desse
levantamento de dados, foram selecionados:
a) Raul Pederneiras – pela evidência que ganhou entre seus pares, pela
longevidade da carreira, por ter publicado em O Malho, assim com Storni,
e por ter tido vários empregos.
b) Max Yantok – por ser um artista oriundo de fora do Rio de Janeiro, por
ter quase a mesma idade de Storni, por ter publicado em O Malho e em O
Tico-Tico, assim como Storni, e por ser um dos mais lembrados pelas
historietas infantis (Kaximbown e seu criado Pipoca).
c) Leônidas Freire – por ser um artista oriundo de fora do Rio de Janeiro,
por ter publicado em O Malho e em O Tico-Tico, assim como Storni, e
por ser um dos que mais explorava as questões da civilidade.
d) J. Carlos – pela evidência entre seus pares, pela longevidade da carreira,
por ter publicado em O Malho, assim como Storni, e por ter feito
historietas infantis em O Tico-Tico, assim como Storni.
e) Rian – como contraponto, por ter tido uma carreira inusual, não só por ser
mulher, mas por pertencer à alta burguesia.
f) Loureiro – por ter publicado em O Malho e em O Tico-Tico, assim como
Storni, tendo desenhado a fase mais lembrada de Chiquinho, personagemsímbolo da revista ilustrada infantil.
Raul Pederneiras (1874 – 1953), nascido no Rio de Janeiro, pertencia à
burguesia. Movimentava-se com desenvoltura na sociedade, como se deduz da
91
crônica sobre a boêmia artística da Rua Gonçalves Dias e dos saraus de Luiz
Edmundo. A casa dos pais ficava na Praia do Flamengo. Max Fleiuss, em sua
história da caricatura brasileira, o coloca na geração dos que consolidaram a arte e
nota que seus “primeiros desenhos, já primorosos” teve “a ventura de apreciar em
1893, quando redigi com Valentim Magalhães A Semana, mostrando-mos o ilustre
cunhado do genial artista, meu dileto amigo, Dr. Rodrigo Octavio (FLEIUSS,
1916)”. Rodrigo Octavio, advogado, foi fundador da Academia Brasileira de Letras
e casou-se com Maria Rita Pederneiras, irmã do caricaturista. Raul seguiu o
caminho respeitável de um filho da burguesia, tendo se formado em Direito,
assumido funções sociais e políticas, como fundador da SBAT – Sociedade
Brasileira de Autores Teatrais e presidente da ABI – Associação Brasileira de
Imprensa (1916 -1917), e tendo tido empregos regulares como delegado de polícia
(durante um ano) e professor do ensino superior (tanto em Direito quanto em Belas
Artes).
Tendo como irmãos um poeta (Mário Pederneiras) e um jornalista que
escrevia revistas teatrais (Oscar Pederneiras), Raul começava sua trajetória já na
posição social de quem se embrenha nas artes com familiaridade. Foi matriculado
na Academia Imperial de Belas Artes aos dez anos pelo pai. Em sua biografia não
há referência a dificuldades em se empregar. Seus desenhos sempre foram
considerados excelentes; popularizavam-se rapidamente. Desde 1901 era
caricaturista no “popularíssimo” Jornal do Brasil, que também publicava a Revista
da Semana, na qual Raul também brilhava. Esteve na revista Fon-Fon! desde o
início (1907, com o pseudônimo OIS), uma vez que foi fundada por seu irmão
Mário, entre outros. Também esteve em O Malho desde o início (1902), fazendo,
inclusive, a ilustração de capa no segundo número (LIMA, 1963). Para os editores,
é mais interessante apostar em novos talentos que já trazem o habitus do artista
formado desde casa.
Assim como outros artistas desses tempos, Raul transitava entre a escrita e o
desenho, entre a performance e a publicação, entre a boêmia e as instituições. Não
criou, no entanto, obras dramáticas. Optou por criar sempre no registro humorístico,
e seus assuntos foram a crônica dos costumes cariocas, sem fechar os olhos às
classes populares, mas tratando tudo com a leveza espirituosa dos trocadilhos e
calembures de suas legendas. Marcou um estilo que nunca mais mudou. Nos
últimos trabalhos para a Revista da Semana ainda desenhava o “pitoresco” captado
92
no cotidiano da Capital. Também nunca mudou seu visual, que o tornava quase um
personagem caricato da vida real: silhueta alta e magra, chapéu de aba larga e
bigodões a la Kaiser, mesmo quando a moda havia passado há anos. Sua posição
social permitia que ele jogasse a carta da excentricidade inofensiva, capaz de fazerse sempre lembrado no campo, mas nunca ameaçando outros, nem fazendo
inimigos. Cultivava também a posição de controlar o acesso ao campo. Em
17/07/1918, no número 828 de O Malho, abre-se espaço para Raul comemorar vinte
anos de carreira e ele lembra:
Um orgulho tenho comigo, lá isso tenho. Antes de mim, os hebdomadários tinham
seus garatujistas exclusivos; raro se abria porta a um outro. Cheguei à liça e não só
abri a porta aos novos, como ajudei gostosamente e lancei – lancei é o termo – os
caricaturistas nacionais.
Aqui devemos lembrar do semanário O Tagarela (1902 – 1904), um tipo de
laboratório em que sempre desenhava Raul, acompanhado por K.Lixto, Falstaff e
outros. Lá, J. Carlos publicou seus primeiros trabalhos, já impressionantes. Augusto
Rocha, que trabalhou muito em historietas ilustradas em O Tico-Tico, também foi
introduzido lá e tornou-se “diretor artístico” dos últimos números. “Diretor
artístico” era o nome que se dava ao caricaturista principal, responsável pelas seções
fixas de charges e, muitas vezes, pela capa. J. Carlos levava essa função mais a
fundo do que outros, interferindo no que hoje se chama de “projeto gráfico” da
revista (SOBRAL, 2004). Fez isso na Careta, na Para Todos e em O Tico-Tico.
Modernizava o desenho do título da revista e criava as vinhetas que caracterizavam
o estilo da publicação. Alfredo Storni teve sua fase como diretor artístico de O
Malho e outra fase como diretor artístico de Careta, conforme se verá adiante.
É importante voltar ao assunto do controle do campo: o cartunista que era o
diretor artístico tinha o poder de selecionar os colaboradores da revista, distribuindo
trabalho, o que cria elos de gratidão, e fazendo a balança pender para o estilo de
trabalho que ele professa, no sentido de legitimar e valorizar sua própria aposta
estilística no campo.
Max Yantok (1879 – 1964) não se tornou diretor artístico de publicação
alguma. Mesmo assim, é um dos caricaturistas que deixou uma marca mais
duradoura, principalmente entre os que apreciam histórias em quadrinhos. De estilo
descrito como “extravagante”, “nonsense” e “fantástico”, capaz de causar
estranheza ao olhar mais ortodoxo (LIMA, 1963; GOMES, 2015), trabalhou tanto
93
em charges políticas quanto no conteúdo para crianças, sendo autor de uma série de
livros infantis baseados nas aventuras de seus personagens criados para O TicoTico: o velho aventureiro Kaximbown, seu criado Pipoca e outros companheiros.
As matrizes culturais de suas narrativas em quadrinhos rendem uma pesquisa por
si, e representam a matriz “rabelaisiana”20 do humor: muita promiscuidade de
alturas com profundidades, de hedonismos com violências, de máquinas com seres
orgânicos e de patrões com empregados.
Muitas vezes ele é lembrado como um visionário de ambientes futuristas que
evocam a ficção científica, as utopias e os romances satíricos. Seus desenhos de
loucas engrenagens e mecanismos intrincados remetem às ilustrações de George
Roux para as primeiras edições dos livros de Júlio Verne (ARAGÃO, 2012, p. 72).
Sua autobiografia é uma peça de fantasia onde é difícil separar fatos de
gracejos. Porém, assume-se que seu nome era Nicolau Cesarino. Nasceu no Rio
Grande do Sul, filho de um imigrante italiano, João Cesarino, e de uma mulher
guarani. Seu pai voltou com dois filhos pequenos para a Itália, onde Yantok criouse e estudou, ao mesmo tempo, engenharia, violino e Belas Artes, em Nápoles.
Relata que, enquanto estudante, foi amigo do famoso tenor Enrico Caruso. Obteve
diplomas de agrimensor e de contador. A partir daí conta altas andanças pelos meios
jornalísticos e literários de França e Itália, já ganhando algum dinheiro com seus
desenhos humorísticos. Voltou ao Brasil por duas vezes, decidindo tentar a vida no
Rio de Janeiro em 1908. Foi aceito em O Malho e manteve-se com trabalhos em
firma de arquitetura e tocando o violino. Os serviços de contabilidade, ele manteve
até a velhice. Participou, com seus colegas de oficina litográfica, Seth e Vasco
Lima, de uma revista satírica, A pátria portuguesa. Quando o trio se dispersou,
Yantok entrou para o jornal diário O Imparcial. Desenhou também para a D.
Quixote, de Bastos Tigre, onde marcou a memória dos cronistas com suas piadas
do mundo dos micróbios (LIMA, 1963).
Não tendo o apoio de capital financeiro e social de familiares na cidade,
Yantok manteve-se com seus serviços técnicos, não-artísticos, e com a constância
de suas relações com editores. Publicou em O Tico-Tico durante décadas. A análise
de sua estratégia no campo da caricatura leva a pensar que assumiu o papel ou o
partido de ser “o estrangeiro”.
20
Conforme teoria de Bakhtin desenvolvida em A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987), à qual se retorna no capítulo 3 da tese.
94
Yantok, ainda que tenha nascido no Brasil, é mais um numa longa série
histórica de caricaturistas que chegam do exterior e marcam sua passagem na
imprensa brasileira, desde o italiano Angelo Agostini, pioneiro em tantos aspectos,
passando pelo angolano Julião Machado, os portugueses Vasco Lima e J. Ramos
Lobão, o paraguaio Andrés Guevara (1904 – 1963) até o italiano Lan (1925 - 2020)
entre outros.
Georg Simmel, numa de suas análises sobre “tipos sociais”, auxilia na
caracterização daquele “papel”. Quando Simmel descreve “o estrangeiro”, não está
falando do imigrante, considerado ameaçador, nem do mero visitante, mas daquele
que sintetiza dois conceitos opostos: o de desligamento a qualquer terra e o de
pertencimento a um local. Sua marca é a mobilidade e, com ela, a liberdade (quando
houver motivo, pode ir embora). O estranho cria uma relação específica com a
comunidade local. Contribui em atividades em que pode haver um excedente de
trabalhadores; não ameaça os empregos locais. Não é considerado um proprietário,
nem de terras, nem de qualquer outro capital que seja análogo. Como não está ligado
por raiz a nenhum dos grupos e partidos constituintes da comunidade, confronta-os
com um distanciamento objetivo que agrada, em vez de incomodar. O estrangeiro
provê o que nenhum agente local pode prover (SIMMEL, 1971, p. 143 – 149).
Assim, Yantok nunca foi o diretor artístico de periódicos, que seria
equivalente a “possuir terra” na comunidade. Fazia um estilo “extravagante”,
conforme Herman Lima, capaz de lidar com os assuntos da política pelas vias da
fantasia, o que potencializava sua popularização. Numa charge de primeira página
em O Imparcial (28/04/1915), personificou o “azarado” período Hermes da
Fonseca com a figura monstruosa e patética da “urucubaca”, e essa palavra entrou
para o vocabulário popular desde então. Fazer-se de bufão, a julgar pela maneira
nonsense com que se apresentou na sua “autobonecografia” na edição de Natal de
D.Quixote (1915) era uma estratégia para ser deixado em paz com sua liberdade de
expressão.
Liberdade de expressão foi o que buscou na Capital o caricaturista Leônidas
Freire (1882 – 1943). Cearense, saiu da “serra” para a grande cidade de Fortaleza,
onde poderia desenvolver seu talento para o desenho de humor. Fazia charges dos
políticos da oligarquia local com técnica de xilografia. Segundo Herman Lima, em
menos de um ano, Leônidas teve que fugir para o Rio de janeiro, devido à violência
da polícia. Obteve espaço no semanário O Malho, o que o levou a trabalhar,
95
também, em O Tico-Tico, desde o início. Leônidas criou personagens na curta série
“Manduca, Louro e Perro”, desenhou muitas páginas de historietas de moralidade
encenadas por animais, mas marcou sua passagem pela revista infantil com a série
em quadrinhos “História do Brasil em Figuras” (LIMA, 1963). Em charges e
historietas, esse desenhista é um dos mais sensíveis ao tema da civilidade em meio
aos avanços modernos, assim como Alfredo Storni. Seu humor apontava
preferencialmente contra as “máscaras da civilização”, a relação ambígua dos
homens com as novidades técnicas, entre máquinas e dispositivos: símbolos de
progresso, as máquinas são usadas de tal maneira que acabam revelando o que
temos de bárbaro e de ridículo. Charges recorrentes desse tema são as que
denunciam a ameaça dos atropelamentos por automóveis e bondes elétricos.
O desenho de Leônidas é notável pela originalidade, uma crueza que parece
remeter a suas origens na xilografia. Autodidata, passou a vida estudando para abrir
novas frentes. Empenhou-se em aprender inglês e passou uma temporada na
Inglaterra, na época da Primeira Guerra Mundial, chegando a publicar na imprensa
de humor inglesa. Mandava suas crônicas ilustradas da guerra para o diário A Noite.
Voltou ao Brasil em 1922, colaborou na D. Quixote. A partir de 1930 abandonou
as caricaturas e ilustrações, passando a trabalhar como redator anônimo (fazendo
traduções do inglês e atualizando biografias) nos diários A Noite e Correio da
Manhã. Em vista de seus movimentos no campo da caricatura, parece que Leônidas,
assim como foi visto na história de Álvaro Marins, tinha o habitus de classe
pequeno-burguês, confiante de que seu esforço autodidata era capaz de fazê-lo
avançar. Sem capital suficiente, no entanto, não lançou revistas próprias, nem
personagens famosos, nem fundou ateliers; restringiu-se ao emprego repetitivo e
seguro das redações.
A estratégia de J. Carlos (1884 – 1950) pode ser resumida no princípio de não
se restringir por nada. Considerado por Herman Lima (1963) um dos três membros
do triunvirato da caricatura brasileira, junto a Raul e K.Lixto, J. Carlos não chegou
a isso com timidez, mas sim com movimentação constante para se valorizar no
campo. Publicou tanto no Rio quanto em S. Paulo; experimentou, assim como
outros colegas, a autoria teatral; ilustrou inúmeras publicações de diferentes setores
do mercado editorial; precursor do design gráfico brasileiro, foi diretor artístico de
diversas revistas e colaborou ao mesmo tempo em publicações concorrentes. Ficou
mais conhecido por suas charmosas figuras de “melindrosas” e “janotas” em
96
revistas de variedades, mas produziu muito material para crianças, sendo um dos
pioneiros das histórias em quadrinhos infantis brasileiras, com os personagens
Juquinha, Carrapicho, Jujuba e outros. Para poder multiplicar-se, por vezes assinou
com pseudônimos diferentes na mesma revista.
João Carlos de Brito e Cunha nasceu no bairro de Botafogo, estudou no
tradicional colégio São Bento e, após casado, construiu sua casa no bairro da Gávea,
orgulhosamente, apenas com o trabalho de seu lápis, segundo ele. Em entrevista a
O Jornal, transcrita na tese de Nathalia Chebab de Sá Cavalcante (2003), J. Carlos
conta que não se considerava artista precoce, e estava conformado a estudar
“preparatórios” para a carreira de Direito que sua família teria determinado para
ele. Frustrado com reprovações – a família conta, para a pesquisadora, que ele não
era muito de ler – tentou publicar seus desenhos. Mandou para a revista O Tagarela
(citada acima), de Peres Júnior (Teles de Meireles), onde estava Raul Pederneiras,
que o recebeu numa visita à redação. O primeiro cartum de J. Carlos (em que o Tio
Sam conversa com o Presidente Campos Salles) foi publicado ali, em 1902, quando
ele tinha 18 anos. Na primeira edição de 1904 ele já era capaz de produzir a
ilustração de capa. Nesse ano, destacou-se em algumas páginas inteiras onde
compôs graficamente painéis sobre a vida de um casal burguês em estilo muito
avançado, explorando tipologia estilo art nouveau e escrevendo todo o texto a bico
de pena, numa imitação de tipografia (técnica muito usada pelo mestre Raul)
(NEOTTI, 1984; CAVALCANTE, 2003).
Com esse início auspicioso, abandonou os planos do bacharelado e investiu
na carreira artística. Desenhou na revista Avenida, onde estava Crispim do Amaral,
e depois foi convidado para O Malho, pelo diretor Luíz Bartolomeu. Entrou também
na revista Fon-Fon!. Nos tempos de O Malho, J. Carlos já fazia historietas em
quadrinhos com tema de molecagens infantis. Foi automaticamente convocado para
a nova revista da mesma editora, O Tico-Tico, em que fez, desde o início, historietas
sobre peraltices. Em 1906 e 1907 ele é o responsável pelas histórias que vão na capa
de O Tico-Tico, o que é uma nova posição de prestígio. Desenvolve ali um
personagem próprio, menino burguês que só faz peraltices, o Juquinha. Suas
maiores maldades envolviam um jovem criado da casa chamado Giby. A partir de
1908, J. Carlos sai da empresa O Malho e entra na revista Careta, de Jorge Schmidt,
para ser o diretor artístico, importante troca de posição dentro do campo, com
elevação de status.
97
Não fica parado nas charges políticas de Careta, no entanto. Trabalha muito
na Fon-Fon!, ilustra anúncios e procura inventar personagens para suas histórias
em quadrinhos cômicas. Em 1909, na revista Careta, cria, um após o outro, bonecos
do tipo “homem trapalhão”, mas não lhes dá sequência. Brocoió (a partir de 1911),
deve ter feito mais sucesso e progrediu, com seu cão vira-latas, o Paudágua
(DOURADO, 2018).
Procurando explorar comercialmente suas criações, entre 1912 e 1913, junto
a Renato de Castro, o redator de O Tico-Tico, lança o semanário infantil O
Juquinha, com aquele menino travesso inventado na fase inicial de O Tico-Tico.
Era uma “operação secreta”. Ninguém assinava os desenhos e textos, para não
melindrar os patrões possessivos. Até mesmo os personagens Chiquinho, Lili e
Jagunço, símbolos de O Tico-Tico, apareceram em O Juquinha, sem pagamento de
compensações à Sociedade Anônima O Malho (número 9, em 1913). O curioso é
que a própria redação de O Tico-Tico se utilizava dos personagens americanos
Buster Brown, Mary Jane e Tige sem qualquer cerimônia, aclimatando-os ao Brasil
com seus próprios desenhistas-copistas, nas oficinas de O Malho (CAGNIN, 2005).
A publicação não teve o sucesso esperado e J. Carlos partiu para outros projetos.
O público infantil, para o qual criava livros e historietas ilustradas, esteve
entre eles, durante muito tempo. Mesmo com contrato de exclusividade para
Careta, J. Carlos desenhou, sob o pseudônimo Nicolao, uma série em O Tico-Tico:
Carrapicho e seu filho Jujuba. Mais tarde ele volta a ser contratado de O Malho e
leva os mesmos personagens para a primeira página de O Tico-Tico. Também faz
as capas da outra revista da empresa, Para Todos, onde desenvolve suas figuras de
“melindrosas”. J. Carlos não ficou de fora de nenhuma grande revista ilustrada do
seu período. Volta à direção artística de Careta em 1930, no fim de uma “dança”
profissional com Alfredo Storni, que será tratada adiante (ver p.121). Nos anos 1930
ainda abriu um atelier de ilustração publicitária, escreveu a comédia É do outro
mundo! e desenhou cenários para o cinemusical Alô! Alô! Carnaval (1936, Cinédia)
(CAVALCANTE, 2003).
J. Carlos, apesar de ter feito muitas charges políticas, investia mais o seu
talento no entretenimento leve e na satisfação do público burguês, sedento de
acompanhar as modas e aderente às novidades, como o cinema. Era o grande
parceiro do mercado de publicações, sempre disposto a pegar mais uma capa para
fazer. Não era um erudito, mas estudava tudo que se fazia em matéria de revistas
98
no mundo. Muito elogiado, também, por estudar os processos gráficos e manejá-los
para valorizar seu trabalho, sendo um pioneiro e renovador do design gráfico
brasileiro. Teve vantagens, no início da carreira, por ser da burguesia local, mas foi
sua capacidade artística de entregar, com rapidez e alto padrão, ilustrações e
narrativas afinadas com uma visão cosmopolita e hedonista da sociedade que
consumia revistas que o fez avançar rapidamente na hierarquia do campo da
caricatura.
Calixto Cordeiro, o K. Lixto (1877 – 1957), também se valeu dessa estratégia.
Muito produtivo e com alto padrão de qualidade, capaz de executar qualquer
ilustração com rapidez e maestria, foi um dos caricaturistas que mais trabalhou num
leque de publicações que rivaliza com o de J. Carlos. No entanto, não marcou o
campo com personagens famosos, nem historietas infantis, nem seções fixas.
Havia também a posição de quem tinha as portas sempre abertas, mas teve o
“campo dos possíveis” fechado e, não tendo aonde chegar na hierarquia do campo,
aos poucos, abandonou-o. Rian era o pseudônimo de Nair de Teffé (1886 – 1981).
Filha dos Barões de Teffé, nasceu na classe alta do Rio de Janeiro e foi criada em
Nice e Paris, tendo estudado Artes no famoso Cours Julien. Sofreu influência
declarada dos caricaturistas franceses Sem e De Losques, especializados em
representar a alta sociedade francesa. Publicou seções chamadas Galeria das
Elegâncias na Fon-Fon!, Galeria das Damas Aristocráticas na Careta e Galeria dos
Smarts na Gazeta de Notícias, tudo em 1910. Sua arte só era vista dentro dos salões
da sociedade, até que começou a fazer exposições coletivas e individuais. Sua
especialidade era caricaturar as damas da sociedade, porque isso era um tabu para
os artistas homens. Os editores que publicavam os desenhos de Rian protegiam-se
pedindo licença aos retratados (LIMA, 1963; RODRIGUES, 2002).
Seu estilo era moderno e afrancesado, compondo a caricatura com poucas
pinceladas. Publicou também em Paris, o que lhe dava posição como caricaturista
internacional, além de ser considerada por aqui como a primeira mulher a ser
caricaturista no mundo. Chegou a ter a oferta de um contrato de colaboradora
efetiva de Excelsior, revista francesa. Não podia aceitar, no entanto. O pai até
permitia a colaboração nas revistas e jornais, mas sem remuneração. Rian, em
análise de sua obra, disse que não forçava muito a distorção dos rostos
caricaturados: seus bonecos não provocam gargalhadas, despertam sorrisos. Muito
bem considerada entre as jovens de elite do Rio de Janeiro e de Petrópolis, falava
99
muitas línguas, era amiga de todos e o “melhor partido” para casamento de seu
tempo. Evitava casar cedo, no entanto, para não abreviar sua fase mais criativa.
Acabou se casando com o viúvo Marechal Hermes da Fonseca, 31 anos mais velho,
que era o Presidente da República quando se casaram, em 1913. Após o casamento
foi parando, aos poucos, de publicar (LIMA, 1963). Sua curta carreira, no entanto,
apoia a luta do campo por sua legitimação. Numa edição de sua seção “Salada da
Semana”, no dia de aniversário de O Malho em 1913 (número 575), Alfredo Storni
elabora uma elegia à caricatura, em três cenas: “E há quem diga que a caricatura
não tem valor! [...] A caricatura tem alcançado coisas que qualquer outra
manifestação intelectual do espírito humano não tem conseguido”. Na última cena,
Storni desenha Nair de Teffé conquistando o coração do Presidente Hermes da
Fonseca com uma flechada de Cupido. Em vez de flecha, ela atira um lápis afiado.
Rian prova que mesmo a camada mais poderosa da sociedade precisa e quer
se ver representada nas narrativas cômicas, maliciosas e estimulantes da Caricatura.
Segundo editores da Fon!Fon!, ao publicar desenhos de Rian, essa arte trazia
“ironia e espírito” à sociedade que queria ser moderna.
Ser membro da sociedade moderna exige condições mínimas, todas ligadas
aos preceitos civilizatórios: boa linguagem, boa higiene, autocuidado, contenção de
emoções, entre outros. Exige também rapidez e sensibilidade cada vez maiores nas
operações manuais. Uma criança que, cedo, brinca com conjuntos de armar, cresce
para ser o operário da indústria eletrônica ou o cirurgião de que a sociedade precisa.
Esse era o argumento que Luís Loureiro levantava para garantir aos queixosos que
os brinquedos de armar que ele criava para O Tico-Tico não eram uma amolação
para os pais, mas uma oportunidade educativa para os filhos. Loureiro (1889 - 1981)
representa outra trajetória no campo da caricatura. Não só saiu da pequena
burguesia, mas trouxe o habitus de trabalhador manual.
Deixou alguns relatos em entrevistas e sempre repetiu a mesma história. Diz
que era rapaz pobre, filho de portugueses; mais velho de oito irmãos. Buscava, é
claro, dinheiro, sempre empregando-se em minuciosos trabalhos manuais, tais
como “sapatinhos para anjo”, pintura decorativa em casas, retratos... Foi um pintor
autodidata. Daí chegou à oficina litográfica de O Malho, onde aprendeu a copiar no
papel litográfico as ilustrações de revistas e jornais estrangeiros que seriam
adaptados para O Tico-Tico. Não ficou, somente, nas cópias. Seu talento para o
desenho foi reconhecido e ele teve oportunidade de criar historietas cômicas e
100
charges políticas (aquelas em que o patrão dava o texto). Assim, quando aconteceu
a Primeira Guerra Mundial e pararam de chegar os jornais que publicavam Buster
Brown, Loureiro foi convocado para desenhar histórias de Chiquinho inéditas. Ele
conta que, de início, não se achava capaz de escrever, e o editor Renato de Castro
inventava o roteiro, mas, logo, o editor deixou tudo por conta dele. E Loureiro
tornou-se um dos mais populares autores de histórias em quadrinhos de seu tempo,
levando adiante o personagem-símbolo de O Tico-Tico, em sequências de piadas
semanais que formavam aventuras memoráveis para seu público. O tema era
sempre civilizador, no sentido de que Chiquinho, enquanto criança, sempre fazia
peraltices, mas, no fim, recebia punição (de maneira conformada, sem chorar!).
Loureiro conta que as crianças que liam a história pareciam gostar mais de quando
Chiquinho apanhava de escova do que quando armava suas “pegadinhas” contra
visitas, criados e vizinhos.
Loureiro começou também com a série de brinquedos de armar – na maioria,
veículos, como o bonde elétrico, o carro da assistência pública (ambulância), um
aeroplano para o Chiquinho (ver Figura 15) e outros. Eram páginas nobres,
coloridas, no meio do caderno de O Tico-Tico. Loureiro fazia “engenharia reversa”
e decompunha um bonde em cerca de dez peças planas, para serem recortadas do
papel, dobradas e coladas. A cada semana, tentava se superar. A seção fez sucesso
e, posteriormente, outros desenhistas assumiram a tarefa, inclusive Alfredo Storni,
numa fase em que havia saído da firma mas fazia trabalhos eventuais.
101
Figura 15. Brinquedo de papel feito com o modelo desenhado por Loureiro em O Tico-Tico nº 300
(1911).
Fonte: foto do autor.
Loureiro, diferente de J. Carlos, por exemplo, sempre buscou estabilidade nos
empregos. Ficou na empresa O Malho, cumprindo todas as tarefas dadas, inclusive
atacando, em charges, políticos que admirava, até 1920, quando ganhou um
emprego, a princípio, mais respeitável e estável, no Ministério da Guerra, setor de
cartografia.
Especializou-se
no
desenho
heráldico,
fazendo
estandartes,
condecorações e símbolos. Desenhou um novo uniforme para o Colégio Militar.
Seu jeito sisudo e disciplinado combinava com o ambiente militar. Herman Lima
(1963) diz que, em O Malho, não mostrava o mesmo “talento mordaz” que outros
tinham. Não era dos boêmios, apesar de ajudar numa agremiação de carnaval. Não
publicou livros. Sua única criação livre foi a introdução do personagem Benjamin
nas historietas de Chiquinho.
102
Benjamin era um menino negro, agregado da família burguesa de Chiquinho.
Isso quer dizer que, sem ser empregado remunerado, tinha um trabalho a exercer:
acompanhar o filho da família, ser um amigo sob controle, para que o filho tivesse
com quem brincar, mas alguém hierarquicamente inferior. Essa explicação toda não
deve ter passado pela cabeça de Loureiro. Ele narra, em entrevista, que tinha em
sua casa uma pessoa assim, “moleque de recados” chamado Benjamim, e alega que
este queria sair na revista. Loureiro simplesmente fez sua caricatura e botou na
história (MERLO, 2003).
Quem leu toda a série de histórias nessa fase sabe que Benjamin era abusado
por Chiquinho o tempo todo, mas parecia não perceber. Muitas vezes, Benjamin
obedecia aos planos do outro menino; outras vezes, era o autor das peraltices.
Ambos levavam sovas de escova. Chiquinho tentava dar-lhe educação (o Chiquinho
de Loureiro era muito civilizador) mas Benjamin era arredio. Resultado: o
Benjamin de verdade reclamou que não era tão feio como saiu no desenho, e as
pessoas mangavam dele na rua. Zangou-se, foi embora e só foi reencontrar Loureiro
bem mais velho. O personagem, no entanto, durou décadas, tornando-se um dos
símbolos de O Tico-Tico, desenhado por todos que passaram pela revista, sempre
lembrado nas capas comemorativas. Loureiro o defende como sendo um
personagem que trouxe a realidade brasileira para a revista que vinha sendo feita
com matrizes europeias e norte-americanas.
Aqui se conclui a descrição do campo da caricatura no Rio de Janeiro das
primeiras décadas do século XX. Muito mais poderia ser escrito e outros
pesquisadores realmente investiram mais tempo na análise das carreiras desses
artistas. Essa época deixou marcas na cultura e construiu muito do que é a sociedade
brasileira da atualidade. Porém, a intenção, aqui, era fazer somente uma descrição
metódica do campo, a fim de inserir nele Alfredo Storni e sua obra feita para O
Tico-Tico. Finalmente, podemos fazer algumas afirmações sobre tal campo:
a) Ainda que a cidade de São Paulo tivesse um setor editorial muito pujante,
o local privilegiado do campo da caricatura era o Rio de Janeiro, devido
a sua capitalidade (NEVES, 1992; AZEVEDO, 2019): concentrava as
elites dirigentes e profissionais do país, recebia os estrangeiros e suas
novidades (como porto de chegada), tinha eventos e instituições que
colocavam artistas e intelectuais em contato, além de representar
103
culturalmente e simbolicamente o país para o mundo. Dessa forma, atraía
artistas de outros estados e outros países para ocupar posições no campo.
Alguns tinham raízes na comunidade portuguesa; outros eram livres e
faziam o papel de “estrangeiro” na comunidade.
b) As posições mais desejadas no campo eram nas revistas de maior
popularidade e que duraram mais tempo, como Revista da Semana,
Fon!Fon!, O Malho e Careta. O Tico-Tico, Ilustração Brasileira e Para
Todos eram da empresa O Malho. A posição de diretor artístico de uma
revista conferia um status importante, mas não eximia o caricaturista de
trabalhar exaustivamente, muito pelo contrário.
c) Revistas de menor circulação eram alternativas para lançar novos talentos,
desenvolver charges mais críticas e complementar a renda dos
caricaturistas mais produtivos. Eram inúmeras, mas citamos Mercúrio, O
Tagarela, Avenida, O Pirralho, D. Quixote , O Filhote e O Gato.
d) Os vários jornais diários da época, seguindo os passos das revistas,
também abriram espaço para os caricaturistas, que tinham ali uma boa
fonte de renda estável.
e) A procura de renda estável levava a maioria dos caricaturistas a manterem
empregos paralelos, como tinha Raul Pederneiras, ou procurar contratos
com jornais diários, como fez Álvaro Marins, e mesmo abandonar a
profissão, como fez Loureiro. Viver somente de charges e ilustrações em
revistas ilustradas foi a trajetória de poucos, como K. Lixto e J. Carlos.
f) A renda extra era obtida com ilustrações para anúncios e incursões no
mercado teatral, disponíveis apenas para os que tinham melhores contatos
na sociedade e elos mais fortes dentro do campo (recebiam indicações
preferenciais de colegas e de editores). Publicar livros infantis e
paradidáticos foi estratégia de alguns, mas nada indica que fosse lucrativa.
g) A boêmia, antes de ser uma atividade hedonista, era uma maneira de
encontrar outros membros do campo artístico, político e intelectual da
cidade, “tomar o pulso das ruas”, saber “quem é quem” e consolidar os
elos necessários para o exercício da profissão. Além disso, circular pelos
ambientes onde a política, o encontro social e as artes aconteciam era mais
necessário aos caricaturistas na época em que não havia facilidade de
consultar fotografias, e ainda se estudavam as feições dos famosos in loco.
104
h) O campo era formado por humoristas, mas não por contestadores. Sofria
muita pressão dos campos político e econômico e se movimentava
conforme. O maior exemplo era a empresa O Malho, cujo sócio, Senador
Azeredo, dominava o discurso das charges políticas. Outra pressão era de
mercado, quando as revistas mais longevas mudavam seu perfil editorial
para se adequar aos interesses dos leitores e assinantes. Nesse caso, os
“times” de caricaturistas eram renovados ou pior – reduzidos. O Malho,
por exemplo, em meados de 1918, muda de perfil editorial, torna-se mais
leve, traz o veterano Raul de volta à equipe e abre espaço para Di
Cavalcanti, mas abandona a charge política.
i) Na criação de personagens de historietas cômicas, a resposta dos leitores
era direta aos caricaturistas, no seu cotidiano, como conta Loureiro. Os
editores também sabiam o que fazia mais sucesso e a tendência era que os
artistas tentassem fornecer mais do mesmo. A evidência é que os
personagens dessa época são quase todos variações dos mesmos tipos: ou
meninos peraltas ou homens trapalhões. Mesmo os personagens
estrangeiros, copiados pelos editores locais, tinham que seguir esses
padrões (por exemplo, O Tico-Tico traduzia e dava destaque para Foxy
Grandpa e para Mutt e Jeff21, além de publicar historietas locais com o
personagem Carlitos e com a dupla O Gordo e o Magro). É verdade que
não eram o único tipo de narrativa publicada em O Tico-Tico, que usava
muito material francês, de conteúdo diverso, mas eram assim as narrativas
assinadas pelos caricaturistas brasileiros.
j) Os mesmos artistas que produziam as charges políticas e os retratos
caricaturados das figuras eminentes eram convidados a participar das
publicações para crianças e jovens. As ferramentas do desenho caricato
eram as mesmas: simplificação dos traços, ênfase na representação de
movimento, gesto e expressão facial, conteúdo calculado para produzir
efeito cômico. A transição suave já havia sido estabelecida por Angelo
21
Foxy Grandpa era uma tira norteamericana de Carl Bunny Schultze decalcada e traduzida como
“histórias do vovô”. O personagem era um senhor que fazia mais peraltices do que os netinhos. Mutt
e Jeff é uma das tiras mais populares, feita pelo norte-americano Bud Fisher, e foi assumida pelo O
Tico-Tico a ponto de os personagens terem histórias locais inventadas por Augusto Rocha, e
figurarem nas capas das edições comemorativas como “elenco” fixo da revista. Informações
coletadas pelo pesquisador aficcionado Francisco Dourado, do blog HQ Retrô, e publicadas no
Encarte do fanzine eletrônico QI edição 158 (jul/ago 2019) pelo organizador Edgard Guimarães.
105
Agostini, autor das primeiras histórias em quadrinhos no Brasil e pioneiro
das moralizantes historietas para crianças, no mesmo semanário O Malho.
De fato, durante, pelo menos, todo o século XX, foi assim, com Ziraldo
transitando entre caricatura política, gibis e livros infantis, e outros
chargistas se aventurando eventualmente, como Henfil, Miguel Paiva,
Nani, Angeli e Laerte, por exemplo. O ponto aqui, entretanto, é que as
obras para público infantil já, desde o início, eram produzidas segundo a
concepção de que deveriam ser educativas e civilizadoras por meio do
entretenimento leve. Não se exigia, porém, que o produtor dessa arte fosse
um especialista dedicado, como na atualidade. É uma configuração que
possivelmente enriqueceu as primeiras histórias em quadrinhos locais
com os experimentos formais da caricatura política e vice-versa.
O campo dos caricaturistas do Rio de Janeiro do início do século XX, assim
descrito, foi onde se movimentou a carreira de Alfredo Storni e onde foi gestada a
série das Aventuras de Zé Macaco e Faustina. A partir dessas conclusões, é possível
acompanhar a trajetória desse artista e compreender suas tomadas de posição
artísticas.
2.3. A trajetória de Alfredo Storni
“Storni fala pouco e desenha muito” era o texto do “olho” de uma matéria da
Revista da Semana (31 de março de 1945, número 13) que reunia “três caricaturistas
da velha guarda” – Storni, Yantok e Loureiro – para falarem de suas carreiras. Esse
é um dos raros relatos deixados por Storni, tanto que fundamenta seu verbete no
compêndio de Herman Lima (1963). No entanto, Storni contrariou os repórteres.
Deixou-se fotografar com os ex-colegas e até forneceu desenhos inéditos para
ilustrar as páginas, mas, em vez de falar, passou um papel escrito a lápis com alguns
parágrafos biográficos. Nesse texto transcrito na reportagem, quando Storni fala de
sua criação, elabora uma autêntica peça de “ficção biográfica”22: diz que inventou
22
Pierre Bourdieu (2015) adverte que a história de vida é uma noção do senso comum que entrou
de contrabando no universo científico. Esse senso comum concebe a vida como uma história, uma
linha, uma estrada ou carreira que, na forma de sucessão de fatos, é linear e unidirecional, tendo um
início, etapas e um fim, que é tanto um término quanto uma finalidade. O relato biográfico tende a
ser feito com a seleção de certos acontecimentos significativos e com a conexão entre eles, em
função daquela concepção de que a vida tem que ser um conjunto coerente e orientado. Trata-se de
106
a família Zé Macaco, com pai, mãe, filho e o cachorro Serrote de uma vez só,
quando se cansou de decalcar historietas de autores estrangeiros e resolveu fazer
uma “obra nacionalizante”. Disse também que sua intenção era educativa, de incutir
nas crianças virtudes “que cada dia se tornam mais esquecidas dos homens”. Isso
não é verdade. Zé Macaco foi criado sem família, como um “homem trapalhão”
vindo do interior para a cidade grande. Meses depois é que Storni inventa que Zé
Macaco havia ficado rico e trazido esposa e filho da Europa. O tal cachorro Serrote,
então, só aparece muitos anos depois, sucedendo outro vira-latas sem nome que
acompanhou a família em muitas aventuras.
O depoimento por escrito, ponderado e totalmente sob controle seria uma
maneira de o artista, aos 64 anos, procurar legitimar-se no campo, uma vez que
elabora uma narrativa para a criação do marcante Zé Macaco, e afirma, por conta
própria, que “o êxito foi estrondoso”. Isso não quer dizer que Storni gostava de se
gabar ou de maquiar seus defeitos. Suas piadas na série do Zé Macaco sempre foram
críticas à vaidade. Fez questão de não se “maquiar” na autocaricatura que ofereceu
à revista. Nela, desenhou-se em dois momentos extremos da carreira: jovem,
chegando ao Rio de Janeiro, em 1907, para trabalhar em O Malho, e velho, em
1945, quando dá a entrevista. Legendou o desenho como “A marcha do tempo”
(Ver Figura 16).
uma construção artificial de sentido, na qual se estabelecem relações inteligíveis entre efeitos e
causas, tratando estados sucessivos como etapas necessárias de um projeto assumido desde o início.
107
Figura 16. Storni se autocaricatura em 1907 e em 1945, na página 25 da edição de 31 de março de
1945 da Revista da Semana.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Se os depoimentos são vagos e os documentos faltam, a trajetória de Storni
pode ser lida a partir de seus trabalhos publicados, já que ele, sim “desenhou muito”.
Durante a pesquisa, além dos verbetes biográficos (LIMA, 1963; FONSECA, 1999,
CORREA DO LAGO, 1999), foram lidos, em formato digitalizado, centenas de
números de revistas ilustradas e jornais diários com obras de Storni e seus colegas,
o que permitiu seguir sua trajetória profissional. As caricaturas e historietas, por si,
contam uma história sobre Alfredo Storni, e essa é uma história que passa ao largo
da subjetividade do artista que conta memórias.
Ruben Gil dá conta que Storni nasceu em Santana do Livramento – RS em
1881, e criou uma revista própria, O Gafanhoto, em 1904 (aos 23 anos). Herman
Lima relata que ele teve suas colaborações aprovadas em O Malho, em 1906, desde
a primeira. Durante 1906, O Malho apresenta uma página com as “Aventuras de Zé
Caipora”, história em quadrinhos de Angelo Agostini, muitas caricaturas por
Augusto Rocha, J. R. Lobão e do iniciante J. Carlos, mas não tem nada do Storni
até o número 190. O primeiro desenho assinado por Storni que se encontra nas
edições digitalizadas é uma charge representando o político gaúcho Pinheiro
Machado como um valente cavaleiro laçando a “opinião pública” (que se declara já
ser dele!). A chave para Storni acertar seu lance no campo artístico parece ter sido
108
a homenagem a Pinheiro Machado, uma vez que aderia perfeitamente à linha
editorial e política de O Malho, chefiada pelo Senador Antônio Azeredo. Azeredo,
jornalista e político mato-grossense, apoiava “homens fortes” e autoritários (ver
Figura 17).
Figura 17. Charge de Storni na pág. 24 do número 190 de O Malho (1906).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
As qualidades de Storni, em retrospecto, já são perceptíveis nessa charge: o
retrato que evoca facilmente o retratado; o movimento da cena, com o homem se
inclinando para trás e o cavalo investindo para o primeiro plano, vindo de um
bucólico cenário dos campos gaúchos, também facilmente evocado em perspectiva;
e uma certa crueza na leitura dos acontecimentos, característica de apelo popular.
Storni não poupava o leitor de imagens grotescas e violentas, se sua crítica severa
apontava para isso. O uso da alegoria (representar uma entidade abstrata, a “opinião
pública”, como uma figura humana sobre a qual se aplica um letreiro identificador)
era comum a todos os caricaturistas, e acompanharia as charges políticas de Storni
durante toda a carreira. Herman Lima (1963, p. 1228), elogioso, diz que o jovem
Storni fugia à repetição do estilo estático das charges políticas, cheias de figurões
109
confabulando, e “movimentava os seus bonecos com uma liberdade de veterano da
caricatura”.
A contribuição de Storni pula alguns números. Na edição 204 de O Malho há
um anúncio: “Leiam O Tico-Tico, o único jornal exclusivamente para crianças”.
Nesse momento, Storni não sabe que sua carreira ficará para sempre associada à
revista infantil.
Na edição 205 volta a aparecer material de Storni: uma charge com o
Presidente Rodrigues Alves. Na sequência dos números 207, 208 e 209 há uma
charge política de Storni em cada, onde aborda eleições e política externa. Nesse
momento, J. Carlos já está ilustrando anúncios e capas, como a do número 211.
Ocorre mais um hiato nas participações e, no número 212, Storni não faz apenas
uma charge, mas ocupa meia página com uma historieta em quadrinhos com vários
políticos.
As historietas ilustradas em sequências de quadrinhos já estavam sendo
experimentadas pelo menos durante todo o ano de 1905 em O Malho. Eram
peraltices de garotos e de bichos, sempre de caráter civilizador, onde os erros são
punidos de imediato, pelas próprias consequências. Por exemplo, um menino dorme
na mesa de estudos e mete o nariz na vela acesa sobre a mesa. Outro garoto come
terra e, junto, ingere um caroço de jaca. A árvore cresce dentro da barriga dele e ele
morre. Essas historietas eram de Angelo Agostini e de Leônidas Freire. Leônidas
manteve o tema de alerta civilizador daí pra frente, abordando a complicada relação
com as máquinas. Em 1906, Leônidas faz, em O Malho, charge onde um automóvel
com rosto ri de um bonde que atropela a todos na rua e é muito mais perigoso do
que ele. Em O Tico-Tico, no mesmo ano, muito antes de Storni lançar seu Zé
Macaco, Leônidas publicava uma historieta satirizando uma família interiorana que,
apesar de ser rica, passava apuros ridículos ao ousar fazer um simples passeio de
automóvel na Capital. Quem desenha histórias para a capa de O Tico-Tico em 1906
é J. Carlos, apresentando seu garoto travesso, Juquinha. De tanto que fez, Juquinha
foi até encarcerado na prisão (número 91, 1907).
Durante o restante de 1906 e o início de 1907 as colaborações de Storni vão
aumentando de número, começando com uma única por edição, até fazer meia
dúzia. No Almanach d’O Tico-Tico de 1907 ele tem um trabalho publicado. No
início era informalmente considerado “correspondente especial no Rio Grande do
Sul”, e as ilustrações publicadas eram apenas de gaúchos ou políticos gaúchos. Ele
110
não parou de fazer essas figuras, mas em 1907 já são aproveitados seus tipos
populares em vinhetas, e suas charges sobre política nacional e internacional, além
de matérias especiais como o ensaio sobre a Paz. As charges vão no mesmo tom
das de outros caricaturistas: apontam para as mentiras dos governos que se
sucedem, mas aplaudem as iniciativas consideradas populares.
A empresa envia, nesse ano, uma oferta de contrato e ele começa a fazer parte
da equipe, se estabelecendo no Rio de Janeiro. Muda-se em 26 de março de 1907.
Storni contou assim como se deu seu grande lance no campo da caricatura, naquela
matéria de A Revista da Semana, em 1945 (rever Figura 16 acima):
Quando desembarquei na “corte”, encontrei-me num trapiche de madeira. Envergava
com orgulho um terno xadrez marrom e um colarinho da mesma cor. Um carregador
me perguntou se eu pertencia a algum circo de cavalinhos e se queria que me
carregasse a mala. Guardo até hoje bem vivas na memória as recordações de minha
chegada triunfal à Cidade Maravilhosa, podendo me lembrar até, com nitidez, que
na mala eu trazia apenas outro terno e uma camisa. O resto do espaço era ocupado
pelos meus castelos e pelos ideais de moço que viajavam comigo (A REVISTA DA
SEMANA, 31/03/1945).
O orgulho do jovem de 25 anos foi logo testado, porque, segundo ele, foi
recebido “com indiferença” pelo patrão Luís Bartolomeu, e mandado para aquele
que era o primeiro estágio na carreira da empresa: as oficinas litográficas, onde sua
tarefa era decalcar os desenhos originais das publicações estrangeiras. Pouco
depois, ali estreavam Yantok, Loureiro, Vasco Lima e Álvaro Marins, como foi
contado acima.
Durante 1908 Storni é um dos principais caricaturistas de O Malho. Tornouse diretor artístico da publicação, em cargo da capa e várias charges por edição. Na
página 3 da edição 311, desse ano, ele desenha um policial civil com as mesmas
feições que usaria no Zé Macaco, pouco depois (ver Figura 18). A cena se passa na
Exposição Nacional, evento que aconteceu de agosto a novembro de 1908, no bairro
da Urca, Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da abertura dos portos às
nações amigas. Expunham-se os produtos oriundos de todos os estados do Brasil, e
o principal objetivo era exibir a capital recém-reformada às autoridades brasileiras
e estrangeiras.
Na charge, o guarda, atônito, vê o senador gaúcho Pinheiro Machado montado
e, então, pergunta se as ordens de não deixar entrar de carro nem a cavalo na área
da Exposição Nacional realmente valiam para todos. Seu colega explica que, para
111
os “graúdos”, como Pinheiro Machado, a lei é outra, e “quem não souber dessa
hermenêutica, está frito”. Era uma crítica à falta de republicanismo do regime
republicano.
Figura 18. Charge na pág. 3 da edição 311 de O Malho (1908). No canto inferior esquerdo, Storni
desenha um policial civil com as feições que usaria depois em Zé Macaco.
É nesse ano de 1908 que cria seu personagem Zé Macaco para O Tico-Tico.
Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional faltam as edições de 1908. Na
primeira edição de 1909 Zé Macaco está na primeira página. Carrega uma
sombrinha com um caju de madeira na ponta do cabo. O caju, até o fim, será
elemento que representa Zé Macaco, como se fosse seu símbolo heráldico. Aparece
todas as vezes em sua bengala, e estampa seus pertences e invenções.
Na historieta, ele faz uma viagem a pé através do campo, salva um leitão que
estava amarrado para ser abatido e o homem de “excelente coração” termina
homenageado por seu gesto de humanidade. Só que não é homenageado por
pessoas, mas por uma multidão de porcos antropomorfizados, vestindo roupas e
carregando um estandarte. De início, o autor estabelece que Zé Macaco e os animais
têm algum entendimento mútuo.
Na edição da semana seguinte, a história muda radicalmente. Zé Macaco sai
na página 11, a cores. A legenda conta que Zé Macaco resolveu visitar o Rio de
112
Janeiro. Pegou um bonde bem no dia em que uma revolta popular explodiu:
“Enorme massa popular gritava: Morra a Light! Queima! Queima!”. No Largo de
S. Francisco, a multidão avançou para virar e tocar fogo no bonde. Zé Macaco, no
entanto, ignorante da etiqueta para vivenciar um protesto político, negou-se a sair
do bonde. Foi engolido pelas chamas e, meia hora depois, com a ação dos
bombeiros, sai indignado e todo chamuscado de baixo dos restos do bonde.
Storni gostava de usar fatos do noticiário para criar as histórias de Zé Macaco.
Na edição de 11 de janeiro de 1909 o Jornal do Brasil anunciava que haveria um
comício no Largo de S. Francisco, Rio de Janeiro, para reivindicar a volta de
itinerários de bondes alterados pela companhia Light. A polícia, alertada pelos
boatos, teria tomado “medidas preventivas para evitar os desmandos”. Os
manifestantes, “na maioria, operários prejudicados por essa deliberação”,
quebraram lampiões como sinal de protesto (motivo da charge de Raul no dia 13,
com o título “bode expiatório”). Segundo a reportagem completa na edição do dia
13, a questão dos bondes ficou em segundo plano, uma vez que a reação da polícia
militar, “acutilando e contundindo a torto e a direito, concorreu, não há dúvida, para
que o movimento popular tomasse maior incremento”. O resultado é que os
manifestantes voltaram-se contra os carros de bonde, gritando “Vira! Vira!
Queima!”.
Storni faz uma página de charges toda sobre a questão, na edição de 23 de
janeiro de O Malho, em que responsabiliza as forças policiais pelos excessos da
repressão e o saldo de violência. Assim, muitas vezes, os fatos comentados nas
charges políticas de O Malho, ou em suas seções de moda e sociedade, voltam a
aparecer em O Tico-Tico, como pano de fundo para cômicas confusões de Zé
Macaco, como veremos adiante. Aliás, não só de Storni, pois é possível encontrar
no Chiquinho de Loureiro referências ao cotidiano do Rio de Janeiro. É o habitus
de caricaturista político modelando a atividade da criação de historietas infantis.
No dia 25 de abril de 1909 nasce o primeiro filho de Storni, Oswaldo, que se
tornaria importante ilustrador de O Tico-Tico e, depois, da editora da Cia.
Melhoramentos de São Paulo. A necessidade de aumentar a renda e prover sua
família recém-formada deve ter movido Alfredo Storni. Ele mantém seu emprego
nas publicações da Sociedade Anônima O Malho mas começa a colaborar na revista
semanal O Filhote, da empresa concorrente, editora da Careta, a partir de setembro
de 1909. Para isso, esconde-se sob o pseudônimo Bluff. É curioso comparar o
113
trabalho de Storni ao mesmo tempo em dois concorrentes. Enquanto, em O Malho,
ele estava preso ao compromisso de ilustrar as charges encomendadas pela direção,
com sua tendência a malhar alguns políticos e incensar outros, em O Filhote Storni,
ou Bluff, desenvolve uma maior independência, criticando a atividade política em
geral. Por exemplo, nas edições da comemoração de vinte anos de Proclamação da
República (novembro de 1909), enquanto, em O Filhote, Bluff desenha a República
(figura alegórica sempre representada como mulher jovem) desconfiada e dividida
entre dois pretendentes mal-intencionados, o civilista e o militar, em O Malho nº375
Storni desenha a charge principal incensando o Presidente Nilo Peçanha, aplaudido
por toda a população, de mãos dadas com a República, sobre um palco.
Além disso, no trabalho de Bluff, Storni desenvolve mais o lado grotesco das
feições de seus retratados. Numa seção de portrait-charges, representa políticos
com traços de gato, de cegonha, de canguru e como um bebê na cadeirinha. Em
outras ilustrações, distorce rostos quase até a forma de caveira, mostra dentição
podre, roupas rotas, olhares boçais e tudo que fere o “bom gosto” elitizado (ver
Figura 19).
114
Figura 19. Charge de Bluff (Storni) explorando o choque ao chamado “bom gosto”. Página 15 da
edição 5 de O Filhote (1909).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Zé Macaco passa o ano de 1909 como personagem de “homem ingênuo
trapalhão na cidade grande”. Saído do bonde incendiado, ele é brutalmente
reprimido pela Polícia como se fosse um dos vândalos. É dado como morto, foge
115
do necrotério, depois compra um chapéu enorme, exagerado, conforme a moda para
senhoras; usa o chapéu como barco para escapar de uma enchente; brinca Carnaval;
briga na rua e vai para a cadeia; é confundido com um animal por turistas ingleses
e briga novamente; compra um cavalo e quebra uma loja, indo preso novamente;
depois decide ir embora, atravessar a Baía de Guanabara, mas naufraga e tem que
se ver numa ilha onde macacos o tomam como um semelhante; foge dos macacos,
pede auxílio num sítio mas é confundido com um ladrão e jogado num poço. Essas
poucas linhas já demonstram como Storni usa o grotesco como motor da
comicidade da história, e como, nessa época, prisões, violência policial e brigas de
rua ainda eram assunto adequado para a leitura infanto-juvenil, desde que o fim da
história fosse a reafirmação da ordem.
Nesse ponto da carreira, porém, acontece algo, porque Storni interrompe a
história num momento de suspense (a queda dentro do poço), na edição 192. Zé
Macaco desaparece de O Tico-Tico até a edição 196, quando Storni transforma
radicalmente a linha narrativa. A legenda não poderia ser mais clara:
Tudo está mudado! Assim como a política, Zé Macaco mudou também, dum dia para
outro, a sua condição! Hoje, graças a uma herança que ele recebeu quando saiu
daquele malfadado poço, está gozando as delícias que lhe proporciona a fortuna.
Possui um automóvel, palacete, chauffeur e pretende casar-se. O que lhe acontecerá
na sua nova fase registraremos nos próximos números (O TICO-TICO, 07/07/1909).
Na capa, uma grande ilustração de Zé Macaco, de cartola, luvas brancas e
charuto, sentado num automóvel – maior símbolo de status da época – com
chauffer, passeando pela Avenida Central (ver Figura no capítulo 1, p.48). Seria
apenas liberdade artística, se Storni tivesse continuado a história conforme o
prometido, mas passa metade do ano de 1909 e todo o ano de 1910 sem publicar Zé
Macaco. Storni, nesse período, continua normalmente seu trabalho como
caricaturista de O Malho. E Zé Macaco não é esquecido. Pelo contrário, aparece em
todas as capas comemorativas de O Tico-Tico (de Natal e aniversário), como um
dos personagens da revista. Apenas no início de 1911 voltam as histórias de Zé
Macaco, agora com uma família que trouxe de suas andanças na Europa, assim
como uma máquina voadora que ele mesmo inventou, o “aéreo-burro”. A nova fase
de sucesso, com Storni publicando na capa da revista, será abordada no capítulo 3.
O período da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) é vivenciado pelos
leitores de O Tico-Tico através das lições moralizantes da seção Lições de Vovô e
116
o conflito entre civilidade e guerra se reflete nas historietas. O tema será abordado
no capítulo 4.
Acontece em 14 de novembro de 1916 o primeiro Salão dos Humoristas, no
Liceu de Artes e Ofícios, Rio de Janeiro, com 518 trabalhos. Storni deve ter sido
uma ausência importante, porque não está no cartaz composto de caricaturas dos
artistas, nem na lista de artistas. Ele tinha um roteiro de conferências para cumprir
no mesmo mês, em cidades do Sul do Brasil. Apresentava-se entre músicos e
literatos.
Com o lançamento do semanário humorístico D. Quixote, criado por Bastos
Tigre, em 1917, Storni acumula mais um trabalho, publicando ao lado de K. Lixto,
Raul, J. Carlos e Yantok.
Storni continuou sua rotina durante anos, sempre encarregado da capa de O
Malho, sucedendo J. Ramos Lobão, e da seção A Salada da Semana, um painel com
cinco ou seis charges sobre os últimos acontecimentos. Até 1918 O Malho tem em
geral a mesma equipe de desenhistas: Storni, K Lixto, Loureiro, Yantok e Aryosto,
dividindo equivalentemente as páginas. O número 828, de 27 de julho de 1918, tem
a última ilustração de capa de Storni. Nessa edição, na página 20, há uma matéria
especial comemorando os 20 anos de carreira de Raul Pederneiras, onde ele conta
um pouco de suas memórias. Na semana seguinte, número 829, há uma grande
mudança editorial. Nessa época O Malho já estava se transformando numa revista
mais leve, cheia de anúncios, mais fotos de vida social e mais fotos do futebol, mas
menos política. Raul volta a colaborar com a revista, substituindo Storni como
principal caricaturista. Storni ainda aparece, mas muito pouco. Loureiro, Yantok
continuam, e entram ilustradores novos, como Di Cavalcanti, pintando capas. Os
editores explicam que O Malho “deu um salto do passado para o presente”,
acompanhando, com certo atraso, o estilo da cidade reformada e moderna. Na
edição seguinte, faz um afago em Ruy Barbosa, que fora tão malhado em 1909.
Storni substitui J. Carlos como diretor artístico de Careta em 1922, numa
troca entre as empresas. J. Carlos assume a direção das revistas da Sociedade
Anônima O Malho, entre elas a Para Todos. Os dois fizeram uma transição suave.
No início de 1922, Storni ainda tinha a tarefa de desenhar o personagem Chiquinho
para O Tico-Tico, no lugar de Loureiro. Nessa fase, Augusto Rocha, com
pseudônimo de Nelson, produz histórias de outro personagem do gênero “homem
rústico trapalhão”, o João Garnizé, um concorrente para Zé Macaco, mais bruto,
117
com uma perna de pau e sem uma família. Desenha também Mutt e Jeff,
personagens americanos adotados pela equipe de O Tico-Tico. Enquanto isso, J.
Carlos, com o pseudônimo de Nicolao, continua a série de seus personagens
Carrapicho e Jujuba. A prática dos produtores de O Tico-Tico era considerar todos
os personagens como integrantes de uma equipe de “estrelas” da revista, mesmo
que fossem de artistas estrangeiros que não chegariam a dar autorização para isso
(ver Figura 20).
Figura 20. A companhia editorial O Malho fazia anúncio da revista Para Todos especial com uso
dos personagens que eram estrelas cômicas em O Tico-Tico, inclusive os estrangeiros, que eram
“tomados emprestado” pela editora, no traço dos caricaturistas de sua equipe. Assim, nem Carlitos
escapava de entrar para a família dO Tico-Tico. Número 160 de Para Todos (1922). Desenho de J.
Carlos.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
118
Os leitores também entendiam assim, presenteando a revista com ilustrações
que misturavam os personagens mais queridos, embora viessem de historietas
independentes (ver Figura 21). Atualmente isso se convencionou chamar de
crossover, quando personagens de proprietários diferentes atuam juntos numa
mesma narrativa. De fato, naquele contexto, todos os personagens pertenciam ao
mesmo mundo ficcional associado à revista, sendo que a propriedade dos
personagens, sob o ponto de vista comercial, não era bem definida. Portanto, era
natural que acontecesse, desde que os criadores desejassem. Storni fez uma
combinação com Yantok na edição do carnaval de 1912, com os personagens
aparecendo uns nas páginas dos outros. Mais tarde, conseguiria manter Zé Macaco
na revista ao implantá-lo dentro da história de Chiquinho.
Figura 21. Leitor junta personagens de historietas independentes: ele representa Chiquinho e
Jagunço como amigos do filho de Zé Macaco, para despeito do acompanhante habitual de Baratinha,
o menino Chocolate, que diz, como sempre, “Ué!”. Número 333 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
119
Na edição de 7 de junho de 1922 Storni produz, sem assinar, uma história de
capa fazendo Zé Macaco interagir com Chiquinho. Três edições depois, há uma
história significativa: Zé Macaco se despede de Chiquinho, para uma viagem de
navio, com muita cerimônia e choro. No fim, a piada é que Zé Macaco ia só até a
ilha de Paquetá, no meio da Baía de Guanabara. Suponho que é o último Zé Macaco
do período, e a despedida era uma metáfora, mas faltam os números seguintes para
leitura. Nesse momento, J. Carlos já havia atualizado o desenho do logotipo de O
Tico-Tico, dentro de suas ações como diretor.
No período em que Storni é diretor de Careta, Augusto Rocha assume suas
tarefas em O Tico-Tico, desenhando o Chiquinho. Aos poucos J. Carlos vai
tomando os espaços: subordina Chiquinho ao seu moleque Jujuba e em seguida seus
Carrapicho, Jujuba e Lamparina tornam-se os personagens principais de O TicoTico, aparecendo quase sempre na capa.
A edição 718, em 1922, é a primeira de Storni na Careta. O desenhista passa
por um ajuste de estilo. Nessa fase, Storni usa um traço limpo, fino e definido, um
pouco semelhante ao de J. Carlos (ver Figura 22). Parece ser uma preocupação dos
editores não perder a identidade visual com que J. Carlos impregnou a revista. Para
sustentar essa afirmação, há o fato de Storni ter chamado o jovem Belmonte,
caricaturista de São Paulo, de estilo elegante como o de J. Carlos, para trabalhar no
Rio de Janeiro. Nesse ano Belmonte publica alguns desenhos na Careta. Chegou a
visitar o Rio, mas desistiu de se mudar (GONÇALO JUNIOR, 2017). Storni
continuou preenchendo os espaços de ilustração com outros colaboradores, mas a
substituição de J. Carlos continuava um problema. Durante muito tempo usaram
vinhetas de melindrosas e janotas deixadas prontas por J. Carlos. Um pouco depois,
chamaram o caricaturista Oswaldo Navarro, de Minas Gerais, que tinha um traço
semelhante a J. Carlos, e era especialista em retratar os “jecas” do interior.
Durante os anos 1920, pouco muda. A rotina de Storni é fazer a capa da
Careta e várias charges internas, em todos os espaços das páginas onde não havia
colunas de texto. A arte de Storni, feita para a Careta, diferente daquela feita em O
Filhote e das historietas de Zé Macaco, não tem nada de grotesco ou exagerado.
120
Figura 22. Charge de Storni na pág. 27 da edição 1046 de Careta (1928), demonstrando como ele
aproximou seu traço do estilo de J. Carlos, chegando até a arriscar fazer três melindrosas.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Storni, no entanto, não abandona O Tico-Tico. Preso por contrato à Careta,
costuma realizar ilustrações para O Tico-Tico sob o pseudônimo de SOS ou sem
assinar. Assim, tem uma renda extra. Era o mesmo expediente que J. Carlos tinha
usado. No capítulo 4 se desenvolve a análise desse período em que Zé Macaco só
podia aparecer dentro das historietas de Chiquinho desenhadas por Storni.
“Zé Macaco, Faustina e Cia.” reaparecem na edição 1184 (1928), ocupando
uma página em preto e branco. Exagerados, chegam da China num navio, admiram
o progresso da cidade e se instalam no último andar de um arranha-céu, tão alto
que, durante a noite, funcionários removem todo o andar para deixar a Lua passar
em sua órbita. Storni assina a historieta como SOS e usa seu novo estilo de traço,
fino e fechado, sem sombreados. Inicia-se nova fase regular das historietas de Zé
Macaco e Faustina, agora um casal sem filhos.
Durante os anos 1930 Storni repete-se na Careta, botando invariavelmente o
“Zé Povo”, típico das antigas edições de O Malho, para comentar os discursos da
Aliança Liberal de Getúlio Vargas. Zé Povo reclama da falta de originalidade do
121
discurso de Getúlio: “Já me foi prometido por outra gente boa, mas que dê?”. A
mesma alegoria da República, que chorava em O Malho pela bancarrota (número
583, 1913), novamente é desenhada por Storni na Careta número 1136 (1930),
chorando pelo malandro que é alegoria do “sufrágio mentiroso”. Ele retruca: “Ora
bolas! Há tantos anos que me conheces e ainda conservas ilusões a meu respeito?”.
Acontece a Revolução de 1930 e as charges são, no princípio, favoráveis às
mudanças, mas em 1931, já, o “Zé Povo” aparece enforcado numa árvore – alegoria
para a “crise” – e um sorridente Getúlio Vargas é caricaturado embaixo, fazendo
promessas de ajuda.
Em 1936 começa uma lenta transição para J. Carlos voltar à Careta e Storni
sair. Durante o início de 1936, a capa de Careta e a maioria das charges políticas é
de Storni, mas J. Carlos fornece caricaturas sobre costumes. Isso vai até a edição
1440, com a maioria dos desenhos sendo de Storni. Na edição 1441, a capa é de J.
Carlos e as charges todas são de Storni. Esse arranjo é levado adiante por muitos
meses: memoráveis capas de J. Carlos sobre as questões pré-guerra e, no interior,
charges burocráticas de Storni. Na edição 1480, J. Carlos redesenha o logotipo da
revista, papel de diretor artístico. No número seguinte, J. Carlos já desenha
ilustrações internas. Isso continua e no número 1488 as ilustrações internas são
divididas meio a meio entre eles. Enquanto isso, J. Carlos mantém seu espaço em
O Tico-Tico com as historietas de seus personagens, a cores. E Storni continuava
presente na revista infantil com Zé Macaco e Faustina, agora sempre em uma das
páginas internas, em preto e branco. As modas são outras, mais de matrizes norteamericanas do que europeias, mas a concepção de Storni é a mesma: seus
personagens continuam sendo ridículos na imitação dos hábitos mais modernos e
no uso de máquinas.
Na edição 1489 de Careta (1937), ainda há mais cartuns de Storni do que de
J. Carlos. A partir daí entram novos desenhistas, como o citado Navarro, Nássara e
Théo. No final de 1937 não há mais caricaturas de Storni na Careta. J. Carlos
reassume totalmente a direção, ocupando a página dupla central e a capa.
A essa altura, o filho de Storni, Oswaldo, já produzia regularmente para O
Tico-Tico. Seu traço servia melhor às histórias policiais e de aventura.
Storni, assim como Loureiro, procurou estabilidade num emprego de
desenhista ou cartógrafo no Ministério da Guerra, conforme relatado por Herman
Lima (1963, p. 1234), em seu obituário em Correio da Manhã (23/03/1966) e numa
122
nota no Diário Oficial da União (04/04/1946). Segundo o jornal, entrou no serviço
público aos 35 anos (1916) e aposentou-se com 32 anos de serviço. Isso não o
impediu de desenhar regularmente para todas as publicações lembradas acima.
Storni manteve colaboração também no diário Correio da Manhã.
2.4. A estratégia de Storni
Apesar de ter produzido uma obra vasta, Alfredo Storni não é o primeiro a ser
lembrado entre os maiores caricaturistas brasileiros. Isso é aceitável, porque ele
pode ter sido eclipsado por seus contemporâneos Raul, K. Lixto e J. Carlos. Para os
aficcionados de histórias em quadrinhos, Storni é eclipsado também por Yantok.
Mas se estudarmos e compararmos seus trabalhos com os dos colegas, qualidade
artística não pode ser o motivo de uma colocação mais baixa no rank. Suas
caricaturas como Bluff (ver Figura 23), suas capas para O Malho, o humor de suas
charges políticas brincando com os desfiles de Carnaval (ver Figura 24), a arte
grotesca das histórias de Zé Macaco, todo esse conjunto está, tecnicamente, em pé
de igualdade com a obra de seus contemporâneos. Portanto, o legado de Storni
precisa ser entendido a partir de outra abordagem.
123
Figura 23. Caricatura por Bluff (Storni) em O Filhote número 30 (1910).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
124
Figura 24. Conjunto de charges de Storni na Careta nº 1444 (1936). Distribuídas por sete páginas,
são cômicas alegorias dos problemas do país (alguns, perenes) na forma de carros de um “préstito”
carnavalesco.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (editado numa imagem única).
125
Assim como o “gênio” é produto de uma trajetória socialmente circunscrita,
e não uma predestinação, todo artista de maior ou menor legado produz sua obra de
acordo com sua trajetória. Norbert Elias (1995) toma o compositor Wolfgang A.
Mozart como objeto de ensaio sobre a genialidade. Mozart foi considerado gênio a
posteriori. Elias tenta fazer estudo sociológico desse indivíduo que deixou um
legado artístico “genial”. É preciso entender, no contexto daquele músico, em que
estrutura social executava sua arte e quais pressões sociais sofria. A resposta é dada
na sua expressão artística. As mudanças na relação entre produtores e consumidores
de arte leva a mudanças na estrutura social onde a arte é feita e, por fim, mudanças
na obra do artista. Há convergência entre o entendimento de Elias sobre a produção
da obra artística e a teoria do campo artístico de Bourdieu. Como Bourdieu (1996)
argumenta, deve-se estudar a obra observando o ponto de partida do artista e as
opções que faz na tentativa de ocupar posições melhores no campo artístico,
segundo as regras que o campo estabelece.
Quando se fala de artistas que tiveram toda sua obra veiculada pelos meios de
comunicação de massa, fechar os olhos para a força do público consumidor fazendo
sua parte na configuração da obra não é uma opção. Os caricaturistas, na forma
como Howard S. Becker (2009) colocou, são produtores de representações sociais
(ou relatos sociais) que só podem trabalhar se os consumidores de representações
sociais cooperam e compartilham códigos simbólicos com eles. Isso quer dizer,
especialmente no caso da caricatura, que é criada uma “abreviatura conhecida por
todos que precisam do material” (BECKER, 2009, p. 34). O público é familiarizado
com ela, mas ela limita o que o produtor pode fazer. É mais fácil usá-la para dizer
algumas coisas e não outras. Os produtores confiam que elementos típicos
produzam efeitos típicos, previsíveis.
Não é sempre uma perfeita comunhão; pelo contrário. As representações da
sociedade quase sempre exibem “uma forte dimensão moral” que gera “batalhas
ferozes” iniciadas a respeito de matérias aparentemente inócuas (BECKER, 2009,
p. 37). Do ponto de vista do caricaturista, o editor e o empregador, que são
colaboradores dele na organização que produz representações sociais, são também
consumidores primários de suas obras. O artista precisa primeiro da cooperação
deles para chegar ao público leitor, que também tem papel no processo criativo.
Acima foi contada a história de como Storni cortejou a direção de O Malho no final
de 1906 para obter uma posição na Capital.
126
A partir dos dados expostos ao longo deste capítulo, é possível traçar algumas
conclusões sobre a trajetória de Alfredo Storni no campo da caricatura:
a) Assim como Seth e Leônidas, Storni começa na posição de forasteiro,
rapaz do interior que pretende vencer na Capital. Ele é um gaúcho da
fronteira com o Uruguai. Pode ter tentado, mas sua formação era
incompatível com o habitus boêmio dos jornalistas e caricaturistas locais.
Parece haver uma disputa entre duas formas do habitus do caricaturista:
uma é a forma do boêmio bem relacionado; outra é a forma do recluso
que só trabalha. Storni, com certeza, optava pela segunda, assim como J.
Ramos Lobão, Loureiro e o citado Seth, tendo Raul como representante
do polo oposto. J. Carlos, filho da classe média da Capital, concentravase e trabalhava muitas horas por dia, com disciplina (LUSTOSA, 2006),
mas também mantinha vida social. Era um fora-de-série.
b) A estratégia de Storni, vindo de onde veio, servia à intenção de construir
toda sua vida a partir do trabalho. Não tinha, como Raul, família influente
na cidade, capaz de proporcionar postos de trabalho de qualidade no
funcionalismo. Não tinha os contatos de K. Lixto para ilustrar tantas peças
publicitárias. Não falava a língua da indústria editorial tão bem como J.
Carlos, capaz de convencer qualquer um a pedir-lhe uma ilustração de
capa. Restava a Storni ser o melhor funcionário entre os caricaturistas,
capaz de entregar qualquer tarefa que fosse pedida, e notável por manter
relações muito estáveis com seus empregadores. Storni ficou 12 anos na
revista O Malho e 14 anos na revista Careta. Sua relação com a Sociedade
Anônima O Malho ainda se estendeu muito, pois só parou de colaborar
em O Tico-Tico em 1950, 42 anos depois de ter começado. Storni não
buscava aumentar sua renda valorizando seu “passe”, mas assumindo o
máximo de tarefas. Assim, seguia a estratégia de J. Carlos, de trabalhar
em publicações concorrentes com pseudônimo. Isso não evitou que ele
procurasse, como Loureiro e Leônidas, um contrato de trabalho mais
seguro, e entrou no funcionalismo público, acumulando empregos como
artista.
127
c) Os “lances” e “tomadas de posição” do artista não são simples decisões
de onde trabalhar e por qual preço. São decisões existenciais, com grande
peso simbólico e são expressas pelo aspecto que tomam suas obras.
Bourdieu observa que, no campo artístico, “os princípios estilísticos e
técnicos são os mais propensos a se tornarem o objeto privilegiado das
tomadas de posição e das oposições entre os produtores (ou seus
intérpretes)” (BOURDIEU, 2015 b, p.110). Quer dizer que, tanto artistas
eruditos quanto profissionais da indústria cultural lutam por posições com
as armas da qualidade técnica, artesanal, capaz de legitimar e chamar a
atenção para o artista e para sua obra, que se mostra específica e
insubstituível.
No caso do campo da caricatura, podemos falar do virtuosismo do traço
de uns e a capacidade de síntese minimalista do traço de outros. Mas
também podemos falar das performances de si, pois “viver da arte” produz
determinada “arte da vida”. Raul, por exemplo, desenvolveu, de uma vez
por todas, seu próprio estilo – baseado no renovador Julião Machado
(CORREA DO LAGO, 1999, p. 48) – e seu próprio tema, a observação
poética da sociedade urbana do Rio de Janeiro. Seguro de si, nunca
mudou, firmou uma “marca pessoal” até ao extremo de enrijecer sua
persona pública, sempre de chapelão e bigodes a la Kaiser. Socialmente,
era a figura do poeta bem estabelecido, a quem se perdoavam as
extravagâncias. J. Carlos copiou e dominou todas as influências
estrangeiras que desejava, do mundo da moda e do entretenimento.
Devorou revistas ilustradas e comédias do cinema, fã de O Gordo e o
Magro e Carlitos. Estabeleceu não só um estilo próprio, mas a certeza de
que ele faria sempre os desenhos mais elegantes e up to date.
Storni, porém, modulou sua forma e conteúdo conforme as publicações
onde trabalhou. Quando fazia as capas de O Malho, emulava o estilo de
J. Ramos Lobão, a quem sucedeu na empresa (ver Figura 25). Já foi
narrado acima como Storni emulou J. Carlos quando assumiu seu posto
na Careta. Assinando Bluff, desenhou e pintou de maneira oposta e
complementar aos seus trabalhos paralelos para O Malho (ver Figura 23,
128
p.123). Storni, autodidata, era capaz de fazer isso, porque é assim que
autodidatas aprendem – copiando –, como é o caso de Álvaro Marins, que
manteve dois ou três estilos artísticos. Na esfera existencial, o modo
reservado como Storni se comportou socialmente é outra expressão da
estratégia de não revelar qualquer personalidade ao público. Fazendo
assim, tinha facilidade em assumir a personalidade artística que o veículo
de imprensa lhe solicitava em cada época. Somente uma obra Storni
lembrou de associar a si mesmo, no balanço de seus 64 anos: Zé Macaco
e Faustina.
Figura 25. Comparação entre uma capa de O Malho feita por J. Ramos Lobão (em 1909) e uma capa
feita por Alfredo Storni (em 1913). O mesmo nível de detalhe, os mesmos signos de arte decorativa,
a mesma composição, a mesma paleta de cores, o mesmo personagem Zé Povo inquirindo o poder.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
d) Enquanto J. Carlos transferia-se entre as principais revistas, procurando
valorizar-se a cada retorno (entrou duas vezes na empresa de Luís
Bartolomeu e duas vezes na empresa de Jorge Schmidt), Storni arriscava
muito pouco. Enquanto Álvaro Marins tentou montar vários ateliers de
ilustração e lançar livros, Storni nunca teve ateliers nem lançou livros que
chamassem atenção para si como autor. Nem viajou para o exterior como
Leônidas. Foi recompensado apenas na medida de sua perseverança.
129
Yantok teve muitas de suas páginas de Kaximbown transformadas em
livros infantis e isso ajudou a fazer seus personagens mais lembrados do
que os de Storni: só temos notícia de uma edição de 1933, compilando as
páginas de Zé Macaco e Faustina (parte da Biblioteca Infantil de O TicoTico). A exploração dos personagens como marcas comerciais era quase
nula. Nos Estados Unidos, no entanto, Buster Brown, o menino de
histórias em quadrinhos que deu origem ao Chiquinho, foi um caso de
sucesso comercial desde os primeiros anos, vendendo sapatos infantis
com seu nome até a atualidade (GORDON, 1998). Fica só na imaginação
o que Storni poderia ter feito com a marca Zé Macaco, em seu tempo.
Essa marca, devido a sua popularidade, pelo menos serviu para ancorar
Storni à redação de O Tico-Tico, por décadas. Mesmo quando parava de
produzir as histórias por anos, os leitores e os editores continuavam se
lembrando dele, favorecendo uma volta.
e) Faltam dados biográficos, mas conclui-se, pela interpretação da obra, que
Storni, assim como outros caricaturistas, foi formado no habitus de classe
da pequena burguesia. Autodidata, reservado, imbuído da convicção de
que seu trabalho o levaria ao triunfo material, céptico em relação às
novidades, ressentido contra a elite que desperdiça o dinheiro ganho
muito fácil e contra a política, que, com traições, dificulta seus planos de
progresso, pregador da retidão moral e do sacrifício pessoal era o
caricaturista. Felizmente, segundo Herman Lima (1963), a intenção
pedagógica – ou, mais apropriadamente, moralizante – das historietas de
Storni com Zé Macaco existia como fundo, mas nunca encobria a
comicidade prazerosa e surpreendente que era o motivo da leitura.
Storni pode ter encontrado, numa de suas tomadas de posição no campo, um
estilo e uma obra correspondente que, por trair seu habitus de classe pequenoburguês, encontrou receptividade num público de classe média que se expandia
naquele período histórico, na Capital Federal. Que narrativas Zé Macaco e Faustina
traziam para o prazer desse público, isso será visto adiante. É possível que a
mutação da série de historietas, de uma aventura solitária de “homem trapalhão”
para o cotidiano surreal de um novo-rico com família tenha relação com a
130
descoberta de que seu público (um público familiar, e não apenas infantil, como se
supunha) se identificaria mais com esse perfil de personagem. O próprio
caricaturista tornou-se pai em abril de 1909.
Uma vez que, a) devido à configuração do campo da caricatura, com sua
“divisão de trabalho” bem estabelecida e muito pouca autonomia dos artistas, não
é de se acreditar que Storni pudesse impor a publicação de seu personagem à direção
da Sociedade Anônima O Malho, b) como a série de historietas de Zé Macaco,
diversas vezes, foi suspensa, para retornar “a pedidos” anos depois, e c) como se
verifica que a estratégia de Storni era a de manter elos muito duradouros com seus
empregadores, pode-se sugerir que, pelo contrário, retornar, todas as vezes, aos
personagens de grande fama foi estratégia de Storni para manter-se empregado. Os
personagens, devido à popularidade, eram o “ativo” que o caricaturista tinha para
negociar com os editores, que desejavam a continuação. Isso, e não uma
“inspiração” ou projeto artístico fez com que o casal Zé Macaco protagonizasse
uma série de historietas ilustradas tão longeva. O que Storni fez com o material,
para mantê-lo atualizado sem descartar as qualidades que o popularizaram, será
dissertado adiante.
3. A cômica interação entre pessoas e coisas nas aventuras
de Zé Macaco
Para interpretar a obra de Alfredo Storni em O Tico-Tico e compreender
melhor sua posição de mediador de representações sociais, foi preciso abordá-la por
diferentes caminhos. Uma das abordagens, desenvolvida neste capítulo, ocupa-se
da representação que o autor fez dos objetos materiais e das interações entre seus
personagens e os objetos. Os motivos dessa estratégia se fundamentam em duas
formulações teóricas: a primeira sustenta que a sociedade se vale de objetos, além
de palavras, para manter comunicação; a segunda dispõe que os sujeitos só podem
se desenvolver através de relações que mantêm com objetos de toda ordem. Essas
relações parecem ser mais evidentes em sociedades que estão experimentando as
transformações da modernidade, em meio à expansão da oferta de bens e da
variedade de hábitos de consumo. Os caricaturistas do início do século XX chegam
a propor imagens cruéis que criticam essas transformações (ver Figura 26).
O autor da piada, dada a conjuntura de 1913, desenhou como seria o mundo
no futuro próximo: “o progresso caminha tanto que, em 1920, todos viajarão pelos
ares”23. A polícia também tem sua máquina voadora e alguns tomam o transporte
coletivo. Só não estará nos céus, diz a legenda, “quem for como o pobretana que
abaixo se vê”. Porém, como cai todo tipo de objeto de consumo lá dos aeroplanos
e dirigíveis (meias, lenços, chapéus, panelas, guarda-chuvas etc.), o excluído pode
viver da coleta dos excedentes numa rede. Pode ser que ele se machuque,
eventualmente, com a queda de uma garrafa de cerveja, mas a obtenção da bebida
compensa o trauma.
23
As matrizes do desenho podem ter sido as ilustrações de elegantes máquinas voadoras pelo
ilustrador francês Albert Robida (1848 – 1926) que, em 1902, publicava cartoons com o tema
futurista da “vida no ano 2000”.
132
Figura 26. Todos – quase todos – viajarão pelos ares. Página 2 do nº 370 de O Tico-Tico (1913).
Sem assinatura de autor.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Da mesma forma, Alfredo Storni tendeu a narrar o envolvimento de seus
personagens com objetos ou, em outras palavras, encontrou necessidade de
representar muitos objetos para produzir efeito cômico em suas historietas. Partindo
de algumas considerações teóricas que constituem a primeira parte deste capítulo,
133
foi possível, na segunda parte, ler e interpretar um recorte da série de Zé Macaco e
Faustina com maior profundidade.
3.1. Considerações teóricas: a modéstia dos objetos
Antropólogos legam-nos a concepção de que a relação entre indivíduos e
objetos, especialmente os mais cotidianos e familiares, não se resume nem à posse,
nem ao uso. A prática inerente ao uso do objeto empenha o corpo do usuário de
uma maneira que equivale a um treinamento (às vezes, conscientemente, caso da
relação do atleta com o material esportivo, por exemplo). Mais do que isso, o objeto
cotidiano é psicologicamente e neurologicamente inserido no esquema corporal da
pessoa. Poucos negariam que uma perna mecânica, com o hábito, liga-se ao resto
do corpo tanto quanto uma perna natural, do ponto de vista do usuário. A proposição
é de que isso se passa também, por exemplo, entre pessoas e seus veículos ou
pessoas e suas ferramentas, mesmo que os elementos desses pares sejam
materialmente independentes (WARNIER, 2001).
Conforme essa concepção, só é possível “estar no mundo” em associação com
nossos objetos materiais. O conjunto de objetos e suas formas de uso fazem parte
de nossa cultura (ficando ele, ainda, à disposição de interpretações individuais). Por
meio de objetos carregados de significados, comunicamos, talvez, mais do que com
palavras, somos socializados durante a infância e interagimos com outras pessoas e
com o ambiente. Na argumentação do antropólogo Tim Dant, “as relações sociais
e culturais entre os indivíduos nas sociedades da modernidade tardia parecem ser,
mais do que em qualquer outro tempo no passado, mediadas através de objetos
materiais” (DANT, 2006, p. 290, tradução minha24). No entanto, corremos o risco,
enquanto pesquisadores, de considerar o simbolismo dos objetos muito mais
importante do que a interação material que eles têm com as pessoas. É um tipo de
desvio a favor do plano intelectual: “Enquanto, às vezes, sentimos que vivemos a
existência através da mente e da imaginação, o corpo é sempre veículo dessa
vivência e nosso engajamento com outras pessoas e objetos é sempre mediado pelo
corpo” (DANT, 2006, p. 300, tradução minha25).
“The social and cultural relations between individuals in late modern societies would seem to be,
more than at any time in the past, mediated via material objects.”
25
“While we may sometimes feel that we experience existence through the mind and imagination,
the body is always the vehicle of this experience e and our engagement with other people and other
objects is always mediated through the body.”
24
134
Mauss, no influente ensaio sobre as técnicas do corpo, nos lembra que “O
corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem” (MAUSS, 2003). O
corpo, conforme Foucault (2014), é o objeto sobre o qual atuam os instrumentos
disciplinares. As ações disciplinares que concorrem no processo civilizador
costumam se concentrar na adequação do corpo ao uso de novos objetos e sistemas.
Exemplos: no passado, posição de braços e cotovelos no uso de pratos, taças,
talheres e guardanapos; na atualidade, braços, cotovelos e pescoços na leitura da
tela do smartphone, num vagão de metrô.
Além de participarem da constituição de nosso “modo de estar no mundo”,
objetos auxiliam na naturalização da ordem social na vida de um indivíduo. Cultura,
em seu conceito estruturalista mais sucinto, é o sistema como a sociedade classifica
as coisas do mundo. Ao realizar isso, a sociedade classifica também as pessoas. A
ordem das coisas associa-se à ordem das pessoas na sociedade. A ordem torna-se
silenciosamente aparente, porque “Objetos surgem como sendo mais naturais que
palavras, uma vez que, no geral, são encontrados por nós como coisas que já
estavam ali, enquanto a linguagem falada, por exemplo, é produzida na nossa
frente” (MILLER, 2002, p. 407, tradução minha26). É como se objetos exibissem
uma qualidade que pode ser chamada de “humildade”: sua materialidade faz com
que se misturem ao ambiente e sejam naturalizados, mas isso esconde a força com
que podem expressar identidades, marcar posições na ordem social e indicar
distinções de classe (BOURDIEU, 2013), inclusive constrangendo a liberdade de
ação dos indivíduos.
O sociólogo das ciências Bruno Latour (2009) defende que o conjunto dos
objetos materiais e tecnológicos devem ser os agentes invisíveis que colaboram na
manutenção da civilidade. Objetos seriam seres não-humanos – criados por
humanos conforme conhecimento sobre qual é o comportamento humano padrão –
que substituem humanos em algumas funções em que estes, eventualmente,
falharão. Um exemplo é a porta com fechamento automático, que substitui um
porteiro e que nunca falha na tarefa mecânica de manter a porta fechada após a
passagem de alguém. Se confiássemos apenas na etiqueta dos humanos, parte das
vezes a porta ficaria aberta, contrariando as normas da casa. Outro exemplo é o
cinto de segurança automático que não permite a partida do motor do carro até que
“Objects often appear as more “natural” than words, in that we come across them in the main as
already existing things, unlike at least spoken language, which is produced in front of us.”
26
135
o motorista esteja seguro. Os não-humanos, chamados corriqueiramente de coisas,
estariam mantendo, em conjunto com os humanos, a ordem social, especialmente
quando não são percebidos nessa atividade.
Por analogia com os estudos semióticos, os objetos podem ser estudados por
suas qualidades comunicativas. Daniel Miller (2002, p. 406 - 407) concorda que
essa analogia é capaz de demonstrar a maleabilidade simbólica dos objetos, mas
tem suas limitações. “Artefatos”, diz ele, não são palavras. Comparados com
palavras, eles têm conteúdo muito menos definido, e os padrões e “gramáticas” que
eles podem formar não correspondem necessariamente a unidades de significado
como os termos linguísticos de uma frase. Sensorialmente, a percepção de objetos
materiais é muito mais sutil, rica e imediata, em todas as suas dimensões sensoriais
(percepções do olfato, do gosto, do tato e da visão), em comparação com a descrição
deles por palavras. Objetos apresentam-se com todos os seus aspectos ao mesmo
tempo, enquanto o discurso, tipicamente, é uma sucessão de elementos em ordem.
Abala o nosso senso comum apontar alguma superioridade da comunicação por
objetos em relação à linguagem verbal como forma de atuar sobre o outro. Porém,
para Miller (1987, p. 105 - 107), os “artefatos” têm superior flexibilidade simbólica.
Embora pareça que o objeto fixa o significado com sua existência concreta, é
a linguagem verbal que possui muito maior controle sobre a interpretação de uma
dada mensagem. Muitas lutas são travadas em torno da interpretação do significado
de objetos, segundo diferentes perspectivas sociais de gênero, classe e raça, por
exemplo, mas o objeto “aceita” representar, ao mesmo tempo, diferentes
perspectivas sociais, que podem coexistir. É claro que os objetos são concebidos e
produzidos segundo culturas que subentendem uma ordem linguística, mas suas
características físicas não são determinantes do uso que diferentes culturas (ou
diferentes perspectivas sociais) fazem deles.
Esse fenômeno é importante porque as novidades tecnológicas e, no contexto
deste estudo, exóticas, tais como a eletrificação, o cinema, o fonógrafo, por
exemplo, aceitam representações com viés local, de classe, raça ou gênero. Entram
em disputas simbólicas que circulam nas conversas privadas, debates públicos e,
inclusive, no trabalho dos caricaturistas. Demandam mediação para ganhar lugar na
classificação cultural e um significado local. Os caricaturistas colaboravam nessa
mediação por expressarem uma visão particular dos prós e contras das
transformações no mundo cotidiano, esse que está repleto de objetos.
136
3.2. Sujeitos e objetos; corpos e coisas
É preciso ressalvar que, nesta investigação, o foco é a representação dos
objetos, via arte da caricatura, que os substitui por ícones visuais e, portanto, estão
limitados a uma dimensão simbólica. No entanto, leva-se em conta que o artista
desejou ou precisou representar tais objetos porque as pessoas, que geram seus
assuntos e constituem seu público, estavam se relacionando com eles nas duas
dimensões, simbólica e concreta. Por isso, essas pessoas tinham que assimilar as
novidades não só com suas mentes, mas também com seus corpos. Na historieta de
1911 (ver Figura 27), o menino tinha que experimentar a máquina com seu corpo,
para aprender o que ela era. Baratinha, filho de Zé Macaco, vê uma novidade nas
ruas do Rio de Janeiro: um rolo compressor da reforma urbana. Ele faz uma leitura
errada: pensa que serve para passar roupa. Atira-se embaixo da máquina, fica todo
amassado, é levado pelo guarda até seus pais, na forma de um tapete enrolado, e se
recupera graças a uma bomba de ar.
137
Figura 27. Baratinha deseja passar sua roupa a ferro. Página 14 do número 277 de O Tico-Tico
(1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Bibloteca Nacional.
A representação de objetos tem terreno fértil na caricatura justamente pelo
potencial simbólico deles. Na arte da caricatura, todo ícone gráfico que o artista faz
entrar na composição do quadro precisa contribuir para o significado do todo. A
caricatura é uma arte frugal, que evita distrair o olhar do espectador com traços
138
apenas decorativos. É uma arte de composição, que equilibra poucos traços
exagerados num arranjo que possibilita representar um “todo” muito mais revelador
do que uma transposição completa do assunto em imagens, sem mediação artística,
poderia (SIMMEL, 2016).
O crítico de arte Ernst Gombrich dissertou como os caricaturistas
contribuíram para o conjunto dos meios expressivos das artes plásticas. Segundo
ele, artistas dos séculos XVIII e XIX, como Töepffer, Hogarth, Bernini, Philippon
e Daumier estavam descobrindo maneiras de representar, principalmente, as
emoções humanas, por meio de traços econômicos, feitos “de memória” e não “do
estudo do natural”, a ponto de essa técnica poder ser descrita e ensinada como uma
tabela de termos significantes que chegaria a envolver alguma “gramática” para
articulá-los (GOMBRICH, 1986).
Por cautela, é preciso estar ciente de que os ilustradores e escritores do
semanário não estavam reproduzindo a realidade imediata, mas traduzindo a
observação que faziam da realidade social em termos de representações mais ou
menos tipificadas, para não dizer estereotipadas. O processo criativo dos
caricaturistas pode ser entendido na forma como Howard S. Becker (2009) o explica
quando estuda a “arte como ação coletiva” e quando descreve a cooperação entre
“usuários e produtores de representações”:
Os produtores esperam que elementos típicos tenham efeitos típicos, de modo que
os consumidores de representações feitas com esses efeitos respondam de maneiras
típicas. E os usuários esperam a mesma coisa em sentido inverso: que os produtores
se sirvam de elementos típicos, com que estão familiarizados e aos quais saibam
responder (BECKER, 2009: 33).
Portanto, todo elemento representado numa ilustração, charge ou história em
quadrinhos, seja um ser humano, um animal ou peças do cenário, está lá porque o
leitor (usuário da representação), na maioria das vezes, o reconhece e percebe seu
significado. Os elementos em conjunto serão interpretados, junto com a
representação textual, para formar o sentido da história. Cada elemento desenhado
tem alguma função no processo de tradução/interpretação. Por um lado, o
desenhista (produtor da representação) só pode se valer de objetos com que o leitor
tenha familiaridade; por outro, a ilustração é um grande meio de familiarizar o leitor
com objetos recentemente introduzidos na sociedade. Tais objetos ainda eram, na
época, assunto de negociação para estabelecer seus significados na cultura. A
139
técnica usada pelo caricaturista teria que ser a de associar a figura desconhecida a
alguma figura já bem conhecida.
Um exemplo das representações das relações pessoa-objeto, nas historietas
ilustradas de O Tico-Tico, foi publicado na edição nº19 (1906). O tema é recorrente
nas narrativas cômicas da virada de século: pessoas do interior, mesmo sendo bem
situadas na hierarquia social, se atrapalham e passam vergonha quando visitam a
capital (ver Figura 28)
. Família de fazendeiro, passeando pela Capital,
27
experimenta a velocidade do automóvel. O filho engole vento e infla feito um balão.
27
O tema é recorrente. A história em quadrinhos As aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma
viagem à Corte, de Angelo Agostini (publicada em 1869 na revista Vida Fluminense) leva um caipira
à capital. Na peça teatral Guanabarina (1906), de Artur Azevedo, a família caipira de Dona Candoca
passa muito desgosto em meio aos automóveis e às obras da reforma da capital, sem conseguir
descobrir onde moram os Barroso, que iriam hospedá-los (SICILIANO, 2014: 220-228). Esses são
apenas dois exemplos. Para Sérgio Buarque de Holanda (1995), o “agrarismo” da sociedade
brasileira ficava evidente pelo comportamento dos fazendeiros, os quais detinham poder mas não
viviam nos centros urbanos; somente os visitavam em caso de necessidade. No início do século XX
a transição para um “urbanismo” já estaria a meio caminho, e essa figura do fazendeiro já é
representada como um indivíduo deslocado e ultrapassado.
140
Figura 28. Passeio na “capitá federá”, como diz Seu Estanislau. Página 5 do número 19 de O TicoTico (1906), por Leônidas Freire.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
A piada do cartunista Leônidas é sobre o despreparo da família interiorana,
ainda que fosse abastada, para as práticas modernas existentes na Capital Federal,
como passear de automóvel. Interpretamos que a senhora Procópia Baeta nunca
141
havia andado de automóvel, o qual ela chama de “bicho”, mas já sabia que era uma
experiência moderna que deveria ser tentada na primeira oportunidade. Nenhum
dos Baetas estava preparado para a velocidade do automóvel, o que causou o
fantasioso acidente com o menino Xitibinha. Essa é a crônica de uma sociedade que
está apenas começando a naturalizar objetos como o automóvel, e seus corpos ainda
sofrem muito na interação com eles. No entanto, o fascínio dos objetos modernos é
mais forte e essa interação parece inevitável. Na ilustração, podemos observar a
representação das roupas da família Baeta, do uniforme do “chauffer” e o modelo
do automóvel, além de um detalhe sutil do cenário arborizado da Avenida Central.
Na caricatura, objetos costumam ser desenhados com intenções narrativas.
Por exemplo, a cartola, a casaca e a bengala do Seu Estanislau Baeta, na historieta
da Figura 6, denotam que aquele personagem é um homem rico. Na historieta da
Figura 4, no entanto, o mendigo também vestia casaca e ganhou cartola. Para o
leitor ter certeza de que se trata de um mendigo, o cartunista acrescentou remendos
à casaca e furos às solas dos sapatos. É, como foi lembrado, uma técnica
combinatória (“casaca” mais “remendo” denota “estado de mendicância”). As
histórias do Zé Macaco oferecem exemplos de tal gramática, como será
aprofundado adiante, neste mesmo capítulo.
Além da dimensão simbólica e cultural dos objetos, pode-se dizer que as
coisas têm também uma importância ontológica, o que fundamenta nossa atenção
para elas na análise das historietas de O Tico-Tico. Uma pesada tradição filosófica
foi estabelecida na compreensão da relação entre sujeitos e objetos, entre seres
humanos e o ambiente, e entre pessoas e coisas. Nela se destaca Hegel, que teria
escrito – segundo um comentário que Daniel Miller (1987) fez dele – A
Fenomenologia do Espírito como uma narrativa: a autobiografia do espírito ou da
mente. Em outras palavras, um processo de evolução do sujeito numa sucessão de
estágios ou um caminho de autoconhecimento.
Em cada um dos estágios, o sujeito precisa se distanciar ou se alienar de um
objeto que, anteriormente, não percebia que era diferente de si mesmo. O
movimento seguinte seria incorporar, ou absorver, intelectualmente, esse objeto, o
que transforma o próprio sujeito. Assim, o sujeito não é uma coisa dada nem
estática; é fruto de um processo longo e difícil, de confrontação consigo mesmo. É
o desconforto com sua incompletude e com o próprio estágio em que se encontra
que faz o sujeito buscar mais. No processo, não há causa externa para o movimento
142
do sujeito. O entendimento que Miller (1987) faz de Hegel é que o sujeito, o objeto
e o processo são inseparáveis. Não há um “sujeito-base”, porque ele é sempre
constituído pelo próprio processo de absorver seu objeto. Essa “objetificação” é a
relação constituinte de ambos, sujeito e objeto. Miller entende que Hegel não se
ocupava dos objetos de consumo; porém, afirmava que o processo de
desenvolvimento não se passa no interior do sujeito, e sim na atividade externa,
social.
Hegel já vivia na época da multiplicação dos objetos manufaturados e
industriais. Foi, segundo comentário de Habermas (2000, p.8), o primeiro filósofo
a desenvolver um conceito claro de modernidade. Em vez de, como os românticos,
procurar uma unidade holística como âncora contra essa inflação de materialidade,
ele viu positivamente essa variedade, porque beneficiava o desenvolvimento dos
sujeitos.
Daniel Miller (1987), continuando um argumento em que investiga a cultura
do consumo, faz um comentário sobre Marx, para o qual o processo hegeliano em
que o objeto se separa do sujeito (a externalização) não seria um meio de
desenvolver o potencial do sujeito, mas sim um obstáculo. O problema da
modernidade seria que os trabalhadores (sujeitos da produção capitalista) não se
reconheciam nos objetos (produtos). O distanciamento – ou alienação, conforme o
jargão – era forçado pelo sistema; eles não tinham acesso aos próprios produtos e o
sistema de trabalho era hostil ao autoconhecimento. Esse desconforto social só iria
ser solucionado quando o sujeito (a classe operária) voltasse a se identificar com o
mundo material dos objetos, pudesse ver que os bens são trabalho materializado;
são a objetificação dos trabalhadores. A tensão, nessa visão, é constante, e o alívio
paira no futuro. No modelo de Hegel, a tensão é a própria existência, e os momentos
de separação e reassimilação entre objeto e sujeito são concomitantes.
Georg Simmel (1971) também se ocupa do assunto e chega à conclusão de
que o processo de desenvolvimento do sujeito agrega aspectos positivos e negativos
indissociáveis. O sujeito da argumentação de Simmel não é o produtor, de Marx,
mas o consumidor, que precisa descobrir como desenvolver sua própria vida
mergulhada num mundo de coisas. De fato, num mundo que cada vez tem mais
coisas. O problema, para Simmel, é que a multiplicação dos objetos no nosso tempo
supera a capacidade dos indivíduos de os incorporar ao seu próprio
aperfeiçoamento. Mais do que isso, a relação com as novidades pode ser e tende a
143
ser superficial. O uso dos sistemas modernos prescinde do entendimento profundo
de como eles funcionam e do desenvolvimento “espiritual” correspondente. As
relações são mediadas, por exemplo, pelo dinheiro, o que aplaina diferenças.
Como cada indivíduo pode desenvolver sua vida “assimilando” objetos e
sistemas diferentes, de todos os que são oferecidos, acaba tendo “pouco em
comum” com o indivíduo próximo, a não ser aqueles poucos elementos eleitos
como terreno comum de qualquer um que pretenda pertencer ao grande círculo
social global civilizado. Mais uma vez, superficialidades. A liberdade de ser
“desigual” e a subjetividade que se estabelece na procura incessante de novos
estímulos e de desenvolvimento pessoal, no entanto, tem seu valor positivo e só
pode existir nesse ambiente. Segundo Simmel, somente o ser humano pode, por
cultivo subjetivo, com intenção deliberada de aperfeiçoamento, usando meios
externos (os meios presentes da Cultura), ser mais do que seria apenas por força da
natureza (SIMMEL, 1971, 1998a, 1998b, 2005).
A pulsão de busca ou aperfeiçoamento pessoal, paulatinamente, aproxima
sujeitos de objetos ao mesmo tempo em que afasta sujeitos de outros sujeitos.
Acompanhando – como o historiador Alain Corbin fez – a trajetória de hábitos de
consumo que demandam novas relações entre as pessoas e os objetos, é possível
acompanhar também o processo pelo qual, entre os séculos XIX e XX, aumenta o
grau de individualismo dos habitantes dos centros urbanos modernos, enquanto tais
traços vão se difundindo também pelas populações rurais e de pequenas cidades.
Entre tantas novas relações “pessoa-objeto” que surgem durante esse período,
chamam a atenção aquelas em que o comportamento humano torna-se mais
individualista em função do uso do objeto. Nesse período histórico, no ambiente
das metrópoles, difunde-se o espelho, o retrato pessoal, o quarto de dormir e a cama
individual, o banheiro privado, a leitura individual, o hábito do diário, a rotina
controlada por relógio, a boneca, o animal de estimação, o piano doméstico,
cosméticos, produtos de higiene pessoal e as peças de lingerie mais sofisticadas,
inclusive o espartilho (CORBIN, 2009).
As historietas de O Tico-Tico muitas vezes reproduziam lições civilizadoras,
como a da observância do relógio na rotina (ver Figura 29). Conta-se a história de
um rapaz que precisava se acostumar com o ritmo de vida urbano moderno. Seu
pai, preocupado com seu mau hábito de atraso, pede ajuda ao próprio Tempo e
ganha desse ser sobrenatural uma ampulheta mágica para dar ao rapaz. A ampulheta
144
tinha o poder de arrancar o rapaz de sua rotina e atirá-lo sem perdão no caminho do
trabalho, assim que escoasse o tempo permitido. Assim, o rapaz chega ao trabalho
só com meia barba feita, sem tomar café e sem se vestir completamente. Para evitar
esse constrangimento, o rapaz começa a fazer sua rotina diária com pressa, o que
lhe causa acidentes: corta o rosto e queima a língua. No final, como síntese do
processo, ele acaba adequando perfeitamente sua rotina e sua percepção de tempo
às exigências da sociedade, e a ampulheta mágica é recolhida.
145
146
Figura 29. A ampulheta encantada educa o rapaz atrasado. Páginas 12 e 13 do nº 200 de O TicoTico (1909). A julgar pelo estilo de desenho e diagramação, é tradução de La Jeunesse Illustrée.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Para viver entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século
XX, nos grandes centros urbanos, indicava-se o aprendizado de como usar novas
máquinas, vestuário, cosméticos, itens de cuidados pessoais, itens de lazer, esporte,
cuidados com o lar etc. Essas tecnologias demandavam uma adaptação das rotinas
147
diárias, dos conceitos culturais e da própria mecânica corporal. Por exemplo, o uso
da bicicleta demandava o aprendizado do equilíbrio e o fortalecimento muscular, a
noção de manutenção de máquinas, além da atenção ao trânsito (treinamento dos
sentidos). É do que o antropólogo Jean Pierre Warnier (2001) trata, quando
conceitua que se pode fazer uma abordagem “praxiológica” da subjetivação,
mediada, portanto, pelo aprendizado do uso de objetos.
O indivíduo precisa empenhar o corpo no uso do objeto, o que não quer dizer
que todos obedecerão à mesma rotina. Numa historieta de Leônidas, um menino
inventa uma maneira diferente de empenhar o movimento do seu corpo para
cumprir sua obrigação de acionar a bomba manual de água. Assim, executa a tarefa
com prazer em vez de esforço (ver Figura 30). O pai do menino achava que ele
estava muito ocioso, instala uma bomba d’água no quintal e manda o menino operar
a alavanca. Prevendo que seria cansativo e aborrecido, o talentoso menino inventa
um novo processo: amarra a alavanca nas costas de uma cadeira de balanço. Agora,
enquanto ele balança na cadeira com prazer, opera a alavanca ao mesmo tempo:
“Tonico Cebolinha, brincando, trabalhava, sem desobedecer a seu pai”.
148
Figura 30. Engenhoso menino usa a cadeira de balanço pra bombear água. Detalhe da página 7 do
número 16 de O Tico-Tico (1906).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Jean Baudrillard (2000), no seu ensaio sobre como se estrutura o sistema de
significação formado pela multitude dos objetos modernos, aponta dificuldades
teóricas para a empreitada, e uma delas é a de que a tecnologia, o sistema de
desenvolvimento concreto dos objetos, insere todos numa estrutura abstrata e
149
funcional, mas eles escapam continuamente para outras significações, dentro de um
sistema cultural. Importa ao pesquisador descrever, portanto, “as modalidades de
obstrução das técnicas pelas práticas” (BAUDRILLARD, 2000, p.16). Em outras
palavras, o “uso” dos objetos para além de – e contra – seu planejamento, o que se
faz individualmente numa imersão sócio-cultural. O autor procura “não a coerência
abstrata, mas as contradições vividas dentro do sistema dos objetos” (idem).
O caricaturista parece dizer que há, sim, como assimilar a introdução de uma
máquina na vida cotidiana de uma maneira própria, local ou individual, tornando
aquela máquina parte dos seus objetos e suas rotinas. Resolver o problema e ser
reconhecido por isso (virar um herói de historieta) subjetiva o menino como um
“talento”, um indivíduo engenhoso.
3.3. Um inventário de objetos nas histórias de Zé Macaco
Se as histórias estavam sendo criadas e lidas num contexto histórico de
rápidas transformações materiais, e, além disso, num contexto em que a
modernização estava na agenda política, esse era o assunto dos artistas da
caricatura, conscientemente ou não. Era o material de suas piadas e representações,
quando não a própria motivação artística. Assim, eles ocupavam posições de
mediadores das representações sociais necessárias para a absorção das novidades
materiais da modernidade e a subsequente subjetivação dos leitores como crianças
e jovens brasileiros afinados com projetos de progresso e civilização. O simples
fato de narrar, com suas histórias engraçadas, o embate dos personagens com
aqueles objetos às vezes desejados, às vezes amedrontadores, e de narrar as
maneiras mais inventivas de absorver essas coisas modernas ao seu quotidiano,
modificando até mesmo a experiência com seus corpos, esse trabalho narrativo, por
si só, já tinha a importância de lançar a questão em jogo. Em seguida, registrava os
lances das partes envolvidas – produtores e consumidores de representações.
Para aplicar essas perspectivas teóricas a esta pesquisa foi necessário recortar,
de sua vasta produção do semanário O Tico-Tico, uma pequena série de historietas
em que Storni desenvolveu o personagem Zé Macaco: somente as páginas
publicadas no ano de 1911. São as histórias do “retorno” do personagem,
transformado, do tipo popular que havia sido, num “arrivista” da sociedade que
ganhou dinheiro fortuitamente e começou a viver como burguês. Esse período é
150
mais pertinente para responder às investigações deste estudo, já que a área central
da capital federal, o Rio de Janeiro, tinha sido modernizada havia poucos anos, e as
dúvidas geradas pela Primeira Guerra Mundial estavam distantes. Conforme se
disse, os brasileiros viviam a “era das certezas” (COSTA e SCHWARCZ, 2000). O
relacionamento com as novidades da época tais como máquinas, diversões e modas
é o eixo da maioria das 35 historietas publicadas durante 1911.
Uma vez que esse é o eixo temático das histórias de Zé Macaco no período
destacado, foi preparada uma tabela de leitura, com anotações sobre quais
personagens aparecem, resumo do enredo, quais objetos são retratados, quais tipos
de ações os personagens executam com aqueles objetos, qual o cenário das ações,
frases relevantes do narrador ou dos personagens e observações gerais, relacionadas
com o contexto histórico e com outros dados obtidos de outras seções do jornal.
A primeira parte do trabalho foi analisar a coleção dos objetos representados.
Entre os objetos, destacam-se, por sua maior frequência, veículos (especialmente
automóveis e aeroplanos), peças de vestuário e itens necessários ao consumo nos
momentos de lazer. Objetos necessários ao desempenho do trabalho tais como
instrumentos e ferramentas, no entanto, são raros.
Desde a primeira história da volta de Zé Macaco à revista, no segundo número
de 1911, esse personagem exibe um aparelho voador que ele mesmo inventou,
chamado “aéreo-burro” (ver Figura 31). Trata-se de uma mistura de aeroplano com
balão dirigível que também inclui um burro na estrutura. O burro entra ali por ser o
objeto que Zé Macaco melhor associa à atividade de transporte, e por ser uma
metáfora para a falta de percepção intelectual aludida. Sem dúvida, nessa história,
satiriza-se a “burrice” daqueles que se encantam com os aparelhos voadores,
seguindo-os pelos campos, tentando, em vão, participar da suposta glória dos
aeronautas28. Em relação aos transportes, o “aéreo-burro” aparece mais de uma vez,
assim como automóveis, além de um bote a remo e um navio a vapor. Nesse recorte,
curiosamente, não aparecem bicicletas, apesar de serem um símbolo da
modernidade e figurarem em muitas historietas de outros autores da mesma revista.
O personagem Chiquinho tem uma sequência de trapalhadas com uma bicicleta;
antes dele, Juquinha, de J. Carlos, também tinha explorado trapalhadas de bicicleta
28
Alberto Santos-Dumont, pioneiro da aviação, era figura de grande destaque na imprensa da época,
recebendo homenagens, sendo fotografado e caricaturado em todas as revistas.
151
durante semanas; a própria Faustina, mulher de Zé Macaco, faz loucuras com uma
motocicleta alguns anos depois, numa capa de 1913.
Figura 31. Zé Macaco carrega a família para exibir sua invenção, o aéreo-burro, e os burros todos,
excitados, correm para saudá-lo. Página 14 do nº 275 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Itens de vestuário são representados muitas vezes, quando os personagens se
arrumam para eventos sociais (ir ao restaurante, brincar carnaval, passear no centro
recém-reformado do Rio de Janeiro), e nas histórias em que se preparam para uma
152
missão (civilizar o sertão, por exemplo, ou salvar um dos familiares de alguma
enrascada). São casacos, toucas de aviador, cartolas, gravatas, bengalas (Zé Macaco
tem uma bengala distintiva, com cabo que termina num caju) e sombrinhas, flor na
lapela, saia-calção (na história em que a esposa de Zé Macaco tenta entrar na moda
do jupe-cullote), bolsa de franjas, chapéus (sendo que Faustina, esposa de Zé
Macaco, inicialmente usava um cesto de palha no lugar do chapéu), lenços
(especialmente para enxugar lágrimas e acenar em despedidas), botas, berrante,
binóculo, cocar e tanga, chinelos, avental, robe e outras peças.
Os hábitos de Faustina só vão se sofisticando nos anos seguintes. É possível
fazer uma pesquisa apenas com a representação que Storni faz das modas femininas
de seu tempo. Não desenha vestidos genéricos, mas modelos específicos da
temporada em que a historieta foi publicada, especialmente os modelos de chapéus.
Outros objetos representados com frequência são os modernos postes de
iluminação elétrica da Avenida Central, recém-aberta na época. São signos icônicos
que, num desenho caricatural, insinuam, com poucos traços, que a cena se passa no
ambiente moderno da região central do Rio de Janeiro de início do século XX.
Storni, como típico caricaturista, só desenha os poucos objetos necessários para, em
conjunto, insinuar em qual ambiente os personagens estão presentes em
determinado quadrinho. Assim, as cenas em restaurantes e cafés exigem mesas,
cadeiras, pratos, talheres e taças; a cena na sala de cinema só precisou do cartaz na
porta e das fileiras de poltronas; a cena de carnaval exibia o trio “bisnaga-confeteserpentina”. Embora essas situações sejam de consumo, o ato de comprar ou pagar
um serviço aparece apenas uma vez nas histórias desse recorte, e não se representa
o dinheiro ou outro tipo de moeda de troca.
Outra ausência notada foi a de objetos profissionais, como instrumentos de
trabalho. O único momento, nesse recorte, em que os protagonistas trabalham é
quando Zé Macaco e Faustina, eventualmente sem dinheiro, se candidatam a atores
cômicos no Teatro de Variedades. Eles apenas se vestem de casaca colorida e roupa
de balé, respectivamente, e executam qualquer número no palco (ver Figura no
capítulo 4, p.184). Objetos como vara de pescar, corda, tesoura e cola, apesar de
representarem instrumentos de trabalho, são usados por Zé Macaco em cenas em
que precisa resgatar ou consertar o corpo dos seus familiares (inclusive um cão
muito feio). A exceção notável é a dos cassetetes dos guardas. Policiais civis e
militares são frequentes nessas histórias (não só de Storni; dos caricaturistas em
153
geral) e seu trabalho é fundamentalmente repressivo; daí que os cassetetes baixam
muito nas cabeças dos personagens. Também há a exceção de um fotógrafo
profissional com sua máquina numa determinada história, e os paramentos de um
batizado (na história em que se dá nome à mulher de Zé Macaco).
3.4. Zé Macaco e Faustina, engenhosos
Esse é o inventário quase completo dos objetos com que os personagens da
série Zé Macaco interagem, no recorte. O próximo passo é entender que tipo de
interações é representado pelo autor e o que isso pode significar na leitura que é
feita hoje sobre o processo de modernização. Essas interações são de dois tipos:
adaptações do uso do objeto e intervenções sobre objetos. Isso seria de se esperar,
porque o uso convencional de um objeto não suscita comicidade; não é assunto de
interesse para uma historieta ilustrada.
Assim, por exemplo, Faustina adapta um cesto de vime como chapéu; Zé
Macaco adapta seu próprio corpo como besta de carga para levar a mulher e o filho
nas costas, na falta de outro veículo; Faustina adapta uma calça velha do marido
como um jupe-culotte (saia-calça); Zé Macaco adapta uma garrafa de parati
(aguardente) como isca para pescar sua mulher que foi jogada no mar; Baratinha
(filho do Zé Macaco) adapta um rolo compressor das obras urbanas como ferro de
passar; Faustina adapta seu cão, amarrado a uma sombrinha e puxado por uma
corda, como um “emissor de radiogramas” a fim de chamar Zé Macaco, no meio da
mata; e Zé Macaco adapta um burro na forma de um aeroplano, conforme já foi
descrito.
As intervenções sobre objetos representadas nessas historietas são, em geral,
operações para resgatar os personagens de situações perigosas em que se metem
por descuido ou ignorância. Segue uma relação delas:
a) Quando Baratinha, o menino, engole dúzias de ovos inteiros, causando um
tipo de enfermidade que fez inchar sua barriga como um ovo gigante, Zé Macaco
apanha uma “tesoura de jardinagem” e corta a barriga do filho, liberando pintinhos
que tinham sido chocados ali dentro (nº 278);
b) Quando Baratinha e seu acompanhante Chocolate, para consertar o feio
cão que foi adotado pela família, esticam o animal puxando a cabeça e o rabo por
154
cordas, o cachorro fica tão esticado que não consegue atravessar uma rua estreita e
é atropelado, sendo cortado em três pedaços (nº 299);
c) Quando Zé Macaco é chamado a salvar o cão, pega uma lata de cola-tudo
e junta só duas partes do animal, recompondo-o com um tamanho mais adequado
(nº 300);
d) Quando Faustina, ignorante da moda do sorvete, toma tantas taças que fica
congelada feito uma barra de gelo, Zé Macaco tenta três operações para esquentar
o corpo inerte da esposa: cantar serenata ao violão, esfregar uma garrafa de parati
no nariz dela e, finalmente, armar uma fogueira por baixo do corpo suspenso em
cima de duas cadeiras (nº 286);
e) Quando Zé Macaco, após temporada na selva, já bem cabeludo, está se
comportando alheio à civilização, sem entender nada, nem ser compreendido, uma
cacetada que o guarda civil dá em sua cabeça traz de volta sua antiga identidade
como homem civilizado (nº 310).
Com todas essas histórias de salvamentos e consertos, a lição que Storni
parece ter transmitido é que, nos tempos modernos, é preciso reconhecer que os
objetos não estão mais atados às tradições, e podem ser usados de maneiras inéditas,
nos variados contextos em que a subjetividade do indivíduo moderno é atirada
involuntariamente. Essa interpretação se fundamenta na teoria de Daniel Miller
(1987) que tem, entre suas preocupações, a busca de entender o fenômeno do
consumo de massa não como uma tragédia de alienação e vaidade, nem como
empobrecimento do espírito que vem a reboque das imposições do mercado, mas
como uma oportunidade de, na interação com a enorme variedade de objetos
disponíveis no mercado, a sociedade reapropriar-se desses objetos que ela mesma
produz, material e simbolicamente.
A incorporação de objetos é parte de um processo de desenvolvimento
individual que espelha o desenvolvimento da sociedade. Esse processo se dá no
âmbito cultural e é possível afirmar que, no período histórico da Primeira
República, não se dá sem trocas de mensagens via revistas ilustradas. As historietas
de O Tico-Tico podem ser lidas como representação, ainda que superficial, de um
processo que a sociedade viveu naquela época.
Com essa perspectiva teórica, podemos analisar, por exemplo, a historieta de
Storni em que o autor narra o dia em que Zé Macaco leva sua esposa para um
passeio na Avenida Central (ver Figura 32). Depois “do infalível cinema” – ele
155
descreve – sentaram-se num café e pediram sorvetes, que Faustina não conhecia.
Os sorvetes agradaram-lhe tanto que ela repetiu até vinte vezes. O sorvete entra na
história como objeto de consumo importado, no mesmo “pacote” do cinematógrafo.
O autor, inclusive, chama um tipo de sorvete pelo seu nome italiano, pezzo-duro.
Isso demonstra o relativo exotismo do sorvete naquele contexto.
Aplicando o modelo dialético – na qual Miller baseou sua formulação – na
análise da historieta, pode-se categorizar o sorvete, nessa narrativa, como o objeto
estranho do qual o sujeito se encontra alienado, quer dizer, distanciado. É uma
situação descrita como de desconforto ou tensão. Para o cartunista Alfredo Storni
deve ter parecido assim a importação de costumes e hábitos de consumo europeus
para o Brasil, cuja sociedade estava sendo construída sobre um ambiente muito
diferente. Esses hábitos eram, conforme expressão do autor, “macaqueados” – ou
imitados – sem justificativa racional. Uma das consequências é que a novidade fica
acessível antes que o consumidor tenha adquirido a etiqueta adequada para o
consumo.
Voltando à historieta: depois de tomar vinte sorvetes, Faustina ficou
“barbaramente congelada”, representada como um corpo humano esticado, rijo
como uma tábua ou bloco de gelo. A consequência exagerada, possível apenas na
fantasia de uma história em quadrinhos, é a punição que ela recebe por não ter
civilizadamente tomado apenas uma taça de sorvete, conforme a etiqueta. Embora
a intenção do autor possa ter parado por aí, a análise pode continuar. Enquanto
Faustina está enregelada, a característica culturalmente mais evidente do objeto, a
baixíssima temperatura do sorvete, foi assimilada por ela, o sujeito. Voltando à
história: a condição endurecida de Faustina só é resolvida na semana seguinte,
quando o marido consegue, na terceira tentativa, descongelá-la. O autor não contou
mais nada sobre esse enredo cômico. Apenas podemos concluir que, na sequência,
Faustina teria finalmente reabsorvido, no processo dialético, aquele objeto que lhe
era estranho, o sorvete. Não repetiria o excesso das vinte taças. Portanto, teria se
desenvolvido como sujeito que consegue consumir adequadamente sorvetes, sem
repetir o fantástico choque que levou naquele dia. Civilizou-se mais um pouco,
também se pode dizer.
156
Figura 32. Num belo domingo... Página 14 do nº 285 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
No mesmo processo vivido por Faustina e o sorvete, todas as novidades que
os personagens de Storni experimentaram eram, no início, exóticas, causaram
tensão e até risco de vida, enquanto estavam sendo experimentadas, mas
terminaram por ser naturalizadas de alguma forma. Assim, Storni contou histórias
com voos de aeroplano, sessões de cinema, peças de roupa da moda, máquinas da
157
reforma urbana, campainhas elétricas, telégrafos sem fio e outras novidades
urgentes para sua época, nas histórias deste recorte temporal e em muitas mais.
É notável como, na maioria das interações entre pessoas e objetos
representadas nessas historietas cômicas, os corpos são afetados ou correm risco.
Aqui Baratinha é amassado por um rolo compressor, ali o cachorro da casa é cortado
em três partes, mais adiante Zé Macaco abre a barriga do filho, por exemplo. Isso
leva a pensar que é mesmo a materialidade dos objetos que permite experimentar a
modernidade, interagir de inúmeras maneiras e resolver a tensão dialética com
algum tipo de recontextualização e com o desenvolvimento da subjetividade.
Zé Macaco nunca deixa de ser retratado como um inventor. Algumas das
últimas piadas da série, nos anos 1950, tratavam dessa veia do personagem, sempre
criando mecanismos com adaptações inusitadas. Parece até que o literato Lima
Barreto falava do Zé Macaco quando, para criticar certo autor teatral alienado da
realidade brasileira, concluía: “Caro Oscar: entre nós, um inventor é cômico, não é
dramático”. O tal Oscar Lopes havia escrito uma peça exaltando um personagem
que tinha por sonho construir um aeroplano. Esse trecho foi citado na argumentação
sobre o período histórico das “certezas” civilizadoras, por Costa e Schwarcz (2000,
p. 149).
As interações entre pessoas e objetos, nas historietas do Zé Macaco, também
apontam como as novidades técnicas daquele período histórico não eram entendidas
puramente como ciência aplicada, mas como fruto de relações fantasiosas e
mágicas. Não se compreendendo o processo técnico que provoca o efeito de uma
máquina, por exemplo, seu funcionamento encanta o observador como mágica, e o
leva a tentar reproduzir o efeito com qualquer outra relação que a cultura lhe permita
fazer. O antropólogo Alfred Gell (2009) fez uma aproximação teórica entre as
relações dos indivíduos com a arte, a técnica e a magia. Propôs olhar a arte como
uma técnica de encantamento do observador, uma vez que este não possa conceber
qual processo levou a transformar a matéria-prima numa determinada peça de arte.
Seria o mesmo encantamento que uma tecnologia exótica provoca, enquanto não
for explicada ao usuário. Nas palavras de Gell:
O encantamento tecnológico é o poder que os processos técnicos têm de nos
enfeitiçar de modo que nós passamos a ver o mundo de uma forma encantada. A arte,
como um tipo especial de atividade técnica, apenas leva mais longe, por um tipo de
158
involução, o encantamento que é imanente a todo tipo de atividade técnica. (GELL,
2009, p. 211, tradução minha29)
É em relação à magia que se mede qualquer trabalho técnico. Segundo Gell,
“Assim como o dinheiro é o meio ideal de troca, a magia é o meio ideal de produção
técnica” (GELL, 2009, p. 224, tradução minha30), ou seja, um meio com “custo de
trabalho zero” e efeito imediato. É possível que essa visão tenha sido explorada nas
historietas de Storni naquele ano de 1911, conforme análise a seguir.
Numa das historietas, Faustina viaja para a selva brasileira, à procura de Zé
Macaco, que foi “civilizar indígenas” sozinho (ver Figura 33). Ela monta um
aparelho técnico, um telégrafo sem fio, amarrando seu cachorro a um cabo de
sombrinha e ao tronco de uma palmeira. Puxando o rabo do cão com uma corda, o
faz girar como uma antena de radar e emitir chamados para os quatro cantos do
mundo, na tentativa de se comunicar com Zé Macaco. É uma relação de causa e
efeito puramente mágica, uma associação de ideias entre as “ondas hertzianas” que
os técnicos dizem usar na transmissão de rádio, e os agudíssimos ganidos de dor
emitidos pelo cachorro da família, quando Faustina puxa seu rabo. Posso adiantar
que a geringonça termina funcionando e Zé Macaco é salvo graças a ela.
“The enchantment of technology is the power that technical processes have of casting a spell over
us so that we see the real world in an enchanted form. Art, as a separate kind of technical activity,
only carries further, through a kind of involution, the enchantment which is imanente in all kinds of
technical activity.”
30
“Just as money is the ideal means of exchange, magic is the ideal means of technical
production.”
29
159
Figura 33. O resgate de Zé Macaco com uso de um transmissor de rádio improvisado. Página 14 do
nº 308 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
A descoberta que Storni parece estar compartilhando é que não é possível
vivenciar as transformações da modernidade apenas por ouvir falar ou apenas por
consumi-las prontas. Não basta saber que existem “radiogramas” ou assistir à
operação de uma antena por técnicos estrangeiros. Como desenvolver uma
subjetividade como indivíduo moderno sem construir seu próprio telégrafo-sem-fio
160
de improviso? O mesmo vale para Zé Macaco que, em vez de apenas assistir a uma
exibição de aeronautas, inventou um “aéreo-burro” e, em vez de apenas pagar por
uma cirurgia, fez duas delas, improvisando com uma tesoura de jardinagem e com
uma lata de cola; ou ainda o mesmo vale para Baratinha, que experimentou usar o
rolo compressor como ferro de passar roupa. A interação do corpo humano com
objetos materiais, tanto de maneira educada quanto incivilizada, supera, com
vantagem, lições puramente verbais no desenvolvimento da subjetividade. E, se as
historietas ilustradas também são verbais, ao menos representam um “teatro” de tais
interações materiais.
Uma terceira lição pode ter sido passada involuntariamente por Storni em
suas historietas: viver as transformações da modernidade é se acostumar com a
agência dos objetos, os membros “não-humanos” da sociedade, conforme
formulação de Bruno Latour. Para o antropólogo francês, vivemos numa escalada
em que, cada vez menos, se confia na disciplina dos seres humanos. Engenheiros
observam a indisciplina, fazem discriminações contra quem não segue o padrão de
comportamento e criam sistemas técnicos onde objetos – esses agentes “nãohumanos”– substituem humanos na vigilância e correção de rumos, uma atividade
de que a sociedade precisa para sua reprodução.
Pode tratar-se disso um detalhe enigmático da representação que Storni faz
de Faustina. Desde a primeira aparição da esposa de Zé Macaco, no fim de 1910,
ela é representada usando uma corda amarrada em torno de suas canelas, por cima
da saia. A corda, explicitamente, impede que ela corra e a faz “andar aos pulos”
conforme uma das primeiras histórias de 1911 (ver Figura 34). Faustina continua
sendo representada com esse detalhe até que ele desaparece, algumas semanas mais
tarde, sem explicações. A corda é o objeto que age na coerção dos movimentos de
Faustina, um recurso para que ela ande com elegância, com as saias estreitas que
caracterizam a moda da segunda década do século XX31. Ou seja, Faustina
simplesmente não pode andar a passos relaxados; a corda a impede de parecer
pouco civilizada.
A “saia-funil”, surgida na moda eduardiana, supostamente impedia que o passo fosse maior do
que 8 centímetros. Para piorar, foi acrescentado o “grilhão”, um trançado cujo objetivo era impedir
que a saia se abrisse no caso de se dar um passo maior (COX et al. 2013, p.57). Numa charge de O
Malho nº 408 (1910) o caricaturista Leônidas aborda a mesma moda. Diz que “a civilização do traje
feminino vem agora do sertão”, e compara a saia amarrada no tornozelo com uma pamonha
empacotada em palha de milho.
31
161
Figura 34. Página 14 do nº 276 de O Tico-Tico.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Há outro exemplo disso, voltando à historieta do sorvete (Figura 32, p.156).
As taças de sorvete são objetos que disciplinam o consumo do produto. Cada taça
é uma dose adequada de sorvete. Faustina, não sendo ainda disciplinada nesse
quesito, tomou quanto sorvete deu vontade, uma vez que era um mimo de seu
marido. Tomou vinte taças, e isso é de grande importância na história, porque o
162
autor representa um monte de taças de sorvete vazias em cima da mesa do
restaurante. Conforme já foi exposto, a caricatura é uma forma de comunicação
muito sintética. Nenhum elemento figurativo é desenhado sem motivo. A imagem
da mesa cheia de taças é chave para o entendimento da história. Se o caso com
sorvetes parece simplesmente um exagero cômico, imaginemos a mesma cena com
um casal em que a esposa observa o marido beber vinte garrafas de cerveja, todas
expostas vazias em cima da mesa. Concluiríamos que o marido não soube beber,
passou muito dos limites, e que é uma cena trágica. Nós, leitores, sabemos disso,
porque cada garrafa ou cada taça de sorvete estabelece uma dose adequada de
consumo. O particionamento e a dosagem do consumo de alimentos e bebidas é
uma das funções dos “não-humanos” de Bruno Latour.
Ainda mais um caso desse tipo pode ter aparecido nessa série de historietas.
O filho de Zé Macaco, Baratinha, um dia, brinca de apertar a campainha elétrica de
uma casa, insistentemente, só para ver alguém da casa abrir a porta e topar com seu
companheiro, o moleque Chocolate. Enquanto a pessoa ralha com Chocolate,
Baratinha assiste a tudo escondido.
A brincadeira de mau gosto existe porque existe a campainha elétrica. O sinal
elétrico cria uma urgência no atendimento que a batida na madeira da porta não
tinha. Se, no passado, atendia-se a quem se anunciava de alguma forma ou chamava
o morador pelo nome, a impessoalidade característica da modernidade traz a
campainha que é um toque idêntico para qualquer um que solicita os moradores da
casa. É preciso atender à campainha elétrica sempre com a mesma urgência, pois
tanto pode ser um menino brincando quanto uma emergência (o mecanismo se
reproduz, hoje, até certo ponto, com as solicitações pelo telefone celular). Baratinha
sabe que o morador da casa com campainha elétrica vai atender ao toque com a
mesma urgência e disposição com que atenderia uma visita importante; ele
simplesmente não pode deixar de fazer isso, porque o sistema técnico o impõe.
Quando descobrir que não era ninguém, ou pior, que era um moleque que não tinha
nada melhor pra fazer, vai se enfurecer, para gosto do filho de Zé Macaco. O melhor
é que a brincadeira dá sempre certo: basta tocar a mesma campainha dali a alguns
minutos, que o morador vai correr pra atender do mesmo jeito.
As historietas com a família Zé Macaco estão retratando um processo de
assimilação das novidades materiais da modernidade em nosso país e, ao mesmo
tempo, colocando as questões envolvidas, de maneira que os leitores também
163
possam criar sua maneira de lidar com as transformações em seu próprio cotidiano,
inclusive a participação de sistemas e dispositivos na organização de suas vidas.
A vida civilizada é, realmente, muito dependente de objetos, mas eles são
“humildes”, na descrição de Daniel Miller, ou “silenciosos”, na de Bruno Latour.
Percebemos sua agência em casos como este: Storni nos mostra que Zé Macaco,
quando pousa na aldeia indígena para um trabalho civilizatório, começa de imediato
a ser despido de todas as roupas e equipamentos que levou, por um grupo de
indígenas que avança sobre ele, até que fica nu e, depois, ganha uma saia de penas
para, finalmente, entrar no padrão de normalidade local. Despido de objetos, ele,
num instante, fica incivilizado, esquecendo até da sua língua e de sua vida
pregressa, e precisa ser resgatado pela esposa, conforme foi narrado (ver Figura 35).
164
Figura 35. Despido das roupas e apetrechos de explorador, Zé Macaco rapidamente perde a
linguagem e até mesmo a consciência de quem é. Página 11 da edição 302 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Essa piada parece ilustrar a teoria de que não existe um sujeito-base, íntimo,
constante, porque ele é sempre constituído pelo próprio processo de absorver seus
objetos. Essa “objetificação” é a relação constituinte de ambos, sujeito e objeto.
165
Portanto, Zé Macaco só pode exercer uma subjetividade moderna e civilizada
enquanto carrega sua mochila, botas, binóculo, etc. Deixado de tanga, ele exerce
outro tipo de subjetividade, adequada à vida na aldeia bororo que ele visitou.
Além disso, a piada pode se referir ao pensamento corrente de que a civilidade
é uma “máscara” ou uma “hipocrisia”. Para Freud, frequentemente nos
desapontamos por termos, antes, superestimado o grau em que o ser humano se
transformou no sentido da Civilização: “O homem da pré-história sobrevive
imutável no nosso inconsciente” (FREUD, 2009, p. 27). A Civilização só seria
possível pela renúncia aos impulsos e basta que a repressão ceda para fazer aflorar
o comportamento associado às comunidades selvagens ou “bárbaras”.
Aqui tratamos o tempo todo de narrativas, ou seja, de representações no
contexto de uma cultura. Serge Moscovici observou como cada cultura usa de um
regime próprio de substituições para assimilar ideias novas (as científicas, em
particular). Termos específicos são tomados emprestados para generalizações e
termos biológicos são emprestados para representar ideias psicológicas, por
exemplo. No caso que analisamos, objetos servem para substituir abstrações. O
psicólogo social escreveu:
Desde o começo da era mecânica, os objetos dominaram e nós estamos
obsessionados com um animismo às avessas, que povoa nosso mundo com
máquinas, em vez de criaturas vivas. Podemos, pois, dizer que no referente a
complexos, átomos e genes, nós não apenas imaginamos um objeto, mas criamos,
em geral, uma imagem com a ajuda do objeto com o qual nós os identificamos
(MOSCOVICI, 2012, p. 76).
É possível que, na dificuldade de representar a modernidade e o progresso,
para os jovens leitores, em termos puramente abstratos, os autores de O Tico-Tico
tenham se lançado a falar o tempo todo de aeroplanos, automóveis, bicicletas,
gramofones e peças de vestuário. Além disso, fizeram os leitores visualizar corpos
acidentados, deformados e em movimento frenético. Isso era importante para a
criança de família abastada da Capital Federal, que realmente conhecia automóveis
e postes elétricos, mas era ainda mais significativo para os leitores do Brasil
interiorano. O historiador Nicolau Sevcenko, descrevendo esse contexto histórico
como foi vivido na “capital irradiante”, adverte que, apesar de se difundir um
discurso de que as novas técnicas traziam racionalização e organização, “O que
ocorre é o contrário: os novos recursos técnicos, por suas características mesmo,
desorientam,
intimidam,
perturbam,
confundem,
distorcem,
alucinam”
166
(SEVCENKO, 1998, p. 515-516), devido à desproporção entre a velocidade das
máquinas e as capacidades do corpo humano. Essas conclusões serão levadas em
conta na síntese do capítulo 5.
O estudo da produção de narrativas midiáticas de um tempo tão distante é
valioso porque o período específico escolhido é significativo para entender o
processo de subjetivação num contexto de rápidas transformações sociais e
materiais, e obter maior aprofundamento sobre os meios pelos quais as narrativas
seriadas, veiculadas pela mídia, colaboram em tal processo. Esse aprofundamento
aponta caminhos para entender também os processos da atualidade: como as
narrativas midiáticas estão colaborando na absorção e naturalização de tecnologias
da atualidade, como os drones, as câmeras de segurança, as próteses, os monitores
de atividade física e as assistentes digitais, por exemplo. Uma incursão nas tiras em
quadrinhos da atualidade será feita também no capítulo 5.
4. O processo civilizador
Inúmeras vezes, Alfredo Storni retratou Zé Macaco como um gênio inventor
autodidata, lidando com uma profusão de máquinas e processos transformadores,
as quais tornaram-se focos das narrativas sobre progresso material no início do
século XX. Em muitos outros números de O Tico-Tico o personagem proporcionou
riso por seu mergulho nas aceleradas transformações de comportamento que
ocorriam na capital do Brasil, num dos períodos históricos em que o processo
civilizador, descrito por Elias (2011), esteve mais em evidência.
O trabalho de Elias teve origem no estudo da sociedade de corte na França de
Luís XIV, passou pela formação do Estado moderno e se estendeu na comparação
de manuais de boas maneiras. O comportamento em eventos sociais como
banquetes – a etiqueta social – é o exemplo mais lembrado para discutir o processo
civilizador. Significativamente, o tema esteve lá nas “Aventuras de Zé Macaco”
(ver Figura 36).
O resumo da sequência de quadrinhos é que, para comemorar seu sucesso, Zé
Macaco celebra “um baile da moda” em seu “palacete do Morro da Viúva,
Botafogo”. Tudo é muito refinado, segundo a etiqueta. Os convidados dançam
alegres enquanto o chefe de família conversa civilizadamente sobre política.
Adiante será desenvolvida a ideia de que esse refinamento está fora de lugar, é de
aparência, sofre muita pressão para ser desmascarado e, por isso, deve durar pouco.
168
Figura 36. Ocasião refinada na residência da Família Zé Macaco. Página 14 do nº 357 de O TicoTico (1912).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Além do texto, a narrativa é produzida pelos signos visuais distribuídos na
cena pelo caricaturista. No primeiro quadro, o contraste entre os rostos grotescos,
desdentados e enrugados, e o vestuário. Faustina usa vestido na moda e cachos nos
cabelos; Zé Macaco está de fraque, com gravata, peitilho, punhos e calças brancas.
169
Chocolate, o “agregado à família”, veste o libré de lacaio dos tempos da monarquia.
A expressão do casal é civilizada: olhos fechados, concentrados, mãos contidas,
postas junto ao corpo. A representação do convite escrito diminui a ambiguidade
fundamental do desenho. O texto do convite já nos informa da pretensão civilizada
de Zé Macaco, aliás, “Mr. Zé Macaco” em inglês. Ele não realiza um baile, mas
uma “soirée”, em francês. O domínio dos idiomas dos centros da Civilização era
sinal de conhecimento da etiqueta.
No segundo quadro, é representada a amplitude do salão. Em segundo plano,
um grupo de tipos igualmente grotescos e bem vestidos a dançar e, em primeiro
plano, Zé Macaco, o que nos informa a profundidade do cenário. Pipoca, um
personagem das histórias de Max Yantok (colega de Storni) que em suas aventuras
é um criado completamente atabalhoado e se caracteriza pelo nariz muito comprido
marcado por uma verruga cabeluda, aparece aqui contido, bem vestido, com peruca
e conversando “em política”. Mais um sinal de que o caricaturista está brincando
com a manipulação de aparências.
Já era observado por Olavo Bilac, escrevendo com o pseudônimo Fantasio,
na revista ilustrada Kósmos de abril de 1906, que “A dança é por tal forma uma
preocupação característica da vida carioca, que é estudando e classificando, por
ordem de bairros, as danças preferidas do nosso povo, que se pode estabelecer a
geografia moral da cidade”. O sistema de danças serve, portanto, como sistema
classificatório de grupos sociais. Não apenas qual gênero de música se dança, mas
como se dança o gênero.
A festa aristocrática de Zé Macaco, no seu palacete do Morro da Viúva
(Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro), daquelas que têm automóveis parados na
porta, deveria exibir a dança “serena e majestosa como um rito religioso”, onde “os
gestos são medidos e solenes, as mãos apenas se tocam, os pés arrastam-se sem
barulho”, pois é assim que o poeta descreve a “dança de Botafogo”. No entanto, a
julgar pelos desenhos de Storni, comparados com as ilustrações de K.Lixto para o
texto de Fantasio, os convidados estão dançando “a dança da Cidade Nova” (centro
do Rio de Janeiro), identificada como maxixe: “Aqui, já não se tocam apenas os
corpos: colam-se. As mãos delas pesam – jugo doce! – sobre os ombros dele; nos
braços dele, como num estojo apertado, anseia a cintura dela. Faces em êxtase...”.
O caricaturista plantou no segundo plano de sua cena a denúncia de que aquela festa
de elite sofria de autenticidade.
170
No último quadro, desconsidere o grande saco de pano em destaque, porque
esse elemento só se desenvolve no número seguinte. Observe que a mesa é opulenta,
com doces arrumados em altura. Observe também que há uma grande fileira de
cadeiras de veludo vermelho num salão acortinado, como deve ser uma recepção
aristocrática. A Família Zé Macaco pode tentar ostentar civilidade, uma vez que
tem fortuna, mas sua rusticidade insiste em reaparecer. No caso, por meio das
brincadeiras do filho (dentro do saco tem um porco que foge pelo salão, assustando
todos e deixando a mesa de doces toda para o menino Baratinha). Essa oposição
entre adultos civilizados e criança dominada por pulsões é o padrão das lições
civilizadoras.
O ceticismo com que Storni representa a etiqueta civilizada não é novidade.
Após pesquisar a ocorrência do termo “civilização” na literatura ocidental, Jean
Starobinski constata que “Antes que se forme e se difunda a palavra civilização,
toda uma crítica do luxo, do refinamento das maneiras, da polidez hipócrita, da
corrupção provocada pela cultura das artes e das ciências está já instalada”
(STAROBINSKI, 2001, p. 18). O termo “civilização”, entendida como um
processo, não um estágio da sociedade, surge juntamente com a ideia de progresso
e com ela se confunde. Autores como Mirabeau elogiam as conquistas do progresso
ao mesmo tempo em que temem que, sem âncora moral, elas não passem de uma
máscara. Outros, como Montaigne e Descartes, relativizam a comparação entre
europeus e “bárbaros” do novo mundo, denunciando que os europeus não são
superiores em moralidade. Logo mais à frente, continua Starobinski, o valor da
civilização praticamente se sacraliza. A partir daí, tudo que não é civilizado é
considerado um alvo. A rusticidade passa a ser encarada como um “inimigo
interno” da sociedade civilizada; um inimigo que vive no interior dos homens e
merece toda a força empregada para ser obliterado (idem, p. 33). É aí que, mais uma
vez, é necessário encarar a civilização com ceticismo, pois, em nome dela, novas
barbaridades acontecerão.
O fato de entrar como justificativa em projetos políticos (como a colonização
ou a reforma urbana) não significa, para Norbert Elias, que o processo civilizador é
deliberado e racionalmente planejado. Afirma que
171
A civilização não é ‘razoável’ nem ‘racional’, como também não é ‘irracional’. É
posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma
de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as
pessoas se veem obrigadas a conviver (ELIAS, 1993, p. 195).
Um dos muitos mecanismos que movimentam o processo é a distinção social
por meio de gosto e comportamento. O comportamento adequado, segundo
etiquetas, é o que tem identificado os membros pertencentes a grupos de mais alta
posição social. Por outro lado, a falha em se comportar conforme determinadas
etiquetas expõe e expulsa os indivíduos de círculos sociais de maior distinção.
Grande parte da etiqueta social globalmente difundida provém de círculos
cortesãos, desde o uso de talheres, passando pelo cultivo de uma língua
internacional, até protocolo de receber e pagar visitas.
Como os preceitos de civilidade se difundem, outras camadas adotam os
mesmos comportamentos, eliminando o efeito distintivo. Isso leva as classes
dominantes ao contínuo desenvolvimento e ressignificação de etiquetas e padrões
de gosto idiossincráticos e pouco acessíveis. No passado, círculos aristocráticos e
cortesãos defendiam sua distinção ao afirmar que os burgueses, apesar de terem
dinheiro e informação para seguirem as mesmas etiquetas e gostos, não o faziam
com graça. Comportar-se civilizadamente “por graça” era esconder que aquilo tinha
sido aprendido e realizado com esforço e disciplina; simular que tais
comportamentos eram "naturais" da classe, que vinham “de dentro” (REVEL, 2009,
p.194). Numa comédia de Moliére, George Dandin, um camponês enriquecido se
casa com uma nobre empobrecida e luta desajeitadamente para aprender a etiqueta
da família da esposa, mas é inútil. Sempre falha; sempre há mais uma regra que ele
desconhece. A rejeição acaba destruindo sua identidade (idem, p. 201).
Na divisão de classes capitalista, de maneira análoga, prevalecem padrões de
gosto e de comportamento aprendidos que se mascaram como “natureza” ou,
popularmente, “berço”. Indivíduos que pretendem ascender socialmente encaram o
desafio de emular a classe superior. Outras vezes, a negação dos mesmos valores e
gostos é estratégia de indivíduos de classes inferiores para não investirem
despropositadamente numa ascensão ilusória e, ao contrário, valorizarem seu
próprio círculo (BOURDIEU, 2013). A pressão sobre a classe da baixa burguesia é
grande para ostentar padrões que a aproximem da alta burguesia, com custos
acessíveis, ao mesmo tempo em que renega qualquer proximidade de gosto com as
classes operárias. Um caricaturista de ethos pequeno-burguês, como Storni, deve
172
ter sido especialmente sensível a essas questões, e o personagem Zé Macaco pode
ter sido um meio para se colocar dentro das “aventuras”, o que fica evidente em
algumas das piadas de temática doméstica, como veremos adiante.
Após a preparação de uma tabela com dados da leitura de todas as publicações
de historietas com Zé Macaco disponíveis a constatação mais geral foi que o tema
do processo civilizador esteve sempre presente nas piadas. Ele foi explorado em
quatro formas recorrentes:
a) Invenções mecânicas e biológicas de Zé Macaco.
b) As modas seguidas por Faustina e Zé Macaco.
c) Peraltices de Baratinha, o filho do casal.
d) Reações violentas e descontroladas / troca de papéis com animais.
É aconselhável pintar um “quadro geral” dessas histórias, para depois
problematizá-las. Numa legenda do número 421, em 1913, Zé Macaco é descrito
como “um caboclo cheio de ideias extravagantes”. O lado engenhoso de Zé Macaco
começa a ser demonstrado ainda nos primeiros anos, quando era um solitário capiau
em visita à capital. Ele adapta um chapéu para usar como barco para escapar de
uma enchente. Na segunda fase da série, voltando rico da Europa, constrói o “aéreoburro” sozinho. Com esse veículo resgata Faustina de uma confusão na rua, viaja à
selva e chega a visitar a Lua. A partir de 1912, enfileira uma série de inventos:
máquina de matar pulgas, máquina de matar mosquitos, máquina de reciclar sucata
na forma de chapéus, sérum de crescimento, transplante entre animais, máquina de
pentear, máquina voadora individual, guarda-chuvas automático, traje submarino,
entre outras. Em 1915 o autor começa a ironizar o personagem por só criar coisas
ridículas que acabam não funcionando. Mais tarde, em 1921, a legenda conta que
“todos sabem que Zé Macaco é um inventor de fama”.32
Dois motivos dão em invenções de Zé Macaco: achar-se entediado (no
número 417 a história começa quando ele “estava achando a vida insípida, sem
novidades”) e ficar empolgado com alguma novidade que deseja imitar (caso do
bondinho do Pão-de-Açúcar, do carro alegórico do carnaval e das várias expedições
32
Em outra fase do personagem, de 1928 em diante, fora do recorte desta pesquisa, as invenções,
imitações e adaptações continuam se acumulando. Zé Macaco constrói um exoesqueleto para escalar
montanhas, inventa um dirigível equestre, realiza implante capilar, inventa máquina de lavar pratos,
sapato pulador, receitas de picolé e de sopa, entre muitas outras.
173
à selva). Com o tempo, o filho Baratinha, além das peraltices usuais, também decide
inventar alguma coisa, sempre usando Chocolate como cobaia. Testou a
“humanocultura”, plantando o amigo no quintal; botou um cão dentro de uma
máquina para fingir de “lava-pratos” e botou Chocolate dentro de uma caixa para
fingir de gramofone que só cantava “Cabocla de Caxangá”33. Por um certo tempo,
pai e filho competem para ver quem é mais genial.
As invenções de Zé Macaco funcionam de maneira fantasiosa e ridícula.
Algumas vezes justificam o aumento da fortuna da família mas, em geral, são
inconsequentes. No final da série, antes de Storni sair de O Tico-Tico pela primeira
vez, isso muda. Zé Macaco começa a reconhecer que seus inventos fracassam. No
número 871 (1922), “Zé Macaco, emocionado, agradeceu o trabalho de seus
salvadores e reconheceu, mais uma vez, a inutilidade de seu gênio inventivo”.
Em relação ao segundo grupo de histórias, as piadas são aquelas em que
Faustina deseja seguir a moda e experimentar alguma novidade, ou quando Zé
Macaco se empolga com uma notícia e vai imitar os feitos de outros. Assim,
Faustina, um dia, experimenta a saia-calção (jupe-cullote34) e é hostilizada na rua;
sai com vestido-balão e, depois de tropeçar, não consegue se levantar; toma muitos
sorvetes e fica congelada (ver Capitulo 3); anda de motocicleta e quase causa
acidente; aposta em carreira como cantora e como atriz de cinema; usa todo tipo de
chapéu extravagante; chega a matar um burro para usar as duas orelhas dele no
chapéu. Um dia na vida de Faustina é descrito na edição 441, em 1914: “A Faustina,
como senhora chic, tem o dia bem distribuído. De manhã, sai de casa, toda na moda,
inclusive com véu moderno, dos tais que tapam a boca”. Nesse dia ela passa pela
loja de tecidos, pela sorveteria e pelo cinema antes de voltar pra casa.
No número 596 (1917), Faustina inventa a minissaia quarenta anos antes da
estilista Mary Quant. Pediu que seu tailleur fizesse um modelo de saia que
“Cabocla de Caxangá”, de Catulo da Paixão Cearense, é de 1913 e estourou no carnaval 1914.
Cheia de repetições e palavras indígenas.
33
34
A saia-calça foi inventada por esportistas e virou moda em 1911 pela inspiração oriental do
estilista Paul Poiret. Defendida por feministas, simbolizava liberdade de movimento. Enquanto, nas
ruas, as pioneiras que caminhassem de saia-calça eram hostilizadas, nas revistas ilustradas o modelo
era celebrado como a moda mais chic. No mesmo número de O Tico-Tico em que Faustina assumiu
as calças do marido foi publicado um anúncio de página inteira dos Armazéns A Brasileira, do Rio
de Janeiro, oferecendo modelos de “jupe-cullote para senhoras e meninas”, com uma grande
fotografia. Sobre o estilo, ver matéria no site vogue.com por Laird Borrelli-Persson, disponível em:
<https://www.vogue.com/article/the-ups-and-downs-of-culottes-a-brief-history-from-paul-poiretto-hedi-slimane> . Acesso em 14 dez. 2020.
174
imaginou, bem curto, mas, quando Zé Macaco a viu, ficou escandalizado e mandou
que ela vestisse a única coisa que havia ali, que eram calças de homem. O resultado
é que, andando na rua com as duas peças de roupa, ela lança a moda das calças por
baixo de vestidos.
Tudo que Faustina procura são experiências que a distingam como dama de
alta classe e mulher atualizada. Nem sempre são experiências de consumo. Um dia
decide pronunciar um discurso feminista; outro dia decide ir à Europa (a pé!) para
se juntar aos aliados na Grande Guerra (Faustina era inglesa); depois, faz filantropia
como as madames da sociedade: “Como senhora da moda, também a Faustina quis
fazer qualquer coisa em benefício dos flagelados do Norte” (nº 521, de 1915). São
raras as histórias em que Faustina se preocupa com a gestão do lar. Por outro lado,
na fase tardia dos personagens, a partir de 1928, o casal se comporta como membros
da classe média e é mais frequente ver Faustina cozinhando ou se preocupando em
agradar ao marido, dentro de um modelo de comportamento de baixa burguesia.
Algumas tiradas de Faustina: “Que inveja vão ter as de ‘pichulin’ quando
virem o meu retrato na capa do Cinearte...” (nº 1195, de 1928); “Estou admirável!
Esta toilette de Maria Antonieta me assenta admiravelmente!” (nº 1198, de 1928);
“Vou fumar! Tal qual essas grandes artistas de cinema. Agora sou uma mulher
vampiro. Quero ser confundida com a Nita Naldi.” (nº 1219, de 1929).
Por seu lado, Zé Macaco uma vez quer ser pacificador de indígenas, outra vez
quer ser detetive, jóquei, dublador, alpinista... e até político. É uma maneira de se
aproveitar os assuntos mais comentados da semana para escrever histórias. O que o
caricaturista Storni comentava em O Malho, para leitores adultos, virava fantasias
em O Tico-Tico.
Outro tema a que Storni recorre quando ridiculariza o modismo é o dos
charlatães. A família Zé Macaco sempre é atendida por charlatães quando precisa
de atendimento médico, dentário, e até policial. Contrata pessoas apenas pela fama,
paga caro e sofre as consequências.
Os dois primeiros grupos de histórias abordados têm a ver com relações de
consumo, que se sofisticam no ritmo do progresso. Elas atravessam muitas piadas
em que Zé Macaco tem altos e baixos na fortuna. Uma vez sua fortuna aumenta
com o sucesso de uma invenção; outras, a fortuna acaba. O casal é forçado a
economizar (os gastos de Faustina com chapéus são uma preocupação) e a procurar
175
trabalho alternativo, chegando a se apresentar no circo e a tentar o comércio numa
humilde vila do interior.
O terceiro grupo de piadas é em torno do Baratinha. Em O Tico-Tico, todos
os meninos personagens de historietas eram “arteiros”. Na família Zé Macaco não
seria diferente. Baratinha representa a infância que precisa ser reprimida nas suas
pulsões. Joga-se embaixo de um rolo compressor (ver Capítulo 3, p.137), engole o
que tem pela frente, arma “pegadinhas” para o companheiro Chocolate e para os
próprios pais. Contrariado, executa vinganças. Como todas as histórias
civilizadoras de O Tico-Tico nas primeiras décadas do século XX, as crianças não
são instruídas carinhosamente, e sim punidas violentamente pelos próprios fatos, a
fim de que se lembrem de não repetir os excessos. No número 340 (1912), Baratinha
visita o país das baratas. O menino bebe vinho “Sangue de Barata” com a rainha,
cai de bêbado no chão e é roído por um monte de baratas. Foge, porém, e reencontra
o pai no fim. Nessa época ainda não era uma barbaridade representar uma criança
bebendo álcool numa revista infantil.
O quarto tema recorrente pode ser rotulado como o das pulsões violentas e
animais. Há várias piadas com a confusão entre Zé Macaco e animais. Na sua
primeira fase, turistas ingleses dados ao exótico o encontram na rua e ficam
estudando sua aparência, confundindo-o com um animal, até que ele se zanga e dá
uma surra neles (nº 180, em 1909). O mesmo acontece quando ele pousa numa
aldeia dos Bororo: pensam que ele é um macaco e tiram suas roupas. Macacos
também cismam em trazê-lo para o bando (nº 184, em 1909). No número 445 (1914)
Zé Macaco sai para pescar e é surpreendido por um macaco que rouba suas roupas,
veste-as e corre para a casa dele, chegando quase a enganar a Faustina35. Sempre
que é ultrajado, Zé Macaco reage com os punhos, violentamente, o que parece dizer
sobre seu interior indomável. Mas ele também é surrado violentamente por policiais
algumas vezes.
Storni explora a ideia de que Zé Macaco é feito de alguma matéria especial,
com poder regenerativo, que o impede de sucumbir, apesar de seu corpo ser alvo de
sevícias e barbaridades que o matariam. O recurso fantasioso é bem difundido entre
os autores de histórias em quadrinhos e desenhos animados, principalmente porque
permite a satisfação do leitor na iteratividade, ou seja, permite que a vida do
35
Zé Macaco também se metamorfoseia em caranguejo depois de tomar sopa de siri e em sapo
depois de tomar sopa de rã.
176
personagem sempre possa recomeçar do zero a cada capítulo. No entanto, seria
interessante interpretar que, no caso de Zé Macaco, esse poder regenerativo e essa
resiliência são signos associados à potência de suas pulsões primitivas ou animais.
A partir desse sobrevoo das “Aventuras de Zé Macaco”, foram selecionadas
algumas das historietas a seguir (de 1909 a 1922) tendo em vista quão significativas
elas são para aprofundar o estudo da contribuição do artista e suas narrativas para o
processo civilizador, tanto na pedagogia do comportamento civilizado quanto na
discussão do próprio processo, devido às dúvidas que nublam o brilho da
civilização. As historietas selecionadas deveriam atender ao seguinte critério: tema
relacionado ao processo civilizador e complexidade da expressão, compondo
bonecos, cenários, letreiros e legendas. Da seleção inicial das 12 histórias mais ricas
e sugestivas, foram selecionadas 8 para, aos pares, trazerem quatro aspectos do
processo para discussão.
Essa análise continua sendo feita em articulação com a teoria sobre como o
artista produz sua obra na forma de lances no campo profissional a partir das
possibilidades à sua frente. Também se articula com a posição mediadora que o
artista tem nos processos culturais de criação de representações sociais.
4.1. Aventuras no cinema
A história do desenvolvimento do cinema se entrelaça com a história da
subjetividade moderna. Cinema e modernidade têm vários pontos de convergência.
O cinema é um dos “emblemas” da modernidade, entre outras técnicas e invenções.
Expressa seus principais atributos, tais como o espetáculo, o consumismo, a
efemeridade, a mobilidade, a fragmentação. De fato, a cultura moderna já era
“cinematográfica” antes da invenção do cinema (CHARNEY e SCHWARTZ,
2004).
Alfredo Storni não deixaria de abordar o cinema como mais uma das modas
a que a família Zé Macaco iria aderir. Fez isso em duas ocasiões, com premissas
bastante distintas. Na primeira vez, a piada se faz sobre a falha da família Zé
Macaco em se comportar de maneira civilizada durante a sessão (ver Figura 37).
177
Figura 37. Descontrole num “programa cheio de fitas cômicas”. Pág.14 do nº 291 de O Tico-Tico
(1911).
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
178
No primeiro quadro a família adentra a sala de cinema, com sua característica
bilheteria e seu característico cartaz. No segundo, comporta-se com a mesma
excitação e expectativa do restante do público, atrás deles. Quando veem a “fita”
de comédia “pastelão”, no entanto, eles não se contêm. Gargalham alto,
ininterruptamente, perdem “toda a compostura”. Rir, como os outros espectadores,
era aceitável. O inaceitável (a perda do autocontrole civilizado) era se revirarem nas
cadeiras, de pernas para o ar, contorcidos como se sofressem de uma doença: “como
se estivessem com cólera-morbus”. A história continua no número seguinte,
quando, pelos protestos do público, o “guarda do Cinema” vem para chamar Zé
Macaco “à ordem”. Segue-se mais incivilidade. Zé Macaco se enfurece e “se atira”
ao guarda. Todos caem numa pancadaria e a família termina sendo levada pela
polícia, num “camburão” apelidado, na época, de “fantasma vermelho” ou “viúva
alegre”. Lição aprendida!
Há mais para “ler” na primeira parte da historieta. No terceiro quadrinho, o
autor se vale de uma técnica narrativa compartilhada entre os quadrinhos e o
cinema: a do contraplano. O desenhista representa o ponto de vista oposto ao do
segundo quadrinho. Em outras palavras, no segundo quadrinho vemos os
personagens reagindo; no terceiro quadrinho, vemos o que provocou a reação dos
personagens. A legenda é mais do que clara; é didática: “A fita era daquelas de
corridas e atropelos, e o estardalhaço das cenas grotescas produzia enorme
satisfação na família do Zé Macaco...”. Storni, trabalhando com o tema em 1911,
ainda precisa ser claro sobre como é a experiência da sessão de cinema. Por isso,
desenha a própria tela de cinema. Pinta-a, inclusive, de “preto e branco”, conforme
um dos limites dessa mídia. Percebia que estava se comunicando com leitores que
tinham uma noção incompleta do que era a sessão de cinema, e precisava
estabelecer qual era o conteúdo das cenas e qual reação provocaria no público, ou
a piada não seria compreendida.
Significativa é a escolha de palavras para a legenda. Com três termos,
“corridas”, “atropelos” e “estardalhaço”, reafirma os choques e estímulos mais
violentos típicos da vivência urbana na modernidade. Com o termo “grotescas”,
julga negativamente o conteúdo da fita e, por consequência, julga também o
comportamento da família. Essa é sua mensagem explícita, na adoção de um
discurso que expõe ao ridículo o comportamento descontrolado num espaço
179
público. Colabora, dessa forma, com as mensagens pedagógicas sobre como ser e
como não ser civilizado, que são o principal material de O Tico-Tico.
Existe também uma mensagem que pode não ter sido intencional. Storni, com
o terceiro quadrinho, estava se comunicando também com leitores Brasil afora, que
recebiam habitualmente O Tico-Tico, mas nem todos tinham acesso a uma sala de
cinema. Nessa história ele narra pedagogicamente como é a experiência de uma
sessão de cinema, com começo, meio e fim. Representa o que os espectadores veem
na tela, representa a escuridão que é necessário suportar para que se dê a sessão e
ainda atesta que o cinema produz “enorme satisfação”. Não deixa de ser um convite
para a participação de mais pessoas – conscientes da etiqueta requerida – na nova e
excitante atividade.
A pauta do cinema esteve algumas vezes na seção “Lições de Vovô”, com
descrições minuciosas da mecânica dessa “arte” e ilustrações do equipamento, mas
as historietas de Storni são raríssimas ocasiões em que a sessão de cinema, como
evento, foi representada em O Tico-Tico. Não era banal desenhar uma plateia, no
escuro, observando a projeção luminosa na tela, e se emocionando com as imagens.
Essa representação, por meio da caricatura, seria importante para difundir a etiqueta
da sessão de cinema.
Da segunda vez que Storni aborda o tema, não o trata como novidade. Já é
uma atividade artística e industrial estabelecida, com mercado consumidor educado.
Indivíduos que eram neófitos naquele hábito de consumo são rapidamente
sucedidos por indivíduos capazes de a) criticar o produto e b) emular a técnica de
produção. Assim, Zé Macaco, que em 1911 fazia “macaquices” na sala de cinema,
em 1912 entra para o ramo da indústria cinematográfica (ver Figura 38).
180
Figura 38. Produção de uma “mirabolante fita”. Pág.24 do nº 376 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Mais uma vez, tudo começa quando ele se acha inquieto: “Zé Macaco não
descansava. Como sempre, tinha iniciativas novas”. Com sua fortuna, ele pode
comprar um “aparelho de fazer fitas cinematográficas”, e o faz. Nesse ponto, ele,
enquanto consumidor de cinema, sabe que as “fitas” são feitas em “todos os feitios”.
181
Assim, opta por começar suas experiências pela tragédia. Os atores são amadores.
Usa sua própria família. Em seguida, vende a fita para um distribuidor e faz um
cartaz. Já são duas providências de quem conhece o lado da produção
cinematográfica, além do lado do consumo. Além disso, a produtora já tem
logotipo. Vemos no cartaz da “Macaco Film” um mico sentado sobre um globo
azul. A empresa promete “arte, sucesso, assombro”. Até aí tudo vai bem. Sendo
imitação ou não, é tudo conforme a “cartilha”. A piada acontece quando a fita de
Zé Macaco é exibida. O público “que enchia o cinema” revolta-se com a má
qualidade do filme. A legenda esclarece que “...reagindo violentamente, quase
destruiu a sala de espetáculos” e forçou a família Zé Macaco a se esconder.
Nas duas historietas Storni associa o cinema às pulsões psicológicas. A
diferença é que, na primeira, Zé Macaco começa uma pancadaria porque se ultrajou
com a admoestação de um funcionário do cinema; na segunda, o público ataca a
própria sala, contrariado em pagar para ver um espetáculo abaixo da crítica.
É fato que a programação do cinema da época se dividia entre o
documentário, em que a produção local investia mais, e a ficção, importada, com
foco no entretenimento (SUSSEKIND, 1987). Mas a ficção era modelada a partir
da herança do “melodrama de sensação” que o precedera na preferência do público.
As histórias de suspense simples, maniqueístas e previsíveis, e a atuação pouco
natural, com gestos codificados segundo uma gramática conhecida pelo espectador,
eram característica das fitas feitas para estimular reações emocionais que seriam
esquecidas logo após a sessão (SINGER, 2001). É o tipo de “tragédia” que Zé
Macaco tentou emular, numa cena em que o menino Baratinha aparece com uma
enorme faca cravada no peito e Faustina levanta uma das mãos para o céu e põe a
outra sobre o coração, em esbugalhado desespero. A plateia não “comprou” o
exagero diletante, mas sua expectativa de grandes emoções teve uma válvula de
escape: o protesto.
A visão céptica que Storni tinha do cinema, o qual ele ridicularizou junto com
a família Zé Macaco, corresponde parcialmente à dos cronistas da época. Paulo
Barreto, o João do Rio, tomava o cinema como paradigma da arte narrativa
moderna, tanto que batizou sua coletânea de “crônicas cariocas” de Cinematógrafo.
Bastos Tigre emprestou sua habilidade com as palavras às legendas da produção O
filme do diabo (1915). Olavo Bilac participou de A Pátria Brasileira (1917). No
entanto, muitos ironizavam o fato de que o cinema era feito para apreciação ligeira,
182
não intelectual. Um personagem do mesmo João do Rio descreve a outro como, ao
assistir a um filme, ficou pasmo em observar o nível da estupidez humana. Numa
caricatura de J. Carlos para Careta, em 1909, um “elegante” aconselha os outros a
irem assistir a um filme “de arte”, “um drama ao alcance da inteligência mais
medíocre” (SUSSEKIND, 1987). Artur Azevedo abordava os cinematógrafos como
espaço de sociabilidade, onde todos – de todas as classes, pois havia diferentes
endereços com cinemas – se encontravam para ficarem inteirados das novidades e
compartilharem assuntos da moda. O escuro da sala, no entanto, permitia que
aflorassem instintos condenáveis. No sainete “Cinematógrafos” (1907), um pai de
família avisa à esposa que suas filhas correm perigo de serem bolinadas na sala de
cinema pelos “pelintras”, se forem desacompanhadas (SICILIANO, 2014, p. 256).
Enfim, retorna-se ao argumento de que os avanços materiais da civilização,
mesmo acompanhados com avanços na civilidade (a etiqueta da sessão de cinema),
não se tornam avanços da humanidade. Na verdade, podem mesmo rebaixar os
indivíduos, facilitando a vida. Ou, em outras palavras, mais moralistas, o progresso
“amolece” o espírito dos homens.
Sem essa dose de moralismo, Georg Simmel (1971) aborda essa preocupação
quando diz que o avanço da cultura objetiva – a multiplicação dos objetos e
processos técnicos disponíveis, e o aumento do seu poder – é mais rápido do que o
avanço da cultura subjetiva – o desenvolvimento de cada indivíduo, para além do
inato. O resultado é que mais poder material vai sendo concedido a indivíduos que
não tiveram que se desenvolver internamente na mesma proporção das máquinas.
Apenas repetem as instruções de uso e se safam com isso. Storni poderia escrever
que até macacos são capazes de imitar os homens e passar por civilizados, apenas
para serem desmascarados na primeira oportunidade. Aliás, o colega dele, o
cearense Leônidas, fez essa piada, na historieta “Os macacos e o ciclismo” (nº 15,
1906)36. Zé Macaco, homem de seu tempo, “macaqueia” o cinema porque,
materialmente, pode, mas será logo exposto em suas limitações pela plateia
inconformada.
36
Leônidas, que explorava muito o tema da civilização, principalmente ironizando a empolgação
com o progresso material e preconizando a retidão de comportamento, em 1915 começa a desenhar
historietas com macacos no lugar de humanos. No número 504 um policial macaco leva para a prisão
um malfeitor macaco, o que nos lembra a ficção científica O planeta dos macacos.
183
4.2. A moeda de troca de Zé Macaco
Zé Macaco tem um trunfo que causa inveja, mas esse trunfo não é desejado
por seus contemporâneos: seu interior incivilizado, o qual transparece em sua face
e seus gestos, encanta as pessoas. Mais de uma vez ele recompõe sua fortuna
apresentando espetáculos populares. Recapitulando: sua fortuna, na primeira vez, é
explicada como herança. Em 1911 ela simplesmente acaba. O casal se vê “a braços
com a miséria” e alista-se no elenco de um teatro de variedades (ver Figura 39).
Figura 39. Oferecendo-se como “artistas excêntricos”. Pág.14 do nº 321 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
184
No primeiro quadro, Storni desenha os personagens em atitude suplicante. Zé
Macaco tira o chapéu para falar com o dono do teatro, parece até que mostra o
chapéu para pedir esmola; Faustina faz gesto de súplica com a palma da mão.
Aquela exibição involuntária de desajuste social garantiu a vaga: “Dado o aspecto
exótico do casal, foram contratados incontinenti”. O impactante terceiro quadro,
desenhado na forma mesma do palco, emoldura a dança mais desengonçada que
Storni conseguiu imaginar: “Embora não soubessem o que iam fazer, Zé Macaco e
sua mulher, aquele metido numa pavorosa casaca, e esta com vestuário de
dançarina, atiraram-se a uma dança desesperada que arrancou gostosas
gargalhadas ao público (grifos meus)”.
Storni pode ter ficado satisfeito em colocar seu personagem nessa situação. A
princípio, Zé Macaco representa um indivíduo que goza de riqueza sem nenhum
merecimento, cai em desgraça e é punido com a necessidade de se socorrer num
trabalho que o expõe ao ridículo, alvo de gargalhadas. Uma vez retirado o verniz
das posses, seu interior grotesco é revelado. No entanto, tudo é ambíguo nas
narrativas de Zé Macaco. O autor faz meia-volta e, na semana seguinte, o casal já
colhe os louros e o ouro do sucesso, transformando-se outra vez (ver Figura 40).
185
Figura 40. A multidão os contempla admirada. Pág.14 do nº 322 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
A mudança de sorte imprime a eles novos padrões de comportamento que se
denotam na postura corporal e expressão facial. A segunda parte da história começa
com o casal ainda em caracterização grotesca. Está “suando em bica”, curvado,
amarrotado, de boca meio aberta e olhos semicerrados, depois de dançar muito (Zé
Macaco pediu “Força, Faustina!”) e de voltar ao palco “mais de 35 vezes” para
186
receber aplausos. Vale comparar com a figura de Zé Macaco no penúltimo
quadrinho. As vestes são elegantes e justas, ele dá as costas para o interlocutor, tem
uma mão na cintura e outra portando um cigarro; a expressão facial, olhos fechados
e lábios em bico, é desdenhosa, conforme uma categorização de expressão de
sentimentos estudada por Charles Darwin (1899). Tudo que Storni desenha aqui
denota atitude de superioridade, senão de arrogância37.
Zé Macaco e Faustina tornaram-se “duas celebridades”, apontados pelo povo
na rua, quando passam de automóvel. Os repórteres, diz a legenda, “publicavam as
asneiras que dizia o Zé Macaco como se fossem palavras de um grande homem”.
Não importa que o sucesso provenha da exibição do seu interior grotesco, nãocivilizado. O sucesso é uma moeda, não carrega manchas de origem, e banca um
comportamento civilizado de fachada. Mais uma vez, são objetos materiais e
distintivos cujas representações caricaturais funcionam como signos do progresso:
o automóvel já citado, os cartões nos buquês de flores presenteados, e a “campainha
elétrica do elegante palacete de Zé Macaco em Copacabana” com direito a placa na
entrada: “Villa Zé Macaco”.
A situação da mansão de Zé Macaco no bairro de Copacabana, no contexto
de 1911, conota que ele é um “novo rico” ou “emergente”, uma vez que o bairro,
antes da inauguração do hotel Copacabana Palace (1923) era ainda uma fronteira,
uma expansão recente da capital. As imagens construídas em torno do bairro, nesse
período, compõem uma “cartilha” que o associa a um estilo de vida cujos valores
são salubridade, prazer, juventude, investimento lucrativo e tranquilidade num
ambiente praiano mas indubitavelmente urbano: tudo começa quando se abre o
acesso por bonde (O’DONNELL, 2013).
4.3. Quem é o civilizado, quem é o incivil?
No início do século XX ainda era admissível publicar uma revista para
crianças e jovens com piadas que retratam atropelamentos, espancamentos,
mordidas, esquartejamentos, sangue derramado, tiros e explosões. Assim, algumas
vezes, Zé Macaco é agredido até as portas da morte; outras, ele usa os punhos para
É a mesma expressão que Zé Macaco faz quando dá uma “carteirada” na polícia, no número 459
(1914). Ele havia sido preso só por andar na rua, suspeito de ser um daqueles do “atentado anarquista
aos príncipes da Áustria” (estopim da Primeira Guerra Mundial) e se deixa levar só para, na última
hora, sacar um cartão de visitas com seu nome e deixar apavorados os guardas e o delegado. Ele era
“grande” e “ilustre”, acima de qualquer suspeita, só por ser personagem de O Tico-Tico.
37
187
reagir. Vingança é um tema corrente nas histórias dele e de quase todos os
personagens. Isso importa quando se está procurando entender como o público da
revista infantil e o caricaturista estão dialogando e construindo signos para
alimentar a pedagogia civilizadora em todos os seus sentidos.
Duas historietas em que Zé Macaco briga são mais significativas em relação
a esse ponto. A primeira, publicada no início de 1912, é consequência direta dos
acontecimentos da história do teatro de variedades. Zé Macaco é contatado por um
agente teatral e, enganado com promessas de carreira artística nos Estados Unidos,
viaja para lá e a família toda fica presa num circo norte-americano. São forçados a
se “fantasiar” de indígenas e são exibidos “como sendo uma tribo de selvagens
brasileiros do sertão do Mato Grosso” (ver Figura 41).
188
Figura 41. “Perante o assombro de dez mil yankees”. Pág.14 do nº 329 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
Quando o apresentador do circo, com um chicote, ordena que dancem “como
ursos”, é a gota d’água para Zé Macaco, que o ataca no meio do espetáculo. Zé usa
o “sistema brasileiro” de entrar numa briga: dá uma cabeçada na barriga. Baratinha
segue o pai na pancadaria e dá um “rabo-de-arraia” no adversário. Na sequência
eles fogem e conseguem voltar ao Brasil. Aqui, além da evidente oposição entre
189
cultura brasileira e norte-americana, com as representações de civilização e
selvageria em jogo, há que se fazer a leitura freudiana das pulsões violentas que são
autorizadas em determinado contexto social.
As mesmas pulsões, por comparação, ficariam sob julgamento na outra
historieta selecionada por retratar um arroubo violento de Zé Macaco. Ele passeava
“despreocupadamente” – imagina-se pela Avenida Central – quando um senhor dá
uma topada nele, acertando-o com o punho. Pior: o senhor nem pede desculpas,
apenas segue seu caminho em passos largos, olhando apenas para a frente (ver
Figura 42).
Figura 42. O malcriado. Capa do nº 388 de O Tico-Tico (1913).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
190
A falta de civilidade do estranho senhor de chapéu provoca reação em Zé
Macaco, que quer “revanche”. Zé Macaco persegue “o insolente”, chama-o, mas é
ignorado. A tensão aumenta e Zé Macaco dispara tiros no homem, depois o alcança
e arrebenta-o com “vários socos e pontapés”. A piada é que, só no final, Zé Macaco
percebe que era um boneco mecânico, um brinquedo simulador da vida, com corda
suficiente para seis meses e garantia de um ano38.
Nesse enredo as representações de civilidade e selvageria também se
misturam. Zé Macaco faz um passeio, atividade regulada pela etiqueta civilizada.
Encontra um homem que não se desculpa de um encontrão, ou seja, um
“malcriado”. Esse homem tem um caminhar extremamente disciplinado, ou seja, é
civilizado. Zé Macaco reage com tiros, socos e pontapés, ou seja, selvageria, para
cobrar uma falta à civilidade. No fim, reconhece que assassinou um “sujeito pau”
que o merecia. Mas o boneco se tratava de uma maravilha técnica, uma
demonstração do progresso, que ele tomou por ser vivo, uma vez que seu
conhecimento e sensibilidade são primitivos. Afinal, trata-se do Zé Macaco.
Storni, mais uma vez, parece jogar com as aparências. Quando um
personagem tem comportamento civilizado, logo depois se revela incivil. Há
diferenças entre os dois enredos, sobre esse ponto. Na piada do circo, Zé Macaco
claramente delibera a ação violenta contra o seu inimigo. Isso é denotado pelo
segundo quadrinho, em formato irregular, no qual se representa apenas o rosto do
personagem, olhando de soslaio e coçando o queixo. Na piada do boneco
ambulante, Zé Macaco não pondera; vai reagindo cada vez mais impensadamente,
quanto mais o “malcriado” o ignora.
A diferença pode ser entendida segundo a teoria freudiana das pulsões,
conforme exposta na obra O Mal-estar na Civilização. Freud afirma que “o pendor
à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano”, a par
com as pulsões de vida ou amorosas. A civilização tem que lutar contra as pulsões
de morte ou violência, “seu mais poderoso obstáculo” já que depende do princípio
de juntar os indivíduos, primeiro como casal, depois como família, “depois etnias,
38
Alguns dos predecessores da figura do homem mecânico são a boneca Olímpia, de O Homem de
Areia, por E. T. A. Hoffmann, publicado em 1817 e o autômato Tik-tok, do livro infantil Ozma of
Oz, de L. Frank Baum, publicado em 1907. Ambos só se movimentavam se dessem corda a seus
mecanismos. A peça teatral de Karel Çapek na qual se cunhou a palavra robot estrearia apenas em
1921. A história desses seres meio homens e meio máquinas é contada em The artificial human: a
tragic history, por Horst Albert Glaser e Sabine Rossabach (Peter Lang Academic Publishing, 2020).
191
povos e nações numa grande unidade, a da humanidade” (FREUD, 2010, p. 90).
Essa é a visão “evolutiva” e “progressiva” também de John Stuart Mill, para quem
a civilização é resultado de um processo de agregação dos homens em grupos cada
vez maiores, na sua história, com fins de cooperação (PAGDEN, 2013). É o mesmo
entendimento de Norbert Elias. Daí o motivo de se ensinarem etiquetas para o
convívio entre todos os indivíduos, mesmo que sejam estranhos entre si.
A condição de progresso material e cultural, ciências e artes é a civilização, e
ela só existe com agregação social de grandes proporções e a observação de
etiquetas e outras normas comuns (língua padrão e sistema de medidas, por
exemplo). Um dado projeto de progresso precisa lidar com a violência entre
pessoas. Deve eliminar os motivos que provocam a pulsão de morte, ou, se não é
possível, reprimi-la.
O projeto republicano brasileiro, na época de Storni, era de pedagogia
civilizadora, conforme já se dissertou. Porém, desde o início foi visto com ceticismo
e apelou também à repressão que, no nosso caso, era a repressão de tudo que tivesse
origem popular. Até mesmo no meio já bastante elitizado em que viviam os autores
das revistas ilustradas do Rio de Janeiro, essa repressão foi reiteradamente retratada
pelos caricaturistas, com piadas em que o guarda civil coage, prende e bate em
qualquer um que apenas pareça não estar cumprindo as posturas municipais e a
etiqueta de circulação pela Avenida Central. Um exemplo é a conclusão da aventura
de Zé Macaco entre os indígenas, apresentada no capítulo 3, p.164. Guarda civil
admoesta Zé Macaco por sua aparência selvagem. Faustina protesta, toca no guarda
e este reage com violência desproporcional, representado como um monstro pelo
caricaturista. O resultado é que a brutal cassetada faz Zé Macaco recuperar a
memória e os modos urbanos (ver Figura 43).
192
Figura 43. “Não pode!” disse o guarda. Página 11 do nº 310 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
A agressividade, portanto, não é sempre reprimida. Há situações em que a
sociedade canaliza essas pulsões com objetivos. Ou “essa cruel agressividade
aguarda uma provocação, ou se coloca a serviço de um propósito diferente, que
poderia ser atingido por meios mais suaves” (FREUD, 2010, p. 77). Na segunda
historieta, o impulso agressivo de Zé Macaco foi provocado imediatamente pelo
193
mal-entendido com o boneco mecânico. Na historieta do circo é diferente. Zé
Macaco pondera que, sendo a família abusada pelo tratador “yankee”, estão
liberados os instintos. A satisfação do personagem em surpreender o adversário e,
inclusive, lutar na vantagem de dois contra um, espelha a satisfação do leitor em
acompanhar a historieta e torcer para o brasileiro.
Na guerra, o Estado, em vez de desarmar os indivíduos e reprimir as pulsões
violentas, impele os soldados a deixarem fluir sua agressividade, desde que
autorizada por algum tipo de racionalização. É assim que Freud (2009) entende,
lamentando, as atrocidades da Primeira Guerra Mundial, na qual até pacifistas se
engajavam “para defender a civilização” ou “para evitar um mal maior”.
Quando Storni escreve e desenha essas historietas, resta saber até que ponto
utiliza Zé Macaco para ridicularizar a ignorância, o atraso e as pulsões violentas, e
até que ponto o utiliza para defender a sensatez comum do “sistema brasileiro”
contra imposições de um modelo de progresso que passa sem olhar para os lados,
dá encontrões e não pede desculpas.
O caricaturista realizava seu trabalho dentro de um campo profissional e
produzia dentro de uma estrutura empresarial. Pela leitura do material publicado
por Storni e seus colegas, parece ter havido uma disputa de visões de mundo e qual
delas O Tico-Tico deveria propagar.
4.4. A face grotesca de Zé Macaco
Antes da Primeira Grande Guerra (1914 – 1918), o material de O Tico-Tico
tinha atingido um estágio de excelência em relação à produção de variadas
historietas ilustradas, privilegiadas com grande número de páginas. Mesmo não
tendo, nessa fase, a contribuição de J. Carlos, a revista se apoiava no núcleo de
caricaturistas Alfredo Storni, Max Yantok e Augusto Rocha, além da reprodução
de uma seleção de historietas dos semanários franceses, e das contribuições
eventuais de Luís Loureiro e Leônidas. Nesse arranjo, privilegiavam-se as
narrativas concebidas no País. Chiquinho, o personagem que era decalcado do
norte-americano Buster Brown, vinha sendo retratado como um menino da alta
burguesia carioca que, entre seus passatempos, tinha bicicleta, máquina fotográfica,
barco a vela na Lagoa Rodrigo de Freitas e batalha de confetti no carnaval. A
194
publicação de cópias de histórias americanas de Buster Brown começava a rarear e,
a partir de certo ponto, nunca mais foi feita.
A boa recepção dos personagens inventados pelos caricaturistas se evidencia
pela leitura das seções de cartas. Em todo o ano de 1913 e em 1914 é frequente
encontrar desenhos de leitores com os personagens preferidos. Fazem muitos Zés
Macacos e Chiquinhos, e celebram até os secundários Sábbado, Pipoca e Chocolate.
Augusto Rocha, ilustrador que se destacava por suas figuras de animais,
desenvolvia uma novela de aventuras em quadrinhos: “Max Muller”. Sempre às
voltas com caça, navegação, aviação e exploração de territórios selvagens e
exóticos, Max Muller começa a história como adolescente e termina adulto,
cortejando nobres europeias. Normalmente as capas de O Tico-Tico da época ou
publicavam um capítulo de Max Muller ou uma aventura de Zé Macaco.
Yantok, que vinha desde 1911 publicando longas séries da trupe de seu
personagem Kaxinbown, como a viagem a Fantasiópolis, ao Pólo Norte e à
Pandegolândia, apresentava na época “Kaxinbown no Planeta Marte”. Essas obras,
que merecem uma pesquisa acadêmica só para elas, destacam-se pela profusão de
imagens grotescas. No meio de 1913, número 409, a história em Marte termina com
os personagens sendo mortos a tiros. O último quadrinho tem os quatro cadáveres
estendidos no chão. A tirada cômica é que, após visitar toda a civilização marciana,
os heróis tentam viajar numa certa “estrada de chumbo para outro mundo”, que
pensam ser equivalente à terrena estrada de ferro. Em vez de receberem tíquetes
para a Terra, recebem rajadas de balas (chumbo) da bilheteria. Felizmente, como é
história em quadrinhos, os personagens voltam à vida com qualquer explicação
posterior. As grandes novelas grotescas e coloridas de Yantok, no entanto,
terminam aí39.
Nesse ponto, já passa da hora de definir o que se entende por grotesco nesta
pesquisa, e porque é um termo importante para a análise sob o ponto de vista do
processo civilizador. A definição se apoia no trabalho de Mikhail Bakhtin sobre o
riso na Idade Média e no Renascimento, a partir da obra de Rabelais.
Yantok, depois dessa história de Marte, faz “contos” do Kaximbown, em texto ilustrado sem cores,
do número 418 em diante. Uma semana apenas ele intercala os contos com uma página de
quadrinhos dentro dessa série. Acontece mais uma longa interrupção e Kaximbown volta, em
quadrinhos, no número 694 (1919), com a premissa de que estava lutando na guerra durante sua
ausência. Nessa fase as histórias são mais em torno de máquinas.
39
195
Bakhtin (1987) não trata do grotesco no sentido de sombrio, monstruoso,
assustador, gótico. Diz que essa apropriação do termo vem com o movimento
romântico posterior às obras que analisa. Também não trata do grotesco “satírico”,
que seria a caricatura exagerada do comportamento popular, rústico, incivil. O
objetivo dessa caricatura monstruosa seria apenas condenar, por ridículos, os
comportamentos que não teriam mais lugar na sociedade burguesa clássica, do culto
ao progresso e civilização. O trabalho de Rabelais, segundo o filósofo russo, era
confundido como satírico, mas se tratava de outra abordagem do elemento popular.
O conceito de grotesco que interessa a Bakhtin é mais próximo do termo
“carnavalesco”. Diz respeito aos temas e representações artísticas preferenciais da
cultura popular, especialmente quando se dava nas festas de êxtase comunal e
celebração da vida. Tem por características a conjugação de opostos, como céu e
terra, vida e morte, grande e pequeno, início e fim, e um tratamento despudorado
do corpo humano:
[...] o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e
o despedaçamento corporal, etc, com toda sua materialidade imediata, continuam
sendo os elementos fundamentais do sistema de imagens grotescas. São imagens que
se opõem às imagens clássicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena
maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento
(BAKHTIN, 1987, p. 22).
O corpo humano é representado com toda essa crueza e materialidade extrema
em O Tico-Tico. Por exemplo, o nariz do criado de Kaximbown, chamado Pipoca,
também sempre acaba agigantado, decepado ou transformado em coisas, e o
pequeno Sábbado, garoto adotado por Kaximbown, é uma cabeça humana
implantada num corpo mecânico de madeira feito de uma barrica (ver Figura 44).
196
Figura 44. As desproporções corporais, as misturas e exageros do grotesco de Yantok. Da esquerda
para a direita, Sábbado, Pipoca e o velho Kaximbown. Primeiro quadro de um capítulo de
Kaximbown ao Polo Norte. Página 11 do número 337 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
As histórias de Yantok fornecem os melhores exemplos de imagens grotescas,
nesse sentido. Mas as de Storni não ficam atrás, conforme esta lista de exemplos:
a) Zé Macaco estreia "mirabolante e enorme" gravata fumando um grande
charuto. Pega fogo na roupa dele toda. A família acode com água. Ele
acaba na forma de um corpo humano quase totalmente consumido. (nº
365). Na sequência, porém, o corpo é reestabelecido. Esse é o tema da
promiscuidade ou confusão entre o cadáver e o corpo vivo.
Anteriormente, vemos Zé Macaco levantando vivo dos destroços
incendiados de um bonde atacado numa revolta popular (nº 172). E há
outras situações similares.
Figura 45. O corpo de Zé Macaco irreconhecível, quase totalmente consumido pelo fogo.
Detalhe do último quadrinho da história de capa do número 365 de O Tico-Tico (1912).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, editado.
197
b) Uma vez os olhos de Faustina ficam inchados feito balões (nº 338), já
comentado aqui no Capítulo 1, p.55; o nariz de Faustina, considerado
enorme, é alvo de tentativas de eliminação, e uma vez, por acidente,
cresce a ponto de virar um balão dirigível (nº457); a família entra na moda
dos exercícios físicos, exagera na dose e seus corpos ficam todos
deformados (nº 458). Esse é o tema dos aumentos desproporcionais de
partes do corpo.
c) Baratinha fica com a barriga inchada com os ovos que comeu (como uma
gravidez) e, munido de tesoura, Zé Macaco corta a barriga para soltar um
bando de passarinhos (como um parto) (nº 278); outra ocasião, Zé Macaco
passa mal, é diagnosticado de “nó nas tripas” e o tratamento é ficar de
cama enquanto Faustina pega uma bacia com os intestinos dele e
pacientemente desfaz os nós fora do corpo (nº 451). Temos o tema
visceral.
d) Zé Macaco voa até a Lua, entra no nariz dela, debate-se no muco, é
espirrado e cai de volta à Terra (nº 282). Apresenta o tema do gigantismo,
além da promiscuidade com fluido corporal e pode-se associar também
ao tema da oposição céu/solo.
e) O cãozinho feio, primeiro, é esticado à força pelos meninos, depois é
atropelado por automóvel e cortado em três partes, para ser remontado por
Zé Macaco com cola-tudo (nº 300). Eis o tema do despedaçamento
corporal.
f)
Depois do já relatado incêndio, Zé Macaco bebe tanta água para aplacar
a sede que sua barriga vira uma enorme bola cheia d’água. Acoplam
vários canos na barriga dele e seu corpo fica servindo de caixa d’água na
casa (nº 366). Esse tema da promiscuidade entre seres vivos e sistemas
mecânicos é significativo porque leva o elemento grotesco do “baixo
corporal” desde a cultura da Idade Média para os tempos mais
mecanizados do século XX.
Segundo Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002), o grotesco é uma categoria
morfológica da criação artística que tem sido acionada desde a Antiguidade até os
tempos modernos. Os elementos recorrentes são a “combinação insólita e
198
exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos
escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo,
fezes e dejetos” (SODRÉ e PAIVA, 2002, p. 17). O grotesco não deve ser
confundido com o “feio” e, quase sempre, nos faz rir. O romancista francês Victor
Hugo teria sido o primeiro a teorizar sobre o grotesco, no prefácio de sua obra
Cromwell, com a intenção programática de criticar a idealização do belo e de
enterrar as formas do passado, chocando e provocando o mal-estar do leitor. Assim,
o grotesco lhe servia perfeitamente (idem, p. 43). Da mesma forma, outros criadores
continuaram a recorrer ao grotesco, e os caricaturistas, sugiro, são alguns deles.
Conforme Bakhtin (1987), o riso carnavalesco é festivo, coletivo, popular e
indiscriminado. Todos riem sobre tudo que há no mundo. Os que riem, não riem
dos outros, eles se incluem no mundo ridículo. O exagero não é única característica
do grotesco. Só mais tarde é que o exagero e a caricatura ficam restritos a
ridicularizar aquilo “que não deveria ser”. Mais significativo é sua ambivalência.
Ele afirma a ordem social no mesmo momento em que a inverte. Serve de válvula
de escape e de sobrevivência para a celebração da vida humana concreta e imediata
em meio à ordem social civilizada que impõe a seriedade, o autocontrole, o
adiamento de recompensas, o pudor e a disciplina (ao menos, quando em público).
É fato que as historietas de Yantok, Storni e outros foram trabalhos realizados
no século XX, no espírito da Belle Époque, numa revista cujo projeto editorial era
educar e civilizar pelo entretenimento. É possível, no entanto, que as matrizes do
riso “rabelaisiano” ainda estivessem gerando obras cômicas. Afinal, tratava-se de
um produto da nascente indústria cultural, num país periférico e irregularmente
urbanizado. Os caricaturistas podem ter sentido necessidade de acionar esses
elementos grotescos para se comunicar com o público, que compartilhava com eles
esse regime de representação40. Poucas décadas antes, o dramaturgo Artur Azevedo
se destacava no cenário literário brasileiro, para seu bem e para seu mal, por usar
francamente o riso e os assuntos crus do cotidiano, inclusive a satisfação de pulsões,
e por dar voz às múltiplas opiniões captadas da polifonia urbana:
Mesmo que tais falas e tiradas de humor tivessem uma intenção moralizadora,
voltadas para uma pedagogia do processo civilizador, a apropriação dessa mensagem
40
O conceito de regime de representação é utilizado conforme o faz Stuart Hall (2016).
199
por seus receptores não era unívoca. [...] Era a sua simplicidade e a sua aproximação
com as massas as razões dos motivos de reproche (SICILIANO, 2014, p. 285).
Artur Azevedo conviveu com críticas que o reprovavam por tal aproximação
do popular e rebaixavam o status de sua obra. Os caricaturistas da imprensa, por
seu lado, nada perdiam nesse sentido, por já nascerem com o status de “pintamonos”, conforme já foi discutido no Capítulo 2, p.70.
Esta pesquisa levantou que pode ter havido críticas no mesmo sentido de
reprovar o recurso ao riso grotesco e popular. Os caricaturistas, movimentando-se
no campo profissional em busca de melhores condições de trabalho e mais alto
status, podem ter lidado com novos constrangimentos e novas regras do jogo, dando
seus respectivos lances, o que resulta em mudanças na configuração de sua
produção para O Tico-Tico.
Para descrever esses movimentos no período da Primeira Grande Guerra em
diante, é preciso partir da premissa de que as historietas de Storni e outros tinham
esse elemento de grotesco e ambivalência, sendo civilizadores ao mesmo tempo em
que celebravam a satisfação de pulsões.
Zé Macaco fazia sucesso, era publicado muitas vezes nas capas, e outros
desenhistas eram estimulados a tentar o mesmo sucesso, criando personagens
populares. Anteriormente, Loureiro tentara criar um tal Turumbamba, um sujeito
que “pinta o diabo”, no número 377 de 1912. Esse não teve sequência.
Em 1914, no número 466, na página 2, estreia João Garnizé, por Augusto
Rocha41, apresentado como “novo personagem de O Tico-Tico”. O texto narra que
era um homem atarracado “quase anão”, usava um cachimbo de barro branco,
tocava bandolim, tinha olho e perna postiços, dentadura e peruca. Tinha “coração
bondoso a par de velhacaria e esperteza sem iguais”. Mais uma vez, apostava-se
num corpo grotesco e em “maus modos” para produzir riso (ver Figura 46). Nas
histórias de João Garnizé ele aparece se metendo em golpes e trapaças, brigando,
injuriando, furtando, bebendo e fumando. Nos seus apuros, às vezes aparece nu e
sem suas próteses (sem perna e sem um olho). Caça muito, dá seus tiros e socos.
Sua tia Genoveva, de quem tenta roubar todo o dinheiro, uma vez se levanta de um
caixão, já quase dentro da sepultura, após ter sido dada como morta.
41
Augusto Rocha passa a assinar a série com o pseudônimo de Nelson.
200
Figura 46. “Quem seria capaz de supor que o Garnizé fosse um homem cheio de postiços?”.
Quadro da história de estreia do personagem João Garnizé, por Augusto Rocha (ou Nelson). Uma
incursão no grotesco. Página 2 do número 466 de O Tico-Tico (1914).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Por sua vez, no ano de 1915 Storni vinha publicando seu Zé Macaco
regularmente, metade das vezes na página de capa. Tinha encontrado uma nova
estrela para sua série: um cachorro esquisito, de óculos, com uma vela amarrada no
rabo e o corpo feito de um serrote. De coadjuvante, passou a fazer parte da família
Zé Macaco42. Uma vez, levado a passear na avenida, é provocado por outro cão e,
sendo um serrote, deixa o adversário ensanguentado e esquartejado na calçada
(número 525), conforme se vê na Figura 47.
42
Anos depois, em 1929 (número 1232), o cão Serrote volta a fazer parte dos personagens. Porém,
nessa versão tardia ele não é mais feito de serrote, apenas parece um serrote pelas marcas da coluna
vertebral nas suas costas magras. Como outros animais de historietas, ele é racional e se expressa
verbalmente em pensamento. Ressurge como um cão vira-latas feio, mas Storni começa a desenhálo com traços cada vez mais suaves e menos caricatos.
201
Figura 47. Em tempos de guerra, jaz um cachorro esquartejado no chão. Serrote é um ser grotesco,
mistura incongruente de organismo vivo e objetos. Quadrinho final da historieta da capa do
número 525 de O Tico-Tico (1915).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, editado.
A essa altura, a linha editorial está mudando. No número 528 Storni publica
a última história de Zé Macaco da fase de maior sucesso. O enredo é significativo
e bastante explícito. O personagem faz mais uma de suas experiências científicas:
cultiva, num aquário, o “germe da inteligência e talento”. O germe se desenvolve
numa figura com tipo de anjo, mas coagulam-se também seus inimigos. Diz a
legenda: “Então, Zé Macaco verificou plenamente um fato comum da vida e, no
íntimo da sua filosofia barata, sorriu com superioridade (grifo meu). Via-se
perfeitamente o talento a lutar desesperadamente com muitos inimigos: a inveja, a
ignorância, o carrancismo, etc.”. A legenda também anuncia que Zé Macaco vai se
retirar por algum tempo. Storni continua a trabalhar na companhia O Malho, mas
Zé Macaco é suspenso para ceder espaço ao Chiquinho como personagem principal
da revista. Storni planta na própria obra a mensagem de que se considera um talento
superior, invejado e atacado.
202
A linha editorial muda de tom. No período de final de 1915 até 1920, está
menos jocoso e mais voltado para costumes de alta burguesia, com mais fotos e
matérias de esporte43 e ciência, mais ilustrações de moda feminina, anúncios mais
elegantes, como os do magazine Parc Royal, e mais parábolas morais em forma de
historietas ilustradas, traduzidas da França. Continuam as matérias de curiosidades
sobre os costumes de povos tradicionais, de tom etnocêntrico. Por outro lado, as
aventuras grotescas de Kaxinbown, de Zé Macaco e de João Garnizé desaparecem
das páginas.
Até aquele momento, O Tico-Tico parecia obedecer à lógica da indústria
cultural do século XX que, “em seu setor infantil, leva precocemente a criança ao
alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao alcance da
criança” (MORIN, 2011, p. 29).
Sugiro que foi uma mudança editorial no sentido de moderar o conteúdo da
revista, evitar os personagens adultos vivendo aventuras de “gente grande” e
privilegiar os personagens que representam a vida infantil dando exemplos
civilizados. Até o Chiquinho começa a estudar mais, do número 545 em diante. O
personagem, sob condução do caricaturista Loureiro, amadurece em relação à
versão original do norte-americano Outcault. Até as proporções com que Loureiro
desenha Chiquinho denotam um menino mais maduro do que o pequeno lorde
original. Em compensação, publicam cada vez mais historietas ilustradas com
personagens que representam meninas, de origem francesa, sobre moralidade na
vida urbana e rural. Muitas delas são de La Semaine de Suzette, como as da criada
Bécassine.
Com essa mudança editorial há menos espaço para a produção dos artistas
brasileiros. O único material narrativo brasileiro, nesses anos, é justamente o
Chiquinho de Loureiro, que tem aí uma fase importante com sequências que duram
meses e merecem estudos, pois são muito significativas. Também, na medida em
que há mais fotos de curiosidades e mais matérias escritas, diminui o espaço para
as atividades manuais (os “brinquedos para dias de chuva” e a seção “Para
meninas”).
Para evidenciar que a linha editorial estava sob debate, sujeita a uma trajetória
vacilante, durante 1917 acontece breve retorno do Zé Macaco. Finda essa
43
Desde 1914 O Tico-Tico começa a ter páginas de esportes com fotos dos times, tabelas dos
campeonatos de futebol e cobertura fotográfica de corridas de cavalos e remo.
203
sequência, durante vários meses, Storni e Yantok publicam historietas novas, mas
sem seus personagens populares. As seções de trabalhos manuais e brinquedos de
armar voltam. No entanto, próximo do final do ano, aquela linha editorial mais
firmada no material francês, na idealização de uma civilização europeia e no tema
dos bons exemplos volta a prevalecer. Storni, Yantok e os outros somem da revista,
para voltar somente em 1920.
Nesse ano, no número 755 reaparece o João Garnizé. O personagem conta por
onde andou durante os cinco anos de ausência. Storni volta a colaborar, assumindo
a criação e desenho do personagem Chiquinho, sucedendo Loureiro. No número
seguinte, 756, Storni dá um lance no jogo. Uma vez que já havia o costume de
misturar personagens de autores diferentes na mesma história, ele inclui o Zé
Macaco dentro da série do Chiquinho, que é publicada nas capas da revista. O título
da seção muda para “Aventuras de Chiquinho e Zé Macaco” (grifo meu) e a legenda
anuncia “as novas aventuras em conjunto do Chiquinho, Jagunço e Zé Macaco”
com o ressurgimento de “um velho companheiro há muito tempo esquecido”.
São reestabelecidos os temas proscritos desde o final de 1915, tais como
bebedeiras e ações violentas por parte de personagens adultos. João Garnizé aparece
seminu, insulta ciganos, caça vários animais e, no número 783, passa faca na
garganta de um gato e o cozinha. Mesmo o Chiquinho, agora acompanhado do Zé
Macaco, fica mais grotesco nas aventuras (chega a se vingar de Zé Macaco armando
uma sinistra pegadinha na qual simula o afogamento de Faustina). Enquanto isso,
diminui a participação das historinhas francesas. Os brinquedos de armar são
substituídos por jogos como víspora (tombola), dominó e baralho. Nos números 785
e 786 as páginas centrais formam um tabuleiro para se jogar uma alusão a corrida
de cavalos. Em geral, nessa fase da revista, as narrativas publicadas giram mais em
torno de pulsões do que em autocontrole e bons costumes.
Storni continuaria assim durante 1921, aproveitando seu “mandato” na
produção das historietas de Chiquinho para manter Zé Macaco como personagem
popular, sem ter, no entanto, tanto espaço quanto nos anos anteriores. Em 1922 o
caricaturista assume a direção artística da revista Careta, da empresa concorrente,
e Zé Macaco mais uma vez deixa de figurar nas historietas de O Tico-Tico, para
voltar mais à frente, a partir de 1928, com Storni assinando o pseudônimo S.O.S.
Nos anos 1930, 1940 e 1950 Storni continua criando piadas de Zé Macaco e
Faustina, mas em páginas em preto ou apenas duas cores.
204
Os temas continuam girando em torno de modas e invenções. Nem Baratinha
nem Chocolate aparecem e os signos de vestuário e o cenário da casa denotam um
cotidiano de classe média, não mais de luxo. É como se Storni estivesse traçando
uma crônica do desenvolvimento da sociedade brasileira, em que o contingente
populacional de classe média vai aumentando ao longo do século XX, e o estilo de
vida que caracterizava apenas as camadas abastadas é adotado cada vez por mais
famílias. Conforme Giddens (2002), abraçar um estilo de vida, na modernidade
tardia, é abraçar práticas que dão forma à narrativa de autoidentidade dos
indivíduos, uma vez que estão suspensas as contingências das tradições. A antiga
correlação entre ambiente físico e identidade social é enfraquecida, enquanto se
fortalecem relações identitárias virtuais e globais. No final dos anos 1920 os
personagens caricatos do casal Zé Macaco vivem a fragmentação e a multiplicidade
de escolhas, dentro de um rol de opções de consumo e de experiências que lhes
chegam por meio dos meios de comunicação.
4.5. Representações grotescas e sua ambiguidade
No final de 1958, em O Tico-Tico número 2077, Storni, com 77 anos de idade,
publicou ainda mais uma piada de Zé Macaco e Faustina. Narra uma “invenção” de
Faustina: o “rabo-de-macaco”, maneira de prender o cabelo semelhante ao rabo-decavalo. Vaidosa, ela sai para passear e exibir sua moda. Pega um ônibus e causa
incômodo aos passageiros de trás. Resultado é que alguém corta fora o cabelo dela,
que só percebe quando está de volta à casa e olha um espelho.
Os temas e os signos caricaturais são os mesmos já discutidos no corpo deste
capítulo. É uma evidência a mais da consistência da série Zé Macaco como obra de
Alfredo Storni.
É hora de produzir alguns argumentos a partir da análise
interpretativa com referências teóricas do processo civilizador. Eles serão
carregados para a conclusão da tese.
1) Um deles é que Storni usou, frequentemente, o grotesco “rabelaisiano”
entre seus recursos cômicos. Esse uso não era exclusivo do autor; ele estava
acompanhado de mais de um colega na própria redação da revista. No carnaval, que
nunca deixava de ser celebrado nas capas de O Tico-Tico, a máscara de Zé Macaco
costumava ser publicada, junto a de outras figuras preferidas. O rosto caricatural de
Zé Macaco era reproduzido por leitores, colaboradores amadores, como Herman
205
Lima, e outros artistas, em situações diversas, como um dos ícones da publicação.
Bakhtin chama a atenção para a importância dessa figura icônica:
O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar que
manifestações como a paródia, a caricatura, a careta, as contorções e as
“macaquices” são derivadas da máscara. É na máscara que se revela com clareza a
essência profunda do grotesco (BAKHTIN, 1987, p. 35)
Discutível é dizer que Storni fez das contorções e macaquices seu projeto
artístico. Ele estabeleceu competência como um caricaturista de muitos recursos,
capaz de emular estilos de desenho que os editores gostariam de manter, quando
perdiam os colaboradores habituais. Isso foi discutido no capítulo 2, p.122. Se a
série do Zé Macaco se caracterizava pelo estilo grotesco, deve indicar que Storni
julgava ser uma boa aposta mantê-lo, atento ao julgamento dos editores. Em outras
palavras, Storni apostava na popularidade de Zé Macaco para manter um bom
espaço na revista, durante muitos anos. Conforme foi sugerido aqui, a moeda de
troca de Zé Macaco era justamente seu interior primitivo e instintivo que agradava
os leitores pelo prazer cômico.
Esse é o preço que o caricaturista paga para realizar críticas pelo caminho do
humor. Conforme referido da introdução desta tese, o escritor e cartunista Ziraldo
(1970), num texto especial para a Revista de Cultura Vozes, teceu muitas
considerações sobre a essência e a práxis do humor. Para Ziraldo, é a revelação de
uma verdade sobre o homem que faz uma narrativa de humor ser diferente de uma
narrativa apenas cômica, que faz rir: “Quem somente faz rir não está defendendo
teses ou ideias e o Humor é quase sempre uma defesa de tese” (ZIRALDO, 1970,
p. 203). Infelizmente, o profissional só vai sobreviver se souber fazer rir: “Ninguém
vai pagar ninguém para que este saia por aí contando verdades, desmontando as
coisas, virando o olho do homem para dentro dele mesmo” (idem, p. 204).
Faz sentido que Zé Macaco tenha sido criado por incentivo de editores que,
gerenciando a nascente indústria cultural, viam nas caricaturas de Storni o potencial
de agradar “a uma imagem do homem médio” e de se dirigir ao mesmo tempo “a
todos e a ninguém” (MORIN, 2011, p. 25-26), ou seja, o público homogeneizado.
O desenvolvimento de figuras grotescas que já eram vistas em suas charges de O
Malho e O Filhote da Careta foi um lance para aproveitar a condição que se
apresentava na revista infantil do mesmo grupo empresarial. É significativo que a
primeira sequência de aventuras se interrompe por um ano e meio, sem perspectiva
206
de volta, apesar de algumas referências à agitação de alguns leitores que
perguntavam por Zé Macaco. Uma interpretação possível é que, a princípio, não era
um trabalho pelo qual Storni se importava demais, ou havia alternativas em que ele
preferia investir.
Essas condições se inflexionam e Storni passa a lutar pelo personagem,
conforme se relatou neste capítulo. A versão de Zé Macaco que volta às páginas em
1911, reformulada num novo-rico com família, inventor e imitador de modas, deve
ter relações mais fortes com sentimentos e vivências do artista, pois é essa versão
que ele consolida no seu relato autobiográfico, e é essa versão que ele lamenta ter
sido cancelada em 1915. Sempre que há oportunidade, Storni reinsere o personagem
em O Tico-Tico, lembrando ao leitor, no texto de legendas, como ele era querido e
engenhoso.
Na conjuntura a que essa tomada de posição se refere, Storni se vê diante de
condições alteradas, com a linha editorial da revista rejeitando o recurso ao riso
grotesco e à representação da vivência dos adultos numa revista dedicada ao leitor
infantil. Ele tenta, mas não obtém material adequado à nova linha, e só lhe resta
insistir que Zé Macaco era melhor, alegando uma grande popularidade. Foi visto
que essa insistência é recompensada, quando Storni reassume a confecção da página
de capa, então com o título “Chiquinho”.
No relato autobiográfico publicado na Revista da Semana de 21 de março de
1945, ainda lutando por espaço no campo, Storni estabelece que a criação de Zé
Macaco tinha sido num estalo de “revolta contra a monotonia das historietas
estrangeiras”, discurso convincente num contexto de valorização nacionalista, os
anos 1940, ainda digerindo o movimento modernista.
O mesmo relato indica que Storni pensava estar usando do estilo grotesco
“satírico”, clássico, civilizador, que pinta como monstruoso aquele inimigo
primitivo interno à humanidade. Escreveu ele “... pretendo incutir no espírito
infantil, através do grotesco e do ridículo, a verdadeira concepção da modéstia, da
serenidade e de todas essas virtudes que cada dia se acham mais esquecidas entre
os homens (grifo meu)”. Nesse ponto, Storni não deve ter atingido seu objetivo,
uma vez que não se encontra, nas historietas de Zé Macaco, um quadrinho em que
os personagens estejam demonstrando “modéstia”, “serenidade” e “virtude”, no
estreito caminho que os educadores clássicos, como La Salle, traçavam para a
civilidade (REVEL, 2009). Zé Macaco, que reiteradamente exibia sua inadequação
207
e rusticidade, mesmo tentando ostentar civilidade e hábitos modernos, após a
derrota, que nem sempre acontecia, a cada semana voltava reestabelecido à velha
forma. É mais plausível que essa condição de herói era interpretada pelo leitor como
modelo a seguir.
2) Mais adequado é dizer que, ao usar o regime de representação cuja matriz
é o grotesco “rabelaisiano”, as narrativas ao mesmo tempo reafirmavam a ordem ao
mesmo tempo que a invertiam, como as celebrações culturais populares.
A ordem que Storni reafirmava era aquela que estabelece, para uma camada
da sociedade, hábitos modernos e burgueses de modelo europeu. Uma camada cuja
sociabilidade pode girar em torno de consumo, lazer, espetáculos e notícias. A
contrapartida é cultivar a iniciativa, o engenho, o controle orçamentário e o
planejamento de família pequena. Também o progressivo abandono dos laços com
a origem rural. É sugestivo que Zé Macaco não tenha amigos. Não tem turma, nem
um esboço de passado44. Não pertence a uma corporação. Mesmo no Carnaval opta
por desfilar no próprio carro alegórico ou no automóvel. Só anda com sua família.
Passeios, só com a esposa. Sem empregados da casa, exceto cozinheira. Em síntese,
corresponde a um ethos de classe média, não muito diferente do vivido pelo próprio
Storni, em seu refúgio em Niterói, longe das mesas dos cafés do Rio de Janeiro.
Quando a historieta trata de Faustina contratando uma cozinheira portuguesa que
não entende as ordens, ou um faxineiro que quebra tudo na sala, fica a suspeita de
que Storni se inspira no cotidiano do seu próprio lar.
Por sua vez, a ordem que Storni negava era aquela da ostentação de modos
civilizados não interiorizados, que, apesar de socialmente eficazes, não passavam
de “verniz” ou máscara. Invertia os valores, fazendo a rusticidade ultrapassar e
expor essa civilidade de fachada. Denunciava o progresso material que dá poder aos
homens despreparados, infantilizados. Denunciava também o nível de violência
com que as organizações civilizadas reprimiam a rusticidade, na paz e na guerra.
Recorrentemente, o interior primitivo do homem sempre apareceria por baixo
da fachada, rompida pela primeira pressão sofrida. São as pulsões que o deixam
vivo, indomável (virtualmente imortal). As iniciativas engenhosas de Zé Macaco
são imagens que evocam as pulsões de vida; as reações violentas aos ultrajes são o
44
Existe uma exceção. No número 1245 de O Tico-Tico (1929), Zé Macaco sai para fazer compras,
mas, no caminho, encontra um velho amigo com quem vai beber e perde o dia. Não se revela nada
do passado, no entanto. A cena é um pretexto para funcionar uma piada com seu cachorro, o Serrote.
208
mesmo para as pulsões de morte. Mais do que outros personagens de O Tico-Tico,
que também tinham essa ambiguidade, Zé Macaco era capaz de representar o
dilema da civilização: as vantagens do progresso são pagas com a gestão das
pulsões.
3) Se Storni usa o caboclo para falar da vida urbana, nos dá um exemplo
prático da mediação cultural na representação social desse estilo de vida. Cria uma
ponte (ou um degrau) para o leitor se aproximar da nova era de velocidade,
mecanização, eletrização, medicina, espetáculo, esporte, meios de comunicação etc.
Conforme foi visto no capítulo 3 (p.131), a interpretação das historietas de
Storni, observadas mais de cem anos após sua publicação, pode fornecer exemplos
dos processos de produção de representações sociais que Moscovici (2003) julga
serem geradas com o auxílio de profissionais como líderes religiosos, jornalistas,
políticos e outros, que atuam como fomentadores e coordenadores na elaboração
coletiva das representações. Howard S. Becker (2009) também vê a produção de
representações profissionais, sejam artísticas ou científicas, como resultado do
entendimento entre os que produzem e os que consomem tais representações. Por
sua vez, Gilberto Velho (2013) aponta como agentes dessas categorias circulam
entre grupos sociais distintos, traduzindo valores entre eles, participando de
negociações entre a mudança e a conservação e, portanto, sendo mediadores sociais.
Para Moscovici, o processo é social e público; é resultado de diálogo. Baseiase em “ancorar” um conceito não-familiar num contexto familiar, isto é, conhecido
pelo hábito. Em segundo lugar, baseia-se em “objetivar” em imagens concretas,
com qualidade “icônica”, os conceitos abstratos, puramente intelectuais. “Comparar
já é representar” (MOSCOVICI, 2003, p. 72), e é um recurso típico da caricatura.
Por exemplo, o leitor (no início do século XX) já ouviu falar do aeroplano,
mas não concebe o que seja. Falta-lhe a experiência prática do voo e a naturalidade
do contato cotidiano com o aeroplano. As explicações técnicas da coluna Lições de
Vovô são áridas e dependentes do verbo. Porém, desenhar a história de Zé Macaco
injetando sérum de crescimento num mosquito, depois aparando as asas dele,
botando rodinhas de bicicleta nas patas e transformando-o em aeroplano, aproxima
a concepção da máquina voadora de um ser mais conhecido, o inseto. Por obra da
mediação social, o aeroplano típico dos anos 1910 é assim descrito: uma estrutura
alada em forma de cruz, leve, frágil e barulhenta – tal qual um mosquito, só que
grande. A mediação entre a) os termos e conceitos fundamentais da pauta
209
civilizadora e b) os conceitos contidos no arcabouço cultural do leitor “médio” é
um serviço que a arte dos caricaturistas na imprensa presta à cognição (ver Figura
48).
Figura 48. “Para poder servir como moderníssimo aeroplano”. Capa do nº 423 de O Tico-Tico
(1913).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (detalhe).
O processo não é exatamente de “tradução”, mas de “avaliação”: “Seu
objetivo principal é facilitar a interpretação de características, a compreensão de
intenções e motivos subjacentes à ação das pessoas; na realidade, formar opiniões”
(MOSCOVICI, 2003, p. 70). No caso, a opinião de que o aeroplano é incômodo
assim como o mosquito. Essa representação caricata não educa o leitor na etiqueta
da viagem aérea, muito menos na ciência e na engenharia do voo “mais pesado que
o ar”, porém já é um passo nessa direção, por naturalizar a existência desse tipo de
máquina no cotidiano. Dessa maneira, e não na forma de lição, nem de discurso
apologético, é que as historietas ilustradas para crianças tomam parte no processo
civilizador.
Na sequência, os três pontos dissertados acima somam-se às conclusões dos
demais capítulos e são levados em conta na formação de uma síntese dos resultados
da pesquisa.
5. Desenhando, uma caricatura fala sobre a sociedade
Depois de voar no Aéreo-burro à floresta no interior do Brasil, viver numa
aldeia bororo, perder os vínculos com a civilização, ser resgatado por sua esposa
Faustina com aquele radar improvisado (capítulo 3, p.159) e ter recuperado sua
memória e sua subjetividade com a cacetada fornecida pelo furioso guarda civil
(capítulo 4, p.194), Zé Macaco ganhou uma homenagem como herói. Foi no
número 311 de O Tico-Tico, em 1911 (ver Figura 49).
Figura 49. Convalescente, depois de restituído à civilização, Zé Macaco é celebrado. Quadro final
da historieta na pág. 14 do nº 311 de O Tico-Tico (1911).
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
A legenda do último quadro diz:
Chiquinho fez um grande discurso de saudação e no meio da maior solenidade e
silêncio entregou-lhe o busto d’um macaco, que ele e seus companheiros lhe
ofereciam, como símbolo da sua vida, que fora um misto de homem e de selvagem!
Todos choraram de emoção: a Faustina, o Totó, o Baratinha e o Chocolate. Nesse
meio tempo ouviu-se grande estampido. Era o Antenor, fotógrafo d’A Ilustração
Brasileira, que tirara um instantâneo da cerimônia com magnésio.
O quadro é tão repleto de signos visuais, a legenda é redigida com tantos
termos expressivos e a cena se relaciona de tantas maneiras com os textos que dão
lastro a esta tese que é preciso tomar fôlego antes de enumerá-las.
a) São os demais personagens das historietas de O Tico-Tico, aqueles criados
e desenhados por outros artistas, que chegam de surpresa à mansão de Zé
Macaco para lhe prestar homenagem. Pipoca, de Yantok, está no meio do
quadro, tocando bumbo. Chiquinho e Jagunço, mascotes da revista, vão
211
na frente, o que acontece no quadro anterior, não mostrado na figura. Lá
também estaria o Sassy Grandpa, ou “Vovô”, já citado. É uma
demonstração de que Storni se sentia em condições de inventar uma piada
em que seu personagem era retratado como o mais eminente entre eles.
b) A reunião de personagens de diferentes origens, cada qual com direito a
uma série de historietas própria, mas inseridos no mesmo universo
ficcional construído pela revista, demonstra um traço não exclusivo,
porém, marcante da cultura moderna: a intertextualidade (GENETTE,
2010). Formando uma espécie de família, os personagens somam forças,
referenciando uns aos outros. Além disso, ao se deslocarem de uma “casa”
ficcional a outra, simulam uma concretude, a ilusão de que existiriam fora
de suas páginas desenhadas. Algumas vezes, Zé Macaco é tratado como
se fosse um tipo de ator no grande teatro que é a revista, e sua fama no
mundo real causa efeitos no mundo ficcional. Umberto Eco aponta que,
na cultura de massas, as narrativas parecem se referir ao mundo mas, na
verdade, por meio de inúmeras citações intertextuais, seus autores
preferem se referir ao conteúdo de outras narrativas midiáticas (ECO,
1989, p.129).
c) Um fotógrafo é caricaturado, bem como sua máquina, no ato de registrar
a solenidade. Acima dele, estoura uma carga de “magnésio”, ou seja, um
flash. Ninguém se abala com o estampido “pum!”. A técnica da fotografia
estava ganhando familiaridade e naturalidade. Ainda assim, em 1911, é
uma técnica moderna e merece uma menção importante. Um sinal disso é
que a máquina foi desenhada em primeiro plano nesse quadrinho.
d) Está aí a representação caricatural que leva a leitores da capital e do
interior do Brasil a noção do que é uma sessão de fotografia, ou melhor,
de “instantâneos”, e para que ela serve, na sociedade moderna. A menção
à revista A Ilustração Brasileira, da mesma empresa de O Tico-Tico, não
só é um recurso comercial, mas também nos lembra que toda essa obra é
produto do meio de comunicação que é engajado em projetos
civilizadores e modernizantes na Primeira República: a revista ilustrada.
e) O estampido do flash do fotógrafo é representado pela onomatopeia
“pum!”. As historietas ilustradas, com as crônicas nas revistas e jornais,
estavam legando à sociedade um meio de assimilar na cultura os ruídos
212
cada vez mais frequentes da vida urbana moderna. O “fon-fon!” da buzina
já havia se transformado em título de revista. Ao fixar uma forma escrita
para cada tipo de ruído – apito, motor, demolição, explosão, queda,
espancamento, grito – essas narrativas conferiam familiaridade às
impressões sonoras disformes da realidade.
f) Na metade direita do quadro o desenhista compôs o núcleo familiar de Zé
Macaco, no qual está incluído Chocolate, um menino negro que, nessa
fase da série, foi procurado por Zé Macaco para servir de companhia a seu
filho Baratinha. É um traço arcaico da sociedade brasileira que ocorre
ainda com aparente naturalidade numa historieta dos anos 1910. O
menino, passados 22 anos da abolição da escravatura, era trazido a uma
casa para realizar tarefas subalternas, sem menção a qualquer adoção ou
contrato. Seu trabalho é brincar, mas brincar sob as ordens do filho do
dono da casa. Representado como um néscio, reage a quase tudo apenas
com a expressão “Ué?”. Na figura só é visto o topo de sua cabeça, com o
cabelo em forma de dois bicos. A presença do personagem é uma
lembrança de que, uma vez que a historieta se passa no Brasil, o moderno
e o arcaico andam lado a lado. Ainda no tempo presente o racismo
estrutural pode sustentar um arranjo familiar como o da fictícia família Zé
Macaco.
g) No canto inferior direito aparece o Totó, aquele cão que Faustina
encontrou na rua, no dia de seu protesto feminista, que foi levado pra casa,
depois esticado pelos meninos, depois cortado em três por um automóvel
e depois colado num tipo de cirurgia doméstica feita por Zé Macaco. Eis
a representação do risco aumentado a que os corpos são expostos nos
ambientes urbanos e industriais modernos.
h) Zé Macaco se apresenta calçando chinelos. Nos quadrinhos anteriores ele
estava descansando na poltrona que se vê no canto direito. São dois signos
do estilo de vida burguês adotado por Zé Macaco depois da fortuna. Mais
uma vez, a historieta propaga costumes, hábitos de consumo e nos lembra
como objetos estão no centro de práticas que seguem etiquetas civilizadas
e que constroem a subjetividade do personagem.
i) Uma cascata de lágrimas cai dos olhos de Zé Macaco de seus familiares,
inclusive o cão. A emoção de felicidade e gratidão é exagerada
213
caricaturalmente, um signo que pode ser lido como rusticidade, falha no
autocontrole de emoções exigido pela etiqueta civilizada.
j) Está implícito, pelos quadrinhos precedentes, que o valor de Zé Macaco
é ter se aventurado, sozinho, no sertão, para civilizar povos indígenas. Ele
fracassou, mas ter conseguido voltar para casa já é considerado um feito.
Ou seja, ele será homenageado sem ter feito obra nenhuma, apenas por ter
se lançado a um capricho, ter imitado a experiência de outros.
k) Chiquinho, solenemente, conforme a etiqueta, confere ao herói
homenageado o busto de um macaco, “como símbolo de sua vida, que
fora um misto de homem e de selvagem”.
A produção deste capítulo é a busca de uma síntese. Se a legenda diz a
verdade, então Zé Macaco é simplesmente um personagem meio homem, meio
macaco; meio civilizado, meio selvagem. É enganoso definir uma síntese como a
mistura em iguais proporções de dois princípios opostos de uma dualidade. A
síntese pode configurar um terceiro termo.
Por isso, em vez de acomodar todas as observações feitas nas investigações
desta tese numa síntese abrangente que dilui todos os elementos a ponto de
perderem o significado, é preciso buscar, como Bourdieu (1996), a fórmula
geradora da obra na trajetória de seu autor – um indivíduo – dentro da estrutura
social e do campo profissional. Essa interpretação – pela observação detalhada de
um objeto do campo da comunicação, no contexto das revistas ilustradas do início
do século XX – abordará a questão de como se dá tal mediação que se acredita atuar
na construção da subjetividade dos jovens leitores e em aspectos do processo
civilizador da sociedade.
É preciso lembrar o método invertido em relação ao senso comum: não
começar a investigação a partir da consagração do artista e explicar como chegou
lá, e sim começar da posição inicial e percorrer as sucessivas posições ocupadas no
campo profissional (BOURDIEU, 1996, p. 240). No capítulo 2 (p.83) a
autobiografia de Álvaro Marins jogou luz sobre a trajetória de todo o grupo de
caricaturistas “da província”, que não pertenciam aos círculos sociais autóctones do
Rio de Janeiro. Aquela linha, com seus nós e emendas, ajuda a dar significado à
trajetória de Alfredo Storni, que deixou bem menos dados biográficos.
214
A fórmula geradora, segundo Bourdieu, é homóloga aos deslocamentos do
autor pelo campo e à estrutura social em que ele se desenvolveu. Isso não quer dizer
que a obra é sempre uma ficção autobiográfica; ela é produzida com a objetivação
de si, uma espécie de autoanálise em meio a uma socioanálise geral. O artista pode
objetivar a própria estrutura social da qual é produto. A obra de caráter narrativo
produz uma ilusão que tem relação com o mundo dito real; apenas evoca, “dá a ver”
a estrutura do meio social e seus sistemas de habitus (idem, p. 48). Para Bourdieu,
isso não quer dizer que a obra é determinada pela origem social; o indivíduo dá seus
lances em relação a todos os demais, e sua origem apenas condiciona o leque de
possibilidades.
A pesquisa apontou que o lance mais consequente de Alfredo Storni foi a
virada de 1910 para 1911, quando seu personagem em O Tico-Tico, Zé Macaco, de
um dia para outro, deixa de ser um caboclo fora de seu lugar e vira “Mister Zé
Macaco”. O segundo lance a ser destacado foi a oferta de caricaturas da política
gaúcha para a revista O Malho, em 1906, abrindo caminho para que fosse trabalhar
na capital do País. Outro lance importante é o protesto no final de 1915, quando
Storni faz o personagem discursar sobre ataques invejosos à criatividade, na última
semana antes de desaparecer das páginas por anos. Ficava a dica aos leitores fiéis
para exigirem sua volta.
Todos os outros lances foram defensivos, ou seja, Storni defendeu as posições
conquistadas. Usou a habilidade técnica para se tornar indispensável e gozar de uma
carreira longeva em alguns dos melhores veículos de imprensa de seu tempo, no
Brasil. No campo artístico, a habilidade técnica é como um capital utilizado tanto
pelos que lutam por posições no mercado de arte para a elite instruída quanto pelos
que lutam por remuneração no mercado de consumo de massa. Conforme o capítulo
2, Storni era capaz de emular estilos consagrados na revista que o empregava.
Adaptava-se ao serviço disponível. Não procurava ficar sob os holofotes; seus
personagens eram bem mais conhecidos do que ele mesmo.
Ao mesmo tempo, ostentava criatividade. Aqui não cabe um juízo de valor
nem um ranqueamento de caricaturistas. Apenas interpreto que, em comparação
com artistas que faziam o mesmo gênero – historietas ilustradas para crianças –
Storni era capaz de acionar uma boa variedade de premissas e de soluções cômicas
ao longo das semanas. Mudava o foco de um personagem para outro e
215
experimentava substituir historietas por jogos visuais em algumas das capas45. Os
colegas optaram por repetir fórmulas narrativas encontradas por eles para suas
historietas, semana após semana. É preciso reconhecer que as tiras e histórias em
quadrinhos têm, como um de seus fundamentos, a iteratividade, exploração da
repetição como valor que provoca efeitos narrativos e prazer na leitura (ECO,
2015). Porém, essa estratégia de se fiar na repetição tem alcance limitado.
Storni também tinha que seguir alguma fórmula. Apenas, pela leitura de anos
de publicações de O Tico-Tico, pode-se fazer uma comparação em que Storni
parece explorar mais as possibilidades do meio do que, por exemplo, A. Rocha e
Loureiro, na série do Chiquinho, ou J.Carlos, na série de Carrapicho e Jujuba. Todos
tiveram sucesso, conquistaram os leitores e ficaram na memória de suas gerações.
Somente pode-se dizer que Storni tinha esse recurso artístico diferencial descrito
acima e se valeu dele nas tomadas de posição enquanto se movimentava no campo
profissional.
Segundo Bourdieu (1996), o valor da obra de arte é função do
reconhecimento. É atribuída, somente por fetiche, à genialidade do artista. Portanto,
“a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas
também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da
obra” (BOURDIEU, 1996, p. 259). Tal valor também depende do valor que se dá
ao público da obra. No pólo comercial do campo, também acontece a hierarquização
entre as obras que atendem ao mercado “burguês” e as que atendem ao mercado
“popular”, em detrimento das últimas (idem, p. 249). Os caricaturistas não estavam
no campo literário; estavam totalmente inseridos na indústria da mídia de seu
tempo. Portanto, não podiam almejar reconhecimento douto, muito menos títulos
por instituições de consagração, conforme visto no capítulo 2 (p.70). Sua luta por
valorização tinha que ser a busca por popularidade, a boa imagem que deixavam na
mente dos leitores. Storni, conforme o capítulo 4 (p.167)., parece ter apostado e
redobrado apostas na comicidade de caráter grotesco.
45
No número 369 (1912) ele faz na capa um jogo de dobrar o papel para simular o eclipse do sol
que houve naquela semana, similar às “dobradinhas” de Al Jaffee na revista Mad; no número 398
(1913), brincadeira com o rosto de Zé Macaco de cabeça pra baixo, parecendo um outro homem, de
bigode e barba; no número 421 (1913), jogo visual de compor, com as figuras da família Zé Macaco
e mais uma galinha a chocar dois ovos, a figura da cabeça do cão Jagunço; no número 439 (1914),
boneco de Zé Macaco que mexe braços e pernas; no número 462 (1914), Faustina visita as ruínas da
casa da avó de Zé Macaco. O leitor deve procurar, disfarçado no cenário, o rosto de Zé Macaco.
216
O lance recompensou, porque a lembrança do público e a avaliação dos
editores deve ter tido peso na decisão pela volta de Zé Macaco, após duas paradas,
a de 1915 e a de 1922. O grotesco fazia rir, e Storni, embora não tivesse pautado
sua obra sempre nesse registro, deve ter reconhecido que era parte de seu capital
artístico, disponível quando se tratava de O Tico-Tico e seu público infanto-juvenil.
O sentido do termo grotesco já foi discutido no capítulo 4 (p.167). Não se
propôs abordar o objeto da tese pelo lado da comicidade, muito menos formular a
maneira particular como Alfredo Storni produzia efeito cômico. No entanto, um
determinado entendimento do fenômeno do riso acompanha todas as análises feitas
durante o trabalho: a formulação do filósofo Henri Bergson (2001).
Sobre caricatura, a abordagem de Gombrich (1986), que lança foco sobre a
estilização, a simplificação de traços e formas e seu uso como uma forma de
linguagem, foi a escolhida como instrumento, conforme os capítulos 3 e 4.
Adicionalmente, o foco no exagero do desenho com efeito de riso vem da
abordagem de Bergson, que escreve:
Entende-se agora a comicidade da caricatura. [...] pode-se exagerar ao extremo sem
obter um verdadeiro efeito de caricatura. Para ser cômico, o exagero não pode
aparecer como o objetivo, mas como um simples meio utilizado pelo desenhista para
manifestar aos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-se na natureza.
(BERGSON, 2001, p. 20)
O filósofo encontra um denominador comum em todas as manifestações de
comicidade no desenho, na anedota, na comédia: a rigidez que é denunciada em
corpos e dinâmicas que deveriam ser maleáveis e vivas. Algumas delas são
contorções que se aplicam a um rosto doente, envelhecido ou castigado pela vida e,
por isso, disparam a manifestação do riso como reação ao desconforto de ver ou
sentir um entrave ao fluxo da vida. Essa manifestação não é solidária; não se ri de
quem se gosta. Mas se ri de quem nos lembra das falhas e da rigidez a que todo
homem está sujeito, como se a gargalhada ou o esgar tivesse o poder de punir o
desvio a ponto de devolver a vida e o dinamismo ao objeto do escárnio. Voltando
aos termos da citação, o caricaturista tem sucesso quando aumenta e evidencia
aquela rigidez, aquele desvio que já existe no objeto, ainda imperceptível.
A maior parte dos exemplos de Bergson levam a associar a rigidez à aparência
mecânica, repetitiva, viciada:
217
[...] assim nos parece que o desenho geralmente é cômico na medida da nitidez e
também na discrição com que nos leva a ver no homem um fantoche articulado
(grifo meu). É preciso que essa sugestão seja nítida, e que percebamos claramente,
como por transparência, um mecanismo desmontável dentro da pessoa (grifo meu).
[...] O efeito cômico será mais marcante, a arte do desenhista será mais consumada
quanto mais inseridas estas duas imagens estiverem uma na outra: a imagem da
pessoa e a de mecanismo. E a originalidade de um desenhista cômico poderia ser
definida pelo tipo específico de vida que ele comunique a um simples fantoche.
(BERGSON, 2001, p.22-23).
É difícil não lembrar da historieta de Zé Macaco e o boneco de corda
malcriado, analisada no capítulo 4 (p.191). O boneco era ridículo porque não parava
de andar, desrespeitando a civilidade. Por sua vez, Zé Macaco era ridículo porque
respondia com o vício da violência, sem atentar para a particularidade de seu
encontrão na rua. Zé Macaco, personagem caricato, é como se fosse um boneco
articulado também. E a técnica do caricaturista está diretamente ligada ao estudo
dos movimentos da figura humana como um “fantoche articulado”. Ele é passível
de ser representado em alguns movimentos e expressões, mas não em todos. Tem
rigidez mecânica.
Sugiro que a explicação para o riso dada por Bergson (2001), com base nos
exemplos culturais e artísticos que ele dá (caricatura, espetáculo circense, comédias
de Molière, entre outros) relaciona o riso com as transformações da modernidade,
das quais o filósofo foi um observador. Sua filosofia é da intuição e da experiência,
e sua vida acompanhou rápidas transformações técnicas e sociais. Em vista do
estado de coisas do século XX, ri-se da rigidez mecânica aplicada ao que é humano
e vivo (rigidez que é fruto do processo de modernização e que se relaciona, por
exemplo, com a moda, a produção em série e a especialização do trabalho), não na
tentativa de parar o processo e voltar atrás, mas, pelo contrário, para seguir em
frente no desenvolvimento do indivíduo, tirá-lo do marasmo, fazer com que busque,
sem parar, sempre atento, o bem viver, os novos e melhores hábitos. Sob esse ponto
de vista, ri-se para fazer avançar o processo civilizador.
É o tipo de riso do período clássico, que Bakhtin (1987) opõe ao grotesco, e
que pune os desvios das normas sociais burguesas. Conforme Bergson, a sociedade
é também como um ser vivo; mas a regulamentação a enrijece. Quando a lei social
rígida se confronta com um movimento natural, de vida, dá-se a comicidade. “O
lado cerimonioso da vida social deverá, pois, conter uma comicidade latente, que
só precisará de uma oportunidade para vir à luz” (BERGSON, 2001, p.33). A
218
pompa cerimonial do quadrinho acima, da história da homenagem a Zé Macaco, é
o principal propulsor do riso naquela piada, porque aplica, rígida e mecanicamente,
um aparato social bem conhecido a um objeto que, se prestarmos a atenção devida,
não se qualifica a tal coisa (Zé Macaco não é um herói e seus amigos não são
autoridades). O caricaturista (o humorista em geral) pode provocar riso no ato de
denunciar falhas da sociedade, portanto, sem atacar indivíduos particulares, rindo
com seus leitores sobre a existência moderna compartilhada, em vez de rir de
indivíduos ou grupos humanos específicos.
A sátira, no entanto, conforme esta interpretação de Bergson, não tem limites.
O caricaturista percebe sempre a rigidez que, amplificada, faz rir, seja ela de que
natureza for. Segundo o filósofo, os defeitos fazem rir devido a sua insociabilidade,
não por sua imoralidade. Assim, um objeto politicamente virtuoso, se exibir alguma
rigidez, um dogmatismo ou vício, vai gerar piadas, enquanto um objeto imoral pode
circular impune, sem se dar ao ridículo, se apenas se mantiver em movimento,
adaptado à dinâmica da vida.
O que se deve levar adiante dessa digressão é que a obra de Storni, com seu
Zé Macaco, não pode deixar de discursar sobre a experiência das transformações
da modernidade no Brasil. Quando a sociedade for ridícula, ou seja, demonstrar
sinais de vício, de rigidez paralisante e mecânica, o caricaturista vai aumentar esses
sinais numa representação que, em si, já é uma avaliação e já enuncia um juízo
(conforme Moscovici, 2012). Daí que o mais efetivo lance de Storni foi transformar
seu caboclo desajustado no grã-fino emergente Zé Macaco. O primeiro só
experimentava o conflito vida rural X vida urbana, um tema desenvolvido por
muitos, anterior e posteriormente. O segundo era capaz de vivenciar a modernidade
de maneira mais significativa. Trouxe para as mãos do autor uma linha de trabalho
que sustentaria sua carreira durante muitos anos daí para a frente.
Na capa do número 479, de 1914, Storni desenhou uma piada acontecendo na
sala de uma casa burguesa, com lustre, cristaleira, mesa, vaso e um retrato na
parede. A legenda resumia muito do que vinham sendo as historietas: “A vida
íntima da família Zé Macaco é o que pode haver de mais delicioso e interessante:
enquanto o chefe se preocupa com as grandes invenções e a Faustina com a moda
(grifo meu), Baratinha, na sala de jantar, se entrega às experiências (grifo meu)
mais estapafúrdias que se possam executar”. Os termos “delicioso e interessante”
representam ironia – Baratinha estava pendurando Chocolate no lustre!
219
Nos capítulos 3 e 4 foram descritos os temas mais frequentes das historietas
de Zé Macaco e Faustina, com base na leitura da série e sistematização de uma
tabela de referência. A lista resultante ganha, agora, um significado mais preciso:
as histórias giram em torno de experiências modernas. Munido de renda, sem rotina
de trabalho, sem laços sociais e sem nenhum objetivo na vida, o personagem não
parece imitar as modas no intuito de aprender a ser civilizado, mas ter necessidade
de experimentar novos objetos e costumes, numa sucessão infinita, sem evolução
nem construção de nada. Mesmo para um personagem de histórias em quadrinhos
cômicas, um gênero que costuma mais repetir do que desenrolar tramas, esse traço
é notável.
A questão da pressão social para Zé Macaco aperfeiçoar seus costumes e se
civilizar não se coloca nas histórias, embora elas tenham tido esse efeito de difundir
etiquetas, como, por exemplo, fazer a toilette antes de sair de casa para um concerto
(capa do número 411, em 1913), a história da sorveteria (capítulo 3, p.156) e a da
ida ao cinema (capítulo 4, p.177). Ele e a família correm atrás das modas e
novidades, mas não discursam sobre a necessidade de se civilizar para ascender
socialmente, pois já estão no topo. Apenas desejam viver cada experiência de
consumo disponível, para não ficar para trás – inclusive, são vítimas de
charlatanismo – e Faustina, muitas vezes, principalmente na fase após 1928,
discursa sobre causar inveja “nas de pichulin”, jovens senhoras de elite com que se
relaciona.
A família Zé Macaco, apesar de toda a carga de imagens grotescas nas
histórias, não representa exatamente a rusticidade contra a urbanidade. De fato, a
piada do conflito vida rural X vida urbana é feita em cima do irmão de Zé Macaco,
nas edições 401, 402 e 403 de 1913. O tal Chico Tiririca, inconveniente, “vindo lá
dos sertões de Goiás”, chega do interior de mala e cuia e surpreende a família ainda
na cama. Tem um pato gigante como montaria e se comporta com maus modos à
mesa, deixando até o animal subir nela. O narrador diz que ele “era um matuto
grosseirão e, quando falava, cuspia na cara da gente e dava bofetadas”. E completa
a história: “A família Zé Macaco deu graças a Deus quando se viu livre desse novo
malcriado, e fez votos para que nunca mais fosse visitada pelos parentes”46.
46
Posteriormente, nos números 472 e 473, de 1914, Faustina paga a visita do cunhado indo à
cidade chamada “Três Caracóis”. Lá é recebida com pompa, passeio de automóvel e desfile de
tropas, porém o automóvel de Chico Tiririca tem rodas quadradas e a tropa desfila montada em
220
A virada que Storni deu no personagem possibilitou falar de seu tempo em
outros termos, talvez abordar outros incômodos. De modo geral, quando Zé Macaco
se relaciona com um objeto, já começa querendo adaptá-lo, ou usá-lo de maneira
diferente. Parece que não acredita no uso adequado das coisas; quer reinventar.
Portanto, o que Storni estava fazendo ali não era exatamente a instrução do uso
correto das novas técnicas e etiquetas ao personagem incivil ou atrasado. Sua lição,
se há alguma, é de que não se deve “macaquear”, no sentido de imitar
superficialmente, apenas por diversão.
Se o termo “macaquear” era aplicado ao homem do povo, rústico, incivil,
havia também termos para ridicularizar a elite brasileira em seu vício de imitar
modas, costumes e ideias estrangeiras sem a devida ponderação. Cronistas
criticavam a cultura do bacharelismo, ou seja, a inutilidade de uma elite que, de
posse de diploma, ganhava direito a posições remuneradas na estrutura do Estado,
sem se engajar no desenvolvimento econômico do próprio país. Machado de Assis
abordou, no conto Teoria do Medalhão, a posição social que todo jovem de elite
deveria tentar obter quando tivesse cerca de 45 anos: o status de “medalhão”. Essa
posição de referência na sociedade era obtida não com grandes feitos e bons
serviços, mas com a repressão a qualquer ideia própria, que pudesse sofrer reação,
e com muita repetição de fórmulas consagradas, aplicáveis superficialmente a
qualquer problema. Disse o pai ao filho: “proíbo-te que chegues a outras conclusões
que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão,
originalidade...”47.
Essa crítica circulava pelos meios intelectuais e pela imprensa, e deve ter tido
adesão de Storni. Somente de maneira involuntária é que o caricaturista difunde o
uso e etiqueta de novos objetos, costumes e modas. Ao longo da produção de sua
série cômica, ele torna familiares, por meio da caricatura, veículos, peças de
vestuário, equipamentos, ferramentas domésticas, experiências de consumo e de
lazer. Trata das pautas do noticiário da semana, dos sucessos fonográficos (que ele
lastima), dos passeios no cenário do Rio de Janeiro, circulação pela Avenida
Central, parques, montanhas e a Baía de Guanabara.
porcos e bois. Tais signos conotam a imobilidade ou lerdeza no desenvolvimento do interior do
país.
47
Texto disponível no site governamental Domínio Público, em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf>. Acesso: 15 dez. 2020.
221
Voltando à abordagem de Henri Bergson, a grande caricatura feita por Storni
é do vício moderno em experiências de consumo. Essa é a rigidez, a contorção, a
distorção que o caricaturista começa a ver no rosto da sociedade em que está
vivendo. Ele a aumenta e exibe com efeito cômico.
Esse processo de representação e mediação cultural em que os caricaturistas
se envolveram não ficou no passado. Deve estar ainda em curso, assim como o
processo civilizador, que apenas se aplica a novos objetos, em novos grupos sociais,
sob novos impulsos políticos.
Seria interessante aplicar a mesma abordagem desenvolvida até agora a um
objeto contemporâneo, por motivo de comparação. No entanto, a tarefa de escolher
um objeto similar às historietas de O Tico-Tico não é trivial. Para buscar um
exemplo contemporâneo a que se aplique o mesmo tipo de leitura, esse objeto
deveria ser: a) narrativo, b) periódico, c) cômico, d) concebido e executado por uma
única pessoa, e) de grande circulação e f) voltado para o público infanto-juvenil. As
histórias em quadrinhos em jornais contemporâneos não qualificam, por terem um
público mais maduro. Na atualidade, narrativas mais populares para crianças têm
forma audiovisual, especialmente séries animadas. Além disso, a produção de
narrativas para entretenimento infantil, na maioria, não é feita por indivíduos, mas
por equipes. Admitindo tais limitações em relação ao público infanto-juvenil,
porém, ainda é possível eleger vários objetos contemporâneos para comparação.
Um trabalho similar ao de Storni e é desenvolvido na atualidade é a série
“Gente Fina”, do cartunista Bruno Drummond. Ela foi concebida e executada
inteiramente pelo desenhista carioca, formado Mestre em Antropologia da Arte
(UFRJ) nascido em 1973 48. Começou a ser publicada em 2004 na Revista O Globo,
encarte do diário carioca de grande circulação e terminou em 25 de agosto de 2019.
Como todo trabalho em forma tiras em quadrinhos da atualidade, é distribuída
gratuitamente em redes sociais como o Twitter do autor (@bruno_drummond). Em
entrevistas, o autor acusa influência de antigos caricaturistas e considera que não
48
Fontes biográficas: site Memória O Globo, disponível em:
http://memoria.oglobo.globo.com/humor/bruno-drummond-20448464 , acesso em 19 nov. 2020, e
matéria de O Globo “Bruno Drummond: o cartunista dos personagens das ruas”, de 20/05/2014,
disponível em https://oglobo.globo.com/rio/bairros/bruno-drummond-cartunista-dos-personagensdas-ruas-12516667 , acesso em 19 nov. 2020 ; entrevista para o site Rio ETC postada em
11/12/2009, disponível em https://www.rioetc.com.br/sem-categoria/rioetc-entrevista-brunodrummond/, acessado em 20 nov. 2020.
222
representa “o tipo carioca”, mas representa tipos de pessoas cariocas de classe
média e alta, realmente encontradas na vida cotidiana dele.
Há algumas diferenças em relação ao trabalho de Alfredo Storni, mas a mais
consequente é que Bruno Drummond não criou um personagem fixo; ele prefere
representar sempre pessoas novas, fruto de observação e, às vezes, anotações e
esboços feitos em público. Isso é importante porque permite que ele represente, em
traços, o vestuário da moda e diversos hábitos de consumo e lazer a partir da
realidade. Nisso, inclusive, não difere de Storni, que aplicava à Faustina os modelos
de roupas e chapéus encontrados no cotidiano do Rio de Janeiro.
Bruno Drummond não faz histórias extensas, apenas sequências de um a
quatro quadrinhos, e seu humor é fundamentado no diálogo das personagens. Quase
nenhuma ação com os corpos é representada, apenas pequenas diferenças de postura
e de expressão facial de quadro para quadro. Nesse sentido, passa longe do
investimento em figuras grotescas característico de Storni.
Segundo a teoria do riso de Bergson, Bruno Drummond obtém efeito cômico
por revelar o vício, a contorção, a mecanicidade com que as camadas mais abastadas
da sociedade carioca experimentam um entrelaçamento de relações pessoais e
hábitos de consumo. A mecanicidade impede que esses personagens fluam com o
dinamismo da vida. Um estudo completo poderia ser feito com a obra desse
cartunista, mas no âmbito desta tese foi feita apenas uma leitura exploratória de
suas tiras e a análise de um exemplo de tira produzida em 2018 (ver Figura 50).
Figura 50. Consumo e etiqueta contemporânea. Tira em quadrinhos postada no perfil
@bruno_drummond da rede Twitter, em 1/10/2018.
223
Por se empenhar em representar peças de vestuário e hábitos de consumo
(nomes de pratos gourmet, drinques e localidades turísticas, principalmente), o
autor difunde tais hábitos e modas considerados modernos e distintivos. Seus
personagens, ao longo dos anos, servem de crônica das modas e experiências mais
valorizadas entre as pessoas de classe média e alta do Rio de Janeiro.
O processo de mediação que já foi abordado algumas vezes nesta tese também
está em jogo. Quando o humorista associa a ideia de “filtro do Instagram” com a de
saúde (“sua pele está ótima”) cria uma associação de ideias do tipo teorizado por
Moscovici: a novidade tecnológica a ser naturalizada e absorvida na cultura local,
o “filtro do Instagram”, uma abstração, é concretizada na forma – ou uma ou outra
– de maquiagem ou de disciplinados hábitos de saúde. Ou a pele está ótima por ter
sido disfarçada por cosméticos, assim como faria o filtro fotográfico digital, ou a
pele está ótima pela adoção de suplementos ou dieta balanceada, o que, numa
análise superficial, apenas configura outro tipo de consumo.
Na lógica da comicidade, o rosto da segunda personagem pode ser ridículo
no sentido de parecer uma máscara mecanizada, um filtro fotográfico. Por outro
lado, a percepção da primeira personagem pode ser ridícula porque seus argumentos
e repertório são mecanizados como os softwares que consome no cotidiano: seu
vício mecânico seria comparar tudo que se faz na vida com o que se faz nos
aplicativos das redes sociais.
Assim, o cartunista carioca parece estar fazendo a representação social com
os mesmos fundamentos de Alfredo Storni, ou seja, difundindo uma etiqueta
moderna – o uso dos aplicativos de rede social para apresentar-se ao mundo e
construir sua subjetividade – ao mesmo tempo em que ridiculariza a maneira
repetitiva, mecânica ou viciada de tudo medir em comparação com a atividade
dentro das redes sociais. O que eles confirmam: a capacitação básica, a etiqueta de
uso dos aplicativos é necessária para não ficar para trás no caminhar dos tempos; o
que eles negam: a extensão dessas etiquetas à vivência de todas as coisas, a adoção
de novas tecnologias e etiquetas apenas por imitação, sem interiorização e
desenvolvimento humano.
Por meio da leitura habitual dessas narrativas cômicas distribuídas largamente
em diversas mídias, a sociedade constrói uma representação de si mesma,
concordando, discordando ou ressignificando os signos visuais e textuais
compostos pelos autores na linguagem da caricatura. O trabalho de representação
224
envolve tanto os autores, profissionais especializados em mediar conteúdos
exóticos para públicos locais, quanto os leitores, que levam a informação para seus
círculos sociais, desenvolvem uma interpretação coletiva e a fazem ser conhecida,
retornando-a aos artistas que já começam novas obras narrativas a partir desse
significado compartilhado, construído historicamente.
É por isso que Howard S. Becker (2009) afirma que esse tipo de obra pode
ser também um relato sobre a sociedade, capaz de produzir conhecimento que não
é inferior a medições ou relatórios científicos.
Storni, com seu trabalho de décadas na série Zé Macaco, pode não ter feito
uma caricatura do brasileiro típico – o qual talvez não exista – mas fez uma
caricatura da sociedade brasileira da Primeira República, um relato sobre a
sociedade que começava a ver a si mesma nas páginas das revistas ilustradas. Esta
pesquisa sugere que Storni chegou a conclusões que têm pontos de contato com
outros relatos, obras de cientistas sociais que chegaram a essas formulações por
seus próprios meios, da observação da mesma sociedade.
No ensaio Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque de Holanda traça diversas
considerações sobre a formação da sociedade brasileira, as matrizes culturais de sua
organização e dos comportamentos típicos dos brasileiros. Há três pontos em que
suas conclusões lançam luz sobre nossa interpretação do personagem Zé Macaco
como um relato sobre a sociedade.
O primeiro é a valorização do espírito do aventureiro em relação ao do
trabalhador:
O gosto da aventura, responsável pelas fraquezas de não se organizar e de não
poupar, não prever (grifo meu), teve influência decisiva aqui. Foi elemento que
favoreceu a adaptação aos trópicos, as asperezas e resistências da natureza.
(BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 46 )
É um traço associado à sociedade de corte portuguesa, onde nome de família
importava menos, na hierarquia do reino, do que os feitos do indivíduo na guerra.
Segundo o autor, os colonizadores portugueses se lançaram ao interior com esse
espírito imprevidente de obter nome e fortuna em função do arrojo, desprendimento
e capacidade de sofrer dificuldades. A transposição desse espírito para a vida
moderna é que os brasileiros não se limitam a aperfeiçoar-se numa única atividade;
misturam profissões, pulam de uma carreira a outra. O foco não é a construção da
carreira, mas a vivência, a experiência, a própria satisfação (idem, p. 155).
225
Da mesma forma, Storni representou o Zé Macaco como esse inquieto
aventureiro, viajante e inventor, que segue impulsos para combater o tédio,
conforme as historietas analisadas sobretudo nos capítulos 3 e 4. Imprevidente,
chega a gastar toda a fortuna, tendo que se lançar a diferentes trabalhos e negócios.
O exemplo analisado no capítulo 4 (p.184), do espetáculo teatral, é um desses. A
fortuna retorna graças à patente da máquina de matar pulgas, mas o casal volta a
precisar “se virar” em historietas posteriores. Não há uma linha de texto em toda a
série de Zé Macaco que o identifique como trabalhador de qualquer ofício.
O segundo ponto de concordância é a tendência a se recolher ao privado e não
valorizar a associação em grupos sociais com objetivos comuns; um apego aos
valores da personalidade configurada pelo recinto doméstico. Segundo Buarque de
Holanda, o indivíduo se recolhe, “indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas
afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais” (idem, 155).
Esse ponto de vista talvez confira uma interpretação melhor ao isolamento de
Zé Macaco no domicílio familiar. O personagem faz passeios, brinca carnaval e faz
viagens, porém não é representado em clubes, nem locais de trabalho, nem
templos49, nem assembleias. Suas visitas eventuais à delegacia ou ao consultório
médico são muito menos frequentes do que as viagens fantasiosas que empreende.
Tal traço também pode ser lido como a representação de um ethos pequeno-burguês
vivido pelo próprio caricaturista, mas esse comportamento puramente burguês não
combina com os rompantes aventureiros de Zé Macaco.
O terceiro ponto é a noção de que, na sociedade brasileira, as relações sociais
pacíficas ocorrem em função da valorização de elos de obediência e de afeto,
herdados do meio rural e patriarcal:
Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade.
São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante (grifo meu). Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode
exprimir-se em mandamentos e sentenças. [...] Nenhum povo está mais distante
dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio
social é, no fundo, justamente o contrário da polidez (grifo meu) (BUARQUE DE
HOLANDA, 1995, p.147).
49
A exceção seria a história em que Faustina é batizada no rito católico (n.283, em 1911), mas
confirma a regra, pois não era uma rotina para a família Zé Macaco. Era uma ocasião especial,
porque a Madame Zé Macaco não tinha ganho nome próprio ainda.
226
Assim, um personagem como Zé Macaco não poderia representar o
comportamento errado para que se ensinasse a etiqueta correta por inversão. Na
verdade, o personagem é avesso à coerção da etiqueta de convívio social,
substituída pelo tratamento afetuoso ou agressivo conforme a circunstância (o
chamado “homem cordial”, quase sempre movido por reações emocionais). É um
caráter espontâneo. Na cena da homenagem reproduzida acima, no quadrinho
anterior (não mostrado), Zé Macaco tinha respondido à oferta do busto com um
pequeno discurso protocolar de duas frases-feitas, o que configura uma etiqueta de
fachada, mas sua reação é fundamentalmente emocional: forma uma cascata
“transbordante” de lágrimas, as quais substituem e superam por muito, na sociedade
brasileira, um agradecimento equilibrado e eloquente.
O antropólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro (1995) também ressalta
a resistência da sociedade brasileira ao processo civilizatório. A colonização teria
sido o empreendimento de implantar a civilização europeia no território tropical;
não produziu o que os colonizadores queriam, mas sim o que resultou de sua ação
desenfreada: “[..] que nos fez a nós mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual
somos, tão opostos a branquitudes e civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus
como desíndios e desafros” (RIBEIRO, 2006, p. 63). O autor chama atenção para
tal identidade ambígua e para a mestiçagem que caracterizaria o povo brasileiro, o
que acrescenta significado ao fato de Zé Macaco ser o único caboclo da família
criada por Storni. E mais: ser um homem caboclo que fica rico e busca casamento
com uma inglesa50.
A representação da sociedade brasileira implícita nessas historietas traz o
gosto pelo novo e o moderno como traço notável. Darcy Ribeiro aponta um
“veemente desejo de transformação renovadora” (RIBEIRO, 2006, p. 227) e
desenvolve o argumento de que o Brasil é antes arcaico do que tradicional. Suas
populações são mais atrasadas do que conservadoras. Todas parecem favoráveis a
mudanças modernizantes, apesar de viverem essas transformações em ritmos
diferentes, devido aos obstáculos sociais ao desenvolvimento achados em suas
50
Sobre a questão da formação do povo brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro
escreveram depois da publicação das historietas de Zé Macaco, mas um importante texto precede a
todos: Os Sertões, de Euclides da Cunha. O escritor, no capítulo 3, cristaliza a imagem do sertanejo,
caboclo em sua origem étnica, como um homem de aspecto desgracioso, torto e preguiçoso, mas
que salta com muita energia e heroísmo quando o trabalho de vaqueiro se apresenta. O autor também
não conseguia definir o brasileiro, mas estava convencido de que o componente caboclo da
população era um elemento estável, a “rocha viva de nossa raça” (notas à segunda edição).
227
comunidades, mas nunca obstáculos culturais. O antropólogo vê o brasileiro, em
geral, como indivíduo culturalmente empobrecido, como se fosse uma tábula rasa
“mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu
tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal” (idem, p. 227).
A sociedade brasileira teria, portanto, um traço de buscar, ao longo de sua
história, tudo que for considerado moderno por padrões de referência externos, no
que se transformou um tipo próprio de tradição. Renato Ortiz em A moderna
tradição brasileira (1991), disserta sobre a produção de cultura de massa no Brasil,
principalmente suas narrativas audiovisuais, e trata desse caráter nacional de
produzir e consumir narrativas modernas com base numa organização social e
cultural que não é moderna. Teoricamente, as condições para a produção de arte
moderna são a agitação política, o aparecimento de tecnologias emergentes e uma
base de cultura clássica sólida. O caráter moderno, em arte, seria a negação do
passado e a afirmação de algo substancialmente novo e diferente: a modernidade
nunca é ela mesma, é sempre outra, a próxima, um projeto inacabado. No Brasil,
no entanto, a modernidade foi sempre encarada como uma qualidade com que a
sociedade quer ser identificada. Ela não quer realmente mudar, mas manter essa
tradição de acolher, deglutindo como puder, mas não incorporando em sua
estrutura, tudo quanto seja rotulado de moderno no mundo.
Assim como esses autores que estudaram e concluíram relatos sobre a
sociedade brasileira, o caricaturista Alfredo Storni, encarregado de entreter e
civilizar jovens leitores de sua revista, lançou mão da representação caricatural da
relação de indivíduos e objetos para legar um relato sobre a ambiguidade das ações
dessa sociedade e sobre a superficialidade da modernização em curso. Seu
personagem caboclo, emergente, aventureiro, imprevidente, inquieto, desejoso de
honras e imitador de modas concentra em sua caracterização as qualidades que o
caricaturista provavelmente aplicava à sociedade que observou em sua época.
Essas qualidades, segundo as teorias da representação social (HALL, 2016;
MOSCOVICI, 2012), são interpretações coletivas a partir dos signos tanto textuais
quanto visuais que o caricaturista utilizou para compor suas narrativas cômicas.
Não são simples traduções, como num código de correspondências. Formam um
discurso lógico, organizado em torno de temas encontrados na cultura
compartilhada entre artistas e leitores. Esses temas podem proceder de lógicas que
sustentam estereótipos. As lógicas associam qualidades assessórias ao tema
228
principal, formam um sistema semântico. Funcionam no processo de representação
porque associam abstrações a signos concretos.
No caso da série de historietas de Storni – e de muitas outras narrativas visuais
publicadas em O Tico-Tico – o signo que serviu de tema ao redor do qual os outros
signos se associaram num sistema deve ter sido o mais evidente: o macaco.
Na capa do número 207 de O Tico-Tico (23/06/1915) Storni publicou mais
um de seus jogos visuais no lugar da usual historieta: o rosto de Zé Macaco, de
olhos arregalados, boca aberta e enorme gravata borboleta no pescoço, digna da
fantasia de um palhaço. Com expressão emocional incontida, orelhas enormes e
apenas dois dentes na frente, era, novamente, uma máscara grotesca (ver Figura 51).
A legenda da caricatura dizia:
Zé Macaco, com esta carantonha, tem a expressão de quem está com macaquinhos
no sótão. Pois é isso mesmo. Procurem nossos leitores o macaquinho que, sem
cerimônia, se alojou no frontispício respeitável de Zé Macaco.
229
Figura 51 .”Procurem nossos leitores o macaquinho”. Capa do número 507 de O Tico-Tico (1915),
por A. Storni. O caricaturista propõe um jogo de percepção visual e, ao mesmo tempo, faz com
que o rosto de seu personagem estampe a capa da revista durante uma semana.
Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
230
A solução do jogo, caso haja necessidade de explicação, é dada na figura
abaixo, editada por mim a partir da imagem disponibilizada pela Biblioteca
Nacional.
Figura 52. Imagem feita com seleção de parte do desenho da capa para evidenciar o macaco
desenhado sobre o rosto do personagem.
Conforme chegamos a abordar no capítulo 1 (p.46), um dos sinais de
civilidade e, ao mesmo tempo, uma das aptidões da sensibilidade moderna, as quais
se desejava ensinar aos jovens, era a habilidade em leitura de imagens impressas
(como nas revistas ilustradas), sequenciadas (como as tiras cômicas) e moventes
(como as do cinematógrafo). Daí a presença frequente de jogos de desafio à
percepção visual, inclusive nos concursos para leitores. Talvez essa sensibilidade
construída no consumo de narrativas visuais impressas e moventes se estendesse
para o terreno da leitura de signos.
Para quem tivesse os olhos educados, por trás daquele personagem se veria
sempre o signo do macaco, com todas as associações de ideias circulantes na
cultura: facilidade em imitar, inquietação, dificuldade em obedecer, irritabilidade,
habilidades atléticas, comicidade, entre outras, inclusive as ideias racistas. Desde o
início o personagem é rotulado de caboclo, e esse estereótipo deve pesar nas
decisões do autor sobre o que o herói pode ou não pode fazer na narrativa. Por trás
da sociedade brasileira representada pelas revistas ilustradas, que abraçava os
231
projetos modernizadores e preconizava a civilização das crianças num alto grau, os
olhos educados também sempre veriam aquelas ambiguidades, talentos e distorções
descritas pelos autores abordados acima.
Em relação à assimilação de novos objetos para trabalho e lazer, novos
sistemas de organização e disciplina e nova organização política, esta se faria com
adaptações e substituições de peças. Segundo as narrativas estudadas, o
conhecimento dos objetos modernos não viria do estudo reverente, mas do ato de
virá-los e revirá-los, até desmontar, conforme faria um macaco (argumento
desenvolvido no capítulo 3). Esse ponto de vista não era definitivo; na verdade,
evidencia-se uma oscilação entre duas linhas editoriais quanto ao conteúdo, no
período da Primeira Guerra Mundial: uma crente na reprodução de padrões
idealizados de civilização e outra descrente.
Entre outras fontes de leitura, aquele público jovem educou-se e construiu
suas subjetividades modernas acompanhando semanalmente historietas cômicas
criadas pelos caricaturistas da época. Era um tipo de obra nova, ainda que tivesse
matrizes mais antigas. Estava sendo desenvolvida na vivência das transformações
modernas e na rotina do habitus dos profissionais das revistas ilustradas, os quais
lutavam por posições que lhes trouxessem estabilidade profissional, mais do que
consagração artística. Entre as estratégias possíveis, um deles podia manejar a caixa
de ferramentas da estética grotesca e colocar-se para traduzir as ambiguidades da
sociedade moderna para ela mesma. Assim, o interesse em procurar a história de Zé
Macaco e Faustina, entre as páginas de cada edição de O Tico-Tico seria forte,
perene e genuíno, para satisfação de Alfredo Storni.
6. Considerações finais
Nesse ponto do texto, gostaria de atestar que compartilhei com outros
pesquisadores que se ocuparam de O Tico-Tico o prazer e o assombro da descoberta.
É um assombro com o tamanho da obra coletiva constituída por essa publicação,
com a variedade de abordagens acadêmicas que permite e com o legado que deixou.
O assombro soma-se ao prazer da descoberta de um artista, Alfredo Storni,
pouco lembrado além de algumas referências a suas charges políticas, em livros de
História. No início da caminhada, não tinha conhecimento sobre sua obra e, no final,
ele tornou-se um dos meus artistas preferidos, daqueles que o fã quase deseja tomar
posse.
Atesto também o prazer da experiência de pesquisa, conforme narrada no
capítulo de introdução. Espero ter aprendido como abordar um objeto constituído
por uma obra veiculada na imprensa na forma de série de histórias em quadrinhos.
Esse tipo de obra estende-se muito no tempo, é lida intertextualmente, cria sentido
cumulativamente e modifica-se diacronicamente em função dos movimentos no
campo profissional. Ainda por cima, é capaz de se renovar, porque se permite
desvincular de parte da herança constituída pelas narrativas publicadas
anteriormente. Apesar de hoje ser consumida como coleção, foi criada para
consumo descartável.
Esse trabalho de interpretação, que pretende se valer de ferramentas de um
tipo de semiologia, nunca abandona o apoio dos conhecimentos da História, e é
inspirado na descrição densa etnográfica, ou seja, na escuta do outro, na leitura da
cultura do outro sobre os ombros de seus nativos (GEERTZ, 2014). Neste caso, a
distância não se dá culturalmente, nem geograficamente, mas no tempo. Mais do
que o respeito à diferença, essa inspiração etnográfica valoriza a diferença. Em
outras palavras, aprendi que o objeto não “fala” e não lhe fornece dados se você o
rejeita. No sentido metafórico que uso, rejeitar o objeto é abordá-lo já com um juízo
de valor feito. Em vez de olhar as imagens à procura de algum sinal já esperado, é
melhor, como ensina W. J. T. Mitchell (2015), indagar às imagens o que elas
querem dizer, muito além do que o pesquisador ou mesmo o produtor das imagens
tenha desejado.
Espero ter aprendido, além disso, a lidar com a reflexividade (BOURDIEU,
1989). Tendo trabalhado na produção de histórias em quadrinhos infantis para
233
veículos de imprensa diários e semanais, minha vivência foi sempre projetada no
objeto quando eu buscava interpretá-lo. Para cada tirada cômica de Storni eu podia
reproduzir um processo mental que eu já teria feito alguma vez, na produção do
meu trabalho, e facilitar a compreensão do leitor sobre a gênese das sequências,
expressões visuais e jogos de palavras destacados na análise. Essa projeção, é claro,
não deveria substituir a análise, que deveria ser aberta ao que o objeto,
especificamente, apresenta na forma de dados. Há de se reconhecer que tanto o
objeto quanto os dados são construídos, o que não quer dizer que são inventados.
Sempre que havia uma dúvida sobre qual caminho tomar, a “fala do objeto”
resolvia. A pesquisa foi feita num movimento pendular entre a observação empírica
e a formulação de questões fundamentadas em teoria. As descobertas feitas no
retorno às tarefas empíricas indicavam as ferramentas teóricas pertinentes.
Espero ter realizado um trabalho com pés firmes no terreno da Comunicação
Social, mesmo reconhecendo débito para com todas as ciências humanas e sociais.
Afinal, trata-se de uma disciplina que persegue interligações. Mantive-me ancorado
na crença de que nossa pesquisa é a dos fenômenos de construção social do sentido
e, daí, da construção de subjetividades, que podem, depois, ser relacionadas com a
sociedade de uma época.
Há muitas outras abordagens que esta pesquisa mapeou e que ajudam a
descrever mais densamente a sociedade da época de O Tico-Tico e como ela estava
se transformando. Proponho, pelo menos, três pesquisas derivadas da experiência
desta tese:
a) As matrizes grotescas e surrealistas das aventuras de Kaximbown, por
Yantok. Esse autor, durante toda a carreira, mas destacadamente na
segunda década do século XX, produziu aventuras cômicas em
quadrinhos com imagens ricas em potencial semiológico. Talvez suas
matrizes não estejam em histórias em quadrinhos de sua época, mas nas
artes visuais e na literatura.
b) A trajetória da personagem Faustina relacionada com questões de gênero.
Faustina é representada com uma mulher notavelmente feia, pelos padrões
da época, a ponto de ser grotesca. Por outro lado, ela se tem em alta conta
e experimenta todas as modas e hábitos de consumo distintivos ao longo
de décadas de publicação. É possível criar uma linha do tempo apenas
com as figuras de Faustina vestida na última moda. Acrescente-se à
234
complexidade o fato de Faustina não representar uma brasileira, mas uma
inglesa casada com brasileiro. Muitas das piadas de Faustina têm como
tema a reprovação social, tanto pelo marido, quanto pelo povo na rua, de
suas tentativas de vestir-se de maneira vanguardista. As histórias
relacionam-se com a divisão sexual do trabalho, as divisões de classe e o
estereótipo feminino.
c) Análise do discurso civilizador nas historietas de Chiquinho, na fase em
que foi escrita e desenhada por Luís Loureiro. Pelo menos duas
sequências são muito ricas para essa abordagem e foram interpretadas em
dois artigos meus para eventos acadêmicos. A primeira eu chamo de “Para
tirar-lhes o medo”, uma história que insere na casa de Chiquinho uma
família visitante do interior, com duas meninas que são espelho invertido
de Chiquinho e Benjamin. Os garotos aprontam ataques em sequência
para provocar as meninas, num tipo de terapia de choque para tirar o medo
que as meninas têm do cão Jagunço, o que equivale a tirar delas traços de
rusticidade e infantilidade, ou seja, equivale a civilizá-las sob o ponto de
vista dos personagens (possivelmente, do autor). A brincadeira degringola
e Chiquinho acaba prestes a ser expulso de casa para um colégio interno.
Todos choram, menos ele.
A segunda sequência eu apelidei de “A conflagração”. Publicada durante
meados da Primeira Guerra Mundial, emula a hostilidade do confronto
europeu no cenário da rixa entre Chiquinho e o menino da casa vizinha,
Xedas. Acusando o Xedas de ter comportamento bárbaro, Chiquinho,
Benjamin e Jagunço começam provocações e vão para vias de fato,
invadindo o terreno vizinho e terminando por deixar o menino esmagado
no chão, para desespero de sua mãe. Mais uma vez, a justificativa de
Chiquinho por ter liderado a hostilidade é educar a vítima. A mãe de
Chiquinho, no final da sequência, julga que é apenas brincadeira de
garotos e, desta vez, não pune o filho.
Loureiro, oriundo de uma das camadas mais baixas da burguesia do Rio
de Janeiro, alinhava-se com o pensamento de que o que a nação precisava
era um choque de disciplina, estudo e trabalho duro. Numa história de
1916, Chiquinho estuda, adormece e sonha com o “gigante adormecido”
que é o Brasil, e é ensinado que o país fica atrasado, sem riqueza, porque
235
os homens da elite, em vez de produzir, só querem tornar-se bacharéis e
viver às custas de empregos públicos. A historieta faz a caricatura de um
pensamento que nunca deixa de circular no debate público brasileiro.
Espero que mais pesquisadores busquem O Tico-Tico e seus artistas,
abraçando esses objetos com respeito e profundidade teórica, mesmo que tenham
de lutar contra a avaliação de que desperdiçam tempo e recursos com objetos
irrelevantes para a urgência dos tempos. A propósito disso, cito um fragmento
pedagógico de Pierre Bourdieu:
O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de por em jogo
“coisas teóricas” muito importantes a respeito de objetos ditos “empíricos” muito
precisos, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios
(BOURDIEU, 1989, p. 20).
Esses desdobramentos são propostos a partir da noção de que a leitura e
interpretação das obras constituídas por séries de historietas ilustradas da revista O
Tico-Tico continuará a nos causar assombro e prazer pela descoberta de
interligações com processos de construção de significado e de subjetividades que
marcam períodos de nossa sociedade.
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