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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Eduardo Rangel Monteiro Ou wè’y ou pa wè’y Ladja e as máscaras do visível Rio de Janeiro 2018 Eduardo Rangel Monteiro Ou wè’y ou pa wè’y Ladja e as máscaras do visível Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de PósGraduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea. Orientador: Prof. Dr. Roberto Luís Torres Conduru Rio de Janeiro 2018 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEHB M291 Monteiro, Edu, 1972-. Ou wè’y ou pa wè’y: ladja e as máscaras do visível / Eduardo Rangel Monteiro. – 2018. 227 f. : il. Orientador: Roberto Luís Torres Conduru. Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Artes. 1. Dança – Martinica, Ilha – Teses. 2. Danças folclóricas – Teses. 3. Ladja (Dança) – Martinica, Ilha – Teses. 4. Gestos na dança – Teses. 5. Arte martinicana – Teses. 6. Luta corporal – Teses. 7. Fotografia artística – Teses. 8. Diáspora africana – Teses. I. Conduru, Roberto, 1964-. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título. CDU 793.31(729.81):77.04 Bibliotecária: Eliane de Almeida Prata. CRB7 4578/94 Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte. _____________________________________ Assinatura __________________ Data Eduardo Rangel Monteiro Ou wè’y ou pa wè’y Ladja e as máscaras do visível Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Arte e Cultura Contemporânea. Aprovada em 30 de julho de 2018. Banca Examinadora: ___________________________________________ Prof. Dr. Roberto Luís Torres Conduru (Orientador) Instituto de Artes – UERJ _____________________________________________ Profª. Dra. Maria Luiza Fatorelli Instituto de Artes – UERJ ___________________________________________ Prof. Dr. Maurício Barros de Castro Instituto de Artes – UERJ _____________________________________________ Profª. Dra. Lívia Flores Lopes Universidade Federal do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof. Dr. Milton Guran Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro 2018 AGRADECIMENTOS Obrigado Andrea, Letícia e Bruna pelo amor e companheirismo nesta aventura. Ao meu professor orientador Roberto Conduru por ter lutado junto desde o início da roda. Ao meu professor co-orientador na Martinica Dominique Berthet pela acolhida e a troca de ideias. À Faperj por viabilizar esta pesquisa através da bolsa concedida. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 Lívia Flores, Marcelo Campos, Maurício Barros de Castro, Milton Guran e Malu Fatorelli pela preciosa colaboração na banca. Aos novos e grandes amigos da galeria Z42: Zyan Zein, Eduardo Lopes, Rona, Jorge Barata, João Paulo Quintela, Ana Bourdagohe, Netinho, Katia Wille e Hans, Maria Lucia Fontainha, Fábio Szwarcwald e Marcio Atherino. Jampa pelo design incrível do livro e Ana pelas dicas. Carol Diadorim pelo super trabalho no vídeo da exposição. Marcia Melo pelas dicas das fotos da exposição e olhar sensível. Daryan por segurar a onda durante a viagem. Annamaria Rangel e Cira por tudo, sempre! Wanderley Monteiro, Noraley Kaupe, Rodrigo e Diogo Monteiro, Larissa, Pietra e Lara. Dona Gládis e filhos. Ao me mestre de capoeira Zé Carlos, Mery e o grupo N’golo pelas mandingas. Ao mestre Carlão pelos primeiros contatos na Martinica Téo Angoleiro e Chris pelas capoeiragens na Martinica. Heyk pela revisão cheia de poesia e futuras capoeiragens. Mési a pil Mehdy Ozier-La Fontaine e Sebah Martial meus irmãos da Martinica. David-Alexandre Fatna meu mestre da ladja, pelos ensinamentos. Às associações AM4 (Mi Mes Manmay Matinik), Associação L’ésprit Danmyé e ADPKM (Asosyasyon pou Défann ek Palant jé Kilti Matinik) pela recepção e aprendizado. Aos lutadores independentes Hugues Baspin e Rennaud Bonard. Ao mestre Constant Vélasques e sua família pelos agradáveis encontros de domingo. À pesquisadora Josy Michalon pelas dicas e contatos. Aos amigos de Tartane Arthur, Anaïs e Naco. Jean Moccafico. Nina. Sylvere, Katherine e Tony. Aos meus amigos e artistas do LaboPerf pelas trocas. A todas as pessoas que aceitaram participar das fotos, especialmente: Samira, Maurice, David, LuLu, Alicja Korek, Jérémie, Henri, Annabel e Hugues Baspin. Merci beaucoup Odile Louvert, Bernard et Marion, pelo carinho e empréstimo da casa. Christoph Singler, pela amizade e dicas. Alban de Lafontaine, pela amizade e as agradáveis conversas sobre fotografia. Jërëjëf Ao grande lutador Bombardier, pela entrevista e ensinamentos sobre a luta senegalesa. RESUMO MONTEIRO, Edu. Ou wè’y ou pa wè’y: ladja e as máscaras do visível. 2018. 227f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. A partir do aprendizado da ladja – uma dança de combate embalada pelo canto e o toque do tambor, ato de afirmação cultural nascido nas encruzilhadas da diáspora africana na Martinica –, esta tese mergulha no universo do colonialismo. Uma travessia que parte de suas rotas mais perversas, para navegar nos gestos de resistência corporais, artísticos e literários, até emergir nos atravessamentos das fronteiras físicas e culturais de suas expressões na contemporaneidade. Esta pesquisa ancora-se na busca pelo principal fundamento desta luta, ou wè`y ou pa wè`y, expressão em crioulo que significa vê mas não vê e se refere à capacidade ilusionista dos golpes deste combate, que impossibilita a percepção visual do oponente diante do ataque, transformando o visível em invisível através do corpo. Um dos caminhos para se chegar a este fundamento é o ékilib/dézékilib, equilíbrio/desequilíbrio em crioulo, trata-se de uma estratégia utilizada pelos lutadores para enganar o adversário através da simulação de desequilíbrio. Fundamento e caminho que também se apresentam como metáforas do que deve ser mostrado ou ocultado para se manter o prumo da existência em sociedades desequilibradas pela escravidão. É do sobrevoo simbólico desta busca e das vibrações emanadas no corpo, no verbo, no ritmo, na imagem e na matéria que nascem as proposições artísticas deste trabalho. Palavras-chave: Ladja. Dança de combate. Diáspora africana. Arte na Martinica. RÉSUMÉ MONTEIRO, Edu. Ou wè’y ou pa wè’y: Ladja et les masques du visible. 2018. 227f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Contemporânea) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. De l'apprentissage du Ladja - une danse de combat bercé par le chant et le battement du tambour, acte d'affirmation culturelle née au carrefour de la diaspora africaine en Martinique, cette thèse se penche sur l'univers du colonialisme. Une traversée que part de ses routes plus pervers, pour naviguer dans les gestes de résistance corporelles, artistiques et littéraires, jusqu'à émerger dans les traversées des frontières physiques et culturelles de leurs expressions dans la contemporanéité. Cette thèse est ancrée dans la recherche du fondement primordial de ce combat ou wè`y ou pa wè`y, expression en créole qui signifie “je te vois, tu ne me vois pas” et fait référence à la capacité illusionniste présent dans ce combat, ce qui empêche la perception visuelle de l'adversaire avant l'attaque, en transformant le visible en invisible à travers du corps. Une façon d'atteindre ce fondement est le ékilib/dézékilib, l'équilibre/déséquilibre en créole, une stratégie utilisée par les combattants pour tromper l'adversaire par la simulation d’un déséquilibre. Fondement et chemin qui sont également considérées comme des métaphores de ce qui doit être montré ou masqué pour maintenir le solde minimum de l'existence dans les sociétés déséquilibrés par l'esclavage. Du survol symbolique de cette recherche et les vibrations émanant du corps, du verbe, du rythme, de l'image et de la matière que sont nés les propositions artistiques de ce travail. Mots-clé: Ladja. Danse de combat. Diaspora africaine. Art dans la Martinique. SUMÁRIO DEÂMBULO ....................................................................................... 8 1 ÉKILIB/DÉZÉKILIB............................................................................. 42 1.1 Peso.................................................................................................... 42 1.2 Tensão................................................................................................ 46 1.3 Contrapeso......................................................................................... 59 1.4 Síncope............................................................................................... 73 1.5 Reflexo................................................................................................ 93 2 OU WÈ’Y OU PA WÈ’Y....................................................................... 127 2.1 Ou wè’y ou pa wè’y............................................................................ 127 SOBREVOO........................................................................................ 213 REFERÊNCIAS................................................................................... 217 APÊNDICE – Fotos da exposição Costas de Vidro............................ 222 ANEXO – Texto do orientador sobre a exposição………………….. 227 8 DEÂMBULO I Entre o visível e o invisível, a linha de cá ou de lá do universo, tentou-se durante muito tempo construir um sujeito apagado, sem história, amputado do lado de lá da sua existência. Mas a alma não se apagou, ancorou-se na memória do corpo dos que resistiram. E daqueles tantos africanos que não suportaram a travessia, que se jogaram ou foram jogados dos navios negreiros, lastreados com balas de canhão, foram semeadas as balas do invisível. Raízes submarinhas da relação, à deriva, se prolongando em todos os sentidos do universo, por uma rede de ramificações. Nem na transcendência, nem no universal sublimado, mas na transversalidade. 1 Dança de combate praticada na Martinica, a ladja carrega nos corpos de seus lutadores estas encruzilhadas. Possui um imenso e complexo repertório de movimentos, que utiliza golpes com as mãos, os pés, cabeçadas, agarrões, quedas, imobilizações... Ao contrário da maioria das lutas, ela não possui regras claras para determinar um vencedor. Sua força está na troca, como se os lutadores abrissem mão do monopólio da beleza, da inteligência e da força. A ladja é fruto da mistura de diversas etnias africanas, principalmente dos povos do Benim e do Senegal. 2 A pesquisadora Josy Michalon, defende a hipótese, entre diversas outras, que a origem do nome ladja está associado à luta kadja, de onde teria derivado o nome. A kadja é uma dança de combate muito violenta, mortal, praticada no Benim pelo povo Basantchés. Ela acontece durante a festa do inhame, quando os primeiros tubérculos são oferecidos por sacerdotes vestidos com folhas de milheto, ao deus Koupérou; “Cada homem é considerado o defensor do vilarejo... a luta kadja revela os mais fortes, os mais astuciosos e mais resistentes.”3 1 GLISSANT, Édouard. Le discours antillais. Paris: Gallimard, 2012. p. 231. Para o autor o conceito de transversalidade se refere à convergência das histórias dos povos do Caribe como forma de livrar-se da visão linear e hierarquizada da “História” oficial do colonizador. 2 MICHALON, Josy. Le Ladjia. Origines et pratiques. Editions Caribéennes, Fort de France. 1987. p.11. 3 Ibid.p.39 e 41. Tradução nossa: “homme est considéré comme le défenseur du village... La lutte Kadjia révèle les plus forts, les plus astucieux et les plus résistants.” 9 Segundo Josy, a ladja, também é conhecida como damié, ronpoin e kokoyé. E também pode ter sofrido grande influência de outra luta do Benim, praticada pelos Kotokolis, chamada Kokoulê. Os Kotokolis a praticam para adorar o supremo deus “Méji”. Invisível, ele se manifesta à noite, pelo grito de um pássaro. Segundo ela, os movimentos e a musicalidade, lembram muito a luta martinicana; cabe ressaltar, que Josy é uma experiente dançarina e professora de dança, conhecedora dos gestuais e musicalidade da ladja e do bélé. Atualmente, os dois nomes com a seguinte grafia: ladja e danmyé são os termos mais utilizados para designar esta luta na Martinica. Existem diversas outras teorias em relação ao surgimento destes nomes, apresentadas no livro de Pierre Dru: Aux sources du Danmyé: le wolo et la ladja.4 A partir de entrevistas com antigos praticantes, Pierre apresenta como hipótese cultural o termo “laghia”, que, segundo seus entrevistados, seria o termo mais utilizado para se referir à luta no passado e apresenta como exemplo desta grafia o livro escrito por Joseph Zobel intitulado: Le laghia de la mort.5 Para complementar esta hipótese, Dru cita Cheik Anta Diop, 6 explicando a derivação do termo de “lag” e de “ya”; o radical “lag” significaria “os senhores da guerra” e o sufixo “ya” designaria “aqueles que a praticam”. Conhecida como Lag-ya, a cavalaria senegalesa provocava o sentimento da mais alta honra militar, a temeridade, maior valor moral da sociedade africana. A disseminação deste termo atracaria na Martinica através dos escravos partidos da ilha de Goré. Esta rota também poderia explicar as semelhanças gestuais entre a ladja e o laamb, a luta senegalesa. Ambas possuem características similares no que se refere à luta de solo e às imobilizações. Com o passar do tempo, através de uma evolução fonológica, o termo laghia trocaria o “gh” pelo “dj”, por um processo de palatalização 7. 4 DRU, Pierre. Aux sources du danmyé: Le wolo et le ladja. Martinique. Université des Antilles et la Guyane. 2011. 5 ZOBEL, JOSEPH. Laghia de la mort. Éditions Présence Africaine. Paris. 1978. 6 DRU, Pierre.p.64. 7 DRU, Pierre.p.67. 10 Auguste Max Dufrenot no seu livro Des Antilles à l’Afrique 8 contraria a versão de Zobel, afirmando que não há indícios que apontem para a utilização do “h”, o correto seria escrever L’agia. Explicando “agia” como um verbo cujo significado seria: picar, nas línguas ewe e mina. Teoria esta, retomada pelo músico e pesquisador martinicano Sully Cally, em seu livro Musiques et Danses Afro-Caraïbes,9 de 1990, também citado na tese de Pierre Dru. Nele, Sully fala de L’agia, danse de lutte, e explica que em diversas obras, a ortografia de Agia é apresentada como: Laghia, Ladia, Ladja como termo da diáspora usado para encorajar os lutadores no combate. Para ele todas estas expressões, apesar das diferentes grafias teriam sua origem nos povos bantos, de onde se originam a maioria das etnias que povoaram as Antilhas Francesas e designaria a ação de picar bem miudinho.10 Já o nome danmyé, segundo explicações presentes em outro livro da associação AM4, 11 designaria, segundo Jacqueline Roseman a nova prática, profana e já martinicana da ladja, desenvolvida no seio da sociedade escravocrata. Segundo ela, o nome teria origem no jogo de damas, dames em francês, e teria um significado simbólico, ao representar a luta do negro contra o branco, do escravo contra o colono. Já os pesquisadores Guillaume Durand e Kinvi Logossah, em uma contracorrente para esta explicação, afirmam que o aspecto quadrado do jogo não acompanha a circularidade do ritual da luta. Eles propõem então, uma reflexão a partir dos movimentos de braço dos lutadores e da expressão “dan myé”; segundo eles, esta significa literalmente “uma serpente a devorou”. Reconhecendo a importância da serpente na mitologia do povo Akan e Ajas/Fon do Benim/Togo. Emmanuel Nossin, pesquisador em farmacologia martinicana e caribenha compartilha este caminho para o nome já que influência do reino de Daomé, no processo populacional da Martinica foi expressiva. Ele explica que uma das mais 8 DUFRENOT, p.87 Apud. DRU p.67. 9 CALLY, Sully. Musiques et Danses afro-caraibes, martinique. Édition Sully-cally/Lezin. Paris.1990. Apud. DRU.p.68. 10 11 Ibid.p.69. AM4 Association Mi Mes Manmay Matinik. tradition Danmyé-kalenda-Bélé de Martinique Tome.3, les djérié. K éditions, 2017. Fort de France, Martinique. p.26. 11 comuns e potentes divindades era encarnada por uma serpente sagrada, chamada de Dam, Dan ou Da. Para ele a luta do danmyé, poderia ser uma forma de manter um ritual dedicado a esta divindade. Para fechar esta reflexão sobre a origem do nome danmyé, o livro ainda cita, a teoria de alguns pesquisadores de línguas africanas, cuja palavra “yê” significa “ser”, inclusive em crioulo. Sugerindo que danmyé poderia significar “aquele que é iniciado”.12 Danmyé é o termo mais utilizado atualmente, o mais popular. Das quatro associações, apenas a Lésynisyé utiliza o nome ladja, ao invés de danmyé. Para David, criador da associação, o nome ladja se refere ao aspecto mais guerreiro da luta. Como iniciado no seu grupo, optei por seguir este princípio. Apesar de utilizar ambas as denominações, priorizei o nome ladja no título e no decorrer da tese. A origem de ambos os nomes é múltipla. O único ponto em comum é o combate, o ímpeto guerreiro que estas expressões carregam. Através delas, continuam a vibrar raízes africanas nos corpos de seus lutadores. Independente do nome utilizado, trata-se de uma luta subversiva e espontânea. No ritmo, ela subverte a lógica da guerra, ao contrário das estratégias militares ocidentais, ela lança seus combatentes na dança. É justamente, nesta cadência sincopada dos corpos, que reside o invisível, o golpe imperceptível, capaz de adiantar-se ao olhar do oponente. Trata-se de um ritual performático, carregado de misticismos, ritmado pela síncope de um potente tambor. Medir a destreza de um lutador de ladja é tão complexo como definir a potência de qualquer outra proposição artística. Em cada gesto dançado está presente uma infinidade de ressignificações simbólicas, sutilezas transversais – bordas difusas entre o lá e o cá neste combate deambulatório. Estive na Martinica pela primeira vez no final de 2012, onde fiquei uma semana. Inicialmente, fui a Barbados como fotógrafo da revista National Geographic, para fazer uma matéria sobre a diáspora dos judeus holandeses expulsos por portugueses do Recife no século dezesseis. Aproveitando a proximidade, viajei por conta própria à Martinica para conhecer a ladja, também conhecida por danmyé, essa luta caribenha comentada nas rodas de capoeira – histórias de mestres 12 AM4 Association Mi Mes Manmay Matinik. tradition Danmyé-kalenda-Bélé de Martinique Tome.3, les djérié. K éditions, 2017. Fort de France, Martinique. p.26. 12 brasileiros que já estiveram por lá e disseminaram novas lendas transversais da diáspora africana. Na primeira vez, não fui como pesquisador ou artista, mas na condição de capoeirista, com o propósito de trocar experiências. Fui recebido pelo lutador de ladja Mehdy Ozier-lafontaine e pelo artista plástico e professor de capoeira Sebah Martial que me hospedou em sua casa. Ambos moraram no Brasil para aprender capoeira. Fui apresentado a eles via email pelo mestre de capoeira Carlão que foi professor de capoeira de Mehdy em Londres e também já esteve na Martinica em 1991, quando integrou o grupo de capoeiristas convidados para um evento sobre sincretismo religioso afro-americano. Ele relata em sua tese de mestrado que o ponto culminante deste evento teria sido a roda conjunta entre lutadores de ladja e capoeira: “formando uma fusão rítmica perturbadora, que parecia ter sido planejada, tamanha a fluidez… a capoeira angola e a ladjya, não se enfrentaram, elas se uniram para falar uma só língua, a língua dos tambores…” 13 Esta aproximação me abriu portas para perceber a realidade da luta e seus integrantes. Nesta ocasião, perguntei a Victor Treffre, um dos velhos mestres desta arte, qual seria o principal fundamento da luta. A resposta dele foi imediata: “ou wè`y ou pa wè`y”, que em crioulo significa “vê mas não vê”, se referindo à capacidade ilusionista dos golpes deste combate, que impede a percepção visual do oponente diante do ataque, transformando o visível em invisível através do corpo. II Retornei em fevereiro de 2016; desta vez passei um mês inteiro. Decidi praticar a luta para perceber corporalmente as sutilezas de seus conceitos – seus mistérios ancorados na pele. Uma pessoa supersticiosa diria que minha chegada na Martinica foi marcada por eventos que clamavam para as energias ocultas do sobrenatural. Cheguei no dia 02 de fevereiro – dia de Iemanjá. Na mala havia algumas encomendas; um berimbau, uma vestimenta completa para Oxalá e outra para Iemanjá, velas, incensos e guias. O pedido foi feito por Mehdy, que desta vez me ofereceu estadia em sua casa para o mês todo. 13 TEIXEIRA, Alexandre Carlo. O imaginário Poético da Capoeira Angola – a performance de um universo paralelo. Dissertação de mestrado em Ciência da Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2001. p.65 e 67. 13 No dia da chegada a terra literalmente tremeu, um leve terremoto dava as boas vindas nesta ilha caribenha carregada dos mistérios da diáspora. Mehdy mora em San Joseph, numa agradável casa no interior da ilha. As encomendas foram entregues aos orixás na mesma noite, a casa possui um quarto para os espíritos, arrumado com oferendas e purificado por incensos. Quando estava tudo pronto, fui convidado para oferecer os presentes aos orixás. Perguntei para Mehdy como se baseava o aprendizado destes rituais. Se havia alguma literatura a respeito. Ele me disse que a repressão foi tão severa que deixou poucos conhecedores destas práticas, tornando-as uma atividade muito intuitiva, onde cada um cria sua forma de falar com os espíritos. Na mesma noite fomos à praia fazer as oferendas. Ao som do tambor, em uma calma enseada, eu, Mehdy e Amilcar, sócio de Mehdy numa pequena empresa de representação de óleos corporais e sabonetes, louvamos aos orixás. Em uma cabaça lançamos ao mar comidas, flores e uma vela cada um. Durante o despacho as ondas crisparam-se, marcaram presença – uma forte energia que dispensava explicações se apresentava em agradável harmonia – uma verdadeira recepção. Na minha primeira ida à Martinica, perguntei aos lutadores sobre a ligação deles com a religiosidade africana, recebi respostas evasivas, acompanhadas de um certo mal-estar em relação ao assunto. Na casa de Mehdy pude perceber como as pessoas necessitam de muita confiança para abordar estes assuntos. A casa se situava em San Joseph, uma região central da ilha, com intensa atividade agrícola e possuía dois quartos. Eu dormia em um deles, Mehdy na sala e o outro era o dos espíritos. Geralmente sou uma pessoa bem racional, não muito propensa ao sobrenatural, mas o fato de estar em uma casa com tanta força não passa despercebido. Uma noite, estava sozinho, e escutei vozes de um casal conversando, parecia vir do quarto ao lado. Outra noite alguém me observava na varanda. Comentei isso para o Mehdy. Ele disse que dois espíritos viviam conosco, uma mulher negra muito gorda e um homem mais branco, com cabelo curto e crespo. A descrição bateu com o homem que vi na varanda. Depois desta conversa, ele disse que eu já poderia entrar sozinho no quarto dos espíritos, não precisava mais de seu acompanhamento. Aos poucos ganhei a confiança dos lutadores para abordar o assunto. A relação é bastante intensa, a maioria deles possuem pequenos altares em casa. 14 Mas trata-se de uma prática escondida, que não é exteriorizada através do uso de guias (colares), imagens e oferendas nas ruas. O nome desta prática é “quimbois”, 14 mas ela sofreu uma repressão tão forte que o termo ganhou o peso de uma palavra proibida, amaldiçoada. Atualmente costuma-se dizer que uma pessoa é um conhecedor da “science”. Que traduzindo do francês para o português significa “ciência”, mas também pode parecer “sessão” como quem fala com os espíritos ou ciência oculta. Como a maioria das palavras ditas em crioulo, ela é dúbia. Uma forma irônica de jogar com as palavras e brincar entre os extremos: o pensamento racional/científico, e o pensamento mágico/espiritual. Em uma conversa com o experiente lutador Hugues Baspin, ele falou do danmyé e bélé 15 como caminhos para se encontrar uma espiritualidade perdida. – Antigamente os lutadores de danmyé extraiam forças da natureza, dos animais, das águas, para seus braços e pernas se enfeitiçarem, e assim poder dar golpes mágicos. – De maneira informal dialogávamos diretamente com a natureza, essa era nossa espiritualidade. – Hoje ainda há gente que pratica. – Buscamos a natureza, os rios, falamos com árvores. – Tentamos nos reconectar. – Isso está relacionado a uma religião afro-caribenha? Perguntei. – Acho que não. – Antigamente, no danmyé, sim. – Fazíamos apelo à coisas sobrenaturais. – É uma boa coisa se reconectar com a natureza. – Devemos fazer isso através da sabedoria africana. – Aqui nós temos a “maman de l’eau” (mamãe da água), talvez nesse sentido seja a única imagem africana que permaneceu em relação aos orixás. – Sabemos que ela é iemanjá, e possui outros nomes no Haiti, na África... 14 Termo genérico utilizado nas Antilhas Francesas para designar as práticas mágico-religiosas de origem africana, surgidas do sincretismo religioso na diáspora. 15 Bélé é uma dança típica da Martinica, o ritmo desta dança também é chamado de Bélé e ele é o ritmo usado na Ladja, com uma pequena variação. 15 – Talvez existam pessoas com conhecimento mais profundo sobre tudo isso por aqui. – Mas eles guardam a informação. Desde minha primeira ida à Martinica fiz parte do grupo de Mehdy, “Lézinisyé” (os iniciados), um grupo radical no que diz respeito às origens e tradições. Tive aulas com David-Alexander Fatna – um verdadeiro “majò”, 16 descendente de uma família de lutadores de ladja. Ele é filho de Daniel Fatna que além de ter sido um reconhecido lutador, cantor, tocador de tambor também era poeta e deixou um legado de letras de músicas, poemas e reflexões sobre a ladja. David me ensinou um aspecto importante desta arte: ékilib/dézékilib, em crioulo significa “equilíbrio/desequilíbrio”, para David, encontrar o equilíbrio no desequilíbrio é um dos caminhos para se alcançar o we’y ou pa we’y. Para ele, trata-se de outra forma de ver o mundo colonial, saber se adaptar às condições mais difíceis, “o desequilíbrio faz parte de tudo”. Mesmo nos momentos de maior sofrimento o combate continua. Saber conviver com o desequilíbrio, para David, é uma segurança. O corpo do lutador de ladja tem que lidar com isso, é a natureza em constante movimento de adaptação. A ladja é o não convencional, é tudo aquilo que os ancestrais conseguiram guardar no corpo para manter o espírito vivo. Um dia fui acordado às pressas por Mehdy para ir apanhar cabritos fujões da fazenda de Bruno, irmão de David. Situação selvagem e completamente nova para mim. Fiquei impressionado em constatar o quanto sou um ser urbano e medroso. Tudo bem que apanhar grandes cabritos na mão não é uma tarefa banal. Munidos de facões e uma espingarda, entramos no mato serrado para tentar uma emboscada. Arranhões, tropeços, suor... aos poucos fomos nos aproximando das nossas presas. Acuados, olhares esbugalhados, frágeis – corajosos – eles saíram em disparada entre nós, Mehdy lançou-se em um bloqueio cinematográfico no menor cabrito, lançando-o ao solo. Os maiores fugiram. Armamos mais duas emboscadas e conseguimos pegar mais dois cabritos. Os últimos foram abatidos por espingarda. Não fiquei para ver. David me disse que eu poderia considerar este dia como minha primeira aula de ladja, apesar de um tanto insólita, ele me explicou que antigamente 16 Termo em crioulo, que se refere a alguém que possui reputação pelo seu conhecimento e sua maestria no combate. 16 estas atividades diárias, envolvendo destreza, força, coragem, faziam parte do aprendizado de um lutador. Na semana seguinte, comecei meus treinos convencionais, fortes e contundentes. Arte de guerra. Recebi uma noção geral do combate. O conhecimento de capoeira me ajudava no ritmo e na quebra do corpo, os golpes também não são difíceis de aprender para quem já praticou alguma arte marcial. O difícil é gerenciar a complexidade do conjunto. Ao contrário das outras lutas, a ladja apresenta um repertório tão grande e variado de possibilidades, que parece impossível dominá-lo. Fizemos uma luta chamada Zoel ou Wolo, que também pode ser praticada na água, é uma modalidade integrante da ladja. Segundo David, era uma tradição dos lutadores antigos para trazer as lutas da infância ao presente. Os combates acontecem em uma roda pequena, com cerca de três metros de diâmetro, formada por pessoas em pé e muito próximas uma das outras. O objetivo é imobilizar o oponente e vale tudo para alcançar esta finalidade. Nas primeiras disputas entendi onde eu estava me metendo. Parecia a caça, entendi porque fui convidado para agarrar cabritos antes de começar os treinos. Na minha vez, lutei com um rastafari chamado Frantz, em homenagem a Frantz Fanon; ele tinha um porte físico parecido com o meu, mas era muito rápido. Talvez pelo medo, fui agressivo, fiz um movimento de capoeira, uma ginga, uma finta que o enganou, voei nas suas costas imaginando agarrar um cabrito. Joguei-o no chão e começamos um combate de solo muito duro; até então, eu não possuía nenhuma técnica de solo, só restou apostar na força. Em um momento achei que já o havia imobilizado, no entanto, ele estava conseguindo sair, reuni toda a força possível e o levantei agarrado em mim, e me joguei novamente com ele no chão, imobilizando-o de vez. Depois foi a vez dele me imobilizar. Me imaginei um gato selvagem, fugi rapidamente das suas investidas, fomos ao chão várias vezes, um combate duríssimo. Num dado momento, quando ele estava por cima, David achou melhor acabar com a luta. O treino durou quatro horas. Enquanto eu estava com o corpo quente, não senti os golpes. Mas no final do dia, quando fui tomar banho, percebi inúmeros hematomas, arranhões e dores no corpo. No dia seguinte, fiz meu segundo treino na AM4 (é a maior e mais organizada associação de ladja, ou danmyé como eles preferem chamar esta luta). A turma era mais avançada e os movimentos mais complexos, tive dificuldades de fazê-los no 17 ritmo, na cadência correta. O toque de tambor é muito sincopado. Mesmo com o tibwa 17 não consegui entrar no ritmo. Uma questão de tempo. Só aprendemos quando esquecemos de pensar. Depois passamos para os combates de solo. Mais uma vez tive dificuldade. Meu adversário era um negro muito forte com um olhar severo chamado Maurice. Consegui ganhar uma das três disputas. Nas conversas com David, aprendi muito sobre a vida na Martinica, as tensões, os pesos e contrapesos da herança colonial. Um dia perguntei a ele sobre este delicado equilíbrio entre a França e a Martinica e como isso se reflete na prática da ladja. Ele me respondeu: – Em tudo, aprendemos que a grande vantagem de continuarmos dependentes da França é a segurança social, o equilíbrio. – Achar o equilíbrio no desequilíbrio é outra maneira de ver o mundo. – Para mim a ladja e a capoeira são isso, o equilíbrio no desequilíbrio, o “ou wé’y ou pa wé’y”, o não convencional. – Temos que sair disso, não podemos ficar o tempo todo: eu preciso disso, daquilo, segurança... – Não! temos que procurar o desequilíbrio e continuar no combate. – Na Europa sempre tentaram acabar com tudo ligado ao desequilíbrio, por trás, havia uma crença na religião, que estabelecia os dogmas, o poder real, que regulava os negócios. – A primeira coisa que a igreja atacou foi a arte, o ritmo, o teatro, tudo que permitia às pessoas saírem da sua segurança, pensar diferente, imaginar. – E nós, como conseguimos fazer isso hoje em dia? Numa sociedade onde nos dão tantos enquadramentos, regras, caminhos a seguir, como você consegue sair disso? É cada dia mais difícil. – Por isso guardar a prática da ladja e da capoeira, nossas danças, isso se torna fundamental, é o único lugar onde você consegue exprimir esta liberdade de desequilíbrio. – É por isso que nossos ancestrais lutaram tanto para guardar estas práticas. – Eles compreenderam bem que isso era tudo o que restava para preservar o mínimo das suas almas. 17 Significa pequena madeira em crioulo, são dois bastões de madeira, onde um segundo tocador bate na traseira do tambor fazendo a marcação do ritmo. 18 – Apagaram seu nome, apagaram sua origem, não importa de qual país você veio, fizeram de você um animal, e você se encontra em um local que você não conhece. Você deve se readaptar! -– Fazem de você um robô, somente para trabalhar, comer, dormir, trabalhar, comer, dormir, trabalhar... – Como você faz, para existir e continuar sendo o que você é dentro da sua concepção de mundo? É isso que eles tentaram destruir ao máximo com a evangelização, mas não conseguiram. – Por aqui, costumamos dizer: enquanto o espírito estiver vivo, a arte não irá desaparecer. Perceber a complexidade que estas expressões abordam, através da relação ladja-corpo-percepção, se transformou no eixo central da minha pesquisa. A proposta é conjugar em uma coreografia muito pessoal o universo desta experiência corporal. Uma tarefa difícil, onde as únicas certezas são o movimento e o desequilíbrio. Passos em volta como a própria roda de ladja. Subverto o terreno das certezas para me lançar no rumo incerto das proposições artísticas. Contrariando o que se espera de uma tese formal, na qual se parte de um problema e hipóteses, obedecendo a um raciocínio lógico para apresentar a sua solução, assumo os riscos desviantes que este caminho sugere. Trata-se de um campo em exploração. Ato de tatear códigos inteligíveis no sensível. Além de conjugar o pensamento científico à expressão literária, transborda-se através de poéticas visuais, escultóricas, corpóreas, sonoras... Abrindo assim, o campo de possibilidades expressivas, requebrando a rigidez cartesiana e ressignificando o pensamento linear. Novas formas de agir. Neste sentido, me lanço ao desmanchamento de certos mundos, da perda de alguns sentidos – formação de novas cartografias pessoais. Como os lutadores de ladja, busco atingir o potencial abstrato da simbiose que esta luta emana. O fracionamento sonoro de sua musicalidade sincopada, que projeta o tempo dilatado dos golpes, estágios radicais de percepção, que trabalham nos meandros dos poros da pele. As rodas de ladja que participei trazem uma energia – um tempo suspenso, que remetem muito aos filmes que a bailarina, coreógrafa e etnógrafa norte- 19 americana Katherine Dunham 18 realizou em 1936 durante suas viagens ao Caribe para pesquisar as danças e os ritmos tradicionais. São filmes de curta duração 16mm em preto e branco, nos quais se percebe as vibrações, a potencialidade latente desta dança de combate. São raros registros visuais da ladja daquela época que podem ser acessados na The library of congress 19 Também percebi a importância destas filmagens para os lutadores, pois muitos deles recorrem a elas hoje em dia para resgatar gestos perdidos. Neste sentido, ao comparar a movimentação antiga com a atual, percebo que a ladja parece ter perdido um pouco do seu aspecto dançado, com menos artimanhas, fintas, se tornando um jogo mais objetivo com mais luta e menos dança, detalhe que vai de encontro com o comentário de Katherine na época: …o fascínio da verdadeira [ladja] não está na brilho do combate, mas na sutileza da abordagem e da retirada; a tensão que se torna quase uma hipnose, então o clarão dos dois corpos quando eles saltam para o ar, agacham-se e giram um contra o outro em ataques simulados, apenas para andar despreocupadamente depois, de costas um para o outro, mostrando total indiferença antes de cair novamente em um novo movimento de 20 balanço, que os repousa fisicamente, mas os excita emocionalmente. Os filmes foram rodados em duas comunidades diferentes, identificados pelos lutadores como Vauclin e Trois Ilets 21, neles grupos de cerca de cinquenta pessoas elegantes, vestidas de branco em roda, praticam a ladja, remetendo à tradição mencionada por Pierre Dru: 18 Katherine Dunhan nasceu em 22 de junho de 1909 em Glen Ellyn, Illinois, Estados Unidos e morreu em 21 de maio de 2006 em Nova Iorque. Foi bailarina, professora e coreógrafa. Notabilizouse como importante autoridade em danças afroamericanas nos Estados Unidos. Nos anos de 19351936 com o apoio da Fundação Rosenwalt ela pesquisou as danças do caribe. Ela aportou na Martinica em 1936, e estas pesquisas faziam parte do seu mestrado em antropologia na Universidade de Chicago, sobre as formas de danças da diáspora africana no Caribe. Ela era orientada por Robert Redfield e estudava com personalidades da área como, A.R Radcliffe-Brown, Edward Sapir e Bronislaw Malinowski. 19 Disponível em: http://www.loc.gov/item/ihas.200003836/ . Acesso em: 23/05/12 20 Ver Katherine Dunham (sob o pseudônimo de Kaye Dunn). “L’Ag’ya of Martinique,”Revista Esquire 12, no. 5 (1939): pag.86. In: DESH-OBI, M. Thomas J. Fighting for honor: The history of African martial art tradition in the Atlantic world. University of South Carolina Press. Columbia. 2008.Tradução nossa: “the fascination of the real ladja lies not in the lust of the combat, but in the finesse of approach and retreat; the tension which becomes almost a hypnosis then the flash of the two bodies as they leap in to the air, fall in a crouch, and whirl at each other, showing in simulated attacks, only to walk nonchalantly away, backs to each other, showing utter indifference before falling again into the rocking motion which rests them physically but excites them emotionally”. 21 DRU, Pierre. Aux sources du danmyé: Le wolo et le ladja. Martinique. Université des Antilles et la Guyane. 2011. p.79. 20 Antigamente, na sociedade colonial, estava “ganmé” aquele que estava vestido de branco, a cor do algodão, do prestígio, mas também a cor do iniciado. Ainda hoje, quando vemos alguém que está sempre vestido de branco, nós dizemos em crioulo: “ou se an mantô” (você é um Mentor). Mentor era o nome do general martinicano do exército francês que passou para o lado oposto, seguindo Toussaint Louverture, durante a guerra de independência do Haiti. O termo é sempre empregado na língua crioulo, para designar potência, mais particularmente, a potência oculta, mágica, 22 espiritual. Katherine assim como eu nos vimos diante da capacidade desejante e transgressora destes lutadores, de uma tradição viva de fluxos e ressignificações. Homens que dançam para manifestar suas memórias em códigos estranhos à lógica ocidental, que lutam para encarnar outras cosmologias, a partir de si mesmos. Um dia Mehdy me perguntou: – Você já se deu conta? – Desde os registros realizados há oitenta anos atrás por ela, nenhum outro estrangeiro havia dedicado tanto tempo e energia para documentar a ladja, como você faz agora. E complementou carregado de desilusão: – Tomara que você não esteja registrando o início do fim desta arte. Ele se referia às divergências que dividem os grupos, alguns são mais favoráveis à modernização, enquanto outros à tradição, disputas internas que enfraquecem ainda mais esta arte. Para ele a ladja já é um ato de resistência em si. Com poucos adeptos, ela desperta cada vez menos o interesse dos mais jovens. Este hiato de oitenta anos que separa os filmes de Katherine Dunhan e os dias atuais, possui uma força simbólica. Ele é marcado pelo processo político de departamentalização através da lei nº 46-451 de 1946 e pela proibição da ladja. Com esta lei a Martinica deixa de ser colônia para receber o estatuto de departamento ultramarino francês. Junto a ela, uma série de polêmicas restrições. 22 Entrevista com Pierre Dru .Inspirations, pratiques et origines du danmyé De l'ancienne Égypte à la Martinique de nos jours. Disponível em http://www.lesperipheriques.org/anciensite/journal/13/fr1318.html. Acesso em. 08/10/15. tradução nossa: “Or avant, dans la société coloniale, était ganmé celui qui était habillé en blanc, c'était la couleur du coton, le prestige, mais aussi la couleur de l'initié (celui qui officie). Maintenant encore, quand on voit quelqu'un qui est toujours habillé de blanc, on lui dit en créole :« ou se an mantô » (tu es un Mentor). Mentor étant le nom d'un général martiniquais de l'armée française, passé du côté de Toussaint Louverture lors de la guerre d'indépendance d'Haïti. Il est employé dans la langue créole pour désigner la puissance, plus particulièrement la puissance occulte, magique, spirituelle.” 21 Foram proibidas diversas manifestações culturais sob a alegação de desordem pública. Esta reivindicação da departamentalização, foi um longo combate, sua origem remonta à abolição da escravidão, em 1848. Com a liberdade, os negros não eram mais regidos pelas leis escravagistas, tampouco se encaixavam nas leis dos brancos, ficavam pairando em um limbo legislativo. Teoricamente, este momento seria a consagração da luta por assimilação, iniciada com os escravos libertos. Mas a história nunca é linear e clara como deveria. No seio destas mudanças trazidas pela departamentalização, que deveriam marcar a passagem do colonialismo para a democracia e a modernização – a ladja vai trazer os paradoxos que esta imagem carrega. Nestes oitenta anos, ela ficou proibida por cerca de trinta. Fato que por si só, já aponta as fraudes desta conquista. Nas rodas percebi um universo de apenas umas cem pessoas envolvidas. Um número ínfimo, 0,025% de uma população de cerca de quatrocentos mil habitantes. Notei também uma divisão bem clara entre os atuais grupos de ladja. Divisão que deixa transparecer os dilemas da departamentalização, e os embates entre a cultura tradicional e a promessa de modernização promovida pela departamentalização. No carnaval, por exemplo, aconteciam duas rodas simultâneas em lugares diferentes. No gramado da praça da cidade, Léon Désert do grupo Lèsprit Danmyébélé comandava a maior roda, com microfones e caixas de som. Cerca de cinquenta pessoas, entre eles homens, mulheres e crianças brincavam em um clima amistoso. Com um sabor de nostalgia, as ruas são temperadas por fantasias e batuques. Um clima carregado de ingenuidade e alegrias carnais. Cores quentes, intensas contrastam com as peles morenas e sorrisos francos. Me senti muito à vontade. Por se tratar de uma luta de forte poder marcial, com golpes contundentes que causam hematomas e ferimentos, alguns grupos como o Lésprit Danmyé-bélé defendem a prática de uma versão menos agressiva, conhecida como Danmyé Anmizé (danmyé amigável). Por isso realizam rodas de ladja com clima bem familiar, sem agressões. No entanto, Léon e seu filho Devii Richards são reconhecidos como exímios lutadores. Léon ganhou fama no bairro de Bòkannal, um lugar importante no imaginário da cidade. É um dos bairros mais pobres e violentos da capital Fort-de- 22 france, formado por pescadores e famílias do campo que tentaram a sorte na cidade, durante o intenso processo de êxodo rural, ocorrido por volta da década de 1940. Neste deslocamento apareceram os primeiros lutadores de ladja da região. Com eles, nasceu a fama do bairro que se mantém até hoje – local de lutadores e valentões, desafiadores da ordem social. Seu filho Devii, além de lutador de ladja, é um reconhecido campeão de judô. É neste bairro que Léon e seu filho ministram as aulas. A outra roda no carnaval era organizada pelo grupo do qual fiz parte, Lézinisyé e a associação AM4. Era um antigo ponto tradicional da luta, onde hoje é um banco. Esta roda era bem menor, e contava com apenas umas vinte pessoas. Não havia sistema de som e as lutas aconteciam em uma calçada, no cimento. Homens, mulheres e crianças se enfrentavam em lutas duras, principalmente as dos homens. Muitos saíam com os braços esfolados pelo contato com o solo irregular. Alguns chegavam ainda fantasiados para a luta, criando uma atmosfera magicamente descomedida, transportando ao ambiente do sonho, do irreal, digno de notas de Breton no seu caderno de viagem Martinica – encantadora de serpentes.23 Apesar das rixas e posicionamentos distintos, os lutadores de ladja querem se fazer ouvir, querem expandir seus toques pelo mundo. Alguns deles já estiveram no Brasil, e inspirados no exemplo expansionista da capoeira, lutam para que sua arte não desapareça. Vale ressaltar que toda esta movimentação é ancorada no respeito pelos velhos mestres, mantenedores da tradição e do saber, equilibrando o zelo pela tradição com os processos de fusão, inevitáveis em qualquer forma de fluxo. Em ambas as rodas fui bem recebido. Percebi que depositavam em mim, a confiança de quem estava ali para somar, para ajudar a promover esta arte. Um dos aspectos mais sedutores da ladja está na sua herança rítmica africana, onde se entrelaça o corpo no potencial cósmico em um combate cadenciado. Neste dualismo entre o que deve ser visível ou invisível, dança ou luta, perigo ou diversão, equilíbrio ou desequilíbrio reside o grande mistério e encantamento das danças de combate de origem africana. Nos relatos dos antigos, presente na tese de Pierre Dru, encontramos pistas para perceber melhor este movimento ritmado dos corpos de combate. Com mais de 23 BRETON, André. Martinica encantadora de serpente. Lisboa. & etc. 1986. 23 oitenta anos, Julian Saban, falou para Pierre: “dansé sé osi la priyé neg”, traduzindo do crioulo significa: “a dança é também a reza do negro”. 24 E com mais de um século de vida, Misié Eliktè afirma que na dança do danmyé havia um gestual, no qual ele se sobressaía e assim, pegava seus adversários: “o jogo do combate se encontra na dança”. 25 Na África a dança é onipresente, nas cerimônias de iniciações religiosas e divinas, nos campos de batalha, locais de vida, de glória, honra e imortalidade, como salienta Alphonse Thierou: “Para os africanos, a dança ajuda a transcender a percepção ordinária para atender, na harmonia do ritmo, outros estados de consciência onde se produzem uma comunicação mental com as forças cósmicas.”26 Em 2017 passei duas semanas no Senegal. Participei de uma conferência na cidade histórica de Saint-Louis nos quatro primeiros dias, depois fui para Sally Plage, local de tradição da luta senegalesa, também conhecida como Laamb em Wolof, a língua local. Foi uma experiência importante para perceber conexões com a ladja. O ritmo sincopado me chamou a atenção, percepção que será aprofundada no subcapítulo “Síncope”. A história da ladja se mistura com a da Martinica e seus combates desde os primórdios. Disputas entre franceses, africanos e índios dariam origem aos primeiros quilombos. Centros de resistência onde o invisível resistia à colonização. Preservando e cruzando saberes, entre eles, as danças e as lutas. Antes da chegada de Cristóvão Colombo em 1502, e do corsário francês Pierre Belin D’Esnambuc com cinquenta colonos franceses em 1635, os índios aruaques já haviam sido expulsos pelos guerreiros caribes, habitantes da ilha na chegada dos europeus. Com a chegada dos franceses, conforme aumentava o número de habitantes brancos, mais os índios eram roubados. Em 1637, viviam cerca de duzentos franceses, e três mil caribes, insubordináveis à exploração 24 DRU, Pierre. Aux sources du danmyé: Le wolo et le ladja. Martinique. Université des Antilles et la Guyane. 2011. p.72.Tradução nossa a partir da expressão já traduzida do crioulo para o francês: La danse, c’est aussi la prière du nègre. 25 IDEM.76. Tradução nossa a partir da expressão já traduzida do crioulo para o francês francês: ...le jeu du combat se trouve dans la danse. 26 THIEROU, Alphonse. Si sa danse bouge, l’Afrique bougera. Apud. Dru. p.72. tradução nossa: “Pour les africains, la danse aide à transcender la perception ordinaire pour atteindre, dans l’harmonie du rythme, d’autres états de conscience où se produit une communication mentale avec les forces cosmiques. 24 europeia. Em 1638 foi assinado um tratado de paz que dividiu a ilha ao meio: o lado do mar do Caribe ficou para os franceses e, o lado do mar Atlântico para os caribes. Mesmo assim os confrontos entre caribes e franceses continuavam constantes e violentos, eles preferiam a morte à escravidão. Um dos mais violentos aconteceu em 1654. Índios de diversas ilhas uniram-se. Juntos, contando ainda com o reforço dos negros marrons, 27 atacaram impiedosamente o Forte Saint Pierre na Martinica. A resistência francesa fracassava, quando, “milagrosamente”, foram salvos por quatro navios holandeses armados. Ao avistarem os incêndios e tumultos estes navios partiram para ajudar os franceses. Neste mesmo ano, judeus holandeses expulsos por portugueses de Recife chegavam à Martinica. 28 Depois deste episódio, os franceses massacraram sem distinção de idade ou sexo, todos os Caraíbas que encontraram. Com o desenvolvimento da indústria açucareira, a demanda por terras e a mão de obra para o plantio da cana aumentou muito. Neste contexto o número de escravos negros aumenta vertiginosamente. O sistema escravagista tomava forma e a necessidade de outras terras se fazia crucial. Afoitos por mais terras, os colonos franceses declararam guerra contra os índios em diversas partes do Caribe, com a cumplicidade dos religiosos. Até hoje, uma silenciosa falésia no norte da Martinica é conhecida como “Túmulo dos caribes” ou, “a rocha”, ou, “cofre à morte”. Há séculos, através de crônicas coloniais e relatos de velhos negros, fala-se de um suicídio coletivo, onde um povo inteiro teria se jogado no vazio - guerreiros, mulheres, velhos e crianças, os últimos sobreviventes da conquista. Os poucos índios que sobreviveram se refugiaram nos quilombos ou fugiram para a ilha vizinha da Dominica. Só na marronagem 29 estes povos subjugados no 27 “negros marrons” tradução do termo francês: “négres marrons”. Marron é, em francês, castanho, mas pelo mesmo vocábulo também se designava o escravo fugitivo, o gentio, o ilegal e o clandestino. 28 DANEY, Sidney. M. Histoire de la Martinique, depuis la colonization jusqu’en 1815. Tome 1. F Ruelle. 1846. No livro não fica claro se estes navios holandeses eram os mesmos dos expulsos do Brasil. 29 Este termo deriva do francês marronage, que designa o ato de os escravos se evadirem (a que, atualmente, se acrescentou a acepção de resistência à cultura dominante). O Dicionário FrancêsPortuguês da Porto Editora dá como tradução de marronage «exercício ilegal de uma profissão», «fuga, evasão de escravos». Marron é, em francês, castanho, mas pelo mesmo vocábulo também se designava o fugitivo, o gentio, o ilegal e o clandestino. Ora, não é raro ver, em especial em autores brasileiros, para referir a mesma realidade, a palavra, que a maioria dos dicionários não regista, «quilombolismo». GUÉGUÉS, Helder. Blog Linguagista, 10/08/11. Disponível em: 25 colonialismo podiam fugir do dualismo imposto. Fuga da dupla identidade forjada, das duas línguas, duas culturas e dupla religião. Fuga do canto resignado em latim na igreja para o canto ao ar livre, sob a batida do tambor. Fuga da resignação para a luta. A maioria dos lutadores afirmam que, disfarçada em dança para ludibriar os senhores de engenho nas plantações, nos botecos e nas festas populares de domingo, a ladja sobreviveu. Outros, como David, duvidam desta possível ingenuidade por parte dos coronéis. Ele já ouviu de antigos lutadores a hipótese da utilização de escravos, os melhores lutadores, como galos de briga, promovendo desafios em lucrativos combates. Dança de combate desenvolvida na incorporação cultural de diversas regiões da África, das culturas da diáspora, dos escravos vindos do Brasil nos navios dos judeus holandeses expulsos de Recife, dos índios refugiados nos quilombos – à margem ela sobreviveu. Paradoxalmente, a ladja só foi proibida oficialmente quando a Martinica mudou de estatuto. De colônia ela passou para departamento francês, através da lei de 1946, da qual o poeta e político Aimé Césaire, na época líder do Partido Comunista e prefeito de Fort-de-France, fora o relator e um dos principais articuladores. É justamente quando a pequena burguesia e a intelectualidade se juntam para acelerar a luta por igualdade e direitos civis, diante de um cenário de miséria e êxodo rural, onde muitos não tinham o que comer, nem um par de sapatos para usar, que a ladja vai sofrer este golpe. Para adquirirem os direitos de cidadãos franceses, mais uma vez, os martinicanos tinham que esquecer suas raízes africanas. Durante meu período de pesquisa na Martinica, busquei através de consultas bibliográficas, entrevistas com os lutadores e pesquisadores sobre o tema, entender com maior precisão a proibição da ladja, a lei específica, o decreto, mas as informações são difusas. Ao que os fatos indicam, sua proibição no processo de departamentalização estaria associada à política do cassetete, através do decreto n˚ 47-1018 de 07 de junho de 1947, artigo 3. Com ele, os prefeitos recebiam os poderes de governadores no que se refere à segurança interna. Sua missão http://linguagista.blogs.sapo.pt/98794.html. Acesso em: 11/06/15 26 essencial era de reprimir toda manifestação, mantendo os martinicanos em regime de fidelidade e obediência à França. Este decreto, tinha como principal objetivo, frear as forças de resistência, o ímpeto dos movimentos políticos. Controlar as manifestações populares e o crescimento do Partido Comunista Martinicano (PCM) do qual Césaire fazia parte até criar o Partido Progressista Martinicano (PPM). Os dois partidos cobravam nas ruas as promessas da departamentalização; melhorias nas leis do trabalho e proteção social. Neste pacote de restrições, ao que tudo indica, a ladja aparecia como uma ameaça à ordem pública. Sua repressão viria junto com a departamentalização, neste período, que ficaria conhecido como o reinado dos prefeitos. Aparentemente, tratava-se da conquista do poder local, na verdade, a Martinica continuava sobre a mão de ferro da metrópole. A lei trouxe um pseudo-poder executivo aos prefeitos, já que estes, continuavam subjugados ao legislativo francês. Assim, a França mantinha através de uma perversidade institucional, a dependência das antigas colônias. O próprio Aimé Césaire foi um dos primeiros a perceber a fraude desta conquista. Profundamente decepcionado com os caminhos obscuros que o acordariam deste sonho, ele começou a protestar na tribuna da assembleia nacional francesa em 1954, acusando a departamentalização de uma “política de enganos e trapaças.” 30 Esta luta se arrastaria por muitos anos. Na década de 1970, mesmo com as duras repressões, os movimentos independentistas ganhariam força. Césaire por sua vez, defendia o autonomismo, onde as coletividades locais teriam o direito de gerir os negócios próprios da Martinica. Para ele, este seria um primeiro passo no caminho à independência. Finalmente em 1982, através da lei de 31 de dezembro, a Martinica conseguiria aprovar um regimento interno, através de um conselho regional formado por 41 pessoas, assistido pelos conselhos de cultura, economia, social-regional, educação e meio ambiente. Só neste momento, os primeiros ganhos reais apareceriam. Neste período turbulento de departamentalização, a ladja sobreviveu escondida, nos bairros mais pobres, nos ensinamentos marginais dos grandes “majó”, que formavam apenas um ou dois alunos ao longo de toda a vida. Ela só 30 GAMESS. Thibault. La loi de departementalisation du 19 mars 1946, un tournant dans l’executif de la Martinique. Mémoire présenté à la faculté des Sciences Juridiques, Politiques et Sociales de Lille. Lille . 2002. Tese. Tradução do autor: “politique de duperies et de tricherie” p.21. 27 começou a retomar sua prática, publicamente, na década de 1970, diante da pressão dos movimentos pela independência do país e a busca por produtos folclóricos locais. Encontrar dados sobre sua liberação é tão complicado como decifrar o momento exato de sua proibição. Provavelmente ela só foi oficializada, dentro do pacote de mudanças no processo de regionalização de 1982. Fato é que somente nesta última década, os grupos e as aulas foram sistematizadas, dando uma nova perspectiva para esta luta, que corria o risco de se perder no imaginário popular. Você deve saber que nos anos 1970 a ladja estava morrendo, ela foi rejeitada, desprezada como sempre tinha sido parte da cultura negra. A urbanização progressiva, confinamento em frente da televisão, a rejeição da cultura própria da juventude, mas também a experiência que tinha desvalorizado os anciãos junto com o desmantelamento dos lugares onde a 31 ladja era praticada, principalmente nos festivais de aldeia. Para Pierre Dru, foi com a tentativa do governo de capitalizar o folclore martinicano na década de 1970, criando um produto turístico por excelência, o bélé, que a ladja começou a ganhar valor. Até então, estas manifestações não tinham valor, eram consideradas: “bagaille vié nèg” 32 . Por estes motivos, os caminhos escolhidos pelos grupos de ladja hoje em dia, quanto ao seu devir, são tão polêmicos. A Martinica é um lugar marcado pela complexidade das relações simbólicas, fundadas sobre uma estratificação sócio-racial bem peculiar. Preservando até hoje números muito semelhantes aos do período da abolição, com cerca de 80% de negros e 20% entre brancos, indianos e pardos. As riquezas se concentram nas mãos dos “békés” 33 – brancos descendentes dos colonos mais ricos. Eles formam 31 ARROUVEL, Rébecca . “Expressivité de l’être: Le geste comme langage, Un phénomène social entre l’Oralité et la Singularité”. Le 28 Mai 2010, à l’Université de Schœlcher, Faculté des Sciences Humaines, dans le cadre de la Journée d’Étude sur le thème de l’oralité, CRILLASH - Actualisé le 26 Juin 2010. Disponível em: http://www.lesperipheriques.org/ancien-site/journal/13/fr1318.html Acesso em: 12/04/15. Tradução nossa: “Il faut savoir que depuis les années 70 le danmyé se mourait, il était rejeté, méprisé ainsi qu'il l'avait toujours été comme composante de la culture noire. L'urbanisation progressive, l'enfermement devant la télévision, le rejet de la culture qui nous est propre de la part des jeunes, mais aussi le vécu dévalorisant qu'en avaient les anciens, ont amené un démantèlement des lieux où se produisait le danmyé, les fêtes de villages avant tout.” 32 Ibid. Tradução nossa: “coisa de preto velho”. Disponível em http://www.ippi-fondation.org/articlereport/expressivite-de-l%E2%80%99etre-le-geste . Acesso em: 12/04/15. 33 Brancos nascidos na ilha, descendentes dos primeiros colonos, geralmente são muito ricos. Atualmente existe uma grande polêmica em torno do uso do Chlordécone, um dos vinte pesticidas mais tóxicos do mundo. Proibido na França desde 1990 ele é utilizado até hoje na ilha pelos békés. 28 um grupo de 1% da população e possuem mais de 60% das terras, além de diversos privilégios, sociais, políticos e sobretudo comerciais. 34 Outro fato marcante, que infla os humores revolucionários, é a ausência de Aimé Césaire, morto em 2008. Importante pensador e líder político, prefeito de Fortde-France por 56 anos seguidos, deputado da Martinica na assembleia nacional francesa por 48 anos, entre outros diversos importantes cargos. Há uma tensão no ar desde sua morte em abril de 2008, um desencanto político que assola uma população dividida entre o sonho de independência e o pesadelo econômico do vizinho Haiti. Apesar de continuar pertencendo à França, como departamento ultramarino insular francês no Caribe, a Martinica possui uma longa tradição de combates em sua história. A cicatriz de uma colonização brutal está presente até hoje, em uma relação nem sempre amigável. Na praça principal da capital Fort-de-France, esta tensão pode ser vista na forma de uma curiosa estátua branca, de uma mulher decapitada e suja de uma tinta vermelha cor de sangue. Trata-se de Josephine de Beauharnais, mulher de Napoleão Bonaparte. Mesmo tendo nascido na Martinica, ela contribuiu intensamente para a manutenção da escravidão. A cabeça dela já foi refeita e decapitada três vezes, até decidirem por manter assim este monumento, que sugere um estranho cartão-postal. Os combates de ladja acontecem geralmente aos sábados à noite antes do bélé, compartilhado com o público já presente, tocadores e cantores. Aparentemente, o ritmo destas duas manifestações é semelhante, a sutil diferença está no toque do tambor, que na ladja, participa da luta, criando os momentos de tensão e ataque através da síncope. Muitos lutadores dizem que ter um tocador amigo ajuda no combate. Conforme a intensidade e variação do seu toque, ele pode motivar ou desmotivar. Por exemplo, se um lutador vai ao ataque e o tambor aumenta a vibração de seu Foram mais de 6 milhões de litros despejados, contaminando o solo, a água e as pessoas da ilha. Suspeita-se que este pesticida é o responsável pelo grande número de câncer na Martinica. Ver: Les derniers maîtres de la Martinique. Disponível https://www.youtube.com/watch?v=4N0OS2f4xVg . Acesso em: 14/05/18. 34 Com o fim a escravidão, como compensação, os békés ganharam do governo francês a exclusividade do comércio de alimentos. In: Ulrike Zander, "La hiérarchie ‘socio-raciale” en Martinique Entre persistances postcoloniales et évolution vers un désir de vivre ensemble ", REVUE Asylon(s), N°11, mai 2013, Quel colonialisme dans la France d’outre-mer? Disponível em: http://www.reseauterra.eu/article1288.html . Acesso em 08/10/15. 29 toque, este vai lançar-se com mais ímpeto. Ou, ao contrário, se no início de um ataque o tambor fica lento, sem energia, o ataque é frustrado. É a vibração do tambor que emana as energias para corpo. A gestão dos tempos fortes, fracos e da síncope, conforme as necessidades do combate é o elemento principal, operado pelos grandes tocadores de tambor. O canto, geralmente executado por um experiente cantador posicionado ao lado do tambor é apoiado pelo coro dos lutadores da roda. Quem está lutando não canta. As letras remetem a crônicas do cotidiano, histórias de amor, revoltas populares, exaltação dos lutadores mais famosos e seus combates épicos, versos repletos de magia, valentia e corpos fechados. Prolongamentos de uma tradição oral africana preservada, que se estende até os dias atuais. Estas expressões carregam a tradição de contar histórias, do passado, presente e futuro. Outros lugares mais insólitos também servem de palco de luta, como por exemplo o “pit”, lugar onde acontecem as brigas de galo, outra febre na região, movimentando muito dinheiro. Os combates de ladja acontecem no mesmo local onde os galos se enfrentam. Por ser menor, com a arena mais fechada, as lutas são mais violentas, muitos lutadores saem bastante machucados. Vários praticantes desta luta, no dia seguinte ao combate, procuram o mar, as fontes de águas termais, banhos de óleos e de lama para amenizar as dores da luta. O “pit” é um ponto energético da ilha. Nos fins de semana, os elegantes habitantes da ilha, aqueles resistentes à ocidentalização galopante com seus shopping centers e suas revendedoras de carros, encontram-se para jogar o sébi, 35 jogar carta, comer accras, 36 beber rum e cerveja, colocar o papo em dia e principalmente ver os galos durante o combate. Apostar altas somas, vibrar com a luta destemida destes animais, seus golpes precisos, violentos – comovem as almas mais ancestrais desta comunidade. Tratase de um evento de prestígio, onde todos gritam, uma forte energia sonora é colocada na roda, vozes roucas, guturais evocam a força – sobrenatural, guerreira, como se ela pudesse ser incorporada pelos animais. A Martinica é uma ilha que respira combate, seja através da ladja, das lutas de galo, ou da intelectualidade ácida e feroz de seus mais ilustres pensadores. 35 Jogo de dados tradicional. 36 Bolinho frito de bacalhau, camarão ou legumes, feito à base de farinha de trigo. 30 Mesmo assim ela continua dependente da França. Muitos brincam que se um dia acabarem com o “pit” a revolução e a independência será inevitável. O fato é que nestes eventos se respira uma cultura local, um ato de resistência diante da hegemonia ocidental. Outro detalhe que me chamou atenção foi perceber que este termo “vê mas não vê”, ou melhor, wè`y ou pa wè`y” não é uma expressão exclusiva do ambiente da ladja. É uma expressão utilizada no dia a dia, que remonta diretamente à escravidão, quando toda expressão cultural africana era escondida, mascarada. A própria língua crioula é um exemplo, ela surge como um subterfúgio capaz de ressignificar a nova língua imposta. É o próprio francês, só que, codificado, onde apenas o escravo estava apto a entender, a ver. Esse código que embala os cantos da ladja. III Em agosto de 2017 voltei para a Martinica pela terceira vez para morar seis meses com a família, esposa e duas filhas. Enfrentamos furacões, criamos laços de amizade, entrei nos grupos de whatsApp das associações de ladja, me envolvi nos protestos contra o envenenamento das terras através do pesticida clordéchone, participei do grupo LaboPerf formado por artistas voltados para performance e land art. Tivemos tempo para perceber as sutilezas, mergulhar na riqueza da cultura local, na vida martinicana e no rico universo da ladja. No primeiro mês enfrentamos três furacões: Irma, José e Maria. Irma foi o primeiro e mais violento, para nossa sorte ele passou suficientemente afastado, não causando maiores estragos, mas destruiu completamente as ilhas caribenhas de São Martinho e São Bartolomeu. José passou dias depois seguindo a mesma rota, acabando de destruir o que havia sobrado. Uma semana depois chegou Maria, passou muito próximo da nossa casa, situada na parte atlântica da ilha. Alguns dias antes falava-se de um furacão categoria dois, fraco. Conforme ele se aproximava, aumentava sua força, até chegar em categoria quatro, quase alcançando a força de Irma, categoria cinco, a mais forte. Foi dado alerta violeta: confinamento em casa ou abrigos. Nossa casa literalmente tremeu apesar de bem preparada, todas as janelas e portas possuíam 31 uma grade de ferro como as usadas em lojas. Foi uma longa tarde escura com ventos assustadores, chuva torrencial. Pela pequena janela do banheiro eu acompanhava a evolução; ao ver árvores e telhas voando não tive mais coragem. A natureza mostrava sua força em uma potente espiral de ar e água formada na travessia do Atlântico desde a África. Ao medo de ir tudo pelos ares misturava-se um deslumbramento com aquela inquietante beleza. Nas histórias dos velhos majores da ladja, a natureza assume seguidamente um tom mágico. Um profundo respeito, provavelmente construído ao longo de diversas gerações obrigadas a enfrentar furacões, tempestades tropicais, nuvens de areia vindas do Saara, abalos sísmicos, vulcões cuspidores de fogo. Se atualmente com todos os satélites e previsões, os furacões continuam assustando e surpreendendo, como não deveria ser antes, quando, sem anúncio prévio, eles chegavam de repente, assolando as ilhas e as gentes. Inevitável adotar um tom reverencial diante desta força cósmica capaz de montar marés, tremer a terra e lembrar de nossa efêmera existência. Este particular sentimento de beleza em convulsão faz da natureza na Martinica algo assustadoramente delicado. Terror e fascinação presentes nas letras e cantos da ladja – lugar de respeito onde o encantamento evoca ao incontrolável, ao gesto, ao canto, ao tambor, ao ancestral ato de enfrentar a natureza através da arte. Retomei as aulas de ladja e comecei o aprendizado de toques de tambor com David no grupo Lézinisyé. Treinei também na associação AM4. Fui a diversos eventos de ladja e bélé. Percebi bem a dinâmica entre as quatro principais associações: AM4 (Mi Mes Manmay Matinik), Lézinisyé, Lésprit Danmyé e ADPKM (Asosyasyon pou défann ek palant jé kilti matinik) e também entre os lutadores independentes. Meu primeiro treino de danmyé desta temporada foi na associação AM4. Três horas e meia de um completo esgotamento físico, comandado pelos irmãos Ethienne e Said Dru. Antes de começar conversei com Pierre Dru, autor de uma tese 37 de mestrado sobre o danmyé defendida na Universidade das Antilhas. Ele me perguntou: 37 DRU, Pierre. Aux sources du danmyé: Le wolo et le ladja. Memoire de Master. CRILLASH:EA 409 – Centre de Recherche Interdisciplinaires en Lettres, Langues, Arts et Sciences Humaines. Martinique. Université des Antilles et la Guyane. 2011. 32 – Você já comparou os filmes antigos de capoeira com os de danmyé? Quando vi fiquei impressionado com a semelhança. – Já. Respondi e acrescentei. – É verdade, também achei. Principalmente os mais antigos, como alguns onde aparece o mestre Pastinha, seus movimentos lembram muito os dos lutadores de danmyé nos filmes de Katherine Durhan. – Eu já li sua tese. Utilizo vários trechos seus na minha. – Sério? Ótimo! Fico honrado. – Pierre, você conhece as gravuras de Rugendas sobre a capoeira no Brasil? – Não. – É impressionante também a semelhança com o danmyé, eu arriscaria dizer que lembram mais o danmyé do que a própria capoeira. – Neles aparece apenas um tocador de tambor com o tocador de tibwá atrás. Mesmo os movimentos corporais são mais parecidos. – Nestes exemplos ficam claros a raiz africana destas práticas, ramificações da diáspora adaptando-se aos terrenos inóspitos da escravidão. – Um dia destes podemos marcar uma entrevista, Pierre? – Claro. Sete homens e três mulheres treinavam no tatame de um dojô de judô. Pierre cantava e seu irmão George tocava o tambor numa manhã quente e ensolarada de domingo. A associação AM4 foi uma das principais responsáveis pela sistematização e retomada da ladja nos anos 1980. Atualmente ela é comandado por Pierre Dru (lutador e pesquisador) seu irmão George Dru (lutador, tocador de tambor e professor de história) e seus filhos Etienne e Saïd Dru (também lutadores e tocadores de tambor) e o experiente lutador e cantador, um dos mais antigos ainda em ação, Victor Treffe. Eles possuem uma bem estruturada rede de ensino e diversas publicações sobre o tema. Os treinos de que participei na AM4 foram comandados pelos jovens Popy, Ethienne e Saïd Dru. Pierre Dru é responsável pelo canto e seu irmão George pelo tambor. Os treinos estão sempre cheios, pessoas de diversas idades se esforçam para acompanhar cerca de quatro horas de atividade física intensa. Contudo, há pouco confronto real e contundente, eles são adeptos do danmyé amisé (danmyé amigável) e investem paralelamente na investigação cultural. 33 Em certas ocasiões, percebi um certo desconforto, por parte de alguns exintegrantes da associação e antigos lutadores, em relação a esta produção intelectual da AM4. Em um misto de inveja e frustração, muitos atacam a família Dru de monopolizar a informação e se beneficiar com isso, nem sempre dando o devido crédito e retorno aos antigos mestres, que contribuem com entrevistas e ensinamentos. Lézynisyé foi fundada em 2009 por David-Alexander Fatna, ex-integrante da AM4. David vem de uma família de tradição na luta, é um exímio lutador, tocador de tambor e cantor. Ele dá aulas de ladja, bélé e tambor na comunidade de Saint-Esprit. Embora ele possua bastante alunos de bélé e tambor, na ladja ele atualmente está sem nenhum aluno, eu e Chris, um martinicano que aprendeu capoeira com um mestre brasileiro que esteve na Martinica e hoje é professor, éramos os únicos alunos até minha partida. David era o professor de Mehdy, lutador que me recebeu em sua casa e virou um grande amigo. Eles tiveram um desentendimento na ocasião do lançamento do CD da associação, e Mehdy, resolveu continuar como lutador independente. Talvez David tenha tão poucos alunos por defender a prática do danmyé séryé (danmyé sério), onde os golpes são reais e contundentes. Segundo ele era assim no passado, foi assim que ele aprendeu na sua família e é assim que ele luta e ensina. A associação Lésprit danmyé-bélé é comandada por Leon Désert, também ex-integrante e um dos fundadores da AM4, provavelmente o lutador mais experiente dedicado ao ensino atualmente. Ele começou a praticar danmyé em 1966 no bairro de bo-kannal, segundo ele, o grande centro da luta daquela época, que já contava sete escolas. Ele defende a democratização da luta, sugerindo que ela esteja se elitizando e perdendo seu caráter popular, e com isso, se tornando uma arte marcial como o judô, sistematizada. Conforme suas palavras: “estamos perdendo o jogo de cintura, o improviso, o ou wè’y ou pa wè’y do danmyé, assim como o Brasil perdeu seu futebol arte”. Lésprit Danmyé-bélé luta para a ladja retornar para as pessoas mais simples. Léon também defende a prática do danmyé amisé (danmyé amigável), para ele, o danmyé sérié (danmyé sério) é uma invenção dos brancos békés, combates onde seus lutadores eram colocados em jaulas para lutar, escravos que lutavam até 34 a morte. Léon é a favor da diversão, quer que o povo ame o danmyé. Ele prefere buscar um jogo mais técnico e menos agressivo, como se pratica na África. – Busco os legados africanos do reino de daomé, por exemplo, suas lutas. – Técnicas que chegaram no solo martinicano e deram origem a essa luta de combate que é o danmyé. – Não é uma dança, heim! – Não se dança o danmyé. – Se cadencia o danmyé. – O danmyé é um combate cadenciado. A associação ADPKM - Asosyasyon pou Défann ek Palant jé Kilti Matinik (associação para defender e divulgar os jogos e a cultura martinicana) é presidida por Jean Noël. Um experiente lutador, cantor, tocador de tambor, além de dançarino de bélé. Também é ex-integrante da AM4. Apesar de ter sido a associação na qual tive menos proximidade, pude perceber, através de seus eventos e pela entrevista que realizei com Jean, o comprometimento político da entidade. Sempre há uma homenagem a algum escritor, agitador político ou músico experiente em seus eventos. Coincidentemente com a minha chegada começavam os preparativos para o Samedi Glória 2018. Evento tradicional comemorado há vinte anos. Geralmente, no primeiro sábado após a quaresma, lutadores de outras danças de combate de países africanos e da diáspora são convidados para um intercâmbio de saberes. Neste ano, foi proposto em uma espécie de contracorrente, um grande torneio katel danmyé. O propositor além de lutador de ladja, é um experiente judoca chamado Luc Rucort, presidente da SDM – Sosyété Danmyé Matnik. (Sociedade Danmyé Martinica) Diversas reuniões foram realizadas, algumas para definir as regras e regulamentos, outras para colocá-los em prática. Até mesmo um grande debate teórico, com a presença de sociólogos, lutadores e curiosos foi organizado para refletir sobre “Ladja: cultura ou esporte? Uma difícil e polêmica tarefa”. Participei de diversos destes encontros entre associações de danmyé. O primeiro foi na capital Fort de France, no bairro de Bòkannal. O objetivo era a discussão e organização das regras do primeiro torneio martinicano de danmyé. O evento foi presidido por Luc Rucort e quinze pessoas representavam duas associações. Na pauta do dia estava o teste prático das regras. 35 Melancolia no ar de quem tenta desesperadamente se fazer ver. A data prevista para o evento seria o próximo “samedi gloria” no dia 31 de março de 2018. Com a maioria a favor, uns mais convictos outros nem tanto, o único consenso era de tentar fazer algo para sacudir, promover a ladja. Conciliar tradição e modernidade. Se fazer comparar a outras lutas, ocidentais, orientais e africanas. A proposta estava literalmente dividida entre as quatro associações: AM4 e Lézinisyé estavam a favor, Lésprit Danmyé contra e ADPKM dizia não ter conhecimento do torneio até o dia em que falei com seu presidente Jean Noël, em janeiro. Com o tempo fui percebendo que esta divisão é constante, não é apenas um fato isolado relacionado ao evento. Mesmo os lutadores reconhecem esta falta de união entre as associações. Em uma conversa com o lutador independente Rennaud Bernard, proprietário do Lokau-a, um centro cultural de resistência na comunidade rural de Gros-morne, ele me disse: – Vivemos um momento do danmyé onde ele tenta se livrar de uma péssima reputação do passado no inconsciente popular. – É com os filhos das novas gerações de iniciados que esta imagem começa a desaparecer, algo muito recente, isso vale para o bélé também. – Mesmo na escala da Martinica, somos uma pequena comunidade a praticar o danmyé. – Alguns grupos se formaram, mas se recusam a trabalhar juntos. – Na verdade somos uma pequena comunidade dividida. – Existem muitos praticantes de danmyé que vem do mundo esportivo, do judô, e a ideia atual é transformá-lo em uma arte marcial sistematizada. – Mas a arte negra nunca foi estruturada desta forma, será que precisamos disso? – A ideia de um torneio é tentar promover o danmyé numa escala regional, assim como criar uma entidade regional, é isso que está acontecendo. – Não que isso seja um sofrimento, uma dificuldade, mas como tudo que se cria, demanda tempo. – Porque isso se cria agora? – Porque a Martinica é jovem. – É muito jovem e com deficiências identitárias enormes. Do convívio com os praticantes de ladja, minha percepção identificou-se com a afirmação do escritor Frantz Fanon, que diz: “o homem é um SIM vibrando com as 36 harmonias cósmicas. Desenraizado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma após as outras, as verdades que elaborou...” 38 Fanon, Aimé Césaire, René Ménil, Joseph Zobel, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau, Raphael Confiant e Jean Barnabé são fundamentais na formação de uma consciência crítica martinicana, ao se posicionarem diante da tensão histórica gerada a partir da diáspora africana. Autores que, desde Césaire e Fanon, assumem o papel de escrever o contraponto da História oficial dos colonizadores, escrita por franceses da metrópole, através de um movimento que contempla a alteridade. Busca aliada a fortes interlocuções africanas e francesas como as de: Aimé Césaire com André Breton e Leopold Senghor, Édouard Glissant com Gilles Deleuze e Felix Guattari, Frantz Fanon com Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre. Como base teórica, optei em dar preferência aos escritores martinicanos e suas ramificações. Os próprios lutadores me incentivaram a conhecer estes escritores, principalmente Frantz Fanon. Acredito que tal escolha também justifiquese pela potência e qualidade desta produção literária. Depois, com a intimidade naturalmente conquistada nos treinos, nas lutas e algumas doses de rum nas festas de Saint Marie, quando as línguas assumem a valentia e as máscaras se esmaecem, ouvi comentários do tipo: “Fanon foi fundamental, mas ele não falava crioulo” ou “Patrick Chamoiseau se aproveita da cultura popular e do prestígio que alcançou através dela, para ocupar importantes cargos públicos e ganhar muito dinheiro”. Eles deixam transpassar velhas chagas e desconfianças entre a oralidade e a escritura, entre os lutadores de ladja e os intelectuais. Bases híbridas para pensar nas fricções entre identidade, memória escrita e inscrita no corpo. Nestes tempos de alquimia das raças e de nacionalismos, é bom frisar que esta proposta não carrega a pretensão de recuperar, ou restaurar uma identidade tradicional, e sim agir como agente problematizador no já complexo processo de transmissão de tradições na contemporaneidade. 39 Como diria Fanon, é preciso desconfiar sempre. 38 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2008. p.26. 39 Ver CASTRO, Maurício Barros de. Mestre João Grande: na roda do mundo. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional / Editora Garamond, 2010. 37 Ao escolher nomear a tese de Wè’y ou pa wè’y – ladja e as máscaras do visível, e inserir o termo “máscaras” no subtítulo, me refiro principalmente à capacidade de equilibrar o que deve ser ocultado ou trazido à tona pelos lutadores, o poder de mascarar um golpe no confronto da ladja. Máscaras também podem esconder ou revelar características do mascarado, e até superpor algo estranho ao mascarado, algo com que ele se reinvente. Mas seguindo sempre o princípio da dubiedade na língua crioula, o termo também faz alusão ao livro Pele negra, máscaras brancas, grande clássico de Fanon, e se refere às cicatrizes da escravidão e do colonialismo brutal. Complexos vividos pelo negro, mimetismos, sentimentos de inferioridade, traumas presentes até hoje. Chagas ainda abertas, combatidas diariamente no universo dos lutadores da ladja. Nesta complexa relação entre a Martinica e a França, o danmyé é um importante vetor em torno desta questão da identidade, um centro de resistência, como me explicou Jean Noël, presidente da associação ADPKM em uma conversa: – Efetivamente o danmyé é uma prática de resistência. – Depois de muitos anos de treino nos damos conta do envolvimento em uma dinâmica de resistência. – Porque a situação da Martinica não mudou nada. – Tivemos acesso à modernidade, mas na mentalidade e na política martinicana não tivemos muita evolução. – Fomos colonizados e depois disseram que nos deram a departamentalização. – Nos disseram que teríamos direitos iguais aos da França. – Na realidade, nos demos conta que: – Somos franceses à parte. – E não a parte inteira. Durante minha residência de seis meses na Martinica tive a chance de participar de um momento crucial da ladja. Uma encruzilhada entre dois caminhos: cultura ou esporte? Esta era a questão da vez, discutida em palestras, encontros e conversas informais entre lutadores. Como adaptar uma prática tradicional ao contemporâneo? Como fazê-la repercutir, ter mais adeptos, vibrar mais amplamente na Martinica e além? 38 A ladja já é um exemplo bem sucedido de transmissão de conhecimento através da música, no soar da pele sonora do tambor e na oralidade de seus lamentos. Ela é capaz de complementar a produção literária anticolonial, de expandir o poder muitas vezes limitado da palavra escrita. É uma manifestação performática capaz de descolonizar o corpo, através do gesto irruptivo – harmônico e dissonante – como se espera das fortes expressões artísticas na contemporaneidade. No entanto, o número muito reduzido de praticantes e o preconceito ainda inquieta as associações e os lutadores. Neste sentido, busca-se uma forma de modernizá-la, torná-la mais atraente. É um caminho inevitável, porém perigoso. Há um grande risco, neste processo, de se perder, em máscaras embranquecidas, tradição e força. O objeto desta pesquisa, é o envolvimento com toda esta cultura relacionada à ladja e seus lutadores, um universo repleto de mitos e misticismo. Uma proposta onde todos os modos de contato e articulação de relações unem-se aos registros e proposições artísticas, assumindo juntos a vivência como condição de obra de arte em si. Sublinho as experiências corpórea-sensitivas neste processo, para apresentar formas de resistência cultural, que se destilam em processos criativos. Seja através da luta destes corpos rítmicos, ou destes corpos verbais, das representações artísticas como os filmes de Katherine Dunham, ou, do emaranhamento destes, para enfrentar uma ordem constituída. Ideias em movimento para alcançar uma potência de transformação social, ancoradas na força poética da resistência, possíveis através da arte. Esta pesquisa parte de inquietações surgidas durante minha prática e convívio neste universo, onde tentei assimilar seus princípios fundamentais. Em algumas lutas a agilidade do lutador parece enganar a gravidade e aliviar o fardo da diáspora, corpo que carrega heranças em um frágil equilíbrio, que resiste aos tensionamentos impostos pelo peso e o contrapeso da existência. Em outras situações percebi a capacidade de lutadores de esquivarem-se de um golpe antes mesmo que ele seja dado, percepção, reflexo capaz de evocar imagens ausentes – “ou wè`y ou pa wè`y”. Reflexos corporais embalados por um estado de consciência alterado pela síncope de seu tambor. A expressão ékilib/dézékilib me foi transmitida por David, ele a utiliza como ferramenta didática, para transmitir a complexidade dos movimentos e a ligação com 39 a experiência da escravidão, onde se fazia necessário achar o equilíbrio no desequilíbrio. A AM4 em uma de suas publicações, também se refere ao ékilib/dézékilib como uma das atitudes do corpo para se alcançar o ou w’èy ou pa wè’y: ...utilização em permanência do jogo de contrários, o danmyé é a arte da gestão do duplo aspecto, do ou wè’y ou pa wè`y: ékilib / dézékilib (equilíbrio / desequilíbrio), – kò kouvè / kó dékouvé (corpo coberto / corpo descoberto) – jes ouvé / jes séré (jogo aberto / jogo fechado) – kònba direk / konbá déviyasion (combate direto / combate desviado) – lenndé / lélé – asou kó / an déplasman (corpo parado / em movimento) – vitman / dousman (rapidamente / vagarosamente) – kò mol / kó bandé (corpo mole / corpo 40 rígido) – kò lou / kò légé (corpo pesado / corpo leve)... Estes exemplos deixam claro que ékilib/dézékilib não é um fundamento da ladja como o ou wè’y ou pa wè’y. Ele é apenas um caminho, entre outros, para se chegar até ele. Muitos lutadores, inclusive, preferem utilizar o termo “finta” com a mesma finalidade, movimentos de corpo que parecem desequilibrados, capazes de induzir o oponente ao erro, à desatenção. Existem diversas expressões em crioulo neste sentido para nomear simulações, desequilíbrios, como: fè wol boulé (se fingir de bêbado), fè wol ababa (fingir não saber jogar), fè wol fatidjé (se fingir de cansado)... 41 Entre diversas outras possibilidades, priorizei investigar este corpo em frágil equilíbrio ékilib/dézékilib como estratégia para se alcançar o ou wè`y ou pa wè`y. Lembrando que as expressões em crioulo, são caminhos abertos, dúbios, dissimulados, circulares como a própria roda de ladja. Apresento a tese com este deâmbulo, propositalmente construído fora do formato clássico de uma introdução. E mais duas partes: A primeira parte: “ékilib/dézékilib” é uma narrativa literária onde apresento o universo da ladja. Nestes textos misturam-se reflexões, pesquisas bibliográficas, conversas, entrevistas e vivências. A segunda parte: “ou wè`y ou pa wè`y” é exclusivamente visual, composta por uma narrativa fotográfica de 84 imagens. A primeira parte é discutida em seis textos: “Peso”, “Tensão”, “Contrapeso”, “Reflexo”, “Síncope” e “Impressão”. 40 AM4 Association Mi Mes Manmay Matinik. tradition Danmyé-kalenda-Bélé de Martinique Tome.3, les djérié. K éditions, 2017. Fort de France, Martinique. p.78. 41 IDEM. p.79. 40 “Peso”, “Tensão” e “Contrapeso” apresentam e questionam este precário equilíbrio que marca uma sociedade pós-colonial martinicana, através de paralelos entre a ladja, a literatura local e suas interlocuções. “Síncope” estabelece conexões, não exclusivamente sonoras, com a capoeira e a luta senegalesa. “Reflexo” investiga a busca de um equilíbrio estético para se chegar ao “ou wè`y ou pa wè`y”. Aborda a arte de uma forma ampla através de questões relacionadas à matéria plástica, imagem, simulacros, processos escultóricos, artistas referenciais e imaginário popular. Traçando contrapontos e atravessamentos entre o lá e o cá do pós-colonialismo, no que se refere às atuais rotas da arte e as tentativas de esfacelamento de fronteiras físicas e culturais. “Sobrevoo” ao invés de concluir a pesquisa deixa ela aberta, circular como a roda de ladja. Nela apresento experiências de quem literalmente lutou junto, sofreu equilíbrios e desequilíbrios e arriscou-se a voar. Escrita somada sem hierarquia a uma narrativa fotográfica, linguagem pela qual mantenho uma intensa ligação há quase trinta anos. Um exercício aberto de sobreposições de máscaras, do que deve ser revelado ou ocultado – vê mas não vê. São 81 imagens, geralmente apresentadas em duplas, justapostas ou se enfrentando em um combate imaginário. O objetivo não é mostrar a luta através de uma fotografia de estilo documental, ou, simplesmente, exemplificar a escrita da primeira parte. Estas imagens, colhidas a partir de uma cartografia pessoal navegam autônomas e livres das amarras de um discurso linear. Acredito ter alcançado através desta construção visual um estado de percepção bem próximo do que acredito ser o ou wè'y ou pa wè'y. Por isso, batizei esta parte visual com o nome do principal fundamento da ladja e objetivo central desta busca. Junto com a tese apresentei no dia da defesa de doutorado a exposição "Costas de vidro", composta por fotografias, vídeos, objetos e instalações escultóricas como parte integrante do trabalho. As fotos da mostra encontram-se no apêndice, juntamente com um texto do meu orientador anexados no final da tese. Poéticas que, em vez de apresentarem uma conclusão, reforçam o caráter encruzilhante da pesquisa, onde rotas e poéticas se encontram mas não se fecham, sustentam-se no respeito ao outro. 41 A proposta é navegar nos contrassensos destes mares agitados. Assim como no jogo da ladja, a questão principal não é definir um ganhador e um perdedor, esta luta é uma troca franca. Parto da experiência carnal para apresentar formas de resistência cultural, capazes de destilar um processo criativo. Seja através da luta, do ritmo, verbo, matéria, imagem, olhar, magia, ou, do entrelaçamento destes. Ideias em movimento para alcançar uma potência de transformação social, ancoradas na força poética-plástica. Como se o tempo presente dessas águas do Caribe, trouxesse um cataclismo no espaço da realidade empírica, abrindo nessa ilha, o ciclone da imaginação. 42 1 EKILIB / DESEKILIB 1.1 Peso Existe peso maior do que a própria existência? Crocodilos engolem pedras para alcançar um mergulho mais profundo. Na pequena ilha da Martinica o viver carrega o fardo do tempo e suas cicatrizes. A ladja traz o peso da diáspora na carne de seus lutadores e no lamento de seus cantos. Neste combate bailado afrocaribenho, vibrações sincopadas do tambor e do canto aliciam os corpos de seus lutadores para o transe. Metaforicamente a ladja se apresenta como um enredo possível de resistência – é a pedra que possibilita o mergulho nas raízes africanas. Uma luta que enfrenta o combate da ocidentalização “à la française” que assola os novos devires, sobretudo dos jovens, que sonham com suas potentes motos, suas roupas “cool”, voando nos asfaltos labirínticos desta ilha, que sempre acaba no mar do retorno adiado. Passagens secretas atravessadas entre dois continentes. Nas encruzilhadas da capital Fort-de-France, este embate físico e cultural vive no centro da escuridão ensurdecedora dos trabalhos espirituais, fazendo o vento parar em dias de ventania – quietude de peso suspenso em tempo mágico. Trabalhos fortes, escondidos na arte da transformação ou wè’y ou pá wè’y, que em crioulo quer dizer “vê mas não vê”. Pesos que dispensam visualidades fortes, percepções óbvias, anuladas, desnecessárias pelos anos de repetição. Lentamente um tambor sincopado aparece ao fundo, como se o som buscasse o ar, balançando sua existência em um clamor, alimentando-o, fazendo-o dançar. Aos poucos a roda de ladja se forma, corpos esfregados por este mesmo vento se encontram nos vários pesos e seus tempos, silêncios e contratempos atravessados por uma frenética síncope, que inunda o tempo linear dos corpos. A noite cai lentamente. Tudo se cala ao redor. O tambor sacode a terra. O tibwa 42 42 Tibwa é como são chamados os dois bastões de madeira batidos na parte traseira do tambor por um segundo tocador sentado ao lado do instrumento. Ele faz a marcação rítmica na música da ladja e do bélé (tac pi tac pi tac). Esta marcação deixa o tocador sentado em cima do tambor mais livre para fazer o solo. O toque do tambor é bastante complexo na Martinica, existem diversos estilos de batidas no tambor, mais graves, agudas, secas, com a palma da mão aberta, fechada, ou só com 43 marca o ritmo para não deixar que o reviramento atravesse os corpos, em um transe sem volta. Chega a hora do lamento, o cantor humildemente apropria-se deste ar para fazer o vento dançar. Começa mais uma roda de ladja, sacudindo a terra aos corações. É chegada a hora dos majó pesarem na balança o controle deste tempo, deste ar. Trazendo das entranhas desta ilha os mitos antepassados desta luta, apresentando aos olhares, a arte dos iniciados. Uma breve chuva cruza o caminho do ar, tentando acalmar o inquieto encontro destes mundos. Vida e morte molham a terra, trazendo o odor do tempo e o peso do que está submerso – invisível. Em pleno carnaval a noite percebe e cala-se. Muitos deles chegam ainda fantasiados com suas máscaras brancas e pretas e suas peles. É uma quarta-feira de cinzas, todos se vestem com estes extremos monocromáticos para fugir do tom cinzento deste pó que remete à morte. É dia de queimar Vaval, o personagem mítico desta festa, que ao abusar de libertinagem, sexo e álcool durante todo o carnaval, deverá ser punido. A roda alça voo, arriscando-se a roubar a dimensão da noite e seus mistérios impronunciáveis – mudos – que só se deixam aceder a poucos iniciados, suficientemente corajosos para travar esta batalha. Tac pi tac pi tac... é batido com dois pedaços de pau por um dos tocadores na parte traseira do corpo do tambor para marcar o ritmo. Marcação que deixa livre o intempestivo tocador, montado no instrumento ele parece domar um leão, com suas contradições temporais reverberadas no couro. As letras das canções trazem à memória aventuras de valentões, suas brigas e histórias de amor. Noite quente que se anuncia. O tambor também luta, lança sua malandragem sincopada para o lutador de sua preferência, luta com ele, marca com força o ar sonoro, lança-o na vertigem da luta, transe sem volta de guerreiros. A força dos golpes é real e contundente, peso do outro na pele, sem teatralidade folclórica para turista ver. Sem artimanhas filosóficas – apenas a destreza do corpo como diálogo. Corpo-carne que carrega antepassados e os lança no presente. Mais um carnaval. Mais uma roda do tradicional danmyé nas ruas da capital. Mais um exercício de negociação identitária que deixa marcas de sangue no asfalto, nas calçadas cimentadas em eterna negociação com a natureza, que a todo tempo luta movimento dos dedos. Geralmente o tocador deixa um de seus pés descalço para pressionar o couro com seu calcanhar, deixando desta forma o som mais grave ou agudo. 44 para retomar seu espaço, reflorestando e encantando a modernidade técnica e social implantada forçadamente nas colônias. Uma força plástica que constrói a síncope da narrativa histórica, quebrando o tempo forte que a Europa sonhou: linear e, sobretudo, lucrativo. Corpos que se permitem vadiar, encontrar o sentido de suas próprias narrativas. Se a história remete àquele que vê, a ladja remete àquele que vê mas não vê. É justamente neste desencontro, do equilíbrio no desequilíbrio, que reside a potência que mantém viva uma memória corporal e oral, que não sucumbe ao peso do passado e de tramoias do presente. Este combate cadenciado perdido no Caribe traz, através de uma força plástica, novas reconfigurações míticas, sem início nem fim, mas circulares como o palco da luta, como a roda da terra, que plana no espaço lentamente, para deixar que este movimento, ao qual chamamos tempo, cure as cicatrizes de suas rotas mais perversas. Desde o primeiro treino aprende-se que a luta da ladja se fundamenta na fenomenologia mística do conceito de ou wè’y ou pa wè’y e na gestão de energia. Na tênue barreira espacial que separa dois lutadores, os espaços imaginários são intercalados por gestos que subvertem o equilíbrio, potentes no ataque e econômicos na defesa. O peso do ar, que alimenta o sistema cardiovascular é utilizado com maestria pelos mais experientes. Corpos submissos aos movimentos, acedidos pela repetição e compassos do tambor, eles fluem naturais como o respirar. Energias cadenciadas no ritmo como disse Senghor: É a mais sensível e a menos material das coisas. É o elemento vital por excelência. É a condição primeira e o signo da Arte, como a respiração o é da vida; a respiração que se precipita ou esmorece, torna-se regular ou espasmódica, conforme a tensão do ser, o grau e a qualidade da emoção. Assim é o ritmo na sua pureza primitiva, assim o é nas obras primas da Arte Negra, particularmente na escultura. Ele é feito de um tema – forma escultural – que se opõe a um tema irmão, como a inspiração e a expiração, que é repetido. A simetria não engendra a monotonia, o ritmo é vivo, é livre... É assim que o ritmo age sobre o que há de menos intelectual em nós, despoticamente, para nos fazer penetrar na espiritualidade do objeto; e essa atitude de abandono que nos é própria, é, ela própria, 43 rítmica. As letras são cantadas em crioulo, língua de nações imaginadas na diáspora, código de guerreiros em fronteiras arenosas entre o poder e a sobrevivência. 43 Léopold Sédar Senghor, “Ce que l’homme noir apporte”, in L’homme de couleur, pp. 309-310. Apud: Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2008. p.113. 45 Conversa de valentes. Não se trata de coragem de louco, que é inconsciência,44 imprudência ou propensão suicida. A língua acompanha a linguagem do corpo, sua força e seu peso. Corpo e fala são a casa inteira, a única garantia no tempo vulnerável dessa travessia. O crioulo é uma língua cadenciada que remete ao canto, ela possui um ritmo sincopado construído na supressão de diversos fonemas. Uma língua nascida na escravidão como um último grito para a alma não se perder nos maremotos de vidas separadas, culturas subjugadas, vida à deriva dos que sobraram só com o ritmo escondido no corpo, para reclamar o direito de ser e estar, código capaz de aplacar a tristeza através do encontro com o outro. A pele do tambor envia as vibrações do combate. O tocador tem um papel fundamental na roda da ladja. O tambor é o peso da vida, é ele que sacode os espíritos e toca no mais fundo do corpo, como diz o experiente lutador David: “é ele que acende o fusível da transcendência”.45 Instrumento básico e profundo, que tem o poder de desafiar as margens da ordem social. Seu toque resiste à obediência cega, aos sistemas hegemônicos de opressão. Em corpos balançados pelo tambor não há espaço para mentira. É ele que envia as mensagens de equilíbrio e desequilíbrio, ataque e defesa, seu poder é capaz de dar força ou fraqueza a um lutador de ladja, ou mesmo desestabilizar uma nação inteira. Peso de perdas que transbordam em sonoridade, subvertendo o ar em melodia para falar aos espíritos. O escritor Patrick Chamoiseau explica que os tambores comunicam para aqueles que sabem entender “que se colocam em estado de liberdade diante deste fenômeno. Expressão de uma voz com timbre de quem bebe rum, sobre-humana mas familiar”. 46 Ritmos que conjugam a violência e o sagrado para subverter a lógica. Reviramento de entranhas de seres habitados no engajamento do corpo em sua criação. Uma luta bailada que encontra o equilíbrio no desequilíbrio e, por isso, surpreende, desestabiliza o óbvio, como se espera da arte. Gesto que estabelece traços de resistência, porque arte é combate. Ritual que tenta subverter o peso em um suplemento de vida, o ar para mergulho profundo – resistência. 44 MÃE, Valter Hugo. A desumanização. Cosac Naify. São Paulo. 2014. p.103. 45 FATNA, David. Depoimento ao autor em 23/02/2016 46 CHAMOISEAU, Patrick. Solibo Magnifique. Gallimard. Barcelona. 2013. p. 35. 46 1.2 Tensão Em um pequeno centro cultural, localizado em uma das zonas mais pobres de Fort-de-France, capital da Martinica, no tradicional bairro dos valentões Bò kannal, acontece uma aula de ladja. Crianças francesas e martinicanas, negros, mulatos e brancos aprendem esta arte da diáspora africana. O professor David não tem medo de adaptá-la aos novos tempos, inserindo esta prática nas escolas e centros culturais da cidade, sempre tendo o máximo cuidado para manter sua ancestralidade. No muro do lado de fora deste centro, uma grande pichação escrita em crioulo: “Mési Aimé Césaire, neg fondamental (obrigado Aimé Césaire, negro fundamental) quebra a aparente harmonia e traz à tona os constantes conflitos que permeiam esta ilha, com as chagas de um colonialismo brutal. Esta cena aparentemente banal, traz elementos para se pensar a ladja em paralelo ao importante papel do escritor, poeta, político e pensador martinicano. 47 De um lado, temos esta ação performática do corpo e sua luta para não se deixar domesticar na trama sócio-política desta ilha. Do outro, uma prolífica e intensa produção intelectual dos diversos pensadores martinicanos, marcos na história da intelectualidade negra mundial. Em um passado próximo e turbulento, Aimé Césaire e a ladja aparecem como pontos metafóricos de um precário equilíbrio pós-colonial, onde a arte, tenta se posicionar diante da tensão. Como disse Césaire: Entre colonizadores e colonizados, só há lugar para a corveia, a intimidação, a pressão, a polícia, o imposto, o roubo, a violação, as culturas obrigatórias, o desprezo, a desconfiança, a soberba, a empáfia, a grosseria, as elites 48 descerebradas, as massas aviltadas. 47 Aimé Fernand David Césaire nasceu em Basse-Pointe, Martinica em 26 de junho de 1913 e morreu em Fort de France no dia 17 de abril de 2008. Foi escritor, poeta, ensaísta, dramaturgo e político. Junto com Léopold Sédar Senghor fundou o movimento negritude. Ele foi considerado por André Breton um dos mais importantes poetas surrealistas, embora ele não se considerasse um surrealista. Paralelamente ele construiu uma carreira política onde foi deputado e prefeito da capital Fort de France por cinquenta e seis anos consecutivos, de 1945 à 2001. 48 CÉSAIRE, Aimé. Discours sur le colonialisme. Paris. Éditions Présence Africaine. 2013.p.23. Tradução nossa: “Entre colonisateur et colonisé, il n’y a de place que pour la corvée, l’intimidation, la pression, la police, l’impôt, le vol, le viol, les cultures obligatoires, le mépris, la méfiance, la morgue, la suffisance, la muflerie, des élites décérébrées, des masses avilies.” 47 Enquanto as rodas de ladja alçavam voo nas festas patronais de diversas comunidades martinicanas, o jovem estudante Aimé Césaire iniciava uma outra luta em Paris – pela consciência negra. Ele fundou em 1934 junto com Léopold Sédar Senghor 49 e Léon Damas a revista L’etudian Noir.50 Pela primeira vez, escritores negros recusavam os modelos literários dos brancos, proclamando sua negritude.51 Termo que daria origem ao importante movimento literário e ideológico de consciência negra. Convém ressaltar que no ano de 1937, guerreiros africanos da tribo Nyambi, eram exibidos no jardim zoológico da Acclimation de Paris, em um evento que costumava-se chamar “zoo humains. 52” O conceito de negritude já nasce sob o signo da tensão neste período entre guerras, sua força é diretamente proporcional aos contra-ataques 53 que ele sofre até hoje. Ao propor uma tomada de consciência por parte do negro, a revolta é inerente ao termo, como reflete o próprio Césaire: A negritude resulta de uma atitude ativa e ofensiva do espírito. 49 Assim como Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, teria um papel importante na política, ele se tornaria futuro presidente do Senegal. 50 “O estudante negro” tradução nossa. 51 52 CESAIRE, Aimé . Les armes miraculeuses. Gallimard. Paris.France. 2009. p.156. • líder da revolução Haitiana. • Disponível em: http://www.rfi.fr/france/20111129-pascal-blanchard-exhibition-zoos-humains-quaibranly-rfi-colonialisme-esclavage-venus-hottentote-racisme-afrique Acesso em 24/05/16 53 Diversos escritores negros e crioulos criticaram este conceito de negritude, julgando-o muito redutor. Uma das críticas mais famosas foi feita pelo escritor nigeriano Wole Soynka: “O tigre não proclama sua tigretude, ele salta sobre a presa e a devora”. Kabengele Munanga destaca como uma das críticas mais perspicazes à negritude a do escritor martinicano Réné Ménil em seu livro Tracées: identité, negritude, esthétique aux Antilles (1981), onde faz uma síntese de diversos pensamentos críticos ao conceito de negritude e reconhece o fundamento histórico da negritude enquanto resposta negra ao racismo branco baseado na colonização, sendo eficaz no seu início, contribuindo para o reagrupamento do negro na diáspora. Mas a negritude, segundo Ménil, não foi capaz de romper definitivamente com o racismo branco. Ao contrário, ela constituiria um novo mito, inverso apenas na cor. “Nas duas mitologias, no racismo branco e no antirracismo negro (negritude) há um fundamento comum: a verdade e o valor do homem estão contidos na raça. Ménil descobre, na elaboração da negritude, um encontro entre Senghor e Arthur Gabineau: ”Não é engraçado, com efeito, reencontrar instalado no centro da negritude o mesmo negro que o racismo nevrótico de Gobineau imaginou um século antes para justificar a conquista colonial da África negra – um negro afeado, bestilizado com prazer? Não é instrutivo constatar que um racismo e um antirracismo, apoiados um no outro para se combaterem, se contradizerem, brigarem, acabam por se emprestar suas ideias favoritas e por se alimentar nas mesmas fontes filosóficas. (Ménil, 1981, p.91-92)”. No seu Essai sur l’inégalité des races humaines, Gabineau define o negro como a criatura mais energicamente amarrada à emoção. Por seu lado, Senghor, na intervenção no primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros (Paris,1956), define o negro como emoção, homem da natureza”. Apud. MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. – 3.ed. 1. Reimp – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p.79-80. 48 Ela é explosão, e explosão de dignidade. Ela é recusa, eu quero dizer recusa da opressão. Ela é combate, quer dizer combate contra a desigualdade. [...], a Negritude foi uma revolta contra o que eu chamaria de reducionismo 54 europeu. Em 1939 Aimé Césaire retorna à Martinica após concluir seus estudos na França. Ele se torna professor na escola Victor Schoelcher. Passo fundamental para colocar em prática e semear nos alunos suas teorias sobre a negritude. O jovem Frantz Fanon 55 estudou até o ano anterior na mesma escola, e ao contrário do que muitos autores afirmam, ele não foi aluno direto de Césaire. Segundo seu irmão Joby, Fanon cruzou seu pensamento com o do poeta em palestras e através do conteúdo das matérias dadas por Césaire a seu amigo Marcel Manville. De qualquer forma, o pensamento de Césaire reverberou no jovem Fanon, como ele escreve mais tarde, em seu livro Antillais et Africains: pela primeira vez, víamos um professor que aparentava ser um homem digno, simplesmente por dizer à sociedade antilhana: “que é belo e bom ser um negro”. Com certeza era um escândalo [...] O que poderia ser mais grotesco, do que um homem instruído, diplomado, que aprendeu muitas coisas, entre elas que “era um infortúnio ser negro”, clamando que sua pele 56 era bela... Desde os primeiros contatos com o pensamento do professor Césaire, Frantz Fanon se contagiou por aquele poeta de posicionamento político vigoroso. Seguindo um caminho semelhante de estudos na França, ele especializou-se em psiquiatria. 54 CÉSAIRE. 2013. p.84. Este trecho faz parte do “Discurso sobre a Negritude, que Aimé Césaire pronunciou na Universidade Internacional da Flórida (Miami), em 1987. Que vem anexada nesta edição mais recente do Discurso sobre o Colonialismo. Tradução do autor: “La Négritude résulte d`une attitude active et offensive de l`esprit. Elle est sursaut, et sursaut de dignité. Elle est refus, je veux dire refus de l`oppression. Elle est combat, c`est-à-dire combat contre l`inégalité... , la Négritude a été une révolte contre ce que j`appellerai le réductionisme européen.” 55 Frantz Omar Fanon nasceu em 20 de julho de 1925 em Fort de France, Martinica e morreu em 6 de dezembro de 1961 em Bethesda, Maryland, EUA. Foi Psiquiatra, escritor, filósofo e revolucionário. Ele teve seus primeiros contatos com o pensamento anticolonial através de Aimé Césaire. Aos 19 anos ele se alistou no exército francês para lutar contra os alemães na segunda guerra mundial. Posteriormente ele se alistou na Frente de Libertação Nacional e lutou para a independência da Argélia. Sua produção literária foi marcada pelos impactos do racismo e do colonialismo na psique, tanto dos colonizadores quanto dos colonizados. 56 BOUVIER, Pierre.p.78. Tradução nossa: “Pour la première fois, on verra un professeur de lycée donc apparemment un homme digne, simplement dire à lasociété antillaise “qu’il est beau et bon d`être un négre””. Pour sûr, c’était un scandale [...] Quoi de plus grotesque, en effet, qu’un homme instruit, un diplômé, ayant donc compris pas mal de choses, entre autres que “”c’était un malheur d’être nègre””, clamant que sa peau est belle...” 49 Estudou com filósofos importantes como Maurice Merleau-Ponty, escreveu artigos polêmicos para diversas revistas, virou amigo de Jean-Paul Sartre, publicou livros fundamentais e lutou na guerra contra o Nazismo e pela independência da Argélia. Esta junção de pensador e combatente fez de Fanon um dos grandes intelectuais revolucionários do século XX, de pensamento e ação, até sua morte prematura aos 37 anos. Seu trabalho é marcado pelo movimento de libertação colonial e pelas características psicológicas envolvidas neste processo, tanto por parte do colonizador, mas sobretudo pelo lado do colonizado. Sua produção foi principalmente voltada para o negro, refletindo como este pôde se afirmar diante de uma trama de sentidos unilateral, engendrada pela brutalidade e a coerção. Kabengele Munanga ressalta o fato de Fanon ter operado o rompimento com a mística branca e negra, contidas na teoria da negritude: “Para ele, a desalienação do negro implica uma urgente tomada de consciência das relações socioeconômicas.” 57 A ladja é um exemplo de como o sujeito pode se revoltar e lutar contra a arrogância de um discurso colonial, é uma tomada de consciência. Uma manifestação que incita o praticante a impor a linguagem do seu desejo, deixando que ele se manifeste, como espaço de expressão intelectual e corporal deste sujeito. Em um ato político ele se liberta das tramas, vínculos sociais e econômicos impostos, seja outrora através das fugas para os quilombos, da quebra dos códigos de condutas impostos, ou, mais recentemente, pelo simples ato de não se deixar vestir pelas “máscaras brancas”, evitando as malhas do que lhe é imposto – externo – recolocando seu desejo em circulação, descolonizando o corpo. Trata-se de um combate bailado permeado de não-ditos, gerados na impossibilidade de livre-expressão durante a diáspora negra. Luta que não deixou calar os tambores, e, a eles, somou-se o corpo e o gesto eruptivo, acompanhando fluxos sem estancar o tempo, sem frear o ímpeto de inventar-se. Passos que se arremessam em geografias desconhecidas, cujas experimentações marginais podem sugerir a constituição de novas imagens de pensamento. É o aprender se traduzindo em experiência, no re-inventar, conseguindo desta forma livrar-se, mesmo que momentaneamente, de uma relação de submissão por via da força. Desde as antigas festas de domingo, até o mundo normativo 57 MUNANGA, Kabengele. Negritude: Usos e sentidos. – 3.ed. 1. Reimp – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p.75. 50 contemporâneo, através da ladja, o sujeito se reinventa, quebra o discurso de poder, descoloniza seu corpo e retoma o seu desejo, subjugado pelos agentes opressores. Fanon, no capítulo: “A experiência vivida do negro” do livro Pele negra, máscaras brancas fala da sua chegada na França, do preconceito sofrido e da sensação de impossibilidade a partir de um complexo inato, de se afirmar como negro. Restando como única saída, já que o outro hesitava em querer conhecê-lo, se fazer conhecer. Ele relembra que, há dois séculos, o negro estava perdido para a humanidade, escravo para sempre. E subitamente os homens decidiram que isto já havia durado demais e a tenacidade negra havia feito o resto. Ele estava salvo do dilúvio civilizador: “Tarde demais. Tudo esta previsto, estabelecido, provado, explorado. Minhas mãos nervosas ficaram vazias, a fonte secou. Tarde demais! Mesmo assim quero entender.” 58 Lendo Léopold Senghor, grande amigo de Césaire e companheiro na concepção da ideia de negritude, Fanon encontrou um caminho para gritar. Depois de tanto tentar racionalizar o mundo e ser rejeitado em nome do preconceito de cor, ele encontra a “salvação” nos escritos de Senghor. Já que o acordo, no plano da razão não é possível, ele aborda a irracionalidade, culpando o branco por ser mais irracional ainda, mas no irracional ele se diz em casa, ele foi construído no irracional e resolve se atolar no irracional até o pescoço e deixar sua voz vibrar: Eia! O atabaque baratina a mensagem cósmica! Só o preto é capaz de transmiti-la, de decifrar seu sentido, seu alcance. Cavalgando o mundo, esporas vigorosas contra os flancos do mundo, lustro o pescoço do mundo, como sacrificador entre os olhos da vítima... Magia negra, mentalidade primitiva, animismo, erotismo animal, tudo isso reflui para mim...Chegando a este ponto, hesitei durante muito tempo antes de me engajar. Que digo eu? Na verdade eu não tinha escolha… Sim, nós (os pretos) somos atrasados, simplórios, livres nas nossas manifestações. É que para nós, o corpo não se opõe àquilo que vocês chamam de espírito. Nós estamos no mundo...Vossa 59 civilização branca negligencia as riquezas finas, a sensibilidade... Para Fanon é necessário desconfiar sempre. Sua empolgação ao acreditar ter instituído um mundo verdadeiro – “Eu tinha reencontrado o Um primordial” 60 – 58 FANON, 2008. p. 97 59 Ibid p.100,101 60 FANON. 2008. p. 103 51 rapidamente esbarraria em uma dura crítica que abalaria sua dialética. Ao ler Orfeu negro, de seu amigo Sartre, ele titubeou, seu grito ficou suspenso, momentaneamente mudo: De fato, a negritude aparece como o tempo fraco de uma progressão dialética: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco é a tese; a posição da negritude como valor antitético é o momento da negatividade. Mas este momento negativo não é autossuficiente, e os negros que o utilizam o sabem bem; sabem que ele visa à preparação da síntese ou à realização do humano em uma sociedade sem raças. Assim, a negritude existe para se destruir, é passagem e ponto de chegada, meio e não fim 61 último. Ao ler esta página ele sentiu lhe roubarem sua última chance. Falou aos amigos, que a geração dos jovens poetas negros, acabava de receber um golpe imperdoável. O amigo dos povos de cor, 62 acabava de mostrar a relatividade de suas ações. Para ele, Sartre o hegeliano-nato, havia esquecido que a consciência tem necessidade de se perder na noite do absoluto, como única condição de se chegar a uma consciência de si. Apesar do choque, Fanon sabia que Orfeu negro era um marco no intelectualismo do existir negro, mas considerava o erro de Sartre, não só querer chegar à fonte, mas de certo modo, secar a fonte: A fonte da poesia secará? Ou então o grande rio negro vai colorir, apesar de tudo, o mar no qual se lança? Pouco importa: a cada época, sua poesia; a cada época as circunstâncias da história elegem uma nação, uma raça, uma classe para reacender a chama, criando situações que só podem ser representadas ou superadas pela poesia; ora o impulso poético coincide com o impulso revolucionário, ora diverge. Saudemos, hoje, a oportunidade histórica que permite aos negros dar “com tal determinação o grande grito 63 negro que abalará os assentamentos do mundo." Para Fanon, Sartre destruíra o entusiasmo negro, mas, naquele momento, ele tinha necessidade de ignorar, de continuar a se perder absolutamente na negritude, no seio desse romantismo doloroso: “Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou”. 64 Palavras que ecoavam nos princípios práticos da ladja, 61 SARTRE, Jean-Paul, “Orephée noir”, prefácio à Anthologie de la poésie nègre et malgaxe, pp.XL e sqq. In: FANON. p. 105 62 BOUVIER, Pierre.p.78 63 CÉSAIRE, citado por Sartre, Apud FANON. 2008. p. 105 64 FANON. 2008. p.122 52 citados em uma das publicações da AM4 (Association Mi Mes Manmay Matinik), uma mistura de pesquisa histórica e manual de aprendizado: [...] a covardia é banida na prática do danmyé. Será necessário aprender a sofrer, receber golpes, ver a morte de frente (flenté lan mò). Será necessário enfrentar o anormal, ver o sobrenatural: não se desunir, não se desmontar, ser capaz de solicitar em si as reservas dificilmente acessíveis, mantendo-as em estado latente. Ser eventualmente capaz de enfrentar 65 psicologicamente a roda inteira As décadas de 1930 e 1940 foram marcadas por lutas políticas. Para Aimé Césaire se tratava de uma tomada de atitude contra a inércia que assolava a ilha: Nesta cidade inerte, esta multidão desolada sob o sol, que não participa de nada para se expressar, se afirmar, se libertar ao grande dia da sua própria terra. Nem à imperatriz Josephine dos franceses, sonhando muito alto sobre a negrada. Nem ao libertador congelado em sua pedra branqueada. Nem ao conquistador. Nem a este desprezo, nem a esta liberdade, nem a esta 66 audácia. Neste trecho, o autor retrata uma Martinica assolada por uma grave crise econômica e sobretudo moral. É nesta época que ele começa a desenvolver uma ambivalência entre o que chamaria de velha e nova negritude. A velha seria a negritude pesada das dores e resignações, e a nova se inscreveria no contexto social, nos desejos e perspectivas capazes de transformar esta realidade imposta: “como um grande grito negro onde os fundamentos do mundo serão abalados.” 67 Aimé Césaire usou como estratégia para seu combate, dominar o francês e a cultura do colonizador para ser ouvido. Em Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon relembra de memória um discurso político de Césaire, de 1945, feito em uma escola. Na ocasião, uma das mulheres presentes na plateia desmaiou. Um conhecido seu comentou no dia seguinte que o discurso estava tão quente que a mulher entrou em transe. Exemplo dado por Fanon para mostrar a potência da linguagem de Césaire. 65 AM4, Association Mi Mès Manmay Matinik. Asou Chimen Danmye: Proposition sur le Danmye art martial Martiniquais.(Mimeo). p.05. 66 BOUVIER, Pierre. Aimé Césaire Frantz Fanon – Portraits de décolonisés. Les elle lettres. Paris. 2010.p.68 Neste trecho Césaire se refere a estátua da Imperatriz Josephine que se encontra na praça central de Fort-de-France, capital da Martinica. Também se refere a estátua de Victor Schoelmer, responsável pela abolição da escravidão em 1848. E por último se refere a Napoleão, que se encontra junto na estátua de Josephine. Esta estátua hoje em dia se encontra sem cabeça, depois de tentarem recolocar a cabeça 3 vezes, e ela voltar a ser decapitada, resolveram deixar assim. Josephine foi contra a abolição da escravidão. 67 Ibid. p.69 53 Aimé Césaire também arrancava fervorosos elogios da intelectualidade francesa. Como fez André Breton 68 ao folhear, acidentalmente, o primeiro número da revista Tropiques, editada por Césaire e Réné Ménil. O encontro se deu quando o escritor surrealista buscava uma fita 69 de presente para a filha, na loja da irmã de Réné, durante sua viagem à Martinica em 1941: Era perceptível sua revolta e mesmo antes de conhecermos mais amplamente a sua mensagem notávamos, como dizê-lo?, que todas as palavras, da mais simples à mais rara, ficavam nuas com a passagem pela sua língua. Daí a culminância em concreto que existe nele, essa qualidade incessantemente maior de tom que permite distinguir, de tão simples modo, os grandes dos pequenos poetas… E um negro é quem aparece a usar a língua francesa como não há hoje branco que o faça… A palavra de Aimé 70 Césaire, bela como o nascer do oxigênio. Um encontro insólito, em uma ilha que impressionou Breton pelos seus paradoxos em sua viagem com André Masson: 71 “Por isso, nas páginas que seguem fomos levados a dar uma oportunidade à linguagem lírica e outra à linguagem da banal informação. Fomos doidamente seduzidos e ao mesmo tempo feridos e indignados.” 72 O poeta francês foi recebido com desconfiança e hostilidade pelo poder local que o considerava um subversivo agitador cultural. Percepções que ele deixa claro em seu livro Martinica – encantadora de serpentes73. Para ele, se tratava de uma ilha que, apesar da beleza natural inspiradora, carregava os preconceitos de quem fora subjugada e esquecida no tempo. Por outro lado, surpreendia-o que, em um local como aquele, com apenas duas ou três livrarias, que abrigavam uma vintena de livros, velhos e mal organizados, pudesse surgir um poeta como aquele. 68 André Breton foi escritor, poeta e um dos principais teóricos do movimento surrealista. 69 Breton simbolizou através da imagem de uma fita o encontro dele com Césaire e Réne Ménil. 70 BRETON, André. Martinica - encantadora de serpentes. Lisboa. & etc. 1986.p.45 e 51. 71 André-Aimé-René Masson foi um artista francês. Começou fazendo parte do movimento cubista. Depois passou a fazer parte do movimento surrealista, foi um grande amigo e parceiro de viagens de André Breton. 72 73 BOUVIER. 2010.p.3. BRETON, André. Martinica - encantadora de serpentes. Lisboa. & etc. 1986. Título original: Martinique charmeuse de serpents. A primeira edição de 1948 contava com textos e ilustrações de André Masson. Éditions du Sagittaire. Paris. 54 André Breton e Aimé Césaire não eram os únicos pensadores que percebiam de forma desoladora a realidade da ilha e de seu povo, Frantz Fanon também se refere a este período em Pele negra, máscaras brancas: Um europeu, por exemplo, a par das manifestações poéticas negras atuais, ficaria surpreso ao saber que, até 1940, nenhum antilhano seria capaz de se considerar preto. Só com o aparecimento de Aimé Césaire é que se viu 74 nascer uma reivindicação, uma negritude assumida. Mais uma vez percebemos a importância de Césaire e sua decisiva contribuição artística, através de seu pensamento e poesia para o desenvolvimento de uma consciência. Através do conceito de negritude ele reivindicou a dignidade, profundidade e beleza das culturas negras. Desmascarando o processo de colonização que se apresentava como luz contra as trevas da ignorância. E na verdade, era a causa da humilhação e aculturação dos povos submetidos. Povos que, para Césaire, em uma visão idealizada do outro e do passado, possuíam culturas nativas ricas e harmoniosas, antes da chegada dos colonos. Por outro lado, parece antagônico pensar que nesta mesma ilha, desolada moralmente como sugere Fanon, inerte para Césaire e esquecida para Breton, Katherine Dunhan tenha filmado rodas de ladja tão intensas, como ela prórpia comenta: “Nos domingos à tarde... todos vinham, de perto e de longe para ver, participar, torcer pelo seu lutador preferido, que para mim eram dançarinos.” 75 Em seus filmes, estas grandes rodas de ladja deixam claro que havia sim, mesmo que mascarada, uma tradição de origem africana viva, só que manifestada dentro de outra poética, a do corpo. Neste mesmo período Fanon se refere à Martinica como um local onde o folclore é pobre, com uma visão de mundo branca, onde não existe nenhuma expressão negra. Sobressaindo-se apenas a invasão dos escritos, cartazes de cinema e o rádio, que propagam a cultura francesa. Este antagonismo sugere duas hipóteses. A primeira é a de que Fanon não conhecia profundamente o folclore local e as manifestações populares. A segunda é imaginar que a ladja não se enquadrava no conceito de folclore, por estar à margem 74 75 FANON, 2008.p.124. Video-depoimento: Katherine Dunhan on “LÁg’ya. Video Clip #36. 2002. Library of Congress for the documentation of Katherine Dunham’s dance technique. Disponível em: https://www.loc.gov/item/ihas.200003843 55 da sociedade, por ser uma manifestação de resistência oculta, que não se deixava mostrar facilmente. É só por volta dos anos 1970 que encontramos pequenas passagens escritas, ligando a ladja à intelectualidade martinicana. Ti Emile é um dos poucos mestres de ladja comentados por Aimé Césaire. O poeta destaca Ti Emile como símbolo da cultura Martinicana em uma época onde a moda era a da assimilação. 76 O filósofo Edouard Glissant também elogia o velho mestre, principalmente pela qualidade do seu canto: “Longe das pálidas cantilenas ‘tropicais’, descubra aqui o verdadeiro e tão incompreendido folclore da Martinica. O que as pessoas de lá cantam, sonham e lamentam, na primeira vez que você ouve, você sente isso”. 77 Na primeira swaré bélé/danmyé (noitada bélé/danmyé) que participei na minha última estada na Martinica, organizado pela associação ADPKM (Asosyasyon pou défann ek palantjé kilti Matinik), ainda pude perceber vivas e latejantes estas tensões políticas e culturais. Fui convidado por David. Chegamos às 19h e os tambores já soavam forte. Mal entramos no local da roda e ele foi direto assumir o tambor, mas no caminho resolveu fazer um combate com um dos lutadores. Esta roda fazia parte dos eventos comemorativos à data 22 de setembro de 1870, conhecida como: Insurreição do sul. Vinte e dois anos após a abolição da escravidão a sociedade martinicana continuava sob o golpe de um regime judiciário parcial. Este evento foi um estopim de revolta diante da condenação injusta do negro Lubin. Foi a gota d’água para o início da revolta da população do sul, conforme demonstra Edouard Glissant e exemplifica através de outros autores: A insurreição do Sul se situaria na passagem da sociedade escravocrata para a sociedade capitalista. Segundo Pluchon, seria uma invenção da massa das classes populares até então quase sempre omissa. Armand Nicolas tem uma opinião mais entusiasta: Revolta popular, levante agrícola 76 Disponível em:http://www.lalanterne.fr/images/film_pdf/Dossier%20Presse%20Milo%20Poko%20Mo.pdf Acesso em: 28/03/13. Assimilação inicialmente era o termo usado pela burguesia “de cor” para reivindicar a integração, de possuir os mesmos direitos de um cidadão francês. Mais tarde Césaire vai rebatizar o termo para departamentalização. GLISSANT, Édouard. Poética e política. Coleção Parcours. Capes.p.81. 77 Disponível em: http://www.manomerci.com/ti_emile-nou_aime_ti_emile.ws. Acesso em: 20/04/12 Tradução nossa: “Au loin des pâles rengaines "tropicales", découvrez ici le vrai et si méconnu folklore de la Martinique. Ce que le peuple là-bas chante, ce qu'il rêve et ce qu'il lamente, pour la première fois vous l'entendrez, vous le ressentirez.” 56 pela terra, a liberdade e a dignidade, a insurreição do sul é em uma larga 78 medida a última das revoltas dos escravos. A noitada aconteceu numa tradicional destilaria de rum da região de Riviérèpilote no sul da ilha. Começou com os combates de danmyé. David logo mostrou sua destreza diante dos outros adversários, incendiando a roda. Também lutaram crianças, homens e mulheres de todas as idades. 79 Depois da roda de ladja, iniciou-se uma homenagem ao escritor Armand Nicolas, autor da obra em três volumes 80 sobre a história da Martinica vista da outra margem, dos índios e escravos. Ex-Integrante do partido comunista local, ele foi perseguido pelas autoridades francesas, foi preso por subversão e obrigado a deixar o cargo de professor. Durante o período na prisão ele se dedicou a escrever estes volumes, referenciais até hoje. Diante de uma encenação, na qual dançarinos de bélé vestidos de vermelho e preto circulavam um homem que regava um vaso de plantas com uma vela acesa ao lado, o escritor homenageado de 93 anos se emocionou. Logo após, ele foi convidado a falar. Fez um discurso forte, convicto, incitando os ouvintes à independência. Sim, o velho agitador mostrava seu vigor, clamava por uma Martinica independente, livre dos grilhões franceses. Pedia aos mais novos para continuarem o combate. 78 GLISSANT, Édouard. Poética e política. Coleção Parcours. Capes.p.71. A proclamação da 3ª República encontra a Martinica vivendo um período agitado pela tensão existente entre os békés e a burguesia de “cor” que exigia acesso às massas trabalhadoras. O mais recente estopim tinha sido o caso Lubin: um negro maltratado sem motivo por brancos se revolta e, apesar dos numerosos testemunhos a seu favor, foi rapidamente julgado e condenado a cinco anos de prisão. Os ânimos se acirram. No dia 21 de setembro, chega o navio com o decreto da proclamação da 3ª República. No dia seguinte, ela é proclamada na Martinica. Logo após a leitura da proclamação em Rivière-Pilote, os homens se reúnem e vão interpelar os autores da condenação de Lubin. Recebidos a bala, incendeiam casas em várias plantações. O Exército é chamado e as escaramuças se sucedem. O número de adesões aos insurretos cresce rapidamente. Africanos e indianos integram-se no movimento onde se destacam o entusiasmo dos jovens e o grande número de mulheres. A burguesia de “cor” apoia os békés na esperança de conseguir uma aliança para as próximas eleições. Organizam-se grupos de voluntários que se unem às tropas do Exército. Após dois dias, os revoltosos são dominados. Efetuam-se 500 prisões e 75 condenações: seis dirigentes são sumariamente condenados à morte e executados, oito são condenados à morte e executados mais tarde, 28 foram condenados a trabalhos forçados perpétuos e 33 a penas temporárias. Glissant cita: NICOLAS, Armand. Línsurrection du Sud à la Martinique (septembre 1870). Fort-de France, Action, 1970.p.5. 79 A grande maioria dos lutadores de ladja são homens com idade entre 20 e 50 anos, além da presença reduzida dos velhos mestres. A prática por parte das mulheres sempre foi menor apesar do aumento nos últimos anos. O que mais me chamou a atenção foi o baixo número de crianças nas rodas. 80 NICOLAS, Armand. Histoire de la Martinique. Tome 1,2,3. L’harmattan. Fort de France. 2000. No ano de seu lançamento em 1996 esta obra recebeu o prêmio Frantz Fanon (Antilhas) de literatura. 57 A noite adensava-se em uma espessa névoa política. A ladja e o bélé decididamente são vetores de resistência. Como disse o escritor em seu discurso em bom crioulo: "É a memória que dá forças para continuarmos o combate. Sejamos Martinicanos!” A ladja sempre esteve ligada, mesmo que indiretamente, aos movimentos políticos e intelectuais martinicanos, culminando com a sua proibição em 1946, justamente no polêmico processo de departamentalização da Martinica. Ao contrário da Argélia, que aderiu à guerra anticolonial por quase uma década até conquistar sua independência da França em 1962, a Martinica passou de colônia a departamento ultramarino francês, 81 pela lei de 1946, da qual Aimé Césaire fora o relator. Este conturbado contexto de transição de estatuto, em que estava em jogo a assimilação plena dos direitos civis franceses, é longo e repleto de problemas internos como vimos antes. Nas palavras de Césaire: O povo da Martinica pedia que a primeira tarefa do seu novo representante fosse a transformação da Martinica num departamento da França. Você pode imaginar como isso me chocava. Essa palavra [assimilação] me repugnava. Mas aprendi que devemos sempre ir além das palavras. O que importa é o que está por detrás das palavras. [...] Na verdade, o que o povo da Martinica queria era o fim de um regime. O fim do regime colonial. O fim do reino do governador todo-poderoso. O fim da segregação. Tenho a impressão de que o povo martinicano disse: “Já que somos franceses, então está bem, sejamos franceses! Mas vamos até o final! Ponham suas cartas na mesa. Então, chega de governador. Livrem-se dele! Chega de poderes especiais. Livrem-se disso! E deem-nos escolas, deem-nos creches e deem-nos Segurança Social.” Era isso que o povo martinicano entendia por “Assimilação”. Eu mudei a palavra. Porque suas conotações culturais eram humilhantes e graves para a personalidade humana. Eu disse: “Departamentalização”. Era um neologismo, uma medida técnica que 82 podia ser modificada a qualquer momento. Como qualquer outra lei. Na esteira destas reivindicações, a proibição da ladja reforça seu aspecto marginal. A ladja é o equilíbrio no desequilíbrio, o canto, o toque do tambor que dá ritmo à revolução que se luta dançando – a grande roda do mundo, que continua a girar, apesar de tantas barbaridades e proibições. Ou como diria a pesquisadora 81 Sob os efeitos de uma intensa crise econômica e política ocorrida durante e depois da Segunda Guerra Mundial, a pressão dos agentes locais como o partido comunista aumenta, então é votada a lei de 19 de março de 1946, que promulga o estatuto de departamentalização das antigas colônias instituindo a assimilação nas ilhas Martinica, Guadalupe, Guiana e Reunião. Elas então se tornavam departamentos franceses. A manutenção do nome e do título de “departamento ultramarino”, pelas lógicas do poder político endógeno e exógeno à ilha potencializa essa condição ambígua de dependência, em amplo sentido, da Martinica em relação à metrópole francesa e vice-versa. Aliás, há de se notar que, na Martinica, no cotidiano, é comum referir-se à França como “metrópole”, o mesmo ocorre no caso de cidadãos de origem francesa, sejam localizados na França ou na ilha. (COSTA.p.52) 82 CÉSAIRE apud COSTA, 2015. p. 15. (tradução da autora) 58 Maria Antonacci em relação à preservação de elementos culturais africanos no Brasil, dos quais poderíamos estender facilmente à realidade Martinicana: ...memórias ancoradas em experiências dos que só têm no corpo e em suas formas de comunicação heranças de seus antepassados e marcas de suas histórias. Em contínuos desterros, sem construídas séries documentais, vivendo e transmitindo heranças em performances, recursos linguísticos e artísticos, povos africanos pluralizam nosso alcance de acervos históricos, monumentos e patrimônios audiovisuais, situando a necessária arqueologia 83 de saberes orais, a ser enunciada e valorizada. Um grande público compareceu para prestigiar outro evento comemorativo à ressurgência do sul, desta vez a noitada de bélé/ladja era promovida pela associação AM4 no mercado público da comunidade de Rivière-pilote. Obviamente, o tom era político. O lutador e pesquisador George Dru abriu os trabalhos com um discurso centralizado na bandeira da Martinica, símbolo do movimento independentista. Preto, vermelho e verde. Fiquei um pouco confuso com sua fala. Ao invés de defender publicamente o movimento independentista, ele sugeriu a adoção da bandeira como símbolo de nacionalismo. Me perguntei como é possível ser nacionalista sem ser independente? Soava a algo do gênero: queremos ser Martinicanos mas usufruir a segurança social francesa. Após o discurso, entraram as crianças para dançar o bélé e encenar o episódio de 22 de setembro de 1870, protagonizado por uma menina negra e outra branca. Os combates de ladja começaram. Praticamente as mesmas pessoas do evento anterior, com enfrentamentos mais mornos, ou como preferem chamar em crioulo: danmyé amizé (danmyé amigável). O público parecia mais interessado no bélé. Não circulou uma energia forte na roda de ladja nesta noite. Antes de começar, conversei com Said Dru, um dos mais novos do clã, discutimos sobre diferenças e convergências entre a capoeira e a ladja. Comentei meu estranhamento, em relação ao ocultamento das ligações africanas, sobretudo religiosas, por parte dos praticantes de ladja e bélé. Ele comentou: – Os traumas da repressão ainda são muito fortes. – Muitos ainda tem medo de assumir a pratica do bélé, e ainda mais da ladja, considerada “bagay vié nèg” coisa de preto velho. – Isso vale para todas as tradições de origem africana. 83 ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC, 2013. p.17. 59 – Não é um medo injustificado. Eu perguntei: – Said, notei que todos policiais por aqui são brancos. Ele riu e respondeu: – Você sabe como eles são chamados? Respondi negativamente e ele complementou: – Força de repressão. Até hoje a prática da ladja se apresenta como um sobrevoo errante onde a questão do espaço está diretamente ligada à carne e à construção do sujeito – sua natureza instável, móvel e angustiante no contemporâneo. “Alguma coisa no espaço escapa a nossas tentativas de sobrevoo”, expressão de Merleau Ponty sugerindo uma falta de lugar estável, lançando o homem contemporâneo à errância”. 84 Esta sensação de vertigem, de desconforto no espaço, traz na ideia de errância um poder de sedução. É o desejo de resistir, imprimir cartografias projetadas por inquietas e desejantes linhas de errâncias – desvios. 1.3 Contrapeso Se o peso navega no sofrimento da travessia sem volta da diáspora africana, o contrapeso não se apresenta como um contrário. Não se trata de leveza, nem alegria, é apenas um precário equilíbrio diante da tensão, um desvio possível, para manter a rota da existência. Para o filósofo Edouard Glissant, no início, os escravos africanos sonhavam com um retorno à terra mãe, porém, as populações transbordadas pelo tráfico negreiro não possuíam condições de manter a pulsão do retorno por muito tempo, essa pulsão cederia na medida em que as lembranças da terra natal atenuavam-se. Aos poucos aquelas pessoas desterradas se tornariam população e, junto a isso, para o pensador Édouard Glissant, apareceria a pulsão pela imitação. Amputados da cultura de origem, misturados, subjugados só resta a pulsão mimética, uma violência 84 RIVERA, Tania. O avesso do imaginário: arte contemporânea e psicanálise. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p.137 60 insidiosa: “Um povo que é subjugado leva muito tempo para conceber de forma coletiva e crítica o peso, mas suporta rapidamente o trauma.” 85 Glissant explica que na Martinica, esta população, mesmo sem ganhar terras tentou exorcizar o retorno impossível, contentando-se com o que ele chama de “a prática do Desvio”. Para ele, o desvio não é uma recusa sistemática de ver, ou prática deliberada de fuga da realidade, e sim um emaranhamento de negatividades. Não haveria uma necessidade de desvio se a ideia de nação tivesse sido possível após a escravidão, através de uma divisão justa de terras e responsabilidades pelo devir do local onde viviam. O desvio é um último recurso de uma população que foi subjugada através de uma dominação mascarada. Estratégia que obriga o dominado a procurar fora o princípio de dominação que não é evidente no seu país. A assimilação 86 é a melhor das camuflagens. Para Glissant o desvio seria a paralaxe 87 desta procura. Assimilação é uma expressão complexa e seu entendimento é importante para perceber as estratégias francesas no processo de colonização, o que ao meu ver justifica esta extensa citação da historiadora martinicana Oruno D. Lara: 85 GLISSANT, Édouard. Le discours antillais. Gallimard. Paris.1997. p.47. Tradução do autor: “Un peuple qui y est soumis met beaucoup de temps à en concevoir de manière collective et critique le poids, mais en supporte tout de suite le traumatisme.” 86 LARA, Oruno.D. “L'Assimilation une mystification”. URI: https://www.makacla.com/LASSIMILATION-UNE-MYSTIFICATION_a252.html. Acesso em: 06/06/2018. Tradução nossa: Mes recherches ont mis en évidence un déroulement de l’abolition et une période cruciale de la colonisation après 1848. Une terrible répression s’abat sur les populations de la Guadeloupe et de Martinique pour les contraindre à oublier le passé, à adopter un nouveau mode de consommation - de produits français -, à se soumettre aux programmes, limités à l’agriculture, de l’Ecole élémentaire entre les mains des religieux, à l’Eglise et à la presse des colons. L’Etat français utilise, pour arriver à ses fins, toutes les armes dont il dispose à cette époque: violences administratives, appareil judiciaire, bagnes, police, gendarmerie, armée, marine. L’objectif principal est alors, pour les colonisateurs, de « contenir les Nègres ». Sous le système esclavagiste, les milices des colons suffisaient à régler cette question. Après l’abolition de l’esclavage, face aux Nègres émancipés, l’administration coloniale innove et crée un type de répression qui correspond mieux à ses visées assimilationnistes. Après 1870, les colonisés n’ont aucune chance de sortir de leur cage et certains d’entre eux se mettent à quémander ce que l’Etat colonial leur susurre à l’oreille depuis des décennies. En mars 1946, les carottes sont cuites: la France a obtenu gain de cause. Des colonies métamorphosées en départements ! Les colonies insulaires que la France collectionne lui permettent en 2009 d’occuper le deuxième rang mondial, derrière les USA, pour la superficie de son domaine maritime (11 millions de km2). Une énorme Zone Economique Exclusive (ZEE) que l’Hexagone peut exploiter à sa guise. Pour finir, un dernier mot: prenons garde, ne laissons pas les charlatans ou les ignares influencer nos croyances et nos comportements. L’assimilation, contrairement à ce que chantonnent certains plumitifs, n’est qu’une mystification. Une mystification qui nous a coûté cher, très cher (il faut le reconnaître). Guadeloupéens, Martiniquais, nous devons terminer seuls l’entreprise de destruction du système colonial commencée par nos ancêtres en mai 1848. 87 GLISSANT.p.48. Paralaxe refere-se a percepção de um objeto visto por observadores em locais distintos. 61 Minhas pesquisas colocaram em evidência um desdobramento da abolição e um período crucial da colonização depois de 1848. Uma terrível repressão se abate sobre as populações de Guadalupe e Martinica, lhes constrangendo a esquecer o passado, a adotar um novo modo de consumo – de produtos franceses –, a se submeterem aos programas limitados à agricultura, ao ensino fundamental nas mãos da igreja e à imprensa dos colonos. O Estado francês utiliza para chegar a seus fins todas as armas de que ele dispõe: violências administrativas, aparelho judiciário, presídios, polícia, exército, marinha. O objetivo principal é, então, para os colonizadores, “conter os negros”. Sob o sistema escravagista bastava as milícias dos colonos para regular esta questão. Após a abolição da escravidão diante dos negros emancipados, a administração colonial inova e cria um tipo de repressão que corresponde melhor aos seus anseios assimilacionistas. Depois de 1870, os colonizados não tinham mais nenhuma chance se saírem de suas gaiolas e alguns entre eles começam então a implorar por aquilo que o Estado já soprava em suas orelhas há décadas. Em março de 1946 as cenouras estavam assadas: a França teve ganho de causa... As colônias metamorfoseadas em departamentos! As colônias insulares que a França coleciona lhe permitem ocupar o segundo lugar no ranking mundial, ficando atrás apenas dos EUA. Um território de (11 milhões de Km2). Uma enorme Zona Econômica Exclusiva (ZEE) que a França pode explorar à vontade. Finalmente, uma última palavra: tome cuidado, não deixe que charlatões ou ignorantes influenciem nossas crenças e nosso comportamento. A assimilação, ao contrário do zumbido de alguns escritores de meia tigela, não passa de uma farsa. Uma mistificação que nos custou caro, muito caro (deve ser reconhecido). Guadalupe, Martinica, devemos terminar sozinhos a destruição do sistema colonial iniciado pelos nossos antepassados em maio de 1848. Para Glissant a língua crioula seria uma primeira geografia deste desvio, ele diz: “você quer me reduzir à coisificação, eu vou sistematizar essa coisificação, e nós veremos se você poderá achá-la.” 88 A poética do crioulo é um exercício permanente do desvio e da transcendência da fonte francesa. Onde o escravo confisca a língua que o mestre lhe impôs, língua simplificada, apropriada às exigências do trabalho, e a leva à extrema simplificação até não ser mais alcançada por aqueles que dominam apenas a fonte. Para David, o crioulo é o próprio poder contemporâneo de resistência em face ao poder colonial de dominação. Uma língua nascida de um sistema de metáforas, que possibilita dar dois ou três sentidos para a mesma fala, sistema criado pelos escravos para ocultar o sentido. Ele conta que nas escolas da Martinica, onde até hoje é proibido falar crioulo, mesmo nos corredores, se aprende que o francês é a língua dourada, superior. Mas para eles, que falam o crioulo todos os dias, esta é a verdadeira língua dourada, é através dela que se faz viver o tambor, a dança, o jogo... e isso dá ritmo à vida diária, é uma língua musical que nos permite resistir. 88 GLISSANT p.49. tradução nossa: “Tu veux me réduire au bégaiement, je vais systématiser le bégaiement, nous verrons si tu t’y retrouveras.” 62 O adjetivo “Crioulo” possui um alargamento semântico. Sua origem designava na terminologia colonial, o indivíduo de origem europeia nascido na colônia. 89 Em seguida, por aceitação deste termo, deveria se entender, de uma parte os negros (mestiços ou não) e de outra os animais e vegetais nascidos na colônia. Não se sabe ao certo como ocorreu esta passagem de significados até designar a língua local, mas o caráter autóctone presente no termo é inerente ao processo. No seu consagrado livro Le Discour Antillais, Édouard Glissant, apresenta uma profunda reflexão sobre o sistema colonial na Martinica, com seus traumas e desvios até os dias atuais. É curioso perceber que ele começa o livro citando uma piada de um político local, dizendo que no ano de 2100, os turistas seriam convidados por publicidade via satélite a visitar esta ilha e conhecer ao vivo “como era uma colônia nos séculos passados”. 90 Os risos picantes que esta piada pode provocar disfarçam uma desordem generalizada, uma impossibilidade de sair do impasse atual. 91 Logo depois, Glissant cita outro exemplo em que um psiquiatra francês comenta com o prefeito sua preocupação com o aumento do desequilíbrio mental na Martinica, comentário que este prefeito tão francês quanto ele responde: “o importante é que a miséria material diminuiu visivelmente. Não vemos mais crianças raquíticas na beira das estradas.” 92 Com estas anedotas que parecem flutuar em torno do real, e uma percepção astuta, Glissant destila toda sua crítica agridoce de poeta-filósofo martinicano. Esforço intelectual com surtos de repetição, que para ele é ritmo. Reclama o direito à obscuridade que faz parte do drama planetário da relação. Percepções que vão diretamente ao encontro do universo da ladja e toda a dicotomia existente na relação com a África, como o próprio filósofo comenta: o ímpeto dos povos reduzidos a nada que se opõem hoje em dia ao universal da transparência, imposta pelo ocidente, uma multiplicidade surda do Diverso... A inquieta tranquilidade de nossas existências, com suas obscuras etapas atadas no tremor do mundo... Enquanto a massa antilhana dançava a Ladja, tão manifestadamente herdada dos africanos, os juízes 89 BERNABÉ, Jean.”De la négritude a la créolité: éléments pour une approche comparée”. p.25. URI: http://id.erudit.org/iderudit/035878ar DOI: 10.7202/035878ar 90 GLISSANT. p.13. Tradução nossa: “ce qu’était une colonie aux siècles passés” 91 Ibid. 92 Ibid. p.14. 63 antilhanos condenavam na África aqueles que eles ajudaram de certa forma 93 a colonizar. Neste processo de resistência intelectual, Édouard Glissant é um dos principais elos entre os pensadores da negritude com as novas correntes de pensamento anticolonial, como a Criolidade. Termo que ganhou força com a obra do escritor Patrick Chamoiseau Elogio da Crioulidade,94 tornando-se desde o seu surgimento em uma obra contraditória e provocadora de calorosos debates, segundo a pesquisadora Luane Costa: Ao inscreverem seu modo de olhar e compreender os mundos antilhanos e redimensioná-los na cartografia dos blocos hegemônicos em escala planetária dos finais dos anos 1980, na esteira de Glissant, os autores do Éloge incitam um “pensamento-mundo”, um pensamento em liberdade... Nos anos 1980, ao publicar o Le discours antillais, Édouard Glissant introduzira o conceito de antilhanidade e suas ideias-forças, Relação e Diverso, bases para a elaboração das noções e revisões propostas pelo Éloge. Glissant se pronuncia contrário à noção de crioulidade, visto que esta poderia dar uma impressão de fechamento da identidade e das mutações culturais e históricas na Martinica. Ele retomara, em seu Traité du tout-monde (1997), o conceito de crioulização, o qual já teria sido por ele lançado antes da aparição do termo no texto de Bernabé, 95 Chamoiseau e Confiant. É bom ressaltar a principal diferença entre Crioulidade e Crioulização. Enquanto a Crioulidade se refere ao caso específico da Martinica, a Crioulização 96 93 Loc.cit. p. 14,15 e 23.” Tradução do autor: “l’élan des peuples néantisés qui opposent aujourd’hui à l’universel de la transparence, imposé par l’Occident*, une multiplicité sourde du Divers...L’inquiète tranquilité de nos existences, par tant d’obscurs relais nouées au tremblement du monde...Pendant que la masse antillaise dansait le laghia, si manifestement hérité des Africains, les juges antillais condemnaient en Afrique ceux qu’ils aidaient ainsi à coloniser. *Neste comentário Glissant insere uma nota de rodapé: “O ocidente não é o oeste. Não é um lugar, é um projeto.” 94 COSTA, Luane Antunes. p.48. Um exemplo claro de tal movimentação intelectual e dialética se apresenta nas páginas do ensaio Éloge de la créolité (Elogio da crioulidade), publicado em 1989, pela editora francesa Gallimard. Seus signatários, Jean Bernabé, Raphaël Confiant e Patrick Chamoiseau, inicialmente, pronunciaram a matéria do texto, em 1988, na ocasião do “Festival Caraïbe de la SeineSaint-Denis” … sobretudo esta espécie de “agito intelectual” que se seguiu à sua publicação, seja nos espaços das ilhas antilhanas, seja na metrópole francesa, marcando em definitivo o percurso de Patrick Chamoiseau, como cidadão e escritor. 95 96 Ibid. p. 50. O filósofo Alain Ménil, sobrinho neto do escritor martinicano Réné Menil afirma que “devemos este termo Crioulização ao historiador jamaicano E.K. Brathaite. Ele o utilizou para designar a originalidade da invenção histórica das sociedades nascidas nas Antilhas, e pensar um continuum antropológico depassando a fratura. No entanto, para Alain é a Édouard Glissant e a Stuart Hall que devemos o uso mais intensivo e mais sistemático deste termo”. MÉNIL, Alain. “La créalization, un nouveau paradigme pour penser l’indintité?”. Rue Descartes 2009/4 (nº66), p.8-19. DOI 10.3917/rdes.066.008. tradução nossa: “On doit ce terme de créolisation à l’historien jamaïquain E. K. Brathwaite ; il l’investit pour cerner l’originalité de l’invention historique des sociétés nées aux Antilles, et penser un continuum anthropologique dépassant la fracture… Mais c’est certainement à Édouard 64 não é um conceito geográfico, porque não é único ao continente americano, ele designa de forma mais abrangente os diferentes processos de contato brutal de populações culturalmente diferentes, reunidos em geral em torno do sistema econômico de Plantation. Independente dos detalhes terminológicos, o importante neste processo é perceber a potência da movimentação. Como no bailado dos lutadores no espaço deambulatório da roda de ladja, estes escritores-pensadores ousaram navegar na contramão das ideias impelidas às margens do capitalismo, pela ordem mundial dos grandes centros políticos e econômicos. Eles conseguiram captar as histórias subterrâneas, a transversalidade das culturas antilhanas, ao invés de apenas carregar o trauma da História, o fantasma operatório do Ocidente. O escritor Jean Barnabé, co-fundador do movimento literário “la créolité”, com Patrick Chamoiseau e Raphael Confiant, lembra que a sociedade martinicana surge da tríade: América, África e Europa. É deste encontro permeado de tensões, massacres e dominação entre índios, franceses e escravos africanos que surge a língua crioulo. “Alguns pesquisadores pensam que ela (a língua crioula) já estava em gestação nas transações náuticas anteriores à chegada dos primeiros escravos nas ilhas”. 97 Uma modalidade sociolinguística desenvolvida do contato inicial entre: variedades dialéticas do francês, do encontro das múltiplas línguas africanas, e das línguas indígenas, principalmente a dos Caribes, que já transitavam pela ilha há mais de 10.000 anos, e que, por não se sujeitarem ao domínio, sobreviveram apenas o tempo suficiente para ensinarem aos franceses a utilizarem os recursos naturais da ilha. É neste aspecto que o crioulo aparece como um contrapeso, o Glissant, et à Stuart Hall qu’on doit l’usage le plus intensif et le plus systématique de ce terme”.Já Alexandre Marcusi atribui importância dos desdobramentos desta expressão nos Estados Unidos, com Sidney Mintz e Richard Price, a O nascimento da cultura afro-americana, que explica a formação das culturas afro-americanas através do conceito de crioulização, dando ênfase à criatividade e à plasticidade das culturas criadas pelos africanos e por seus descendentes na América (MINTZ; PRICE, 2003) Apud: MARCUSSI, Alexandre Almeida. “Ambiguidades do conceito de crioulização entre a teoria e a empiria”. ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009. Disponível em:http://anais.anpuh.org/wpcontent/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0092.pdf. Moacir dos Anjos também fala da crioulização em um sentido expandido: “Nesse sentido expandido, crioulização pode referir igualmente a processos de recombinação de elementos étnicos europeus e africanos nos domínios da música, da arquitetura, do vestuário, da culinária ou da religião. O que mais distingue dos demais a ele correlatos, porém, é a sua localização histórica precisa, a qual enfaticamente evoca a natureza violenta das relações entre os povos ali e naquele momento postos em contato. ANJOS, Moacir dos. Local/global: arte em trânsito. Coleção Arte+, Jorge Zahar Editor, 2005.Rio de Janeiro.p.25. 97 COSTA.p. 29 65 equilíbrio possível no tecido social desta comunidade marcada pelo drama do descobrimento. É certo, o crioulo é uma construção antropológica imputável, tanto para os mestres quanto para os escravos, que a utilizavam como meio de comunicação, mas como o colono dispunha de duas línguas (o francês e o crioulo), e o escravo dispunha de uma só (o crioulo) para realizar o investimento funcional e simbólico que lhe permitiria existir como homem no seio de uma comunidade, de maneira que o crioulo, apesar de suas origens mistas, vai, sobre o plano sócio-simbólico, se encarregar dos valores ligados à revolta, à resistência, à provocação, ao desafio, à subversão, mas 98 também à identidade, à autenticidade. Os cantos de ladja trazem esta subversão, provocações e principalmente desafios. No entanto, são irônicos, carregam revoltas de trocadilho em trocadilho, quiproquós e duplos sentidos, que para Glissant, “a ponta final do discurso crioulo não dispara o sorriso apreciador, mas o riso participante: ela sublinha ela mesma: reunindo-se por uma prática constante de narradores de todo país: justadores poéticos, griôs”. 99 Apesar de serem raros hoje em dia, a Martinica possui uma tradição de contadores de histórias. A Apal, uma das rádios locais, apresenta um programa chamado Konté konté com os contadores Serge Bazas, Misié Lasous, Elie Pennont entre outros. Escutei um destes programas ao lado de Mehdy, ele ria muito das histórias, consegui pescar apenas algumas palavras deste crioulo rápido e musical. Naquele mesmo dia ele tentou me levar para conhecer um velho contador, mas não o achamos. Este é um universo próximo ao dos ca(o)ntadores de ladja. Mehdy contou-me que recentemente teve um desentendimento com outro lutador, que o acusou de utilizar perfumes encantados para ir nas rodas de ladja, 98 BERNABÉ, p.28. Tradução nossa: “Certes, le créole est une construction anthropologique imputable tant aux maîtres qu'aux esclaves qui l'utilisent de concert comme médium de communication, mais tandis que le colon disposait de deux langues (le français et le créole), l'esclave, lui, ne disposait que d'une seule (le créole) pour accomplir l'investissement fonctionnel et symbolique lui permettant d'exister comme homme au sein d'une communauté, de sorte que le créole, malgré ses origines mixtes, va, sur le plan sociosymbolique, se charger des valeurs liées à la révolte, la résistance, la provocation, le défi, la subversion, mais aussi à l'identité, à l'authenticité.” 99 GLISSANT. p. 50. Griô é um abrasileiramento do termo Griot, que por sua vez define um arcabouço imenso do universo da tradição oral africana. É uma corruptela da palavra “Creole”, ou seja, Crioulo a língua geral dos negros na diáspora africana. Foi uma recriação do termo gritadores, reinventado pelos portugueses quando viam os griôs gritando em praça pública. Foi utilizado pelos estudantes afrodescendentes que estudavam na língua francesa para sintetizar as milhares de definições que abarca. O termo griô tem origem nos músicos, genealogistas, poetas e comunicadores sociais, mediadores da transmissão oral, bibliotecas vivas de todas as histórias http://www.leigrionacional.org.br/o-que-e-grio/ 66 seduzindo as mulheres dos outros. Como vingança, Mehdy escreveu uma letra sobre esta pessoa, para ser cantada nas rodas. Este outro lutador tem um nome parecido com uma marca de carro francesa, ele brincou com essa semelhança. A canção fala de um carro que quebrou ao chegar no bairro de Bò Kannal, local tradicional das rodas de ladja, se referindo a uma surra que este lutador levou de outro lutador, que por sua vez era mecânico. As músicas de ladja trazem esta irreverência dos Griôs, das contações de histórias, desvios de quem pode subverter e ironizar um sistema do qual ele ainda se vê à margem. Um dia Mehdy me disse: – O sistema de plantation está vivo até hoje. – Vivemos em castas. – Ladja é resistência, como as lutas de galo e o dado. – Estar isolado nos limita. – Estes são os poucos lugares onde as gerações ainda se encontram na tradição. – São pessoas que não conheceram o universo literário desta ilha. – Fanon não fala crioulo. Esse comentário do Mehdy me fez perceber a importância do crioulo como resistência popular. Quem não fala crioulo é afrancesado. Quem fala crioulo puxa a raiz africana. Existe uma expressão “pare de brochar”, que é utilizada quando algum martinicano passa um tempo na França e volta falando como um francês da metrópole (é assim que eles chamam a França). Expressão que carrega a persistência da colonização e o sentimento de colonizado. Perguntei a ele. – Existe uma voz contemporânea, algum pensador atual com o peso destes autores mais consagrados? – Não, mesmo os mais tradicionais, foram importantes somente naquele momento, com sua filosofia existencialista. – Tudo esfriou. – O jovem só está preocupado com a sua moto, a sua festa, conseguir grana. – Ele não quer mais esta discussão sobre identidade. – Falta uma filosofia atual. Para Glissant, ao contrário do crioulo haitiano, que rapidamente ultrapassou a condição de desvio, simplesmente porque ganhou a responsabilidade produtiva da 67 nação, o crioulo martinicano, apesar dos atuais movimentos da crioulidade, continua sendo uma língua de resistência. Um contrapeso – o desvio que ainda não conseguiu contornar o impossível. Por esse impossível, entende-se o corte radical, como o operado pelo o Haiti e outras ex-colônias francesas como a Argélia, que também enfrentou uma batalha sangrenta para conquistar a sua independência. O corte radical seria a ponta extrema do desvio. Embora este corte radical pareça ainda distante desta outra ponta que é o efetivo pertencimento à França, também extremo dado à persistência do colonialismo, a crioulidade se apresenta na comunidade martinicana como um contorno possível. O discurso do Elogio à crioulidade, ao sugerir uma revitalização cultural e identitária do crioulo, potencializa novas revisões dos discursos hegemônicos importados da metrópole francesa, sob a ótica neocolonialista e toda condição ambígua de dependência que o termo “departamento ultramarino” carrega em associação a diferenças estabelecidas por leis, decretos e costumes. Trazendo à tona a movimentação de ruptura com os modelos estéticos e epistemológicos franceses. Dando voz a toda porosidade que existe entre o universal e o particular para construir o crioulo: Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos, nós nos proclamamos Crioulos. Isto será para nós uma atitude interna, ou melhor: uma vigilância, ou melhor ainda, uma espécie de invólucro mental no meio do qual se construirá nosso mundo em plena consciência do mundo. Estas palavras que lhes transmitimos não provêm da teoria, nem de princípios eruditos. 100 Elas se ligam ao testemunho... É a partir destes movimentos, que surgem com Glissant, e ganham força com a crioulidade, que os atores populares, personagens do dia-a-dia, finalmente ganharão o protagonismo no imaginário literário, entre eles, os tocadores de tambor, como “Solibo”, 101 personagem central de um de seus romances, um irônico contador de histórias e tocador que é misteriosamente assassinado durante o carnaval, e na 100 CHAMOISEAU et al., 2010, p. 13. Tradução: Magdala França Vianna. ”Ni Européens, ni Africains, ni Asiatiques, nous nous proclamons Créoles. Cela sera pur nous une attitude intérieure, mieux : une vigilance, ou mieux encore, une sorte d’enveloppe mentale au mitan de laquelle se bâtira notre monde en pleine conscience du monde. Ces paroles que nous vous transmettons ne relèvent pas de la théorie, ni de principes savants. Elles branchent au témoignage.” 101 CHAMOISEAU, Patrick. Solibo Magnifique. Gallimard. Barcelona. 2013. 68 tentativa de desvendar o crime, todos os absurdos de uma sociedade pós-colonial vêm à tona. Além do crioulo, e da sua ligação com a crioulidade, a ladja mantém viva a personificação dos “négres marrons” 102 e o respeito pelos “quimboiseurs” 103 através da figura de seus “majó”. Termo que designa os grandes detentores dos segredos desta luta, que reúnem as características de exímios lutadores, cantores, tocadores de tambor e conhecedores da “science”. 104 Trata-se de um importante resgate, de dois casos espetaculares de desperdício nas suas funções sócio-históricas. Para Glissant, o negro marron era o único verdadeiro herói popular das Antilhas, as grandiosas investidas para sua captura, davam a medida da sua coragem e determinação. Um exemplo incontestável de recusa total e de oposição sistemática. Pouco a pouco, os colonos e o poder local, junto com a igreja, conseguiram transformar a imagem de herói em bandido vulgar, que não gosta de trabalhar e ataca as criancinhas. Intoxicação alienante de ação colonialista – desequilíbrio inevitável. O nome Victor Schoelcher está presente em toda Martinica, batizando a universidade local, ruas, praças, avenidas e biblioteca. Foi ele quem conduziu oficialmente a polêmica abolição da escravidão local. A lei da abolição foi assinada em 27 de abril de 1848, valendo para todas as colônias francesas, mas os colonos martinicanos pediram que ela só começasse a vigorar a partir de agosto, requisição que foi acatada pelo poder francês. Diante deste absurdo explodiu uma violenta rebelião dos escravos no dia 22 de maio, antecipando para o dia seguinte da revolta a sua aplicação. 102 “E assim a marronagem histórica..." É cópia do francês marronage, que designa o ato de os escravos se evadirem (a que, atualmente, se acrescentou a acepção de resistência à cultura dominante). O Dicionário Francês-Português da Porto Editora dá como tradução de marronage “exercício ilegal de uma profissão”, “fuga, evasão de escravos”. Marron é, em francês, castanho, como sabem, mas pelo mesmo vocábulo também se designava o fugitivo, o gentio, o ilegal e o clandestino. Ora, não é raro ver, em especial em autores brasileiros, para referir a mesma realidade, a palavra, que a maioria dos dicionários não regista, “quilombolismo”. in: http://linguagista.blogs.sapo.pt/98794.html 103 “négres marrons” tradução: “negros marrons. Marron é, em francês, castanho, como sabem, mas pelo mesmo vocábulo também se designava o fugitivo, o gentio, o ilegal e o clandestino. E “quimboiseurs” se refere ao praticante do “quimbois”. Quimbois designa o trabalho em que se associam a medicina das plantas e o saber religioso africano; popularmente foi associado ao curandeirismo. Este termo ganhou um sentido pejorativo no processo colonialista. 104 este termo como já foi citado, é uma forma contemporânea de mascaramento do termo quimboiseur. 69 Para muitos artistas e pesquisadores contemporâneos, essa valorização de Victor Schoelcher, homem branco, como figura de herói da libertação, é uma forma de mascarar, de forjar um contrapeso para os verdadeiros heróis dessa história – os negros marrons 105. Atualmente existe um forte movimento na capital Fort de France, exigindo a troca de alguns nomes de rua, onde são homenageados personagens considerados racistas. Um dos casos mais polêmicos é a retirada do nome Victor Hugo de uma das principais vias da cidade. Se o nome do herói branco designa oficialmente a materialidade de seus espaços, a marronagem circula na invisibilidade da resistência, no boca a boca dos iniciados. Alguns lutadores de ladja confessam orgulhosos, que praticam a marronagem econômica, ou seja, preferem abdicar do assistencialismo da metrópole e não depender dos seguros de desemprego. Em contrapartida, não declaram seus rendimentos, para não serem tributados. Alguns movimentos atuais utilizam o termo, como o Marronismo Moderno do artista plástico René Louise, que sugere uma continuidade da obra começada por seus ancestrais, nos quilombos. Para ele, era lá onde nasciam os embriões das primeiras concepções estéticas de resistência. Trata-se hoje de uma forma de marronagem conceitual diante de uma violência conceitual, uma resistência interior, tanto no sentido intelectual quanto espiritual, é um “exprimir-se sem complexo”, oferecendo sua contribuição à “cultura universal”, 106 envolvendo o contato com a natureza e espíritos. Para René, o aprendizado da teoria marronista pode ser comparado ao processo de aprendizagem xamânico. Também o artista martinicano Serge Hélénon, fundador da École negro-caraibe, reforça o aspecto mágico presente em sua obra e em grande parte da produção plástica caribenha: “Eu sei por exemplo o que é o quimbois, e o que ele pode trazer, então devemos ter medo também. Eu faço uma 105 Optei por utilizar o termo “ negros marrons” como tradução do termo francês “nègres marrons” para se referir aos escravos fugidos por se tratar de uma ex-colônia francesa, apesar de alguns pesquisadores brasileiros preferirem utilizar o termo “maroon”. A origem desta expressão vem da palavra em espanhol “cimarrón” que designava qualquer animal doméstico fugitivo e posteriormente foi adotada para se referir aos escravos. Esta expressão derivou para o francês “nègre marron” ou “neg mawon” em crioulo e foi traduzido para o inglês em 1666 como “maroon”. Ver Encyclopaedia Britannica, Disponível em: https://www.britannica.com/topic/maroon-community 106 RIBEIRO DE TOLEDO, Magdalena Sophia. “O nègre marron e as marronagens conceituais na Martinica contemporânea: refexões sobre a teoria estética do marronismo moderno de René Louise”. In: Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 9, n. 2 jul./dez. 2014 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print). 70 reapropriação de nós mesmos, retomando o que nos tomou... É uma estética carregada, em razão da presença de uma magia”. 107 O caso dos quimboiseurs é inseparável da marronagem, da vida nos quilombos. Aqueles que traziam o conhecimento destes rituais, no cruzamento dos diversos povos africanos, assumiam um importante papel sócio cultural. Pois eles seriam responsáveis pela vida religiosa, dos cuidados médicos e dos ritmos de trabalho. Dentro desta contestação que se caracteriza a marronagem, o quimboiseur se torna um sábio, conselheiro espiritual – o inspirado. “Seria em princípio o depositário de uma grande ideia, da manutenção da África, e, por via de consequência, de uma grande esperança, a do retorno à África. 108 O quimbois é mais uma das inúmeras visões de mundo, é preciso atentar, para não simplificarmos esta manifestação a partir de uma visão eurocêntrica, como apenas uma religião, já que este vocábulo é inexistente em muitas culturas africanas, como afirma o escritor queniano John Mbiti: Religião na África é uma cosmologia. Uma visão de mundo integrada, onde os ancestrais e os vivos estariam conectados; definindo uma filosofia...as cosmologias africanas são de cunho extremamente antropocêntrico, são 109 experienciadas pelo corpo. Em um dos meus encontros com David para aprender a ladja, conversamos sobre o quimbois, ele me contou que o poder dos quimboiseurs da Martinica era muito forte, impressionando até mesmo os maiores conhecedores do vodu haitiano. O quimbois trabalhava muito com encomendas e envenenamentos. Na ladja, antigamente, cada tocador de tambor trazia o seu instrumento, com medo de envenenamento ao tocar outro tambor. Existe um relato, no qual Andrea, um dos maiores e mais talentosos tocadorcantador, foi envenenado ao tocar o tambor de um desconhecido. Até hoje é comum alguns tocadores andarem sempre com uma pequena toalha, para sentarem encima 107 BERTHET, Dominique. Org. “40 entretiens d’artistes Martinique, Guadeloupe”. L’Harmattan. Paris. 2015. P.251 e 254. Tradução nossa: “Je sais par exemple ce qu’est le quimbois, ce que cela peut apporter, ce dont on doit avoir peur également. Je fais une réappropriation de nous-mêmes en reprenant ce que nous a pris...C’est une esthéthique chargée, en raison de la présence d’une magie.” 108 GLISSANT. P.181. Tradução nossa: “C’est en principe le dépositaire d’une grande idée, celle du maintien de l’Afrique, et, par voie de conséquence, d’un grand espoir, celui du retour à l’afrique.” 109 Apud, FERNANDEZ, Ana Paula da Silva. “Entre água e fogo: Vivências de cosmologias africanas em Candomblé”. XXVIII simpósio nacional de história. Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios. 27 a 31 de julho de 2015. Florianópolis. SC.p.4. 71 e limparem o couro antes de tocar, para evitarem envenenamentos e contatos com espíritos indesejados, habitando aquele tambor. Estes ensinamentos David adquiriu com seu mestre Iêiê, aluno direto de Andrea, um dos mais famosos Mestres de Savana, termo que designava os conhecedores dos mistérios desta arte. Outra expressão deste universo é o “tambou monté” (tambor montado) que se refere aos tambores enfeitiçados. Nos quais o tocador encomendava ao quimboiseur um trabalho. Através de óleos, plantas e rezas este transmitia ao tambor um empoderamento espiritual, para alcançar o toque mágico. O universo da ladja está diretamente associado ao quimbois, ou à science, como eles preferem se referir. Existe todo um misticismo com os números, como o três, sete, nove. Beber três goles de água antes de luta, pode bloquear um envenenamento. David, quando foi enfrentar no Senegal os lutadores do Laamb, a luta senegalesa, notou que eles também possuem uma relação muito respeitosa com o mar – a água. Após as lutas, eles sempre dirigem-se ao mar para curar o corpo, e assim como os martinicanos, acreditam no poder sagrado e purificador da água, comprovando os atravessamentos mágicos e heranças africanas da ladja. Benin, Congo, Guiné, Senegal, Cabo Verde... desenraizamentos, condição de vida que os transformavam em homens-objeto, como o gado de seus proprietários. Depois de rebatizados com o nome dos seus donos, alimentados e vestidos conforme o nível de perversidade e fantasia de seus patrões, privados de seus deuses, música, dança, eram obrigados a guardar no mais profundo deles a lembrança africana. Resistência muitas vezes manifestada em envenenamento do patrão e de toda a sua família, ou de suicídios, infanticídios, revoltas, fugas para as florestas, magia, marronagem para poder conservar certas práticas ancestrais e suportar o peso. Foi assim que as danças de combate africanas, proibidas pelos senhores de engenho, sobreviveram, e se recriaram. Em uma das últimas noites na Martinica, na minha segunda viagem, tive a oportunidade de conhecer Dadou, 110 um verdadeiro “mait’ savan’n” 111 vivo da ladja. 110 A maioria dos lutadores de ladja, principalmente os mais velhos, costumam usar apelidos, pois existe uma crença que, ao não pronunciar o nome verdadeiro, os espíritos malignos não conseguem encontrar o sujeito. 111 Este termo, em crioulo, significa Mestre Savana, que designa os mais fortes, os maiores conhecedores da arte. 72 Nosso encontro foi à noite em Fort-de-France junto ao seu carro, que de tão velho parece andar por magia, é lá que ele ganha a vida vendendo coco. Os lutadores mais novos salientam sua precisão nos golpes com a mão, esta qualidade estaria ligada a sua lida por muitos anos com o “monstro”, apelido do seu facão, para cortar a fruta. No entanto, como ele mesmo gosta de afirmar, seu valor não está só na mão, todo corpo é uma arma de combate: “tout kò’w sé komba”. Dadou também falou das formas perigosas do combate, e como a diferença dos nomes danmyé e ladja se referia a isso. Ele disse que a ladja era uma forma particular do danmyé, que se referia ao combate total, que utilizava inclusive armas como a faca, navalha, facão e “danma” 112 podendo ainda empregar processos mágicos maléficos. “Podíamos praticar esta forma de combate até a morte”, falou o velho mestre de savana. Entre os diversos assuntos, um me chamou atenção por sua potência poética. Falávamos sobre casamento, e ele disse que não dormia com a mulher há muitos anos, que preferia dormir na sala, no chão, para ter maior contato com a terra, e, porque detestava ser acordado durante o sono. Depois de dar algumas receitas de flores colocadas na boca para recuperar o sonho, em caso de esquecimento na manhã seguinte, complementou: – Nenhum homem pode ser privado de sonhar. Também reconhecido como um forte quimboiseur, ele prefere ser chamado de “séancier”, 113 um conhecedor da “science”, uma aproximação à Ciência que é, em verdade, apropriação. Este mascaramento do termo é um exemplo profundo do “vê mas não vê” e das estratégias desviantes do crioulo. Dadou traz no sangue e nos gestos a marronagem. Os contrapesos de quem vive à deriva do sistema, vende os cocos colhidos em sua propriedade e não paga impostos diretos pela sua atividade, fortalecendo desta forma todo o aspecto desviante e marginal dos lutadores de ladja. Paralaxes que o sistema, e, muitas vezes, nem mesmo os talentosos escritores da crioulização percebem, seres que trazem a herança dos antepassados ancoradas no corpo – invisíveis. 112 Trata-se de uma arma feita na Martinica, constituída de um cabo de madeira e de uma lâmina de ferro afiada dos dois lados, que pode ser flexível. DRU, Pierre.p. 66. 113 Este termo se refere a uma espécie de curandeiro, uma forma disfarçada de se referir a um “quimboiseur”. Costuma-se dizer que uma pessoa assim é um conhecedor da “Séance”. 73 1.4 Síncope O tambor encantado revira-se, “tambou monté”, magia de iniciados, o calcanhar desliza sobre a pele deixando a batida mais grave ou aguda, mãos sonoras e ágeis colorem os tempos fracos do ritmo, herança ancestral africana, que entre outras características pode acentuar a diferença entre o toque para dançar ou lutar, deslocamentos na acentuação rítmica capazes de incitar guerreiros ao combate – síncope musical. O cantor repete seu mantra em crioulo, desprezando fonemas desnecessários da língua francesa para tocar mais fundo aos corpos – síncope linguística. Tambor e voz atravessam o ar e os corpos para lançar os combatentes ao “dimi-trans”, meio-transe em crioulo, outro estado de consciência – síncope corporal. Síncope é tempo fraco, colorido musical entre tempos fortes, corpo em canto, silêncio preenchido pelo grito – diáspora, batuque, macumba, quimbois, candomblé, transe, capoeira, samba, bélé, ladja, tak pi tak pi tak tak pi tak pi tak tak pi tak pi tak... Ou como me disse David em uma de nossas aulas de tambor: “Síncope é caminhar dançando, é desafiar as normas e se deixar levar pelo improviso, é subversão”. 114 Também é caminho, comunicação entre o corpo e o espírito, conhecimento ancorado no corpo dos lutadores dos combates cadenciados da diáspora, como explica Muniz Sodré: Síncopa, sabe-se é a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte... Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço... Entre o tempo fraco e forte, irrompe a mobilização do corpo, mas também o apelo a uma volta impossível, ao que de essencial se perdeu com a 115 diáspora negra. Além da síncope musical, existe a síncope corporal caracterizada pela perda da consciência e a síncope linguística que se refere à supressão de fonemas em uma língua. Na ladja percebemos as três formas de síncope. Juntas elas conferem um aspecto particular para esta expressão. Este emaranhado de significações entre 114 FATNA, David. Depoimento ao autor em 23/02/2016 115 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad Editora. 2ed. Rio de Janeiro , 1998. p.11. e 67. 74 o corpo, a língua e o ritmo cristaliza-se em um exercício de (in)visibilidades, no ou wè’y ou pa wè’y. Ações do corpo em torno do que deve ser mostrado ou ocultado. O coro responde ao canto com força, ritmado, emanando vibrações, complementando pulsões de uma roda em reviramento, corpos que se desprendem. Entram na roda os elegantes “Met Savann” 116 da ladja, compartilhando seus dons, sem se exibir, sem vacilar eles cadenciam sua luta, dançam no espaço circular da música de origem africana, entrelaçando-se à memória longínqua de uma terra deixada, eterno retorno musical, cósmico, encontro com antepassados, ancestralidade encarnada em um único corpo, sincopado, encantado, dando corpo à vida, à roda do mundo, que o mundo deu, que o mundo dá. “Monté matjé tambou-a” é hora do lutador se aproximar do tambor para se impregnar da música danmyé, na cadência ele inicia o ritual da luta. Os antigos lutadores ressaltam que a ladja é um combate do corpo todo “tout kó’w sé combat”. Com um caminhar dançado o combatente se aproxima da batida do tambor em busca de energia, deixando a vibração musical penetrar seu corpo, seus poros “monté kó’w”. Esta arte refinada de fracionar o ar em cortes sonoros capazes de levar uma pessoa ao transe é uma herança africana. Seu colorido se difere dos outros e uma de suas características mais marcantes está justamente na capacidade de reviramento do ser em sonoridade. Musicalmente a palavra “síncope” é um conceito criado pelos teóricos da música erudita ocidental 117 e uma forma encontrada para tentar transcrever a complexidade da musicalidade africana, como diz Carlos Sandroni: Quando, no século XIX, compositores de formação acadêmica começaram, por diferentes razões, a tentar reproduzir em suas partituras algo da vivacidade rítmica que sentiam na música dos africanos e afro-brasileiros, o fizeram, é claro, com os meios de que dispunha o sistema em que foram educados. Ora, como ficou dito acima, tal sistema não prevê (entre outras características da música africana) a interpolação de agrupamentos binários e ternários. O resultado é que os ritmos deste tipo apareceram nas partituras como deslocados, anormais, irregulares (exigindo, para sua correta execução, o recurso gráfico da ligadura e o recurso analítico da contagem) – em uma palavra, como síncopes. Assim, mesmo se a noção de síncope inexiste na rítmica africana, é por síncopes que, no Brasil, elementos desta última vieram a se manifestar na música escrita; ou, se 116 Traduzindo do crioulo significa: Mestre Savana. Designa aquele que tem grande conhecimento técnico, sabedoria e capacidade de transmitir os fundamentos da ladja. 117 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012 .p.22. 75 preferirmos, é por síncopes que a música escrita fez alusão ao que há de africano em nossa música de tradição oral. É nesse sentido, e só nesse, que tinham razão os que afirmavam que a origem da síncope brasileira 118 estava na África. Aproprio-me da palavra síncope em um transbordamento poético; tentando dar corpo literário à carne vibrátil que luta para decifrar os silêncios, as vertigens, alterações inesperadas onde a musicalidade se magnifica e repercute atravessando os corpos. É nesta reação entre ar e carne, avesso e direito do corpo, visível e invisível que opera a musicalidade africana e da diáspora que utilizo a síncope. Ou como diz Muniz Sodré: Na cultura tradicional africana, ao contrário, a música não é considerada uma função autônoma, mas uma forma ao lado de outras – danças, mitos, lendas, objetos – encarregadas de acionar o processo de interação entre os 119 homens e entre o mundo visível (o aiê, em nagô) e o invisível (o orum). A grande maioria das lutas africanas são praticadas sob o efeito inebriante da música, por isso são conhecidas como danças de combate e se diferenciam das lutas praticadas em outros continentes. São rituais utilizados para os mais diversos fins; enfrentamento entre tribos e vilarejos, ritos de passagem ou pura diversão. Um dos exemplos vivos desta tradição na África é a luta senegalesa, também conhecida como laamb, em wolof. Prática ancestral adaptada aos novos tempos ela tornou-se um esporte nacional, com grandes torneios, patrocinadores e regras claras para definir o ganhador. Os principais combates contam sempre com estádios lotados e transmissão ao vivo pelos canais de televisão do país, alguns eventos contam com um público acima de trinta mil pessoas. Existem dois estilos desta luta: a lutte avec frappe que traduzindo do francês quer dizer luta com batida (golpe) e refere-se ao estilo mais moderno da luta e a lutte sans frappe ou traditionnel, que significa luta sem batida ou tradicional e se refere ao estilo mais antigo desta prática. Em ambos os casos o combate se realiza em dois tempos de dez minutos, é feito sem nenhuma proteção corporal como luvas e capacetes, e é considerado vencedor aquele que faz o adversário cair no chão encostando a cabeça, ou as nádegas, ou as costas, ou quatro pontos do corpo no solo. 118 SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933) 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012 .p.28. 119 SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad Editora. 2ed. Rio de Janeiro, 1998. p.21. 76 Nas ruas da capital Dakar anúncios publicitários das principais companhias telefônicas e de cartões de crédito utilizam a imagem dos grandes campeões da luta. Estes lutadores gigantescos, alguns pesam mais de 150 quilos, são heróis nacionais – imagem de sucesso. Uma atividade que acompanhou o processo de urbanização. De um lado a laamb se adaptou ao desenvolvimento contemporâneo senegalês, de outro, ela continua pulsando nos vilarejos mais remotos no interior do país. Em ambos os casos a luta não abriu mão da tradição, tanto no pequeno vilarejo quanto no grande estádio da capital o ritual mantém seus fundamentos, passados de geração em geração. Assisti ao laamb neste dois contextos, no estádio e no vilarejo. Em Dakar o ambiente lembrava muito uma chegada ao Maracanã, mas ao invés das bancas com camisas de clubes haviam tendas vendendo todo tipo de gri-gris, mandingas para qualquer fim e ocasião. Cobras vivas e secas, peles e cabeças de diversos animais, patuás, patas, chifres, líquidos, pós, colares e uma profusão de objetos mágicos. Na entrada do Estádio Iba Mar Diop um grande número de espectadores compravam ingressos com preços entre 1500 e 5000 CFA (2 e 5 euros). O evento era organizado pelo antigo campeão Mbaye Guèye, conhecido como o primeiro tigre de Fass. O prêmio oferecido ao campeão da noite era de um milhão de francos CFA, a moeda local, algo em torno de mil e quinhentos euros. Ao entrar na arena sob o som dos tambores e o coro de vozes femininas é impossível não sentir uma forte energia. Os lutadores caminham de um lado ao outro de forma cadenciada, é neste momento que percebemos a dança, o ritmo impregnado nos corpos. Não é à toa que os grandes campeões são apelidados de tigres, leões... estes lutadores se deslocam em movimento felino, grandes massas corpóreas desafiando a gravidade em uma suave flutuação, como se dotados da força sobrenatural de seus gri-gris e encantados pela música eles pudessem levitar. Cada lutador entra acompanhado de seu marabu, feiticeiro responsável pela proteção espiritual. Com potentes gri-gris, poções mágicas distribuídas em diferentes garrafas, animais secos ou até mesmo vivos, leite de cabra e mais uma dezena de objetos, o marabu e seus ajudantes lutam junto. Trata-se de um trabalho em equipe, enquanto o lutador enfrenta seu adversário corporalmente, os marabus se enfrentam magicamente, misturando líquidos, enterrando objetos, riscando a terra, evocando poderes na cadência dos golpes. 77 Uma dezena de tamboreiros batem seus instrumentos em complexa polirritmia; um deles, ao centro, dita o ritmo e os outros o acompanham, pulverizando energia no ar. O canto é feito através de um coro de três a quatro cantoras, repetitivo, intenso ele incita ao transe. O público participa ativamente do combate, torcendo, gritando, somando seus gri-gris e energias aos lutadores. As lutas acontecem no centro da arena, quatro lutas ao mesmo tempo em um sistema de mata-mata até chegar à grande final. Antes do combate alguns lutadores executam uma dança chamada bakk, para atrair a atenção do público e colher as energias. Quando começa o combate não há mais espaço para a dança, os movimentos são estudados, estratégicos. No vilarejo de Sakhor a estrutura do ritual era bastante semelhante ao do grande estádio, só que em uma escala bem menor. Levei um dia inteiro de viagem para chegar até lá, foram necessários dois táxis compartilhados, dois ônibus brousse de 35 lugares super quentes e apertados e mais dois calandos (táxi compartilhado de 7 lugares) até chegar a Loul Sessène, o último vilarejo com estrada antes de Sakhor. De lá peguei uma charrete e viajei por uma hora e meia. Dividi a viagem com um dos lutadores locais, seu marabu e ajudantes. O caminho foi longo e silencioso. Atravessamos enormes campos abertos, rodeados de baobás e salinas com seus montes de sal dispostos geometricamente no solo. Depois de uma hora de viagem fomos obrigados a descer da charrete e atravessar uma pequena ponte a pé, frágil demais para suportar o peso. Finalmente, avistamos em meio ao nada uma centena de casas circulares encravadas em solo árido, cobertas por telhados de palha. Crianças corriam em um pequeno cemitério, emolduradas pelo som dos tambores vindos do centro do vilarejo. Na temporalidade cósmica da música africana a vida reinscrevia simbolicamente a morte, ordenando assim o ritmo da existência onde todo fim é recomeço. A noite caía rapidamente. O clima era de festa. A luz de energia solar acabara de ser instalada possibilitando a realização do evento naquela noite. Tecidos coloridos fechavam os acessos ao centro da comunidade, onde porteiros controlavam a entrada do combate. As pessoas estavam elegantes, vestidas com roupas leves e coloridas, nitidamente feitas sob medida. Quando os lutadores entravam, o público, principalmente as crianças, se extasiava. Acompanhados de seus marabus, eles começavam uma espécie de reconhecimento do terreno, 78 cavando em determinados lugares da arena, enterrando objetos, tomando banhos de águas e leite de cabra. Cada lutador espalhava sua magia em um ritual próprio. Duas mulheres bem maquiadas sentavam em uma pequena mesa para gerenciar o dinheiro das apostas. O lutador que veio comigo na charrete me explicou que antigamente os vencedores ganhavam animais e colheitas do vilarejo do lutador vencido. O ritmo dos tambores e das cantoras continuava intenso, os cantos repetitivos e hipnóticos apresentavam cada lutador, louvando sua família, seus feitos e sua comunidade. Em um certo momento algo estranho aconteceu, os lutadores perdiam a concentração e as lutas demoravam a iniciar. Um dos organizadores, visivelmente constrangido pegou o microfone para anunciar o cancelamento das lutas, por ordem de um fiscal da federação nacional que acabara de chegar. Ele alegava o não cumprimento das normas e trâmites burocráticos necessários para a realização daquele evento. Como eu tinha um longo caminho de volta, peguei a mesma charrete da ida. A festa continuava mesmo sem luta no vilarejo, com muita música e dança. Conforme nos afastávamos o som dos tambores dava lugar ao silêncio e ao som dos animais da noite. Uma enorme lua banhava nosso caminho. O filósofo Mogobe B. Ramose ao explicar sobre a filosofia Unbuntu que concebe o mundo como uma teia de relações entre o divino, a comunidade e a natureza, fala da importância da música: “dançar junto com o ser é estar em sintonia com o ser”, 120 ele salienta também a busca dos africanos pela harmonia em todas as esferas da vida, uma procura que se estende à música lhe conferindo beleza e excelência. Para ele a concepção da filosofia africana é também musical, enraizada em uma concepção musical do Universo, que o faz dinâmico. No entanto, Ramose sublinha diante de tal citação o cuidado que deve se ter com a visão ingênua que africanos são um povo naturalmente governado pela emoção: Postular e realizar a excelência como um alvo é sempre um ato racional. Então isso é uma criação da beleza. Entretanto, o julgamento estético pode ser espontâneo, e isso não significa necessariamente que é desprovido de razão. O tambor, como um instrumento básico da música africana, é um 121 exemplo pertinente disto. 120 RAMOSE, Mogobe B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books, 1999, p. 49-66. Tradução para uso didático por Arnaldo Vasconcellos. Mimeo p.8. 121 Idem p.8. 79 No lado de cá do atlântico, nas aulas de toques do tambor da ladja com David pude perceber esta racionalidade da qual Ramose se refere. Desprovido da razão não se atinge a aparente espontaneidade alcançada por músicos experientes. É necessário um longo aprendizado até o corpo racionalizar, absorver as diversas formas de bater na pele do tambor, seu extenso repertório inclui batidas com a mão espalmada ou curvada, em cima ou embaixo, com todos ou só alguns dedos tocando o couro, golpes mais fortes ou delicados, rápidos e lentos, movimentos acrescidos com o deslizar do calcanhar no couro, deixando o som mais grave ou agudo. Paralelamente às técnicas de batidas, existe ainda o universo melódico com inúmeras frases e códigos que ligam a música ao combate, diálogos musicais de origem africana que reforçam esta excelência sugerida pelo filósofo. Nestes combates cadenciados de origem africana o domínio de seus repertórios musicais e corporais exige um alto grau de disciplina e racionalidade. Em diversas ocasiões eles foram disfarçados apenas em dança, ou, pelo menos, este aspecto foi intensificado como estratégia encontrada para seus lutadores poderem exercitar seus golpes. Através de uma astuta dinâmica de invisibilidades nascia o ou we’y oú pa we’y no danmyé e a mandinga na capoeira, adaptações na luta pela sobrevivência durante a escravidão. No lado de cá do Atlântico a polirritmia dos tambores mantinha vivas as danças de combate e cristalizava esperanças. Com seus gri-gris escondidos, marabus disfarçados, orixás sincretizados e movimentos adaptados, estas lutas africanas como a capoeira e a ladja engendravam uma nova forma de ação, com novos ritos e mitos. Por detrás das batidas dos tambores o corpo virou arma, e com ele silenciosas vinganças desafiavam com inteligência as adversidades e os absurdos da escravidão. Através do corpo e da música a África perdida renascia com a capoeira no Brasil e a ladja na Martinica, cada qual com suas singularidades. Nestes jogos de corpo se preservavam formas de pensamento, suas cantigas se abriam para uma polifonia de sentidos, ou como diria Eduardo de Oliveira: “o mundo não se reduz ao texto – mas o texto se reduz ao mundo”. 122 No lado de cá os heróis marginais nascidos na marronagem desenvolveram suas lutas, ganhando respeito e fama popular, contadas até hoje nos cantos da ladja 122 De Oliveira, Eduardo David. Filosofia da Ancestralidade como Filosofia africana. Educação e cultura brasileira”. p.11. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação - RESAFE. Número 18: maiooutubro/2012. 80 e de capoeira. Condição que obviamente desagradava as autoridades, por isso suas lutas foram perseguidas e proibidas. Sem nome de rua para estes heróis, restava apenas a clandestinidade como sopro. Apesar de todas as adversidades à margem do sistema, suas pernadas, rasteiras e cabeçadas sobreviveram discretamente na pele de poucos iniciados nestas artes de resistência. O princípio do ou wè`y ou pa wè`y possui uma forte ligação com o conceito de mandinga na capoeira, este último remete ao nome de um grupo étnico do antigo reino do Mali, na África Ocidental, que possuía poderosos feiticeiros como explica Maurício Barros de Castro: Os capoeiras se apropriaram do nome, mas ele surgiu no Brasil através de um costume disseminado pelos escravos na colônia: o de usar amuletos protetores conhecidos como “bolsas de mandinga”. Também chamadas de patuás, as bolsas eram utilizadas pelos capoeiras para “fechar o corpo” dos perigos do mundo. Ambos os conceitos, se referem à capacidade ilusionista dos movimentos e golpes, principalmente dos mestres da capoeira 123 lendários, cujos atos eram considerados mágicos. Um dia ao ler um texto do compositor e pesquisador brasileiro Guerra-Peixe sobre a influência africana na música brasileira, uma frase ficou na minha cabeça. Ele disse: “É também o estilo de tocar, especialmente o tambor. O africano dá outra ênfase à execução, dá outro colorido...” 124 Essa “cor” do som me chamou atenção, havia uma potencialidade poética naquele ato que me escapava ao mesmo tempo que desafiava. Lembrei desta frase ao visitar o senhor Constant Vélasques, um respeitado cantor, tocador de tambor e lutador de ladja. Ele havia me convidado para fazer uma aula de ladja em sua casa e passar o domingo com sua família e amigos. Alex Condoris, um dos seus alunos de tambor presentes, usou diversas vezes a expressão: “o colorido da música” se referindo à forma particular do seu professor tocar o instrumento. 123 CASTRO, Mauricio Barros de. “Ilusionismo”. Revista S/Nº- Transe. São Paulo: Bookmark publishing, 2004 124 GUERRA-PEIXE, César. “A influência africana na música do Brasil”. III Congresso Afro-Brasileiro. Recife, setembro de 1982. “Os Afro-Brasileiros”. Fundação Joaquim Nabuco. Editora Massangana, 1985 APUD. SANTOS, Eduardo Luiz Bello dos. Considerações interpretativas da obra Le Livre Magique de Xangô de Almeida Prado / Eduardo Luiz Bello dos Santos. -- São Paulo: E. L. B. Santos, 2017. 133p.: il. + Partitura. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Música – Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. 81 Foi um dos dias mais prazerosos da minha estadia na Martinica. Ele mora em Saint-Marie, comunidade situada no norte da ilha, berço do bélé e da ladja. Ele construiu em sua casa uma área para se dançar o bélé, lutar ladja, ensinar tambor e principalmente para reunir amigos. Estas casas são chamadas de “maison bélé”, em português: casa bélé. Estava presente seu filho Gaël Velasques, exímio tocador de tambor e dançarino de bélé, sua esposa Joceline Velasques, David, Chris, Alex seu aluno de tambor e mais dois amigos da família. Todos convidados para fazer a aula de ladja. Antes do treino o anfitrião colheu alguns cocos e laranjas. Sua casa fica em uma região rural onde ele e a esposa complementam a renda plantando e vendendo frutas e legumes na feira. Também bebemos a famosa “decolagem”, uma dose de rum virada à seco para despertar. Nestas festas cada um leva pendurado no pescoço seu próprio copo, feito de um pequeno coco, cabaça ou madeira talhada, hábito herdado das plantações de cana onde de tempos em tempos alguém passava para abastecer com água os trabalhadores. Tive que me contentar com um copo de plástico descartável. Constant Vélasques se comunica de forma particular, descendente de uma família de contadores, mestres do bélé e da ladja, ele fala com o corpo todo, criando um ambiente descontraído em sua volta, repleto de risos participantes. Ele se dirigiu ao seu tambor, nos explicando que este instrumento tinha 109 anos de idade e pertenceu a diversos tocadores lendários até chegar em suas mãos. Era construído à moda antiga, com barris de rum descartados. Enquanto o anfitrião tocava o tambor, David puxava um aquecimento feito apenas com movimentos próprios da ladja. Deslocamentos que exigem força, equilíbrio e concentração. Depois de aquecidos e habitados pelo tambor, Velasques convidou cada um de nós para fazer um combate com ele. O primeiro a enfrentá-lo foi Chris, o martinicano bom de capoeira. Diante dele, Constant demonstrou toda a sua classe e conhecimento da arte, com fintas e movimentos que confundiam o adversário ele aplicava o fundamento do ou wè’y ou pa wè’y. No final dos combates Constant Velasques comentava os pontos fortes e fracos de cada um. Fui o segundo a enfrentar o mestre. David bateu com força e esmero o tambor, Velasques brincou, dizendo que ele possuía uma maneira particular de tocar, uma batida bandida. Os movimentos do experiente lutador eram rápidos, difíceis de prever. Arrisquei alguns movimentos de capoeira. Após o confronto, ele 82 comentou que tanto o meu jogo quanto o de Chris, por usarmos movimentos de capoeira e outro código corporal, dificultava o diálogo. Também percebi isso, apesar de algumas semelhanças entre a ladja e a capoeira, entrava em jogo toda uma cultura corporal atrelada ao modo de ser de um brasileiro e de um martinicano, cada qual com seu gingado próprio, sobretudo alguém como Constant, que cresceu no meio rural, em uma família de tradição nestas práticas, onde existe toda uma maneira particular de se expressar, de usar a voz e o corpo. No último combate, o filho de Vélasques assumiu o tambor para dar ritmo ao combate entre David e nosso anfitrião. Uma troca cheia de respeito entre os dois experientes lutadores, duas gerações de majó. Apesar da idade, o mestre conseguia surpreender David. Em uma cadência particular, o confronto transcorria harmonioso, com um grande repertório de movimentos e paradas, que por sinal lembravam muito as chamadas da capoeira. O outro filho de Constant, que não estava no tambor veio me falar que assistíamos à uma cena rara, geralmente seu pai não abria seus segredos. Graças ao profundo respeito que seu pai nutria por David, estávamos tendo esta chance, ele complementou dizendo: – A geração do meu pai sofreu muita discriminação no processo de departamentalização e urbanização. – Fazendo com que eles se fechassem em pequenos círculos de iniciados. – Mesmo com o reconhecimento de suas tradições nos anos 1980 eles continuaram sempre desconfiados e reticentes em transmitir seus conhecimentos. – Principalmente no que se refere à ladja. O próprio Vélasques nos contou que a ladja sempre esteve ligada à magia, ao quimbois: – Eles não estavam sãos. – Estavam enfeitiçados. Perguntei mais sobre estes aspectos místicos da luta. Ele deu exemplos de lutadores de força descomunal, com coups montés (golpes montados, enfeitiçados). Mas ele rapidamente desviou o assunto, dizendo que não possuía conhecimento suficiente para continuar aquela conversa. Ele nos explicou que cada lutador desenvolvia sua forma de lutar, seu estilo, ou melhor, sua cor, sem regras, enquadramentos ou sistematizações. Cada um buscava sua própria forma de lutar ou tocar tambor, não havia escolas: 83 – O sujeito ia numa roda, olhava, olhava, aprendia, praticava e transformava. O domingo passava suave, em um ritmo próprio. O treino durou duas horas até o dono da casa nos convidar para beber cerveja, rum e coco fresco. Entre goles gelados, a conversa em crioulo continuava solta. Constant e David contaram sobre suas aventuras no Brasil, quando foram a Salvador para um intercâmbio entre capoeira e ladja. A conversa aguçou a curiosidade do grupo sobre a capoeira, então eles pediram para eu e Chris fazermos uma demonstração. Ao começarmos os primeiros movimentos David assumiu o tambor e Constant o canto, os experientes músicos tocaram e cantaram com perfeição os ritmos da capoeira guardados desde a viagem ao Brasil. Fizemos um jogo intenso, não queríamos decepcionar nossos interlocutores. Foi a segunda vez que joguei capoeira para lutadores de ladja naquela viagem. Nas duas vezes 125 senti uma clara mudança na forma como as pessoas me tratavam após os jogos. Ao vadiar, ao falar com meu corpo, eu ganhava o respeito do grupo. Depois da capoeira o encontro virou festa. David atacou o tambor com sua batida bandida, o anfitrião soltou a voz, o coro familiar preencheu o espaço com harmonia, a senhora Velasques chegou dançando em uma linda cadência, girou na roda ao som do corrido de ladja, energizou-se no tambor, desferiu alguns golpes na frente do marido, desafiando-o com um sorriso malicioso no rosto, flertando, brincando. O coro animou-se entre risadas, cervejas geladas e doses de um bom rum agrícola de 55% de graduação alcoólica. Mesas foram aparecendo em meio à dança. Um banquete feito apenas com produtos de sua própria horta: fruta pão, inhame, frango assado e molhos crioulos. Mais cerveja, rum e risadas. O aluno que falou do colorido na música de seu mestre me chamou em um canto e me presenteou com seu copo feito de cabaça para carregar no pescoço, fizemos um brinde. O anfitrião nos falou mais sobre seu tambor de 109 anos feito por um congolês e disse orgulhoso: 125 A primeira vez que me apresentei jogando capoeira, tocando e cantando foi durante o evento Résistance des rituels initiatiques dans les sociétés afro-caribeenes (tradução nossa: Resistência dos rituais iniciáticos nas sociedades afro-caribenhas). Fui convidado pelo professor de capoeira Téo Angoleiro, aluno do Mestre Manoel do grupo Ypiranga de Pastinha do Rio de Janeiro que mantem um forte vínculo com a Martinica através da capoeira. Outro detalhe que me chamou atenção nesse dia foi ver a participação da lutadora Samira Rémion em ambas as rodas, ela jogou capoeira conosco e depois lutou ladja na apresentação da associação AM4. 84 – Estou feliz em saber que este mesmo tambor continuará seu caminho na mão dos meus filhos. David atacou novamente o tambor, mais música e canto naquela tradicional casa-bélé, onde o colorido sincopado da diáspora africana atravessava gerações. Com o tempo percebi que este colorido da música africana possui uma forte ligação com os fundamentos ou wè’y ou pa wè’y na ladja e a mandinga na capoeira. Achar a visualidade do som, a cor na síncope é um exercício de criar um retrato abstrato da entidade musical, ou como diria Merleau-Ponty: “E tal como meu corpo só vê porque faz parte do visível onde eclode, o sentido tomado pelo arranjo dos sons nele repercute”. 126 É como a volta do mundo na capoeira onde o jogador circula em torno da roda até se agachar ao pé do berimbau e receber sua benção, seu poder, sua vibração. Ou como passos em volta da roda durante o corrido na ladja, onde o lutador se apresenta ao tambor para se energizar, habitar a música. No Brasil a capoeira sempre foi perseguida na monarquia. Até a primeira metade do século XIX ela ainda era praticada basicamente por escravos e o principal motivo de prisão. A partir de 1850 aparecem os primeiros registros de praticantes de capoeira libertos, inclusive das camadas mais ricas da sociedade, e um dos principais recursos utilizados pelas autoridades policiais como punição era o recrutamento militar forçado. Pouco antes da abolição da escravidão no Brasil, capoeiristas foram recrutados para defender o Brasil na Guerra do Paraguai em troca da liberdade. Após a abolição, apesar da liberdade e o reconhecimento por seus feitos na guerra, estes capoeiristas continuavam marginalizados na sociedade, então começaram a vender suas habilidades de lutadores. 127. No Rio de Janeiro, capital do país naquela época, maltas de capoeiristas, entre elas as famosas: Nagoas e Guaiamus, formavam milícias para coronéis, políticos e quem pagasse por seus serviços. Utilizando navalhas e bengalas, a luta perdia sua característica ritualística para dar lugar a uma atividade lucrativa e muito violenta. Documentações históricas do final do século XIX também se referem à aproximação entre a capoeira e a monarquia através da Guarda Negra, um pequeno exército de capoeiras surgido poucos meses após a abolição da escravidão para 126 127 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo. Perspectiva. 2012. p.148. Röhring Assunção, Matthias. Capoeira – The History of an Afro-Brazilian Martial Art. Routledge. 2005. New York.p.103. 85 defender a monarquia. 128 A prática da capoeira foi proibida em 1890 quando os republicanos assumem o poder e livram-se do que para eles era um ameaça associada à monarquia. A capoeira foi interditada justamente no momento em que o país vivia uma abertura política. Vale relembrar que a ladja também foi proibida quando a Martinica avança socialmente com a lei da departamentalização de 1946. Mas entre dominantes e dominados há de se desconfiar sempre dos adjetivos. Nestas duas versões oficiais da história, abertura e avanço apenas disfarçavam a verticalidade nas sociedades coloniais. Estas proibições reforçavam a falta de caminhos para a participação efetiva dos negros e a constante necessidade de reinvenção social. Diante de tantas perseguições se fez necessário muita mandinga e sagacidade para manter o prumo da existência. Na famosa frase do jornalista Aristides Lobo, por ocasião da Proclamação da República – “Por ora, a cor do governo é puramente militar. O fato foi deles, deles só porque a colaboração do elemento civil foi quase nula.” 129 – me chama atenção a “cor” do poder. Tanto na Velha República brasileira quanto no processo de departamentalização martinicano é clara a cor do capital e do poder, que sempre tentou excluir o negro do processo civilizatório. As lutas negras sobreviveram. A capoeira continuou à margem até retornar oficialmente em 1937, quando Bimba recebe um certificado de professor de educação física e sua academia no bairro do Tororó é oficializada pelo governo do estado da Bahia. Autores como Matthias Röhring consideram esta data como um marco para a descriminalização da capoeira, embora sua prática ainda continuasse proibida nas ruas. 130 Em 1953 Bimba fez uma demonstração para o então presidente Getúlio Vargas, que disse: “Capoeira é único esporte nacional 128 Ver: GOMES, Flávio dos Santos. "No Meio das Águas Turvas (racismo e cidadania no alvorecer da República: a Guarda Negra na Corte, 1888-1889)". In Estudos Afro-Asiáticos. nº 21, 1991, pp. 7596 129 LYRA TAVARES, A. Aristides Lobo e a República. Rio de Janeiro: vol. 205 da Coleção Documentos Brasileiros, 1987, pp. 26 e 27. 130 Röhring Assunção, Matthias. Capoeira – The History of an Afro-Brazilian Martial Art. Routledge. 2005. New York. p.141. 86 verdadeiro”, 131 um discurso que inseria a capoeira no pacote de políticas de incentivo do nacionalismo no Estado Novo, das quais as manifestações afrobrasileiras como as escolas de samba, o candomblé e a umbanda tiveram uma maior aceitação dando oficialmente uma nova cor para a cultura brasileira. Junto com esta movimentação, as iniciativas públicas começaram a ver neste caminho uma forma de domesticação e propagação da capoeira, inserida na cultura como um produto cultural nacional. Isto gerou um grande impacto no cotidiano dos capoeiristas, uma perspectiva polêmica que nasceu naquela época e permanece defendida por uns e criticada por outros até os dias atuais, principalmente pelos mestres de capoeira angola que afirmam sua ancestralidade africana. Apesar das críticas, é inevitável perceber uma significativa mudança na imagem da capoeira e da figura do mestre no imaginário nacional como exemplifica o pesquisador Maurício Barros de Castro: Tanto Bimba quanto Pastinha foram os principais responsáveis pela expansão inicial, para outros estados do Brasil, da maneira tradicional baiana de jogar capoeira. Dessa forma, ambos ganham o respeito da sociedade e passam a se relacionar com intelectuais, artistas e políticos da época que vão legitimá-los, não só como mestres de capoeira, mas também como porta-vozes da cultura popular. Na primeira metade do século XX, esses dois mestres se transformam nas principais referências da capoeira da Bahia e estabelecem a base de sustentação da modernização da prática da capoeira. A capoeira passa a ser conhecida nacionalmente, no século XX, a partir da Bahia. Não apenas Mestre Bimba, mas também a escola de Mestre Pastinha, no Pelourinho, ganha destaque, tornando-se ponto da velha guarda da capoeira angola, de intelectuais e turistas que iam apreciar as rodas. Como resultado, ocorrem as primeiras viagens de grupos de capoeira pelo território brasileiro. A partir dos anos 1950, uma farta 132 documentação baseada em notícias de jornais começa a ser produzida. A capoeira nas últimas décadas ganhou fama internacional, ela continua basicamente com as duas correntes acima citadas, o estilo de Bimba foi batizado de capoeira regional e o de Pastinha capoeira angola. A regional foi bastante modificada desde a proposta inicial formulada por mestre Bimba, ela adotou movimentos acrobáticos, saltos, voos, criando uma movimentação altamente estetizada. Independentemente de seu conteúdo histórico e cultural ela seduziu o mundo por sua energia e plasticidade, atraindo milhares de praticantes no Brasil e 131 Almeida, R. “O brinquedo da capoeira”. Revista do Arquivo Municipal. Vol. 7. No. 84 (1942), p. 155. Apud: Röhring Assunção, Matthias. Capoeira – The History of an Afro-Brazilian Martial Art. Routledge. 2005. New York. p.141. CASTRO, Mauricio Barros de. In: BARBOSA, Wallace de Deus (org.). Inventário para registro e salvaguarda da capoeira como patrimônio cultural do Brasil. Brasília: 2007. p. 35. 132 87 em diversos outros países. Já a capoeira angola se voltou mais para o lado espiritual e suas origens africanas. Sua expansão internacional foi menor e mais lenta se comparada à regional, mesmo assim ela é amplamente praticada em quase todos os estados brasileiros e em diversos países também, inclusive na Martinica. Este combate entre legitimidade e marginalidade pode ser percebido atualmente na ladja através do dilema em apresentar a luta como cultura ou esporte? Um debate semelhante ao da capoeira nos anos de 1930 e 1940. Uma inquietação atual que se reflete na mobilização dos lutadores e das associações para organizar torneios de ladja, definindo regras, adotando protetores corporais e outras sistematizações da luta, caminhando para a criação de um esporte nacional. As associações estão divididas, algumas consideram a adoção destas estratégias como uma forma de espetacularização e mercantilização, medidas que poderiam descaracterizar esta arte de origem africana, fazendo a balança pesar mais para a ocidentalização desta prática. Como já foi dito, a “síncope” é um conceito criado pelos teóricos da música erudita ocidental para tentar transcrever a complexidade da musicalidade africana. Carlos Sandroni 133 também ressalta que muitos etnomusicólogos acabaram abandonando o termo ao falar da música africana, pois perceberam que se tratava de duas normas diferentes e não fazia sentido explicar uma através de exceções na outra. Os conflitos de legitimidade na capoeira e na ladja encontram-se como metáfora desta bifurcação, são atividades nascidas na diáspora que navegam entre duas normas, a ocidental e a africana. Dois polos em constante fricção. No Brasil, a adoção da síncope como característica principal de sua música reside na identificação da norma africana como regra. Uma norma flexível que se deixa contaminar pela norma ocidental, assumindo deste embate uma identidade 133 Utilizo a palavra síncope assumindo a liberdade poética que uma pesquisa em arte permite. Musicalmente faço seu uso ligando ao intenso debate surgido em torno do samba, estendido a outras manifestações brasileiras como a capoeira. Uma discussão que amplio às práticas martinicanas da diáspora; o bélé e a ladja, escolha justificada pelo uso desta palavra pelos próprios lutadores ao explicarem seus ritmos. Ressalto meu cuidado ao utilizá-la alinhado às teorias do pesquisador Carlos Sandroni que escreve: “Assim, hoje em dia não são apenas os teóricos e os músicos de conservatório que falam das ‘síncopes’ brasileiras: a palavra entrou no vocabulário do leigo e dos músicos populares, conheçam eles ou não a leitura musical. É por este fato que, ao contrário de Arom, Kubik e outros estudiosos da música africana, que baniram a palavra ‘síncope’ do seu vocabulário, vou me permitir empregá-la às vezes como categoria nativa, reconhecendo, com os etnomusicólogos citados, que falta nela a tendência à generalidade que deve caracterizar conceitos científicos”. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (19171933) 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2012 .p.29. Ainda seguindo esta linha sugerida por Sandroni optei por não utilizar o termo síncope ao falar especificamente da música africana na luta senegalesa. 88 própria. Já na Martinica o caminho parece mais complexo e tortuoso, afinal se trata de uma ex-colônia, um território dependente da França, uma ilha onde a síncope cultural ainda não foi estabelecida como identidade. Um dia enquanto andávamos de carro Mehdy me perguntou; – Você acha que o berimbau viola, o mais agudo e sincopado dos três berimbaus da capoeira pode alcançar a mesma capacidade do tambor na ladja, interferindo no jogo, ajudando determinado lutador de sua preferência? – Uma boa pergunta. Respondi. Na ladja conforme as variações que o tocador imprime no tambor, ele pode dar mais energia à luta, ajudando um dos lutadores através do som. Ele queria saber se o berimbau viola tinha esse poder também, de jogar energia sincopada para determinado lutador na capoeira. Eu nunca tinha pensado nisso, e acho que a maioria dos capoeiristas também não. Respondi: – Se a viola ajuda determinado capoeirista na roda, isso acontece de forma involuntária. – Enquanto na ladja o tambor é soberano, na capoeira sobra pouco espaço para protagonismos em uma orquestra formada por três berimbaus, um atabaque, dois pandeiros, um reco-reco e um agogô. 134 Lembrei a minha primeira aula para aprender os toques de bélé e ladja no tambor “kokoyé”. 135 Outra frase de David deteve minha atenção. Ele disse: – O mais difícil para um tocador de tambor é saber voltar. Ele se referia à dificuldade de voltar de um solo ou de uma dobra. Sugerindo que a síncope pode levar o tocador ao transe, ao espiritual onde o corpo se desloca deste plano. É justamente o berimbau viola o instrumento que costumo tocar na capoeira, por isso entendi perfeitamente seu comentário. Nos momentos mais intensos nossos corpos são tomados pelo toque do instrumento, é a partir deste 134 Esta orquestra foi inventada ao longo do tempo, haja vista as imagens de Rugendas e os documentos referentes à capoeira. 135 O lutador e pesquisador Daniel-George Bardury defende a partir de uma interpretação etimológica das línguas dos africanos deportados na escravidão a hipótese de que o nome “kokoyé” significa: “Mi lanmó, sé lanmó!” que traduzindo do crioulo quer dizer: “Aqui está a morte, é a morte!”. “rito no qual a Vida se mede pela Morte”. Tradução nossa a partir do francês: “rite dans lequel la Vie se mesure à la mort.”. In: AM4. p.27. 89 acúmulo energético que podemos retransmitir vibrações, ondas capazes de aliciar o conjunto da roda ao transe coletivo, conexão esta que chamamos de axé. 136 Em outra aula David complementou: – O toque de ladja é mais sincopado do que o de bélé, é uma característica da música guerreira na África. – Outro ponto interessante nos cantos da ladja e do bélé é a polifonia. – Em uma mesma música o cantor assume diversos personagens, o pai, a mãe e a filha. – Isso é uma herança dos griôs, dos contadores crioulos. – Uma estratégia para manter a história viva. Existe uma conexão nas letras das músicas cantadas na ladja e na capoeira. Ora elas fazem alusão a fatos históricos, ora referem-se à valentia, consagram lutadores, glorificam seus instrumentos, questionam a existência, a vida, a morte, o sofrimento ou simplesmente relatam crônicas diárias. Ambas são puxadas por um cantor e o coro responde ao refrão, nos dois casos este canto é chamado de corrido, ou “kouri” em crioulo, entretanto, a principal diferença neste aspecto é o canto praticado apenas na capoeira chamado de ladainha, cantado geralmente no início da roda pelo mestre da casa, ou convidado, também pode ser cantado no desenrolar da roda. Trata-se de um lamento profundo e dramático com início meio e fim. Na capoeira o cantor geralmente toca o berimbau gunga, o mais grave deles. Na ladja o cantor normalmente só canta, em raras ocasiões ele toca o tambor também. Na capoeira a ginga é um importante vetor para se alcançar a relação entre a síncope corporal e musical. Trata-se da estrutura motora que dá base rítmica ao jogo. Mas ao contrário das danças clássicas onde se busca um estado de equilíbrio preciso, respeitando eixos horizontais e verticais, a ginga na capoeira angola é dissimulada, falsamente desequilibrada. Se para um bailarino o desequilíbrio pode ser fatal, para o capoeirista é uma arma. Assim como na ladja, a capoeira também trabalha com o equilíbrio precário, com os limites da estabilidade ékilib/désekilib. O próprio mestre Pastinha invoca este desequilíbrio: “Quando eu jogo, até pensam que 136 “O som, cujo tempo se ordena no ritmo, é elemento fundamental nas culturas africanas. Isto se evidencia, por exemplo, no sistema gêge-nagô ou iorubá, em que o som é condutor de axé, ou seja, o poder ou força de realização, que possibilita o dinamismo da existência. No Brasil, as instituições religiosas gêge-nagôs são guardiãs e transmissoras desse poder que exige a comunicação direta, o contato interpessoal (cara a cara), para a transmissão. O som resulta de um processo onde o corpo se faz presente, dinamicamente, em busca de contato com outro corpo, para acionar o axé”. SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Mauad Editora. 2ed. Rio de Janeiro, 1998. p.20. 90 o velho está bêbado, porque fico todo mole e desengonçado, parecendo que vou cair. Mas ninguém ainda me botou no chão, nem vai botar.” 137 Assim como na ladja a movimentação da capoeira transita em um precário equilíbrio, ou, em um desequilíbrio dissimulado. Movimentos que sugerem continuações inesperadas, falsas hesitações, quebras rítmicas e bifurcações temporais projetadas para ludibriar o adversário. São síncopes dobrando-se ao infinito, em um tempo dilatado e não linear, tempo do transe do ou wè’y ou pa wè’y. Esta amarração rítmica corporal, onde um lutador seduz o oponente, abrindo caminhos, construindo armadilhas, oferecendo falsas facilidades é construída na dança, na ginga pulsante comandada pela orquestra. Muniz Sodré afirma que o ritmo da capoeira, assim como o do samba, funciona através da síncope, a batida que falta. 138 Também o pesquisador Matthias Assunção vai ressaltar a síncope na capoeira: Todos os golpes evoluíram a partir do passo sincopado básico, ou ginga, que mantinha os jogadores em movimento permanente e sempre em sintonia com o ritmo executado pela bateria. A ginga, passo básico da capoeira, é um movimento sempre identificado como de origem africana. De fato é muito diferente da movimentação de lutas ocidentais. Como muitas danças e jogos de combate africanos, explora a síncope e a polirritmia, que permite movimentos lentos e dengosos, mas também rápidos e certeiros. Os vários jogos de combate que vimos em Angola também utilizam uma movimentação básica a partir da qual se executam os golpes. Mas ainda não encontramos nada que fosse realmente muito próximo à ginga da capoeira. É interessante notar, nesse contexto, que a famosa gravura feita a partir dos desenhos de Rugendas, de 1835, reproduz uma ginga mais “arcaica”, onde os braços e pernas se movimentam de forma paralela, e não cruzada. Isso pode sugerir que a ginga passou por transformações importantes no Brasil – ou que Rugendas não conseguiu captar o 139 movimento tão estranho para ele. Foi justamente sobre esta gravura de Rugendas que falei com o pesquisador e lutador de ladja Pierre Dru no meu primeiro dia de treino na AM4, salientando a semelhança desta movimentação com a ladja. Não partilho a hipótese de Matthias ao sugerir que Rugendas não alcançou o gesto corporal correto. Ao meu ver a 137 PASTINHA, Mestre. Revista Realidade. Fevereiro de 1967. Editora Abril. APUD: Menezes Alvares, Johnny. O aprendizado da ginga na roda de angola. p.5. Consultado em 21/05/2018. Disponível em: http://www.centroafrobogota.com/attachments/article/32/O%20aprendizado%20da%20ginga%20na% 20roda%20de%20angola%20-%20Johnny%20Alvarez.pdf 138 139 IDEM.p.7. ASSUNÇÃO, Matthias Röhring .”Capoeira, arte crioula”, Cultures-Kairós [En ligne], paru dans Capoeiras – objets sujets de la contemporanéité, mis à jour le : 16/12/2012, URL : http://revues.mshparisnord.org/cultureskairos/index.php?id=541. 91 capoeira desenvolveu um processo bastante amplo de reestruturação em seu desenvolvimento, adaptando-se aos novos contextos como sugere o próprio Matthias; “até virar um modelo de transnacionalização tão bem sucedido na nossa sociedade global”, que torna impensável não esperar uma mudança radical em seu gestual, decorrente de tantas mutações. Tendo o cuidado de não tratar esta obra de Rugendas como uma fotografia, nesta ginga que o autor considera mais “arcaica”, ela me lembra mais a ladja talvez por ainda não ter alcançado o mesmo nível de internacionalização, hibridização, e porque não dizer folclorização e espetacularização da capoeira. Figura 1 - Johann Moritz Rugendas Dança de Guerra ou Jogar Capoeira, 1935. Publicação: Voyage Pittoresque dans le Brésil Paris: Engemann & Compagnie, 1835 Os praticantes de ladja e bélé ainda buscam a legitimidade local, lutam para que elas sejam ensinadas nas escolas, como me disse o lutador independente Rennaud Bonnard: – É uma luta para fazer entrar o bélé e a ladja nas escolas. – É uma luta para ensinar as crianças a tocar tambor. 92 – Temos uma técnica de tocar que não existe fora daqui, caracterizada pelo movimento dos dedos. – Essa é nossa riqueza. – Como colocá-la em valor. – Toda essa riqueza que os antigos possuíam estamos perdendo. – Isso é o bélé, isso é a ladja, cada instante é feito de um movimento de tempo. – Através destas práticas respeitamos esse caráter temporal e assim criamos uma ligação com a tradição. Em outra conversa com os professores de ladja Ethienne e Saïd Dru, 140 perguntei a eles sobre as encruzilhadas entre a França e a África. Como resposta eles me deram um exemplo claro: – Existe um preconceito em relação à dança. – À cadência, à forma de mexer o corpo. – Pessoas da nossa geração já vieram nos perguntar se havia uma maneira de praticar o danmyé sem precisar dançar. – E olha que a Martinica já foi reputada por sua forma de dançar. – E não era uma dança europeia. – Dançávamos nos movendo com um corpo africano. – Hoje estamos esquecendo isso. – As pessoas dançam, se mexem de maneira cada vez mais ocidental. Para perceber toda a força e plasticidade associadas ao rito e à experiência que emerge destes combates de cadência africana, é preciso olhar atenta e abertamente para os outros sentidos, ser capaz de perceber uma arte altamente refinada, com seu imaginário prolixo e múltiplo, resultado de rupturas e misturas culturais. A síncope é um eixo comum entre essas danças de combate da diáspora, ação do corpo habitado pela música. Síncope dialoga entre a tradição e o mundo contemporâneo, ela comanda o axé nos lugares nobres da resistência africana como as rodas de capoeira e de ladja. Espaços construídos como uma segunda realidade, oposta à concepção ocidental de eficiência e produtividade. Nestes campos de fuga da escravidão, 140 São os dois integrantes mais jovens da família Dru, responsável pela gerência da associação AM4. Saïd tem 27 anos de idade e Ethienne 35. 93 prevalece uma visão diferenciada do tempo em contraste à linearidade que rege as relações de trabalho, é o tempo do corpo em estado de dança, de combate, assentando cores nos tempos fracos do mundo. Na ladja se utiliza a curiosa expressão dékadans como sinônimo de síncope, que traduzindo literalmente do crioulo significa decadência, mas como essa língua é sempre múltipla, cheia de artimanhas, ela se refere à quebra de ritmo, à “nãocadência”. A associação AM4 explica que este termo se refere à arte de estar corporalmente em harmonia com a música, mesmo não estando em sua medida rítmica. 141 Existe um transbordamento semântico desta expressão para o contexto sócio-político martinicano, onde as complexidades de uma relação colonialista entre a França e a África restam presentes, fora de ritmo, desencontradas entre duas normas sem uma síncope capaz de explicar. A cultura africana continua viva como uma ferida aberta nesta ilha, lesões que os placebos econômicos do império francês não conseguem extirpar. Cultura ferida e remédio ao mesmo tempo, cuidando das chagas de um corpo pós-colonial, pós-escravista. Há um descompasso neste processo que impede a ladja e o bélé de entrar nas escolas, preconceitos que incitam seus guerreiros à subversão, a caminhar dançando em outra medida rítmica, como fazem os lutadores senegaleses antes da luta. 1.5 Reflexo “...O círculo de sombra se fecha [...] Portanto nós somos destes que dizem não à sombra 142 .” Aimé Césaire Antigamente majores de ladja treinavam à luz do luar, aprimoravam seus reflexos se deslocando mais rápido que a própria sombra, lutando contra ela, desafiando-a em um jogo de luz. 141 142 AM4 p.78. BERTHET. Dominique. André Breton, l’éloge de la rencontre. Antilles, Amérique, Océanie.Paris. HC Éditions, 2008. p.63. 94 Em uma noite quente, ao voltar para casa após um encontro com lutadores, optei por um caminho mais deserto – uma estrada sem iluminação, rasgada nos rochedos da ilha, com suas curvas sinuosas beirando o mar. O único ponto de luz eram os faróis do meu carro, pontuais, agressivos, cegando animais desavisados ao cruzar meu caminho e me cegando para o entorno. A lua refletida no mar chamou minha atenção. Apaguei os faróis e continuei dirigindo, deixando meu corpo se levar na realidade presencial da noite. No ritmo da dilatação de minhas pupilas e seu reflexo fotomotor, o invisível tornou-se possível, ao invés de ver os poucos metros que os faróis alcançavam, o mundo misterioso das sombras se abria em sua obscura imensidão. No início uma a sensação de desconforto. Corpo que se adapta, mede o medo, pesa o prazer, adentra na espessura da escuridão com toda a carga simbólica que esta dimensão carrega. Mergulhado em um estado perceptivo onde os contornos do mundo são difusos, lembrei do princípio ou wè’y ou pa wè’y – comparando o ato de apagar ou acender os faróis do carro ao ato de acionar e desacionar o fusível da percepção de um corpo em combate – vê mas não vê – como se referem os majores de ladja. Reflexo é uma palavra de múltiplos sentidos. Pode ser um raio luminoso ou aparecimento de matéria refletida em uma superfície reflexiva. Se refere também à mudança de nuances de cor conforme a incidência da luz. Representa igualmente a imagem de alguém ou de um grupo. Relacionado ao título deste subcapítulo, seu significado se refere principalmente à troca de energia, seja do corpo que reage ao estímulo de uma força estranha, ou através da fixação de imagens de objetos que nos interessam no campo visual. Neste sentido a proposta é pensar no termo como um canal reflexivo deste universo da ladja, em conjugação a outras expressões artísticas – a presença do que não está. Um experiente lutador é capaz de ligar ou desligar a percepção de seu oponente. Como faróis do carro ele projeta um determinado golpe – imagem direta (vê), chamando a atenção de seu oponente para este movimento, enquanto, na verdade, ele prepara uma armadilha com um outro golpe escondido em seu pensamento – imagem indireta (não vê). Na hora certa ele desliga os faróis e acende um golpe mais amplo, misterioso, rápido e potente como um raio que rasga a escuridão da noite. Desta forma, os majores da ladja administram os reflexos 95 corporais e visuais neste combate, concebido antes de tudo, no imaginário de seus lutadores e na complexa administração de ausências. Georges Didi-Huberman em seu livro O que vemos, o que nos olha, cita uma experiência semelhante à minha realizada pelo artista Tony Smith ao dirigir seu carro à noite. O depoimento do artista é usado para mostrar como a privação do visível desencadeia de maneira inesperada a abertura para uma nova dialética. Segundo Didi-Huberman, na experiência da noite os objetos perdem sua estabilidade visível e revelam sua essencial fragilidade, a vocação de se perderem para nós justo quando estão mais próximos: Era uma noite escura, e não havia iluminação nem sinalização nas laterais da pista... A estrada e a maior parte da paisagem eram artificiais, e no entanto não se podia chamar aquilo de uma obra de arte. Por outro lado eu sentia algo que a arte jamais me fizera sentir. A princípio não soube o que era, mas aquilo me liberou da maior parte de minhas opiniões acerca da arte. Parecia haver ali uma realidade que não tinha nenhuma expressão na arte. A experiência da estrada constituía claramente algo de definido, mas isso não era socialmente reconhecido. Eu pensava comigo mesmo: é claro 143 que é o fim da arte. Didi-Huberman comenta este episódio como uma experiência reveladora para Tony Smith, essa evasão dos signos sociais, e artefatos, abriram por consequência a possibilidade de mostrar o objeto como perda, mas também ultrapassar a privação do desejo através do desdobramento que sua arte adquiriu a partir desta revelação. Neste jogo obscuro do próximo e do distante começava a etapa fundamental da sua arte. A noite se apresentava como constituinte de volume sobre um fundo de ausência. Desta experiência se precipitou sua obra, a partir da enigmática Caixa Preta, estrutura escultórica negra que surge como base para todo o seu processo escultórico – blocos de noite. Como bom pesquisador de Merleau-Ponty, Didi-Huberman complementa esta passagem com as palavras do filósofo da Fenomenologia: “quando o mundo dos objetos claros e articulados se acha abolido, nosso ser perceptivo amputado de seu mundo desenha uma espacialidade sem coisas. É o que acontece na noite.” 144 Nesta dialética do visual, a noite apresenta-se como dispositivo capaz de impulsionar a transposição de pensamentos abstratos em imagens visuais em um jogo do esvaziamento. 143 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010. p.99 144 Ibidem. 96 Em seu último livro, La matière de l’absence, um romance com forte carga autobiográfica movido pela morte da sua mãe, o escritor martinicano Patrick Chamoiseau também mergulha neste universo da noite, do vazio. Utilizando um repertório de afetos e experiências próximas surgidas na infância, assim como de rituais e mitos nascidos no ventre dos navios negreiros, esparramados até hoje na Martinica, o autor apresenta toda a força simbólica dos silêncios. Entre os diversos exemplos usados para adentrar neste mundo obscuro, e os aspectos mágicos presentes na cosmogonia dos habitantes desta ilha, ele cita os velhos contadores crioulos. Artistas que passavam o tempo a estruturar o nada sobre o nada, em histórias sem início nem fim, contadas somente à noite, porque se lançadas durante o dia, uma forte mandinga poderia transformá-los em um cesto vazio. Sim, em cesto vazio! Pode parecer estranho este destino como punição, mas Chamoiseau diz que apesar de não existir nenhuma explicação coerente para isso, o cesto interessa porque é um oco, uma espécie de vazio, onde a virtude está em ser preenchido: “Um cesto caído da noite, contador degradado sem dúvida, não receberá do dia. Condenado a nada, e condenado por nada, acabado.” 145 Cabe ressaltar que o cesto sempre foi um importante utensílio para coleta de frutas, transporte de objetos e alimentos. Paul Gauguin em seu quadro Aux mangos – La récolte des fruits de 1887, pintado na Martinica, onde ele morou por cinco meses em uma vila de ex-escravos percebe e mostra a importância do cesto através da forma elegante e sensual das mulheres o carregarem. O pintor batizou a ilha de “país dos deuses crioulos”. Foi neste ambiente carregado de magia, uma das fases menos conhecidos na vida do artista, que ele encontrou sua pintura, renunciando às seduções do impressionismo. 146 145 CHAMOISEAU, Patrick. La matière de l’absence. Paris. Éditions du Seuil, 2016. p.28 .tradução nossa: “Un panier tombé de la nuit, conteur déchu sans doute, ne saurait rien recevoir du jour. Condamné à rien, et condamné par rien, fout!... 146 CONFIANT, Raphaël. Le barbare enchenté. Cahors. Éditions Écriture. 2003. 97 Figura 2 – Paul Gauguin. Aux mangos (La recolte des fruits), 1887. Óleo sobre tela. Museu van Gogh, Amsterdã. Cestos que o pintor André Masson também desenhou de forma surrealista ao ilustrar o livro de André Breton Martinica encantadora de serpente. Em um dos seus sete desenhos feitos para a publicação aparecem duas mulheres com cestos na cabeça. Na primeira mulher em primeiro plano, é difícil perceber onde começa a cabeça e onde está o cesto, ambos se fundem como uma coisa só. A segunda mulher mais ao fundo carrega um enorme cesto apoiado em um ponto mínimo da cabeça em um equilíbrio improvável. 147 147 BRETON, André. Martinique, charmeuse de serpent. Sagittaire. Paris. 1948.p.44. 98 Figura 3 – André Masson. Ilustração do lvro Martinica encantadora de serpentes de André Breton. Por via das dúvidas contadores novos ou velhos não se arriscam. De um lado eles respeitam a autoridade do costume – nada de histórias durante o dia – por outro é bom lembrar que a origem desta tradição remonta à escravidão, e salvo essa exceção, todas as outras ordens: escravagistas, coloniais, ou pós-coloniais eram atropeladas através dos contos em uma liberdade bem mais preciosa para estes contadores libertários, anarquistas das ordens escravagistas: “Eles são conscientes que é difícil modelar o invisível no visível muito afirmado do dia. A noite se mostra bem mais propícia, habitada de sombras, de estrelas vivas, preenchida de coisas do espírito...” 148 Eles se apresentavam principalmente nos velórios, falavam frente à noite, da morte: “...invisibilidades para administrar o moinho das felicidades e os terrores. Falar face, ou a partir da morte, é como se encontrar no prumo de um abismo.” 149 Para Chamoiseau, diante das vertigens da noite, estas histórias manejavam a vida. 148 CHAMOISEAU. 2016. p. 29. Tradução nossa: Ils sont conscients qu’il est difficile de modeler de l’invisible dans le visible très affirmé du jour. La nuit s’y montre bien plus propice, habitée d’ombres , d’étoiles vivantes, remplies des machins de l’esprit... 149 Idem. Parler en face ou après d’un mort, c’est comme se trouver à l’aplomb d`un abisme. 99 Esses grandes contadores eram chamados de Majolè, que em crioulo significa: Majores do ar. O autor explica que o termo major se refere aos campeões da ladja, e a extensão deste termo aos mestres-contadores se deve ao fato deles também serem considerados majores, e a roda dos velórios igualmente uma arena. Eles se enfrentavam com o verbo, com o sopro, com por assim dizer um invisível... Suas armas eram feitas de ar e talento mas elas podiam aniquilar com tanta violência como todas as outras celeradezas. Este combate do ar, era também uma luta contra o abismo simbólico que abria uma morte no meio dos vivos, contra este impalpável que é a noite, o sébi*, as rezas e as lágrimas que se precipitam nas consciências e no mundo. A dominação escravagista também era feita de um invisível que te arrombava o espírito e te levava à interiorizar o desumano sem remissão do que era imposto. A luta fundamental só poderia se desdobrar contra este invisível...O único meio de se safar: mudar de imaginário!... Transformar-se em um Guerreiro 150 do imaginário... Ti-Raoul morreu. A notícia se espalhara rapidamente. No dia dezoito de dezembro de dois mil e dezessete, partia Ti-Raoul (Pierre Paul Grivalliers), um dos grandes ícones da música tradicional martinicana, principalmente do bélé e da ladja. No seu velório tive a oportunidade de presenciar estes mistérios da noite, da morte e dos mestres contadores. Ti-Raoul foi o precursor da internacionalização destes ritmos. Conhecido pelo temperamento forte e porte físico frágil, ele era uma das grandes forças poéticas da ilha. Sua última apresentação pública havia sido há um ano no Pit Ti-Césarius.151 Em uma sala o corpo era velado e recebia as últimas homenagens dos vivos. Um corpo frágil descansando em um elegante caixão refrigerado. Nas paredes havia fotos e reportagens. Uma foto em especial me chamou a atenção: via-se um TiRaoul muito jovem, sentado em um tambor, parecia desafiar a ordem e a sociedade 150 Idem. Ils s’affrontaient avec le verbe, avec le souffle, avec pour ainsi dire un invisible. Leurs armes étaient faites d’air et de talent mais elles pouvaient anéantir avec autamt de violance que toutes les autres ascélératesses. Ce combat d’air, c’était aussi une lutte contre l’abîme symbolique qu’ouvrait un mort au milieu des vivants, contre cet impalpable que la nuit et les sébi, les prières et les larmes précipitaient dans les consciences et dans le monde. La domination esclavagiste était aussi faite d’un invisible qui vous brisait l’esprit et vous amenait à intérioriser le déshumain sans rémission qui était imposé. La lutte fondamentales ne pouvait se déployer que contre cet invisible... Le seul moyen de s’en sortir: changer d’imaginaire!... Devenir un Guerrier de l’imaginaire...” p. 30-31. *sébi é um jogo de dados. 151 Pit Ti-Césarius é um dos locais onde acontecem as rinhas de galo, jogos de dado, cartas e apresentações de música, ladja e bélé. Ela fica em Sainte-Marie e pertence a uma tradicional família de músicos. 100 toda com a sua música. Na imagem via-se uma Martinica de outro tempo, refletida nas rústicas roupas de algodão, nas casas simples e nos pés descalços. O olhar do jovem Ti-Raoul é forte, direto, quase agressivo, cheio de confiança. Contrastando com a serenidade, o corpo frágil e os olhos fechados no caixão. Dois tempos conjugados de uma trajetória. Dizem que Ti-Raoul desafiou tudo e a todos. Adaptou o tradicional às novas tendências, viajou, experimentou diálogos improváveis com o hip-hop, a música francesa, contaminou-se no contemporâneo. Também se desiludiu com a falta de reconhecimento do próprio entorno, sempre desproporcional à sua contribuição. Mas velório tradicional na Martinica é ocasião de festa, de catarse, de lavar a alma dos que vão e dos que ficam. Um insólito coral católico cantado em crioulo iniciava as homenagens, seguidos de discursos de amigos, políticos e qualquer um disposto a prestar a última homenagem ao músico. Nesta noite, escutei um contador crioulo em ação pela primeira vez. Para ser mais exato, dois, um homem e uma mulher. A primeira a sacudir a poeira e o público foi Iaia, única contadora da ilha, seguida do contador Serge Bazas. Com piadas picantes, engraçadas, em um crioulo ágil de cadência complexa e improvável, ambos administraram com inteligência as invisibilidades e os humores da noite. Lutadores de ladja, músicos e dançarinos de bélé chegavam. De um momento a outro a grande tenda plástica estava lotada. Começavam os combates intensos e agressivos. Músicos, tocadores e cantores experientes energizavam a roda da morte, só peixe grande nessa noite a buscar o prumo do abismo: Victor Treffre, Benoît Rastocle e a irmã de Ti-Raoul, Fortuna Grivalliers, emanavam vibrações sincopadas ao espaço. Depois começou a vigorosa kalenda, 152 uma dança executada individualmente por homens e mulheres, com movimentos enérgicos e sensuais. Em seguida, entraram os bailarinos do bélé, gerando a 152 A pesquisadora Jacqueline Roseman afirma que Kalenda deriva dos nomes Caleinda ou Calinda, expressões usadas para designar as danças eróticas dos escravos nas Antilhas. A origem africana destes termos estaria ligada às diferentes danças-rituais voltadas ao deus da morte, que também era o deus da guerra. Ela ainda defende que o nome Ladja, viria de Laghia, tradução de “a guerra” em crioulo. “laguèa”, e quando os escravos se revoltavam, eles pronunciavam com toda a agressividade esta expressão. Logo, para ela, existe uma forte ligação entre Kalenda e Ladja, são referenciais de danças belicosas, prelúdio de revoltas e enfrentamentos graves. ROSEMAN, Jacqueline. La musique dans la société antillaise – 1635-1902”. Martinique – Guadaloupe, op.cit ,p.21. In: AM4 Association Mi Mes Manmay Matinik. tradition Danmyé-kalenda-Bélé de Martinique Tome.3, les djérié. K éditions, 2017. Fort de France, Martinique. p.44. 101 energia da festa até a madrugada. Saí para pegar ar, beber cerveja, rum e comer de graça como acontece em toda festa local. Vivia um evento importante. Despedida de um ícone na história da ilha. Uma chuva torrencial caiu, temperando o ar com um intenso odor de terra molhada. No outro dia mais festas, missa, danças e cantos continuavam até o enterro no fim do dia. Um vento morno acariciava delicadamente os olhares tristes. Um tambor mais denso e melancólico ditava o ritmo. A cova parecia pequena demais para enterrar tanta carga simbólica. Pás despejavam a última terra. O coro cantava em crioulo: Bô Voyage, bô voyage, voyagè... 153 Um silêncio dava o último adeus. Mistérios dessa terra desciam ao cair da noite. Majores tinham que aprender a sofrer, receber golpes, ver a morte de frente flennté lan mò.154 Era necessário enfrentar o anormal, ver o sobrenatural, evocar as reservas do corpo dificilmente acessíveis, mantê-las em estado latente. Ser capaz de enfrentar fisicamente a roda inteira. Para muitos majores, este poder estava ligado ao domínio das práticas espirituais, ou mágico-religiosas, conforme relata o lutador e pesquisador Pierre Dru: Nós falamos aqui de técnicas variadas de meditação, de concentração, de sugestão e autossugestão, “invocações” (chamados sob a forma religiosa ou mágica, vias enfeitiçadas para se chegar às forças presentes no universo) assim como comunicações extra sensoriais que utilizam técnicas de transmissão de pensamento e energia, de visualização, de 155 premonição, de intuição e onirismo (sonho) ... Interessante perceber palavras semelhantes que remetem a sofrimento, em uma crítica de 1891, sobre o trabalho de Gauguin na Martinica. Nela, Octave Mirbeau do jornal L’Écho de Paris, dizia: “Obra dolorosa já que, para compreendê-la, sentir o choque, é necessário conhecer a dor na pele – e a ironia da dor é que ela é 153 Tradução nossa: Boa viagem, boa viagem, viajante... 154 A.M.4. “Asou chimen danmye: propositions sur le danmye art martial Martiniquais”. Fort de France. Martinique. 1994.p.19. 155 Ibid. Tradução nossa: Nous parlons ici de techniques variées de méditation, de concentration, de suggestion et d’autosuggestion, des “invocations” (appel sous une forme religieuse ou magique, voire sorcellisante, à des forces présentes dans l’univers), des communications extra-sensorielles utilisant des techniques de transmission de pensée et d’energie, de visualisation, de prémonition, d’intuition et d’onirisme (rêve)...p.19 102 o limiar do mistério. Por vezes, ela se eleva à altura de um ato místico de fé; por vezes se amedronta e faz careta à escuridão da dúvida”. 156 Ao analisar as fotografias que realizei na Martinica percebo a seleção intuitiva de imagens captadas apenas na sombra, com raras exceções – como se o sol dificultasse a modelagem do invisível no visível muito afirmado do dia, como dizem os majolès. Percebo nestas imagens um aroma melancólico de flores abandonadas em um velório. Transformar em imagens toda a complexidade que a ladja ou outras práticas de origem africana carregam é uma busca complexa. Poucos fotógrafos, artistas, na minha opinião conseguiram transpor estes limites. Ao pesquisar imagens de danças de combate africanas no museu do Quai Branly em Paris, encontrei imagens do fotógrafo Marie-José Tubiana da luta Djor, praticada pelos Zagauas. Em uma de suas fotografias colada em um cartão de catalogação, aparecia a seguinte legenda: “Djor a dança acrobática dos ferreiros: um ferreiro bate seu tambor, um dançarino faz vibrar seu dardo na terra, o outro desafia um inimigo invisível.” 157 Fiquei imaginando o poder de abstração destes dançarinos – eles literalmente lutam contra o invisível. Em torno de uma árvore, cerca de trinta pessoas do povo de origem nômade Zagauas da África central assistem à performance. Me chama a atenção os sorrisos tímidos. Talvez causados por não acreditarem na investida destes guerreiros, ou, por timidez diante da presença exótica do fotógrafo. Raramente se pensa nesta imagem ausente, nesta presença invisível do fotógrafo. Uma espécie de paralaxe, termo físico que se refere a percepção de um objeto visto por observadores em lugares distintos. Fotografar pessoas sempre envolve um enfrentamento entre dois pontos de vista. Na foto seguinte os sorrisos já desapareceram, talvez as pessoas já tenham se acostumado com a presença do fotógrafo, ou foram cativadas pelo tom mais agressivo do dançarino que em um voo tenaz enfrenta seu adversário invisível. O 156 CONFIANT, Raphaël. Le barbare enchenté. Cahors. Éditions Écriture. 2003.. Tradução nossa: ...Oeuvre douloureuse car, pour la comprendre, pour en ressentir le choc, il faut avoir soi-même connu la douleur, - et l’ironie de la douleur qui est le seuil du mystère. Parfois, elle s’effare et grimace dans les ténèbre du doute. p. 305. 157 TUBIANA, Marie-José. MUSÉE DU QUAI BRANLY - Mediateca. Paris. 2017. Base de dados. Ref. PP0072527. 103 outro lutador agora está agachado, com o bastão na terra ele parece concentrado em administrar as vibrações que se dão entre a terra, o tambor e a luta. Diante destas fotografias de Marie-José Tubiana sobre a Djor, percebo a importância destas imagens para se conhecer este universo, mas não sinto através delas os mistérios, nem toda a potencialidade simbólica destas práticas. Ou, como diria Roland Barthes, 158 estas imagens funcionam como um certificado de presença, uma emanação do real passado, mas não causam uma sensação de aventura, não fazem meu corpo vibrar. Figura 4 – Tubiana, Joseph “Djor”, la danse acrobatique des forgerons, 1950 – 1967. MUSÉE DU QUAI BRANLY Em uma outra foto anônima, 159 com data incerta entre 1900 e 1950, vejo um lutador em uma posição de ataque que lembra a ladja. Ele está com o torso nu e veste uma saia feita de peles de animais, cordas e amuletos pendurados, além de paramentos nos braços. Toda uma carga estética é investida nesta vestimenta, com suas sobreposições de peles, tecidos e objetos. Camadas de transcendência entre o que se vê e o que não se vê. 158 159 BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 25 e 132. MUSÉE DU QUAI BRANLY - Mediateca. Paris. 2017. Base de dados. Ref. PP0151432. Anônimo “Sem título (retrato de um guerreiro), 1900 – 1950. África. 104 Figura 5 – Anônimo “Sem título (retrato de um guerreiro), 1900 – 1950. MUSÉE DU QUAI BRANLY Estas imagens ajudam a pensar na herança ancestral africana da ladja, seus rituais desterrados na escravidão, suas crenças e cosmogonias. Atravessamentos que fazem da sua prática um ato mais complexo do que apenas um enfrentamento corporal. Nestes combates cadenciados estão em jogo resistências místicas, capturas espirituais, transferência de energias vitais, força e fragilidade. Como diz um adágio citado entre os lutadores da luta senegalesa, também conhecida como Laamb: “A luta é uma raiz de inhame, tão longa, tão fina em certos segmentos, inchada em outros, se quebrando sem jamais sabermos o momento nem o lugar.” 160 Mas afinal o que pode um corpo? Limites desafiados a cada combate nestas lutas africanas e seus transbordamentos diaspóricos como a ladja. Seus lutadores criam condições espaciais, temporais e rítmicas para alçar o voo de sua própria ausência. Trata-se de um misterioso domínio de energias físicas engendrado por estes lutadores. Entender, ou melhor, sentir a complexidade destas manifestações 160 NDAO, Omar in: Corps en lutte – l’art du combat au Sénegal. CNRS éditions. Paris. 2014. Tradução nossa: La lutte est une racine d’igname, si longue, si fine par certains segments, boursouflée en d’autres, se cassant on ne sait jamais à quel moment, ni à quel endroit. p.10. 105 também demanda uma extrema atenção de seus espectadores. Estas exigências também se amplificam para aqueles que pretendem fotografar, filmar ou simplesmente transmitir estas experiências através de um outro suporte. Katherine Dunhan quando realizou seus filmes etnográficos percebeu estas dificuldades, como ela comenta: Muitas vezes eu infligia tabus pelo simples fato de estar presente, outras vezes pelo fato de ser uma mulher em um local onde normalmente não deveriam estar mulheres, em outras ocasiões por ser alguém de fora estranho àquele local. Em algumas situações as pessoas não gostavam de ter uma câmera apontada para elas e eu tinha que encontrar uma forma de fixar o aparelho de uma maneira que estas pessoas se sentissem 161 confortáveis, esse era o grande desafio, filmar sem me sentir uma intrusa. Com os filmes de ladja de Katherine Dunhan sinto uma vibração maior do que diante das fotos de Marie-José Tubiana sobre a Djor. Não pelos aspectos técnicos, nem poéticos, afinal são registros também simples, diretos como em geral são os filmes etnográficos. No entanto percebo neles a presença da artista responsável por abrir caminhos para as danças negras na Broadway e Hollywood, da coreógrafa engajada, encantada diante daquela cena. Encantamento posteriormente recriado em seus espetáculos, como em lag’ya de la mort, seu primeiro grande espetáculo de ballet, que foi inspirado na ladja e estreou no Federal Theater em Chicago no dia 27 de janeiro de 1938. O espetáculo foi um grande desafio pessoal, não foi fácil para ela conseguir passar os movimentos da luta para seus bailarinos e toda a complexidade presente em uma dança de combate para o espetáculo: L’ag’ya foi o clímax do meu ballet que tinha o mesmo nome, nele o herói morria. Levei meses para me sentir apta a ensinar aos bailarinos os movimentos, de conseguir passar a impressão do nível destes movimentos, que pareciam fáceis mas não eram, mesmo assim acho que muita gente na 162 plateia viu aquilo apenas como boxe ou outra luta. Katherine admitiu a dificuldade de transformar esta intensa experiência do vivido em uma experiência artística apesar de todo o seu conhecimento. Equacionar estas potencialidades é um dos principais desafios para os artistas cuja principal inspiração está no diálogo, na troca com o outro, sem distinção entre as artes 161 Video-depoimento: Katherine Dunhan on her anthropological films. Video Clip #34. 2002. Library of Congress for the documentation of Katherine Dunham’s dance technique. Disponível em: https://www.loc.gov/item/ihas.200003841/ 162 Video-depoimento: Katherine Dunhan on L’Ag’ya. Video Clip #36. 2002. Library of Congress for the documentation of Katherine Dunham’s dance technique. Disponível em: https://www.loc.gov/item/ihas.200003843/ 106 maiores ou menores. Suas imagens e coreografias continuam fortes adubando o círculo da vida – morrendo e renascendo na arte. Um espiral infinito dilatando temporalidades onde circulam juntos suas obras, as minhas e as dos artistas da ladja. Já o trabalho do fotógrafo brasileiro Mário Cravo Neto faz meu corpo vibrar com intensidade. Ele alcança com maestria esta complexa interação entre ritual e fotografia. Iniciado na escultura, pintura, fotografia e candomblé, ele soube transpor em imagens as complexidades deste universo. Suas imagens transbordam significações em diversas direções, amparadas em uma estética dramática, seja nas suas séries em cor, ou em preto e branco. Cravo Neto desenvolveu uma forma particular de usar a cor a partir de seu conhecimento escultórico. Através de combinações constantes de baixas luzes e foco crítico, ele esculpiu volumes e texturas das ruas, gentes e terreiros baianos. Uma fotografia que foge de rotulações. Além de toda a mística baiana, o olhar do fotógrafo também foi fortemente influenciado pelo pensamento escultórico do seu pai, o escultor Mario Cravo Junior. Seu período de estudos de dois anos na Art Students League em Nova York também foi fundamental para seu desenvolvimento artístico. Lá, ele se envolveu com a Arte Conceitual, Earth Art, Expressionismo Abstrato, Land Art, se contaminou com o trabalho dos artistas David Smith, Henry Moore, Brancusi, Francis Bacon, Jack Kueger, Herbert E. Reid, Andy Warhol, leu Carl Gustav Jung, escutou Velvet Underground, Jimmy Hendrix e dilatou sua percepção através do uso de LSD. Todas estas experiências, aglutinaram-se numa fotografia que se aproxima da etnografia visual, mas pode pecar, como sugere o próprio artista: ...Ela peca no sentido da veracidade da informação. Na minha opinião, a fotografia não representa realidade nenhuma, isso é uma grande babaquice. A fotografia é uma imagem de vida, mas vista sob a ótica do autor. Por isso 163 eu digo: a fotografia é um autorretrato. Suas séries em preto e branco, realizadas em estúdio com absoluto controle de luz assentam múltiplas significações em corpos escultóricos, são composições com uma forte carga ritualística. Nestas imagens, principalmente nos retratos é 163 CRAVO NETO, Mario. Entrevista à revista Trip, 2006 In. Mario Cravo Neto: catálogo da exposição: Butterflies and zebras / curadoria Diógenes Moura; textos Diógenes Moura e Ivo Mesquita; fortuna crítica Rubens Fernandes Junior. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2013.p.243. 107 perceptível a influência do trabalho do fotógrafo americano Robert Mapplethorpe. 164 Em ambos os casos, com cor ou P&B o artista alcança significações complexas. É curioso perceber que o ato de dirigir, de uma maneira muito mais trágica do que nas revelações de Tony Smith, também vai ser crucial nos caminhos de Mário Cravo Neto. Sua passagem da fotografia de rua para o estúdio, e o desenvolvimento de sua série de retratos em preto e branco são decorrentes do seu grave acidente de carro em 1975, quando sua mobilidade foi afetada por mais de um ano. Apesar desta influência do acidente em seu trabalho, a atitude corporal na arte de Mário Cravo Neto situa-se em um outro nível de complexidade. Trata-se de uma relação mais sutil, profunda, diretamente ligada ao seu envolvimento no candomblé e o peso do corpo nas expressões da diáspora. Suas imagens transbordam um conhecimento carregado no corpo como salienta Roberto Conduru: Para pensar as relações entre corpo, meio e imagem na fotografia de Mário Cravo Neto, vale pensar como estas categorias são constituídas no candomblé, como o corpo é concebido nas práticas de iniciação por meio 165 das relações entre assentamento, pessoa iniciada e divindade. Corpo aberto para perceber e conceber. Percepção corpórea transmutada em corpos escultóricos, corpos pendurados, corpos com cabeças de animais, objetos e máscaras de significados. São imagens de alguém igualmente encantado pelas artes da diáspora, pela fotografia e a escultura. Através destes domínios Mário Cravo Neto assentou seus próprios rituais, criando fotografias escultóricas onde o volume parece se desprender do bidimensional. Há um sentimento tátil em suas imagens, é como se pudéssemos tocar nos objetos. Ao evitar o sol e caminhar em direção ao difuso, assim como Mário Cravo Neto, tento penetrar em uma zona onde a consciência permite um modo intuitivo e específico de estruturar a imagem através do corpo, como uma premonição, uma visão carnal. Merlau-Ponty afirma que o corpo não é apenas um objeto entre todos 164 CRAVO NETO, Mario. catálogo da exposição: Butterflies and zebras / curadoria Diógenes Moura; textos Diógenes Moura e Ivo Mesquita; fortuna crítica Rubens Fernandes Junior. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2013.p.165. Neste catálogo há uma entrevista com sua ex-mulher Eva Christensen realizada pelo filho do casal e também fotógrafo Christian Cravo, nela Eva salienta esta influência: “Creio que Mapplethorpe foi uma grande inspiração para suas fotos posteriores, de estúdio.” 165 CONDURU, Roberto. Pérolas Negras Primeiros Fios – Experiências artísticas e culturais nos fluxos entre África e Brasil. Rio de Janeiro. EdUERJ, 2013. p.78 108 os outros, ele é um objeto sensível a todos os outros que ressoa para todos os sons, vibra para todas as cores e que faz escolhas, fornecendo às palavras e outras expressões de comunicação seus significados, ou mesmo seus não-sensos: ...quero verdadeiramente compreender como existe visão, mas então é preciso que eu saia do constituído, daquilo que é em si, e aprenda por reflexão um ser para quem o objeto possa existir. Ora, para que um objeto possa existir em relação ao sujeito, não basta que este “sujeito” o envolva com o olhar… Para que haja visão do objeto ou percepção tátil do objeto, faltará sempre aos sentidos essa dimensão de ausência, essa irrealidade 166 pela qual o sujeito pode saber de si e o objeto pode existir para ele. Esta ausência é o cesto vazio, o oco a ser preenchido, luta do invisível, enfrentamento da sombra, o desligar dos faróis que dá amplitude à percepção. Também é o corpo que se liberta, ou, como sugere o revolucionário Frantz Fanon se referindo a Merleau-Ponty, de quem foi aluno: “para o ser que toma consciência de si e seu corpo, e chega à dialética do sujeito e do objeto, o corpo não é mais a causa da estrutura da consciência, ele se torna o objeto de consciência”. 167 Para Fanon esta percepção soma ao devir anticolonial, onde o homem deixa de ser escravo da escravidão, e a densidade da história não determina mais seus atos, “eu sou meu próprio fundamento”, 168 apenas ultrapassando o peso da história instrumentalizada será possível dar início ao ciclo de liberdade: “Eu devo me lembrar a todo instante que o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção na existência” 169. A ladja sobreviveu justamente pela reinvenção de sua existência, seu poder de ou wé’y ou pá wé’y. Em sua origem mimetizada em meio a outras danças, sob o ritmo do tambor ela mantinha os fundamentos do sagrado, trazia a África ancorada na dança de seus lutadores. Privados de suas lutas, rituais religiosos e qualquer simbologia material, restavam apenas as danças e os cantos como únicas atividades ancestrais permitidas nas fazendas. Integradas às necessidades vitais, elas disfarçavam o peso, destilavam todo o amargor: 166 MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da Percepção. São Paulo. Wmf Martins Fontes, 2011. p.318. 167 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA/CEAO, 2008. p. 186. 168 Ibid. 169 Ibid. 109 ...a cada revolta, a cada lampejo de liberdade, a cada vez que um olhar de cantor recomeçava a ser habitado, que o rosto de um dançarino deixava de ser insonoro, aquilo que parecia não estar lá proclamava a persistência de uma indomável humanidade. O apagado deixava o lancinamento para 170 começar a rugir. Os signos, objetos, símbolos e formas que estruturavam as crenças e os poderes do sobrenatural eram proibidos. Aparentemente, restava aos escravos apenas o corpo. No entanto, nas profundezas das matas, em cantos inacessíveis, os quimboiseurs mantinham os acessos às antigas divindades. Pequenas instalações, formas capazes de provocar a irrupção subterrânea do sagrado através de condensações e outras transmutações – efêmeras combinações de impalpáveis vestígios. Sem receitas escritas elas eram passadas oralmente. Estas “assemblages” continuam presentes até hoje na Martinica, nas encruzilhadas, matas e cemitérios. Mesmo que sejam discretas, comparadas às encontradas nos vizinhos Haiti e Cuba, elas continuam lá, encantando o processo de ocidentalização no imaginário popular. Na crença, no respeito e sideração, os quimbois difundem uma penhora do real, eles são construídos com todo tipo de coisas, organizam concentrações de intenções, de projeções de vontade. Eles ordenam no real. Eles fazem visão. Eles fazem autoridade. Eles fazem estremecimentos artísticos. É a proclamação mágica desta certeza que o real pode ser transformado, que nascerão os outros resistentes: dançarinos, músicos, 171 cantores, contadores...e, no final das contas, nossos artistas plásticos! Para Chamoiseau nas obras dos primeiros artistas plásticos Martinicanos, uma busca identitária se fazia inevitável. Eles se organizavam em grupos, escolas e mobilizavam seus signos – “era necessário vencer o apagamento primordial – reduzir a amputação. Os símbolos e as formas da África, assim como os signos ameríndios, ou mesmo os dispositivos do vodu, restariam muito tempo como auriflamas de suas pesquisas.” 172 170 CHAMOISEAU. p.48. 171 CHAMOISEAU.p.50.m. tradução nossa: Dans la crainte, le respect et la sidération, les quimbois difusent une obscure saisie de réel. Ils sont construits avec toutes sortes de choses, organisent les concentrations d’intentions, des projections de volonté. Ils ordonnent au réel. Ils font visions. Ils font autorité. Ils font tressaillements artistiques. C’est cette proclamation magique de cette certitude que le réel peut être transformé, que naîtront les autres résistents: danseurs, musiciens, chanteurs, conteurs...et, en fin de compte, nos plasticiens! 172 CHAMOISEAU.p.51.m tradução nossa: Il fallait vaincre l’effacement primordial. Réduire l’amputation. Les signes, les symboles et les formes d’Afrique, les signes amérindiens, ou même les dispositifs du vaudou, resteront longtemps les oriflammes de leurs recherches. 110 Para o pesquisador Jean-Marie Louis, o nascimento de uma história da arte martinicana inserida em um contexto pós-colonial começa com o final da guerra em 1943, quando surge a École d’Arts appliqués de Fort-de-France. Para ele “é uma das primeiras vezes onde se reconhece oficialmente a existência, mesmo que germinante de uma estética própria desta ilha, mesmo que a palavra “arte” não era ainda totalmente assumida pela escola, preferindo o termo “artesanato” ou “artes aplicadas”. 173 Foi um passo fundamental para o desenvolvimento desta arte local ao viabilizar a troca de conhecimento. Diálogo enriquecido com a participação de professores capacitados e cientes do momento histórico como o pintor Alexandre Bertrand, que possuía uma sólida formação em Paris e estava conectado com o surrealismo e a produção literária local de resistência através da Revista Tropiques. Como artista e professor, Bertrand percebeu a importância das questões sociais e identitárias naquele momento: “A questão de identidade é a parte mais dolorosa nos artistas martinicanos, porque na verdade nós não conhecemos nossa identidade.” 174 A escola serviu como um primeiro dispositivo de transmissão de conhecimento, um avanço social ao oferecer novas perspectivas à população. Mas os traços do colonialismo ainda transbordavam para todos os lados, como foi sentido na pele dos três alunos Raymond Honorien, Mystille et Germain Tiquant, que, ao se depararem com a frase do diretor da escola: “não ter um forno de cerâmica para dar a estes negrinhos” 175 decidiram abandonar a instituição e montar o Ateliê 45, 173 MARIE LOUIS, Jean. L’art contemporain martiniquais de 1939 à nos jours: la naissance d’une histoire de l’art das un contexte postcolonial. Tese de doutorado defendida em 06-11-2009 em Metz , no quadro da Ecole doctorale Perspectives Interculturelles : Ecrits, Médias, Espaces, Sociétés (PIEMES) (Metz-Nancy). Disponível em: http://www.theses.fr/2009METZ030L Acesso em 13/06/2018. tradução nossa: C’est une des premières fois où l’on reconnaît officiellement l’existence, même en germe, d’un savoir-faire et d’une esthétique propre à cette île. Notons, toutefois que dans les objectifs de l’école, le mot « art » n’est pas encore totalement assumé. On lui préfère le terme « artisanat » ou la locution « arts appliqués ». 174 Citado por RENÉ, Louise. Peinture et sculpture en Martinique. Paris: Editions Caribéennes, 1984, p. 49. APUD. MARIE LOUIS, Jean. L’art contemporain martiniquais de 1939 à nos jours: la naissance d’une histoire de l’art das un contexte postcolonial. Tese de doutorado defendida em 06-11-2009 em Metz , no quadro da Ecole doctorale Perspectives Interculturelles : Ecrits, Médias, Espaces, Sociétés (PIEMES) (Metz-Nancy). Disponível em: http://www.theses.fr/2009METZ030L Acesso em 13/06/2018. Tradução nossa: « La question de l’identité est la partie la plus pénible chez l’artiste martiniquais, puisqu’en fait, nous ne connaissons pas notre identité » p.97. 175 MARIE LOUIS, Jean. L’art contemporain martiniquais de 1939 à nos jours: la naissance d’une histoire de l’art das un contexte postcolonial. Tese de doutorado defendida em 06-11-2009 111 formando assim o primeiro grupo de artistas da ilha. De 1945 até 1955 eles participam ativamente na criação de uma arte martinicana que não se contentava mais em apenas imitar os artistas franceses. Inspirados pelo forte movimento literário local, pelo conceito de negritude proposto por Aimé Césaire, pela revista Tropiques e pelos romances de Joseph Zobel, entre eles o livro de contos Laghia de la mort,176 cada artista desenvolveu sua poética. Raymond Honorien se voltou para os aspectos urbanos e a população. Ao contrário de Raymond, Mystille pintava exclusivamente paisagens, mas sem a presença humana e a angústias cotidianas do mundo. E finalmente Tiquant se caracterizou por suas crônicas do dia-a-dia. Em sua tese, Jean-Marie Louis ressalta a aproximação de Germain Tiquant com a literatura de Joseph Zobel ao retratar lutas de galo, feirantes e a vida martinicana. Estes artistas deram início à uma importante ruptura, mesmo se alguns respingos de Paul Cézanne, Henri Mattisse e principalmente Paul Gauguin, continuassem a saltar de suas telas. 177 Outro movimento que trouxe inquietações e teve forte influência na arte local foi a École Négro-Carïbe, nascida do reencontro em 1970 de dois artistas plásticos martinicanos que além de terem estudado juntos na França na École nationale d’arts décoratifs de Nice também viveram e ensinaram arte na África. Serge Hélénon foi professor no Mali e Louis Laouchez na Costa do Marfim. Ambos também foram influenciados pelo pensamento de Aimé Césaire e seu conceito da negritude, que fazia da África a terra original para grande parte dos artistas daquela geração. Na África eles perceberam que não eram africanos como a negritude os fez acreditar, eram caribenhos e estavam inseridos em uma cultura rica em diversos aspectos, dos quais, os mais poderosos eram aqueles trazidos nos porões dos navios negreiros. O primeiro contato com o continente africano surpreendeu Laouchez: “Diante de uma África eminentemente rica, eu me dei conta da minha condição de homem em Metz , no quadro da Ecole doctorale Perspectives Interculturelles : Ecrits, Médias, Espaces, Sociétés (PIEMES) (Metz-Nancy). Disponível em: http://www.theses.fr/2009METZ030L Acesso em 13/06/2018. Tradução nossa: “ne pas avoir de four de céramique pour donner à de petits nègres” p.99. 176 177 ZOBEL, Joseph. Laghia de la mort. Présence Africaine. Condé-sur-Noireau. 2012. Louise, René, Peinture et sculpture en Martinique. Paris: Editions Caribéennes, 1984, 67 p. Op. cit., p. 11. Apud: MARIE LOUIS, Jean p. 102. 112 quase aculturado”. 178 Esta tomada de consciência contrariava todo o esforço que o poder colonial havia colocado em suas cabeças, como professores de arte eles recusaram todos os livros e os modelos pedagógicos ocidentais, não havia mais sentido ensinar desenho a partir de modelos planos, já que existia toda uma estatuária africana de altíssima qualidade. Desta experiência africana, a espiritualidade foi acentuada nos dois artistas e o quimbois e um pensamento misterioso marcaria o trabalho dos dois. Para Laouchez era importante se enriquecer desta magia: "Onde a realidade encontra o abstrato, onde o imaginário é insaciável, mas grávido, onde o gesto está no ritmo e no sangue. O visual, enquanto isso, se expressa através da natureza: rochas, areia e outras decocções”. 179 A École Négro-Caraïbe não era um lugar nem uma ideologia era um estado de espírito, um tratado de união que compõe a cultura crioula nascida do enfrentamento entre o ocidente e a África. Laouchez e Hélénon publicaram diversos manifestos em nome deste movimento apelando para a tomada de novas atitudes, contra a passividade e indecisão de boa parte da população. Teorias transmutadas em suas obras, principalmente nas assemblages de Serge Hélénon, ou como ele prefere chamar locais de pintura, realizadas com pedaços de madeira, plásticos encontrados na rua, objetos rejeitados pela sociedade. Obras inspiradas na estética dos barracos de pescadores, cases-nègres martinicanas e favelas brasileiras, 180 estruturas do improviso cujos mistérios dialogam com os quimboiseurs do passado, mantendo os acessos às antigas divindades. Outro grupo referencial na arte contemporânea martinicana é o grupo Fwomajé, nome em crioulo da sumaúma, uma árvore de raízes profundas. Este grupo é formado por artistas engajados em um projeto ético e estético, suas 178 Gerry, L’Etang (dir.), La Peinture en Martinique, Paris: HC Editions, 2007, p. 298. Apud MARIE LOUIS, Jean p. 180. 179 Gerry L’Etang (dir.), La Peinture en Martinique. Paris: HC Editions, 2007, 375 p.Op. Cit., p. 299. Apud: MARIE LOUIS, Jean p. 102. 180 Em uma entrevista Serge Hélénon disse: “Visitando Abidjan e os arredores, eu vi comunidades que pareciam com as que eu havia conhecido na minha infância e que achamos no Brasil e que chamamos favelas.” Tradução nossa: “En visitant Abidjan et les alentours, j’ai vu des bidonvilles qui ressemblent à ce que j’avais pu connaître lors de mon enfance et qu’on retrouve au Brésil et qu’on appelle les favelas”. In. Hélenon. L’ésthetique du dedans ou la terre caraïbe comme relation entre l’occident et l’afrique. Entrevista com Pascal Amel. Catálogo da exposição na Fundação Clément. 2011. Curadoria Dominique Berthet. Serge Hélénon atualmente vive e trabalha em Nice na França. Louis Laouchez faleceu em 2016. 113 pesquisas e proposições investigam uma “estética caribenha”. O grupo foi criado em 1984 e era formado inicialmente por Bertin Nivor, Ernest Breuleur, Franois Charles Edouard, Renée Louise, Victor Anicet e Yves Jean-François. Mais tarde outros artistas integrariam o grupo como Serge Goudin-Thébia. Para estes artistas um olhar voltado para o passado se fazia inevitável para melhor compreender a realidade antilhana, mas este retorno só teria sentido se ancorado no presente e voltado para o futuro. Para este grupo a colonização, a assimilação e a rápida exterminação dos índios Arawakes e Caraïbas dificultou a perenização de uma bagagem simbólica. O investimento histórico e identitário deste grupo pode ser constatado na poética diversificada de seus integrantes. Cada artista direcionou sua produção para um determinado aspecto, como escreve Jean-Marie Louis: “De fato, cada membro do grupo dedicou-se a uma área relevante para a formação de uma identidade martinicana. Charles-Edouard questiona precisamente essa identidade, Breleur olha para a África, Anicet sobre os ameríndios, Louise trabalha com o quimbois e Nivor sobre a língua crioula.” 181 Dos artistas do grupo Fwomajé o trabalho que mais me marcou foi o do artista e poeta Serge Goudin-Thébia. Me interessei inicialmente pelo seu trabalho por morar na mesma região que ele morava, em Tartane, uma região voltada para o lado atlântico da ilha onde a natureza é impactante e muito preservada. Dentre suas diversas proposições, o trabalho que mais me comoveu foi a obra Guerrier de l'absolu, cujos seres construídos de folhas da região parecem ter saído de uma natureza em convulsão, de uma revolta de índios ressuscitados que vieram cobrar explicações. Embora estáticos eles causam apreensão, parecem esconder um possível ataque como os dos lutadores de ladja. 181 MARIE LOUIS, Jean. p.190. Tradução nossa: En effet, chaque membre du groupe s’est consacré à un domaine pertinent quant à la formation d’une identité martiniquaise. Charles-Edouard questionne justement cette identité, Breleur se penche sur l’Afrique, Anicet sur les Amérindiens, Louise travaille sur le quimbois et Nivor sur la langue créole. 114 Figura 6 – Serge Goudin-Thébia, Guerreiro do absoluto (Guerrier de l’absolu), 1998. Folhas, gravetos de madeira, 230 X 130 cm. Além deste devaneio poético de minha parte ao imaginar o encontro de Serge Goudin-Thébia com o universo da ladja; Renée Louise investigou o quimbois, trabalhou com o conceito de marronismo moderno; Victor Anicet frequentou as noitadas de bélé e representou este universo através de croquis do cantor Ti-Émile, de dançarinos e tamboreiros; e Bertin Nivor pintou a ladja em um de seus trabalhos, aproximações que faziam deles nas palavras de Anicet “caçadores de sombras, caçadores de sentido”. 182 Grupos, coletivos e as diferentes formas de associações entre artistas aparecem na Martinica como acúmulos de força para combater estas sombras coloniais. Buscas que também podem ser percebidos no trabalho do casal de artistas performáticos Annabel Guérédrat e Henri Tauliaut e o coletivo idealizado por eles LaboPerf. 183 Tive a chance de fazer parte deste coletivo ao participar de duas 182 Victor Anicet, “Quelle est la part de l’artiste contemporain dans la reconstruction de notre société ?”, propos recueillis par Gérard Dorwling-Carter, Antilla. L’Hebdo de la Martinique fondé depuis 1981, p. 29. APUD. MARIE LOUIS, Jean p. 192. 183 Ver: www.artincidence.fr 115 edições do laboratório de práticas performativas e land art realizado mensalmente no sul da ilha na Savana das petrificações, um espaço aberto à prática artística no meio da natureza com o objetivo de experimentar, procurar, compartilhar, colaborar em torno de práticas performáticas experimentais. Perguntei a Henri se havia uma conexão entre o Laboperf e os grupos anteriores, como o Ateliê 45, L’École negro-caraïbe e Fwomajé. Ele respondeu: – Diretamente não! nossas pesquisas não estão voltadas para a história e as origens. – Também não estamos centrados na questão da identidade como eles. – Não negamos esta questão, mas ao invés de procurarmos entender porque as coisas não funcionam, fazemos proposições para que elas funcionem. – Não somos os donos da verdade, mas nos inclinamos mais para a construção do que para a análise. – Enquanto estes grupos procuravam as raízes, nós estamos nas frutas, somos os frutos. Esta é a grande diferença. – Buscamos rituais que invertam o paradigma. Não ficamos remoendo e imaginando como seríamos se as coisas tivessem sido diferentes por isso ou por aquilo. – Estamos em 2018, sabemos o que acontece na África, na Índia e escolhemos o que nos interessa, queremos que nossa arte funcione na Martinica mas também em qualquer outra parte do mundo. – Procuramos um discurso suficientemente aberto para não sermos considerados apenas como afro qualquer coisa. Não buscamos identidades coletivas. – A pessoa que está ao seu lado pode ser completamente diferente de você. Escolhemos as coisas que nos fazem bem e não mais as máscaras sociais. Paralelamente ao Laboperf, Henri e Annabel assumem em suas performances as contaminações contemporâneas, inserem personagens de diversas épocas e origens no universo caribenho, desafiando um público ainda pouco habituado com este tipo de manifestação. São ações que se confundem entre o íntimo e o político, que abordam questões atuais com ironia e nudez. São artistas que atravessam os dilemas pós-coloniais com suas poéticas híbridas que envolvem o corpo, o espaço e a transmissão de tradições. Diferentemente dos primeiros 116 grupos de arte da Martinica, seus combates são carregados do sarcasmo de quem busca livremente por si próprio. Conheci Annabel em uma aula de ladja, ela também é lutadora. Em algumas de suas performances ela utiliza movimentos da luta. Destas interlocuções com Annabel e Henri e o coletivo Laboperf, surgiram proposições transversais e somatórias na minha busca pelo ou wè’y ou pa wè’y. Percepções capazes de operar entre o dizível e o visível, entre o plástico, o poético e o político, potencializando rastro e matéria com a força que o universo da ladja distila. Uma luta do (in)visível onde a falta se reconstrói e se faz desaparecer ao mesmo tempo, arte de transformar raiz em fruto, sombra em vida. Potencialidades plásticas e culturais que se confundem e se complementam entre lutadores e artistas, ou melhor, artistas lutadores. Imagens que dialogam com o rico universo dos lutadores de ladja, presente em expressões como: “do’y vitré” e “coup monté” 184 (costas de vidro e golpe montado). O primeiro se refere à invisibilidade, quem tem as costas de vidro não pode ser visto como diz a canção que narra o episódio em que o lendário lutador e tocador de tambor Andréa ficou invisível quando a polícia foi procurá-lo em sua casa. Golpe montado é quando o lutador vai para a mata fazer um retiro, se energizar antes de uma luta importante, se deixar possuir por um espírito, utilizando plantas e rituais mágicos para carregar seus punhos ou pernas de uma força sobrenatural. Se um lutador faz uma preparação dessas e seu oponente não aparece para o desafio, ele deve descarregar essa energia acumulada em suas pernas ou mãos. Uma das formas de fazer isso é socar ou chutar uma árvore. Segundo os antigos, até hoje, é possível achar mangueiras repletas de calombos em seu tronco, marcas deste ritual. Esta expressão também pode se referir a mãos envenenadas. No início das rodas, é comum, um lutador bater no próprio peito ou no chão, mostrando assim, que o veneno iria para o seu próprio corpo ou sairia no solo, caso suas mãos estivessem envenenadas. Estas imagens oníricas da ladja sobreviveram ao esfacelamento perverso da cultura do outro no colonialismo. O filósofo Homi Bhabha, se referindo à Argélia, excolônia francesa, em seu prefácio no livro Os condenados da terra de Frantz 184 Foi meu professor de ladja David-Alexander Fatna quem me ensinou estas expressões. 117 Fanon, 185 fala de uma divisória cultural na qual, os colonizados, para serem considerados cidadãos, deveriam se desnudar de sua cultura e se vestir com a da República Francesa, sem poder confrontar suas normas e práticas. A Argélia não se sujeitou ao domínio francês, lutou de 1954 até 1962 em uma guerra sangrenta, até conseguir sua independência. A Martinica optou por uma batalha política de assimilação, encabeçada por Aimé Césaire. Um desvio carregado de traumas e chagas ainda abertas. Na resistência dos lutadores de ladja, na eclosão cultural de seus escritores, artistas e agentes populares engendra-se até hoje o combate contra este desconforto. Uma luta que inscreve esta ilha do Caribe no que Homi Bhabha considera um “entrelugar”, terreno onde é possível se elaborar estratégias de subjetivação “que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade”. 186 Artistas martinicanos contemporâneos navegam nestes preceitos, muitos deles atentam para não representar a diferença apenas como reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos “inscritos na lápide fixa da tradição”. 187 A articulação plástica da diferença é uma difícil negociação quando se pretende sincera, ao conferir potência aos hibridismos culturais emergentes em momentos de transformação histórica. Ao revisitar o passado estes artistas introduzem outras poéticas e temporalidades culturais, incomensuráveis na reinvenção da tradição. Apesar da grande admiração por alguns artistas martinicanos e o diálogo que estabeleço com a fotografia escultórica de Mário Cravo Neto no meu trabalho, a primeira obra que me vem à cabeça ao relacionar toda a complexidade necessária para dar visibilidade a este universo mágico da ladja, carregado de tensões históricas e sociais é a obra Ttéia 1C de Lygia Pape. Nela o espectador é obrigado a realizar a passagem do claro para o escuro, uma experiência que apela para o noturno, o cósmico, próxima dos mistérios incitados na escuridão. Nela nosso corpo deve respeitosamente se adaptar àquela outra realidade de luz. Na sala escura, sutis linhas douradas agrupadas geometricamente em bases quadradas são lançadas no espaço, traçando longas retas longitudinais. Elegantes e 185 BHABHA, Homi. In. FANON, Frantz. The Wretched of the earth. Grove Press. New York. 2004.p. 12. 186 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2014. p. 20. 187 CHAMOISEAU. 2016. p.50. 118 tensas colunas surgem nos caminhos lineares dos fios, através de um volume escrito apenas com a luz. Enquanto Mário Cravo Neto realiza uma fotografia escultórica, Lygia Pape investe em uma escultura fotográfica. Curiosamente esta obra também possui uma forte ligação com o corpo e a experiência de andar de carro. Lygia dirigia seu fusquinha pela iluminada cidade do Rio de Janeiro, seguidamente à noite. Ela costumava se imaginar tecendo o espaço como uma aranha. Através de seus caminhos, a arquitetura, a complexidade social, o inchaço das periferias e demais rupturas de um caos urbano adquiriam a forma de teias como ela diz: … eu saía de madrugada para cruzar os viadutos, aqueles ali perto da Leopoldina que cruzam para cá e para lá… eu tinha a nítida impressão de que estava tecendo o espaço, sozinha a mil por hora por aquelas subidas. Era uma loucura, tinha a impressão de que estava tecendo uma teia no espaço da cidade; mas era uma coisa anônima, saía de noite, sozinha, sem 188 comunicar a ninguém, e ia tecer as minhas teias. Em uma operação estética escultórica-fotográfica, Ttéia 1C, de 2002, surge com a leveza de uma poderosa instalação, sua voluminosidade carrega as tensões do mundo real, um ato político-crítico instigado pelo sensível. Dar visibilidade ao invisível. Entre a sua ampla e diversificada produção artística, outras obras de Lygia, assim como Ttéia, dialogam intimamente com a luz. São construções geradas a partir de um pensamento fotográfico extremamente refinado. A artista investigava a disciplina do ver, as sutilezas e os caminhos da luz, suas nuances, temperaturas e reverberações para instigar o sensível. Entre os diversos exemplos está o Livro da criação, de 1959-1960, no qual, ora formas geométricas saíam do plano do livro para ganhar o espaço, ora eram transpassadas por feixes de luz. Outro experimento da artista nesta perspectiva é a construção poética de Faca de luz, de 1976. Como sugere o título, a obra é o próprio ato de rasgar uma cabine fechada com uma faca, e assim manipular, transpassar, escrever com a luz. São muitos os exercícios de luz de Lygia, uma tese inteira poderia ser desenvolvida com este recorte. Fecharei esta digressão com a obra O olho do guará, de 1984. Do pássaro guará eram tiradas as penas utilizadas nos mantos dos 188 Entrevista de Lygia Pape a Glória Ferreira LHL – Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape. Brasília: Conjunto Cultural da Caixa Econômica Federal, 1999. Apud.FREITAS, Rosana de. Dossiê Lygia Pape Homenagem. In: Arte & Ensaios. Revista do Programa de pós-Graduação em Artes Visuais. EBA, UFRJ, ano XI, número 11. Rio de Janeiro. 2004. p.11. 119 rituais antropofágicos dos índios Tupinambás, existem diversas versões desta obra, geralmente feitas de peles de animais e luzes de néon. Nestas obras o público recebe instruções para ficar olhando diretamente a luz de néon por sessenta segundos e depois olhar a superfície branca, assim o néon se funde com o couro em uma percepção póstuma, não há mais a presença do objeto nem do ato, resta apenas uma vaga presença fantasmática da operação. Para a artista, este ato possibilitava novas leituras poéticas através de experimentos de saturação da retina. Esta obra surge logo após a morte do seu amigo, o crítico Mário Pedrosa. Homenagem ou não, ela é carregada de um sentimento de transcendência. Ressalto a ligação deste pensamento fotográfico, desta relação particular com a luz de Lygia na construção de um fazer plástico em constante diálogo com outros mitos. É interessante perceber a importância da antropofagia para a artista, como ela devorava e ressignificava aspectos mágico-ritualísticos em seus processos como ela comenta: Os tupinambás eram um povo que tinha uma série de mitos, cerimônias, e, dentre elas, a devoração do corpo no sentido de captar a força espiritual dos prisioneiros, geralmente chefes importantes. Eles, ao devorarem: significava incorporar a espiritualidade do outro em você, no corpo. Não era só um canibalismo, era uma antropofagia. Aliás, a partir de 1922, Oswald de Andrade vai usar esse mito dos Tupinambás e criar a ideia do pensamento 189 antropofágico na cultura brasileira. Lygia desenvolveu diferentes tratamentos estéticos em obras com temática indigenista, a maioria ligadas aos índios Tupinambás. Ela considerava esta herança indígena como algo forte, dela, presente nos atos corriqueiros do dia-a-dia, como deitar na rede e comer farofa. Roberto Conduru ressalta esta relação: “cultura e arte são potências como campos de força e atração artística. Verdadeiro Titã, ela se impôs o desafio de mobilizar essas forças.” 190 Além desta presença indígena e das andanças com Hélio Oiticica no morro da Mangueira, outras manifestações culturais que ela chamava de campos imantados como as rodas de capoeira e a atividade de camelôs alimentavam a artista: “Não há nada mais sofisticado, intelectualmente falando, do que a cultura dita não erudita.” 191 189 PAPE, Cristina. Trabalho vivo e renovador. Entrevista com Lygia Pape realizada em fevereiro março de 2002. (jornal eletrônico) Disponível em: http://www2.uerj.br/ ~labore/entrevista_ligia_meio.htm. Acesso em: 15 de julho de 2004. 190 CONDURU. p.69. 191 PAPE, Lygia. “A chave de leitura”. In: PAPE, Lygia. O olho do guará de Lygia Pape. São Paulo: 120 Em relação à obra O olho do guará e os experimentos de luz, Lygia comenta: “essas descobertas vão mais além do meramente sensorial: preveem um espaço e um tempo interno – o mais profundo do ser – à sua poética”. Vejo nesta busca incessante por proposições, formas e estruturas capazes de mergulhar nas profundidades do ser de Lygia, um forte paralelo com os contadores e majores da ladja martinicanos. Ambos partem do nada para engendrar as estruturas de seus rituais, seja de luz, de verbo ou do corpo. O que está em jogo é a luta simbólica, é a capacidade mágica destes guerreiros do imaginário em fazer refletir a ausência através da arte. Em um artigo publicado em 1956 no Jornal do Brasil 192 intitulado A arte mágica e o pensamento atual o crítico Mário Pedrosa, um dos principais articuladores do neoconcretismo, amigo e interlocutor de Lygia Pape, discorre exatamente sobre esta relação entre magia e arte. Ao criar um diálogo imaginário com André Breton a partir do texto A arte mágica e o pensamento atual escrito pelo artista surrealista, o crítico brasileiro investe em uma reflexão sobre as dicotomias e esgotamentos que rondavam grande parte da arte ocidental naquele momento, clamando por uma revisão histórica menos eurocêntrica. Com toda sua sagacidade crítica, Mário Pedrosa permeia este artigo com inquietações artísticas da época. É notório o interesse e encantamento de Breton pelas artes não ocidentais, seu ateliê era abastecido de objetos provenientes de diversos povos e culturas. Neste diálogo imaginário entre Breton e Pedrosa ambos refletem sobre a magia como manifestação “cujo poder sobre nós ultrapassa o que se poderia esperar de seus meios apreensíveis”. 193 Para Breton, as obras que carregavam aspectos enigmáticos situavam-se em uma nova hierarquia de valores, onde prevalecia o espírito de criação em detrimento ao de imitação. Pedrosa vai responder a este comentário afirmando que a arte daquela época, a arte moderna, “é, em si mesma, o maior e mais profundo esforço do pensamento e da sensibilidade ocidental para recuperar o espírito mágico...”, 194 Arco Arte Contemporânea, 1984. Catálogo de exposição. 192 OITICICA FILHO, César. Org. Coleção Encontros: Mário Pedrosa. Rio de Janeiro. Azougue, 2013. p.48. 193 Ibdem p. 49. 194 ibid 54. 121 seria uma tentativa de retorno ao pensamento mítico diante daquela sociedade utilitário burguesa, regida pelo racionalismo metafísico, fazendo da arte algo mais autêntico, mais próximo da magia. Seria um convite a uma atitude mental e espiritual diferente daquela governada pelas relações sociais e intelectuais da sociedade ocidental. Pedrosa afirma ser necessário colocar de lado o aparelho rígido, ou especializado de nossos conceitos lógicos para se penetrar na arte. Aberturas capazes de dialogar com o que ele chamava de “velho e bom método fenomenológico, o único que nos permite atingir a realidade mesma da experiência do acontecimento vivido... excluída toda a experiência pessoal, é o método da antiga ciência.” 195 Pedrosa apontava para a importância da arte como um vetor, instrumento de transformações simbólicas e sociais. Para Mário o artista era o único mágico autêntico daqueles dias – mágica como a Ttéia de Lygia Pape. É interessante notar que Pedrosa e Breton direcionavam suas reflexões para os aspectos mágicos e perceptivos da arte sem deixar de lado os aspectos políticos. Breton participou ativamente dos movimentos anticoloniais, publicou regularmente nas revistas Legitime défense e Tropiques do filósofo martinicano René Menil e tomou posição junto ao grupo surrealista contra a Exposition Coloniale em 1932, com a palavra de ordem “Não visite a Exposição Colonial”. 196 Com isso os surrealistas pegavam no contrapé de uma evento que receberia cerca de oito milhões de visitantes, pregando o combate anticolonialista, antirreligioso e anticapitalista. Breton vai criar laços profundos com a poesia e a arte da Martinica em um momento importante, como disse Réne Menil, citado por Dominique Berthet: ...o real e o imaginário são complementares, um é o presente, outro o futuro, explica ele. O imaginário é o real a se realizar. Ele vira realidade quando nós ‘”temos coragem”’, indicando assim que o imaginário é um real possível, acessível graças ao ímpeto. O real e o imaginário são em suas essências contraditórios, no entanto, o imaginário não tem nenhum meio de existência se ele é cortado do real, ou ainda se negamos seu referente que é o mundo. O imaginário não está separado do real, ele é a perspectiva de um outro lugar, de um contrário que pode se ressaltar na história e se encarnar. Ele pode inflectir a história, porque ele possui a mesma insuspeita 195 196 ibid.p.55. BERTHET, Dominique. André Breton, l’éloge de la rencontre. Antilles, Amérique, Océanie. HC editions. Paris. 2008. P.55. tradução nossa: “Ne visitez pas l’Éxposition coloniale”. 122 potência da utopia. Ele é o fermento da revolta. Ele é também criação de 197 mundos. Ele faz presente o olhar antecipado. Pedrosa também lia e citava os escritores martinicanos, sobretudo Frantz Fanon, a quem considerava um visionário. Pedrosa afirmava que os artistas de “vanguarda” (periféricos do eixo eurocêntrico) daquela época, deviam deixar de tentar “alcançar a ultimíssima novidade”, pois era uma triste e vã ilusão. Sugerindo que estes artistas expulsassem de seu seio a mentalidade desenvolvimentista, que era, para ele, ”a barra que se apoiava o espírito colonialista”. Em 1975, ele escreve: Talvez não estejamos tão distantes dos tupiniquins ou tupinambás que sucumbiram à colonização, mas podemos recusar as “más historiografias de origem metropolitana” e “os produtos ultramodernos das áreas adiantadas da civilização transnacional, que de futuro só apresenta a 198 aparência”. Como tarefa criativa da humanidade, se fazia urgente mudar a latitude, avançando para áreas mais amplas e dispersas do terceiro mundo. Ou como diria Suzanne Césaire, era hora de dar fim à “literatura de açúcar e baunilha, turismo literário... A poesia Martinicana será canibal ou não será”. 199 Para o crítico brasileiro, somente diante de um contexto universal onde o terceiro mundo adquirisse voz seria possível pensar no engendramento de uma nova arte: “será esta uma das faces mais vitais deste prisma revolucionário em gestão nas entranhas convulsas dos povos que Fanon chamou de os condenados da terra”.200 Pedrosa complementa seu raciocínio comparando a profunda diferença da arte no hemisfério dos ricos imperiais, “claro capricho, de luxo, estetizante, que se 197 Ibid p. 67. Tradução nossa: “ Le réel et l’imaginaire sont complémentaires. L’un est le présent, l’autre le devenir, explique-t-il. L’imaginaire est le réel en devenir. Il dévient réel quand “nous avons courage”, indiquant ainsi que l’imaginaire est un réel possible, accessible grâce à un élan. Le réel et l’imaginaire sont dans leur essence contradictoires, toutefois, l’imaginaire n’a aucun moyen d’existence s’il est coupé du réel, ou encore si l’on nie son référent qu’est le monde. L’imaginaire n’est donc pas séparé du réel. Il est la perspective d’un ailleurs et d’un autrement qui peuvent rejaillir sur l’histoire et s’y incarner. Il peut infléchir l’histoire car il possède la même insoupçonable puissance que l’utopie. Il est le ferment de la révolte. Il est aussi création de mondes. Il rend présent, voire anticipe.” 198 PEDROSA, Mario. Discurso aos tupiniquins ou nambás. In: ARANTES, Otília (org.). Política das Artes. São Paulo: Edusp, 1995b, p. 333-340. 199 BERTHET. 2008.p. 69. 200 OITICICA FILHO. p.111. 123 consome a si mesmo, indiferente a tudo o mais” 201, e o que pode ou deveria surgir em “nossos mundos deserdados”. Para ele a arte ocidental continuava sua carreira inexorável para o ocaso, ainda que esta carreira não se fizesse linearmente e sim aos tropeções, com figurantes espasmos revolucionários como o dadá e o surrealismo. Mário Pedrosa fecha seu texto com otimismo, dizendo que abaixo da linha do hemisfério saturado de riqueza, de progresso e de cultura germina a vida e “uma arte nova ameaça brotar”. 202 Se Mario Pedrosa afirma que o surrealismo foi junto com o Dadá um dos poucos respiros, ou “espasmos revolucionários” na arte ocidental, é interessante reforçar a relação de Breton com a poesia Martinicana e como esta troca regou o devir pulsante da arte local, sobretudo literária. Em 14 de julho de 1943 Aimé Césaire escreve na edição de relançamento da revista Tropiques, agora livre da censura após cinco meses de proibição: “se defender do social pela criação de uma zona de incandescência... com sua carga de pólvora, de escândalo, de derrota, de loucura, de ofuscações”. 203 Césaire em um caminho aberto por Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont, Mallarmé, Apollinaire e Breton propõe também uma “poesia maldita”, uma poesia de ação – de luta. Para Dominique Berthet, esta poesia crítica é indissociável de uma outra noção que dá ao real e ao cotidiano esta bela cor da insubmissão: “o maravilhoso... uma região ardente do imaginário, uma revanche sobre o real.” Desde a sua segunda edição até a penúltima, a revista Tropiques dá grande destaque para esta noção de maravilhoso, seja através de reflexões teóricas, ou ainda de lendas e contos antilhanos. O maravilhoso encontra ecos no surrealismo que também esteve sempre presente na revista. No terceiro número de Tropiques, René Ménil fala nos contos como expressões culturais determinadas pela vida de um povo, que exprimem o maravilhoso coletivo, enquanto os poemas seriam o maravilhoso individual, onde tudo é possível. Para ele, o homem esclarecido, guiado pelo princípio do prazer pode derrotar os limites intoleráveis impostos na vida cotidiana daquela sociedade: 201 Ibid. 202 Ibid. 203 BERTHET.2008. p.64 e 70. 124 ...ele pode transgredir as fronteiras das espécies... ele tem na sua mão o passado e o futuro, o espaço e o tempo, a vida e a morte, os gênios abrindo na sua frente todas as avenidas... o maravilhoso é a imagem da nossa liberdade absoluta... ele projeta na ponta do porvir, uma luz que esburaca a 204 escuridão para mostrar no futuro a via da libertação. Reflexo pulsante, luz que esburaca para se projetar no verbo elegante e feroz dos poetas Aimé Césaire e René Ménil, na arte revolucionária das linhas cor de sangue de Frantz Fanon, na paralaxe do diverso de Édouard Glissant – gritos ainda a ecoar na produção atual dos artistas martinicanos. Na quarta edição da revista Tropiques foi publicado um fragmento do texto “O espelho do maravilhoso, escrito pelo francês Pierre Mabille, amigo de André Breton. Nele o autor complementa esta noção de maravilhoso afirmando que não se deve separar a realidade da imagem da realidade do pensamento, o perceptível do imaginável. Desta forma, o autor convoca o leitor para uma síntese entre a ciência e a imaginação, entre a razão e o sonho: neste espaço onde nossos sentidos não percebem nada diretamente, mas se enchem de energia, de ondas, de forças sempre em movimento, onde se elaboram os equilíbrios efêmeros, onde se preparam todas as 205 transformações. Esta noção de maravilhoso, no entanto, não deve ser confundida com o movimento literário chamado de real maravilhoso ou realismo mágico. Termo relacionado sobretudo à obra do escritor cubano Alejo Carpentier. Em seu livro O reino deste mundo, ao tratar da independência haitiana, o autor, bom conhecedor de André Breton e do movimento surrealista, deixa claro esta questão no prólogo e aproveita para espetar agulhas em alguns de seus protagonistas: Mas à força de querer suscitar o maravilhoso a todo transe, os taumaturgos se tornam burocratas. Invocado por meio de fórmulas consabidas que fazem de certas pinturas um monótono bricabraque de relógios derretidos, de manequins de costureira, de vagos monumentos fálicos, o maravilhoso termina em guarda-chuva ou lagosta... ou os cavalos devorando pássaros de André Masson. Mas observe-se que, quando André Masson quis desenhar a selva da ilha da Martinica, com o incrível entrelaçamento de suas plantas e a obscena promiscuidade de certos frutos, a maravilhosa verdade do assunto devorou o pintor, deixando-o pouco menos que 206 impotente diante do papel em branco. 204 Ibid. p.71. 205 Ibid.p.72. 206 CARPENTIER. Alejo. O reino deste mundo. Martins Fontes. São Paulo. 2009. p. 8. 125 De certa forma poetas e pensadores martinicanos buscavam na troca com os surrealistas e poetas franceses bases para validar, ou traduzir em palavras sua herança mágica africana, profunda essência do maravilhoso. Alimentando-se no terreno do intolerável durante a escravidão, eram justamente essas energias, essas ondas, forças em movimento que se canalizaram nas poéticas do nada, nas arenas dos contadores crioulos e na potência simbólica das rodas de ladja – arte germinante das periferias como a sugerida por Pedrosa. Movimentos de resistência que compactuam ao tomar de assalto o pensamento ocidental e ressignificá-lo através da magia dançante e libertária de um corpo que não deixou de lutar. Para Alejo Carpentier a América inteira ainda não terminou de estabelecer um inventário de suas cosmologias. Em seus atos, estes guerreiros do imaginário enfrentavam as chagas do colonialismo através de sua arte de combate. Ou como diriam ainda Aimé Césaire e René Ménil em seu texto Introdução ao folclore martinicano: Quando o homem esmagado por uma sociedade iníqua procura em vão em torno dele o grande socorro, desencorajado, impotente, ele projeta sua 207 miséria e sua revolta em um céu de promessas e de dinamite . Cabe ressaltar que, apesar desta intensa ligação, estes poetas martinicanos nunca se consideraram surrealistas. Breton ajudou a semear no Caribe a criação artística, aliada à crítica política e existencial. Aimé Césaire chegou a criticar alguns escritores martinicanos da época de serem mais surrealistas do que antilhanos, ressaltando que para entender a realidade Martinicana “era necessário fazer um desvio na África” 208. Para Césaire, não lhe interessava o surrealismo como doutrina e sim como um instrumento capaz de unir poesia e revolução, ajudando-o com isso a encontrar seu eu profundo, bem diferente do eu superficial, polido, amável, atencioso, civilizado. Para Césaire, Breton lhes trouxe a ousadia, a coragem de ter opiniões francas e ir mais longe: “eu nunca esqueci que eu estava em busca de um negro fundamental”. 209. Declaração que nas voltas que o mundo dá lembra a frase escrita no muro do bairro de Bòkannal ”Aimé Césaire nég fondamental”.. 210 207 BERTHET.2008. p.71. 208 Ibid p. 82. 209 Ibid. 126 Entre os diversas motivos já citados para tentar entender porque a obra Ttéia C1 de Lygia Pape me vem à cabeça quando penso no complexo diálogo entre magia e arte, destaco sua revelação privilegiada da realidade através de uma economia simbólica. Este detalhe possui uma forte ligação com a minha busca de refletir este universo dos majores da ladja. Lutadores da luta senegalesa adornam seus corpos com um grande arsenal místico, uma estética herdada das realezas nos antigos impérios 211 e do mundo mágico para se proteger, com seus chifres de animais, pós, cestos, garrafas, raízes, espelhos, colares e até mesmo serpentes. Amuletos dos quais os lutadores acreditam recolher a força e a coragem na adversidade, inclusive de obter o poder da invisibilidade. Talismãs que são exibidos ostensivamente com a finalidade de impressionar o adversário. Já os lutadores de ladja, ao contrário, trazem suas energias escondidas apenas no corpo para engendrar a magia, a ilusão, o impalpável. Uma herança da escravidão onde tentou-se amputar toda a simbologia africana e indígena. Mas ela sobreviveu através de sua redução, trazendo a força em sua sutileza. Uma complexa economia capaz de refletir o invisível como nas teias imaginárias de Lygia Pape. Em uma experiência silenciosa, quase sagrada, os espectadores, ao percorrerem Ttéia C1, são imersos na experiência mágica do vê mas não vê. Como faróis que acendem ou apagam em uma estrada deserta à noite na Martinica, com todos seus alçapões desconhecidos. 210 Página 45. 211 NDAO, Omar. p.192. 127 2 OU WE’Y OU PA WE’Y 2.1 Ou wè’y ou pa wè’y 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 140 141 142 143 144 145 146 147 148 149 150 151 152 153 154 155 156 157 158 159 160 161 162 163 164 165 166 167 168 169 170 171 172 173 174 175 176 177 178 179 180 181 182 183 184 185 186 187 188 189 190 191 192 193 194 195 196 197 198 199 200 201 202 203 204 205 206 207 208 209 210 211 212 213 SOBREVOO "A experiência que eu tive na Martinica é decisiva. Somente lá eu me senti verdadeiramente eu mesmo e é no que eu trouxe que devem me procurar..." 212 Paul Gauguin Na reta final da redação liguei para David e Mehdy para tirar algumas dúvidas da tese. Na última delas, quando investigava com Mehdy alguns detalhes que me escapavam sobre o quimbois ele brincou dizendo que eu estava querendo aprender a voar em pleno dia. Não entendi o significado da expressão e pedi que ele me explicasse. Ele disse que poucos são aqueles que podem voar em pleno dia, para tal destreza é preciso coragem para desafiar a noite. Na Martinica dizer que alguém pode voar de dia é sinônimo de respeito. Significa que a pessoa além de dominar a magia e os poderes ocultos nas encruzilhadas da noite, tem coragem de desafiar os códigos estabelecidos e fazer mágica em pleno dia. A ladja busca este poder de voar ao sol, de desafiar as trevas da escravidão, de enfrentar suas sombras em uma estrada construída entre as múltiplas rotas da existência na diáspora. É a busca por um caminho independente, palavra preciosa cujo peso oprime quem ainda não a conquistou, adjetivo que marca o descompasso de qualquer relação de poder. Ladja é o combate sincopado que tenta reverter a disritmia pós-colonial que insiste em sussurrar melodias de dominação. Comenta-se entre os praticantes de ladja os feitos do lendário lutador do sul da Martinica chamado Henri Papillon (borboleta em francês). Uma das histórias mais famosas é sobre seu combate na França com um experiente lutador de boxe. Ele havia sido levado por um dos békés da família Hayot, a mais rica da ilha para um desafio entre ladja e boxe. Papillon levava golpes sem conseguir reagir, até que ele se aproximou do corner onde estava o patrão e falou que não poderia continuar lutando por não conhecer aquela forma de lutar, o béké disse para ele fazer o que sabia, do seu jeito. Sem o tambor para lhe dar força Papillon cantou mentalmente uma música, com ela na cabeça, ele nocauteou seu adversário em menos de três segundos com um pontapé preciso. A cadência interiorizada no corpo, acionada pela lembrança 212 CONFIANT, Raphaël. Le barbare enchenté. Cahors. Éditions Écriture. 2003. p.9. 214 musical, enviou vibrações à pele capazes de fazer Papillon voar. Diversos cantos da ladja louvam seus feitos como este de Ismain Cachacou: Henri yé papiyon Henri, ê, Borboleta ! Volé volé’w, pa volé anlé mwen! Voa, voa, mas não voa sobre mim! Henri yé papiyon Henri, ê, Borboleta ! Si ou volé anlé mwen, Se você voa sobre mim Man kéy brilé zel ou, chè ! Eu vou queimar suas asas, caro, Henri yé papiyon! Henri, ê, Borboleta ! Kriyé Papiyon, ban mwen, Grite à Borboleta por mim, Man rantré, chè... Que eu cheguei, caro... 213 Desta pequena história podemos tirar algumas impressões. Papillon só conheceu a metrópole porque foi levado pelo seu patrão, o rico béké que o apresentou como um mero galo de briga. Provavelmente seu patrão não sabia que Papillon era um majò, um sujeito de destaque em sua comunidade, não apenas porque era bom de pernada mas porque era um mestre do danmyé, esta dança de guerra que é ao mesmo tempo ato de resistência e ato cívico. Papillon possuía a história no corpo, os gestos trazidos de seus ancestrais desde os navios negreiros, lutas transmutadas com a abolição da escravidão, quando os antigos escravos se tornaram cidadãos livres de um dia para o outro. Mas não se apaga o passado com pouca mágica. No corpo destes libertos permaneciam os hábitos do trabalho duro e as marcas de uma sociedade estruturada na força e na coerção. Foram também seus antepassados que constituíram as primeiras comunidades livres, sociedades ainda tensionadas pela violência, injustiça, dificuldade de subsistência e outros traumas. Obstáculos que geravam tensões e faziam surgir os majores da ladja. 214 Homens que tinham como característica fundamental o domínio da ciência do corpo e do combate. Papillon vinha de uma tradição na qual os lutadores mais respeitados nestas novas comunidades de homens livres assumiam aspectos importantes da organização social, se tornando peças fundamentais na eclosão deste novo viver 213 214 DRU. p.78. Teoria apresentada pelo sociólogo Serge Domi, durante o seminário: “Le danmyé en Martinique, sport et culture liens et voies de developpment”. Organizado pela Coordenação Danmyé Matinik, realizado no dia 17 de dezembro de 2017 no IMS (Institut Martiniquais du sport). 215 junto em liberdade. Postura esta que trazia autoridade e responsabilidade, conferindo um novo status social para estes majores. O béké conhecia a capacidade de luta do seu empregado e provavelmente viu neste talento uma forma de ganhar dinheiro, mas o que ele provavelmente não sabia é que Papillon era um artista, podia voar em pleno dia, por trás de suas pernadas existia uma arte altamente refinada, uma cultura rica e complexa decantada na diáspora. Voar de dia é um ato que subverte duas normas, é como seguir reto entre dois caminhos de uma bifurcação. Ato que de um lado desafia as normas dos contadores martinicanos ao lidar com magia em pleno dia, expondo-se ao risco de se transformar em um cesto vazio. De outro lado subverte as leis do império ao assumir a magia ancestral do continente negro, há muito tempo perseguida nesta ilha. Voar no grande dia é coisa de colibri, símbolo da ladja proposto pelo lutador e poeta Daniel Fatna. 215 Pássaro dono de um voo tão rápido que às vezes parece invisível como o próprio ou we’y ou pa we’y. Também é um dos únicos pássaros que troca as penas de forma simétrica nas duas asas, um exemplo de ékilib/dézékilib. Um pássaro que se necessário enfrenta cavalo ou touro até a morte – lagya de la mort. Também é combate de voadores a luta de energias obtidas pelo uso de plantas, pedras, água, sol, lua, animais, rezas e outras heranças da diáspora. É a arte dos negros marrons voadores do poema Corpos Perdidos de Césaire, que no ar dariam um grito tão violento que pintaria o céu inteiro. 216 Voar ao sol é sobrepor uma pedra redonda em uma plana e conseguir imobilizar o adversário através desta mandinga. Sobrevoo errante também se escuta na circularidade sonora dos toques do tambor, como fazia o lendário majò Andrea, que segundo os antigos tinha o poder de fazer a roda decolar. A sociedade martinicana mantém uma estrutura política que também remete ao ou wè’y ou pa wè’y, um combate sem regras claras em relação aos interesses econômicos e políticos do governo francês, que mantém uma estrutura econômica e social funcional, permitindo aos habitantes da ilha ter um padrão de vida confortável, mas contudo, não consegue esconder a frustração de um sentimento de ex-colônia. Ações que geram um frágil équilib/dézéquilib e podem ser percebidas em pequenos 215 216 AM4. P. 274. BOUVIER.p.144. “...mais à mon tour dans l’air / je me léverai un cri et si violent/ que tout entier j’éclabousserait le ciel...” 216 detalhes, como a bandeira da Martinica independentista com suas cores vermelho, preto e amarelo que continua balançando no ar, disputando o espaço com a bandeira francesa, ou, de forma mais intensa através da língua crioula. O universo encantado da ladja com suas lendas e mitos é cativante. Na lembrança levo a imagem de pessoas que mergulham em suas raízes africanas. Carrego no corpo o aprendizado com estes guerreiros voadores, majores com costas de vidro e seus golpes montados, seus punhos energizados nas matas, suas ervas, rezas, óleos e plantas. Trago impressos na memória e na minha produção artística os aprendizados de équilib/dézéquilib para se alcançar o ou wè’y ou pa wè’y, mistérios do passado e das novas gerações que mantêm vivas as energias sincopadas deste combate. Maurice Merleau-Ponty começa seu ensaio “O olho e o espírito” afirmando que: “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las... só de longe se defronta com o mundo atual.” 217 Fui na contramão desta corrente, fiz questão de habitar e ser habitado pela ladja, naveguei em novas rotas da arte e ampliei cartografias na troca com o outro. Lancei-me ao mar sem saber o que recolheria. A ladja é uma brisa nos mares violentos do Caribe que tive a chance de sentir, uma ação performática praticada por umas cem pessoas, um número modesto para sacudir as estruturas sociais, mas uma presença forte para manter a cadência do combate anticolonial. No último dia vi um cometa rasgar o céu, voando em pleno dia. 217 MERLEAU-PONTY, Maurice. P.275. 217 REFERÊNCIAS AM4 Association Mi Mes Manmay Matinik. Asou chimen danmye: propositions sur le danmye art martial Martiniquais. Fort de France. 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[ilha-terreiro] É simples a imagem com a qual Edu Monteiro apresenta Costas de Vidro. Nela, um homem afrodescendente parcialmente imerso na água segura um tambor. A tensão da pega parece visar menos a proteger o tambor do encontro com a água e mais a trazê-lo junto, conectá-lo a si. De tal modo que corpo humano e tambor tornam-se um a extensão do outro. Fazendo as vezes de tronco e cabeça, o tambor ultrapassa a condição de objeto. Dando braços e pernas ao artefato de madeira, ferro, sisal e couro, o homem amplia atributos e habilidades. Mais do que se justapor ou articular, eles se fundem, passam a ser um único ser. Redução multiplicadora – um que é muito mais. A imagem é sonora. E não apenas pela dominância axial do tambor. Querendo, pode-se ouvir a marola do mar, uma suave brisa, o roçar da pele na madeira. E mais, pois a foto ressoa além do visível. É um navio negreiro. Não! É um corpo síntese, índice de milhões de pessoas, tanto das que sucumbiram ao tráfico negreiro quanto das que sobreviveram, vivenciaram e venceram a escravidão. É uma ilha. É Gorée, Martinica, Cuba, Itaparica, Haiti e Santo Domingo, São Luís, São Tomé e Príncipe, Jamaica e tantas outras na diáspora. É o arquipélago de Cabo Verde. É a América, unificada de Sul a Norte pela negritude com a qual o Atlântico indelevelmente lhe tingiu. É um terreiro flutuante. Nele, se trabalha. Mas também se luta, dança e ora, praticando ladja, laamb, capoeira, bélé, jongo, samba, candomblé, candombe, batuque, santería, tambor de mina, Xangô, terecô, omolocô, umbanda, mandinga, macumba. Aparentemente estática, a imagem ginga, reverberando África mundo afora. Roberto Conduru