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Miguel Geraldo Mendes Reis Alfredo Storni e seu Zé Macaco: a pedagogia da subjetividade moderna nas historietas de O Tico-Tico Tese de Doutorado Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pósgraduação em Comunicação do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio Orientadora: Prof.ª Tatiana Oliveira Siciliano Rio de Janeiro Março de 2021 Miguel Geraldo Mendes Reis Alfredo Storni e seu Zé Macaco: a pedagogia da subjetividade moderna nas historietas de O Tico-Tico Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Comunicação da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo Prof.ª Tatiana Oliveira Siciliano Orientadora Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio Prof.ª Claudia da Silva Pereira Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio Prof. Marcelo Gantus Jasmin Departamento de História – PUC-Rio Prof. Octavio Carvalho Aragão Júnior Escola de Comunicação – UFRJ Prof. Waldomiro de Castro Santos Vergueiro Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Rio de Janeiro, 17 de março de 2021 Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora. Miguel Geraldo Mendes Reis Graduou-se em Comunicação Social (PUC-Rio) em 1990. Atua profissionalmente no setor editorial com enfoque em cartilhas de campanhas públicas, livros paradidáticos, histórias em quadrinhos e livros ilustrados infanto-juvenis. Mestre em Comunicação Social (PUC-Rio). Vencedor do Troféu HQMix 2017 de Melhor Dissertação de Mestrado na área de Quadrinhos. Ficha Catalográfica Reis, Miguel Geraldo Mendes Alfredo Storni e seu Zé Macaco : a pedagogia da subjetividade moderna nas historietas de O Tico-Tico / Miguel Geraldo Mendes Reis ; orientadora: Tatiana Oliveira Siciliano. – 2021. 246 f. : il. color. ; 30 cm Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, 2021. Inclui bibliografia 1. Comunicação Social - Teses. 2. O Tico-Tico. 3. Alfredo Storni. 4. Histórias em quadrinhos. 5. Processo civilizador. 6. Mediação. I. Siciliano, Tatiana Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III. Título. CDD: 302.23 Para Patrícia, Bruno, Iris, Accacio, Geraldo e Acacir; para Ziraldo e todos os cartunistas amigos. Agradecimentos A minha orientadora Doutora Tatiana Siciliano, por ter me admitido como seu primeiro orientando em pós-graduação, por suas contribuições fundamentais para a condução do trabalho, por todas as indicações de leitura, pelo exemplo brilhante de comportamento acadêmico e por seu apoio e incentivo, sempre generosa antes de tudo. Ao saudoso professor Miguel Serpa Pereira e a meus antigos professores Fernando Ferreira, Eduardo Neiva Jr. e Sandra Korman, por terem ajudado a reconduzir-me à vida acadêmica. Aos professores e funcionários do Departamento de Comunicação Social da PUCRio, com menção especial às secretárias do Programa de Pós-graduação Marise Lira e Juliana Pecis. Às alunas e alunos meus contemporâneos dos cursos de mestrado e doutorado, pelas contribuições críticas e pelo acolhimento no grupo. Abraço especial às participantes do Grupo de Estudos em Narrativas da vida moderna na cultura midiática, de tantas reuniões memoráveis das sextas-feiras. À amiga e colega de redação de gibis Fátima Valença, pelo empréstimo de valiosos livros para a pesquisa. Aos pesquisadores amadores Francisco Dourado (HQ Retrô) e João Antônio Buhrer (Arquivos Incríveis) pelo interesse demonstrado na pesquisa e fornecimento de informações valiosas sobre o material empírico analisado. É ponto a favor das redes sociais que interligam pessoas por suas afinidades, quando não viram campo de batalha. A meus pais Geraldo e Acacir, minhas irmãs Mariela e Doriana e minha própria família pelo ambiente propício ao desenvolvimento intelectual e artístico formado em nossos lares. A Ziraldo Alves Pinto, Doutor Honoris Causa da UFRJ, por ter me selecionado e permitido meu ingresso na genial confraria de pessoas que publicam cartuns e trabalham em revistas em quadrinhos, desde 1989, sem o que esta pesquisa não teria sido feita. Agradeço pelas contribuições intelectuais, pelos contatos profissionais e pela estabilidade que contribuiu para o desenvolvimento de minhas atividades de pesquisa. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Portanto, agradeço à Capes, à Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos da PUC-Rio e ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, pela concessão de bolsas de estudo e pesquisa que viabilizaram o longo trabalho. Resumo Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana Oliveira. Alfredo Storni e seu Zé Macaco: a pedagogia da subjetividade moderna nas historietas de O Tico-Tico. Rio de Janeiro, 2021. 246 p. Tese de Doutorado – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A pesquisa se volta para o estudo de histórias em quadrinhos da revista ilustrada para crianças O Tico-Tico (1905 – 1962). O recorte é a série Aventuras de Zé Macaco e Faustina, de autoria do caricaturista Alfredo Storni, no período de 1909 a 1922. Tal objeto permite uma perspectiva privilegiada para observar processos de mediação cultural por meio da arte da caricatura na imprensa, num período histórico em que se aceleram as transformações técnicas e as ebulições sociais. Entende-se que o sentido é uma construção social, que a produção de narrativas veiculadas nos meios de comunicação é uma ação coletiva, como conceitua Howard S. Becker, e que o consumo de tais narrativas tem um papel mediador nos processos de representação social, de assimilação de mudanças, de subjetivação como indivíduo moderno e na pedagogia do consumo moderno e do comportamento civilizado. Para o estudo, todas as histórias do recorte foram lidas e geraram uma tabela analítica, a qual permitiu uma análise interpretativa do conteúdo balizada pelo estudo do campo profissional dos caricaturistas e seu habitus. Considera-se que o conjunto de histórias publicadas em série constitui uma obra artística e que o princípio gerador dessa obra deve ser estudado a partir do mapeamento das sucessivas posições ocupadas pelo artista no campo profissional desde o início, e que essa trajetória emula sua trajetória social. Uma vez que interessa descrever mais profundamente como se dão os processos citados acima, uma seleção de historietas de Storni é interpretada em detalhe sob fundamentação teórica a respeito das relação entre pessoas e objetos, da pedagogia civilizadora e das ferramentas artísticas da caricatura e do grotesco. Conclui-se que, no seu conjunto, as narrativas do Zé Macaco tecem um relato ambíguo sobre a sociedade, ao mesmo tempo ajudando o leitor a se familiarizar com a modernização e ridicularizando a adoção superficial de novas modas e hábitos. Palavras-chave O Tico-Tico; Alfredo Storni; histórias em quadrinhos; processo civilizador; mediação. Abstract Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana Oliveira. (Advisor). Alfredo Storni and his Zé Macaco: pedagogy of modern subjectivity in comicstrips from O Tico-Tico. Rio de Janeiro, 2021. 246p. Tese de Doutorado – Departamento de Comunicação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. This work aims the study of comics in the children's illustrated magazine O Tico-Tico (1905 - 1962). The highlight is the series Aventuras de Zé Macaco e Faustina, by the caricaturist Alfredo Storni, from 1909 to 1922. This object allows a privileged perspective to observe cultural mediation processes through the art of caricature in modern press set in a historical period when technical transformations and social upheavals accelerate. It is understood that meaning is a social construction, that the production of narratives conveyed in the media is a collective action, as conceptualized by Howard S. Becker, and that the consumption of such narratives has a mediating role in the processes of social representation, assimilation of changes, modern individual subjectivation and pedagogy of modern consumption and civilized behavior. For the study, all the stories in the clipping were read and fed to an analytical table, which allowed an interpretative analysis of the content based on the study of the professional field of caricaturists and their habitus. The work assumes that sets of comicstrips published in series constitute artistic works and that the generating principles of that works must be studied by mapping the successive positions occupied by the artists in the professional field from the beginning, and that his trajectory emulates his social trajectory. Since it is interesting to describe more deeply how the processes mentioned above take place, a selection of Storni's comicstrips is interpreted in detail on a theoretical basis regarding the relationship between people and objects, the civilizing process and the artistic tools of caricature and the grotesque. As a conclusion, it is set that, as a whole, Zé Macaco’s stories weave na ambíguous account about brazilian Society, at the same time helping readers to become familiar with modern changes and mocking the superficial adoption of new fashions and habits. Keywords O Tico-Tico; Alfredo Storni; comicstrips; civilizing process; mediation. Sumário Introdução ................................................................................................ 11 Páginas para pequenos: um retrato de O Tico-Tico ................................. 15 O Tico-Tico para historiadores e pedagogos: uma revisão bibliográfica .. 20 O Tico-Tico para a Comunicação Social: um objeto em posição privilegiada ............................................................................................... 26 Considerações metodológicas: percurso de pesquisa ............................. 32 Organização do texto: a narrativa de uma pesquisa ................................ 43 1. O contexto das historietas ilustradas .................................................... 46 1.1. O prazer infantil da velocidade e da confusão ................................ 47 1.2. Tiras em quadrinhos, uma onda na virada de século ...................... 61 1.3. O Tico-Tico, representante local de um modelo internacional ........ 63 2. O campo da caricatura ......................................................................... 70 2.1. “Encantadora, a festa da arte”: o Rio de Janeiro no início do séc. XX ............................................................................................ 75 2.2. Na oficina e nO Malho, o habitus do caricaturista ........................... 80 2.3. A trajetória de Alfredo Storni ......................................................... 105 2.4. A estratégia de Storni .................................................................... 122 3. A cômica interação entre pessoas e coisas nas aventuras de Zé Macaco ............................................................................................... 131 3.1. Considerações teóricas: a modéstia dos objetos .......................... 133 3.2. Sujeitos e objetos; corpos e coisas ............................................... 136 3.3. Um inventário de objetos nas histórias de Zé Macaco .................. 149 3.4. Zé Macaco e Faustina, engenhosos ............................................. 153 4. O processo civilizador ........................................................................ 167 4.1. Aventuras no cinema..................................................................... 176 4.2. A moeda de troca de Zé Macaco .................................................. 183 4.3. Quem é o civilizado, quem é o incivil? .......................................... 186 4.4. A face grotesca de Zé Macaco ...................................................... 193 4.5. Representações grotescas e sua ambiguidade ............................ 204 5. Desenhando, uma caricatura fala sobre a sociedade ........................ 210 6. Considerações finais .......................................................................... 232 7. Referências bibliográficas .................................................................. 236 Lista de figuras Figura 1: O menino prodígio e o gramofone. ............................................ 11 Figura 2: Chiquinho leva escovadas ........................................................ 29 Figura 3: Autobonecografia de Yantok ..................................................... 36 Figura 4: Anúncio da volta de Zé Macaco ................................................ 41 Figura 5: Zé Macaco volta rico e de automóvel ........................................ 48 Figura 6: A família de publicações da Sociedade Anônima O Malho ....... 52 Figura 7: Faustina tem objetos retirados de seus olhos ........................... 55 Figura 8: Concurso com quebra-cabeças visual de silhuetas .................. 59 Figura 9: Coisas vistas do alto ................................................................. 60 Figura 10: Comparação La Jeunesse Illustrée com O Tico-Tico - A. ....... 64 Figura 11: Comparação La Jeunesse Illustrée com O Tico-Tico - B ........ 65 Figura 12: História de Buster Brown em versão italiana ........................... 67 Figura 13: Charge cartão de boas festas de Storni para O Malho ........... 71 Figura 14: Foto de reunião social na casa de Luiz Edmundo ................... 75 Figura 15: Brinquedo de armar de O Tico-Tico montado ....................... 101 Figura 16: Autocaricaturas de Storni jovem e velho ............................... 107 Figura 17: Charge de Storni caricaturando Pinheiro Machado ............... 108 Figura 18: Charge de Storni ambientada na Exposição Nacional .......... 111 Figura 19: Charge de Bluff com um conjunto de figuras cômicas .......... 114 Figura 20: Anúncio de J. Carlos com grupo de personagens ................. 117 Figura 21: Desenho de leitor com família Zé Macaco, Chiquinho e Jagunço ................................................................................ 118 Figura 22: Charge de Storni para Careta com traço similar a J. Carlos . 120 Figura 23: Caricatura da família Nogueira Accioly por Bluff ................... 123 Figura 24: Charge de Storni para Careta sobre desfile de Carnaval ...... 124 Figura 25: Comparação entre capas de J. Ramos Lobão e de Storni .... 128 Figura 26: Historieta ilustrada O mundo em 1920 .................................. 132 Figura 27: Historieta. Baratinha quer passar a roupa com rolo compressor ............................................................................ 137 Figura 28: Historieta por Leônidas. Passeio na Capitá .......................... 140 Figura 29: Historieta traduzida. A ampulheta encantada ........................ 146 Figura 30: Historieta por Leônidas. Menino e bomba d’água ................. 148 Figura 31: Historieta. Zé Macaco lança seu aéreo-burro ....................... 151 Figura 32: Historieta. Faustina toma sorvetes e fica congelada ............. 156 Figura 33: Historieta. Faustina inventa radar para salvar Zé Macaco .... 159 Figura 34: Historieta. Faustina mal pode andar com grilhão na saia ...... 161 Figura 35: Historieta. Homens indígenas tiram roupas de Zé Macaco ... 164 Figura 36: Historieta. Recepção chic no palacete da família Zé Macaco ............................................................................. 168 Figura 37: Historieta. Família Zé Macaco dá vexame na sala de cinema ................................................................................... 177 Figura 38: Historieta. Família Zé Macaco produz fita de cinema............ 180 Figura 39: Historieta. Zé Macaco e Faustina dançam no teatro. ............ 183 Figura 40: Historieta. Zé Macaco e Faustina viram artistas ricos ........... 185 Figura 41: Historieta. Família Zé Macaco no circo yankee ..................... 188 Figura 42: Historieta. Zé Macaco briga com boneco de corda ............... 189 Figura 43: Historieta. Guarda espanca Zé Macaco desmemoriado ....... 192 Figura 44: Quadro de historieta de Kaximbown por Yantok ................... 196 Figura 45: Detalhe de historieta de Storni com Zé Macaco carbonizado .......................................................................... 196 Figura 46: Detalhe de historieta de Augusto Rocha com João Garnizé .................................................................................. 200 Figura 47: Quadro de historieta com Faustina e o cão Serrote .............. 201 Figura 48: Quadro de historieta com mosquito gigante/ aeroplano ........ 209 Figura 49: Quadro de historieta com homenagem a Zé Macaco............ 210 Figura 50: Tira em quadrinhos de Bruno Drummond ............................. 222 Figura 51: Capa de O Tico-Tico com cabeça de Zé Macaco ................. 229 Figura 52: Esquema demonstrando o macaco na face de Zé Macaco .. 230 Introdução Na edição nº 16 da revista ilustrada O Tico-Tico, publicada em 1906, no Rio de Janeiro, o público leria esta historieta em quatro quadrinhos: Joãozinho, que, conforme a legenda, manifestava “grande vocação para mecânico”, um dia tem a ideia de pegar um funil comum, espetá-lo numa caixa de papelão sobre a mesa, esconder-se debaixo da toalha e começar a cantarolar. Assim, “os manos de Joãozinho, admirados diante de tal maravilha, passaram o dia inteiro a ouvir gramofone” (ver Figura 1). Figura 1: Página 16 de O Tico-Tico nº 16, 1906. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 12 Lida hoje, mais de cem anos depois, essa historieta adquire certo significado, se estivermos conscientes do contexto histórico daquela publicação. O gramofone, um dos primeiros aparelhos a reproduzir sons gravados, era uma das maravilhas da tecnologia da virada dos séculos XIX para XX. Nos termos usados na atualidade, seria o “sonho de consumo” de nove entre dez famílias burguesas abastadas, bem como o telefone, a iluminação elétrica e o automóvel. Joãozinho, o menino da historieta, não tinha, ainda, um aparelho desses, mas sabia que deveria ter. Sabia também como simular tê-lo. Joãozinho era “um menino prodígio”, educado nas noções de engenharia, as mesmas que os adultos utilizavam nas iniciativas industriais que estavam trazendo, em ritmo veloz, o progresso material para o país. Um gramofone podia ser chamado de “maravilha” pois, na época, a julgar pelas narrativas das revistas ilustradas, a crença no progresso era inabalável, e sua face material representava também o progresso cultural: o Brasil, depois de estabilizado o regime republicano, caminharia a passos largos para se ombrear com as maiores nações do mundo. Para isso, cumpria educar a juventude em ciências e letras, afastando para sempre as crendices e os costumes primitivos. Civilidade era o eixo balizador. Entretanto, Joãozinho, engenhoso, apenas imitou a forma externa de um gramofone e começou a cantar impropérios para caçoar de seus irmãos: “Mariquinhas é feia... Juquinha tem cara de gato... Pinduca é manhoso...”. Parece que o mau comportamento dos meninos seria difícil de refrear, mesmo com tantas conquistas materiais. A civilização, portanto, seria apenas um verniz, uma máscara? Talvez o caricaturista tivesse intenção de levantar essa dúvida. Essa amostra de historieta ilustrada representa processos que ambos, autores e leitores, estavam atravessando, e nos fornece dados de como se davam e, provavelmente, se dão ainda tais processos socioculturais. Este trabalho parte do princípio de que é possível abordar essas publicações ilustradas para crianças do início do século XX a fim de entender melhor como se dão determinados processos de mediação e construção da subjetividade moderna. Esta pesquisa buscará compreender como o conteúdo de O Tico-Tico, nas primeiras décadas do século XX, especialmente as historietas ilustradas, posteriormente chamadas “histórias em quadrinhos”, criadas por profissionais do campo da caricatura, mediaram mensagens que contribuíram no processo civilizador e na construção da subjetividade dita moderna entre jovens e crianças 13 leitoras. Para tal, foi analisado um recorte da obra formada pelas historietas de Zé Macaco e Faustina, criadas por um dos caricaturistas da revista, Alfredo Storni. Tais processos de mediação, nesta pesquisa, são aqueles em que algumas categorias de atividade, como políticos, sacerdotes, professores e comunicadores, transitam entre grupos sociais distintos traduzindo informações e valores entre eles. As mediações têm potencial para acelerar transformações, mas também para manutenção de valores e reprodução do status quo. Contudo, não são deterministas; tais mediações são sempre atravessadas por interações e negociações. O conceito foi expresso dessa forma pelo antropólogo Gilberto Velho (2013) e pôde ser aplicado ao trabalho dos caricaturistas e cartunistas na minha dissertação de Mestrado sobre cartilhas ilustradas (REIS, 2016). Por subjetividade aqui se entende a maneira de o indivíduo “estar no mundo”, sociabilizar-se, obter conhecimento e manter-se material e espiritualmente. Subentende uma maneira de ver o mundo e é construída socialmente no processo histórico. Ou, em outras palavras, uma ficção necessária construída no mesmo tempo em que se expressa: A experiência de si como um eu se deve, portanto, à condição de narrador do sujeito: alguém que é capaz de organizar sua experiência na primeira pessoa do singular. Mas este não se expressa unívoca e linearmente através de suas palavras, traduzindo em texto alguma entidade que precederia o relato e seria “mais real” do que a mera narração. Em vez, disso, a subjetividade se constitui na vertigem desse córrego discursivo, é nele que o eu de fato se realiza (SIBILIA, 2008: 31)”. A subjetividade, portanto, é expressa com os elementos disponíveis no ambiente social e cultural do indivíduo, e responde às transformações históricas. A subjetividade dita “moderna” poderia, assim, ser identificada como um “modo de existir” gestado nessa era de transformações tecnológicas. A pesquisa lidou com o termo Modernidade como uma fórmula abreviada para denominar amplas e profundas transformações sociais, econômicas e culturais que vão se estendendo pelo mundo sobretudo do século XIX até a atualidade. O termo surgiu para denominar uma era de contínua transformação para algo que está sempre por vir (KOSELLECK, 2006). É uma era caracterizada pela tradição de ruptura (PAZ, 1984), a noção de que deve haver descontinuidade com o passado, de que “a ruptura é a forma privilegiada de mudança” (PAZ, 1984, p.18) e, assim, negando qualquer manutenção de tradições, “a modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra” (idem). É caracterizada também pela autocrítica apaixonada, uma 14 paixão “pela crítica e seus precisos mecanismos de desconstrução” (idem, p. 21). A “racionalidade instrumental” é a principal moldura de ação; é um tempo de aceleração do ritmo das mudanças tecnológicas e sociais calcadas em “industrialização, urbanização e crescimento populacional”, com a vivência de “choques físicos e perceptivos” que se dão no ambiente urbano (SINGER, 2004, p. 95). Dois tipos de novidades técnicas fomentaram as transformações: as máquinas, fontes de energia e processos que aceleraram a indústria e o transporte de um lado, e novos meios de comunicação ajudando a construir um mercado consumidor de massa, de outro (ORTIZ, 1991 b). No tocante ao progresso material, ao desenvolvimento da comunicação e do comércio, à propagação do ideário racionalista e ao avanço da interiorização do indivíduo, os valores da Modernidade mesclam-se com os valores da Civilização. O estudo da produção midiática de determinada época colabora não só para descrevê-la, mas também para entender por que meios os produtos midiáticos, eles mesmos, cumprem papel no processo histórico de transformação da sociedade. É possível observar um recorte da pioneira revista infantil O Tico-Tico com a perspectiva de que suas diversas seções e historietas ilustradas podem ter funcionado como recurso pedagógico informal para educar crianças e jovens da elite social brasileira a circular pelos novos espaços urbanos e sociais que foram sendo construídos durante o início do século XX, especialmente na Capital Federal, o Rio de Janeiro. Se já eram o meio de comunicação que apresentava às crianças e jovens da capital os gramofones, aeroplanos e telefones com que deveriam se acostumar, mais importante ainda eram para os moradores do interior, que apenas imaginavam o que seria viver numa cidade com transporte público e casas de espetáculo. O cotidiano da capital estava desenhado em O Tico-Tico, para todos se prepararem para os choques sensoriais e o hiperestímulo (SINGER, 2004) típicos das grandes cidades (SIMMEL, 2005) que ainda acabariam chegando a todos os núcleos urbanos. O cinema foi um meio importante para essa pedagogia, e as histórias em quadrinhos podem ter feito o mesmo papel sobretudo no público infantil. 15 Páginas para pequenos: um retrato de O Tico-Tico O Tico-Tico foi uma revista ilustrada para público infantil editada pela mesma empresa responsável pelo semanário satírico O Malho, do Rio de Janeiro. Sua publicação é iniciada em 1905 e só termina em 1962, quando já sofria com a competição de outras publicações e não tinha mais regularidade semanal. Em todo esse período, cronistas e pesquisadores concluem que O Tico-Tico manteve sua linha editorial de oferecer aos jovens leitores um combinado de entretenimento e instrução (ROSA, 2002; MERLO, 2003). Dentro da composição editorial de O Tico-Tico consagraram-se as histórias em quadrinhos de autores brasileiros, como J. Carlos, Max Yantok, Luiz Sá e Alfredo Storni, entre outros. O caricaturista ítalobrasileiro Angelo Agostini criou o primeiro logotipo da revista e colaborou nas primeiras edições. Tal modelo editorial corresponde a publicações de outros países, como La Semaine de Suzette, semanário francês lançado no mesmo ano de 1905, Corriere dei Piccoli, suplemento infantil italiano lançado em 1908 ou, na América do Sul, El Peneca, lançado em 1908 no Chile, e Biliken, revista infantil argentina lançada em 1919. As histórias em quadrinhos americanas do início do século XX eram uma referência, tanto que o personagem Chiquinho – que, de tão popular, se tornou o mascote de O Tico-Tico – era cópia decalcada do personagem Buster Brown do americano Richard F. Outcault (1863 -1928), sem que lhe fosse dado o crédito (CAGNIN, 2005). Tão importantes quanto os contos de fantasia e as historietas ilustradas, com seus personagens consagrados, eram as seções escritas sobre curiosidades (Lições do Vovô, Sr. X e sua Página, Gavetinha do Saber) e as seções de cartas (A gaiola do Tico-Tico e Correspondência do Dr. Sabetudo). Ao longo das primeiras décadas do século XX, publicou também muitas fotos de turmas escolares e fotos das crianças dos assinantes, registrou a vida social e esportiva, ensinou a fazer “brinquedos para dias de chuva” e a armar presépios e miniaturas cujas partes para recortar, dobrar e colar vinham impressas nas páginas centrais coloridas. A sucinta descrição não fica completa se não citarmos a importância dos concursos semanais oferecidos aos leitores e a profusão de anúncios de varejistas do centro do Rio de Janeiro. Os concursos propunham enigmas e quebra-cabeças aos leitores que escreviam e colavam um selo da revista na carta. Os prêmios 16 podiam ser em dinheiro, no início, mas em geral foram edições do Almanaque d’O Tico-Tico, brinquedos, peças decorativas, serviços de fotografia e outros bens de consumo (ROSA, 2002). Embora sediada na Capital Federal, cidade do Rio de Janeiro, a publicação foi lida em quase todo o Brasil, a julgar pela origem das cartas recebidas (ROSA, 2002). Ainda que seus textos e ilustrações focassem os interesses da elite urbana, os cronistas asseguram que ela era consumida também pelas classes trabalhadoras e pequena burguesia (idem). Durante as três primeiras décadas de publicação, o semanário não tinha rivais no mercado editorial infantil. Desde as primeiras cartas do editor, a proposta de O Tico-Tico fica claramente estabelecida: ao mesmo tempo em que entretém, educa moral e intelectualmente – inclusive servindo de incentivo à prática da alfabetização. Ler a legenda de uma ilustração divertida era mais instigante do que ler os severos livros de leitura do início do século XX. A publicação de livros criados especialmente para as crianças brasileiras foi uma preocupação pública durante o final do século XIX e início do século XX. A classe intelectual criticava a falta de material próprio para as crianças aprenderem a ler, que tinham à disposição, quando muito, livros editados em Portugal, com vocabulário muito diverso do brasileiro e, ainda por cima, com temática europeia. Segundo as pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007, p. 24 - 42), é do início do século XX também a preocupação de produzir livros infantis que colaborassem na formação do sentimento nacional e patriótico, como Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manuel Bonfim, entre outros. A proposta editorial de O Tico-Tico corresponde a tal movimento intelectual. Assim, antes de tudo, adota-se aqui a ideia de que a revista ilustrada pode ser uma fonte de pesquisa histórica. De fato, o estudo das transformações do Rio de Janeiro durante as reformas urbanas da Primeira República, por parte de historiadores, se apoiou na leitura dos periódicos da época. O material, onde se discutia e se difundia os projetos para o futuro, ajudou, inclusive, a entender as transformações nos hábitos e percepções dos moradores, convivendo pela primeira vez com automóveis, bondes, cinemas, fonógrafos e outros aparelhos elétricos, e em conflito com os novos padrões sanitários, habitacionais e estéticos que foram violentamente impostos. O pesquisador só precisa ter cautela, como diz Tânia de Luca (2008), para não identificar linearmente a narração do acontecimento com o próprio acontecimento. Afinal, “a imprensa periódica seleciona, ordena, estrutura e 17 narra, de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até o público” (LUCA, 2008, p.139). Essa questão, antes de ser um empecilho, é justamente o ponto que mais interessa neste trabalho, pois os periódicos podem ser entendidos como obras coletivas, que são produzidas dentro de um jogo entre redatores e leitores e que agregam pessoas em torno de ideias, crenças e valores. Importa menos o que aquela sociedade estava fazendo e mais o que ela “pensava que estava fazendo”. Desde esse ponto de vista, O Tico-Tico não será visto apenas como um produto de mercado totalmente controlado pelos proprietários da Sociedade Anônima O Malho, mas como uma representação coletiva da sociedade, conforme formulação de Howard S. Becker (2009). Sob a mesma linha editorial, ao longo de incontáveis semanas, grande número de colaboradores, cada qual com sua formação artística e intelectual e sua identidade social, tentaram sempre conjugar suas próprias percepções com o interesse dos leitores, os quais se manifestavam profusamente por carta, inclusive mandando colaborações amadoras. Becker defende que: Levar em conta as maneiras como as pessoas que trabalham em outros campos — artistas visuais, romancistas, dramaturgos, fotógrafos e cineastas — e os leigos representam a sociedade revelará dimensões analíticas e possibilidades que a ciência social muitas vezes ignorou serem úteis em outros aspectos (BECKER, 2009, p.19). De modo geral, os autores de historietas ilustradas de O Tico-Tico reportavam a vida real de seu tempo, em vez de formular fantasias como as publicações de super-heróis e animais antropomórficos que a sucederam. Assim, a coleção de ícones visuais extraída do semanário apresenta o vestuário e mobiliário burgueses, as novidades tecnológicas, os veículos, os ambientes profissionais urbanos, a arquitetura da metrópole, os sonhos de consumo da classe média e os objetos envolvidos na educação considerada ideal para crianças. O contexto da criação de O Tico-Tico é o de rápidas transformações no mundo e, em especial, na cidade do Rio de Janeiro. Affonso Botari, aquele que sustenta – com fortes argumentos – ter sido o primeiro leitor do semanário, relembrou a sensação, numa entrevista: Como dizia, surgiram muitas revistas luxuosas – as que me lembrei e outras mais –, não só pelos avanços técnicos da impressão litográfica, inclusive com cores, e pelo desenvolvimento da arte do desenho caricatural, como também por um surto de 18 ideologias modernas, de modernidade, como o nascimento do século XX... Parecia que o progresso tinha finalmente chegado! (BOTARI, 2005, p. 229) O historiador Nicolau Sevcenko, analisando o espírito dessa época na Capital da República, pondera que as novas técnicas transformaram o ambiente e transformaram os indivíduos também por dentro. Elas podem alterar a cognição. Segundo ele, parece que as pessoas presenciavam novos efeitos “mágicos”, que elas tinham seu poder multiplicado facilmente e que a todos, até o homem mais humilde, era concedido imaginar novos projetos de vida (SEVCENKO, 1998, p. 520). A importância da imprensa (especialmente a imprensa satírica e ilustrada) para a experiência da modernidade corre o risco, hoje, de parecer diminuta, mas, pelo contrário, Elias Thomé Saliba afirma que o humorismo (em todas as suas mídias, imprensa ilustrada inclusive) teve condições vantajosas de servir à representação da nacionalidade brasileira em formação e dos processos de transformação da modernidade, na virada do século XIX para o XX: As próprias formas de representação humorística (concisão, brevidade, trucagens, rapidez, reversibilidade de significados, desfamiliarização, etc.) se prestavam a servir de recurso típico de representação, dada a sua saliente afinidade com a fragmentação, a velocidade e, em termos humanos, com os deslocamentos de sentidos e a subsequente alienação; em síntese, a afinidade dos procedimentos mais comuns à representação humorística com tudo aquilo que – segundo descrição famosa – “era sólido e se desmanchava no ar” (SALIBA, 2002, p.33). A representação humorística já tinha tradição desde o Segundo Reinado, mas ganhou cada vez mais espaço na imprensa brasileira, até que, no início do século XX, os jornais começam a assumir perfil mais informativo e as revistas semanais ilustradas se separam deles, na primeira década do século XX, levando consigo os chargistas e ilustradores. São elas a Revista da Semana, Kosmos, Fon-fon!, Careta, Paratodos e O Malho, da qual se origina O Tico-Tico, que lhe pegou emprestado ilustradores e escritores, além da direção editorial. Eram veículos de grande sucesso em sua época e disputavam uma massa de leitores em que se incluíam até os analfabetos, que apenas “ouviam ler” (VELLOSO, 2010). Daí, para entrar no rol dos veículos populares, torna-se imprescindível contar com o suporte de imagem, pois as charges, as caricaturas, as ilustrações e as fotografias possibilitavam uma leitura coletiva e oral das informações. Afinal, para as modernas revistas ilustradas, tais como Fon-fon! e O Malho, o indivíduo iletrado estava integrado ao mercado de leitores da imprensa (SICILIANO, 2014, p. 136). 19 A prática da leitura não deve ter sido a única coisa que O Tico-Tico ensinou às seguidas gerações de crianças brasileiras que tiveram acesso a suas páginas. É possível sustentar que a produção midiática de qualquer natureza tem papel pedagógico na construção da subjetividade dos leitores enquanto indivíduos modernos (com todas as dimensões, da política ao consumo), servindo de vitrine para novos itens da cultura material e recomendando novos hábitos e comportamentos. Neste trabalho, leva-se em conta que, além de representar a sociedade, publicações têm agência no processo civilizador, conforme descrito por Norbert Elias (2011). Pesquisando um corpus de manuais de civilidade publicados ao longo de séculos, Elias fez evidente que as noções de vergonha, de nojo e de ridículo foram se transformando historicamente, e o padrão de comportamento considerado natural de nossas sociedades atuais foi objeto de conflitos e de muito empenho pedagógico. O comportamento dos indivíduos tem sido objeto de admoestação e correção segundo normas sociais. Para poderem participar de grupos de maior distinção e, até certo ponto, para se adequarem minimamente a qualquer interação social, os indivíduos, principalmente aqueles apontados como “primitivos”, “rústicos”, “incivilizados” e “pueris”, precisam interiorizar normas de decoro. A maneira como o indivíduo se apresenta exteriormente (inclusive como olha o interlocutor e como posta seu corpo), acredita-se, deve comunicar, mais do que simular, certas qualidades interiores socialmente valorizadas. Por isso, há muito, por diversos meios, patrocina-se o aprendizado da etiqueta à mesa e demais modalidades de encontros sociais. Mais do que isso, considera-se necessário aprender a maneira civilizada de utilizar os objetos modernos e a fazer absolutamente qualquer coisa em público, ou seja, aprender a circular pelos novos espaços sociais que estavam sendo criados. O humor, mais uma vez, é o instrumento acionado para ridicularizar os comportamentos indesejados a ponto de convencer os “incivilizados” a se enquadrarem. Como lembrou o filósofo Henri Bergson (2001), o riso é a correção imediata dos desvios dos indivíduos e da sociedade, ressaltando e reprimindo não exatamente a imoralidade, mas sempre a insociabilidade. Para fazer, em poucos anos, as crianças alcançarem o grau de civilidade e desenvolverem os adequados sentimentos de decoro pessoal e de nojo típicos dos adultos, a sociedade como um todo, através da religião, da escola, da família e de “milhares de outros instrumentos” além da educação dada pelos pais, faz pressão 20 sobre a nova geração (ELIAS, 2011). É possível abordar o semanário O Tico-Tico como um desses instrumentos. O Tico-Tico para historiadores e pedagogos: uma revisão bibliográfica Os dois principais trabalhos que servem de referência para pesquisas sobre O Tico-Tico são os de Zita de Paula Rosa e de Maria Cristina Merlo. A primeira publicou em 2002 o livro O Tico-Tico: meio século de ação recreativa e pedagógica. A segunda produziu também um trabalho pioneiro na forma de sua Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, em 2003, com o título O Tico-Tico: um marco nas histórias em quadrinhos no Brasil (1905 – 1962). Ambas realizaram um extenso trabalho descritivo da publicação, com uma leitura longitudinal, percorrendo seus mais de cinquenta anos de existência. Rosa (2002) conta a história da fundação de O Tico-Tico e de suas transformações ao longo das décadas. Traça um quadro da relevância da revista por meio das referências na literatura, na crítica literária e em entrevistas com antigos leitores. Faz um inventário dos personagens mais famosos e longevos e reconhece os principais colaboradores, todos cartunistas. Zita de Paula Rosa aborda a revista pela perspectiva da disciplina da Pedagogia e, ao longo de seu trabalho, vai problematizando as mensagens civilizadoras e reprodutoras da ordem social que encontra no conteúdo das diversas seções do semanário. Um exemplo dessa abordagem, nas suas considerações finais: Mantendo-se sintonizado com as expectativas mais amplas da sociedade em relação à infância e se identificando predominantemente com os valores e comportamentos das classes privilegiadas, O Tico-Tico insistiu e investiu em sua autoimagem de uma publicação modelar, voltada para a formação sadia do cidadão. Mais por intermédio de mensagens, contos, aconselhamentos e apresentação de vidas exemplares de personalidades e anônimos do que propriamente por intermédio das histórias em quadrinhos, a revista construiu essa imagem, aceita e reconhecida, principalmente a partir dos anos 40, por grande parte dos seus admiradores adultos (ROSA, 2002, p. 262). Se realmente as histórias em quadrinhos não contribuíram na imagem modelar de O Tico-Tico, talvez possam ter contribuído sim na formação dos leitores segundo valores e contingências de sua época, como pretendemos investigar. Em contraste, a dissertação de Mestrado de Maria Cristina Merlo, integrante da disciplina da Comunicação Social, é completa na descrição do formato da 21 publicação, e aborda a série de “histórias em quadrinhos” do personagem Chiquinho como exemplo do material predominante. Sustenta que O Tico-Tico é a primeira revista de histórias em quadrinhos do Brasil, tendo influenciado o campo de atividade que se abriu a partir daí1. Merlo também se preocupou em transcrever entrevistas com desenhistas de O Tico-Tico e referências à publicação em textos de escritores e intelectuais brasileiros, para atestar sua relevância cultural. As transcrições das entrevistas, em especial, e todas as listas e tabelas de informações objetivas, como as que Merlo montou com as carreiras dos cartunistas, serão sempre muito úteis para fundamentar novas pesquisas. A autora também observa que a revista foi “retrato dos bons costumes e dos acontecimentos do cotidiano, fatos sociais, econômicos, políticos e culturais de época de publicação” e celebra que ela “foi escola e descobrimento de muitos talentos, como desenhistas, redatores, escritores e colaboradores”, sendo, mesmo seguindo modelos estrangeiros, “um marco, um exemplo de orgulho” (MERLO, 2003, p. 348 - 349). Dois livros comemorativos do centenário de O Tico-Tico são também fundamentais na exibição de um amplo leque de facetas que o semanário ostentou, em tantas décadas de publicação. O Tico-Tico: centenário da primeira revista de quadrinhos do Brasil (2005), organizado pelos professores Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos, tem, na forma de anexo, o fac-símile da primeira edição da revista. Além disso, conjuga uma série de artigos de diferentes pesquisadores, abordando aspectos como as “dimensões” educativa, cultural, literária, lúdica e comercial, além de se voltar para a história do personagem-símbolo, Chiquinho, entre outros lembrados. Também transcreve depoimentos e entrevistas com leitores, como o Sr. Afonso Botari, que podia sustentar ter sido a primeira criança que leu O Tico-Tico em 1905. Tal depoimento é de especial interesse para contribuir na discussão das questões desta tese. O segundo livro comemorativo foi publicado em 2006, com o título Almanaque d’O Tico-Tico: edição comemorativa. Com curadoria do acadêmico Arnaldo Niskier e tendo vários redatores, o livro apresenta um “panorama” de tudo que se podia encontrar nas páginas da revista Conclui-se que, no seu conjunto, as narrativas do Zé Macaco tecem um relato ambíguo sobre a sociedade, ao mesmo tempo ajudando o leitor a se familiarizar com a modernização e ridicularizando a 1 A alegação, no entanto, não é exata, porque anteriormente havia sido publicado no Brasil o Jornal da Infância (1898) já nos moldes franceses (CARDOSO, 2008). 22 adoção superficial de novas modas e hábitos., desde os fantasiosos contos ilustrados às páginas sobre ciências e invenções; desde os modelos de “modas infantis” e “reclames” até as quadrinizações de fatos históricos. Na forma própria de um álbum de curiosidades ou almanaque, esse livro elenca os “principais artistas gráficos”: Angelo Agostini, Luís Gomes Loureiro, Alfredo Storni, Max Yantok, J.Carlos e Luiz Sá. A esses trabalhos se soma a Tese de Doutorado em História de Roberta F. Gonçalves, da Universidade Federal Fluminense, de 2019. A autora traça a história de O Tico-Tico como uma ferramenta pedagógica informal, dentro do projeto político republicano, ou seja, que desejava que as crianças desenvolvessem uma identidade nacional, uma sensibilidade moderna e um comportamento civilizado. Para esse projeto contribuíram mais algumas seções da revista do que outras. Histórias do Brasil, histórias em quadrinhos e atividades lúdicas foram as principais. Abordou o lado empresarial, a proposta cívica, o uso da história, a formação de leitores e as várias formas de engajamento nos hábitos de consumo modernos. Optou por um olhar amplo pelos anos de circulação da publicação para notar como a pedagogia da revista pouco se transformara. A autora delineou o projeto editorial da revista lendo todas as edições comemorativas de aniversário, ou seja, debruçou-se sobre a construção da imagem da revista por si mesma, a partir de referências à própria memória. Roberta Gonçalves descreve Zé Macaco e Faustina como criações de Storni que mostravam a inadequação do indivíduo ainda com valores arcaicos na vivência da cidade moderna, com seus problemas cotidianos. Faz referências aos inventos e adaptações que geram as piadas do personagem, além do racismo implicado em relação ao mestiço Zé Macaco e ao status dos personagens negros que surgem nas narrativas. A violência autoritária dos policiais também é citada como tema recorrente. E a autora chama atenção para o desenvolvimento do personagem, um dos mais longevos da revista, que na década de 1910 dizia viver num palacete em Copacabana, e na década de 1940 passa a viver no bairro de Cascadura, longe do centro, tendo a mudança de endereço como uma metonímia da mudança de status social, que passou a ser de classe média. Muitos pesquisadores têm se debruçado sobre recortes da extensa e variada produção de textos e imagens de O Tico-Tico para responder a suas questões. Sem 23 afirmar que todas essas pesquisas foram detectadas, é interessante apontar algumas delas. Autora que se tornou referência para outros pesquisadores, Patrícia Hansen escreveu, em 2007, sua Tese de Doutorado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com o título Brasil, um país novo: literatura cívico-pedagógica e a construção de um ideal de infância brasileira na Primeira República. De O Tico-Tico, a autora analisou as colunas “Lições do Vovô” e “A arte de formar brasileiros” (período 1905-1921). Também leu algumas cartas e colaborações de leitores. Analisou o primeiro concurso (enquete) da revista: “o que é que o menino quer ser?”. No resultado, a vocação mais apontada foi a da Marinha, seguida de perto pela do Exército. Naturalmente, as meninas poderiam responder, mas os editores não esperavam isso. O tema geral da tese de Hansen é o conjunto de textos de “feição cívicopedagógica” do período republicano, principalmente livros para crianças e jovens sobre a Pátria (Sílvio Romero, Olavo Bilac, Coelho Neto, Rodrigo Otávio, Afrânio Peixoto, entre outros), a ascensão do ideal da criança brasileira, a noção de País Novo e o ufanismo. Assim, também, as lições sobre família, solidariedade, saúde, trabalho, estudo, conhecimento do país e seus símbolos cívicos. Nessa tese, a escritora Julia Lopes de Almeida é lembrada como voz dissonante da literatura do “nacionalismo marcial e espartano”: ela punha foco sobre atividades profissionais das mulheres. Hansen vê nuança no “discurso de dominação paternalista” que, nessa época, não é mais o “senhorial”, ostentador de direito natural ou divino ao mando (e obrigação de caridade) e passa a ser o autoritário moderno, com direito pelo “mérito” da elite (e incorporação do ex-escravo à sociedade, desde que condicionado à civilização e à modernidade). Apela-se pelo “esquecimento” das desigualdades para a construção do país novo. Afinal, no país, “tudo ainda está por se fazer”. Exalta-se a criança “precoce e viril” como base do projeto de país. O projeto continuou com mais determinação no período pós-1930 e os mesmos assuntos voltam ressignificados no período de ditadura militar. Segundo a pesquisa, as manifestações dos leitores eram alinhadas aos textos editoriais. As crianças desejavam para o Brasil mais pujança militar e subida no rank das maiores nações do mundo, exibindo mais cidades e menos sertão bruto. Nesse tempo, criança tinha que crescer rápido. O “Vovô” das “lições” não admitia pergunta boba ou 24 sentimental. Ele jogava com os estereótipos do menino burguês, muito estudioso e civilizado, filho de profissional liberal, valorizado em relação ao filho do latifundiário, mimado, rico e bruto. Também jogava com estereótipos de gênero: meninos salvadores da pátria contra futuras mães cuidadoras da família. Mais discursos apontados: a abolição de tudo que fosse sobrenatural na literatura infantil pedagogicamente correta; e a condenação da influência “prejudicial” da babá negra com suas “superstições”. Marilda Queluz produziu o artigo Utopia e nonsense nas cidades imaginárias de Max Yantok para o evento das 3.as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos (2015). Ela disserta, com base em teoria sobre a utopia e a arquitetura representada em quadrinhos, e dentro do contexto da Belle Époque, como, nos quadrinhos de Max Yantok, em O Tico-Tico, são criadas paisagens imaginárias, tais como Fantasiópolis, Estapafurdópolis e Pandegolândia, com muito “nonsense e ironia, exotismos e orientalismos intercalados com construções modernistas”. Com o mesmo objeto, a obra do cartunista Max Yantok, Mario Luiz Gomes publicou, na Revista de História da Biblioteca Nacional, em 2015, Onde andará Kaxinbown?, um artigo celebrando a originalidade daquele artista, dono de um traço fortemente caricatural que traduziria melhor “a essência mambembe de seus tipos populares” entre “bocós e espertalhões, ingênuos e audaciosos”, sempre em busca de “boa fortuna”. Patrícia M. G. Alencar produziu sua Dissertação de Mestrado em Educação na Universidade Estadual de Maringá, em 2015, estudando a seção “Meu Jornal” de O Tico-Tico entre 1935 e 1940, na qual os leitores se manifestavam. A pesquisa sistematiza os temas mais recorrentes dentro do conjunto de 1060 desses textos “infantis”. Associa os temas ao projeto educativo do semanário e às propostas educacionais dessa época. Pode ser que os temas delineiem o quadro de interesses dos leitores como consumidores. também. Fez uma tabela sobre temas de anúncios entre 1935 e 1940. Numa olhada rápida, não se diferencia da pauta normal de uma revista para família. Por exemplo: os anúncios mais numerosos são aqueles de outras publicações. Em segundo lugar, vêm os de medicamentos, fortificantes e higiene pessoal. A autora fez também a tabela quantificando as páginas dedicadas a cada seção da revista. Por exemplo: “Lições do Vovô” e “Gavetinha do Saber” são as mais publicadas. Nessa época, a publicação está muito mais voltada para a “vida escolar”. A autora não contabilizou as histórias em quadrinhos. Como a seção 25 dos leitores tem 45% dos temas na categoria entretenimento, 31% na de formação moral, cívica e educacional e 24% na de informação, a autora sugere que o leitor atuava para puxar a balança a favor de pautas divertidas em detrimento de educativas. A dissertação também tem uma parte longa sobre contexto histórico. Também em 2015, Carlos Herold Junior publicou artigo na Revista da Escola de Educação Física da UFRGS com o título Corpo e educação no escotismo a partir da revista O Tico-Tico (1921-1933). O autor verificou que o escotismo foi divulgado no Brasil como uma prática educativa moderna. Benjamin Sodré assinava uma coluna sobre escotismo no semanário. Segundo se afere desses textos, o escotismo almeja um tipo de reaproximação à natureza, porque a vida urbana e moderna teria dela nos afastado. Aponta vícios corporais e como corrigi-los. Reclama que a escola se esquece da educação do corpo. Nesses textos, se levantavam as questões da falta de energia do povo brasileiro (seria preguiça?) e dos desvios da vida urbana e abastada dos “almofadinhas” (tais como “alienar-se” no cinema e fingir-se de homem com cigarrinhos no canto da boca). O escotismo era pela moderação nas atividades. O futebol, segundo a doutrina, era um vício, porque exauria o corpo e exaltava a rapaziada. Não se deveria especializar num só esporte e sim praticar vários. Suponho que o processo civilizador fica bem caracterizado aí, porque sua lógica é a de corrigir os desvios dos processos modernizantes não voltando atrás, mas introjetando mais disciplina e novas mudanças comportamentais nas subjetividades. Voltando ao campo da Pedagogia, indica-se a Tese de Doutorado em Educação pela PUC-Rio de Luciana Borges Pátroclo: As mães de famílias futuras: a revista O Tico-Tico na formação das meninas brasileiras (1905-1921), de 2015. Seu recorte é o conteúdo publicado sob a seção “para meninas”, desde a fundação da revista até a última edição em que havia essa seção. O ponto de partida é que os editores defendiam que meninos e meninas tinham papéis sociais distintos, sendo que as meninas eram preparadas para a maternidade e o cuidado da família. Isso é sustentado pela leitura das representações das meninas e mulheres nas histórias, nas “lições” e até nas ilustrações dos anúncios. A personagem Faustina, a esposa de Zé Macaco, criada pelo cartunista Alfredo Storni, é analisada como uma representação ambígua: ao mesmo tempo capaz de ridicularizar a mulher e de catalisar sentimentos libertários. 26 Um ensaio que, como tantos outros, sustenta que o semanário era um espaço informal de educação, colaborando com a formação de leitores e escritores, mas reproduzia representações sociais seguindo o ideal burguês é Para a petizada inocente: encanto, diversão e lições de conduta na revista O Tico-Tico (19051910), publicado na Revista Teias em 2015, por Cíntia B. Almeida e Aline S. Costa. As autoras citam algumas produções de leitores e outras matérias durante sua análise. Em 2016, Ivan Gomes e Roberta F. Gonçalves publicam um artigo na Revista Maracanan, com o título Imagens de uma República infantil: Ângelo Agostini nas revistas O Malho e O Tico-Tico. O texto aborda as mudanças na arte do caricaturista Ângelo Agostini, que já um veterano, entre o humor político, desenvolvido em O Malho, e a arte civilizadora, voltada para a infância, na qual se engajou, nos primeiros anos de O Tico-Tico, com a seção “a arte de formar brasileiros”. O Tico-Tico para a Comunicação Social: um objeto em posição privilegiada A aceitação das histórias em quadrinhos como objeto acadêmico sofreu oposições mal-informadas ou preconceituosas, chegando muito mais tarde do que o foi para o cinema, mesmo sendo ambas as formas de arte, cinema e história em quadrinhos, gestadas no mesmo período histórico e desenvolvidas para o consumo de massa. Na atualidade, porém, conforme se constata do acompanhamento da produção acadêmica, o interesse teve crescimento vertiginoso e “é possível desenvolver pesquisas sobre histórias em quadrinhos, no Brasil, em praticamente todas as áreas de conhecimento” (VERGUEIRO, 2017, p. 74). Conforme exposto na seção anterior, muitos trabalhos já descreveram bem o volumoso conteúdo de textos e imagens de O Tico-Tico, e alguns se aprofundaram em questões pedagógicas e ideológicas. No entanto, voltar a estudar essa publicação justifica-se porque pouco ainda se estudou com meios e finalidades da área de Comunicação Social. Isso pode ter ocorrido porque ainda poucos se voltaram para as obras em forma de histórias em quadrinhos publicadas na revista. Os pesquisadores do Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos consideraram que “[...] este título merece muito mais atenção do que já recebeu até hoje” (SANTOS e VERGUEIRO, 2005, p.17) e que há muito ainda a ser esmiuçado. 27 Assim, a escolha desse objeto de estudo se fundamenta no argumento de que ele permite uma posição privilegiada na observação de tais processos de mediação e subjetivação. As vantagens são o tempo histórico em que nasceu, a longevidade da publicação, a composição do seu público e a presença importante de narrativas sequenciais (que hoje são categorizadas como histórias em quadrinhos) dentro de seu conteúdo editorial. Publicado desde outubro 1905, o semanário estreia em meio às reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro, Capital da República, sede da redação, endereço de todos os anunciantes e comunidade de origem de muitos de seus colaboradores. Tais reformas tinham sentido prático, provocando mudanças de hábitos na população, e sentido ideológico, consolidando os valores do regime republicano, que começava a se estabilizar. Há relações entre o conteúdo publicado – as historietas ilustradas em particular –, as alterações no cotidiano dos habitantes da capital e o projeto modernizador republicano. Tendo sido publicada sem interrupção durante as primeiras décadas do século XX, até ser extinta em 1962, quando já não tinha periodicidade semanal, a revista atravessou gerações de leitores e colaboradores2. A marca das transformações nos costumes, visões de mundo, linha editorial e matrizes artísticas deve ficar evidente, se pudermos observar o conteúdo de uma seção ou uma série narrativa ao longo de tantos anos. Antes da estreia de O Tico-Tico, seus editores já se expressavam no outro semanário da empresa, O Malho, anunciando aos leitores que já chegara o tempo de oferecer uma revista para o público infantil. O processo de setorização da imprensa estava estabelecido. Por que, escreviam eles, só os pequenos não teriam uma revista para chamar de sua? Artistas como Angelo Agostini, autor do primeiro logotipo, já exercitavam historietas ilustradas dedicadas à educação das crianças, aliando entretenimento e lições morais. O projeto editorial de O Tico-Tico, ainda que pareça apenas uma imitação do que se fazia na Europa, foi pensado dentro da estratégia comercial dos editores e modelado conforme as necessidades e visões de mundo daqueles que realmente tinham interesse em assinar o semanário. Relacionase com as feições da sociedade brasileira da Primeira República, com todas as suas contradições. Sem mesmo levar em conta os índices de sucesso comercial, é preciso 2 Literalmente: entre seus ilustradores, estavam Alfredo Storni e seu filho, Oswaldo Storni, que nasceu quando o pai já trabalhava na revista. 28 reconhecer que a influência legada por essa publicação atesta que seu modelo foi, durante décadas, aprovado pelo público. Havia uma direção editorial atuando no sentido de proporcionar variedade de leituras agradáveis para as crianças e jovens que, ao mesmo tempo, colaboravam no processo civilizador e na construção da subjetividade delas como indivíduos modernos e elementos de uma nação que, segundo expressavam editores e leitores, queria, um dia, “ombrear-se” com as nações mais civilizadas e poderosas do mundo. Mais de um pesquisador, ao se debruçar sobre o conteúdo de O Tico-Tico, percebeu as mensagens ideológicas mais ou menos implícitas naquelas narrativas. A divisão do trabalho por gênero, por exemplo, é um conceito evidente. Segundo essa linha editorial, meninos devem estudar e ser disciplinados para adotarem profissões e sustentarem famílias; meninas devem aprender como serem mães prendadas das famílias de que vão cuidar, tudo pelo bem do país. Durante a década de 1910, a “seção para meninas” apresentava apenas modelos para fazer vestidinhos e trabalhos manuais decorativos3. Conforme as teses educacionais da época, as crianças eram, ao mesmo tempo, puras – a ponto de terem que ser protegidas da contaminação e da promiscuidade – e selvagens – a ponto de terem de sofrer castigos físicos toda vez que seguem seus instintos e atuam conforme seus desejos. Essa visão foi desenvolvida ao longo da história. Educadores, tanto religiosos quanto laicos, desde o século XVII, “recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar” (ARIÉS, 2015, p.105). Curiosamente, a leitura das historietas civilizadoras do início do século XX pode causar fortes reações de rejeição em educadores da atualidade (ver figura 2). O espancamento é representado como normalidade; os sentimentos de desforra são um tema constante. Quando um dos amigos apanha, o outro ri e aprova. O estudo de Elias (2011) faz concluir que o processo civilizador é cumulativo, continua em andamento e não está sendo dirigido a um ponto final determinado. Assim, é notável 3 A divisão do trabalho por gênero nunca teve uma forma única. Segundo historiadores, a fórmula de “homem, público; mulher, privada” que se difundiu pelo Ocidente, como se fosse algo natural, foi gestada entre burgueses evangélicos britânicos durante o século XIX. Aos rapazes seria indicada uma formação profissional, se possível, longe de casa; às meninas não se orientava estudar, mas apenas aprender com a mãe as tarefas domésticas (HALL, 2009). 29 que lições dadas às crianças no passado são, elas mesmas, consideradas indecorosas séculos depois. Uma vez que as matérias da revista ilustrada foram editadas especialmente para o público infantil, haverá riqueza de dados para responder a questões relacionadas ao papel que obras midiáticas podem ter nos processos de transformação social apontados. Figura 2. Página 24 do nº 649 de O Tico-Tico (1918). Depois de aprontar muito com as visitas, Chiquinho leva “escovadas” como castigo, enquanto seu companheiro Benjamin tripudia dele: “Aí, nego!... Chucha que é cana doce!”. Último dos pontos a ressaltar na defesa de O Tico-Tico como objeto de estudo no campo da Comunicação Social, seus autores de historietas ilustradas deixaram um legado. Ainda que os principais nomes das publicações em quadrinhos brasileiras para crianças, como Maurício de Sousa e Ziraldo, não tenham sido leitores dele4 e busquem em outras referências a origem de seus projetos em histórias em quadrinhos, a publicação atravessou gerações de artistas como modelo de revista infantil. Foram dezenas de anos publicando, semanalmente, muitas vezes na primeira página, histórias em quadrinhos feitas por brasileiros com personagens 4 Maurício de Sousa respondeu uma pergunta direta por mensagem de e-mail. Não era leitor de O Tico-Tico. Ziraldo comentou sobre o assunto em conversas pessoais. As histórias que liam na infância eram, principalmente, as norte-americanas traduzidas. 30 locais ou adaptados ao cenário local. Mais ainda: não eram heróis mágicos, animais antropomorfos ou seres de fantasia, mas adultos, meninos e meninas vivendo suas vidas cotidianas e, muitas vezes, circulando pelos espaços da Capital da República. A escolha de temas, a caracterização de personagens e as técnicas narrativas, ainda que tenham buscado matrizes artísticas nas publicações estrangeiras, foram, ao longo de anos, moldadas por um campo de artistas amadurecido na mídia mais bem difundida de seu tempo. Seus caricaturistas partiam da cópia de publicações americanas e francesas mesclando as influências com as experiências da caricatura política e de costumes já de longa tradição no país. Exemplar é o caso das historietas do garoto Chiquinho. Começaram como cópia das histórias do norte-americano Richard Outcault, autor do personagem Buster Brown. O desenhista Loureiro, posteriormente, ganhou a tarefa de realizar a adaptação semanal. Por vezes, os editores decidiram copiar outra história, de Winsor McCay, chamada Little Nemo, mas colocaram Chiquinho no lugar do personagem de McCay (DE ROSA, 2005). Muitas edições depois, como o material norte-americano não estava mais à disposição, Loureiro ficou incumbido de continuar a história de Chiquinho, de muito sucesso, com textos fornecidos pelo redator Renato de Castro. Depois Loureiro acabou assumindo a criação completa das histórias, tendo até introduzido o personagem Benjamin nas piadas, para dar tom local à série. A explicação foi dada pelo desenhista numa entrevista gravada para o MIS-SP e transcrita na dissertação de mestrado de Maria Cristina Merlo (2003). A reflexão sobre o ofício do cartunista brasileiro – é preciso explicitar – é o eixo que acompanha todo este percurso. Em pesquisa anterior, para minha dissertação de mestrado (REIS, 2016), a participação de cartunistas brasileiros na produção de cartilhas de campanhas publicitárias e institucionais já tinha sido abordada. Esses livretos gratuitos têm passado despercebidos mas, há décadas, difundem narrativas ilustradas (muitas vezes em forma de revista em quadrinhos) com narrativas que mediam a comunicação entre as esferas científica e cotidiana da cultura, além de convidarem o leitor a ajustar seu comportamento e aprender novas rotinas que colaboram com o desenrolar do processo civilizador. Parte importante dos dados da dissertação veio de entrevistas com alguns cartunistas, e eu mesmo podia acrescentar informações sobre esse tipo de obra, por experiência acumulada. 31 A preocupação com o campo profissional sempre acompanhou minha trajetória de pesquisador. A percepção é de que ainda falta reflexão acadêmica sobre esse ofício. A reflexão sobre “o fazer” já foi preocupação de antropólogos, tais como Roberto da Matta (1978), Clifford Geertz (2014) e Gilberto Velho (1978). Tendo trabalhado a vida inteira com produção de revistas em quadrinhos e outras aplicações comerciais do desenho caricatural, e ainda hoje vendendo roteiros para revistas em quadrinhos infantis, pude lançar um olhar “de nativo” sobre o objeto, com todas as vantagens e desvantagens inerentes. A vantagem principal é ser familiarizado com o objeto exótico; a desvantagem é não conseguir olhar o familiar com distanciamento crítico. Pesquisar a produção de historietas ilustradas de O Tico-Tico sob o ponto de vista de seus caricaturistas é, conscientemente, defender um campo. Esse tipo de artista sempre lutou contra ser inferiorizado, mesmo dentro do campo artístico geral que nunca gozou de muito poder nem de muita autonomia. Na virada do século, caricaturistas e escritores de humor descobriam o potencial meios de comunicação e faziam experimentações narrativas e estéticas, tanto quanto literatos e artistas plásticos. Vários deslizavam entre obras para teatro, imprensa ou mesmo música. A maioria dizia que fazia as caricaturas simplesmente porque havia demanda e elas é que pagavam suas contas. Entretanto, se os literatos e artistas plásticos “de galeria” podiam manter pelo menos aparência de autonomia artística e pleitear pleno valor cultural, os caricaturistas, cuja arte só existia na imprensa, um meio de comunicação de massa, bem como os escritores de humor, não o conseguiam. Logo ganhavam a pecha de “engraçadinhos arrependidos”, conforme expressão de Elias Thomé Saliba (2002), quando tentavam enveredar por caminhos mais “sérios” como a pintura, a literatura e até mesmo as obras técnico-científicas. Participar dos debates acadêmicos, nem pensar. Era como se, uma vez tornado humorista, o artista nunca mais seria levado a sério. Em seu único texto para uma revista acadêmica, o cartunista contemporâneo Ziraldo (1970), convidado a refletir sobre “o humor”, formulou que, na verdade, há dois tipos de profissional: o humorista e o “risista” (um neologismo criado por ele). O primeiro se preocupa em traduzir, numa obra sintética de traços, textos ou ambos, uma verdade “escondida” no cotidiano. O bom humor, segundo Ziraldo, é o prazer de uma descoberta. Às vezes, faz rir. O segundo profissional vive de provocar riso com quaisquer meios, sem preocupação com o conteúdo. Costuma estar nos palcos 32 de espetáculo. A sociedade privilegia o segundo, porque o prazer hedonista sempre tem mais demanda do que o perigoso prazer da descoberta. Assim, o humorista que melhor se mantém no ofício é aquele que consegue também fazer rir. Para a sensibilidade geral, entretanto, parece que os dois tipos se confundem num só. Ai do humorista que pensa não ser tomado por “risista”! Em conclusão, é preciso saber que existe um campo artístico dos cartunistas, que é um campo que se agita muito na busca de legitimação e defesa de autonomia, e que o pesquisador ocupa uma posição nesse campo, o que pode interferir com as tomadas de posição no ofício e na pesquisa. A objetividade eficaz só é alcançada se o cientista admite que não inicia de uma posição de isenção. É a reflexividade que Pierre Bourdieu exigiu de si mesmo em suas pesquisas sobre o mundo acadêmico e que aconselha a todos. Bourdieu chama de “objetivação participante” o método de levar em consideração o fato de que a pesquisa de um campo em que o pesquisador está envolvido pode ser também “uma arma nas lutas no interior do campo”. Devese “reintroduzir na análise a consciência dos pressupostos e dos preconceitos associados” ao ponto de vista do pretenso “observador imparcial” (BOURDIEU, 1989, p. 52). No caso desta pesquisa, isso significa levar em conta que lanço um olhar preferencial sobre os criadores de historietas ilustradas e que esse olhar tende a buscar fatos que valorizem essa atividade. Considerações metodológicas: percurso de pesquisa O Tico-Tico, com suas historietas ilustradas e seções diversas, é um objeto que propicia o aprofundamento de questões relevantes da Comunicação Social: como narrativas veiculadas por meios de comunicação mediam as representações sociais e são instrumentos do processo civilizador, dentro do qual contribuem também para o processo de subjetivação. A abordagem desse objeto foi feita com cautela. Às vezes, corre-se o risco de tratar um meio de comunicação como um ente dotado de caráter, que segue um projeto coerente e uma estratégia retilínea. Howard Becker (2009) descreve as produções artísticas e técnicas como uma colaboração entre “produtores” e “usuários” de representações ou narrativas da sociedade. O autor figura entre os que consideram as obras artísticas e técnicas relatos sobre a sociedade com potencial de gerar conhecimento sobre ela. Como as narrativas produzidas em veículos de 33 imprensa são realizadas por muitas pessoas em luta pelo controle do discurso, inclusive os assinantes, é preciso expor as engrenagens da produção para observar as contingências e o peso de cada decisão artística e cada decisão editorial naquele arranjo. O olhar “de nativo”, conservado a partir da minha experiência profissional com narrativas em quadrinhos em revistas, jornais e livros, auxilia a flagrar indícios e a abordar essas tais engrenagens de produção por trás da imagem pública. Tentar observar um processo social enquanto estamos mergulhados nele e em suas contingências pode nos desorientar. Podemos assumir como naturais decisões que são discutíveis e damos peso demais a decisões que são circunstanciais, urgentes apenas pelo calor do momento e da proximidade. Por isso, o estudo baseado num objeto que já está afastado no tempo, como as historietas de O TicoTico, tem a vantagem de se dar com distanciamento. Ainda assim, aquelas narrativas foram produzidas num contexto histórico que rivaliza com a atualidade em termos do grau e velocidade das transformações. Marialva Barbosa (2018) defende o estudo da história da imprensa não como uma compilação linear de acontecimentos, mas como reflexão sobre processos históricos, movimentando-se pela temporalidade, entre presente e passado. Ela enuncia muito bem um dos fundamentos desta pesquisa: Ao falarem de si mesmos e, assim, se constituírem em fontes para sua própria história, os meios de comunicação, por outro lado, produzem uma fala memorável em que o passado é apresentado como portador de significâncias que dizem respeito muito mais a um ideal presumido do que deve ser fixado no futuro. Mas é dessas entranhas que devemos extrair significados sobre aquele mundo. (BARBOSA, 2018, p. 23) Ou seja, revelam não o que aquela sociedade era, mas o que os produtores de representações pensavam que era – ou que seria: o “ideal presumido”. Nossos assuntos em Comunicação não são os meios em si, mas efeitos criados na vida cotidiana através dos processos mediados pela atividade de comunicação. A autora lamenta que o campo da Comunicação “privilegia as pesquisas que dizem respeito ao presente absoluto em que vivemos”: meios e técnicas utilizadas contemporaneamente. Assim, o número de estudos que possuem dimensão histórica é inexpressivo diante da produção sobre objetos contemporâneos nos programas de pós-graduação em Comunicação. Infelizmente, para ela, há pouca “síntese histórica”; apenas uso instrumental da narrativa histórica (BARBOSA, 2018, p. 23). 34 A pesquisa em Comunicação tem essa característica de ser feita com a confluência de teorias e métodos de outras disciplinas de ciências humanas e sociais. Ela é produtiva exatamente quando faz as interligações possíveis entre elas. O método deve ser um percurso que se faz em função da questão e do objeto (BOURDIEU, 1989; MILLS, 2009). Conforme C. Wright Mills (2009), métodos são úteis para orientar a objetividade da pesquisa, mas não nos deixam prescindir da “imaginação sociológica”. Criatividade e imaginação de pesquisador é o que distingue o cientista de um técnico. É o que permite dar conta da complexidade da realidade social, com suas várias faces e tramas. A condição de fazer o preconizado “artesanato intelectual” é integrar experiências sociais e culturais, leituras amplas em temas, o hábito da autorreflexão e a segurança de abandonar caminhos estéreis. É necessário amadurecer como pesquisador. É necessário aprender enquanto trabalha, como o artesão. Lógica e quase cronologicamente, traço agora o percurso metodológico que me trouxe até aqui. Minha dissertação de mestrado havia aberto perspectivas de pesquisa no tratamento dos cartunistas como comunicadores. O entendimento do papel deles no processo civilizador era a maior curiosidade. As transformações da modernidade, que nosso grupo de pesquisa5 considera ainda em curso, são muito evidentes no período da virada do século XIX para XX. As histórias em quadrinhos voltadas para crianças, um dos pontos de meu interesse, estavam florescendo nesse período. Assim, foi consequente a escolha de O Tico-Tico como objeto para onde confluíam essas correntes. Preparei o projeto de doutorado nessas bases. Antes mesmo de iniciar o curso de doutorado, fiz o levantamento básico sobre o tema, lendo o livro de Zita de Paula Rosa. Fato curioso é que uma amiga se mudou para um apartamento menor, começou a se desfazer de livros e deixou sob minha guarda dois dos principais compêndios sobre a revista infantil: O Tico-Tico – 100 anos e Almanaque d’O Tico-Tico: edição comemorativa. Mais uma vez, graças à rede de contatos pessoais, uma contribuição para a pesquisa surge no momento mais apropriado, fenômeno mais comum do que parece, no meio acadêmico, conforme ensaio de Howard S. Becker (1995). Comecei o enlace com o objeto, descobrindo grandes artistas e publicações que ainda não conhecia; 5 Grupo de Pesquisa Narrativas da Vida Moderna na Cultura Midiática. 35 prospectando fontes de pesquisa empírica e contatos que tinham o mesmo interesse de pesquisa. A partir daí, começamos, minha orientadora e eu, a traçar estratégias de abordagem. Teria que ser pela caricatura. Essa categoria englobava as histórias em quadrinhos, no período estudado, e era bem coberta por teoria. O trabalho empírico, de leitura e interpretação das historietas, podia começar, mas deveríamos fazer o recorte da pesquisa, escolhendo entre personagens e autores. Havia várias opções, inclusive pesquisas comparativas ou guiadas por eixos temáticos. Nesse ponto do curso pude visitar duas ou três vezes a grande exposição de originais de J. Carlos, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro (2017). Nosso mais famoso desenhista, no entanto, já não estava na frente da corrida para ganhar total atenção. A leitura das histórias do jocoso Zé Macaco me convenceu que esse personagem, ainda não abordado pela academia, era a melhor escolha para realizar este trabalho, com todos os significados em que se relaciona com o processo civilizador. Do personagem cheguei ao autor, Alfredo Storni (1881 – 1966), cuja carreira começou a me encantar quando comecei a conhecer seu trabalho fora de O Tico-Tico, e passei a ler também edições de O Malho e de O Filhote. Assim, para dar conta do objeto, que eram as narrativas, foi preciso abrir nova frente de pesquisa, conhecendo bem melhor o grupo de caricaturistas a que Storni pertenceu, e seu ambiente sócio-cultural. Pierre Bourdieu, com sua teoria sobre campos, a qual já me interessava no curso de mestrado, foi trazido, nesse ponto, como a base teórica que escolhemos para dar conta do tipo de perguntas deveríamos lançar ao objeto. Bourdieu, em seu trabalho As Regras da Arte (1996), defende que analisar a obra literária por uma abordagem que relaciona as decisões do autor no processo criativo com as suas decisões de vida pela dinâmica de seu “campo artístico” faz com que se chegue à “fórmula geradora” da obra6. Nem deixa de relacionar a obra à estrutura social, nem nega ao artista sua individualidade e prestígio. Isto será desenvolvido adiante, no capítulo 2. 6 A abordagem de Bourdieu se dirige tanto à vida do autor quanto às obras dele. Para estudar Gustave Flaubert, por exemplo, Bourdieu analisou A Educação Sentimental e tirou desse romance um retrato da estrutura do campo literário e político segundo era vista pelo autor, em sua própria época (BOURDIEU, 1996). 36 Para descrever o “campo da caricatura” no modelo de Bourdieu, precisei estudar a biografia de dezenas de artistas e a trajetória de algumas publicações. Infelizmente, os relatos em primeira pessoa são poucos. O que eles expressaram na imprensa ficou prejudicado por conta da pecha de “engraçados” que, numa análise de Elias Thomé Saliba (2002), impedia que os humoristas do início do século XX fossem levados a sério, mesmo quando buscavam reconhecimento do campo intelectual. Quando falavam de si, por exemplo, no especial de fim-de-ano da revista D. Quixote (edição de 25 de dezembro de 1918), usavam uma “máscara” que disfarçava a configuração de suas obras e suas carreiras artísticas. Em vez de redigirem suas biografias, a pedido de Bastos Tigre, poeta diretor da revista, eles faziam “autobonecografias” e “autocalungografias”, ou seja, biografias divertidas, ilustradas com autocaricaturas. Max Yantok, por exemplo, descreveu sua rotina como se fosse um teatro surrealista (ver Figura 3). Já o aplaudido J. Carlos, dono de traço bastante sofisticado, descreveu-se como um iniciante humilde, sentado para sempre no primeiro degrau da escada da Glória. O assunto será tratado novamente adiante. Figura 3. Uma das ilustrações que Yantok fez de si mesmo para sua “autobonecographia”, na p. 37 do número 85 de D. Quixote (1918). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 37 Em vista das fontes disponíveis, optei pelo recurso de tomar o relato autobiográfico de Álvaro Marins, o Seth, como moldura para organizar os dados de vida e obra de um grupo de caricaturistas que, por sua vez, foram escolhidos pelo critério de representarem posições significativas no mesmo campo profissional em que Storni se inseriu. O recorte histórico para as análises são as três primeiras décadas do século XX, quando o regime republicano se estabiliza, reforma-se a Capital Federal e o progresso parece uma certeza, mas essa certeza é abalada pela deflagração da Primeira Guerra Mundial. Portanto, a leitura exploratória se concentra nas edições desde 1905 até o final de 1929, lembrando que o regime se altera com a Revolução de 1930. Durante a leitura exploratória foram destacadas historietas de diversos autores, como Loureiro, J.Carlos e Max Yantok, para análise posterior e compreensão do campo da caricatura. As de Loureiro, especialmente, foram coletadas por apresentarem o personagem Chiquinho, símbolo da revista, e por implicarem na problemática do processo civilizador. No caso do Zé Macaco de Storni, foram lidas todas as histórias disponíveis, também publicadas nos anos 1930, 1940 e 1950. A melhor fonte de dados empíricos sobre a questão é mesmo a leitura das obras publicadas na imprensa. Felizmente, em respeito ao legado dessa publicação na cultura brasileira, imagens de quase todos os exemplares de O Tico-Tico estão disponíveis para leitura na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. De início, foi feita leitura exploratória do conteúdo da revista, com justificável atenção para as páginas de historietas. Essa leitura preliminar gerou anotações de um “diário de campo” sobre saídas e entradas de artistas em cena, estreias de personagens, aparição de temáticas inesperadas ou historicamente marcantes, aparição de novas seções, conteúdo das capas, conteúdo das páginas coloridas, colaborações de leitores na forma de desenhos e outros apontamentos. Nessa fase foram coletadas algumas imagens que parecem se articular com as questões da pesquisa. Nem todas foram utilizadas na tese. As notas de leitura também foram conservadas para estudos posteriores. Depois, fiz uma leitura completa das histórias de Zé Macaco e Faustina disponíveis, criando uma planilha de observações organizadas a que pude recorrer a todo tempo para tirar dúvidas e fazer associações de ideias. Para cada história lida, foram anotados os seguintes dados: ano de publicação, edição, página onde saiu a 38 história, quais dos quatro personagens principais estão presentes (Zé Macaco, Faustina, Baratinha e Chocolate), quais personagens coadjuvantes apareceram, resumo do enredo, trechos significativos das legendas (para possível citação), qual é o espaço onde ocorre a cena (se possível, identificado geograficamente) e observações gerais. Para cada abordagem crítica aplicada sobre a obra haverá observações específicas. Por exemplo, no estudo sobre a interação dos personagens com as novidades do progresso material, foram anotados de cada história a lista de objetos utilizados na cena e a lista de ações realizadas pelos personagens com esses objetos. A leitura da tabela tanto apoia a investigação das questões da pesquisa quanto sugere relações não percebidas antes da organização dos dados. Para fundamentar a leitura e interpretação das histórias, foi necessário buscar Roland Barthes (2004) como teórico do jogo de significação nas narrativas com conteúdo visual. Barthes admite ser um “pensador impuro”, semiólogo sem rigor, que ama a História como a ciência humana de maior precedência. Crê na força da “escritura” como meio de produção de conhecimento. Vê a semiologia como uma disciplina que presta apoio a certas ciências: Assim, a parte da semiologia que melhor se desenvolveu, isto é, a análise das narrativas, pode prestar serviços à História, à etnologia, à crítica dos textos, à exegese, à iconologia (toda imagem é, de certo modo, uma narrativa) (BARTHES, 2004). Negando que a semiologia seja “chave” de decifração, ou método de apreender diretamente a realidade, prefere que a disciplina “soerga” evidências para estudo. Barthes tem essa afinidade com os estudos de Comunicação. Opta por tratar de narrativas do tipo do teatro, do cinema e da publicidade, onde se controla artificialmente os signos, fazendo ser mais fáceis de discernir os significantes e significados (BARTHES, 1993, p. 245 -255). Assim é a arte do caricaturista, controlador de signos gráficos articulados em conjuntos denotadores de sentido segundo uma série de normas discernível e compartilhada entre os artistas e leitores. A caricatura é uma técnica de representação. Todas as descobertas pictóricas são técnicas baseadas não em transposições e semelhanças, mas em equivalências ou substituições, segundo Ernst Gombrich (1986, p. 289 - 313). O autor expõe que os primeiros artistas que refletiram sobre o desenho caricato estavam revelando novas formas de ver, ou seja, legando aos artistas posteriores uma potente ferramenta de representar emoções humanas e de produzir imagens com fórmulas 39 aprendidas na prática e memorizadas, encaradas como linguagem e arranjadas em algum tipo de gramática. Essa técnica de representação demanda do leitor certa participação intelectual (suplementar mentalmente as coisas que o artista omitiu, como numa leitura); assim, o leitor empenha mais sua subjetividade na fruição daquele desenho do que de uma transposição do natural e abre-se espaço para que ele associe os grafismos à sua realidade particular. Não há leitura fixa, nem significado universal, uma vez que caricaturista e público precisam compartilhar de uma cultura para lidarem com aquelas convenções. Isso é o que fazem os Estudos Culturais de que o teórico Stuart Hall (2016) é representante. Eles se voltam àquele arcabouço de cultura visual de uma dada sociedade, tendo noção de que seus elementos não são universais, mas relativos a tal sociedade, em determinada época, e descrevem regimes de representação com que a sociedade opera e reproduz sua ordem. Representação é entendida aqui como um processo pelo qual membros de uma cultura usam sistemas de signos para produzir significado. Quando se tem a intenção de marcar algum tipo de diferença social (por exemplo, marcações de gênero, raça ou classe) e salientar divisões e categorizações, passa-se a ter um regime de representação. Compreende-se que tais representações não são ingênuas, nem neutras; são construídas a partir de posições, estratégias e interesses de grupos, envolvendo lutas e acordos. A análise do material, aos olhos de hoje, flagra atravessamentos de questões de gênero, raça e classe, todas produzindo significado conforme a posição social dos produtores das imagens. Entre muitos significados potenciais, o pesquisador deve buscar aqueles que seriam preferenciais para os produtores das imagens (HALL, 2016, p. 143). As imagens, é preciso atentar, não significam quando estão isoladas, “Elas acumulam ou eliminam seus significados face às outras por meio de uma variedade de textos e mídias” (HALL, 2016: 150). Uma imagem se refere às outras, seu significado é alterado pela leitura no contexto de outras imagens, ou seja, a leitura é intertextual. Especialmente nos suportes midiáticos, como as revistas ilustradas, os títulos e legendas servem para fixar ou, ao menos, dirigir o significado, reduzindo a ambiguidade fundamental das imagens. A caricatura é, por definição, feita por convenções e categorizações dos elementos humanos. Sempre tipifica. Assim, pode ser instrumentalizada para a estereotipagem. Não é a técnica da caricatura que estereotipa por si só. Os 40 estereótipos são construções sociais que costumam se expressar pela caricatura. A análise do corpus de imagens deste trabalho é guiada pelas considerações acima. Em dado momento do percurso, testei se os procedimentos metodológicos se aplicavam a produzir conhecimento. No trabalho de conclusão do Curso Teorias das coisas: contribuições para pesquisas da Comunicação, da Profa. Cláudia Pereira (PUC-Rio), busquei a leitura de historietas de Zé Macaco para pensar como o artista estaria lidando com as relações de seres humanos e coisas naquele contexto histórico de muitas transformações materiais. O resultado foi positivo e, ampliado, constituiu o capítulo 3. Em seguida, trabalhei com a abordagem que estava desenvolvendo desde o início do curso de doutorado: o processo civilizador. O interesse vinha do meu curso de mestrado e ganhou corpo quando frequentei o curso do Prof. Marcelo Jasmin (História – PUC-Rio) sobre os conceitos de civilização, violência e suas correlações. O resultado do ensaio de conclusão de curso contribuiu para o conteúdo do capítulo 4. Em vista desse percurso, se podemos determinar a metodologia usada na tese, foi uma análise interpretativa de discurso narrativo fundamentada em Barthes e Bourdieu. Resta desenvolver os motivos da opção por Alfredo Storni e seus personagens, já abordada acima. O próprio artista apresenta o grupo (ver Figura 4): 41 Figura 4. Página 13 do número 272 de O Tico-Tico (natal de 1910). Anúncio da volta das histórias de Zé Macaco, que, segundo narra o autor, passara uma temporada na Europa. De lá, trouxe sua esposa, Mme. Zé Macaco (nesse momento, ainda sem nome próprio) e o filho Baratinha. Nos céus, aproxima-se o aéreo-burro, veículo criado por Zé Macaco e que ele usou em várias histórias. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Storni foi um dos autores mais populares dessa época e é lembrado como um cartunista crítico da sociedade. O autor do maior compêndio sobre caricaturistas brasileiros, Herman Lima, assim o descreve: “Satirista de aguda veia humorística, 42 segundo vemos, desde cedo soube Storni fixar os excessos da moda e do arrivismo que dominariam o Rio por volta da pré-Guerra de 1914, entrando também vantajosamente na competição às historietas estrangeiras já então em voga [...]” (LIMA, 1963, p.1231-1232). Seu personagem Zé Macaco vem da linhagem das caricaturas do povo. A figura do “Zé Povo”, um homem empobrecido e desconfiado, que podia levar ou não esse nome, aparecia com frequência nas charges políticas dos jornais satíricos, principalmente O Malho. Esse homem do povo sofria com os fatos e fazia os comentários que os autores supunham ser necessários na correção dos rumos da política. Seguindo a tradição entre caricaturistas, Zé Macaco surge como mais um da série de homens do povo em visita à Capital, onde não entende os códigos de comportamento, nem as modas, e passa alguns apuros cômicos. Sua vida, volta e meia, está em risco, entre quebra-quebras, enchentes e problemas com a polícia. A cor de sua pele é representada em tom amarelado, em comparação com outros personagens pintados com tons rosados. O tom amarelo é interpretado como signo caricatural da herança indígena. O termo “caboclo”, de fato, é frequentemente usado nas legendas para se referir ao personagem. Segundo Deborah de Magalhães Lima (1999), o conceito de “caboclo” é complexo, com cruzamentos de relações raciais, sociais e de classe, além de determinações regionais. Indica, a princípio, a origem mestiça do indivíduo, mas não somente isso. A mestiçagem já foi objeto tanto de reprovação quanto de esperança no discurso de ideólogos do desenvolvimento brasileiro. “Caboclo” é a denominação local para o indivíduo camponês amazônico. Também é nome para um tipo regional, construído por motivos didáticos, assim como “gaúcho” ou “sertanejo”. Na linguagem popular, carrega estereótipos negativos. Para os fins deste estudo, importa o que a pesquisadora explicita: “os parâmetros utilizados nessa classificação coloquial incluem qualidades rurais, descendência indígena e “não civilizada” (ou seja, analfabeta e rústica), que contrastam com as qualidades urbana, branca e civilizada” (LIMA, 1999, p.7). A observação se confirma pela interpretação das primeiras histórias de Zé Macaco. No entanto, adiante, no capítulo 5, será discutido se uma interpretação ambiguamente positiva do tipo caboclo está também presente na série de Alfredo 43 Storni, ou se ele desenvolveu o personagem em torno de outras relações com o conceito de “caboclo”. Storni produziu histórias do personagem durante muito tempo, o que permite estudá-lo com a expectativa de flagrar as mudanças e permanências ao longo de décadas. A publicação começa no final de 1908, e sofre uma interrupção em 1910 até o início de 1911, quando Zé Macaco volta reformulado, com mulher e filho e, a partir daí, é publicado por muitos anos, com interrupções devido a compromissos com outras revistas. Em 1958, o desenhista, aos 77 anos, ainda produzia página das Aventuras de Zé Macaco e Faustina na revista, que tinha se tornado mensal. Organização do texto: a narrativa de uma pesquisa A tese foi organizada em duas partes. Na primeira, estudei o contexto em que o autor produziu a obra. Na segunda, apliquei análises para relacionar a obra com grandes temas, na busca de estudar a inserção dela em processos de mediação e subjetivação. A conclusão é a formulação do princípio gerador da obra, sua especificidade, o arranjo de elementos através dos quais a obra produziu significado e se tornou um relato social. No capítulo 1, descreve-se o contexto histórico e cultural em que a publicação circulou. Busquei as matrizes do semanário, que estavam em publicações europeias, especialmente as francesas. Na América do Sul, Chile, com El Peneca, e Argentina, com o Biliken, também investiram num tipo de publicação que levasse entretenimento “responsável” e “educativo” a seus jovens e crianças, com muitas narrativas – e muitos desenhos. Abordei também as condições da chamada Modernidade, aplicando-se sobre os artistas e leitores. No segundo capítulo fiz a descrição do campo artístico em que foram geradas as historietas ilustradas. Podemos chamar tal campo de “o campo dos caricaturistas”, porque, na época, não havia distinção entre os desenhistas que faziam portrait-charge7 e os que narravam estripulias cômicas para crianças. Não existia, ainda, o termo “história em quadrinhos” nem se usava o termo “cartunista”. 7 Caricatura apenas do rosto de uma pessoa famosa, com função ilustrativa. Esse era o termo usado na época. Hoje esse trabalho seria chamado simplesmente de caricatura. Na atualidade, costuma-se denominar caricatura apenas o desenho estilizado, grotesco ou não, de um rosto humano. O desenho caricato aplicado à formulação de uma piada visual, com presença de texto (balões, legendas, título) ou não, a qual aborda um tema universal e perene, é chamado cartum, versão brasileira da palavra inglesa cartoon. O desenho caricato aplicado à formulação de uma piada visual centrada no 44 Capítulos 3 e 4 formam a segunda parte da tese. Toda obra narrativa ilustrada é um trabalho de representação social. No capítulo 3 foi descrito o tratamento que Storni dá aos objetos e hábitos ditos “modernos”. A iluminação elétrica, o bonde, o cinema, o sorvete, o rádio, a medicina, as modas em matéria de roupas e chapéus, entre outros objetos, todos foram representados e articulados com ações de seus personagens. Esse autor, sem dúvida, tinha intenções civilizadoras, mas precisava se equilibrar entre pregar a conservação de valores e o progresso. Para fundamentação teórica, nesse capítulo, recorremos a filósofos e antropólogos que se ocuparam da interação entre indivíduos e coisas. No quarto capítulo, os dados extraídos das tabelas de leitura permitem abordar como Storni tratou do comportamento moderno e civilizado. Produzindo narrativas cômicas no início do século XX, o caricaturista lidou o tempo todo com modas, invenções e interações sociais que exigiam o aprendizado das corretas etiquetas, nem que fosse apenas para exibição. A tensão que se dava entre a necessidade de expor pulsões incivilizadas e a de contê-las era motor de efeito cômico. Os fatos da Primeira Guerra Mundial, com explosões de violência nos territórios mais civilizados do mundo, entraram na pauta de Storni e solicitaram dele e outros artistas reflexões sobre o assunto. Elias segue como uma âncora teórica e Freud (2010), autor do seminal O mal-estar na civilização, também fornece fundamentos, entre outros filósofos, historiadores e antropólogos. O quinto capítulo recupera parte das formulações e análises para sintetizar uma interpretação da obra de Storni e dos processos comunicativos em que ela se insere. Antes de entrar na exposição dos resultados, no entanto, cabe uma ressalva. Nas historietas de O Tico-Tico todos os personagens negros são estereótipos racistas, o que é evidente a partir de seus nomes (Giby, Chocolate, Lamparina, Azeitona, entre outros), passando por sua fala (na forma oral e fora da norma culta) e sua representação visual (black face), até seu papel nas narrativas (criados obedientes e trapalhões, tendendo à superstição e à ignorância, sem freio de suas pulsões). No entanto, esses fatos não serão problematizados na tese, porque mereceriam um levantamento teórico e empírico muito maior do que seria possível dentro deste trabalho. Entende-se que é um regime de comentário de um tema do noticiário ou ataque a uma personalidade pública em evidência no noticiário é chamada charge. Nesse caso, a dita personalidade é desenhada na forma de uma caricatura. Essa terminologia guia as inscrições de trabalhos em diferentes categorias nos salões de humor brasileiros. Para definições, ver RABAÇA e BARBOSA, 2014. 45 representação e se relaciona ao projeto político ao qual o conteúdo das revistas ilustradas adere: modernização do país a partir de modelos idealizados dos países industrializados, o que levava à representação da população negra da sociedade brasileira como se fosse inepta para o projeto, quando não era meramente invisibilizada. O “embranquecimento” da população seria necessário para viabilizar o progresso do país, segundo a elite ascendente no início do período republicano, inclusive com o aval de “homens de ciência” (SCHWARCZ, 1993). Segundo Nobu Chinen, autor da obra O negro nos quadrinhos do Brasil: O preconceito e os estereótipos, primos em primeiro grau, permanecem com presença constante nas relações sociais cotidianas e sempre foram refletidos nos meios de comunicação, que, por sua vez, ajudaram a disseminá-los, num círculo vicioso que se perpetua continuamente, em prejuízo daqueles que sofrem a discriminação (CHINEN, 2019, p. 45). Obras como as historietas ilustradas cômicas costumam cultivar essa autorreferência, recorrendo às fórmulas de representação que já circulavam. Daí, o círculo vicioso que perpetua o estereótipo. Uma última explicação: na transcrição de textos de O Tico-Tico optei por usar a norma ortográfica vigente na atualidade, para que a leitura flua sem ruído, uma vez que o interesse nessas transcrições se dá mais pelos valores semântico e narrativo do que documental. Portanto, por exemplo, transcrevi “máquina” no lugar de “machina”. 1. O contexto das historietas ilustradas O pai de Affonso Botari era o engenheiro mecânico italiano que cuidava das máquinas impressoras da Sociedade Anônima O Malho. Um dia, trouxe do Rio de Janeiro para sua casa, em São Paulo, uma novidade: o primeiro número de O TicoTico. Antes mesmo da data de lançamento, 11 de outubro de 1905, Affonso, com seis anos de idade, tomou apaixonadamente o exemplar e foi ler sozinho, no seu canto. Por isso, sustenta ter sido o primeiro leitor da revista infantil. A paixão de vida levou Botari à imprensa (trabalhou no Correio Paulistano), aproximou-o do caricaturista Belmonte e do historiador Herman Lima. Viveu um tempo no Rio de Janeiro, ficou amigo de “diretores, editores, redatores, desenhistas, gráficos” de O Malho e de O Tico-Tico, e continuou lendo e colecionando a revista, com prazer, enquanto ela existiu. Concedeu uma entrevista publicada no livro O Tico-Tico – 100 anos e morreu exatamente no aniversário de 100 anos da revista, em 11 de outubro de 2005. Na entrevista, o sr. Affonso discorreu sobre inúmeras curiosidades sobre seus redatores e artistas, suas seções e personagens. Fez uma apologia da revista e entregou, de primeira mão, o relato do contexto social e cultural em que O TicoTico se desenvolveu. No início do relato, disse que havia livros para crianças disponíveis, principalmente das livrarias Quaresma e Bertrand, mas não havia periódicos infantis: Quanto aos adultos... Papai e mamãe tinham muito o que ler. Afora os jornais diários, os muitos livros editados, havia as revistas hebdomadárias. A belle époque da imprensa brasileira conheceu um esplendor febricitante com a publicação de revistas irônicas... de ironia ferina... ricas em caricaturas [...] quase todas impressas em papel finlandês, tipo couché (BOTARI, 2005, p.228). Tal “esplendor febricitante” era vivido pelo setor da imprensa e pelos participantes privilegiados da onda modernizante do início do século XX. Envolvia os leitores na assimilação de novidades técnicas, artísticas e científicas, ainda que o comportamento exigido de jovens e crianças fosse o mesmo de sempre. Botari acentua como foi criado no respeito à ordem e à religião, e como recebeu o primeiro exemplar de O Tico-Tico vestido com a indefectível roupa de marinheiro. Jovem, se encantou com os movimentos na Rússia e com as modernas ideias socialistas, para abandoná-las como ilusão mais tarde. Vivenciou o tempo em que football era jogado apenas por rapazes de alta classe, e que o máximo para uma criança era ter 47 seu nome impresso, em letras miúdas, entre dezenas de participantes dos concursos de O Tico-Tico. Mais do que isso, teve o contentamento de ter seu retrato impresso numa edição em 1909. O normal era ler O Tico-Tico até 16 anos de idade, segundo ele. A infância era mais longa. Essa época lembrada sob o signo da velocidade, do estímulo visual e do rompimento com a tradição não deve ser entendida sem levar em conta as forças contrárias: fortalecimento da ordem social e da disciplina civilizadora. As narrativas veiculadas na época, sob diversos suportes e formatos, tendiam a impulsioná-la. Marialva Barbosa, em sua História Cultural da Imprensa (2007), faz uma leitura das transformações do setor na virada do século XIX para XX a partir da página do Jornal do Brasil na edição comemorativa de 15 de novembro de 1900: “O Jornal do Brasil se apresenta a seu público como um calidoscópio de imagens, nos quais cenas em que procuram reproduzir a realidade figuram ao lado de alegorias” (BARBOSA, 2007, p. 32). Não só pelo índice de analfabetismo ser alto na época, mas também pelo progressivo desenvolvimento da “cultura visual” de todos, a imprensa investiu em fotografias, ilustrações a traço e caricaturas, justapondo signos visuais mais ou menos alegóricos, todos produzidos com a intenção de traduzir a realidade em narrativas. As histórias em quadrinhos vicejam nesse substrato. Os artistas e editores descobrem a potência dos personagens de tiras em quadrinhos. Zé Macaco e Faustina, de Storni, são criados nesse contexto, percorrem as décadas e acompanham o cotidiano de grande público. O entrelaçamento da prática do autor das historietas com as condições que lhe são dadas pela sociedade é o primeiro enfoque desta tese. 1.1. O prazer infantil da velocidade e da confusão O que tais personagens são vistos fazendo, em cada publicação, corresponde, de alguma forma, às expectativas da sociedade que os lê e consome. Numa das edições de O Tico-Tico, Zé Macaco é desenhado, na primeira página, a bordo de um automóvel com “chauffeur” (ver Figura 5). 48 Figura 5. Capa de O Tico-Tico n.196 (1909), edição em que a vida de Zé Macaco sofre uma virada de sorte, antes da suspensão de sua série. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 49 A legenda da história é bastante esclarecedora e voltará a ser assunto de análise no Capítulo 2 (p.115). Sem aprofundar-se demasiado, é possível fazer uma leitura dos signos com que o caricaturista montou a imagem, à maneira de Roland Barthes (1990). O automóvel vem espalhando poeira (indicada pelo desenho de nuvens brancas por trás da máquina), devido à velocidade com que trafega pela Avenida Central8 do Rio de Janeiro (indicada pela forma dos postes de luz elétrica instalados na reforma de 1906). Zé Macaco vem vestido com cartola, casaca e luvas brancas (conotação de riqueza), reclinado de lado sobre o assento do veículo, enquanto fuma um charuto (conotação de prazer e conforto). A expressão facial do personagem (sorriso, olhos semicerrados) confirma a sensação. A imagem do automóvel em velocidade vinha sendo usada em várias capas de revista. Na capa de O Malho número 167 (1905), desenhada por J. Ramos Lobão, o presidente Rodrigues Alves desfila de carro pela nova Avenida Central, ao lado dos engenheiros Paulo de Frontin e Lauro Muller, para afrontar o “carrança” (velho contrário às reformas) e animar o “Zé Povo” (que se manifesta a favor do progresso: “É pra frente, sempre!”). Por sua vez, na capa da edição 311 (1908), desenhada também por Lobão, o presidente Afonso Pena conduz velozmente “o carro do Estado” em direção a um precipício, com a Lavoura, a Indústria e o Comércio, desesperadas, no banco de trás. Já a revista Fon-Fon! não apenas trazia o desenho de um automóvel em corrida desabalada no seu logotipo, mas também traduzia seu “programa” (linha editorial) em jargão automobilístico. Oferecia aos leitores matérias alegres e críticas bem-humoradas aos “velhos costumes”, apertando sempre a “sirene” (buzina) para interromper “os graves problemas da vida” e o discurso “com feições de filosofia” (FON-FON! de 13/04/1907). O automóvel, raro, caríssimo e distintivo, era um dos signos que melhor traduzia os valores que se convencionou chamar de “modernos”: velocidade, cosmopolitismo, individualismo, progresso material, urbanidade, polifonia, visualidade, iluminação. No Brasil, esses valores foram associados, na cultura e na política, à consolidação do regime republicano e às reformas urbanas da Capital, como apontam historiadores abordados a seguir. Segundo José Murilo de Carvalho (1990), nos primeiros tempos da República, houve disputa política e ideológica entre várias correntes participantes 8 A Avenida Central da cidade do Rio de Janeiro foi rebatizada de Avenida Rio Branco em 1912 e este é seu nome atual. 50 da derrubada do Imperador para munir os brasileiros de heróis e de símbolos, tais como a “Marianne” francesa, jovem e forte mulher que representava a República em vários países. Aqui, tal figura foi rapidamente vilipendiada e, apesar de constante nas charges políticas (inclusive algumas de Storni, citadas no capítulo 2, p.128), não obteve mobilizar as “almas” nacionais. Após a mudança de regime, a sociedade continuava esperando por um sinal de que o país avançara. O sinal viria a ser a reforma da Capital (1902 -1906), ideia plantada pelos que visitavam Paris, após reformas do Barão Haussmann (na segunda metade do séc. XIX), e Buenos Aires, após reformas entre 1880 e 18859. Assim, a partir de 1903, começam as demolições, sob aplausos de uns e lamentos de outros. A formulação irônica de que aquilo era uma “condenação ao progresso” veio de Euclides da Cunha. No final de 1904 explode a Revolta da Vacina, reação mais às remoções da população pobre do que à imposição da vacina contra febre amarela. O Rio de Janeiro, ao mesmo tempo porto e capital, conforme o plano dos dirigentes da República, tinha que ser uma cidade salubre e organizada, para exibir uma imagem moderna do País aos estrangeiros e aos próprios brasileiros (NEVES, 1992). Ela irradiaria modas e modelos de comportamento para toda a população, num sentido quase didático, uma vez que a própria circulação pela cidade e uso de seus novos sistemas de comunicação e transporte já colocavam o neófito em situação de aprendizagem. Até o simples relato midiático de interações entre humanos e máquinas no cenário urbano moderno funcionaria pedagogicamente, como podia acontecer com as historietas de Zé Macaco e Faustina10. Durante as primeiras décadas do século XX, até o início da Primeira Guerra Mundial, o discurso geral era de certeza no plano de progresso e, por parte de alguns, de euforia com as perspectivas (SEVCENKO, 1998; SCHWARCZ, 2013). 9 Para reconhecer como o processo de reforma urbana do Rio de Janeiro tem paralelo no processo de Buenos Aires, ao menos no discurso oficial e midiático dos motivos da empreitada, referir-se ao artigo de ARAÚJO, 2016. 10 Na história de Zé Macaco publicada em O Tico-Tico de 13/09/1911 (310), Faustina é obrigada a se utilizar do telefone público de emergência instalado num poste da Avenida Central (o chamado “chave cidadão”) para pedir um carro da “Assistência” (ou seja, uma ambulância) e socorrer seu marido desfalecido. Por meio dos desenhos, o leitor espalhado pelo Brasil vivenciava a prática do uso de telefone e de automóvel no início dos 1900. Não foi a única menção a esse novo dispositivo técnico nas historietas de Alfredo Storni, que costumava colocar seus personagens em situação de experimentar todas as modas e todos os aparelhos ditos “modernos”. Em 8 de maio de 1912, na edição 344, Yantok faz a mesma piada, botando o personagem Sábbado para usar a “chave cidadão” e chamar os bombeiros... estando numa geleira do Polo Norte! 51 O dramaturgo e escritor Artur Azevedo, por exemplo, narrava a polifonia e a multiplicidade dos pontos de vista características da vida urbana, satisfeito com as reformas e satirizava, em suas revistas do ano como Guanabarina (1906) os “carranças” defensores do “atraso” e do “velho” (SICILIANO, 2014). Essa foi a grande época das revistas ilustradas, que levantavam a bandeira do “avanço” e, tanto em forma quanto em conteúdo, solicitavam adesão aos projetos de modernização. Eram elas um canal de celebração de projetos individuais e coletivos, além de fomentadoras de polêmicas passageiras. A indústria gráfica tinha começado a sofisticar seus processos de impressão para reproduzir fotos, ilustrações e gráficos a cores. O conteúdo pleno de anúncios, seções de “fatos diversos” e entretenimento (jogos, partituras de canções para piano, piadas), além da publicação de fotografias dos novos prédios e avenidas, levavam aos leitores as últimas modas e apresentavam o comportamento civilizado desejado de todos que circulassem pelas metrópoles nacionais. As revistas se tornavam o meio preferencial de popularização dos literatos, e seu sucesso apoiava iniciativas de publicação de livros por parte das mesmas editoras. Suas redações eram, também, ambiente para experimentações técnicas, por parte dos gráficos, e estilísticas, entre poetas e caricaturistas. (MARTINS, 2008; VELLOSO, 2015). A empresa que criou O Tico-Tico e onde Alfredo Storni trabalhou durante decênios estava plantada firmemente nesse mercado. Oferecia um leque de produtos jornalísticos que, de um lado, atendiam à demanda do público que se segmentava e, de outro, educavam o público geral a se segmentar conforme a estratégia da empresa. Uma evidência disso é o anúncio em forma de caricatura publicado no número 187 de O Malho (1906). Nele, os veículos da empresa são personificados como integrantes de uma família burguesa. O pai da família, que personifica O Malho, com o característico gorro, apresenta ao “Zé Povo” os integrantes todos: a esposa, Caricatura, a filha mais velha, Leitura para todos, o filho O Tico-Tico, muito levado e, à parte, o filho mais velho, que só trabalha uma vez por ano, o Almanach. Indagado sobre “o que fazem por estas alturas?” o pai responde “Cá vamos! Cá vamos!”. Isso é um trocadilho com a expressão “cavar” que, na época, era uma gíria para arranjar dinheiro (ver Figura 6). 52 Figura 6. Charge na página 20 da edição 187 de O Malho (1906), desenhada por J. Carlos. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. As revistas ilustradas foram, nesse período histórico, os mais influentes canais de mídia. A um só tempo correspondiam, com suas características de forma e conteúdo, aos valores culturais de uma sociedade em transformação para a chamada Modernidade, e ajudavam a construir as mesmas subjetividades “modernas”, que soubessem interpretar e que valorizassem aquelas características (VELLOSO, 2015). A atenção dispersa devido à multiplicidade de estímulos, o prazer de estar na multidão, o gosto pelo ritmo acelerado da vida, a interpretação subjetiva e individual das imagens, a promoção do cotidiano como objeto da arte, a entrega de si ao movimento mecânico, o embarque em modas passageiras e eventos sensacionais, a quebra das auras simbólicas e dos interditos sociais em favor da lógica de mercado, todas essas são faces da “modernidade” que pensadores e artistas têm associado à produção e consumo das revistas ilustradas. O poeta Baudelaire (1996), em seu texto que descreve a modernidade florescente de sua época, usa a obra do amigo Constantin Guy, “pintor do cotidiano”, “homem do mundo”, como metonímia dessa modernidade. Guy teria 53 sido aquele artista tardio, autodidata e habituado a viajar, que desenvolvia sua carreira na imprensa europeia como ilustrador. Ele tinha a qualidade de se entregar à observação da metrópole desde os primeiros raios do sol, para absorver todas as imagens da atividade quotidiana e, à noite, febril e velozmente, traçar, de memória, lutando contra o papel, aquelas imagens com frescor, naturalidade e singularidade. Tais trabalhos tinham aparência de obras inacabadas mas, por isso mesmo, representavam melhor os objetos do artista, talvez por apenas aludi-los, de forma a conquistar o esforço de complementação subjetiva do espectador. O imperador, por exemplo, representado em cenas de pompa, era um “croqui infalível”, uma pequena caricatura, quase uma rubrica, que aludia perfeitamente ao figurão, pois que era uma fórmula já amadurecida pelo artista, e compunha-se apenas dos poucos traços que um espectador, observando de longe e em movimento, teria visto se estivesse presente. Baudelaire não usa o termo, mas Constantin Guy era um caricaturista, não no sentido de pintor de retratos exagerados, mas de artista visual que representa imagens com um repertório de fórmulas simplificadas. Como Baudelaire sugeriu, “Para o croqui de costumes, a representação da vida burguesa e os espetáculos da moda, o meio mais expedito e menos custoso, evidentemente, é o melhor” (BAUDELAIRE, 1996, p. 11), querendo dizer que ela exige do artista velocidade na execução. E que a litografia se prestava bem a esse papel, justamente a técnica de reprodução de imagens artísticas que acompanhou o florescimento das revistas. A metáfora do flâneur, que vive “no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito” (idem, p. 19) é uma descrição dos caricaturistas das revistas ilustradas, vivendo de atiçar as polêmicas passageiras e registrar os choques e perplexidades observados no cotidiano. Constantin Guy tinha, de acordo com Baudelaire, seus objetos preferidos: o dândi, a mulher muito enfeitada, carruagens e militares. O mesmo poderia ser dito de J. Carlos, o desenhista dos janotas e das melindrosas, ou Rian, caricaturista das damas da classe alta. Walter Benjamin (1994) se referia a Baudelaire e apreendia, do quadro da modernidade, alguma coisa além do que o poeta: o literato – ou qualquer sujeito “moderno” que se inspirasse no artista – ia à feira com paixão, pensando que era para consumir tudo com o olhar, mas não percebia que já estava lá se oferecendo como mercadoria. Empresários da imprensa alistavam escritores e caricaturistas na produção de literatura que vendia rápido, literatura que emulava os prazeres da 54 flanerie: panoramas da cidade, lista de tipos humanos da metrópole, escritos como bestiários ou livros de botânica, histórias de sensação, sátiras, paródias, literatura que não desafiasse a ordem, ainda que fizesse troça das hierarquias. Esse poeta moderno percorria a cidade catando restos e marginalidades que pudessem ser reaproveitados em obras, com uma boa embalagem. Para conseguir isso, esperava-se que o poeta – ou qualquer sujeito “moderno” que se inspirasse no artista – abordasse o quotidiano com olhos “puros” ou “infantis”, sem preconceitos cegantes, e capazes de extrair de todas aquelas informações sensoriais uma “idealização forçada”, uma “percepção aguda, mágica, à força de ser ingênua”. A percepção dos artistas educaria a percepção dos homens modernos. Para isso, o artista deveria ser como Constantin Guy, sempre com “a memória e os olhos repletos” (BAUDELAIRE, 1996, p.22 -23). Imersos nesse caldo cultural, os caricaturistas brasileiros das revistas ilustradas não podiam evitar se referir a essas questões filosóficas, mesmo que não se dessem conta, com a reflexão atropelada pelo trem da periodicidade semanal e dos múltiplos empregos. Uma imagem grotesca de Alfredo Storni, na aventura de Zé Macaco e Faustina de 1912, é metáfora para as condições da modernidade (ver Figura 7). 55 Figura 7. Uma metáfora para a visualidade na experiência da vida moderna. Página 14 do número 338 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Dois números antes, a personagem Faustina tinha sido atingida pelo personagem Kaximbown (de Yantok), na brincadeira de carnaval, com um jato de lança-perfume muito forte. Os olhos de Faustina ficam inchados. No exagero grotesco da caricatura, ela chora baldes de lágrimas e seus olhos ficam do tamanho de melões (primeiro quadro). O marido Zé Macaco corre a acudir e tem a ideia de 56 chamar certas curandeiras chinesas que andavam pelo Rio de Janeiro na época11. Operando palitinhos, as chinesas vão tirando de dentro dos olhos de Faustina tudo o que estava entupido ali: objetos cotidianos. Um monte de bens de consumo que a senhora tinha visto ultimamente se acumulam ao lado: relógio despertador, garrafa de parati, buzina de automóvel, caixa de fósforos, lata de sardinhas, cachimbo, penico, botas, sapatos, chinelos, o horário da Light, o programa do Odeon e até um gramofone tocando “A Viúva Alegre”. Deve ter passado na cabeça do artista a ideia de que só poderia ser uma cornucópia de objetos de consumo aquilo que estaria oculto, enchendo os olhos de uma senhora de classe alta do início do século XX. Ou seja, de certa maneira, “apreender” se iguala a “ver”. A maneira de entender, absorver e possuir objetos na modernidade passa pela visão. Não foi sempre assim. O sentido que era o modelo do processo de conhecimento vinha sendo o tato, o contato material. A própria visão, nos primórdios dos estudos científicos, era encarada segundo esse modelo de contato material (os olhos supostamente teriam o poder de “tocar” os objetos com raios invisíveis). Jonathan Crary (2012) estudou essas transformações no modo de percepção como resultado de um complexo jogo de forças histórico no campo da representação, do pensamento, da arte e da ciência. Para ele, técnicas de observação seriam práticas que dominaram seus períodos históricos e forneceram modelos epistemológicos e de subjetividade. Cada uma dava diferente papel para o observador, ou posicionavao de outra maneira no processo. O uso da ilusão de perspectiva - a “perspectiva renascentista”, por exemplo - punha o espectador no centro da cena que era seu objeto. O olhar iluminista, que, de certa forma, é dominante até hoje em nossa sociedade, era aquele, segundo ensaio de Sérgio Paulo Rouanet (1988), que se pretendia educado para vencer as imperfeições da visão. As ilusões de óptica costumavam ser usadas por pensadores da Ilustração como metáfora para as dificuldades de se conhecer a realidade apenas pelo sentido da visão. O ideal era que tudo fosse visto, e que não houvesse áreas obscuras em que o poder autoritário atuasse, nem interdições por motivo de ordem. O recurso aos olhares dos “outros” 11 Em O Malho n. 497, de 23 de março de 1912, uma charge desenhada por Loureiro comenta sobre o “truc” das “chinesas desmascaradas”. Elas traziam escondidos na boca bichos (larvas?) que simulavam tirar de dentro dos olhos dos pacientes, manipulando pauzinhos. Era comum Storni usar, nas piadas Zé Macaco, os assuntos comentados na semana. 57 para confrontar e aprimorar sua própria percepção seria uma das lições que produzia o olhar “competente”. Por outro lado, a concepção desses pensadores da Ilustração teria munido os detentores de poder de nova forma de controle, de tipo “panóptico”, onde todos são vistos pelo poder central, sob luz cegante e inescapável, enquanto o poder central não era visto. A relação do cientista com a amostra, no laboratório, servia de metáfora para essa previsão distópica. De modo geral, segundo Crary (2012), houve uma virada desde a percepção objetiva, dominante no pensamento e na prática dos séculos XVI e XVII, em que a visão, imperfeita ou não, era encarada como espelho da realidade, para a percepção subjetiva, de expressão e criação individuais, já nas primeiras décadas do século XIX. A câmera escura, por exemplo, servia de paradigma para o conhecimento objetivo, quando sujeito e objeto do conhecimento são separados. No século XIX outras técnicas são chamadas a demonstrar que a objetividade é ilusória, como as que exploram o fenômeno da persistência das imagens na retina (lanterna mágica). Máquinas começaram a criar efeitos visuais, como o estereoscópio, que produzia profundidade de imagem artificial, e que se destacava na representação fotográfica de composições abarrotadas de objetos como tesouros, galerias de arte e vistas metropolitanas. Fazia sucesso numa época encantada com a flânerie. Esse dispositivo era apenas um dos que alimentavam a tendência de racionalizar o fenômeno da visão, combinando homem com máquina e instruindoo como fazer para ver uma ilusão do real. Essas técnicas precedem o Cinema mas não são pré-cinema, segundo Crary. Tanto o uso prático das técnicas quanto a produção de narrativas sobre os dispositivos de ilusão compõem a pedagogia do olhar “moderno”. Daí, a frequente pauta sobre a fotografia e o cinema, enquanto técnicas, nas revistas ilustradas. Em O Tico-Tico, as edições 135 e 161, ambas de 1908, trouxeram experiências fáceis de fazer que exploram o fenômeno da ilusão de movimento devida à persistência da imagem nas retinas, fenômeno que fundamenta a técnica do Cinema (VERGUEIRO, 2005). No número 533, de 1915, a seção “Brinquedos para dias de chuva” apresenta um esquema para produzir “um estereoscópio fácil de fazer”. A descrição didática da técnica fotográfica – falando de “tempo de exposição”, “prova negativa” e “prova positiva” – foi assunto da coluna Lições de Vovô nos números 667 e 668 (1918). 58 Há também uma historieta exemplar dessa preocupação moderna. Na edição 344, de 8 de maio de 1912, conta-se a história da menina Nini, que tem uma máquina fotográfica de caixa e, tentando fazer fotografias em casa, comete 3 erros diferentes, produzindo “chapas” monstruosas. No final, um gato, só de fuçar na máquina, consegue fazer uma fotografia muito melhor do que a menina. Funciona como uma instrução de como bem preparar um “instantâneo” e, além disso, é um comentário irônico sobre os hábitos civilizados. O cultivo das técnicas do observador abre duas vertentes, segundo Crary: uma trata de disciplinar a visão como um instrumento de produção (identificar nãoconformidades, distinguir classes de objetos, ler com rapidez e outras competências) e de consumo (interessar-se por fotografias, assistir ao cinema, acompanhar modas estilísticas, etc.); outra vertente trata de elevar a visão a uma prerrogativa individual, uma expressão da subjetividade (aderindo às estéticas romântica e modernista). A leitura de imagens, portanto, passa a ser uma das pautas pedagógicas e uma das qualificações pertinentes ao perfil de indivíduo moderno e civilizado. Os artistas visuais (pintores, escultores, arquitetos e caricaturistas) têm, ao longo do processo histórico, estabelecido renovados códigos de representação da realidade, que Ernst Gombrich nos ensina ser um jogo de equivalências. Artistas visuais não só traduzem impressões da realidade em configurações materiais que os objetos artísticos consigam suportar; os artistas chegam a estabelecer como a realidade deveria se parecer. O código de como representar a paisagem natural na pintura é que construiu o conceito de que a natureza “correta” deve ser “pitoresca” (GOMBRICH, 1986). As revistas ilustradas investiram bastante em publicação de fotografias, narrativas ilustradas (ou histórias em quadrinhos) e “quebra-cabeças” visuais. O Tico-Tico lançou concursos para os leitores desde o primeiro número. Era uma estratégia para fidelizar assinantes. Alguns eram jogos de linguagem, mas muitos eram desafios de leitura de imagens. Os pedidos eram, às vezes, reconstituir imagens que vinham cortadas em pedaços (ver Figura 8) ou completar partes vazias de uma imagem completa. 59 Figura 8. Desafio aos leitores que participam de um concurso na edição 334 de O Tico-Tico (1912). A tarefa é recortar as formas ao meio e reconstituir as silhuetas de quatro animais, juntando as metades correspondentes. Isso exige a competência em leitura de caricaturas, ou seja, representações simplificadas de seres do cotidiano – animais domésticos – apropriadas para reprodução na imprensa. A propósito, a solução exige que o leitor identifique, misturados às metades e girados em diferentes ângulos, um pássaro, um asno, um gato e um peixe. O bom desempenho nos concursos exigia dos leitores um tipo de “alfabetização visual”, capacitação para ler signos imagéticos usados na imprensa e outros meios de comunicação com destreza e envolvimento subjetivo. O trabalho de Rudolf Arnheim, produzido nos anos 1950, pesquisado e divulgado no Brasil por Fayga Ostrower nos anos 1980, fundamentou a concepção de que, imersos numa cultura visual, os indivíduos modernos precisavam aprender a ver e ler dados visuais, o que exige domínio de códigos socialmente estabelecidos. Arnheim categorizou os elementos da imagem com que o espectador precisa lidar: equilíbrio, figura, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão. Donis Dondis, nos anos 1970, introduziu o conceito de “alfabetização 60 visual” e propôs um sistema pedagógico que permite a todas as pessoas a compreensão de mensagens visuais (SARDELICH, 2006). Os artistas da imprensa exploravam as possibilidades de representação visual pela linguagem da caricatura, e faziam com que os leitores desenvolvessem a capacidade de ler e interpretar imagens que, antes da era das revistas ilustradas, podiam se tornar ininteligíveis, por falta do domínio do código. Um exemplo é o teste que O Tico-Tico publicou no número 991, em 1924 (ver Figura 9). São duas representações: um homem carregando um saco nas costas e um homem cavalgando um burro de carga. A representação sob o ponto de vista de cima para baixo e composta apenas por linhas torna difícil “ler” o que são as figuras. À primeira vista, os desenhos são interpretados como rostos, uma tendência universal do ser humano. Uma vez que o leitor tenha brincado uma ou duas vezes com esse tipo de figura, torna-se apto a interpretar outras figuras representadas a traço, sob um ponto de vista pouco usual; capacita-se mais um pouco na leitura de narrativas como as histórias em quadrinhos, infográficos e anúncios. Figura 9. Parecem “cabeças de velhos horríveis”, mas não são. Ilustração do nº 991 de O Tico-Tico (1924), sem autor. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 61 Essa foi a “era de ouro” dos anúncios publicitários ilustrados com desenhos e caricaturas, o que compôs a renda de muitos artistas empregados na imprensa. A contrapartida é que os leitores se acostumavam tanto a ler quanto a se expressar pelos códigos da caricatura, contribuindo com desenhos dos seus personagens mais queridos. Alguns chegaram a ponto de se tornar profissionais da área, como Álvaro Marins, conhecido como Seth (abordado no Capítulo 2, p.83), e como A. Perdigão. O historiador da caricatura brasileira Herman Lima, na juventude, era um fã de O Tico-Tico e alguns de seus desenhos foram aproveitados, com destaque para a capa de Natal do número 481 (em 1914), em que desenhou Zé Macaco, um “Papai Noel de nova espécie”, pulando o muro de uma casa, todo suado pelo calor de dezembro. A difusão da “alfabetização visual”, o interesse por temas do cotidiano urbano e moderno no consumo de narrativas, a pujança do setor editorial, a disponibilidade de artistas e poetas do traço em trabalhar nos meios de comunicação, tudo isso fez com que essa época, desde as últimas décadas do século XIX, fosse aquela onde o gênero das tiras de histórias em quadrinhos se estabeleceu. 1.2. Tiras em quadrinhos, uma onda na virada de século Buster Brown era o nome da série de historietas ilustradas que Richard F. Outcault criou e que foi copiada pelos editores de O Tico-Tico, dando origem ao personagem-símbolo da revista, o Chiquinho. O mérito de Outcault é ter se destacado em meio a um movimento de artistas e empresários que estava criando, na virada dos séculos XIX para XX, as bases de um gênero narrativo adequado à mídia impressa a cores. Herdeiro dos desenhos satíricos, no ambiente da competição capitalista americana, tornou-se um “sucesso popular e um empreendimento lucrativo” (SANTOS, 2012, p.87). Hoje chamamos esse gênero narrativo de tira em quadrinhos. O processo foi impulsionado, de um lado, por um campo de artistas visuais habilidosos, interessados nos assuntos do cotidiano e nas transformações da modernidade e dispostos a explorar o potencial comercial da imprensa; de outro, por empresários da imprensa que se batiam para conquistar mais mercado e explorar o potencial publicitário do conteúdo ilustrado a cores. No meio comparecia o público da imprensa, cada vez maior e mais diversificado, educado na leitura de 62 imagens e carente de representações visuais de si mesmos (GORDON, 1998; SANTOS, 2012). Richard F. Outcault circulou pelas duas grandes cadeias de jornais norteamericanos que estavam sendo construídas pelos concorrentes Pulitzer e Hearst. De sua página ilustrada Hogan’s Alley extraiu o personagem do Yellow Kid, que se tornou uma febre. Segundo Ian Gordon (1998), foi o primeiro personagem a mobilizar os leitores, o que valorizava, ao mesmo tempo, os centímetros de publicidade do jornal e o contrato do desenhista. Sabendo do potencial comercial que sua arte tinha conquistado, Outcault tentou, pela primeira vez, registrar um personagem de quadrinhos como se fosse uma patente. Não havia precedente na proteção do direito autoral. Mas o jornal tomou posse do nome da tira e apenas mandou outro artista assumir os desenhos quando Outcault demitiu-se e ingressou no concorrente. Lá continuava a publicar seu personagem do mesmo jeito, apenas dispensando o uso do título, que havia perdido. Hearst “comprou o passe” de Outcault e montou um time de desenhistas de tiras de sucesso. Em conjunto, as tiras formavam uma página completa a cores. Hearst também vendia as tiras para jornais de outras praças, no modelo de “syndication”. Os elementos básicos do gênero foram consolidados entre os que provocavam melhor resposta do público: a) divisão do espaço em quadrinhos sequenciais; b) disposição do texto em balões de discurso livre dos personagens; c) criação de personagens protagonistas, que dão título à tira; d) repetição da estrutura narrativa (iteração, segundo ECO, 2015, p. 148). Mais tarde, nos anos 1930, George Gallup começa a empreender pesquisas sobre o hábito de leitura de jornais, e divulga que a página de quadrinhos era uma das seções mais lidas dos diários e mais ainda das edições dominicais. Tiras eram populares entre adultos, tanto de classe média quanto operários. Os americanos estavam, já, quase plenamente “alfabetizados” na leitura da combinação de “texto com figuras”, de modo que a publicidade vem a seguir a tendência (GORDON, 1998). O Buster Brown de Outcault, criado com observação das tendências de sucesso, não seria o primeiro nem o último menino travesso das tiras em quadrinhos. Porém, era o único representado como um pequeno lorde vitoriano e o único com a humana ambiguidade de, após o castigo, refletir e prometer se regenerar, apenas para que o leitor já antecipasse a armação de nova “pegadinha” na semana seguinte. Segundo Gordon (1998), a “receita” permitiu que Buster 63 Brown fosse o único personagem de tiras a ser contratado para um leque mais amplo de produtos de consumo, enquanto os concorrentes ficavam restritos a figurar em brinquedos ou livros. Também foi explorado em shows de teatro e filmado numa série de curtas-metragens. A marca de sapatos infantis Buster Brown ainda existe em 2020. 1.3. O Tico-Tico, representante local de um modelo internacional Os editores que criaram O Tico-Tico estavam cientes do sucesso das tiras em quadrinhos norte-americanas como Buster Brown, mas suas matrizes eram também dos semanários franceses. A princípio, associou-se a origem de O Tico-Tico diretamente ao semanário La Semaine de Suzette (ROSA, 2002). Ambos tinham surgido no ano de 1905. Segundo relato de Affonso Botari, editores contaram-lhe que essa era a referência que deram ao empresário Luiz Bartolomeu para investir no projeto de semanário infantil. Mas, anteriormente, a França já editava vários semanários ilustrados com histórias em quadrinhos, e o material de Le Petit Journal de la Jeunesse e de La Jeunesse Illustrée era mais copiado em O Tico-Tico do que as histórias de La Semaine de Suzette. Para Athos Eichler Cardoso (2008), Le Petit Journal de la Jeunesse (1904 – 1914) era a principal fonte de material copiado pelo O Tico-Tico no seu início, por causa da qualidade de impressão e porque seu formato (23 x 30,3 cm) “facilitava a leitura, a conservação em coleções encadernadas, o armazenamento, o transporte, e inclusive a remessa pelo correio para os assinantes” (CARDOSO, 2008, p. 13). La Jeunesse Illustrée (1903) e Les Belles Images (1903) não seriam apropriados, segundo o autor, por terem formato standard (26 x 37 cm); e La Semaine de Suzette não seria apropriado por ser dirigido às meninas. Pesquisa empírica feita por Eichler Cardoso identifica contos e ilustrações de Le Petit Journal de la Jeunesse copiados nos primeiros anos de O Tico-Tico. Quando se trata de historietas ilustradas, no entanto, é notável que La Jeunesse Illustrée também forneceu material para O Tico-Tico. Esse semanário criou e manteve por muito tempo um modelo de historieta padronizado. Podiam ser 12 quadrinhos em formato quadrado, numa grade de 4 linhas para 3 colunas, com 64 um bloco de texto do narrador sob cada quadro12. Os tamanhos de todos os quadrinhos da página eram idênticos. Às vezes, a história ocupava duas páginas. Via de regra, não usavam o recurso dos balões de fala. O mesmo modelo pode ser observado em muitas edições de O Tico-Tico na mesma época. Os caricaturistas da equipe “decalcavam” os desenhos franceses em novos originais, enquanto faziam adaptações para o cenário local (por exemplo, desenhar a farda do policial do Rio de Janeiro, ou o modelo de poste de luz da Avenida Central). Por exemplo, as histórias “Turlututu chapeau pointu”, de Valvérane, e “Negligence”, de Benjamin Rabier, publicadas em 25 de novembro de 1906 geraram “O chapéu de Paschoal” em O Tico-Tico número 201 (1909) e “Um descuido” em O Tico-Tico número 258 (1909) (ver Figuras 10 e 11). Figura 10. Capa do número 196 de La Jeunesse Illustrée (1906), com a historieta do autor Valvérane comparada à publicada em O Tico-Tico número 201 (1909). Fontes: Hemeroteca Digital da Bibliothèque Nacionale Française (Gallica) e Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 12 Encontra-se, também, como exceções experimentais, historietas com divisão em 16 quadrinhos quadrados, 25 quadrinhos quadrados, 24 ou 15 quadrinhos retangulares e outras divisões que mantêm a regularidade da “grade” que sustenta a diagramação. Por exemplo, uma história feita com quatro quadrinhos verticais (quatro colunas) onde são representados quatro andares de um edifício, obedecendo, assim, à grade de 16 (na edição de 13 de agosto de 1905). Fonte: Bibliothèque Nacionale Française (site Gallica). Disponível em: <https://gallica.bnf.fr> . Acesso: 10 nov. 2020. 65 Figura 11. Última página do número 196 de La Jeunesse Illustrée (1906), com a historieta do autor Benjamin Rabier comparada à publicada em O Tico-Tico número 258 (1909). Fontes: Hemeroteca Digital da Bibliothèque Nacionale Française (Gallica) e Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Diversos semanários franceses e as edições dominicais dos jornais norteamericanos forneceram matrizes para o projeto editorial de O Tico-Tico, conforme se constata empiricamente, na comparação das publicações precedentes. A tradução de historietas estrangeiras não foi, no entanto, o material principal, apesar de estar presente em muitas capas de alguns períodos. Os artistas locais, desde o início, exercitaram seus traços no material infantil. Ainda nas páginas de O Malho, o caricaturista Angelo Agostini publicava histórias para crianças sobre erro e castigo. Leônidas fazia o mesmo e J. Carlos também contribuía com uma história em quadrinhos. Nos primeiros anos de O Tico-Tico, J. Carlos providenciaria a história de um menino travesso, o Juquinha, para preencher a capa da revista, eclipsando o importado Chiquinho, desde fevereiro de 1906 até o final de dezembro de 1907 (CARDOSO, 2009). Outras publicações também surgiram a partir de projetos e matrizes identificáveis em O Tico-Tico. Na Itália, em 1904, uma revista para crianças, Il Novellino, publicou, a cores, o personagem Yellow Kid do norte-americano Richard Outcault. Em 1906, em Florença, o escritor de sátiras e de ficção científica Vamba lança o infantil Il Giornalino dela Domenica, elegendo a centralidade da imagem 66 como uma abordagem pedagógica mais moderna. E, em 1908, é lançado na Itália o Corriere dei Piccoli, semanário ilustrado infantil que já nasce com projeto pedagógico. Segundo o pesquisador da indústria cultural italiana Fausto Colombo (1997), havia um projeto assumidamente educativo de responsabilidade de Paola Lombroso, filha do afamado antropólogo criminal13. Preocupada com o nível de analfabetismo nacional, avaliava que o povo tinha resistência ao ensino tradicional e seria melhor atacar o problema na infância, que é mais flexível, e que se deveria usar o divertimento como meio de atração. Os criadores do corrierino se inspiravam em modelos ingleses e franceses, principalmente Le Petit Journal de la Jeunesse. Assim como a proposta de O TicoTico, o projeto dos italianos também previa seções dedicadas a concursos e jogos, seção de cartas, literatura ilustrada e histórias em quadrinhos coloridas. Publicariam autores infantis estrangeiros e autores italianos que não escrevessem apenas para crianças. Paola Lombroso não assumiu a direção do semanário mas redigiu as respostas da seção de cartas. Ela rompe com o diretor da revista quando da Guerra da Líbia, por ser pacifista e anticolonialista. Para o autor, essa iniciativa fez nascer na Itália um modelo de mídia original, a meio caminho entre o modelo norte-americano e o livro ilustrado, uma vez que os italianos abandonavam os balões de fala em prol da legenda redigida na forma de versos, sob cada quadrinho. Assim, defendiam-se da crítica de que a história em quadrinhos era uma leitura preguiçosa. Seus versos eram quase uma paródia dos versos clássicos, beiravam o kitsch. Os desenhistas escreviam também, o que fazia o texto “conversar” perfeitamente com a imagem: “Em breve, a coerência entre versos e desenhos atinge o nível de um código expressivo elaborado” (COLOMBO, 1997, p. 57, tradução minha). A criação de historietas ilustradas para crianças seria um campo de experimentação e de apuro narrativo para os caricaturistas brasileiros, tanto quanto os italianos. A adaptação de material estrangeiro fazia parte da experimentação. Assim como Buster Brown foi adaptado para o Chiquinho brasileiro, também era adaptado no Corriere dei Piccoli, conforme se vê na Figura 12, apenas refazendo o texto em versos, sem mudar as imagens de Outcault. Cesare Lombroso (1835 – 1909), médico e psiquiatra italiano, adepto da filosofia positivista e proponente de uma associação direta da delinquência com certa regressão atávica a estágios primitivos da humanidade, criou uma doutrina penal que prescrevia pena de morte e prisão perpétua. Paola Lombroso (1871 -1954) foi jornalista e pedagoga, tomando parte com a irmã Gina em periódicos socialistas, sempre tratando de assuntos sobre a infância e a alfabetização. 13 67 Figura 12. Página 13 do número 2 de Corriere dei Piccoli (1909), Itália, em cuja versão Buster Brown é Mimmo e o cão Tige é Medoro. No estilo italiano, a legenda traz dois versos rimados para cada quadrinho. Fonte: facsímile publicado em GADUCCI, F. e STEFANELLI, M. Il Secolo del Corriere dei Piccoli. Milão: Rizzoli, 2008. No mesmo ano de 1908 estreia El Peneca, “semanário ilustrado para niños” criado no Chile. Assim como O Tico-Tico, era iniciativa de um grupo editorial importante, Editorial Zig Zag. Foi dirigida por Enrique Blanchard-Chessi, e saía aos sábados sempre com 16 páginas14. Diferente da revista brasileira, começou impressa apenas em preto com capa e uma página a duas cores, sem anúncios. Seu projeto editorial era totalmente paradidático: poesias, contos, peças de teatro, músicas e lições de história, línguas, desenho, ciências e trabalhos manuais, para que o leitor se destacasse nos estudos. Conforme fazia O Tico-Tico, publicavam também muitas fotografias de crianças na escola ou na família, com seus trajes burgueses. No primeiro número, além da apresentação editorial, publicam uma carta do Presidente da República Pedro Montt e do Ministro de Instrucción Pública. 14 Conforme apresentação no site da Biblioteca Nacional Digital de Chile. Disponível em: http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-printer-3397.html . Acessado em: 07 abril 2020. 68 Segundo a carta, o conhecimento prático, a higiene e a moralidade são as três principais matérias que querem cultivar. Assim, dirigem-se aos pais: “As crianças! Esse encanto da família, que faz as delícias do lugar, terão nosso carinho...” (EL PENECA, 23/11/1908). No primeiro número a única história em quadrinhos é uma sequência moralizadora sobre o hábito do fumo. Um menino é representado fumando o cachimbo do pai, por imitação, e termina se contorcendo de amargor na boca e dor no estômago. Uma nota do editor explica que aqueles desenhos são do famoso artista espanhol Apeles Mestres, e que os pequenos leitores podem admirar nessa e outras páginas que ainda trarão, a qualidade estética do trabalho, assim, começando a formar “su gosto artístico”. No segundo número em diante aparecem historietas ilustradas no modelo francês, com blocos de legendas sob 12 quadrinhos de medidas padrão na mesma página. Na página 8 da edição 163 de El Peneca (1902) é fácil identificar uma historieta copiada da francesa La Jeunesse Illustrée, uma vez que a fórmula é aquela de 16 quadrinhos de igual tamanho e porque um exemplar daquela revista aparece desenhado no quadrinho final15. Assim como O Tico-Tico, El Peneca quase atravessou o século XX. Foi publicada durante 52 anos por várias equipes, tendo Roxanne (Elvira de Rosas) como condutora na década de 1940, auxiliada pelo caricaturista e ilustrador Coré (Mario Silva Ossa) que começou a trabalhar lá em 1932. Esse é o contexto em que Alfredo Storni desenvolve sua obra. Ele era um entre muitos jovens que começavam a fazer da atividade artística um meio de vida, estimulados pelo crescimento da indústria cultural, principalmente seus produtos impressos, cada vez mais desejados pelo público e muito importantes para os projetos políticos e culturais de modernização. Artistas de todo o mundo estavam compartilhando modelos de expressão que mobilizavam o público e o mercado consumidor. Não deixavam, no entanto, de explorar as possibilidades desse meio de expressão localmente. A busca de consagração era um motor para não se acomodarem, e a rotina da produção industrial era o mecanismo do estabelecimento de processos de produtividade e qualidade. Estavam construindo um novo campo artístico, cuja dinâmica seria responsável pela feição que tomariam suas obras. A investigação do campo artístico da caricatura na Capital do Brasil, o Rio de Janeiro, 15 Conforme leitura de fac-símiles na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional de Chile. Disponível em http://www.bibliotecanacionaldigital.gob.cl/visor/BND:593414 . Acesso: 10 nov. 2020. 69 no início do século XX, quando Alfredo Storni fez parte dele, é o assunto do capítulo seguinte. 2. O campo da caricatura Num determinado momento, o artista ocupa uma posição no seu campo profissional e tem diante de si o “espaço dos possíveis”, conforme a teoria de Bourdieu (1996), ou seja, um número de opções finito e condicionado a partir da trajetória que vinha fazendo. Os artistas do mesmo campo compartilham um código de convenções que baliza tais opções. Não há relação automática entre a posição ocupada e a “tomada de posição” que a sucede. Cabe ao artista escolher, dar um lance no jogo, sacrificando alguma coisa para ganhar outra. Esses lances são novas obras, e podem ser também manifestos, discursos, investidas, alianças e outras medidas estratégicas. No início da carreira, o leque de opções é mais amplo. Na medida em que “progride” e “envelhece”, excluem-se certas opções e o fechamento do leque é irreversível. A trajetória dos artistas é singular, irreproduzível. Bourdieu (1996) aconselha estudar tal trajetória a partir do princípio, e não do fim, como fazem os analistas que acreditam que a obra já consolidada determina a carreira retroativamente. Assim, ganha significado um desenho publicado na revista ilustrada O Malho, em 29 de dezembro de 1906, última edição do ano (ver Figura 13). 71 Figura 13. Ilustração na página 18 da revista O Malho n. 224 (1906). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Nesse momento, Alfredo Storni, com 25 anos, vivia no Rio Grande do Sul, sua terra natal, e mandava colaborações para o semanário satírico da Capital Federal, que o festejava como “correspondente gaúcho” da revista (na mesma edição, quatro outras charges de Storni foram publicadas). Às vésperas do ano de 1907, Storni fazia planos de se mudar para o Rio de Janeiro, caso tivesse trabalho suficiente para se sustentar como caricaturista. O “cartão de natal” feito na forma de autocaricatura precisa ser interpretado como um apelo para que a direção da revista “assuma a relação” e o contrate em definitivo. De fato, é possível que o acerto já estivesse apalavrado, e o cartão ganha significado também de um agradecimento antecipado à direção. Dentro da gramática combinatória da arte da 72 caricatura, Storni compôs uma ilustração com signos que denotam o que se afirmou acima. A figura humana que, em cima do galho de uma árvore, acena, foi representada com os signos que evocam o personagem “gaúcho”: chapéu, lenço no pescoço, bombachas e botas. Não é qualquer homem gaúcho, no entanto: na mão esquerda ele leva um instrumento de desenho. O cartão é assinado “Felicitações do correspondente Alfredo Storni, R. Grande do Sul”. Não há dúvida de que o homem é o próprio artista. Interessante a modéstia com que ele se representou, de costas, sem mostrar o rosto. Ao caricaturista não interessa aparecer caricaturado, em geral, assim como o jornalista evita se transformar em notícia. Há um motivo adicional para o homem estar de costas. O personagem de costas estabelece um ponto de vista em que o leitor é levado a dar importância para os signos que o personagem vê. O foco da composição passa a ser o horizonte, deliberadamente observado pelo personagem, que se posicionou no alto da árvore. No horizonte é fácil de ver o sol nascente, que é o ano de 1907, e o logotipo da revista O Malho. Um pouco mais difícil de ver é que tem uma cidade grande no horizonte, embaixo de O Malho. É apenas uma silhueta em preto, mas nota-se que a cidade tem prédios altos e morros que evocam o Pão-de-açúcar e o Morro da Urca. Dispensando uma legenda, a cidade é identificada como o Rio de Janeiro, sede da revista. Cômica e infantilmente, o homem sobe no galho de árvore mais alto que consegue, porque precisa enxergar muito longe no horizonte. Estando no Rio Grande do Sul, precisa de um ponto de observação muito alto para enxergar a cidade do Rio de Janeiro. Acrescente-se que ele observa o recorte do litoral brasileiro, e não o interior do país, confirmando a interpretação. Com sutileza, manobrando apenas os signos do desenho caricato, Storni está afirmando que seus desejos para 1907 são a cidade do Rio de Janeiro e a redação de O Malho. Todos estão no seu horizonte, ao fim de 1906. O homem acena para a revista, como quem agradece os bons momentos passados e quer ser lembrado no futuro. De fato, Storni vinha publicando um número cada vez maior de desenhos na revista, e o ano de 1907 é aquele em que é contratado e muda-se para o Rio. Sob contrato, um ano depois, ele começa a desenhar também em O Tico-Tico, da mesma empresa, e cria o Zé Macaco. O cartão de felicitações de Storni a O Malho evoca a estrutura do campo da caricatura. Nesse desenho, ele se coloca como jovem profissional, aspirante a uma 73 posição melhor no campo, no qual já tem investido um bocado. O jovem da periferia nacional só não tem certeza se investiu o suficiente: somente o convite dos editores da revista da Capital poderia confirmar isso. Assim, convém expressar modéstia! Bourdieu teria gostado de ver essa ilustração como se fosse um instantâneo das lutas e tomadas de posição descritas na sua teoria dos campos artístico e literário (BOURDIEU, 1996). O jovem Storni estava desenvolvendo sua obra dentro do também jovem campo da caricatura brasileira, conforme fazia opções em relação às oportunidades que se apresentavam. Desenvolvia sua obra em forma e em conteúdo, tanto em técnica de desenho quanto na escolha de alvos e na técnica narrativa. Bourdieu, com a teoria do campo, faz uma composição entre teorias que privilegiam o fator imponderável da criatividade humana e teorias que formulam estruturas determinantes dessa produção. Ele rejeita o determinismo por fatores externos ou abstratos; afirma que são os agentes que produzem as transformações no campo, relacionando-se entre si. No entanto, seriam mitos a independência total do artista e o gênio original, o criador “não-criado” por coisa alguma. Todo membro de um campo está sujeito à estrutura do campo e produz sua obra conforme vai se movimentando nessa estrutura que, inclusive, se modifica historicamente como resultado de suas lutas e tensões. Voltando ao caso de Storni, sua obra, construída semana após semana, na imprensa ilustrada, não estava determinada desde o início, não era um plano original e nem emanava diretamente da individualidade do autor. Apenas em análise retrospectiva podemos criar uma narrativa que enxerga, desde o início, o fim da trajetória. Bourdieu recomenda que o pesquisador faça o caminho inverso, e acompanhe a trajetória do artista a partir do início, anotando as sucessivas tomadas de posição e compreendendo as sucessivas encruzilhadas implicadas. No início, Storni tinha tido experiências com a imprensa satírica em seu Estado. Teve desenho publicado pela primeira vez no semanário ilustrado O Bisturi, em 1889 (8 anos de idade), e criou uma revista própria em 1904 (23 anos), O Gafanhoto (LIMA, 1963). Porém, se ele almejava posições de maior prestígio e melhor recompensa, precisava trabalhar na Capital Federal. Essa era a estrutura do campo da caricatura em sua época. Ele entendia a “regra do jogo”, pactuava com ela, sabia que essas eram as condições. Suas opções passam a ser trabalhar para um dos diversos periódicos com sede no Rio de Janeiro. Precisa optar por alguns deles, e produzir arte que aqueles editores considerem valiosa. A partir daí, não pode 74 desenhar livremente; o que ele desenha passa a ser condicionado pelos critérios do editor que deseja conquistar. No caso de O Malho, Storni descobre um caminho para ultrapassar a barreira. Oferece uma caricatura de Pinheiro Machado, político gaúcho que era um dos mais fortes da República, na época. Ele foi representado à galope, no cavalo, enquanto laçava uma figura alegórica da “opinião pública” (ver Figura 17, p.108). Foi a primeira colaboração aprovada e publicada no número 190 (1906). Supostamente, o fato de ser um caricaturista político vivendo no Rio Grande do Sul interessava ao editor de O Malho como uma dose de tempero regional à receita da revista. Assim, Storni, tendo dado seu lance, ganha essa aposta e assume uma posição nova no campo: ele é o “colaborador de O Malho no Rio Grande do Sul”. Sua obra, a partir desse lance, toma novo rumo. Algumas opções são perdidas; outras surgem. Storni volta a oferecer charges de políticos gaúchos, pois são aquelas que O Malho aprova. Também manda e consegue publicar desenhos sobre o tipo gaúcho. Eventualmente publica uma charge crítica aos hábitos políticos republicanos. O que ele não pode fazer, nessa posição, é, por exemplo, desenhar historietas infantis, nem piadas sobre a elite. Ele precisa continuar a fornecer charges com caricaturas bem-feitas de políticos do regime. É esse tipo de obra que encontra aprovação. O que Storni produz, nesse momento da carreira, precisa ser “mais do mesmo”. Ele não tem capital suficiente para recusar essa posição e tentar outro lance. O importante é que, por reforço, sua arte vai se desenvolvendo no sentido de torná-lo um expoente na área da charge política, e somente nela. Aí está, no exemplo do nosso objeto, como a obra é produzida pelo artista, mas se condiciona pela estrutura do campo. Algumas tarefas são necessárias antes de formular conclusões sobre a arte de Alfredo Storni. Antes de mapear sua trajetória, é preciso mapear o próprio campo onde ele se movimentou. Por sua vez, o campo dos caricaturistas precisa ser descrito a partir do entendimento do campo literário da mesma época, com o qual se relacionava. Os pesquisadores e cronistas auxiliam na enumeração dos principais caricaturistas na época de Storni. O estudo das carreiras deles ajuda a delinear o mapa do campo. Um quadro analítico dos principais caricaturistas ajuda a encontrar as relações de colaboração artística e de competição por postos de trabalho com Storni. E os relatos que os próprios caricaturistas faziam sobre si e sobre os colegas também forneceram dados para mapear o campo. 75 2.1. “Encantadora, a festa da arte”: o Rio de Janeiro no início do séc. XX Luiz Edmundo (1878 – 1961), jornalista e escritor, reúne, para um sarau em sua residência, “um pequeno grupo seleto de senhoras e senhoritas, poetas, literatos, caricaturistas, pintores, musicistas, escultores, etc” e a revista O Malho faz a reportagem, no tom de coluna social (O MALHO, nº213, 13/10/1906). Durante o encontro, em homenagem a um “fidalgo escultor” chamado Corrêa Lima, poetas recitam, músicos tocam e desenhistas da imprensa “de fusain em punho, traçam à la diable magníficas caricaturas”, entre uma rodada e outra de chopp ou groselha. O curioso salão era decorado com caricaturas (ver Figura 14) que, depois, foram oferecidas aos convidados. Figura 14. Fotografia na página 18 do nº 213 de O Malho (1906). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. O escritor Viriato Corrêa estava presente, ao lado de vários artistas do traço: Raul Pederneiras, Calixto, J. Carlos, Amaro Amaral, Leônidas e Thoreau, todos artistas de O Malho. Alfredo Storni não poderia estar. Ele ainda vivia no Rio Grande do Sul. Raul, a alma da festa, além de caricaturar, também contava piadas e fazia imitações de atores e acadêmicos. 76 No início do século XX, o grupo dos caricaturistas era muito próximo dos literatos e cronistas. Personalidades como Luiz Edmundo e Bastos Tigre fortaleciam os elos entre todos os artistas que difundiam suas produções pela Imprensa. Os campos literário e da caricatura tinham semelhanças, com a diferença principal sendo o tipo de relação que tinham com aquele meio de comunicação. Os literatos partiram de uma posição em que, em geral, não podiam “viver de arte” e publicavam na imprensa sem remuneração, mas tinham liberdade criativa, com prestígio por seu valor artístico, para uma virada de século (XIX para XX) em que eram lidos por muito mais pessoas e eram remunerados na medida em que assumiam posições mais comerciais e mais alinhadas com o gosto burguês no mercado editorial e de espetáculos. Ainda assim, mantinham o prestígio artístico por meio da institucionalização do campo, com a fundação da Academia Brasileira de Letras (1897). Por sua vez, os caricaturistas, desde o início, eram remunerados pelo mercado editorial, e tinham sua arte desenvolvida e condicionada por ele. Podiam “viver da arte”, ainda que perseguissem empregos mais estáveis. Eram famosos e eram convidados a encantadoras festas de alta classe. No entanto, nunca angariaram o mesmo respeito que os literatos tiveram. Continuaram fora das instituições distribuidoras de prestígio artístico, sob “suspeição social”, taxados de artistas menores, não por falta de técnica (Raul Pederneiras era professor na Escola de Belas Artes), mas por se dedicarem ao humorismo (AZEVEDO, 2019; BALABAN, 2003; EL FAR; SALIBA, 2002; SICILIANO, 2014). Luiz Edmundo, em seu livro O Rio de Janeiro do meu tempo, detalhada crônica sobre o início do século XX, publicado em 1938, descreveu a cena cultural e os costumes da época, reforçando-a com anedotas sobre as principais personalidades da Capital Federal. Dedica vários capítulos a duas cenas: a dos jornais diários e a dos cafés e confeitarias, onde palestravam poetas, jornalistas, estudantes de nível superior, políticos e, também, caricaturistas. Alfredo Storni é mencionado por Luiz Edmundo como um dos caricaturistas que frequentavam o Café Paris, no Largo da Carioca: “[...] Gil, Vasco Lima, Lobão, Arnaldo Gonçalves, Cândido, Albert Thoreau, J. Arthur e Storni” (EDMUNDO, 1987, p. 220). O Café Paris não era o mais bem recomendado deles. Luiz Edmundo esclarece desde o início que, entre os cafés, essa casa tinha uma instalação “chué”, acanhada, com os assentos poídos, e que atendia principalmente à “freguesia barata de mingau e de médias, de poucas xícaras de café e muitos copos d’água” (ibidem). 77 Diferentemente, os caricaturistas da turma de Raul Pederneiras, Calixto Cordeiro, irmãos Crispim e Amaro Amaral e outros se encontrava no Café Papagaio, na Rua Gonçalves Dias, no mesmo quarteirão do café mais “chic”, que era o Café do Rio. Um trecho nos ajuda a imaginar a relação do círculo social boêmio com a atividade dos caricaturistas: É dessa roda que nascem: O Mercúrio, o Tagarela, o Avança e O Malho, este último ainda hoje cheio de vida e de saúde. Vezes emendam-se duas ou três mesas, à tarde, ou à noite, para horas e horas de cavaco. No Papagaio é que se forjicam, entre dois dedos de palestra, um café e um maço de cigarros (como se fuma nesse tempo!), as legendas que no dia seguinte hão de completar os bonecos que surgem nos jornais e nas revistas de melhor nome (idem, p. 206). Por sua vez, os poetas de maior fama, como Olavo Bilac, Emílio de Menezes e Guimarães Passos se reuniam na Confeitaria Colombo, na mesma Rua Gonçalves Dias. Os jovens poetas Bastos Tigre e Martins Fontes, entre outros, eram aceitos no círculo. Julião Machado, influente e respeitado caricaturista português, um pouco mais velho do que os desenhistas já citados, circulava nesse meio. Ou seja, o rank dos cafés do centro do Rio de Janeiro estabelecia uma hierarquia entre os grupos de artistas locais. Ou, como observou Bourdieu (1996) na obra de Flaubert, o espaço estruturado e hierarquizado é usado para evocar as posições e os deslocamentos sociais. Em crônicas que relembravam a cena cultural do início do século XX, Bastos Tigre, notabilizado por emprestar sua habilidade poética para a nascente indústria dos “reclames”, é capaz de retratar como se estruturava o campo literário. O próprio autor representa uma das típicas posições na hierarquia. Mandado pela família a estudar engenharia no Rio de Janeiro, foi introduzido por Emílio de Menezes na roda da Colombo, e desenvolveu lá seu talento para as letras. Também para Bastos Tigre, o meio cultural era um pequeno território pontilhado de cafés e confeitarias na Rua do Ouvidor e um trecho da Rua Gonçalves Dias: “Daí em diante, começava o sertão” (TIGRE, 2003, p. 55). Os artistas se acomodavam por lá, à tarde, e, entre um aperitivo e outro, se dividiam entre a política e a boêmia. Pensavam, debatiam, projetavam novas revistas de arte, jornais “de combate”, novos livros... mas raramente os realizavam. A criatividade literária era fruída apenas pelos que os ouviam à mesa, e se manifestava preferencialmente em “intermináveis palestras salpicadas de ditos de espírito, de sátiras e trocadilhos, perfídias com os mandões 78 da época, notabilidades efêmeras de quem, já hoje, ninguém recorda o nome” (idem). O mais notável do gênero era Emílio de Menezes, filho de família abastada do Paraná, mandado para o Rio de Janeiro com fortuna, perdida rapidamente em jogadas na Bolsa de Valores. Um amigo jornalista o introduziu nas rodas literárias, onde conquistou espaço tanto pelos versos quanto pela personalidade. Logo suas tiradas (ou boutades) eram repetidas, por graça, nos cafés, livrarias e barbearias. Até mesmo piadas lidas nas revistas estrangeiras acabavam sendo atribuídas a Emílio. Esse tipo de humor exigia conhecimento extenso de mais de um idioma. Era aprendido nas revistas francesas da época, repletas de jogos de palavras, disparates, oxímoros, calembures16 e trocadilhos. Não podia nunca deixar passar a oportunidade da piada. Não eram frases lançadas exatamente para magoar, mas para atacar a ignorância, num tipo de frívola cruzada civilizatória. Olavo Bilac também apreciava esse jogo, assim como o caricaturista Raul Pederneiras, capaz de produzir surpreendentes legendas para suas charges. Políticos, burocratas e empresários costumavam frequentar a Colombo para “gozar a palestra faiscante de Bilac e a verve cáustica de Emílio”. Eram “turistas da República das Letras: a visitavam e, como de justiça, pagavam as despesas” (TIGRE, 2003, p. 69). Os literatos emprestavam graça e cosmopolitismo à elite da capital. Os artistas, no entanto, nunca tinham dinheiro. Emílio de Menezes era um adepto da prática da “dentada”, na qual se emprega um discurso envolvente para pedir dinheiro emprestado aos conhecidos, a perder de vista. É que, apesar da fama, os escritores não eram pagos para publicar em jornais e revistas. Contentavam-se com a divulgação de seu nome. As companhias editoras, no máximo, os pagavam com alguns exemplares dos livros ou uma única parcela de direitos autorais para todo o sempre. Olavo Bilac, entre os escritores, era um dos que obtinha mais renda do seu trabalho, além de ter um emprego estável como inspetor escolar. O livreiro Francisco Alves encomendava-lhe livros didáticos, que vendiam mais do que a literatura. Ainda assim, o poeta lamentava que lia-se pouco no país, e só pelos jornais podia difundir um pouco mais sua arte. Ele tentou organizar uma sociedade para defender os interesses os escritores, mas não foi para frente. Com a criação da 16 Oxímoro é figura de linguagem em que se justapõem palavras contraditórias, criando paradoxos; calembure, do francês calembour, é um outro nome para trocadilho, muito usado pelos artistas citados. Novo Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 79 empresa O Malho, dirigida por Luiz Bartolomeu de Souza e Silva (1864 – 1932), inaugurou-se uma prática mais responsável, com o pagamento dos colaboradores, tanto desenhistas quanto escritores (Olavo Bilac, Guimarães Passos e Emílio de Menezes inclusive) (TIGRE, 2003, p. 132 – 133). Essas crônicas e análises auxiliam a desenvolver uma noção do que foi o campo literário da Capital do Brasil, no início do século XX. Bourdieu (1996) teoriza que um campo literário, bem como qualquer tipo de campo da sociedade, tem todas as características de um campo de luta política ou econômica: “relações de força, capital, estratégias, interesses”. São, porém, manifestadas nas formas próprias ao campo. Fundamentalmente, num campo, os participantes disputam posições numa estrutura hierarquizada, pois ocupá-las é receber prêmios e, sob condições, aumentar seu capital. O estabelecimento da natureza dos prêmios e das condições do aumento de capital está sempre em disputa, uma vez que os novos integrantes têm interesse em mudar e desenvolver as regras do jogo, enquanto os mais velhos e bem estabelecidos hierarquicamente lutam para não mudá-las e, principalmente, para controlar o acesso ao campo. Bourdieu (1996) também afirma que o campo literário é um campo dominado, ou seja, seus movimentos ainda são muito dependentes da ordem dos campos político e econômico. Assim, os integrantes com capital político e financeiro lutam, em condições privilegiadas, com os integrantes mais radicais e sem renda, pelos princípios regentes do campo. Na prática, o campo literário viveu a disputa entre os que faziam “arte burguesa”, agradável à elite e fácil de ser remunerada, e os partidários da “arte pela arte”, com valores autônomos, sem lugar no mercado, mas capazes de propiciar saltos na hierarquia, pelo alto valor artístico de uma obra eventual, dado por princípios de legitimação do próprio campo (o reconhecimento dos pares). Na prática, passar fome, viver de expedientes ou de empregos paralelos é uma estratégia de “desinteresse” que troca o valor econômico pelo valor “carismático”. Consiste em permanecer como vanguarda, sem renda suficiente, o tempo necessário para ter acesso a “lucros” em capital simbólico, convertível, posteriormente, em capital financeiro. Para André Nunes de Azevedo (2019), cada membro daquele campo literário sofria o dilema dessa luta dentro de si, como se existissem dois “martelos” constantemente batendo em cada lado de suas cabeças: de um lado, pressão para agradar à ordem política e econômica da jovem República, usufruindo da 80 legitimação (via instituição da ABL), da boa fama (via Imprensa) e de alguma renda; de outro lado, pressão existencial para que sua obra fosse uma contribuição à arte, com idealismo e autonomia. Os que se inclinaram para o primeiro lado partiram de uma posição em que viviam um desregramento boêmio e chegaram a outra, de formalismo “academicista” e imitador de franceses que emprestava glamour à alta sociedade. Por sua vez, esta os suportava com empregos na burocracia estatal ou nos grandes periódicos, e os mimava com encontros chics em salões privados ou na Academia (AZEVEDO, 2019). As posições se hierarquizavam desde baixo, com os estudantes aspirantes a poeta, sustentados pela família, passando pelos escritores que tinham empregos na burocracia ou no magistério, até os que tinham empregos na Imprensa e os que gozavam de prestígio e grande público, capazes de receber uma boa renda por suas obras. As estratégias eram fundamentalmente de duas naturezas: escrever o que não desafiava a ordem social e agradava à burguesia que o sustentava, ou escrever obras que seriam valorizadas pelos pares, apesar de não “terem mercado” em seu tempo. Cada um adentrava o campo já com “trunfos” e “handicaps” relacionados com sua origem familiar, racial e social (MICELI, 1977). A cada tomada de posição, o artista precisava optar entre duas alternativas inconciliáveis, herdadas de um passado de disputas. São justamente essas decisões que vão, com o tempo, modelando a obra que o artista lega à posteridade (BOURDIEU, 1996). 2.2. Na oficina e nO Malho, o habitus do caricaturista O campo da caricatura do início do século XX no Rio de Janeiro, sendo um campo artístico, tinha semelhanças com o campo literário descrito acima. Mais do que isso, eram campos entrelaçados, com membros dos dois campos dividindo os espaços de convivência – como os cafés e teatros – e sendo colegas de trabalho eventuais na Imprensa. Isso acontecia quando os escritores se dedicavam a textos de humor e sátira. Além disso, não era incomum um caricaturista tentar a sorte como autor teatral de comédias ligeiras. E, se considerarmos os livros ilustrados para crianças como literatura (o que, aos olhos de hoje, é muito justo), vários dos caricaturistas de O Tico-Tico foram autores muito atuantes no mercado editorial. É possível pesquisar como os caricaturistas, responsáveis, muitas vezes, pelos textos 81 das legendas de suas charges e histórias, compartilhavam matrizes artísticas com seus colegas, escritores que colaboravam na Imprensa. Um entusiasta da colaboração entre humoristas das penas e dos lápis, o poeta e redator de “reclames” Bastos Tigre, citado acima, começou em 1917 a editar o semanário satírico D. Quixote, convocando boa parte dos caricaturistas da época, tais como Julião Machado, Raul Pederneiras, K.Lixto, Helios Seelinger, Romano, Yantok e o nosso Alfredo Storni, para colaborarem ao lado de Emílio de Menezes, Humberto de Campos e o próprio Bastos Tigre, que assinava ali como Dom Xiquote. A edição de 25 de dezembro de 1918, inclusive, foi dedicada aos caricaturistas. Bastos Tigre compôs poemas cômicos saudando cada um dos caricaturistas amigos, na seção “Os Pinta-monos”, e convidou os maiores deles a redigirem suas “autocalungografias”, que eram textos biográficos de tom jocoso combinados com autocaricaturas. Essa edição natalina de D. Quixote é rica em dados sobre o campo da caricatura nessa época e foi referenciada em mais de uma pesquisa. No entanto, revela, sobre a vida dos caricaturistas, mais pelo que eles evitam dizer do que pelo que dizem. Carreando piadas e trocadilhos sobre suas trajetórias, “desde a infância” brincando de desenhar e fazendo graça, eles mais escondem do que exibem, com um tipo de modéstia que pode ser interpretada como estilo de época mas também como uma estratégia de sobrevivência no campo. Como exemplo da distância entre a posição do artista no campo e a posição que o artista admite ocupar, o aclamado Julião Machado (citado acima como frequentador da Confeitaria Colombo), em seu texto publicado, mal consegue ver importância em sua trajetória e diz que só escreveu alguns parágrafos porque é uma pessoa obediente e nunca negaria uma ordem do editor. J.Carlos, já considerado um expoente do desenho em nível internacional na época, escreve naquela edição que, “a contragosto” revelaria seu início. Conta que, jovenzinho, bateu à porta da “Glória” para mostrar seus desenhos, mas a “senhora” o mandou esperar sentado no primeiro degrau da escada. Para nossa surpresa, conclui que vinte anos depois, ele ainda continuava lá sentado. Por sua vez, Yantok publica um texto absolutamente anárquico e fantasioso no lugar de contar como é sua rotina de trabalho. Infelizmente, Alfredo Storni não tem um texto autobiográfico nessa edição. Nem mesmo ganha um poeminha cômico como os outros. 82 Enquanto o estudo do campo literário pode se debruçar sobre volumoso material escrito por e sobre os escritores desse período, o campo dos caricaturistas não oferece tantas biografias, autobiografias, homenagens, críticas e diários. No entanto, é o material publicado na imprensa da época que forneceu dados para a descrição do campo da caricatura neste trabalho. No trabalho de interpretação, é preciso levar em conta que essas informações biográficas são produto do próprio campo artístico e são atravessadas pelas estratégias do momento, em meio às mal iluminadas lutas do campo, tanto internas (por posições) quanto externas (em defesa da legitimidade do campo como um todo). Sobre o método de abordagem desses dados biográficos, o sociólogo Sérgio Miceli (1977), quando estudou a geração de escritores brasileiros do início do século XX que precederam a ruptura modernista, fundamentou-se na teoria de Bourdieu. Selecionou, para estudo, apenas aqueles literatos dos quais havia biografias e memórias. Apesar de isso parecer uma decisão discriminatória, segundo ele, se justifica, porque as biografias são parte do “aparelho de consagração” social, apontando aqueles autores que tiveram maior evidência. As memórias são recurso dos autores menores, que não foram consagrados com biografias e tiveram que “fazer o serviço” por si mesmos. Por sua vez, os grandes autores só tecem memórias de infância, as quais têm maior potencial estético, para compor sua obra. No estudo de Miceli contribuíram mais memórias do que biografias. Faz sentido, pois, segundo ele, convém salientar que esses dois tipos de fontes fornecem informações diferentes. Se a celebração biográfica é uma maneira de reconstituir vidas exemplares num registro apologético, dissimulando-se os mecanismos reais que regem as trajetórias sociais e intelectuais, os memorialistas, por sua vez, não escondem o jogo de que participam, pois sua própria situação lhes faz enxergar melhor os móveis da luta de cujas gratificações mais importantes se veem excluídos (MICELI, 1977, p. 17). No caso do campo dos caricaturistas, as biografias são livros relativamente recentes, exceto o grande compêndio de Herman Lima, contemporâneo deles, e o do cartunista Álvarus, contemporâneo de alguns. Várias entrevistas e relatos pessoais estão espalhados pelas publicações em que os artistas trabalharam. Infelizmente, não tendo autobiografias, diários conhecidos, nem entrevistas transcritas por inteiro, as informações sobre Alfredo Storni são dados de segunda mão. Para começar a descrição do que era o campo da caricatura em que a obra de 83 Storni se desenvolveu, foi escolhido um ponto de partida heterodoxo: as memórias do cartunista Álvaro Marins, mais conhecido como Seth. Álvaro Marins, dez anos mais jovem do que Alfredo Storni, foi um caricaturista bem-sucedido, no sentido de ter vivido sempre de seu trabalho como artista. Desenhou muito para publicidade e se aventurou em desenhos animados. Assim como Storni, nasceu fora do Rio de Janeiro e migrou para ter condições de realizar seus planos. A julgar pelos fatos narrados, era próximo a Storni, o qual conheceu quando trabalhou na redação de O Malho. Aos 56 anos de idade, publicou suas memórias no Suplemento de Ciências, Artes e Letras da Gazeta de Notícias, ao longo de 1947 (disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional). Chamou-as de Viagem de um artista em torno de si mesmo. Um detalhado resumo dessas memórias pode ser lido na tese de doutorado em História de Lúcio Picanço Muruci (PUC-Rio), defendida em 2006. O relato de Álvaro Marins é todo centrado nos movimentos da carreira e suas mutações artísticas, o que ilumina o “campo dos possíveis” para que o pesquisador, hoje, possa investigar a trajetória de qualquer dos caricaturistas daquela época. Além disso, descreve a rotina do seu ofício, o que nos ajuda a flagrar o mecanismo do habitus,17 conforme a teoria de Bourdieu (1996), configurando a estrutura do campo. Esses dados são confirmados pelo estudo das biografias e relatos de artistas que conviveram com ele. Nasceu em Macaé, interior do Estado do Rio de Janeiro, em 1891, tendo se mudado para Campos, uma cidade maior, aos 14 anos. Ainda vivendo no interior de fortes características rurais, Marins conseguiu publicar uma colaboração em O Malho, em 1906, com o pseudônimo de Junqueira. Não era bom que a família soubesse que ele pretendia trabalhar como artista. Aos 17, com verba da família, vai para o Rio de Janeiro. Seu plano, naquele momento, era se empregar na Capital como farmacêutico – o que agradava à família – e, nas horas vagas, tentar entrar no ramo da caricatura. Ele escreve que era tímido mas, para alcançar seus objetivos, comportava-se com determinação e arrojo, falando pessoalmente com homens “de alta importância” na política e nas artes. Seus sábados eram usados para ser 17 Conceito fundamental na teoria de Bourdieu, leva em conta que grupos sociais, ao longo do tempo, na repetição de suas atividades, reproduzem a estrutura que os organiza. Habitus seria um “sistema de disposições inconscientes que constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas” em que se encaixam suas rotinas, modos de fazer, modos de pensar e expectativas (BOURDIEU, 2015 b, p.201-202). 84 introduzido nos “meios artísticos da imprensa carioca”. Visitou Julião Machado, tendo um desenho seu corrigido, e muitos outros. O Rio era, segundo Marins, “a terra da promissão” de seus sonhos, onde se sentia “dentro de um mundo de maravilha”, onde chamavam atenção os novos edifícios, o asfalto liso, os automóveis e os bondes elétricos. A Capital não só concentrava as pessoas que interessava conhecer, mas também proporcionava relações com a materialidade moderna. Sendo 10 anos mais jovem do que a geração de Storni, Álvaro Marins vinha sendo leitor das revistas nas quais iria trabalhar, aprendendo desde cedo os critérios e padrões editoriais dos semanários de humor. Educava-se nas “convenções” que, segundo Howard S. Becker (1977), são fundamento da “ação coletiva” que caracteriza a produção de arte. Nas memórias, ele exalta O Malho como responsável por estabelecer de vez o gosto do público pela caricatura. Ele conta de duas grandes fases: a primeira, fundadora, com Crispim do Amaral, Raul e K.Lixto, além de Angelo Agostini; a segunda, que lançou e firmou muitos nomes, foi a de J. Ramos Lobão (suas elaboradas capas marcaram época), Leônidas (desenhava com muita personalidade), J. Carlos (o príncipe dos caricaturistas), Storni (especializado em charge política), Vasco Lima, Aryosto Duncan, Luís Loureiro, Augusto Rocha e outros. Admirava aqueles que, além de desenhar, escreviam. Inicialmente, adotou o pseudônimo de Guido e, com ele, deve ter recebido o primeiro pagamento como desenhista, em O Tico-Tico. Só largou o emprego numa farmácia de Copacabana quando foi contratado pelo O Malho, mas era para ajudar na oficina litográfica: 200 mil réis por mês, copiando ilustrações de jornais franceses no papel pelure (especial para litografia). Faziam um time de litógrafos Guido, Yantok e Vasco Lima. Segundo ele, era trabalho “de artífice”, mas todos os artistas da casa “eram obrigados a fazê-lo”, em se tratando do colorido de suas próprias ilustrações para O Tico-Tico. Essa foi a “primeira etapa” de suas “aspirações de artista”. A mesma função introduzira o artista Loureiro naquela empresa. O relato conta que até os mais ilustres trabalhavam sem luxo. No terceiro andar do prédio, numa pequena sala, aglomeravam-se J. Ramos Lobão, Storni, Leônidas, Aryosto e Loureiro. O espaço, mais uma vez, estruturava a hierarquia. Os três mais novos ficavam na oficina abaixo, mas podiam fazer os próprios desenhos eventualmente. Durante o trabalho, trocavam piadas e filosofias. Certa 85 hora, todos se reuniam na sala de cima, para conversar. Saboreavam e estudavam as revistas de humor que acabavam de chegar da Europa, cujos ilustradores se estabeleciam como matrizes para o trabalho dos brasileiros. Havia os mais piadistas e havia os muito quietos, como J. Ramos Lobão, com o rosto colado ao papel, concentrado em seus desenhos e aquarelas meticulosos. Aryosto Duncan, simpático, sempre dizia que o lugar de Guido na empresa era entre os caricaturistas. Aí se expressa o habitus do caricaturista de início do século, aprendido na repetição das tarefas em grupo, quando o novo reproduz o que faz o velho. Marins, o Guido, confirma o que é relatado por Loureiro e outras fontes: na revista O Malho, a charge política tinha lado: o lado do patrão. Na campanha eleitoral para a Presidência da República em 1909, notória por ter oposto os candidatos Rui Barbosa e General Hermes da Fonseca, O Malho só descia em Rui Barbosa, acusado de inflamar o povo irresponsavelmente. Isso aconteceu porque a empresa tinha como sócio o Senador Antônio Azeredo (jornalista e político matogrossense), e este, passando procuração ao diretor Luiz Bartolomeu de Sousa e Silva, mandava apoiar a candidatura Hermes. Para os caricaturistas, receber os bilhetes de Bartolomeu com as charges já escritas era como “aviar receita” na farmácia. Álvaro Marins lembra que seu pessoal em Macaé não o perdoava por isso. Muitas vezes, as ideias de charges pedidas pelo patrão não faziam sentido, eram impossíveis de desenhar, e os caricaturistas se perguntavam se isso acontecia também nas revistas europeias. Queriam liberdade artística. Assim, o jovem Marins partiu para uma aventura com seu colega da oficina litográfica Vasco Lima: fazer o próprio semanário de humor, chamado O Gato. Não foi a única vez em que um caricaturista “traiu” o patrão com uma publicação concorrente, conforme se vê várias vezes nos relatos deles. O Gato foi feito às escondidas. Começou com o título de Álbum de Caricaturas de Seth e Hugo Leal (1911). Nesse ponto do relato, observamos o que Bourdieu quer dizer quando adverte que o campo artístico é um campo bastante dependente, e decisões “heterônomas” dos campos econômico e político implicam na conformação dos artistas. Suas obras são forçadas a responder aos movimentos externos ao campo artístico ou colaborando ou se rebelando. A decisão é tomada com a consciência da posição que cada artista ocupa no campo. É mais provável que um artista jovem opte por se rebelar, o que é um investimento pequeno para ele, do que um artista estabelecido, 86 que tem mais a perder. Alfredo Storni fez as charges contra Rui Barbosa que foram mandadas e evitou sair da empresa. Marins ficou lá até sua “traição” ser descoberta. Vasco Lima, no entanto, saiu logo. Vasco Lima (ou Hugo Leal), de origem portuguesa, tinha “tino comercial”. Conseguia crédito e apoio para publicar. Além disso, dominava todas as técnicas do setor editorial. Chamou o jornalista, político e fundador da ABL Alcindo Guanabara para ser redator final de O Gato. A revista foi um sucesso “de crítica”. Conforme as memórias, vendeu para a elite intelectual, tinha leitores fiéis, mas não ficou popular. O Gato atacava o eleito Hermes da Fonseca e o homem-forte Pinheiro Machado. Ridicularizava a ordem burguesa. Propagava o ideário socialista. Álvaro Marins abandonou o pseudônimo Guido, mudou seu estilo de desenho e adotou o pseudônimo Seth, com o qual ficou mais conhecido. A escolha do nome seguiu as matrizes francesas, pois já havia outros desenhistas com nomes curtos tirados da Bíblia, como Cham e Sem. O esforço individual para realizar o semanário era extremo e não recompensou os artistas que faziam quase tudo sozinhos. Em suas memórias, Seth avalia essa fase da caricatura como romântica e juvenil, muitas vezes feroz e excessiva, mas justificada pelo calor das disputas políticas. Retrospectivamente, expressando-se aos 56 anos, lamenta a “incontinência da linguagem jornalística” e se diz a favor da liberdade, mas com responsabilidade. Quando publica as memórias, o país havia saído há dois anos do regime fechado do Estado Novo. Além disso, Seth desenvolveu a maior parte da sua carreira longe da arte radical. Após o fim de O Gato, ele e Hugo Leal se empregam no jornal A Noite. Seth começou a trabalhar como ilustrador. No ano de 1913 participa de várias publicações de colegas, como A Caricatura, de Renato de Castro (redator de O Tico-Tico) e Figuras e Figurões, de Amaro Amaral. Desenhou também para a revista Fon-Fon. Casou-se quando foi efetivado no jornal A Noite e acabou trabalhando lá até se aposentar. Seth diz que gostava do ambiente da redação e tem lembranças boas do patrão Irineu Marinho. Conformados ou rebeldes, todos os caricaturistas sofriam com o fechamento do regime. Em 1910 o Presidente Hermes da Fonseca decreta estado de sítio. Amaro Amaral é preso; J. Carlos foge para São Paulo; Seth pega dinheiro emprestado com Leônidas e Aryosto e foge para Macaé. Yantok publica da edição 433 de O Malho uma autocaricatura que demonstra, jocosamente, sua estratégia: durante o estado de 87 sítio, o caricaturista se comporta como se fosse um santo! Yantok distribui pelo desenho signos que nos informam de quão quieto ele pretende ficar, e toda a cena evoca as ilustrações que os monges copistas da Idade Média costumavam fazer dos santos escritores. No desenho, Yantok possui também uma auréola! Anos depois, na presidência de Artur Bernardes, em 1924, baixa-se estado de sítio novamente. Seth havia feito charges contra o presidente na revista D. Quixote, e a repressão empastelou o atelier que o caricaturista já mantinha, na época, para seus serviços publicitários. Avisado antes, Seth se refugiou na casa de Storni, em Niterói, segundo relato de sua filha ao pesquisador Muruci (2006). Os caricaturistas, como membros de um campo artístico, competiam entre si pelas posições mais valorizadas ao mesmo tempo em que colaboravam pelo bem coletivo, sendo bastante solidários com os colegas em diversas ocasiões. Seth descobre como se posicionar no campo para ter estabilidade. Mantém um emprego na imprensa diária, colabora com outras publicações, tanto políticas quando infantis, e adentra o mercado publicitário. Tentou lançar uma revista infantil própria, João Pestana (1923), com um personagem sonhador, desenvolvido por ele na D. Quixote, mas não foi para frente. Foi preciso montar sucessivos ateliers no Centro do Rio de Janeiro até que o terceiro deles “pegou”. Era uma época em que não havia competição com as empresas de publicidade americanas e os caricaturistas frequentemente ganhavam uma renda extra ilustrando anúncios. J. Carlos e K.Lixto fizeram muitos anúncios e até Alfredo Storni teve sua cota18. Nas memórias, Seth diz que sempre tentou fazer ateliers “com o propósito de trabalhar com independência”. A sede ficava na Av. Central, chegou a ter dez colaboradoresalunos trabalhando “num ritmo contínuo, dentro de uma atividade disciplinada”. Durante os anos 1930 ficaram famosas suas ilustrações cômicas para os anúncios do varejo Casas Mathias. Falar que eram dele os anúncios das Casas Mathias era um cartão de visitas. Seth estabeleceu para si uma estratégia que o colocava numa posição confortável no campo. Não era uma posição alta, mas era o suficiente para satisfazer as aspirações do rapaz que lia O Malho em Macaé. Fazia trabalhos conformados, voltados para o mercado, enquanto desenvolvia sua técnica com independência. Além de trocar de pseudônimos, Álvaro Marins trocava de estilo artístico. No 18 Segundo Herman Lima, destacaram-se Gil, K.Lixto, Julião Machado, J.Carlos, Luiz Peixoto, Correia Dias e Seth. (LIMA, 1966, p. 700) 88 tempo de O Gato, sua matriz era o norueguês Olaf Gulbransson, lido na revista alemã Simplicissimus. Mais tarde se encantou com as gravuras de Gustave Doré e desenvolveu um estilo cheio de hachuras a bico de pena, totalmente diverso do primeiro. Seth avalia a si mesmo como um artista que sempre estudou muito, propenso à minúcia na reprodução da realidade e à dedicação para corrigir defeitos. Era um autodidata, não tinha formação em Belas-Artes. Nas memórias, Seth não quer se posicionar nem como “rico”, só por ser proprietário de um atelier, nem como “comunista”, “pelo simples fato de distribuir percentagens sobre o lucro do nosso trabalho” (GAZETA, 24/08/1947). Investiu na autoria de livros paradidáticos, compondo uma “Coleção Seth”, criada no “Atelier Seth” e distribuída pela Sociedade Anônima O Malho. Tinha títulos como Meu Brasil, Nosso Mundo, Primeiras letras, Primeiros traços, Primeiras regras de desenho e Figuras Geométricas. O Atelier Seth também lançou o álbum de História O Brasil pela imagem: quadros expressivos da formação e do progresso da pátria brasileira desenhados a bico de pena. Esses livros circularam nas décadas de 1940 e 1950. Em 1936 Seth publicou, com o próprio dinheiro, um álbum chamado Exposição, em que publicou sua obra-prima Flagrantes Cariocas. Esse livro é aquele tipo de obra feita para se autolegitimar, na falta de outras comendas de prestígio dadas pelas instituições artísticas ou políticas. Na apresentação, Seth inclina-se na defesa de suas decisões no campo, sob o princípio consagrado da “arte pela arte”: O PÚBLICO, que é parte integrante das preocupações do artista, dará seu parecer sobre este trabalho. Fruto espontâneo de minha vocação, não tendo sido encomendado por interesses alheios ao meu gosto, executei-o com sinceridade, sem me preocupar com novas fórmulas estéticas ou preconceitos em voga. Educado sob a influência da mentalidade sadia que, em arte e literatura, fez a inexcedível grandeza cultural do século passado, entreguei à livre expansão de minhas tendências a escolha do caminho a seguir.” (MARINS, Álvaro (SETH) apud MURUCI, 2006). Seth clama a aprovação do público, porque lhe falta a aprovação acadêmica, e exalta o caráter autônomo do seu estilo. O orgulho de ser um autodidata, aliado à exaltação das matrizes artísticas do século anterior, leva a interpretar que Seth era um artista formado a partir do habitus19 de classe da pequena burguesia, conforme análises que Bourdieu (2013) fez para gerar sua sociologia do “gosto” ou Embora Bourdieu use o termo “habitus de classe” no título do capítulo 4 do livro A economia das trocas simbólicas (2015), o conceito abordado aqui pode ser entendido também como ethos, um padrão de comportamento interiorizado e inconsciente como se fosse uma natureza. Optei por manter o termo habitus tanto para os grupos sociais profissionais quanto para os grupos de classe. 19 89 “julgamento”. Para o autor, o pequeno-burguês é ansioso por inclusão na burguesia e, por isso, tem atitude de “boa vontade” e reverência às obras de arte da cultura “legítima”. Encara sua “propensão” a buscar progresso como um valor moral que compensa a falta de capital, na luta por ascensão à burguesia; insistir na trajetória de ascensão é um traço que o define. Para tal, sacrifica-se com ascetismo e economia de recursos. O autodidatismo é a saída para compensar a falta de graus acadêmicos que são padrão na burguesia. Bourdieu disserta que, para o pequeno-burguês, de maneira tragicômica, o acúmulo de conhecimento e cultura “legítima” é levado a sério demais: “o autodidata ignora o direito de ignorar atribuído pelos brevês do saber” (BOURDIEU, 2013, p. 308), ou seja, não é o acúmulo de conhecimento que dá o grau superior; o grau superior é ganho “por nascimento” na classe superior, conferindo uma familiaridade com a cultura e a arte que prescindem de conhecimentos aprendidos “na escola”. O pequeno-burguês – continua – é sempre candidato a se introduzir nas “novas profissões” de seu tempo. Elas não cobram diplomas para entrada, e não têm limites para a remuneração, mas também não têm garantias de sucesso. São atraentes porque oferecem uma ilusão de que o sucesso chegará a quem tiver a devida “vocação”. É precisamente o caso da carreira de caricaturista, ilustrador e comunicador na emergente indústria cultural do início do século XX. Entre os membros do campo da caricatura, havia os pequeno-burgueses e havia os filhos da burguesia, como se verá adiante. Alfredo Storni, até onde se sabe, assim como Álvaro Marins, estudado acima, tinham o habitus da pequena-burguesia. Em comparação com a trajetória de Álvaro Marins, explicitada em suas memórias, é possível percorrer a carreira de outros caricaturistas e anotar suas principais tomadas de posição e estratégias artísticas. Conforme foi abordado na introdução, interessa aqui estudar o campo circunscrito ao entorno de Alfredo Storni (no espaço e no tempo). Assim, das dezenas de artistas envolvidos na história da caricatura brasileira, foram estudados aqueles contemporâneos de Storni, que geraram um quadro analítico, e, desse quadro, foram selecionados poucos que são mais pertinentes a esta pesquisa. Durante a pesquisa, foram coletados dados biográficos dos principais caricaturistas do período, atuantes no Rio de Janeiro, segundo os cronistas e 90 pesquisadores Max Fleiuss (1916), Herman Lima (1963), Maringoni (2006), Elias Thomé Saliba (2002), Joaquim da Fonseca (1999), Pedro Correia do Lago (1999), Laura Nery (2000, 2005), Antonio Edmilson Martins Rodrigues (2002), Julieta Sobral (2004), Isabel Lustosa (2006), Giovanna Dealtry (2009), Marissa Gorberg (2019). A primeira lista de caricaturistas foi composta por Angelo Agostini (1843 – 1910), Crispim do Amaral (1858 – 1911), Julião Machado (1863 – 1930), Raul Pederneiras (1874 – 1953), Amaro Amaral (1875 – 1922), K. Lixto (1877 – 1957), Alfredo Storni (1881 – 1966), Max Yantok (1879 – 1964), Leônidas Freire (1882 – 1943), Vasco Lima (1883 – 1973), J. Carlos (1884 – 1950), Rian (1886 – 1981), Romano (1888 – 1953), Loureiro (1889 - 1981), Aryosto (1890 – 1960), Seth (1891 – 1949), Oswaldo Navarro (1893 – 1965) e Belmonte (1896 – 1947). A partir desse levantamento de dados, foram selecionados: a) Raul Pederneiras – pela evidência que ganhou entre seus pares, pela longevidade da carreira, por ter publicado em O Malho, assim com Storni, e por ter tido vários empregos. b) Max Yantok – por ser um artista oriundo de fora do Rio de Janeiro, por ter quase a mesma idade de Storni, por ter publicado em O Malho e em O Tico-Tico, assim como Storni, e por ser um dos mais lembrados pelas historietas infantis (Kaximbown e seu criado Pipoca). c) Leônidas Freire – por ser um artista oriundo de fora do Rio de Janeiro, por ter publicado em O Malho e em O Tico-Tico, assim como Storni, e por ser um dos que mais explorava as questões da civilidade. d) J. Carlos – pela evidência entre seus pares, pela longevidade da carreira, por ter publicado em O Malho, assim como Storni, e por ter feito historietas infantis em O Tico-Tico, assim como Storni. e) Rian – como contraponto, por ter tido uma carreira inusual, não só por ser mulher, mas por pertencer à alta burguesia. f) Loureiro – por ter publicado em O Malho e em O Tico-Tico, assim como Storni, tendo desenhado a fase mais lembrada de Chiquinho, personagemsímbolo da revista ilustrada infantil. Raul Pederneiras (1874 – 1953), nascido no Rio de Janeiro, pertencia à burguesia. Movimentava-se com desenvoltura na sociedade, como se deduz da 91 crônica sobre a boêmia artística da Rua Gonçalves Dias e dos saraus de Luiz Edmundo. A casa dos pais ficava na Praia do Flamengo. Max Fleiuss, em sua história da caricatura brasileira, o coloca na geração dos que consolidaram a arte e nota que seus “primeiros desenhos, já primorosos” teve “a ventura de apreciar em 1893, quando redigi com Valentim Magalhães A Semana, mostrando-mos o ilustre cunhado do genial artista, meu dileto amigo, Dr. Rodrigo Octavio (FLEIUSS, 1916)”. Rodrigo Octavio, advogado, foi fundador da Academia Brasileira de Letras e casou-se com Maria Rita Pederneiras, irmã do caricaturista. Raul seguiu o caminho respeitável de um filho da burguesia, tendo se formado em Direito, assumido funções sociais e políticas, como fundador da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e presidente da ABI – Associação Brasileira de Imprensa (1916 -1917), e tendo tido empregos regulares como delegado de polícia (durante um ano) e professor do ensino superior (tanto em Direito quanto em Belas Artes). Tendo como irmãos um poeta (Mário Pederneiras) e um jornalista que escrevia revistas teatrais (Oscar Pederneiras), Raul começava sua trajetória já na posição social de quem se embrenha nas artes com familiaridade. Foi matriculado na Academia Imperial de Belas Artes aos dez anos pelo pai. Em sua biografia não há referência a dificuldades em se empregar. Seus desenhos sempre foram considerados excelentes; popularizavam-se rapidamente. Desde 1901 era caricaturista no “popularíssimo” Jornal do Brasil, que também publicava a Revista da Semana, na qual Raul também brilhava. Esteve na revista Fon-Fon! desde o início (1907, com o pseudônimo OIS), uma vez que foi fundada por seu irmão Mário, entre outros. Também esteve em O Malho desde o início (1902), fazendo, inclusive, a ilustração de capa no segundo número (LIMA, 1963). Para os editores, é mais interessante apostar em novos talentos que já trazem o habitus do artista formado desde casa. Assim como outros artistas desses tempos, Raul transitava entre a escrita e o desenho, entre a performance e a publicação, entre a boêmia e as instituições. Não criou, no entanto, obras dramáticas. Optou por criar sempre no registro humorístico, e seus assuntos foram a crônica dos costumes cariocas, sem fechar os olhos às classes populares, mas tratando tudo com a leveza espirituosa dos trocadilhos e calembures de suas legendas. Marcou um estilo que nunca mais mudou. Nos últimos trabalhos para a Revista da Semana ainda desenhava o “pitoresco” captado 92 no cotidiano da Capital. Também nunca mudou seu visual, que o tornava quase um personagem caricato da vida real: silhueta alta e magra, chapéu de aba larga e bigodões a la Kaiser, mesmo quando a moda havia passado há anos. Sua posição social permitia que ele jogasse a carta da excentricidade inofensiva, capaz de fazerse sempre lembrado no campo, mas nunca ameaçando outros, nem fazendo inimigos. Cultivava também a posição de controlar o acesso ao campo. Em 17/07/1918, no número 828 de O Malho, abre-se espaço para Raul comemorar vinte anos de carreira e ele lembra: Um orgulho tenho comigo, lá isso tenho. Antes de mim, os hebdomadários tinham seus garatujistas exclusivos; raro se abria porta a um outro. Cheguei à liça e não só abri a porta aos novos, como ajudei gostosamente e lancei – lancei é o termo – os caricaturistas nacionais. Aqui devemos lembrar do semanário O Tagarela (1902 – 1904), um tipo de laboratório em que sempre desenhava Raul, acompanhado por K.Lixto, Falstaff e outros. Lá, J. Carlos publicou seus primeiros trabalhos, já impressionantes. Augusto Rocha, que trabalhou muito em historietas ilustradas em O Tico-Tico, também foi introduzido lá e tornou-se “diretor artístico” dos últimos números. “Diretor artístico” era o nome que se dava ao caricaturista principal, responsável pelas seções fixas de charges e, muitas vezes, pela capa. J. Carlos levava essa função mais a fundo do que outros, interferindo no que hoje se chama de “projeto gráfico” da revista (SOBRAL, 2004). Fez isso na Careta, na Para Todos e em O Tico-Tico. Modernizava o desenho do título da revista e criava as vinhetas que caracterizavam o estilo da publicação. Alfredo Storni teve sua fase como diretor artístico de O Malho e outra fase como diretor artístico de Careta, conforme se verá adiante. É importante voltar ao assunto do controle do campo: o cartunista que era o diretor artístico tinha o poder de selecionar os colaboradores da revista, distribuindo trabalho, o que cria elos de gratidão, e fazendo a balança pender para o estilo de trabalho que ele professa, no sentido de legitimar e valorizar sua própria aposta estilística no campo. Max Yantok (1879 – 1964) não se tornou diretor artístico de publicação alguma. Mesmo assim, é um dos caricaturistas que deixou uma marca mais duradoura, principalmente entre os que apreciam histórias em quadrinhos. De estilo descrito como “extravagante”, “nonsense” e “fantástico”, capaz de causar estranheza ao olhar mais ortodoxo (LIMA, 1963; GOMES, 2015), trabalhou tanto 93 em charges políticas quanto no conteúdo para crianças, sendo autor de uma série de livros infantis baseados nas aventuras de seus personagens criados para O TicoTico: o velho aventureiro Kaximbown, seu criado Pipoca e outros companheiros. As matrizes culturais de suas narrativas em quadrinhos rendem uma pesquisa por si, e representam a matriz “rabelaisiana”20 do humor: muita promiscuidade de alturas com profundidades, de hedonismos com violências, de máquinas com seres orgânicos e de patrões com empregados. Muitas vezes ele é lembrado como um visionário de ambientes futuristas que evocam a ficção científica, as utopias e os romances satíricos. Seus desenhos de loucas engrenagens e mecanismos intrincados remetem às ilustrações de George Roux para as primeiras edições dos livros de Júlio Verne (ARAGÃO, 2012, p. 72). Sua autobiografia é uma peça de fantasia onde é difícil separar fatos de gracejos. Porém, assume-se que seu nome era Nicolau Cesarino. Nasceu no Rio Grande do Sul, filho de um imigrante italiano, João Cesarino, e de uma mulher guarani. Seu pai voltou com dois filhos pequenos para a Itália, onde Yantok criouse e estudou, ao mesmo tempo, engenharia, violino e Belas Artes, em Nápoles. Relata que, enquanto estudante, foi amigo do famoso tenor Enrico Caruso. Obteve diplomas de agrimensor e de contador. A partir daí conta altas andanças pelos meios jornalísticos e literários de França e Itália, já ganhando algum dinheiro com seus desenhos humorísticos. Voltou ao Brasil por duas vezes, decidindo tentar a vida no Rio de Janeiro em 1908. Foi aceito em O Malho e manteve-se com trabalhos em firma de arquitetura e tocando o violino. Os serviços de contabilidade, ele manteve até a velhice. Participou, com seus colegas de oficina litográfica, Seth e Vasco Lima, de uma revista satírica, A pátria portuguesa. Quando o trio se dispersou, Yantok entrou para o jornal diário O Imparcial. Desenhou também para a D. Quixote, de Bastos Tigre, onde marcou a memória dos cronistas com suas piadas do mundo dos micróbios (LIMA, 1963). Não tendo o apoio de capital financeiro e social de familiares na cidade, Yantok manteve-se com seus serviços técnicos, não-artísticos, e com a constância de suas relações com editores. Publicou em O Tico-Tico durante décadas. A análise de sua estratégia no campo da caricatura leva a pensar que assumiu o papel ou o partido de ser “o estrangeiro”. 20 Conforme teoria de Bakhtin desenvolvida em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987), à qual se retorna no capítulo 3 da tese. 94 Yantok, ainda que tenha nascido no Brasil, é mais um numa longa série histórica de caricaturistas que chegam do exterior e marcam sua passagem na imprensa brasileira, desde o italiano Angelo Agostini, pioneiro em tantos aspectos, passando pelo angolano Julião Machado, os portugueses Vasco Lima e J. Ramos Lobão, o paraguaio Andrés Guevara (1904 – 1963) até o italiano Lan (1925 - 2020) entre outros. Georg Simmel, numa de suas análises sobre “tipos sociais”, auxilia na caracterização daquele “papel”. Quando Simmel descreve “o estrangeiro”, não está falando do imigrante, considerado ameaçador, nem do mero visitante, mas daquele que sintetiza dois conceitos opostos: o de desligamento a qualquer terra e o de pertencimento a um local. Sua marca é a mobilidade e, com ela, a liberdade (quando houver motivo, pode ir embora). O estranho cria uma relação específica com a comunidade local. Contribui em atividades em que pode haver um excedente de trabalhadores; não ameaça os empregos locais. Não é considerado um proprietário, nem de terras, nem de qualquer outro capital que seja análogo. Como não está ligado por raiz a nenhum dos grupos e partidos constituintes da comunidade, confronta-os com um distanciamento objetivo que agrada, em vez de incomodar. O estrangeiro provê o que nenhum agente local pode prover (SIMMEL, 1971, p. 143 – 149). Assim, Yantok nunca foi o diretor artístico de periódicos, que seria equivalente a “possuir terra” na comunidade. Fazia um estilo “extravagante”, conforme Herman Lima, capaz de lidar com os assuntos da política pelas vias da fantasia, o que potencializava sua popularização. Numa charge de primeira página em O Imparcial (28/04/1915), personificou o “azarado” período Hermes da Fonseca com a figura monstruosa e patética da “urucubaca”, e essa palavra entrou para o vocabulário popular desde então. Fazer-se de bufão, a julgar pela maneira nonsense com que se apresentou na sua “autobonecografia” na edição de Natal de D.Quixote (1915) era uma estratégia para ser deixado em paz com sua liberdade de expressão. Liberdade de expressão foi o que buscou na Capital o caricaturista Leônidas Freire (1882 – 1943). Cearense, saiu da “serra” para a grande cidade de Fortaleza, onde poderia desenvolver seu talento para o desenho de humor. Fazia charges dos políticos da oligarquia local com técnica de xilografia. Segundo Herman Lima, em menos de um ano, Leônidas teve que fugir para o Rio de janeiro, devido à violência da polícia. Obteve espaço no semanário O Malho, o que o levou a trabalhar, 95 também, em O Tico-Tico, desde o início. Leônidas criou personagens na curta série “Manduca, Louro e Perro”, desenhou muitas páginas de historietas de moralidade encenadas por animais, mas marcou sua passagem pela revista infantil com a série em quadrinhos “História do Brasil em Figuras” (LIMA, 1963). Em charges e historietas, esse desenhista é um dos mais sensíveis ao tema da civilidade em meio aos avanços modernos, assim como Alfredo Storni. Seu humor apontava preferencialmente contra as “máscaras da civilização”, a relação ambígua dos homens com as novidades técnicas, entre máquinas e dispositivos: símbolos de progresso, as máquinas são usadas de tal maneira que acabam revelando o que temos de bárbaro e de ridículo. Charges recorrentes desse tema são as que denunciam a ameaça dos atropelamentos por automóveis e bondes elétricos. O desenho de Leônidas é notável pela originalidade, uma crueza que parece remeter a suas origens na xilografia. Autodidata, passou a vida estudando para abrir novas frentes. Empenhou-se em aprender inglês e passou uma temporada na Inglaterra, na época da Primeira Guerra Mundial, chegando a publicar na imprensa de humor inglesa. Mandava suas crônicas ilustradas da guerra para o diário A Noite. Voltou ao Brasil em 1922, colaborou na D. Quixote. A partir de 1930 abandonou as caricaturas e ilustrações, passando a trabalhar como redator anônimo (fazendo traduções do inglês e atualizando biografias) nos diários A Noite e Correio da Manhã. Em vista de seus movimentos no campo da caricatura, parece que Leônidas, assim como foi visto na história de Álvaro Marins, tinha o habitus de classe pequeno-burguês, confiante de que seu esforço autodidata era capaz de fazê-lo avançar. Sem capital suficiente, no entanto, não lançou revistas próprias, nem personagens famosos, nem fundou ateliers; restringiu-se ao emprego repetitivo e seguro das redações. A estratégia de J. Carlos (1884 – 1950) pode ser resumida no princípio de não se restringir por nada. Considerado por Herman Lima (1963) um dos três membros do triunvirato da caricatura brasileira, junto a Raul e K.Lixto, J. Carlos não chegou a isso com timidez, mas sim com movimentação constante para se valorizar no campo. Publicou tanto no Rio quanto em S. Paulo; experimentou, assim como outros colegas, a autoria teatral; ilustrou inúmeras publicações de diferentes setores do mercado editorial; precursor do design gráfico brasileiro, foi diretor artístico de diversas revistas e colaborou ao mesmo tempo em publicações concorrentes. Ficou mais conhecido por suas charmosas figuras de “melindrosas” e “janotas” em 96 revistas de variedades, mas produziu muito material para crianças, sendo um dos pioneiros das histórias em quadrinhos infantis brasileiras, com os personagens Juquinha, Carrapicho, Jujuba e outros. Para poder multiplicar-se, por vezes assinou com pseudônimos diferentes na mesma revista. João Carlos de Brito e Cunha nasceu no bairro de Botafogo, estudou no tradicional colégio São Bento e, após casado, construiu sua casa no bairro da Gávea, orgulhosamente, apenas com o trabalho de seu lápis, segundo ele. Em entrevista a O Jornal, transcrita na tese de Nathalia Chebab de Sá Cavalcante (2003), J. Carlos conta que não se considerava artista precoce, e estava conformado a estudar “preparatórios” para a carreira de Direito que sua família teria determinado para ele. Frustrado com reprovações – a família conta, para a pesquisadora, que ele não era muito de ler – tentou publicar seus desenhos. Mandou para a revista O Tagarela (citada acima), de Peres Júnior (Teles de Meireles), onde estava Raul Pederneiras, que o recebeu numa visita à redação. O primeiro cartum de J. Carlos (em que o Tio Sam conversa com o Presidente Campos Salles) foi publicado ali, em 1902, quando ele tinha 18 anos. Na primeira edição de 1904 ele já era capaz de produzir a ilustração de capa. Nesse ano, destacou-se em algumas páginas inteiras onde compôs graficamente painéis sobre a vida de um casal burguês em estilo muito avançado, explorando tipologia estilo art nouveau e escrevendo todo o texto a bico de pena, numa imitação de tipografia (técnica muito usada pelo mestre Raul) (NEOTTI, 1984; CAVALCANTE, 2003). Com esse início auspicioso, abandonou os planos do bacharelado e investiu na carreira artística. Desenhou na revista Avenida, onde estava Crispim do Amaral, e depois foi convidado para O Malho, pelo diretor Luíz Bartolomeu. Entrou também na revista Fon-Fon!. Nos tempos de O Malho, J. Carlos já fazia historietas em quadrinhos com tema de molecagens infantis. Foi automaticamente convocado para a nova revista da mesma editora, O Tico-Tico, em que fez, desde o início, historietas sobre peraltices. Em 1906 e 1907 ele é o responsável pelas histórias que vão na capa de O Tico-Tico, o que é uma nova posição de prestígio. Desenvolve ali um personagem próprio, menino burguês que só faz peraltices, o Juquinha. Suas maiores maldades envolviam um jovem criado da casa chamado Giby. A partir de 1908, J. Carlos sai da empresa O Malho e entra na revista Careta, de Jorge Schmidt, para ser o diretor artístico, importante troca de posição dentro do campo, com elevação de status. 97 Não fica parado nas charges políticas de Careta, no entanto. Trabalha muito na Fon-Fon!, ilustra anúncios e procura inventar personagens para suas histórias em quadrinhos cômicas. Em 1909, na revista Careta, cria, um após o outro, bonecos do tipo “homem trapalhão”, mas não lhes dá sequência. Brocoió (a partir de 1911), deve ter feito mais sucesso e progrediu, com seu cão vira-latas, o Paudágua (DOURADO, 2018). Procurando explorar comercialmente suas criações, entre 1912 e 1913, junto a Renato de Castro, o redator de O Tico-Tico, lança o semanário infantil O Juquinha, com aquele menino travesso inventado na fase inicial de O Tico-Tico. Era uma “operação secreta”. Ninguém assinava os desenhos e textos, para não melindrar os patrões possessivos. Até mesmo os personagens Chiquinho, Lili e Jagunço, símbolos de O Tico-Tico, apareceram em O Juquinha, sem pagamento de compensações à Sociedade Anônima O Malho (número 9, em 1913). O curioso é que a própria redação de O Tico-Tico se utilizava dos personagens americanos Buster Brown, Mary Jane e Tige sem qualquer cerimônia, aclimatando-os ao Brasil com seus próprios desenhistas-copistas, nas oficinas de O Malho (CAGNIN, 2005). A publicação não teve o sucesso esperado e J. Carlos partiu para outros projetos. O público infantil, para o qual criava livros e historietas ilustradas, esteve entre eles, durante muito tempo. Mesmo com contrato de exclusividade para Careta, J. Carlos desenhou, sob o pseudônimo Nicolao, uma série em O Tico-Tico: Carrapicho e seu filho Jujuba. Mais tarde ele volta a ser contratado de O Malho e leva os mesmos personagens para a primeira página de O Tico-Tico. Também faz as capas da outra revista da empresa, Para Todos, onde desenvolve suas figuras de “melindrosas”. J. Carlos não ficou de fora de nenhuma grande revista ilustrada do seu período. Volta à direção artística de Careta em 1930, no fim de uma “dança” profissional com Alfredo Storni, que será tratada adiante (ver p.121). Nos anos 1930 ainda abriu um atelier de ilustração publicitária, escreveu a comédia É do outro mundo! e desenhou cenários para o cinemusical Alô! Alô! Carnaval (1936, Cinédia) (CAVALCANTE, 2003). J. Carlos, apesar de ter feito muitas charges políticas, investia mais o seu talento no entretenimento leve e na satisfação do público burguês, sedento de acompanhar as modas e aderente às novidades, como o cinema. Era o grande parceiro do mercado de publicações, sempre disposto a pegar mais uma capa para fazer. Não era um erudito, mas estudava tudo que se fazia em matéria de revistas 98 no mundo. Muito elogiado, também, por estudar os processos gráficos e manejá-los para valorizar seu trabalho, sendo um pioneiro e renovador do design gráfico brasileiro. Teve vantagens, no início da carreira, por ser da burguesia local, mas foi sua capacidade artística de entregar, com rapidez e alto padrão, ilustrações e narrativas afinadas com uma visão cosmopolita e hedonista da sociedade que consumia revistas que o fez avançar rapidamente na hierarquia do campo da caricatura. Calixto Cordeiro, o K. Lixto (1877 – 1957), também se valeu dessa estratégia. Muito produtivo e com alto padrão de qualidade, capaz de executar qualquer ilustração com rapidez e maestria, foi um dos caricaturistas que mais trabalhou num leque de publicações que rivaliza com o de J. Carlos. No entanto, não marcou o campo com personagens famosos, nem historietas infantis, nem seções fixas. Havia também a posição de quem tinha as portas sempre abertas, mas teve o “campo dos possíveis” fechado e, não tendo aonde chegar na hierarquia do campo, aos poucos, abandonou-o. Rian era o pseudônimo de Nair de Teffé (1886 – 1981). Filha dos Barões de Teffé, nasceu na classe alta do Rio de Janeiro e foi criada em Nice e Paris, tendo estudado Artes no famoso Cours Julien. Sofreu influência declarada dos caricaturistas franceses Sem e De Losques, especializados em representar a alta sociedade francesa. Publicou seções chamadas Galeria das Elegâncias na Fon-Fon!, Galeria das Damas Aristocráticas na Careta e Galeria dos Smarts na Gazeta de Notícias, tudo em 1910. Sua arte só era vista dentro dos salões da sociedade, até que começou a fazer exposições coletivas e individuais. Sua especialidade era caricaturar as damas da sociedade, porque isso era um tabu para os artistas homens. Os editores que publicavam os desenhos de Rian protegiam-se pedindo licença aos retratados (LIMA, 1963; RODRIGUES, 2002). Seu estilo era moderno e afrancesado, compondo a caricatura com poucas pinceladas. Publicou também em Paris, o que lhe dava posição como caricaturista internacional, além de ser considerada por aqui como a primeira mulher a ser caricaturista no mundo. Chegou a ter a oferta de um contrato de colaboradora efetiva de Excelsior, revista francesa. Não podia aceitar, no entanto. O pai até permitia a colaboração nas revistas e jornais, mas sem remuneração. Rian, em análise de sua obra, disse que não forçava muito a distorção dos rostos caricaturados: seus bonecos não provocam gargalhadas, despertam sorrisos. Muito bem considerada entre as jovens de elite do Rio de Janeiro e de Petrópolis, falava 99 muitas línguas, era amiga de todos e o “melhor partido” para casamento de seu tempo. Evitava casar cedo, no entanto, para não abreviar sua fase mais criativa. Acabou se casando com o viúvo Marechal Hermes da Fonseca, 31 anos mais velho, que era o Presidente da República quando se casaram, em 1913. Após o casamento foi parando, aos poucos, de publicar (LIMA, 1963). Sua curta carreira, no entanto, apoia a luta do campo por sua legitimação. Numa edição de sua seção “Salada da Semana”, no dia de aniversário de O Malho em 1913 (número 575), Alfredo Storni elabora uma elegia à caricatura, em três cenas: “E há quem diga que a caricatura não tem valor! [...] A caricatura tem alcançado coisas que qualquer outra manifestação intelectual do espírito humano não tem conseguido”. Na última cena, Storni desenha Nair de Teffé conquistando o coração do Presidente Hermes da Fonseca com uma flechada de Cupido. Em vez de flecha, ela atira um lápis afiado. Rian prova que mesmo a camada mais poderosa da sociedade precisa e quer se ver representada nas narrativas cômicas, maliciosas e estimulantes da Caricatura. Segundo editores da Fon!Fon!, ao publicar desenhos de Rian, essa arte trazia “ironia e espírito” à sociedade que queria ser moderna. Ser membro da sociedade moderna exige condições mínimas, todas ligadas aos preceitos civilizatórios: boa linguagem, boa higiene, autocuidado, contenção de emoções, entre outros. Exige também rapidez e sensibilidade cada vez maiores nas operações manuais. Uma criança que, cedo, brinca com conjuntos de armar, cresce para ser o operário da indústria eletrônica ou o cirurgião de que a sociedade precisa. Esse era o argumento que Luís Loureiro levantava para garantir aos queixosos que os brinquedos de armar que ele criava para O Tico-Tico não eram uma amolação para os pais, mas uma oportunidade educativa para os filhos. Loureiro (1889 - 1981) representa outra trajetória no campo da caricatura. Não só saiu da pequena burguesia, mas trouxe o habitus de trabalhador manual. Deixou alguns relatos em entrevistas e sempre repetiu a mesma história. Diz que era rapaz pobre, filho de portugueses; mais velho de oito irmãos. Buscava, é claro, dinheiro, sempre empregando-se em minuciosos trabalhos manuais, tais como “sapatinhos para anjo”, pintura decorativa em casas, retratos... Foi um pintor autodidata. Daí chegou à oficina litográfica de O Malho, onde aprendeu a copiar no papel litográfico as ilustrações de revistas e jornais estrangeiros que seriam adaptados para O Tico-Tico. Não ficou, somente, nas cópias. Seu talento para o desenho foi reconhecido e ele teve oportunidade de criar historietas cômicas e 100 charges políticas (aquelas em que o patrão dava o texto). Assim, quando aconteceu a Primeira Guerra Mundial e pararam de chegar os jornais que publicavam Buster Brown, Loureiro foi convocado para desenhar histórias de Chiquinho inéditas. Ele conta que, de início, não se achava capaz de escrever, e o editor Renato de Castro inventava o roteiro, mas, logo, o editor deixou tudo por conta dele. E Loureiro tornou-se um dos mais populares autores de histórias em quadrinhos de seu tempo, levando adiante o personagem-símbolo de O Tico-Tico, em sequências de piadas semanais que formavam aventuras memoráveis para seu público. O tema era sempre civilizador, no sentido de que Chiquinho, enquanto criança, sempre fazia peraltices, mas, no fim, recebia punição (de maneira conformada, sem chorar!). Loureiro conta que as crianças que liam a história pareciam gostar mais de quando Chiquinho apanhava de escova do que quando armava suas “pegadinhas” contra visitas, criados e vizinhos. Loureiro começou também com a série de brinquedos de armar – na maioria, veículos, como o bonde elétrico, o carro da assistência pública (ambulância), um aeroplano para o Chiquinho (ver Figura 15) e outros. Eram páginas nobres, coloridas, no meio do caderno de O Tico-Tico. Loureiro fazia “engenharia reversa” e decompunha um bonde em cerca de dez peças planas, para serem recortadas do papel, dobradas e coladas. A cada semana, tentava se superar. A seção fez sucesso e, posteriormente, outros desenhistas assumiram a tarefa, inclusive Alfredo Storni, numa fase em que havia saído da firma mas fazia trabalhos eventuais. 101 Figura 15. Brinquedo de papel feito com o modelo desenhado por Loureiro em O Tico-Tico nº 300 (1911). Fonte: foto do autor. Loureiro, diferente de J. Carlos, por exemplo, sempre buscou estabilidade nos empregos. Ficou na empresa O Malho, cumprindo todas as tarefas dadas, inclusive atacando, em charges, políticos que admirava, até 1920, quando ganhou um emprego, a princípio, mais respeitável e estável, no Ministério da Guerra, setor de cartografia. Especializou-se no desenho heráldico, fazendo estandartes, condecorações e símbolos. Desenhou um novo uniforme para o Colégio Militar. Seu jeito sisudo e disciplinado combinava com o ambiente militar. Herman Lima (1963) diz que, em O Malho, não mostrava o mesmo “talento mordaz” que outros tinham. Não era dos boêmios, apesar de ajudar numa agremiação de carnaval. Não publicou livros. Sua única criação livre foi a introdução do personagem Benjamin nas historietas de Chiquinho. 102 Benjamin era um menino negro, agregado da família burguesa de Chiquinho. Isso quer dizer que, sem ser empregado remunerado, tinha um trabalho a exercer: acompanhar o filho da família, ser um amigo sob controle, para que o filho tivesse com quem brincar, mas alguém hierarquicamente inferior. Essa explicação toda não deve ter passado pela cabeça de Loureiro. Ele narra, em entrevista, que tinha em sua casa uma pessoa assim, “moleque de recados” chamado Benjamim, e alega que este queria sair na revista. Loureiro simplesmente fez sua caricatura e botou na história (MERLO, 2003). Quem leu toda a série de histórias nessa fase sabe que Benjamin era abusado por Chiquinho o tempo todo, mas parecia não perceber. Muitas vezes, Benjamin obedecia aos planos do outro menino; outras vezes, era o autor das peraltices. Ambos levavam sovas de escova. Chiquinho tentava dar-lhe educação (o Chiquinho de Loureiro era muito civilizador) mas Benjamin era arredio. Resultado: o Benjamin de verdade reclamou que não era tão feio como saiu no desenho, e as pessoas mangavam dele na rua. Zangou-se, foi embora e só foi reencontrar Loureiro bem mais velho. O personagem, no entanto, durou décadas, tornando-se um dos símbolos de O Tico-Tico, desenhado por todos que passaram pela revista, sempre lembrado nas capas comemorativas. Loureiro o defende como sendo um personagem que trouxe a realidade brasileira para a revista que vinha sendo feita com matrizes europeias e norte-americanas. Aqui se conclui a descrição do campo da caricatura no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX. Muito mais poderia ser escrito e outros pesquisadores realmente investiram mais tempo na análise das carreiras desses artistas. Essa época deixou marcas na cultura e construiu muito do que é a sociedade brasileira da atualidade. Porém, a intenção, aqui, era fazer somente uma descrição metódica do campo, a fim de inserir nele Alfredo Storni e sua obra feita para O Tico-Tico. Finalmente, podemos fazer algumas afirmações sobre tal campo: a) Ainda que a cidade de São Paulo tivesse um setor editorial muito pujante, o local privilegiado do campo da caricatura era o Rio de Janeiro, devido a sua capitalidade (NEVES, 1992; AZEVEDO, 2019): concentrava as elites dirigentes e profissionais do país, recebia os estrangeiros e suas novidades (como porto de chegada), tinha eventos e instituições que colocavam artistas e intelectuais em contato, além de representar 103 culturalmente e simbolicamente o país para o mundo. Dessa forma, atraía artistas de outros estados e outros países para ocupar posições no campo. Alguns tinham raízes na comunidade portuguesa; outros eram livres e faziam o papel de “estrangeiro” na comunidade. b) As posições mais desejadas no campo eram nas revistas de maior popularidade e que duraram mais tempo, como Revista da Semana, Fon!Fon!, O Malho e Careta. O Tico-Tico, Ilustração Brasileira e Para Todos eram da empresa O Malho. A posição de diretor artístico de uma revista conferia um status importante, mas não eximia o caricaturista de trabalhar exaustivamente, muito pelo contrário. c) Revistas de menor circulação eram alternativas para lançar novos talentos, desenvolver charges mais críticas e complementar a renda dos caricaturistas mais produtivos. Eram inúmeras, mas citamos Mercúrio, O Tagarela, Avenida, O Pirralho, D. Quixote , O Filhote e O Gato. d) Os vários jornais diários da época, seguindo os passos das revistas, também abriram espaço para os caricaturistas, que tinham ali uma boa fonte de renda estável. e) A procura de renda estável levava a maioria dos caricaturistas a manterem empregos paralelos, como tinha Raul Pederneiras, ou procurar contratos com jornais diários, como fez Álvaro Marins, e mesmo abandonar a profissão, como fez Loureiro. Viver somente de charges e ilustrações em revistas ilustradas foi a trajetória de poucos, como K. Lixto e J. Carlos. f) A renda extra era obtida com ilustrações para anúncios e incursões no mercado teatral, disponíveis apenas para os que tinham melhores contatos na sociedade e elos mais fortes dentro do campo (recebiam indicações preferenciais de colegas e de editores). Publicar livros infantis e paradidáticos foi estratégia de alguns, mas nada indica que fosse lucrativa. g) A boêmia, antes de ser uma atividade hedonista, era uma maneira de encontrar outros membros do campo artístico, político e intelectual da cidade, “tomar o pulso das ruas”, saber “quem é quem” e consolidar os elos necessários para o exercício da profissão. Além disso, circular pelos ambientes onde a política, o encontro social e as artes aconteciam era mais necessário aos caricaturistas na época em que não havia facilidade de consultar fotografias, e ainda se estudavam as feições dos famosos in loco. 104 h) O campo era formado por humoristas, mas não por contestadores. Sofria muita pressão dos campos político e econômico e se movimentava conforme. O maior exemplo era a empresa O Malho, cujo sócio, Senador Azeredo, dominava o discurso das charges políticas. Outra pressão era de mercado, quando as revistas mais longevas mudavam seu perfil editorial para se adequar aos interesses dos leitores e assinantes. Nesse caso, os “times” de caricaturistas eram renovados ou pior – reduzidos. O Malho, por exemplo, em meados de 1918, muda de perfil editorial, torna-se mais leve, traz o veterano Raul de volta à equipe e abre espaço para Di Cavalcanti, mas abandona a charge política. i) Na criação de personagens de historietas cômicas, a resposta dos leitores era direta aos caricaturistas, no seu cotidiano, como conta Loureiro. Os editores também sabiam o que fazia mais sucesso e a tendência era que os artistas tentassem fornecer mais do mesmo. A evidência é que os personagens dessa época são quase todos variações dos mesmos tipos: ou meninos peraltas ou homens trapalhões. Mesmo os personagens estrangeiros, copiados pelos editores locais, tinham que seguir esses padrões (por exemplo, O Tico-Tico traduzia e dava destaque para Foxy Grandpa e para Mutt e Jeff21, além de publicar historietas locais com o personagem Carlitos e com a dupla O Gordo e o Magro). É verdade que não eram o único tipo de narrativa publicada em O Tico-Tico, que usava muito material francês, de conteúdo diverso, mas eram assim as narrativas assinadas pelos caricaturistas brasileiros. j) Os mesmos artistas que produziam as charges políticas e os retratos caricaturados das figuras eminentes eram convidados a participar das publicações para crianças e jovens. As ferramentas do desenho caricato eram as mesmas: simplificação dos traços, ênfase na representação de movimento, gesto e expressão facial, conteúdo calculado para produzir efeito cômico. A transição suave já havia sido estabelecida por Angelo 21 Foxy Grandpa era uma tira norteamericana de Carl Bunny Schultze decalcada e traduzida como “histórias do vovô”. O personagem era um senhor que fazia mais peraltices do que os netinhos. Mutt e Jeff é uma das tiras mais populares, feita pelo norte-americano Bud Fisher, e foi assumida pelo O Tico-Tico a ponto de os personagens terem histórias locais inventadas por Augusto Rocha, e figurarem nas capas das edições comemorativas como “elenco” fixo da revista. Informações coletadas pelo pesquisador aficcionado Francisco Dourado, do blog HQ Retrô, e publicadas no Encarte do fanzine eletrônico QI edição 158 (jul/ago 2019) pelo organizador Edgard Guimarães. 105 Agostini, autor das primeiras histórias em quadrinhos no Brasil e pioneiro das moralizantes historietas para crianças, no mesmo semanário O Malho. De fato, durante, pelo menos, todo o século XX, foi assim, com Ziraldo transitando entre caricatura política, gibis e livros infantis, e outros chargistas se aventurando eventualmente, como Henfil, Miguel Paiva, Nani, Angeli e Laerte, por exemplo. O ponto aqui, entretanto, é que as obras para público infantil já, desde o início, eram produzidas segundo a concepção de que deveriam ser educativas e civilizadoras por meio do entretenimento leve. Não se exigia, porém, que o produtor dessa arte fosse um especialista dedicado, como na atualidade. É uma configuração que possivelmente enriqueceu as primeiras histórias em quadrinhos locais com os experimentos formais da caricatura política e vice-versa. O campo dos caricaturistas do Rio de Janeiro do início do século XX, assim descrito, foi onde se movimentou a carreira de Alfredo Storni e onde foi gestada a série das Aventuras de Zé Macaco e Faustina. A partir dessas conclusões, é possível acompanhar a trajetória desse artista e compreender suas tomadas de posição artísticas. 2.3. A trajetória de Alfredo Storni “Storni fala pouco e desenha muito” era o texto do “olho” de uma matéria da Revista da Semana (31 de março de 1945, número 13) que reunia “três caricaturistas da velha guarda” – Storni, Yantok e Loureiro – para falarem de suas carreiras. Esse é um dos raros relatos deixados por Storni, tanto que fundamenta seu verbete no compêndio de Herman Lima (1963). No entanto, Storni contrariou os repórteres. Deixou-se fotografar com os ex-colegas e até forneceu desenhos inéditos para ilustrar as páginas, mas, em vez de falar, passou um papel escrito a lápis com alguns parágrafos biográficos. Nesse texto transcrito na reportagem, quando Storni fala de sua criação, elabora uma autêntica peça de “ficção biográfica”22: diz que inventou 22 Pierre Bourdieu (2015) adverte que a história de vida é uma noção do senso comum que entrou de contrabando no universo científico. Esse senso comum concebe a vida como uma história, uma linha, uma estrada ou carreira que, na forma de sucessão de fatos, é linear e unidirecional, tendo um início, etapas e um fim, que é tanto um término quanto uma finalidade. O relato biográfico tende a ser feito com a seleção de certos acontecimentos significativos e com a conexão entre eles, em função daquela concepção de que a vida tem que ser um conjunto coerente e orientado. Trata-se de 106 a família Zé Macaco, com pai, mãe, filho e o cachorro Serrote de uma vez só, quando se cansou de decalcar historietas de autores estrangeiros e resolveu fazer uma “obra nacionalizante”. Disse também que sua intenção era educativa, de incutir nas crianças virtudes “que cada dia se tornam mais esquecidas dos homens”. Isso não é verdade. Zé Macaco foi criado sem família, como um “homem trapalhão” vindo do interior para a cidade grande. Meses depois é que Storni inventa que Zé Macaco havia ficado rico e trazido esposa e filho da Europa. O tal cachorro Serrote, então, só aparece muitos anos depois, sucedendo outro vira-latas sem nome que acompanhou a família em muitas aventuras. O depoimento por escrito, ponderado e totalmente sob controle seria uma maneira de o artista, aos 64 anos, procurar legitimar-se no campo, uma vez que elabora uma narrativa para a criação do marcante Zé Macaco, e afirma, por conta própria, que “o êxito foi estrondoso”. Isso não quer dizer que Storni gostava de se gabar ou de maquiar seus defeitos. Suas piadas na série do Zé Macaco sempre foram críticas à vaidade. Fez questão de não se “maquiar” na autocaricatura que ofereceu à revista. Nela, desenhou-se em dois momentos extremos da carreira: jovem, chegando ao Rio de Janeiro, em 1907, para trabalhar em O Malho, e velho, em 1945, quando dá a entrevista. Legendou o desenho como “A marcha do tempo” (Ver Figura 16). uma construção artificial de sentido, na qual se estabelecem relações inteligíveis entre efeitos e causas, tratando estados sucessivos como etapas necessárias de um projeto assumido desde o início. 107 Figura 16. Storni se autocaricatura em 1907 e em 1945, na página 25 da edição de 31 de março de 1945 da Revista da Semana. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Se os depoimentos são vagos e os documentos faltam, a trajetória de Storni pode ser lida a partir de seus trabalhos publicados, já que ele, sim “desenhou muito”. Durante a pesquisa, além dos verbetes biográficos (LIMA, 1963; FONSECA, 1999, CORREA DO LAGO, 1999), foram lidos, em formato digitalizado, centenas de números de revistas ilustradas e jornais diários com obras de Storni e seus colegas, o que permitiu seguir sua trajetória profissional. As caricaturas e historietas, por si, contam uma história sobre Alfredo Storni, e essa é uma história que passa ao largo da subjetividade do artista que conta memórias. Ruben Gil dá conta que Storni nasceu em Santana do Livramento – RS em 1881, e criou uma revista própria, O Gafanhoto, em 1904 (aos 23 anos). Herman Lima relata que ele teve suas colaborações aprovadas em O Malho, em 1906, desde a primeira. Durante 1906, O Malho apresenta uma página com as “Aventuras de Zé Caipora”, história em quadrinhos de Angelo Agostini, muitas caricaturas por Augusto Rocha, J. R. Lobão e do iniciante J. Carlos, mas não tem nada do Storni até o número 190. O primeiro desenho assinado por Storni que se encontra nas edições digitalizadas é uma charge representando o político gaúcho Pinheiro Machado como um valente cavaleiro laçando a “opinião pública” (que se declara já ser dele!). A chave para Storni acertar seu lance no campo artístico parece ter sido 108 a homenagem a Pinheiro Machado, uma vez que aderia perfeitamente à linha editorial e política de O Malho, chefiada pelo Senador Antônio Azeredo. Azeredo, jornalista e político mato-grossense, apoiava “homens fortes” e autoritários (ver Figura 17). Figura 17. Charge de Storni na pág. 24 do número 190 de O Malho (1906). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. As qualidades de Storni, em retrospecto, já são perceptíveis nessa charge: o retrato que evoca facilmente o retratado; o movimento da cena, com o homem se inclinando para trás e o cavalo investindo para o primeiro plano, vindo de um bucólico cenário dos campos gaúchos, também facilmente evocado em perspectiva; e uma certa crueza na leitura dos acontecimentos, característica de apelo popular. Storni não poupava o leitor de imagens grotescas e violentas, se sua crítica severa apontava para isso. O uso da alegoria (representar uma entidade abstrata, a “opinião pública”, como uma figura humana sobre a qual se aplica um letreiro identificador) era comum a todos os caricaturistas, e acompanharia as charges políticas de Storni durante toda a carreira. Herman Lima (1963, p. 1228), elogioso, diz que o jovem Storni fugia à repetição do estilo estático das charges políticas, cheias de figurões 109 confabulando, e “movimentava os seus bonecos com uma liberdade de veterano da caricatura”. A contribuição de Storni pula alguns números. Na edição 204 de O Malho há um anúncio: “Leiam O Tico-Tico, o único jornal exclusivamente para crianças”. Nesse momento, Storni não sabe que sua carreira ficará para sempre associada à revista infantil. Na edição 205 volta a aparecer material de Storni: uma charge com o Presidente Rodrigues Alves. Na sequência dos números 207, 208 e 209 há uma charge política de Storni em cada, onde aborda eleições e política externa. Nesse momento, J. Carlos já está ilustrando anúncios e capas, como a do número 211. Ocorre mais um hiato nas participações e, no número 212, Storni não faz apenas uma charge, mas ocupa meia página com uma historieta em quadrinhos com vários políticos. As historietas ilustradas em sequências de quadrinhos já estavam sendo experimentadas pelo menos durante todo o ano de 1905 em O Malho. Eram peraltices de garotos e de bichos, sempre de caráter civilizador, onde os erros são punidos de imediato, pelas próprias consequências. Por exemplo, um menino dorme na mesa de estudos e mete o nariz na vela acesa sobre a mesa. Outro garoto come terra e, junto, ingere um caroço de jaca. A árvore cresce dentro da barriga dele e ele morre. Essas historietas eram de Angelo Agostini e de Leônidas Freire. Leônidas manteve o tema de alerta civilizador daí pra frente, abordando a complicada relação com as máquinas. Em 1906, Leônidas faz, em O Malho, charge onde um automóvel com rosto ri de um bonde que atropela a todos na rua e é muito mais perigoso do que ele. Em O Tico-Tico, no mesmo ano, muito antes de Storni lançar seu Zé Macaco, Leônidas publicava uma historieta satirizando uma família interiorana que, apesar de ser rica, passava apuros ridículos ao ousar fazer um simples passeio de automóvel na Capital. Quem desenha histórias para a capa de O Tico-Tico em 1906 é J. Carlos, apresentando seu garoto travesso, Juquinha. De tanto que fez, Juquinha foi até encarcerado na prisão (número 91, 1907). Durante o restante de 1906 e o início de 1907 as colaborações de Storni vão aumentando de número, começando com uma única por edição, até fazer meia dúzia. No Almanach d’O Tico-Tico de 1907 ele tem um trabalho publicado. No início era informalmente considerado “correspondente especial no Rio Grande do Sul”, e as ilustrações publicadas eram apenas de gaúchos ou políticos gaúchos. Ele 110 não parou de fazer essas figuras, mas em 1907 já são aproveitados seus tipos populares em vinhetas, e suas charges sobre política nacional e internacional, além de matérias especiais como o ensaio sobre a Paz. As charges vão no mesmo tom das de outros caricaturistas: apontam para as mentiras dos governos que se sucedem, mas aplaudem as iniciativas consideradas populares. A empresa envia, nesse ano, uma oferta de contrato e ele começa a fazer parte da equipe, se estabelecendo no Rio de Janeiro. Muda-se em 26 de março de 1907. Storni contou assim como se deu seu grande lance no campo da caricatura, naquela matéria de A Revista da Semana, em 1945 (rever Figura 16 acima): Quando desembarquei na “corte”, encontrei-me num trapiche de madeira. Envergava com orgulho um terno xadrez marrom e um colarinho da mesma cor. Um carregador me perguntou se eu pertencia a algum circo de cavalinhos e se queria que me carregasse a mala. Guardo até hoje bem vivas na memória as recordações de minha chegada triunfal à Cidade Maravilhosa, podendo me lembrar até, com nitidez, que na mala eu trazia apenas outro terno e uma camisa. O resto do espaço era ocupado pelos meus castelos e pelos ideais de moço que viajavam comigo (A REVISTA DA SEMANA, 31/03/1945). O orgulho do jovem de 25 anos foi logo testado, porque, segundo ele, foi recebido “com indiferença” pelo patrão Luís Bartolomeu, e mandado para aquele que era o primeiro estágio na carreira da empresa: as oficinas litográficas, onde sua tarefa era decalcar os desenhos originais das publicações estrangeiras. Pouco depois, ali estreavam Yantok, Loureiro, Vasco Lima e Álvaro Marins, como foi contado acima. Durante 1908 Storni é um dos principais caricaturistas de O Malho. Tornouse diretor artístico da publicação, em cargo da capa e várias charges por edição. Na página 3 da edição 311, desse ano, ele desenha um policial civil com as mesmas feições que usaria no Zé Macaco, pouco depois (ver Figura 18). A cena se passa na Exposição Nacional, evento que aconteceu de agosto a novembro de 1908, no bairro da Urca, Rio de Janeiro, em comemoração ao centenário da abertura dos portos às nações amigas. Expunham-se os produtos oriundos de todos os estados do Brasil, e o principal objetivo era exibir a capital recém-reformada às autoridades brasileiras e estrangeiras. Na charge, o guarda, atônito, vê o senador gaúcho Pinheiro Machado montado e, então, pergunta se as ordens de não deixar entrar de carro nem a cavalo na área da Exposição Nacional realmente valiam para todos. Seu colega explica que, para 111 os “graúdos”, como Pinheiro Machado, a lei é outra, e “quem não souber dessa hermenêutica, está frito”. Era uma crítica à falta de republicanismo do regime republicano. Figura 18. Charge na pág. 3 da edição 311 de O Malho (1908). No canto inferior esquerdo, Storni desenha um policial civil com as feições que usaria depois em Zé Macaco. É nesse ano de 1908 que cria seu personagem Zé Macaco para O Tico-Tico. Na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional faltam as edições de 1908. Na primeira edição de 1909 Zé Macaco está na primeira página. Carrega uma sombrinha com um caju de madeira na ponta do cabo. O caju, até o fim, será elemento que representa Zé Macaco, como se fosse seu símbolo heráldico. Aparece todas as vezes em sua bengala, e estampa seus pertences e invenções. Na historieta, ele faz uma viagem a pé através do campo, salva um leitão que estava amarrado para ser abatido e o homem de “excelente coração” termina homenageado por seu gesto de humanidade. Só que não é homenageado por pessoas, mas por uma multidão de porcos antropomorfizados, vestindo roupas e carregando um estandarte. De início, o autor estabelece que Zé Macaco e os animais têm algum entendimento mútuo. Na edição da semana seguinte, a história muda radicalmente. Zé Macaco sai na página 11, a cores. A legenda conta que Zé Macaco resolveu visitar o Rio de 112 Janeiro. Pegou um bonde bem no dia em que uma revolta popular explodiu: “Enorme massa popular gritava: Morra a Light! Queima! Queima!”. No Largo de S. Francisco, a multidão avançou para virar e tocar fogo no bonde. Zé Macaco, no entanto, ignorante da etiqueta para vivenciar um protesto político, negou-se a sair do bonde. Foi engolido pelas chamas e, meia hora depois, com a ação dos bombeiros, sai indignado e todo chamuscado de baixo dos restos do bonde. Storni gostava de usar fatos do noticiário para criar as histórias de Zé Macaco. Na edição de 11 de janeiro de 1909 o Jornal do Brasil anunciava que haveria um comício no Largo de S. Francisco, Rio de Janeiro, para reivindicar a volta de itinerários de bondes alterados pela companhia Light. A polícia, alertada pelos boatos, teria tomado “medidas preventivas para evitar os desmandos”. Os manifestantes, “na maioria, operários prejudicados por essa deliberação”, quebraram lampiões como sinal de protesto (motivo da charge de Raul no dia 13, com o título “bode expiatório”). Segundo a reportagem completa na edição do dia 13, a questão dos bondes ficou em segundo plano, uma vez que a reação da polícia militar, “acutilando e contundindo a torto e a direito, concorreu, não há dúvida, para que o movimento popular tomasse maior incremento”. O resultado é que os manifestantes voltaram-se contra os carros de bonde, gritando “Vira! Vira! Queima!”. Storni faz uma página de charges toda sobre a questão, na edição de 23 de janeiro de O Malho, em que responsabiliza as forças policiais pelos excessos da repressão e o saldo de violência. Assim, muitas vezes, os fatos comentados nas charges políticas de O Malho, ou em suas seções de moda e sociedade, voltam a aparecer em O Tico-Tico, como pano de fundo para cômicas confusões de Zé Macaco, como veremos adiante. Aliás, não só de Storni, pois é possível encontrar no Chiquinho de Loureiro referências ao cotidiano do Rio de Janeiro. É o habitus de caricaturista político modelando a atividade da criação de historietas infantis. No dia 25 de abril de 1909 nasce o primeiro filho de Storni, Oswaldo, que se tornaria importante ilustrador de O Tico-Tico e, depois, da editora da Cia. Melhoramentos de São Paulo. A necessidade de aumentar a renda e prover sua família recém-formada deve ter movido Alfredo Storni. Ele mantém seu emprego nas publicações da Sociedade Anônima O Malho mas começa a colaborar na revista semanal O Filhote, da empresa concorrente, editora da Careta, a partir de setembro de 1909. Para isso, esconde-se sob o pseudônimo Bluff. É curioso comparar o 113 trabalho de Storni ao mesmo tempo em dois concorrentes. Enquanto, em O Malho, ele estava preso ao compromisso de ilustrar as charges encomendadas pela direção, com sua tendência a malhar alguns políticos e incensar outros, em O Filhote Storni, ou Bluff, desenvolve uma maior independência, criticando a atividade política em geral. Por exemplo, nas edições da comemoração de vinte anos de Proclamação da República (novembro de 1909), enquanto, em O Filhote, Bluff desenha a República (figura alegórica sempre representada como mulher jovem) desconfiada e dividida entre dois pretendentes mal-intencionados, o civilista e o militar, em O Malho nº375 Storni desenha a charge principal incensando o Presidente Nilo Peçanha, aplaudido por toda a população, de mãos dadas com a República, sobre um palco. Além disso, no trabalho de Bluff, Storni desenvolve mais o lado grotesco das feições de seus retratados. Numa seção de portrait-charges, representa políticos com traços de gato, de cegonha, de canguru e como um bebê na cadeirinha. Em outras ilustrações, distorce rostos quase até a forma de caveira, mostra dentição podre, roupas rotas, olhares boçais e tudo que fere o “bom gosto” elitizado (ver Figura 19). 114 Figura 19. Charge de Bluff (Storni) explorando o choque ao chamado “bom gosto”. Página 15 da edição 5 de O Filhote (1909). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Zé Macaco passa o ano de 1909 como personagem de “homem ingênuo trapalhão na cidade grande”. Saído do bonde incendiado, ele é brutalmente reprimido pela Polícia como se fosse um dos vândalos. É dado como morto, foge 115 do necrotério, depois compra um chapéu enorme, exagerado, conforme a moda para senhoras; usa o chapéu como barco para escapar de uma enchente; brinca Carnaval; briga na rua e vai para a cadeia; é confundido com um animal por turistas ingleses e briga novamente; compra um cavalo e quebra uma loja, indo preso novamente; depois decide ir embora, atravessar a Baía de Guanabara, mas naufraga e tem que se ver numa ilha onde macacos o tomam como um semelhante; foge dos macacos, pede auxílio num sítio mas é confundido com um ladrão e jogado num poço. Essas poucas linhas já demonstram como Storni usa o grotesco como motor da comicidade da história, e como, nessa época, prisões, violência policial e brigas de rua ainda eram assunto adequado para a leitura infanto-juvenil, desde que o fim da história fosse a reafirmação da ordem. Nesse ponto da carreira, porém, acontece algo, porque Storni interrompe a história num momento de suspense (a queda dentro do poço), na edição 192. Zé Macaco desaparece de O Tico-Tico até a edição 196, quando Storni transforma radicalmente a linha narrativa. A legenda não poderia ser mais clara: Tudo está mudado! Assim como a política, Zé Macaco mudou também, dum dia para outro, a sua condição! Hoje, graças a uma herança que ele recebeu quando saiu daquele malfadado poço, está gozando as delícias que lhe proporciona a fortuna. Possui um automóvel, palacete, chauffeur e pretende casar-se. O que lhe acontecerá na sua nova fase registraremos nos próximos números (O TICO-TICO, 07/07/1909). Na capa, uma grande ilustração de Zé Macaco, de cartola, luvas brancas e charuto, sentado num automóvel – maior símbolo de status da época – com chauffer, passeando pela Avenida Central (ver Figura no capítulo 1, p.48). Seria apenas liberdade artística, se Storni tivesse continuado a história conforme o prometido, mas passa metade do ano de 1909 e todo o ano de 1910 sem publicar Zé Macaco. Storni, nesse período, continua normalmente seu trabalho como caricaturista de O Malho. E Zé Macaco não é esquecido. Pelo contrário, aparece em todas as capas comemorativas de O Tico-Tico (de Natal e aniversário), como um dos personagens da revista. Apenas no início de 1911 voltam as histórias de Zé Macaco, agora com uma família que trouxe de suas andanças na Europa, assim como uma máquina voadora que ele mesmo inventou, o “aéreo-burro”. A nova fase de sucesso, com Storni publicando na capa da revista, será abordada no capítulo 3. O período da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918) é vivenciado pelos leitores de O Tico-Tico através das lições moralizantes da seção Lições de Vovô e 116 o conflito entre civilidade e guerra se reflete nas historietas. O tema será abordado no capítulo 4. Acontece em 14 de novembro de 1916 o primeiro Salão dos Humoristas, no Liceu de Artes e Ofícios, Rio de Janeiro, com 518 trabalhos. Storni deve ter sido uma ausência importante, porque não está no cartaz composto de caricaturas dos artistas, nem na lista de artistas. Ele tinha um roteiro de conferências para cumprir no mesmo mês, em cidades do Sul do Brasil. Apresentava-se entre músicos e literatos. Com o lançamento do semanário humorístico D. Quixote, criado por Bastos Tigre, em 1917, Storni acumula mais um trabalho, publicando ao lado de K. Lixto, Raul, J. Carlos e Yantok. Storni continuou sua rotina durante anos, sempre encarregado da capa de O Malho, sucedendo J. Ramos Lobão, e da seção A Salada da Semana, um painel com cinco ou seis charges sobre os últimos acontecimentos. Até 1918 O Malho tem em geral a mesma equipe de desenhistas: Storni, K Lixto, Loureiro, Yantok e Aryosto, dividindo equivalentemente as páginas. O número 828, de 27 de julho de 1918, tem a última ilustração de capa de Storni. Nessa edição, na página 20, há uma matéria especial comemorando os 20 anos de carreira de Raul Pederneiras, onde ele conta um pouco de suas memórias. Na semana seguinte, número 829, há uma grande mudança editorial. Nessa época O Malho já estava se transformando numa revista mais leve, cheia de anúncios, mais fotos de vida social e mais fotos do futebol, mas menos política. Raul volta a colaborar com a revista, substituindo Storni como principal caricaturista. Storni ainda aparece, mas muito pouco. Loureiro, Yantok continuam, e entram ilustradores novos, como Di Cavalcanti, pintando capas. Os editores explicam que O Malho “deu um salto do passado para o presente”, acompanhando, com certo atraso, o estilo da cidade reformada e moderna. Na edição seguinte, faz um afago em Ruy Barbosa, que fora tão malhado em 1909. Storni substitui J. Carlos como diretor artístico de Careta em 1922, numa troca entre as empresas. J. Carlos assume a direção das revistas da Sociedade Anônima O Malho, entre elas a Para Todos. Os dois fizeram uma transição suave. No início de 1922, Storni ainda tinha a tarefa de desenhar o personagem Chiquinho para O Tico-Tico, no lugar de Loureiro. Nessa fase, Augusto Rocha, com pseudônimo de Nelson, produz histórias de outro personagem do gênero “homem rústico trapalhão”, o João Garnizé, um concorrente para Zé Macaco, mais bruto, 117 com uma perna de pau e sem uma família. Desenha também Mutt e Jeff, personagens americanos adotados pela equipe de O Tico-Tico. Enquanto isso, J. Carlos, com o pseudônimo de Nicolao, continua a série de seus personagens Carrapicho e Jujuba. A prática dos produtores de O Tico-Tico era considerar todos os personagens como integrantes de uma equipe de “estrelas” da revista, mesmo que fossem de artistas estrangeiros que não chegariam a dar autorização para isso (ver Figura 20). Figura 20. A companhia editorial O Malho fazia anúncio da revista Para Todos especial com uso dos personagens que eram estrelas cômicas em O Tico-Tico, inclusive os estrangeiros, que eram “tomados emprestado” pela editora, no traço dos caricaturistas de sua equipe. Assim, nem Carlitos escapava de entrar para a família dO Tico-Tico. Número 160 de Para Todos (1922). Desenho de J. Carlos. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 118 Os leitores também entendiam assim, presenteando a revista com ilustrações que misturavam os personagens mais queridos, embora viessem de historietas independentes (ver Figura 21). Atualmente isso se convencionou chamar de crossover, quando personagens de proprietários diferentes atuam juntos numa mesma narrativa. De fato, naquele contexto, todos os personagens pertenciam ao mesmo mundo ficcional associado à revista, sendo que a propriedade dos personagens, sob o ponto de vista comercial, não era bem definida. Portanto, era natural que acontecesse, desde que os criadores desejassem. Storni fez uma combinação com Yantok na edição do carnaval de 1912, com os personagens aparecendo uns nas páginas dos outros. Mais tarde, conseguiria manter Zé Macaco na revista ao implantá-lo dentro da história de Chiquinho. Figura 21. Leitor junta personagens de historietas independentes: ele representa Chiquinho e Jagunço como amigos do filho de Zé Macaco, para despeito do acompanhante habitual de Baratinha, o menino Chocolate, que diz, como sempre, “Ué!”. Número 333 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 119 Na edição de 7 de junho de 1922 Storni produz, sem assinar, uma história de capa fazendo Zé Macaco interagir com Chiquinho. Três edições depois, há uma história significativa: Zé Macaco se despede de Chiquinho, para uma viagem de navio, com muita cerimônia e choro. No fim, a piada é que Zé Macaco ia só até a ilha de Paquetá, no meio da Baía de Guanabara. Suponho que é o último Zé Macaco do período, e a despedida era uma metáfora, mas faltam os números seguintes para leitura. Nesse momento, J. Carlos já havia atualizado o desenho do logotipo de O Tico-Tico, dentro de suas ações como diretor. No período em que Storni é diretor de Careta, Augusto Rocha assume suas tarefas em O Tico-Tico, desenhando o Chiquinho. Aos poucos J. Carlos vai tomando os espaços: subordina Chiquinho ao seu moleque Jujuba e em seguida seus Carrapicho, Jujuba e Lamparina tornam-se os personagens principais de O TicoTico, aparecendo quase sempre na capa. A edição 718, em 1922, é a primeira de Storni na Careta. O desenhista passa por um ajuste de estilo. Nessa fase, Storni usa um traço limpo, fino e definido, um pouco semelhante ao de J. Carlos (ver Figura 22). Parece ser uma preocupação dos editores não perder a identidade visual com que J. Carlos impregnou a revista. Para sustentar essa afirmação, há o fato de Storni ter chamado o jovem Belmonte, caricaturista de São Paulo, de estilo elegante como o de J. Carlos, para trabalhar no Rio de Janeiro. Nesse ano Belmonte publica alguns desenhos na Careta. Chegou a visitar o Rio, mas desistiu de se mudar (GONÇALO JUNIOR, 2017). Storni continuou preenchendo os espaços de ilustração com outros colaboradores, mas a substituição de J. Carlos continuava um problema. Durante muito tempo usaram vinhetas de melindrosas e janotas deixadas prontas por J. Carlos. Um pouco depois, chamaram o caricaturista Oswaldo Navarro, de Minas Gerais, que tinha um traço semelhante a J. Carlos, e era especialista em retratar os “jecas” do interior. Durante os anos 1920, pouco muda. A rotina de Storni é fazer a capa da Careta e várias charges internas, em todos os espaços das páginas onde não havia colunas de texto. A arte de Storni, feita para a Careta, diferente daquela feita em O Filhote e das historietas de Zé Macaco, não tem nada de grotesco ou exagerado. 120 Figura 22. Charge de Storni na pág. 27 da edição 1046 de Careta (1928), demonstrando como ele aproximou seu traço do estilo de J. Carlos, chegando até a arriscar fazer três melindrosas. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Storni, no entanto, não abandona O Tico-Tico. Preso por contrato à Careta, costuma realizar ilustrações para O Tico-Tico sob o pseudônimo de SOS ou sem assinar. Assim, tem uma renda extra. Era o mesmo expediente que J. Carlos tinha usado. No capítulo 4 se desenvolve a análise desse período em que Zé Macaco só podia aparecer dentro das historietas de Chiquinho desenhadas por Storni. “Zé Macaco, Faustina e Cia.” reaparecem na edição 1184 (1928), ocupando uma página em preto e branco. Exagerados, chegam da China num navio, admiram o progresso da cidade e se instalam no último andar de um arranha-céu, tão alto que, durante a noite, funcionários removem todo o andar para deixar a Lua passar em sua órbita. Storni assina a historieta como SOS e usa seu novo estilo de traço, fino e fechado, sem sombreados. Inicia-se nova fase regular das historietas de Zé Macaco e Faustina, agora um casal sem filhos. Durante os anos 1930 Storni repete-se na Careta, botando invariavelmente o “Zé Povo”, típico das antigas edições de O Malho, para comentar os discursos da Aliança Liberal de Getúlio Vargas. Zé Povo reclama da falta de originalidade do 121 discurso de Getúlio: “Já me foi prometido por outra gente boa, mas que dê?”. A mesma alegoria da República, que chorava em O Malho pela bancarrota (número 583, 1913), novamente é desenhada por Storni na Careta número 1136 (1930), chorando pelo malandro que é alegoria do “sufrágio mentiroso”. Ele retruca: “Ora bolas! Há tantos anos que me conheces e ainda conservas ilusões a meu respeito?”. Acontece a Revolução de 1930 e as charges são, no princípio, favoráveis às mudanças, mas em 1931, já, o “Zé Povo” aparece enforcado numa árvore – alegoria para a “crise” – e um sorridente Getúlio Vargas é caricaturado embaixo, fazendo promessas de ajuda. Em 1936 começa uma lenta transição para J. Carlos voltar à Careta e Storni sair. Durante o início de 1936, a capa de Careta e a maioria das charges políticas é de Storni, mas J. Carlos fornece caricaturas sobre costumes. Isso vai até a edição 1440, com a maioria dos desenhos sendo de Storni. Na edição 1441, a capa é de J. Carlos e as charges todas são de Storni. Esse arranjo é levado adiante por muitos meses: memoráveis capas de J. Carlos sobre as questões pré-guerra e, no interior, charges burocráticas de Storni. Na edição 1480, J. Carlos redesenha o logotipo da revista, papel de diretor artístico. No número seguinte, J. Carlos já desenha ilustrações internas. Isso continua e no número 1488 as ilustrações internas são divididas meio a meio entre eles. Enquanto isso, J. Carlos mantém seu espaço em O Tico-Tico com as historietas de seus personagens, a cores. E Storni continuava presente na revista infantil com Zé Macaco e Faustina, agora sempre em uma das páginas internas, em preto e branco. As modas são outras, mais de matrizes norteamericanas do que europeias, mas a concepção de Storni é a mesma: seus personagens continuam sendo ridículos na imitação dos hábitos mais modernos e no uso de máquinas. Na edição 1489 de Careta (1937), ainda há mais cartuns de Storni do que de J. Carlos. A partir daí entram novos desenhistas, como o citado Navarro, Nássara e Théo. No final de 1937 não há mais caricaturas de Storni na Careta. J. Carlos reassume totalmente a direção, ocupando a página dupla central e a capa. A essa altura, o filho de Storni, Oswaldo, já produzia regularmente para O Tico-Tico. Seu traço servia melhor às histórias policiais e de aventura. Storni, assim como Loureiro, procurou estabilidade num emprego de desenhista ou cartógrafo no Ministério da Guerra, conforme relatado por Herman Lima (1963, p. 1234), em seu obituário em Correio da Manhã (23/03/1966) e numa 122 nota no Diário Oficial da União (04/04/1946). Segundo o jornal, entrou no serviço público aos 35 anos (1916) e aposentou-se com 32 anos de serviço. Isso não o impediu de desenhar regularmente para todas as publicações lembradas acima. Storni manteve colaboração também no diário Correio da Manhã. 2.4. A estratégia de Storni Apesar de ter produzido uma obra vasta, Alfredo Storni não é o primeiro a ser lembrado entre os maiores caricaturistas brasileiros. Isso é aceitável, porque ele pode ter sido eclipsado por seus contemporâneos Raul, K. Lixto e J. Carlos. Para os aficcionados de histórias em quadrinhos, Storni é eclipsado também por Yantok. Mas se estudarmos e compararmos seus trabalhos com os dos colegas, qualidade artística não pode ser o motivo de uma colocação mais baixa no rank. Suas caricaturas como Bluff (ver Figura 23), suas capas para O Malho, o humor de suas charges políticas brincando com os desfiles de Carnaval (ver Figura 24), a arte grotesca das histórias de Zé Macaco, todo esse conjunto está, tecnicamente, em pé de igualdade com a obra de seus contemporâneos. Portanto, o legado de Storni precisa ser entendido a partir de outra abordagem. 123 Figura 23. Caricatura por Bluff (Storni) em O Filhote número 30 (1910). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 124 Figura 24. Conjunto de charges de Storni na Careta nº 1444 (1936). Distribuídas por sete páginas, são cômicas alegorias dos problemas do país (alguns, perenes) na forma de carros de um “préstito” carnavalesco. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (editado numa imagem única). 125 Assim como o “gênio” é produto de uma trajetória socialmente circunscrita, e não uma predestinação, todo artista de maior ou menor legado produz sua obra de acordo com sua trajetória. Norbert Elias (1995) toma o compositor Wolfgang A. Mozart como objeto de ensaio sobre a genialidade. Mozart foi considerado gênio a posteriori. Elias tenta fazer estudo sociológico desse indivíduo que deixou um legado artístico “genial”. É preciso entender, no contexto daquele músico, em que estrutura social executava sua arte e quais pressões sociais sofria. A resposta é dada na sua expressão artística. As mudanças na relação entre produtores e consumidores de arte leva a mudanças na estrutura social onde a arte é feita e, por fim, mudanças na obra do artista. Há convergência entre o entendimento de Elias sobre a produção da obra artística e a teoria do campo artístico de Bourdieu. Como Bourdieu (1996) argumenta, deve-se estudar a obra observando o ponto de partida do artista e as opções que faz na tentativa de ocupar posições melhores no campo artístico, segundo as regras que o campo estabelece. Quando se fala de artistas que tiveram toda sua obra veiculada pelos meios de comunicação de massa, fechar os olhos para a força do público consumidor fazendo sua parte na configuração da obra não é uma opção. Os caricaturistas, na forma como Howard S. Becker (2009) colocou, são produtores de representações sociais (ou relatos sociais) que só podem trabalhar se os consumidores de representações sociais cooperam e compartilham códigos simbólicos com eles. Isso quer dizer, especialmente no caso da caricatura, que é criada uma “abreviatura conhecida por todos que precisam do material” (BECKER, 2009, p. 34). O público é familiarizado com ela, mas ela limita o que o produtor pode fazer. É mais fácil usá-la para dizer algumas coisas e não outras. Os produtores confiam que elementos típicos produzam efeitos típicos, previsíveis. Não é sempre uma perfeita comunhão; pelo contrário. As representações da sociedade quase sempre exibem “uma forte dimensão moral” que gera “batalhas ferozes” iniciadas a respeito de matérias aparentemente inócuas (BECKER, 2009, p. 37). Do ponto de vista do caricaturista, o editor e o empregador, que são colaboradores dele na organização que produz representações sociais, são também consumidores primários de suas obras. O artista precisa primeiro da cooperação deles para chegar ao público leitor, que também tem papel no processo criativo. Acima foi contada a história de como Storni cortejou a direção de O Malho no final de 1906 para obter uma posição na Capital. 126 A partir dos dados expostos ao longo deste capítulo, é possível traçar algumas conclusões sobre a trajetória de Alfredo Storni no campo da caricatura: a) Assim como Seth e Leônidas, Storni começa na posição de forasteiro, rapaz do interior que pretende vencer na Capital. Ele é um gaúcho da fronteira com o Uruguai. Pode ter tentado, mas sua formação era incompatível com o habitus boêmio dos jornalistas e caricaturistas locais. Parece haver uma disputa entre duas formas do habitus do caricaturista: uma é a forma do boêmio bem relacionado; outra é a forma do recluso que só trabalha. Storni, com certeza, optava pela segunda, assim como J. Ramos Lobão, Loureiro e o citado Seth, tendo Raul como representante do polo oposto. J. Carlos, filho da classe média da Capital, concentravase e trabalhava muitas horas por dia, com disciplina (LUSTOSA, 2006), mas também mantinha vida social. Era um fora-de-série. b) A estratégia de Storni, vindo de onde veio, servia à intenção de construir toda sua vida a partir do trabalho. Não tinha, como Raul, família influente na cidade, capaz de proporcionar postos de trabalho de qualidade no funcionalismo. Não tinha os contatos de K. Lixto para ilustrar tantas peças publicitárias. Não falava a língua da indústria editorial tão bem como J. Carlos, capaz de convencer qualquer um a pedir-lhe uma ilustração de capa. Restava a Storni ser o melhor funcionário entre os caricaturistas, capaz de entregar qualquer tarefa que fosse pedida, e notável por manter relações muito estáveis com seus empregadores. Storni ficou 12 anos na revista O Malho e 14 anos na revista Careta. Sua relação com a Sociedade Anônima O Malho ainda se estendeu muito, pois só parou de colaborar em O Tico-Tico em 1950, 42 anos depois de ter começado. Storni não buscava aumentar sua renda valorizando seu “passe”, mas assumindo o máximo de tarefas. Assim, seguia a estratégia de J. Carlos, de trabalhar em publicações concorrentes com pseudônimo. Isso não evitou que ele procurasse, como Loureiro e Leônidas, um contrato de trabalho mais seguro, e entrou no funcionalismo público, acumulando empregos como artista. 127 c) Os “lances” e “tomadas de posição” do artista não são simples decisões de onde trabalhar e por qual preço. São decisões existenciais, com grande peso simbólico e são expressas pelo aspecto que tomam suas obras. Bourdieu observa que, no campo artístico, “os princípios estilísticos e técnicos são os mais propensos a se tornarem o objeto privilegiado das tomadas de posição e das oposições entre os produtores (ou seus intérpretes)” (BOURDIEU, 2015 b, p.110). Quer dizer que, tanto artistas eruditos quanto profissionais da indústria cultural lutam por posições com as armas da qualidade técnica, artesanal, capaz de legitimar e chamar a atenção para o artista e para sua obra, que se mostra específica e insubstituível. No caso do campo da caricatura, podemos falar do virtuosismo do traço de uns e a capacidade de síntese minimalista do traço de outros. Mas também podemos falar das performances de si, pois “viver da arte” produz determinada “arte da vida”. Raul, por exemplo, desenvolveu, de uma vez por todas, seu próprio estilo – baseado no renovador Julião Machado (CORREA DO LAGO, 1999, p. 48) – e seu próprio tema, a observação poética da sociedade urbana do Rio de Janeiro. Seguro de si, nunca mudou, firmou uma “marca pessoal” até ao extremo de enrijecer sua persona pública, sempre de chapelão e bigodes a la Kaiser. Socialmente, era a figura do poeta bem estabelecido, a quem se perdoavam as extravagâncias. J. Carlos copiou e dominou todas as influências estrangeiras que desejava, do mundo da moda e do entretenimento. Devorou revistas ilustradas e comédias do cinema, fã de O Gordo e o Magro e Carlitos. Estabeleceu não só um estilo próprio, mas a certeza de que ele faria sempre os desenhos mais elegantes e up to date. Storni, porém, modulou sua forma e conteúdo conforme as publicações onde trabalhou. Quando fazia as capas de O Malho, emulava o estilo de J. Ramos Lobão, a quem sucedeu na empresa (ver Figura 25). Já foi narrado acima como Storni emulou J. Carlos quando assumiu seu posto na Careta. Assinando Bluff, desenhou e pintou de maneira oposta e complementar aos seus trabalhos paralelos para O Malho (ver Figura 23, 128 p.123). Storni, autodidata, era capaz de fazer isso, porque é assim que autodidatas aprendem – copiando –, como é o caso de Álvaro Marins, que manteve dois ou três estilos artísticos. Na esfera existencial, o modo reservado como Storni se comportou socialmente é outra expressão da estratégia de não revelar qualquer personalidade ao público. Fazendo assim, tinha facilidade em assumir a personalidade artística que o veículo de imprensa lhe solicitava em cada época. Somente uma obra Storni lembrou de associar a si mesmo, no balanço de seus 64 anos: Zé Macaco e Faustina. Figura 25. Comparação entre uma capa de O Malho feita por J. Ramos Lobão (em 1909) e uma capa feita por Alfredo Storni (em 1913). O mesmo nível de detalhe, os mesmos signos de arte decorativa, a mesma composição, a mesma paleta de cores, o mesmo personagem Zé Povo inquirindo o poder. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. d) Enquanto J. Carlos transferia-se entre as principais revistas, procurando valorizar-se a cada retorno (entrou duas vezes na empresa de Luís Bartolomeu e duas vezes na empresa de Jorge Schmidt), Storni arriscava muito pouco. Enquanto Álvaro Marins tentou montar vários ateliers de ilustração e lançar livros, Storni nunca teve ateliers nem lançou livros que chamassem atenção para si como autor. Nem viajou para o exterior como Leônidas. Foi recompensado apenas na medida de sua perseverança. 129 Yantok teve muitas de suas páginas de Kaximbown transformadas em livros infantis e isso ajudou a fazer seus personagens mais lembrados do que os de Storni: só temos notícia de uma edição de 1933, compilando as páginas de Zé Macaco e Faustina (parte da Biblioteca Infantil de O TicoTico). A exploração dos personagens como marcas comerciais era quase nula. Nos Estados Unidos, no entanto, Buster Brown, o menino de histórias em quadrinhos que deu origem ao Chiquinho, foi um caso de sucesso comercial desde os primeiros anos, vendendo sapatos infantis com seu nome até a atualidade (GORDON, 1998). Fica só na imaginação o que Storni poderia ter feito com a marca Zé Macaco, em seu tempo. Essa marca, devido a sua popularidade, pelo menos serviu para ancorar Storni à redação de O Tico-Tico, por décadas. Mesmo quando parava de produzir as histórias por anos, os leitores e os editores continuavam se lembrando dele, favorecendo uma volta. e) Faltam dados biográficos, mas conclui-se, pela interpretação da obra, que Storni, assim como outros caricaturistas, foi formado no habitus de classe da pequena burguesia. Autodidata, reservado, imbuído da convicção de que seu trabalho o levaria ao triunfo material, céptico em relação às novidades, ressentido contra a elite que desperdiça o dinheiro ganho muito fácil e contra a política, que, com traições, dificulta seus planos de progresso, pregador da retidão moral e do sacrifício pessoal era o caricaturista. Felizmente, segundo Herman Lima (1963), a intenção pedagógica – ou, mais apropriadamente, moralizante – das historietas de Storni com Zé Macaco existia como fundo, mas nunca encobria a comicidade prazerosa e surpreendente que era o motivo da leitura. Storni pode ter encontrado, numa de suas tomadas de posição no campo, um estilo e uma obra correspondente que, por trair seu habitus de classe pequenoburguês, encontrou receptividade num público de classe média que se expandia naquele período histórico, na Capital Federal. Que narrativas Zé Macaco e Faustina traziam para o prazer desse público, isso será visto adiante. É possível que a mutação da série de historietas, de uma aventura solitária de “homem trapalhão” para o cotidiano surreal de um novo-rico com família tenha relação com a 130 descoberta de que seu público (um público familiar, e não apenas infantil, como se supunha) se identificaria mais com esse perfil de personagem. O próprio caricaturista tornou-se pai em abril de 1909. Uma vez que, a) devido à configuração do campo da caricatura, com sua “divisão de trabalho” bem estabelecida e muito pouca autonomia dos artistas, não é de se acreditar que Storni pudesse impor a publicação de seu personagem à direção da Sociedade Anônima O Malho, b) como a série de historietas de Zé Macaco, diversas vezes, foi suspensa, para retornar “a pedidos” anos depois, e c) como se verifica que a estratégia de Storni era a de manter elos muito duradouros com seus empregadores, pode-se sugerir que, pelo contrário, retornar, todas as vezes, aos personagens de grande fama foi estratégia de Storni para manter-se empregado. Os personagens, devido à popularidade, eram o “ativo” que o caricaturista tinha para negociar com os editores, que desejavam a continuação. Isso, e não uma “inspiração” ou projeto artístico fez com que o casal Zé Macaco protagonizasse uma série de historietas ilustradas tão longeva. O que Storni fez com o material, para mantê-lo atualizado sem descartar as qualidades que o popularizaram, será dissertado adiante. 3. A cômica interação entre pessoas e coisas nas aventuras de Zé Macaco Para interpretar a obra de Alfredo Storni em O Tico-Tico e compreender melhor sua posição de mediador de representações sociais, foi preciso abordá-la por diferentes caminhos. Uma das abordagens, desenvolvida neste capítulo, ocupa-se da representação que o autor fez dos objetos materiais e das interações entre seus personagens e os objetos. Os motivos dessa estratégia se fundamentam em duas formulações teóricas: a primeira sustenta que a sociedade se vale de objetos, além de palavras, para manter comunicação; a segunda dispõe que os sujeitos só podem se desenvolver através de relações que mantêm com objetos de toda ordem. Essas relações parecem ser mais evidentes em sociedades que estão experimentando as transformações da modernidade, em meio à expansão da oferta de bens e da variedade de hábitos de consumo. Os caricaturistas do início do século XX chegam a propor imagens cruéis que criticam essas transformações (ver Figura 26). O autor da piada, dada a conjuntura de 1913, desenhou como seria o mundo no futuro próximo: “o progresso caminha tanto que, em 1920, todos viajarão pelos ares”23. A polícia também tem sua máquina voadora e alguns tomam o transporte coletivo. Só não estará nos céus, diz a legenda, “quem for como o pobretana que abaixo se vê”. Porém, como cai todo tipo de objeto de consumo lá dos aeroplanos e dirigíveis (meias, lenços, chapéus, panelas, guarda-chuvas etc.), o excluído pode viver da coleta dos excedentes numa rede. Pode ser que ele se machuque, eventualmente, com a queda de uma garrafa de cerveja, mas a obtenção da bebida compensa o trauma. 23 As matrizes do desenho podem ter sido as ilustrações de elegantes máquinas voadoras pelo ilustrador francês Albert Robida (1848 – 1926) que, em 1902, publicava cartoons com o tema futurista da “vida no ano 2000”. 132 Figura 26. Todos – quase todos – viajarão pelos ares. Página 2 do nº 370 de O Tico-Tico (1913). Sem assinatura de autor. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Da mesma forma, Alfredo Storni tendeu a narrar o envolvimento de seus personagens com objetos ou, em outras palavras, encontrou necessidade de representar muitos objetos para produzir efeito cômico em suas historietas. Partindo de algumas considerações teóricas que constituem a primeira parte deste capítulo, 133 foi possível, na segunda parte, ler e interpretar um recorte da série de Zé Macaco e Faustina com maior profundidade. 3.1. Considerações teóricas: a modéstia dos objetos Antropólogos legam-nos a concepção de que a relação entre indivíduos e objetos, especialmente os mais cotidianos e familiares, não se resume nem à posse, nem ao uso. A prática inerente ao uso do objeto empenha o corpo do usuário de uma maneira que equivale a um treinamento (às vezes, conscientemente, caso da relação do atleta com o material esportivo, por exemplo). Mais do que isso, o objeto cotidiano é psicologicamente e neurologicamente inserido no esquema corporal da pessoa. Poucos negariam que uma perna mecânica, com o hábito, liga-se ao resto do corpo tanto quanto uma perna natural, do ponto de vista do usuário. A proposição é de que isso se passa também, por exemplo, entre pessoas e seus veículos ou pessoas e suas ferramentas, mesmo que os elementos desses pares sejam materialmente independentes (WARNIER, 2001). Conforme essa concepção, só é possível “estar no mundo” em associação com nossos objetos materiais. O conjunto de objetos e suas formas de uso fazem parte de nossa cultura (ficando ele, ainda, à disposição de interpretações individuais). Por meio de objetos carregados de significados, comunicamos, talvez, mais do que com palavras, somos socializados durante a infância e interagimos com outras pessoas e com o ambiente. Na argumentação do antropólogo Tim Dant, “as relações sociais e culturais entre os indivíduos nas sociedades da modernidade tardia parecem ser, mais do que em qualquer outro tempo no passado, mediadas através de objetos materiais” (DANT, 2006, p. 290, tradução minha24). No entanto, corremos o risco, enquanto pesquisadores, de considerar o simbolismo dos objetos muito mais importante do que a interação material que eles têm com as pessoas. É um tipo de desvio a favor do plano intelectual: “Enquanto, às vezes, sentimos que vivemos a existência através da mente e da imaginação, o corpo é sempre veículo dessa vivência e nosso engajamento com outras pessoas e objetos é sempre mediado pelo corpo” (DANT, 2006, p. 300, tradução minha25). “The social and cultural relations between individuals in late modern societies would seem to be, more than at any time in the past, mediated via material objects.” 25 “While we may sometimes feel that we experience existence through the mind and imagination, the body is always the vehicle of this experience e and our engagement with other people and other objects is always mediated through the body.” 24 134 Mauss, no influente ensaio sobre as técnicas do corpo, nos lembra que “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem” (MAUSS, 2003). O corpo, conforme Foucault (2014), é o objeto sobre o qual atuam os instrumentos disciplinares. As ações disciplinares que concorrem no processo civilizador costumam se concentrar na adequação do corpo ao uso de novos objetos e sistemas. Exemplos: no passado, posição de braços e cotovelos no uso de pratos, taças, talheres e guardanapos; na atualidade, braços, cotovelos e pescoços na leitura da tela do smartphone, num vagão de metrô. Além de participarem da constituição de nosso “modo de estar no mundo”, objetos auxiliam na naturalização da ordem social na vida de um indivíduo. Cultura, em seu conceito estruturalista mais sucinto, é o sistema como a sociedade classifica as coisas do mundo. Ao realizar isso, a sociedade classifica também as pessoas. A ordem das coisas associa-se à ordem das pessoas na sociedade. A ordem torna-se silenciosamente aparente, porque “Objetos surgem como sendo mais naturais que palavras, uma vez que, no geral, são encontrados por nós como coisas que já estavam ali, enquanto a linguagem falada, por exemplo, é produzida na nossa frente” (MILLER, 2002, p. 407, tradução minha26). É como se objetos exibissem uma qualidade que pode ser chamada de “humildade”: sua materialidade faz com que se misturem ao ambiente e sejam naturalizados, mas isso esconde a força com que podem expressar identidades, marcar posições na ordem social e indicar distinções de classe (BOURDIEU, 2013), inclusive constrangendo a liberdade de ação dos indivíduos. O sociólogo das ciências Bruno Latour (2009) defende que o conjunto dos objetos materiais e tecnológicos devem ser os agentes invisíveis que colaboram na manutenção da civilidade. Objetos seriam seres não-humanos – criados por humanos conforme conhecimento sobre qual é o comportamento humano padrão – que substituem humanos em algumas funções em que estes, eventualmente, falharão. Um exemplo é a porta com fechamento automático, que substitui um porteiro e que nunca falha na tarefa mecânica de manter a porta fechada após a passagem de alguém. Se confiássemos apenas na etiqueta dos humanos, parte das vezes a porta ficaria aberta, contrariando as normas da casa. Outro exemplo é o cinto de segurança automático que não permite a partida do motor do carro até que “Objects often appear as more “natural” than words, in that we come across them in the main as already existing things, unlike at least spoken language, which is produced in front of us.” 26 135 o motorista esteja seguro. Os não-humanos, chamados corriqueiramente de coisas, estariam mantendo, em conjunto com os humanos, a ordem social, especialmente quando não são percebidos nessa atividade. Por analogia com os estudos semióticos, os objetos podem ser estudados por suas qualidades comunicativas. Daniel Miller (2002, p. 406 - 407) concorda que essa analogia é capaz de demonstrar a maleabilidade simbólica dos objetos, mas tem suas limitações. “Artefatos”, diz ele, não são palavras. Comparados com palavras, eles têm conteúdo muito menos definido, e os padrões e “gramáticas” que eles podem formar não correspondem necessariamente a unidades de significado como os termos linguísticos de uma frase. Sensorialmente, a percepção de objetos materiais é muito mais sutil, rica e imediata, em todas as suas dimensões sensoriais (percepções do olfato, do gosto, do tato e da visão), em comparação com a descrição deles por palavras. Objetos apresentam-se com todos os seus aspectos ao mesmo tempo, enquanto o discurso, tipicamente, é uma sucessão de elementos em ordem. Abala o nosso senso comum apontar alguma superioridade da comunicação por objetos em relação à linguagem verbal como forma de atuar sobre o outro. Porém, para Miller (1987, p. 105 - 107), os “artefatos” têm superior flexibilidade simbólica. Embora pareça que o objeto fixa o significado com sua existência concreta, é a linguagem verbal que possui muito maior controle sobre a interpretação de uma dada mensagem. Muitas lutas são travadas em torno da interpretação do significado de objetos, segundo diferentes perspectivas sociais de gênero, classe e raça, por exemplo, mas o objeto “aceita” representar, ao mesmo tempo, diferentes perspectivas sociais, que podem coexistir. É claro que os objetos são concebidos e produzidos segundo culturas que subentendem uma ordem linguística, mas suas características físicas não são determinantes do uso que diferentes culturas (ou diferentes perspectivas sociais) fazem deles. Esse fenômeno é importante porque as novidades tecnológicas e, no contexto deste estudo, exóticas, tais como a eletrificação, o cinema, o fonógrafo, por exemplo, aceitam representações com viés local, de classe, raça ou gênero. Entram em disputas simbólicas que circulam nas conversas privadas, debates públicos e, inclusive, no trabalho dos caricaturistas. Demandam mediação para ganhar lugar na classificação cultural e um significado local. Os caricaturistas colaboravam nessa mediação por expressarem uma visão particular dos prós e contras das transformações no mundo cotidiano, esse que está repleto de objetos. 136 3.2. Sujeitos e objetos; corpos e coisas É preciso ressalvar que, nesta investigação, o foco é a representação dos objetos, via arte da caricatura, que os substitui por ícones visuais e, portanto, estão limitados a uma dimensão simbólica. No entanto, leva-se em conta que o artista desejou ou precisou representar tais objetos porque as pessoas, que geram seus assuntos e constituem seu público, estavam se relacionando com eles nas duas dimensões, simbólica e concreta. Por isso, essas pessoas tinham que assimilar as novidades não só com suas mentes, mas também com seus corpos. Na historieta de 1911 (ver Figura 27), o menino tinha que experimentar a máquina com seu corpo, para aprender o que ela era. Baratinha, filho de Zé Macaco, vê uma novidade nas ruas do Rio de Janeiro: um rolo compressor da reforma urbana. Ele faz uma leitura errada: pensa que serve para passar roupa. Atira-se embaixo da máquina, fica todo amassado, é levado pelo guarda até seus pais, na forma de um tapete enrolado, e se recupera graças a uma bomba de ar. 137 Figura 27. Baratinha deseja passar sua roupa a ferro. Página 14 do número 277 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Bibloteca Nacional. A representação de objetos tem terreno fértil na caricatura justamente pelo potencial simbólico deles. Na arte da caricatura, todo ícone gráfico que o artista faz entrar na composição do quadro precisa contribuir para o significado do todo. A caricatura é uma arte frugal, que evita distrair o olhar do espectador com traços 138 apenas decorativos. É uma arte de composição, que equilibra poucos traços exagerados num arranjo que possibilita representar um “todo” muito mais revelador do que uma transposição completa do assunto em imagens, sem mediação artística, poderia (SIMMEL, 2016). O crítico de arte Ernst Gombrich dissertou como os caricaturistas contribuíram para o conjunto dos meios expressivos das artes plásticas. Segundo ele, artistas dos séculos XVIII e XIX, como Töepffer, Hogarth, Bernini, Philippon e Daumier estavam descobrindo maneiras de representar, principalmente, as emoções humanas, por meio de traços econômicos, feitos “de memória” e não “do estudo do natural”, a ponto de essa técnica poder ser descrita e ensinada como uma tabela de termos significantes que chegaria a envolver alguma “gramática” para articulá-los (GOMBRICH, 1986). Por cautela, é preciso estar ciente de que os ilustradores e escritores do semanário não estavam reproduzindo a realidade imediata, mas traduzindo a observação que faziam da realidade social em termos de representações mais ou menos tipificadas, para não dizer estereotipadas. O processo criativo dos caricaturistas pode ser entendido na forma como Howard S. Becker (2009) o explica quando estuda a “arte como ação coletiva” e quando descreve a cooperação entre “usuários e produtores de representações”: Os produtores esperam que elementos típicos tenham efeitos típicos, de modo que os consumidores de representações feitas com esses efeitos respondam de maneiras típicas. E os usuários esperam a mesma coisa em sentido inverso: que os produtores se sirvam de elementos típicos, com que estão familiarizados e aos quais saibam responder (BECKER, 2009: 33). Portanto, todo elemento representado numa ilustração, charge ou história em quadrinhos, seja um ser humano, um animal ou peças do cenário, está lá porque o leitor (usuário da representação), na maioria das vezes, o reconhece e percebe seu significado. Os elementos em conjunto serão interpretados, junto com a representação textual, para formar o sentido da história. Cada elemento desenhado tem alguma função no processo de tradução/interpretação. Por um lado, o desenhista (produtor da representação) só pode se valer de objetos com que o leitor tenha familiaridade; por outro, a ilustração é um grande meio de familiarizar o leitor com objetos recentemente introduzidos na sociedade. Tais objetos ainda eram, na época, assunto de negociação para estabelecer seus significados na cultura. A 139 técnica usada pelo caricaturista teria que ser a de associar a figura desconhecida a alguma figura já bem conhecida. Um exemplo das representações das relações pessoa-objeto, nas historietas ilustradas de O Tico-Tico, foi publicado na edição nº19 (1906). O tema é recorrente nas narrativas cômicas da virada de século: pessoas do interior, mesmo sendo bem situadas na hierarquia social, se atrapalham e passam vergonha quando visitam a capital (ver Figura 28) . Família de fazendeiro, passeando pela Capital, 27 experimenta a velocidade do automóvel. O filho engole vento e infla feito um balão. 27 O tema é recorrente. A história em quadrinhos As aventuras de Nhô Quim ou impressões de uma viagem à Corte, de Angelo Agostini (publicada em 1869 na revista Vida Fluminense) leva um caipira à capital. Na peça teatral Guanabarina (1906), de Artur Azevedo, a família caipira de Dona Candoca passa muito desgosto em meio aos automóveis e às obras da reforma da capital, sem conseguir descobrir onde moram os Barroso, que iriam hospedá-los (SICILIANO, 2014: 220-228). Esses são apenas dois exemplos. Para Sérgio Buarque de Holanda (1995), o “agrarismo” da sociedade brasileira ficava evidente pelo comportamento dos fazendeiros, os quais detinham poder mas não viviam nos centros urbanos; somente os visitavam em caso de necessidade. No início do século XX a transição para um “urbanismo” já estaria a meio caminho, e essa figura do fazendeiro já é representada como um indivíduo deslocado e ultrapassado. 140 Figura 28. Passeio na “capitá federá”, como diz Seu Estanislau. Página 5 do número 19 de O TicoTico (1906), por Leônidas Freire. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A piada do cartunista Leônidas é sobre o despreparo da família interiorana, ainda que fosse abastada, para as práticas modernas existentes na Capital Federal, como passear de automóvel. Interpretamos que a senhora Procópia Baeta nunca 141 havia andado de automóvel, o qual ela chama de “bicho”, mas já sabia que era uma experiência moderna que deveria ser tentada na primeira oportunidade. Nenhum dos Baetas estava preparado para a velocidade do automóvel, o que causou o fantasioso acidente com o menino Xitibinha. Essa é a crônica de uma sociedade que está apenas começando a naturalizar objetos como o automóvel, e seus corpos ainda sofrem muito na interação com eles. No entanto, o fascínio dos objetos modernos é mais forte e essa interação parece inevitável. Na ilustração, podemos observar a representação das roupas da família Baeta, do uniforme do “chauffer” e o modelo do automóvel, além de um detalhe sutil do cenário arborizado da Avenida Central. Na caricatura, objetos costumam ser desenhados com intenções narrativas. Por exemplo, a cartola, a casaca e a bengala do Seu Estanislau Baeta, na historieta da Figura 6, denotam que aquele personagem é um homem rico. Na historieta da Figura 4, no entanto, o mendigo também vestia casaca e ganhou cartola. Para o leitor ter certeza de que se trata de um mendigo, o cartunista acrescentou remendos à casaca e furos às solas dos sapatos. É, como foi lembrado, uma técnica combinatória (“casaca” mais “remendo” denota “estado de mendicância”). As histórias do Zé Macaco oferecem exemplos de tal gramática, como será aprofundado adiante, neste mesmo capítulo. Além da dimensão simbólica e cultural dos objetos, pode-se dizer que as coisas têm também uma importância ontológica, o que fundamenta nossa atenção para elas na análise das historietas de O Tico-Tico. Uma pesada tradição filosófica foi estabelecida na compreensão da relação entre sujeitos e objetos, entre seres humanos e o ambiente, e entre pessoas e coisas. Nela se destaca Hegel, que teria escrito – segundo um comentário que Daniel Miller (1987) fez dele – A Fenomenologia do Espírito como uma narrativa: a autobiografia do espírito ou da mente. Em outras palavras, um processo de evolução do sujeito numa sucessão de estágios ou um caminho de autoconhecimento. Em cada um dos estágios, o sujeito precisa se distanciar ou se alienar de um objeto que, anteriormente, não percebia que era diferente de si mesmo. O movimento seguinte seria incorporar, ou absorver, intelectualmente, esse objeto, o que transforma o próprio sujeito. Assim, o sujeito não é uma coisa dada nem estática; é fruto de um processo longo e difícil, de confrontação consigo mesmo. É o desconforto com sua incompletude e com o próprio estágio em que se encontra que faz o sujeito buscar mais. No processo, não há causa externa para o movimento 142 do sujeito. O entendimento que Miller (1987) faz de Hegel é que o sujeito, o objeto e o processo são inseparáveis. Não há um “sujeito-base”, porque ele é sempre constituído pelo próprio processo de absorver seu objeto. Essa “objetificação” é a relação constituinte de ambos, sujeito e objeto. Miller entende que Hegel não se ocupava dos objetos de consumo; porém, afirmava que o processo de desenvolvimento não se passa no interior do sujeito, e sim na atividade externa, social. Hegel já vivia na época da multiplicação dos objetos manufaturados e industriais. Foi, segundo comentário de Habermas (2000, p.8), o primeiro filósofo a desenvolver um conceito claro de modernidade. Em vez de, como os românticos, procurar uma unidade holística como âncora contra essa inflação de materialidade, ele viu positivamente essa variedade, porque beneficiava o desenvolvimento dos sujeitos. Daniel Miller (1987), continuando um argumento em que investiga a cultura do consumo, faz um comentário sobre Marx, para o qual o processo hegeliano em que o objeto se separa do sujeito (a externalização) não seria um meio de desenvolver o potencial do sujeito, mas sim um obstáculo. O problema da modernidade seria que os trabalhadores (sujeitos da produção capitalista) não se reconheciam nos objetos (produtos). O distanciamento – ou alienação, conforme o jargão – era forçado pelo sistema; eles não tinham acesso aos próprios produtos e o sistema de trabalho era hostil ao autoconhecimento. Esse desconforto social só iria ser solucionado quando o sujeito (a classe operária) voltasse a se identificar com o mundo material dos objetos, pudesse ver que os bens são trabalho materializado; são a objetificação dos trabalhadores. A tensão, nessa visão, é constante, e o alívio paira no futuro. No modelo de Hegel, a tensão é a própria existência, e os momentos de separação e reassimilação entre objeto e sujeito são concomitantes. Georg Simmel (1971) também se ocupa do assunto e chega à conclusão de que o processo de desenvolvimento do sujeito agrega aspectos positivos e negativos indissociáveis. O sujeito da argumentação de Simmel não é o produtor, de Marx, mas o consumidor, que precisa descobrir como desenvolver sua própria vida mergulhada num mundo de coisas. De fato, num mundo que cada vez tem mais coisas. O problema, para Simmel, é que a multiplicação dos objetos no nosso tempo supera a capacidade dos indivíduos de os incorporar ao seu próprio aperfeiçoamento. Mais do que isso, a relação com as novidades pode ser e tende a 143 ser superficial. O uso dos sistemas modernos prescinde do entendimento profundo de como eles funcionam e do desenvolvimento “espiritual” correspondente. As relações são mediadas, por exemplo, pelo dinheiro, o que aplaina diferenças. Como cada indivíduo pode desenvolver sua vida “assimilando” objetos e sistemas diferentes, de todos os que são oferecidos, acaba tendo “pouco em comum” com o indivíduo próximo, a não ser aqueles poucos elementos eleitos como terreno comum de qualquer um que pretenda pertencer ao grande círculo social global civilizado. Mais uma vez, superficialidades. A liberdade de ser “desigual” e a subjetividade que se estabelece na procura incessante de novos estímulos e de desenvolvimento pessoal, no entanto, tem seu valor positivo e só pode existir nesse ambiente. Segundo Simmel, somente o ser humano pode, por cultivo subjetivo, com intenção deliberada de aperfeiçoamento, usando meios externos (os meios presentes da Cultura), ser mais do que seria apenas por força da natureza (SIMMEL, 1971, 1998a, 1998b, 2005). A pulsão de busca ou aperfeiçoamento pessoal, paulatinamente, aproxima sujeitos de objetos ao mesmo tempo em que afasta sujeitos de outros sujeitos. Acompanhando – como o historiador Alain Corbin fez – a trajetória de hábitos de consumo que demandam novas relações entre as pessoas e os objetos, é possível acompanhar também o processo pelo qual, entre os séculos XIX e XX, aumenta o grau de individualismo dos habitantes dos centros urbanos modernos, enquanto tais traços vão se difundindo também pelas populações rurais e de pequenas cidades. Entre tantas novas relações “pessoa-objeto” que surgem durante esse período, chamam a atenção aquelas em que o comportamento humano torna-se mais individualista em função do uso do objeto. Nesse período histórico, no ambiente das metrópoles, difunde-se o espelho, o retrato pessoal, o quarto de dormir e a cama individual, o banheiro privado, a leitura individual, o hábito do diário, a rotina controlada por relógio, a boneca, o animal de estimação, o piano doméstico, cosméticos, produtos de higiene pessoal e as peças de lingerie mais sofisticadas, inclusive o espartilho (CORBIN, 2009). As historietas de O Tico-Tico muitas vezes reproduziam lições civilizadoras, como a da observância do relógio na rotina (ver Figura 29). Conta-se a história de um rapaz que precisava se acostumar com o ritmo de vida urbano moderno. Seu pai, preocupado com seu mau hábito de atraso, pede ajuda ao próprio Tempo e ganha desse ser sobrenatural uma ampulheta mágica para dar ao rapaz. A ampulheta 144 tinha o poder de arrancar o rapaz de sua rotina e atirá-lo sem perdão no caminho do trabalho, assim que escoasse o tempo permitido. Assim, o rapaz chega ao trabalho só com meia barba feita, sem tomar café e sem se vestir completamente. Para evitar esse constrangimento, o rapaz começa a fazer sua rotina diária com pressa, o que lhe causa acidentes: corta o rosto e queima a língua. No final, como síntese do processo, ele acaba adequando perfeitamente sua rotina e sua percepção de tempo às exigências da sociedade, e a ampulheta mágica é recolhida. 145 146 Figura 29. A ampulheta encantada educa o rapaz atrasado. Páginas 12 e 13 do nº 200 de O TicoTico (1909). A julgar pelo estilo de desenho e diagramação, é tradução de La Jeunesse Illustrée. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Para viver entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, nos grandes centros urbanos, indicava-se o aprendizado de como usar novas máquinas, vestuário, cosméticos, itens de cuidados pessoais, itens de lazer, esporte, cuidados com o lar etc. Essas tecnologias demandavam uma adaptação das rotinas 147 diárias, dos conceitos culturais e da própria mecânica corporal. Por exemplo, o uso da bicicleta demandava o aprendizado do equilíbrio e o fortalecimento muscular, a noção de manutenção de máquinas, além da atenção ao trânsito (treinamento dos sentidos). É do que o antropólogo Jean Pierre Warnier (2001) trata, quando conceitua que se pode fazer uma abordagem “praxiológica” da subjetivação, mediada, portanto, pelo aprendizado do uso de objetos. O indivíduo precisa empenhar o corpo no uso do objeto, o que não quer dizer que todos obedecerão à mesma rotina. Numa historieta de Leônidas, um menino inventa uma maneira diferente de empenhar o movimento do seu corpo para cumprir sua obrigação de acionar a bomba manual de água. Assim, executa a tarefa com prazer em vez de esforço (ver Figura 30). O pai do menino achava que ele estava muito ocioso, instala uma bomba d’água no quintal e manda o menino operar a alavanca. Prevendo que seria cansativo e aborrecido, o talentoso menino inventa um novo processo: amarra a alavanca nas costas de uma cadeira de balanço. Agora, enquanto ele balança na cadeira com prazer, opera a alavanca ao mesmo tempo: “Tonico Cebolinha, brincando, trabalhava, sem desobedecer a seu pai”. 148 Figura 30. Engenhoso menino usa a cadeira de balanço pra bombear água. Detalhe da página 7 do número 16 de O Tico-Tico (1906). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Jean Baudrillard (2000), no seu ensaio sobre como se estrutura o sistema de significação formado pela multitude dos objetos modernos, aponta dificuldades teóricas para a empreitada, e uma delas é a de que a tecnologia, o sistema de desenvolvimento concreto dos objetos, insere todos numa estrutura abstrata e 149 funcional, mas eles escapam continuamente para outras significações, dentro de um sistema cultural. Importa ao pesquisador descrever, portanto, “as modalidades de obstrução das técnicas pelas práticas” (BAUDRILLARD, 2000, p.16). Em outras palavras, o “uso” dos objetos para além de – e contra – seu planejamento, o que se faz individualmente numa imersão sócio-cultural. O autor procura “não a coerência abstrata, mas as contradições vividas dentro do sistema dos objetos” (idem). O caricaturista parece dizer que há, sim, como assimilar a introdução de uma máquina na vida cotidiana de uma maneira própria, local ou individual, tornando aquela máquina parte dos seus objetos e suas rotinas. Resolver o problema e ser reconhecido por isso (virar um herói de historieta) subjetiva o menino como um “talento”, um indivíduo engenhoso. 3.3. Um inventário de objetos nas histórias de Zé Macaco Se as histórias estavam sendo criadas e lidas num contexto histórico de rápidas transformações materiais, e, além disso, num contexto em que a modernização estava na agenda política, esse era o assunto dos artistas da caricatura, conscientemente ou não. Era o material de suas piadas e representações, quando não a própria motivação artística. Assim, eles ocupavam posições de mediadores das representações sociais necessárias para a absorção das novidades materiais da modernidade e a subsequente subjetivação dos leitores como crianças e jovens brasileiros afinados com projetos de progresso e civilização. O simples fato de narrar, com suas histórias engraçadas, o embate dos personagens com aqueles objetos às vezes desejados, às vezes amedrontadores, e de narrar as maneiras mais inventivas de absorver essas coisas modernas ao seu quotidiano, modificando até mesmo a experiência com seus corpos, esse trabalho narrativo, por si só, já tinha a importância de lançar a questão em jogo. Em seguida, registrava os lances das partes envolvidas – produtores e consumidores de representações. Para aplicar essas perspectivas teóricas a esta pesquisa foi necessário recortar, de sua vasta produção do semanário O Tico-Tico, uma pequena série de historietas em que Storni desenvolveu o personagem Zé Macaco: somente as páginas publicadas no ano de 1911. São as histórias do “retorno” do personagem, transformado, do tipo popular que havia sido, num “arrivista” da sociedade que ganhou dinheiro fortuitamente e começou a viver como burguês. Esse período é 150 mais pertinente para responder às investigações deste estudo, já que a área central da capital federal, o Rio de Janeiro, tinha sido modernizada havia poucos anos, e as dúvidas geradas pela Primeira Guerra Mundial estavam distantes. Conforme se disse, os brasileiros viviam a “era das certezas” (COSTA e SCHWARCZ, 2000). O relacionamento com as novidades da época tais como máquinas, diversões e modas é o eixo da maioria das 35 historietas publicadas durante 1911. Uma vez que esse é o eixo temático das histórias de Zé Macaco no período destacado, foi preparada uma tabela de leitura, com anotações sobre quais personagens aparecem, resumo do enredo, quais objetos são retratados, quais tipos de ações os personagens executam com aqueles objetos, qual o cenário das ações, frases relevantes do narrador ou dos personagens e observações gerais, relacionadas com o contexto histórico e com outros dados obtidos de outras seções do jornal. A primeira parte do trabalho foi analisar a coleção dos objetos representados. Entre os objetos, destacam-se, por sua maior frequência, veículos (especialmente automóveis e aeroplanos), peças de vestuário e itens necessários ao consumo nos momentos de lazer. Objetos necessários ao desempenho do trabalho tais como instrumentos e ferramentas, no entanto, são raros. Desde a primeira história da volta de Zé Macaco à revista, no segundo número de 1911, esse personagem exibe um aparelho voador que ele mesmo inventou, chamado “aéreo-burro” (ver Figura 31). Trata-se de uma mistura de aeroplano com balão dirigível que também inclui um burro na estrutura. O burro entra ali por ser o objeto que Zé Macaco melhor associa à atividade de transporte, e por ser uma metáfora para a falta de percepção intelectual aludida. Sem dúvida, nessa história, satiriza-se a “burrice” daqueles que se encantam com os aparelhos voadores, seguindo-os pelos campos, tentando, em vão, participar da suposta glória dos aeronautas28. Em relação aos transportes, o “aéreo-burro” aparece mais de uma vez, assim como automóveis, além de um bote a remo e um navio a vapor. Nesse recorte, curiosamente, não aparecem bicicletas, apesar de serem um símbolo da modernidade e figurarem em muitas historietas de outros autores da mesma revista. O personagem Chiquinho tem uma sequência de trapalhadas com uma bicicleta; antes dele, Juquinha, de J. Carlos, também tinha explorado trapalhadas de bicicleta 28 Alberto Santos-Dumont, pioneiro da aviação, era figura de grande destaque na imprensa da época, recebendo homenagens, sendo fotografado e caricaturado em todas as revistas. 151 durante semanas; a própria Faustina, mulher de Zé Macaco, faz loucuras com uma motocicleta alguns anos depois, numa capa de 1913. Figura 31. Zé Macaco carrega a família para exibir sua invenção, o aéreo-burro, e os burros todos, excitados, correm para saudá-lo. Página 14 do nº 275 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Itens de vestuário são representados muitas vezes, quando os personagens se arrumam para eventos sociais (ir ao restaurante, brincar carnaval, passear no centro recém-reformado do Rio de Janeiro), e nas histórias em que se preparam para uma 152 missão (civilizar o sertão, por exemplo, ou salvar um dos familiares de alguma enrascada). São casacos, toucas de aviador, cartolas, gravatas, bengalas (Zé Macaco tem uma bengala distintiva, com cabo que termina num caju) e sombrinhas, flor na lapela, saia-calção (na história em que a esposa de Zé Macaco tenta entrar na moda do jupe-cullote), bolsa de franjas, chapéus (sendo que Faustina, esposa de Zé Macaco, inicialmente usava um cesto de palha no lugar do chapéu), lenços (especialmente para enxugar lágrimas e acenar em despedidas), botas, berrante, binóculo, cocar e tanga, chinelos, avental, robe e outras peças. Os hábitos de Faustina só vão se sofisticando nos anos seguintes. É possível fazer uma pesquisa apenas com a representação que Storni faz das modas femininas de seu tempo. Não desenha vestidos genéricos, mas modelos específicos da temporada em que a historieta foi publicada, especialmente os modelos de chapéus. Outros objetos representados com frequência são os modernos postes de iluminação elétrica da Avenida Central, recém-aberta na época. São signos icônicos que, num desenho caricatural, insinuam, com poucos traços, que a cena se passa no ambiente moderno da região central do Rio de Janeiro de início do século XX. Storni, como típico caricaturista, só desenha os poucos objetos necessários para, em conjunto, insinuar em qual ambiente os personagens estão presentes em determinado quadrinho. Assim, as cenas em restaurantes e cafés exigem mesas, cadeiras, pratos, talheres e taças; a cena na sala de cinema só precisou do cartaz na porta e das fileiras de poltronas; a cena de carnaval exibia o trio “bisnaga-confeteserpentina”. Embora essas situações sejam de consumo, o ato de comprar ou pagar um serviço aparece apenas uma vez nas histórias desse recorte, e não se representa o dinheiro ou outro tipo de moeda de troca. Outra ausência notada foi a de objetos profissionais, como instrumentos de trabalho. O único momento, nesse recorte, em que os protagonistas trabalham é quando Zé Macaco e Faustina, eventualmente sem dinheiro, se candidatam a atores cômicos no Teatro de Variedades. Eles apenas se vestem de casaca colorida e roupa de balé, respectivamente, e executam qualquer número no palco (ver Figura no capítulo 4, p.184). Objetos como vara de pescar, corda, tesoura e cola, apesar de representarem instrumentos de trabalho, são usados por Zé Macaco em cenas em que precisa resgatar ou consertar o corpo dos seus familiares (inclusive um cão muito feio). A exceção notável é a dos cassetetes dos guardas. Policiais civis e militares são frequentes nessas histórias (não só de Storni; dos caricaturistas em 153 geral) e seu trabalho é fundamentalmente repressivo; daí que os cassetetes baixam muito nas cabeças dos personagens. Também há a exceção de um fotógrafo profissional com sua máquina numa determinada história, e os paramentos de um batizado (na história em que se dá nome à mulher de Zé Macaco). 3.4. Zé Macaco e Faustina, engenhosos Esse é o inventário quase completo dos objetos com que os personagens da série Zé Macaco interagem, no recorte. O próximo passo é entender que tipo de interações é representado pelo autor e o que isso pode significar na leitura que é feita hoje sobre o processo de modernização. Essas interações são de dois tipos: adaptações do uso do objeto e intervenções sobre objetos. Isso seria de se esperar, porque o uso convencional de um objeto não suscita comicidade; não é assunto de interesse para uma historieta ilustrada. Assim, por exemplo, Faustina adapta um cesto de vime como chapéu; Zé Macaco adapta seu próprio corpo como besta de carga para levar a mulher e o filho nas costas, na falta de outro veículo; Faustina adapta uma calça velha do marido como um jupe-culotte (saia-calça); Zé Macaco adapta uma garrafa de parati (aguardente) como isca para pescar sua mulher que foi jogada no mar; Baratinha (filho do Zé Macaco) adapta um rolo compressor das obras urbanas como ferro de passar; Faustina adapta seu cão, amarrado a uma sombrinha e puxado por uma corda, como um “emissor de radiogramas” a fim de chamar Zé Macaco, no meio da mata; e Zé Macaco adapta um burro na forma de um aeroplano, conforme já foi descrito. As intervenções sobre objetos representadas nessas historietas são, em geral, operações para resgatar os personagens de situações perigosas em que se metem por descuido ou ignorância. Segue uma relação delas: a) Quando Baratinha, o menino, engole dúzias de ovos inteiros, causando um tipo de enfermidade que fez inchar sua barriga como um ovo gigante, Zé Macaco apanha uma “tesoura de jardinagem” e corta a barriga do filho, liberando pintinhos que tinham sido chocados ali dentro (nº 278); b) Quando Baratinha e seu acompanhante Chocolate, para consertar o feio cão que foi adotado pela família, esticam o animal puxando a cabeça e o rabo por 154 cordas, o cachorro fica tão esticado que não consegue atravessar uma rua estreita e é atropelado, sendo cortado em três pedaços (nº 299); c) Quando Zé Macaco é chamado a salvar o cão, pega uma lata de cola-tudo e junta só duas partes do animal, recompondo-o com um tamanho mais adequado (nº 300); d) Quando Faustina, ignorante da moda do sorvete, toma tantas taças que fica congelada feito uma barra de gelo, Zé Macaco tenta três operações para esquentar o corpo inerte da esposa: cantar serenata ao violão, esfregar uma garrafa de parati no nariz dela e, finalmente, armar uma fogueira por baixo do corpo suspenso em cima de duas cadeiras (nº 286); e) Quando Zé Macaco, após temporada na selva, já bem cabeludo, está se comportando alheio à civilização, sem entender nada, nem ser compreendido, uma cacetada que o guarda civil dá em sua cabeça traz de volta sua antiga identidade como homem civilizado (nº 310). Com todas essas histórias de salvamentos e consertos, a lição que Storni parece ter transmitido é que, nos tempos modernos, é preciso reconhecer que os objetos não estão mais atados às tradições, e podem ser usados de maneiras inéditas, nos variados contextos em que a subjetividade do indivíduo moderno é atirada involuntariamente. Essa interpretação se fundamenta na teoria de Daniel Miller (1987) que tem, entre suas preocupações, a busca de entender o fenômeno do consumo de massa não como uma tragédia de alienação e vaidade, nem como empobrecimento do espírito que vem a reboque das imposições do mercado, mas como uma oportunidade de, na interação com a enorme variedade de objetos disponíveis no mercado, a sociedade reapropriar-se desses objetos que ela mesma produz, material e simbolicamente. A incorporação de objetos é parte de um processo de desenvolvimento individual que espelha o desenvolvimento da sociedade. Esse processo se dá no âmbito cultural e é possível afirmar que, no período histórico da Primeira República, não se dá sem trocas de mensagens via revistas ilustradas. As historietas de O Tico-Tico podem ser lidas como representação, ainda que superficial, de um processo que a sociedade viveu naquela época. Com essa perspectiva teórica, podemos analisar, por exemplo, a historieta de Storni em que o autor narra o dia em que Zé Macaco leva sua esposa para um passeio na Avenida Central (ver Figura 32). Depois “do infalível cinema” – ele 155 descreve – sentaram-se num café e pediram sorvetes, que Faustina não conhecia. Os sorvetes agradaram-lhe tanto que ela repetiu até vinte vezes. O sorvete entra na história como objeto de consumo importado, no mesmo “pacote” do cinematógrafo. O autor, inclusive, chama um tipo de sorvete pelo seu nome italiano, pezzo-duro. Isso demonstra o relativo exotismo do sorvete naquele contexto. Aplicando o modelo dialético – na qual Miller baseou sua formulação – na análise da historieta, pode-se categorizar o sorvete, nessa narrativa, como o objeto estranho do qual o sujeito se encontra alienado, quer dizer, distanciado. É uma situação descrita como de desconforto ou tensão. Para o cartunista Alfredo Storni deve ter parecido assim a importação de costumes e hábitos de consumo europeus para o Brasil, cuja sociedade estava sendo construída sobre um ambiente muito diferente. Esses hábitos eram, conforme expressão do autor, “macaqueados” – ou imitados – sem justificativa racional. Uma das consequências é que a novidade fica acessível antes que o consumidor tenha adquirido a etiqueta adequada para o consumo. Voltando à historieta: depois de tomar vinte sorvetes, Faustina ficou “barbaramente congelada”, representada como um corpo humano esticado, rijo como uma tábua ou bloco de gelo. A consequência exagerada, possível apenas na fantasia de uma história em quadrinhos, é a punição que ela recebe por não ter civilizadamente tomado apenas uma taça de sorvete, conforme a etiqueta. Embora a intenção do autor possa ter parado por aí, a análise pode continuar. Enquanto Faustina está enregelada, a característica culturalmente mais evidente do objeto, a baixíssima temperatura do sorvete, foi assimilada por ela, o sujeito. Voltando à história: a condição endurecida de Faustina só é resolvida na semana seguinte, quando o marido consegue, na terceira tentativa, descongelá-la. O autor não contou mais nada sobre esse enredo cômico. Apenas podemos concluir que, na sequência, Faustina teria finalmente reabsorvido, no processo dialético, aquele objeto que lhe era estranho, o sorvete. Não repetiria o excesso das vinte taças. Portanto, teria se desenvolvido como sujeito que consegue consumir adequadamente sorvetes, sem repetir o fantástico choque que levou naquele dia. Civilizou-se mais um pouco, também se pode dizer. 156 Figura 32. Num belo domingo... Página 14 do nº 285 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. No mesmo processo vivido por Faustina e o sorvete, todas as novidades que os personagens de Storni experimentaram eram, no início, exóticas, causaram tensão e até risco de vida, enquanto estavam sendo experimentadas, mas terminaram por ser naturalizadas de alguma forma. Assim, Storni contou histórias com voos de aeroplano, sessões de cinema, peças de roupa da moda, máquinas da 157 reforma urbana, campainhas elétricas, telégrafos sem fio e outras novidades urgentes para sua época, nas histórias deste recorte temporal e em muitas mais. É notável como, na maioria das interações entre pessoas e objetos representadas nessas historietas cômicas, os corpos são afetados ou correm risco. Aqui Baratinha é amassado por um rolo compressor, ali o cachorro da casa é cortado em três partes, mais adiante Zé Macaco abre a barriga do filho, por exemplo. Isso leva a pensar que é mesmo a materialidade dos objetos que permite experimentar a modernidade, interagir de inúmeras maneiras e resolver a tensão dialética com algum tipo de recontextualização e com o desenvolvimento da subjetividade. Zé Macaco nunca deixa de ser retratado como um inventor. Algumas das últimas piadas da série, nos anos 1950, tratavam dessa veia do personagem, sempre criando mecanismos com adaptações inusitadas. Parece até que o literato Lima Barreto falava do Zé Macaco quando, para criticar certo autor teatral alienado da realidade brasileira, concluía: “Caro Oscar: entre nós, um inventor é cômico, não é dramático”. O tal Oscar Lopes havia escrito uma peça exaltando um personagem que tinha por sonho construir um aeroplano. Esse trecho foi citado na argumentação sobre o período histórico das “certezas” civilizadoras, por Costa e Schwarcz (2000, p. 149). As interações entre pessoas e objetos, nas historietas do Zé Macaco, também apontam como as novidades técnicas daquele período histórico não eram entendidas puramente como ciência aplicada, mas como fruto de relações fantasiosas e mágicas. Não se compreendendo o processo técnico que provoca o efeito de uma máquina, por exemplo, seu funcionamento encanta o observador como mágica, e o leva a tentar reproduzir o efeito com qualquer outra relação que a cultura lhe permita fazer. O antropólogo Alfred Gell (2009) fez uma aproximação teórica entre as relações dos indivíduos com a arte, a técnica e a magia. Propôs olhar a arte como uma técnica de encantamento do observador, uma vez que este não possa conceber qual processo levou a transformar a matéria-prima numa determinada peça de arte. Seria o mesmo encantamento que uma tecnologia exótica provoca, enquanto não for explicada ao usuário. Nas palavras de Gell: O encantamento tecnológico é o poder que os processos técnicos têm de nos enfeitiçar de modo que nós passamos a ver o mundo de uma forma encantada. A arte, como um tipo especial de atividade técnica, apenas leva mais longe, por um tipo de 158 involução, o encantamento que é imanente a todo tipo de atividade técnica. (GELL, 2009, p. 211, tradução minha29) É em relação à magia que se mede qualquer trabalho técnico. Segundo Gell, “Assim como o dinheiro é o meio ideal de troca, a magia é o meio ideal de produção técnica” (GELL, 2009, p. 224, tradução minha30), ou seja, um meio com “custo de trabalho zero” e efeito imediato. É possível que essa visão tenha sido explorada nas historietas de Storni naquele ano de 1911, conforme análise a seguir. Numa das historietas, Faustina viaja para a selva brasileira, à procura de Zé Macaco, que foi “civilizar indígenas” sozinho (ver Figura 33). Ela monta um aparelho técnico, um telégrafo sem fio, amarrando seu cachorro a um cabo de sombrinha e ao tronco de uma palmeira. Puxando o rabo do cão com uma corda, o faz girar como uma antena de radar e emitir chamados para os quatro cantos do mundo, na tentativa de se comunicar com Zé Macaco. É uma relação de causa e efeito puramente mágica, uma associação de ideias entre as “ondas hertzianas” que os técnicos dizem usar na transmissão de rádio, e os agudíssimos ganidos de dor emitidos pelo cachorro da família, quando Faustina puxa seu rabo. Posso adiantar que a geringonça termina funcionando e Zé Macaco é salvo graças a ela. “The enchantment of technology is the power that technical processes have of casting a spell over us so that we see the real world in an enchanted form. Art, as a separate kind of technical activity, only carries further, through a kind of involution, the enchantment which is imanente in all kinds of technical activity.” 30 “Just as money is the ideal means of exchange, magic is the ideal means of technical production.” 29 159 Figura 33. O resgate de Zé Macaco com uso de um transmissor de rádio improvisado. Página 14 do nº 308 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A descoberta que Storni parece estar compartilhando é que não é possível vivenciar as transformações da modernidade apenas por ouvir falar ou apenas por consumi-las prontas. Não basta saber que existem “radiogramas” ou assistir à operação de uma antena por técnicos estrangeiros. Como desenvolver uma subjetividade como indivíduo moderno sem construir seu próprio telégrafo-sem-fio 160 de improviso? O mesmo vale para Zé Macaco que, em vez de apenas assistir a uma exibição de aeronautas, inventou um “aéreo-burro” e, em vez de apenas pagar por uma cirurgia, fez duas delas, improvisando com uma tesoura de jardinagem e com uma lata de cola; ou ainda o mesmo vale para Baratinha, que experimentou usar o rolo compressor como ferro de passar roupa. A interação do corpo humano com objetos materiais, tanto de maneira educada quanto incivilizada, supera, com vantagem, lições puramente verbais no desenvolvimento da subjetividade. E, se as historietas ilustradas também são verbais, ao menos representam um “teatro” de tais interações materiais. Uma terceira lição pode ter sido passada involuntariamente por Storni em suas historietas: viver as transformações da modernidade é se acostumar com a agência dos objetos, os membros “não-humanos” da sociedade, conforme formulação de Bruno Latour. Para o antropólogo francês, vivemos numa escalada em que, cada vez menos, se confia na disciplina dos seres humanos. Engenheiros observam a indisciplina, fazem discriminações contra quem não segue o padrão de comportamento e criam sistemas técnicos onde objetos – esses agentes “nãohumanos”– substituem humanos na vigilância e correção de rumos, uma atividade de que a sociedade precisa para sua reprodução. Pode tratar-se disso um detalhe enigmático da representação que Storni faz de Faustina. Desde a primeira aparição da esposa de Zé Macaco, no fim de 1910, ela é representada usando uma corda amarrada em torno de suas canelas, por cima da saia. A corda, explicitamente, impede que ela corra e a faz “andar aos pulos” conforme uma das primeiras histórias de 1911 (ver Figura 34). Faustina continua sendo representada com esse detalhe até que ele desaparece, algumas semanas mais tarde, sem explicações. A corda é o objeto que age na coerção dos movimentos de Faustina, um recurso para que ela ande com elegância, com as saias estreitas que caracterizam a moda da segunda década do século XX31. Ou seja, Faustina simplesmente não pode andar a passos relaxados; a corda a impede de parecer pouco civilizada. A “saia-funil”, surgida na moda eduardiana, supostamente impedia que o passo fosse maior do que 8 centímetros. Para piorar, foi acrescentado o “grilhão”, um trançado cujo objetivo era impedir que a saia se abrisse no caso de se dar um passo maior (COX et al. 2013, p.57). Numa charge de O Malho nº 408 (1910) o caricaturista Leônidas aborda a mesma moda. Diz que “a civilização do traje feminino vem agora do sertão”, e compara a saia amarrada no tornozelo com uma pamonha empacotada em palha de milho. 31 161 Figura 34. Página 14 do nº 276 de O Tico-Tico. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Há outro exemplo disso, voltando à historieta do sorvete (Figura 32, p.156). As taças de sorvete são objetos que disciplinam o consumo do produto. Cada taça é uma dose adequada de sorvete. Faustina, não sendo ainda disciplinada nesse quesito, tomou quanto sorvete deu vontade, uma vez que era um mimo de seu marido. Tomou vinte taças, e isso é de grande importância na história, porque o 162 autor representa um monte de taças de sorvete vazias em cima da mesa do restaurante. Conforme já foi exposto, a caricatura é uma forma de comunicação muito sintética. Nenhum elemento figurativo é desenhado sem motivo. A imagem da mesa cheia de taças é chave para o entendimento da história. Se o caso com sorvetes parece simplesmente um exagero cômico, imaginemos a mesma cena com um casal em que a esposa observa o marido beber vinte garrafas de cerveja, todas expostas vazias em cima da mesa. Concluiríamos que o marido não soube beber, passou muito dos limites, e que é uma cena trágica. Nós, leitores, sabemos disso, porque cada garrafa ou cada taça de sorvete estabelece uma dose adequada de consumo. O particionamento e a dosagem do consumo de alimentos e bebidas é uma das funções dos “não-humanos” de Bruno Latour. Ainda mais um caso desse tipo pode ter aparecido nessa série de historietas. O filho de Zé Macaco, Baratinha, um dia, brinca de apertar a campainha elétrica de uma casa, insistentemente, só para ver alguém da casa abrir a porta e topar com seu companheiro, o moleque Chocolate. Enquanto a pessoa ralha com Chocolate, Baratinha assiste a tudo escondido. A brincadeira de mau gosto existe porque existe a campainha elétrica. O sinal elétrico cria uma urgência no atendimento que a batida na madeira da porta não tinha. Se, no passado, atendia-se a quem se anunciava de alguma forma ou chamava o morador pelo nome, a impessoalidade característica da modernidade traz a campainha que é um toque idêntico para qualquer um que solicita os moradores da casa. É preciso atender à campainha elétrica sempre com a mesma urgência, pois tanto pode ser um menino brincando quanto uma emergência (o mecanismo se reproduz, hoje, até certo ponto, com as solicitações pelo telefone celular). Baratinha sabe que o morador da casa com campainha elétrica vai atender ao toque com a mesma urgência e disposição com que atenderia uma visita importante; ele simplesmente não pode deixar de fazer isso, porque o sistema técnico o impõe. Quando descobrir que não era ninguém, ou pior, que era um moleque que não tinha nada melhor pra fazer, vai se enfurecer, para gosto do filho de Zé Macaco. O melhor é que a brincadeira dá sempre certo: basta tocar a mesma campainha dali a alguns minutos, que o morador vai correr pra atender do mesmo jeito. As historietas com a família Zé Macaco estão retratando um processo de assimilação das novidades materiais da modernidade em nosso país e, ao mesmo tempo, colocando as questões envolvidas, de maneira que os leitores também 163 possam criar sua maneira de lidar com as transformações em seu próprio cotidiano, inclusive a participação de sistemas e dispositivos na organização de suas vidas. A vida civilizada é, realmente, muito dependente de objetos, mas eles são “humildes”, na descrição de Daniel Miller, ou “silenciosos”, na de Bruno Latour. Percebemos sua agência em casos como este: Storni nos mostra que Zé Macaco, quando pousa na aldeia indígena para um trabalho civilizatório, começa de imediato a ser despido de todas as roupas e equipamentos que levou, por um grupo de indígenas que avança sobre ele, até que fica nu e, depois, ganha uma saia de penas para, finalmente, entrar no padrão de normalidade local. Despido de objetos, ele, num instante, fica incivilizado, esquecendo até da sua língua e de sua vida pregressa, e precisa ser resgatado pela esposa, conforme foi narrado (ver Figura 35). 164 Figura 35. Despido das roupas e apetrechos de explorador, Zé Macaco rapidamente perde a linguagem e até mesmo a consciência de quem é. Página 11 da edição 302 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Essa piada parece ilustrar a teoria de que não existe um sujeito-base, íntimo, constante, porque ele é sempre constituído pelo próprio processo de absorver seus objetos. Essa “objetificação” é a relação constituinte de ambos, sujeito e objeto. 165 Portanto, Zé Macaco só pode exercer uma subjetividade moderna e civilizada enquanto carrega sua mochila, botas, binóculo, etc. Deixado de tanga, ele exerce outro tipo de subjetividade, adequada à vida na aldeia bororo que ele visitou. Além disso, a piada pode se referir ao pensamento corrente de que a civilidade é uma “máscara” ou uma “hipocrisia”. Para Freud, frequentemente nos desapontamos por termos, antes, superestimado o grau em que o ser humano se transformou no sentido da Civilização: “O homem da pré-história sobrevive imutável no nosso inconsciente” (FREUD, 2009, p. 27). A Civilização só seria possível pela renúncia aos impulsos e basta que a repressão ceda para fazer aflorar o comportamento associado às comunidades selvagens ou “bárbaras”. Aqui tratamos o tempo todo de narrativas, ou seja, de representações no contexto de uma cultura. Serge Moscovici observou como cada cultura usa de um regime próprio de substituições para assimilar ideias novas (as científicas, em particular). Termos específicos são tomados emprestados para generalizações e termos biológicos são emprestados para representar ideias psicológicas, por exemplo. No caso que analisamos, objetos servem para substituir abstrações. O psicólogo social escreveu: Desde o começo da era mecânica, os objetos dominaram e nós estamos obsessionados com um animismo às avessas, que povoa nosso mundo com máquinas, em vez de criaturas vivas. Podemos, pois, dizer que no referente a complexos, átomos e genes, nós não apenas imaginamos um objeto, mas criamos, em geral, uma imagem com a ajuda do objeto com o qual nós os identificamos (MOSCOVICI, 2012, p. 76). É possível que, na dificuldade de representar a modernidade e o progresso, para os jovens leitores, em termos puramente abstratos, os autores de O Tico-Tico tenham se lançado a falar o tempo todo de aeroplanos, automóveis, bicicletas, gramofones e peças de vestuário. Além disso, fizeram os leitores visualizar corpos acidentados, deformados e em movimento frenético. Isso era importante para a criança de família abastada da Capital Federal, que realmente conhecia automóveis e postes elétricos, mas era ainda mais significativo para os leitores do Brasil interiorano. O historiador Nicolau Sevcenko, descrevendo esse contexto histórico como foi vivido na “capital irradiante”, adverte que, apesar de se difundir um discurso de que as novas técnicas traziam racionalização e organização, “O que ocorre é o contrário: os novos recursos técnicos, por suas características mesmo, desorientam, intimidam, perturbam, confundem, distorcem, alucinam” 166 (SEVCENKO, 1998, p. 515-516), devido à desproporção entre a velocidade das máquinas e as capacidades do corpo humano. Essas conclusões serão levadas em conta na síntese do capítulo 5. O estudo da produção de narrativas midiáticas de um tempo tão distante é valioso porque o período específico escolhido é significativo para entender o processo de subjetivação num contexto de rápidas transformações sociais e materiais, e obter maior aprofundamento sobre os meios pelos quais as narrativas seriadas, veiculadas pela mídia, colaboram em tal processo. Esse aprofundamento aponta caminhos para entender também os processos da atualidade: como as narrativas midiáticas estão colaborando na absorção e naturalização de tecnologias da atualidade, como os drones, as câmeras de segurança, as próteses, os monitores de atividade física e as assistentes digitais, por exemplo. Uma incursão nas tiras em quadrinhos da atualidade será feita também no capítulo 5. 4. O processo civilizador Inúmeras vezes, Alfredo Storni retratou Zé Macaco como um gênio inventor autodidata, lidando com uma profusão de máquinas e processos transformadores, as quais tornaram-se focos das narrativas sobre progresso material no início do século XX. Em muitos outros números de O Tico-Tico o personagem proporcionou riso por seu mergulho nas aceleradas transformações de comportamento que ocorriam na capital do Brasil, num dos períodos históricos em que o processo civilizador, descrito por Elias (2011), esteve mais em evidência. O trabalho de Elias teve origem no estudo da sociedade de corte na França de Luís XIV, passou pela formação do Estado moderno e se estendeu na comparação de manuais de boas maneiras. O comportamento em eventos sociais como banquetes – a etiqueta social – é o exemplo mais lembrado para discutir o processo civilizador. Significativamente, o tema esteve lá nas “Aventuras de Zé Macaco” (ver Figura 36). O resumo da sequência de quadrinhos é que, para comemorar seu sucesso, Zé Macaco celebra “um baile da moda” em seu “palacete do Morro da Viúva, Botafogo”. Tudo é muito refinado, segundo a etiqueta. Os convidados dançam alegres enquanto o chefe de família conversa civilizadamente sobre política. Adiante será desenvolvida a ideia de que esse refinamento está fora de lugar, é de aparência, sofre muita pressão para ser desmascarado e, por isso, deve durar pouco. 168 Figura 36. Ocasião refinada na residência da Família Zé Macaco. Página 14 do nº 357 de O TicoTico (1912). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Além do texto, a narrativa é produzida pelos signos visuais distribuídos na cena pelo caricaturista. No primeiro quadro, o contraste entre os rostos grotescos, desdentados e enrugados, e o vestuário. Faustina usa vestido na moda e cachos nos cabelos; Zé Macaco está de fraque, com gravata, peitilho, punhos e calças brancas. 169 Chocolate, o “agregado à família”, veste o libré de lacaio dos tempos da monarquia. A expressão do casal é civilizada: olhos fechados, concentrados, mãos contidas, postas junto ao corpo. A representação do convite escrito diminui a ambiguidade fundamental do desenho. O texto do convite já nos informa da pretensão civilizada de Zé Macaco, aliás, “Mr. Zé Macaco” em inglês. Ele não realiza um baile, mas uma “soirée”, em francês. O domínio dos idiomas dos centros da Civilização era sinal de conhecimento da etiqueta. No segundo quadro, é representada a amplitude do salão. Em segundo plano, um grupo de tipos igualmente grotescos e bem vestidos a dançar e, em primeiro plano, Zé Macaco, o que nos informa a profundidade do cenário. Pipoca, um personagem das histórias de Max Yantok (colega de Storni) que em suas aventuras é um criado completamente atabalhoado e se caracteriza pelo nariz muito comprido marcado por uma verruga cabeluda, aparece aqui contido, bem vestido, com peruca e conversando “em política”. Mais um sinal de que o caricaturista está brincando com a manipulação de aparências. Já era observado por Olavo Bilac, escrevendo com o pseudônimo Fantasio, na revista ilustrada Kósmos de abril de 1906, que “A dança é por tal forma uma preocupação característica da vida carioca, que é estudando e classificando, por ordem de bairros, as danças preferidas do nosso povo, que se pode estabelecer a geografia moral da cidade”. O sistema de danças serve, portanto, como sistema classificatório de grupos sociais. Não apenas qual gênero de música se dança, mas como se dança o gênero. A festa aristocrática de Zé Macaco, no seu palacete do Morro da Viúva (Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro), daquelas que têm automóveis parados na porta, deveria exibir a dança “serena e majestosa como um rito religioso”, onde “os gestos são medidos e solenes, as mãos apenas se tocam, os pés arrastam-se sem barulho”, pois é assim que o poeta descreve a “dança de Botafogo”. No entanto, a julgar pelos desenhos de Storni, comparados com as ilustrações de K.Lixto para o texto de Fantasio, os convidados estão dançando “a dança da Cidade Nova” (centro do Rio de Janeiro), identificada como maxixe: “Aqui, já não se tocam apenas os corpos: colam-se. As mãos delas pesam – jugo doce! – sobre os ombros dele; nos braços dele, como num estojo apertado, anseia a cintura dela. Faces em êxtase...”. O caricaturista plantou no segundo plano de sua cena a denúncia de que aquela festa de elite sofria de autenticidade. 170 No último quadro, desconsidere o grande saco de pano em destaque, porque esse elemento só se desenvolve no número seguinte. Observe que a mesa é opulenta, com doces arrumados em altura. Observe também que há uma grande fileira de cadeiras de veludo vermelho num salão acortinado, como deve ser uma recepção aristocrática. A Família Zé Macaco pode tentar ostentar civilidade, uma vez que tem fortuna, mas sua rusticidade insiste em reaparecer. No caso, por meio das brincadeiras do filho (dentro do saco tem um porco que foge pelo salão, assustando todos e deixando a mesa de doces toda para o menino Baratinha). Essa oposição entre adultos civilizados e criança dominada por pulsões é o padrão das lições civilizadoras. O ceticismo com que Storni representa a etiqueta civilizada não é novidade. Após pesquisar a ocorrência do termo “civilização” na literatura ocidental, Jean Starobinski constata que “Antes que se forme e se difunda a palavra civilização, toda uma crítica do luxo, do refinamento das maneiras, da polidez hipócrita, da corrupção provocada pela cultura das artes e das ciências está já instalada” (STAROBINSKI, 2001, p. 18). O termo “civilização”, entendida como um processo, não um estágio da sociedade, surge juntamente com a ideia de progresso e com ela se confunde. Autores como Mirabeau elogiam as conquistas do progresso ao mesmo tempo em que temem que, sem âncora moral, elas não passem de uma máscara. Outros, como Montaigne e Descartes, relativizam a comparação entre europeus e “bárbaros” do novo mundo, denunciando que os europeus não são superiores em moralidade. Logo mais à frente, continua Starobinski, o valor da civilização praticamente se sacraliza. A partir daí, tudo que não é civilizado é considerado um alvo. A rusticidade passa a ser encarada como um “inimigo interno” da sociedade civilizada; um inimigo que vive no interior dos homens e merece toda a força empregada para ser obliterado (idem, p. 33). É aí que, mais uma vez, é necessário encarar a civilização com ceticismo, pois, em nome dela, novas barbaridades acontecerão. O fato de entrar como justificativa em projetos políticos (como a colonização ou a reforma urbana) não significa, para Norbert Elias, que o processo civilizador é deliberado e racionalmente planejado. Afirma que 171 A civilização não é ‘razoável’ nem ‘racional’, como também não é ‘irracional’. É posta em movimento cegamente e mantida em movimento pela dinâmica autônoma de uma rede de relacionamentos, por mudanças específicas na maneira como as pessoas se veem obrigadas a conviver (ELIAS, 1993, p. 195). Um dos muitos mecanismos que movimentam o processo é a distinção social por meio de gosto e comportamento. O comportamento adequado, segundo etiquetas, é o que tem identificado os membros pertencentes a grupos de mais alta posição social. Por outro lado, a falha em se comportar conforme determinadas etiquetas expõe e expulsa os indivíduos de círculos sociais de maior distinção. Grande parte da etiqueta social globalmente difundida provém de círculos cortesãos, desde o uso de talheres, passando pelo cultivo de uma língua internacional, até protocolo de receber e pagar visitas. Como os preceitos de civilidade se difundem, outras camadas adotam os mesmos comportamentos, eliminando o efeito distintivo. Isso leva as classes dominantes ao contínuo desenvolvimento e ressignificação de etiquetas e padrões de gosto idiossincráticos e pouco acessíveis. No passado, círculos aristocráticos e cortesãos defendiam sua distinção ao afirmar que os burgueses, apesar de terem dinheiro e informação para seguirem as mesmas etiquetas e gostos, não o faziam com graça. Comportar-se civilizadamente “por graça” era esconder que aquilo tinha sido aprendido e realizado com esforço e disciplina; simular que tais comportamentos eram "naturais" da classe, que vinham “de dentro” (REVEL, 2009, p.194). Numa comédia de Moliére, George Dandin, um camponês enriquecido se casa com uma nobre empobrecida e luta desajeitadamente para aprender a etiqueta da família da esposa, mas é inútil. Sempre falha; sempre há mais uma regra que ele desconhece. A rejeição acaba destruindo sua identidade (idem, p. 201). Na divisão de classes capitalista, de maneira análoga, prevalecem padrões de gosto e de comportamento aprendidos que se mascaram como “natureza” ou, popularmente, “berço”. Indivíduos que pretendem ascender socialmente encaram o desafio de emular a classe superior. Outras vezes, a negação dos mesmos valores e gostos é estratégia de indivíduos de classes inferiores para não investirem despropositadamente numa ascensão ilusória e, ao contrário, valorizarem seu próprio círculo (BOURDIEU, 2013). A pressão sobre a classe da baixa burguesia é grande para ostentar padrões que a aproximem da alta burguesia, com custos acessíveis, ao mesmo tempo em que renega qualquer proximidade de gosto com as classes operárias. Um caricaturista de ethos pequeno-burguês, como Storni, deve 172 ter sido especialmente sensível a essas questões, e o personagem Zé Macaco pode ter sido um meio para se colocar dentro das “aventuras”, o que fica evidente em algumas das piadas de temática doméstica, como veremos adiante. Após a preparação de uma tabela com dados da leitura de todas as publicações de historietas com Zé Macaco disponíveis a constatação mais geral foi que o tema do processo civilizador esteve sempre presente nas piadas. Ele foi explorado em quatro formas recorrentes: a) Invenções mecânicas e biológicas de Zé Macaco. b) As modas seguidas por Faustina e Zé Macaco. c) Peraltices de Baratinha, o filho do casal. d) Reações violentas e descontroladas / troca de papéis com animais. É aconselhável pintar um “quadro geral” dessas histórias, para depois problematizá-las. Numa legenda do número 421, em 1913, Zé Macaco é descrito como “um caboclo cheio de ideias extravagantes”. O lado engenhoso de Zé Macaco começa a ser demonstrado ainda nos primeiros anos, quando era um solitário capiau em visita à capital. Ele adapta um chapéu para usar como barco para escapar de uma enchente. Na segunda fase da série, voltando rico da Europa, constrói o “aéreoburro” sozinho. Com esse veículo resgata Faustina de uma confusão na rua, viaja à selva e chega a visitar a Lua. A partir de 1912, enfileira uma série de inventos: máquina de matar pulgas, máquina de matar mosquitos, máquina de reciclar sucata na forma de chapéus, sérum de crescimento, transplante entre animais, máquina de pentear, máquina voadora individual, guarda-chuvas automático, traje submarino, entre outras. Em 1915 o autor começa a ironizar o personagem por só criar coisas ridículas que acabam não funcionando. Mais tarde, em 1921, a legenda conta que “todos sabem que Zé Macaco é um inventor de fama”.32 Dois motivos dão em invenções de Zé Macaco: achar-se entediado (no número 417 a história começa quando ele “estava achando a vida insípida, sem novidades”) e ficar empolgado com alguma novidade que deseja imitar (caso do bondinho do Pão-de-Açúcar, do carro alegórico do carnaval e das várias expedições 32 Em outra fase do personagem, de 1928 em diante, fora do recorte desta pesquisa, as invenções, imitações e adaptações continuam se acumulando. Zé Macaco constrói um exoesqueleto para escalar montanhas, inventa um dirigível equestre, realiza implante capilar, inventa máquina de lavar pratos, sapato pulador, receitas de picolé e de sopa, entre muitas outras. 173 à selva). Com o tempo, o filho Baratinha, além das peraltices usuais, também decide inventar alguma coisa, sempre usando Chocolate como cobaia. Testou a “humanocultura”, plantando o amigo no quintal; botou um cão dentro de uma máquina para fingir de “lava-pratos” e botou Chocolate dentro de uma caixa para fingir de gramofone que só cantava “Cabocla de Caxangá”33. Por um certo tempo, pai e filho competem para ver quem é mais genial. As invenções de Zé Macaco funcionam de maneira fantasiosa e ridícula. Algumas vezes justificam o aumento da fortuna da família mas, em geral, são inconsequentes. No final da série, antes de Storni sair de O Tico-Tico pela primeira vez, isso muda. Zé Macaco começa a reconhecer que seus inventos fracassam. No número 871 (1922), “Zé Macaco, emocionado, agradeceu o trabalho de seus salvadores e reconheceu, mais uma vez, a inutilidade de seu gênio inventivo”. Em relação ao segundo grupo de histórias, as piadas são aquelas em que Faustina deseja seguir a moda e experimentar alguma novidade, ou quando Zé Macaco se empolga com uma notícia e vai imitar os feitos de outros. Assim, Faustina, um dia, experimenta a saia-calção (jupe-cullote34) e é hostilizada na rua; sai com vestido-balão e, depois de tropeçar, não consegue se levantar; toma muitos sorvetes e fica congelada (ver Capitulo 3); anda de motocicleta e quase causa acidente; aposta em carreira como cantora e como atriz de cinema; usa todo tipo de chapéu extravagante; chega a matar um burro para usar as duas orelhas dele no chapéu. Um dia na vida de Faustina é descrito na edição 441, em 1914: “A Faustina, como senhora chic, tem o dia bem distribuído. De manhã, sai de casa, toda na moda, inclusive com véu moderno, dos tais que tapam a boca”. Nesse dia ela passa pela loja de tecidos, pela sorveteria e pelo cinema antes de voltar pra casa. No número 596 (1917), Faustina inventa a minissaia quarenta anos antes da estilista Mary Quant. Pediu que seu tailleur fizesse um modelo de saia que “Cabocla de Caxangá”, de Catulo da Paixão Cearense, é de 1913 e estourou no carnaval 1914. Cheia de repetições e palavras indígenas. 33 34 A saia-calça foi inventada por esportistas e virou moda em 1911 pela inspiração oriental do estilista Paul Poiret. Defendida por feministas, simbolizava liberdade de movimento. Enquanto, nas ruas, as pioneiras que caminhassem de saia-calça eram hostilizadas, nas revistas ilustradas o modelo era celebrado como a moda mais chic. No mesmo número de O Tico-Tico em que Faustina assumiu as calças do marido foi publicado um anúncio de página inteira dos Armazéns A Brasileira, do Rio de Janeiro, oferecendo modelos de “jupe-cullote para senhoras e meninas”, com uma grande fotografia. Sobre o estilo, ver matéria no site vogue.com por Laird Borrelli-Persson, disponível em: <https://www.vogue.com/article/the-ups-and-downs-of-culottes-a-brief-history-from-paul-poiretto-hedi-slimane> . Acesso em 14 dez. 2020. 174 imaginou, bem curto, mas, quando Zé Macaco a viu, ficou escandalizado e mandou que ela vestisse a única coisa que havia ali, que eram calças de homem. O resultado é que, andando na rua com as duas peças de roupa, ela lança a moda das calças por baixo de vestidos. Tudo que Faustina procura são experiências que a distingam como dama de alta classe e mulher atualizada. Nem sempre são experiências de consumo. Um dia decide pronunciar um discurso feminista; outro dia decide ir à Europa (a pé!) para se juntar aos aliados na Grande Guerra (Faustina era inglesa); depois, faz filantropia como as madames da sociedade: “Como senhora da moda, também a Faustina quis fazer qualquer coisa em benefício dos flagelados do Norte” (nº 521, de 1915). São raras as histórias em que Faustina se preocupa com a gestão do lar. Por outro lado, na fase tardia dos personagens, a partir de 1928, o casal se comporta como membros da classe média e é mais frequente ver Faustina cozinhando ou se preocupando em agradar ao marido, dentro de um modelo de comportamento de baixa burguesia. Algumas tiradas de Faustina: “Que inveja vão ter as de ‘pichulin’ quando virem o meu retrato na capa do Cinearte...” (nº 1195, de 1928); “Estou admirável! Esta toilette de Maria Antonieta me assenta admiravelmente!” (nº 1198, de 1928); “Vou fumar! Tal qual essas grandes artistas de cinema. Agora sou uma mulher vampiro. Quero ser confundida com a Nita Naldi.” (nº 1219, de 1929). Por seu lado, Zé Macaco uma vez quer ser pacificador de indígenas, outra vez quer ser detetive, jóquei, dublador, alpinista... e até político. É uma maneira de se aproveitar os assuntos mais comentados da semana para escrever histórias. O que o caricaturista Storni comentava em O Malho, para leitores adultos, virava fantasias em O Tico-Tico. Outro tema a que Storni recorre quando ridiculariza o modismo é o dos charlatães. A família Zé Macaco sempre é atendida por charlatães quando precisa de atendimento médico, dentário, e até policial. Contrata pessoas apenas pela fama, paga caro e sofre as consequências. Os dois primeiros grupos de histórias abordados têm a ver com relações de consumo, que se sofisticam no ritmo do progresso. Elas atravessam muitas piadas em que Zé Macaco tem altos e baixos na fortuna. Uma vez sua fortuna aumenta com o sucesso de uma invenção; outras, a fortuna acaba. O casal é forçado a economizar (os gastos de Faustina com chapéus são uma preocupação) e a procurar 175 trabalho alternativo, chegando a se apresentar no circo e a tentar o comércio numa humilde vila do interior. O terceiro grupo de piadas é em torno do Baratinha. Em O Tico-Tico, todos os meninos personagens de historietas eram “arteiros”. Na família Zé Macaco não seria diferente. Baratinha representa a infância que precisa ser reprimida nas suas pulsões. Joga-se embaixo de um rolo compressor (ver Capítulo 3, p.137), engole o que tem pela frente, arma “pegadinhas” para o companheiro Chocolate e para os próprios pais. Contrariado, executa vinganças. Como todas as histórias civilizadoras de O Tico-Tico nas primeiras décadas do século XX, as crianças não são instruídas carinhosamente, e sim punidas violentamente pelos próprios fatos, a fim de que se lembrem de não repetir os excessos. No número 340 (1912), Baratinha visita o país das baratas. O menino bebe vinho “Sangue de Barata” com a rainha, cai de bêbado no chão e é roído por um monte de baratas. Foge, porém, e reencontra o pai no fim. Nessa época ainda não era uma barbaridade representar uma criança bebendo álcool numa revista infantil. O quarto tema recorrente pode ser rotulado como o das pulsões violentas e animais. Há várias piadas com a confusão entre Zé Macaco e animais. Na sua primeira fase, turistas ingleses dados ao exótico o encontram na rua e ficam estudando sua aparência, confundindo-o com um animal, até que ele se zanga e dá uma surra neles (nº 180, em 1909). O mesmo acontece quando ele pousa numa aldeia dos Bororo: pensam que ele é um macaco e tiram suas roupas. Macacos também cismam em trazê-lo para o bando (nº 184, em 1909). No número 445 (1914) Zé Macaco sai para pescar e é surpreendido por um macaco que rouba suas roupas, veste-as e corre para a casa dele, chegando quase a enganar a Faustina35. Sempre que é ultrajado, Zé Macaco reage com os punhos, violentamente, o que parece dizer sobre seu interior indomável. Mas ele também é surrado violentamente por policiais algumas vezes. Storni explora a ideia de que Zé Macaco é feito de alguma matéria especial, com poder regenerativo, que o impede de sucumbir, apesar de seu corpo ser alvo de sevícias e barbaridades que o matariam. O recurso fantasioso é bem difundido entre os autores de histórias em quadrinhos e desenhos animados, principalmente porque permite a satisfação do leitor na iteratividade, ou seja, permite que a vida do 35 Zé Macaco também se metamorfoseia em caranguejo depois de tomar sopa de siri e em sapo depois de tomar sopa de rã. 176 personagem sempre possa recomeçar do zero a cada capítulo. No entanto, seria interessante interpretar que, no caso de Zé Macaco, esse poder regenerativo e essa resiliência são signos associados à potência de suas pulsões primitivas ou animais. A partir desse sobrevoo das “Aventuras de Zé Macaco”, foram selecionadas algumas das historietas a seguir (de 1909 a 1922) tendo em vista quão significativas elas são para aprofundar o estudo da contribuição do artista e suas narrativas para o processo civilizador, tanto na pedagogia do comportamento civilizado quanto na discussão do próprio processo, devido às dúvidas que nublam o brilho da civilização. As historietas selecionadas deveriam atender ao seguinte critério: tema relacionado ao processo civilizador e complexidade da expressão, compondo bonecos, cenários, letreiros e legendas. Da seleção inicial das 12 histórias mais ricas e sugestivas, foram selecionadas 8 para, aos pares, trazerem quatro aspectos do processo para discussão. Essa análise continua sendo feita em articulação com a teoria sobre como o artista produz sua obra na forma de lances no campo profissional a partir das possibilidades à sua frente. Também se articula com a posição mediadora que o artista tem nos processos culturais de criação de representações sociais. 4.1. Aventuras no cinema A história do desenvolvimento do cinema se entrelaça com a história da subjetividade moderna. Cinema e modernidade têm vários pontos de convergência. O cinema é um dos “emblemas” da modernidade, entre outras técnicas e invenções. Expressa seus principais atributos, tais como o espetáculo, o consumismo, a efemeridade, a mobilidade, a fragmentação. De fato, a cultura moderna já era “cinematográfica” antes da invenção do cinema (CHARNEY e SCHWARTZ, 2004). Alfredo Storni não deixaria de abordar o cinema como mais uma das modas a que a família Zé Macaco iria aderir. Fez isso em duas ocasiões, com premissas bastante distintas. Na primeira vez, a piada se faz sobre a falha da família Zé Macaco em se comportar de maneira civilizada durante a sessão (ver Figura 37). 177 Figura 37. Descontrole num “programa cheio de fitas cômicas”. Pág.14 do nº 291 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. 178 No primeiro quadro a família adentra a sala de cinema, com sua característica bilheteria e seu característico cartaz. No segundo, comporta-se com a mesma excitação e expectativa do restante do público, atrás deles. Quando veem a “fita” de comédia “pastelão”, no entanto, eles não se contêm. Gargalham alto, ininterruptamente, perdem “toda a compostura”. Rir, como os outros espectadores, era aceitável. O inaceitável (a perda do autocontrole civilizado) era se revirarem nas cadeiras, de pernas para o ar, contorcidos como se sofressem de uma doença: “como se estivessem com cólera-morbus”. A história continua no número seguinte, quando, pelos protestos do público, o “guarda do Cinema” vem para chamar Zé Macaco “à ordem”. Segue-se mais incivilidade. Zé Macaco se enfurece e “se atira” ao guarda. Todos caem numa pancadaria e a família termina sendo levada pela polícia, num “camburão” apelidado, na época, de “fantasma vermelho” ou “viúva alegre”. Lição aprendida! Há mais para “ler” na primeira parte da historieta. No terceiro quadrinho, o autor se vale de uma técnica narrativa compartilhada entre os quadrinhos e o cinema: a do contraplano. O desenhista representa o ponto de vista oposto ao do segundo quadrinho. Em outras palavras, no segundo quadrinho vemos os personagens reagindo; no terceiro quadrinho, vemos o que provocou a reação dos personagens. A legenda é mais do que clara; é didática: “A fita era daquelas de corridas e atropelos, e o estardalhaço das cenas grotescas produzia enorme satisfação na família do Zé Macaco...”. Storni, trabalhando com o tema em 1911, ainda precisa ser claro sobre como é a experiência da sessão de cinema. Por isso, desenha a própria tela de cinema. Pinta-a, inclusive, de “preto e branco”, conforme um dos limites dessa mídia. Percebia que estava se comunicando com leitores que tinham uma noção incompleta do que era a sessão de cinema, e precisava estabelecer qual era o conteúdo das cenas e qual reação provocaria no público, ou a piada não seria compreendida. Significativa é a escolha de palavras para a legenda. Com três termos, “corridas”, “atropelos” e “estardalhaço”, reafirma os choques e estímulos mais violentos típicos da vivência urbana na modernidade. Com o termo “grotescas”, julga negativamente o conteúdo da fita e, por consequência, julga também o comportamento da família. Essa é sua mensagem explícita, na adoção de um discurso que expõe ao ridículo o comportamento descontrolado num espaço 179 público. Colabora, dessa forma, com as mensagens pedagógicas sobre como ser e como não ser civilizado, que são o principal material de O Tico-Tico. Existe também uma mensagem que pode não ter sido intencional. Storni, com o terceiro quadrinho, estava se comunicando também com leitores Brasil afora, que recebiam habitualmente O Tico-Tico, mas nem todos tinham acesso a uma sala de cinema. Nessa história ele narra pedagogicamente como é a experiência de uma sessão de cinema, com começo, meio e fim. Representa o que os espectadores veem na tela, representa a escuridão que é necessário suportar para que se dê a sessão e ainda atesta que o cinema produz “enorme satisfação”. Não deixa de ser um convite para a participação de mais pessoas – conscientes da etiqueta requerida – na nova e excitante atividade. A pauta do cinema esteve algumas vezes na seção “Lições de Vovô”, com descrições minuciosas da mecânica dessa “arte” e ilustrações do equipamento, mas as historietas de Storni são raríssimas ocasiões em que a sessão de cinema, como evento, foi representada em O Tico-Tico. Não era banal desenhar uma plateia, no escuro, observando a projeção luminosa na tela, e se emocionando com as imagens. Essa representação, por meio da caricatura, seria importante para difundir a etiqueta da sessão de cinema. Da segunda vez que Storni aborda o tema, não o trata como novidade. Já é uma atividade artística e industrial estabelecida, com mercado consumidor educado. Indivíduos que eram neófitos naquele hábito de consumo são rapidamente sucedidos por indivíduos capazes de a) criticar o produto e b) emular a técnica de produção. Assim, Zé Macaco, que em 1911 fazia “macaquices” na sala de cinema, em 1912 entra para o ramo da indústria cinematográfica (ver Figura 38). 180 Figura 38. Produção de uma “mirabolante fita”. Pág.24 do nº 376 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Mais uma vez, tudo começa quando ele se acha inquieto: “Zé Macaco não descansava. Como sempre, tinha iniciativas novas”. Com sua fortuna, ele pode comprar um “aparelho de fazer fitas cinematográficas”, e o faz. Nesse ponto, ele, enquanto consumidor de cinema, sabe que as “fitas” são feitas em “todos os feitios”. 181 Assim, opta por começar suas experiências pela tragédia. Os atores são amadores. Usa sua própria família. Em seguida, vende a fita para um distribuidor e faz um cartaz. Já são duas providências de quem conhece o lado da produção cinematográfica, além do lado do consumo. Além disso, a produtora já tem logotipo. Vemos no cartaz da “Macaco Film” um mico sentado sobre um globo azul. A empresa promete “arte, sucesso, assombro”. Até aí tudo vai bem. Sendo imitação ou não, é tudo conforme a “cartilha”. A piada acontece quando a fita de Zé Macaco é exibida. O público “que enchia o cinema” revolta-se com a má qualidade do filme. A legenda esclarece que “...reagindo violentamente, quase destruiu a sala de espetáculos” e forçou a família Zé Macaco a se esconder. Nas duas historietas Storni associa o cinema às pulsões psicológicas. A diferença é que, na primeira, Zé Macaco começa uma pancadaria porque se ultrajou com a admoestação de um funcionário do cinema; na segunda, o público ataca a própria sala, contrariado em pagar para ver um espetáculo abaixo da crítica. É fato que a programação do cinema da época se dividia entre o documentário, em que a produção local investia mais, e a ficção, importada, com foco no entretenimento (SUSSEKIND, 1987). Mas a ficção era modelada a partir da herança do “melodrama de sensação” que o precedera na preferência do público. As histórias de suspense simples, maniqueístas e previsíveis, e a atuação pouco natural, com gestos codificados segundo uma gramática conhecida pelo espectador, eram característica das fitas feitas para estimular reações emocionais que seriam esquecidas logo após a sessão (SINGER, 2001). É o tipo de “tragédia” que Zé Macaco tentou emular, numa cena em que o menino Baratinha aparece com uma enorme faca cravada no peito e Faustina levanta uma das mãos para o céu e põe a outra sobre o coração, em esbugalhado desespero. A plateia não “comprou” o exagero diletante, mas sua expectativa de grandes emoções teve uma válvula de escape: o protesto. A visão céptica que Storni tinha do cinema, o qual ele ridicularizou junto com a família Zé Macaco, corresponde parcialmente à dos cronistas da época. Paulo Barreto, o João do Rio, tomava o cinema como paradigma da arte narrativa moderna, tanto que batizou sua coletânea de “crônicas cariocas” de Cinematógrafo. Bastos Tigre emprestou sua habilidade com as palavras às legendas da produção O filme do diabo (1915). Olavo Bilac participou de A Pátria Brasileira (1917). No entanto, muitos ironizavam o fato de que o cinema era feito para apreciação ligeira, 182 não intelectual. Um personagem do mesmo João do Rio descreve a outro como, ao assistir a um filme, ficou pasmo em observar o nível da estupidez humana. Numa caricatura de J. Carlos para Careta, em 1909, um “elegante” aconselha os outros a irem assistir a um filme “de arte”, “um drama ao alcance da inteligência mais medíocre” (SUSSEKIND, 1987). Artur Azevedo abordava os cinematógrafos como espaço de sociabilidade, onde todos – de todas as classes, pois havia diferentes endereços com cinemas – se encontravam para ficarem inteirados das novidades e compartilharem assuntos da moda. O escuro da sala, no entanto, permitia que aflorassem instintos condenáveis. No sainete “Cinematógrafos” (1907), um pai de família avisa à esposa que suas filhas correm perigo de serem bolinadas na sala de cinema pelos “pelintras”, se forem desacompanhadas (SICILIANO, 2014, p. 256). Enfim, retorna-se ao argumento de que os avanços materiais da civilização, mesmo acompanhados com avanços na civilidade (a etiqueta da sessão de cinema), não se tornam avanços da humanidade. Na verdade, podem mesmo rebaixar os indivíduos, facilitando a vida. Ou, em outras palavras, mais moralistas, o progresso “amolece” o espírito dos homens. Sem essa dose de moralismo, Georg Simmel (1971) aborda essa preocupação quando diz que o avanço da cultura objetiva – a multiplicação dos objetos e processos técnicos disponíveis, e o aumento do seu poder – é mais rápido do que o avanço da cultura subjetiva – o desenvolvimento de cada indivíduo, para além do inato. O resultado é que mais poder material vai sendo concedido a indivíduos que não tiveram que se desenvolver internamente na mesma proporção das máquinas. Apenas repetem as instruções de uso e se safam com isso. Storni poderia escrever que até macacos são capazes de imitar os homens e passar por civilizados, apenas para serem desmascarados na primeira oportunidade. Aliás, o colega dele, o cearense Leônidas, fez essa piada, na historieta “Os macacos e o ciclismo” (nº 15, 1906)36. Zé Macaco, homem de seu tempo, “macaqueia” o cinema porque, materialmente, pode, mas será logo exposto em suas limitações pela plateia inconformada. 36 Leônidas, que explorava muito o tema da civilização, principalmente ironizando a empolgação com o progresso material e preconizando a retidão de comportamento, em 1915 começa a desenhar historietas com macacos no lugar de humanos. No número 504 um policial macaco leva para a prisão um malfeitor macaco, o que nos lembra a ficção científica O planeta dos macacos. 183 4.2. A moeda de troca de Zé Macaco Zé Macaco tem um trunfo que causa inveja, mas esse trunfo não é desejado por seus contemporâneos: seu interior incivilizado, o qual transparece em sua face e seus gestos, encanta as pessoas. Mais de uma vez ele recompõe sua fortuna apresentando espetáculos populares. Recapitulando: sua fortuna, na primeira vez, é explicada como herança. Em 1911 ela simplesmente acaba. O casal se vê “a braços com a miséria” e alista-se no elenco de um teatro de variedades (ver Figura 39). Figura 39. Oferecendo-se como “artistas excêntricos”. Pág.14 do nº 321 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. 184 No primeiro quadro, Storni desenha os personagens em atitude suplicante. Zé Macaco tira o chapéu para falar com o dono do teatro, parece até que mostra o chapéu para pedir esmola; Faustina faz gesto de súplica com a palma da mão. Aquela exibição involuntária de desajuste social garantiu a vaga: “Dado o aspecto exótico do casal, foram contratados incontinenti”. O impactante terceiro quadro, desenhado na forma mesma do palco, emoldura a dança mais desengonçada que Storni conseguiu imaginar: “Embora não soubessem o que iam fazer, Zé Macaco e sua mulher, aquele metido numa pavorosa casaca, e esta com vestuário de dançarina, atiraram-se a uma dança desesperada que arrancou gostosas gargalhadas ao público (grifos meus)”. Storni pode ter ficado satisfeito em colocar seu personagem nessa situação. A princípio, Zé Macaco representa um indivíduo que goza de riqueza sem nenhum merecimento, cai em desgraça e é punido com a necessidade de se socorrer num trabalho que o expõe ao ridículo, alvo de gargalhadas. Uma vez retirado o verniz das posses, seu interior grotesco é revelado. No entanto, tudo é ambíguo nas narrativas de Zé Macaco. O autor faz meia-volta e, na semana seguinte, o casal já colhe os louros e o ouro do sucesso, transformando-se outra vez (ver Figura 40). 185 Figura 40. A multidão os contempla admirada. Pág.14 do nº 322 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. A mudança de sorte imprime a eles novos padrões de comportamento que se denotam na postura corporal e expressão facial. A segunda parte da história começa com o casal ainda em caracterização grotesca. Está “suando em bica”, curvado, amarrotado, de boca meio aberta e olhos semicerrados, depois de dançar muito (Zé Macaco pediu “Força, Faustina!”) e de voltar ao palco “mais de 35 vezes” para 186 receber aplausos. Vale comparar com a figura de Zé Macaco no penúltimo quadrinho. As vestes são elegantes e justas, ele dá as costas para o interlocutor, tem uma mão na cintura e outra portando um cigarro; a expressão facial, olhos fechados e lábios em bico, é desdenhosa, conforme uma categorização de expressão de sentimentos estudada por Charles Darwin (1899). Tudo que Storni desenha aqui denota atitude de superioridade, senão de arrogância37. Zé Macaco e Faustina tornaram-se “duas celebridades”, apontados pelo povo na rua, quando passam de automóvel. Os repórteres, diz a legenda, “publicavam as asneiras que dizia o Zé Macaco como se fossem palavras de um grande homem”. Não importa que o sucesso provenha da exibição do seu interior grotesco, nãocivilizado. O sucesso é uma moeda, não carrega manchas de origem, e banca um comportamento civilizado de fachada. Mais uma vez, são objetos materiais e distintivos cujas representações caricaturais funcionam como signos do progresso: o automóvel já citado, os cartões nos buquês de flores presenteados, e a “campainha elétrica do elegante palacete de Zé Macaco em Copacabana” com direito a placa na entrada: “Villa Zé Macaco”. A situação da mansão de Zé Macaco no bairro de Copacabana, no contexto de 1911, conota que ele é um “novo rico” ou “emergente”, uma vez que o bairro, antes da inauguração do hotel Copacabana Palace (1923) era ainda uma fronteira, uma expansão recente da capital. As imagens construídas em torno do bairro, nesse período, compõem uma “cartilha” que o associa a um estilo de vida cujos valores são salubridade, prazer, juventude, investimento lucrativo e tranquilidade num ambiente praiano mas indubitavelmente urbano: tudo começa quando se abre o acesso por bonde (O’DONNELL, 2013). 4.3. Quem é o civilizado, quem é o incivil? No início do século XX ainda era admissível publicar uma revista para crianças e jovens com piadas que retratam atropelamentos, espancamentos, mordidas, esquartejamentos, sangue derramado, tiros e explosões. Assim, algumas vezes, Zé Macaco é agredido até as portas da morte; outras, ele usa os punhos para É a mesma expressão que Zé Macaco faz quando dá uma “carteirada” na polícia, no número 459 (1914). Ele havia sido preso só por andar na rua, suspeito de ser um daqueles do “atentado anarquista aos príncipes da Áustria” (estopim da Primeira Guerra Mundial) e se deixa levar só para, na última hora, sacar um cartão de visitas com seu nome e deixar apavorados os guardas e o delegado. Ele era “grande” e “ilustre”, acima de qualquer suspeita, só por ser personagem de O Tico-Tico. 37 187 reagir. Vingança é um tema corrente nas histórias dele e de quase todos os personagens. Isso importa quando se está procurando entender como o público da revista infantil e o caricaturista estão dialogando e construindo signos para alimentar a pedagogia civilizadora em todos os seus sentidos. Duas historietas em que Zé Macaco briga são mais significativas em relação a esse ponto. A primeira, publicada no início de 1912, é consequência direta dos acontecimentos da história do teatro de variedades. Zé Macaco é contatado por um agente teatral e, enganado com promessas de carreira artística nos Estados Unidos, viaja para lá e a família toda fica presa num circo norte-americano. São forçados a se “fantasiar” de indígenas e são exibidos “como sendo uma tribo de selvagens brasileiros do sertão do Mato Grosso” (ver Figura 41). 188 Figura 41. “Perante o assombro de dez mil yankees”. Pág.14 do nº 329 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional. Quando o apresentador do circo, com um chicote, ordena que dancem “como ursos”, é a gota d’água para Zé Macaco, que o ataca no meio do espetáculo. Zé usa o “sistema brasileiro” de entrar numa briga: dá uma cabeçada na barriga. Baratinha segue o pai na pancadaria e dá um “rabo-de-arraia” no adversário. Na sequência eles fogem e conseguem voltar ao Brasil. Aqui, além da evidente oposição entre 189 cultura brasileira e norte-americana, com as representações de civilização e selvageria em jogo, há que se fazer a leitura freudiana das pulsões violentas que são autorizadas em determinado contexto social. As mesmas pulsões, por comparação, ficariam sob julgamento na outra historieta selecionada por retratar um arroubo violento de Zé Macaco. Ele passeava “despreocupadamente” – imagina-se pela Avenida Central – quando um senhor dá uma topada nele, acertando-o com o punho. Pior: o senhor nem pede desculpas, apenas segue seu caminho em passos largos, olhando apenas para a frente (ver Figura 42). Figura 42. O malcriado. Capa do nº 388 de O Tico-Tico (1913). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 190 A falta de civilidade do estranho senhor de chapéu provoca reação em Zé Macaco, que quer “revanche”. Zé Macaco persegue “o insolente”, chama-o, mas é ignorado. A tensão aumenta e Zé Macaco dispara tiros no homem, depois o alcança e arrebenta-o com “vários socos e pontapés”. A piada é que, só no final, Zé Macaco percebe que era um boneco mecânico, um brinquedo simulador da vida, com corda suficiente para seis meses e garantia de um ano38. Nesse enredo as representações de civilidade e selvageria também se misturam. Zé Macaco faz um passeio, atividade regulada pela etiqueta civilizada. Encontra um homem que não se desculpa de um encontrão, ou seja, um “malcriado”. Esse homem tem um caminhar extremamente disciplinado, ou seja, é civilizado. Zé Macaco reage com tiros, socos e pontapés, ou seja, selvageria, para cobrar uma falta à civilidade. No fim, reconhece que assassinou um “sujeito pau” que o merecia. Mas o boneco se tratava de uma maravilha técnica, uma demonstração do progresso, que ele tomou por ser vivo, uma vez que seu conhecimento e sensibilidade são primitivos. Afinal, trata-se do Zé Macaco. Storni, mais uma vez, parece jogar com as aparências. Quando um personagem tem comportamento civilizado, logo depois se revela incivil. Há diferenças entre os dois enredos, sobre esse ponto. Na piada do circo, Zé Macaco claramente delibera a ação violenta contra o seu inimigo. Isso é denotado pelo segundo quadrinho, em formato irregular, no qual se representa apenas o rosto do personagem, olhando de soslaio e coçando o queixo. Na piada do boneco ambulante, Zé Macaco não pondera; vai reagindo cada vez mais impensadamente, quanto mais o “malcriado” o ignora. A diferença pode ser entendida segundo a teoria freudiana das pulsões, conforme exposta na obra O Mal-estar na Civilização. Freud afirma que “o pendor à agressão é uma disposição de instinto original e autônoma do ser humano”, a par com as pulsões de vida ou amorosas. A civilização tem que lutar contra as pulsões de morte ou violência, “seu mais poderoso obstáculo” já que depende do princípio de juntar os indivíduos, primeiro como casal, depois como família, “depois etnias, 38 Alguns dos predecessores da figura do homem mecânico são a boneca Olímpia, de O Homem de Areia, por E. T. A. Hoffmann, publicado em 1817 e o autômato Tik-tok, do livro infantil Ozma of Oz, de L. Frank Baum, publicado em 1907. Ambos só se movimentavam se dessem corda a seus mecanismos. A peça teatral de Karel Çapek na qual se cunhou a palavra robot estrearia apenas em 1921. A história desses seres meio homens e meio máquinas é contada em The artificial human: a tragic history, por Horst Albert Glaser e Sabine Rossabach (Peter Lang Academic Publishing, 2020). 191 povos e nações numa grande unidade, a da humanidade” (FREUD, 2010, p. 90). Essa é a visão “evolutiva” e “progressiva” também de John Stuart Mill, para quem a civilização é resultado de um processo de agregação dos homens em grupos cada vez maiores, na sua história, com fins de cooperação (PAGDEN, 2013). É o mesmo entendimento de Norbert Elias. Daí o motivo de se ensinarem etiquetas para o convívio entre todos os indivíduos, mesmo que sejam estranhos entre si. A condição de progresso material e cultural, ciências e artes é a civilização, e ela só existe com agregação social de grandes proporções e a observação de etiquetas e outras normas comuns (língua padrão e sistema de medidas, por exemplo). Um dado projeto de progresso precisa lidar com a violência entre pessoas. Deve eliminar os motivos que provocam a pulsão de morte, ou, se não é possível, reprimi-la. O projeto republicano brasileiro, na época de Storni, era de pedagogia civilizadora, conforme já se dissertou. Porém, desde o início foi visto com ceticismo e apelou também à repressão que, no nosso caso, era a repressão de tudo que tivesse origem popular. Até mesmo no meio já bastante elitizado em que viviam os autores das revistas ilustradas do Rio de Janeiro, essa repressão foi reiteradamente retratada pelos caricaturistas, com piadas em que o guarda civil coage, prende e bate em qualquer um que apenas pareça não estar cumprindo as posturas municipais e a etiqueta de circulação pela Avenida Central. Um exemplo é a conclusão da aventura de Zé Macaco entre os indígenas, apresentada no capítulo 3, p.164. Guarda civil admoesta Zé Macaco por sua aparência selvagem. Faustina protesta, toca no guarda e este reage com violência desproporcional, representado como um monstro pelo caricaturista. O resultado é que a brutal cassetada faz Zé Macaco recuperar a memória e os modos urbanos (ver Figura 43). 192 Figura 43. “Não pode!” disse o guarda. Página 11 do nº 310 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A agressividade, portanto, não é sempre reprimida. Há situações em que a sociedade canaliza essas pulsões com objetivos. Ou “essa cruel agressividade aguarda uma provocação, ou se coloca a serviço de um propósito diferente, que poderia ser atingido por meios mais suaves” (FREUD, 2010, p. 77). Na segunda historieta, o impulso agressivo de Zé Macaco foi provocado imediatamente pelo 193 mal-entendido com o boneco mecânico. Na historieta do circo é diferente. Zé Macaco pondera que, sendo a família abusada pelo tratador “yankee”, estão liberados os instintos. A satisfação do personagem em surpreender o adversário e, inclusive, lutar na vantagem de dois contra um, espelha a satisfação do leitor em acompanhar a historieta e torcer para o brasileiro. Na guerra, o Estado, em vez de desarmar os indivíduos e reprimir as pulsões violentas, impele os soldados a deixarem fluir sua agressividade, desde que autorizada por algum tipo de racionalização. É assim que Freud (2009) entende, lamentando, as atrocidades da Primeira Guerra Mundial, na qual até pacifistas se engajavam “para defender a civilização” ou “para evitar um mal maior”. Quando Storni escreve e desenha essas historietas, resta saber até que ponto utiliza Zé Macaco para ridicularizar a ignorância, o atraso e as pulsões violentas, e até que ponto o utiliza para defender a sensatez comum do “sistema brasileiro” contra imposições de um modelo de progresso que passa sem olhar para os lados, dá encontrões e não pede desculpas. O caricaturista realizava seu trabalho dentro de um campo profissional e produzia dentro de uma estrutura empresarial. Pela leitura do material publicado por Storni e seus colegas, parece ter havido uma disputa de visões de mundo e qual delas O Tico-Tico deveria propagar. 4.4. A face grotesca de Zé Macaco Antes da Primeira Grande Guerra (1914 – 1918), o material de O Tico-Tico tinha atingido um estágio de excelência em relação à produção de variadas historietas ilustradas, privilegiadas com grande número de páginas. Mesmo não tendo, nessa fase, a contribuição de J. Carlos, a revista se apoiava no núcleo de caricaturistas Alfredo Storni, Max Yantok e Augusto Rocha, além da reprodução de uma seleção de historietas dos semanários franceses, e das contribuições eventuais de Luís Loureiro e Leônidas. Nesse arranjo, privilegiavam-se as narrativas concebidas no País. Chiquinho, o personagem que era decalcado do norte-americano Buster Brown, vinha sendo retratado como um menino da alta burguesia carioca que, entre seus passatempos, tinha bicicleta, máquina fotográfica, barco a vela na Lagoa Rodrigo de Freitas e batalha de confetti no carnaval. A 194 publicação de cópias de histórias americanas de Buster Brown começava a rarear e, a partir de certo ponto, nunca mais foi feita. A boa recepção dos personagens inventados pelos caricaturistas se evidencia pela leitura das seções de cartas. Em todo o ano de 1913 e em 1914 é frequente encontrar desenhos de leitores com os personagens preferidos. Fazem muitos Zés Macacos e Chiquinhos, e celebram até os secundários Sábbado, Pipoca e Chocolate. Augusto Rocha, ilustrador que se destacava por suas figuras de animais, desenvolvia uma novela de aventuras em quadrinhos: “Max Muller”. Sempre às voltas com caça, navegação, aviação e exploração de territórios selvagens e exóticos, Max Muller começa a história como adolescente e termina adulto, cortejando nobres europeias. Normalmente as capas de O Tico-Tico da época ou publicavam um capítulo de Max Muller ou uma aventura de Zé Macaco. Yantok, que vinha desde 1911 publicando longas séries da trupe de seu personagem Kaxinbown, como a viagem a Fantasiópolis, ao Pólo Norte e à Pandegolândia, apresentava na época “Kaxinbown no Planeta Marte”. Essas obras, que merecem uma pesquisa acadêmica só para elas, destacam-se pela profusão de imagens grotescas. No meio de 1913, número 409, a história em Marte termina com os personagens sendo mortos a tiros. O último quadrinho tem os quatro cadáveres estendidos no chão. A tirada cômica é que, após visitar toda a civilização marciana, os heróis tentam viajar numa certa “estrada de chumbo para outro mundo”, que pensam ser equivalente à terrena estrada de ferro. Em vez de receberem tíquetes para a Terra, recebem rajadas de balas (chumbo) da bilheteria. Felizmente, como é história em quadrinhos, os personagens voltam à vida com qualquer explicação posterior. As grandes novelas grotescas e coloridas de Yantok, no entanto, terminam aí39. Nesse ponto, já passa da hora de definir o que se entende por grotesco nesta pesquisa, e porque é um termo importante para a análise sob o ponto de vista do processo civilizador. A definição se apoia no trabalho de Mikhail Bakhtin sobre o riso na Idade Média e no Renascimento, a partir da obra de Rabelais. Yantok, depois dessa história de Marte, faz “contos” do Kaximbown, em texto ilustrado sem cores, do número 418 em diante. Uma semana apenas ele intercala os contos com uma página de quadrinhos dentro dessa série. Acontece mais uma longa interrupção e Kaximbown volta, em quadrinhos, no número 694 (1919), com a premissa de que estava lutando na guerra durante sua ausência. Nessa fase as histórias são mais em torno de máquinas. 39 195 Bakhtin (1987) não trata do grotesco no sentido de sombrio, monstruoso, assustador, gótico. Diz que essa apropriação do termo vem com o movimento romântico posterior às obras que analisa. Também não trata do grotesco “satírico”, que seria a caricatura exagerada do comportamento popular, rústico, incivil. O objetivo dessa caricatura monstruosa seria apenas condenar, por ridículos, os comportamentos que não teriam mais lugar na sociedade burguesa clássica, do culto ao progresso e civilização. O trabalho de Rabelais, segundo o filósofo russo, era confundido como satírico, mas se tratava de outra abordagem do elemento popular. O conceito de grotesco que interessa a Bakhtin é mais próximo do termo “carnavalesco”. Diz respeito aos temas e representações artísticas preferenciais da cultura popular, especialmente quando se dava nas festas de êxtase comunal e celebração da vida. Tem por características a conjugação de opostos, como céu e terra, vida e morte, grande e pequeno, início e fim, e um tratamento despudorado do corpo humano: [...] o coito, a gravidez, o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o despedaçamento corporal, etc, com toda sua materialidade imediata, continuam sendo os elementos fundamentais do sistema de imagens grotescas. São imagens que se opõem às imagens clássicas do corpo humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do desenvolvimento (BAKHTIN, 1987, p. 22). O corpo humano é representado com toda essa crueza e materialidade extrema em O Tico-Tico. Por exemplo, o nariz do criado de Kaximbown, chamado Pipoca, também sempre acaba agigantado, decepado ou transformado em coisas, e o pequeno Sábbado, garoto adotado por Kaximbown, é uma cabeça humana implantada num corpo mecânico de madeira feito de uma barrica (ver Figura 44). 196 Figura 44. As desproporções corporais, as misturas e exageros do grotesco de Yantok. Da esquerda para a direita, Sábbado, Pipoca e o velho Kaximbown. Primeiro quadro de um capítulo de Kaximbown ao Polo Norte. Página 11 do número 337 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. As histórias de Yantok fornecem os melhores exemplos de imagens grotescas, nesse sentido. Mas as de Storni não ficam atrás, conforme esta lista de exemplos: a) Zé Macaco estreia "mirabolante e enorme" gravata fumando um grande charuto. Pega fogo na roupa dele toda. A família acode com água. Ele acaba na forma de um corpo humano quase totalmente consumido. (nº 365). Na sequência, porém, o corpo é reestabelecido. Esse é o tema da promiscuidade ou confusão entre o cadáver e o corpo vivo. Anteriormente, vemos Zé Macaco levantando vivo dos destroços incendiados de um bonde atacado numa revolta popular (nº 172). E há outras situações similares. Figura 45. O corpo de Zé Macaco irreconhecível, quase totalmente consumido pelo fogo. Detalhe do último quadrinho da história de capa do número 365 de O Tico-Tico (1912). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, editado. 197 b) Uma vez os olhos de Faustina ficam inchados feito balões (nº 338), já comentado aqui no Capítulo 1, p.55; o nariz de Faustina, considerado enorme, é alvo de tentativas de eliminação, e uma vez, por acidente, cresce a ponto de virar um balão dirigível (nº457); a família entra na moda dos exercícios físicos, exagera na dose e seus corpos ficam todos deformados (nº 458). Esse é o tema dos aumentos desproporcionais de partes do corpo. c) Baratinha fica com a barriga inchada com os ovos que comeu (como uma gravidez) e, munido de tesoura, Zé Macaco corta a barriga para soltar um bando de passarinhos (como um parto) (nº 278); outra ocasião, Zé Macaco passa mal, é diagnosticado de “nó nas tripas” e o tratamento é ficar de cama enquanto Faustina pega uma bacia com os intestinos dele e pacientemente desfaz os nós fora do corpo (nº 451). Temos o tema visceral. d) Zé Macaco voa até a Lua, entra no nariz dela, debate-se no muco, é espirrado e cai de volta à Terra (nº 282). Apresenta o tema do gigantismo, além da promiscuidade com fluido corporal e pode-se associar também ao tema da oposição céu/solo. e) O cãozinho feio, primeiro, é esticado à força pelos meninos, depois é atropelado por automóvel e cortado em três partes, para ser remontado por Zé Macaco com cola-tudo (nº 300). Eis o tema do despedaçamento corporal. f) Depois do já relatado incêndio, Zé Macaco bebe tanta água para aplacar a sede que sua barriga vira uma enorme bola cheia d’água. Acoplam vários canos na barriga dele e seu corpo fica servindo de caixa d’água na casa (nº 366). Esse tema da promiscuidade entre seres vivos e sistemas mecânicos é significativo porque leva o elemento grotesco do “baixo corporal” desde a cultura da Idade Média para os tempos mais mecanizados do século XX. Segundo Muniz Sodré e Raquel Paiva (2002), o grotesco é uma categoria morfológica da criação artística que tem sido acionada desde a Antiguidade até os tempos modernos. Os elementos recorrentes são a “combinação insólita e 198 exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos” (SODRÉ e PAIVA, 2002, p. 17). O grotesco não deve ser confundido com o “feio” e, quase sempre, nos faz rir. O romancista francês Victor Hugo teria sido o primeiro a teorizar sobre o grotesco, no prefácio de sua obra Cromwell, com a intenção programática de criticar a idealização do belo e de enterrar as formas do passado, chocando e provocando o mal-estar do leitor. Assim, o grotesco lhe servia perfeitamente (idem, p. 43). Da mesma forma, outros criadores continuaram a recorrer ao grotesco, e os caricaturistas, sugiro, são alguns deles. Conforme Bakhtin (1987), o riso carnavalesco é festivo, coletivo, popular e indiscriminado. Todos riem sobre tudo que há no mundo. Os que riem, não riem dos outros, eles se incluem no mundo ridículo. O exagero não é única característica do grotesco. Só mais tarde é que o exagero e a caricatura ficam restritos a ridicularizar aquilo “que não deveria ser”. Mais significativo é sua ambivalência. Ele afirma a ordem social no mesmo momento em que a inverte. Serve de válvula de escape e de sobrevivência para a celebração da vida humana concreta e imediata em meio à ordem social civilizada que impõe a seriedade, o autocontrole, o adiamento de recompensas, o pudor e a disciplina (ao menos, quando em público). É fato que as historietas de Yantok, Storni e outros foram trabalhos realizados no século XX, no espírito da Belle Époque, numa revista cujo projeto editorial era educar e civilizar pelo entretenimento. É possível, no entanto, que as matrizes do riso “rabelaisiano” ainda estivessem gerando obras cômicas. Afinal, tratava-se de um produto da nascente indústria cultural, num país periférico e irregularmente urbanizado. Os caricaturistas podem ter sentido necessidade de acionar esses elementos grotescos para se comunicar com o público, que compartilhava com eles esse regime de representação40. Poucas décadas antes, o dramaturgo Artur Azevedo se destacava no cenário literário brasileiro, para seu bem e para seu mal, por usar francamente o riso e os assuntos crus do cotidiano, inclusive a satisfação de pulsões, e por dar voz às múltiplas opiniões captadas da polifonia urbana: Mesmo que tais falas e tiradas de humor tivessem uma intenção moralizadora, voltadas para uma pedagogia do processo civilizador, a apropriação dessa mensagem 40 O conceito de regime de representação é utilizado conforme o faz Stuart Hall (2016). 199 por seus receptores não era unívoca. [...] Era a sua simplicidade e a sua aproximação com as massas as razões dos motivos de reproche (SICILIANO, 2014, p. 285). Artur Azevedo conviveu com críticas que o reprovavam por tal aproximação do popular e rebaixavam o status de sua obra. Os caricaturistas da imprensa, por seu lado, nada perdiam nesse sentido, por já nascerem com o status de “pintamonos”, conforme já foi discutido no Capítulo 2, p.70. Esta pesquisa levantou que pode ter havido críticas no mesmo sentido de reprovar o recurso ao riso grotesco e popular. Os caricaturistas, movimentando-se no campo profissional em busca de melhores condições de trabalho e mais alto status, podem ter lidado com novos constrangimentos e novas regras do jogo, dando seus respectivos lances, o que resulta em mudanças na configuração de sua produção para O Tico-Tico. Para descrever esses movimentos no período da Primeira Grande Guerra em diante, é preciso partir da premissa de que as historietas de Storni e outros tinham esse elemento de grotesco e ambivalência, sendo civilizadores ao mesmo tempo em que celebravam a satisfação de pulsões. Zé Macaco fazia sucesso, era publicado muitas vezes nas capas, e outros desenhistas eram estimulados a tentar o mesmo sucesso, criando personagens populares. Anteriormente, Loureiro tentara criar um tal Turumbamba, um sujeito que “pinta o diabo”, no número 377 de 1912. Esse não teve sequência. Em 1914, no número 466, na página 2, estreia João Garnizé, por Augusto Rocha41, apresentado como “novo personagem de O Tico-Tico”. O texto narra que era um homem atarracado “quase anão”, usava um cachimbo de barro branco, tocava bandolim, tinha olho e perna postiços, dentadura e peruca. Tinha “coração bondoso a par de velhacaria e esperteza sem iguais”. Mais uma vez, apostava-se num corpo grotesco e em “maus modos” para produzir riso (ver Figura 46). Nas histórias de João Garnizé ele aparece se metendo em golpes e trapaças, brigando, injuriando, furtando, bebendo e fumando. Nos seus apuros, às vezes aparece nu e sem suas próteses (sem perna e sem um olho). Caça muito, dá seus tiros e socos. Sua tia Genoveva, de quem tenta roubar todo o dinheiro, uma vez se levanta de um caixão, já quase dentro da sepultura, após ter sido dada como morta. 41 Augusto Rocha passa a assinar a série com o pseudônimo de Nelson. 200 Figura 46. “Quem seria capaz de supor que o Garnizé fosse um homem cheio de postiços?”. Quadro da história de estreia do personagem João Garnizé, por Augusto Rocha (ou Nelson). Uma incursão no grotesco. Página 2 do número 466 de O Tico-Tico (1914). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Por sua vez, no ano de 1915 Storni vinha publicando seu Zé Macaco regularmente, metade das vezes na página de capa. Tinha encontrado uma nova estrela para sua série: um cachorro esquisito, de óculos, com uma vela amarrada no rabo e o corpo feito de um serrote. De coadjuvante, passou a fazer parte da família Zé Macaco42. Uma vez, levado a passear na avenida, é provocado por outro cão e, sendo um serrote, deixa o adversário ensanguentado e esquartejado na calçada (número 525), conforme se vê na Figura 47. 42 Anos depois, em 1929 (número 1232), o cão Serrote volta a fazer parte dos personagens. Porém, nessa versão tardia ele não é mais feito de serrote, apenas parece um serrote pelas marcas da coluna vertebral nas suas costas magras. Como outros animais de historietas, ele é racional e se expressa verbalmente em pensamento. Ressurge como um cão vira-latas feio, mas Storni começa a desenhálo com traços cada vez mais suaves e menos caricatos. 201 Figura 47. Em tempos de guerra, jaz um cachorro esquartejado no chão. Serrote é um ser grotesco, mistura incongruente de organismo vivo e objetos. Quadrinho final da historieta da capa do número 525 de O Tico-Tico (1915). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, editado. A essa altura, a linha editorial está mudando. No número 528 Storni publica a última história de Zé Macaco da fase de maior sucesso. O enredo é significativo e bastante explícito. O personagem faz mais uma de suas experiências científicas: cultiva, num aquário, o “germe da inteligência e talento”. O germe se desenvolve numa figura com tipo de anjo, mas coagulam-se também seus inimigos. Diz a legenda: “Então, Zé Macaco verificou plenamente um fato comum da vida e, no íntimo da sua filosofia barata, sorriu com superioridade (grifo meu). Via-se perfeitamente o talento a lutar desesperadamente com muitos inimigos: a inveja, a ignorância, o carrancismo, etc.”. A legenda também anuncia que Zé Macaco vai se retirar por algum tempo. Storni continua a trabalhar na companhia O Malho, mas Zé Macaco é suspenso para ceder espaço ao Chiquinho como personagem principal da revista. Storni planta na própria obra a mensagem de que se considera um talento superior, invejado e atacado. 202 A linha editorial muda de tom. No período de final de 1915 até 1920, está menos jocoso e mais voltado para costumes de alta burguesia, com mais fotos e matérias de esporte43 e ciência, mais ilustrações de moda feminina, anúncios mais elegantes, como os do magazine Parc Royal, e mais parábolas morais em forma de historietas ilustradas, traduzidas da França. Continuam as matérias de curiosidades sobre os costumes de povos tradicionais, de tom etnocêntrico. Por outro lado, as aventuras grotescas de Kaxinbown, de Zé Macaco e de João Garnizé desaparecem das páginas. Até aquele momento, O Tico-Tico parecia obedecer à lógica da indústria cultural do século XX que, “em seu setor infantil, leva precocemente a criança ao alcance do setor adulto, enquanto em seu setor adulto ela se coloca ao alcance da criança” (MORIN, 2011, p. 29). Sugiro que foi uma mudança editorial no sentido de moderar o conteúdo da revista, evitar os personagens adultos vivendo aventuras de “gente grande” e privilegiar os personagens que representam a vida infantil dando exemplos civilizados. Até o Chiquinho começa a estudar mais, do número 545 em diante. O personagem, sob condução do caricaturista Loureiro, amadurece em relação à versão original do norte-americano Outcault. Até as proporções com que Loureiro desenha Chiquinho denotam um menino mais maduro do que o pequeno lorde original. Em compensação, publicam cada vez mais historietas ilustradas com personagens que representam meninas, de origem francesa, sobre moralidade na vida urbana e rural. Muitas delas são de La Semaine de Suzette, como as da criada Bécassine. Com essa mudança editorial há menos espaço para a produção dos artistas brasileiros. O único material narrativo brasileiro, nesses anos, é justamente o Chiquinho de Loureiro, que tem aí uma fase importante com sequências que duram meses e merecem estudos, pois são muito significativas. Também, na medida em que há mais fotos de curiosidades e mais matérias escritas, diminui o espaço para as atividades manuais (os “brinquedos para dias de chuva” e a seção “Para meninas”). Para evidenciar que a linha editorial estava sob debate, sujeita a uma trajetória vacilante, durante 1917 acontece breve retorno do Zé Macaco. Finda essa 43 Desde 1914 O Tico-Tico começa a ter páginas de esportes com fotos dos times, tabelas dos campeonatos de futebol e cobertura fotográfica de corridas de cavalos e remo. 203 sequência, durante vários meses, Storni e Yantok publicam historietas novas, mas sem seus personagens populares. As seções de trabalhos manuais e brinquedos de armar voltam. No entanto, próximo do final do ano, aquela linha editorial mais firmada no material francês, na idealização de uma civilização europeia e no tema dos bons exemplos volta a prevalecer. Storni, Yantok e os outros somem da revista, para voltar somente em 1920. Nesse ano, no número 755 reaparece o João Garnizé. O personagem conta por onde andou durante os cinco anos de ausência. Storni volta a colaborar, assumindo a criação e desenho do personagem Chiquinho, sucedendo Loureiro. No número seguinte, 756, Storni dá um lance no jogo. Uma vez que já havia o costume de misturar personagens de autores diferentes na mesma história, ele inclui o Zé Macaco dentro da série do Chiquinho, que é publicada nas capas da revista. O título da seção muda para “Aventuras de Chiquinho e Zé Macaco” (grifo meu) e a legenda anuncia “as novas aventuras em conjunto do Chiquinho, Jagunço e Zé Macaco” com o ressurgimento de “um velho companheiro há muito tempo esquecido”. São reestabelecidos os temas proscritos desde o final de 1915, tais como bebedeiras e ações violentas por parte de personagens adultos. João Garnizé aparece seminu, insulta ciganos, caça vários animais e, no número 783, passa faca na garganta de um gato e o cozinha. Mesmo o Chiquinho, agora acompanhado do Zé Macaco, fica mais grotesco nas aventuras (chega a se vingar de Zé Macaco armando uma sinistra pegadinha na qual simula o afogamento de Faustina). Enquanto isso, diminui a participação das historinhas francesas. Os brinquedos de armar são substituídos por jogos como víspora (tombola), dominó e baralho. Nos números 785 e 786 as páginas centrais formam um tabuleiro para se jogar uma alusão a corrida de cavalos. Em geral, nessa fase da revista, as narrativas publicadas giram mais em torno de pulsões do que em autocontrole e bons costumes. Storni continuaria assim durante 1921, aproveitando seu “mandato” na produção das historietas de Chiquinho para manter Zé Macaco como personagem popular, sem ter, no entanto, tanto espaço quanto nos anos anteriores. Em 1922 o caricaturista assume a direção artística da revista Careta, da empresa concorrente, e Zé Macaco mais uma vez deixa de figurar nas historietas de O Tico-Tico, para voltar mais à frente, a partir de 1928, com Storni assinando o pseudônimo S.O.S. Nos anos 1930, 1940 e 1950 Storni continua criando piadas de Zé Macaco e Faustina, mas em páginas em preto ou apenas duas cores. 204 Os temas continuam girando em torno de modas e invenções. Nem Baratinha nem Chocolate aparecem e os signos de vestuário e o cenário da casa denotam um cotidiano de classe média, não mais de luxo. É como se Storni estivesse traçando uma crônica do desenvolvimento da sociedade brasileira, em que o contingente populacional de classe média vai aumentando ao longo do século XX, e o estilo de vida que caracterizava apenas as camadas abastadas é adotado cada vez por mais famílias. Conforme Giddens (2002), abraçar um estilo de vida, na modernidade tardia, é abraçar práticas que dão forma à narrativa de autoidentidade dos indivíduos, uma vez que estão suspensas as contingências das tradições. A antiga correlação entre ambiente físico e identidade social é enfraquecida, enquanto se fortalecem relações identitárias virtuais e globais. No final dos anos 1920 os personagens caricatos do casal Zé Macaco vivem a fragmentação e a multiplicidade de escolhas, dentro de um rol de opções de consumo e de experiências que lhes chegam por meio dos meios de comunicação. 4.5. Representações grotescas e sua ambiguidade No final de 1958, em O Tico-Tico número 2077, Storni, com 77 anos de idade, publicou ainda mais uma piada de Zé Macaco e Faustina. Narra uma “invenção” de Faustina: o “rabo-de-macaco”, maneira de prender o cabelo semelhante ao rabo-decavalo. Vaidosa, ela sai para passear e exibir sua moda. Pega um ônibus e causa incômodo aos passageiros de trás. Resultado é que alguém corta fora o cabelo dela, que só percebe quando está de volta à casa e olha um espelho. Os temas e os signos caricaturais são os mesmos já discutidos no corpo deste capítulo. É uma evidência a mais da consistência da série Zé Macaco como obra de Alfredo Storni. É hora de produzir alguns argumentos a partir da análise interpretativa com referências teóricas do processo civilizador. Eles serão carregados para a conclusão da tese. 1) Um deles é que Storni usou, frequentemente, o grotesco “rabelaisiano” entre seus recursos cômicos. Esse uso não era exclusivo do autor; ele estava acompanhado de mais de um colega na própria redação da revista. No carnaval, que nunca deixava de ser celebrado nas capas de O Tico-Tico, a máscara de Zé Macaco costumava ser publicada, junto a de outras figuras preferidas. O rosto caricatural de Zé Macaco era reproduzido por leitores, colaboradores amadores, como Herman 205 Lima, e outros artistas, em situações diversas, como um dos ícones da publicação. Bakhtin chama a atenção para a importância dessa figura icônica: O complexo simbolismo das máscaras é inesgotável. Basta lembrar que manifestações como a paródia, a caricatura, a careta, as contorções e as “macaquices” são derivadas da máscara. É na máscara que se revela com clareza a essência profunda do grotesco (BAKHTIN, 1987, p. 35) Discutível é dizer que Storni fez das contorções e macaquices seu projeto artístico. Ele estabeleceu competência como um caricaturista de muitos recursos, capaz de emular estilos de desenho que os editores gostariam de manter, quando perdiam os colaboradores habituais. Isso foi discutido no capítulo 2, p.122. Se a série do Zé Macaco se caracterizava pelo estilo grotesco, deve indicar que Storni julgava ser uma boa aposta mantê-lo, atento ao julgamento dos editores. Em outras palavras, Storni apostava na popularidade de Zé Macaco para manter um bom espaço na revista, durante muitos anos. Conforme foi sugerido aqui, a moeda de troca de Zé Macaco era justamente seu interior primitivo e instintivo que agradava os leitores pelo prazer cômico. Esse é o preço que o caricaturista paga para realizar críticas pelo caminho do humor. Conforme referido da introdução desta tese, o escritor e cartunista Ziraldo (1970), num texto especial para a Revista de Cultura Vozes, teceu muitas considerações sobre a essência e a práxis do humor. Para Ziraldo, é a revelação de uma verdade sobre o homem que faz uma narrativa de humor ser diferente de uma narrativa apenas cômica, que faz rir: “Quem somente faz rir não está defendendo teses ou ideias e o Humor é quase sempre uma defesa de tese” (ZIRALDO, 1970, p. 203). Infelizmente, o profissional só vai sobreviver se souber fazer rir: “Ninguém vai pagar ninguém para que este saia por aí contando verdades, desmontando as coisas, virando o olho do homem para dentro dele mesmo” (idem, p. 204). Faz sentido que Zé Macaco tenha sido criado por incentivo de editores que, gerenciando a nascente indústria cultural, viam nas caricaturas de Storni o potencial de agradar “a uma imagem do homem médio” e de se dirigir ao mesmo tempo “a todos e a ninguém” (MORIN, 2011, p. 25-26), ou seja, o público homogeneizado. O desenvolvimento de figuras grotescas que já eram vistas em suas charges de O Malho e O Filhote da Careta foi um lance para aproveitar a condição que se apresentava na revista infantil do mesmo grupo empresarial. É significativo que a primeira sequência de aventuras se interrompe por um ano e meio, sem perspectiva 206 de volta, apesar de algumas referências à agitação de alguns leitores que perguntavam por Zé Macaco. Uma interpretação possível é que, a princípio, não era um trabalho pelo qual Storni se importava demais, ou havia alternativas em que ele preferia investir. Essas condições se inflexionam e Storni passa a lutar pelo personagem, conforme se relatou neste capítulo. A versão de Zé Macaco que volta às páginas em 1911, reformulada num novo-rico com família, inventor e imitador de modas, deve ter relações mais fortes com sentimentos e vivências do artista, pois é essa versão que ele consolida no seu relato autobiográfico, e é essa versão que ele lamenta ter sido cancelada em 1915. Sempre que há oportunidade, Storni reinsere o personagem em O Tico-Tico, lembrando ao leitor, no texto de legendas, como ele era querido e engenhoso. Na conjuntura a que essa tomada de posição se refere, Storni se vê diante de condições alteradas, com a linha editorial da revista rejeitando o recurso ao riso grotesco e à representação da vivência dos adultos numa revista dedicada ao leitor infantil. Ele tenta, mas não obtém material adequado à nova linha, e só lhe resta insistir que Zé Macaco era melhor, alegando uma grande popularidade. Foi visto que essa insistência é recompensada, quando Storni reassume a confecção da página de capa, então com o título “Chiquinho”. No relato autobiográfico publicado na Revista da Semana de 21 de março de 1945, ainda lutando por espaço no campo, Storni estabelece que a criação de Zé Macaco tinha sido num estalo de “revolta contra a monotonia das historietas estrangeiras”, discurso convincente num contexto de valorização nacionalista, os anos 1940, ainda digerindo o movimento modernista. O mesmo relato indica que Storni pensava estar usando do estilo grotesco “satírico”, clássico, civilizador, que pinta como monstruoso aquele inimigo primitivo interno à humanidade. Escreveu ele “... pretendo incutir no espírito infantil, através do grotesco e do ridículo, a verdadeira concepção da modéstia, da serenidade e de todas essas virtudes que cada dia se acham mais esquecidas entre os homens (grifo meu)”. Nesse ponto, Storni não deve ter atingido seu objetivo, uma vez que não se encontra, nas historietas de Zé Macaco, um quadrinho em que os personagens estejam demonstrando “modéstia”, “serenidade” e “virtude”, no estreito caminho que os educadores clássicos, como La Salle, traçavam para a civilidade (REVEL, 2009). Zé Macaco, que reiteradamente exibia sua inadequação 207 e rusticidade, mesmo tentando ostentar civilidade e hábitos modernos, após a derrota, que nem sempre acontecia, a cada semana voltava reestabelecido à velha forma. É mais plausível que essa condição de herói era interpretada pelo leitor como modelo a seguir. 2) Mais adequado é dizer que, ao usar o regime de representação cuja matriz é o grotesco “rabelaisiano”, as narrativas ao mesmo tempo reafirmavam a ordem ao mesmo tempo que a invertiam, como as celebrações culturais populares. A ordem que Storni reafirmava era aquela que estabelece, para uma camada da sociedade, hábitos modernos e burgueses de modelo europeu. Uma camada cuja sociabilidade pode girar em torno de consumo, lazer, espetáculos e notícias. A contrapartida é cultivar a iniciativa, o engenho, o controle orçamentário e o planejamento de família pequena. Também o progressivo abandono dos laços com a origem rural. É sugestivo que Zé Macaco não tenha amigos. Não tem turma, nem um esboço de passado44. Não pertence a uma corporação. Mesmo no Carnaval opta por desfilar no próprio carro alegórico ou no automóvel. Só anda com sua família. Passeios, só com a esposa. Sem empregados da casa, exceto cozinheira. Em síntese, corresponde a um ethos de classe média, não muito diferente do vivido pelo próprio Storni, em seu refúgio em Niterói, longe das mesas dos cafés do Rio de Janeiro. Quando a historieta trata de Faustina contratando uma cozinheira portuguesa que não entende as ordens, ou um faxineiro que quebra tudo na sala, fica a suspeita de que Storni se inspira no cotidiano do seu próprio lar. Por sua vez, a ordem que Storni negava era aquela da ostentação de modos civilizados não interiorizados, que, apesar de socialmente eficazes, não passavam de “verniz” ou máscara. Invertia os valores, fazendo a rusticidade ultrapassar e expor essa civilidade de fachada. Denunciava o progresso material que dá poder aos homens despreparados, infantilizados. Denunciava também o nível de violência com que as organizações civilizadas reprimiam a rusticidade, na paz e na guerra. Recorrentemente, o interior primitivo do homem sempre apareceria por baixo da fachada, rompida pela primeira pressão sofrida. São as pulsões que o deixam vivo, indomável (virtualmente imortal). As iniciativas engenhosas de Zé Macaco são imagens que evocam as pulsões de vida; as reações violentas aos ultrajes são o 44 Existe uma exceção. No número 1245 de O Tico-Tico (1929), Zé Macaco sai para fazer compras, mas, no caminho, encontra um velho amigo com quem vai beber e perde o dia. Não se revela nada do passado, no entanto. A cena é um pretexto para funcionar uma piada com seu cachorro, o Serrote. 208 mesmo para as pulsões de morte. Mais do que outros personagens de O Tico-Tico, que também tinham essa ambiguidade, Zé Macaco era capaz de representar o dilema da civilização: as vantagens do progresso são pagas com a gestão das pulsões. 3) Se Storni usa o caboclo para falar da vida urbana, nos dá um exemplo prático da mediação cultural na representação social desse estilo de vida. Cria uma ponte (ou um degrau) para o leitor se aproximar da nova era de velocidade, mecanização, eletrização, medicina, espetáculo, esporte, meios de comunicação etc. Conforme foi visto no capítulo 3 (p.131), a interpretação das historietas de Storni, observadas mais de cem anos após sua publicação, pode fornecer exemplos dos processos de produção de representações sociais que Moscovici (2003) julga serem geradas com o auxílio de profissionais como líderes religiosos, jornalistas, políticos e outros, que atuam como fomentadores e coordenadores na elaboração coletiva das representações. Howard S. Becker (2009) também vê a produção de representações profissionais, sejam artísticas ou científicas, como resultado do entendimento entre os que produzem e os que consomem tais representações. Por sua vez, Gilberto Velho (2013) aponta como agentes dessas categorias circulam entre grupos sociais distintos, traduzindo valores entre eles, participando de negociações entre a mudança e a conservação e, portanto, sendo mediadores sociais. Para Moscovici, o processo é social e público; é resultado de diálogo. Baseiase em “ancorar” um conceito não-familiar num contexto familiar, isto é, conhecido pelo hábito. Em segundo lugar, baseia-se em “objetivar” em imagens concretas, com qualidade “icônica”, os conceitos abstratos, puramente intelectuais. “Comparar já é representar” (MOSCOVICI, 2003, p. 72), e é um recurso típico da caricatura. Por exemplo, o leitor (no início do século XX) já ouviu falar do aeroplano, mas não concebe o que seja. Falta-lhe a experiência prática do voo e a naturalidade do contato cotidiano com o aeroplano. As explicações técnicas da coluna Lições de Vovô são áridas e dependentes do verbo. Porém, desenhar a história de Zé Macaco injetando sérum de crescimento num mosquito, depois aparando as asas dele, botando rodinhas de bicicleta nas patas e transformando-o em aeroplano, aproxima a concepção da máquina voadora de um ser mais conhecido, o inseto. Por obra da mediação social, o aeroplano típico dos anos 1910 é assim descrito: uma estrutura alada em forma de cruz, leve, frágil e barulhenta – tal qual um mosquito, só que grande. A mediação entre a) os termos e conceitos fundamentais da pauta 209 civilizadora e b) os conceitos contidos no arcabouço cultural do leitor “médio” é um serviço que a arte dos caricaturistas na imprensa presta à cognição (ver Figura 48). Figura 48. “Para poder servir como moderníssimo aeroplano”. Capa do nº 423 de O Tico-Tico (1913). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (detalhe). O processo não é exatamente de “tradução”, mas de “avaliação”: “Seu objetivo principal é facilitar a interpretação de características, a compreensão de intenções e motivos subjacentes à ação das pessoas; na realidade, formar opiniões” (MOSCOVICI, 2003, p. 70). No caso, a opinião de que o aeroplano é incômodo assim como o mosquito. Essa representação caricata não educa o leitor na etiqueta da viagem aérea, muito menos na ciência e na engenharia do voo “mais pesado que o ar”, porém já é um passo nessa direção, por naturalizar a existência desse tipo de máquina no cotidiano. Dessa maneira, e não na forma de lição, nem de discurso apologético, é que as historietas ilustradas para crianças tomam parte no processo civilizador. Na sequência, os três pontos dissertados acima somam-se às conclusões dos demais capítulos e são levados em conta na formação de uma síntese dos resultados da pesquisa. 5. Desenhando, uma caricatura fala sobre a sociedade Depois de voar no Aéreo-burro à floresta no interior do Brasil, viver numa aldeia bororo, perder os vínculos com a civilização, ser resgatado por sua esposa Faustina com aquele radar improvisado (capítulo 3, p.159) e ter recuperado sua memória e sua subjetividade com a cacetada fornecida pelo furioso guarda civil (capítulo 4, p.194), Zé Macaco ganhou uma homenagem como herói. Foi no número 311 de O Tico-Tico, em 1911 (ver Figura 49). Figura 49. Convalescente, depois de restituído à civilização, Zé Macaco é celebrado. Quadro final da historieta na pág. 14 do nº 311 de O Tico-Tico (1911). Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. A legenda do último quadro diz: Chiquinho fez um grande discurso de saudação e no meio da maior solenidade e silêncio entregou-lhe o busto d’um macaco, que ele e seus companheiros lhe ofereciam, como símbolo da sua vida, que fora um misto de homem e de selvagem! Todos choraram de emoção: a Faustina, o Totó, o Baratinha e o Chocolate. Nesse meio tempo ouviu-se grande estampido. Era o Antenor, fotógrafo d’A Ilustração Brasileira, que tirara um instantâneo da cerimônia com magnésio. O quadro é tão repleto de signos visuais, a legenda é redigida com tantos termos expressivos e a cena se relaciona de tantas maneiras com os textos que dão lastro a esta tese que é preciso tomar fôlego antes de enumerá-las. a) São os demais personagens das historietas de O Tico-Tico, aqueles criados e desenhados por outros artistas, que chegam de surpresa à mansão de Zé Macaco para lhe prestar homenagem. Pipoca, de Yantok, está no meio do quadro, tocando bumbo. Chiquinho e Jagunço, mascotes da revista, vão 211 na frente, o que acontece no quadro anterior, não mostrado na figura. Lá também estaria o Sassy Grandpa, ou “Vovô”, já citado. É uma demonstração de que Storni se sentia em condições de inventar uma piada em que seu personagem era retratado como o mais eminente entre eles. b) A reunião de personagens de diferentes origens, cada qual com direito a uma série de historietas própria, mas inseridos no mesmo universo ficcional construído pela revista, demonstra um traço não exclusivo, porém, marcante da cultura moderna: a intertextualidade (GENETTE, 2010). Formando uma espécie de família, os personagens somam forças, referenciando uns aos outros. Além disso, ao se deslocarem de uma “casa” ficcional a outra, simulam uma concretude, a ilusão de que existiriam fora de suas páginas desenhadas. Algumas vezes, Zé Macaco é tratado como se fosse um tipo de ator no grande teatro que é a revista, e sua fama no mundo real causa efeitos no mundo ficcional. Umberto Eco aponta que, na cultura de massas, as narrativas parecem se referir ao mundo mas, na verdade, por meio de inúmeras citações intertextuais, seus autores preferem se referir ao conteúdo de outras narrativas midiáticas (ECO, 1989, p.129). c) Um fotógrafo é caricaturado, bem como sua máquina, no ato de registrar a solenidade. Acima dele, estoura uma carga de “magnésio”, ou seja, um flash. Ninguém se abala com o estampido “pum!”. A técnica da fotografia estava ganhando familiaridade e naturalidade. Ainda assim, em 1911, é uma técnica moderna e merece uma menção importante. Um sinal disso é que a máquina foi desenhada em primeiro plano nesse quadrinho. d) Está aí a representação caricatural que leva a leitores da capital e do interior do Brasil a noção do que é uma sessão de fotografia, ou melhor, de “instantâneos”, e para que ela serve, na sociedade moderna. A menção à revista A Ilustração Brasileira, da mesma empresa de O Tico-Tico, não só é um recurso comercial, mas também nos lembra que toda essa obra é produto do meio de comunicação que é engajado em projetos civilizadores e modernizantes na Primeira República: a revista ilustrada. e) O estampido do flash do fotógrafo é representado pela onomatopeia “pum!”. As historietas ilustradas, com as crônicas nas revistas e jornais, estavam legando à sociedade um meio de assimilar na cultura os ruídos 212 cada vez mais frequentes da vida urbana moderna. O “fon-fon!” da buzina já havia se transformado em título de revista. Ao fixar uma forma escrita para cada tipo de ruído – apito, motor, demolição, explosão, queda, espancamento, grito – essas narrativas conferiam familiaridade às impressões sonoras disformes da realidade. f) Na metade direita do quadro o desenhista compôs o núcleo familiar de Zé Macaco, no qual está incluído Chocolate, um menino negro que, nessa fase da série, foi procurado por Zé Macaco para servir de companhia a seu filho Baratinha. É um traço arcaico da sociedade brasileira que ocorre ainda com aparente naturalidade numa historieta dos anos 1910. O menino, passados 22 anos da abolição da escravatura, era trazido a uma casa para realizar tarefas subalternas, sem menção a qualquer adoção ou contrato. Seu trabalho é brincar, mas brincar sob as ordens do filho do dono da casa. Representado como um néscio, reage a quase tudo apenas com a expressão “Ué?”. Na figura só é visto o topo de sua cabeça, com o cabelo em forma de dois bicos. A presença do personagem é uma lembrança de que, uma vez que a historieta se passa no Brasil, o moderno e o arcaico andam lado a lado. Ainda no tempo presente o racismo estrutural pode sustentar um arranjo familiar como o da fictícia família Zé Macaco. g) No canto inferior direito aparece o Totó, aquele cão que Faustina encontrou na rua, no dia de seu protesto feminista, que foi levado pra casa, depois esticado pelos meninos, depois cortado em três por um automóvel e depois colado num tipo de cirurgia doméstica feita por Zé Macaco. Eis a representação do risco aumentado a que os corpos são expostos nos ambientes urbanos e industriais modernos. h) Zé Macaco se apresenta calçando chinelos. Nos quadrinhos anteriores ele estava descansando na poltrona que se vê no canto direito. São dois signos do estilo de vida burguês adotado por Zé Macaco depois da fortuna. Mais uma vez, a historieta propaga costumes, hábitos de consumo e nos lembra como objetos estão no centro de práticas que seguem etiquetas civilizadas e que constroem a subjetividade do personagem. i) Uma cascata de lágrimas cai dos olhos de Zé Macaco de seus familiares, inclusive o cão. A emoção de felicidade e gratidão é exagerada 213 caricaturalmente, um signo que pode ser lido como rusticidade, falha no autocontrole de emoções exigido pela etiqueta civilizada. j) Está implícito, pelos quadrinhos precedentes, que o valor de Zé Macaco é ter se aventurado, sozinho, no sertão, para civilizar povos indígenas. Ele fracassou, mas ter conseguido voltar para casa já é considerado um feito. Ou seja, ele será homenageado sem ter feito obra nenhuma, apenas por ter se lançado a um capricho, ter imitado a experiência de outros. k) Chiquinho, solenemente, conforme a etiqueta, confere ao herói homenageado o busto de um macaco, “como símbolo de sua vida, que fora um misto de homem e de selvagem”. A produção deste capítulo é a busca de uma síntese. Se a legenda diz a verdade, então Zé Macaco é simplesmente um personagem meio homem, meio macaco; meio civilizado, meio selvagem. É enganoso definir uma síntese como a mistura em iguais proporções de dois princípios opostos de uma dualidade. A síntese pode configurar um terceiro termo. Por isso, em vez de acomodar todas as observações feitas nas investigações desta tese numa síntese abrangente que dilui todos os elementos a ponto de perderem o significado, é preciso buscar, como Bourdieu (1996), a fórmula geradora da obra na trajetória de seu autor – um indivíduo – dentro da estrutura social e do campo profissional. Essa interpretação – pela observação detalhada de um objeto do campo da comunicação, no contexto das revistas ilustradas do início do século XX – abordará a questão de como se dá tal mediação que se acredita atuar na construção da subjetividade dos jovens leitores e em aspectos do processo civilizador da sociedade. É preciso lembrar o método invertido em relação ao senso comum: não começar a investigação a partir da consagração do artista e explicar como chegou lá, e sim começar da posição inicial e percorrer as sucessivas posições ocupadas no campo profissional (BOURDIEU, 1996, p. 240). No capítulo 2 (p.83) a autobiografia de Álvaro Marins jogou luz sobre a trajetória de todo o grupo de caricaturistas “da província”, que não pertenciam aos círculos sociais autóctones do Rio de Janeiro. Aquela linha, com seus nós e emendas, ajuda a dar significado à trajetória de Alfredo Storni, que deixou bem menos dados biográficos. 214 A fórmula geradora, segundo Bourdieu, é homóloga aos deslocamentos do autor pelo campo e à estrutura social em que ele se desenvolveu. Isso não quer dizer que a obra é sempre uma ficção autobiográfica; ela é produzida com a objetivação de si, uma espécie de autoanálise em meio a uma socioanálise geral. O artista pode objetivar a própria estrutura social da qual é produto. A obra de caráter narrativo produz uma ilusão que tem relação com o mundo dito real; apenas evoca, “dá a ver” a estrutura do meio social e seus sistemas de habitus (idem, p. 48). Para Bourdieu, isso não quer dizer que a obra é determinada pela origem social; o indivíduo dá seus lances em relação a todos os demais, e sua origem apenas condiciona o leque de possibilidades. A pesquisa apontou que o lance mais consequente de Alfredo Storni foi a virada de 1910 para 1911, quando seu personagem em O Tico-Tico, Zé Macaco, de um dia para outro, deixa de ser um caboclo fora de seu lugar e vira “Mister Zé Macaco”. O segundo lance a ser destacado foi a oferta de caricaturas da política gaúcha para a revista O Malho, em 1906, abrindo caminho para que fosse trabalhar na capital do País. Outro lance importante é o protesto no final de 1915, quando Storni faz o personagem discursar sobre ataques invejosos à criatividade, na última semana antes de desaparecer das páginas por anos. Ficava a dica aos leitores fiéis para exigirem sua volta. Todos os outros lances foram defensivos, ou seja, Storni defendeu as posições conquistadas. Usou a habilidade técnica para se tornar indispensável e gozar de uma carreira longeva em alguns dos melhores veículos de imprensa de seu tempo, no Brasil. No campo artístico, a habilidade técnica é como um capital utilizado tanto pelos que lutam por posições no mercado de arte para a elite instruída quanto pelos que lutam por remuneração no mercado de consumo de massa. Conforme o capítulo 2, Storni era capaz de emular estilos consagrados na revista que o empregava. Adaptava-se ao serviço disponível. Não procurava ficar sob os holofotes; seus personagens eram bem mais conhecidos do que ele mesmo. Ao mesmo tempo, ostentava criatividade. Aqui não cabe um juízo de valor nem um ranqueamento de caricaturistas. Apenas interpreto que, em comparação com artistas que faziam o mesmo gênero – historietas ilustradas para crianças – Storni era capaz de acionar uma boa variedade de premissas e de soluções cômicas ao longo das semanas. Mudava o foco de um personagem para outro e 215 experimentava substituir historietas por jogos visuais em algumas das capas45. Os colegas optaram por repetir fórmulas narrativas encontradas por eles para suas historietas, semana após semana. É preciso reconhecer que as tiras e histórias em quadrinhos têm, como um de seus fundamentos, a iteratividade, exploração da repetição como valor que provoca efeitos narrativos e prazer na leitura (ECO, 2015). Porém, essa estratégia de se fiar na repetição tem alcance limitado. Storni também tinha que seguir alguma fórmula. Apenas, pela leitura de anos de publicações de O Tico-Tico, pode-se fazer uma comparação em que Storni parece explorar mais as possibilidades do meio do que, por exemplo, A. Rocha e Loureiro, na série do Chiquinho, ou J.Carlos, na série de Carrapicho e Jujuba. Todos tiveram sucesso, conquistaram os leitores e ficaram na memória de suas gerações. Somente pode-se dizer que Storni tinha esse recurso artístico diferencial descrito acima e se valeu dele nas tomadas de posição enquanto se movimentava no campo profissional. Segundo Bourdieu (1996), o valor da obra de arte é função do reconhecimento. É atribuída, somente por fetiche, à genialidade do artista. Portanto, “a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra” (BOURDIEU, 1996, p. 259). Tal valor também depende do valor que se dá ao público da obra. No pólo comercial do campo, também acontece a hierarquização entre as obras que atendem ao mercado “burguês” e as que atendem ao mercado “popular”, em detrimento das últimas (idem, p. 249). Os caricaturistas não estavam no campo literário; estavam totalmente inseridos na indústria da mídia de seu tempo. Portanto, não podiam almejar reconhecimento douto, muito menos títulos por instituições de consagração, conforme visto no capítulo 2 (p.70). Sua luta por valorização tinha que ser a busca por popularidade, a boa imagem que deixavam na mente dos leitores. Storni, conforme o capítulo 4 (p.167)., parece ter apostado e redobrado apostas na comicidade de caráter grotesco. 45 No número 369 (1912) ele faz na capa um jogo de dobrar o papel para simular o eclipse do sol que houve naquela semana, similar às “dobradinhas” de Al Jaffee na revista Mad; no número 398 (1913), brincadeira com o rosto de Zé Macaco de cabeça pra baixo, parecendo um outro homem, de bigode e barba; no número 421 (1913), jogo visual de compor, com as figuras da família Zé Macaco e mais uma galinha a chocar dois ovos, a figura da cabeça do cão Jagunço; no número 439 (1914), boneco de Zé Macaco que mexe braços e pernas; no número 462 (1914), Faustina visita as ruínas da casa da avó de Zé Macaco. O leitor deve procurar, disfarçado no cenário, o rosto de Zé Macaco. 216 O lance recompensou, porque a lembrança do público e a avaliação dos editores deve ter tido peso na decisão pela volta de Zé Macaco, após duas paradas, a de 1915 e a de 1922. O grotesco fazia rir, e Storni, embora não tivesse pautado sua obra sempre nesse registro, deve ter reconhecido que era parte de seu capital artístico, disponível quando se tratava de O Tico-Tico e seu público infanto-juvenil. O sentido do termo grotesco já foi discutido no capítulo 4 (p.167). Não se propôs abordar o objeto da tese pelo lado da comicidade, muito menos formular a maneira particular como Alfredo Storni produzia efeito cômico. No entanto, um determinado entendimento do fenômeno do riso acompanha todas as análises feitas durante o trabalho: a formulação do filósofo Henri Bergson (2001). Sobre caricatura, a abordagem de Gombrich (1986), que lança foco sobre a estilização, a simplificação de traços e formas e seu uso como uma forma de linguagem, foi a escolhida como instrumento, conforme os capítulos 3 e 4. Adicionalmente, o foco no exagero do desenho com efeito de riso vem da abordagem de Bergson, que escreve: Entende-se agora a comicidade da caricatura. [...] pode-se exagerar ao extremo sem obter um verdadeiro efeito de caricatura. Para ser cômico, o exagero não pode aparecer como o objetivo, mas como um simples meio utilizado pelo desenhista para manifestar aos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-se na natureza. (BERGSON, 2001, p. 20) O filósofo encontra um denominador comum em todas as manifestações de comicidade no desenho, na anedota, na comédia: a rigidez que é denunciada em corpos e dinâmicas que deveriam ser maleáveis e vivas. Algumas delas são contorções que se aplicam a um rosto doente, envelhecido ou castigado pela vida e, por isso, disparam a manifestação do riso como reação ao desconforto de ver ou sentir um entrave ao fluxo da vida. Essa manifestação não é solidária; não se ri de quem se gosta. Mas se ri de quem nos lembra das falhas e da rigidez a que todo homem está sujeito, como se a gargalhada ou o esgar tivesse o poder de punir o desvio a ponto de devolver a vida e o dinamismo ao objeto do escárnio. Voltando aos termos da citação, o caricaturista tem sucesso quando aumenta e evidencia aquela rigidez, aquele desvio que já existe no objeto, ainda imperceptível. A maior parte dos exemplos de Bergson levam a associar a rigidez à aparência mecânica, repetitiva, viciada: 217 [...] assim nos parece que o desenho geralmente é cômico na medida da nitidez e também na discrição com que nos leva a ver no homem um fantoche articulado (grifo meu). É preciso que essa sugestão seja nítida, e que percebamos claramente, como por transparência, um mecanismo desmontável dentro da pessoa (grifo meu). [...] O efeito cômico será mais marcante, a arte do desenhista será mais consumada quanto mais inseridas estas duas imagens estiverem uma na outra: a imagem da pessoa e a de mecanismo. E a originalidade de um desenhista cômico poderia ser definida pelo tipo específico de vida que ele comunique a um simples fantoche. (BERGSON, 2001, p.22-23). É difícil não lembrar da historieta de Zé Macaco e o boneco de corda malcriado, analisada no capítulo 4 (p.191). O boneco era ridículo porque não parava de andar, desrespeitando a civilidade. Por sua vez, Zé Macaco era ridículo porque respondia com o vício da violência, sem atentar para a particularidade de seu encontrão na rua. Zé Macaco, personagem caricato, é como se fosse um boneco articulado também. E a técnica do caricaturista está diretamente ligada ao estudo dos movimentos da figura humana como um “fantoche articulado”. Ele é passível de ser representado em alguns movimentos e expressões, mas não em todos. Tem rigidez mecânica. Sugiro que a explicação para o riso dada por Bergson (2001), com base nos exemplos culturais e artísticos que ele dá (caricatura, espetáculo circense, comédias de Molière, entre outros) relaciona o riso com as transformações da modernidade, das quais o filósofo foi um observador. Sua filosofia é da intuição e da experiência, e sua vida acompanhou rápidas transformações técnicas e sociais. Em vista do estado de coisas do século XX, ri-se da rigidez mecânica aplicada ao que é humano e vivo (rigidez que é fruto do processo de modernização e que se relaciona, por exemplo, com a moda, a produção em série e a especialização do trabalho), não na tentativa de parar o processo e voltar atrás, mas, pelo contrário, para seguir em frente no desenvolvimento do indivíduo, tirá-lo do marasmo, fazer com que busque, sem parar, sempre atento, o bem viver, os novos e melhores hábitos. Sob esse ponto de vista, ri-se para fazer avançar o processo civilizador. É o tipo de riso do período clássico, que Bakhtin (1987) opõe ao grotesco, e que pune os desvios das normas sociais burguesas. Conforme Bergson, a sociedade é também como um ser vivo; mas a regulamentação a enrijece. Quando a lei social rígida se confronta com um movimento natural, de vida, dá-se a comicidade. “O lado cerimonioso da vida social deverá, pois, conter uma comicidade latente, que só precisará de uma oportunidade para vir à luz” (BERGSON, 2001, p.33). A 218 pompa cerimonial do quadrinho acima, da história da homenagem a Zé Macaco, é o principal propulsor do riso naquela piada, porque aplica, rígida e mecanicamente, um aparato social bem conhecido a um objeto que, se prestarmos a atenção devida, não se qualifica a tal coisa (Zé Macaco não é um herói e seus amigos não são autoridades). O caricaturista (o humorista em geral) pode provocar riso no ato de denunciar falhas da sociedade, portanto, sem atacar indivíduos particulares, rindo com seus leitores sobre a existência moderna compartilhada, em vez de rir de indivíduos ou grupos humanos específicos. A sátira, no entanto, conforme esta interpretação de Bergson, não tem limites. O caricaturista percebe sempre a rigidez que, amplificada, faz rir, seja ela de que natureza for. Segundo o filósofo, os defeitos fazem rir devido a sua insociabilidade, não por sua imoralidade. Assim, um objeto politicamente virtuoso, se exibir alguma rigidez, um dogmatismo ou vício, vai gerar piadas, enquanto um objeto imoral pode circular impune, sem se dar ao ridículo, se apenas se mantiver em movimento, adaptado à dinâmica da vida. O que se deve levar adiante dessa digressão é que a obra de Storni, com seu Zé Macaco, não pode deixar de discursar sobre a experiência das transformações da modernidade no Brasil. Quando a sociedade for ridícula, ou seja, demonstrar sinais de vício, de rigidez paralisante e mecânica, o caricaturista vai aumentar esses sinais numa representação que, em si, já é uma avaliação e já enuncia um juízo (conforme Moscovici, 2012). Daí que o mais efetivo lance de Storni foi transformar seu caboclo desajustado no grã-fino emergente Zé Macaco. O primeiro só experimentava o conflito vida rural X vida urbana, um tema desenvolvido por muitos, anterior e posteriormente. O segundo era capaz de vivenciar a modernidade de maneira mais significativa. Trouxe para as mãos do autor uma linha de trabalho que sustentaria sua carreira durante muitos anos daí para a frente. Na capa do número 479, de 1914, Storni desenhou uma piada acontecendo na sala de uma casa burguesa, com lustre, cristaleira, mesa, vaso e um retrato na parede. A legenda resumia muito do que vinham sendo as historietas: “A vida íntima da família Zé Macaco é o que pode haver de mais delicioso e interessante: enquanto o chefe se preocupa com as grandes invenções e a Faustina com a moda (grifo meu), Baratinha, na sala de jantar, se entrega às experiências (grifo meu) mais estapafúrdias que se possam executar”. Os termos “delicioso e interessante” representam ironia – Baratinha estava pendurando Chocolate no lustre! 219 Nos capítulos 3 e 4 foram descritos os temas mais frequentes das historietas de Zé Macaco e Faustina, com base na leitura da série e sistematização de uma tabela de referência. A lista resultante ganha, agora, um significado mais preciso: as histórias giram em torno de experiências modernas. Munido de renda, sem rotina de trabalho, sem laços sociais e sem nenhum objetivo na vida, o personagem não parece imitar as modas no intuito de aprender a ser civilizado, mas ter necessidade de experimentar novos objetos e costumes, numa sucessão infinita, sem evolução nem construção de nada. Mesmo para um personagem de histórias em quadrinhos cômicas, um gênero que costuma mais repetir do que desenrolar tramas, esse traço é notável. A questão da pressão social para Zé Macaco aperfeiçoar seus costumes e se civilizar não se coloca nas histórias, embora elas tenham tido esse efeito de difundir etiquetas, como, por exemplo, fazer a toilette antes de sair de casa para um concerto (capa do número 411, em 1913), a história da sorveteria (capítulo 3, p.156) e a da ida ao cinema (capítulo 4, p.177). Ele e a família correm atrás das modas e novidades, mas não discursam sobre a necessidade de se civilizar para ascender socialmente, pois já estão no topo. Apenas desejam viver cada experiência de consumo disponível, para não ficar para trás – inclusive, são vítimas de charlatanismo – e Faustina, muitas vezes, principalmente na fase após 1928, discursa sobre causar inveja “nas de pichulin”, jovens senhoras de elite com que se relaciona. A família Zé Macaco, apesar de toda a carga de imagens grotescas nas histórias, não representa exatamente a rusticidade contra a urbanidade. De fato, a piada do conflito vida rural X vida urbana é feita em cima do irmão de Zé Macaco, nas edições 401, 402 e 403 de 1913. O tal Chico Tiririca, inconveniente, “vindo lá dos sertões de Goiás”, chega do interior de mala e cuia e surpreende a família ainda na cama. Tem um pato gigante como montaria e se comporta com maus modos à mesa, deixando até o animal subir nela. O narrador diz que ele “era um matuto grosseirão e, quando falava, cuspia na cara da gente e dava bofetadas”. E completa a história: “A família Zé Macaco deu graças a Deus quando se viu livre desse novo malcriado, e fez votos para que nunca mais fosse visitada pelos parentes”46. 46 Posteriormente, nos números 472 e 473, de 1914, Faustina paga a visita do cunhado indo à cidade chamada “Três Caracóis”. Lá é recebida com pompa, passeio de automóvel e desfile de tropas, porém o automóvel de Chico Tiririca tem rodas quadradas e a tropa desfila montada em 220 A virada que Storni deu no personagem possibilitou falar de seu tempo em outros termos, talvez abordar outros incômodos. De modo geral, quando Zé Macaco se relaciona com um objeto, já começa querendo adaptá-lo, ou usá-lo de maneira diferente. Parece que não acredita no uso adequado das coisas; quer reinventar. Portanto, o que Storni estava fazendo ali não era exatamente a instrução do uso correto das novas técnicas e etiquetas ao personagem incivil ou atrasado. Sua lição, se há alguma, é de que não se deve “macaquear”, no sentido de imitar superficialmente, apenas por diversão. Se o termo “macaquear” era aplicado ao homem do povo, rústico, incivil, havia também termos para ridicularizar a elite brasileira em seu vício de imitar modas, costumes e ideias estrangeiras sem a devida ponderação. Cronistas criticavam a cultura do bacharelismo, ou seja, a inutilidade de uma elite que, de posse de diploma, ganhava direito a posições remuneradas na estrutura do Estado, sem se engajar no desenvolvimento econômico do próprio país. Machado de Assis abordou, no conto Teoria do Medalhão, a posição social que todo jovem de elite deveria tentar obter quando tivesse cerca de 45 anos: o status de “medalhão”. Essa posição de referência na sociedade era obtida não com grandes feitos e bons serviços, mas com a repressão a qualquer ideia própria, que pudesse sofrer reação, e com muita repetição de fórmulas consagradas, aplicáveis superficialmente a qualquer problema. Disse o pai ao filho: “proíbo-te que chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por outros. Foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade...”47. Essa crítica circulava pelos meios intelectuais e pela imprensa, e deve ter tido adesão de Storni. Somente de maneira involuntária é que o caricaturista difunde o uso e etiqueta de novos objetos, costumes e modas. Ao longo da produção de sua série cômica, ele torna familiares, por meio da caricatura, veículos, peças de vestuário, equipamentos, ferramentas domésticas, experiências de consumo e de lazer. Trata das pautas do noticiário da semana, dos sucessos fonográficos (que ele lastima), dos passeios no cenário do Rio de Janeiro, circulação pela Avenida Central, parques, montanhas e a Baía de Guanabara. porcos e bois. Tais signos conotam a imobilidade ou lerdeza no desenvolvimento do interior do país. 47 Texto disponível no site governamental Domínio Público, em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000232.pdf>. Acesso: 15 dez. 2020. 221 Voltando à abordagem de Henri Bergson, a grande caricatura feita por Storni é do vício moderno em experiências de consumo. Essa é a rigidez, a contorção, a distorção que o caricaturista começa a ver no rosto da sociedade em que está vivendo. Ele a aumenta e exibe com efeito cômico. Esse processo de representação e mediação cultural em que os caricaturistas se envolveram não ficou no passado. Deve estar ainda em curso, assim como o processo civilizador, que apenas se aplica a novos objetos, em novos grupos sociais, sob novos impulsos políticos. Seria interessante aplicar a mesma abordagem desenvolvida até agora a um objeto contemporâneo, por motivo de comparação. No entanto, a tarefa de escolher um objeto similar às historietas de O Tico-Tico não é trivial. Para buscar um exemplo contemporâneo a que se aplique o mesmo tipo de leitura, esse objeto deveria ser: a) narrativo, b) periódico, c) cômico, d) concebido e executado por uma única pessoa, e) de grande circulação e f) voltado para o público infanto-juvenil. As histórias em quadrinhos em jornais contemporâneos não qualificam, por terem um público mais maduro. Na atualidade, narrativas mais populares para crianças têm forma audiovisual, especialmente séries animadas. Além disso, a produção de narrativas para entretenimento infantil, na maioria, não é feita por indivíduos, mas por equipes. Admitindo tais limitações em relação ao público infanto-juvenil, porém, ainda é possível eleger vários objetos contemporâneos para comparação. Um trabalho similar ao de Storni e é desenvolvido na atualidade é a série “Gente Fina”, do cartunista Bruno Drummond. Ela foi concebida e executada inteiramente pelo desenhista carioca, formado Mestre em Antropologia da Arte (UFRJ) nascido em 1973 48. Começou a ser publicada em 2004 na Revista O Globo, encarte do diário carioca de grande circulação e terminou em 25 de agosto de 2019. Como todo trabalho em forma tiras em quadrinhos da atualidade, é distribuída gratuitamente em redes sociais como o Twitter do autor (@bruno_drummond). Em entrevistas, o autor acusa influência de antigos caricaturistas e considera que não 48 Fontes biográficas: site Memória O Globo, disponível em: http://memoria.oglobo.globo.com/humor/bruno-drummond-20448464 , acesso em 19 nov. 2020, e matéria de O Globo “Bruno Drummond: o cartunista dos personagens das ruas”, de 20/05/2014, disponível em https://oglobo.globo.com/rio/bairros/bruno-drummond-cartunista-dos-personagensdas-ruas-12516667 , acesso em 19 nov. 2020 ; entrevista para o site Rio ETC postada em 11/12/2009, disponível em https://www.rioetc.com.br/sem-categoria/rioetc-entrevista-brunodrummond/, acessado em 20 nov. 2020. 222 representa “o tipo carioca”, mas representa tipos de pessoas cariocas de classe média e alta, realmente encontradas na vida cotidiana dele. Há algumas diferenças em relação ao trabalho de Alfredo Storni, mas a mais consequente é que Bruno Drummond não criou um personagem fixo; ele prefere representar sempre pessoas novas, fruto de observação e, às vezes, anotações e esboços feitos em público. Isso é importante porque permite que ele represente, em traços, o vestuário da moda e diversos hábitos de consumo e lazer a partir da realidade. Nisso, inclusive, não difere de Storni, que aplicava à Faustina os modelos de roupas e chapéus encontrados no cotidiano do Rio de Janeiro. Bruno Drummond não faz histórias extensas, apenas sequências de um a quatro quadrinhos, e seu humor é fundamentado no diálogo das personagens. Quase nenhuma ação com os corpos é representada, apenas pequenas diferenças de postura e de expressão facial de quadro para quadro. Nesse sentido, passa longe do investimento em figuras grotescas característico de Storni. Segundo a teoria do riso de Bergson, Bruno Drummond obtém efeito cômico por revelar o vício, a contorção, a mecanicidade com que as camadas mais abastadas da sociedade carioca experimentam um entrelaçamento de relações pessoais e hábitos de consumo. A mecanicidade impede que esses personagens fluam com o dinamismo da vida. Um estudo completo poderia ser feito com a obra desse cartunista, mas no âmbito desta tese foi feita apenas uma leitura exploratória de suas tiras e a análise de um exemplo de tira produzida em 2018 (ver Figura 50). Figura 50. Consumo e etiqueta contemporânea. Tira em quadrinhos postada no perfil @bruno_drummond da rede Twitter, em 1/10/2018. 223 Por se empenhar em representar peças de vestuário e hábitos de consumo (nomes de pratos gourmet, drinques e localidades turísticas, principalmente), o autor difunde tais hábitos e modas considerados modernos e distintivos. Seus personagens, ao longo dos anos, servem de crônica das modas e experiências mais valorizadas entre as pessoas de classe média e alta do Rio de Janeiro. O processo de mediação que já foi abordado algumas vezes nesta tese também está em jogo. Quando o humorista associa a ideia de “filtro do Instagram” com a de saúde (“sua pele está ótima”) cria uma associação de ideias do tipo teorizado por Moscovici: a novidade tecnológica a ser naturalizada e absorvida na cultura local, o “filtro do Instagram”, uma abstração, é concretizada na forma – ou uma ou outra – de maquiagem ou de disciplinados hábitos de saúde. Ou a pele está ótima por ter sido disfarçada por cosméticos, assim como faria o filtro fotográfico digital, ou a pele está ótima pela adoção de suplementos ou dieta balanceada, o que, numa análise superficial, apenas configura outro tipo de consumo. Na lógica da comicidade, o rosto da segunda personagem pode ser ridículo no sentido de parecer uma máscara mecanizada, um filtro fotográfico. Por outro lado, a percepção da primeira personagem pode ser ridícula porque seus argumentos e repertório são mecanizados como os softwares que consome no cotidiano: seu vício mecânico seria comparar tudo que se faz na vida com o que se faz nos aplicativos das redes sociais. Assim, o cartunista carioca parece estar fazendo a representação social com os mesmos fundamentos de Alfredo Storni, ou seja, difundindo uma etiqueta moderna – o uso dos aplicativos de rede social para apresentar-se ao mundo e construir sua subjetividade – ao mesmo tempo em que ridiculariza a maneira repetitiva, mecânica ou viciada de tudo medir em comparação com a atividade dentro das redes sociais. O que eles confirmam: a capacitação básica, a etiqueta de uso dos aplicativos é necessária para não ficar para trás no caminhar dos tempos; o que eles negam: a extensão dessas etiquetas à vivência de todas as coisas, a adoção de novas tecnologias e etiquetas apenas por imitação, sem interiorização e desenvolvimento humano. Por meio da leitura habitual dessas narrativas cômicas distribuídas largamente em diversas mídias, a sociedade constrói uma representação de si mesma, concordando, discordando ou ressignificando os signos visuais e textuais compostos pelos autores na linguagem da caricatura. O trabalho de representação 224 envolve tanto os autores, profissionais especializados em mediar conteúdos exóticos para públicos locais, quanto os leitores, que levam a informação para seus círculos sociais, desenvolvem uma interpretação coletiva e a fazem ser conhecida, retornando-a aos artistas que já começam novas obras narrativas a partir desse significado compartilhado, construído historicamente. É por isso que Howard S. Becker (2009) afirma que esse tipo de obra pode ser também um relato sobre a sociedade, capaz de produzir conhecimento que não é inferior a medições ou relatórios científicos. Storni, com seu trabalho de décadas na série Zé Macaco, pode não ter feito uma caricatura do brasileiro típico – o qual talvez não exista – mas fez uma caricatura da sociedade brasileira da Primeira República, um relato sobre a sociedade que começava a ver a si mesma nas páginas das revistas ilustradas. Esta pesquisa sugere que Storni chegou a conclusões que têm pontos de contato com outros relatos, obras de cientistas sociais que chegaram a essas formulações por seus próprios meios, da observação da mesma sociedade. No ensaio Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque de Holanda traça diversas considerações sobre a formação da sociedade brasileira, as matrizes culturais de sua organização e dos comportamentos típicos dos brasileiros. Há três pontos em que suas conclusões lançam luz sobre nossa interpretação do personagem Zé Macaco como um relato sobre a sociedade. O primeiro é a valorização do espírito do aventureiro em relação ao do trabalhador: O gosto da aventura, responsável pelas fraquezas de não se organizar e de não poupar, não prever (grifo meu), teve influência decisiva aqui. Foi elemento que favoreceu a adaptação aos trópicos, as asperezas e resistências da natureza. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 46 ) É um traço associado à sociedade de corte portuguesa, onde nome de família importava menos, na hierarquia do reino, do que os feitos do indivíduo na guerra. Segundo o autor, os colonizadores portugueses se lançaram ao interior com esse espírito imprevidente de obter nome e fortuna em função do arrojo, desprendimento e capacidade de sofrer dificuldades. A transposição desse espírito para a vida moderna é que os brasileiros não se limitam a aperfeiçoar-se numa única atividade; misturam profissões, pulam de uma carreira a outra. O foco não é a construção da carreira, mas a vivência, a experiência, a própria satisfação (idem, p. 155). 225 Da mesma forma, Storni representou o Zé Macaco como esse inquieto aventureiro, viajante e inventor, que segue impulsos para combater o tédio, conforme as historietas analisadas sobretudo nos capítulos 3 e 4. Imprevidente, chega a gastar toda a fortuna, tendo que se lançar a diferentes trabalhos e negócios. O exemplo analisado no capítulo 4 (p.184), do espetáculo teatral, é um desses. A fortuna retorna graças à patente da máquina de matar pulgas, mas o casal volta a precisar “se virar” em historietas posteriores. Não há uma linha de texto em toda a série de Zé Macaco que o identifique como trabalhador de qualquer ofício. O segundo ponto de concordância é a tendência a se recolher ao privado e não valorizar a associação em grupos sociais com objetivos comuns; um apego aos valores da personalidade configurada pelo recinto doméstico. Segundo Buarque de Holanda, o indivíduo se recolhe, “indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais” (idem, 155). Esse ponto de vista talvez confira uma interpretação melhor ao isolamento de Zé Macaco no domicílio familiar. O personagem faz passeios, brinca carnaval e faz viagens, porém não é representado em clubes, nem locais de trabalho, nem templos49, nem assembleias. Suas visitas eventuais à delegacia ou ao consultório médico são muito menos frequentes do que as viagens fantasiosas que empreende. Tal traço também pode ser lido como a representação de um ethos pequeno-burguês vivido pelo próprio caricaturista, mas esse comportamento puramente burguês não combina com os rompantes aventureiros de Zé Macaco. O terceiro ponto é a noção de que, na sociedade brasileira, as relações sociais pacíficas ocorrem em função da valorização de elos de obediência e de afeto, herdados do meio rural e patriarcal: Seria engano supor que essas virtudes possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante (grifo meu). Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças. [...] Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez (grifo meu) (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p.147). 49 A exceção seria a história em que Faustina é batizada no rito católico (n.283, em 1911), mas confirma a regra, pois não era uma rotina para a família Zé Macaco. Era uma ocasião especial, porque a Madame Zé Macaco não tinha ganho nome próprio ainda. 226 Assim, um personagem como Zé Macaco não poderia representar o comportamento errado para que se ensinasse a etiqueta correta por inversão. Na verdade, o personagem é avesso à coerção da etiqueta de convívio social, substituída pelo tratamento afetuoso ou agressivo conforme a circunstância (o chamado “homem cordial”, quase sempre movido por reações emocionais). É um caráter espontâneo. Na cena da homenagem reproduzida acima, no quadrinho anterior (não mostrado), Zé Macaco tinha respondido à oferta do busto com um pequeno discurso protocolar de duas frases-feitas, o que configura uma etiqueta de fachada, mas sua reação é fundamentalmente emocional: forma uma cascata “transbordante” de lágrimas, as quais substituem e superam por muito, na sociedade brasileira, um agradecimento equilibrado e eloquente. O antropólogo Darcy Ribeiro, em O povo brasileiro (1995) também ressalta a resistência da sociedade brasileira ao processo civilizatório. A colonização teria sido o empreendimento de implantar a civilização europeia no território tropical; não produziu o que os colonizadores queriam, mas sim o que resultou de sua ação desenfreada: “[..] que nos fez a nós mesmos, apesar daqueles desígnios, tal qual somos, tão opostos a branquitudes e civilidades, tão interiorizadamente deseuropeus como desíndios e desafros” (RIBEIRO, 2006, p. 63). O autor chama atenção para tal identidade ambígua e para a mestiçagem que caracterizaria o povo brasileiro, o que acrescenta significado ao fato de Zé Macaco ser o único caboclo da família criada por Storni. E mais: ser um homem caboclo que fica rico e busca casamento com uma inglesa50. A representação da sociedade brasileira implícita nessas historietas traz o gosto pelo novo e o moderno como traço notável. Darcy Ribeiro aponta um “veemente desejo de transformação renovadora” (RIBEIRO, 2006, p. 227) e desenvolve o argumento de que o Brasil é antes arcaico do que tradicional. Suas populações são mais atrasadas do que conservadoras. Todas parecem favoráveis a mudanças modernizantes, apesar de viverem essas transformações em ritmos diferentes, devido aos obstáculos sociais ao desenvolvimento achados em suas 50 Sobre a questão da formação do povo brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro escreveram depois da publicação das historietas de Zé Macaco, mas um importante texto precede a todos: Os Sertões, de Euclides da Cunha. O escritor, no capítulo 3, cristaliza a imagem do sertanejo, caboclo em sua origem étnica, como um homem de aspecto desgracioso, torto e preguiçoso, mas que salta com muita energia e heroísmo quando o trabalho de vaqueiro se apresenta. O autor também não conseguia definir o brasileiro, mas estava convencido de que o componente caboclo da população era um elemento estável, a “rocha viva de nossa raça” (notas à segunda edição). 227 comunidades, mas nunca obstáculos culturais. O antropólogo vê o brasileiro, em geral, como indivíduo culturalmente empobrecido, como se fosse uma tábula rasa “mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal” (idem, p. 227). A sociedade brasileira teria, portanto, um traço de buscar, ao longo de sua história, tudo que for considerado moderno por padrões de referência externos, no que se transformou um tipo próprio de tradição. Renato Ortiz em A moderna tradição brasileira (1991), disserta sobre a produção de cultura de massa no Brasil, principalmente suas narrativas audiovisuais, e trata desse caráter nacional de produzir e consumir narrativas modernas com base numa organização social e cultural que não é moderna. Teoricamente, as condições para a produção de arte moderna são a agitação política, o aparecimento de tecnologias emergentes e uma base de cultura clássica sólida. O caráter moderno, em arte, seria a negação do passado e a afirmação de algo substancialmente novo e diferente: a modernidade nunca é ela mesma, é sempre outra, a próxima, um projeto inacabado. No Brasil, no entanto, a modernidade foi sempre encarada como uma qualidade com que a sociedade quer ser identificada. Ela não quer realmente mudar, mas manter essa tradição de acolher, deglutindo como puder, mas não incorporando em sua estrutura, tudo quanto seja rotulado de moderno no mundo. Assim como esses autores que estudaram e concluíram relatos sobre a sociedade brasileira, o caricaturista Alfredo Storni, encarregado de entreter e civilizar jovens leitores de sua revista, lançou mão da representação caricatural da relação de indivíduos e objetos para legar um relato sobre a ambiguidade das ações dessa sociedade e sobre a superficialidade da modernização em curso. Seu personagem caboclo, emergente, aventureiro, imprevidente, inquieto, desejoso de honras e imitador de modas concentra em sua caracterização as qualidades que o caricaturista provavelmente aplicava à sociedade que observou em sua época. Essas qualidades, segundo as teorias da representação social (HALL, 2016; MOSCOVICI, 2012), são interpretações coletivas a partir dos signos tanto textuais quanto visuais que o caricaturista utilizou para compor suas narrativas cômicas. Não são simples traduções, como num código de correspondências. Formam um discurso lógico, organizado em torno de temas encontrados na cultura compartilhada entre artistas e leitores. Esses temas podem proceder de lógicas que sustentam estereótipos. As lógicas associam qualidades assessórias ao tema 228 principal, formam um sistema semântico. Funcionam no processo de representação porque associam abstrações a signos concretos. No caso da série de historietas de Storni – e de muitas outras narrativas visuais publicadas em O Tico-Tico – o signo que serviu de tema ao redor do qual os outros signos se associaram num sistema deve ter sido o mais evidente: o macaco. Na capa do número 207 de O Tico-Tico (23/06/1915) Storni publicou mais um de seus jogos visuais no lugar da usual historieta: o rosto de Zé Macaco, de olhos arregalados, boca aberta e enorme gravata borboleta no pescoço, digna da fantasia de um palhaço. Com expressão emocional incontida, orelhas enormes e apenas dois dentes na frente, era, novamente, uma máscara grotesca (ver Figura 51). A legenda da caricatura dizia: Zé Macaco, com esta carantonha, tem a expressão de quem está com macaquinhos no sótão. Pois é isso mesmo. Procurem nossos leitores o macaquinho que, sem cerimônia, se alojou no frontispício respeitável de Zé Macaco. 229 Figura 51 .”Procurem nossos leitores o macaquinho”. Capa do número 507 de O Tico-Tico (1915), por A. Storni. O caricaturista propõe um jogo de percepção visual e, ao mesmo tempo, faz com que o rosto de seu personagem estampe a capa da revista durante uma semana. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. 230 A solução do jogo, caso haja necessidade de explicação, é dada na figura abaixo, editada por mim a partir da imagem disponibilizada pela Biblioteca Nacional. Figura 52. Imagem feita com seleção de parte do desenho da capa para evidenciar o macaco desenhado sobre o rosto do personagem. Conforme chegamos a abordar no capítulo 1 (p.46), um dos sinais de civilidade e, ao mesmo tempo, uma das aptidões da sensibilidade moderna, as quais se desejava ensinar aos jovens, era a habilidade em leitura de imagens impressas (como nas revistas ilustradas), sequenciadas (como as tiras cômicas) e moventes (como as do cinematógrafo). Daí a presença frequente de jogos de desafio à percepção visual, inclusive nos concursos para leitores. Talvez essa sensibilidade construída no consumo de narrativas visuais impressas e moventes se estendesse para o terreno da leitura de signos. Para quem tivesse os olhos educados, por trás daquele personagem se veria sempre o signo do macaco, com todas as associações de ideias circulantes na cultura: facilidade em imitar, inquietação, dificuldade em obedecer, irritabilidade, habilidades atléticas, comicidade, entre outras, inclusive as ideias racistas. Desde o início o personagem é rotulado de caboclo, e esse estereótipo deve pesar nas decisões do autor sobre o que o herói pode ou não pode fazer na narrativa. Por trás da sociedade brasileira representada pelas revistas ilustradas, que abraçava os 231 projetos modernizadores e preconizava a civilização das crianças num alto grau, os olhos educados também sempre veriam aquelas ambiguidades, talentos e distorções descritas pelos autores abordados acima. Em relação à assimilação de novos objetos para trabalho e lazer, novos sistemas de organização e disciplina e nova organização política, esta se faria com adaptações e substituições de peças. Segundo as narrativas estudadas, o conhecimento dos objetos modernos não viria do estudo reverente, mas do ato de virá-los e revirá-los, até desmontar, conforme faria um macaco (argumento desenvolvido no capítulo 3). Esse ponto de vista não era definitivo; na verdade, evidencia-se uma oscilação entre duas linhas editoriais quanto ao conteúdo, no período da Primeira Guerra Mundial: uma crente na reprodução de padrões idealizados de civilização e outra descrente. Entre outras fontes de leitura, aquele público jovem educou-se e construiu suas subjetividades modernas acompanhando semanalmente historietas cômicas criadas pelos caricaturistas da época. Era um tipo de obra nova, ainda que tivesse matrizes mais antigas. Estava sendo desenvolvida na vivência das transformações modernas e na rotina do habitus dos profissionais das revistas ilustradas, os quais lutavam por posições que lhes trouxessem estabilidade profissional, mais do que consagração artística. Entre as estratégias possíveis, um deles podia manejar a caixa de ferramentas da estética grotesca e colocar-se para traduzir as ambiguidades da sociedade moderna para ela mesma. Assim, o interesse em procurar a história de Zé Macaco e Faustina, entre as páginas de cada edição de O Tico-Tico seria forte, perene e genuíno, para satisfação de Alfredo Storni. 6. Considerações finais Nesse ponto do texto, gostaria de atestar que compartilhei com outros pesquisadores que se ocuparam de O Tico-Tico o prazer e o assombro da descoberta. É um assombro com o tamanho da obra coletiva constituída por essa publicação, com a variedade de abordagens acadêmicas que permite e com o legado que deixou. O assombro soma-se ao prazer da descoberta de um artista, Alfredo Storni, pouco lembrado além de algumas referências a suas charges políticas, em livros de História. No início da caminhada, não tinha conhecimento sobre sua obra e, no final, ele tornou-se um dos meus artistas preferidos, daqueles que o fã quase deseja tomar posse. Atesto também o prazer da experiência de pesquisa, conforme narrada no capítulo de introdução. Espero ter aprendido como abordar um objeto constituído por uma obra veiculada na imprensa na forma de série de histórias em quadrinhos. Esse tipo de obra estende-se muito no tempo, é lida intertextualmente, cria sentido cumulativamente e modifica-se diacronicamente em função dos movimentos no campo profissional. Ainda por cima, é capaz de se renovar, porque se permite desvincular de parte da herança constituída pelas narrativas publicadas anteriormente. Apesar de hoje ser consumida como coleção, foi criada para consumo descartável. Esse trabalho de interpretação, que pretende se valer de ferramentas de um tipo de semiologia, nunca abandona o apoio dos conhecimentos da História, e é inspirado na descrição densa etnográfica, ou seja, na escuta do outro, na leitura da cultura do outro sobre os ombros de seus nativos (GEERTZ, 2014). Neste caso, a distância não se dá culturalmente, nem geograficamente, mas no tempo. Mais do que o respeito à diferença, essa inspiração etnográfica valoriza a diferença. Em outras palavras, aprendi que o objeto não “fala” e não lhe fornece dados se você o rejeita. No sentido metafórico que uso, rejeitar o objeto é abordá-lo já com um juízo de valor feito. Em vez de olhar as imagens à procura de algum sinal já esperado, é melhor, como ensina W. J. T. Mitchell (2015), indagar às imagens o que elas querem dizer, muito além do que o pesquisador ou mesmo o produtor das imagens tenha desejado. Espero ter aprendido, além disso, a lidar com a reflexividade (BOURDIEU, 1989). Tendo trabalhado na produção de histórias em quadrinhos infantis para 233 veículos de imprensa diários e semanais, minha vivência foi sempre projetada no objeto quando eu buscava interpretá-lo. Para cada tirada cômica de Storni eu podia reproduzir um processo mental que eu já teria feito alguma vez, na produção do meu trabalho, e facilitar a compreensão do leitor sobre a gênese das sequências, expressões visuais e jogos de palavras destacados na análise. Essa projeção, é claro, não deveria substituir a análise, que deveria ser aberta ao que o objeto, especificamente, apresenta na forma de dados. Há de se reconhecer que tanto o objeto quanto os dados são construídos, o que não quer dizer que são inventados. Sempre que havia uma dúvida sobre qual caminho tomar, a “fala do objeto” resolvia. A pesquisa foi feita num movimento pendular entre a observação empírica e a formulação de questões fundamentadas em teoria. As descobertas feitas no retorno às tarefas empíricas indicavam as ferramentas teóricas pertinentes. Espero ter realizado um trabalho com pés firmes no terreno da Comunicação Social, mesmo reconhecendo débito para com todas as ciências humanas e sociais. Afinal, trata-se de uma disciplina que persegue interligações. Mantive-me ancorado na crença de que nossa pesquisa é a dos fenômenos de construção social do sentido e, daí, da construção de subjetividades, que podem, depois, ser relacionadas com a sociedade de uma época. Há muitas outras abordagens que esta pesquisa mapeou e que ajudam a descrever mais densamente a sociedade da época de O Tico-Tico e como ela estava se transformando. Proponho, pelo menos, três pesquisas derivadas da experiência desta tese: a) As matrizes grotescas e surrealistas das aventuras de Kaximbown, por Yantok. Esse autor, durante toda a carreira, mas destacadamente na segunda década do século XX, produziu aventuras cômicas em quadrinhos com imagens ricas em potencial semiológico. Talvez suas matrizes não estejam em histórias em quadrinhos de sua época, mas nas artes visuais e na literatura. b) A trajetória da personagem Faustina relacionada com questões de gênero. Faustina é representada com uma mulher notavelmente feia, pelos padrões da época, a ponto de ser grotesca. Por outro lado, ela se tem em alta conta e experimenta todas as modas e hábitos de consumo distintivos ao longo de décadas de publicação. É possível criar uma linha do tempo apenas com as figuras de Faustina vestida na última moda. Acrescente-se à 234 complexidade o fato de Faustina não representar uma brasileira, mas uma inglesa casada com brasileiro. Muitas das piadas de Faustina têm como tema a reprovação social, tanto pelo marido, quanto pelo povo na rua, de suas tentativas de vestir-se de maneira vanguardista. As histórias relacionam-se com a divisão sexual do trabalho, as divisões de classe e o estereótipo feminino. c) Análise do discurso civilizador nas historietas de Chiquinho, na fase em que foi escrita e desenhada por Luís Loureiro. Pelo menos duas sequências são muito ricas para essa abordagem e foram interpretadas em dois artigos meus para eventos acadêmicos. A primeira eu chamo de “Para tirar-lhes o medo”, uma história que insere na casa de Chiquinho uma família visitante do interior, com duas meninas que são espelho invertido de Chiquinho e Benjamin. Os garotos aprontam ataques em sequência para provocar as meninas, num tipo de terapia de choque para tirar o medo que as meninas têm do cão Jagunço, o que equivale a tirar delas traços de rusticidade e infantilidade, ou seja, equivale a civilizá-las sob o ponto de vista dos personagens (possivelmente, do autor). A brincadeira degringola e Chiquinho acaba prestes a ser expulso de casa para um colégio interno. Todos choram, menos ele. A segunda sequência eu apelidei de “A conflagração”. Publicada durante meados da Primeira Guerra Mundial, emula a hostilidade do confronto europeu no cenário da rixa entre Chiquinho e o menino da casa vizinha, Xedas. Acusando o Xedas de ter comportamento bárbaro, Chiquinho, Benjamin e Jagunço começam provocações e vão para vias de fato, invadindo o terreno vizinho e terminando por deixar o menino esmagado no chão, para desespero de sua mãe. Mais uma vez, a justificativa de Chiquinho por ter liderado a hostilidade é educar a vítima. A mãe de Chiquinho, no final da sequência, julga que é apenas brincadeira de garotos e, desta vez, não pune o filho. Loureiro, oriundo de uma das camadas mais baixas da burguesia do Rio de Janeiro, alinhava-se com o pensamento de que o que a nação precisava era um choque de disciplina, estudo e trabalho duro. Numa história de 1916, Chiquinho estuda, adormece e sonha com o “gigante adormecido” que é o Brasil, e é ensinado que o país fica atrasado, sem riqueza, porque 235 os homens da elite, em vez de produzir, só querem tornar-se bacharéis e viver às custas de empregos públicos. A historieta faz a caricatura de um pensamento que nunca deixa de circular no debate público brasileiro. Espero que mais pesquisadores busquem O Tico-Tico e seus artistas, abraçando esses objetos com respeito e profundidade teórica, mesmo que tenham de lutar contra a avaliação de que desperdiçam tempo e recursos com objetos irrelevantes para a urgência dos tempos. A propósito disso, cito um fragmento pedagógico de Pierre Bourdieu: O cume da arte, em ciências sociais, está sem dúvida em ser-se capaz de por em jogo “coisas teóricas” muito importantes a respeito de objetos ditos “empíricos” muito precisos, frequentemente menores na aparência, e até mesmo um pouco irrisórios (BOURDIEU, 1989, p. 20). Esses desdobramentos são propostos a partir da noção de que a leitura e interpretação das obras constituídas por séries de historietas ilustradas da revista O Tico-Tico continuará a nos causar assombro e prazer pela descoberta de interligações com processos de construção de significado e de subjetividades que marcam períodos de nossa sociedade. 7. Referências bibliográficas ALENCAR, Patrícia M. G. A revista O Tico-Tico e a escrita infantil em circulação no encarte “Meu Jornal”: seus autores e leitores (1935 – 1940). Dissertação de Mestrado em Educação, Universidade Estadual de Maringá, 2015. ALMEIDA, Cíntia B. ; COSTA, Aline S. Para a petizada inocente: encanto, diversão e lições de conduta na revista O Tico-Tico (1905-1910). Revista TEIAS v. 16, n.41, abr/jun. 2015, p. 54-71. ARAGÃO, Octavio. Visões do futuro do pretérito: a Ficção Científica nos quadrinhos brasileiros no século 20. 9ª Arte, São Paulo, vol. 1, n.1, 67 – 76. 1º semestre 2012. ARAÚJO, Viviane da Silva. 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