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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS Roberto de Sousa Causo Ondas nas Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil São Paulo 2013 Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS EM INGLÊS Ondas nas Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil Roberto de Sousa Causo Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção de título de Doutor em Letras. Orientador: Prof. Dr. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza São Paulo 2013 Folha de aprovação Roberto de Sousa Causo Ondas nas Praias de um Mundo Sombrio: New Wave e Cyberpunk no Brasil Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção de título de Doutor em Letras. Aprovado em ___/___/2013 Banca examinadora Prof. Dr. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza (orientador) Instituição: Universidade de São Paulo (USP) Assinatura________________________________________________________ Profa. Dra. Rubelise da Cunha Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Assinatura________________________________________________________ Profa. Dra. Sandra Regina Goulart Almeida Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Assinatura________________________________________________________ Profa. Dra. Suzane Lima Costa Instituição: Universidade Federal da Bahia (UFBA) Assinatura________________________________________________________ Prof. Dr. Alfredo Luiz de Oliveira Suppia Instituição: Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Assinatura________________________________________________________ Agradecimento Ao Prof. Lynn Mário Trindade Menezes de Souza, por ter agregado este órfão à sua família multicultural, e aos meus colegas orientandos, pelo apoio e privilegiada interação. Também a M. Elizabeth “Libby” Ginway, pela constante e enriquecedora interlocução sobre este assunto esotérico, a ficção científica brasileira — e a Walter Martins (1932-2009) um agradecimento póstumo pela leitura atenta da introdução. A Bruce Sterling pela bibliografia básica do Movimento Cyberpunk e por ter dirimido algo da minha insegurança quanto ao conceito do tupinipunk. E ainda, por diversos empréstimos, conselhos e apoio emocional ao logo do processo de pesquisa: Carlos Alberto Angelo, Cláudio Paixão Anastácio de Paula, Finisia Fideli, Braulio Tavares, Ícaro França, Silvio Alexandre, Rudy Ceccon, Ramiro Giroldo, Sylvio Monteiro Deutsch e Cláudio Moreira, Nelson de Oliveira, e Diana Brydon, da University of Manitoba — pela ajuda com questões de sincretismo e hibridismo. Resumo O objetivo deste estudo é fornecer uma análise dos dois principais movimentos dentro da ficção científica em língua inglesa vinculados ao pós-modernismo, a New Wave da década de 1960 e o Movimento Cyberpunk da década de 1980, estabelecendo comparações com a produção de ficção científica do mesmo período, dentro das Primeira e Segunda Ondas da Ficção Científica Brasileira. Questões de política literária serão sempre evocadas, como maneira de relativizar o peso teórico das discussões, tentando estabelecer que intenções, procedimentos e programas literários existem inseridos em contextos pessoais, sociais e mesmo nacionais. Essa abordagem é amparada pelo conceito do Campo de Poder, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), e de diversos intérpretes de suas idéias. A partir dos trabalhos de críticos e teóricos como Clive Bloom, Scott McCracken, Ken Gelder, Michel de Certeau e Robert Scholes, este trabalho propõe que a ficção científica, como gênero literário de raízes populares, é capaz de exercer o papel de uma literatura que faz a crítica da modernidade, sem recorrer necessariamente aos aspectos formais associados à literatura pós-modernista, incluindo o texto fragmentário, a mistura de gêneros e códigos literários. A pesquisa conduz a uma reflexão a respeito da situação da ficção de gênero vis-à-vis a predileção da ficção pós-modernista pela metaficção e pelo experimentalismo. Palavras-chave: Ficção Científica; Cyberpunk; Ficção de Gênero; Literatura Popular; Metaficção; Pós-Modernismo; Pulp; Vanguarda. Abstact The objective of this study is to provide an analysis of the two main literary movements in English-written science fiction associated to postmodernism, the New Wave of the 1960s and the Cyberpunk Movement of the 1980s, establishing comparisons with science fictional production of the same periods in the First and Second Waves of Brazilian science fiction. Issues of literary politics will be constantly considered, as a way to relativize the theoretical charge of the arguments, trying to establish that intentions, proceedings, and literary programs exist inserted in personal, social, and even national contexts. This approach is supported by the French sociologist Pierre Bourdieu’s concept of Field of Power, and also by a number of readers of his ideas. Taking from the works of critics and theoreticians such as Clive Bloom, Scott McCracken, Ken Gelder, Michel de Certeau, and Robert Scholes, this work claims that science fiction as a literary genre of popular roots can play out the role of a literature that performs a criticism of modernity without relying on those formal aspects associated with postmodernist literature, including fragmentary prose and the mixing of genres and literary codes. The research leads to a reflection concerning the situation of genre fiction vis-à-vis postmodernist fiction’s propensity for metafiction and experimentalism. Key-words: Science Fiction; Cyberpunk; Genre Fiction; Popular Literature; Metafiction; Postmodernism; Pulp; Avant-garde. SUMÁRIO INTRODUÇÃO: “SABEDORIA PRIMAVERIL” NA CIDADE MARAVILHOSA 8 27 1. A REVISTA NEW WORLDS 30 31 34 37 45 63 Objetivos deste estudo Gênero ontológico por excelência New Worlds e as polêmicas da New Wave A morte e a morte da ficção científica Disputa idiomática, conflito de política literária Teoria pulp 2. ALDISS, BALLARD, BURROUGHS: PRECURSORES DA NEW WAVE Burroughs: tocando de volta o inconsciente reprimido Burroughs e a ficção pulp Brian W. Aldiss Aldiss e a psicanálise Desencanto com a era da máquina Recorrência pulp A. E. van Vogt: a ‘patafísica é pulp Aldiss e a incerteza do olhar Os desastres globais de J. G. Ballard Ballard entre concreto e aço, entre Eros e Tânatos Entropia etnocêntrica ocidental 3. PRIMEIRA ONDA OU NOVA ONDA? Primeira Onda: marcos inaugurais Geração GRD Além do realismo Outras antologias Coletâneas Romances André Carneiro ocupa o espaço interior Primeira Onda ou Nova Onda? 4. TUPINIPUNK: CYBERPUNK BRASILEIRO Tupinipunk: o conceito Cyberpunk: política literária e principais exemplos Silicone XXI: entre Blade Runner e a utopia antropofágica Santa Clara Poltergeist e a herança tropical de William Burroughs Instinto Básico Piritas Siderais e cyberbarrocas Brasyl: futebol e indeterminação quântica Outros contos e noveletas tupinipunks Sincretismo pós-modernista 72 72 78 83 85 103 107 112 120 128 145 153 159 159 173 186 193 200 207 210 214 223 224 228 245 250 255 256 258 260 265 5. CONCLUSÃO: ALÉM DO “BINARISMO MANIQUEÍSTA” 275 REFERÊNCIAS 302 INTRODUÇÃO “SABEDORIA PRIMAVERIL” NA CIDADE MARAVILHOSA Em 1972, o pesquisador David Lincoln Dunbar aportou no Brasil vindo da University of Arizona, para, a partir de uma recomendação do acadêmico e tradutor Leo L. Barrow, estudar a nossa ficção científica. Sua dissertação, “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”,1 foi a primeira da sua espécie, no mundo — o primeiro estudo acadêmico sobre FC brasileira. “Fui desafiado pelo Dr. Leo Barrow a descobrir o que causou essa década de FC, que classe de literatura era ela, e a analisá-la”, Dunbar escreveu na introdução da tese. “Com isso em mente, viajei ao Brasil em 1972 para obter o máximo de literatura de FC do que estivesse disponível, e para entrevistar o maior número possível de escritores, críticos e editores.”2 A década de que ele fala é a década de 1960, de modo que ele estudou a “Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira”3 (1958-1972), também chamada de “Geração GRD”, 4 uma instância da FC brasileira que, no momento da vinda de Dunbar, recuava para uma posição secundária em relação àquela que viria a predominar na década de 1970: um ciclo de utopias e distopias políticas e ecológicas preocupadas com a denúncia do regime militar (1964-1985), da tecnocracia e das conseqüências desumanizadoras da modernização do país.5 Sua missão pegou os autores brasileiros de surpresa: que um acadêmico americano se interessasse pela insipiente FC brasileira devia soar espantoso e inverossímil.6 1 Defendida em 1976 naquela instituição, no seu Department of Romance Language. Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. Dissertação de doutorado em Espanhol, Department of Romance Languages, Faculdade de Pós-Graduação, University of Arizona, 1976, p. 3. 3 O termo é atribuído a Andrea L. Bell (Hamline University) e a Yolanda Molina-Gavilán (Eckard College), na introdução da antologia crítica Cosmos Latinos: An Anthology of Science Fiction From Latin America and Spain (Middleton, CT: Wesleyan University Press, 2003, p. 19). 4 Esse termo foi cunhado pelo crítico e escrito Fausto Cunha, no ensaio “Ficção Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado”. In No Mundo da Ficção Científica (Science Fiction Reader’s Guide), L. David Allen. São Paulo: Summus Editora, s.d., p. 11. 5 O argumento da modernização brasileira e sua relação com a FC do Brasil, especialmente no período da ditadura militar, estão no centro do livro da Prof.ª M. Elizabeth Ginway, Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (São Paulo: Devir Livraria, 2005). 6 André Carneiro, um autor da Geração GRD, trata disso na crônica “Brasil, Suécia, Irlanda” (Somnium 18: 12): “Estava no Brasil, custeado pela Universidade, para uma tarefa inacreditável (para mim): 2 8 O postulado mais intrigante de Dunbar, contudo, foi além das expectativas de autores e editores da época: “Desde o seu início, [...] a fc [sic] brasileira não se preocupa com os aspectos científicos e técnicas do gênero, mas sim com as qualidades do Homem numa sociedade moderna ou futura. Nesse aspecto, os escritores brasileiros são líderes ou precursores do que os escritores de fc estão chamando atualmente de ‘a new wave’”.7 Dunbar afirma — citando o argumento de Michael Moorcock, de que a boa FC se preocupa com a condição humana — que “Isto é precisamente o que os escritores brasileiros [de FC] têm feito há vários anos”, e que “a ‘new wave’ [sic] atingiu os EUA e a Inglaterra, mas não antes que ela tivesse causado um grande impacto no Brasil”. 8 A ousada afirmativa promove a FC brasileira de uma posição periférica e de imaturidade em relação à FC anglo-americana, e a projeta a uma posição na vanguarda do gênero. A pesquisa de Dunbar, porém, teve um impacto relativamente pequeno ao longo dos anos. Para os poucos observadores da brasileira que tiveram acesso às obras da FC Primeira Onda, enxergando-a por um prisma distanciado no tempo, ela parecia remeter justamente à FC norte-americana da Golden Age (1938-1948), por sua temática e por sua qualidade ainda ingênua de extrapolação e especulação científica ou social.9 Perante essa situação de opiniões divergentes, a hipótese de Dunbar nos oferece uma primeira questão a ser respondida: o que tivemos no Brasil, na década de 1960 — a Primeira Onda, ou uma Nova Onda? Mas a questão representa apenas um ponto de partida: este estudo pretende oferecer um entendimento do que foi a New Wave angloamericana, para depois analisar a FC da Primeira Onda no que ela diferiria, em relação a essa corrente internacional. Com isso, busco entender como se processa a inserção da FC brasileira, dentro da evolução geral do gênero, e, a partir disso, responder a uma série de escrever sua tese de doutorado sobre o tema ‘Ficção Científica no Brasil’. Sobre o assunto eu já tinha escrito um pequeno capítulo em meu livro [Introdução ao Estudo da “Science Fiction”; 1967]. Uma tese inteira só mesmo a peso de dólar. Discretamente fiz uma exposição realista da nossa pobreza no assunto. David Dunbar não se abalou. Ligou seu gravador portátil e fui respondendo dezenas de perguntas.” 7 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 19. “From the beginning, one of my thesis has been that Brazilian sf does not concern itself with the scientific and technical aspects of the genre but rather with the qualities of man in a modern or future society. In this respect, Brazilian writers are leaders or precursors in what sf writers are currently calling ‘the new wave’.” 8 Idem, ibid. P. 20. “So the ‘new wave’ hit the U.S. and England, but not before it had made a big splash in Brazil.” 9 Não obstante, Cesar Silva, co-editor, com Marcello Simão Branco, do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica, escreveu na edição referente a 2007, que tivemos “a Geração GRD, com um perfil literário sofisticado e conceitualmente alinhado com a New wave [sic] (anos 1960) à qual era contemporânea” (Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2007, Cesar Silva & Marcello Simão Branco, eds. São Paulo: Tarja Editorial, 2008, p. 116). 9 outras indagações sobre o gênero e seu relacionamento com a literatura pós-modernista no século XX.10 * Três anos antes de Dunbar, chegava ao Rio de Janeiro o homem que, acredita-se, foi pioneiro na abertura da academia americana para o estudo da FC: Sam Moskowitz (1920-1997). É de se perguntar se Dunbar um dia teria considerado a pesquisa da FC brasileira, se antes Moskowitz não tivesse dado o seu curso no City College of New York, em 1953, a convite do Prof. Robert Frazier.11 Em 1969, a pesquisa acadêmica dedicada ao gênero estava ausente do ambiente universitário do Brasil — e assim permaneceria até a publicação de A Ficção do Tempo: Análise da Narrativa de Science Fiction, de Muniz Sodré, em 1973. Sam Moskowitz esteve aqui para o evento de ficção científica mais extraordinário jamais realizado em terras brasileiras. Em março de 1969, entre os dias 24 e 30, o tradutor José Sanz organizou, em promoção do Instituto Nacional do Cinema, do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara, o “Simpósio de integrante do II FC”, evento Festival Internacional do Filme, no Rio de Janeiro. Antes do Simpósio, um grupo de autores e fãs havia realizado a I Convenção Brasileira de Ficção Científica, em São Paulo, entre 12 e 18 de setembro de 1965. Esse teria sido o primeiro evento dedicado ao gênero no Brasil, e a primeira convenção de fãs. O Simpósio de FC no Rio de Janeiro, porém, teve maior repercussão e um impacto internacional, apesar às vezes mambembe — ou até “macunaímico”. Assessorado por Fred Madersbacher, Wilson Cunha e Monica Leib, Sanz — futuramente um editor de livros de FC — trouxe para o Rio de Janeiro um número de sumidades internacionais desse gênero na literatura e no cinema. Dos Estados Unidos, vieram Forrest J. Ackerman, Karen e Poul Anderson, Alfred Bester, Robert Bloch, Leigh Chapman, Roger Corman, Carol e Ed Emshwiller, Harlan Ellison, Philip José 10 Neste trabalho eu favoreço a expressão “pós-modernismo” sobre “pós-modernidade”, obedecendo à distinção feita por Bran Nicol no ensaio “Postmodernism” (in A Companion to Modernist Literature and Culture, David Bradshaw & Kevin J. H. Dettmar, eds. Chichester: Wiley-Blackwell, 2008: “Para entender o pós-moderno é [...] útil distinguir entre pós-modernidade , as condições econômicas e sociais do final do século XX e do XX, e pós-modernismo, produção estética e intelectual nesse período.” (P. 565.) Eventualmente, tratarei também de pós-modernidade. 11 Moskowitz ministrou o seu curso de extensão de 1953 a 1955. O curso foi continuado por Frazier e outros, até 1957, Moskowitz acredita. “Mas o conceito havia pegado, pois, nos anos seguintes, houve cursos na University of Chicago (1957), Princeton University (1958 e 1959), Beloit College (1960 e 1961), e Colgate University (1962).” Sam Moskowitz. “The First College-Level Course in Science Fiction”. Science-Fiction Studies 70 (November 1996), p. 422. 10 Farmer, Harry Harrison, Robert A. Heinlein, Damon Knight e Kate Wilhelm, George Pal, Frederik Pohl, Robert Sheckley e A. E. van Vogt. Da Espanha veio Luis Gasga. Da França vieram Jacques Baratier, Robert Benayoun, Michel Cae e Jacques Sadoul. Da Inglaterra, Brian W. Aldiss, J. G. Ballard, John Brunner, Val Guest e Rolf Rilla. Do Uruguai veio Marcial Souto. E do Brasil estiveram presentes André Carneiro, Clóvis Garcia, Ruy Jungman, Álvaro Malheiros, Walter Martins e Jerônymo Monteiro. Outro inglês, Arthur C. Clarke — cujo filme 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odyssey), desenvolvido por ele em parceria com o cineasta Stanley Kubrick (19281999), havia sido lançado no ano anterior e alcançado reconhecimento estrondoso —, também esteve presente para ser homenageado com o troféu “Monólito Negro”. O escritor e pesquisador Braulio Tavares informa como José Sanz conseguiu emplacar o Simpósio como evento paralelo ao Festival Internacional do Cinema. Tavares e outros fãs de FC estiveram várias vezes com Sanz em 1987, e obtiveram dele esta informação: “Sanz sempre afirmava que a realização do Simpósio se deveu à receptividade de Antonio Moniz Vianna” (1924-2009), Tavares diz, “que se não me engano era presidente do Instituto Nacional de Cinema, na época, e era um dos organizadores do Festival de Cinema do Rio” [sic].12 E ainda: Moniz Vianna era muito amigo de Sanz, era um crítico de cinema respeitado e temido (lembro ainda hoje da crítica demolidora que ele publicou em 1967 contra Terra em Transe de Glauber [Rocha]). Provavelmente não entendia nada de FC, mas Sanz lhe sugeriu o Simpósio como um evento paralelo ao FIC, Festival Internacional de Cinema [sic]. Havia uma porção de “ganchos” a favor dessa idéia — o lançamento de 2001, uma mostra de filmes de FC, etc., de modo que um simpósio de FC num festival de cinema não parecia algo incongruente. Sanz sempre elogiou muito a coragem de Moniz Vianna, que “comprou” a idéia sem ter muita noção do que se tratava, uma vez que sua área e sua preocupação maior era apenas o Cinema.13 Em termos dessa presença de autores de “Simpósio de FC” FC de grande relevo, pode-se dizer que o foi o primeiro “international meeting”, ou encontro internacional de 12 Tavares, Braulio. Informação pessoal com o autor por e-mail, em 1.º de outubro de 2008. Naquela época, Moniz Vianna escrevia para o jornal carioca Correio da Manhã. 13 Idem. Em 6 de fevereiro de 2009, Braulio Tavares ofereceu nova comunicação por e-mail, repassando um outro, do cineasta Geraldo Veloso, sobre Vianna: “Depois, Moniz capitaneou a realização do (primeiro e segundo) Festival Internacional de Filme, no Rio (o primeiro em 1965 — quando eu, chegado há pouco ao Rio, a convite de Joaquim Pedro, fui apresentado a Fritz Lang, por Glauber Rocha, que acabara de me conhecer, numa apresentação perplexa pois não consegui articular nem uma palavra diante daquele gênio cultuado por mim há muito — e o segundo, em 1969, quando estiveram por aqui, no Brasil, Cavalcanti — quando o conheci e Davi Neves fez um filme sobre ele, com minha produção e montagem — Joseph Von Sternberg e as estrelas do science fiction [sic], trazidos para um simpósio sobre o gênero, produzido pelo José Sanz, Arthur Clarke, Roger [sic] Bester e Robert Scheckley que, igualmente, foram objeto de um curta produzido pela nossa empresa e dirigido por Antônio Calmon e Antônio Carlos Fontoura).” Onde estará esse curta?... 11 escritores profissionais, da história do gênero, como comprova esta afirmativa de Frederik Pohl: As conseqüências daquele encontro foram consideráveis. A certa altura eu tomava um drinque com Brian Aldiss. A certa altura nós concordamos que estávamos tendo um divertimento de primeira e ele perguntou, meio que de piada: “Onde faremos isto na próxima?” Eu disse: “Bem, eu gostaria de ir ao Japão.” E assim que Brian voltou à Inglaterra ele entrou em contato com o oficial de assuntos culturais da embaixada japonesa, e o encontro de 1970 se seguiu. 14 Ao tratar da criação da associação World SF em encontro semelhante em Dublin, Irlanda, em 1976, Pohl observa ainda que a reunião na Irlanda não foi na realidade “o primeiro de tais encontros internacionais de pros [profissionais] — houve um no Rio de Janeiro em 1969, e um outro no Japão [...] um ano depois”.15 Harry Harrison também confirma a boa impressão que o simpósio deixou: “Cada momento do Simpósio do Rio em 1969 foi pura poesia. A melhor conferência em que eu jamais estive em toda a minha vida. Foi assim por causa dos cariocas. Eu nunca a 14 Carta ao autor, de 15 de setembro de 1996. “The consequences of that meeting were considerable. At one point I was having a drink with Brian Aldiss. At one point we agreed that we were having a first-rate time and he asked, half jokingly, ‘Where shall we do this next?’ I said, ‘Well, I’d like to go to Japan.’ And as soon as Brian got back to England he got in touch with the cultural affair office at the Japanese embassy, and the 1970 meeting there followed.” Em Trillion Year Spree: The History of Science Fiction (Nova York: Atheneum, 1986), Brian W. Aldiss chama erroneamente esse evento no Japão de “Primeiro Simpósio Internacional de FC”, e lista os participantes: Frederik Pohl, Judith Merril, Vasily Zakharchenko, E. I. Parnov, Julius Zagarlitski, Arthur C. Clarke e Brian Aldiss. O organizador foi Sakyo Komatsu, e o evento coincidiu com a Expo ’70. (P. 465, nota de fim de página 1.) Pohl inclui a seguinte lembrança, em um dos preâmbulos do romance The Last Theorem (escrito com Arthur C. Clarke): “Estive lá como hóspede do fandom japonês de ficção científica, assim como Brian Aldiss, representando a Inglaterra, Yuli Kagarlitski representando o que então ainda era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Judith Merril representando o Canadá, e Arthur C. Clarke representando o Sri Lanka e a maior parte do restante das seções inabitadas da Terra. Juntamente com um contingente de escritores e editores japoneses, o nosso bando vinha visitando cidades japonesas, dando palestras, sendo entrevistados, e, a pedido, mostrando os nossos lados mais bobos. (Arthur fez uma espécie de versão de Sri Lanka da ula havaiana. Brian se meteu a pronunciar uma longa lista de palavras japonesas, a maioria das quais — já que nossos anfitriões adoravam uma boa piada — acabou sendo violentamente obscena. E não vou contar o que eu fiz.) Como recompensa, fomos todos brindados com um fim de semana de descompressão no Lago Biwa, onde vadiamos em nossos quimonos e esvaziamos o bar do hotel.” (The Last Theorem, Arthur C. Clarke & Frederik Pohl. BCA, 2008, p. viii.) 15 Pohl, Frederik. “Introduction”. In Tales from the Planet Earth, Frederik Pohl & Elizabeth Ann Hull, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1986, pp. xiv-xv. Brian Aldiss, na introdução a The Penguin World Omnibus of Science Fiction (Brian Aldiss & Sam J. Lundwall, eds., Harmondsworth: Penguin Books, 1986), anota sobre a fundação da World SF: “A World SF foi fundada em Dublin em 1976. Uma conferência de profissionais de ficção científica foi organizada no Burlington Hotel por Harry Harrison, com a ajuda dedicada da família Harrison, que havia se estabelecido perto de Dublin. Harrison é um dos escritores de maior inclinação internacional. Até onde eu possa me lembra, a idéia da World SF foi dele. Foi auxiliado e incitado por homens de igual inclinação, incluindo Frederik Pohl dos EUA, Peter Kucka da Hungria, Eremi Parnov da União Soviética, Sam Lundwall da Suécia, Pierre Barbet da França, Charlotte Franke da Alemanha Ocidental, e assim por diante.” (P. 12) Duas antologias internacionais de FC foram publicadas por intermédio da World SF: Tales from the Planet Earth e The Penguin World Omnibus of Science Fiction. O brasileiro André Carneiro, que conheceu Brian W. Aldisss, Harry Harrison e Frederik Pohl no Simpósio de FC, teve contos publicados em ambas. 12 esquecerei.”16 Antes, ele havia escrito, na introdução da antologia Nova 3 (1974), que o “Rio foi uma experiência que não será esquecida tão cedo. O Brasil é um país maior do que os Estados Unidos, ativo, pulsante, vital — e fascinado pela ficção científica, como esse festival provou. Todavia a ficção científica feita em casa é ainda nova na cena local.”17 Na antologia, Harrison cede a palavra a Leo Barrow, um dos tradutores de André Carneiro para o inglês. “Os brasileiros”, Barrow é citado, “com sua rica herança africana e seu jeito jovial e otimista de não encarar as duras realidades que os cercam, têm um dom natural para a fusão de realidade e fantasia”.18 Como Sanz conseguiu montar esse time ainda intriga os fãs e pesquisadores de FC. Como soube, por exemplo, a quem contatar? Sam Moskowitz relembra o processo de ser convidado e de freqüentar o evento: José Sanz lhe escreveu em 20 de janeiro de 1969, convidando-o para participar do simpósio. “Ele enviou o convite aos cuidados da Ballantine Books, que havia publicado em 1967 uma edição paperback de minha obra Seekers of Tomorrow”, Moskowitz recorda-se, “cobrindo os modernos mestres da ficção científica. De fato, ele havia usado o livro como um dos seus guias para convidar os participantes do simpósio.”19 Moscowitz revela ainda que, dentre a lista inicial de convidados por Sanz, Theodore Sturgeon e Lester Del Rey não puderam comparecer.20 Já Harry Harrison conta que Robert Silverberg também fora convidado, “mas estava na África e não conseguiu ir”. Walter Martins observa que “o grande mestre Isaac Asimov também convidado, respondeu que não poderia vir, para não tirar o spotlight das figuras dos demais participantes, mas sabe-se que o motivo real foi seu verdadeiro pavor de viajar de avião.”21 Todas as despesas dos convidados seriam cobertas pelo governo brasileiro. Moskowitz e sua esposa Christine deixaram o Aeroporto Internacional John F. Kennedy em Nova York em 20 de março, e pousaram no Aeroporto do Galeão no dia 21. Christine a princípio pagou a passagem do próprio bolso, para ser subseqüentemente ressarcida pelo governo brasileiro.22 16 Informação pessoal, comunicação ao autor via fax, de 26 de agosto de 1996. “Every moment of the Rio 1969 symposium was sheer poetry. Best conference I have been to in my entire life. Made that way because of the Cariocas. I shall never forget it.” 17 Harrison, Harry. “Introduction”. In Nova 3, Harry Harrison, ed. Nova York: Dell Publishing, 1974, p.9. 18 Idem, ibid. P. 9. 19 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. No fanzine The Brazuca Review N.º 3, São Paulo, maio de 1997, p. 3. 20 Idem. 21 Martins, Wilson. Informação pessoal por e-mail, 18 de novembro de 2009. Na época, era sabido que Ray Bradbury também não viajava de avião. 22 Consta que algo semelhante tenha acontecido com outros convidados. 13 No artigo “Remembrance of Rio”, publicado no meu fanzine The Brazuca Review N.º 3, Moskowitz menciona que, além de duas moças chamadas Heloise e Anna Maria que foram ao aeroporto acompanhá-los, soldados os escoltaram até o local em que recuperariam sua bagagem. Moskowitz e sua esposa ficaram no Leme Palace Hotel. Ali e em outros hotéis em que os estrangeiros estavam hospedados, ele teve contato com a Associação Brasileira de Ficção Científica — criada em 1965 durante a I Convenção Brasileira de Ficção Científica em São Paulo —, na pessoa de três dos seus “principais membros”, Clóvis Garcia, Jerônymo Monteiro (o presidente da ABFC) e Walter Martins.23 Moskowitz cita ainda os escritores André Carneiro, Ruy Jungmann, Álvaro Malheiros, e observa que Walter Martins “[se tornaria] conhecido na Europa pelo seu ensaio ‘Science Fiction in Brazil’, publicado na edição de fevereiro de 1971 da revistafã de cunho acadêmico de Franz Rottensteiner, Quarber Merkur”.24 Os diários de Jerônymo Monteiro, franqueados a mim por Cláudio Moreira via Sylvio Monteiro Deutsch (neto de Monteiro), ilustram algo dos bastidores do Simpósio do ponto de vista dos escritores brasileiros de FC: no dia 28 de fevereiro de 1969 Monteiro escreveu que foi “à sucursal do ‘Jornal do Brasil’ [sic], que tem andado à minha procura para entrevista”. E prossegue: “Dei duas: uma gravada, para a Radio Jornal do Brasil [sic] e outra para o jornal. O fotografo [sic] tirou mais de 20 fotos minhas. Falei sobre ficção científica e sobre a extensão do simpósio do cinema a São Paulo.” Em 19 de março, ele anotou — em outro registro das atrapalhações da 23 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. Todos os três citados eram autores de FC publicados àquela altura. Era típico de Moscowitz anotar aspectos relacionados ao fandom de ficção científica. Em seu diário correspondente ao ano de 1963, Jerônymo Monteiro escreveu em 4 de dezembro sobre a criação da primeira entidade social do fandom (comunidade de fãs e autores) brasileiro: “Ontem, por iniciativa minha, reuniram-se, num jantar na cantina Don Ciccillo, na Frederico Steidel, alguns autores de ficção científica: Nilson Martelo, André Carneiro, Clovis Garcia, eu, e os editores Alvaro Malheiros (Edarte) [sic] e Gumercindo Rocha Dorea (GRD), além de alguns amigos. Ficou, assim, fundado o Clube dos Autores de FC. Todos os meses (1a 5a feira de cada mês) reunião e jantar no mesmo local, para batepapo. Um clube sem diretores nem estatutos, que é para ver se funciona.” Em outros momentos, ele se refere ao clube como “Clube de Ficção Científica” ou “Clube de Ciencificção”. Segundo o diário de 1965, anotação de 1.º de fevereiro, a idéia da I Convenção Brasileira de Ficção Científica teria sido apresentada a ele pelo escritor Ney Moraes: “Voltaremos a falar disso no próximo jantar de SF., 5ª feira, dia 4.” Na anotação do dia 6 de fevereiro, ele escreveu: “No jantar de ôntem do Clube de Ciencificção discutiu-se a oportunidade de se fazer a convenção. Houve diversas manifestações. Pedi ao Clovis Garcia, ao Ney Moreira e ao Ladislau [Deutsch, seu genro, falecido em 1º de abril de 2009] que cada um redigisse uma forma de como, ao ver de cada um, se poderia fazer.” Em 3 de março, anotou: “Ney Morais, a esposa Bety e o Walter [Martins] estiveram aqui na segunda-feira. Ney e Walter têm o programa da Convenção de Ficção Científica quase pronto.” Diários de Jerônymo Monteiro em formato eletrônico. Digitados por Cláudio Moreira, e enviados por e-mail ao autor em 1º de abril de 2009. 24 Idem. Rottensteiner, respeitado pesquisador de FC e ex-agente literário de Stanislaw Lem, o autor de Solaris, e é também o autor de The Science Fiction Book: An Illustrated History (Londres: Thames and Hudson, 1975). Martins já havia sido o responsável pelo primeiro contato entre o fandom brasileiro e o norte-americano, com o artigo “São Paulo Letter”, publicado na Amazing Stories de setembro de 1968. 14 organização do Simpósio — ter falado com André Carneiro por telefone: “[A]s passagens estavam com êle. Reginaldo foi buscar à Revista dos Tribunais e veio só uma, para mim, mas em nome do Clovis Garcia.”25 Umas de suas revelações mais interessantes é esse projeto de estender o Simpósio a São Paulo. Quem estaria envolvido seriam os escritores e outros membros da Associação Brasileira de Ficção Científica: em 16 de março Monteiro anotou: “Jurandy disse-me que temos de ir ao Rio, passar lá 2ª feira. E que teriamos uma reunião à noite. Fizemos a reunião aqui em casa: Walter Martins, Clovis Garcia, José Augusto, Jurandy e eu. Escolhemos o logotipo da ABFC. Acertamos o programa para o Rio, 2ª [sic].” Havia mais de dez anos que ele não ia ao Rio de Janeiro, e na entrada do dia seguinte, já naquela cidade, escreveu: “Fomos a Copacabana à tarde, à casa do Heitor, depois ao Copacabana Palace, onde está instalado o comitê do II FIF [Festival Internacional do Filme]. Falei com José Sanz. Nada feito com respeito à vinda dos autores de FC a São Paulo.” E assumiu: “Quer dizer: nossa viagem falhou, menos quanto aos contatos pessoais, que foram bons.”26 O jornalista J. da Silva forneceu uma lista de autores a serem lidos. A matéria de Silva, publicada na “Folha Ilustrada” de 19 de março, teve o título de “Pequeno Guia Pratico e Descontraído [sic] sobre a Literatura de Antecipação, Destinado a Leigos, Não Iniciados e Amadores, ou Como Eu Aprendi a Amar a F.C.”, e abre afirmando que No quadro do monótono Festival Internacional do Filme, que transcorre na Guanabara, realiza-se um Simpósio de Ficção Científica [sic] que trouxe ao Brasil algumas figuras importantes desse denegrido e desprezado genero literario [sic]. O fato de os organizadores do Festival não terem feito a adequada divulgação dos nomes que viriam revela não apenas uma boa dose de desinteresse, como talvez uma parcela de desconhecimento sobre o assunto.27 Silva fazia a ressalva: “[A] lista que se segue não pretende ser definitiva, nem completa (aceitam-se sugestões por carta, dirigidas a J. da Silva, FOLHA ILUSTRADA) [...]” Fritz Peter Bendinelli forneceu em 17 de abril de 1969, testemunho casual de como os fãs de São Paulo estariam recebendo a realização do Simpósio no Rio. Ele contribuiu com uma carta, aproveitando a deixa de Silva, e enviou a sua lista. Na carta que a acompanhava, ele observa: 25 Diários de Jerônymo Monteiro em formato digital. Digitados por Cláudio Moreira, e enviados por email ao autor em 1º de abril de 2009. Ano 1969. 26 Idem. 27 Silva, J. da. “Folha Ilustrada”. Folha de S. Paulo de 23 de março de 1969. A segunda parte do título da matéria de Silva brinca com o título do filme de Stanley Kubrick, Dr. Strangelove, ou Como Aprendi a Amar a Bomba (1964). 15 Conheço uma data de apreciadores do genero [sic] que anda simplesmente furiosa por não poder comparecer ao Simpósio de [ FC], por razões de trabalho ou estudo; isto inclui pessoal que tem à disposição a passagem. O comentario [sic] deles que mais ouço é: “Mas que raio de idéia realizar o tal Simpósio no Rio”.28 Presume-se que os cariocas diriam a mesma coisa, se o Simpósio acontecesse em São Paulo. * Sam Moskowitz caracterizou José Sanz como “um homem magro, na casa dos quarenta, com uma barba grisalha e cabeleira negra”, que “falava bom inglês e era muito amigável e eficiente”.29 Sobre o evento em si: “a lista de celebridades poderia ter sido apontada com orgulho por qualquer Convenção Mundial e fez do evento algo verdadeiramente histórico [...].”30 Sempre minucioso, lista livros de FC em português (traduzidos) e um em inglês que ele comprou no Rio de Janeiro e fez os respectivos autores, todos presentes no simpósio, autografarem. E observa que “a maioria da ficção científica adquirida foi publicada em Portugal e remetida ao Brasil, que partilha a mesma língua, mas eu encontrei uma antologia, Além do Tempo e do Espaço, subintitulada uma ‘Antologia de Cienciaficção’ [sic], que fora publicada em São Paulo [...]”.31 Em outro exemplo do seu detalhismo, Moskowitz menciona a repercussão do simpósio na imprensa brasileira, com matérias no Jornal do Brasil (26, 27 e 28 de março), Folha Ilustrada [sic] (27 de março), O Estado de S. Paulo (27 de março), Última Hora (28 de março). Também menciona reações nos Estados Unidos, sob a forma do artigo “Brazil Beckons Big Wigs”, de Forrest J. Ackerman, impresso em Science Fiction Times de março de 1969, e reproduzido mais tarde no jornal Variety de 28 Bendinelli, Fritz Peter. Carta ao caderno “Folha Ilustrada”. Folha de S. Paulo de 17 de maio de 2009. Jerônymo Monteiro repercutiu a carta em sua coluna “Panorama”, no mesmo jornal, em 21 de maio, notando ter sido citado na lista de Bendinelli, com outros brasileiros, Fausto Cunha e Levy Menezes, e observando: “Consideramos significativo, não pela citação de nosso nome, mas para proveito da ficção científica em nossa terra, o fato de a imprensa estar dedicando espaço e atenção ao genero [sic] e dando, pois, uma oportunidade aos que a ele se dedicam, como autores ou simplesmente leitores. E isto é resultado do Simposio [sic] realizado no Rio, paralelamente ao II FIF. Já se vê que alguma coisa se aproveita.” Bendinelli em 1985 se tornaria um dos sócios-fundadores do Clube de Leitores de Ficção Científica, criado por R. C. Nascimento. 29 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. P. 4. 30 Idem, ibid. Pp. 4-5. 31 Idem, ibid. P. 6. A maioria dos títulos citados por Moskowitz pertenciam à famosa Coleção Argonauta, da Livros do Brasil, editora portuguesa baseada em Lisboa. A antologia Além do Tempo e do Espaço: Contos de Ciencificção foi publicada em São Paulo pela EdArt, em 1965. Monteiro, Martins e Garcia estavam nela, assim como Domingos Carvalho da Silva, Rubens Teixeira Scavone, Lygia Fagundes Telles, Nilson D. Martello, Ney Moraes, Álvaro Malheiros, Nelson Palma Travassos e Antonio D’Elia. 16 9 de abril de 1969.32 Em seu diário para o ano em questão, Jerônymo Monteiro também trata do interesse em torno do evento, como vimos acima na citação da sua anotação de 28 de fevereiro, e como vemos nesta, de 12 de março: “Chegou bilhete do Jurandy: o reporter da revista Veja [sic] estava à minha espera no seu escritório, para a entrevista [sobre a ABFC]. [...] Fui, dei a entrevista.” Durante o evento, ele também foi procurado pela imprensa: “Pela manhã, escrevi um pequeno conto, a pedido do ‘O Globo’ [sic]: ‘Monstros sôbre o Simposio’.” E no dia 1.º de abril ele teria dado uma entrevista para a Folha, sobre o Simpósio.33 O evento pode ter motivado uma série de textos produzidos e publicados no Brasil, como o artigo “Introdução ao Estudo da Ficção-Científica”, de Aguinaldo Silva, na Revista Rumo da Casa do Estudante do Brasil. Apareceu na edição de agosto de 1969, e seu conteúdo devia muito ao livro Introdução ao Estudo da “Science Fiction” (1967), de André Carneiro. A mesma observação pode ser feita a respeito de “Ficção Científica: Roteiro, Discussão e Leitura”, de Paulo Sérgio M. Machado, publicado na revista Comentário Ano X, Vol. 10, N.º 3 (39), no terceiro trimestre de 1969. Comentário era publicação do Instituto Brasileiro Judaico de Cultura e Divulgação. Enfim, uma edição especial do “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, que foi editada por Rubens Teixeira Scavone (1924-2007), escritor bastante ativo na época, e veiculado em 25 de outubro de 1969 (N.º 646), certamente foi produzida dentro desse clima de interesse despertado pelo Simpósio. Uma menção bastante tardia ocorre na reportagem anônima (e de título capcioso) “A Ficção Científica Mudou suas Fórmulas”, na revista Visão de 20 de dezembro de 1976. Nela, a FC brasileira é chamada de “setor que ficou hibernando entre nós desde o Simpósio de Ficção Científica [sic], organizado em fins da década passada no Rio”.34 Uma repercussão curiosa foi vista não como reportagem jornalística nem nas revistas culturais, mas em versos de Carlos Drummond de Andrade, que escreveu uma seqüência de poemas em reação ao Festival — sob o título geral de “Festival em Verso”, datado de 25 de março de 1969 e mais tarde incluída em Amar se Aprende Amando (1985). Destaca-se este, em que aparece mordaz expressão do nosso atraso tecnológico, confrontado com a disposição visionária da FC: 32 Idem, ibid. P. 7. A expressão “big wigs” se refere ao status elevado dos autores e cineastas no evento. Diários de Jerônymo Monteiro em formato digital. Digitados por Cláudio Moreira, ano 1969, e enviados por e-mail ao autor em 1º de abril de 2009. Não há informação posterior da publicação do conto “Monstro sobre o Simpósio”. 34 Anônimo. “A Ficção Científica Mudou suas Fórmulas”. In Visão, 20 de dezembro de 1976, p. 74. 33 17 Tráfego O diretor de Uma Aventura no Espaço a poucos metros da Lua veio ver pessoalmente nossa terrível aventura no limitado espaço de uma rua de sinal enguiçado.35 Isso que poderíamos chamar de “distância cultural” entre o assunto do Festival e do Simpósio e a realidade brasileira cotidiana, também se manifesta no fato de que nenhum brasileiro, salvo André Carneiro, teve participação no programa, dominado pelas figuras internacionais. Jerônymo Monteiro anotou em seu diário (5 de março de 1969) sua perplexidade quanto ao papel de Carneiro no Simpósio: Falei pelo telefone com o André Carneiro que, não sei como, meteu-se no movimento que estamos fazendo para trazer o simpósio de FC [sic] a São Paulo. Disse-me que “ficou encarregado pelo José Sanz, do Museu de Arte Moderna do Rio, de ‘coordenar’ as coisas aqui, inclusive de ver as pessoas que deverão ir ao Rio, por conta do I.N.C., que as esposas terão hospedagem mas não passagem de avião.” Queria saber como é que êle se meteu nisso e, segundo deu a entender “por cima”. 36 E mais tarde (em 29 de março), registrou seu descontentamento com respeito à participação dos autores brasileiros: À tarde, houve encerramento do Simposio de FC. [sic] com entrega dos Monólitos a Arthur Clarke e Kulbrit [sic]. O camarada André Carneiro, com aquela distinção que o caracteriza, fez o “speech” de encerramento. Disse uma porção de vulgaridades [trivialidades] sobre a F.C., não se referiu aos autores nacionais, procurando brilhar sòzinho, aliás brilho efêmero. Perdeu-se, assim, a última oportunidade de o Brasil aparecer no Simpósio. Como eu previra desde São Paulo, ficamos aqui como simples visitantes. André conseguiu boicotar-nos totalmente.37 Monteiro teria até escrito a respeito, conforme esta anotação de 7 de abril: “ TRIBUNA de Santos [sic] publicou ontem minha nota sôbre o Simpósio e a ação do Carneiro.”38 Recentemente, André Carneiro forneceu a sua posição a respeito de como veio a conduzir os trabalhos do Simpósio. “[D]o Rio de Janeiro, José Sanz me telefonou convidando para ser o presidente, o chair-man [sic] do evento”, disse ele em entrevista a 35 Andrade, Carlos Drummond de. Amar se Aprende Amando. Rio de Janeiro: Editora Record/Ediciones Altaya, 1995, p. 99. 36 Diários de Jerônymo Monteiro em formato digital. Digitados por Cláudio Moreira, ano 1969, e enviados por e-mail ao autor em 1º de abril de 2009. Uma anotação de 26 de março sugere que o Simpósio, cuja língua oficial era o inglês, não contava com tradução simultânea: “Continua tudo muito bom. Conferências em inglês pela manhã. Não entendo nada, mas é divertido.” 37 Idem. “Kulbrit” teria sido como Monteiro escreveu ou como o digitador entendeu o nome de [Stanley] Kubrick na caligrafia de Monteiro. 38 Idem. 18 Cesar Silva e Marcello Branco, no Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2007 (2008). “No Rio e em São Paulo escritores e pessoas estreitamente ligadas à ficção científica fizeram protestos, insinuados a maioria, alguns diretos.”39 E prossegue, num depoimento que deve ilustrar, da sua perspectiva, questões da “política literária” da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira: Se havia no Rio nomes como [Rachel] de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Antonio Olinto (do Itamaraty), etc., por que André Carneiro, morador da cidadezinha de Atibaia? E, em São Paulo, a reação, embora disfarçada, foi a mesma. Por que não o Jeronymo [sic] Monteiro, que assinava uma coluna permanente no grande jornal Folha de S. Paulo? ou Nelson Palma Travassos, dono da Edart,40 ou seu diretor que também escrevia ficção científica, Álvaro Malheiros, ou o [Rubens Teixeira] Scavone [...]? José Sanz deu uma entrevista em uma revista (tenho o exemplar em meu arquivo) e, diante da pergunta, respondeu: “Escolhi André Carneiro porque é o melhor escritor de ficção científica do Brasil.” Exatamente essas palavras. Você pode imaginar com qual tipo de apoio e solidariedade eu pude contar dos meus colegas escritores, para dirigir os trabalhos. No final, uma das coisas inventadas contra mim foi que não prestigiei a ficção científica brasileira. Eu conhecia a Europa e os Estados Unidos. Esse orgulho tupiniquim e às vezes xenófobo contra o desprezo e a desconsideração que sofremos lá fora, era muito mais violento naquela época. Por que nem eu ou algum colega não comparecemos com teses [sic]? Muito simples. Eu e meus colegas fomos convidados em cima da hora, não havia tempo de escrever nem uma breve intervenção. Não fui eu que impedi escritores brasileiros de “brilharem” com suas teses. Ninguém teve tempo de escrevê-las, nem eu. Bem, eu tinha o que ninguém tinha: minha Introdução [ao Estudo da “Science Fiction”]. Mesmo os que não sabiam uma palavra de português ou espanhol, se admiravam dos nomes citados na bibliografia do livro. E, quanto à “minha não propaganda da ficção científica brasileira”, a realidade me indicava como proceder. Nas melhores livrarias do Rio havia obras de todos os escritores estrangeiros. Como só acontece no Brasil, nada havia de escritores brasileiros. [...] Minha atuação discreta e realista agradou os estrangeiros. Os brasileiros esperavam que eu inventasse algo que reunisse no palco os brasileiros (cheguei a ouvir isso). Não caí nessa armadilha. A língua oficial era o inglês. Mesmo com a ajuda de tradutores, não fui capaz de inventar que nós, com livros ausentes das livrarias, pudéssemos interessar o primeiro time internacional presente. [...] Felizmente não permiti (e fui provocado) que nenhum brasileiro tomasse a palavra e dissesse bobagens provincianas. Tudo correu em alto nível, com a inevitável prevalência dos estrangeiros sobre os nacionais. Me culparam disso, mas a culpa é da realidade que, até hoje, é essa mesma. 41 Um registro da atuação de Carneiro como chairman está no ensaio “Knight Piece”, de Damon Knight (1922-2002), parte do livro Hell’s Cartographers: Some Personal Histories of Science Fiction Writers (1975), editado por Brian W. Aldiss & Harry 39 Silva, Cesar & Branco, Marcello Simão. “Personalidade do Ano: Entrevista com André Carneiro”. In Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2007, Cesar Silva & Marcello Simão Branco, eds. São Paulo: Tarja Editorial, 2008, p. 112. 40 Editora paulistana que manteve a coleção Ciencificção, de ficção científica entre 1963 e 1968. 41 Silva, Cesar & Branco, Marcello Simão. “Personalidade do Ano: Entrevista com André Carneiro”. Pp. 112-13. É claro, trechos do depoimento de Moskowitz, citados acima, contradizem detalhes do que Carneiro afirma. Não só Moskowitz não teve problemas em encontrar uma antologia contendo apenas autores brasileiros e publicada pela EdArt, editora para a qual Carneiro prestava serviços, como também não teve problemas em conviver com alguns deles. É claro, detalhes ou não, Carneiro pode estar certo quanto à desproporcionalidade entre a FC anglo-americana e a brasileira. 19 Harrison. “Um escritor brasileiro, André Carneiro, foi o chairman do simpósio”, Knight escreveu, “e vários outros perambulavam pelo lobby, mas não participaram dos procedimentos”. Mais importante, o escritor americano e fundador da Science Fiction Writers of America42 informa que tentou “organizar um encontro de escritores americanos e brasileiros, através de Carneiro, mas ao invés foi um de escritores americanos e editores brasileiros”.43 Antes disso, Knight havia datilografado uma nota para Walter Martins, que deixara com ele — e vários outros autores presentes no Simpósio — algumas perguntas, cujas respostas seriam aproveitadas em uma das colunas semanais de Jerônymo Monteiro no jornal santista A Tribuna, ou n’A Folha de S. Paulo. Knight escreveu: Sr. Martins, lamento que tivemos tão poucas oportunidades de falar com você e com outros escritores brasileiros. Se formos convidados de novo, espero que haja tempo para sessões formais e informais nas quais possamos nos conhecer um ao outro. Enquanto isso, estou tentando formar a minha própria opinião sobre a f.c. [sic] brasileira. Tenho várias histórias e estou achando meu caminho através delas, mas é um trabalho lento.44 A outra nota sobre essas questões de política literária que nos chega está em depoimento do próprio Sanz, dado a David Lincoln Dunbar. Dunbar observou que o boom da FC no Brasil durou relativamente pouco, na década de 1960, e apontou razões: “Uma, é claro, é que um ‘boom’ não pode seguir indefinidamente. Mas o interesse pela FC [brasileira] tem declinado tão radicalmente desde 1970, que é preciso buscar em outra parte, uma explicação melhor.” E ele logo aponta: “Uma razão para o declínio é a ‘sabotagem interna’. José Sanz” — que então editava a coleção Asteróide Sabiá para a 42 A organização de classe dos escritores norte-americanos de FC, criada em 1965. Hoje é chamada Science Fiction and Fantasy Writers of America. 43 Knight, Damon. “Knight Piece”. In Hell’s Cartographers: Some Personal Histories of Science Fiction Writers, Brian W. Aldiss & Harry Harrison, eds. Nova York: Harper & Row, 1975, p. 142. Braulio Tavares especula que o “encontro entre editores & autores pode ter sido muito mais [...] obra do Sanz, que era extrovertido, falastrão, bem-humorado, agitadíssimo, infatigável, um temperamento diferente do de André. Não sei se o Sanz já editava coleções na época — não tenho mais os exemplares da ‘Coleção Asteróide’, infelizmente — mas, se não era ainda editor, ele já fazia planos, e não perderia essa chance de juntar um grupo de caras para discutir cessão de direitos, percentagens, etc. Qualquer pretendente-a-editor faria isso.” (Informação pessoal por e-mail, 2 de outubro de 2008). 44 Em um documento enviado ao autor por Walter Martins, em 30 de novembro de 2009. Martins dirigiu perguntas a Brian Aldiss, Poul Anderson, John Brunner, Harlan Ellison, Robert A. Heinlein, Damon Knight e Frederik Pohl. Entre as perguntas que fez estavam: “Deveria haver uma diferença na FC publicada em um país desenvolvido, quando comparada a um país subdesenvolvido? Acha que haveria problemas diferentes envolvendo a criação de pano-de-fundo, temas e heróis?” Sem dúvida, questões instigantes que traduzem uma inquietação quanto à colocação de um gênero como a FC, indentificado com o Primeiro Mundo, em um país como o Brasil. Em informação pessoal (telefone) no dia 4 de outubro de 2009, Martins me contou que era uma inquietação pessoal dele, discutida em encontros de fãs, mas pouco aprofundada pelo fandom de então. As “mini-entrevistas” que fez com esses grandes autores nunca foram aproveitadas por Monteiro. 20 Editora José Olympio, junto à qual nunca publicou FC brasileira — “falou comigo sobre as facções ou animosidade entre os escritores de FC. Perguntei a José se a FC tinha futuro no Brasil, se ela iria sobreviver.”45 Sanz respondeu: “Eu acredito que vai existir. Eu acho que no momento ela não tem condições de existir, porque ela não tem estímulo, ela não tem apoio. E ela não tem apoio, estou convencido, porque não há um interesse no grupo que escreve... São Paulo mesmo, você deve ter percebido, tá dividida.”46 Como se vê, no caso da FC, questões de política literária freqüentemente se traduzem em disputas, brigas, discussões e divisões — como, inclusive, o escritor Willian Tenn (Philip Klass; 1920-2010) afirmou em sua fala (humorística) de aceitação do título de Autor Emérito no Banquete Nebula da Science Fiction and Fantasy Writers of America. Tenn empregou um termo curioso para definir “A Essência da Ficção Científica”: quarrelsomeness — ou “briguentice”.47 Sam Moskowitz (mencionado na palestra de Tenn como um dos mais “briguentos”, desde a época dos primeiros fã-clubes na década de 194048 ) revela que Sanz planejava que o evento — ou parte dele — fosse anual. O troféu “Monólito Negro”, obra em hematita criada pelo escultor Caio Mourão, seria “dado, todo ano, ao melhor livro e ao melhor filme de ficção científica do ano precedente”, conforme Sanz escreveu a Moskowitz.49 Damon Knight corrobora: “José Sanz escreveu uma carta de desculpas a Harlan Ellison [que havia reclamado de que a organização do Simpósio não quis pagar as suas chamadas internacionais], e disse que esperava que houvesse um outro simpósio, mas nada surgiu disso.”50 A aspiração de Sanz não se concretizou, e é possível que problemas técnicos no Festival Internacional do Filme tenham sido responsáveis pela descontinuidade dos seus planos. Na mesma edição da Variety, as manchetes declaravam, segundo Moskowitz: 45 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 20. Idem, ibid. P. 21. 47 Tenn, William. “Nebula Speech: Delivered May 1, 1999 and Given Here Without the Gestures, Intonations and Pauses Which Made It Moderately Funny in the First Place”. The Bulletin of The Science Fiction and Fantasy Writers of America, Fall 1999, Vol. 33, Issue 2, Whole No. 143, p. 25. “[O] que é A Essência da Ficção Científica? […] A Essência da Ficção Científica é a previsão? Seria, como eu frequentemente tentei crer, a preparação para um admirável mundo novo que está chegando? Seria, como eu costumava dizer aos meus alunos na Penn State (mentindo descaradamente), a nova forma de literatura para o homem moderno industrial? Não. Não é essa A Essência da Ficção Científica. [...] [C]concluí que Essência da Ficção Científica é... a briguentice. A ficção científica é o gênero mais briguento que jamais foi visto, na terra ou no mar ou no espaço intergaláctico.” Tenn fornece anedotas de brigas entre fãs, autores, editores, recuando até uma disputa entre George Orwell e H. G. Wells, durante a II Guerra Mundial, para concluir: “Com isto como nosso background e com estes como nossos antepassados, que diabo de esperança podemos ter?” (P. 27) 48 Idem, ibid. P. 25. 49 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. P. 3. 50 Knight, Damon. “Knight Piece”. P. 143. 46 21 “Projeção Atroz Segue sem Correção no Festival do Rio: Quase Nada Deu Certo” e no corpo do artigo, “filmes bons e ruins foram exibidos fora de foco [...] Alguns filmes eram portanto meras bolhas de borrões do primeiro ao último rolo.” Um editorial do Jornal do Brasil é citado: “Se as autoridades do Festival não agirem rapidamente, absolutamente ninguém de importância retornará para o próximo Festival do Filme no Rio.”51 Não obstante, Moskowitz reconhece: “[Sanz] merece crédito por uma realização considerável, tanto politicamente quanto no sentido dos filmes e da literatura.”52 Um dos primeiros fãs a se tornarem pesquisadores de FC com atuação acadêmica,53 Moskowitz menciona a realização “política” de Sanz talvez menos em relação ao contexto brasileiro da época, marcado pelo regime militar, e mais ao fato de Sanz ter conseguido reunir num mesmo evento autores de FC que estavam divididos em relação à guerra do Vietnã. Michael M. Levy, da Universidade de Wisconsin, relata que em “junho de 1968 [menos de um ano do evento] dois grupos de escritores de ficção científica com visões opostas do envolvimento dos irados [na revista de FC] EUA no Vietnã publicaram anúncios Galaxy”.54 Segundo Levy, entre os signatários contrários à guerra estavam Ursula K. Le Guin, Philip K. Dick, Joanna Russ, Ray Bradbury e Harlan Ellison (que participou do simpósio); entre os signatários a favor do envolvimento americano no Vietnã estavam John W. Campbell, Jr., Robert A. Heinlein (presente no simpósio), Poul Anderson (idem), Larry Niven e Jerry Pournelle. Frederik Pohl menciona o incidente, em sua palestra comunicada no Simpósio de FC, ao tratar do gênero como baluarte da liberdade de expressão nos Estados Unidos: 51 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. P. 7. Carta ao autor, de 15 de setembro de 1006. “He deserves credit for a considerable achievement, politically as well as in a film and literary sense. He used my book Seekers of Tomorrow, a history of modern science fiction via biographies as one of his guides as to whom to invite.” Seekers of Tomorrow: Masters of Modern Science Fiction é um livro de 1967; nele são tratados, um por capítulo, os seguintes autores que estiveram no Simpósio de FC: Robert A. Heinlein, A. E. van Vogt, Robert Bloch, Arthur C. Clarke e Philip José Farmer, de 22 autores enfocados. 53 Segundo Peter Nicholls in The Encyclopedia of Science Fiction (Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 1065), “Em setembro de 1953 Sam Moskowitz começou a ministrar o que foi com quase certeza o primeiro curso de fc nos EUA a ser dado através de uma faculdade. O curso foi sobre a Escrita de Ficção Científica, foi dado [como curso de extra-curricular] através do City College de Nova York [...]”. Moskowitz também daria palestras na New York University e na Columbia University (idem, ibid., p. 1065). 54 Levy, Michael M.. “The New Wave, Cyberpunk, and Beyond”. In Anatomy of Wonder 4: A Critical Guide to Science Fiction, Neil Barrow, ed. New Providence, NJ: R. R. Bowker, 1995, p. 224. Publicado em julho de 1968, o abaixo-assinado e a polêmica que suscitou aconteceram em meio à Ofensiva do Tet, o momento militar que demonstrou que o conflito naquele país asiático se tornara muito mais complicado do que as previsões do governo norte-americano. 52 22 [...] É claro que a livre expressão também implica em liberdade de expressão por parte do establishment e, entre os escritores de Ficção Científica, para cada um que defenda uma causa impopular, haverá outro cujas simpatias serão totalmente pela causa popular. No ano passado, tivemos um exemplo desta natureza pluralística da sociedade de Ficção Científica, quando na Galaxy e algumas outras revistas, apareceram dois anúncios: um deles intitulava-se “Nós, os abaixo assinados, escritores de Ficção Científica, exigimos que os Estados Unidos saiam do Vietnam [sic] imediatamente”, e estava assinado por certa de 70 escritores de Ficção Científica, inclusive uma meia dúzia de vigaristas. O outro intitulava-se “Nós, os abaixo assinados, escritores de Ficção Científica, exigimos que os Estados Unidos permaneçam no Vietnam [sic]”, e estava assinado por cerca de 68 escritores e meia dúzia de vigaristas. E o que é interessante sobre as duas listas, é que eu conheço quase todos os que assinaram. E conheço-os o suficiente para saber que, entre eles, a diferença de visão a longo prazo do tipo de sociedade que o mundo deverá ser daqui a um século ou mais, não vale nada. O que os divide não é o objetivo a longo prazo, mas as táticas e as estratégias para alcançá-lo e os problemas do momento.55 Contudo, o mundo da FC em língua inglesa também estava dividido com relação aos caminhos que o gênero deveria tomar no futuro. Nisso, a diferença de objetivos entre um grupo e talvez outro fosse ainda maior. * José Sanz editou a maioria das palestras conferidas pelas personalidades estrangeiras presentes no simpósio — não todas, como Sam Moskowitz supôs56 — no volume bilíngüe português-inglês SF Symposium/Simpósio FC (1969).57 Sabe-se, porém, que ao menos uma conferência não compilada por Sanz, a de Robert A. Heinlein, apareceu na coletânea póstuma de textos de Heinlein, Requiem: New Collected Works by Robert A. Heinlein, de 1992 (o autor faleceu em 1988), editada por Yoji Kondo.58 Os motivos de possíveis exclusões — as conferências de personalidades importantes como Philip José Farmer, Damon Knight ou Robert Sheckley — podem ter ido desde questões práticas de espaço no livro, a conteúdos políticos que poderiam ter sido alvo de censura governamental.59 A palestra de Pohl, incluída no livro, é a única que talvez faça um comentário, ainda que sutil, à situação política brasileira de então: 55 Pohl, Frederik. “The Science Fiction of Social Comment/A Ficção Científica da Crítica Social”. In SF Symposium/FC Simpósio. José Sanz, ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, 1969, p.150. 56 Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. P. 9. 57 Os publicados foram Forrest J. Ackerman, Sam Moskowitz, Robert Bloch, A. E. van Vogt, Brian W. Aldiss, Poul Anderson, Luis Gasca, John Brunner, Harry Harrison, Alfred Bester, Wolf Rilla, Frederik Pohl, J. G. Ballard, Jacques Sadoul, Harlan Ellison e Arthur C. Clarke. 58 O livro também traz homenagens escritas por várias personalidades, de Arthur C. Clarke a Tom Clancy. 59 A ausência da fala de Heinlein é mais fácil de entender: ela foi apresentada no Festival Internacional do Filme, antecedendo a exibição de Destination Moon (1950), baseado no romance de Heinlein Rocket Ship Galileo (1947). Tratou quase que exclusivamente do envolvimento do autor com o filme dirigido por Irvin Pichel e produzido por George Pal. No livro de Yoji Kondo a palestra é erroneamente chamada de “Guest of Honor Speech—Rio de Janeiro Movie Festival, 1969”, já que o evento não obedeceu a essa estrutura de homenagem. A transcrição está em Requiem: New Collected Works by Robert A. Heinlein, Yoji Kondo, ed. (Nova York: Tor Books, 1992), pp. 198-204. 23 [...] E foi o tipo de Ficção Científica [o de crítica social] que, naquele triste qüinqüênio que chamamos período macartista nos Estados Unidos, foi responsável pelo fato de que as revistas de Ficção Científica serem quase que a única imprensa livre na América. Enquanto presidentes e editores de jornais, pessoas muito influentes e importantes, corriam para os abrigos antiaéreos, as revistas de Ficção Científica diziam o que bem queriam. É lógico, quase tudo era sempre dito sob a forma de alegoria, passava-se num futuro remoto ou num outro planeta. Uma das razões pelas quais estávamos tão a salvo das críticas pode ter sido o fato de ninguém compreender o que estávamos dizendo. Entretanto, não há assunto, político, social, sexual, religioso ou seja lá qual for, que não possa ser e não tenha sido discutido nas histórias de Ficção Científica. Ela é o baluarte mundial da liberdade de expressão. 60 Brian W. Aldiss datilografou sua conferência em oito folhas tamanho ofício, timbradas com “II festival internacional do filme rio de janeiro”, com a silhueta de uma ave em azul, entre as palavras “filme” e “rio” com iniciais em caixa baixa. Chamou-se “O Império da Ficção Científica”,61 e nela Aldiss escreveu, ironicamente, que tentaria em sua intervenção mostrar seu “melhor lado e não ser polêmico”.62 E ainda: [N]uma cidade como o Rio, exige-se claramente de todos nós mais que modéstia. Minha transposição para esta cidade vibrante e irrequieta é talvez tão dramática quanto a de qualquer pessoa. Cheguei a esta cidade brilhante e fascinante vindo da verde, suave e fresca primavera do vale do Tâmisa, na Inglaterra. E minha esperança é que, em agradecimento pelo convite eu possa talvez presenteá-los com um pouco de sabedoria primaveril, verde, suave e fresca.63 Aldiss — que anos depois teria ampla fama em razão de “Superbrinquedos Duram o Verão Todo” (“Supertoys Last All Summer Long”; 1969), conto inspirador de Stanley Kubrick no projeto do filme A.I.: Inteligência Artificial (A.I.: Artificial Intelligence), terminado por Steven Spielberg e lançado em 2001 — se refere à “suave e fresca” primavera do Vale do Tâmisa, de onde ele viera, para se confrontar com o quente 60 Pohl, Frederik. “The Science Fiction of Social Comment/A Ficção Científica da Crítica Social”. In SF Symposium/FC Simpósio. José Sanz, ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, 1969, p. 150. Em Science Fiction: An Illustrated History (Nova York: Gosset & Dunlap,1978), o autor sueco Sam J. Lundwall, discorda nos seguintes termos, bastante críticos: “É significativo que mesmo durante a caça às bruxas macartista [...] nem um único autor de ficção científica jamais tenha sido objeto de escrutínio [pelo Comitê de Atividades Anti-Americanas] — já que nunca os autores norte-americanos de ficção científica realmente questionaram com seriedade o Modo (Norte) Americano de Vida.” (P. 83) Mais adiante, Lundwall faz uma declaração mais próxima do potencial que Pohl apontava: “autores de ficção científica do Leste e o Ocidente parecem ter poucos problemas em passar suas histórias pela censura oficial ou nãooficial [...].” (P. 95) 61 No manuscrito. Na antologia de conferências, nenhuma delas aparece com título. O manuscrito foi passado ao autor por Gumercindo Rocha Dorea em 1997, e apresenta o seguinte cabeçalho e título: “Simpósio: A Literatura de Ficção Científica e o Cinema, 24 a 30 de março de 1969, Uma fria e verde suave palestra com ao amor ao Rio: O Império da Ficção Científica.” 62 Aldiss, Brian W. “The Empire of Science Fiction/O Império da Ficção Científica”. In SF Symposium/FC Simpósio, José Sanz, ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Cinema, 1969, p. 74. 63 Idem, ibid. P. 74. Manuscrito de “The Empire of Science Fiction”, p. 1. “Simpósio: A Literatura de Ficção Científica e o Cinema, 24 a 30 de março de 1969, Uma fria e verde suave palestra com ao amor ao Rio: O Império da Ficção Científica.” 24 outono do Rio de Janeiro. Aparte essa menção à diferença climática, sua conferência parece dirigida exclusivamente aos seus pares estrangeiros, e quando trata de um dos assuntos centrais de sua fala, a assim chamada New Wave da ficção científica, não oferece qualquer contextualização aos brasileiros presentes na audiência: “A dor de cabeça agora em voga é se a Nova onda [sic] é melhor que as Antigas e vice-versa.”64 É claro, por trás da sua afirmação de modéstia, o que ele procura é justamente ser polêmico e incisivo. Nem a ênfase colocada na New Wave, nem a tentativa de polemizar, deixaram de ser percebidas por Moscowitz, que escreveu: “Desta vez Aldiss tentou ser provocador, ao afirmar que ‘Há um império da ficção científica e a ficção científica em si não existe’!”65 E, “Na época que Aldiss apresentou a sua fala a ‘New Wave’ se aproximava do seu ápice e ele estava muito envolvido com ela”.66 Moskowitz pode ter desejado devolver a ironia original, ao escrever: Eu me vi anotando quais efeitos literários os escritores da New Wave consideravam originais: Histórias contadas na forma de diários, telegramas, memorandos, fluxo de consciência, o uso de palavras de quatro letras [o palavrão fuck] e outras [expressões indecorosas], verso branco, tipografia engenhosa, recitações a um psiquiatra, escrita na segunda pessoa e prosa “futurística”. 67 Cabe discutir o que foi a New Wave,68 que é assunto da primeira seção deste trabalho, e de como ela — pela fala de Aldiss e de outros no Simpósio — parece ter chegado ao Brasil enquanto vivíamos a Primeira Onda da FC Brasileira. Até mesmo algumas ausências ao Simpósio se explicam pelo clima de antagonismos literários da época. É o caso do escritor e editor Michael Moorcock, um dos impulsionadores da New Wave como movimento editorial e literário. 64 Idem, ibid. P. 77. Moskowitz, Sam. “Remembrance of Rio”. P. 6. 66 Idem. 67 Idem. Nada disso, porém, está na conferência impressa, nem no manuscrito (talvez em perguntas do público?). A antipatia de Moskowitz pela New Wave se tornou proverbial, a ponto de Harlan Ellison mencioná-lo na introdução à antologia Dangerous Visions: “O que você tem em mãos é mais do que um livro. Se tivermos sorte, é uma revolução. [...] e nós muito bem obtivemos essa revolução. Se você duvida, apenas diga ‘new wave’ a Sam Moskowitz.” In Dangerous Visions, Harlan Ellison, ed. Nova York: Berkley Publishing, 1969, p. 7. Cf. David Lincoln Dunbar, “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”, p. 20. Aldiss também ataca Moscowitz por seu conservadorismo, em “How I Ran through an Empire—and Was Better for It” (in The Shape of Further Things, Brian Aldiss. Londres: Corgi, 1970): “[O] conservadorismo aparece […] na luta frenética para reter velhas formas de ficção e até mesmo velhos assuntos [...] [Essas] tendências são atualmente mais aparentes nos States do que na Inglaterra. Os seus defensores derradeiros — com Sam Moskowitz possivelmente produzindo mais decibéis por eles — são mais barulhentos, ou talvez apenas de melhor calibre, lá.” (P. 113) 68 A expressão parece que se fixou no Brasil no original em inglês, com iniciais maiúsculas. 65 25 O tradutor e fã Ícaro França, que, com Braulio Tavares, Sérgio Fonseca, Fábio Fernandes e José dos Santos Fernandes, esteve com Sanz na década de 1980, revela que esse escritor inglês teria sido procurado diretamente por Sanz: [Sanz] foi visitá-lo pessoalmente em seu endereço na Inglaterra... e foi recepcionado por um ruivo gigantesco, bigodes vermelhos e longos e cara de poucos amigos — era o próprio. Resmungando de mau humor, ele convidou José Sanz a entrar no seu apartamento — que era mais um estúdio de arte. Ele estava em mangas de camisa e, com palavras rudes, foi logo dizendo que recebeu o convite para o evento no Rio... mas que não iria e acabou-se! José Sanz ainda pode esboçar uma reação: “Mas por quê?” Ele respondeu: “Eu sou um cara brigão! Se eu for ao Rio, vou acabar me metendo em alguma briga... e vai pegar mal.” E de fato, ele não veio!69 A anedota ilustra as tensões literárias dos proponentes da New Wave no mundo da FC anglo-americana, e que vinham passando despercebidas pelo público brasileiro, ocultadas pelo ineditismo e singularidade do Simpósio — e pela fala às vezes meramente “turística” dos participantes (que incluem comentários sobre o quão calorosos são os cariocas ou como eles adoraram a caipirinha).70 Também sugere que as questões de política literária envolvendo a New Wave circularam nos bastidores do encontro. Podemos conjecturar, por exemplo, que Aldiss e/ou Ballard recomendaram a presença de Moorcock com tamanha ênfase, que Sanz, tendo oportunidade e perante uma recusa inicial, tentou recrutá-lo pessoalmente. Harlan Ellison produziu uma crônica diferenciada, da sua vinda ao Rio de Janeiro, no livro The Beast that Shouted Love at the Heart of the World: “The Waves in Rio”, na qual admite estar no Brasil numa “missão de tolo” (a fool’s mission), enquanto ouve as ondas noturnas quebrando na praia de Copacabana, e compõe um poema que compara as ondas do mar com as ondas de escravos importados de Lagos na Nigéria, para alimentar o escravismo brasileiro,71 observando a estátua do Cristo Redentor e notando 69 França, Ícaro. Informação pessoal por e-mail, em 1.º de outubro de 2008. Esse tipo de anedota, partida de Sanz, talvez deva ser tomada com um pé atrás: em conversa que tive com o Gumercindo Rocha Dorea em 17 de janeiro de 2009, o editor baiano, que conviveu com Sanz, disse que ele tinha o hábito de, quando alguém mencionava um autor, que se vangloriar de tê-lo conhecido pessoalmente. 70 Frederik Pohl, em The Way the Future Was, resume a experiência Rio de Janeiro como “O Rio foi exatamente o que férias tropicais deveriam ser” (Nova York: Ballantine Books, 1979, p. 283). E tanto Braulio Tavares quanto Ícaro França se recordam de uma anedota de Sanz sobre as andanças do grande escritor Robert Sheckley (1928-2005) pela noite carioca, à procura de marijuana (comunicações pessoais por e-mail, 1.º de outubro e 29 de setembro, respectivamente). Tavares narra: “Lembro apenas que ele [Sanz] disse que quando Robert Sheckley chegou no Rio fez apenas dois pedidos: queria ver o Cruzeiro do Sul, e queria que lhe arranjassem um pouco de ‘marijuana’. Si non è vero...” 71 Ellison, Harlan. “Introduction: The Waves in Rio”. In The Beast that Shouted Love at the Heart of the World, Harlan Ellison. Nova York: Signet Books, 1974, p. 9. 26 em seguida como “o Rio de Janeiro é uma cidade de contraste assustador”72 e como a população mulata e negra dos morros está sozinha em “sua própria terra”: “Cristo nunca os salvará. Nem os homens jamais os salvarão. Eles passarão os seus dias como as ondas vindas da África, atirando-se contra a praia de uma vida sem mercê.” E completa: “Eles não são melhores do que você ou eu.”73 Ellison, parágrafos abaixo, expande essa metáfora da condição humana, afirmando que “o homem está construindo para si mesmo um mundo sombrio que o está deixando louco”,74 e que esse mundo sombrio exige novos pensamentos e atitudes. Por sua vez, a imagem da onda logo alcança a problemática da New Wave. Ellison nega o rótulo ou a possibilidade de incluir em uma única chave o trabalho dele próprio com o de Samuel R. Delany, Thomas M. Disch, J. G. Ballard e Brian W. Aldiss — para em seguida admitir que “não há como negar que algo está acontecendo”75 no mundo da ficção científica (ou “ficção especulativa”, como ele prefere),76 assim como algo acontece em diversos outros campos das artes contemporâneas. Ellison também reclama dos reacionários e afirma que as novas vozes — freqüentemente agrupadas como parte da New Wave — estão aí para ficar, presumivelmente porque elas têm algo a dizer a respeito do mundo sombrio e repleto de contrastes, que exige novas formas, revolucionárias, de pensar e de agir. Objetivos deste Estudo O cenário dessa discussão em praias brasileiras, da nova corrente originária da Inglaterra, é complicado sobremaneira pela tese de doutorado de David Lincoln Dunbar. Para ampliar e oferecer termos de comparação a esse fenômeno, numa segunda parte 72 Idem, ibid. P. 10. Idem. 74 Idem. 75 Idem, ibid. P. 12. 76 Segundo Peter Nicholls, em 1947 “Robert A. Heinlein propôs o termo [“ficção especulativa”] para descrever um subconjunto de fc envolvendo extrapolação da ciência e tecnologia conhecidas ‘para produzir uma nova situação, uma nova estrutura para a ação humana’. Judith Merril emprestou o termo em 1966 [...] de modo a desenfatizar o componente ciência da fc [...] ao mesmo tempo que mantinha a idéia de extrapolação — i.e., o uso do termo por Merril era útil para aquele tipo de fc sociológica que se concentra em mudança social sem necessariamente qualquer ênfase maior na ciência ou tecnologia. Desde então o termo tem geralmente atraído escritores e leitores que estão tão interessados na fc soft quanto na fc hard.” (In The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, pp. 1144-45.) Certamente, Aldiss se refere ao uso que Judith Merril deu ao termo. 73 27 pretendo analisar a entrada no Brasil de uma outra corrente da FC internacional, posterior à New Wave: o cyberpunk, característico da década de 1980. Como o cyberpunk é tratado como expressão do pós-modernismo na FC, e a New Wave pode ser vista como uma primeira inserção do pós-modernismo no gênero,77 minha discussão irá abordar tais aspectos, seja no plano formal ou no ideológico, fornecendo um argumento sobre o pós-modernismo na FC anglo-americana e brasileira. Questões de política literária serão sempre evocadas, como maneira de relativizar o peso teórico das discussões, tentando estabelecer que intenções, procedimentos e programas literários existem inseridos em contextos pessoais, sociais e mesmo nacionais. Essa abordagem é amparada pelo conceito do Campo de Poder, do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), definido pelas “relações de força entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social — ou de capital — de modo que eles tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio de poder [...]”.78 O Santo Graal dessas lutas, no campo literário, é aquilo que chamei de “prerrogativa cultural”: “o poder de ditar o que é bom, ruim ou significativo em termos artísticos e literários.”79 * A pergunta central para este estudo, porém, é como um gênero de raízes populares como a FC se relaciona com as idéias e a estética que permeiam a discussão do pós- modernismo. A questão está presente nas observações do crítico norte-americano Brian McHale em Postmodernist Fiction (1987), que afirmou que o “dominante da ficção pósmodernista é ontológico” e que a FC “é o gênero ontológico par excelence”.80 Contudo, apoiado na visão de críticos como Clive Bloom, Scott McCracken, Ken Gelder e Robert Scholes,81 entre outros, eu argumento que a FC como gênero literário pode, sem privar-se de suas raízes populares, fornecer uma crítica da realidade contemporânea — supostamente marcada, na visão marxista, historicista e de crítica cultural de Fredric Jameson, pela “condição pós-moderna” como “a lógica cultural do 77 “A fc da New Wave britânica é mais um exemplo, ou antes, muitos mais exemplos, do movimento anárquico e mal-definido que os críticos têm tentado rotular de ‘absurdista’, ‘cômico-apocalíptico’, PósModernista’ [...].” In The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction, Colin Greenland (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983), p.203. 78 Bourdieu, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Bertrand Brasil/DIFEL, Coleção Memória e Sociedade, s.d. [1989], pp. 28-9. 79 Causo, Roberto de Sousa. Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, Coleção Origens, 2003, p. 234. 80 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 1987, pp. 10 e 16. 81 Com Cult Fiction: Popular Reading and Pulp Theory (1996), Pulp: Reading Popular Fiction (1998), Popular Fiction: The Logic and Practice of a Literary Field (2004) e Structural Fabulation (1975), respectivamente. 28 capitalismo tardio” que pressupõe o “desaparecimento do sujeito individual, juntamente com sua conseqüência formal, a crescente inviabilidade do estilo pessoal, [o que] engendra a atual prática quase universal do que pode ser chamado de pastiche”.82 Sem subscrever à visão teórica de Jameson, que será analisada mais tarde, basta afirmar que a FC é capaz de exercer o papel de uma literatura que faz a crítica da atualidade, sem recorrer necessariamente aos aspectos formais associados à literatura pós-modernista, incluindo o texto fragmentário, a mistura de gêneros e códigos literários,83 e a metaficção ou fabulation (termo cunhado por Scholes), em que o texto literário abre mão das técnicas literárias consagradas na literatura popular — como a lógica dos fatos narrados, a consistência dos personagens e a textura realista — para questionar a integridade da linguagem e para firmar a incerteza das construções lingüísticas, ou ainda, para desconstruir a adesão do sujeito a visões culturalmente fabricadas do que é real, verdadeiro ou histórico. Para isso, porém, o gênero precisa nadar contra a corrente crítica dominante e se afastar daquilo que o pesquisador francês Antoine Compagnon chamou de “binarismo maniqueísta”.84 A ficção científica alcançaria efeitos semelhantes, dirigidos não às limitações da linguagem, mas às certezas históricas e à fixidez dos valores sociais, na medida em que constrói modelos ficcionais de divergência, mudança e alteridade, que nos fazem enxergar o presente a partir de uma hipótese de conseqüência das nossas identidades, atividades, posturas e crenças atuais — o que os praticantes do gênero costumam chamar de extrapolação. Desse modo, o gênero se abre para a heterogeneidade da experiência, fornecendo vistas a outras possibilidades e firmando um impulso utópico pela educação do sujeito para a mudança e para a ação em novos contextos. Para alcançar minhas conclusões, baseei-me em extensa análise de textos de ficção, de maneira que parto primeiramente do exercício literário direto, para então comparar essa prática com programas e retóricas literárias — e teorias literárias num segundo plano. Em grande parte, isso se deve ao fato da maioria absoluta do material que compõe a bibliografia primária não ter grande disponibilidade no Brasil, nem possuir aqui fortuna crítica estabelecida, exigindo levantamento e análise pormenorizados. 82 Jameson, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC: Durham University Press, 1992 [1991], p. 16. 83 A mistura de ficção científica e mainstream, no primeiro caso, por exemplo; e a mistura do texto de prosa narrativa com linguagem do teatro, do texto científico ou das histórias em quadrinhos, no segundo. 84 Compagnon, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum (Le démon de la théorie: littérature et sens commun). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2.ª edição, 2010 [1998]. 29 1. A REVISTA NEW WORLDS O crítico australiano Damien Broderick, no verbete “Postmodernism and SF” incluído em The Encyclopedia of Science Fiction (1993), observa que, na literatura, normalmente se entende que o pós-modernismo implica em um exibido espírito brincalhão, torção [das características] dos gêneros, e a negação de uma estética ordenada ou finalização moralizadora; acima de tudo, uma escrita que é consciente ou que até mesmo se estrutura como escrita, e não como representação inocente”.1 Broderick fornece uma lista de autores mainstream pós-modernistas cujas invenções os aproximam da ficção científica: John Barth, Jorge Luis Borges, Christie BrookeRose, Italo Calvino, Angela Carter, Don Delillo, Philip K. Dick, Umberto Eco, Raymond Federman e Thomas Pynchon. Dentro do gênero, ele aponta J. G. Ballard, Samuel R. Delany, William Gibson, Michael Moorcock, Rudy Rucker, John T. Sladek, Kurt Vonnegut, Jr., Robert Anton Wilson, Joanna Russ, Ian Watson. Ele também inclui Norman Spinrad (“às vezes”, ressalva), Lucius Shepard (“talvez”) e mesmo A. E. van Vogt (“à frente do seu tempo”).2 O primeiro texto acadêmico que Broderick discute no verbete é o livro de 1987, Postmodernist Fiction, de Brian McHale, o que o torna obrigatório para uma investigação do pós-modernismo na ficção científica. Neste estudo, pretendo expor algumas das construções possíveis do pósmodernismo na FC a partir dos movimentos da New Wave e do Cyberpunk, e os pontos de atrito em termos de política literária, surgidos do encontro das posturas de vanguarda com a tradição popular da FC. Neste capítulo, investigo em primeiro lugar as origens da New Wave e as problemática de política literária existente em torno dela. 1 Broderick, Damien. “Posmodernism and SF.” In The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 950. 2 Idem, ibid. Interessante que Broderick coloque Philip K. Dick como um autor pós-modernista que se “aproxima” da FC, e Kurt Vonnegut como um autor de FC propriamente, mas que é um pós-modernista. Uma expressão da sua preferência por Dick como um autor ombreável aos melhores do mainstream, ou uma tentativa de ironizar as afirmativas de Vonnegut, de que ele não escrevia FC? 30 Gênero Ontológico por Excelência Partindo de um método formalista e estruturalista, Brian McHale recorreu ao conceito formalista russo do dominante — o componente que dá o foco de uma obra de arte3 — para estabelecer uma primeira diferenciação entre modernismo e pósmodernismo. Ele afirma que “o dominante na ficção modernista é epistemológico”, lidando portanto com questões do conhecimento e seu alcance. Para McHale, a história de detetive é o “gênero epistemológico par excelence”,4 já que dramatiza situações em que um conhecimento oculto é desvelado pela investigação detetivesca. Na mesma chave, o “dominante da ficção pós-modernista é ontológico”,5 expressando uma preocupação com a natureza do ser, da existência ou dos condicionantes da realidade. E a “[f]icção científica [...] é para o pós-modernismo o que a ficção de detetive foi para o modernismo: é o gênero ontológico par excelence”,6 segundo McHale, já que toda criação de FC se apóia no conhecimento formal, natural ou histórico, para propor divergências ou violações. Essa observação, como tudo o que se refere ao pós-modernismo, não está livre de ser problematizada. À primeira vista, por exemplo, perante a afirmativa de McHale toda a questão da entrada e da consolidação do pós-modernismo poderia ser redundante ou perfunctória: se o dominante do pós-modernismo é o seu aspecto ontológico e se a FC é o gênero ontológico por excelência, uma primeira idéia possível é a de que o gênero não precisaria incorporar a estética pós-modernista. Se assim fosse, não haveria tanta controvérsia, então, com a entrada, pelas mãos dos escritores da New Wave, de experimentalismos formais na FC. O próprio McHale, porém, faz a ressalva: “Apenas porque há muitas construções possíveis do pós-modernismo [...] isso não significa que todas as construções são igualmente interessantes ou valiosas, ou que não possamos escolher entre elas.”7 Postmodernist Fiction, inclusive, se dedica em parte a propor um cânone e uma hierarquia da ficção pós-modernista em língua inglesa. Por outro lado, quando McHale apontou a ficção científica como gênero ontológico por excelência, podia ter em mente um lado da FC especificamente dotado de inclinação para as práticas formais pós-modernistas listadas por Broderick. Quando afirma que o 3 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 1987, p. 6. Idem. P. 9. 5 Idem, ibid. P. 10. 6 Idem, ibid. P. 16. 7 Idem, ibid. P. 4. 4 31 gênero “serve assim como uma fonte de material e de modelos para escritores pósmodernistas (incluindo William Burroughs, Kurt Vonnegut, Italo Calvino, [Thomas] Pynchon e até mesmo [Samuel] Beckett e [Vladimir] Nabokov)”, 8 pouco antes ele já havia preparado essa afirmação com um alerta antecipado — e com sabor de preconceito literário — contido na expressão “gêneros ontológicos periféricos ou subliterários”.9 Ou ainda, noutro trecho: “Podemos pensar a ficção científica como o duplo não-canonizado ou de ‘arte baixa’ do pós-modernismo [...]”10 Por tudo isso, é imprescindível lembrar que, ocupando a posição central no que se refere ao gênero, a FC em língua inglesa possui seus movimentos literários, períodos ou ciclos de evolução, e a maioria dos pesquisadores admite que, seguindo ao que é conhecido como “proto ficção científica” (aqueles trabalhos da Antigüidade, do período medieval e do início da Era Moderna com leitmotifs, enfoques e estratégias narrativas posteriormente vistas na FC científico do século a era da ficção pulp;11 a Golden Age das revistas de ficção XIX; moderna), tais períodos e movimentos seriam: o romance científica (1938-1948); a New Wave; a configuração de uma FC abertamente feminista; o Movimento Cyberpunk e a corrente humanista nos anos 1980; as correntes da renascença da FC hard inglesa; a nova space opera, etc. Discorrendo sobre seu conceito de campo literário, Pierre Bourdieu (1930-2002) desafia a postura meramente formalista que busca a distinção da especificidade do literário apenas em aspectos formais. Bourdieu afirma que o movimento do campo literário na direção da “autonomia pode ser compreendido como um processo de depuração em que cada gênero se orienta para aquilo que o [...] define de modo exclusivo, para além mesmo dos sinais exteriores, socialmente conhecidos e reconhecidos, da sua identidade”,12 e qualquer essência percebida pela análise não pode portanto ser vista como exterior à história desse processo: 8 Idem, ibid. P. 16. Idem. Em referência a influência desses gêneros no livro de Carlos Fuentes, Terra nostra (1975). 10 Idem, ibid. P. 59. 11 Para uma discussão do desenvolvimento do gênero no Brasil e no exterior, até este ponto, veja meu livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003). 12 Bourdieu, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Bertrand Brasil/DIFEL, Coleção Memória e Sociedade, s.d. [1989], p. 70. Bourdieu se refere aqui à poesia (ou lírica), romance (épica) e teatro (drama) como os gêneros da literatura, mas a observação certamente funciona nos gêneros da prosa de ficção popular, como a fantasia, a ficção científica, a ficção de detetive, a ficção militar, o western e outros, que se destacam dos romances românticos e realistas dos séculos XVIII e XIX, assumindo autonomia na percepção de escritores e leitores. 9 32 Os formalistas [tornaram-se culpados] de constituírem em essências transhistóricas aquilo que, na realidade, é tão só uma espécie de quinta-essência [sic] histórica, quer dizer, o produto do lento e longo trabalho de alquimia histórica que acompanha o processo de autonomização dos campos de produção cultural. [...] Donde a análise da história do campo ser, em si mesma, a única forma legítima de análise de essência.13 Daí a necessidade, no presente estudo, de manter em mente aquele percurso histórico da ficção científica em língua inglesa, comparando-o, em suas diversas instâncias, aos momentos paralelos do percurso específico da FC brasileira, e o de outras práticas de literatura popular ou de vanguarda, que estavam cruzando o caminho da FC New Wave, ou se combinando com ela. Bourdieu entende, parafraseando Hegel, que “o real é relacional”,14 o que me parece particularmente apropriado para a definição e o entendimento dos gêneros de literatura popular. Ken Gelder, em Popular Fiction: The Logic and Practice of a Literary Field (2004), é categórico ao afirmar que ficção de gênero “é uma questão de conhecimento, que algumas pessoas têm [...] e outras não”, e que é “impossível não apenas escrever, mas promover e vender e resenhar ou ler um romance de crime (por exemplo), sem uma boa compreensão da história do gênero e de como ele tem funcionado”. Para Gelder, gênero “não tem tempo para a ingenuidade ou a ignorância”, e “tem tudo a ver com conhecimento e competência”.15 Essa lógica se estenderia, no caso da FC e segundo Broderick no seu livro Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction (1995), até mesmo ao âmbito da teorização: “A ficção científica é um local apropriado para a leitura teorizada, mas apenas para aqueles que partilham alguma familiaridade preliminar com pelo menos uma amostragem dos seus textos mais considerados.”16 E retornando à definição dos gêneros literários, também é possível citar Scott McCracken, em Pulp: Reading Popular Fiction (1998): Gêneros são melhor entendidos [...] não em termos de elementos básicos, mas como sendo históricos e relacionais. São históricos por definirem uma forma em termos do que se passou antes e do que poderá vir depois. São relacionais por darem a definição de uma forma que mostra como ela difere de outras formas literárias. [...] [Sendo que cada] novo exemplo de um gênero em particular pode modificar e alterar o que se compreende pela classificação a que ele pertence.17 13 Idem, ibid. Pp. 70-71. Idem, ibid. P. 28. 15 Gelder, Ken. Popular Fiction: The Logic and Practice of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 2. 16 Broderick, Damien. Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 1995, p. xiv. 17 McCracken, Scott. Pulp: Reading Popular Fiction. Manchester: Manchester University Press, 1998, p. 12. 14 33 O objetivo, portanto, é iluminar o processo de depuração a que Bourdieu se refere, do gênero ficção científica a partir das dinâmicas de política literária dos seus diversos agentes, perante as propostas revolucionárias da New Wave — e mais tarde, do Movimento Cyberpunk. E igualmente, apreciar o quanto foi bem-sucedida a tentativa da New Wave de, dentro da FC, deslocar situações de posicionamento a seu favor — novamente recorrendo aqui a um conceito de Bourdieu, que acreditava em predisposições individuais ou culturais para determinadas práticas artísticas, e que, assumir uma posição em favor de uma forma de arte implica em assumir posição contra outras formas que se encontram no extremo oposto (num eixo de arte alta-baixa, por exemplo).18 Nesse sentido, a estratégia da New Wave foi opor um ethos de vanguarda, contra um ethos pulp que ela imaginava dominante. New Worlds e as Polêmicas da New Wave No livro Age of Wonders: Exploring the World of Science Fiction (1984), o crítico e editor americano David G. Hartwell abre o capítulo sobre a New Wave afirmando que o “conflito e a discussão são presenças duradouras no mundo da FC, mas a política literária rendeu-se à guerra aberta em grande escala apenas uma vez”. 19 Certamente, é a essa situação de política literária a que Sam Moskowitz se referia. Em muitos sentidos, a New Wave foi filha da década de 1960 e do seu turbulento momento internacional, que incluiu algumas das situações mais quentes da guerra fria, processos de descolonização, movimentos de contracultura e de liberação sexual, e novas tecnologias de telecomunicações. Não obstante, Peter Nicholls, em The Encyclopedia of Science Fiction, observa que o “tipo de história ao qual o termo [New Wave] se refere é bem mais antigo do que [a acepção que] o termo [assumiu em meados dos anos 60]”,20 termo esse emprestado da crítica cinematográfica, em referência, na 18 Bourdieau, Pierre. The Field of Cultural Production: Essays on Art and Literature. Londres: Polity Press, 1993, pp. 61-67. Conforme citado por Ken Gelder em Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field. P. 19. 19 Hartwell, David. Age of Wonders: Exploring the World of Science Fiction. Nova York: Walker and Company, 1984, p. 141. Uma ressalva: Hartwell publicava o seu livro no momento em que o cyberpunk se mostrava mais aguerrido, e deixa de fazer observações sobre as questões de política literária que o cercavam. 20 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 865. 34 língua inglesa, à nouvelle vague de Jean-Luc Godard, François Truffaut e outros. A acepção que nos interessa, porém, teria sido usada pela primeira vez pelo escritor inglês Christopher Priest, para designar o tipo de FC que passara a figurar na revista New Worlds a partir da editoria do também escritor Michael Moorcock, que a assumiu com a edição N.º 142, de maio-junho de 1964, tendo apenas 24 anos de idade. É bom lembrar que, se New Worlds foi o locus ideológico do movimento, o tipo de FC New Wave não apareceu exclusivamente nas páginas dessa revista. Nesse sentido, em The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction (1983) Colin Greenland observa que, ainda no começo da década de 1960, a revista “Amazing Stories se tornou a primeira revista americana a reconhecer a nova geração de escritores de fc”, sendo que sua editora na época, Cele Goldsmith (1933-2002), “publicou as primeiras histórias de Thomas Disch e Roger Zelazny, e os primeiros trabalhos de J. G. Ballard”,21 que apareceu em revistas americanas como Science Fantasy, Fantastic, The Worlds of If e The Magazine of Fantasy and Science Fiction.22 Mais tarde, antologias originais (reunindo histórias inéditas) americanas como Annual Edition The Year’s Best S-F (1960-1966), de Judith Merril (1923-1997), Dangerous Visions (1967), de Harlan Ellison, e a série Orbit (1966-1980), de Damon Knight, tiveram grande importância na promoção da New Wave britânica e americana. Michael Moorcock veio substituir John Carnell (1912-1972), que estivera no comando de New Worlds desde 1946. Colin Greenland relata que New Worlds, quando do seu surgimento em 1946, resultou das ansiedades e dos processos próprios do fandom britânico de FC — ainda que, um parágrafo antes, Greenland definisse o fandom como fenômeno paroquial e conservador. De fato, Greenland aproxima fandom do conceito da FC como gênero popular, quando outros — como veremos mais abaixo — apontariam os editores das revistas especializadas como os responsáveis pelo “idioma” limitador da FC. “O período em que as revistas especializadas dominaram a publicação de fc [sic] estava terminado”, ele escreveu, “mas o fandom havia sobrevivido à transição para os paperbacks, e intacto”.23 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983, p. 26. O título é trocadilho com o título de um romance de J. G. Ballard, The Atrocity Exhibition (1969). 22 Para uma bibliografia da ficção curta de Ballard, veja http://www.jgballard.ca/bibliographies/short_story_bibliography.html 23 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 15. A chamada “ficção pulp”, consolidada nas páginas das pulp magazines, seguiu adiante quando os livros de bolso ou paperbacks destronaram as revistas de ficção, após a II Guerra Mundial. Em Pulp Fictioneers: Adventures in the Storytelling Business (Silver Springs: Adventure House, 2004) John 21 35 “New Worlds foi ela mesma criada dentro” do espírito de colaboração estreita entre fãs e leitores, segundo Greenland, [n]o final da década de 1930, a Science-Fiction Association, um grupo de fãs fervorosos, escritores e leitores entusiasmados, se reunia em pubs e casas de chá de Londres para tramar, se não o futuro da humanidade, pelo menos versões ficcionais desse futuro. O seu fanzine, Novae Terrae, era um típico boletim [mimeografado], mas E. J. Carnell, o tesoureiro da Associação, tinha planos e material para desenvolvê-lo como uma revista de ficção e discussão, uma alternativa inglesa às revistas americanas que eles todos liam e para as quais alguns deles já haviam vendido histórias. [...] [New Worlds] não foi a primeira revista inglesa de fc, mas foi a primeira “feita em casa” dessa maneira, a partir do próprio capital do fandom inglês.24 Brian Stableford & Peter Nicholls, em The Encyclopedia of Science Fiction (1993), avaliam que, com “Carnell [New Worlds] foi a força primária na formação de uma tradição na fc das revistas inglesas, e com Moorcock [o nome da revista] se tornou o estandarte do que foi chamado New Wave”.25 Quando Moorcock, indicado por Carnell, assumiu New Worlds em 1964, sua postura foi a de continuar publicando nomes estabelecidos como Arthur C. Clarke, Harry Harrison (1925-2012) e Mack Reynods (1917-1983), autores que dificilmente seriam identificados com a New Wave cujas características ele simultaneamente fomentava em seus editoriais. Ou teria sido assim até que Moorcock assumisse, em 1967, não apenas a editoria mas também a publicação da revista, com ajuda de uma verba do Arts Council — obtida por intermédio de Brian W. Aldiss.26 Christopher Priest, no ensaio “New Wave” (in Encyclopedia of Science Fiction; 1978), elogia a lealdade de Moorcock para com os autores que ele admirava ou que havia descoberto. Priest testemunha que ele “passava muitas horas de trabalho penoso Locke, informa, a respeito da expressão “ficção pulp”: “A referência mais antiga que descobri, em que se [as revistas populares de ficção] eram chamadas de pulps ocorre na edição de agosto de 1929 de Writer’s Markets and Methods, com o termo entre aspas, para indicá-lo como gíria dos conhecedores, para ‘polpa de madeira’, em referência ao papel grosseiro no qual as revistas eram impressas. Também no final dos anos vinte, elas foram rotuladas de ‘só ficção’ e ‘revistas de papel de polpa’, uma expressão comum até os anos quarenta. [...] Ao longo dos anos trinta, o papel e o tipo de ficção nele impressa conseqüentemente se fundiram em significado.” (P. 12) 24 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 15. 25 Stableford, Brian & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, pp. 867-68. 26 “Ele [Aldiss] buscou a ajuda de Kingsley Amis, Charles Osborne da London Magazine, e de Douglas Hill da Pan Books. Além disso, abordou um número de escritores e críticos para reunir apoio para uma aplicação ao Artis Council por uma verba para NW [...] Kenneth Allsop, Anthony Burgess, Edmund Crispin, Roy Fuller, Marghanita Laski e J.B. Priestley responderam todos a favor […]” (The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction, Colin Greenland, p. 18.) 36 com escritores promissores, e os fazia dar o seu melhor”,27 mas afirma que isso era atitude oposta à de um editor doutrinário como Campbell — que também dava atenção personalizada a seus autores. Entre as descobertas de Moorcock, Priest cita Barrington J. Bailey, Hilary Bailey, Langdon R. Jones, George Collyn, Thom Keyes, Charles Platt (que viria a editar alguns números da revista), Richard Gordon, David I. Masson, Bill Butler, Peter Tate, Michael Butterworth, David Redd, John Sladek (1937-2000) e Terry Pratchett — que mais tarde se tornaria um fenômeno mundial de vendas com a série de fantasia humorística “Discworld”. Muitos desses autores possuíam características bem distintas e não obedeciam necessariamente a um núcleo programático da New Wave. Greenland afirma, não obstante, que o termo “New Wave” “significa apenas que os escritores foram considerados juntos, como um movimento acentuadamente distinto e hostil em relação àquilo que eles viam como sendo a velha ordem”. E eles assim se reconheciam, pois tal “coletividade os próprios escritores afirmavam em editoriais e em público”.28 A disposição de Moorcock em polemizar aparece antes mesmo de ele se tornar o editor da revista. Vê-se por sua declaração, num editorial convidado impresso em New Worlds em 1962, de que a “ficção científica foi para o inferno”.29 A Morte e a Morte da Ficção Científica Para Brooks Landon em Science Fiction After 1900: From the Steam Man to the Stars (1997), esta é uma das muitas vezes em que o gênero foi declarado morto e enterrado (e já condenado ao tormento eterno), tendência de autores e críticos que Landon associa ao desejo de setores dentro da FC de morrer como gênero particularizado, e reencarnar como parte do mainstream literário e cultural, hipótese tomada de Roger Luckhurst, no ensaio “The Many Deaths of Science Fiction: A Priest, Christopher. “New Wave”. In Encyclopedia of Science Fiction, Robert Holdstock. Londres: Octopus Books, 1978, p. 165. 28 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 14. 29 Conforme citado por Brooks Landon in Science Fiction After 1900: From the Steam Man to the Stars (Londres: Twaine Publishers, 1997), p. 151. 27 37 Polemic” (1994), que propõe, entre outras coisas, “que a fc [sic] quer morrer, que ela é extática diante do prospecto de sua própria morte, e não deseja nada além”.30 Eu creio que este desejo seria fruto do complexo de inferioridade nutrido pelos escritores e leitores de ficção científica a partir das primeiras décadas do século XX, que testemunharam a filiação do gênero às pulp magazines da “Era Pulp”,31 embora a questão do estatuto do gênero perante os cânones literários certamente seja mais antiga.32 A legitimização está no centro desse desejo de morte, segundo Luckhurst. Amparado por uma leitura de Além do Princípio do Prazer (Jenseits des Lustprinzips; 1920), de Sigmund Freud (1856-1939), o crítico inglês reafirma que a FC deseja morrer como gênero e renascer como mainstream, tendo por base a fantasia de que, em algum momento de um passado mítico (estabelecido, na verdade, no século XIX), a FC seria indistinta do mainstream. Luckhurst chama isso de “fantasia de não-origem”33 porque a história literária contradiz essa noção: “A constituição do local da revista específica de FC nos anos 1920 foi um produto de cerca de 40 anos de realinhamentos sócio-culturais em torno do ‘literário’”, ele escreveu. “H. G. Wells tem sido citado tanto como progenitor da FC como gênero, como a última instância de um texto de ‘FC’ aceito dentro de um campo indiferenciado de Literatura antes da guetificação” da ficção científica. “Isso é incorreto, porém; as últimas décadas do século XIX foram a fase crucial do desenvolvimento das categorias do ‘elevado’ e do ‘baixo’ conforme elas operam institucionalmente agora.”34 Sua conclusão é a de que essa idéia de morte do gênero é “tão central para a história da “estrutura de legitimização: a FC, FC que a morte impulsiona o gênero”, como efeito da é um gênero que busca sepultar [aquilo que é próprio Luckhurst, Roger. “The Many Deaths of Science Fiction: A Polemic”. In Science Fiction Studies #62, Volume 21, Parte 1, March 1994. Disponível em http://www.depauw.edu/sfs/backissues/62/luckhurst62art.htm (p. 2). 31 Mais a propósito da “Era Pulp” pode ser encontrado no capítulo “A Pulp Era que Não Houve”, no meu livro Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003). 32 Em Age of Wonders, David Hartwell evoca a polêmica entre H. G. Wells e Henry James: “Ao final de anos de discordâncias ainda mais sérias entre Wells e James, entende-se que Wells finalmente se posicionou pela comunicação de idéias a uma grande audiência através de prosa jornalística (sem ornamentos), e James por uma complexa arte de prosa que se ergueria pela eternidade como uma catedral [...], a despeito do tamanho da congregação.” (P. 143) Luckhurst emprega argumento concordante. 33 Luckhurst, Roger. “The Many Deaths of Science Fiction: A Polemic”. http://www.depauw.edu/sfs/backissues/62/luckhurst62art.htm. (P. 5) 34 Idem, ibid. P. 4. 30 38 do gênero], tentando transcender a si mesmo de modo a se destruir como o degradado ‘baixo’.”35 Evidentemente, essa perspectiva não exclui uma abordagem mais programática, de declarar a morte do gênero como meio de, na verdade, afirmar a irrelevância de um paradigma vigente até um dado momento, para então erigir outro paradigma, supostamente mais adequado a uma nova circunstância histórica — e a década de 1960 pulsava com cisões, rupturas, conflitos e desenvolvimentos a exigir outros paradigmas. Colocada dessa maneira, a expressão polemizante soa mais razoável, embora nem por isso deixe de ter nela embutida o gesto de ignorar todas as leituras potenciais, divergentes, e talvez enriquecedoras mesmo diante das pressões do contexto, contidas no velho paradigma do qual é passada a certidão de óbito. Nesse sentido, Ken Gelder assinala que é importante reconhecer que gêneros são “internamente antagonísticos, seus subgêneros precisando cavar diferenças essenciais para si mesmos — o que pode significar derrubar do caminho outros subgêneros no processo”, e que um “subgênero ganha identidade sempre em relação a outros subgêneros”, sublinhando às vezes agressivamente as suas diferenças em relação a eles.36 Christopher Priest afirma que Moorcock como editor também foi bem-sucedido com autores estabelecidos como Brian W. Aldiss e J. G. Ballard: “Ambos [...] haviam sido atraídos para os mercados do outro lado do Atlântico, mas com o apoio inteligente de Moorcock, foram atraídos de volta para as revistas [inglesas].”37 Logo na edição 142 apareceram um conto de Aldiss, um artigo de Ballard sobre William Burroughs, além da primeira parte de um romance seriado de Ballard, Equinox (mais tarde publicado em livro como The Crystal World). David Kyle, no livro de arte A Pictorial History of Science Fiction (1976), faz uma síntese da trajetória do movimento. Começa lembrando que no outono de 1963 duas revistas pertencentes à editora Nova foram vendidas, New Worlds e Science Fantasy. Elas haviam sido atingidas pelo encerramento, em 1958, das limitações sobre material importado, abrindo as portas para a concorrência das revistas americanas. Kyle: “New Worlds agora tinha Michael Moorcock como editor, que acreditava que a ‘fc [sic] deveria estar lá longe’ e a New Wave elevou-se ou decaiu, dependendo do crítico em 35 Idem, ibid. P. 5. Gelder, Ken. Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field. P. 59. 37 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 166. 36 39 particular, a um padrão nunca alcançado antes ou depois.” E ainda: “a capa popsurrealista e o estilo e formato experimentais de New Worlds, na qual Moorcock reivindicava uma ‘literatura para a Era Espacial’, levou-a ao desastre.”38 Kyle prossegue: A despeito de ou por causa do trabalho [de Ballard, Charles Platt e Langdon Jones], mais Brian Aldiss [...] e os americanos Thomas Disch e Roger Zelazny, ela se tornou cada vez mais controversa como não sendo fc. A revista até mesmo se referia à fc como “ficção especulativa”, sustentando que “ficção científica” era um termo por demais restritivo e impreciso. A trôpega revista obteve [em 1967] um subsídio governamental do Arts Council, mas que mal bastava para suplementar a magra renda da dedicada redação. Foi o notório [romance] Bug Jack Baron, de Norman Spinrad, que quebrou as costas do camelo e levou à recusa taxativa, por parte da poderosa empresa de notícias W. H. Smith, de distribuir New Worlds, provavelmente por causa da forte linguagem e do sexo. Considerando que essa revista e os seus escritores estavam sinceramente tentando novas formas artísticas e que materiais muito mais ofensivos podia ser encontrado nas bancas de jornais, foi lamentável que os próprios leitores não pudessem fazer o julgamento final, como pareciam estar prestes a fazer. O número final, 201, foi distribuído em 1969 apenas a assinantes, com a legenda mais para o bemhumorado do que para o sardônico, “Edição Especial de Bom Gosto”. Embora o editorial de Charles Platt ao final declarasse que “New Worlds não é uma revista de ficção científica”, ela teve quem se enlutasse. Sem ela, os proponentes da New Wave perderam a sua cruzada.39 Lutando para se manter e com o sacrifício de Moorcock e de outros membros da redação, New Worlds sofreu várias mudanças de formato (com até mesmo uma edição, a de número 212, aparecendo como um fanzine reproduzido em fotocópia) e encarnações como antologias em paperback. Recentemente, em entrevista à SteamPunk Magazine, Moorcock tratou da polêmica em torno de New Worlds, se “ela foi condenada como sendo propaganda de esquerda, ou [por um conteúdo de] obscenidade [...], arriscando perder a ajuda do Arts Council nas duas versões”. A resposta: Não fomos condenados diretamente. A imprensa de direita de tempos em tempos nos atacava como exemplo do que o governo de esquerda vinha permitindo. The Daily Express me perguntou, “Mr. Moorcock: você gostaria que seus filhos lessem esse tipo de coisa?” “Eles têm cinco e seis anos de idade”, eu disse, rindo. “Ficarei feliz quando eles puderem ler de tudo.” Os grandes distribuidores estavam mais preocupados com “pornografia”, embora não houvesse nada visual em nossa revista que não pudesse ser encontrado em qualquer lugar. Não estávamos interessados em “quebrar 38 Kyle, David. A Pictorial History of Science Fiction. Londres: The Hamlyn Publishing Group, 1976, p. 150. 39 Idem, ibid. Pp. 150-51. 40 tabus”. Estávamos interessados em escritores e artistas visuais que desejassem se expressar o mais completamente possível.40 A leitura do livro Bestsellers: Popular Fiction Since 1900 (2002), de Clive Bloom, evidencia que havia a época um movimento de controle e censura de “material obsceno” no Reino Unido, a ponto de, em “outubro de 1969 [ser] reportado que o escritor russo Kutznetsov reclamava que a censura na Inglaterra era tão ruim quanto na União Soviética”.41 Bloom sugere que parte desse movimento, conduzido por “moralistas, bibliotecários, magistrados e policiais”,42 foi causado pelo novo nível de acesso a livros a preços populares, com a revolução dos paperbacks no pós-guerra: a preocupação dos censores e cidadãos preocupados era menos com o consumo de material semelhante pelas elites, e mais com a possibilidade da corrupção e degradação dos jovens e da classe trabalhadora: “Muito se falou da influência corruptora desses livros nos leitores da classe trabalhadora, e assim muito esnobismo foi revelado.”43 New Worlds, como revista de ficção científica, gênero muito vinculado a uma imagem infanto-juvenil, pode ter padecido de zelo semelhante, dentro da atmosfera da época. Dois anos depois do livro de David Kyle, surgiria a Encyclopedia of Science Fiction (1978), editada pelo escritor inglês de FC Robert Holdstock (1948-2009). Esse livro de arte talvez tivesse naquele de Kyle um de seus inspiradores, mas Holdstock oferece de imediato uma contradita ao veredicto de Kyle: [David Kyle] dificilmente poderia estar mais errado. A ficção científica da década de 1970 mostra uma elevada consciência literária entre os novos escritores, que certamente é devida inteiramente aos esforços dos “proponentes da New Wave”. Os escritores de hoje estão muito mais preocupados com o uso dos ingredientes da ficção científica como metáforas literárias, do que somente como idéias imaginativas para aventuras imaginativas.44 A polêmica Holdstock/Kyle traduz instância de política literária entre leitores e escritores americanos e ingleses, e entre conservadores e inovadores literários, inseparável de toda a discussão em torno do movimento — o que pesquisadores e críticos não devem perder de vista. Isaac Asimov (1920-1992), por exemplo, no ensaio “Como a Ficção Científica Tornou-se Grande Atividade Empresarial” (“How Science Fiction Came to Be Big Business”; 1980) meio que reduziu a New Wave — ainda que a “Interview with Michael Moorcock”. SteamPunk Magazine 1(2008), p. 21. Bloom, Clive. Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. Basingstoke: Palgrave MacMillan, 2002, p. 72. 42 Idem, ibid. P. 70. 43 Idem, ibid. P. 72. 44 Holdstock, Robert, ed. Encyclopedia of Science Fiction. Londres: Octopus Books, 1978, p. 11. 40 41 41 julgando um revolução importante dentro do gênero — a uma contingência mercadológica: [...] Nos anos 50, o universo dos livros de ficção foi abalado até os seus alicerces pelo rápido desenvolvimento da televisão. Muitas pessoas perderam o gosto pela ficção popular publicada em livros e revistas [...] Isso significou que toda a ficção publicada em revistas, excetuada a ficção científica, estava definhando. Os livros de ficção de toda espécie, salvo os de ficção científica, passaram a ser publicados em números cada vez menores. Isso também quis dizer que os jovens, movidos pelo forte desejo de escrever, já não conseguiam encontrar mercado fora da ficção científica. [...] Nas décadas anteriores, os únicos autores que tentavam escrever ficção científica eram os fanáticos por esse gênero, empolgados com a ciência e a tecnologia e, por conseguinte, escreviam ficção científica por sua própria escolha. Muitos dos novos autores, a partir de 1960, dedicaram-se à ficção científica porque não havia para eles outra saída. Não eram vivamente interessados em ciência. Em alguns casos, provavam ser de fato adversários dela. Como resultado [...] o início dos anos 60 assistiu aos primórdios de uma revolução no campo da ficção científica, tão importante quanto a anterior revolução [do editor John W.] Campbell. A expressão empregada para designar o novo tipo de conto então escrito era A Nova Onda. Tais contos abrangiam escritos que não versariam tanto sobre ciência e os cientistas, mas sobre o homem comum, afetado pela ciência. Em muitos casos, a ciência situava-se num remoto plano de fundo, passando quase despercebida. A Nova Onda foi igualmente muito mais experimental em matéria de estilo e conteúdo; mais generosa no emprego do sexo e da violência; não possuía, de maneira tão definida, começo, meio e fim; não narrava uma história de modo tão óbvio. Esse movimento despertou violentas paixões a ele favoráveis ou contrárias junto aos leitores de ficção científica. Em sua modalidade mais radical, não obteve sucesso. Mas, em sua expressão de conjunto, a Nova Onda representou uma boa iniciativa. Rompeu com os moldes de Campbell, que estavam começando a cercear por demais os autores de ficção científica e favoreceu maior liberdade de expressão até mesmo no caso de escritores que prosseguiram em seu trabalho no campo da “ficção científica pura” [hard science fiction, no original?], isto é, aquela modalidade que insistia em dar relevo às máquinas e às ciências físicas.45 É claro, nem toda a ficção científica — mesmo a americana — anterior à New Wave era exclusivamente pró-ciência e tecnologia, e não se pode trivializar o compromisso específico com o gênero por parte de autores como Brian W. Aldiss e J. G. Ballard (mesmo que momentâneo); e em 1960 Aldiss identifica Moorcock já como fã de FC, Asimov, Isaac. “Como a Ficção Científica Tornou-se Grande Atividade Empresarial”. In No Mundo da Ficção Científica (Asimov on Science Fiction), Isaac Asimov. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, pp. 150-51. Este ensaio foi primeiro publicado em The 1980 World Year Book: World Book Encyclopedia (Worldbook-Childcraft International, Inc) como “Call It SF or SciFi, It’s Big!” 45 42 então com apenas 17 anos.46 Não obstante, o argumento mercadológico não deixa de ser plausível, assim como a conclusão de que “em sua modalidade mais radical, [a New Wave] não obteve sucesso” — embora Asimov não explicite qual seria essa expressão mais radical, nem o que caracterizaria o seu sucesso (comercial, artístico, crítico?). Sua visão, por outro lado, preserva certa centralidade da FC publicada nas revistas americanas (junto à qual os fatores de mercado sempre foram mais determinantes), mesmo enquanto admite que a “era da Nova Onda apresentou vários e interessantes efeitos colaterais [trazendo] para o primeiro plano a ficção científica de procedência não-americana”.47 Mesmo em relação à paternidade (ou maternidade) da New Wave, surge uma tensão de política literária em termos de ingleses vs. americanos. Se para os ingleses não há dúvida de que o pai foi Michael Moorcock, para um americano como David G. Hartwell, a mãe foi a escritora e antologista americana Judith Merril, “a mulher que lançou mil polêmicas”, “personalidade carismática na 1940 [...] uma ativa figura social no mundo da literários elevados em suas resenhas”.48 antologias Annual Edition Year’s Best FC FC desde o final da década de e alguém que sustentava padrões Mas foi com seu trabalho de edição das S-F, de 1955 a 1966, que Merril tentou revolucionar o gênero a partir desses padrões elevados e buscando contribuições significativas fora do campo das revistas especializadas, tentando “trazer escritores como Jorge Luis Borges e George P. Elliot e Robert Nathan [e mais tarde Bernard Malamud e Isaac Bashevis Singer] para a atenção do mundo da ficção científica”.49 Seu objetivo maior teria sido “obliterar as distinções entre a ficção científica e o resto da literatura contemporânea, trazer a ficção científica de volta ao mainstream”, e, na visão de Hartwell, “dois grupos de escritores, quase todos jovens e novos na FC, aceitaram o chamamento de Merril e revolucionaram a ficção científica ao infundir no campo todo o escopo de técnicas literárias disponíveis ao escritor contemporâneo de vanguarda”. Um grupo teria orbitado Merril e uma conferência anual sobre FC em Milford, Pensilvânia, e Aldiss, Brian. “New Worlds and SF Horizons of the Sixties”. In The Shape of Further Things, Brian Aldiss. Londres: Corgi Books, 1974, p. 133-34. “Ele era incrivelmente jovem, dezessete ou um absurdo assim, com uma bela pele clara como a de um bumbum de nenê. Mais tarde ele se tornou peludo da noite para o dia, e hoje meio que lembra uma caricatura [...] do filósofo francês René Descartes.” 47 Asimov, Isaac. No Mundo da Ficção Científica. P. 151. 48 Hartwell, David. Age of Wonders: Exploring the World of Science Fiction. P. 141. Em The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction, Colin Greenland chama Merril de “‘sacerdotisa’ da New Wave” (p. 69). 49 Hartwell, David. Age of Wonders: Exploring the World of Science Fiction. P. 142. 46 43 “o outro (maior, mais coerente e mais radical) centrou-se em torno da revista inglesa New Worlds [...] e o seu editor, Michael Moorcock”.50 Uma terceira perspectiva surge do livro Science Fiction: An Illustrated History (1978), do jornalista e escritor sueco Sam J. Lundwall, que, sem participar integralmente das comunidades inglesa ou norte-americana de ficção científica, assume uma clara adesão à FC da Europa Continental. Para ele, “New Wave” acabou sendo apenas um “termo de ficção científica para o Dadaísmo, um movimento de vanguarda que apareceu em 1916 em Zurique [Alemanha] e que desapareceu em poucos anos”.51 Sem expressar qualquer entusiasmo pela nova corrente, ele denuncia esse anacronismo contraditório tomado a partir da plataforma New Wave de ser uma FC para o futuro,52 e admite que “Brian Aldiss pode ser o único autor de ficção científica que tem conseguido passar pelo Dadaísmo New Wave sem parecer um asno no processo”.53 A sua posição traduz o entendimento de que a tradição da FC em língua inglesa não partilha necessariamente dos conhecimentos da história da literatura européia continental. Sua denúncia dessa realidade é outra instância de política literária que não deve ser olvidada, valendo uma citação mais extensa: [...] [L]eitores de ficção científica européia tem visto vezes demais livros que se propõem a contar a verdadeira história da ficção científica, terminando por contar nada além da verdadeira história da [FC] em língua inglesa. Esse, se me permite, é o inevitável retrocesso. Há todo um mundo fora da Bretanha ou dos EUA, que não pode mais ser ignorado. Como europeu, estou cansado de [...] ler sobre a revista Amazing Stories como “a primeira revista de ficção científica do mundo” e o seu fundador [Hugo Gernsback] como “o pai da ficção científica”, quando sei que isso simplesmente não é verdade. Estou cansado de ver, ano após ano, o “prêmio para melhor romance de ficção científica do mundo” se restringindo aos romances publicados nos Estados Unidos, quando sei que a maioria dos novos livros de [FC] não são publicados lá, mas na Europa. Estou cansado de conferir listas de livros em linhas de [FC] na Argentina, ou no Japão ou na Alemanha, e encontrar os mesmos autores americanos, velhos e cansados, aparecendo repetidamente. Estou cansado de ver autoproclamados pesquisadores americanos e ingleses de ficção científica revelando sua ignorância completa sobre tudo que existe fora dos seus países, agindo confiantemente como se não existisse todo um mundo fora do deles. Estou cansado do fato de europeus, asiáticos e latinoamericanos também acreditarem nisso. [...]54 50 Idem. Sam J. Lundwall. Science Fiction: An Illustrated History. Nova York: Grosset & Dunlap, 1.ª edição, 1978, p. 57. 52 Idem, ibid. P. 59. 53 Idem, ibid. P. 56. 54 Idem, ibid. P. 202. 51 44 Disputa Idiomática, Conflito de Política Literária Christopher Priest, que participou da face inglesa do movimento (inclusive dandolhe o nome), abre o capítulo sobre a New Wave no livro de Robert Holdstock afirmando que, “embora exemplos individuais da ficção científica New Wave possam parecer banais, obscuros e auto-indulgentes, o movimento como um todo pode agora ser visto como o mais importante desenvolvimento do gênero ficção científica”.55 Priest o chama de “revolução” e admite que para compreendê-lo é preciso “reconhecer a influência do idioma da escrita pulp americana”.56 Chama de “perniciosa” essa influência, dominante na publicação de FC, em razão da importância das revistas especializadas,57 nisso ecoando a condenação de Brian W. Aldiss de que é “fácil argumentar que [o editor] Hugo Gernsback (1894-1967) [criador de Amazing Stories, a primeira revista especializada em FC em língua inglesa] foi um dos piores desastres a jamais atingir o campo da ficção científica”, pois nem “sonhos nem cultura podem aquecer a sci-fic [sic] gernsbaquiana. Ela existe como propaganda para as mercadorias do cientista.”58 Embora o próprio Gernsback tenha escrito, ao solicitar em 1930 contribuições para a sua revista Wonder Stories, que procurava histórias que fossem “para seres humanos, tendo aventuras humanas, escritas do ponto de vista humano [...] as aventuras que ocorrem quando essas pessoas entram em contato com as maravilhas futuras da ciência”. Pedia “histórias incomuns” (para as quais pagava mais) e especifica: histórias “com viagens a outros planetas, estranhos animais e estranhas invenções, aviação do futuro, estranhas civilizações, viagens para o futuro ou para outras dimensões” e “[a] Priest, Christopher. “New Wave”. In Encyclopedia of Science Fiction, Robert Holdstock, ed. Londres: Octopus Books, 1978, p. 164. É dolorosa ironia que um dos textos mais “banais, obscuros e autoindulgentes” da New Wave seja justamente um romance de Priest, Indoctrinaire (1970), seu romance e estréia, parcialmente ambientado no Brasil. Nicholls e Clute o chamaram de “história sombria mas fatalmente abstrata de aprisionamento ambientada no coração do Brasil, onde um inútil portal temporal parece pairar” (The Encyclopedia of Science Fiction. P. 960). 56 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 164. 57 Idem. 58 Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree: The History of Science Fiction. Nova York: Atheneum, 1986, p. 202. A afirmativa certamente já constava da versão anterior do livro, Billion Year Spree: The History of Science Fiction (1973), pois o próprio Aldiss comenta na versão de 1986: “A maior parte do opróbrio sofrido por Billion Year Spree se centrou em torno de meus comentários sobre Gernsback e suas revistas. Todavia nenhum argumento convincente foi oferecido para me fazer retirar o que eu disse.” (P. 19) 55 45 ciência deve ser razoável e lógica”.59 Uma convocação de retórica bastante equilibrada até mesmo para a década de 1960, especialmente em sua ênfase no humano, rejeitando o puramente aventuresco ou o descaradamente tecnófilo. Aldiss pode ter escolhido Gernsback como símbolo daquilo que lhe desagradava na FC, símbolo de uma ideologia a ser deslocada na luta pela prerrogativa cultural, assim como os modernistas brasileiros escolheram Coelho Netto (1864-1934) como símbolo do período anterior que desejavam atacar para firmarem-se como novo paradigma: “O Modernismo condenou-o como o representante típico do passadismo, acusando de afetação, palavreado rebuscado e enfático, abuso de termos incomuns, prolixidade, helenismo.”60 Contudo, o mesmo registro acerca de Coelho Netto afirma que, mais “tarde, sua obra sofreu uma revisão e foi melhor julgada, tendo-se-lhe reconhecido um lugar legítimo na [literatura] brasileira, [sua obra] elevando-se a alguns dos mais altos postos da ficção nacional”.61 Citando João Guimarães Rosa (1908-1967), o crítico Wilson Martins chamou Netto de “o grande injustiçado da literatura brasileira”.62 De modo semelhante, o papel de Gernsback em formar uma imagem “perniciosa” da FC e um embaraço às gerações futuras de autores do gênero está aberta a diferentes interpretações. Sam Moskowitz, que cresceu lendo histórias nas revistas de Gernsback — e com quem trabalhou, entre 1952 e ’54 —, atribui parte dos ataques dirigidos a esse editor a questões de política literária e comercial, citando um comentário do escritor e crítico Alexei Panshin, que teria se surpreendido com a qualidade das histórias compiladas por Asimov em Before the Golden Age (1974): “Eu sempre acreditei que tudo publicado antes que Campbell [1910-1971] se tornasse editor fosse lixo”, Panshin teria dito, “mas depois de ler este volume, fiquei espantado com a qualidade real de algumas das histórias”.63 Moskowitz observou em 1992 que esse “tem sido o conhecimento convencionado, cujo conceito foi amplamente encorajado por John W. Campbell, de que não haveria boas histórias antes dele se tornar editor”. 64 Roger Luckhurst acredita que a demonização de Gernsback tem pés de barro: a proposição de Gernsback, Hugo. “Authors I Dislike”. In Pulp Fictioneers: Adventures in the Storytelling Business, John Locke, ed. Silver Spring, MD: Adventure House, 2004, p. 48. Primeiro publicado na revista Writer’s Digest de setembro de 1930. 60 Coutinho, Afrânio & Sousa, J. Galante de, eds. Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume I. São Paulo: Global Editora/Fundação Biblioteca Nacional/DNL/Academia Brasileira de Letras, 2001, p. 500. 61 Idem. 62 Martins, Wilson. “O Grande Injustiçado”. “Ideias&Livros” do Jornal do Brasil de 4 de julho de 2009, p. L6. 63 Moskowitz, Sam. “Out of Surfeit Come Specialization”. In MagiCon: The 50th World Science Fiction Convention, Jon Gustafson, ed. Orlando: MagiCon/World Science Fiction Society, 1992, p. 75. 64 Idem. 59 46 que a “FC é elaborada como um gênero distinto apenas com [a revista de Gernsback] e outras revistas especializadas subseqüentes” levaria ao entendimento de que a sua “‘préhistória’ seja uma de impureza fundamental”, o que Luckhurst contesta, admitindo apenas que tal “impureza [ou estado de fusão com outras formas] não marca um ‘mainstream’ indiferenciado, mas é uma impureza dentro de um conceito emergente [de literatura] ‘popular’”.65 O revisionismo em torno da Golden Age também se expressa na observação de Paul A. Carter, de que um dos aspectos a anunciar a Golden Age “foi a chegada de uma hoste de novos competidores da Astounding de Campbell, em uma explosão populacional de revistas”, notando ainda que, ao “final da Depressão, assim como no começo, havia apenas três revistas de ficção científica; quatro se contarmos Weird Tales [que publicava primariamente fantasia e horror]”.66 Poucos anos depois, uma dúzia de títulos estava em circulação. Complementando esse quadro, David Drake fornece esta perspectiva sincrônica, também marcada por um argumento de política literária e comercial: “Nossa visão atual da Golden Age da fc [sic] é de várias maneiras uma criação dos editores do pós-guerra que garimparam o período para montarem gordas antologias em capadura.”67 Drake diz que esses editores se concentraram, compreensivelmente, no material da revista de Campbell, Astounding Science Fiction (fundada em 1930 e ainda em circulação como Analog Science Fiction and Fact), mas faz a ressalva: “[A]s revistas da época eram notavelmente diversificadas — e notavelmente interessantes. Era uma época em que havia FC para todos, não apenas para um grupo estreito... e pessoalmente, eu gostaria que a situação fosse assim hoje.”68 Nesse mesmo sentido, na introdução à antologia The Space Opera Renaissence (2006), Hartwell cita um desabafo da escritora Leigh Brackett (1915-1978), também iluminador da situação da época e de suas questões específicas de política literária: Foi moda por um tempo, entre certos elementos do fandom de ficçãocientífica, odiar Planet Stories. Eles odiavam a revista, aparentemente, por Luckhurst, Roger. “The Many Deaths of Science Fiction: A Polemic”. P. 4. Carter, Paul A. “Golden Age to Atomic Age”. In Anatomy of Wonder 4: A Critical Guide to Science Fiction, Neil Barron, ed. New Providence, NJ: R. R. Bowker, 1995, p. 117. 67 Drake, David. “The Golden Age”. The New York Review of Science Fiction 250 (June 2009), p. 15. Algumas das principais antologias a realizarem a valorização da FC campbelliana teriam sido Famous Science-Fiction Stories: Adventures in Time and Space (Nova York: The Modern Library, 1946) Raymond J. Healy & J. Francis McComas, eds.; The Astound Science Fiction Stories (Nova York: Simon and Schuster, 1952), John W. Campbell, Jr., ed.; e A World Treasure of Science Fiction (2 volumes) (Garden Cty, NY: Doubleday & Company, 1959), Anthony Boucher, ed. 68 Idem. A reclamação final de Drake pode se referir à tendência atual de se favorecer justamente a uma FC mais literária e mais politizada. 65 66 47 ela não ser Astounding Stories.... É claro que Planet não era Astounding; ela nunca fingiu ser Astounding, e isso era uma bênção para muitos de nós que teriam morrido de fome se John W. Campbell, Jr., tivesse sido o único mercado para os nossos trabalhos... nós que escrevíamos para Planet tendíamos a nos interessar mais pelo maravilhamento do que por cálculos diferenciais ou na teoria e prática do martelo hidráulico, mesmo que soubéssemos de tudo sobre essas coisas. (Eu não sabia.) Astounding chegava ao cérebro, Planet ao estômago, e sempre me pareceu que um alvo era tão válido quanto o outro. Chacun à son gout. [...]69 Hartwell também deixa claro que, escrevendo em 1975, Brackett escrevia contra o que Hartwell chamou de “os políticos literários da New Wave britânica”,70 que haviam declarado morto o tipo de FC aventuresca, conhecido como space opera, que Brackett e seu marido Edmond Hamilton (1904-1977) escreviam. * Se a opinião de Colin Greenland constituía a norma, então a New Wave teve uma face anti-fandom: “Outros querem manter os muros fechados, valorizam os prazeres esotéricos de pertencer a um grupo, e apreciam a troca de sorrisos cospiratoriais enquanto os de fora ficam perplexos — o zelo nacionalista de Sam Moskowitz e [do editor] Donald A. Wollheim.”71 Tendo editores na mira e não os fãs, a New Wave foi tanto anti-Gernsback quanto anti-Campbell, já que se enxergava entre o trabalho dos dois editores uma continuidade da estética e das qualidades pulp (vigor narrativo, idéias sensacionais e situações improváveis, ação, aventura). Não obstante, assume-se que a ação editorial de Campbell — que exigia solidez científica, consistência extrapolativa das especulações dos escritores sobre o futuro, e análise do impacto social das novas tecnologias — teria elevado o gênero a outro patamar. Campbell fornecia idéias aos seus autores, revisava insistentemente e editorializava sobre a dimensão social e política da ciência e da ficção científica. Sua atuação teria levado a FC pulp a outro estágio, aproximando-a do que seria chamado de ficção científica hard — aquela em que se apresenta como mais atrelada aos conhecimentos científicos e tecnológicos, especialmente os relativos às ciências exatas — e definindo o núcleo duro da Golden Age. 69 Hartwell, David G. & Cramer, Kathryn. “Introduction: How Shit Became Shinola: Definition and Redefinition of Space Opera”. In The Space Opera Renaissence, David G. Hartwell & Kathryn Cramer, eds. Nova York: Orb, 1.ª edição, julho de 2007 [julho de 2006], pp. 15-16. A citação de Brackett foi pinçada de The Best of Planet Stories No. 1 (1975), editada por ela. Hartwell & Cramer atribuem seu ano de publicação a 1976. 70 Idem, ibid. P. 15. 71 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. Pp. 21-22. 48 O debate acerca do papel dos editores é particularmente específico ao gênero. Embora a crônica literária mainstream contemple um William Dean Howells (18371920), editor de ficção da revista The Atlantic Monthly, ou um William Maxwell (19082000), que foi editor de ficção da revista The New Yorker, no campo da FC a fama e o peso de editores como Gernsback, Campbell, Horace Gold (1914-1996), Lester (19151993) & Judy-Lynn del Rey (1943-1986), Donald A. Wollheim (1914-1990), Terry Carr (1937-1987) e Gardner Dozois é desproporcional. É possível que Aldiss, ao escolher Gernsback como alvo de seus ataques programáticos, e não um escritor da era das pulp magazines, traduza um descontentamento quanto à relevância do editor de revistas comerciais, para a formação da FC. (Assim como a “implicância” dele com Moskowitz pode não se dever apenas à oposição deste à New Wave, mas ao seu caráter de crítico e historiador fã.) Algo nesse sentido aparece no texto de Christopher Priest, quando ele aponta: Os escritores que contribuíam para as revistas [especializadas] eram, de um modo ou de outro, derivativos um do outro. Eles liam os trabalhos um do outro, emprestavam idéias um dos outro, e eles mesmos trabalhavam para os mesmos poucos editores que controlavam as revistas. (Ouve-se com freqüência a respeito do débito devido a editores doutrinários como John W. Campbell, editor de Astounding por 34 anos.)72 Priest omite a dívida desses autores pulp a alguns nomes mais conhecidos e respeitados da FC do século XIX, como Edgar Allan Poe (1809-1849), Edward Bellamy (1850-1898), H. Rider Haggard (1856-1925) e H. G. Wells (1866-1946), além de outros autores ingleses de relevância como Olaf Stapledon (1886-1950), conforme James Gunn apontou em The Road to Science Fiction Volume 5: The British Way (1998): “Amazing [Stories, a revista de Gernsback] não se restringia aos catálogos gernsbaquianos de invenções futuras, mas republicou quase todos os romances científicos de Wells, assim como a maior parte de Verne e Poe.”73 Listar ingleses como influência sobre os pulps minaria o argumento que Priest lança no parágrafo seguinte: “Escrever ficção científica nessa época era escrever do jeito americano”,74 argumento que seria pronunciado no Brasil apenas pelo escritor Ivan Carlos Regina em 1988, quando da publicação do seu “Manifesto Antropofágico da Priest, Christopher. “New Wave”. In Encyclopedia of Science Fiction, Robert Holdstock, ed. Londres: Octopus Books, 1978, p. 164. 73 Gunn, James. “Introduction”. In The Road to Science Fiction Volume 5: The British Way, James Gunn, ed. Clarkston, GA: 1998, p. 16. 74 Idem. 72 49 Ficção Científica Brasileira”.75 Priest: “Os principais mercados para histórias estavam na América, e aqueles que não estavam — por exemplo, as revistas inglesas que existiam de tempos em tempos — , eram tão completamente influenciados pelo modelo americano que eram indistinguíveis [dele]”.76 Ouve-se nisso o sussurro de uma crítica à falta de pedigree da FC como um gênero que seria, nessa visão, derivativo de seus próprios vícios comerciais e não da ficção literária — como se os autores mainstream não se copiassem entre si e não possuíssem as suas próprias marcas, freqüentemente ostensivas, de diálogo intertextual. Também se lê nas entrelinhas o argumento nacionalista de liberdade em relação ao “jeito americano” (the American way), argumento esse que, nas décadas de 1960 e ‘70, possuía face antiimperialista e alternativa. “A ficção científica havia entrado na meiaidade, assim como era de classe média e cheirava à América mediana e aos seus ideais”, Priest afirma.77 Não, obstante, no ensaio “The New Wave, Cyberpunk, and Beyond” (in Anatomy of Wonder 4; 1995), Michael M. Levy dá a entender que os escritores ingleses da New Wave reagiam diretamente a uma visão do establishment da FC composto primariamente de autores ingleses: “Arthur C. Clarke, James White e talvez John Wyndham.”78 E o próprio Brian W. Aldiss contradiz Priest quanto à FC da década de 1950, cujas obras Priest enxergava como “parecendo estagnadas, derivativas e repetitivas”. 79 “Se as coisas podem ser medidas em décadas, então talvez os anos cinqüenta tenham sido a década perfeita para a ficção científica”, Aldiss escreveu em The Science Fiction Source Book (1984), editado por David Wingrove, chamando essa década de “um ápice da FC”, 80 e o ano de 1953 de “anno mirabilis” por nele terem surgido obras importantes como Farenheit 451, de Ray Bradbury; Os Mercadores do Espaço (The Space Merchants), de Frederik Pohl & C. M. Kornbluth; The Kraken Wakes, de John Wyndham (que em 1951 publicou O Dia das Trífidas); e O Fim da Infância 75 No fanzine do Clube de Leitores de Ficção Científica, Somnium. Em 1993 o manifesto apareceria no D.O. Leitura N.° 138 (12 de novembro de 1993): 8, e na coletânea de contos de Regina, O Fruto Maduro da Civilização (São Paulo: Ficção Científica GRD N.º 16, Edições GRD): 9-10. 76 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 164. 77 Idem. 78 Levy, Michael M. “The New Wave, Cyberpunk, and Beyound”. In Anatomy of Wonder 4: A Critical Guide to Science Fiction, Neil Barron, ed. New Providence, NJ: R. R. Bowker, 1995, p. 225. 79 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 164. 80 Aldiss, Brian W. “A Brief History”. In The Science Fiction Source Book, David Wingrove, ed. Nova York: Van Nostrand Reinhold Company, 1984, p. 17. 50 (Childhood’s End), de Arthur C. Clarke.81 No seu premiado Trillion Year Spree, Aldiss indicou que nessa década a FC “estava se reformando por dentro” e que é possível “sentir-se a formação de sociedades liberais ou de pensamento liberal”, e que “[t]ais inclinações liberais representam uma rejeição, contudo inconsciente, da velha tradição dos pulps-até-Astounding de indulgência em fantasias de poder”.82 Aldiss também sugere que o período 1952 a 1954 como “um período vintage para a ficção curta de FC”, 83 e, ao listar outro conjunto de romances de importância surgidos então, observa que “podemos ver todo um leque de ficção no pós-guerra no qual o comportamento do homem numa sociedade autoritária é examinado”, e que seus autores “estão buscando uma definição do homem que permanecerá na luz assustadora do conhecimento do século XX”.84 Vários desses romances foram escritos por nomes exteriores ao gênero — como George Orwell (1903-1950), William Golding (1911-1993), Nevil Shute (18991960), L. P. Hartley (1895-1972) —, preocupados com a condição humana na era da civilização industrial, mas Aldiss observa que “[m]uitos dos escritores de ficção científica mais pensantes já se viam perante esse problema muitos anos antes”, 85 e admite que, ao mesmo tempo que esses escritores se aproximavam da FC, na década de 1950, “do seu próprio lado da cerca, a ficção científica se aproximava do romance moderno”, e que “os escritores de FC se tornaram mais envolvidos com o mundo, menos contentes com os velhos padrões da FC de aventura”.86 Isso, como resultado de um mundo que, vivenciando agora a bomba atômica, os computadores e os satélites artificiais, parecia cada vez mais próximo do imaginário do gênero. A avaliação de Paul A. Carter no ensaio “Golden Age to Atomic Age” (in Anatomy of Wonder 4; 1995), discutindo justamente esse período, também é positiva: “[A] ficção científica em revistas e paperbacks [livros de bolso] nos anos cinqüenta resultou em uma realização muito recomendável. Foi ao mesmo tempo literária e socialmente crítica; mais, foi corajosa [...]”87 A coragem estava em criticar o macartismo e seus comitês ideológicos de “caça às bruxas”, e Carter cita Frederik Pohl, em argumento idêntico àquele feito por ele no Rio em 1969 (que Pohl, na verdade, já havia sido feito 81 Idem, ibid. P. 18. Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree: The History of Science Fiction. Nova York: Atheneum, 1986, p. 242. 83 Idem, ibid. P. 241. 84 Idem, ibid. P. 243. 85 Idem, ibid. P. 245. 86 Idem, ibid. P. 246. 87 Carter, Paul A. “Golden Age to Atomic Age”. P. 127. 82 51 num evento anual da Modern Language Association, em 1968).88 Carter diz ainda que a FC da década de 1950 teria desenvolvido uma riqueza e sutileza de caracterização quase que desconhecida na Golden Age, e no seu melhor era engenhosa e imaginativa, dentro das assunções da sua época. Ocasionalmente, em histórias por [Theodore] Sturgeon ou Fritz Leiber ou Philip K. Dick, ela foi muito além dessas assunções; algumas das histórias iniciais de Dick em particular surpreendem os leitores de hoje que as encontram pela primeira vez, de que pudessem ter sido escritas há tanto tempo.89 Por sua vez, J.G. Ballard afirmou em 1988: [E]u gostaria que a ficção científica pudesse alargar o seu escopo, seu cabedal de idéias, seu vocabulário e suas ambições. O que eu lamento é o modo como, em anos recentes — talvez eu esteja mostrando a minha idade com isso — a ficção científica dos anos cinqüenta (boa parte da qual teria dificuldade para ser publicada atualmente), aquele tipo de preocupação realística pelo que está se passando, está bem fora de sintonia com toda a espada e feitiçaria e as sagas futurescas que se apresentam como ficção científica...90 Essa declaração reflete o que Ballard disse no Rio de Janeiro quase vinte anos antes. Depois de ouvir as falas de Sam Moskowitz e de Brian Aldiss, ele afirmou: “Repentinamente percebi que estou mais do [lado de Moskowitz] do que ele poderia imaginar”, e que na “verdade eu sou o maior defensor possível das virtudes tradicionais da Ficção Científica [sic]”.91 Não obstante, também defende que “a Ficção Científica precisa mudar senão tornar-se-á uma literatura do passado” e que os escritores daquele momento (e da New Wave, termo que ele deplora) “estão procurando uma nova metáfora para o futuro”:92 A nave espacial e a viagem interplanetária eram o mais grandioso método possível para o futuro [...] o método mais espetacular que surgiu daquele mundo todo de 1910, 1920 e 1930 [...], grosseiramente falando, da época da grande decadência. Me pareceu maravilhoso que fôsse uma literatura, uma literatura combativa, que revelava aquêle imenso otimismo quanto ao futuro da humanidade numa época em que milhões de pessoas estavam no marasmo. A metáfora da nave espacial não é mais uma metáfora válida para o presente, porque trata-se simplesmente de uma imagem do passado. [...] A 88 Idem, ibid. P. 130. Idem, ibid. Pp. 127-28. 90 Conforme citado por Charles N. Brown, em “Locus Roundtable”, Locus Online, na World Wide Web, http://www.locusmag.com/Roundtable/2009/04/jg-ballard_22.html. Itálicos no original. 91 Ballard, J. G. “A Ficção Científica não Deve Ser Imune à Transformação” (“Science Fiction Cannot Be Immune from Change”). In SF Symposium/FC Simpósio, José Sanz, ed. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Cinema, 1969, p. 160. 92 Idem, ibid. P. 161. 89 52 idéia de que o futuro era algo incandescente... é algo que desapareceu. [...] O problema, portanto, é encontrar uma nova metáfora (ou um nôvo sistema de metáforas) para o futuro [...].93 Aparte o aceno no sentido de uma possível convivência entre a “nova e a velha onda”,94 a conferência de Ballard no Rio recupera as idéias centrais do seu ensaio “Which Way to Inner Space?”, publicado em New Worlds ainda em 1962. Comuns aos dois: o apelo pela evolução da FC, a denúncia de que a ficção espacial precisa ceder sua proeminência a outras formas, e o conceito de um “espaço interior” (inner space) em oposição ao “espaço exterior” (outer space), a ser explorado pelo gênero.95 Há ainda o argumento de Damien Broderick. Ele fornece, no ensaio “New Wave and Backwash: 1960-1980” (in The Cambridge Companion to Science Fiction; 2003), duas listas de títulos de histórias e romances — uma, da década de 1950, é exemplo da ênfase no aventuresco; a segunda, sugere títulos “mais típicos da geração posterior, sentimos, e modelados pela revolução de meados dos anos sessenta”.96 “A estranha realidade, porém, é a de que o segundo conjunto de títulos é apenas a escolha original de [Poul] Anderson para essas histórias sombrias e obsessivas”, que foram simplesmente renomeadas pelos editores. Broderick conclui: “Uma aparente transição dos anos cinqüenta para os sessenta e setenta, então, é mais ilusória do que real, uma tática de marketing crasso ajustada a um ambiente de bancas de jornal um pouco menos bárbaro.”97 Retornando à crítica de Priest de que a ficção científica passara a cheirar como a “América mediana e aos seus ideais”, a FC da década de 1950 já fazia uma crítica da classe média e do conservadorismo americano, e já se afastava do modelo da FC Idem. A “grande decadência” aqui é a Grande Depressão. Idem, ibid. 160. 95 Na conferência, ele diz que as naves de 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), “são quase ícones do espaço interior e isto foi uma das boas coisas dêsse filme” (p. 161), e em “Which Way to Inner Space?” ele começa a definir o conceito com o “maior desenvolvimento do futuro imediato terá lugar, não na Lua ou em Marte, mas na Terra, e é o espaço interior, não exterior, que precisa ser explorado. O único planeta verdadeiramente alienígena é a Terra.” (In A User’s Guide to the Millennium, J. G. Ballard. Nova York: Picador USA, 1996, p. 197.) 96 Broderick, Damien. “New Wave and Backwash: 1960-1980”. In The Cambridge Companion to Science Fiction, Edward James & Farah Mendlesohn, eds. Cambridge & Nova York: Cambridge University Press, 2003, pp. 57-58. 97 Idem, ibid. P. 58. Entre os títulos arrolados na primeira lista estão conhecidos romances de Anderson publicados em português, como Guerra dos Homens Alados (War of the Wing-Man; 1958) e Estrelas Inimigas (The Enemy Stars; 1959). Seus títulos originais seriam The Man Who Counts e We Have Fed Our Sea. Essa disparidade entre apresentação e conteúdo (Broderick nota que a prosa de Anderson era às vezes lírica) também se verificava, nas pulp magazines e nas revistas especializadas dos anos cinqüenta, entre ilustrações de capa e a histórias que elas deveriam representar, nas quais freqüentemente faltava a jovem parcamente vestida sendo raptada por um robô ou monstro de olhos de inseto. 93 94 53 campbelliana ou pulp. Um exemplo é a Eu Sou a Lenda (I Am Legend; 1956), de Richard Matheson, no aspecto da debilidade de sua fundamentação científica. 98 O que parece ser mais importante para Matheson é a exploração das reações de um indivíduo em particular, a um contexto totalmente transformado, em que os movimentos dos personagens são contrastados a um cenário humano degradado. Ambientado no futuro próximo, Eu Sou a Lenda99 oferece um tratamento científico do tema do vampiro. Matheson foi pioneiro nessa área, que foi retomada posteriormente até no Brasil, com uma série de histórias escritas por Gerson Lodi-Ribeiro, a partir de 1993. Evoca os leitmotifs do fim do mundo por praga e do “último homem na Terra”. O herói, Robert Neville, vive em princípios de 1976, quando uma guerra atômica levou à mutação de uma bactéria que produz os mortos-vivos, destruindo a civilização como a conhecemos. Neville perdeu a esposa e a filha para a praga, e hoje habita sozinho uma casa de subúrbio protegida por alho e mantida por um gerador. Vive uma vida auto-suficiente, mas toda noite os vampiros, liderados por seu vizinho Ben Cortman, vêm assediá-lo, exigindo que ele saia. As mulheres vampiras lhe exibem sua nudez. Durante o dia, Neville vaga pela cidade, procurando vampiros em seus esconderijos, e os destrói com estacas de madeira. O romance é compacto e econômico tanto na linguagem quanto nos eventos que descreve, talvez havendo aí um aspecto mais pulp. Há flashbacks bem cuidados, também econômicos, que levam o leitor à vida anterior de Neville. Tudo passa pela percepção do personagem, e até certo ponto esse romance é um estudo de sua personalidade — suas ansiedades sexuais de homem solitário, seu refúgio no álcool, sua luta pessoal para entender o fenômeno. O andamento é lento e introspectivo. A complicação mais importante é o breve contato de Neville com uma mulher chamada Ruth, que aparentemente seria alguém imune como ele — mas que é agente de uma terceira força, um grupo de homens e mulheres que possui o bacilo do vampirismo, e que conserva (por uma mutação desse bacilo) a inteligência. O ataque final desse grupo contra ele se dá num momento em que Neville havia se reconciliado com a sua condição, abandonando o alcoolismo e chegando a se afeiçoar ao insistente Cortman. Perpassam a narrativa valores da classe-média em cheque pelo absurdo da situação circundante — refletindo a situação solitária de um indivíduo Damon Knight reclamou exatamente disso, na resenha “Half-Bad Writers”, incluída em seu livro In Search of Wonder (Chicago: Advent Publishing, 1967), pp. 63-64. 99 Também publicado na coleção Argonauta, da Editora Livros do Brasil, de Portugal, como Mundo de Vampiros. 98 54 dotado de certa sensibilidade, cercado e pressionado constantemente por seus vizinhos a assumir um outro comportamento. O romance é de 1954, mas é possível sentir a revolucionária década de 1960 logo na esquina — ou apenas a paranóia social típica do período do pós-guerra e da Guerra Fria.100 Ele nos faz lembrar que a ficção popular já havia reivindicado os subúrbios como geografia literária, antes do pós-modernismo americano. O final, pouco respeitado nas adaptações cinematográficas,101 mostra Neville capturado por esse terceiro grupo, sem oferecer grande resistência nem heroísmo que vá além da resignação. No território dos seus captores, Ruth diz a ele: “Robert, escute-me. Eles pretendem executá-lo. Mesmo que esteja ferido. Têm de fazê-lo. As pessoas ficaram lá fora a noite toda, esperando. Elas têm pavor de você, Robert, elas o detestam. E querem sua vida.”102 Neville então reflete que, para a nova humanidade, ele “era um terrível flagelo que nunca tinham visto, um flagelo ainda pior que a doença com que tinham que conviver”. Numa racionalização que associa um fenômeno natural (a doença) a um entendimento sobrenatural coletivo, Neville compreende que para os outros ele “era um espectro invisível que tinha deixado por evidência de sua existência os corpos sem sangue dos seus entes queridos”, e conclui: “Eu sou a lenda.”103 Conclusão que leva a perguntas interessantes: o que determina o mal é questão relativa, e o herói de um grupo é o monstro de outro? Quando a condição humana se torna minoritária, o próprio ser humano penetrará no território das lendas? Que papel o herói humano assumirá então — o de mito, ponto em torno do qual uma nova comunidade criará sua identidade coletiva? As imagens e situações são também cativantes, daí não apenas o retorno constante dessa obra de Matheson aos cinemas, mas a sua influência sobre autores posteriores dentro do horror e da ficção científica. Celular (Cell; 2006), de Stephen King, é praticamente uma homenagem. Com respeito ao diálogo com a FC habitual, fica claro que o romance não é só mais introspectivo do que a maioria, como não oferece o tipo de resolução na qual o herói teria encontrado a solução para o problema científico colocado. Se assim fosse, Neville 100 Veja Pulp Culture: Hardboiled Fiction and the Cold War, de Woody Haut (Londres: Serpent’s Tail, 1995), para uma análise do sentimento de paranóia na ficção de crime hardboiled do pós-guerra. 101 A última é de 2008, dirigida por Francis Lawrence. É a terceira, sendo que as primeiras foram The Last Man on Earth (1964) e Omega Man (1971). 102 Matheson, Richard. Eu Sou a Lenda. Osasco: Novo Século Editora, 2007, p. 160. 103 Idem, ibid. P. 162. 55 teria descoberto um meio — um soro ou uma droga — de reverter a sociedade ao que era antes. O Incrível Homem que Encolheu (The Shrinking Man), também de Matheson e também de 1956, acompanha o herói Scott Carey por um ano e meio, desde sua exposição a uma substância que o leva a encolher paulatinamente de tamanho. Uma imaginativa alegoria da alienação do homem americano frente às mudanças sociais do seu tempo, o romance narra como Carey, antes um homem auto-suficiente, com carreira e esposa, torna-se cada vez mais dependente da mulher e vê os objetos domésticos de sua casa no subúrbio transformados em obstáculos e ameaças. Adaptado para o cinema no ano seguinte como O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man, dirigido por Jack Arnold), traduz em situações quase surrealistas as angústias masculinas perante uma mulher mais independente, e os limites do “sonho americano” da casa no subúrbio, da mobília e dos aparelhos modernos, de todo um continuum de consumo que se volta contra o herói. A vida como Carey a conhecia não lhe traz mais respostas. Passando por episódio em que reencontra uma revalorização de si, por meio de um conflito darwiniano com o seu ambiente transformado, Carey, tendo abandonado até mesmo a ilusão da sobrevivência do mais forte, vai encontrar respostas transcendentais em reflexões sobre o seu lugar no universo, destituído agora de todos os índices sociais com os quais iniciou a aventura.104 Invasores de Corpos (The Body Snatchers), de Jack Finney, é um romance que apareceu fora das revistas especializadas, serializado na importante Colliers Magazine em 1954. História de invasão alienígena, traz para o foco da crítica social o espaço às vezes mesquinho da cidade interiorana: na pequena Mills Valley, o médico Miles Benell e sua namorada Becky passam a notar uma mudança de comportamento dos moradores. O casal descobre que seus parentes e amigos estão sendo vítimas de seres do espaço, com a capacidade de assumir a forma das pessoas enquanto elas dormem, destruindo o corpo original. A alegoria é dupla: a degeneração e morte da cidade pequena, com a mudança das atitudes dos seus habitantes; a descaracterização do American way pela massificação e pela despersonalização da vida quotidiana — além daquilo que muitos críticos enxergaram como sendo uma exposição do medo da infiltração comunista.105 104 The Shrinking Man foi recentemente incluído no importante volume editado por Gary K. Wolfe, American Science Fiction: Four Classic Novels: 1953-1956 (Nova York: The Library of America, 2012). 105 O romance de Finney teve várias adaptações para o cinema e a televisão, sendo a primeira delas o filme Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers), de 1956, com direção de Don Siegel. 56 De Ray Bradbury (1920-2012), Fahrenheit 451 (1953), enquadra-se na linha das distopias, que apresenta sociedades oprimidas por regimes totalitários, sem saídas fáceis para o ser humano — o contrário das utopias, ou futuros com sociedades livres e positivas. Nós (1920; também visto no Brasil como A Muralha Verde), Admirável Mundo Novo (1938) e 1984 (1949), de Ievguêni Zamiátin, Aldous Huxley e George Orwell, respectivamente, são os títulos mais conhecidos desse subgênero.106 Guy Montag é o protagonista de Bradbury. Na abertura do romance ele acompanha a lavagem estomacal de Mildred, sua esposa, que sofreu uma overdose de barbitúricos ou de sua versão futura. O trabalho de Montag — um “bombeiro” — é o de uma polícia política, que recebe denúncias anônimas, vai à casa do denunciado e lá queima todos os seus livros — um artigo proibido pelo Estado. Montag é um descontente (elemento necessário nas distopias, sem o qual não haveria a identificação com o leitor). Mas o seu descontentamento, inicialmente indefinido, se acende ainda mais quando ele faz amizade com uma garota de 16 anos, Clarisse — personagem que se pode chamar de “bradburyano” pelo seu encanto pela vida e seu interesse pela natureza. O herói passa então a refletir a influência dos “Trancendentalistas da Nova Inglaterra” (Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson são citados) e sua ideologia libertária e de determinação individual, também expressa nos episódios finais. Mais tarde, o leitor descobre que o “desajuste” de Montag não é novidade — ele mostra a sua esposa uma pilha de livros escondidos, um para cada biblioteca por ele incendiada. Se o herói esperava encontrar em Mildred algo da curiosidade natural de Clarissa, ele fracassa. Sua outra opção é buscar quem o ajude a compreender os livros — o Professor Faber, que ele havia surpreendido em atitude suspeita. Faber o equipa com um minicomunicador, e acompanha quando o desesperado Montag tenta ler um livro de poemas para as fúteis amigas de Mildred, reunidas em sua casa para assistir a uma telenovela interativa, quase todas com maridos que haviam partido para a guerra. A indiferença e o modo determinado com que elas se agarram ao seu way of life enquanto o conflito se agrava, lembra a atitude perante a Guerra da Coréia, “a guerra esquecida”, cujos campos sangrentos não deveriam atrapalhar o sonho americano. 106 Fahrenheit 451 foi adaptado por François Truffaut, em 1966. 57 Bradbury cria um mundo futuro que explora o ethos de classe média americana, suburbana, conservadora e alienada que reconhecia à sua volta, nos dourados anos 1950. São enfocados de modo oblíquo o conformismo do pós-guerra, a polarização política da Guerra Fria, o medo do apocalipse nuclear, o poder massificador da televisão (tornada interativa e quase-virtual), a paixão suicida pela velocidade, a telenovela que substitui as relações sociais, e as drogas de uso difundido. Enfim, a narrativa encaminha-se para a conclusão após uma caçada humana envolvendo sabujos mecânicos. A fuga se torna um evento televisionado ao vivo como a escapada de O. J. Simpson pelas estradas da Califórnia. O leitmotif do fogo, presente de várias formas ao longo do livro todo, termina com uma nota positiva na menção da Fênix, a ave mitológica que ressurge das cinzas. Outro exemplo é Flowers for Algernon (1966, mas ampliação de uma noveleta de 1959), de Daniel Keyes e também objeto de várias adaptações. 107 A narrativa acompanha a trajetória de Charlie Gordon, deficiente mental de trinta e poucos anos alçado a gênio por um experimento científico. Mas os efeitos são passageiros, e Charlie perde as suas habilidades intelectuais recém-adquiridas, e volta à condição de deficiente. Os elementos tecnológicos são praticamente inexistentes, o que levou o crítico estruturalista Robert Scholes a dizer que o romance pode ser chamado de “ficção científica mínima”.108 Estruturado como o diário de Charlie, o conto permite ao leitor acompanhar o seu desenvolvimento intelectual artificialmente induzido, no paralelismo entre a prosa inicialmente infantil e desconexa, repleta de erros de ortografia e sintaxe, e que aos poucos se desenvolve sob a forma de exposição clara e uma profunda autoanálise. E, em seguida, o dramático retorno à prosa incerta e incorreta de um homem de idade mental inferior a dez anos. No romance, esse efeito formal se torna mais esgarçado, mas possibilitou ao autor incluir mais comentários sobre as neuroses da sociedade norteamericana da época e realizar uma espécie de psicanálise em torno da rejeição de Charlie por sua mãe (espelhando a sua rejeição social no seio da sociedade americana). Não há em qualquer uma das encarnações desse clássico da ficção científica, nenhum dos elementos ou convenções mais comumente associados ao gênero: alienígenas ou 107 The Two Worlds of Charlie Gordon (1961; telefilme), Charly (1968; filme de cinema), Flowers for Algernon (1969; peça de teatro), Charlie and Algernon (1978; musical de palco), Flowers for Algernon (1991; peça radiofônica), Flowers for Algernon (2000; telefilme), Algernon ni Hanataba wo (2002; peça de teatro japonês), e Des fleurs pour Algernon 2006; telefilme francês), entre outras. 108 Scholes, Robert. Structural Fabulations. Notre Damme: University of Notre Damme, 1975, p. 54. 58 naves espaciais, cenários futuristas (a história é contemporânea) ou paisagens extraterrestres, robôs ou mutantes. Não há nada do aventuresco da pulp fiction, nem do racionalismo e do espírito pioneiro da FC campbelliana. Seu apelo à psicanálise freudiana, por sua vez, antecipa a tendência psicanalisante da New Wave inglesa. Novamente no plano das revistas especializadas e da sua rivalidade comercial e ideológica, o crítico e autor Algis Budrys (1931-2008) localiza em Galaxy Science Fiction (1950-1980) o marco de um novo passo do gênero, e afirma que em 1951 “toda uma nova geração de escritores, apresentando proeminentemente [autores da Galaxy como] Robert Sheckley, Philip K. Dick, William Tenn, James Blish, Cyril Kornbluth e Frederik Pohl estava no seu caminho para criar o que poderia ser chamada de ficção científica Pós-Modernista”.109 Galaxy foi fundada e editada de 1950 a 1961 por Horace L. Gold (1914-1996), e, segundo Isaac Asimov, “enfatizava o lado humano da ficção científica, em contradição à ênfase de Campbell no maquinário e em gadgets”. Formou com The Magazine of Fantasy & Science Fiction, surgida um ano antes, e a Astounding Science Fiction de Campbell, a trindade dominante da FC nas revistas. Gold teria “esperado para começar sua revista até que tivesse uma coleção de histórias que o satisfizesse completamente”, Asimov conta. “O resultado foi que a revista irrompeu no mundo da ficção científica como uma bomba.”110 Diante da nova concorrência, Campbell teria enfraquecido a sua posição, ao acentuar sua propensão para a iconoclastia, segundo Asimov. “Campbell sempre sentiu que a ciência ortodoxa era rígida demais na sua ortodoxia, e que precisava ser sacudida”, afirmou. “Por essa razão, defendia desenvolvimentos excêntricos por questão de princípios.”111 As escolhas de Campbell, porém, foram infelizes e incluíam a Dianética, discos voadores, paranormalidade e outros assuntos obscuros que, como editor, ele desejava ver na Astounding. Vários autores, incomodados, teriam então “buscado refúgio nas outras duas revistas”.112 Contudo, para Asimov, o enfraquecimento da posição de Campbell foi positivo para o gênero: Com três revistas de importância, os escritores tinham um mercado mais amplo, podia experimentar mais livremente, enquanto os leitores triplicaram 109 Budrys, Algis. “What Did 1980 Mean?” In Nebula Winners Sixteen, de Jerry Pournelle, ed. (com John F. Carr). Londres: W. H. Allen, 1983, p. 241. 110 Asimov, Isaac. “Introduction: The Age of the Troika”. In The Mammoth Book of Vintage Science Fiction: Short Novels of the 1950s, editada por Isaac Asimov, Charles G. Waugh & Martin H. Greenberg. Nova York: Carroll & Graf Publishers, 1990, pp. i-ii. 111 Idem, ibid. P. ii. 112 Idem. 59 a quantidade de material de leitura disponível para eles, e também apreciaram uma distinta melhoria na qualidade desse material de leitura.113 O comentário reflete mais do que a crença tipicamente americana de que a concorrência traz a inovação e o avanço da relação do consumidor com o objeto de consumo, mas a mecânica própria da ficção científica, de, como gênero, incorporar a dissensão. Voltarei mais tarde a isso, mas por ora basta registrar uma declaração recente de Michael Moorcock. Agora autor estabelecido e uma lenda nos campos da FC, da fantasia científica e do steampunk, ele não precisa mais de uma retórica eloqüente para a disputa pela prerrogativa cultural, e, sem citar nenhum autor britânico da New Wave nem qualquer escritor experimental do mainstream, lembra que foi primeiro atraído para a FC quando, nas páginas de Galaxy, digamos, [havia] um duro encarar nos olhos da sociedade, encontrando as linhas de fratura, a razão de nos sentirmos agora que vivemos num mundo realmente criado por gente como [Alfred] Bester, Sheckley, Dick, Pohl e Kornbluth. O que eu quis fazer com New Worlds foi trazer esse mesmo olhar duro à ficção contemporânea ou pelo menos a uma ficção que fosse claramente sobre questões contemporâneas. [...] [E hoje,] eu realmente preferiria ler algo na tradição estabelecida por Phil[ip K.] Dick, Harlan Ellison e aqueles escritores da Galaxy que primeiro me atraíram para a FC em primeiro lugar.114 * Christopher Priest, porém, está correto ao afirmar que, “[c]omo conseqüência [da predominância da FC americana], um idioma ortodoxo emergiu: havia sempre um forte senso de narrativa, o personagem central era normalmente um homem branco [...] e geralmente havia uma ameaça ou problema claramente identificável, e nãocontroverso.”115 Grosso-modo, é o que Ballard disse, quando falou no Rio de Janeiro sobre a necessidade de se encontrar uma nova metáfora para o futuro. E Brian Aldiss concorda com esse desgaste do idioma comum ao gênero, quando escreve: [O]s objetos de cena da FC são poucos: naves foguetes, telepatia, robôs, viagem no tempo, outras dimensões, máquinas enormes, alienígenas, guerras futuras. Como moedas, eles se tornam desvalorizados pela circulação excessiva [...]. Isto é crucial para um entendimento dos anos setenta e 113 Idem. Moorcock, Michael. “Steam sans Punk”. Locus—The Magazine of the Science Fiction and Fantasy Field Vol. 65, N.º 3 (September 2010), p. 34. 115 Priest, Christopher. “New Wave”. In Encyclopedia of Science Fiction, Robert Holdstock, ed. Londres: Octopus Books, 1978, p. 164. Tal “idioma” ia muito além das três características alinhavadas, e pressupunha, muitas vezes, um espírito pioneiro, crença na azão e na conquista espacial como “destino manifesto” da humanidade — no que ficou conhecido como “futuro de consenso”. 114 60 oitenta, mas nos cinqüenta, com tantos pontos de venda novos para a FC, os escritores combinavam e recombinavam esses elementos-padrão com uma engenhosidade verdadeiramente bizantina [...] mas havia sinais de que mesmo esses limites estavam sendo alcançados. Na altura dos anos sessenta, os sinais não podiam ser ignorados.116 Em termos de estilo, a prosa era objetiva e transparente, e nisso Priest encontra uma contradição: “A [FC], a literatura que alegava olhar para a frente, de fato era uma forma de ficção que vivia no passado, porque as ortodoxias estabelecidas no passado serviam a ninguém melhor do que serviam aos seus autores.”117 O argumento é claramente modernista, imaginando que o futuro só é acessível à literatura por meio da inovação de linguagem e pelo experimentalismo formal — e ao lamentar que, por servirem primariamente aos membros de uma mesma intertextualidade especializada, as “ortodoxias” da FC não possuíam ressonância fora do gênero — no mainstream, certamente. Indo além, Priest aproxima ideologicamente a FC da Golden Age a certo contexto distópico atribuído à década de 1960: Nos anos sessenta, o homem viajava no espaço, a tecnologia de computação avançava tão rápido que ninguém conseguia acompanhá-la, a poluição e a precipitação radioativa e o industrialismo sem controle eram preocupações constantes; o mundo estava se tornando o tipo de lugar que os escritores de ficção científica da “Golden Age” haviam sonhado como a nova utopia.118 Assim, um quadro presente complicado teria sido antecipado de forma descomplicada pelos autores da Golden Age, e os aspectos distópicos do presente (“a poluição e a precipitação radioativa e o industrialismo sem controle”) confundidos por eles como utópicos; i.e., essa FC seria configuração de uma ideologia perniciosa, em que a razão realiza o papel denunciado pelo pensamento da Escola de Frankfurt, de desumanizador e arregimentador da sociedade.119 Mas, para sublinhar essa visão, Priest precisa, novamente, omitir tendências bastante expressivas da FC da Golden Age e da década de 1950, inclusive contos cautelares, narrativas proto-ambientalistas e 116 Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree: The History of Science Fiction. P. 247. Priest, Christopher. “New Wave”. P. 164. 118 Idem. 119 É a tese central de A Ficção do Tempo: Análise da Narrativa de Science Fiction (Petrópolis: Editora Vozes, 1973), de Muniz Sodré. “Embora gerada pela cultura de massa”, escreveu, “a FC não é uma mera forma degradada de mitos, mas um mito novo em emergência no seio da formação social industrializada” (p. 109; grifo no original). Para Sodré, a FC sustenta a ideologia capitalista, ao apresentar um “sonho” que “deve ser visto como um mito cuja função é fornecer uma essência para o homem contemporâneo”, essência da qual “subentendem-se os produtos alienados do trabalho humano, instaurados pelas relações capitalistas de produção, que são esquecidas pela FC — logo, dadas como eternas” (p. 124). 117 61 condenações de excessos racionalistas presentes até mesmo na pulp fiction de antes (entre 1926 a 1938).120 Certamente, autores essenciais para a FC Golden Age como Clifford D. Simak (1904-1988), Theodore Sturgeon (1918-1985), L. Sprague de Camp (1907-2000) e até mesmo A. E. van Vogt (1912-2000) e Robert A. Heinlein (19071988) diferem, freqüentemente ou essencialmente, da perspectiva denunciada por Priest. Mais do que isso, na visão de David Hartwell, abordando a questão de um ângulo americano, a “assertiva que os escritores britânicos de ficção especulativa fizeram que mais perturbou e ofendeu os crônicos e onívoros dos anos sessenta e posteriores, nos EUA, foi que ‘tudo pode acontecer na ficção especulativa’”. A perda implícita, para Hartwell, é a da “fronteira prática entre a fantasia e a ficção científica, removendo das considerações ativas dos leitores e escritores de FC científica e da possibilidade de uma idéia de ‘se tornar realidade’.” Nisso se nota a FC aquele elemento de plausibilidade adesão de Hartwell à abordagem da ficção científica hard, preocupação ausente entre os autores da New Wave, que “não era apenas anti-Campbell [...]”.121 [A] assertiva reduzia o edifício inteiro de elocuções altamente desenvolvidas e racionalizadas que vieram caracterizar e realçar os protocolos de leitura da FC a uma série de conveniências sem sentido (na pior das hipóteses), ou de qualquer modo, a palavras e frases convenientes, úteis para conferir atmosfera à obra, mas essencialmente sem mais sentido ou significado no contexto, do que quaisquer outras elocuções. Assim os clássicos da FC moderna foram desvalorizados em favor dos “clássicos” instantâneos da New Wave.122 Embora Hartwell também perceba um idioma específico à FC, esse idioma sustenta características mais sofisticadas e importantes — em termos do diálogo do gênero com o desenvolvimento científico, por exemplo — do que a New Wave daria a entender. Nesse sentido, afirma que “os melhores escritores de FC escolhem escrever do modo como o fazem e os melhores dentre eles desenvolvem estilos muito individuais e característicos”, e que existe na verdade “tanto alcance de variedade estilística dentro dos limites da fc quanto há no mainstream da prosa de ficção britânica ou americana 120 Exemplos examinados por mim em Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 no capítulo “A Pulp Era que não Houve” incluem “The Wall” (1934), de Howard W. Graham, Ph.D.; “Tumithak in Shawn” (1933), de Charles R. Tanner; “Alas, All Thinking!” (1935), de Harry Bates; “Past, Present, Future” (1937), de Nat Schachner; “The Man Who Awoke” (1933), de Laurence Manning; e “Sidewise in Time” (1934), de Murray Leinster, entre outros, incluindo alguns romances de Stanton E. Coblentz (1896-1982). 121 Hartwell, David. Age of Wonders. Nova York: Walker and Company, 1984, p. 153. 122 Idem. 62 hoje”.123 Essa variedade teria sido subestimada por décadas, mas Hartwell, ao abordar a polêmica da New Wave, dá mais atenção a esse aspecto. Hartwell também observa que a suposta ruptura com a tradição literária existente por trás desse idioma não poderia ser total, ao notar a influência sobre os escritores da década de 1960, de nomes como Theodore Sturgeon e Alfred Bester (1913-1987): “A geração dos anos sessenta se elevou sobre o ombro de gigantes, e na maior parte surrupiou suas idéias [...]”124 Enfim, em Hartwell a questão de política literária envolvendo a New Wave também se expressa em termos de nacionalidade: [O]s líderes britânicos da New Wave investiram seus consideráveis talentos para a polêmica na negação de que a FC fosse diferente, em qualquer aspecto, da Literatura. Sentiram a necessidade de fazer isso a fim de alcançar o avanço final para dentro da respeitabilidade literária total em seu próprio território. Os EUA, é claro, seguiriam, como freqüentemente seguiam, os ditados do gosto inglês. Ou assim eles pareciam pensar.125 Teoria Pulp Ao longe, ouve-se em Hartwell os ecos da famosa Lei de Sturgeon: “90% da FC é lixo; mas, pensando bem, 90% de tudo é lixo.” Clive Bloom, da Middlex University, na Inglaterra, é mais ousado ao discorrer, em Cult Fiction: Popular Reading and Pulp Theory (1996), sobre dois romances obscuros de redimidos por Sturgeon: D-99 FC, supostamente distantes dos 10% (1962), de H. B. Fyfe (1918-1997); e Phenomena X (1966), de “John E. Muller” (pseudônimo de R. L. Fanthorpe e John S. Glasby): “A definição de tais livros por referência a conceitos de fórmula ou gênero é em si refutada tanto pela peculiaridade dos conteúdos quanto pela estranha direção da narrativa”,126 Bloom escreve, enxergando nos dois “um modo irreprimido e todavia claramente autoconsciente pelo qual fronteiras de gêneros são atravessadas e as assim-chamadas fórmulas são misturadas a fim de produzir enredos híbridos”, de modo que “[f]órmula se torna para esses autores [apenas] um ponto de referência mítico” para se situarem 123 Idem, ibid. P. 154. Idem, ibid. P. 155. 125 Idem, ibid. P. 152. 126 Bloom, Clive. Cult Fiction: Popular Reading and Pulp Theory. Nova York: St. Martin’s Press, 1998 [1996], pp. 29-30. 124 63 dentro de uma mistura de fantasia científica com ficção de detetive e outros gêneros.127 O idioma pulp de FC é reformulado, contaminado por outros idiomas e moldado em um objeto ficcional diferente, demonstrando um leque maior de configurações. Em tal proporção que, na sua visão e em agudo contraste com a posição de Christopher Priest e outros da New Wave, Bloom afirma que “a pulp fiction é uma questão de processo e [...] não há um texto claramente fixado [...] no qual a sua natureza essencial possa ser descrita”, e o “pulp é literatura como processo: não-fixado, ilícito e ‘anônimo’”.128 O idioma contra o qual a New Wave lutava pode ter sido mais heterodoxo do que o imaginado. No mesmo sentido, a pulp fiction de ficção científica não surge apenas como literatura exclusivamente comercial. Logo no seu momento de especialização, quando Gernsback funda Amazing Stories em 1926, ela surge com uma retórica de utilidade social, na preparação dos leitores para o entendimento da ciência e da tecnologia, que seriam a tônica do século ainda jovem. Um argumento que atraiu tanto àqueles ideologicamente vinculados ao empreendedorismo capitalista, quanto aos interessados num socialismo utópico — o caso de jovens membros do clube Futurians como Frederik Pohl, seu colaborador em romances e histórias, C. M. Kornbluth (1923-1958) e os editores Donald A. Wollheim (1914-1990) e Judith Merril129 —, e ainda, ao libertarianismo ou liberalismo clássico — com Robert A. Heinlein, A. E. van Vogt e Gordon R. Dickson (1923-2001). Não obstante, para Priest o propósito da New Wave foi, “se de fato se pode dizer que ela teve um propósito, liberar escritores e leitores das concepções pré-concebidas do idioma das revistas pulp”, quando, para os americanos e ainda segundo Priest, New Wave se tornou apenas uma categoria editorial, “um produto: um ‘tipo’ de história com um rótulo inventado”, enquanto o “processo, que Moorcock e outros haviam encorajado os escritores a explorar, era encontrar uma abordagem para a escrita de ficção especulativa... e esse processo poderia apenas ser compreendido por cada escritor nos seus próprios termos”.130 Desse modo, conciliam-se as características e os resultados posteriores do movimento, com a negação, por parte de muitos nomes associados a ele, de que seriam 127 Idem, ibid. P. 30. Idem, ibid. P. 30. 129 Na fase anterior do desenvolvimento da FC, encontramos em H. G. Wells e Edward Bellamy outros escritores interessados no socialismo; no Brasil, Afonso Schmidt (1890-1964). 130 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 170. 128 64 escritores New Wave. Em conseqüência da polêmica americana da New Wave como rótulo, “a frase ‘New Wave’ se tornou estigmatizada, e ninguém via a vantagem de ser associado a ela. O som dos bons escritores negando que eram da New Wave foi ensurdecedor.”131 Não obstante, nas palavras de Colin Greenland: “Embora eles agora neguem qualquer unanimidade artística, estiveram associados à época, e muito, eu acho, pode ser criticamente inferido a partir daquela associação [...].”132 Essa dinâmica de participação e negação é conhecida, e implica em surfar a onda até que a empresa coletiva esteja relativamente consolidada, e cada participante possa então brilhar sozinho. Nisso, a ênfase quase exculpatória de Priest em cada autor absorvendo o processo questionador da New Wave em seus próprios termos resgata e reposiciona o ethos do escritor burguês contra o ethos alternativo — nunca reconhecido como tal mas apenas como corrupção de uma vocação artística verdadeira — do escritor “pulp” ou “hack”, aquele que escreve para sobreviver ou por ser fã de um gênero, e que visa em primeiro lugar os efeitos e não a suposta iluminação do leitor pela sutileza da escrita. O escritor pulp apóia-se em um “idioma” comum aos da sua classe, mas o escritor burguês, de feição romântica ou boêmia, possuiria dicção única, singularizada em sua expressão da vida ou do espírito da época. O escritor pulp engaja o leitor, enquanto o escritor burguês espera que o leitor venha a ele, após ter de algum modo se qualificado para alcançar a sua sofisticação literária. Um, coloca-se portanto num plano semelhante ao do leitor, enquanto o outro afeta uma dimensão prometéica de quem traz um dado sublime, transcendente, sobre a condição humana ou sobre o espírito do tempo.133 Nesse sentido, e a partir de uma leitura de Pierre Bourdieu, o pensador argentino Néstor García Canclini fornece uma definição do escritor burguês a partir do conceito de classe social: [A]s práticas culturais da burguesia tratam de simular que seus privilégios se justificam por causa de algo mais nobre do que a acumulação material. É uma das consequências de ter dissociado a forma e a função, o belo e o útil, os signos e os bens, o estilo e a eficácia. A burguesia desloca para um sistema conceitual de 131 Idem. Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 14. 133 Lendo Pierre Bourdieu, o pensador argentino Néstor García Canclini fornece uma definição do escritor burguês a partir do conceito de classe social: “as práticas culturais da burguesia tratam de simular que seus privilégios se justificam por causa de algo mais nobre do que a acumulação material. É uma das consequências de ter dissociado a forma e a função, o belo e o útil, os signos e os bens, o estilo e a eficácia. A burguesia desloca para um sistema conceitual de diferenciação e classificação a origem da distância entre as classes. Coloca o motivo da diferenciação social fora do cotidiano, no simbólico e não no econômico. 132 65 diferenciação e classificação a origem da distância entre as classes. Coloca o motivo da diferenciação social fora do cotidiano, no simbólico e não no econômico, no consumo e não na produção. Cria a ilusão de que as desigualdades não se devem àquilo que se tem, mas àquilo que se é. A cultura, a arte e a capacidade de desfrutálas aparecem como “dons” ou qualidades naturais, não como resultado de uma aprendizagem desigual devido à divisão histórica entre as classes. 134 Por sua vez, Clive Bloom acredita que “[f]oi preciso uma arte elevada neurótica para definir [por oposição] uma cultura pulp confiante, mas a cultura pulp, embora ilícita, sempre deseja a respeitabilidade”.135 Essa aparente contradição é descrita por ele como complexa e ambivalente: Pulp é o que recusa a respeitabilidade pela sua própria ânsia pelo respeitável. Pulp é o ilícito vestido como o respeitável, mas ele não é disfarçado, nem esconde a sua verdadeira natureza do consumidor. Assim, ele se torna um tipo de jogo codificado: uma sedução aceita antecipadamente por ambos os lados mas não dita por nenhum deles. O prazer pulp é prazer ilícito. Tal prazer vem de ler pelas razões erradas [a partir do ponto de vista da alta literatura e do que é socialmente aceito] e saber disso.136 [...] É essencial para o pulp permanecer pulp e por isso reter a sua natureza não-assimilável, preservando portanto o frisson de sua paixão secreta [...].137 Para Bloom, em nenhum outro escritor isso é mais evidente do no americano Stephen King. No Brasil, temos uma escala de autores que traduzem a dimensão instável do pulp no país. R. F. Lucchetti, o decano dos nossos escritores pulp, é o consumado hack, consciente de sua situação marginal e determinado a trabalhar dentro da tradição popular do mistério e do horror, firmando abertamente um ethos pulp. “[M]e chamar de escritor é como colocar um elevador num alpendre”, escreveu. “Não combina. Prefiro ficcionista.”138 O exemplo da atitude oposta é André Carneiro, poeta da Geração de 45 além de autor de FC, sempre ansioso por respeitabilidade a ponto de não se apresentar como autor de ficção científica e de hierarquizar o gênero,139 além de povoar seus contos de personagens solitários, de sensibilidades peculiares, enfrentando a pressão 134 Canclini, Néstor García. Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas da Interculturalidade (Diferentes, desiguales y desconectados: Mapas de la interculturalidad ). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009 [2004], p. 81. 135 Bloom, Clive. Cult Fiction. P. 227. 136 Idem, ibid. P. 133. 137 Idem, ibid. P. 134. 138 Lucchetti, R. F. & Ferreira, Jerusa Pires. Rubens Francisco Lucchetti: O Homem de 1000 Livros. São Paulo: Com-Arte, 2008, p. 60. É interessante lembrar que alguns escritores pulp americanos da década de 1930 costumavam chamar a si mesmos de “pulpsters” (p. ex.: “Quantity Production”, de Arthur J. Burks in Pulp Fictioneers, John Locke, ed. Silver Springs: Adventure House, 2004, pp. 76-9) ou “fictioneers”. 139 Veja por exemplo a sua discussão da space opera em seu ensaio pioneiro Introdução ao Estudo da “Science Fiction” (São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1967. Brasópolis, MG: Edgard Guimarães Editor, 1997). 66 normatizadora de uma sociedade medíocre.140 João Guimarães Rosa (1908-1967), por outro lado, começou sua carreira escrevendo ficção pulp,141 e terminou canonizado por um recurso da crítica (a ênfase na sua invenção de linguagem) que o removeu do campo da então desprestigiada tradição regionalista, para o definir como um autor de vanguarda — pós-modernista, de fato. Em contraste a Rosa, temos Paulo Coelho, que escreve fantasia contemporânea ou romances de amor revestidos de suposto conhecimento espiritual, e que se moveu da margem para o mainstream pela contínua reinvenção de si mesmo enquanto imagem pública, travestindo-se sucessivamente de mago, homem santo global e, enfim, imortal da Academia Brasileira de Letras.142 A necessidade de reinventar a FC, de pulp fiction para Literatura, está no cerne dos esforços da New Wave. A retórica da relevância inicial do gênero de promover o interesse pela ciência precisaria ser substituída pela retórica da representação do zeitgeist de uma década rica em mudanças no Ocidente. Não obstante, Clive Bloom acredita que, nas condições de produção e de articulação do pulp com o público leitor, ele se apresenta como “expressão pública vivenciada privadamente. Se a natureza humana é ao mesmo tempo privada e histórica (isto é, sujeita a mudança) o pulp pode ter mais a nos dizer sobre nós mesmos do que a arte.”143 Mais que isso, [o] pulp é o filho do capitalismo e está ligado à aparência das massas [...]. Como tal, ele é a incorporação do capitalismo estetizado, consumerizado e internalizado. Daí que ele é ao mesmo tempo opressor e libertador, manipulação de massa e destino individualista anárquico. O pulp é a nossa experiência diária e natural intensificada: um produto e um canal para um 140 Veja, por exemplo, “O Homem que Hipnotizava” (1963), “O Mapa da Estrada” (2007) e “Um Homem Esquisito” (2007). 141 Veja A Pulp Fiction de Guimarães Rosa (João Pessoa: Marca de Fantasia, Série Veredas N.º 5, 2008), de Braulio Tavares, e Antes das Primeiras Estórias (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2011), coletânea póstuma de Rosa. Ou ainda, minha resenha da coletânea, Zanzalá N.º 2, Vol. 1 (2.º semestre de 2011), http://www.ufjf.br/lefcav/2012/02/29/antes-das-primeiras-estorias-joao-guimaraes-rosa-2/ 142 Na Parte II de Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field, Ken Gelder se dedica a investigar como a ética de trabalho compõe o ethos do escritor de ficção popular, e de como ela é representada na obra de cinco escritores desse campo: John Grishan, Michael Crichton, Jackie Collins, Anne Rice e J. R. R. Tolkien. Nos casos estudados, os autores muitas vezes associam ao assunto dos seus respectivos gêneros uma ética de trabalho e uma prática de promoção e representação de sua obra que transbordam da página e se identificam com o próprio autor. Assim Crichton sendo um homem da indústria do entretenimento (cinema, TV) falando da realidade como entretenimento em O Parque dos Dinossauros (Jurassic Park; 1990), por exemplo, e Jackie Collins, uma celebridade de Hollywood, escrevendo romances sobre celebridades de Hollywood. Ele não discute autores de FC, mas são inúmeros os casos do autor de FC que assume a bandeira da divulgação científica ou que se apresenta como visionário, como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Bruce Sterling, William Gibson, Vernon Vinge e outros — com J. G. Ballard assumindo a mais rara função de comentarista da cultura. No Brasil, Jorge Luiz Calife é o autor que mais se aproxima desse fenômeno, escrevendo FC hard e livros e artigos de divulgação científica. 143 Bloom, Clive. Cult Fiction. P. 14. 67 momento na autoconsciência humana e suas aspirações vividas no banal e no agora. O pulp real é uma recusa da consciência burguesa e de formas burguesas de realismo. É capitalista, anárquico, empresarial e individualista [...].144 [N]ão é nem uma escravidão impensada ao mercado nem uma revolução no avanço do gosto. Ao invés, ele marca um estilo de negociação e de reaproximação [entre autores produtores e leitores consumidores] na experiência democrática de massa.145 E novamente, em seu relacionamento com as formas sancionadas de literatura, Bloom insiste: No mundo marginal da pulp magazine e no paperback descartável está a essência da imaginação dos nossos tempos. Muito mais do que nos artifícios estilísticos do modernismo existe aqui, com verrugas e tudo, o centro do sensorium moderno — nossa vida imaginativa vivida no instante e o contemporâneo tanto quanto o moral e o conservador.146 Para ele, o pulp ou literatura popular é sempre contingente e portanto instável e mutável de acordo com considerações de produção e de consumo popular. Essa instabilidade é marca do mundo moderno, e é exatamente isso, em confronto com as políticas literárias sancionadas pelo establishment, que torna o pulp ilícito e ameaçador, inimigo da ideologia burguesa e dos estados autoritários, por “cheirar a anarquia e inconformismo e a subversão”.147 Ao mesmo tempo, a criação de um cânone literário estável é esforço de “codificar e taxonomizar uma situação anárquica”: “Por isso o cânone foi inteiramente artificial e inteiramente necessário — uma tentativa de recuperar o pessoal e o comunal, a partir do social.” Nisso o “cânone é o determinante em um sistema que permite a autovalidação da hierarquia”148 e um “determinante necessário e lógico [...] da divisão social moderna e hierárquica: ele define conforme exclui”.149 A criação do cânone, em fins do século XIX e em meio ao turbilhão de transformações promovidas pela Revolução Industrial e pela urbanização da Europa, promove o conceito do bom gosto como “sensibilidade capaz de reconhecer a obra clássica contemporânea recém-criada e merecedora de inclusão no panteão”, que se torna “uma preocupação especial [...] e habilidade de entender a importante obra 144 Idem. Idem, ibid. P. 15. 146 Idem, ibid. Pp. 24-25. 147 Idem, ibid. P. 15. 148 Idem, ibid. P. 37. 149 Idem, ibid. P. 150. 145 68 moderna, instantaneamente historicizada nas continuidades do gosto e do comportamento civilizados”.150 Esta era a província daqueles experimentalistas cujo modernismo era avidamente colecionado pelos patronos de palatos consideravelmente instruídos. Eles estavam colecionando, em seu gosto pela vanguarda, a própria natureza do futuro. [...] [E a] validação da obra contemporânea de literatura, por referência à “tradição” e à aparição de um assim-chamado cânone de ficção [...] foi o resultado neurótico desta nova entidade, a obra de arte reconhecível instantaneamente. Regras pareciam agora terem substituído a obra de longevidade e de reconhecimento comum. Uma vez aprendidas, essas regras podiam ser usadas para medir a nova obra literária e colocá-la no cânone ou expulsá-la para o abismo do gosto popular. Desse modo, [...] o novo grande romance era ou eterno em um instante ou efêmero e irrelevante. O gosto era uma arma que tinha um poder estético além da mera estética. Ele se enfiou em todas as áreas da vida pessoal como um marcador de auto-respeito e integridade. [...]151 É importante, neste ponto, o entendimento implícito de que a alta literatura também segue o seu idioma, a sua ortodoxia — que seria, em grande parte, erigida em torno do que a literatura popular não conseguiria — ou não desejava — realizar: “É claro, a arte lixo é sempre conectada à arte séria por aqueles que irão julgar um pelo outro — como a arte elevada, o lixo é em si e sempre reflexo do seu ‘outro’.”152 Se o pulp é sempre mutável e anárquico, e carrega consigo os traços do espírito do tempo embutidos nas suas condições e códigos de escrita e leitura, é curioso especular que, ao tentar reconfigurar o idioma pulp da FC dentro dos códigos de representação da alta literatura — que propõe, nas palavras de Bloom, que “estrutura é significado”, enquanto no pulp o “sentido precede a estrutura”153 —, a New Wave tentava se apropriar da mesma mecânica de determinação e compreensão da “a obra de arte reconhecível instantaneamente”. Nisso, e paradoxalmente, seus proponentes agiam no sentido de domesticar o caráter anárquico e mutável da FC pelo formalismo e experimentalismo modernista. Em sua conclusão, Christopher Priest observa que a “New Wave foi uma tentativa de restaurar um senso de perspectiva à ficção especulativa”, e “nisso ela foi um sucesso”. Mas ele lamenta, em 1978, que 150 Idem, ibid. P. 107. Idem. 152 Idem, ibid. P. 150. 153 Idem. 151 69 [o] idioma da ficção científica tradicional permanece intocado; a mentalidade de gueto ainda existe. O movimento New Wave perdeu impulso em fins dos anos sessenta, tornou-se uma subcategoria dentro da categoria da fc, e a rebelião foi abafada ao ser absorvida pelo sistema. Os motivos por trás da New Wave permanecem tão validos hoje quanto eram em 1964, quando Moorcock assumiu New Worlds. O idioma da ficção científica não está mais fraco do que antes; agora ele simplesmente alargou o seu escopo. [... ]154 Um processo que se encaixa na tensão básica que caracterizaria o pulp, na teoria de Bloom: “É essencial para o pulp permanecer pulp e por isso reter a sua natureza nãoassimilável.” Mesmo que ficção pulp e literatura mainstream tenham se aproximado consideravelmente ao longo dos anos. A literatura popular gira com os golpes que recebe. Ela se adapta, mas sem perder o seu ADN pulp. É o que aconteceu com a New Wave155 — e mais tarde com o Movimento Cyberpunk. É isso um sinal de irredutível conservadorismo literário, como quer o crítico mainstream, ou a manutenção positiva de um caráter anárquico e inconformista, inassimilável e indissociavelmente atado às suas condições de produção no mundo moderno, como quer Bloom? Pode muito bem ser o problema maior e a maior solução para um gênero que tanto necessita da infusão contínua do novo, mas freqüentemente distante da busca pelo novo formalismo. Por outro lado, uma primeira hipótese possível de investigação seria a de que o esforço de Brian McHale de criação de um cânone pós-modernista pode ser, em face da crescente apropriação de imagens e recursos da FC pelo mainstream, um novo esforço do establishment de “codificar e taxonomizar uma situação anárquica” e de fornecer “um sistema que permite a autovalidação da hierarquia”, e um “determinante necessário e lógico [...] da divisão social moderna e hierárquica: ele define conforme exclui”, novamente nas palavras de Clive Bloom. E de que a FC de fato realiza funções semelhantes ao jogo ontológico da ficção pós-modernista, mas exigindo que se restabeleça a divisão entre arte literária “elevada” e “baixa”. De dentro do campo da FC, o movimento New Wave já teria tentado realizar um esforço semelhante. No próximo capítulo, vou investigar como o ADN pulp esteve presente no trabalho da New Wave, mesmo enquanto seus escritores buscavam escrever contra o idioma pulp herdado da linhagem da ficção científica criada nas revistas especializadas. Ao mesmo 154 Priest, Christopher. “New Wave”. P. 173. “O começo dos anos 1960 viu o florescimento da ‘New Wave’ da Inglaterra, que desde então se tornou a onda de todo mundo, assim como cada onda prévia dessas curtas gerações ainda floresce dentro de nós”, nas palavras de Algis Budrys (“What Did 1980 Mean?”, p. 241). 155 70 tempo, aprofundo a descrição das características da FC New Wave a partir dos seus principais precursores e expoentes, e de como elas se aproximam das atitudes gerais do pós-modernismo e de suas soluções formais — sua poética. 71 2. ALDISS, BALLARD, BURROUGHS: PRECURSORES DA NEW WAVE Ao iniciar sua atividade editorial e polemizadora, Michael Moorcock, segundo Brooks Landon em Science Fiction After 1900: From the Steam Man to the Stars (1997), identificou [o americano] William Burroughs como o produtor da “FC pela qual todos temos esperado”, defendendo os experimentos altamente subjetivos, nãolineares, intensamente metafóricos e metonímicos de um escritor então ainda considerado na borda extrema da ficção mainstream. Logo, Moorcock acrescentaria [J. G.] Ballard como um outro modelo principal. 1 Portanto, neste capítulo eu investigo obra de Burroughs, e, mais extensamente, o trabalho dos dois autores mais citados quanto se trata da New Wave, por serem seus principais precursores e expoentes: Brian W. Aldiss e J. G. Ballard. Burroughs: Tocando de Volta o Inconsciente Reprimido Quando Moorcock indicou William S. Burroughs (1914-1997) como modelo, o autor americano já vivia em Londres, “desfrutando da crescente respeitabilidade que parece ser a recompensa ou a maldição de ex-radicais amadurecidos”, como escreveu Robert E. Burkholder.2 Inicialmente associado aos beatniks americanos (ou “Geração Beat”), Burroughs teve não obstante o seu primeiro romance, Junkie (1953), publicado como “trash literature” — uma categoria de paperback originals3 que se tornou popular nas décadas de 1950 e 60. Lee Server, na Encyclopedia of Pulp Writers (2002), indica algumas 1 Landon, Brooks. Science Fiction After 1900: From the Steam Man to the Stars. Londres: Twaine Publishers, 1997, pp. 151-52. 2 Burkholder, Robert E. “William Seward Burroughs”. In Dictionary of Literary Biography Volume 2: American Novelists Since World War I, Jeffrey Helterman & Richard Layman, eds. Detroit: Bruccoli Clark/Gale Research Co./Book Tower, 1978, p. 71. 3 “Paperback”, ou livro de lombada de papel, é como equivalente norte-americano e inglês do “livro de bolso”, como o conhecemos no Brasil. Paperback original designa um livro publicado originalmente como paperback. Nos EUA e Inglaterra, é comum que um livro seja primeiro lançado como hardcover ou capa-dura, para mais tarde ser relançado como paperback em tiragens mais elevadas e tratamento editorial mais popular. Ser um original paperback implica num certo desprezo da crítica. 72 categorias pertencentes à trash literature: sleazy (desleixado), com histórias de conteúdo sexual (heterossexual); gay (lesbianismo, na maior parte);4 e sobre delinqüência juvenil.5 A expressão “trash literature” ou “literatura (do) lixo” sugere ao mesmo tempo o seu estatuto rasteiro perante os árbitros do bom gosto, e o seu conteúdo, voltado para o que o mainstream da sociedade trataria como lixo social. Nesse sentido, Junkie, que em inglês é expressão pejorativa para o viciado em drogas, cabe perfeitamente nessa categoria editorial. A vinculação da trash literature com os beatniks ou beats não se restringe a esse romance de Burroughs: outro beat, Allen Ginsberg (1926-1997), foi quem articulou a publicação de Junkie pela Ace Books, juntamente com um livro de Jack Keroac (19221969), outro grande nome da Geração Beat.6 Burroughs, é claro, já era um dos líderes do grupo de autores que seriam associados à Geração Beat, que ele recebia em seu apartamento em Nova York. Outra conexão entre beatnik e trash literature está presente na figura do escritor de ficção científica Richard E. Geis, que, de acordo com Lee Server, “é prova de que um escritor talentoso pode impor uma estética e marca filosófica distintas mesmo nas mais anônimas tarefas do escritor marreteiro [hack]”.7 Aparentemente abalado por rejeições de seus contos de início de carreira, Geis buscou um nicho nas editoras de paperback originals e revistas sleazy, especializando-se numa mistura incomum de FC e erotismo. Geis vivia na cidade de Venice, Califórnia, nos anos cinqüenta a “capital boêmia beatnik da Costa Oeste”,8 e seu primeiro romance, Like Crazy, Man (1960), foi o primeiro de uma produção de temática semelhante, continuada com Beat Nymph (1966; sob o pseudônimo de “Peggy Swenson”) e Bongo Bum (1966), entre outros. Em 1968, Geis caiu no raio de ação do editor Brian Kirby, da Essex House, “interessado numa 4 Server, Lee. Encyclopedia of Pulp Writers. Nova York: Checkmark Books, 2002, pp. 23, 247, 255-56. os principais nomes dos lesbian pulps listados por Server seriam Ann Bannon (Ann Weldy), Valerie Taylor (Velma Young; 1913-1997) e Tereska Torres (?-?). 5 Idem, ibid. Pp. 42-43, 88-89, 233. Hal Ellson (1910-1994) é o autor mais associado, por Server, ao tema da delinqüência juvenil na trash lit. Outros seriam Wenzell Brown (1912-1981) e Irving Shulman (19131995). 6 A expressão “Geração Beat” foi apresentada por Kerouac em 1948. Para uma discussão da diferença entre os termos beat e beatnik, que eu ignoro aqui, veja o ensaio de Mitchell J. Smith, “Beat, Beatnik, or Diet Beat: The Choice of a New Generation”, disponível em http://proxy.arts.uci.edu/~nideffer/Tvc/section2/08.Tvc.v9.sect2.Smith.html 7 Server, Lee. Encyclopedia of Pulp Writer. P. 114. 8 Idem, ibid. 73 combinação psicodélica de sexo, ficção científica e fantasia, algo com o qual Geis já havia experimentado anos antes”.9 Quando Burroughs chamou a atenção de Moorcock, Ballard e outros proponentes da New Wave, sua carreira já estava muito além da sua estréia literária. O ensaio de Ballard publicado em New Worlds N.º 142 chamou-se “Myth Maker of the Twentieth Century” e centrou-se em três obras do autor, Almoço Nu (Naked Lunch, ou The Naked Lunch; 1959), The Soft Machine (1961), e The Ticket that Explodes (1962), supõe-se que as três formando a recomendação inicial de Ballard aos escritores e leitores de FC. “Para a ficção científica, a lição da obra de Burroughs é clara”, Ballard escreveu nesse ensaio de 1964. Depois de afirmar que o gênero ainda seria dependente de um mesmo conjunto de convenções literárias formado em sua origem, Ballard observa que ainda pior seria a crença da FC de que “ainda é possível escrever relatos de viagens interplanetárias [apelando] ao realismo e não à fantasia”. Para ele, enfim, “quanto mais séria [a FC] tenta ser, quanto mais naturalista, maior o seu fracasso, já que ela carece da autoridade moral e convicção de uma literatura conquistada a partir da experiência”.10 Subentende-se que seria o nonsense, a renúncia ao realismo, e o jogo de palavras em Burroughs que o colocaria como modelo para uma nova ficção científica. Há portanto certa ironia na possibilidade de que Burroughs tenha sido a opção pós-modernista de Ballard e outros autores ingleses de FC justamente porque — considerando que, dentre “os empréstimos pós-modernistas da ficção científica, [pouquíssimos] vieram da parte do repertório que é mais associada, ao menos na mente popular, com o gênero ficção científica, a saber, os seus [leitmotifs] interplanetários”,11 nas palavras de Brian McHale —, apenas Burroughs “fez muito uso desses [leitmotifs]”.12 Ainda McHale: [M]as ele os explora de modo tão extensivo e tão central, quase a ponto de compensar pela negligência dos outros pós-modernistas. Quase toda variante do topos interplanetário pode ser encontrada em algum lugar no oeuvre de Burroughs: a invasão do espaço exterior (e.g. in Nova Express, 1964, e The Ticket That Exploded, 1962), a visita do terráqueo a um planeta alienígena (in The Ticket That Exploded), e assim por diante.13 9 Idem, ibid. P. 115. Ballard, J. G. “Myth Maker of the 20th Century”. In A User’s Guide to the Millennium: Essays and Reviews, J. G. Ballard. Nova York: Picador USA, 1996, p. 129. 11 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 1991 [1987], pp. 65-66. 12 Idem, ibid. P. 66. 13 Idem. 10 74 A ironia se amplia com a constatação: “Burroughs descaradamente se apodera do mais baixo denominador comum das convenções da ficção científica; seus invasores do espaço exterior são monstros de olhos de inseto de estilo pulp [...]”.14 * Almoço Nu é um livro experimental, intencionalmente desconexo e errático, sem estrutura ou enredo. “Sou um instrumento de registro...”, Burroughs escreveu no “Prefácio Atrofiado”, que, ironicamente, aparece no final do livro. “Eu não presumo impor ‘história’ ‘enredo’ ‘continuidade’... Até onde eu seja bem-sucedido no registro Direto de certas áreas do processo psíquico eu posso ter uma função limitada... Não estou aqui para entreter...”15 A renúncia ao enredo é típica da ficção modernista e pós-modernista, mas a passagem é interessante também por sugerir que o seu programa literário busca o registro direto de áreas do processo psíquico. A metáfora da gravação, contudo, é mais explicitada por Burroughs no ensaio publicado na revista Harper’s, “Playback from Eden to Watergate”, no qual o escritor defende, evocando o Escândalo de Watergate (1972), que o ingrediente essencial do escândalo é tocar a gravação (o registro) ao implicado. “Você pode não experimentar vergonha durante defecação e intercurso, mas pode muito bem experimentar vergonha quando [...] gravações são tocadas de volta para uma audiência desaprovadora. A vergonha está no tocar de volta: exposição à desaprovação.”16 De maneira quase mística, Burroughs (se o conteúdo desse ensaio pode ser levado a sério) acreditava que tocar gravações ou fazer fotografias de um lugar que você desaprova força-o a mudar de endereço — ele teria feito isso com um centro de cientologia em Londres. O ensaio termina com a conclamação de que “[m]ilhões de pessoas realizando essa operação básica poderiam anular o sistema de controle que aqueles que estão por trás de Watergate e de Nixon tentam impor”.17 Os processos criativos por trás de Almoço Nu seriam um registro ou gravação psíquica e que a sua leitura, como o tocar de volta ao “alvo”, na expressão de Burroughs, teria um impacto sobre o status quo. Burkhold afirma que nesse romance “Burroughs luta contra a realidade artificial da ordem sujeito-verbo-objeto, ao libertar a 14 Idem. Burroughs, William. Naked Lunch: The Restored Text. Londres: Harper Perennial, 2005, p. 184. “Registro” aqui é minha tradução de “record”, que em vários escritos de Burroughs aparece no sentido de “gravação” de áudio. 16 Burroughs, William. “Playback from Eden to Watergate”. In The Job: Interviews with William S. Burroughs, Daniel Odier, ed. Londres: Penguin Classics, 2008, p. 18. 17 Idem, ibid. P. 20. 15 75 linguagem de sua dependência dessa ordem”. O uso da técnica cut-up, de separar trechos de uma página impressa, cortá-los e rearranjá-los “para criar justaposições semânticas incomuns”,18 buscava efeito semelhante: “A palavra, é claro, é um dos mais poderosos instrumentos de controle conforme exercido pelos jornais e imagens também”, Burroughs declarou. “Agora, se você começa a cortá-las e rearranjá-las, está rompendo o sistema de controle.”19 Para isso, porém, é preciso assumir uma imbricação radical entre a forma do texto e o contexto sócio-político e cultural a que ele remete, imbricação na qual os efeitos do texto equivalem a efeitos no mundo vivido, com a psique do leitor como ponte — um automatismo que a estratégia da arte de vanguarda pressupõe, mas que não está isento de contestação, como veremos no último capítulo. Para efeito da localização de William Burroughs como autor pós-modernista, basta firmar a hipótese de que expor tal conteúdo psíquico plasmado em Almoço Nu e nos outros romances de Burroughs funcionaria como uma exposição da “selvageria básica da natureza humana”,20 um dos aspectos centrais da ficção pós-modernista num mundo que viu as atrocidades da II Guerra Mundial, e exposição dirigida a uma sociedade que mascara ou falha em enxergar essa condição, exposição essa que certamente se liga à penetração dos conceitos psicanalíticos do inconsciente na cultura ocidental, já anteriormente absorvidos pelo modernismo como uma estrutura tripartite: “o ‘id’ sendo o ‘instinto’; o ‘superego’ sendo o mito; o ‘ego’ sendo a tentativa de gerenciar a diferença entre eles”.21 Sem divisão em capítulos — apenas segmentos ou vinhetas com o título em itálico junto à margem direita —, a leitura de Almoço Nu pode ser iniciada, segundo o próprio autor, em qualquer ponto do livro. O que ela oferece é uma reunião de situações anedóticas, fragmentárias, pseudo-antropológicas e violentas de uso de drogas, atos homossexuais, abusos físicos e mentais, estupro, pedofilia, bestialismo e escatologia. Mesmo nos segmentos que dividem o livro, situações saltam de parágrafo a parágrafo — ou de sentença a sentença, marcadas por reticências. “Por não haver nenhuma narrativa consistente, nenhum ponto de vista consistente, e de fato nenhum romance no 18 Burkholder, Robert E. “William Seward Burroughs”. P.73. Burroughs, William. “Journey Through Time-Space”. In The Job: Interviews with William S. Burroughs, Daniel Odier, ed. Londres: Penguin Classics, 2008, p. 33. 20 Chapman, Raymond. “English Literature” (verbete). In The Oxford Companion to the English Language, Tom McArthur, ed. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1992. A expressão aparece na seção “Postmodernism” do verbete. 21 Meisel, Perry. “Psychology”. In A Companion to Modernist Literature and Culture, David Bradshaw & Kevin J. H. Dettmar, eds. Oxford: Wiley-Blackwell, 2008, p. 86. 19 76 sentido tradicional, é preciso confiar em pistas para se orientar no mundo de pesadelo de Almoço Nu”, Robert Burkholder escreveu.22 Certo humor negro paira nesses segmentos que foram chamados por Burroughs de “routines” — palavra que designa um número em um espetáculo de humor ou de variedades. Mas seu texto é uma performance lingüística, compondo aquilo que Brian McHale chamou de “paisagem ontológica”23 na busca pela representação da “condição pósmodernista: uma paisagem anárquica de mundos no plural”.24 McHale dá ênfase a esse constituinte da sua poética do pós-modernismo, a permeabilidade da paisagem ontológica “por realidades secundárias”,25 epitomizada pelo que ele chama de “zona” (a partir da expressão de vários escritores pós-modernistas que trabalham com a construção de um “espaço heterotópico”) — local ou localização diverso do normal: A zona, ou interzona, de Burroughs é uma estrutura vasta e decrépita, na qual todos os estilos arquitetônicos do mundo estão fundidos e todas as suas raças e culturas misturam-se, a apoteose da cidade-favela do Terceiro Mundo. Às vezes ela é localizada na América Latina ou África do Norte, às vezes (como em The Ticket that Exploded, 1962) em outro planeta, às vezes (como em Cities of the Red Night, 1981) em uma civilização perdida do passado distante. 26 No meio de suas muitas ocorrências do grotesco, Almoço Nu se apropria de diversos discursos científicos: antropológicos, biológicos27 e históricos, produzindo um estranho continuum pseudo-erudito (ainda que muitas vezes com base em pesquisa feita por Burroughs em uma biblioteca médica de Paris),28 que é parte do seu espaço heterotópico, fundido a um trabalho ainda mais ostensivamente pseudo-erudito, às vezes de jocosidade evidente, de exposição de um jargão das ruas no que se refere às drogas. Esses comentários aparecem muitas vezes entre parênteses — ainda que se tornando menos freqüente na segunda metade do livro —, interrompendo a situação enfocada, e 22 Burkholder, Robert E. “William Seward Burroughs”. P.72. McHale, Brian. Postmodernist Fiction. P. 39. 24 Idem, ibid. P. 37. 25 No capítulo “Some Ontologies of Fiction” (p. 26), McHale fornece uma genealogia ou galeria de conceitos em torno da ficção como agente produtor de uma visão de realidade, incluindo “heterocosmo”; a analogia entre o autor e Deus; as idéias do pensador polonês Roman Ingarten; aquilo que o próprio McHale chama de “mundos possíveis” e que Umberto Eco chama de “submundos” (subworlds) e Thomas Pavel de “domínios narrativos”; o conceito de “paisagens ontológicas” (que parece ser seu termo preferido) de Pavel; e o de construção social da realidade, de Peter L. Borges & Thomas Luckmann. 26 Idem, ibid. P. 44. Tanto a paisagem de outro planeta quanto a cidade perdida são imagens consagradas da ficção científica. 27 Burroughs estudou antropologia em Harvard e medicina em Viena. 28 Miles, Barry & Grauerholz, James. “Editor’s Note”. In Naked Lunch: The Restored Text., William Burroughs. P. 239. 23 77 convidando o leitor a, mais uma vez, não tomar essa leitura como a de um romance normal. “ISTO NÃO É UM ROMANCE”, Burroughs escreveu em missiva de 1960.29 Nesse sentido, personagens como O Vigilante, Lee, o Agente (“William Lee”, pseudônimo que Burroughs usou em seu primeiro romance, Junkie), o Dr. Benway, Hassan O’Leary, O Marinheiro, O Exterminador, Andrew Keiff e outros, compõem um quadro de humanidade corrompida. Lee, como alter ego de Burroughs, parece às vezes sustentar um ilusório fio da meada. Sua trajetória envolve a fuga dos Estados Unidos para o México, e de lá para espaços ficcionais como Freeland e a cidade imaginária de Interzone30 — inspirada, dizem os especialistas, em Tânger, no Estreito de Gibraltar, onde Burroughs se estabeleceu em 1953 para fugir de problemas legais, escrever, perseguir garotos e consumir heroína (não necessariamente nessa ordem). Ele antes estivera no México e na América do Sul, atrás de interesses semelhantes (entre eles, experiências com alucinógenos amazônicos). Para Burkholder, nesse romance Burroughs cria “uma parábola da luta do homem para libertar-se da vida condicionada impingida ao homem moderno”.31 Burroughs e a Ficção Pulp Na geografia terceiro-mundista criada por Burroughs, o leitor se depara com a intrusão de elementos fantásticos e de ficção científica. A routine sobre Bradley the Buyer (“o Comprador”) empresta situações da FC em que, assim como em The Shrinking Man, um homem se transforma em monstro ou mutante pelo contato com alguma substância química ou radioativa. Neste caso, é a droga no sistema dos viciados. Ele fica chapado esfregando-se nos corpos dos viciados, e ao ser confrontado por seus superiores, revela o poder de absorver pessoas como o monstro alienígena do filme de Irvin S. Yeaworth, Jr., A Bolha Assassina (The Blob; 1958): O Comprador espalha o terror por toda a indústria. Viciados e agentes desaparecem. Como um morcego vampiro ele solta um eflúvio narcótico, uma 29 Burroughs, William. “Letter to Irving Rosenthal”. In Naked Lunch: The Restored Text. P. 249. A cidade imaginária deu o título da mais importante revista inglesa de ficção científica em atividade: Interzone, criada em 1984 por John Clute, Alan Dorey, Malcolm Edwards, Colin Greenland, Graham James, Roz Kaveney, Simon Ounsley e David Pringle. Nova Express (1964), um romance de Burroughs, deu nome de um importante fanzine criado por Lawrence Person. 31 Burkholder, Robert E. “William Seward Burroughs”. P.72. 30 78 bruma verde e úmida que anestesia as suas vítimas e as torna indefesas à sua presença envolvente. [...] Finalmente ele é apanhado no ato de digerir o Comissário de Narcóticos e destruído com um lança-chamas — a corte de inquérito decidiu que tais meios foram justificados em razão do Comprador ter perdido a sua cidadania humana e ser, por conseqüência, uma criatura sem espécie e uma ameaça à indústria de narcóticos em todos os níveis.32 Na routine acerca dos “mugwumps”, esses seres são descritos com os contornos de seres alienígenas torturadores de garotinhos, e capazes de exalar substâncias viciantes e por isso são perseguidos por uma “Dream Police” que “se desintegra em glóbulos de hectoplasma”.33 E o ensandecido Dr. Benway viaja no tempo com a Sociedade Agouti para um de seus “ritos indizíveis”, já que afirma ter participado de uma “Fiesta Chimú”, um povo pré-colombiano do Peru? De qualquer maneira, os hábitos de violência e necrofilia atribuídos pelo narrador a esse povo parecem ir além do registro histórico. Em outros trechos, o livro trata de recondicionamentos psicológicos e de “recarregadores osmóticos”, “burocracias telepáticas” e outras geringonças e processos que remetem à ficção científica. E de modo geral, a paisagem ontológica que Almoço Nu constrói é distópica — um cenário de opressão, vigilância do indivíduo pelo Estado (a expressão “Estado policial” é repetida), reconstrução de personalidade e ausência de sentido. A última vinheta quase se sustenta como um conto, e mostra Lee, o Agente, escapando a tiros de dois policiais. A linguagem é hard-boiled e o experimentalismo é mais discreto. Ao final, porém, Lee faz um telefonema para a central de polícia e descobre que os dois policiais, chamados Hauser e O’Brien, nunca trabalharam na central. “No táxi eu me dei conta do que aconteceu...”, Lee reflete. “Eu havia sido fechado do espaço-tempo, assim como o ânus de uma enguia se fecha quando ela pára de comer a caminho do Sargasso...”34 Algo que parece saído de um romance de Philip K. Dick (1928-1982), como O Caçador de Andróides (Do Androids Dream of Electric Sheep?; 1968). Na routine “lazarus go home” [sic] há uma citação que remete a ainda outra tradição pulp: “[...] Veja artigo do Dr. Nils Larsen, M.D., ‘The Men with the Deadly Dream’, no Saturday Evening Post de 3 de dezembro de 1955. Também o artigo de Erle Stanley Gardner para a revista True. [...]”35 Uma busca na Internet sugere que tais artigos nunca existiram, mas a citação é interessante especialmente por citar juntas essas duas publicações tão díspares. 32 Burroughs, William. Naked Lunch: The Restored Text. Londres: Harper Perennial, 2005, p. 17. Idem, ibid. P. 46. 34 Idem, ibid. P. 181. 35 Idem, ibid. P. 61. 33 79 O Saturday Evening Post foi uma respeitável revista americana de ficção e de assuntos gerais, surgida em 1821 e ainda em circulação (com um hiato entre 1969 e 1971), tendo alcançado vendas de três milhões de exemplares por edição. No outro extremo, True, fundada em 1937 por Ralph Daigh, fez parte de um movimento editorial americano de revistas de aventura voltadas para o público masculino, conhecidas como “the sweats”,36 revistas pulp tardias, surgidas num momento em que o tipo de diversão oferecido pelas revistas pulp tradicionais — aventura, ação física, mulheres fatais, o bizarro e o sobrenatural — já não fazia mais sentido como literatura largamente distribuída. Os sweats tentavam atualizar esses apelos revestindo tudo com uma aura de “casos verídicos”, “histórias verdadeiras” de sexualidade estranha, “aventuras reais” na África ou nos Mares do Sul, “relatos verídicos” de guerra. A maior parte era mesmo ficcional, e em muitos casos histórias antes vistas nos pulps como ficção reapareciam nos sweats como fato. Para Steven Heller, em Men’s Adventure Magazines (2004), as revistas de aventura para homens foram um fenômeno do pós-guerra (o auge, segundo ele, teria sido no final da década de 1950). Elas refletiriam “um aspecto muito real da cultura masculina da sua época”, segundo ele. O lado escuro da “maior das gerações da América”, os garotos transformados em homens, que venceram a II Guerra Mundial. Os heróis que venceram Hitler e Hiroito voltaram para casa para um período de difícil reajuste... Muitos foram da sua corajosa batalha para salvar a democracia para o desemprego ou serviços repetitivos de assalariados no setor de manufatura ou de serviços. Horrível como foi a guerra, para muitos ela seria a sua maior aventura.37 Ainda segundo Heller, havia também “um espaço entre o que os veteranos tinham visto e o que a imprensa altamente censurada da América (que proibia fotos de americanos mortos) havia reportado.” Homens que havia passado pelo inferno no campo de batalha, retornavam ao convívio de familiares e amigos que conheciam 36 De “suor” em inglês, porque as capas costumavam apresentar em profusão homens e mulheres suando diante de alguma ameaça, fossem animais selvagens, ninfomaníacas assassinas ou torturadores nazistas. 37 Heller, Steven. “Blood, Sweat, and Tits: A History of Men’s Adventure Magazines”. In Men’s Adventure Magazine, Max Allan Collins & George Hagenauer. Böhn: Taschen, 2004, p. 8. Na novela “Aluno Inteligente” (“Apt Pupil”), de Stephen King (no livro Quatro Estações; 1984), o garoto Todd Bowden encontra sweats do pai de um amigo. Ele toma conhecimento das atrocidades nazistas, e a estimativa de seis milhões de judeus mortos. “E pensou: Alguém fez uma besteira aqui, alguém acrescentou um ou dois zeros, isso é mais que o dobro da população de Los Angeles! Mas depois, em outra revista (a capa dessa mostrava uma mulher acorrentada numa parede enquanto um homem num uniforme nazista aproximava-se dela com um ferro em brasa na mão e um sorriso largo no rosto), viu novamente: 6.000.000.” (P. 115). O contato com essas revistas despertam nele um fascínio pelas atrocidades, e a reconhecer, na sua vizinhança, um carrasco nazista vivendo ali incógnito: Kurt Dussander. A fascinação mórbida o leva a se relacionar desastrosamente com Dussander. 80 apenas a versão editada e embelezada da guerra. “As revistas de aventura para homens falavam a sua língua”, afirma Heller, enquanto que, “para os homens que não serviram nas forças armadas, as revistas forneciam os meios vicários de experimentar o combate que eles haviam perdido...”38 Tais publicações jogavam ainda com as mudanças de comportamento nos EUA: uma sexualidade mais aberta, aprendida pelos soldados na Europa, a decadência dos grandes centros urbanos, enquanto proliferavam os novos subúrbios, as tensões da Guerra Fria e do macartismo. Seu ápice parece ter sido o final da década de 1950 (com 130 títulos aparecendo simultaneamente) e a primeira metade da década de 1960, quando também no campo da literatura popular florescia uma nova classe de ficção hard-boiled, expondo as fissuras no tecido social da América vitoriosa, próspera e aparentemente ameaçada apenas por fatores externos como a “Ameaça Comunista”. Autores que mais tarde adquiriram algum renome, escreveram para os sweats — e levaram alguns dos seus elementos mais sensacionalista também para a sua ficção: Mickey Spillane, Martin Cruz Smith, Bruce Jay Friedman, Elmore Leonard, Irving Wallace, Jim Thompson, Ray Bradbury, Robert Silverberg, Robert Bloch, Nelson Algren, Harry Harrison e Stan Lee.39 Interessantemente, o sweat Man’s Wildcat Adventures publicou, em seu primeiro número (junho de 1959), um excerto de Junkie, de Burroughs.40 De modo semelhante, todas as experiências realizadas em laboratórios e institutos obscuros descritos em Almoço Nu recuperam as figuras do cientista louco e do médico sádico — encarnado particularmente no Dr. Benway, chamado por J. G. Ballard de “o mais corrupto e encantador médico na literatura do século XX”41 — que apareceram em tantas capas de revistas pulp do tipo “weird menace”, ramo do horror e da ficção de crime em que belas mulheres eram constantemente ameaçadas de maneira “indizível” 38 Idem. No Brasil do final da década de 1940 até os anos setenta verifica-se parte desse mesmo movimento, começando com o best-seller Giselle: A Espiã Nua que Abalou Paris, publicado em partes Diário da Noite como “memórias” de uma agente da resistência francesa. Publicado em livro em 1952, entrou para o catálogo da Editora Monterrey, do Rio de Janeiro, em 1964. Mais tarde, daria origem à popular série lançada ZZ7, protagonizada por Brigitte Montfort, uma espiã da CIA que realiza missões por todo o mundo (no Brasil inclusive). ZZ7 foi desenvolvida por vários autores sob o pseudônimo de “Lou Carrigan”; dentre eles o espanhol Antonio Vera Ramírez. 39 Collins, Max Allan & Hagenauer, George. Men’s Adventure Magazine. Böhn: Taschen, 2004, pp.50607. A seção em que são listados chama-se “The Writer”. 40 O blog Men’s Adventure Magazines afirma que a revista (que logo passou a chamar-se apenas Wildcat Adventures) durou de 1959 a 1964, cinco anos de publicação bimestral pela Candar Publishing: http://www.menspulpmags.com/2009/11/wildcat-adventures-part-ii-william.html 41 Ballard, J. G. “Introduction”. In Naked Lunch: The Restored Text, William Burroughs. Londres: Harper Perennial, 2005, p. vii. 81 (mas aludida nas capas) em revistas das décadas de 1930 e 40 como Dime Mystery (criada em 1933), Terror Tales (em 1934) e Thrilling Mystery. Essa figura era tão popular que entrou em um dos episódios mais deslocados da harmonia geral do segundo romance de Raymond Chandler (1888-1959), Farewell, My Lovely (1940), envolvendo o Dr. Sonderborg e suas “instalações”, onde o detetive Philip Marlowe vai parar depois de atingido na cabeça por um policial corrupto. Nas garras de Sonderborg, ele é dopado mas consegue escapar pondo a nocaute um capanga do médico.42 O laboratório ou hospital em que acontecem experimentos bizarros tornou-se uma das situações stock da New Wave, expressando suas suspeitas quanto ao saber oficial e operando como ambientação preferencial para o conceito de inner space, no qual o espaço físico age sobre a psique e vice-versa. Outro aspecto que deve ser evidente é o fato de que, como Clive Bloom escreveu em Bestsellers: Popular Fiction Since 1900 (2002), em fins da década de 1960, a fronteira entre “pulp, entretenimento comercial e literatura de vanguarda logo se tornava embaçada”. “Os editores pulp se deram conta de eu o packaging era tudo, e que muitos escritores de vanguarda eram, nos seus termos, sensacionalistas e pornográficos.” 43 No caso específico de William Burroughs, logo a editora Penguin “estava publicando [o seu] Junky [em 1977], embora ele já estivesse circulando por mais de vinte anos, [...]” enquanto Dead Fingers Talk, de Burroughs, que havia sido publicado originalmente pelo empreendedor de vanguarda John Calder em 1963, foi revivido como um paperback da Star em 1977 com uma capa pulp sensacionalista exibindo uma mão sangrenta e uma seringa de heroína — e citando ansiosamente o comentário do [jornal] The Guardian de que o livro era um “kit de obscenidade do tipo faça-você-mesmo”.44 Ainda nessa aproximação entre pulp e avant-garde, a importação de imagens, situações e recursos da ficção pulp por Burroughs articula-se com a tendência geral da literatura pós-modernista de misturar ou aproximar a alta cultura (ou vanguarda estética, no caso de Burroughs) à cultura baixa ou popular — noção canônica do pósmodernismo americano.45 Brian McHale realça, nesse sentido, que “um dos aspectos 42 Chandler, Raymond. Farewell, my Lovely. Londres: Penguin Books, s.d. [1940], pp. 144-60. Capítulos de 25 a 28. 43 Bloom, Clive. Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. Basingstoke & Nova York: Palgrave Macmillan, 2002, p. 69. 44 Idem. 45 Veja, por exemplo, a seção “Popular Culture and High Culture Colide”, in Postmodern American Fiction: A Norton Anthology, Paula Geyn, Fred E. Lesbron & Andrew Levy, eds. Nova York: W. W. Norton & Company, 1998, pp. 194-289. “[P]oucas transições estéticas marcam mais completamente a passagem do modernismo para o pós-modernismo do que a noção de que a cultura ‘séria’ não se define 82 dessa paisagem ontológica é a sua permeação por realidades secundárias”, aqui no sentido mesmo do mundo secundário da criação literária, “especialmente pelas ficções da mídia de massa”.46 Ao que pese, contudo, o fato de que a paisagem ontológica construída por Burroughs, de maneira característica do pós-modernismo, “realizar-se nem tanto no nível do seu conteúdo, que é com freqüência manifestadamente i- ou antirealista, quanto no nível da forma”, nas palavras de McHale sobre a tendência geral do pós-modernismo americano,47 sua construção da interzona heterotópica é antes de tudo lingüística. William S. Burroughs interessou os autores da New Wave inglesa e do cyberpunk americano não apenas pelo seu uso inovador e vanguardista das imagens da FC para, supostamente, representar as descontinuidades de um mundo que não correspondia mais à visão do que era a sociedade moderna nas décadas de 1930, 40 e 50, mas também, pela sexualidade explícita e transgressora. E, como veremos abaixo, pela saída dos seus experimentos literários — acidentados e provavelmente inverificáveis — para o campo da psicologia. Brian W. Aldiss Invocar Aldiss e Ballard como modelos leva a outra reflexão sobre a New Wave: sua disposição de escrever contra a atitude mais otimista e heróica da Golden Age da FC, capitaneada pelo editor (e antes autor) John W. Campbell, Jr. (1910-1971), particularmente nas páginas da revista Astounding Science Fiction. Nascido em 1925, Brian W. Aldiss serviu em Burma e Sumatra em 1943, durante a II Guerra Mundial. Desmobilizado em 1958, foi livreiro em Oxford, e seu primeiro livro contra (e acima de) a cultura popular, mas como parte de uma única cultura multíplice onde o ‘sério’ troca a maior parte (senão todos) os seus privilégios modernistas pelas possibilidades artísticas inerentes à combinação inovadora de gêneros e formas.” (P. 193) Embora outros observadores (como B. R. Myers), sustentarão que divisões de política literária entre alta literatura e ficção de gênero se mantiveram, com o pós-modernismo. Linda Hutcheon, em A Poetic of Postmodernism: History, Theory, Fiction (Nova York & Londres: Routledge, 1988), atribui essa tese a Leslie Fiedler (no ensaio “Cross the Border – Close the Gap: Post-modernism”; 1975), e afirma que o pós-modernismo aproxima os dois campos pela “ironização os dois” (p. 44). 46 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. P. 38. Sobre “mundo secundário”, veja The Encyclopedia of Fantasy, John Clute & John Grant, eds. Nova York: St Martin’s Press, 1.ª edição, maio de 1997, p. 847. A expressão “mundo secundário” foi cunhada por J. R. R. Tolkien (1892-1973) no ensaio (“On Fairy Tales”; 1947), disponível em português em Sobre Histórias de Fadas (Tree and Leaf). São Paulo: Conrad Editora, 2006 [1964], pp. 9-89. Tradução de Ronald Kyrmse. 47 Idem. 83 publicado, o romance mainstream The Brightfount Diaries, lançado pela Faber and Faber em 1955 e escrito sob a forma de diário, reflete essa experiência. O romance obteve certo sucesso, mas no mesmo ano Aldiss venceu um concurso de contos promovido pelo jornal The Observer, que pedia uma história ambientada em 2500: o conto “Not for an Age”. Antes disso, porém, ele já havia publicado ficção científica com “Criminal Records” (1954), conto visto na revista inglesa Science Fantasy (1950 a 1966). A relação positiva com a Faber and Faber levou à transição tranqüila do mainstream à FC, com a coletânea de histórias Space, Time and Nathaniel (1957). Sua novela “The Saliva Tree” (1965) recebeu o Prêmio Nebula, e a coletânea The Moment of Eclipse (1971), o British Science Fiction Award. Mais tarde ele receberia o John W. Campbell Memorial Award pelo romance Helliconia Spring (1982), que, junto com Helliconia Summer (1983) e Helliconia Winter (1985), forma uma trilogia considerada clássica pelo eminente crítico John Clute.48 Desde cedo em sua carreira, dedicou-se também à organização de antologias e ao ensaio. Sua contribuição à literatura inglesa foi reconhecida em 2005 com o título de Oficial do Império Britânico, conferido pela rainha Elizabeth II. O primeiro romance de FC de Aldiss, Nave Mundo (Non-Stop; 1958), é ambientado em uma nave de gerações.49 Aldiss o teria escrito após tomar contato com uma seqüência de duas histórias escritas por Robert A. Heinlein, “Universe” (1941) e “Common Sense” (1941; posteriormente reunidas no livro Orphans of the Sky, de 1963). Heinlein foi o grande nome da Golden Age, e Isaac Asimov o chamou de uma das “novas” na evolução do gênero, nas revistas especializadas americanas.50 Achando a idéia da nave de gerações mal aproveitada por Heinlein, Aldiss resolveu fazer melhor. “Onde Heinlein mostra as condições estimulando o heroísmo”, Colin Greenland observou, “Aldiss objeta no sentido de que elas mais provavelmente exporiam as 48 Clute, John. Science Fiction: The Illustrated Encyclopedia. Londres: Dorling Kindersley, 1995, p.232. A seção do livro em que o comentário aparece se chama “Classics of the 1980s”. 49 Uma nave que viaja no espaço em velocidade mais lenta do que a da luz, demandando décadas ou gerações para alcançar outra estrela. Dentro do enorme veículo, os tripulantes vivem como em um ecossistema artificial, e apenas seus descendentes irão chegar ao destino. 50 Asimov, Isaac. No Mundo da Ficção Científica (Asimov on Science Fiction). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, p. 269. A “nova” é uma estrela que explode, com brilho ofuscante; metáfora para autores que irromperam nas páginas das revistas como se fossem “uma nova, conquistando de imediato a imaginação de seus leitores, modificando a natureza da ficção científica e convertendo em imitadores todos os demais autores” (pp. 267-68). Heinlein é chamado por ele de “a terceira nova” (269); as duas primeiras seriam E. E. “Doc” Smith e Stanley G. Weinbaum (de quem tratei em Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950). 84 fragilidades humanas”.51 David Pringle & John Clute, em The Encyclopedia of Science Fiction (1993), afirmam que o resultado é um clássico do gênero.52 Que Aldiss quisesse escrever em reação a, e na tentativa de superar, Heinlein, é em si prefigurador das futuras atitudes da New Wave, já que traz embutido o desejo de superar a Golden Age americana. Aldiss e a Psicanálise Nave Mundo divide-se em quatro partes: “Quarters”, “Deadways”, “Forwards” e “The Big Something”, termos tomados da “geografia” da nave gigante. Abre com Roy Complain, o personagem principal, perdendo sua mulher, Gwenny, durante uma caçada. Castigado por sua comunidade — descrita em termos de uma cruel Idade das Trevas —, ele se une ao picaresco padre Henry Marapper e a um grupo de três outros homens — Ern Roffery, Wantage, e Bob Fermour — para tentar encontrar a sala de comando da nave, pois Marapper teve acesso às plantas do aparelho. Atravessam trechos em ruínas, repletos de mosquitos e de vegetais que crescem fora de controle (as “ponds”). A sociedade em que vivem é violenta e esquálida, com um culto em que as pessoas se cumprimentam com uma dizendo “expansão do seu ego” e a outra respondendo “às suas custas” — reflexão do autor sobre o comportamento social humano, a partir da observação de animais em confinamento extremo. Seja sexual ou violentamente, as pessoas não se furtam a obedecer ao mandamento de que não devem reprimir seus impulsos, o que remete, segundo o psicanalista junguiano Cláudio Paixão Anastácio de Paula, à teoria de Sigmund Freud (1856-1939) sobre o afeto, na qual “só o representante ideativo da pulsão é recalcado, enquanto o afeto, por seu lado, não o é”.53 A expansão do ego anunciada nas circunstâncias sociais da nave de gerações sugere uma sociedade em que 51 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983, p. 72. 52 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. P 11. Essa mesma entrada da enciclopédia contém a informação de que Aldiss estaria escrevendo em diálogo com Heinlein. No ensaio “New Worlds and SF Horizons of the Sixties”, Aldiss observa que a edição popular (em paperback) de Nave Mundo saiu na Inglaterra apenas em 1960: “Havia sido um batalha encontrar uma editora que o aceitasse, apesar da respeitabilidade das edições capa-dura anteriores.” (In The Shape of Further Things, Brian Aldiss. Londres: Corgi Books, 1974, p. 133). 53 De Paula, Cláudio Paixão Anastácio. Informação pessoal, 20 de junho de 2008. 85 não seria “necessário” segurar (ou melhor, não se criassem mecanismos para segurar; i.e., super-ego; ou, ainda, uma sociedade em que as pessoas fantasiassem ou mesmo racionalizassem que não precisassem segurar) as pulsões e elas fossem saciadas às custas dos outros. Essas expressões também lembram uma idéia de Freud, à qual ele se refere como “alteração de ego”. Trata-se de uma espécie de mecanismo de defesa [no qual] o indivíduo cria ou modela um comportamento em que passa a substituir o perigo inconsciente original por outro, distanciando-se de um conflito insuportável.54 Tal idéia parece condizente com uma sociedade transformada por gerações que se afastaram dos objetivos iniciais da tripulação da espaçonave, na medida em que “essa distância acaba criando uma modificação no ego, um corpo estranho dentro dele, uma nova forma de se posicionar (ou se comportar), com motivações próprias”, conforme Anastácio de Paula observa. “Esse novo comportamento pode se tornar repetitivo, e permanecer como uma espécie de deformação no ego.”55 Os habitantes dos Quarters (alojamentos) não sabem que estão em uma espaçonave, e que muitos elementos técnicos se tornaram lendas ou expressões idiomáticas: eles não dizem, por exemplo, “go to hell” (vá para o inferno), mas “go to hull” (vá para o casco). Trata-se, portanto, de uma sociedade degradada — tema comum na FC dos anos 1950 e 60 (com a possibilidade da guerra atômica logo ali...) — seja em termos tecnológicos, sociais ou psicossociais. Esses “heróis” (anti-heróis, de certo) que partem em uma quest estão perfeitamente integrados à mentalidade do seu lugar — também são vis e mesquinhos (ao contrário dos heróis em geral racionalistas, altruístas e galantes da Golden Age). Em “Deadways”,56 eles se envolvem com ratos semi-inteligentes que também habitam a nave, e com os gigantes, seres antes relegados ao terreno do mito. O seu número é diminuído até que cheguem a “Forwards”, a proa da nave, onde existe outra sociedade, um pouco mais avançada, mas também pronta a usar de métodos violentos como tortura e assassinato. Apenas Complain, Marapper e Fermour chegam a essa seção da nave, onde são brutalmente interrogados por uma bela mulher chamada Laur Vyann, por quem Complain se sente imediatamente atraído. Vyann e seu superior, Scoyt, determinam que ele lhes pode ser útil, ao mesmo tempo em que demonstram tolerância para com Marapper. O interesse amoroso, nesta altura da narrativa, destoa da crueza e da violência casual das relações humanas descritas até esse ponto, e soa como situação 54 Idem. Idem. 56 Trocadilho com gangways, “passagens” ou “portalôs” em um navio, e “morte”. 55 86 stock, em que o “mocinho” encontra a “mocinha”. Mas é por meio do olhar de Vyann que ficamos sabendo da qualidade redentora de Complain — na crise, enquanto a maioria faz sublinhar o pior de suas personalidades, ele parece encontrar o seu melhor. Após rápida sucessão de fatos que sugerem que a situação da nave vinha se precipitando sem o concurso dos protagonistas, surge um grupo renegado que se oferece para lutar do lado dos Forwards contra os gigantes. Esse grupo é liderado por Gregg, o irmão há muito desaparecido de Complain, que vai ter com ele. Muitos dos renegados são mutantes (outro leitmotif comum à FC das décadas de 1950 e 60). A luta se intensifica quando Gregg dá a Complain, como sinal de boa vontade, um cortador laser com o qual primeiro ele e depois Scoyt partem para desmontar a nave a fim de descobrir o esconderijo dos gigantes. Mas não antes que Complain e Vyann descobrissem uma sala de controle destruída. No ínterim, munidos do laser, os habitantes da nave — em seu comportamento irracional e sem noção exata da precariedade em que se encontram — vão destruindo sistemas imprescindíveis para a sua própria sobrevivência. A essa altura o livro traz muitas reviravoltas e surpresas: traições e revelações inesperadas que reformulam o modo como vínhamos acompanhando as aventuras dos passageiros da nave, culminando com uma última imagem, poética e dramática, de desintegração social absoluta. Ficamos sabendo, inclusive, que os “gigantes” são na verdade seres humanos normais, e que os habitantes da nave diminuíram de estatura, ao longo das gerações. Aldiss claramente se coloca contra as convenções literárias tradicionais da FC Golden Age, nesta história sem heróis na qual a supertecnologia não se sustenta e o racionalismo recua diante do lastro mais violento do inconsciente. Não obstante, o romance parece desequilibrado, quando confrontamos os seus momentos iniciais, mais lentos, e os momentos finais, precipitados. Há nessa precipitação recursos que parecem improvisados — ou mais tipicamente pulp —, como Complain encontrando passagens secretas de um momento para o outro, quando o pessoal dos Forwards, vivendo ali há gerações, as teria deixado passar. 87 Colin Greenland observa que Complain faz parte de um grupo de protagonistas de Aldiss que “avançam, com dificuldade, para um entendimento e uma momentosa decisão moral”,57 e completa: Numa estrutura da fc [sic] tradicional, a função de tal entendimento eventual é solucionar o problema que a história coloca, desse modo resolvendo tensões narrativas [de volta ao] equilíbrio. As “resoluções” de Aldiss apenas capacitam o personagem a se levantar e encarar o futuro enorme, terrível ou desconhecido que está para começar.58 Na minha leitura, qualquer entendimento adquirido por Complain soa perfunctório. Mesmo porque Aldiss, tendo mantido certa distância emocional do seu herói e composto a sua sociedade como cínica e moralmente degrada, é forçado a seguir a bitola das mesmas escolhas ao se aproximar do fecho. Nesse sentido, a conclusão talvez seria melhor compreendida em termos de uma potente ironia dirigida aos esforços humanos de conflito e superação, quando comparados à resolução normalmente positiva da “FC tradicional”, do que em termos das transformações sofridas pelo herói. Em sentido semelhante, Joseph Milicia (University of Wisconsin), no prefácio de Hothouse (1962), de Aldiss, observa que, numa narrativa como Non-Stop, em que o “mundo de origem” do protagonista é abandonado por ele em sua trajetória de herói, tornando-se, “em si mesmo, questão a ser posta em causa e explorada”, na medida em que a impressão de permanência do lugar é trocada pela revelação do seu contexto como nave de gerações, “desaparece o conforto do mundo familiar e a narrativa é impregnada de uma sensação de alienação, sentida, de forma assustadora, como um pesadelo fora do sono”.59 Também nesse conceito, o efeito mais agudo independe de uma “momentosa decisão moral” do herói.60 Parece-me que aqui a leitura de Greenland, das diferenças programáticas entre FC pulp e New Wave, levou a uma interpretação superficial do papel de Complain no romance. 57 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983, p. 75. O título é trocadilho com o do livro de J. G. Ballard, The Atrocity Exhibition (1969). 58 Idem. 59 Milicia, Joseph. “Prefácio”. In A Longa Tarde da Terra, de Brian W. Aldiss (Lisboa: Gradiva Publicações, Coleção Contacto, 1986), pp. 9-10. 60 A bem da verdade, Milicia ressalta, como Greenland, o crescimento psicológico do herói do romance de Aldiss: “Se todos os contos de exploração podem ser lidos de forma simbólica como histórias sobre a educação ou crescimento psicológico dos seus heróis [...], as histórias ‘sem enquadramento’ de Aldiss parecem tratar especificamente de acordar e do atingir da idade adulta, literal ou intelectualmente. Na medida em que os seus heróis compreendem até que ponto estão desenraizados ou os seus mundos de origem são na realidade diferentes dos pressupostos da sua infância, os seus contos podem ser lidos como histórias da formação do ego, com a alienação que inevitavelmente a acompanha. [...] Este esquema torna-se particularmente nítido em Non-Stop [...]” Idem, ibid. P. 10. 88 O próprio Aldiss expressa o sentido da ironia que imagino ser o efeito mais forte em Nave Mundo, ao discutir, em seu premiado ensaio Trillion Year Spree: The History of Science Fiction (1986), o que chamou de “tema da Desumanização em Face das Estrelas”, próprio da década de 1950 no contexto tenso, pessimista, distópico da Guerra Fria: “O tema também funciona dentro da ficção científica para nos preparar para um movimento de afastamento das estrelas na direção da Terra, o que se tornou o tema dominante da FC mais vital dos anos sessenta.”61 Assim, Aldiss explicita melhor o recurso e o aponta como uma possível ligação com a New Wave da década de 1960, já que remete ao conceito do “espaço interior” (inner space) psicologizante, em oposição ao de “espaço exterior” (outer space), dominante da FC norte-americana e freqüentemente associado a imperialismo e expansionismo. Nave Mundo também traz embutido o tema do fim do mundo, no sentido de que, ao encerramento do livro, a nave que representa a totalidade do “mundo” dos seus habitantes, está perdida. * The Primal Urge (1961), de Aldiss, coloca a sexualidade no centro do palco, imaginando uma única invenção tecnológica que traz o desejo sexual do terreno do velado, para o campo aberto: o Emotional Register, ou “Norman Lights”, um mostrador luminoso que, ligado aos centros emocionais do cérebro por elétrodos, explicita com uma luz (ironicamente) rósea os momentos em que a pessoa está sexualmente excitada ou interessada em alguém. Aldiss é conhecido por ser “sempre fervoroso em sua abordagem da moralidade sexual” e por ser “um dos autores que mudaram as atitudes dos editores nessa área durante a década de 1960”.62 Ambientado num futuro muito próximo e repleto de índices contemporâneos no uso de pessoas reais como personagens e referências a marcas e instituições, o romance tem como protagonista James Solent, jovem funcionário da International Book Association, organização ligada ao Ministério da Cultura do Reino Unido. Durante uma festa, na qual Solent, um dos primeiros a empregar o Emotional Register que em breve se tornará obrigatório a todo cidadão britânico, interessa-se por Rose English, uma atraente e misteriosa mulher que também usa o dispositivo. 61 Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree: The History of Science Fiction. Nova York: Atheneum, 1986, p. 252. O livro, que é uma expansão de Billion Year Spree: The History of Science Fiction (1973), recebeu o Prêmio Hugo 1987 para Melhor Livro de Não-Ficção. Aldiss aponta o autor inglês John Wyndham [Parkes Lucas Beynon Harris] com precursor da “Desumanização em Face das Estrelas” e do pendor britânico para o romance-catástrofe (pp. 252-54). 62 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. P. 11. 89 Os dois acabam tendo um intenso encontro sexual na casa de piscina de um amigo em comum, e Solent fica obcecado por ela. É pelos olhos desse jovem impetuoso que o leitor vivencia as transformações sociais causadas pelos ERs, enquanto Solent busca reencontrar-se com Rose English, e vai aos poucos se metendo em um triângulo amoroso com o irmão Aubrey Solent e sua namorada Alyson. Outro personagem que aparece com freqüência e com um papel de relevo é o psicólogo experimental Vincent Merrick, que fornece racionalizações psicológicas para o experimento: — Há sim direções evolucionárias, e em relação a elas as Luzes [Norman] são um avanço. [...] Porque elas permitem que o id pela primeira vez se comunique diretamente, sem a intervenção do ego. Por gerações o ego humano tem inchado às expensas do id, do qual brotam todos os impulsos verdadeiros [...]63 O argumento tem como base a psicanálise de Sigmund Freud (e talvez na de Wilhelm Reich; 1897-1957) e pressupõe que o comportamento humano é motivado por impulsos inconscientes, de origem sexual. Trazê-los do inconsciente para o consciente — e todas as considerações humanas de ordem social, econômica e política — teria uma face potencialmente transformadora, utópica. O romance de Aldiss reflete a liberalização sexual no Reino Unido, quando os baby-boomers ingleses começam a se posicionar contra o clima de austeridade e racionamento seguido ao fim da II Guerra Mundial, e contra a ética vitoriana das gerações anteriores. Aldiss oferece um argumento que aproxima a situação social do Reino Unido à repressão sexual: — [...] Desde o fim da segunda guerra mundial [sic] a nossa sociedade tem sofrido cada vez mais de um desejo de desistência: numa palavra, derrotismo. Por todo o mundo, temos educadamente recuado... para desaparecermos no desânimo aconchegante e frouxo do Estado de Bem-Estar Social. [...] [Os ERs] não instilam atributos [...] mas eles os manifestam. Ao menos, manifestam o atributo mais vital de todos: o sexo. [...]64 Aldiss justifica a premissa a partir de uma idéia muito simples: “A instalação de uma ER em cada testa no reino teria sido apenas um sonho, não fosse por um fator: a própria qualidade revolucionária dessa invenção.”65 Ele então fornece a cifra de 93% de cidadãos britânicos respondendo afirmativamente à questão: “Você estaria interessado em a reação [em termos de atração sexual] de uma outra 63 Aldiss, Brian. The Primal Urge. Nova York: Ballantine Books, 1961, p. 23. Idem, ibid. P. 93. 65 Idem, ibid. P. 55. 64 90 pessoa a você [... ]?”66 Para o Estado, o recurso é atraente como chance de uma “saudável” engenharia social, e logo passa a interessar outros países: — Um porta-voz [suíço] disse hoje: “Nós chegamos à mesma conclusão que o governo britânico: a de que, ao darmos à nossa vida emocional [...] uma posição oficial, lançaremos luz sobre muitos cantos escuros e eliminaremos a maior parte das inibições indesejáveis e neuroses das quais a civilização até o momento tem sido presa.” [... ]67 Enquanto os criadores do dispositivo têm ainda outra justificativa para ele: — [...] Sem máquinas, esta ilha estaria superpovoada muito além do nível de subsistência; com elas, todos vivemos confortavelmente. Mas temos o direito de reclamar da ameaça ao indivíduo presente na crescente padronização envolvida na mecanização. Todos nós às vezes experimentamos o desejo de ter uma chave para o labirinto que nos envolve; desejamos ver abaixo da sua superfície. Achamos que nossos conhecidos estão despersonalizados, e ansiamos por saber o que eles realmente sentem. O dispositivo [...] que desenvolvemos é oferecido com uma chave para essa questão.68 A raiz da neurose estaria portanto na mecanização da sociedade e da alienação social que é sua conseqüência. James Solent transita exclusivamente em círculos sociais e profissionais que compõem certo ethos de classe média esclarecida, versada em política, sociologia e psicologia, e cuja representação esteve muito em voga na literatura internacional do pós-guerra.69 Como os ERs estão ganhando aceitação global a partir do pioneirismo inglês, essa restrição do romance acaba sendo uma de suas falhas possíveis — é uma revolução global que lançará “luz aos cantos escuros e inibições indesejáveis e neuroses”,70 mas representada por um recorte bastante específico e relativamente desproblematizado. Os grupos que protestam contra essa enorme invasão de privacidade e ingerência do Estado nas ações individuais, estão congregados em torno do “Group for the Restoration of Emotional Privacy”, capitaneado por “Big Bill Bourgoyne”, “defensor do bom e velho status quo” e por isso apoiado pela “gerontocracia dos ricos aposentados”.71 Para o narrador, esse quadro de conservadorismo absoluto e inerente seria risível, não fosse em parte pela “integridade do próprio Bourgoyne e em parte [pelo] número de hooligans que se ergueu inesperadamente [...] para reforçar as fileiras de senhoras 66 Idem, ibid. P. 56. Idem, ibid. P. 88. 68 Idem, ibid. P. 111. 69 No âmbito da ficção científica brasileira, André Carneiro foi provavelmente o autor que mais explorou consistentemente esse ethos, ao longo de sua carreira. 70 Aldiss, Brian. The Primal Urge. P. 88. 71 Idem, ibid. P. 108. 67 91 donzelas”. De súbito, esses encrenqueiros desocupados se afirmam “rebeldes com uma causa e se tornaram bourgoynistas”.72 Desse modo, Aldiss ridiculariza a oposição, e a dispensa como intelectualmente irrelevante. Todas as complicações possíveis da nova medida — o que ela pode fazer em termos de revelar inadvertidamente homossexuais, transexuais, pedófilos e fetichistas — são mencionadas mas não exploradas. Para firmar uma visão utópica única, Aldiss precisa empenhar-se em desproblematizá-la: a estratégia de ver tudo pelos olhos do representante de um ethos supostamente esclarecido e progressista passa pela tática de excluir outras expressões associadas a outras classes ou grupos, de posturas divergentes. A própria igreja é mantida conspicuamente ausente. Em termos da trama, perto do fim acumula-se alguma ação física e traições, de matriz pulp (ainda que ironizando a figura do herói de feitos solitários), quando Solent descobre por um amigo ciumento que Rose English é na verdade Rachel Norman, filha dos responsáveis pela invenção do Emotional Register. Ela foi raptada por ninguém menos que Bourgoyne, que a leva até sua mansão rural, onde se encastela com a refém. Quem deu ao vilão a dica da identidade secreta da misteriosa mulher é um amigo de Solent, o enciumado Guy Leighton, que também havia se frustrado com a liberada Rachel. Solent tenta um feito de ousadia, mas Rachel foge por conta própria com o padrasto Ivan Demyanski, um emigrante que trouxera da União Soviética (onde teria trabalhado com o fisiólogo Ivan Petrovich Pavlov) os dados de pesquisas que resultariam no ER. Depois do incidente do rapto, o casal retorna à URSS com a revolucionária novidade tecnológica. Aldiss também tenta compor uma situação de suspense no capítulo XII, ironicamente intitulado “The Invaders Have Nice Manners”: a casa da família que Solent visita é tomada por tropas amotinadas que pretendem, aproveitando toda a controvérsia em torno dos ERs, derrubar o governo. A família é mantida refém e é maltratada, mas os militares, reduzidos a símbolo de brutalidade cega e ignorantes da inescapável revolução, parecem ser mais condenados por não terem aceito a oferta de chá da dona da casa — seu maior pecado é o de estarem além das boas maneiras da classe esclarecida. As páginas finais do romance narram a visita de James Solent e Alyson Youngfield ao laboratório de Vincent Merrick, onde eles testemunham um tratamento por saturação: 72 Idem. 92 após ingerir um alucinógeno, o recém-formado casal assiste a um filme em que “desvios sexuais” são encenados. Merrick lhes diz que o que eles vêem tem “uma conexão muito definida com o que consideram como sendo o mundo comum. Elas são, meramente, pode-se dizer, uma leve paródia desse mundo.”73 “O homem tem livre-arbítrio”, diz, “mas também está sob compulsão”,74 e Merrick espera que os ERs forcem a sociedade a se rearranjar em relação a suas compulsões. A suposta necessidade de se exposição dos impulsos inconsciente — mencionada, senão dramatizada, ao longo de todo o romance — é reafirmada nessa situação terapêutica, que, de forma semi-ensaística no romance, realiza aquilo que William Burroughs propunha fazer em suas páginas de prosa recortada e remontada. * Noutro extremo, A Longa Tarde da Terra (Hothouse ou The Long Afternoon of Earth; 1962),75 de Aldiss, é ambientado no futuro muito distante e cabe melhor na definição de “fantasia científica”, que, segundo Brian Stableford em The Encyclopedia of Science Fiction, “é normalmente considerada um gênero bastardo, que mistura elementos de fc [sic] e fantasia [sendo] geralmente colorido e freqüentemente bizarro”,76 mas que foi importante para a New Wave, especialmente na obra de Michael Moorcock, que, segundo Colin Greenland, “é o primeiro escritor de espada-e-feitiçaria a construir a função psicológica da leitura de fantasia na própria obra”.77 O argumento psicanalítico e a imagem do ecossistema fora de controle, presentes em Nave Mundo, ressurgem nesta bizarra narrativa, originalmente um fix-up de noveletas.78 Milhões de anos se passaram, e o Sol começa a deixar a seqüência principal do seu ciclo de vida; ele se expande, e o aumento de radiação solar leva a uma vasta proliferação da vida vegetal, que cobre todos os recessos da superfície da Terra. A 73 Idem, ibid. Pp. 175-76. Idem, ibid. P. 176. 75 A edição portuguesa pela Gradiva tende a causar alguma confusão, já que Hothouse é o título da edição integral (que a Gradiva afirmou estar favorecendo), publicada na Inglaterra, enquanto The Long Afternoon of Earth, título traduzido literalmente na edição da Gradiva, é o título da edição com cortes, norteamericana. 76 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. P. 1061. 77 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 125. 78 “Hothouse”, como série de histórias, recebeu o Prêmio Hugo 1962. As histórias foram publicadas em The Magazine of Fantasy & Science Fiction ao longo de 1961, e são: “Hothouse”, “Nomansland”, “Undergrowth”, “Timberline” e “Evergreen”. O termo “fix-up” é criação do escritor canadense de ficção científica A. E. van Vogt, e designa uma arrumação de narrativas curtas que, assim arranjadas, compõem um andamento de romance. O crítico Graham Sleight sugere que o fascínio de Aldiss por um ambiente vegetal fora de controle “venha do seu tempo como soldado [britânico] em Burma” (“Yesterday’s Tomorrow”, Locus—The Magazine of the Science Fiction and Fantasy Field 587, December 2009, p. 29). 74 93 forma dominante é a figueira-da-índia, agora assumindo proporções descomunais, como as árvores gigantes das aventuras do Flash Gordon de Alex Raymond (1909-1956), na seqüência “Forest Kingdom of Mongo” (18/10/1936 a 31/01/1937). Há também criaturas vegetais semoventes, de proporções ciclópicas, como a “transversal” (traverser, no inglês), verdadeira espaçonave viva. E assim como em Nave Mundo, os humanos se tornaram uma raça de tamanho diminuto, agora coberta de pêlos azuis e dotada de tecnologia rudimentar. A idéia de regressão evolucionária é sublinhada pelo retorno às árvores como habitat principal da espécie. E o retorno à natureza é aqui — na chave psicanalítica explorada por Aldiss e depois por outros autores da New Wave — também o retorno a um estado primitivo da psique.79 Mais do que a regressão, porém, Aldiss imagina um novo ciclo vital para a espécie. Motivados por uma crença transcendental, os membros maduros do grupo buscam, em uma escalada épica, os ramos mais altos das árvores. É o que acontece com Lily-yo, líder de um grupo desses humanos minúsculos. Depois de um confronto quase malsucedido com uma das gigantescas criaturas vegetais, Lily-yo resolve que não está mais apta a liderar, e que deve se unir aos deuses, acompanhada de outros membros mais velhos do grupo. No caminho para o topo da árvore, há escaramuças com os homens-mosca, inimigos constantes. O grupo mete-se numa espécie de urna, Lily-yo e os outros são levados por uma transversal ligada a teias espaciais até a Lua, onde os que sobreviveram à viagem se deparam com a inesperada realidade: não há paraíso, mas uma metamorfose em que os humanos de pêlos azuis se tornam “homens-mosca” com asas — uma mutação causada pelos raios cósmicos recebidos durante a jornada. Eles logo são capturados por outros metamorfoseados, mas essas figuras aladas nada têm de angelicais — são um grupo de estropiados e deformados, com planos de retornar à Terra e atacar a sociedade de onde vieram. A ascensão, portanto, desarma o discurso religioso e estabelece uma hierarquia apenas em termos de uma sofisticação do raciocínio e da capacidade de planejamento. Ao voltarem à Terra (chamada de Mundo Pesado), retomam a guerra entre o racional e o mítico. Como fantasia científica, A Longa Tarde da Terra não exige que haja grande coerência científica (inexistente) na idéia da Terra e da Lua ligadas por teias de 79 A diminuição física também pode ser alegoria da suposta diminuição do “self” ou “eu” na modernidade. 94 proporções astronômicas (a Lua distanciou-se muito do nosso planeta, ao longo dos milhões de anos). Na Terra, ficaram os membros mais jovens da tribo de Lily-yo. Sua sociedade é matriarcal mas superprotetora dos membros masculinos. Gren é esse garoto em torno do qual a narrativa passa a girar, enquanto o grupo remanescente vaga pela feroz selva agigantada e com um quê de Pellucidar, o violento mundo subterrâneo pulp de Edgar Rice Burroughs (em romances como At the Earth’s Core, de 1914; Pellucidar, 1915; Tanar of Pellucidar, 1929, etc.). As coisas para Gren tomam um desvio extremo, quando ele cai presa do fungo araxixu, que, grudado em seu crânio, comunica-se telepaticamente com ele e assume o controle de sua volição. O fungo revela ter sido o responsável, no passado imemorial, pelas conquistas da civilização humana: — Naquele mundo oligoceno primitivo, a minha espécie foi a primeira a desenvolver inteligência [...] Aí tem a prova! Nas condições ideais de penumbra e humidade [sic] fomos os primeiros a descobrir a força do pensamento. Mas o pensamento precisa de membros que possa comandar. Por isso nos tornámos [sic] parasitas daquelas criaturas minúsculas, os vossos antepassados! [...] E assim se desenvolveu a verdadeira raça humana [...] Cresceram e conquistaram o mundo, esquecendo as origens do seu sucesso, os cérebros de araxixu que viviam e morriam com eles... Sem nós, eles teriam continuado no meio das árvores, tal como vivem presentemente as vossas tribos sem o nosso auxílio.80 A idéia dessa “contribuição alienígena” é absurda tanto à luz das observações dos anatomistas da Renascença, quanto pelas tomografias computadorizadas atuais. Mas funciona como alegoria grotesca e jocosa da formação do neocórtex, a mais recente adição anatômica ao cérebro humano, o tecido mais externo ao cérebro, cobrindo o mesocórtex e o alocórtex, e que seria responsável pelas habilidades de planejamento e análise, fisicamente instalado sobre o sistema límbico, onde são processadas as emoções. Novamente, “o ego humano inchado às expensas do id”. Durante sua jornada às cegas pela floresta, o araxixu orienta Gren e sua irmã Poyly a capturar a pastora Yattmur, que vive perto do vulcão Boca Negra, que todos temem. Uma canção hipnótica emana do vulcão, atraindo as formas de vida semovente, humanos inclusive. Gren e seu grupo são salvos apenas porque caem em uma armadilha vegetal, mas escapam quando Boca Negra está saciada e pára de cantar. Dali eles vão até uma tribo de pescadores, que se revelam como sendo uma espécie humanóide existindo em simbiose com três árvores que os controlam por meio de 80 Aldiss, Brian W. A Longa Tarde da Terra (Hothouse). Lisboa: Gradiva Publicações, Coleção Contacto, s.d., p. 133. 95 longos cordões umbilicais. Com a sua sempre planejada agressividade, o fungo força Gren e Poyly a cortar um desses cordões, despertando a reação das árvores — o que leva à morte de Poyly. Com Yattmur, Gren e o araxixu prosseguem em sua jornada, agora com um número de pescadores prisioneiros, chamados por eles de “barrigudos”. A partir desse ponto o romance se firma como uma viagem fantástica — um dos formatos literários mais antigos associados à ficção científica, por serem basicamente narrações de sucessivos encontros e eventos maravilhosos. Um dos mais antigos textos de viagem fantástica é a Odisséia (circa 800 a.C.), atribuída a Homero, e à qual Joseph Milicia insiste em comparar A Longa Tarde da Terra, embora o tom farsesco predominante no romance de Aldiss impeça uma analogia integral com Homero e o seu heróico-sublime e sua profundidade de emoção humana, exceto por comparações superficiais como a do canto das sereias da Odisséia, com o da Boca Negra em Aldiss.81 A dinâmica que se estabelece entre Gren, o fungo, Yattmur e os barrigudos reforça o intuído esquema alegórico de Aldiss: Gren é o ego masculino, o fungo é o superego, e os barrigudos — sempre choramingas ou bajuladores, exigindo que suas necessidades sejam atendidas — o id, com Yattmur funcionando, na opinião de Milicia, como o “lado anímico” (o aspecto feminino existindo no inconsciente masculino)82 de Gren. Pelo caminho, encontram um aparelho sobrevivente do apogeu técnico da humanidade — um dispositivo difusor de mensagens que parece ter saído diretamente das páginas de When the Sleeper Wakes (1899), de H. G. Wells, e que paira no ar repetindo slogans de resistência do proletariado contra os excessos empresariais, totalmente perdidas aos humanos do futuro distante. De resto, a trajetória de Gren pela narrativa de viagem fantástica é uma de confronto e afastamento de diversas encarnações do feminino: a mãe superprotetora e a mãe devoradora,83 e o servilismo dos barrigudos, antes ligados à mãe-árvore-da-vida-mãe-natureza, e que são constantemente vilipendiados por Gren e protegidos por Yattmur. A jornada prossegue, e, entre outros eventos, o grupo se depara com os hirsutos (carnívoros peludos) e com um peixe que respira fora d’água e que é transportado por um humano transformado em besta de carga. Esse peixe, o filósofo-profeta Sodal Ye, é 81 Milícia, Joseph. “Prefácio”. In A Longa Tarde da Terra, Brian W. Aldiss. Lisboa: Gradiva Publicações, Coleção Contacto, s.d., p. 13. 82 Idem, ibid. P. 17. O conceito é eminentemente junguiano. 83 Idem, ibid. P. 16: “As diferentes goelas fazem prever a hipnótica Boca Negra com os seus enormes dedos a acenar do cimo do vulcão. Fazem lembrar a caracterização de Jung de Mãe Devoradora do mito; dragões e outros monstros que representam a temível tentação do ego de regressar à mãe, ou préconsciência ou a natureza que tudo absorve. A Boca Negra parece ser, na verdade, uma manifestação da Mãe Devoradora sob uma forma épica [...].” 96 também acompanhado de duas mulheres mudas que ficam meio que invisíveis, porque são capazes de estar ao mesmo tempo em momentos temporais diferentes. No esquema alegórico de Aldiss, Sodal Ye representa a capacidade de filosofar, de psico-analisar. Auxiliada por ele, Yattmur usa de um estratagema para separar Gren do fungo araxixu. Livre do controle mental imposto pelo fungo, Gren reflete sobre sua recémadquirida liberdade: [...] Com os olhos do espírito revia — mais com espanto do que com receio — tudo aquilo que acontecera desde que o araxixu caíra sobre ele nas florestas da Terra-deNinguém, as coisas que tinham passado, como num sonho: como ele viajara através de terras e feito coisas, e sobretudo como tinha guardado conhecimentos no seu espírito, de formas que teriam ficado desconhecidas do seu anterior ego livre.84 O uso do jargão psicanalítico (ego) pelo narrador onisciente suporta a interpretação do esquema alegórico presente no romance. Para o novamente livre Gren, a dominação do fungo pensante, funcionando sobre ele como superego, não foi de todo negativa: Viu como tudo aquilo tinha acontecido por intermédio do fungo [...] e, com toda a frieza, lembrou-se de como, a princípio, se regozijara com aquele estímulo que o ajudara a ultrapassar as limitações que lhe eram naturais. Só quando as necessidades básicas do araxixu tinham entrado em conflito com as suas o processo se tornara desagradável, pondo-o literalmente fora de si, de forma que, ao obedecer aos ditames do araxixu, quase atacara os de sua própria espécie. Agora estava tudo acabado. O parasita fora vencido. Não voltaria a ouvir a voz íntima do araxixu ressoar-lhe no cérebro. Por fim, a solidão, mais do que o triunfo, apoderou-se dele. Mas pôs a procurar ferozmente pelos corredores da memória e pensou: “Ele deixou-me alguma coisa de bom; sei avaliar, sei organizar o meu espírito, consigo lembrar-me do que ele me ensinou — e o fungo sabia tanta coisa.” Agora parecia-lhe que, apesar da devastação causada pelo araxixu, este tinha encontrado o espírito dele como um pequeno charco de água estagnada e deixara-o como um oceano vivo [...]85 Uma passagem do livro de não-ficção de Aldiss, The Shape of Further Things (1970), suporta ainda mais essa interpretação: [E]mbora neocórtex, mesocórtex e arquicórtex não devam de modo algum ser considerados como equivalentes físicos do Super-Ego, Ego e Id da psicanálise, ou ao consciente, subconsciente e inconsciente, o paralelo é algo mais do que ilusório, e as inspiradas descobertas de Freud — tão loucas, tão assustadoras, tão enojantes a algumas pessoas — são apoiadas pela neurocirurgia. Desejos infantis podem nos envolver; tais desejos podem vir de muito, muito longe, de além de qualquer infância humana. O Desejo de Morte também possui um lugar estabelecido dentro das novas teorias; pois o neocórtex descobriu a Morte, e o cérebro límbico rejeitou a sua descoberta. Daí termos o conflito perpétuo da história do Homem, entre a fé e a razão [...].86 84 Idem, ibid. Pp. 246-47. Idem, ibid. P. 247. 86 Aldiss, Brian W. The Shape of Further Tings. P. 75. 85 97 A aventura continua rumo à conclusão, quando o fungo assume o controle do intelecto superior do Sodal Ye e de uma transversal que abriga os viajantes, mais Lily-yo e outros retornados como homens-moscas (em um pálido gesto de circularidade narrativa, diga-se de passagem). O araxixu, agora também capaz de filosofar, diz: “Pergunto a mim mesmo o que sou eu.”87 Ao mesmo tempo, oferece uma visão cosmogônica que explica a presente situação do mundo: “[...] Ah, a beleza de todo o plano, quando se olha para ele... Humanos, há este fuso incandescente de uma força chamada devolução [devolution]...”88 O que vem a seguir bebe da teoria do astrônomo e autor de FC Fred Hoyle (1915- 2001), da “nucleosíntese estelar” e da “panspermia”. Nela, as condições para a formação de carbono, matéria da vida, seriam mais difíceis do que a abundância dessa matéria dá a entender, e de que os componentes da vida na Terra teriam vindo do espaço de carona em cometas. Na “devolução” de Aldiss, “a natureza está a ser devolvida. As formas estão de novo a tornar-se imprecisas”,89 partindo de um certo nível de complexidade advinda das combinações de componentes simples, para retornar a um estado de simplicidade, a partir do qual se dará uma nova semeadura do Cosmos. Essa saída do complexo para o simples é a entropia, o processo de instauração de caos ou desordem em sistemas anteriormente ordenados — e um dos conceitos-chaves da New Wave. O romance como narrativa termina com Gren e sua companheira Yattmur e o filho dos dois, Laren, recusando a oferta do fungo em transportá-los a todos na transversal dominada, para um novo delírio megalomaníaco, agora dirigido ao espaço. Para Joseph Milicia, a decisão marca a maturação do herói, em “um triunfo sobre os dois elementos negativos que caracterizei como masculino e feminino”.90 Ao que parece, surge do conflito entre ego e superego um novo estado de consciência, que, livre da neurose, é capaz de se auto-avaliar e se compreender melhor. Não obstante, na minha leitura aquilo que o próprio Milicia chamou, adequadamente, de “mundo de feminilidade derrotada”,91 é mais difícil de reconciliar com esse suposto triunfo do esquema narrativo. O controle final do feminino por Gren é análogo aos sentidos de sua recusa em aceitar o controle do 87 Aldiss, Brian W. A Longa Tarde da Terra. P. 276. Idem, ibid. Pp. 275-76. 89 Idem, ibid. P. 276. 90 Milícia, Joseph. “Prefácio”. In A Longa Tarde da Terra, Brian W. Aldiss. P. 17. 91 Idem. 88 98 superego (a pressão do contexto social) representado pelo araxixu, e do seu abandono dos barrigudos (os instintos baixos), que se quedam presa dos hirsutos. É a busca de um equilíbrio psicológico, busca a qual Aldiss aludiu em The Shape of Further Things: “Algo foi sacrificado pelo desenvolvimento tão rápido do neocórtex”, ele escreveu; “conexões neurais insuficientes foram estabelecidas entre as duas épocas filogênicas. Como resultado, há uma coordenação hierárquica insuficiente entre instinto e inteligência. É dessa fraqueza que fluem os problemas históricos da humanidade [...]”92 Na busca desse equilíbrio, apenas o macho da espécie é protagonista, e seu sucesso depende do descarte das ansiedades quanto ao feminino — senão de um feminino autônomo e agente — e das demandas baixas do id. Contudo, na tentativa de evocar arquétipos ou componentes da psique por meio de um esquema alegórico, mas sem uma qualidade mítica real, Aldiss acaba reforçando estereótipos. * Por sua vez, Os Negros Anos-Luz (The Dark Light-Years; 1964) revê estereótipos literários, ao jogar com elementos típicos da FC popular americana da Era Campbell e anterior, tentando ao mesmo tempo oferecer uma crítica a eles e miná-los de conteúdos heróicos: é romance de primeiro contato com uma espécie alienígena, ambientado em 2035, quando o Reino Unido trava uma guerra muito organizada contra o Brasil, em Caronte, a lua de Plutão. Os alienígenas utods, encontrados por expedição militar inglesa num mundo orbitando uma estrela tripla, são filósofos e pensadores pacíficos, com uma postura casual quanto à morte, e fisicamente semelhantes a hipopótamos ou rinocerontes, com vários pares de membros e orifícios respiradores e excretores. Embora dotados de tecnologia espacial, são logo tratados como animais por seu hábito de umedecer a pele com lama e com os próprios excrementos. Quilter, um tipo atlético e estereotipado de grande caçador branco, atira em vários deles, apesar dos apelos do Mestre Explorador Bruce Ainston. Os utods que sobrevivem são levados à Terra, instalados em um zoológico e estudados por cientistas e pensadores liderados por Sir Milahy Pasztor, diretor do Zôo Exótico de Londres, e com alguma ajuda ocasional de Ainston. Não há grandes progressos na comunicação entre as duas espécies. De fato, elas parecem perdidas no entendimento uma da outra, e enquanto os esforços patinam, a opinião pública, 92 Aldiss, Brian W. The Shape of Further Tings. P. 74. 99 alimentada pelos meios (descriteriosos) de comunicação, assume os utods como animais ou como curiosidade vinda do espaço exterior. Ao cabo de algum tempo, os utods, que por sua constituição biológica são naturalmente impávidos perante a dor, são entregues a cientistas militares que os estudam, usando métodos grotescos, a fim de encontrar a fonte da sua imunidade à dor — característica que pode ter aplicações militares. No ínterim, outra missão é enviada ao mundo natal dos utods. Com ela segue a pesquisadora Hilary Warhoon, que reconhece a inteligência dos ETs e até mesmo sua superioridade espiritual, mas ela não apenas fracassa em sensibilizar os militares, como sucumbe à masculinidade violenta do Consultor de Vôo Bryant Lattimore, que também não enxerga os alienígenas como inteligentes: — Sei disso. Mas você está falando comigo com a voz do intelecto — disse Lattimore [...]. — Eu também ouço uma espécie de voz de Quilter [que também está nesta expedição], a vox populi, um grito não somente do coração, mas das entranhas. Ela diz que qualquer que sejam os talentos desses cretinos [os utods], eles são menores do que o dos búfalos ou das zebras ou dos tigres, e o primitivo não perde tempo em me atacar exatamente como atacou Quilter, e eu sinto vontade de atirar neles.93 A matança dos utods por esporte continua, sob racionalizações tão rasteiras quanto estas. A única experimentação que parece genuinamente científica é abandonarem um membro da tripulação num dos mundos utods, para, como um antropólogo (ou “xenólogo”, como a ficção científica chamaria mais tarde), aprender sua língua e cultura. O romance mantém um tom farsesco por todo o tempo, enfatizando a brutalidade humana por trás das afetações da civilização. A começar da guerra ordeira e distante de onde ela possa causar danos colaterais, passando pela alimentação artificial e pela mania de higiene, justamente o que nos faz rejeitar com tanta força os hábitos dos utods (que, entre outras coisas, se comunicam por fonação e flatulência). Um subenredo em que os utods capturados relembram episódios da história da sua espécie — história na qual um culto higiênico surgiu para caducar logo em seguida não apenas sob o peso de sua própria artificialidade, quanto pela necessidade das peles sensíveis de serem umedecidas e nutridas pela matéria orgânica em decomposição — ajuda a sublinhar esse argumento que confronta artificialidade (e brutalidade) com existência natural (e pacífica). Faz 93 Aldiss, Brian. Os Negros Anos-Luz (The Dark Light-Years). São Paulo: Cultrix, 1976, p. 100. Também existe uma edição do Editorial Bruguera, do Rio de Janeiro, com o título de Anos de Treva e de Luz, com tradução de Sandro Pivatto, sem data. 100 lembrar a condenação do “espaço higiênico da fábrica e tudo o que acompanha isso”,94 de Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, membros destacados da “Escola de Frankfurt”, em Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos (Dialektik der Aufklãrung: Philosophische Fragmente; 1969). Mas o próprio Aldiss fornece uma chave para o entendimento dessa crítica em termos de uma oposição corpo/intelecto ou inconsciente/racionalidade: Imagino lustrosas leiterias substituindo cavernas francesas produtivamente nada higiênicas. Como [Sir Thomas] Browne, estou preso entre minha herança antiga e o meu futuro. O futuro excita o meu intelecto; mas a metade material de mim está presa em uma caverna produtivamente nada higiênica! E não construo essa frase por meio de um deslize freudiano. O homem, até que evolua mais, é construído de modo que pode apenas avançar produtivamente se ele se mantiver em contato com o lado ancestral de si mesmo — o coração acompanhando a cabeça, conforme [Arnold] Toynbee o coloca.95 Aldiss observa que os críticos falharam em enxergar Os Negros Anos-Luz como uma crítica oblíqua à sociedade — como antes teriam fracassado de modo semelhante na crítica de A Ilha do Dr. Moreau (The Island of Dr. Moreau; 1896), favorito de Aldiss dentre os romances de H. G. Wells (1866-1946).96 Dá a entender que os dois trabalhos, apesar das suas diferenças substanciais, possuiriam a mesma perspectiva: “O animal está incrustado em nós todos, sangue, ossos e cérebro.”97 Grande parte do romance se constitui de episódios curtos e pouco conectados entre si, concebidos para evidenciar o quanto o ser humano não consegue superar as mesquinharias quotidianas e aquelas da sua própria psique. Hilary Warhoon rende sua consciência moral aos apelos masculinos e autoritários de Lattimore, e Bruce Ainston, que em algum momento parece surgir como um candidato a herói, oscila entre sonhos de grandeza científica e seus problemas de relacionamento com a mulher e o filho, Aylmer — justamente o xenólogo deixado entre os utods. A ciência nada realiza; a guerra e a estupidez popular (aqui, um dublê do id) falam mais alto. A ironia substitui o sentido do maravilhoso (sense of wonder), aquele efeito literário considerado característico do gênero pelos escritores americanos, e o heróico 94 Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 14. Esta edição é a da versão original revisada pelos autores em 1969. A primeira é de 1947. 95 Aldiss, Brian. The Shape of Further Things. P. 35. Sir Thomas Browne (1605-1682), foi um autor e pensador inglês, e Arnold J. Toynbee (1889-1975), foi um importante historiador inglês. O livro de Browne, On Dreams, fornece a primeira epígrafe de The Shape of Further Things. Carl Gustav Jung (1875-1961), a segunda. 96 Idem, ibid. P. 64. 97 Idem, ibid. P. 65. 101 espírito pioneiro, tão característico da FC ianque, cede à arrogância colonialista e racista da experiência britânica. O livro, desde o título, busca desconstruir a ideologia da FC americana da era das revistas pulp e da Era Campbell, minando-a de qualquer maravilhamento ou conteúdo heróico. O fecho do romance contém apenas a mais débil sugestão utópica, para os utods: Ele [um dos utods que convivera com Aylmer Ainston] havia ficado pacientemente cativo durante uma pequena fração de sua vida. Agora já era tempo de pensar em liberdade. Tempo, também, de que o resto de seus irmãos pensasse em liberdade.98 Colin Greenland chamou Os Negros Anos-Luz de “a mais completa afirmativa do desencanto da New Wave com o expansionismo interplanetário”,99 e uma perspectiva desconstrutivista semelhante (com menos ironia e mais pathos) aparece no conto de Aldiss, “O Moon of my Delight” (1961),100 ambientado em um mundo peculiar, lua de um gigante gasoso, e que funciona como freio e compensador inercial de naves em vôos mais rápidos que a luz. O conceito e sua fundamentação são bem interessantes, especialmente considerando que o gigantismo da idéia é confrontado com um tableau de escala modesta: Murragh Harrison, um artista literário, trabalha para a família Doughty, que cria ovelhas em Tandy II. Harrison vive com o casal Doughty, que tem duas filhas, a adolescente Tessie e a pequena e curiosa Fay. A criança é fascinada pelo vôo mais rápido que a luz, fascínio alimentado por Harrison, cujo projeto literário envolve esse recurso e o papel da lua como freio das naves. Entra em cena o técnico Vasco, que vem visitar a fazenda e traz com ele a narrativa em primeira pessoa (o conto alterna a terceira e a primeira pessoas). Vasco é amante de Bess, a esposa. Há um incidente em que Harrison está longe, tentando socorrer dois cães-pastores robôs, e Vasco e Bess partem num trator para ajudá-lo. O incidente se prolonga e Vasco tem de retornar à zona de chegada das naves, para assumir suas funções. 98 Aldiss, Brian. Os Negros Anos-Luz. São Paulo: Cultrix, 1966, p. 132. Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 76. 100 Aldiss, Brian W. The Airs of Earth. Londres: NEL, agosto de 1972, p. 90. “O Moon of my Delight”, cujo título vem de uma canção popular de 1928 com letra de Lorenz Hart e música de Richard Rodgers, foi primeiro publicado na edição de New Worlds de março de 1961, anterior à editoria de Michael Moorcock. A imagem final do conto se assemelha ao que faria o pintor inglês e FC John Harris, e está representada na capa assinada por Bruce Pennington para a edição de 1972 dessa coletânea de 1963. Quando peguei com Aldiss o autógrafo nesse livro em 2002 no Festival Utopiales, em Nantes, França, ele me contou que tentou comprar o quadro original de Pennington, mas achou o preço de 100 libras caro demais — em 2002 ele valia mil. 99 102 Colin, o fazendeiro, vai ao local do incidente com os robôs. Eles estão sem comunicações, e Colin pede a Vasco que vá à sua casa e peça a Tessie para se unir aos seus pais, com o trator. Vasco não vê Fay na casa, mas ao chegar ao seu local de trabalho descobre que a menina aproveitara a confusão para escapar e ir até lá para, movida pela curiosidade, testemunhar a chegada de uma espaçonave. Fay morre ao tocar a cerca elétrica. Vasco então revela que a menina era sua filha. Harrison chega até ele e, sem saber da morte da criança, conta a Vasco como encontrou a metáfora ideal para o planeta; os dois acabam trocando socos. Mais tarde, todos partem e nada mais será o mesmo. O conto tem em seus personagens um grupo sem brilho, sem heroísmo ou dimensão maior — exceto por Fay, cuja curiosidade é genuína e encantadora. Em um conto da FC Golden Age, existiriam dimensões positivas, racionais e heróicas atribuídas aos personagens. Enfim, é o fascínio pela máquina que leva a ingênua criança à morte. Desencanto com a Era da Máquina Com o romance Jornada de Esperança (Greybeard; 1964), Aldiss retoma uma narrativa mais direta, característica da década de 1950. O romance propõe que explosões nucleares experimentais realizadas em 1981 no espaço teriam afetado o cinturão de Van Allen, resultando num banho de radiações que esteriliza os humanos e outras espécies de mamíferos superiores. O evento passa a ser conhecido “o Acidente”. Ambientado décadas após o evento, o enredo mostra um grupo de idosos liderados por Algernon “Barbagris” (Greybeard) Timberlane que parte da pequena localidade inglesa em que viviam, Sparcot, numa jornada rumo à foz do (talvez não tão fresco e primaveril) Rio Tâmisa, após uma praga de arminhos. No capítulo “New Worlds and SF Horizons of the Sixties” de The Shape of Further Things, Aldiss observa que, em 1960, ele estava “obcecado” com a ausência de seus filhos Clive e Wendy, e usava Michael Moorcock como ombro amigo. “Também discutimos Jornada de Esperança, o qual surgiu em parte de minhas saudades de meus 103 filhos e em parte de uma esplêndida imagem literária que Mike teve, de pessoas viajando rio abaixo.”101 Aldiss trata com ironia mas também com carinho o grupo de aventureiros idosos, e faz amplo uso de um de seus recursos literários mais eficientes: o flashback. A situação básica está muito bem estabelecida no início do romance, e o processo que levou a ela é recuperado paulatinamente por meio desses recuos no tempo, que seguem Timberlane, um homem inteligente e determinado, que acompanhou o processo de perto: foi soldado na África durante a Operação-Criança, de captura de crianças remanescentes; depois, durante a consolidação da crise, é recrutado para realizar um registro dos fatos dentro de um programa secreto chamado Documentação da História Universal Contemporânea, montado pelos americanos. Quando o Comandante Peter Croucher impõe a lei marcial à Inglaterra, Timberlane é posto sob suspeita e forçado a fugir com sua mulher para proteger o equipamento do DOHUC (um caminhão equipado para o registro eletrônico) e sua missão. Contudo, depois que eles se refugiam em Sparcot, Timberlane, comovido pela fome que assola o lugarejo, troca o caminhão por “um carregamento de peixe apodrecido, cenouras brancas e pílulas vitamínicas, pertencente a um caçador ambulante”.102 Nesse mundo melancólico, a Inglaterra reassume uma aura quase medieval, a maior parte da população envelhecida é composta de excêntricos e maltrapilhos, e as poucas crianças nascidas depois do Acidente, mesmo que deformadas, são objeto de veneração. Uma dessas crianças é centro de interesse popular na cidade de Swifford Fair, onde o grupo vai parar. O romance prossegue entre flashbacks informativos e interessantes, e a marcha dos companheiros, cercada de episódios entre o divertido e o melancólico. Ao final da jornada, uma nota de esperança e de retorno da dimensão mítica da existência: o vislumbre de uma nova geração oculta na floresta. Ficara finalmente patenteado que o instinto de conservação era forte entre a nova geração... o que era bom, tão escassa sobre a Terra era essa geração. Os novos estavam cansados dos homens. Pelas suas vestimentas estava claro que se identificavam melhor com os animais. Bem, dentro de uns poucos anos [com a morte dos velhos], as coisas se tornariam mais fáceis para eles.103 Enquanto os velhos ainda caminham sobre a terra, essas crianças selvagens são como as fadas dos contos antigos (e assim são chamadas, por vários dos personagens), 101 Aldiss, Brian. The Shape of Further Things. P. 134. Aldiss, Brian. Jornada de Esperança (Greybeard). São Paulo: Cultrix, 1976, p. 88. 103 Idem, ibid. Pp. 262-63. 102 104 seres quase mágicos, integrados à natureza e fora do alcance da razão e dos processos humanos. Quando o último sobrevivente da antiga ordem desaparecer, o mundo será novamente a terra das fadas — purificada dos excessos racionalistas da era das máquinas, do capitalismo e da ciência desenfreada. Brian Stableford chamou Jornada de Esperança de “obra chave na tradição de histórias inglesas de desastre”,104 e David Pringle e John Clute consideram que este “seria talvez o melhor romance de [Aldiss]”, por ser “um celebração da vida humana e uma crítica à civilização”.105 Eu argumento que essa crítica à civilização se aproxima daquela da Teoria Crítica, a escola de pensamento marxista originária do Instituto de Pesquisa Social. Quando os peregrinos chegam à vila de Swifford Fair, Timberlane acaba travando contato com o charlatão sofista Bunny Jingadangelow. Em seu primeiro diálogo, Jingadangelow professa uma mesma identidade entre ele e Barbagris, que os faria ambivalentes perante o desastre. “Nós precisamos dos nossos desastres”, afirma. [...] O senhor e eu, de uma forma ou de outra arrostamos um colapso da civilização. Somos sobreviventes de um naufrágio. Mas sentimos algo mais profundo do que a sobrevivência... o triunfo! Antes que o Acidente viesse nós o desejamos, de maneira que para nós o desastre representa um triunfo da vontade indômita. Não se espante tanto! O senhor não é do tipo que considera os recessos da mente como local dos mais salubres. Já pensou no mundo em que nascemos e naquilo que seria esse mundo, se uma pequena experiência nuclear não tivesse dado em droga [sic]? Não seria um mundo demasiado complexo, demasiado impessoal, para gente como o senhor e eu?106 O discurso de Jingadangelow se aproximar do discurso modernista de denúncia e rejeição da sociedade moderna: [...] Não será o nosso atual presente preferível àquele outro presente mecanizado, organizado e desodorizado com o qual poderíamos ter topado, simplesmente porque nesta época atual nos é dado viver em escala humana? Naquele outro presente, que não chegamos a conhecer por um fio, a megalomania não teria crescido a tal ponto que toda a riqueza simples da vida individual ordinária ficaria sufocada? 107 104 Levy, Michael M. (com Stableford, Brian). “The New Wave, Cyberpunk, and Beyond”. In Anatomy of Wonder 4: A Critical Guide to Science Fiction, Neil Barron, ed. New Providence, NJ: R. R. Bowker, 1995, p. 239. A frase aparece em um verbete dessa seção, assinado por Stableford, enquanto Levy assina o ensaio propriamente dito. 105 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 11. O editor David Pringle e o crítico John Clute assinam o verbete sobre Brian W. Aldiss. Os dois também observam que o romance havia sido menosprezado nos Estados Unidos. No Brasil, suas três edições sugerem o contrário, apesar da ausência de resenhas. 106 Aldis, Brian W. Jornada de Esperança. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 121. 107 Idem. 105 Timberlane tenta contemporizar, mas Jingadangelow prossegue, e ao fazê-lo meio que reproduz uma síntese do discurso frankfurtiano, adorniano, próprio da Teoria Crítica, de condenação absoluta da condição do homem na sociedade burguesa, recorrendo inclusive às imagens da mecanização da sociedade e dos cenários genocidas da II Guerra Mundial como epítomes do desengano da razão no Ocidente: — Não acha que do ponto de vista espiritual estava tudo errado, que, em suma, tudo estava errado? Não é bom sentir-se nostálgico. Não foram apenas as drogas e a educação. Não terá sido também o clímax e o orgasmo na Era da Máquina? Não terá sido Mons e Belsen e Bataan e Stalingrado e Hiroshima e tudo mais? Não terá sido bom para nós havermos sido atirados do carrossel?108 Pode-se argumentar que o fato de Jingadangelow ser um picareta pomposo que engana a população local com poções rejuvenescedoras e com a figura de uma criança deformada usada por ele como em um circo de horrores, assinalam que Aldiss poderia estar justamente ironizando essa crítica.109 O próprio Timberlane não se entusiasma propriamente com sua pregação modernista. Mas no capítulo “How I Ran through an Empire—and Was Better for It” (in The Shape of Further Things), Aldiss escreveu, de modo inequívoco: Onde muitos se iludem é na crença de que uma proliferação de máquinas e tecnologia melhora a qualidade de vida. Essa idéia foi condenada há muito tempo — por John Ruskin [1819-1900], por exemplo, que estava ciente de que persiste ainda o paradoxo: que a máquina, sendo destruidora da criatividade e dos valores espontâneos, ameaça a vida interior (é a essa ameaça que a arte contemporânea, ao avançar para o princípio da máquina, busca se opor); enquanto, até onde diz respeito à vida exterior, a máquina não conseguiu fazer melhor do que os escravos que ela substituiu, em criar a abundância para todos — “a essência do poder consiste no poder sobre os homens”. Tudo isto em Unto This Last, de Ruskin, publicado em 1860, mas a crença preponderante nos círculos da fc [sic] é, estou certo, o reverso desta.110 No discurso de Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, “do ponto de vista espiritual tudo está errado” em termos semelhantes: A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam com a divisão do trabalho, é ao mesmo tempo forçada a regredir a estágios antropologicamente mais primitivos [de desenvolvimento do eu], pois a persistência da dominação determina, com a facilitação técnica da existência, a fixação do instinto através de 108 Idem, ibid. P. 122. Os nomes próprios ao final do parágrafo são batalhas da I e da II Guerras Mundiais com grande número de baixas. Bataan foi uma batalha ocorrida no Pacífico, lembrando a experiência de Aldiss na II Grande Mundial. Belsen foi um campo de extermínio nazista. Hiroshima foi, claro, a primeira cidade a sofrer bombardeio atômico. 109 A figura do velho sábio mas algo ridículo está presente também nas páginas de A Longa Tarde da Terra (Sodal Ye), em Os Negros Anos-Luz (os utods mais reverenciados) e em outras obras de Aldiss. 110 Aldiss, Brian. “How I Ran through an Empire—and Was Better for It”. In The Shape of Further Things. P. 112. 106 uma repressão mais forte. A fantasia atrofia-se. A desgraça não está em que os indivíduos tenham se atrasado relativamente à sociedade ou à sua produção material. Quando o desenvolvimento da máquina se converteu em desenvolvimento da maquinaria da dominação [...] os atrasados não representam meramente a inverdade. [...] [A] adaptação ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo àquelas formações recessivas que mostram que não é o malogro do progresso [e da razão, que o impulsiona], mas exatamente o progresso bem-sucedido que é culpado de seu próprio oposto. A maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão.111 Mais adiante, a dupla da Escola de Frankfurt afirma, quase na voz de Jingadangelow, que, “[q]uanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz”,112 de modo que não se vive em escala humana. Adorno & Horkheimer sublinham ainda que o “absurdo desta situação, em que o poder do sistema sobre os homens cresce na mesma medida em que os subtrai ao poder da natureza, denuncia como obsoleta a razão na sociedade racional”.113 Em Jornada de Esperança, o que se desenha é o processo de retorno a uma escala humana, com o envelhecimento como metáfora da mesma expressão de entropia que se tem em A Longa Tarde da Terra: do mais complexo ao mais simples, prefigurando um renascimento — as crianças, dotadas de uma nova inocência livre da máquina, herdarão um mundo marcado pela integração com a natureza. Aqui, porém, o mítico de fato se configura. Recorrência Pulp Ainda na mesma chave, com Earthworks (1965), Aldiss parece ter tentado emular algo da narrativa salteada e do delírio pulp do escritor canadense A. E. van Vogt (19122000), na história de Knowle Noland, aventureiro de um futuro relativamente próximo e distópico de superpopulação e degradação ambiental. The Encyclopedia of Science Fiction (1993) chamou Earthworks de “romance menor”,114 e Colin Greenland nota que, não “há nada no amplo e imponente Jornada de Esperança que levaria o leitor a 111 Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento. Pp. 40-41. Idem, ibid. P. 41. 113 Idem, ibid. P. 43. 114 Pringle, David & Clute, John. “Brian W. Aldiss”. In The Encyclopedia of Science Fiction, Peter Nicholls & John Clute, eds. P. 11. 112 107 esperar que o próximo romance de Aldiss seria tão exausto e misantrópico quanto Earthworks”, associando isso ao fato de que a carreira de Aldiss não teria “nenhuma estrutura em períodos”, nem simetria deliberada nem uma progressão discernível.115 Não obstante, a continuidade ideológica entre os dois romances é clara. Noland começa sua trajetória como um zé-ninguém e termina como o homem que pode mudar o rumo da humanidade, ainda que de maneira trágica. Van Vogt, que como Aldiss esteve no Brasil no Simpósio de FC em 1969, é um autor muito associado à Golden Age das revistas americanas (1938 a 1948). Contudo, essa associação é problemática e revestida de aspectos que relativizam algo do entendimento do que a Golden Age representou, como tentarei ilustrar mais adiante. Narrado em primeira pessoa, o romance de Aldiss abre com Noland, o comandante de um navio a caminho da África, encontrando um cadáver no mar. O morto flutua pouco acima da água, com uma “mochila antigravidade”.116 O exame dos seus pertences revela um pacote de cartas, com fotos, de uma bela mulher que vive na África. Noland fica fascinado por essa mulher, Justine Smith. Hábeis flashbacks revelam que Noland é um dos poucos homens comuns desse futuro que ainda sabem ler. Sua jornada começa como condenado a trabalhos forçados em uma colônia agrícola. Na Inglaterra do futuro imaginado por Aldiss — num mundo com 25 bilhões de habitantes —, a flora nativa foi devastada para a abertura de campos de cultivo, e mesmo vilas e cidades pequenas foram destruídas para esse fim. Noland trava contato com grupos nômades conhecidos como “Viajantes” (Travellers), que se afirmam como resistência ao sistema, e acaba integrando um deles, liderado por um homem chamado Jess. É nesse grupo que ele conhece o seu primeiro amor, March Jordill. Mas Noland é capturado e, depois de entregar os revoltosos a Peter Mercator — o Fazendeiro (Farmer), figura do “Grande Irmão” nesse romance —, recebe a comissão do navio cargueiro Trieste Star. Ao descobrir que Noland sabe ler, Mercator lhe pergunta se ele já havia se “deparado com um livro chamado 1984”,117 romance distópico de George Orwell (1903-1950). E de fato, os trechos em flashback contando a 115 Greenland, Colin. The entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 70. 116 Um dispositivo chamado “ingravity parachute” que o sujeito também pode usar às costas é mencionado em The World of Null-A (1945), um dos romances mais famosos de A. E. van Vogt. 117 Aldiss, Brian. Earthworks. Londres: Methuen, 1988 [1965], p. 56. O romance 1984 é de 1949. 108 vida pregressa de Noland são pura distopia: um contexto humano deprimente, ausência de liberdades individuais, dissidências perseguidas e opressão constante. Mas uma vez na África, o principal modo do romance se torna a aventura: Noland e seus companheiros são atacados por homens armados e ele é forçado a precipitar o navio contra a terra firme. Capturado, é levado à cidade de Walvis Bay, em “Nova Angola”, onde ele quase que imediatamente se encontra com Justine Smith. Seu relacionamento com ela é exaltado, conturbado como se fossem amantes há muito tempo, mas com o atrito marcado por discordâncias éticas. Ela deseja que ele a apóie em um terrível plano para “salvar o mundo”; ele diverge, porque o esquema implica no assassinato de um líder continental que busca a paz. No conflito entre os dois, fugas, correrias, confrontos físicos, e um reencontro com Peter Mercator, até que Noland retorna, por assim dizer, aos braços de Justine — e ao fuzil que lhe é entregue para realizar o seu potencial de homem comum a grande homem, na causa derradeira de manter a guerra. Para isso ele precisará matar o Presidente africano el Mahasett — quando antes tentara impedir o assassinato. Justine Smith lhe diz: “Em todo este continente, apenas [esse] homem tem chance de garantir a paz derradeira entre as nações africanas [...].”118 Em um mundo superpovoado, em que o meio ambiente está moribundo e as condições de vida subumanas, a última coisa que os conspiradores desejam é a paz: — Mas nós podemos! Podemos matar o Presidente, podemos começar uma guerra mundial! É o único modo de romper o terrível ciclo que se estabeleceu. Tente entender, Knowle, por favor. O status quo precisar ser virado do avesso. A vida humana já não é mais sagrada... estamos em um período da história em que ela é uma blasfêmia, e o fazer amor uma perversão! [...]119 É um final cruel e contrário aos valores humanistas, que só se justifica se o autor é bem-sucedido em alertar seus leitores quanto às condições que levariam a um mundo em que essa terrível escolha seria a melhor. Ou seja, se Earthworks se inserir dentro da tradição do “conto cautelar” na ficção científica — e de fato, Aldiss escreveu que nesse romance ele se divertiu no papel de Cassandra.120 Não obstante, a retórica historicizante — “A história não está confinada aos livros. É o meio no qual vivemos.”121 — e afirmativas repetidas como “Aqui estava o cadáver de um mundo em que o indivíduo tivera algum status”, “um continente cheio 118 Idem, ibid. P. 101. Idem, ibid. P. 125. 120 Aldiss, Brian. The Shape of Further Things. P. 172. 121 Aldiss, Brian. Earthworks. P. 124. 119 109 de becos-sem-saída”, “A superpopulação não trouxe somente um colapso da organização econômica [...] mas um colapso da organização mental”, e “Estamos quebrados em termos espirituais e agriculturais — talvez ambos tenham sempre que caminhar juntos”,122 sugerem o entendimento marxista de que a situação dos meios de produção dita a conjuntura psicossocial, formando uma armadilha ideológica da qual só é possível escapar por um processo revolucionário: Noland pergunta quem sobreviverá à guerra, e Justine Smith afirma que serão os Viajantes, “as únicas pessoas que, mesmo nestes anos amargos que se passaram, tiveram a coragem de viver suas vidas independentes”.123 Enfim, novamente implicando em um processo de destruição entrópica — e revolucionária, no sentido do aniquilamento de uma ordem anterior — para a produção de uma nova ordem, ela afirma: “Não somos realmente assassinos, Knowle [...] Somos parteiros. Um novo modo de vida tem de surgir, e quanto mais cedo o velho se for, melhor.”124 Há igualmente, além desse discurso das condições históricas e da necessária revolução, um apelo à condição social do próprio Noland: “pense na ralé degradada que [habita as cidades]”, Justine exige, “divorciada da terra e de qualquer coisa natural e amorosa, escravos da ignorância e da superstição e da doença. Examine a sua própria vida infeliz!”125 É o ponto de vista aristocrático do espaço urbano como espaço de degradação, e da vida em certos extratos como indigna da condição humana. Ponto e vista que, para o oxfordiano John Carey, define o modernismo inglês e europeu. Em Os Intelectuais e as Massas: Orgulho e Preconceito entre a Intelligentsia Literária, 1880-1939 (The Intellectuals and the Masses: Pride and Prejudice among the Literary Intelligentsia, 1880-1939; 1991), Carey afirma que os intelectuais ingleses do início do século XX temiam a explosão populacional e o surgimento do “homem de massa” — termo do pensador espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). A visão de Carey, contudo, é a de que a “‘massa’, naturalmente, é uma ficção” e que sua “função como artifício lingüístico é eliminar a condição humana da maioria das pessoas — ou, seja como for, privá-las daquelas características especiais que tornam superiores, na sua própria opinião, aqueles que empregam o termo”.126 No bojo desse temor e reação, a 122 Idem, ibid. Pp. 38, 41, 88 e 100, respectivamente. Idem, ibid. P. 125. 124 Idem, ibid. Pp. 125-26. 125 Idem, ibid. P. 125. 126 Carey, John. Os Intelectuais e as Massas: Orgulho e Preconceito entre a Intelligentsia Literária, 1880-1939 (The Intellectuals and the Masses: Pride and Prejudice among the Literary Intelligentsia, 1880-1939). São Paulo: Ars Poetica, 1993, p. 7. Tradução de Ronald Kyrmse. 123 110 coletividade apontada como “massa” é desumanizada e associada a supostos males da democracia liberal, especialmente a intrusão do sujeito desqualificado nos espaços antes reservados à aristocracia cultural. A conclusão do livro de Carey é a de que “a finalidade da escrita modernista era excluir” os leitores recém-educados ou “semi-educados”, na visão da elite intelectual, surgidos com a industrialização e a democratização do ensino na Europa, “preservando assim a segregação entre o intelectual e a ‘massa’”. 127 Conclusão por si só muito interessante para a nossa discussão do estatuto da literatura popular e da sua situação dentro do pós-modernismo. Mas por hora basta afirmar a semelhança entre os argumentos de Carey quanto às posturas intelectuais modernistas inglesas, e o conteúdo de Earthworks. Para um romance cujo assunto é a superpopulação, Earthworks raramente caracteriza um ambiente superpovoado. Ao contrário, na maior parte do tempo é a solidão e o isolamento do herói que são enfatizados. O próprio autor reconhece esse efeito, ao colocar as seguintes palavras na boca de seu narrador: “você permanece perpetuamente solitário, em um mundo onde o estar só é a mercadoria mais rara.”128 Mas um colateral dessa carência de caracterização é que a “massa” é figurada somente como abstração intelectual. O leitor precisa da aristocrática Justine Smith para lhe dizer o quão ruim a “massa” é em si mesma, o quão ausente de sentido é a sua existência. E embora Noland seja um homem sensível em busca no autoconhecimento — “eu pensava que todas as novas experiências fossem bem-vindas para mim menos por seu próprio valor do que pelo que elas me davam como oportunidade de explorar mais profundamente dentro de mim mesmo”129 —, ele também precisa que ela lhe diga o quanto sua vida até então fora miserável e indigna. Sua alfabetização e seu interesse por seus próprios processos mentais não são suficientes, e em Os Intelectuais e as Massas Carey isola dois aspectos do modernismo embutidos nessa situação final de Earthworks: “O sonho do extermínio ou da esterilização da massa, ou a negação de que as massas fossem gente de verdade, era pois um refúgio imaginativo para os intelectuais do início do século XX.”130 127 Idem. Aldiss, Brian. Earthworks. P. 20. 129 Idem, ibid. P. 28. 130 Carey, John. Os Intelectuais e as Massas. P. 21. 128 111 Que o grande massacre se inicie na África é um detalhe que pode ligar-se às prescrições de H. G. Wells (1886-1946), autor de FC e intelectual inglês examinado por Carey em dois capítulos. Carey cita-o, afirmando, que, em Anticipations Wells nada apresenta que se aproxime de uma política de extermínio corretamente elaborada. Não obstante, parece convencido de que o genocídio é a única resposta. Os “enxames de gente negra, e parda, e branca-suja, e amarela” que não atendem às novas necessidades de eficiência, insiste ele, “terão de ir-se”. É “seu papel extinguirem[-se] e desaparecerem”.131 E observa ainda, citando Ortega y Gasset: [S]endo aristocrática, a arte moderna [ou os intelectuais modernistas] força[m] as massas a se reconhecerem tais como são — “a matéria inerte do processo histórico”. Também auxilia a elite, a “minoria privilegiada dos sentidos refinados”, a se distinguir a si própria e uns aos outros “na massa monótona da sociedade”. [...]132 Ainda como Ortega y Gasset declarou, se em “presença de um indivíduo podemos dizer se ele é ‘massa’ ou não”,133 Justine Smith está lá para dizer a Knowle Noland que o único modo de ele deixar de ser “massa” é contribuir para a destruição da “massa”. Earthworks dramatiza, na segunda metade do século XX, as preocupações e as fantasias dos intelectuais modernistas, mas é sem surpresa que seu autor utiliza esquemas narrativos pulp, ainda que relativizados pela emulação de A. E. van Vogt. A. E. van Vogt: A ‘Patafísica É Pulp Van Vogt estreou na ficção científica com a noveleta “O Destruidor Negro” (“Black Destroyer”) em 1939, na revista Astounding Science-Fiction de Campbell, e se tornaria um dos pilares da Golden Age. Famoso pelos romances Slan (1940) e The World of Ā ou The World of Null-A (1945), adquiriu a “reputação de mestre da space opera intrincada e metafísica”, segundo The Encyclopedia of Science Fiction (1993).134 131 Idem, ibid. P. 121. As citações vêm de Anticipations of the Reaction of Mechanical and Scientific Progress upon Human Life and Thought. Londres: Chapman and Hall, 1901, pp. 300-301. 132 Idem, ibid. P. 24. Carey está citando Ortega y Gasset em The Dehumanization of Art and Other Essays on Art, Culture and Literature. Princeton: Princeton University Press, 1968, pp. 5-13. 133 Idem, ibid. P. 29. 134 Clute, John. “van Vogt, A(lfred) E(lton)”. In The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 1268. 112 Embora a vinculação de van Vogt com Campbell seja bem estabelecida,135 em Trillion Year Spree, Aldiss tenta tomá-lo como exceção, definindo-o como “[d]ificilmente um típico homem de Campbell”. “O seu típico autor de Campbell o corrige sobre isto ou aquilo”, escreveu. “Van Vogt vai fazendo ovos mexidos do seu cérebro.”136 Aldiss chama van Vogt de “antepassado espiritual de Philip K. Dick”, afirmando que o próprio Dick teria admitido, e que o impacto emocional de van Vogt, e “suas complexidades, foi o que Dick pegou dele”.137 A seguir, Aldiss se dedica a destacar as “pepitas de ouro” entre a confusa escrita pulp característica do autor canadense, mas são seus aspectos de aparente anti-racionalidade que parecem interessá-lo mais. Sobre o herói de The World of Null-A, Gilbert Gosseyn (go-sane), ele afirma: “O observador é inevitavelmente parte do observado Gilbert Gosseyn [...], que tem crenças falsas a respeito de si mesmo, das quais ele deve se libertar.”138 Gosseyn incorpora o tema do super-homem na ficção científica. Vivendo em um futuro utópico, ao se submeter a um exame que visa determinar sua inteligência, podendo fazer com que ingresse em uma sociedade de elite intelectual em Vênus, o teste dispara uma série de complicados eventos que revelam ao herói que ele tem memórias artificiais implantadas. Além disso, outros corpos, cópias dele mesmo, estocados em locais secretos, ganham vida e o conhecimento adquirido pelo predecessor, assim que um receptor eletrônico registra a sua “morte”. Gosseyn também descobre ter um “segundo cérebro”, e suas aventuras levam ao conhecimento de que as relações humanas no Sistema Solar são muito mais amplas do que se imagina, envolvendo alienígenas e pessoas dotadas de uma “lógica não-aristotélica”. No romance, van Vogt explora um agudo senso de paranoia, enquanto dramatiza as idéias de Alfred Korzybski (1879-1950) expressas na Teoria da Semântica Geral, que afirma um caráter ilusório da realidade, de cuja percepção seríamos condicionados pelas limitações do sistema nervoso e da linguagem. Técnicas de meditação e de abstração poderiam levar o sujeito a outro nível de percepção do real. A teoria evoca diferenciações ontológicas e distinções psicológicas que ajudam a explicar por que sua dramatização por van Vogt atraiu Aldiss e levou Damien Broderick 135 Idem: “um dos criadores da Golden Age da FC de John W. Campbell, Jr. [...]”. Veja ainda Paul A. Carter. “From the Golden Age to the Atomic Age: 1940-1963”. In Anatomy of Wonder 4. P. 117. E Adam Roberts. Science Fiction. Londres & Nova York: Routledge, The New Critical Idiom, 2003[2000], p. 75. 136 Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree: The History of Science Fiction. P. 219. 137 Idem, ibid. P. 220. 138 Idem, ibid. P. 221. 113 a chamá-lo de pós-modernista “à frente do seu tempo”.139 No exemplo, a busca pelo conhecimento de si mesmo em choque com o contexto social, tão próprio do modernismo — no argumento epistemológico de McHale —, leva ao conhecimento de uma ordem do real superenvolvente ou entremeada — seu argumento ontológico — do pós-modernismo. E em tudo a sombra da afirmativa de uma das tônicas da condição pós-moderna, nas palavras de Bran Nicol: “Podemos estar divorciados do real, mas pelo menos sabemos que estamos [...] sabemos que não podemos mais presumir (se jamais o fizemos) que a ‘realidade’ é algo natural, algo inocentemente ‘dado’.”140 O não-racionalismo de van Vogt é traduzido em termos europeus continentais por Sam J. Lundwall, que enxerga nele exemplo da “tradição ‘patafísica [sic] da ficção científica”.141 O termo “‘patafísica” é criação do escritor francês Alfred Jarry; designa uma filosofia que estuda o que está além da metafísica e que propõe soluções imaginárias e investigações das leis que governam as exceções.142 Para Lundwall, “A. E. [van] Vogt constrói mundos particularmente absurdos nos quais as assunções básicas mudam constantemente”, e lembra que o ‘patafísico Boris Vian (1920-1959) foi o tradutor francês de The World of Null-A. Lundwall também avalia que os romances de van Vogt “têm sido pesadamente criticados nos Estados Unidos por não serem lógicos o bastante [...] e é claro que eles pareceriam absurdos e incompreensíveis para um leitor criado com revistas pulp americanas”.143 Os “mais sofisticados leitores franceses”, na visão de Lundwall, reconheceriam o autor como alguém dentro da tradição ‘patafísica. Contudo, Lundwall faz a ressalva de que a FC “ ‘patafísica não é equivalente à ficção científica ‘New Wave’. A ‘patafísica é um modo de observar a realidade, diferente do modo verniano [ou aristotélico?] de fazê-lo. A ‘New Wave’ ”, escreve, “é uma questão apenas de forma, a justaposição de imagens fugidias, palavras inventadas, um Dadaísmo atualizado [...]”.144 139 Broderick, Damien. “Posmodernism and SF.” In The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p. 950. 140 Nicol, Bran. “Postmodernism”. In A Companion to Modernist Literature and Culture, David Bradshaw & Kevin J. H. Dettmar, eds. Chichester: Wiley-Blackwell, 2008, pp. 566-67. 141 Lundwall, Sam J.. Science Fiction: An Illustrated History. Nova York: Grosset & Dunlap, 1.ª edição, 1978, p. 54. 142 David Macey, em The Penguin Dictionary of Critical Theory (Nova York: Penguin Books, 2001), sugere que a ‘patafísica é expessão do absurdismo no pensamento e na literatura, e observa que o teórico do pós-modernismo Jean Baudrillard reviveu o conceito em 1983, para descrever “o trabalho de planejadores militares e o inexorável acúmulo de sofisticados sistemas de armas que são concebidos para não serem usados” (p. 291). 143 Lundwall, Sam J.. Science Fiction: An Illustrated History. P. 54. 144 Idem, ibid. P. 56. 114 Paul A. Carter não compra o argumento ‘patafísico nem a suposta compreensão superior de van Vogt pelos leitores da França, “uma nação cuja comunidade de FC, eu admito, leva van Vogt muito mais a sério do que eu o faço aqui”, escreveu na sua avaliação da FC Golden Age para Anatomy of Wonder 4 (1995).145 A queixa de Carter é justamente a de que a narrativa de The World of Null-A, se baseada na Semântica Geral de Korzybski, carece do rigor lógico do cientista e que todo o romance “exemplifica o que hoje os psicólogos chamam de ‘pensamento mágico’ — não científico, e não, exceto superficialmente, semântico”.146 Mais central para o meu argumento é o ensaio crítico de Damon Knight, “Cosmic Jerrybuilder: A. E. van Vogt”, tido como um dos mais famosos “assassinatos literários” da FC. Ele o publicou originalmente em 1945, no fanzine Destiny’s Child, de Larry Shaw, mas incluiu uma versão ampliada na pioneira coletânea de resenhas e ensaios, In Search of Wonder (1956). Seu objetivo é contradizer Campbell na afirmativa do editor, de que The World of Ā seria “um daqueles clássicos da ficção científica que aparecem uma vez em cada década”,147 e provar que o romance de van Vogt seria um dos piores já publicados. Destrincha cada contradição e inconsistência que foi capaz de encontrar, e afirma que algumas das “pontas soltas e inconsistências [...] são simplesmente exemplos de falta de cuidado”,148 mas acha que outras, especialmente longos trechos sem relevância para a história, estão lá não para confundir propositalmente o leitor, mas em razão de um expediente mais prosaico: van Vogt prepara o terreno para uma seqüência. (De fato, o romance foi logo seguido de The Players of Null-A em 19481949, também publicado como The Pawns of Null-A.) No caminho inverso ao de Aldiss, Knight ressalta exemplos de escrita ruim, que, segundo ele, “poderiam ser multiplicados infinitamente”,149 e atribui a reputação do autor canadense a uma forma de mistificação: “a reputação de van Vogt repousa largamente no que ele não diz, e não no que ele diz. É um hábito seu apresentar um monstro, ou um gadget, ou uma cultura extraterrestre simplesmente nomeando-os, sem qualquer explicação de sua natureza.” Acrescenta que é 145 Carter, Paul A.. “Golden Age to Atomic Age”. In Anatomy of Wonder 4: A Critical Guide to Science Fiction, Neil Barron, ed. New Providence, NJ: R. R. Bowker, 1995, p. 201. 146 Idem. 147 Conforme citado por Damon Knight, em “Cosmic Jerrybuilder: A. E. van Vogt”. In In Search of Wonder, Damon Knight. Chicago: Advent Publishers, 1967´[1956], p. 47. Knight favorece o título The World of Ā. 148 Knight, Damon. “Cosmic Jerrybuilder: A. E. van Vogt”. In In Search of Wonder. P. 51. 149 Idem, ibid. P. 56. 115 fácil concluir a partir disso que van Vogt é um escritor bom e profundo, por duas razões: primeiro, porque o seu hábito de presumir as coisas provavelmente induz um leitor casual a fazer o mesmo; e segundo, porque esse dispositivo autoral é usado por vários bons escritores que mais tarde fornecem de modo oblíquo as explicações omitidas, como partes integrais da ação. O fato de van Vogt não fazer nada do tipo pode facilmente deixar de ser notado. Com isso, e por meio do seu estilo de escrita, que é discursivo e difícil de acompanhar, van Vogt também obscurece seu enredo a tal ponto que quando ele desmorona no final, como freqüentemente ocorre, o evento não causa impacto.150 Enfim, Knight denuncia a recorrência ao deus ex machina e a falta de coerência nos níveis de enredo, caracterização, ambientação e estilo. O projeto todo de In Search of Wonder parte de alguns postulados, entre eles o de que a “ficção científica é um campo da literatura que vale ser levado a sério, e que padrões críticos comuns pode ser aplicados significativamente a ele: e.g., originalidade, sinceridade, estilo, construção, lógica, coerência, sanidade [...]”.151 A ênfase na racionalidade, no cuidado e nos elementos composicionais do romance tradicional faz parte da militância crítica de Knight no período entre 1956 e 1960, importante, ao lado de outros escritores-críticos como James Blish (1921-1975), em uma tradição de crítica por escritores que, segundo Gary K. Wolfe, “alcançou uma nova dimensão de sofisticação quando James Blish e Damon Knight começaram a buscar o estabelecimento de padrões críticos em seus vários artigos em periódicos”,152 afastando-se da crítica de fãs e levando uma nova consciência mais literária da FC, naquele período que Aldiss viria a chamar de “ápice” do gênero. Mais tarde, o trabalho de Knight como editor da série de antologias Orbit seria importante para a promoção da New Wave, certamente com outra perspectiva literária. Não obstante, sua crítica a van Vogt lança uma sombra sobre o autor canadense que ainda perdura. O ponto principal para a minha análise está no fato de Knight claramente enxergar como expressão de incompetência técnica aquilo que outros vêem como ousadia formal e projeto conceitual. Sua descrição das limitações de van Vogt é denúncia do tipo de escrita pulp da qual Knight, Bester e Blish queriam distanciar a nova FC “séria” que crescia naquele período. Trata-se, não obstante, de outra instância da declaração de Ken Gelder de que ficção de gênero “tem tudo a ver com conhecimento e competência”.153 150 Idem, ibid. Pp. 60-61. Knight, Damon. “Critics”. In In Search of Wonder. P. 1. 152 Wolfe, Gary K.. “History and Criticism”. In Anatomy of Wonder 4. P. 484. 153 Gelder, Ken. Popular Fiction: The Logic and Practice of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 2. 151 116 Na tentativa de afastar-se do idioma pulp e ao renunciar ao racionalismo estrito, a New Wave, buscando o inner space e outras aberturas para o subjetivo, às vezes renuncia a lógica de “conhecimento e competência” (intertextualidade e técnica específicas) na composição literária, talvez identificando-a com a subordinação de indivíduos e grupos à “performatividade do sistema”, nas palavras de Jean-François Lyotard (1924-1998).154 Paradoxalmente, isso acaba por aproximá-la do pulp — como é o caso de The Black Corridor (1969), de Michael Moorcock & Hillary Bailey,155 e de Indoctrinaire (1970), de Christopher Priest. O primeiro é um romance curto que acompanha o industrial inglês Ryan, que antevê o colapso da sociedade e, inescrupulosamente, rouba uma espaçonave para abandonar a Terra, levando o seu pequeno grupo para outro sistema planetário. A narrativa parte de Ryan sozinho na nave, seus companheiros congelados enquanto ele rememora os eventos a partir de um estado de angústia e paranóia causado pela solidão do espaço. Assim, a viagem ao espaço exterior no romance é transformada em uma viagem ao espaço interior. “Minha psique, eu suponho, refletia o ambiente”,156 Ryan medita, e por suas palavras os autores expõem sua proximidade do conceito de Ballard. Ryan, descrito como um “liberal com l minúsculo”,157 racionaliza tudo o que se passa, de modo a justificar a sua atitude implacável, e nisso o personagem certamente visa representar, possivelmente, o caráter do homem burguês; como sugere este diálogo com a alucinação de seu tio Sidney: “— Você é um tolo — o Tio Sidney diz. — Tem enganado a si mesmo por todo o caminho. Bem antes de se meter nesta encrenca. Você só era melhor em racionalizar a sua paranóia. Não merece ter escapado. Nenhum de nós merece. Você é esperto. Mas agora está sozinho.”158 Além de representar a hipocrisia burguesa, Ryan é forçado pela solidão a encarar seus crimes (que incluem o assassinato da amante), e, dentro de seu estado mental, os 154 Lyotard, Jean-François. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Minneapolis: University o Minnesota Press, 12.ª edição, 1999 [1979], p. 11: “[A] harmonia entre as necessidades e esperanças de indivíduos ou grupos e as funções garantidas pelo sistema é agora apenas um componente secundário do seu funcionamento. O verdadeiro objetivo do sistema, a razão dele se programar como um computador, é a optimização do relacionamento global entre inputs e outputs — em outras palavras, performatividade.” Lyotard está interpretando os sociólogos Talcott Parsons (1902-1979), Helmut Schelsky (1912-1984) e Jüergen Habermas (este da Escola de Frankfurt). 155 Inicialmente não creditada. Cf. John Clute & Peter Nicholls, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. P. 823. Bailey era então esposa de Moorcock. 156 Moorcock, Michael (& Bailey, Hillary). The Black Corridor. St. Albans: Mayflower, 1973 [1969], p. 108. 157 Idem, ibid. P. 43. 158 Idem, ibid. P. 122. Em The Entropy Exhibition, Colin Greenland cita Ryan como exemplo de um tipo lançado pela New Wave, o do “astronauta louco” (p. 49). 117 limites da sua racionalidade: “Eu tenho cérebro — sou racional — trabalhei cientificamente — pragmaticamente...”159 Portanto, The Black Corridor não apenas opera os conceitos e os recursos técnicos da New Wave (com várias páginas apresentando recursos concretistas), como não se acanha em lançar declarações ideológicas e programáticas, contrárias ao racionalismo e à burguesia. A prosa rápida, porém, com parágrafos de uma ou duas linhas, a ação acelerada, transições abruptas e movimentações inconsistentes dos personagens (como quando voam para a Rússia para roubar a nave, sem que os autores expliquem a façanha), apontam para uma ligeireza e superficialidade pulps. Indoctrinaire, romance de estréia de Priest, sofre de problemas semelhantes, embora menos “experimental” e melhor escrito. Ambientado em sua maior parte no Mato Grosso e em São Paulo,160 descreve como o Dr. Elias Wentik, um bioquímico inglês que pesquisa drogas alucinógena, veio parar num local chamado “Distrito do Planalto” (Planalto District), onde é encarcerado e submetido a estranhos experimentos em um laboratório secreto — entre eles, o contato com uma mão humana que se projeta, descorporificada, do centro de uma mesa (“sinistro surrealismo” que o perturba).161 Wentik escapa em um helicóptero, e reflete: “Se uma abordagem racional falhar, aja irracionalmente.”162 Após um encontro com uma estranha aeronave futurista, ele é capturado e levado a um hospital em São Paulo. Lá, é informado de que está no século XXII, e que um portal temporal existe no Distrito do Planalto. Mais que isso, é informado de que uma guerra iria destruir o mundo, no futuro mais próximo, sendo a principal causa dessa guerra o alucinógeno em que o próprio Wentik trabalhava. O romance inclui uma viagem solitária de avião até a Antártida, com uma única complicação: a marinha brasileira teria requisitado todo combustível de avião, mas o pesquisador inglês “finalmente se lembrou que todos os sul-americanos são potencialmente subornáveis”.163 Complicações e confrontos ligeiros, mal equilibrados por símbolos, senhas e palavras de ordem da New Wave, dão o caráter pulp da narrativa. Tais símbolos e senhas seriam suficientes para colocar esses romances como antídotos ao idioma de um pulp puro sangue como, por exemplo, Luta por Marte (I 159 Moorcock, Michael (& Bailey, Hillary). The Black Corridor. P. 124. As aventuras de Theodore “Teddy” Roosevelt (1858-1919) na região do Mato Grosso, em 1913 com o Marechal Rondon, tornaram esse estado brasileiro um dos mais populares na ficção em língua inglesa no século XX. Michael Moorcock também ambienta seu romance planetário The Ice Schooner (1969) num Mato Grosso do futuro distante, em meio a uma glaciação. 161 Priest, Christopher. Indoctrinaire. Nova York: Pocket Book, 1971 [1970], p. 52. 162 Idem, ibid. P. 91. 163 Idem, ibid. P. 167. 160 118 Fight for Mars; 1953), de Charles Grey (E. C. Tubb; 1919-2010)? Nele, o herói John Delmar, ex-piloto espacial, começa sua jornada na prisão, condenado por ter batido no seu supervisor, depois dele negar sua visita à esposa enferma. Finda a pena, Delmar tenta se reajustar à sociedade distópica do futuro, mas o melhor que consegue é o emprego de carregador dos cadáveres que as pessoas depositam todos os dias nas ruas para cremação. Mas logo é recrutado para pilotar uma nave clandestina até Marte (carregada de armas, apesar de ele achar que leva passageiros), onde ocorrer uma rebelião contra empresas controladas pela Terra. O maior problema da colônia marciana, porém, é uma “praga” de lobantos, criaturas violentas com aparência de escorpiões gigantes. De piloto o herói logo migra para artilheiro de um veículo blindado que enfrenta os lobantos. Ferido, conhece uma enfermeira muito parecida com sua falecida esposa. Recuperado e com um novo amor, Delmar retorna ao campo de batalha e descobre o segredo dos lobantos — são robôs comandados por um computador telepata escondido sob as areias de Marte. Enfatizando os diálogos e centrado na ação, o livro de Tubb (com só 94 páginas na edição brasileira),164 que foi colaborador da New Worlds pré-Moorcock, oferece alguns momentos de reflexão, mas, assim como os exemplos da New Wave discutidos acima, no seu clima delirante alterna situações velozmente e com um mínimo de complicações lógicas: a distopia urbana, a intriga revolucionária, a suposta luta contra a natureza, o interesse amoroso, a descoberta do antagonista mecânico e a sua destruição. Pulp até os ossos, mas conserva certa melancolia que faz com que os momentos gloriosos do final estejam tingidos com os tons desesperados da distopia aparentemente deixada na Terra. E sem pretensão literária nem símbolos e senhas supervalorizados. Mais tarde, Tubb iria tentar se aproximar da New Wave, com, por exemplo, “New Experience” (1964), sobre uma droga experimental que elimina a dimensão do tempo. Para Colin Greenland, a conclusão desse conto, que retorna à realidade objetiva, “demonstra como a mentalidade de um escritor de fc [sic] tradicional resiste a invasão do espaço interior”.165 Mas a herança de van Vogt e comparação entre a novela juvenil 164 Luta por Marte (I Fight for Mars), Charles Grey (E. C. Tubb). Rio de Janeiro: Ciência e Técnica do Futuro N.º 1, Jornal de Ciências, 1954. Tradução de Edna Gama. Essa coleção juvenil que teria sido a primeira dedicada ao gênero no país, batendo inclusive a Ficção Científica GRD de Gumercindo Rocha Dorea por quatro anos — não fosse o fato de, até onde se sabe, não ter tido continuidade. O livro de Tubb teria sido o primeiro e único a aparecer. O péssimo trabalho editorial (a impressão lembra mimeógrafo) pode explicar a interrupção. 165 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 59. 119 de Tubb e os exemplos citados de romances New Wave sobre o espaço interior revela o quanto era difícil para o movimento se livrar do idioma pulp. Aldiss e a Incerteza do Olhar O mesmo talento para a mímica literária visto na emulação de van Vogt leva Aldiss a escrever Report on Probability A (1968), então emulando técnicas localizadas no extremo oposto do espectro literário, as do noveau roman, corrente literária francesa que teria prenunciado o pós-modernismo.166 Afirmativas como a de Alain Robbe-Grillet em Por um Nôvo Romance (Par un nouveau roman; 1963), de que as “significações do mundo [...] são apenas parciais, contraditórias mesmo, e sempre contestadas”167 são exemplarmente coincidentes. Surgido na década de 1950, o noveau roman é geralmente visto como uma forma de “anti-romance” por rejeitar as concepções usuais de enredo e personagem, condenar a herança do romantismo, rejeitar idéia da profundidade de sentidos, e por buscar a descrição como expressão de uma nova linguagem literária: “é toda a linguagem literária que deveria mudar, que já está mudando”, Robbe-Grillet escreveu, denunciando a “crescente repugnância daqueles mais conscientes” quanto à “palavra de caráter visceral, analógico ou encantatório”. Buscando intencionalmente a superfície, renuncia a noção de que o mundo palpável é a máscara de uma essência metafísica. Por isso, “o adjetivo óptico, descritivo, aquêle [sic] que contenta com medir, com situar, limitar, definir, mostra provàvelmente [sic] o caminho difícil de uma nova arte do romance”.168 Report on Probability A teria sido escrito em 1962, para ser publicado seis anos mais tarde, numa aparente maturação tardia do mercado.169 Nele, Brian Aldiss torna o componente óptico, descritivo, o centro de uma situação ficcional em que indivíduos de uma dimensão ou continuum paralelo analisam aquilo que chamam de “Relatório de 166 Veja Linda Hutcheon. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction, de Linda Hutcheon (Nova York & London: Routledge, 1988, p. 4), e o capítulo “Reading and the Division of Labor” Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism (Durham: Duke University Press, 1992 [1991], pp. 131-53), de Fredric Jameson. 167 Robbe-Grillet, Alain. Por um Nôvo Romance (Par un nouveau roman). São Paulo: Editora Documentos, Coleção Nova Crítica Vol. 1, 1969 [1963), p. 95. Tradução de T. C. Netto. 168 Idem, ibid. P.19. 169 Pringle, David & Clute, John. “Aldiss, Brian W(inson)”. In The Encyclopedia of Science Fiction. P. 11. “[E]scrito em 1962 mas inédito até que os tempos mudassem.” 120 Probabilidade A”, antes de levá-lo a um terceiro personagem conhecido apenas como “Governador”: — Chamemos este continuum que estamos estudando de [...] Probabilidade A. Sabemos que ele é estreitamente relacionado ao nosso continuum, que gosto de imaginar de Certeza X. Não obstante, mesmo superficialmente, Probabilidade A revela certos valores básicos que diferem largamente dos nossos. Nosso primeiro dever é examinar esses valores.170 O quadro de um pintor existente nas duas realidades fornece evidência de que uma é variante da outra. Ao mesmo tempo, os personagens da “Certeza X”, que se afirmam humanos, são observados por seres chamados “distinguidores” e “ cogitadores”, também de aparência humana. Por sua vez, um robô-espião os observa e retransmite suas imagens a uma central em Nova York, aparentemente no nosso continuum. Cada observador, no seu nível correspondente, interpreta aquilo que observa como probabilidades ou “mundos FALSOS, ecos de fase”171 — o que provavelmente levou Brian Stableford a entender Report on Probability A como “tentativa de escrever um romance baseado no princípio da incerteza de Heisenberg”,172 postulado da mecânica quântica que comporia o novo quadro de paradigmas do momento pós-moderno, assim como a relatividade o teria sido no momento moderno — ainda que Michael H. Whitworth questione tais premissas no ensaio “The Physical Sciences” (2006).173 Os ensaios de Jean Baudrillard (1929-2008), por exemplo, são freqüentemente costurados em torno de metáforas tomadas da mecânica quântica, como em Simulacros e Simulações (Simulacres et simulation; 1981) e em As Estratégias Fatais (Les Stratégies fatailes; 1983),174 e em The Postmodern Condition (La condition postmoderne; 1979) Lyotard menciona seguidamente a mecânica quântica para reforçar o conceito da 170 Aldiss, Brian. Report on Probaility A. Nova York: Avon Books, 1.ª edição, novembro de 1980 [1968], p. 17. Grifos no original. 171 Idem, ibid. P. 90. 172 Levy, Michael M. (com Stableford, Brian). “The New Wave, Cyberpunk, and Beyond”. In Anatomy of Wonder 4. P. 240. A observação está na seção de abstracs de livros no período abordado, esta em particular assinada por Stableford. 173 Whitworth, Michael H.. “The Physical Sciences”. In A Companion to Modernist Literature and Culture. Pp. 39-49. 174 O filósofo americano Denis Dutton (1944-2010), no ensaio “Delusions of Postmodernism” (Literature and Aesthetics 2 [1992]: 23-35), questiona as metáforas quânticas do discurso teórico pós-moderno (centrando-se no dos pós-estruturalistas). Disponível em http://www.denisdutton.com/postmodern_delusions.htm. 121 incerteza dentro do que ele chama de “ciência pós-moderna”.175 No romance de Aldiss, “muitas coisas são probabilidades, nada é certo”, segundo Greenland.176 O nouveau roman figura para Fredric Jameson como evidência de uma nova textualidade visual que impediria uma interpretação textual aprofundada, como antigamente177 — daí a obsessão do movimento pelo descritivismo e pela superficialidade dos objetos, e de sua rejeição à metáfora e à idéia da profundidade de sentidos do texto literário. Mais que isso, a produção de uma “incerteza lingüística” — tomada, na interpretação de Jameson, a partir da obra de William Faulkner (1897-1962) — exibiria uma “antecipação profundamente arraigada do inevitável fracasso da linguagem, que nunca coincidirá com os objetos”.178 Nisso, o movimento apontaria para a “crise da representação”, central para o aspecto auto-reflexivo definidor — na visão de Linda Hutcheon, por exemplo — da arte pós-modernista.179 No nouveau roman, o que a descrição das coisas “principalmente demonstra é antes a quebra da descrição e o fracasso da linguagem em algumas das coisas mais óbvias que se esperava que ela fizesse”.180 Em Report on Probability A, Aldiss sublinha a dimensão do olhar organizando o texto em torno dos leitmotifs da janela, do telescópio, do periscópio, do espelho, do quadro, e, finalmente, da câmera (instalada em uma mosca robô). A estrutura de observação em camada de mundos alternativos é suficientemente ontológica para garantir a sugestão do recurso heterotópico central para McHale. Mas Aldiss se aproxima, por meio de sua emulação do nouveau roman, de mais aspectos centrais do 175 Lyotard, Jean-François. The Postmodern Condition (La condition postmoderne). Minneapolis : University of Minnesota Press, Theory and History of Literature Vol 10, 12.ª edição, 1999 [1979],pp. 5560. 176 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 85. 177 Jameson, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1992 [1991], p. xv. 178 Idem, ibid. P. 133. No mesmo capítulo, o tortuoso argumento de que obras do nouveau roman como Les corps conducteurs (1971), de Claude Simon (1913-2005), constituem um análogo simbólico do trabalho não-alienado parece menos convincente do que outras observações de Jameson acerca da proximidade do movimento em relação à arte pós-modernista. 179 Hutcheon, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. Nova York & Londres: Routledge, 1988, p. x. “[A]o mesmo tempo intensamente auto-reflexiva e paródica, [a arte pós-moderna] todavia também tenta enraizar-se naquilo que tanto a reflexividade quanto a paródia parece entrar em curto-circuito: o mundo histórico [...]” Ao longo do seu livro, porém, Hutcheon tenta enfraquecer o vínculo do pós-modernismo com a auto-reflexibilidade “extrema” da metaficção (mencionando como exemplo o “Novo Romance Francês”), associando-a “uma extrema auto-reflexão autotélica modernista”, elegendo como forma preferencial da literatura pós-modernista a metaficção historiográfica: “[...] eu gostaria de argumentar [...] que o termo pós-modernismo na ficção seja reservado para descrever uma forma mais paradoxal e historicamente mais complexa que tenho chamado de ‘metaficção historiográfica’.” (P. 40) 180 Jameson, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. P. 135. 122 pós-modernismo, no entendimento de Jameson e Hutcheon. Entretanto, a perspectiva psicologizante da New Wave é mantida quando surge a interpretação de que a mosca “não penetrou uma outra dimensão ou nada disso. Ela entrou em algum tipo esquisito de comunicação mental. ”181 Uma intrusão do conceito de inner space que não é menos conspícua do que o conceito, antigo na ficção científica, da abertura de janelas ou do envio de sondas dimensionais. Nesse sentido, os recursos de FC subordinam e ordenam os diversos leitmotifs do olhar e do reportar: “[H]avia observadores observando-os, e também eles tinham observadores [...], em uma série quase infinita. Cada estágio de observador tinha uma teoria do observado; cada estágio colocava algo de suas próprias paixões, na observação.”182 Essa subordinação aos recursos de FC enfraquece o aspecto performático do nouveau roman, de modo que, mesmo quando Aldiss constrói uma obra tão característica do pósmodernismo, ela aponta para a sua superação pela “fabulação estrutural”. Esta seria a propriedade da FC de, mesmo mantendo a narrativa realista e os elementos tradicionais do texto de ficção, apontar para a circunstancialidade da representação do mundo, já que a percepção do status quo do conhecimento presente é sempre relativizada pela especulação do futuro ou de outras realidades. O conceito é de Robert Scholes, expresso em Structural Fabulation (1975), ao qual retornarei no capítulo final. * A cultura das drogas e o psicodelismo da contracultura é figurado por Aldiss em Barefoot in the Head: An European Fantasy (1969), fix-up de histórias publicadas em New Worlds, a série Acid Head War. O formato permite variações de estilo que, mantidas no romance e acrescidas de poemas e que vão do simplório ao concretista, dão a ele uma ousadia formal que lhe rendeu comparações com Finnegans Wake (1939), de James Joyce (1882-1941). A obsessão de Aldiss em construir sua carreira em torno de uma versatilidade estilística que o faz variar estilo e estrutura de livro para livro está plasmada nos capítulos desse romance incomum. Segundo Greenland, a variedade inquestionável da obra de Aldiss “não é apenas o exercício de uma mente ágil e energética, mas também expressão de uma imaginação ampla e profunda que considera perigoso olhar a partir de um único ponto de vista, mesmo que humano”.183 O próprio 181 Aldiss, Brian. Report on Probability A. P. 103. Idem, ibid. P. 141. 183 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 84. 182 123 Aldiss declarou: “Com cada romance que escrevo, eu apreendo alguma coisa, e então não desejo repeti-lo; há sempre algo mais a fazer.”184 Após um conflito em que drogas alucinogênicas foram usadas como armamento pelos árabes contra a Europa,185 um jovem sérvio anglófilo, comunista e materialista fracassado, visita finalmente a Inglaterra assumindo o pseudônimo de Colin Charteris e tornando-se espécie de guru de uma paisagem mental coletiva que se projeta sobre a geografia européia, quando ele se junta a uma religião chamada Continuar (Proceed). O nome do herói teria sido tomado de “Leslie Charteris”, pseudônimo do escritor sinoinglês Leslie Charles Bowyer-Yin (1907-1993), autor da série pulp de ficção de crime protagonizada por Simon Templar, “o Santo” — e sua transformação literal em santo ao longo do romance é irônica, dada a sua conexão com a inspiração popular do herói. Há nessa ironia algo de comentário pós-modernista sobre a cultura popular ou “de massa”. Barefoot in the Head é talvez a incursão mais forte de Aldiss ao inner space dentro desse período, o aspecto psicanalizante reforçado pela caracterização do herói como alguém que tenta escapar da “dominação paterna”.186 A Europa descrita por ele — com todo o berrante colorido hippie — é a sua zona heterotópica, mesmo que tenha escapado ao recenseamento de Brian McHale, que não menciona em Postmodernist Fiction. Greenland vê a guerra do ácido como lembrete de que “o principal efeito dos desastres é a perturbação do passado em relação ao presente”,187 e portanto um efeito mental. “Para viver agora na Inglaterra”, Greenland escreveu, “Charteris deve descartar suas noções prévias do país, imagens estilizadas ‘retiradas de dúzias de livros do Santo’, enquanto a burguesia inglesa deve desistir do conservadorismo cultural pelo qual ela tem excluído o tempo, seus rádios perpetuamente sintonizados em Glenn Miller, crepúsculos presos em seus portões de ferro”.188 184 Aldiss, Brian. “Just Passing Through”. SF Impulse N.º 12 (fevereiro 1967): 12-29. Cf. Colin Greenland. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 84. Greenland não dá a página da qual extraiu a citação. 185 “Acid Head” é trocadilho com “war head”, ou “ogiva militar”, e a expressão “cabeça de ácido”, gíria para o usuário de LSD. 186 Aldiss, Brian W. Barefoot in the Head. Nova York : Ace Books, 1.ª edição, outubro de 1972 [1969], p. 58. Talvez seja interessante lembrar, a propósito de uma conexão entre o desejo de superação da opressão paterna e o messianismo do protagonista, que Sigmund Freud acreditava que as “necessidades religiosas” derivavam do “desamparo infantil e do anseio de presença paterna que ele desperta” (in O Mal-Estar da Cultura. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010, p. 56. Tradução de Renato Zwick). Quanto ao inner space, Charteris declara a respeito de Loughburrows, a localidade em que se instala: “Loughburrows sou eu, meu cérebro, aqui estamos no meu cérebro, é tudo eu. O nômade está aberto para a cidade. Eu estou projetando Loughburrows.” (P. 89) 187 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 87. 188 Idem. 124 É evidente que também aqui o tema pós-modernista da incerteza é a tônica, sublinhada pelo estilo mutante — centrado em trocadilhos, prosa ritmada, pontuação ausente e sentidos que se transformam ao longo de uma mesma sentença — firmando uma “instabilidade ou indeterminação ontológica”, para usar uma expressão de McHale,189 provocada pelo estado alterado de consciência. McHale fornece estratégias de construção de uma zona heterotópica: justaposição, interpolação, superposição e falsa atribuição.190 Nenhuma casa perfeitamente com a estratégia usada por Aldiss em Barefoot in the Head, mas está claro que a fronteira ontológica entre o imaginado e o vivido é enfraquecida, e que o espaço na narrativa pósmodernista “é menos construído do que desconstruído pelo texto, ou antes, construído e desconstruído ao mesmo tempo”191 — no caso, o espaço geográfico e cultural da Europa. Para o sociólogo Zygmunt Bauman, a questão da identidade está no centro da condição pós-moderna. Em O Mal-Estar da Modernidade (Postmodernity and Its Discontents; 1997), ele argumenta que o projeto da modernidade “prometia libertar o indivíduo da identidade herdada”, mas isso não significou negar a importância da identidade em si: “Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização — fazendo dela, assim, uma tarefa individual e de responsabilidade do indivíduo.”192 Já na pós-modernidade, os projetos de vida individuais não encontrariam nenhum “terreno estável em que [posicionar] uma âncora, e os esforços de construção de identidade individual não [poderiam] retificar as consequências do ‘desencaixe’, deter o eu flutuante e à deriva”, uma vez que se firma um “novo tipo de incerteza [...] a respeito da futura configuração do mundo, a maneira correta de viver nele e os critérios pelos quais julgar os acertos e erros da maneira de viver”.193 Não obstante, haveria uma genuína oportunidade na pós-modernidade [...] Essa oportunidade não se acha na celebração da etnicidade nascida de novo e na genuína ou inventada tradição tribal, mas em levar à conclusão a obra do “desencaixe” da modernidade, mediante a concentração do direito de escolher a identidade de alguém como a única universalidade do cidadão e ser humano, na suprema e inalienável responsabilidade individual pela escolha — e mediante o desnudamento dos complexos mecanismos administrados por estado ou tribo e que têm em mira despojar o indivíduo dessa liberdade de escolha e dessa responsabilidade. A unicidade humana depende dos 189 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. Pp. 26 e 27. Idem, ibid. P. 45. 191 Idem. 192 Bauman, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Postmodernity and its Discontents). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998 [1997], p. 30. 193 Idem, ibid. P. 32. 190 125 direitos do estranho [outsider], não do problema sobre o que — o estado ou a tribo — está habilitado a decidir quem são os estranhos [sic].194 Scott McCracken tem algo a dizer sobre a relação entre identidade e literatura popular. Tomando de Walter Benjamin (1892-1940) o trem como metáfora das identidades em fluxo dentro da modernidade: “a representação de Benjamin da ferrovia como uma ‘máquina gigante’ pode ser vista como metáfora do mundo no qual o leitor de ficção popular existe.” E citando o sociólogo Anthony Giddens a respeito da sociedade moderna, caracterizadas por sistemas auto-referenciais que confundem o sujeito e minam sua capacidade de ação, McCracken, retornando a Benjamin, observa: Todo o processo de adquirir e ler um romance de detetive [ou qualquer outra forma de literatura de gênero] age como uma espécie de ritual que permite ao leitor manter um senso funcional de si mesmo por toda a perturbadora experiência da viagem. [Benjamin] descreve como diferentes tipos de narrativas populares fornecem a oportunidade de projetar ou fantasiar diferentes tipos de eus. Em cada caso, o processo de auto-invenção envolve uma transação entre mundo, leitor e texto. 195 Os argumentos são semelhantes. O enfraquecimento de estruturas rígidas da sociedade pré-moderna levam a essa perda das identidades herdadas, e isso, por outro lado, abre espaço para a autocriação de identidades pelo indivíduo. Isso recuperaria aquilo que McCracken chamou de “eu moderno”, “apresentado pelos defensores da modernidade como sendo um eu crítico”.196 Ele observa, porém, que essa possibilidade positiva em geral não é estendida ao leitor de ficção popular. Contudo, sendo produto direto do mundo moderno, a literatura popular, segundo McCracken, “age como medium entre o leitor e o mundo, por meio do qual é possível encenar as contradições sociais da modernidade”.197 Ainda citando Giddens, quando o sociólogo diz que “o processo reflexivo do eu [...] consiste na sustentação de narrativas biográficas coerentes ainda que continuamente revisadas”,198 ele oferece a hipótese de que o texto popular forneceria parte do “material pelo qual as narrativas do eu podem ser sustentadas e 194 Idem, ibid. Pp. 46-47. Em A Poetics of Postmodernism, Linda Hutcheon observa que, quando “o centro começa a ceder às margens, […] [a] homogenização cultural também revela as suas fissuras, mas a heterogeneidade que é firmada na face dessa cultura totalizante (e todavia pluralizante) não assume a forma de muitos sujeitos individuais fixos […], mas ao invés, é expressa como um fluxo of identidades contextualizadas: contextualizadas por gênero sexual, classe, raça etnicidade, preferência sexual, educação, papel social, e assim por diante.” (P. 59) 195 McCracken, Scott. Pulp: Reading Popular Fiction. Manchester & Nova York: Manchester University Press, 1998, pp. 3-4. 196 Idem, ibid. P. 7. 197 Idem, ibid. P. 6. 198 Giddens, Anthony. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge : Polity Press, 1991, p. 20. Cf. Scott McCracken, Pulp: Reading Popular Fiction. P. 8. 126 revisadas”.199 Sua conclusão final é a de que, desse jogo de construção de identidade a partir da mediação social da ficção popular, surgiria um impulso utópico, o vislumbre de que as situações podem mudar para melhor: O texto, a narrativa popular em si, é produto do mundo e se torna parte do mundo. Mas uma narrativa ficcional é mais do que apenas uma parte do mundo; é também uma reflexão sobre esse mundo. O relacionamento entre texto e mundo envolve um processo de mão-dupla que exige um leitor para ser efetivado. O leitor também é um produto do mundo, mas, ao mesmo tempo, ele ou ela é um agente nesse mundo, mudando-o por suas ações. A despeito do fato de ser freqüentemente pensada como uma atividade passiva ou puramente recreativa, a leitura de textos populares faz parte desse processo de mudança. A ficção popular pode nos fornecer as narrativas de que precisamos para nos re-situarmos em relação ao mundo. O leitor de ficção popular está ativamente engajado na recriação do seu eu, e esse ato de recriação tem um potencial utópico.200 Nesse sentido, é interessante enxergar o trajeto do herói de Barefoot in the Head como o de alguém de identidade em formação, que chega à Inglaterra já apoiado na ficção popular (os romances d’O Santo), mas que termina com uma identidade diluída — já que seu status messiânico é mais atributivo (produzido pela coletividade de seguidores) do que autoconstruído. Além disso, o romance reflete sobre a qualidade mitopoética, geradora de mitos, da cultura pop: Charteris assume um caráter messiânico que deve ser coroado pela produção de um filme sobre sua vida e o culto estabelecido em torno dele, assunto que domina grande parte do livro. O próprio protagonista a certa altura observa: “No mundo 199 McCracken, Scott. Pulp: Reading Popular Fiction. P. 8. Idem, ibid. Pp. 16-17. Ken Gelder adverte McCracken por “extrair amplas generalizações ideológicas de um campo literário dinâmico e altamente diferenciado” (Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 100), entre as quais a de que a ficção popular mediaria o conflito social, mas a idéia de que a ficção ou a cultura popular auxiliam na criação de um eu moderno de perfil crítico ou rebelde aparece até mesmo na literatura, como no romance de James Jones (1921-1977), A Um Passo da Eternidade (From Here to Eternity; 1951). Na obra de Jones, o herói Robert “Prew” Pruitt é um soldado e pugilista amador que desiste do boxe depois de cegar um colega de treino. O comandante da sua companhia exige que ele participe de um torneio regimental, e, diante da insistência de sua recusa, mobiliza oficiais e praças para pressioná-lo a lutar. A pressão vai aos poucos se transformando em tormento, mas Prew reage como se ela ameaçasse sua própria identidade, e insiste na negativa. Prew — que deixou a família ainda jovem para viver uma vida na vagabundagem, até se alistar — se pergunta de onde veio essa disposição de caráter e o seu “superdesenvolvido senso de justiça”: “Mas ele sempre havia acreditado em lutar pelo desprivilegiado, contra o privilegiado. Tinha aprendido isso não no Lar, ou na Escola, ou na Igreja, mas daquele outro grande modelador de consciência social, o Cinema. De todos aqueles filmes que começaram a sair quano Roosevelt entrou. “Ele era só um garoto na época, um garoto que ainda não tinha caído na vagabundagem, mas tinha crescido com todos aqueles filmes que eles fazia na época, aqueles entre ’32 e ’37 e que ainda não tinham decaído nas imitações comerciais desi mesmos como a perpétua série Garoto sem Saída que a gente tem hoje. Tinha crescido com eles, aqueles filmes como o primeiro Dead End, como Winterset, como As Vinhas da Ira, como Dust Be my Destiny, e aqueles outros filmes estrelados por John Garfield e as garotas Lane, e as produções sobre a vagabundagem e a prisão estrelados por James Cagney e George Raft e Henry Fonda.” (From Here to Eternity. Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1951, p. 275.) 200 127 mundano e na França [sic], coisas como arte e ciência jorraram simplesmente e engoliram tudo o mais. Não resta nada que não seja arte ou ciência.”201 Remete-se aí ao conceito da sociedade do espetáculo, central para as teorias da pós-modernidade — segundo o argumento do crítico marxista Guy Debord (1931-1994) em La Société du spectacle (1967), e posteriormente desdobrado nas idéias de Baudrillard — que o desenvolve como simulacro e simulação202 — e de Lyotard (que discute Debord na introdução a The Postmodern Condition). Segundo Colin Greenland, Barefoot in the Head é “o apogeu do exibicionismo da New Wave”,203 enquanto que para Isaac Asimov, “foi o escritor britânico Brian Aldiss que [na New Wave] veio a ser sua maior expressão”.204 Os Desastres Globais de J. G. Ballard Por sua vez, J. G. Ballard (1930-2009) iniciou sua carreira de romancista com obras de catástrofe ou fim de mundo, caracterizando sua carreira pela exploração dessa tradição da FC — que recua até fins do século XVIII e início do XIX em obras como The Journal of the Plague Years (1722), do inglês Daniel Defoe (1659/61[?]-1731); The Last Man, or Omegarus and Syderia (1806), do francês Jean-Baptiste Cousin de Granville (1746-1805); e O Último Homem (The Last Man; 1826), da inglesa Mary Shelley (1797-1851)205 — a partir das mais diversas “receitas” para o desastre final. Greenland observa que o subgênero é “favorecido especialmente pelos escritores ingleses” de FC,206 e que Ballard já o havia empregado em várias histórias, antes do seu primeiro romance, The Wind from Nowhere (1961),207 que propõe uma misteriosa 201 Aldiss, Brian W. Barefoot in the Head. P. 88. Best, Steven & Kellner, Douglas discutem a conexão entre Debord e Baudrillard, e fazem sua própria análise do conceito de sociedade do espetáculo, em “Debord and the Postmodern Turn: New Stages of the Spectacle”. Substance N.º 90 (1999): 129-156. Disponível em http://pages.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/Illumina%20Folder/kell17.htm 203 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 90. 204 Asimov, Isaac. No Mundo da Ficção Científica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984, p. 152. 205 Clute, John & Nicholls, Peter, eds. The Encyclopedia of Science Fiction. P. 382. O verbete é de Brian Stableford. Também já vimos que Jornada de Esperança, de Brian Aldiss, também é romance de fim de mundo. 206 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 93. 207 Esse romance curto foi primeiro publicado como “Storm-Wind” na revista inglesa New Worlds N.ºs 110-11, referentes a setembro e outubro de 1961. Em forma de livro, apareceu pela editora norteamericana Berkley em 1962. 202 128 aceleração dos ventos na atmosfera terrestre, num crescendo interminável. Seria o fim da vida como a conhecemos. O protagonista, Maitland, é um médico-pesquisador que retorna a Londres depois de uma temporada no Canadá, desfrutando de uma bolsa de pesquisa. Susan, sua exesposa, é uma socialite inconseqüente. Qualquer possibilidade de interesse romântico entre Don e Susan é destruída implacavelmente por Ballard, a meio caminho do livro: Maitland toma conhecimento de que ela está sozinha em um prédio de apartamentos, e vai até lá resgatá-la e levá-la aos abrigos subterrâneos. Ela resiste: “Tenho estado assustada por tempo demais, Donald. Com Papai, com você e mim mesma. Agora não estou mais.”208 Ato contínuo, [e]les lutaram silenciosamente, então Susan se desvencilhou dele e recuou. [...] Por um momento ela o fitou descontroladamente, então se afastou. Estava há poucos pés da janela aberta. Subitamente o vento apanhou-a. Antes que ele pudesse se mover, o vento a desequilibrou contra o batente da porta; então atirou-a de ponta-cabeça para o ar lá fora.209 Para Joseph Milicia, Susan “é a primeira de várias mulheres solitárias na ficção de Ballard, hostis e indiferentes aos homens, [...] obcecadas em viverem sozinhas”. 210 Em contraponto à linha narrativa de Maitland, que se junta a uma unidade de inteligência comandada por Simon Marshall e Deborah Mason, há uma outra em que o protagonista é o comandante Lanyon, do USS Terrapin. Os ventos estão tão rápidos na superfície, que o único transporte seguro é o submarino. Lanyon é enviado a Nice, Itália, para apanhar o cônsul americano e a repórter Patrícia Olsen. Os dois formam um par romântico mais afortunado, ainda que a certa altura se tornem prisioneiros de um grupo de saqueadores italianos. Menos afortunada é a dupla Marshall/Mason — em um bunker militar, Marshall é atacado e morto pelo vilão Kroll, que, numa cena em que o destino de Deborah é apenas sugerido, estupra e mata a mulher.211 Essas situações desviam-se suficientemente daquelas da FC Golden Age, em que o “mocinho”, a “mocinha” e o vilão costumavam ter recompensas “melhor distribuídas”. Certamente ilustram o drama de um contexto em que a civilização é literalmente varrida da face da terra, e as pessoas se comportam “com menos recursos e flexibilidade, menos 208 Ballard, J. G. The Wind From Nowhere. Harmondsworth: Penguin Books, 1974, p. 86. Idem. 210 Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. Riverside Quarterly Volume 7, N.º 4 (dezembro 1985). Disponível em http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html 211 Idem, ibid. P. 135. 209 129 previdência do que um pássaro ou animal selvagem demonstraria”.212 A justificativa evolucionária — assim como a população refugiada em esgotos e subterrâneos — lembra o argumento de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds; 1898): [...] Seus instintos básicos de sobrevivência haviam sido tão embotados, tão encobertos por mecanismos concebidos para servir a apetites secundários, que estavam totalmente incapazes de protegerem a si mesmos. Como Symington havia implicado, eram as vítimas indefesas de um otimismo enraizado, sobre seu direito à sobrevivência, à sua dominância da ordem natural que lhes garantiria contra tudo exceto sua própria insensatez. [...] E agora pagavam o preço disso, sendo em verdade ceifadas pelo torvelhinho! 213 O confronto Homem/Natureza é, portanto, uma das chaves do livro, que se acentua depois que o grupo de Laydon se une ao de Maitling, e, tentando se retirar a bordo de pesadíssimos veículos off-road, descobrem que Lorde Symington, amigo pessoal de Maitling, teria sido feito prisioneiro na “Torre Hardoon”. Em raro momento de protagonismo, Maitling força o comboio a seguir para a Torre — uma pirâmide cuja construção é “anunciada” pelo narrador em segmentos italicizados ao final dos capítulos iniciais. Lá, discutem com o magnata Hardoon (figura estereotipada própria da Golden Age, aqui variante empresarial do ícone do cientista louco), que afirma ter construído o abrigo e arregimentado um exército mercenário não para dominar o mundo depois que os ventos arrefecerem, mas para firmar a sua “coragem moral” diante da adversidade imposta pela Natureza.214 Seus planos são derrubados não pela determinação ou esperteza dos heróis, mas pela eventualidade dos fatos — os ventos haviam enfraquecido a camada superficial do solo, fazendo um rio inundar as fundações da pirâmide de Hardoon. Os heróis mal escapam para dentro de abrigos subterrâneos adjacentes, bem a tempo de observar que os ventos dão os primeiros sinais de arrefecimento. Nem é preciso enfatizar que os sobreviventes herdarão uma civilização desfeita. O desejo do autor de confrontar a pequenez humana à fria disposição do Universo está presente na metáfora derradeira da tempestade planetária: “um carrossel cósmico.”215 A narrativa, não obstante o pessimismo e os desvios do enredo padrão da Golden Age, é rápida e conserva muito da energia narrativa pulp. Ballard teria escrito o romance 212 Idem, ibid. P. 120. Idem. 214 Idem, ibid. P. 165. 215 Idem, ibid. P. 186. 213 130 de um dia para o outro, durante um feriado, tendo nele um primeiro passo para tornar-se escritor em tempo integral, permitindo-lhe abandonar o trabalho cotidiano.216 * Brian Aldiss notou que o livro seguinte de Ballard, Cataclismo Solar (The Drowned World; 1962),217 “estabelece o padrão para outros romances de Ballard nos anos sessenta, todos eles sendo romances de catástrofe”,218 muito devedores, em forma, aos romances anteriores de John Wyndham (John Wyndham Parker Lucas Beynon Harris; 1903-1969), segundo Aldiss — que editou Cataclismo Solar na Penguin, tendo “lutado de modo particularmente empenhado”219 por ele. Desta vez não há múltiplas linhas narrativas e os personagens pouco se movem de um lugar a outro, porém uma razão é fornecida para o desastre: o aumento da atividade solar leva ao aquecimento da Terra e ao transbordamento dos oceanos. Uma pequena equipe militar e científica está instalada no antigo Hotel Ritz de uma alagada Londres tropical. O protagonista Robert Kerans, um biólogo, observa que, em razão da mudança de temperatura e umidade, a flora e a fauna do planeta começam a assumir “as formas que exibiam da última vez que essas condições estiveram presentes — falando a grosso modo, o período Triássico”.220 Seu colega mais velho, Alan Bodkin, acredita que, se o ser humano não está regredindo como outras espécies, sua mente está recuperando, estimulada pela mudança do ambiente, sua memória genética. E como cada passo evolutivo deve ter sido traumático, assim como “a psicanálise reconstrói a situação traumática original, a fim de liberar o material reprimido, nós agora estamos sendo jogados de volta no passado arqueopsíquico, desvelando os antigos tabus e impulsos que estiveram dormentes há eras. [...]”221 O artifício tenta se revestir de relevância histórica e mítica: “Pesadelos deslizavam imperceptivelmente do pesadelo para a realidade e de volta, as paisagens terrestres e psíquicas eram agora indistinguíveis, como haviam sido em Hiroshima e Auschwitz, Gólgota e Gomorra.”222 Essa projeção do espaço geográfico sobre o espaço psíquico é uma das estratégias definidoras do conceito do inner space que Ballard propôs nas páginas de New Worlds 216 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 93. 217 Cataclismo Solar é o título com o qual o romance foi publicado na Coleção Argonauta da Livros do Brasil (N.º 109). Mário Braga & Maria Isabel Braga traduziram. 218 Idem, ibid. P. 301. 219 Aldiss, Brian. “New Worlds and SF Horizons of the Sixties”. In The Shape of Further Things, Brian Aldiss. Londres: Corgi Books, 1974, p. 133. 220 Ballard, J. G. The Drowned World. Harmondsworth: Penguin Books, 1965 [1962], p. 41. 221 Idem, ibid. P. 43. 222 Idem, ibid. P. 72. 131 (N.º 118, maio de 1962) no ensaio “Which Way to Inner Space?”223 Para o crítico argentino Pablo Capanna, em Jim G. Ballard: El tiempo desolado (1993), trata-se de algo mais que subjetivismo: “[é] um hiper-realismo que tratava de discernir o quanto há de subjetivo na paisagem que vemos e em que medida a paisagem em que vivemos nos condiciona.”224 A reação de Kerans é de letárgica entrega a esse processo de mergulho no passado psíquico. Ele demonstra impaciência com os colegas — um trio completado pela lânguida Beatrice —, e irritação apenas quando esse mergulho é perturbado. O que acontece em especial com a chegada de Strangman, figura conradiana de grande caçador branco a chefiar uma força expedicionária de africanos acompanhados de crocodilos amestrados — externalização simbólica quase à moda de Aldiss, do id mais primitivo (o “lizard brain”). À parte a dimensão simbólica, o romance não é simpático aos negros (nem às mulheres), e o capataz de Strangman é chamado de “enorme negro de corcunda”, “gigantesca paródia grotesca de um ser humano”.225 Ao mesmo tempo, o trio de pesquisadores é tão bronzeado e escuro do que os muitos mulatos que acompanham Strangman, sendo que apenas ele “retinha a sua palidez original”,226 como se essa versão ballardiana de Kurtz simbolizasse uma ordem e uma hierarquia já desaparecida. O plano do conquistador é — além de ganhar as graças de Beatrice — dragar as lagoas que submergem Londres para resgatar os tesouros do seu fundo, o “resgate completo do Inconsciente”,227 segundo Bodkin, que aprova a empreitada. A ressurgência da paisagem submersa perturba a Kerans, porém. Depois que Strangman persegue Beatrice, salva apenas pela chegada do Coronel Riggs (a autoridade da ONU no local), Kerans não consegue ajuda para deter o empreiteiro em seu plano de trazer à superfície o mundo perdido. Ele então explode a barragem que permite a dragagem, e foge para o sul, para o sol, para a selva na qual deseja submergir completamente. Lá 223 No ensaio “J. G. Ballard’s Inner Space: The Juxtaposition of Time, Space, and Body” (Em Tese, Vol. 15 [2009], disponível em http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publicacoes_pgs/Em%20Tese%2015/TEXTO%208.pdf), o brasileiro Pedro Groppo vê o inner space como aproximação do gótico e sua “tradição de examinar estruturas que projetam e introjetam certas ansiedades e desejos que podem passar despercebidos na vida diária”. Ou ainda: “Nas obras de Ballard, assim como na ficção gótica e no surrealismo, tais estruturas externas são com freqüência projeções que incorporam de um modo ou de outro tensões, contradições e processos de pensamento não-ditos, dos seus habitantes e criadores.” Já em The Drowned World a expressão surge como auto-referência: “[...] Kerans, você parece o homem do espaço interior”, brinca o vilão Strangman, num trocadilho com a expressão “homem do espaço exterior”. (P. 102) 224 Capanna, Pablo. Jim G. Ballard: El tiempo desolado. Buenos Aires: Editorial Almagesto, Colección Perfiles 3, 1993, p. 30. 225 Ballard, J. G. The Drowned World. P. 89. 226 Ballard, J. G. The Drowned World. P. 91. 227 Idem, ibid. P. 100. 132 encontra um soldado deixado para trás, Hardman, e, em uma espécie de epílogo, vaga com ele até que se separem. Brian McHale nota a influência marcante de Joseph Conrad (Józef Teodor Konrad Korzeniowski; 1857-1924) sobre a obra de Ballard — algo negado pelo autor inglês.228 “O veículo pelo qual Ballard introduziu a poética modernista nas narrativas de ficçãocientífica [sic] foi a estilização”, McHale escreveu em Postmodernist Fiction, definindo a seguir: “[E]specificamente, a adaptação autoconsciente e o exagero dos elementos da poética modernista de Joseph Conrad, incluindo o seu perspectivismo, sua retórica melodramática e imagética simbolista, e até elementos do seu mundo representado.”229 Mesmo com o adendo de que “esse aspecto de modernismo tardio coexiste com os leitmotifs ontológicos da ficção científica, em particular o topos familiar do apocalipse e da sobrevivência no pós-apocalipse”,230 trata-se de uma leitura muito reducionista da obra de Ballard. Não obstante, Conrad parece mesmo ser uma influência, e o homem branco que controla um grupo de “primitivos” também surge em “A Question of Reentry” (1963), ambientada no Brasil. Nessa noveleta, o americano Connolly é acompanhado de um oficial brasileiro, o Tenente Pereira, na busca de uma cápsula espacial e seu astronauta perdido na selva, o Coronel Francis Spender, regressando de um vôo à Lua. Para ajudá-los, procuram o jornalista e aventureiro Ryker, que se meteu com a “tribo Espirro, parentes próximos dos nambiquaras”,231 junto à qual brincava de deus usando a tabela astronômica do satélite Echo III para determinar os pontos de ascensão da lua e impressionar os nativos.232 A meio caminho, Connoly abserva que, passados dois dias, a selva começara a investir sua mente com sua própria lógica, e a possibilidade da espaçonave ter pousado ali parecia mais e mais remota. Os dois elementos pertenciam a sistemas diferentes da ordem natural, e ele achava cada vez mais difícil visualizar o seu cruzamento. Além disso, havia uma razão mais profunda para o seu 228 Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html: “Ballard tem negado qualquer influência literária de Joseph Conrad, mas seus romances estão bem dentro da tradição simbolista a qual pertence o autor de Coração das Trevas [...].” A negativa desse tipo de influência é comum não apenas com Ballard, e é compreensível se considerarmos que seu apelo ao novo poderia ser comprometido, aos seus próprios olhos, se a influência de um movimento antigo e superado fosse admitida — o que, a propósito, é exatamente o que Sam J. Lundwall viria a fazer em Science Fiction: An Illustrated History (1978). 229 McHale, Brian. Postmodernis Fiction. P. 69. 230 Idem. 231 Ballard, J. G. “A Question of Re-Entry”. In The Terminal Beach, de J. G. Ballard. Middlesex: Penguin Books, 1966 [1964], p. 10. Essa noveleta foi primeiro publicada na revista Fantastic Stories of Imagination Vol 12, N.º 3 (março de 1963): 46-77. Foi a história de capa. 232 Na mitologia grega, Eco era uma ninfa apaixonada por Narciso. O mito é mencionado na noveleta de Ballard, sublinhando o narcisismo de Ryker. 133 ceticismo, sublinhada pela referencia de Ryker às razões “reais” para os vôos ao espaço. A implicação era de que todo o programa espacial seria um sintoma de alguma doença interior subconsciente afligindo a humanidade, e em particular as tecnocracias ocidentais, e de que as espaçonaves e satélites haviam sido lançados porque seus vôos satisfaziam certas compulsões e desejos ocultos. Em contraste, na selva, onde o inconsciente estava manifesto e exposto, não havia necessidade dessas projeções insanas, e a possibilidade do Amazonas ter algum papel no sucesso ou fracasso do vôo espacial se tornava, em razão de algum tipo de paralaxe psicológica, cada vez mais embaçada e distante, a cápsula perdida tornada ela mesma num fragmento de uma imensa fantasia que se desintegrava. 233 Embutida nessa psicanálise da aventura espacial, tem-se a própria oposição espaço exterior vs espaço interior; e na revelação final de que Spender teria sido devorado pelos índios (porque eles “comem os seus deuses”),234 a reafirmação da sobrevivência e a potência do inconsciente primitivo no seio da era espacial. Noutro extremo, os momentos finais de Cataclismo Solar sugerem o ambicionado renascimento da personalidade de Kerans, descrito como “um segundo Adão buscando os paraísos esquecidos do sol renascido”.235 Além da metáfora bíblica, há várias de origem freudiana, como alusões ao útero e à placenta, que Kerans associa às águas e ao mergulho regressivo da sua psique. O capítulo 9, que se chama “The Pool of Thanatos”, relata um encontro quase fatal com um crocodilo, e uma epifania vivida pelo herói, expressando pela primeira vez um impulso suicida. É a pulsão de morte do princípio de tânatos, segundo Freud. Em J. G. Ballard’s Surrealist Imagination: Spectacular Authorship (2009), Jeannette Baxter afirma que Cataclismo Solar é o romance mais relacionado à pintura, dentro da obra de Ballard: É uma colagem de ficções surrealistas do século XX, na qual as selvas fantasmagóricas de [Max] Ernst, as atormentadas paisagens urbanas de [Paul] Delvaux e as meditações temporais saturadas de [Salvador] Dali coincidem e se sobrepõem para formar um palimpsesto de suaves geografias visuais. 236 Encontramos nessa formação o conceito do espaço interior, que, para Baxter e no contexto desse romance, funciona para abrir “espaço para uma consciência alternativa emergir como um meio de mapear trajetórias alternativas de história e para empurrar para adiante modos alternativos de confronto com o passado através da arte”.237 233 Idem, ibid. P. 32. Idem, ibid. P. 39. 235 Idem, ibid. P. 171. 236 Baxter, Jeannette. J. G. Ballard’s Surrealist Imagination: Spectacular Authorship. Farnham: Ashgate, 2009, p. 17. 237 Idem, ibid. P 23. 234 134 Contrastando as duas narrativas (“A Question of Re-Entrey” e Cataclismo Solar) pela lógica do inner space, é possível enxergar a entrega de Kerans ao processo regressivo tanto como o sujeito que desiste da própria volição numa jornada “tanto mítica quanto neurótica”238 — num derrotismo denunciado pelas críticas mais freqüentes aos escritos de Ballard —,239 como o sujeito que se mostra explorador da própria psique, havendo aí uma transferência semelhante de heroísmo: do confronto com o mundo natural exterior (próprio da FC Golden Age), para o confronto com um mundo interior (na New Wave). Cataclismo Solar expressa bem essa transferência, e, segundo Colin Greenland, foi elogiado pelos escritores mainstream Graham Greene (1904-1991) e Kingsley Amis (1922-1995), garantindo assim a reputação de Ballard como um romancista a se acompanhar.240 * À inundação do mundo sucede-se a seca, em Mundo em Chamas (The Drought; 1965).241 A justificativa “quase científica” da seca global é a formação de uma película protetora sobre a água dos mares, agredida por décadas de poluição. A película dificulta a evaporação e, conseqüentemente, as chuvas. O resultado é uma paisagem entrópica de término de processos — rios e lagoas que secam, povoações que se transformam em cidades fantasmas, o rico country side inglês transformando-se em deserto. O médico Dr. Charles Ransom é o protagonista. Joseph Milicia o compara a Robert Kerans de Cataclismo Solar, afirmando que ambos “são indivíduos [de tendência] autoisolante, muito mais confortáveis com suas paisagens do que com outras pessoas”. Ao mesmo tempo, comportam-se como se estivessem se recuperando de um colapso nervoso — ou até prestes a recair. Portanto, rerprentam um olhar ideal para as paisagens fantasmagóricas de Ballard: calmamente objetivos, com um possível traço de 238 Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html 239 Pringle, David. “Ballard, J(ames) G(raham)”. In The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. P. 84. 240 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 93. 241 The Drought foi publicado nos Estados Unidos, em versão levemente menor e um ano antes (1964), como The Burning World. Mundo em Chamas é tradução dessa edição americana, pela Bruguera, do Rio de Janeiro. Laís Mourão é a tradutora. Em “Dry Thoughts in a Dry Season” (1986), Joseph Milicia compara as duas versões. A versão analisada é The Drought, e para evitar confusões, vou tratá-lo aqui pelo título original. 135 demência. A diferença importante entre eles é que Ransom tem algo de um passado e relações psicologicamente complicadas com outras pessoas […].242 Assim como no romance anterior, um pequeno grupo de pessoas reúne-se numa relação tortuosa, entre eles o débil mental Quilter e sua mãe idosa, o jovem Philip Jordan, o reverendo Howard Johnstone, e a jovem Catherine Austen. No capítulo, depois que esses e outros personagens foram apresentados, Judith, esposa de Ransom, aparece acompanhada de um oficial de polícia, para levá-lo ao litoral. Ransom se recusa, e logo o romance apresenta o argumento de inner space antes visto em Cataclismo Solar: Ele se perguntou se valia a pena tentar comunicar a Judith seu envolvimento com o papel transformado da paisagem e do rio, sua metamorfose em tempo e memória. Catherine [...] teria compreendido suas preocupações, e aceito que para Ransom o único descanso final para a persistência da memória surgiria de sua remissão no tempo. Mas Judith, ele sabia, odiava qualquer menção ao assunto, e por uma boa razão. O papel da mulher no tempo era sempre tênue e incerto. 243 Além do comentário possivelmente sexista, o elemento psicanalítico aflora novamente com a sugestão de um trauma (a persistência da memória do cataclismo) e a cura pelo mergulho na paisagem transformada em tempo e memória, num espaço psíquico. Outro personagem principal, o extravagante Richard Lomax, proprietário de uma mansão de vidro e concreto com uma piscina vazia, convoca Ransom. Asqueroso, sempre vestido num terno branco de seda e segurando uma bengala com empunhadura de prata, Lomax faz as vezes de Strangman. Logo a seguir, o herói descobre que Catherine, filha de biólogos mortos na África, cuida de um grupo de animais que escaparam do zoológico da cidade atingida por um incêndio. Ransom a avisa que Lomax pretende tomar os animais dela. Complicações se sucedem. Motivado por Lomax, há um tiroteio na localidade, e Quilter passa a desfilar com um guepardo na coleira. A situação se deteriora a ponto de forçar Ransom e Catherine a se unirem àqueles que partiram para o litoral. A decisão não é livre de contrariedade da parte dos dois: “Sua [de Catherine] decisão quase inconsciente de ficar lembrava-o de suas próprias esperanças iniciais de se isolar entre os lugares do novo deserto, colocando um fim no tempo e em suas erosões.”244 242 Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html 243 Ballard, J. G. The Drought. St. Albans: Triad/Panther Books, 1978 [1965], p. 37. 244 Idem, ibid. P. 81. 136 A chegada ao mar é acompanhada de um confronto de refugiados e militares, e Ransom mata um membro do seu grupo, Grady, que havia disparado contra eles para mantê-los longe do seu terreno conquistado perto do mar. Mais tarde, o médico racionaliza o assassinato de maneira surpreendente: “quanto mais penso a respeito, mais me convenço de que foi simplesmente uma espécie de experimento a sangue-frio, para ver o quão desligado dos outros eu estava.”245 O início da segunda parte do romance o vê reunido a Judith, anos depois da chegada ao mar, mas com dificuldades para harmonizar-se com a comunidade que se formou ali. O avistamento de um leão branco (cria daqueles fugidos do zôo de Monte Royal) lhe dá a desculpa necessária para retornar, com o que resta do seu pequeno grupo (menos Judith), à cidade de Monte Royal, de onde vieram: “A aparição do leão convenceu Ransom de que havia água a vinte ou trinta milhas da costa [...]. Sem isso, o leão não teria sobrevivido, e sua retirada apressada até o rio indicava que o leito seco fora a sua rota até a costa.”246 A jornada de volta é um recuo ao inner space: “A luz invariável e a ausência de todo movimento faziam Random sentir que ele avançava por uma paisagem interior onde os elementos do futuro estavam em torno dele como os objetos de uma natureza morta, sem forma e sem associação.”247 O protagonista reconhece, pouco depois, que, analisando suas verdadeiras razões para regressar, ele “começava a sentir a sua “verdadeira bússola interior”. A princípio Ransom presumira que ele mesmo, assim como Philip Jordan e a Sra. Quilter, retornava ao passado, para recolher a pontas rasgadas de sua vida anterior, mas ele agora sentia que a planura branca do rio os carregava todos na direção oposta, adiante em zonas do tempo futuro onde os resíduos não resolvidos do passado apareceriam alisados e arredondados, abafados pelos detritos do tempo, como imagens em um espelho embaçado.248 O espaço interior não é portanto o confronto com as razões da neurose, apenas o seu aplainamento em uma zona mental de conforto: “Para Ransom, [...] a longa jornada rio acima fora uma expedição ao seu próprio futuro, em um mundo de tempo volitivo em que as imagens do passado refletiam-se livres das demandas da memória e da nostalgia, livres até das pressões da sede e da fome.”249 O retorno a Monte Royal, porém, traz uma série de confrontos e grotescas surpresas. Catherine Auster logo abandona o grupo para se juntar a um casal de leões 245 Idem, ibid. P. 122. Idem, ibid. P. 146. 247 Idem, ibid. P. 148. 248 Idem, ibid. P. 152. 249 Idem, ibid. P. 176. 246 137 entre as dunas, e a igualmente excêntrica irmã de Lomax, Miranda, tivera três filhos deformados com Quilter, enquanto Lomax (vestindo-se agora de modo ainda mais bizarro e andrógino) vive isolado com medo de represálias, por não conseguir mais água para os seus ex-seguidores, embora pareça haver água em abundância em Monte Royal. Aparentemente, Quilter tem trazido viajantes solitários para serem devorados por Miranda. Como outros protagonistas de Ballard, Ransom vai de um lugar a outro, observando sem muito protagonismo o conflito entre seus colegas. O narrador levanta a possibilidade de que os companheiros de Ransom reconheciam instintivamente um caráter de imprevisibilidade nele.250 A conclusão apagada, após um clímax cômico-grotesco em que Lomax é morto, traz Ransom de volta à sua antiga casa, e sua consciência parece sofrer uma derradeira obnubilação — a ponto de ele nem notar que começava a chover. * Mais do que nos livros anteriores, em The Drought Ballard mergulha o leitor numa atmosfera quase onírica. Joseph Milicia observa que, em seus primeiros romances, a predileção do autor em termos de “paisagem surrealista parece ser pelas variedades mais abstratas — as formações rochosas de [Yves] Tanguy”, que é mencionado no livro, “as formas incrustadas e exageradas de [Max] Ernst, as ruas desertas de [Giorgio] de Chirico com improváveis sólidos geométricos — do que por obras como as de Dali, com partes humanas reconhecíveis e objetos cotidianos esquisitamente combinados e justapostos”.251 Ballard acreditava que os pintores surrealistas haviam criado “uma série de paisagens exteriores válidas, que têm correspondências diretas com as nossas próprias mentes”.252 Ballard empenhou-se em mascarar suas influências literárias, ao mesmo tempo que promovia influências tomadas da pintura. Não obstante, em The Drought são freqüentes as menções à peça A Tempestade (The Tempest; 1611),253 de William Shakespeare 250 Idem, ibid. P. 155. Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html 252 MacBeth, George. “The New Science Fiction” (entrevista). In The New SF: An Original Anthology of Modern Speculative Fiction, Langdon Jones, ed. Londres: Hutchinson, 1969, pp. 46-54. Cf. Colin Greenland. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 101. 253 Data da primeira encenação; a data da primeira publicação é 1623. The Tempest é uma referência favorita para a ficção científica anglo-americana, às vezes listada como proto ficção científica. “Driftglass” (1967), de Samuel R. Delany, reencena situações da peça numa praia do Nordeste brasileiro, no futuro próximo, enquanto Robert Silverberg tem um perturbador conto chamado “Caliban” (1972), o personagem deformado original da peça. Há ainda o famoso filme de 1956, O Planeta Proibido (The Forbidden Planet, dirigido por Fred M. Wilcox), com seu “Monstro do Id” e sua utopia alienígena falida 251 138 (1564-1616). Escrita na fase final do dramaturgo, A Tempestade é leve e de final feliz, propondo a reconciliação e o amor. Já basta para enxergarmos na composição de Ballard uma deformação irônica: Quilter é o seu Calibã, chamado assim por Lomax,254 que por sua vez é referido como Próspero, um mago benévolo no texto dramático. Miranda, a irmã demente de Lomax, tem o mesmo nome da bela filha de Próspero, mas nada de sua jovialidade. E assim por diante. Joseph Milicia esforçou-se para criar uma correspondência entre os personagens desse diálogo intertextual, mas seu empenho parece inútil. Não obstante, para Milicia, dentre os romances da primeira fase de Ballard The Drought “é talvez a realização mais notável”. Ele o compara como sendo “menos potboiler do que The Wind from Nowhere, mais plausível do que Cataclismo Solar, e menos insistentemente esquemático do que O Mundo de Cristal”.255 Este último (The Crystal World; 1966), é baseado na noveleta “The Illuminated Man” (1964), ambientada nos Everglades, na Flórida, e tem como protagonista e narrador o adido científico inglês, James B— [sic], que vai até a famosa área selvagem para, com colegas de vários países e uma escolta militar americana, analisar um fenômeno que afeta a vida vegetal e animal da região. Após um acidente de helicóptero, James se perde do grupo com que viaja, e acaba testemunhando o trágico desenlace de um triângulo amoroso envolvendo o capitão de polícia Shelley, sua esposa Emerelda, e o primeiro marido dela, o arquiteto Charles Foster Marquand — que, de terno branco no meio da floresta tropical, recorda a excentricidade de Lomax e Strangman. Chamado no Ocidente de “Efeito Hubble”, na noveleta o fenômeno tem três pontos focais conhecidos: na Flórida, na Bielorrússia e na Ilha de Madagascar. Aparentemente, cada vez que o Observatório de Monte Palomar localiza uma “galáxia dupla” no universo, um novo ponto focal surge na superfície da Terra.256 O resultado é a criando uma inevitável associação entre o conteúdo sobrenatural da peça e uma exploração do inconsciente e da psique — fornecendo aí uma chave do interesse de Ballard pelas citações de A Tempestade, peça que também influenciou muitos poetas românticos ingleses. Pablo Capanna menciona outra narrativa de Ballard em que apareceria a citação de A Tempestade: “The Ultimate City”, uma novela de 1976. (In Jim G. Ballard: el tiempo desolado. P. 63.) 254 Ballard, J. G. The Drought. P. 180. 255 Milicia, Joe (Joseph). “Dry Thoughts in a Dry Season”. http://www.jgballard.ca/criticism/milicia_drought1985.html 256 Ballard, J. G. “The Illuminated Man”. In The Terminal Beach, J. G. Ballard. Harmondsworth: Penguin Books, 1966 [1964], pp. 75-76. Também publicada em The Magazine of Fantasy and Science Fiction de maio de 1964. Pablo Capanna menciona, em Jim G. Ballard: el tiempo desolado, a existência de uma outra narrativa curta, “Equinox” (1963), que seria “uma versão intermediária [...] que também se incorporaria ao romance” (p. 80), mas não tive acesso a ela. 139 cristalização dos tecidos vivos, e tem algo a ver com o tempo: “[Uma] proliferação da identidade subatômica de toda matéria. É quase como se uma seqüência de imagens deslocadas fosse produzida pela refração através de um prisma, mas com o elemento do tempo substituindo o papel da luz.”257 Mais adiante, o argumento é elaborado (de maneira complicada e não necessariamente plausível em termos científicos): [...] A recente descoberta da antimatéria no universo inevitavelmente envolve a concepção de um antitempo como o quarto lado deste continuum de carga negativa. Onde as antipartículas e partículas colidem elas não só destroem suas próprias identidades físicas, mas seus valores temporais opostos se eliminam, subtraindo do universo mais um quantum da sua reserva total de tempo. É a descarga aleatória desse tipo, disparada pela criação de antigaláxias no espaço, que tem levado à diminuição da reserva de tempo disponível aos materiais do nosso próprio sistema solar.258 A curiosa premissa expressa o fascínio de Ballard e da New Wave pela entropia paralisante, e dá margem a belas e assustadoras descrições de seres e paisagens cristalizadas, sem vida ou transformação, mas dotados de rara beleza. Assim como no romance, a linguagem da noveleta é densa e circunspecta, o surrealismo das imagens se aprofunda e perturba mais do que em The Drought — com sua qualidade salteada e quase de citação, e que não alcança uma dramatização profunda das evocações surrealistas. Sem dúvida, há mais unidade dramática na noveleta e no romance, embora Joseph Milicia tenha achado O Mundo de Cristal esquemático. É claro que a qualidade aleatória e o vem e vai dos personagens de The Drought combina tanto com o método surrealista (“[o] randômico e a surpresa acionam as faculdades associativas do cérebro, e ativam conexões ocultas: o propósito dos surrealistas, e de Ballard, precisamente”),259 quanto a ênfase do modernismo/pós-modernismo na ausência ou qualidade sumária do enredo (plotlessness). O que impressiona mais em “The Illuminated Man”, porém, é o drama humano, a tragédia amorosa em contraste com o frio fenômeno cósmico. Há um traço de paralelismo nessa situação, já que Marquand tratava Emerelda como “uma espécie de sonho pré-rafaelita, enjaulada dentro da casa dele, como o espírito perdido de sua imaginação”;260 ou seja, uma beleza enclausurada e imóvel. 257 Ballard, J. G. “The Illuminated Man”. P. 81. Idem, ibid. P. 91. 259 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 103. 260 Idem, ibid. P. 97. Essa sentença aparece quase que ipsis litteris no romance. “Pré-rafaelita” se refere a um grupo de artistas ingleses do século XIX, de forte expressão romântica e em rejeição à influência do pintor italiano Rafael (1483-1520) na pintura de sua época. 258 140 James B— descobre que o efeito prismático de jóias reais detém e até reverte o processo de cristalização. Ele vaga a uma igreja em que Thomas, um padre que perdera a fé, se refugia num ambiente de milagres (incluindo a restituição da visão a uma serpente que vagou para dentro da igreja, situação de irônico simbolismo cristão). Com a ajuda de Thomas e de uma cruz de ouro adornada com pedraria, o narrador consegue escapar da floresta cristalizada, para mais tarde refletir: “Lá nos Everglades a transfiguração de todas as formas vivas e inanimadas ocorre diante de nossos olhos, a dádiva da imortalidade uma conseqüência direta da desistência, por cada um de nós, de nossa própria identidade física e temporal.”261 O romance segue de perto essa estrutura, mas agora o protagonista é Edward Sanders, ummédico inglês que vai a Port Matarre, um antigo entreposto colonial na República de Camarões, para se encontrar com um casal de amigos, Max e Suzanne Clair, que cuidam de um leprosário. Sanders e Suzanne tiveram um relacionamento no passado, terminado por conta da sua “incapacidade para chegar a qualquer espécie de decisão”.262 Uma suposta necessidade de afastar-se dele teria levado a mulher ao serviço no leprosário. A relação dos dois é psicanalisada da seguinte forma: “A sombria beleza de Suzanne identificara-se no seu espírito com esse lado negro do subconsciente, e as relações que tinham existido entre ambos haviam sido como que uma tentativa de reconciliação consigo próprio e com os motivos ambíguos.”263 Port Matarre é outro ponto focal do fenômeno temporal descrito na noveleta. Ali também, jóias reais funcionam como antídoto à transformação da matéria inerte e de seres vivos em esculturas de cristal. E ali também o protagonista tropeça em um triângulo amoroso — entre o arquiteto belga Ventress; Thorensen, o gerente de uma mina de diamantes; e sua mulher, Serena. Outro padre, Balthus, tem papel similar ao de Thomas na noveleta. Mas no romance, Sanders chega ao local sem saber do fenômeno. Há um bocado de suspense em torno do que estaria havendo na região, inclusive da parte da jornalista Louise Peret, com quem o herói tem um quase sub-reptício encontro sexual em um hotel abandonado. Há também um elenco de personagens africanos, secundários. O capítulo 3 tem como título “Um Mulato no Passadiço”, com o mulato em questão tentando matar Ventress, o “homem de terno branco” deste livro em particular. Mais adiante na 261 Idem, ibid. P. 106. Ballard, J. G. O Mundo de Cristal (The Crystal World). Lisboa: Livros do Brasil, Coleção Argonauta N.º 115, s.d. [1966], p. 16. Tradução de Eurico da Fonseca. 263 Idem, ibid. P. 17. 262 141 narrativa, o cadáver de um europeu, o cinegrafista Matthieu, vem boiando pelo rio, seu braço direito coberto de pedrarias. Sanders conclui que o homem estivera na água a mais de uma semana, mas morto há apenas meia hora, ao ser encontrado. Sanders encontra-se com o Capitão Radek, que lhe explica pela primeira vez o fenômeno e sua extensão. Outro estrangeiro que ele conhece a seguir é Thorensen. A segunda parte do romance, com o título de “O Homem Iluminado”, abre com um relato de Sanders, recuperando assim a primeira pessoa narrativa empregada na noveleta, para discorrer sobre o fenômeno. Domina essa parte, porém, o drama entre Ventress, Thorensen e Serena. O herói e Ventress encontram o corpo cristalizado de Radek, e o médico o coloca na água do rio, que dissolve os cristais. O homem do terno branco o repreende por isso. O mulato ameaçador, capanga de Thorensen, retorna para atacar Ventress com uma espada. Sanders cai nas mãos do minerador, e conhece o outro lado do triângulo amoroso. Outros personagens negros circulam ameaçadoramente na floresta transformada. Um deles tem “o rosto inteligente e fino de um jovem escriturário ou de um pequeno capataz, e de vez em quando olhava para Sanders, como um homem que reconhece outro membro, ainda que remoto, [...] da mesma casta educada”.264 Ferido e dividido ao meio por bandagens brancas, seu comportamento é mais distinto, como se Ballard quisesse relativizar seu retrato dos negros visto em Cataclismo Solar, mas sem ser muito feliz na tarefa. Este é outro trabalho de Ballard que sustenta comparações com O Coração das Trevas (Heart of Darkness; 1902), de Conrad. Sanders finalmente se reencontra com Suzanne e Max Clair, mas é com Louise que ele tem o diálogo revelador dos esquemas simbólicos de Ballard nesse livro. Quando Sanders firma metáforas de negro e branco, escuridão e clareza entre a luta de Ventress e seu terno branco e Thorensen com seus capangas negros, e de Suzanne como sombria e Louise como solar, a repórter pergunta: “Mas qual será o motivo desta divisão em preto e branco, Edward? Não serás tu que a estabeleces?”265 E Sanders responde: — Eu? Creio que é algo mais profundo do que isso. Pode muito bem ser qualquer distinção fundamental entre a luz e as trevas que tenhamos herdado das primeiras criaturas vivas. No fim de tudo, a reacção [sic] à luz é a reacção a todas as possibilidades da vida em si. Segundo tudo quanto sabemos, esta divisão é a mais forte que existe aqui — talvez mesmo a única —, reforçada cada dia durante centenas de milhões de anos. No seu sentido mais simples, o tempo mantinha esse processo em funcionamento. Agora que o tempo está a desaparecer, começamos a 264 265 Idem, ibid. P. 104. Idem, ibid. P. 137. 142 ver todos os contrastes com maior clareza. Não se trata de uma questão de identificar quaisquer questões morais com a luz e as trevas — não tomei partido por Ventress ou Thorensen. Isolados, [parecem]-me agora ambos grotescos, mas talvez a floresta os una. Ali, nesse lugar de arco-íris, nada se distingue de nada.266 O argumento não se estende para as questões morais ou políticas do colonialismo ou imperialismo europeu branco na África negra, mas a omissão é conspícua e implora que o leitor realize a extensão. Desse modo, não existiria na fala do herói a naturalização das diferenças de cor, etnia e modelos de civilização? Esse é um dos problemas do argumento psicanalíticos em termos de resíduos psíquicos subconscientes históricos, i.e., resultantes da superação de estágios de desenvolvimento do humano na organização social e cultural. A face problemática desse pensamento está na redução de civilizações e estilos de vida ainda existentes mas associados a tais fases superadas, à condição de símbolo ou na naturalização de idéias racialistas sobre o primitivo e o selvagem. Esse gritante positivismo que não enxerga a complexidade de relações sociais e culturais é razão da crítica de Scott McCracken ao ensaio de Freud, “O Sinistro” (“Das Unheimliche”; 1919): “Ao descrever o funcionamento do Sinistro, [Freud] localiza suas origens em um passado inventado, que, ele defendia, ainda estava evidente nos ritos ‘primitivos’ de culturas prémodernas.”267 Em O Mundo de Cristal, a movimentação confusa de Sanders pelos rios e florestas e pela paisagem transformada ajuda a construir uma atmosfera inquietante, que sublinha o estranhamento da premissa. O dénouement é a mesma situação envolvendo padre apóstata, igreja e cruz salvadora — acrescida de uma marcha de leprosos seguindo o apático doutor pela floresta até o rio. O epílogo, porém, é mais elaborado e sugere um inédito aquietamento do protagonista, que se encontra vivendo com Louise e trabalhando num hospital. Mas essa perspectiva é logo invertida: [...] Pensando ao mesmo tempo em Louise, compreendeu que não a podia criticar por ter decidido abandoná-lo. De facto, obrigara-a a isso, não tanto pelo seu comportamento em Port Matarre mas simplesmente por não estar de todo ali — a sua identidade real continuava a mover-se atrás das florestas de Monte Royal. Durante a viagem pelo rio abaixo no barco ambulância com Louse e Max Clari, e a sua subsequente convalescença em Port Matarre, sentira-se como que a projecção vazia de um eu que continuava a vaguear através da floresta, tendo nas mãos a cruz cravejada de pedras preciosas, reanimando as crianças perdidas que encontrava, 266 Idem, ibid. Pp. 137-38. McCracken, Scott. Pulp: Reading Popular Fiction. P. 137. Em Myth, Laurence Coupe também discute o racionalismo de Freud, à luz da questão do mito (Londres & Nova York: Routledge, The New Critical Idiom, 1997, pp. 94, 125-33, 175, 154, 190). 267 143 como um deus no seu dia de criação. Louise não sabia nada disso e pensava que ele procurava Suzanne.268 A mudança para um tom mais sombrio é a marca mais expressiva do romance, na comparação com a noveleta. A ânsia pela paralização dos processos temporais, meramente sugerida no final da noveleta, é o destino de Sanders, de Suzanne e outros personagens que escolhem se entregar à suspensão da vida, como insetos em âmbar. * Com O Mundo de Cristal, encerra-se, na opinião de Pablo Capanna, a “fase humanista” de Ballard. Com a publicação de The Atrocity Exhibition (1970) e de Crash (1973), o autor entraria em sua “fase niilista”.269 Para Brian McHale, “nos apocalipses do começo e de meados da década de 1960 podemos discernir um padrão de repetição-com-variação, que abraça a série inteira”.270 Em cada romance dessa fase, chamada por McHale de “pré-história” da entrada de Ballard no pós-modernismo, “um pesquisador, chamado Powers ou Kerans ou Ransom ou Sanders [...], torna-se obcecado com as estranhas e novas condições de existência, e é atraído cada vez mais profundamente para elas, até a sua própria aniquilação.” E em cada romance, “o pesquisador forma uma ligação com uma mulher misteriosa, e sofre perseguição nas mãos de uma figura masculina demoníaca, em alguns sentidos o seu duplo; e assim por diante”.271 Brian McHale não atribui a isso um caráter negativo, mas Brian Aldiss o faz, quando afirma que o personagem típico de Ballard não tem rosto nem cor: “Intercambiáveis e anônimos em nome e identidade, [o personagem de Ballard] não tem mais significância do que qualquer outra coisa na paisagem obnubilada.”272 Como já vimos, Aldiss enxerga Ballard como sendo mais feliz como contista, acha que Cataclismo Solar é o seu melhor romance, mas imagina que serão as histórias do “período ‘Terminal Beach’ que durarão por mais tempo”. 273 A diferença entre ambos é programática: Aldiss tentou escapar da percepção da FC como gênero comercial, formuláico e repetitivo, nunca repetindo um mesmo esquema narrativo em seus romances; Ballard buscou escapar da percepção da FC como gênero comercial repetindo um mesmo esquema incomum de caracterização e simbolismo. 268 Ballard, J. G. O Mundo de Cristal. Pp. 174-75. Note o retorno da localidade principal de The Drought como uma região também ameaçada pelo congelamento do tempo, em O Mundo de Cristal. 269 Capanna, Pablo. Jim G. Ballard: El tiempo desolado. Pp. 27-28. 270 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. P. 69. 271 Idem, ibid. Pp. 69-70. 272 Aldiss, Brian W. (com Wingrove, David). Trillion Year Spree. P. 301. 273 Idem, ibid. Pp. 300-301. 144 Ballard em Concreto e Aço, entre Eros e Tânatos Em Crash, J. G. Ballard imagina uma psicose desconhecida (ou “sexualidade alternativa”, como a certa altura o narrador afirma), mistura de sadomasoquismo, morbidez, escatologia, culto a celebridades e fetiche automobilístico. Certamente, um conjunto de premissas especulativo o suficiente para garantir-lhe lugar na estante de ficção científica. O livro abre com a morte do Dr. Vaughan, espécie de guru dessa sexualidade alternativa junto a um pequeno grupo de pessoas de classe média alta, na Inglaterra. Vaughan morre ao lançar seu carro contra uma limusine que levava a bordo a atriz Elizabeth Taylor. Esse não fora, é claro, o primeiro acidente automobilístico provocado intencionalmente por Vaughan, apenas o seu último. O narrador em primeira pessoa — que também se chama Ballard274 — relembra então o seu próprio acidente e a sua entrada nesse estranho mundo em que as trombadas com carros parecem representar mistura do orgásmico e do apocalíptico, evocação simultânea de vida e morte mediada por uma tecnologia cotidiana. A descida de Ballard, o narrador, a esse mundo passa pela fixação mórbida por suas próprias feridas e cicatrizes e por aquelas sofridas por outros, e a fantasia de novos orifícios corporais abertos pelos choques contra as superfícies metálicas dos automóveis. Ele passa também por um relacionamento sexual com a Dr.ª Helen Remington, a esposa do homem morto na batida que envolveu Ballard. Quando Ballard conhece Vaughan, estabelece-se entre os dois uma estranha identidade. Ballard paga prostitutas ao amigo, enquanto os dois, roubando carros do estacionamento de um aeroporto, sondam os limites dessa fusão entre sexo e automóvel. Vaughan franquia ao outro Gabrielle, a esposa acidentada do seu amigo Seagrave, um dublê de manobras automobilísticas. O aparelho ortopédico de Gabrielle excita o fetiche de Ballard. Por sua vez, Ballard não se interpõe ao intercurso entre sua mulher Catherine e Vaughan. 274 Brian McHale tipifica esse recurso como comum na ficção pós-modernista: “[...] esses ‘visitantes’ do mundo da autobiografia funciona como sinedoctes do seu lugar de origem, em efeito, carregando sua realidade para o seio do mundo ficcional e disparando uma série de repercussões ontológicas perturbadoras” (Postmodernist Fiction. P. 203). E o “autor como personagem da sua própria ficção assinala a interpenetração paradoxal de dois territórios que são mutuamente inacessíveis, ou que deveriam ser.” (P. 204). 145 Há muita troca de parceiros, momentos de transformismo e homossexualismo, alusões a pedofilia e incesto. As referências sexuais são explícitas e diretas, calculadas para chocar, embora façam um maior uso de termos médicos e menos de linguagem chula. Para forçar a confusão entre sexo e automobilismo, o narrador descreve o corpo humano em partes — como enxergamos o automóvel como um conjunto de peças. Fluídos corporais são continuamente comparados aos fluídos hidráulicos e de resfriamento dos motores. Os homens parecem sempre desejar o sexo com painéis e consoles, e acariciam estofamentos e revestimentos. A masculinidade supostamente presente num carro grande e amassado é transferida a cicatrizes no pênis e no tórax. O continuum homem/carro vai além — muito do romance se dá nas quatro pistas da estrada que leva ao aeroporto; em estacionamentos, ferros-velhos, oficinas de hot-rods e durante um comercial que encena um acidente de tráfego e na recuperação de imagens de testes de segurança automotiva. É evidente que J. G. Ballard quer que o leitor entenda esse continuum de perversão entre o homem e a máquina como algo que transcende a situação de um único indivíduo. Há um grupo em torno de Vaughan, que deseja ampliá-lo, sondando pessoas das relações de Ballard (o personagem) com um questionário repleto de referências visuais. E há uma potencialidade maior da nova perversão, pelo modo como outras pessoas gravitam em torno desse grupo. Os homens são descritos de modo diferente das mulheres, dentro dessa “nova sexualidade alternativa”. Os romances de Ballard nunca apresentaram muita inclinação para a caracterização, para o mergulho na consciência dos personagens ou para a análise dos estados psicológicos — isso é substituído pelas sobreposições de paisagem e psique, do inner space. Crash não é diferente, e manter, no plano do estilo, as coisas na superfície certamente contribui para o estranhamento dos fatos narrados. O interesse do autor pela psicologia — que o levou a cursar medicina em Cambridge — aparece na sua recorrência à projeção ao espaço interior: estados mentais são refletidos na paisagem, e vice-versa. Em Crash, o principal recurso para o convencimento do leitor quanto à realidade da síndrome que o narrador nos revela é a reiteração constante de imagens e leitmotifs. Discutindo o romance, Jean Baudrillard observou que não “existe afecto [sic] por detrás de tudo isto, não existe psicologia, nem fluxo, nem desejo, nem libido, nem pulsão de morte”,275 e que em Crash o acidente, assim como 275 Baudrilard, Jean. Simulacros e Simulações (Simulacres et simulation). Lisboa: Relógio d’Água, 1991 [1981], p 141. 146 a morte, já não pertence à categoria do neurótico, do recalcado, do resíduo ou da transgressão, é iniciador de uma nova maneira de gozo ‘não perverso’ (contra o próprio autor, que fala em introdução de uma nova lógica perversa, é preciso resistir à tentação moral de ler Crash como perversão), de uma organização estratégica da vida a partir da morte.276 Pensando no quanto pode haver ou faltar de substância na especulação de Ballard, talvez tenha levado a sério demais sua busca maníaca, presentes também em seus outros escritos, pelo emblemático nas práticas sociais do século XX. Até onde o fetiche do carro pode levar, e o quanto o culto a personalidades como Elizabeth Taylor, Marilyn Monroe e John F. Kennedy pode ser de fato central para a compreensão dos nossos tempos? Os testes de segurança automotiva têm realmente algo a dizer sobre a natureza humana? Talvez o destino de tecnologias como o automóvel seja apenas ser absorvido pelo cotidiano e perder ou estreitar o seu glamour. Não obstante, e apesar do caráter repetitivo, Crash continua sendo um romance perturbador do que poderia ser, e, como veremos mais abaixo, com um caráter performático similar àquele da obra de Burroughs. Em termos bem abstratos, os praticantes da sexualidade especulativa que ele descreve parecem existir num equilíbrio precário entre o desumanizado pelas feridas e cicatrizes, e o pós-humano, em seu desejo de se deixarem penetrar pela tecnologia, em busca de uma ampliação dos seus prazeres. Daí a influência futura desse romance, sobre o Movimento Cyberpunk. O ensaio crítico de Jean Baudrillard sobre Crash, incluído em Simulacros e Simulação (Simulacres et simulation; 1974), deve ter ajudado a torná-lo o romance pósmodernista definitivo de Ballard. O pensador francês afirma: “Crash é o primeiro grande romance do universo da simulação, aquele com que todos teremos de nos haver a partir de agora[, na condição pós-moderna].”277 Simulacro aqui se refere ao conceito de Baudrillard de uma imagem ou sistema que “não tem relação com qualquer realidade[, mas] é o seu próprio simulacro puro”.278 Nessa perspectiva de fabulation (que não deseja ser lida como representação literária de uma realidade ou contexto), esse romance não é “passível de ser trocado por real, mas trocando-se em si mesmo, num circuito ininterrupto cujas referência e circunferência se encontram em lado nenhum”,279 e nisso realiza um programa estrutural da poética pós-modernista. 276 Idem, ibid. P. 142. Idem, ibid. P. 149. 278 Idem, ibid. P. 13. 279 Idem. 277 147 É bom lembrar que Crash é apenas uma das realizações de uma performance literária-imagética-linguística de Ballard que compõe o discurso teórico que o informa como romance. Em seu livro, Jeannette Baxter informa que em 1956 Ballard viu a exposição “This Is Tomorrow” na Galeria de Arte Whitechapel. Dela participavam artistas do Independent Group, que iria exercer grande influência sobre o escritor. Ballard logo reconheceu uma “afinidade aguda entre a revisão feita pelo Independent Group dos bens de consumo, publicidade de massa e as comunicações modernas, e a sua própria visão de como a ficção científica deveria se desenvolver como análise da cultura contemporânea”.280 Ainda segundo Baxter, “se a atividade cultural da leitura havia, na sociedade do espetáculo, se tornado um exercício de observação, então as formas de narrativa teriam que ser reconfiguradas como espetáculo”.281 Para ela, a resposta de Ballard a essa nova compreensão começa no ano seguinte, com um experimento visual chamado “Project for a New Novel”, “uma coleção de imagens e textos colados extraídos arbitrariamente de textos científicos, que Ballard montou [...] como espécimes [de] um novo tipo de romance”.282 E entre 1966 e 1969, “Ballard publicou quinze textos individuais e ostensivamente autônomos (alguns completos com ilustrações e fotografias) por um amplo espectro de revistas literárias e de vanguarda”. 283 Esses textos, chamados às vezes de “romances condensados”, foram reunidos em 1970 no livro The Atrocity Exhibition, contendo alguns que claramente traziam embriões do que seria o romance Crash. A natureza performática do projeto de Ballard se aprofunda quando ele, influenciado pelo escultor surrealista Eduardo Paolozzi, transformou contos e poemas em prosa em eventos multimídia como as exposições de arte do tipo instalação, “The Assassination Weapon” e a famosa “Crash!”284 Ballard também publicou como anúncios uma série de obras com o mesmo sentido performático, em revistas como Ambit, Ark e New Worlds, constituídas como uma “síntese de inventários textuais e materiais visuais (fotogramas e imagens pornográficas selecionadas, em parte, 280 Baxter, Jeannette. J. G. Ballard’s Surrealist Imagination. P. 62. Sobre a citada exposição, veja http://www.whitechapelgallery.org/exhibitions/this-is-tomorrow 281 Idem, ibid. P. 63. 282 Idem. 283 Idem, ibid. P. 59. 284 Idem, ibid. P. 66. “Crash!” foi exibida no New Arts Laboratory. Em 2010, quando Bruce Sterling esteve pela segunda vez no Brasil, ele foi levado à Oca no Parque do Ibirapuera para a Bienal de Arte e encontrou lá fotos dessa exposição — para o seu espanto, já que havia visitado o mundo todo sem nunca ter se deparado com elas antes. 148 do arquivo de imagens de Paolozzi e parcialmente de sua coleção pessoal)”,285 anúncios recionalizados como modo de refletir a transferência contemporânea da leitura para a publicidade e, possivelmente, a comodificação da arte. Assim como muito da ficção de Ballard, o efeito dos anúncios é entorpecedor, o que, segundo Baxter, “é mimético daquilo que Ballard diagnosticara como uma enfermidade do final do século XX — a morte do afeto” (dead of affect),286 expressão que pode ou não coincidir com aquela de Fredric Jameson, “waning of affect” (desgaste do afeto), mas que, em Ballard, teria referência ao “avassalador ar de inércia física e emocional que vicia a consciência humana”,287 inércia em parte imposta pela saturação midiática de imagens de violência e alienação, e indissociável da media landscape.288 Impossível não remeter o conceito aos heróis de baixa volição do autor, o que reforça sua inserção no pós-modernismo (o sujeito de baixa volição sendo um dos seus staples). Caímos em um os argumentos canônicos das teorias negativas da pósmodernidade, do fim do sujeito centrado ou do ego burguês, segundo a explanação de Jameson: “O pós-modernismo presumivelmente assinala o fim [do dilema da modernidade], que ele substitui por um novo. O fim do ego burguês, ou mônada” — por ser entendido como centrado, fechado — “sem dúvida traz com ele o fim das psicopatologias desse ego — o que eu tenho chamado de desgaste do afeto”. Ele prossegue, com respeito à expressão de sentimentos e emoções: “a liberação [...] da anomia mais velha do sujeito centrado também pode significar não meramente uma liberação da ansiedade mas uma liberação de toda espécie de sentimento também, já que não há mais um eu para realizar o sentimento.”289 Jameson também crê que o enfraquecimento do estilo pessoal na literatura pós-modernista reflete essa situação do desaparecimento do sujeito individual. Certamente, não há muito estilo pessoal presente em The Atrocity Exhibition. Essa coletânea de romances condensados fornece, porém e na edição expandida e anotada de 1990, muitas chaves para a atitude pós-modernista de Ballard. É bom 285 Idem, ibid. P. 67. Idem, ibid. P. 73. 287 Idem. Baxter assina brevemente as semelhanças e diferenças entre os dois conceitos nas páginas 10 e 11 do seu livro, sublinhando a retórica do Surrealismo por trás do conceito de Ballard. 288 Ballard, J. G. The Atrocity Exhibition. Londres & Nova York: Harper Perennial, 2006 [1990], p. 125. Interessante observar que Ballard era a favor de “mais sexo e violência na TV, e não menos. Ambos são catalisadores poderosos para a mudança, em áreas onde a mudança é necessária e em atraso.” (P. 126) Para Pablo Capanna, assim como “o sexo é o eixo do mundo freudiano, a violência mental é a chave para acessar o mundo exterior de violência que habitamos; dizemos e acreditamos que a violência seja má, mas ela impregna nossa vida real.” (In Jim G. Ballard: el tiempo desolado. P. 47.) 289 Jameson, Fredric. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. P. 15. 286 149 ressalvar, porém, que a idéia de romance condensado em The Atrocity Exhibition funciona no plano dos capítulos e não dos parágrafos (todos titulados, no livro), e que esses capítulos ou micro-romances são quase como outlines (resumos detalhados) de romances, desenvolvidos capítulo a capítulo e, às vezes, quase cena por cena. Fica de fora a dramatização da dinâmica pessoal e do ponto de vista dos personagens, resultando em uma estrutura esqueletal e um estilo emocionalmente distanciado, que sublinham o seu conceito de “morte do afeto”. Em “The University of Death”, o protagonista Talbot propõe um festival de filmes de atrocidades: “Até mesmo o festival de filmes havia sido concebido como parte do calculado psicodrama do cenário.”290 De onde se deduz a possível função da paisagem do inner space como forma de psicodrama a ser experimentado pelo leitor. A entrada do autor na pornografia, com Crash, é justificada pelo comentário de que a pornografia “é um poderoso catalisador da mudança social, e seus períodos de maior disponibilidade coincidem com os tempos de maior avanço econômico e científico”,291 e ainda: “O sexo é agora um ato conceitual, é provavelmente só em termos das perversões que chegamos a fazer contato uns com os outros”.292 Em “Tolerances of the Human Face”, o personagem Travers “compôs uma série de novos desvios sexuais, de caráter inteiramente conceitual, numa tentativa de superar essa morte do afeto” 293 — esboçando aí o projeto de Crash. Assim com os surrealistas, que clamavam por tiros contra a multidão, Ballard dirigia os supostos apelos transformadores das suas perversões conceituais contra a “certitudes burguesas”, expressão empregada nos comentários de The Atrocity Exhibition.294 É evidente que a intenção de negar ou enfraquecer o ethos burguês está no centro da obra de Ballard, assim como sua avaliação do estado da sociedade moderna, na mesma chave psicanalítica que informava os pintores e escritores surrealistas. Comentando a história “The Terminal Beach” (1964), Colin Greenland afirma que “Ballard oferece sua psicanálise [da sociedade moderna]: a destruição era o que o 290 Ballard, J. G. The Atrocity Exhibition. P. 21. O livro também foi publicado, nos Estados Unidos, como Love and Napalm: Export U.S.A. (Nova York: Grove Press, 1972). 291 Idem, ibid. P. 54. 292 Idem, ibid. P. 95. 293 Idem, ibid. P. 120. 294 Idem, ibid. P. 128. “[Ralph] Nader foi o primeiro dos ecopuritanos, que proliferam agora, convencidos de que tudo é ruim para nós. De fato, bem poucas coisas são ruins para nós, e teme-se um futuro indefinido de piedosas certitudes burguesas.” 150 homem queria, o tempo todo, inconscientemente”.295 Conclusão que se estende por todo o projeto literário do autor: na tensão entre Eros e Tânatos, é a pulsão de morte que impera no nosso momento histórico. A apatia dos protagonistas, o congelamento temporal, as imagens de regressão ou destruição todos convergiriam para esse conceito da paralisia do eu e fim do desejo.296 * O escritor sueco Sam J. Lundwall, em razão de contatos com Brian W. Aldiss e outros escritores anglo-americanos, participou intensamente das comunidades de FC de ambos os lados do Atlântico. Mas ao mesmo tempo conservava uma distância que lhe permitia fazer a crítica dos vícios da ficção científica americana, sem necessariamente aprovar as soluções inglesas. Sua opinião sobre Ballard é um bom exemplo dessa situação “não-alinhada”297 de política literária: J. G. Ballard foi por vários anos a Grande Esperança Branca da ficção científica anglo-saxã, e a verdadeira força por trás do grande experimento da [FC] britânica, a nova versão da revista inglesa New Worlds [...]. Ele acabou sendo uma promessa fracassada, porém, afundando cada vez mais fundo numa ficção de vanguarda repetitiva e inútil, que era tão tosca como literatura, quanto ilegível como ficção científica. Sua voz foi a mais poderosa por trás da “New Wave”, mas logo acabou sendo que “New Wave” era meramente um termo da ficção científica para o dadaísmo, um movimento de vanguarda que apareceu em 1916 em Zurique, e desapareceu em alguns anos. A coletânea de “romances condensados” de Ballard, The Atrocity Exhibition (1970), foi o último suspiro do neo-dadaísmo britânico disfarçado de ficção científica. 298 295 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 111. 296 Ballard cita Freud na versão comentada de The Atrocity Exhibition: “ ‘Os homens ganharam controle sobre as forças da natureza em tal extensão que com a ajuda delas eles não teriam dificuldade em se exterminar até o último homem. Eles sabem disso, e daí vem uma grande parte de sua atual inquietação, sua infelicidade e seu estado de ansiedade. E agora é de se esperar que o outro daqueles dois “Poderes celestiais”, o eterno Eros, fará um esforço para se firmar no conflito com seu adversário igualmente imortal [Tânatos]. Mas quem pode antecipar com qual sucesso e com qual resultado?’ —Sigmund Freud, Civilisation and Its Discontents.” (Idem, ibid. P. 126) 297 Lundwall usa exatamente esse termo em pelo menos uma ocasião, quando se posiciona sobre a ficção científica americana e a soviética: “A diferença — e aqui eu falo como cidadão de uma nação nãoalinhada que não obstante foi exposta às várias ofertas dessa época — era que os produtores de ficção científica americana estavam exportando o seu lixo. Aqueles na União Soviética e em outros países socialistas guardavam o seu lixo para si mesmos.” In Science Fiction: An Illustrated History. Nova York: Grosset & Dunlap, 1.ª edição, 1978, p. 114. 298 Lundwall, Sam J. Science Fiction: An Illustrated History. P. 57. O dadaísmo foi um importnte precursor do surrealismo, este mais identificado com a New Wave. Lundwall às vezes usa os dois como sinônimos: “Ballard não foi o salvador do neo-dadaísmo. Brian Aldiss tentou empurrar uma escritora surrealista mais talentosa, a falecida Helen Edmonds [(1901-1968)], que escreveu histórias de catástrofe sob o nome de Anna Kavan, mas que também fracassou, pela simples razão de que Kavan, também, debateu-se e afundou ao tentar navegar as águas tempestuosas da metafísica e do surrealismo. Seu romance dadaísta Ice (1967) causou um breve agito, então afundou sem deixar vestígio.” (P. 59) Sua preferência pelo dadaísmo deve ser outra afirmação de sua peculiaridade cultural e nacional, já que o dadaísmo surgiu dentro de uma cultura germânica, enquanto o surrealismo é mais associado à cultura francesa. Lundwall também dá preferência, sobre o conto gótico, à tradição germânica das narrativas Märchen — definidas por ele como “mitos modernos freqüentemente colocados em ambientações 151 A objeção de Lundwall também se refere à contradição aparente de se recorrer a recursos de um movimento do passado, para falar do presente (ou do futuro), e usa uma fala de Ballard contra ele mesmo: Numa entrevista com o crítico dinamarquês de [ FC] Jannick Storm, pouco depois da publicação de The Atrocity Exhibition, Ballard disse, falando sobre seus métodos literários de vanguarda: “É um grande erro escrever sobre a vida em 1970, usando uma técnica de 1870. Nós não usamos veículos puxados a cavalo, e usamos ciência moderna, gravadores, computadores e assim por diante, e precisamos de métodos literários como eles.” Muito verdadeiro. Mas por que usar métodos literários que estavam mortos há cinqüenta anos, e reescrever histórias de mais de setenta anos de idade?299 Em romances como The Drought e O Mundo de Cristal surge uma interessante tensão entre intensos e confusos dramas humanos que mal se expressam perante a estranheza e o desespero do desastre que se abate sobre o mundo. A leitura de The Atrocity Exhibition e Crash oferece algo bem diferente. Registrando que Ballard abriu mão de experimentos tão radicais na fase final de sua carreira, esses dois livros não obstante ilustram como poucos outros a máxima de Raymond Chandler, de que a “maioria dos escritores sacrifica humanidade demais por arte de menos”,300 neste caso, na tentativa de capturar a ordem de um mundo onde, supõe-se, não existe a possibilidade do amor ou do afeto. Trocam assim um papel prometéico de quem ilumina a condição humana e fornece alternativas ao cotidiano entorpecedor, pelo papel de arautos de uma realidade na “qual o apocalipse já teve lugar, tanto na esfera intelectual quanto na da vida diária”,301 segundo as palavras de Greenland, referindo-se ao programa dos surrealistas. Em J. G. Ballard’s Surrealist Imagination: Spectacular Authorship, Jeannette Baxter se dedica à tese de que “os escritos ficcionais e não ficcionais de Ballard constituem um experimento surrealista radical na reescritura da história e da cultura do pós-guerra”.302 Foi apenas parcialmente bem-sucedida, já que, embora ela tenha firmado uma conexão muito bem estabelecida entre a atitude surrealista de revolta contra a guerra e à razão góticas, mas mais preocupados com horrores psicológicos do que com fantasmas, etc.” (p. 17) —, e chama Frankenstein (1818), de Mary Shelley, de narrativa Märchen, e não de gótico. (Pp. 17-18) Quanto à idéia de um “neo-dadaísmo”, Philippe Soupault tentou reviver o movimento em 1957 (não longe dos primeiros momentos da New Wave), com o manifesto “Retour à Dadá”. O próprio Ballard afirmou ter usado o método dadaísta/surrealista da livre associação (The Atrocity Exhibition. P. 14.) 299 Idem, ibid. Pp. 57 e 59. 300 Cf. Hiney, Tom. Raymond Chandler: A Biography. Nova York: Grove Press, 1997, p. 98. 301 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British ‘New Wave’ in Science Fiction. P. 108. 302 Baxter, Jeannette. J. G. Ballard’s Surrealist Imagination: Spectacular Authorship. P. 2. 152 iluminista por trás dela e do nacionalismo europeu, não há conexão direta possível entre as narrativas de Ballard e momentos ou processos históricos tratados em sua complexidade. Resta justamente a atitude de vanguarda, que pressupõe a “imbricação radical entre a forma do texto e o contexto sócio-político e cultural a que ele remete, imbricação na qual os efeitos do texto equivalem a efeitos no mundo vivido, com a psique do leitor como ponte”, como escrevi a respeito de Burroughs. Essa mesma lógica da arte de vanguarda está embutida no subtítulo de Baxter, Spectacular Authorship, suposto antídoto às armadilhas da sociedade do espetáculo. Resta uma atitude de rejeição e ruptura que eclode após a Primeira Guerra Mundial e a panóplia de armas automáticas, gases venenosos aeroplanos e dirigíveis criados pela ciência para a destruição do homem. E novamente após a Segunda, com um conjunto ainda mais horripilantes: o Holocausto e as detonações atômicas. E finalmente, a guerra fria e a guerra do Vietnã. Ondas de rejeição e ruptura da convencionalidade artística propositadamente confundida com o status sociopolítico tornam-se resposta padrão da intelectualidade no Ocidente, Depois disso, porém, o genocídio tutsi em Ruanda falha em causar qualquer resposta, assim como a limpeza étnica no Sudão, ou as atrocidades por atacado da guerra contra o terror. Tal insensibilidade ao horror moderno que ocorre fora da Europa e do Ocidente pode tanto ser sintoma dos esgotamentos impostos pela “condição pós-moderna”, ou serem evidência de que a atitude padrão da intelectualidade no século XX tem sido menos sintoma da “lógica cultural” da modernidade e da pós-modernidade, e mais um gesto de universalização de fenômenos locais que teriam uma conexão maior com categorias de pensamento ainda não superadas como eurocentrismo, primitivismo e etnicidade. Entropia Etnocêntrica Ocidental O percurso neste segundo capítulo foi o de compreender as características, práticas e contextos da New Wave a partir dos seus expoentes e modelos. Isso incluiu a abertura para a psicanálise e a sexualidade explícita; a cultura das drogas; a atitude vanguardista ou aristocrática; o experimentalismo formal e a criação de zonas heterotópicas; a escrita contra a FC da Golden Age e seu suposto dialeto pulp, e a inversão ou reconfiguração do 153 conteúdo pulp (e a sua às vezes indesejada sobrevivência); o estilo emocionalmente detached; o mergulho no inner space e a busca por cenários de primitivismo vivo (o Brasil, a África, os Everglades) indutores de estados alterados de consciência; o laboratório com um espaço de jogos mentais perversos; a evocação da entropia e o catastrofismo. Também cobrimos a influência de um autor canônico do pósmodernismo americano, William S. Burroughs, e levantamos os pontos de contato da obra de Brian W. Aldiss com essa literatura. Por sua vez, J. G. Ballard, que mereceu estudos de pensadores pós-modernos como Jean Baudrillard e Fredric Jameson, também parece estar bem situado no pós-modernismo.303 Talvez seja fácil compreender o apelo da psicanálise junto aos autores da New Wave, à luz do comentário de Norman F. Cantor de que tentativas “foram feitas [no] século [XX] para transformar o freudismo em [um sistema de pensamento ou visão de mundo]”.304 Cantor define “sistema de pensamento” como “um grupo de idéias ou teorias com algum princípio integrante ou atitude básica que pode ser trabalhado em cada aspecto do pensamento ou da vida, para fornecer uma visão de mundo unificada e integrada”.305 O principal candidato seria, evidentemente, o marxismo, chamado por ele de “sistema sutil e adaptável com uma visão ampla e compreensiva da história, da sociedade ou da natureza humana — de fato, da realidade. Ele consegue absorver novas idéias e dados e avançar, e a adaptabilidade é essencial para o sucesso de qualquer sistema intelectual.”306 Como são eles nomes que balizavam a FC New Wave como um todo, especialmente na Inglaterra, configura-se aí a entrada do gênero na poética pósmodernista. Cantor acredita que as tentativas de transformar o freudismo num sistema semelhante “ainda não foram bem-sucedidas”, mas nada nos impede de reconhecer que muitos intelectuais participaram desse empenho. A posse de um sistema de pensamento 303 Talvez buscando evitar uma associação muito forte entre a ficção científica e a ficção pós-modernista com os elementos que ele valoriza em seu livro, Brian McHale ressalva que apenas as obras posteriores a The Atrocity Exhibition (inclusive) seriam pós-modernistas. Nas anteriores ele estaria mantendo “suas improvisações ontológicas firmemente em cheque, por meio de uma moldura epistemológica cuidadosamente construída. [...] [A] perspectiva é escrupulosamente restringida a um único observador, cuja consciência é a única a qual temos acesso, com o resultado de que somos encorajados a nos perguntar o quanto da paisagem exterior implausível poderia na realidade se dever às projeções e distorções desse observador.” (Postmodernist Fiction. P. 69.) Contudo, essa é uma leitura que diverge da maioria daqueles que estavam abordando os livros de Ballard como ficção científica, e que aceitam implicitamente a realidade dos cenários. 304 Cantor, Norman F. The Civilization of the Middle Ages. Nova York: HarperCollinsPublishers, 1993, p. 14. 305 Idem. 306 Idem. 154 permite o alinhamento estrito de fenômenos complexos, diferenciados e até incomensuráveis a partir de um conjunto limitado de conceitos. É certamente um poderoso reforço na luta pela prerrogativa cultural — quem dirá de dois, como o fez a Escola de Frankfurt, ao fundir marxismo e psicanálise, assim como o tentaram o surrealismo e outros movimentos de vanguarda.307 A New Wave pode ser vista como — segundo Peter Bürger em Teoria da Vanguarda (Theorie der Avantgarde; 1974) — uma instância de autocrítica dos caminhos do gênero (que reflete sobre a situação da arte na sociedade), em oposição à crítica imanente (que reflete sobre aspectos de uma determinada forma de arte, movendo-se dentro dela como instituição).308 Para Bürger, o surgimento de movimentos de vanguarda é que assinala o instante em que o estágio de autocrítica é alcançado, em um sistema artístico309 — opinião que tem como descendente imediato a posição de Linda Hutcheon em A Poetics of Postmodernism: a auto-reflexão como característica central da arte pós-moderna. Ernesto Sampaio, o tradutor da edição portuguesa de Theorie der Avantgarde, observa a conexão entre as idéias de Bürger e a dos teóricos pós-modernos: “a dessacralização da arte que Burger reclama para a arte de vanguarda são também proclamadas pelos teóricos do pós-modernismo, na linha do critério de uma modernidade considerada demasiado enredada em ideias [sic] e pouco em sensações.”310 Os militantes da New Wave muito buscaram construir um ethos de vanguarda, ao mesmo tempo em que exerceram a crítica do sentido total da ficção científica angloamericana, inclusive com o viés historiográfico que Bürger defende como essencial para literatura séria, moderna (e pós-moderna). Quanto ao inner space, em 1980 o crítico inglês Patrick Parrinder reconheceu que a “conexão entre a insistência de J. G. Ballard de que a ficção de ‘espaço exterior’ era realmente uma projeção do espaço interior, e as teorias psicanalíticas populares da década” era “evidente”.311 No projeto literário de Ballard — e de muitos escritores da New Wave —, a estratégia mais expressiva de exploração do espaço interior está, como 307 Veja o capítulo “A Política Surrealista” em História do Surrealismo (Histoire du surréalisme), de Maurice Nadeau. São Paulo: Editora Perspectiva, Coleção Debates N.º 147, 1985 [1964], pp. 145-52. 308 Veja o capítulo “II — Teoria da Vanguarda e Ciência Crítica da Literatura”. In Teoria da Vanguarda (Theorie der Avantgarde), de Peter Bürger. Lisboa: Vega, 1.ª edição, 1993, pp. 43-71. 309 Idem, ibid. Pp. 51-52. 310 Sampaio, Ernesto. “Introdução”. In Teoria da Vanguarda (Theorie der Avantgarde), de Peter Bürger. P. 10. Grifos no original. 311 Parrinder, Patrick. Science Fiction: Its Criticism and Teaching. Londres & Nova York: Methuen, New Accents, 1980, p. 17. 155 vimos, na projeção de uma subjetividade imaginada para a paisagem e na imediata reversão dessa lógica, com os personagens reagindo à paisagem transformada, como em Cataclismo Solar ou O Mundo de Cristal. Outra estratégia — provavelmente mais empregada pelos autores americanos — está no desenvolvimento da fantasia científica que reinterpreta mitologias e seu relacionamento com o pensamento racional, com a necessária interpretação do mito como expressão do inconsciente e do subjetivo. Exemplos são O Mundo de Rocannon (Rocannon’s World; 1966), de Ursula K. Le Guin; The Einstein Intersection (1967), de Samuel R. Delany; e os romances de Roger Zelazny baseados em mitologias grega, hindu, nórdica, egípcia, cristã e navajo, em ...And Call me Conrad (também publicado como This Immortal; 1965), O Senhor da Luz (Lord of Light; 1967), Creatures of Light and Darkness (1969), “A Rose to Eclesiastes” (um conto; 1963), e Eye of Cat (1982), respectivamente. Brian Stableford lembra que o “novo interesse no espaço interior que os escritores de FC da década de 1960 encontraram foi encorajado pelo papel das drogas alucinógenas na assim chamada contracultura”.312 Ele também observa que, se “há uma única meada conectando todas” as narrativas de inner space elencadas por ele, “ela está no fato de os personagens terem dificuldades para reconciliar o que se passa dentro de suas cabeças, com o que acontecem em torno deles”. E ainda: “Pode ser assim porque eles estão loucos ou alucinando, ou simplesmente que as coisas não fazem mais sentido — que as certezas do conhecimento que uma vez serviram de ancoragem psicológica já desmoronaram.”313 O que talvez constitua o maior interesse do recurso, a exposição desse estado de incerteza. Aparentemente não muito impressionado, Stableford conclui: Fantasias desse tipo talvez sejam especificamente apropriadas a uma época de mudança rápida, quando os padrões morais são fluidos e o ceticismo encontrou entradas até mesmo no edifício da ciência. Quando todas as velhas crenças são riscadas por uma praga de dúvida, o medo de que possamos não encontrar nada que as substituam terá necessariamente que emergir. Tais histórias têm um fascínio perene, particularmente para as pessoas imaginativas que preferem viver em suas fantasias privadas e que acham o mundo real frio e pouco receptivo. Elas servem para nos lembrar do perigo que essa preferência representa. 314 312 Stableford, Brian. “Inner Space”. In The Science Fiction Source Book, David Wingrove, ed. Nova York: Van Nostrand Reihnold, 1984, p. 62. 313 Idem, ibid. P. 63. 314 Idem, ibid. P. 64. 156 Quanto à entropia, em palestra no Institute of Contemporary Arts em Londres, ministrada em 1975, Peter Nicholls resumiu o que esse conceito poderia fazer pela política literária da New Wave. [...] A revista New Worlds, na Inglaterra, apesar de todos os seus excessos, repetições e auto-indulgências, foi pioneira no uso de um tom mais adulto na ficção científica. Não penso que tenha sido acidente que na década em que isso se deu, uma nova palavra [...] tenha se tornado dominante na ficção científica. A palavra é “entropia” — previamente, um termo muito obscuro da disciplina da termodinâmica. Na recente concentração sobre a entropia, no trabalho de Philip Dick nos EUA, e nos escritores da New World aqui, a ficção científica encontrou a metáfora certa para os nosso tempos. A grande literatura sempre esteve focada no contraste entre a evanescência da vida, amor e paixão, e na permanência da morte e da decomposição. A ficção científica, que até a década de 1950 havia tipicamente embora não inevitavelmente prestado pouca atenção às reverberações trágicas da vida, garantindo assim a possibilidade de que continuaria sendo apenas uma literatura do infantilismo, subitamente descobriu que a idéia científica da morte térmica do universo era a correlação perfeita para a idéia jacobina da morte, tanto na pequena morte do ato sexual, quanto morte maior ao final da vida. Onde a FC antes irradiara para o mundo com uma expressão de confiança fátua, bastante livre da ironia seja em termos de incidente ou de tom, chegou à vida adulta com a admissão, implícita na natureza aleatória do universo, que as coisas dão errado, decaem, surpreendem, desmoronam. [...]315 É natural imaginar que essa metáfora tenha surgido para a ficção científica na Inglaterra, país que viu, no pós-guerra, a entropia do seu “império no qual o céu nunca se põe” (numa ironia com a extinção do calor solar). Brian W. Aldiss lutou pelo Império Britânico nas ilhas do Pacífico, e J. G. Ballard praticamente nasceu em um anexo colonial na China. Michael Moorcock (nascido em 1939) e outros escritores mais jovens da New Wave teriam possivelmente encontrado lugar na burocracia imperial. É uma hipótese fácil, mas não obstante aplicável e talvez determinante. Fredric Jameson a levanta, ao tratar da obra de Ballard: “Nem parece ser fora de lugar interpretarmos o imenso jouissance [deleite] escatológico do maior dos escritores apocalípticos, J.G. Ballard [...], como expressão de sua experiência do fim do Império Britânico na Segunda Guerra Mundial [...].”316 E ainda: A obra de Ballard é sugestiva pelo modo como ele traduz tanto a dissolução física quanto a moral para dentro do grande mito ideológico da entropia, no qual o 315 Nicholls, Peter. “Science Fiction: The Monster and the Critics”. In Science Fiction at Large: A Collection of Essays, by Various Hands, about the Interface of Science Fiction and Reality, Peter Nicholls, ed. Nova York: Harper & Row, 1976, p. 181. O livro reúne as palestras ministradas em um festival de FC organizado pela Science Fiction Foundation, na North East London Polytechnic, com curadoria do próprio Nicholls. O título do ensaio em questão dialoga com um famoso texto de J. R. R. Tolkien, “Beowulf: The Monster and the Critics”, de 1936 (também uma palestra, publicada apenas em 1983). 316 Jameson, Fredric. Achaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. Londres & Nova York: Verso, 2007 [2005], p. 199 [rodapé]. 157 colapso histórico do Império Britânico é projetado para fora em uma imensa desaceleração cósmica do próprio universo [...]. Esse tipo de mensagem ideológica torna difícil escapar ao sentimento de que o simbolismo térmico em questão aqui é um [simbolismo] particularmente ocidental e etnocêntrico. 317 E finalmente, Jameson, como seria de se esperar de um crítico marxista, soma o argumento de classes: “[As obras de] J.G. Ballard [ficam] como ilustrações exemplares dos modos nos quais a imaginação de uma classe moribunda — neste caso o futuro cancelado de um esvanecido destino colonial e imperial — busca se intoxicar com imagens de morte [...].”318 Minha impressão (da qual Jameson não partilharia, eu imagino) é de que a resultante visão apocalíptica da condição pós-moderna representa um novo nível de projeção de um contexto psicossocial particular etnocêntrico e ocidental para um suposto zeitgeist global. O que a New Wave realizou, pela pena de Ballard, Aldiss, Moorcock e outros, foi a criação de uma nova retórica para a ficção científica, uma retórica que entrou em ressonância com seus congêneres norte-americanos. O que não é de se estranhar, em um país que vivenciava suas próprias angústias imperiais — culminando no fiasco do Vietnã — e a ameaça bastante concreta de um apocalipse termonuclear de fato. Uma retórica contrária ao dialeto pulp predominante, e que liberou fortes energias represadas. Não no inconsciente, porém, mas na vontade da respeitabilidade, no desejo de ver a morte da FC como ficção de gênero, para vê-la renascer como mainstream literário. Não foi bem-sucedida nessa missão reencarnacionista, embora tenha, da sua própria maneira, aproximado os dois campos. De qualquer modo, mudou a face da FC em língua inglesa; e, como verdadeira vanguarda, preparou o terreno para a vinda do Movimento Cyberpunk, este sim vitorioso na tarefa de fincar sua bandeira no coração do pósmodernismo. 317 318 Idem, ibid. P. 269. Idem, ibid. P. 288. 158 3. PRIMEIRA ONDA OU NOVA ONDA? Como informado na introdução, o período estudado por David Lincoln Dunbar em sua visita ao Brasil em 1972 foi basicamente a Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira, que é o interesse deste capítulo. Ela durou de 1958 a 1972, e quando Dunbar a comparou com a New Wave anglo-americana, ele forneceu uma pista para se discutir como a FC do Brasil respondia aos mesmos argumentos em torno do esgotamento do gênero e do espírito da época, que levaram esse movimento surgido na Inglaterra a se aproximar das estratégias pós-modernistas. Desse contraste, extraímos uma primeira noção da autonomia da ficção científica em relação aos procedimentos formais do pósmodernismo. Primeira Onda: Marcos Inaugurais Obras de ficção científica já existiam no país desde meados do século XIX, no que, por falta de um termo melhor, eu vim a chamar de “Período Pioneiro”. Agrupar um período de aproximadamente 100 anos sob uma única chave é uma generalização grosseira, mas que reflete o estado atual do que se conhece da FC nacional anterior à Segunda Onda. Evidentemente, nesses 100 anos há momentos e tendências diferenciados: no século XIX, contos fantásticos e góticos apresentavam elementos de ficção científica, e surgem os primeiros romances científicos (scientific romances) como O Doutor Benignus (1875), de Augusto Emílio Zaluar (1826-1882); no começo do século XX, o Ciclo de Panfletos Utópicos Eugenistas (1922 a 1929), como o infame O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato (1882-1948), e os primeiros romances de mundo perdido, como o clássico A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls (18881959); também as primeiras obras daquilo que se poderia chamar de uma 159 FC pulp brasileira.1 Esparsas e limítrofes, são obras que, em boa parte, rendem-se ao campo ficção científica apenas por meio de um olhar retrospectivo. Em 1958, o ambiente literário brasileiro parecia maduro para finalmente receber a FC como gênero literário. Um ano antes, o Sputnik, o primeiro satélite artificial, foi lançado pela então União Soviética, chocando o mundo, e fenômenos como o computador eletrônico, o televisor, a bomba atômica e o possível holocausto nuclear faziam parte das preocupações cotidianas. O gênero entrou na ordem do dia.2 O evento inaugural da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira, um termo que se atribui às acadêmicas Andrea L. Bell & Yolanda Molina-Gavilán,3 foi a publicação da antologia Maravilhas da Ficção Científica, organizada por Fernando Correia da Silva & Wilma Pupo Nogueira Brito, e do romance O Homem que Viu o Disco-Voador, de Rubens Teixeira Scavone, ambos lançados naquele ano. Esses livros chamaram a atenção da imprensa e da intelectualidade para a situação da FC no mercado editorial e na cultura brasileira. A antologia, publicada pela Cultrix, foi a primeira destinada ao gênero montada no Brasil (embora sem autores nacionais),4 e contou com um excelente ensaio introdutório de Mário da Silva Brito, importante crítico literário da época. O texto de Brito repercutiu no ambiente intelectual — foi uma espécie de pontapé inicial de um debate relativamente intenso, sobre o lugar da FC nas letras nacionais e na literatura como um todo, conduzido nas páginas do “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo e de outros jornais e revistas entre 1957 e 1976. 1 Para uma discussão desse longo período da história da FC brasileira, veja os Capítulos II e III do meu livro Ficção científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (Belo Horizonte: Editora UFMS, 2003). 2 Certamente, algo semelhante se deu na época em diferentes graus em diversas partes do mundo. Clive Bloom, por exemplo, afirma, discorrendo sobre a situação na Inglaterra: “Um gênero que encontrou sua primeira grande audiência na Bretanha foi a ficção científica. O gênero já existia, é claro, desde o final do século XIX, mas os ‘romances of the future’ haviam permanecido propriedade de escritores como H. G. Wells [...]. A era da exploração espacial começou a mudar isso conforme a ficção popular explorava as possibilidades do progresso tecnológico e da viagem espacial, e examinava as possibilidades mais sombrias da fusão atômica [...]” (In Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. Basingstoke & Nova York: Palgrave Macmillan, 2002, p. 100). Para uma breve apreciação da influência da FC anglo-americana no pós-guerra sobre várias regiões do mundo, veja o meu ensaio “Encountering International Science Fiction through a Latin American Lens” (in Reading Science Fiction, James Gunn, Marleen S. Barr & Matthew Candelaria, eds. Basingstoke & Nova York: Palgrave Macmillan, 2009, pp. 142-54). 3 Bell, Andrea L. & Gavilán, Yolanda Molina-. “Introduction: Science Fiction in Latin America and Spain”. In Cosmos Latinos: Science Fiction in Latin America and Spain, Andrea L. Bell & Yolanda Molina-Gavilán, eds. Middletown: Wesleyan University Press, 2003, p. 19. 4 O conteúdo da antologia: “A Primeira Hora na Lua”, do “correspondente radiofônico da revista soviética Znania Cila”; “Encontro Noturno”, de Ray Bradbury; “O Jóquei do Espaço”, de Robert Heinlein; “Filogenia às Avessas”, de Amélia [sic] R. Long; “Arena”, de Frederic [sic] Brown; “Bucólica”, de A. E. van Vogt; “O Homem que Vênus Vai Condenar”, de Alfred Bester; “Ninguém Viu a Nave”, de Murray Leinster; “Caminho de Fuga”, de William F. Temple; “Náufrago”, de A. Bertram Chandler; “Dominós”, de C. M. Kornbluth; “A Estrela”, de H. G. Wells; “O Pequeno ‘Robot’ Perdido”, de Isaac Asimov; “O Grande Salto”, de John Cristopher; e “As Respostas”, de Clifford D. Simak. 160 Bem informado quanto ao momento anterior, Brito elenca Orígenes Lessa (19031986), Afonso Schmidt (1890-1964) e Jerônymo Monteiro (1908-1970) como pioneiros locais. Em seguida, enquanto contextualiza, dedica-se a compor uma linhagem da FC: Se bem que recente a sua atualidade — atualidade que se acentuou com a explosão atômica de Hiroshima, as notícias de aparecimento de discos voadores, a cibernética, o estudo das novas teorias astronômicas, as modernas concepções biológicas e psicológicas, o exame mais aprofundado dos fenômenos paranormais, como a telepatia, a percepção extra-sensória e a telekineses, e, finalmente, com a devassa sideral pelos sputniks — a ficção-científica, como literatura, vem de longe, de muito longe, e ilustre é a estirpe dos que lançaram os seus fundamentos.5 Seguem-se dois parágrafos de menções a obras de Luciano de Samosata, Plutarco, Johannes Kepler, Francis Godwin, Cyrano de Bergerac, Voltaire, Mary Shelley e Edgar Allan Poe até que se chegue aos suspeitos usuais: Jules Verne e H. G. Wells. Esse tipo de genealogia, conhecido entre os estudiosos da FC como “proto ficção científica”,6 é controverso. Por exemplo, em Bestsellers: Popular Fiction Since 1900, Clive Bloom afirma que na Inglaterra anterior à I Guerra Mundial “toda ficção popular [era] designada com o título vago de ‘romance’ [como em ‘romanesco’]”, 7 e que categorizar “livros em gêneros populares antes da década de 1920 é de algum modo uma rotulação falsa, irreconhecível para os leitores daquela época”.8 O mesmo, porém, pode se dar com a literatura em geral, entendida como ficção, já que os gêneros de prosa conforme os entendemos hoje datam do século XVIII. Brito então faz perguntas retóricas — “É a ficção-científica uma literatura gratuita, desligada do homem, mera fantasia delirante que brotou numa era já farta da imaginação fatigada dos escritores? É um gênero sem importância literária, que 5 Brito, Mário da Silva. “Introdução”. In Maravilhas da Ficção Científica, Fernando Correia da Silva & Wilma Pupo Nogueira Brito, eds. São Paulo: Cultrix, 1958, p. 9. O mesmo reapareceria no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo de 25 de outubro de 1969 (N.° 646), editado por Rubens Teixeira Scavone e totalmente dedicado à FC. Brito nasceu em 1916, em Dois Córregos, interior de São Paulo. Entre seus principais trabalhos estão Poesia do Modernismo (1968), Ângulo e Horizonte: De Oswald de Andrade à Ficção-Científica (1969, e que reproduz o ensaio em questão), Diário Intemporal (1970), As Metamorfoses de Oswald de Andrade (1972), História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1974), Conversa Vai, Conversa Vem (1974), Cartola de Mágico (contos, 1976), e outros. Foi presidente da União Brasileira de Escritores em 1964, e colaborou com os principais jornais de São Paulo e Rio de Janeiro. 6 Veja o verbete correspondente em The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, pp. 965-67. E em Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950, o Capítulo I (pp. 51-122). 7 Bloom, Clive. Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. Basingstoke & Nova York: Palgrave Macmillan, 2002, p. 86. 8 Idem, ibid. P. 87. 161 constitua mero entretenimento, evasão pura e simples [...]?9 —, que responde com uma avaliação marcadamente positiva: A ficção-científica, muito embora trate de mundos desconhecidos, de universos vagamente pressentidos, de objetos não identificados, de robots e monstros, de fenômenos estranhos, de sêres [sic] extraterrenos ou potências invisíveis, de naves estapafúrdias, de galáxias, de civilizações e culturas de outros planetas [sic], é, em vez de escapista, vincadamente humana, e dá a dimensão da perplexidade do homem na hora histórica em que vive. [...]10 E ainda: Literatura de fuga, essa da ficção-científica? Parece que não. É antes filha do impasse, da crise, da humanidade intranqüila e sem paz. Mas, nem por isso, é tôda [sic] ela feita de dor e, em nenhum momento, de desprêzo [sic] pela condição humana. Muito pelo contrário, está vinculada aí tempo terrível que as manchettes diàriamente [sic] denunciam [...].11 Seu viés é claramente humanista, quando afirma, entre outros instantes, que a FC é “é uma literatura do homem, nascida do seu íntimo profundo, não importa que tantas vezes temerosa e fatalista, desiludida e triste”.12 Para ele, o gênero ganha sua relevância a partir de uma crise do homem: “A [FC] funda suas raízes nesse mundo instável e alienado. A espécie humana em perigo — perigo suposto ou real — produz uma literatura premonitória. É o grande documento da criatura em face do seu destino problemático. Ou a catarse de um sentimento de culpa coletivo.”13 Tal relevância saudada por Brito haveria de chamar ao ringue intelectuais contrários a essa perspectiva, assim como a sua talvez ainda mais provocadora declaração a respeito da atitude adversária: Há críticos que assim consideram [escapista] esse ramo tão popular das letras contemporâneas. Outros, além de desprezá-lo, supõem-no produto de ideologia reacionária, resultado de artimanha política que visa, de um lado, distrair as populações revoltadas, e, de outro, preparar o espírito dos povos para a aceitação de doutrina imperialista e escravizadora. Atitude esta na verdade extremada e que decorre do cacoete muito em voga de tudo ver pelo ângulo das filosofias politizadas. Será inquestionàvelmente [sic] mais “científico”, encarar essa literatura como vinculada à própria condição do homem contemporâneo frente ao conhecimento, às formas de vida e de comportamento do seu tempo, às incertezas do mundo que limita, dia a dia, suas esperanças nos descaminhos políticos, às inquietações forjadas pela própria aventura ou experiência científica, à crise que, afinal, define esta etapa histórica. Na verdade, a ficção-científica só é literàriamente [sic] válida, enquanto pertença ao universo da linguagem e da poesia e signifique uma medida da criatura humana.14 9 Brito, Mário da Silva. “Introdução”. In Maravilhas da Ficção Científica. P. 11. Idem, ibid. P. 13. 11 Idem, ibid. P. 14. 12 Idem. 13 Idem. 14 Idem, ibid. Pp. 11-12. 10 162 Brito mostra aí sua consciência da crítica marxista, que ele despensa como cacoete, inclusive brincando com a expressão “científico”, presente no conceito do “socialismo científico” de Friedrich Engels (1820-1895), e, provavelmente, no conceito do próprio Karl Marx (1818-1883) de “materialismo histórico”.15 É natural, portanto, que um crítico associado ao marxismo, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), calçasse as luvas logo em 1959: no ensaio “Science Fiction” ele declara que há “motivo para supor que os romances fantásticos de viagens astronáuticas e de exploração de planetas e outros mundos desconhecidos são tão válidos no Brasil como em qualquer parte”, para logo em seguida afirmar: “Essa literatura de cordel fornece ao leitor comum todas as trivialidades, horrores, sentimentalismos, etc., que a literatura moderna exclui cuidadosamente dos seus enredos (ou da sua falta de enredo).”16 A expressão “literatura de cordel” aqui é pejorativa, equivalente a “subliteratura” e semelhantes. De fato, o texto de Carpeaux exemplifica a constatação de Gary Westfahl (University of California, em Riverside): Depois de ignorarem o gênero por muitos anos, os resenhadores literários na década de 1950 começaram a olhar, ocasionalmente, para a ficção científica, em geral com desdém, freqüentemente seguindo um padrão que persiste até hoje: eles começam o artigo professando uma absoluta neutralidade e falta de preconceito com respeito à ficção científica, consideram uns poucos textos exemplares, e concluem que o gênero é, de fato, tão imprestável quanto parece. 17 Embora Carpeaux não se remeta diretamente ao ensaio de Brito, seu texto sofre em comparação: a discussão da proto FC que ele oferece é confusa, repleta de non sequiturs e comentários generalizantes da evolução do pensamento humano. Um exemplo: “Os astros, preocupados com a regularidade das suas órbitas, já não regem destinos nem há lugar neles para gênios astrais. O Universo está vazio.”18 Bem se vê que a crise mencionada por Brito é mais valorizada no ensaio de Carpeaux. Mais importante, porém, é que para Carpeaux, assim como para Muniz Sodré anos depois, a FC seria um escapismo perigoso: “Ao embarcar para o espaço, [o ser humano] perdeu o contacto 15 Veja, por exemplo, o ensaio de John Holloway, “The Tradition of Scientific Marxism”. In Change the World Without Taking Power. The Meaning of Revolution Today, de John Holloway. Londres: Pluto Press, 2009. Disponível em http://marxmyths.org/john-holloway/article.htm 16 Carpeaux, Otto Maria. “Science-Fiction”. In Ensaios Reunidos: 1946-1971: Volume II, Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 2005, pp. 466-67. 17 Westfahl, Gary. “Guest Editor’s Pad: Combativeness and Science Fiction, or, Look Forward in Anger”. Extrapolation Vol. 41, No. 1 (Spring 2000), p. 4. 18 Carpeaux, Otto Maria. “Science-Fiction”. P. 469. 163 [sic] não só com a Terra, mas também com a realidade. Evasão? Mas essa evasão tem objetivo bem definido: cancelar um processo histórico.”19 Coincide aí, com a postura de Sodré, que, no posterior A Ficção do Tempo: Análise da Narrativa de Science Fiction (1973), dispensa a FC como uma pseudoliteratura que não pode aspirar ao status de arte literária.20 Para Sodré, que enxerga o gênero por um prisma semiótico e marxista, só “existe escândalo em literatura” pela forma, e não pela temática como pretenderia a FC (até o advento da New Wave). “Escândalo” se refere às propriedades literárias de revolucionar a percepção da época e do meio social, e de desautomatizar percepções arraigadas. Mais do que isso, para ele o gênero passa a ser uma criatura que “rouba” da literatura verdadeira essas funções — embora Sodré falhe em caracterizar essa literatura legítima, mas que certamente obedeceria aos ideais de vanguarda defendidos pela Escola de Frankfurt e seus seguidores — enquanto, na verdade, operaria como um mito do século XX que reforçaria a ideologia dominante. “Embora gerada pela cultura de massa”, Sodré escreveu, “a FC não é uma mera forma degradada de mitos, mas um mito novo em emergência no seio da formação social industrializada”.21 Para o autor, a FC representa a ideologia capitalista, constituindo-se em um “sonho” que “deve ser visto como um mito cuja função é fornecer uma essência para o homem contemporâneo”, essência da qual “subentendemse os produtos alienados do trabalho humano, instaurados pelas relações capitalistas de produção, que são esquecidas pela FC — logo, dadas como eternas”.22 O gênero, ao se afirmar como mito moderno, só cumpriria essa função por sancionar a ideologia, sem desafiá-la, como faria a literatura modernista de vanguarda. Sodré intui que a FC é um gênero apto a trabalhar a questão da alteridade, mas, mantendo a sua condenação, afirma que ele nega, numa suposta “oposição mítica” do tipo nós/outros, a alteridade, que pare ele é definida como “tudo aquilo que não se ajusta à imagem ideológica que fazemos de nós mesmos”.23 “Por trás dessa negação do 19 Idem. O texto de quarta-capa de A Ficção do Tempo é inequívoco: “A crítica literária costuma debruçar-se de preferência sobre obras e autores consagrados, ou então sobre os grandes textos clássicos. Em literatura, praticamente inexiste a análise do medíocre. Talvez por isso a Ficção Científica tenha sido tão pouco estudada, já que foi sempre identificada pelos críticos de elite como uma literatura medíocre. [...]” A Ficção do Tempo foi o primeiro estudo sobre FC realizado no Brasil por um acadêmico universitário. 21 Muniz Sodré. A Ficção do Tempo: Análise da Narrativa de Science Fiction. Petrópolis: Editora Vozes, 1973, p. 109. 22 Idem, ibid. P. 124. 23 Idem, ibid. P. 121. 20 164 outro”, escreveu, “encontra-se a tese da diferença antropológica, que tem acompanhado a História da urbs técnico-industrial, e segundo a qual o outro mais fraco (os índios, as formações sociais arcaicas) é sistematicamente arrasada pela cultura dominante”.24 Críticos de tendências marxistas, como o australiano Damian Broderick, podem partilhar dessa visão: “A FC escreve [...] a narrativa do mesmo, como o outro.”25 Não obstante, o estado atual dos estudos de ficção científica sugere o contrário, segundo Adam Roberts, em Science Fiction (2000): “O fato de que a FC fornece um meio, de forma literária popular e acessível, para se explorar a alteridade [serve como base para a afeição de muitos críticos pelo gênero]”,26 ele escreveu, para então concluir que a “FC, ao focar suas representações do mundo não por meio da reprodução desse mundo, mas, ao invés, por figurativamente simbolizá-lo, é capaz de destacar precisamente as construções ideológicas da Alteridade”.27 A atual adoção internacional do gênero pelos estudos feministas, culturais, raciais, etc. sugere o potencial dessa hipótese.28 Muniz Sodré peca por não apresentar, em seu trabalho, uma leitura extensa da enquanto afirma que às vezes a FC FC, alcança o grau de complexidade e arrojo formal que ele privilegia, mas que os exemplos são tão poucos que não ajudam a definir o gênero, que assim permanece exclusivamente como literatura comercial. Ele viola aí tanto a Lei de Sturgeon — “90% da FC é lixo; mas, pensando bem, 90% de tudo é lixo” — quanto o Postulado de Dickson — “Uma arte é julgada pelo seu melhor, e não pelo seu pior”.29 Ou seja, por um lado não é justo discutir uma literatura a partir dos seus piores 24 Idem. Por um tempo o autor atuou como especialista em FC junto a imprensa, antes de seguir adiante com outros interesses, freqüentemente vinculados à “cultura de massa”, como Best-Seller: A Literatura de Mercado (São Paulo: Ática, 1985). 25 Broderick, Damien. Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 1995, p. 51, apud Adam Roberts. Science Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 2000, p. 30. 26 Roberts, Adam. Science Fiction. Londres & Nova York: Routledge, 2000, p. 28. 27 Idem, ibid. P. 30. 28 O livro de M. Elizabeth Ginway, Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (2004) emprega recursos da crítica cultural e feminista. E The Cambridge Companion to Science Fiction (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), Edward James & Farah Mendlesohn, eds., traz os seguintes capítulos, entre outros: “Feminist Theory and Science Fiction”, por Verônica Hollinger; “Science Fiction and Queer Theory”, de Wendy Pearson; “Gender in Science Fiction”, de Helen Merrick; “Race and Ethnicity in Science Fiction”, de Elisabeth Anne Leonard; e “Religion and Science Fiction”, de Farah Mendlesohn. 29 Dickson, Gordon R. “Ten Years of Nebula Awards”. In Nebula Awards Ten, James Gunn, ed. Nova York: Berkley, 1976, p. 96. 165 exemplos, desprezando os melhores, enquanto, por outro, nem tudo o que reluz na ficção literária é ouro.30 Ramiro Giroldo, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, enxerga a semelhança entre as posições de Carpeaux e Sodré. Para ele, a postura de Carpeaux tem interesse apenas em “verdades definitivas, [que] barra os caminhos para o debate e inviabiliza a interlocução — pede silêncio sobre o assunto, não discussão”,31 enquanto Sodré “dedica um volume [...] a condenar a ficção científica com base em uma aplicação plana e, portanto, superficial do conceito de indústria cultural” e “não se ampara em exemplos literários [...] para construir sua argumentação, constituindo um olhar crítico com base na ignorância do assunto tratado”.32 Antes que Muniz Sodré reafirmasse a postura de Otto Maria Carpeaux, o editor Gumercindo Rocha Dorea e o escritor André Carneiro responderam ao ensaio de 1959. É interessante, porém, que a primeira instância de política literária a respeito da FC no período em questão envolvesse dois críticos estabelecidos. Trata-se de um nível de política literária exterior à prática do gênero, mas que pode ser determinantes sobre ele, em seu relacionamento com o sistema literário brasileiro. É útil, portanto, citar a conclusão de Giroldo, de que a “tendência da crítica canônica é atribuir à [FC] os efeitos negativos característicos da indústria cultural — servem de exemplos as avaliações que Carpeaux e Sodré fazem do gênero, relacionadas à alienação e à dominação cultural de nações culturalmente hegemônicas”. 33 Por sua vez, a resposta de Carneiro a Carpeaux está no seu livro pioneiro, Introdução ao Estudo da “Science Fiction” (1967), o primeiro do seu tipo no Brasil e em português. Com uma deferência que beira à ironia, Carneiro observa que Carpeaux não tem problemas em elogiar obras de FC distópicas como 1984 (Nineteen Eighty Four; 1949), de George Orwell, ou Nós (We; 1924), de Ievguêni Zamiatin (1884-1937), e no ensaio “O Futuro ainda não Começou” (1965), avalia positivamente o romance Last and 30 Sobre essa questão, veja A Reader’s Manifesto: An Attack on the Growing Pretentiousness in American Literary Prose (Hoboken, NJ: Melville House, 2002), de B. R. Myers; “The Editor’s Notebook: A Confidential Chat with the Editor”, de Michael Chabon (in McSweeney’s Mammoth Treasure of Thrilling Tales, Michael Chabon, ed. Nova York: Vintage, 2003); e “Convite ao Mainstream”, de Luiz Bras, in Rascunho: O Jornal de Literatura do Brasil (abril 2009), p. 15; e “O Importante é Contar Histórias”, entrevista de Michel Laub com Martin Amis, in Bravo! (julho 2004): 58-62. 31 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. Tese de doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, Universidade de São Paulo, 2012, p. 21. Em sua tese, Giroldo trabalha as idéias de Florestan Fernandes (1920-1995) sobre a tendência conservadora presente no processo de modernização brasileiro, descrita em Mudanças Sociais no Brasil (1960). 32 Idem, ibid. P. 22. 33 Idem, ibid. P. 150. 166 First Man (1930), do escritor e filósofo inglês Olaf Stapledon (1886-1950).34 Mas evidentemente, só é possível elogiar obras de FC que não sejam apresentadas como tal, e evitando uma associação com o gênero. O empenho de Carpeaux em negar importância à FC chega ao cômico, quando escreve: “Tenho lido, gemendo, várias dúzias desses livros [...].” Impressionante excesso de zelo.35 * Rubens Teixeira Scavone publicou O Homem que Viu o Disco-Voador sob o pseudônimo de “Senbur T. Enovacs”, um anagrama com seu nome. O assunto do romance está no título, e Scavone retornaria com sucesso mais três ou quatro vezes a ele, culminando em seu último livro, O 31.º Peregrino (1993), sem dúvida um dos textos-referência para a FC brasileira no século XX. No início do romance, Eduardo Germano de Resende comanda um avião de carreira. Durante aproximação para pouso em São Paulo, uma estranha anomalia acomete os instrumentos, forçando uma arremetida de emergência. O exame dos aparelhos não constata nada, e, tempos depois, em vôo sobre o Atlântico, um OVNI luminoso é avistado por todos os tripulantes e passageiros. Um dos passageiros, coincidentemente, é um “ufólogo” idoso, o Prof. Augusto-Michel Vaugirard. Os dois travam conhecimentos e logo se aliam — juntamente com Leila, namorada de Resende, e seu colega rádio-operador Santos — na investigação do fenômeno. As coisas se aprofundam quando Resende se torna um “contactado” (na terminologia ufológica atual): depois de ser seguido por um “sujeito de nariz vermelho, o 34 Carneiro, André. Introdução ao Estudo da “Science Fiction”. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1967, pp. 12-21. Veja o ensaio em questão em Ensaios Reunidos: 19461971: Volume II, Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 2005,pp.726-30. 35 Carpeaux, Otto Maria. “Science-Fiction”. P. 468. Guilherme Perussolo afirma, porém, que não devemos nos admirar: “Otto Maria Carpeaux, assim como Antonio Houaiss, era bastante admirado, entre inúmeras outras coisas, pelo grande número de livros que costumava ler semanalmente. Constantemente, n’O Pasquim, onde escrevia periodicamente, Millôr, Jaguar ou Francis costumavam dizer o quanto liam em média por semana, sendo quem maior número de livros lia semanalmente Francis, com algo em torno de 8, mas mesmo assim, um número muito menor que o de Carpeaux. Acredita-se que Carpeaux lia por volta de 10 livros por semana. Um número aceitável, tendo em vista que esse era justamente o trabalho do homem, e que ele dominava a leitura dinâmica.” (Guilherme Perussolo, comunicação pessoal por e-mail, 25 de abril de 2009.) Não obstante, é difícil não aplicar aqui as palavras irônicas de C. S. Lewis no ensaio “High and Low Brows”: “E uma vez que observo que muitos dos meus conhecidos high brow gastam tanto do seu tempo falando da vulgaridade da arte popular, e portanto devem conhecê-la bem, e não poderiam ter adquirido esse conhecimento a menos que a apreciassem, devo assumir que eles receberiam bem uma teoria que os justificassem para que pudessem beber livremente dessa fonte, sem perderem o direito à sua superioridade”. In Literary Essays, Walter Hooper, ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1969, p. 267. 167 homenzinho saído do cartaz de Toulouse-Lautrec”,36 ele recebe um pacote contendo um aparelho comunicador que lhe revela que os contatos anteriores haviam sido uma preparação para o que havia de porvir. Um encontro imediato do terceiro grau é marcado na Ilha da Trindade, no Oceano Atlântico. O restante do romance, que é dividido em três partes, descreve a preparação para a viagem de barco, e a aventura propriamente dita, até o encontro com o “ufonauta” Alik e o que este tem a revelar sobre suas origens e intenções. Alik explica, com alguma surpresa da parte dos heróis e do leitor atual de ficção científica, que não é ser outro mundo, mas de comunidades secretas instaladas no interior da terra, em uma utópica cidade milenar chamada Agarta. Scavone já antecipava a surpresa: “Sei que tudo isso lhes parece absurdo e que seria mais fácil admitir uma origem extraterrena para nossa nave espacial, que vocês chamam de ‘disco-voador’.”37 O interesse dos habitantes de Agarta é a eventual “ligação total com a superfície”, visando conseguir “a pacificação e a paz integral, a conquista da Suprema Harmonia”. O horizonte final de seus planos não se restringe à Terra, porém, mas alcançar os “demais corpos do nosso sistema [solar], para depois ainda rumarmos para as novas galáxias”.38 A sua civilização é descrita como um “Estado Ideal”, acautelado quanto à natureza beligerante dos humanos da superfície. Por trás de tudo há um zelo missionário de intenção moralizante, e apesar do discurso estratégico de alcançar as estrelas a partir de um estado de união e ausência de conflito. Alik diz que não é seu desejo firmar seus ideais pela força, mas em diversas oportunidades tiveram de empregar violência para defenderem-se da agressividade dos povos da superfície — violência que ameaçam empregar agora contra os contactados (com o uso do ominoso eufemismo “anular”), se eles faltarem com o sigilo.39 Agarta ou Agharta faz parte da doutrina teosófica postulada por Helena Blavatsky (1831-1891), de modo que O Homem que Viu o Disco-Voador também se alimenta da hipótese fantasiosa da “Terra oca”40 e da conexão possível entre ufologia e teosofia, 36 Scavone, Rubens Teixeira. O Homem que Viu o Disco-Voador. São Paulo: Distribuidora Paulista de Jornais, Livros e Impressos, 1958, p. 85. 37 Idem, ibid. P. 159. 38 Idem, ibid. P. 160. 39 Idem, ibid. P. 182. 40 Veja o verbete correspondente em The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St Martin’s Press, 1993, pp. 579-80: “O conceito da Terra como uma concha oca e esférica com uma superfície côncava interna habitável” (p. 579). Para uma seleção histórica (muitas vezes sob a forma de excertos) de textos ficcionais e não-ficcionais sobre Terra oca e mundos subterrâneos, veja Subterranean Worlds: A Critical Anthology, de Peter Fitting, ed. (Middleton, CT: Wesleyan University Press, 2004). 168 prenunciando o teor da “ufologia mística” (em oposição à “científica”) que se tornaria dominante no Brasil, ao longo da segunda metade do século também uma conexão entre a FC XX. Existe, evidentemente, e a teosofia, e um material lendário que faz fronteira com o ocultismo. É essa segunda conexão que permite a Scavone abordar o assunto sem ser ele mesmo um teosofista.41 Embora constitua uma conexão antiga, ela lhe deu a oportunidade de tratar de um fenômeno “novo”, a ufologia, e de discorrer/denunciar a conjuntura premente da ameaça nuclear. As complicações do enredo advêm de um grupo de belonaves que se aproxima da ilha e dispara mísseis contra o disco voador; e do plano de Santos, descrito inicialmente como “uma criança grande, que seguia filmes seriados e se impressionava com histórias em quadrinhos”,42 de vender a história do encontro à imprensa. De volta a São Paulo, o grupo tem de se ver com a atitude de Santos, agravada pela crença paranóica de que “o disco-voador só pode pertencer a uma potência não identificada que busca o domínio total do mundo”,43 e pela ameaça de “anulação”. Um próximo contato é marcado em uma ilha fluvial no Rio Grande entre São Paulo e Minas Gerais,44 mas pouco antes Santos leva tudo à imprensa. Subseqüentemente, o avião em que Santos viajava desaparece sobre o mar. Angustiado com tudo, Vaugirard decide também ir aos jornais, crente de que seu prestígio acadêmico o fará ser ouvido com seriedade, mas é “anulado” pela reação sarcástica dos jornalistas; i.e., cai no ostracismo. Desse modo, Scavone preserva o mistério em torno dos OVNIs, deixando de revelar as razões de Alik em escolher Resende para avançar os objetivos dos “intraterrenos”. Ao mesmo tempo, fecha sua contextualização da ufologia com um comentário sobre a imprensa sensacionalista e os riscos inerentes ao interesse pelo assunto. Outro autor brasileiro não-teosofista que usou suas idéias para o mesmo propósito moralizante e dentro de um enredo de aventura foi Jerônymo Monteiro, no romance A Cidade Perdida (1948), que narra um encontro com gente da Atlântida vivendo na Amazônia brasileira. Foi posteriormente procurado por teosofistas praticantes, que suspeitavam que ele mesmo fosse um atlante infiltrado entre nós em missão civilizadora. (Veja a respeito, o ensaio de Walter Martins, “São Paulo Letter”. Amazing Stories Vol. 42, N.º 3 (setembro de 1968), p. 137. O texto é uma rara tentativa, à época, de estabelecer contato com a comunidade americana de ficção científica.) 41 Note-se que a hipótese do “deus astronauta”, que interpreta o passado a partir de possíveis intervenções alienígenas na Terra, seria formalizada por Erick von Däniken no seu controverso Eram os Deuses Astronautas (Erinnerungen an die Zukunft) apenas em 1968. Von Däniken teria se inspirado na teosofia e, talvez, na tradição de ficção científica de mundo perdido, romance planetário, etc., subgêneros inicialmente influenciados pela doutrina de Blavatsky e outros. Para um vislumbre dessa conexão entre FC e teosofia, veja Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil, pp. 183-90. 42 Scavone, Rubens Teixeira. O Homem que Viu o Disco-Voador. P. 140. 43 Idem, ibid. P. 224. 44 Idem, ibid. P. 228. 169 Scavone usa sua experiência no Centro de Formação de Oficiais da Reserva (R2) como aviador para dar verossimilhança ao protagonista Eduardo Germano de Resende, e sua São Paulo da garoa tem uma econômica cor local, num texto de qualidades substanciais — especialmente para um romance de estréia. Mas o seu admitido modelo foram as aventuras escritas por Jules Verne: um grupo que se forma — em geral, como aqui, com um erudito, um jovem herói e uma garota respondendo pelo apelo romântico — para uma jornada pela geografia mas também por um determinado campo do conhecimento. Neste caso, a ufologia da época. Assim, estão inseridos na narrativa extensas e detalhadas reflexões sobre o fenômeno OVNI. Incluem datas, nomes e localidades da “casuística ufológica”. A escolha da Ilha da Trindade como locação da aventura parece ter sido uma feliz coincidência dentro dessa lógica, já que o lugar foi palco de um célebre caso de avistamento e fotografia de OVNI em janeiro de 1958,45 e Scavone afirme que seu livro já estava escrito quando da divulgação do caso.46 O aspecto didático foi notado por Menotti Del Picchia, que resenhou o livro: “Senbur T. Enovacs parece ser muito entendido em física e astronautica [sic] pelo que fez o expositor cientista, talvez mesmo o didata, dominar o romancista embora, com estilo minuano, escreva bem.”47 No ensaio “Remembranças”, Scavone revela que a idéia para o romance surgiu em julho de 1958, quando ele, de férias do Ministério Público, foi a um lançamento de livro e ouviu lá um “poeta-advogado” discorrer com “convicção aliciante” sobre os discos voadores.48 Aparentemente, o advogado — transformado em astrofísico no romance — foi a base para o às vezes transtornado Vaugirard. Sobre O Homem que Viu o Disco-Voador, o crítico Sérgio Milliet escreveu: “O autor, como sabe contar, com clareza, fluência e simplicidade, sem exagerar na pormenorização científica e sem descambar para o absurdo, dá-nos um romance 45 Veja a respeito: Redação Vigília. “Caso de Ilha Trindade: De Fraude Incontestável a Fraude Disputada”. No site ufológico Portal/Revista Vigília, maio de 2011. Disponível em http://www.vigilia.com.br/sessao.php?categ=0&id=1119 46 Anônimo. “O Homem que Viu o Disco Voador”. Papêra Uirandê Especial 5 (julho de 1999), p. 20. Entrevista originalmente publicada no News da Semana de 12 de outubro de 1958, p. 12. 47 Del Picchia, Menotti. “Discos-Voadores e Outros Vôos”. Papêra Uirandê Especial 5 (julho 1999), p. 14. Resenha originalmente publicada na Gazeta de 6 de outubro de 1958. Grifo no original. 48 Scavone, Rubens Teixeira. “Remembranças”. Papêra Uirandê Especial 5 (julho 1999), p. 5. No ensaio, Scavone menciona a bibliografia ufológica que adquiriu para escrever o romance. Del Picchia nota não apenas que “Enovacs” se trata de “pseudonimo [sic] evidente porque, na realidade, isso não é nome de gente ao menos que seja dalgum marciano”, mas que o livro lhe caiu nas mãos “no meio de intensa movimentação política”, referindo-se possivelmente ao fato de que a mãe de Scavone, a escritora Maria de Lourdes Teixeira (1907-1989), membro da Academia Paulista de Letras, onde era colega de Del Picchia, teria se mexido para promover o romance. Ela mesma escreveria uma resenha na Folha da Noite de 10 de outubro. 170 movimentado e de leitura agradável.” E Almiro Rolmes Barbosa disse que, com sua publicação, “o gênero denominado ‘ficção científica’ integra-se definitivamente em nossa literatura”.49 Seguiu-se a ele outro romance dentro daquilo que o próprio Scavone (agora assinando com o próprio nome) chamou de “didatismo”: Degrau para as Estrelas (1961), seu primeiro texto ficcional a também dar conta de sua vivência de promotor público, como um subplot de mistério em meio ao enredo que resumia os avanços da Astronáutica, e bastante diverso do romance de estréia. Ambientado nos Estados Unidos, trata de um condenado à morte, o Capitão-Aviador Benjamin Whitehead, que recebe como pena alternativa integrar um quase suicida vôo espacial teste de uma cápsula de reentrada. Escrito nos primeiros momentos da conquista do espaço, na sua premissa não há muito de pioneirismo heróico nem do triunfalismo da primeira geração de astronautas americanos, apresentados como “the right stuff” pela imprensa e pela propaganda governamental. Na verdade, a premissa tem algo de pulp, ampliado pelos flashbacks que narram o breve envolvimento de Whitehead com o gangster Shorty — e que resultaria em sua condenação. O vôo da nave Zeta se perde, e seus tripulantes, Whitehead e o cientista David Eden, encontram-se misteriosamente pousados em uma paisagem árida, que, afinal, revela-se como a Sibéria, e não Marte como a dupla de astronautas suspeitara. O final do romance traz a revelação de quem era o verdadeiro culpado pelo crime atribuído a Whitehead. Com Dorea, Scavone publicou O Diálogo dos Mundos (1965), coletânea de sete contos que se afastam do didatismo (e de outros aspectos juvenis dos dois romances),50 buscando uma linguagem mais elaborada e a força da imagem poética, à maneira de Ray Bradbury, o autor estrangeiro de maior influência entre os brasileiros da época. Essa tendência estaria mais consolidada em Passagem para Júpiter (1973), com 11 49 Essas opiniões aparecem como clipping do livro, na orelha da quarta-capa de Degrau para as Estrelas, de Rubens Teixeira Scavone. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. A citação de Milliet vem da coluna “Vida Intelectual”, n’O Estado de S. Paulo de 20 de novembro de 1958, enquanto o clipping do texto de Barbosa foi extraído de sua resenha de 25 de outubro de 1958, no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo. 50 No depoimento colhido em 1973 por David Lincoln Dunbar, Scavone informa a influência de Verne, o aspecto didático e juvenil de seus primeiros romances: “Quando escrevei o meu primeiro livro [...] comecei a escrever uma história para meu filho que gostava de Júlio Verne. E como eu estava interessado em objetos aéreos não identificados, [...] eu decidi fazer uma novela didática sobre um disco voador... [...] É uma coisa juvenil.” (David Lincoln Dunbar. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. Tese de doutorado em Espanhol, Department of Romance Languages, Faculdade de Pós-Graduação, University of Arizona, abril de 1976, p. 9.) em entrevista no News da Semana de 12 de outubro de 1958, Scavone também menciona Verne e o “conteúdo didático-divulgativo” do seu romance (“O Homem que Viu o Disco Voador”. Papêra Uirandê Especial 5 (julho de 1999), p. 19). 171 histórias, algumas vistas no volume anterior. Um acréscimo instigante é “Especialmente, Quando Sopra Outubro”, que chamou a atenção de Mário Donato, no discurso de recepção a Scavone na Academia Paulista de Letras, à qual Scavone foi eleito em 1988. O conto é visto por Donato como indício dessa mudança de rumo: “não há máquinas (no conto), não há robôs pensantes, mas há, sim, apenas o inconsciente da menina Ângela, que era capaz de criar, só para si, bichos, feras, anões e flores fantásticas…”51 Sobre Scavone, Fausto Cunha (1923-2004) escreveu: Concilia a poderosa qualidade literária com o domínio da técnica da ficção científica, e é hoje, como André Carneiro, um autor de nível internacional. Seu último volume de contos, Passagem para Júpiter, 1971, mostra um enriquecimento da temática e da linguagem narrativa, que já no Diálogo dos Mundos colocava num plano destacado. Anteriormente, Degrau para as Estrelas viera revelar sua vocação para o gênero.52 Não obstante, o sucesso do romance mainstream Clube de Campo (1973), ganhador de um Prêmio Jabuti, parece ter sugerido que Scavone abandonara a FC em favor da respeitabilidade crítica. O fato, porém, é que ele já havia enveredado pelo mainstream antes: O Lírio e a Antípoda (1965) é um romance sobre o amor entre um brasileiro e uma jovem nipo-brasileira, tendo o bombardeio de Hiroshima como pano de fundo. Pode-se dizer que a elaboração estilística do mainstream e a sua FC sempre estiveram próximos, e em O Lírio e a Antípoda Scavone parece tratar da mesma ansiedade sobre a Era Atômica que motivara o conto “A Evidência do Impossível” (1971), mas pelo ângulo do romance de exame psicológico. O estilo elaborado de Scavone esconde articulações precisas entre personagens, ambientes e evocações, tornando ainda mais interessante encontrá-las ao longo da leitura. Isso acontece em contos como “Especialmente, Quando Sopra Outubro” e “Número Transcendental”, nos quais o componente sensível e subjetivo da narrativa colore sutilmente os seus vários sentidos. Em sua carreira, a Geração GRD realiza um de suas ambições, elevar o gênero por meio de um cuidado estilístico e de uma temática humanista, atenta ao psicológico — culmina com sua eleição para a APL: não é por nada que o discurso de Donato chamou-se “Uma Casa sem Preconceitos”.53 51 “Quem a Scavone, Rubens Teixeira/Donato, Mário. A Cadeira N.º 18: Discurso de Posse de Rubens Teixeira Scavone/Discurso de Recepção do Acadêmico Mário Donato. São Paulo: Academia Paulista de Letras, setembro de 1988, p. 15. Donato se engana quanto ao título do conto, chamado por ele de “Freqüentemente Quando Sopra Outubro”. 52 Cunha, Fausto. “A Ficção Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado”. In No Mundo da Ficção Científica (Science Fiction Reader’s Guide), L. David Allen. São Paulo: Summus Editorial, s.d., p. 12. 53 Scavone, Rubens Teixeira/Donato, Mário. A Cadeira N.º 18. P. 13. 172 Academia não tinha entre os seus pares, até agora, era um autor de ficção científica”, escreveu, “gênero para o qual os Srs. Críticos ainda torcem o nariz”.54 E ainda: “Esta a ficção científica do Sr. Rubens Scavone. No centro dela está sempre, não o andróide, mas o homem mesmo, com os seus artefatos ou apesar desses mesmos artefatos.”55 É evidente que Scavone já diluía os limites entre literatura de gênero e o mainstream, anos antes disso se tornar um dos bordões da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira (surgida a partir de 1982). Também está claro que ele realizou essa aproximação sem recorrer aos parâmetros da New Wave anglo-americana. Quando muito, um conto como o também ufológico “Número Transcendental” apresenta uma exploração de uma psique atormentada, mas não há nada ali de inner space, e a hesitação entre crer e descrer da hipótese do encontro com alienígenas remete ao conto fantástico do século XIX. Do mesmo modo, se a menina Ângela cria um universo mágico para si mesma em “Especialmente, Quando Sopra Outubro”, mantem-se a mesma hesitação entre um possível processo mental e uma origem extraterrena. Geração GRD Durante toda a Primeira Onda, autores do mainstream emprestaram elementos da ficção científica para expressar a sua desconfiança quanto às novidades tecnológicas e à modernização do país. É o caso, por exemplo, do conto “Mercado Modêlo GH/PM 246” [sic], do escritor baiano Ildázio Tavares, fábula sobre um trator consciente, importado dos Estados Unidos e mal adaptado à realidade terceiro-mundista brasileira, que ataca o mercado e a igreja. Apareceu na antologia 4 Estórias do Mercado Modêlo (1971), editada por Gumercindo Rocha Dorea. Embora seja uma fábula, seu conceito lembra o da noveleta clássica de Theodore Sturgeon (Edward Hamilton Waldo; 1918-1985), “Killdozer” (1944), sobre um bulldozer “possuído” por consciência alienígena ancestral. A maioria desses autores mainstream se concentrou na coleção de livros Ficção Científica GRD, também importante para o momento, a partir de seu aparecimento em 1958, com a publicação do romance do inglês C. S. Lewis (1898-1963), Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet; 1938). Nessa coleção apareceu outra 54 55 Idem, ibid. P. 15. Idem, ibid. P. 16. 173 candidata (talvez das feministas) a autora inaugural da Primeira Onda, Dinah Silveira de Queiroz (1911-1982), com a coletânea Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdos) [sic], lançada em 1960. O responsável por essa coleção pioneira foi o editor baiano Gumercindo Rocha Dorea, das Edições GRD, fundada em 1948 e ainda em atividade. Dorea organizou uma coleção de alto nível, certamente uma das mais importantes em língua portuguesa. Uma anedota que ele conta é do seu breve encontro com Brian W. Aldiss, no Simpósio de FC: ao examinar a lista de títulos da coleção, Aldiss teria comentado que faltava ele mesmo estar representado na coleção. Com elevado número de títulos clássicos, a FC GRD introduziu pela primeira vez no Brasil livros de autores de grande relevância internacional, conferindo maior visibilidade ao gênero. Sobre Dorea, Marcos Santarrita escreveu: “Gumercindo [...] era muito competente na escolha de autores — José Louzeiro, que jamais foi seu editado, e por isso me parece insuspeito, classificou-o como a maior vocação de editor que o Brasil já produziu —, mas de uma incompetência atroz nas finanças [...].”56 Já David Lincoln Dunbar observou em 1976 que foi um Gumercindo Rocha Dorea “muito quixótico que quase sozinho assumiu a grande tarefa de tornar a fc [sic] brasileira uma realidade. Ele tinha um sonho e tinha fé. Acreditava no que estava fazendo. Uma boa porção da fc impressa hoje é resultado do seu trabalho duro e permanece como tributo à sua dedicação.”57 Por sua qualidade, influência, e presença posterior em publicações não restritas à coleção de Dorea, pode-se afirmar que os principais autores do período foram André Carneiro, Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Jerônymo Monteiro, Rubens Teixeira Scavone. Um grupo secundário apenas em influência e presença posterior, mas não necessariamente em qualidade e pioneirismo, seria formado por Álvaro Malheiros, Antonio D’Elia, Antonio Olinto, Clóvis Garcia, Domingos Carvalho da Silva, Guido Wilmar Sassi, Leon Eliachar, Levy Menezes, Lúcia Benedetti, Luiz Armando Braga, Nilson D. Martello, Ruy Jungmann, Walter Martins e Zora Seljan. Esses e outros autores foram chamados de “Geração GRD”, termo que causa alguma confusão, já que aglutina autores publicados na Ficção Científica GRD, e os publicados na Ciencificção, da EdArt. O responsável pela confusão é Fausto Cunha. Em algum momento da década de 1970 (provavelmente 1975 ou 1976) ele publicou o famoso 56 Santarrita, Marcos. O que Tinha de Ser: Contos Contados. Salvador/Rio de Janeiro: Fundação Cultural do Estado da Bahia/Imago Editora, Bahia: Prosa e Poesia, 2000, p. 103. 57 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 11. 174 ensaio “A Ficção Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado”, como parte do livro de L. David Allen, No Mundo da Ficção Científica (Science Fiction Reader’s Guide; 1974). No ensaio, Cunha escreveu: Bem merece o editor Gumercindo Rocha Dorea que se batize com o seu nome a geração de autores de ficção científica surgida, por assim dizer, à sombra de sua sigla. Foi ali que publiquei As Noites Marcianas em 1960. Da GRD sairiam também Eles Herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz, o já citado Fuga [para Parte Alguma] de J[erônymo] Monteiro, Diálogo dos Mundos de Rubens Teixeira Scavone e duas antologias, que revelavam, pela primeira vez no Brasil, a existência de uma “plêiade” de autores do gênero, entre os quais André Carneiro, destinado a ser um nome dominante na área. Seu livro Introdução ao Estudo da [“Science Fiction”] (1967) é um trabalho pioneiro e ainda hoje de grande utilidade. Seu levantamento da Ficção Científica brasileira e estrangeira é bastante detalhado e sempre correto.58 O parágrafo seguinte, todavia, lista outros autores pioneiros, com obras surgidas na década de 1960, porém publicados pela EdArt. Em 1963, era a vez da Edart [sic] se lançar também nesse campo, com a publicação de Mil Sombras da Nova Lua, de Nilson Martello, Diário da Nave Perdida, de André Carneiro, Visitantes do Espaço, de Jerônymo Monteiro e de uma antologia, Além do Tempo e do Espaço, onde aparecem, entre outros, o poeta Domingos Carvalho da Silva que, em 1966, nos daria A Véspera dos Mortos, surpreendente coletânea de histórias com forte apelo ao fantástico.59 O trecho faz parte de uma subdivisão do ensaio, intitulada “A ‘Geração GRD’”, “a geração de autores de ficção científica surgida, por assim dizer, à sombra de sua sigla”, muito embora Martello e Carvalho da Silva, por exemplo, nunca tenham sido publicados por Dorea. Mas apesar de fornecer o material da confusão, ainda assim Fausto Cunha está certo ao escrever “surgida à sombra da sigla GRD” — grande parte do problema se deve puramente ao maior impacto da coleção Ficção Científica GRD, e ao menor número de informações disponíveis sobre a Ciencificção da EdArt. Dorea publicou não só autores que ele descobriu, mas também um veterano como Jerônymo Monteiro, que escrevia FC desde a década de 1930, ou Scavone. “Geração assim, a ter uso como o problemático designador de um período da GRD” FC passa, brasileira. (“Primeira Onda” é alternativa menos problemática.) Uma confusão semelhante se dá com os termos Golden Age da FC americana, e os autores de John W. Campbell, Jr., o editor da revista Astounding Science Fiction, de 58 Cunha, Fausto. “A Ficção Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado”. In No Mundo da Ficção Científica. P. 11. 59 Idem, ibid. Pp. 11-12. 175 1938 até 1948.60 “Golden Age” designa esse período, marcado pelo tipo de ficção científica que Campbell favorecia, mas o período não incluía apenas a FC escrita pelos autores publicados por ele, e não só a FC “campbelliana”, como vimos no capítulo 1. * Autora de Floradas na Serra (1939), Dinah Silveira de Queiroz já era uma autora consagrada, quando publicou Êles Herdarão a Terra (1960) na Ficção Científica GRD. Antes, ela havia escrito o interessante romance fantástico Margarida La Rocque (A Ilha dos Demônios), de 1949, sobre uma jovem aristocrata francesa do século XVIII que embarca em uma viagem à Nova França (hoje Canadá), para unir-se ao marido. No meio da viagem, torna-se amante do jovem tripulante João Maria. Descoberto o caso, seu primo, o comandante da expedição, decide castigá-la deixando-a em uma ilha anônima, acompanhada da criada Juliana — e de João Maria, que salta do navio e a nado vem juntar-se a elas. Esses eventos são narrados na primeira parte do romance, enquanto a segunda parte lida com a vida dos exilados. Em primeira pessoa, é Margarida quem narra, já de volta à França, confessando-se a um padre. Os aspectos fantásticos concentram-se na segunda parte, quando, na ilha, a heroína tem contato com criaturas sobrenaturais, em especial um coelho falante chamado Filho, que faz a ponte entre ela e outras entidades fantasmagóricas que virão exigir certas ações dela, enquanto seu relacionamento com o amante e a criada se deteriora. As coisas se precipitam quando, ainda na ilha, ela dá à luz o filho de João Maria. O romance, que na primeira parte é superficial e ligeiro, na segunda encontra o seu verdadeiro centro. A autora habilmente mantém a hesitação entre o sobrenatural e o delírio, e nesse que é o seu terceiro romance, já se distingue uma discreta postura feminista, marcada pela caracterização da mulher desorientada entre as diversas potências de uma vontade oscilante — já que a sociedade não a prepararia para o exercício livre de sua volição. O desequilíbrio entre as duas partes, e os momentos de brilho alternados com outros opacos, é igualmente marca de uma autora que, também nos contos, não costumava encontrar a disposição de retornar ao texto e elevar trechos incialmente sem brilho.61 60 The Encyclopedia of Science Fiction, de John Clute e Peter Nicholls, nota que “[…]no uso convencional (ao menos dentro do fandom), leitores mais velhos se referem regularmente de modo bem preciso aos anos 1938-46 como a Golden Age da FC[…]” (New York: St Martin’s Press, 1993, p. 506.) 61 Margarida La Rocque teria sido um favorito da autora, sendo traduzido e editado em espanhol, italiano, francês, japonês e coreano, segundo Dário Monteiro de Castro Alves, em ensaio disponível no site Angelfire: http://www.angelfire.com/linux/genealogiacearense/index_dinah.html 176 Dorea procurou-a depois de ver um de seus contos de FC na revista O Cruzeiro (1928-1975). Êles Herdarão a Terra foi o resultado dessa aproximação, e Queiroz também esteve presente nas duas antologias organizadas por Dorea em 1960. Mais tarde, essas narrativas reapareceriam em Comba Malina (Ficção Científica) (1969), sua segunda e última coletânea dentro do gênero. Na introdução de Êles Herdarão a Terra, Queiroz escreve: “Perdôem-me [sic], queridos, se os levo a participar destas líricas vadiagens, dessas absolutamente informais escapadas ao Território do Absurdo”,62 no que parece subscrever a noção de que, se algum grande nome da literatura brasileira decide se exercitar na FC, visa espairecer de outras explorações mais sérias — como antes sugeriram Menotti del Picchia (1882-1988) com A Filha do Inca (1930), e Erico Verissimo (1905-1975) com Viagem à Aurora do Mundo (1939). Queiroz associava a FC a leituras de infância mas levava o gênero a série o suficiente para dar importância aos seus aspectos extrapolativos.63 Ela também enxergava o seu argumento dos “contos absurdos” como dentro de uma problemática moderna da situação humana, exibindo sua “piedade pela solidão humana cada vez mais povoada de aparelhos e máquinas [...] as tentações demoníacas dos solitários de nossa era dos desertos de cimento”, e abordando o absurdo quotidiano do “painel da náusea política do momento”.64 São, no seu argumento, contos do Absurdo da Antecipação (ficção científica), do Absurdo do Quotidiano e do Absurdo do Sobrenatural.65 Abre com “A Universidade Marciana”, noveleta narrada em primeira pessoa, descrevendo os procedimentos de um grupo internacional com vinte pessoas, convocadas por um papa chinês, Pio XIII, e se reunir no que foi chamado de “universidade marciana” para discutir experiências com um ser angelical cujo contato eles recuperavam por meio de hipnose: Maneí (“mãe”, na sua língua extraterrestre), uma das últimas manuietis, “raça cósmica, que se extinguia, enquanto os [aruetis] se multiplicavam sob as condições mais terríveis”.66 M. Elizabeth Ginway lembra que 62 Queiroz, Dinah Silveira de. “Carta a um Incerto Amigo”. In Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdo). Rio de Janeiro, Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 2, 1960, p. 8. Grifo no original. 63 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 17. 64 Queiroz, Dinah Silveira de. “Carta a um Incerto Amigo”. P. 11. 65 Idem, ibid. Pp. 11-12. As seções “O Quotidiano” e “O Sobrenatural” incluem respectivamente os contos “Partido Nacional” e “A Mão Direita”, não interessantes para este estudo, embora o primeiro ofereça no movimento do “nauseísmo” (idéia tomada de Jean-Paul Sartre e seu romance existencialista A Náusea, de 1938) um possível contraponto ao Carioquismo. 66 Queiroz, Dinah Silveira de. “A Universidade Marciana”. In Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdo). P. 47. 177 Maneí, “[e]nfraquecida por não poder se adaptar à atmosfera da Terra, [...] se identifica com uma estátua da Virgem Maria no jardim do [P]apa”.67 Ginway também destaca o tema cristão do sacrifício, nesse texto. Trata-se portanto de uma incomum história de primeiro contato (com alienígenas), em que os procedimentos estão não a cargo de autoridades políticas, mas de uma autoridade religiosa, e numa narrativa que se concentra nas reações humanas (o objetivo da amostragem reunida pelo Papa é testar as reações ao contato). No pano de fundo, o movimento brasileiro do “Carioquismo”, defendido pelo narrador: “nossa doutrina, a essência vital do ser humano, com suas razões, seu desrespeito sagrado às coações, e uma certa indisciplina inocente”. Suas origens estão no samba e na “piada nacional”, “esquecida com o advento da supremacia dos brasileiros, sorte de cristãos novos do patriotismo”.68 O grupo de estudos do Vaticano vaza para a imprensa, e causa rebuliços mundiais. Em elipse na narrativa, a filosofia espiritualizada dos marcianos é interpretada pelos humanos de maneiras diferentes, mas que incluem um toque metalingüístico, numa campanha de abolição da História e da Poesia. “Viva a nova cultura [manuietí]!”,69 bradavam as multidões nas ruas, anunciando uma revolução também científica e social. Mas tudo como resultado do vazamento, já que o Papa e os participantes diretos do experimento nunca se pronunciaram. O texto panorâmico, levemente irônico e elíptico da noveleta, é interessante por seu uso do understatement, a afirmativa menos que completa e a retração de ênfase, que espelha a retração dos próprios alienígenas, após o vazamento. Ao mesmo tempo, a estratégia ajuda a mascarar a falta de familiaridade da autora, com a FC contemporânea. O carioquismo reaparece em “O Carioca”, conto sobre uma mulher madura de classe média que tem um caso com um construtor de robôs. Narrado sob o ponto de vista dela, o conto expõe como aos poucos ela vai experimentando com expressões de afeto e de sensualidade, alterando a programação do robô chamado Carioca, a ponto dele se tornar inútil ao seu criador — que pretende vendê-lo aos militares. Ao criar um reflexo (como o cientista chama o condicionamento do robô) afetivo, a mulher sente a “indizível 67 Ginway, M. Elizabeth. “A Visão do Alienígena em dois Contos de Eles Herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz”. In Visão Alienígena: Ensaios Sobre Ficção Científica Brasileira, M. Elizabeth Ginway São Paulo: Devir Livraria, 2010, p. 149. Os contos em questão são “Eles Herdarão a Terra” e “A Universidade Marciana”. 68 Idem, ibid. P. 15. 69 Idem, ibid. P. 57. 178 sensação de uma conquista”.70 O reflexo liquida as chances de aprovação governamental do robô — e conseqüentemente, do seu uso racional. Igualmente irônico, às vezes lírico e doce, o conto recupera, com uma piscadela, o tema da volição da mulher visto em Margarida La Rocque: “Voltou-se uns segundos, desnorteada. Tomou, depois, o rumo de seu ônibus e pediu ao sol aberto, aos sêres [sic] de carne, da manhã plena de seiva, que conjurassem suas doloridas saudades de coisa alguma.”71 Ela sente a falta da máquina à qual ensinou afeição e sensualidade, enquanto a humanidade ao seu redor parece incomodá-la. Por outro lado, Dunbar vê nesse texto uma sátira ao machismo brasileiro, porque o cientista seria retratado como um fraco e o robô, interessado no afeto, estaria sob o controle da mulher; seria “um dos primeiros trabalhos nessa área, talvez um dos primeiros buracos na represa”,72 num conto que caberia, com mais detalhes específicos e coerência científica, além de cenas mais delineadas, nas páginas da revista Galaxy. O conto que dá título à coletânea da autora é ambientado em um farol solitário. Marcos e sua irmã, Tuda, recém-chegada à ilha em que se ergue o farol, contemplam a decadência do pai misógino e alcoólatra, que acaba morrendo. A esse drama, soma-se a visita de dois sujeitos, um cientista e um membro da Polícia Marítima. Marcos não gosta de como a irmã — que costumava nadar nua e despertava o orgulho do pai porque “não era medrosa e frágil como toda mulher”73 — chama a atenção dos dois: “Ela era uma dessas môças [sic] tão femininas, que a simples presença de um estranho pode perturbar, tirar-lhes a naturalidade.”74 A narrativa dá uma guinada com a entrada de um ser alienígena que os aborda em seus sonhos “com apelos de almas que me queriam levar para distâncias incomensuráveis” — na narração de Marcos,75 antes de se apresentar fisicamente ao casal de irmãos. O que ele busca é levar Tuda com ele. É um conto interessante pela ambientação e pelo drama familiar, melhor centrado em cenas e situações bem delineadas. Mas quando o alienígena abre a boca para explanar o plano insidioso de sua espécie, o texto perde o tom e a unidade dramática é enfraquecida. Com seus poderes telepáticos, os alienígenas “inspiram” os governantes a arrastar a humanidade para a guerra nuclear, para que eles possam em seguida dominar 70 Queiroz, Dinah Silveira de. “O Carioca”. In Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdo). P 96. Idem, ibid. P. 107. 72 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 127. 73 Queiroz, Dinah Silveira de. “Êles Herdarão a Terra”. In Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdo). P. 112. 74 Idem, ibid. P. 116. 75 Idem, ibid. P. 122. 71 179 o planeta. Ginway observa que a idéia lembra “o filme Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers; 1956), de Don Seagel, [e a ambição] de ‘herdar a terra’ retrata a paranoia [sic] da época da guerra fria e a possibilidade da guerra atômica”. 76 Também marcianos, os invasores criam uma “raça poderosa de fixação”77 da sua espécie na Terra, cruzando-se com as mulheres humanas que abduzem. “Levarei sua irmã daqui com sua própria vontade”, diz o E.T., reforçando a questão volitiva da mulher, “já que [a vontade é uma das muitas fraquezas que vocês têm, segundo nossos estudos]”.78 Seguese uma cena em que, bêbado, Marcos dispara um revólver contra ele, sem sucesso. A razão do ataque ia além da defesa da irmã (que está disposta a partir): “era zêlo [sic], era honra de nós todos. Tuda era minha irmã, mas era irmã de vocês todos, compreenderam?”79 A autora portanto trata do impulso masculino de defender a mulher da tribo, ameaçada por outra tribo que traz um com ela um desafio à identidade de todos — impulso ampliado pelo argumento da invasão alienígena. Elementos cristãos também estão presentes, já que Jesus é apontado como um dos poucos humanos a prever o plano marciano: “‘Amai-vos uns aos outros’, gritava Êle perdidamente, mas vocês não o ouviram, não o ouvirão jamais — isso felizmente para nós!”80 Ginway destaca no conto uma reinterpretação do mito da expulsão do paraíso: “A raça humana, traída por uma nova Eva [Tuda], e por sua incapacidade de viver em paz, desaparecerá.” 81 enfim, a brasilianista da University of Florida também observa o discreto aspecto auto-reflexivo do conto, que menciona o escritor de FC H. G. Wells na mesma chave antecipatória da invasão (supostamente com seu romance A Guerra dos Mundos [The War of the Worlds], de 1898).82 Para Dorea, Êles Herdarão a Terra representou “o ‘abre-te, Sésamo’ para algo [a ficção científica] que, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França, na Itália, na Argentina, já era considerado como produto sério de inteligência”.83 76 Ginway, M. Elizabeth. “A Visão do Alienígena em dois Contos de Eles Herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz”. P. 149. 77 Queiroz, Dinah Silveira de. “Êles Herdarão a Terra”. In Êles Herdarão a Terra (e Outros Contos Absurdo). P. 137. A “inspiração” aqui é análoga ao conceito de “intuição espiritual” do espiritismo e de suas adaptações sincréticas aos cultos afros, às vezes como “obsessão” ou “encosto”, e que aparece em outros textos da autora, como em “Comba Malina” (1971). 78 Idem, ibid. P. 138. Negritos no original (substituídos aqui por itálicos). 79 Idem, ibid. P. 142. 80 Idem, ibid. 137. 81 Ginway, M. Elizabeth. “A Visão do Alienígena em dois Contos de Eles Herdarão a Terra (1960), de Dinah Silveira de Queiroz”. P. 151. 82 Idem, ibid. P. 150. 83 Dorea, Gumercindo Rocha, ed. Antologia Brasileira de Ficção Científica. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 48. 180 Com sua segunda coletânea, Comba Malina, Queiroz reforça a sua produção de FC — embora a história que dá título ao livro seja um conto fantástico sobre mediunidade. Já “Os Possessos de Núbia” é ambientado em uma colônia humana instalada no planeta Núbia, para onde se muda o técnico Bruno, depois de se desentender com sua mulher Bela na Terra superpovoada, “porque achava que a mulher estava regredindo e a êle também, por ela carregado, numa animalização inconcebível”.84 Essa “animalização” é a concepção natural de um filho, opção que ela havia assumido, contra os métodos artificiais. Na colônia em Núbia, situada “na faixa crepuscular do planeta” — que, aparentemente, não possui rotação —, o herói tem contato com outras mulheres, a alegre prostituta Célia e a Dr.ª Drusa, psicóloga do grupo e que inicia suas sessões beijando os pacientes, de ambos os sexos, na boca. Ao mesmo tempo, seu colega Oscar sofreu um transplante cerebral e tem crises de identidade, e, em paralelo, a colônia enfrenta uma migração de seres descritos como “subumanos”, afugentados de suas cavernas por conta de um misterioso “aquecimento só concebível cientìficamente [sic] de mil em mil anos”.85 Aqui, outro assunto que margeia a produção de Queiroz também se apresenta: a maternidade. Quando da migração dos seres, as muralhas da colônia funcionam como barreira, e Bruno vai ao exterior resgatar um “filhote”, sacrificando-se para salvá-lo — o que sugere uma culpa latente pela não aceitação do filho natural. O desenlace dramático acaba sublinhando que o antinatural está justamente na recusa ao natural. E enquanto heroínas de contos passados de Queiroz são mulheres deslocadas no exercício de suas vontades, aqui é um homem que parece atordoado entre modelos diferentes de feminilidade, que parecem sempre superiores a ele — tanto que, numa nota irônica, a prostituta Célia é quem aceita, com naturalidade, a criança alienígena resgatada por Bruno: “a môça [sic] passou a brincar de mãe, com seu filhote de Núbia.”86 Enquanto as situações científicas e tecnológicas são resolvidas com um technobable simplório (“Já experimentei a técnica 224 x 32 e a 14 x 17.”),87 a autora atenta aos estados psicológicos dos personagens. Está longe, porém, do inner space ou de outros argumentos psicanalíticos da New Wave. O mesmo se dá com “O Céu Anterior”, que 84 Queiroz, Dinah Silveira de. “Os Possessos de Núbia”. In Comba Malina (Ficção Científica), Dinah Silveira de Queiroz. Rio de Janeiro: Laudes/Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 25. 85 Idem, ibid. P. 43. 86 Idem, ibid. P. 47. 87 Idem, ibid. P. 31. Eis aqui mais um caso de uma história que, se tivesse o cuidado de equilibrar os aspectos científicos e tecnológicos, com a caracterização e o drama pessoal dos personagens, caberia nas páginas de uma revista como The Magazine of Fantasy & Science Fiction, por exemplo. 181 trata da humanidade retirada para abrigos subterrâneos. O herói anônimo busca tratamento num sanatório, onde é logo diagnosticado como sendo um “perseguido das estrêlas”,88 aparentemente, uma síndrome comum no futuro. No seu caso, ele é atormentado pela imagem de “uma estrêla que nunca existiu, nem nunca poderia ter existido”.89 Trabalhando no Observatório Central, tem conhecimento do céu do presente e do passado. Sua explicação do trabalho que faz lá é confusa e certamente pouco científica, e ao receber ordem de explorar o céu de 3559 anos no passado, na meia-noite entre os dias 24 e 25 de dezembro, ele é atingido por uma visão na qual viaja no tempo e toma contato com a estrela impossível. O médico lhe explica que a visão e o sentimento de amor que vem com ela acometem muitas pessoas, na mesma época do ano. É uma das histórias natalinas que Dorea publicou na época. Apareceu antes na antologia Histórias do Acontecerá 1 (dezembro de 1961), e seria republicada em 1989 em Enquanto Houver Natal... (Oito Estórias de Ficção Científica), antologia temática que Dorea acalentava na década de 1960, mas só realizado na segunda fase da Ficção Científica GRD.90 “Ânima” apresenta um futuro próximo em que o Brasil, mesmo “não tendo alcançado o poderio interplanetário dos Estados Unidos e da União Soviética, nem mesmo seguindo de longe o esfôrço [sic] da França ou da China”,91 oferece ao mundo um projeto de exploração do planeta Vênus. Não com espaçonaves, mas com a projeção astral de um grupo de voluntários coletados dos corredores da morte de prisões americanas, sob o comando do criador do processo, o Prof. Jorge Alves. Em 1947, Jerônymo Monteiro já havia sugerido que o Brasil compensaria atrasos tecno-científicos por meio da potência espiritual do brasileiro: no romance 3 Meses no Século 81, o jornalista Campos viaja ao futuro distante usando médiuns para lançar seu espírito no tempo. Já o conto de Afonso Schmidt, “Delírio” (1934), sugere um mundo invisível em intersecção com o nosso, um pouco como J.-H. Rosny aîné (Joseph Henri 88 Queiroz, Dinah Silveira de. “O Céu Anterior”. In Comba Malina (Ficção Científica), Dinah Silveira de Queiroz. Rio de Janeiro: Laudes/Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 54. Grifo no original. 89 Idem. Grifo no original. 90 Dorea, Gumercindo Rocha, ed. Enquanto Houver Natal... (Oito Estórias de Ficção Científica). São Paulo, Edições GRD, 1989. O índice: “Atendimento Domiciliar”, José dos Santos Fernandes; “A Estrela dos Magos”, Jorge Luiz Calife; “Natal G-3-327”, Álvaro Malheiros (outro texto da década de 1960); “O Céu Anterior”, Dinah Silveira de Queiroz; “Feliz Natal, Vinte Bilhões!”, H.V. Flory; “Merry, Joyeux, Feliz”, Frederico Branco; e “Pode Acontecer com Você na Noite de Natal”, Ivan Carlos Regina. 91 Queiroz, Dinah Silveira de. “Ânima”. In Comba Malina (Ficção Científica), Dinah Silveira de Queiroz. Rio de Janeiro: Laudes/Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 97. No conto de Queiroz, a palavra grega “anima” parece significar “alma” ou “espírito”, e não o arquétipo feminino no interior da psique masculina, na teoria psicanalítica de Carl Gustav Jung (1875-1961). 182 Honoré Boex; 1856-1940) fez em sua notável novela 1895, “Un autre monde” (1895). “Delírio” também dramatiza a pobreza, aspecto característico da FC brasileira ao longo de vários períodos, pobreza e aflição que três tuberculosos terminais transcendem pelo seu passeio astral. Em “Ânima”, a viagem interplanetária espiritual é recebida com risos globais, mas a técnica é efetiva, e vale novamente pensar a proposta de uma atitude leve e despreocupada, tipicamente brasileira, por trás da premissa — um “carioquismo” mais gentil, ofertado ao mundo. Como em outros contos de Queiroz, a premissa de FC é articulada com dramas pessoais, e aqui a prosa delicada da autora casa-se muito bem com a premissa. Une-se à equipe uma brasileirinha doente terminal, Marta, cuja presença a princípio irrita Alves, mas, livre de seu lesado corpo físico, ela se comporta como uma “ninfa tocada pelo volutuoso [sic] prazer de existir”,92 e Alves se apaixona por ela. Quando Marta morre, o espírito dele se une a ela em Vênus, e a técnica revolucionária se perde. Isso tudo está bem longe da FC da Golden Age americana, mas não necessariamente por uma aproximação com a New Wave inglesa. É uma tendência brasileira que vem de longe — há uma viagem espiritual no tempo induzida pelo yagé em A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls, um romance de 1925. A tendência bebe de fontes espíritas e teosofistas, traduz tanto uma distância brasileira da ciência institucionalizada como saber central da sociedade, e da tecnologia como força econômica, quanto certa desconfiança desses aspectos da modernidade. Contudo, em “A Ficcionista (Narração de um Filho de Laboratório)”, Dinah Silveira de Queiroz toca enfim a New Wave, e seu bem-vindo hábito de escrever noveletas alcança seu melhor resultado, num texto de ousadia formal e conceitual que recupera alguns de seus temas e leitmotifs recorrentes. O texto se propõe registro feito por uma mulher (que se apresenta em notas de rodapé como “a Recolhedora”) do futuro distante, sobre um evento ocorrido numa época situada entre a dela e o nosso presente, e chamada de “Futuro Anterior”. Quem narra é “Coisa”, um filho de laboratório, espécie de andróide com veia sarcástica, quem nos conta como seu criador, o cientista Jonas André Camp, inventou a revolucionária Ficcionista, uma máquina de narrar. A Ficcionista é capaz de irradiar suas ficções diretamente nas mentes das pessoas, por meio dos “Raios Camp”: “Jonas André Camp havia descoberto o raio que permitia tôda a dinâmica do pensamento humano, aquêle, 92 Idem, ibid. P. 111. 183 pelo qual, em ondas merk, duas pessoas podiam, ao mesmo tempo, viver a mesma idéia [...]”93 Assim, por meio de um receptor, a pessoa experimenta a narrativa irradiada, o que levaria a humanidade a uma “total vivência na Arte”.94 Mas antes é preciso habilitar a máquina para a função narrativa: “Dividia-se a Ficcionista em três partes: a primeira, o ‘Inconsciente’, a segunda, o ‘Consciente’ e a terceira que chamávamos, à falta de melhor nome, de ‘Telepata’.”95 Teme-se que as histórias a serem narradas sejam monótonas, de modo que, para a formação do “inconsciente”, os bancos de dados são alimentados com narrativas: Nessa arregimentação de tôda ficção conhecida, Jonas André fêz [sic] sobressaltar seus pontos-de-vista: porque [sic] apenas a Ficção Pura? Seria necessário recolher o Folclore, com as lendas de todos os países, e mais o conteúdo das religiões. O ópio estava sendo convenientemente armazenado. E os mais credenciados escritores foram coligidos, juntamente com grosseiras anedotas ou róseos relatos de viajantes espaciais. O Inconsciente da Ficcionista dispunha de tudo [...].96 Milhares de escritores são contratados para alimentar os bancos de dados, sob protestos de um grande nome tratado apenas de o “Vaca Sagrada”, que acredita que a máquina será o fim dos escritores, que se curvam a ela “por um pouco de dinheiro”, e proclama, sarcasticamente: “A Ficcionista causará mais prejuízos à glória das Letras do que tôdas as Academias fundadas e por fundar.”97 A posição da Academia é outra: seu presidente crê que a contribuição ao Inconsciente da máquina “tornará melhor o homem em si mesmo”, e que “a Ficcionista venha a ser um poderoso viveiro para os escritores do futuro”.98 É inevitável especular que, nestas falas, Queiroz antecipou a polarização em torno da escrita ficcional na Internet, embora o seu maior temor talvez estivesse na colocação de um intrometido, durante a conferência: “No atual avanço da Ciência, há tantas maravilhas para serem alcançadas pelo conhecimento humano, que não concebo 93 Queiroz, Dinah Silveira de. “A Ficcionista (Narração de um Filho de Laboratório)”. In Antologia Brasileira de Ficção Científica, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 55. Esta é uma versão da noveleta, a qual dou preferência no momento, é levemente reduzida, sendo que a maioria dos acréscimos da versão incluída em Comba Malina são cenas estendidas do andróide com sua namorada “filha da cama”, Márcia. Veja “A Ficcionista (Narração de um Filho de Laboratório)”. In Comba Malina (Ficção Científica), Dinah Silveira de Queiroz. Rio de Janeiro: Laudes/Instituto Nacional do Livro, 1971, pp. 117-52. Os outros contos de Comba Malina são “A Universidade Marciana”, “Êles Herdarão a Terra” e “O Carioca”. 94 Queiroz, Dinah Silveira de. “A Ficcionista (Narração de um Filho de Laboratório)”. P. 56. 95 Idem, ibid. P. 68. 96 Idem, ibid. P. 83. 97 Idem, ibid. P. 60. 98 Idem, ibid. P.62. 184 mais a perda de tempo com a Ficção. É no próprio progresso científico que a Humanidade encontra o seu êxtase. [...]”99 Amparado pelo mecenas Sálvio Marconi, um capitalista bem relacionado, o projeto de Jonas André é mais filosófico: ele crê que a base dos desvios da humanidade é o desejo de “chegar ao êxtase supremo que é a humilhação, cada vez mais difícil de ser experimentado”, e que “toda a gente detestava a gente e que até hoje a Arte do mundo só tem feito com que o homem recorde o que mais deseja esquecer: seu próximo”. O papel da Ficcionista seria o de um “grande respiradouro. Vícios e neuroses se acabarão. Paixões de tôda a espécie serão exorcisadas [...] e a história passará aos Tempos Benignos, depois de emergir de séculos e séculos dos Tempos Conturbados”.100 Dominados pela Ficcionista, os homens não quererá saber de outros “engodos”, incluindo a religião, a paixão e o amor.101 Ironicamente, é à paixão e ao amor que Coisa, o homem artificial, se dedica, durante a comoção causada pela Ficcionista — cuja primeira narrativa, aliás, é FC sobre uma luz utópica além do asteróide Balkiss (nome da Rainha de Sabá na tradição islâmica) e de um lugar onde estaria todas as inspirações. No plano do enredo, o insucesso inicial da máquina leva à morte do mecenas Marconi, mas o estrondoso sucesso subseqüente leva a uma marcha de escritores desempregados capitaneada pelo Vaca Sagrada, contra as instalações protegidas pelo aparato policial do Estado. Milhares morrem no confronto e a Ficcionista é destruída. Antes disso, porém, dera a entender que sua ficção científica era real, e que a destruição da áquina levaria ao fim da ficção no mundo. “A verdade é que as histórias se acabaram para sempre”, diz Coisa, “num tempo de seguras aquisições científicas. O extase [sic] seria criado pela própria Ciência Pura.” O apelo utópico é invertido. Restaria apenas o “gérmen de um sonho insidioso. Sabem como é: ‘Além do asteróide Balkiss’...”102 Tem-se em “A Ficcionista”, portanto, uma narrativa original e ousada em seu caráter auto-reflexivo, que também combina idéias de inconsciente coletivo, literatura comercial vs arte elitista, e conceitos sobre a psicologia da época em termos de neuroses e de soluções, sonhos e pesadelos da era da máquina. Irônica e satírica, evoca entropia e catástrofe (o fim da Ficcionista é o início de uma era de “náusea da ficção”),103 projeta 99 Idem, ibid. P. 61. Idem, ibid. P. 51. 101 Idem, ibid. P. 52. 102 Idem, ibid. P. 91. 103 Idem. 100 185 o espaço interior do inconsciente, e se ampara no elemento psicanalítico comum à New Wave. Dunbar vê nessa noveleta uma sátira à televisão, que mesmeriza o povo, afastando-o dos seus afazeres familiares, da religião, da vida social e até do sexo a dois — além de denunciar a esterilidade da Ciência Pura e de firmar, na visão de Dunbar, a postura de que “o homem não deve nunca desistir ou abrir mão de sua liberdade e seu direito de pensar e criar” e de manter “a perspectiva apropriada do seu lugar no Cosmos”.104 Na apresentação do conto, Dorea escreveu: “um conto estranho, parece ter nascido de uma outra Dinah.”105 Queiroz seria eleita para a Academia Brasileira de Letras em 1981, a segunda mulher a pertencer à ABL. Além do Realismo Até onde se sabe, a Antologia Brasileira de Ficção Científica (1961), foi a primeira antologia106 de FC com autores brasileiros, organizada por Gumercindo Rocha Dorea, que anunciava esse pioneirismo na orelha do livro, afirmando: “Uma antologia brasileira de ficção científica! Se falássemos numa pretensão desta categoria há três anos passados, a idéia seria motivo de risada por parte, principalmente, dos donos da literatura.”107 O livro já surgia, portanto, como possível desafio a um establishment que via com desconfiança o projeto de uma FC brasileira, representado por aqueles que priorizavam uma matriz realista para a literatura nacional: “A verdade é que concretizamos um ideal”, Dorea escreveu, “gostem ou não os que só acreditam na realidade palpável como fonte geradora da criação literária”.108 Abre o volume o excepcional ensaio “A Ficção Científica como Fantasia Pura ou A Vingança de Dom Quixote”, de João Camilo de Oliveira Tôrres (1915-1973), publicado um ano antes na Revista do Livro N.° 18, Ano V, de junho de 1960.109 Nele, Tôrres vê a 104 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. Pp. 124-25. Dorea, Gumercindo Rocha. Antologia Brasileira de Ficção Científica. P. 48. 106 Para os propósitos deste estudo, “antologia” é livro de contos de vários autores, e “coletânea” é livro de contos de um único autor. 107 Dorea, Gumercindo Rocha. “Antologia Brasileira de Ficção Científica”. In Ora Direis... Ouvir “Orelhas” que Falam de Livros, Homens e Idéias, de Gumercindo Rocha Dorea. São Paulo: Edições GRD, 2002, p. 6. 108 Idem. 109 Tôrres exerceu jornalismo e magistério, além de vários cargos públicos ligados à cultura. Foi membro da Academia Mineira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, e foi diretor do Arquivo Nacional. Escreveu cerca de 35 livros, incluindo história do Brasil, pedagogia, literatura infanto-juvenil. O Homem e a Montanha, de 1944, ganhou o Prêmio Diogo de Vasconcelos, da Academia Mineira de 105 186 FC como fantasia pura, livre das amarras da literatura convencional, comparando-a ao romance de cavalaria. Assim como outros, antes e depois, ele combate a imagem da FC como “gênero menor”, e sugere que ela se tornará a forma dominante do século XX, por libertar a literatura de supostas amarras do realismo, abrindo-a novamente para o domínio da imaginação. O ensaio provocou reações na imprensa cultural, e artigos posteriores de Clóvis Garcia e Alcântara Silveira testemunham que um debate se formou em torno dele. Garcia o elogiou no artigo “O Homem Moderno e a Ficção Científica”, no “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo (19 de agosto de 1961), enquanto Alcântara Silveira (no mesmo veículo, em 4 de novembro de 1961) discordou da afirmação de Tôrres, de que “a grande solução para a literatura na segunda metade do século XX está na ficção científica”110 — afirmativa que isola a FC de outras formas literárias e lhe dá um caráter “de vanguarda”, colocando-a automaticamente em confronto com as pretensões de outras vanguardas. Nesse sentido, Alcântara Silveira rejeita a FC para dar preferência ao noveau roman — ou “aliteratura”, como prefere chamar. “A ficção científica [...] não será o grande gênero literário do século, precisamente porque não reflete absolutamente a condição do leitor de agora, isto é, do leitor digamos ‘classificado’, que sabe o que lê e por que lê”,111 escreveu. Mais tarde, André Carneiro exemplarmente escreveria a respeito da oposição entre noveau roman e FC: “O noveau roman tenta [revelar uma realidade desconhecida e inaparente] dentro do homem e nos objetos que o cercam. A ficção científica também, mas em uma dimensão mais ampla, que inclui as idéias, as teorias, o espaço e o tempo.”112 Nova pista para o entendimento de que o gênero era visto — e pode ser visto — como alternativa a um experimentalismo formal, e por um escritor que não se pode chamar de convencional. “A Ficção Científica como Fantasia Pura” é, não obstante, um dos textos mais importantes da época. Levanta possivelmente, em 1960, a questão do realismo, Letras, e A Democracia Coroada, o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 1952. Sempre próximo da cultura francesa, publicou em 1947 Gente da França, com perfis de personalidades literárias francesas. Um de seus últimos livros foi Gente da França II Série, de 1991. 110 Tôrres, João Camilo de Oliveira. “A Ficção Científica como Fantasia Pura ou A Vingança de Dom Quixote”. In Antologia Brasileira de Ficção Científica, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1960, p. 16. Grifos no original. 111 Alcântara Silveira. “Ficção Científica”. O Estado de S. Paulo, “Suplemento Literário” (4 de novembro de 1961): . Alcântara Silveira nasceu em Itapira, SP, em 1910. Além de colaborar com o “Suplemento Literário”, escreveu também para A Manhã e Jornal de Letras. Foi tradutor de Jean Paul Sartre e escreveu, entre outros títulos, Gente de França (1947) e Compreensão de Proust (1959). 112 Carneiro, André. “Ciência-Ficção: Essa Desconhecida”. “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo (25 de outubro de 1969): 2. 187 questionado por correntes pós-modernistas, e que iria redundar em linhas distintas de “anti-romance” e de “ficção auto-reflexiva” ou “metaficção” — a que o acadêmico estruturalista americano Robert Scholes chamou de fabulation. Torres observa que a “ficção não é simples reprodução da realidade”, e que a “ficção realista possui a sua razão de ser como expressão de uma visão artística do mundo, principalmente porque não se esgota na simples reprodução da realidade, mas em sua transliteração”.113 Scholes, no ensaio Structural Fabulation (1975), retraça a discussão a respeito da crise da representação da “realidade” pelo romance convencional, e em seguida afirma que “a espécie mais apropriada de ficção que pode ser escrita no presente e no futuro imediato é a ficção que tem lugar no tempo futuro”,114 que podemos facilmente confrontar com a declaração de Tôrres: As “antecipações” serão, por muito tempo, o último refúgio do gênero, pois, aí, a fantasia pode trabalhar livremente, uma vez que não se poderão, jamais, controlar pela experiência os fatos vindouros. O futuro será, sempre, o desconhecido puro, o que não poderemos atingir senão pela imaginação.115 Dos dois autores, emerge, e de maneira independente, a sugestão (negada por Muniz Sodré em seu livro) de que a FC pode ser uma alternativa acessível ao grande público, ao mesmo tempo que intelectualmente estimulante, para a solução da crise da representação. Scholes: Projetados no futuro, tanto o problema do realismo quanto o da fantasia desaparecem. Não há questão de se “registrar” o futuro, nem de negar as suas veracidades. Todas as projeções futuras são obviamente construções de modelos, poiesis e não mimesis. E livre do problema da correspondência ou nãocorrespondência com algum tipo de veracidade ou com passado previamente experimentado, com seus registros e lembranças, a imaginação pode funcionar sem o autoengano quanto aos seus meios e fins. 116 * Na Antologia Brasileira de Ficção Científica, Dorea chama “O Comêço do Fim” [sic], de André Carneiro — primeiro publicado no “Suplemento Literário” do Estado de S. Paulo e mais tarde incluído na coletânea de Carneiro, A Máquina de Hyerónimus e Outras Histórias (1997), com o título de “Pingos Vermelhos” — de “pequena obra 113 Tôrres, João Camilo de Oliveira. “A Ficção Científica como Fantasia Pura ou A Vingança de Dom Quixote”. P. 13. Grifos no original. 114 Scholes, Robert. Structural Fabulation. Notre Dame & Londres: University of Notre Dame Press, 1975, p. 17. 115 Tôrres, João Camilo de Oliveira. “A Ficção Científica como Fantasia Pura ou A Vingança de Dom Quixote”. Pp. 15-16. Grifos no original. 116 Scholes, Robert. Structural Fabulation. P. 18. 188 prima [sic] de Ficção Científica”.117 Narrado sob a forma de relato manuscrito de uma testemunha, trata de estranhos fenômenos iniciados com a mortandade de pássaros, seguida de estranhos episódios de amnésia. A cognição das pessoas é afetada — o narrador já não reconhece amigos nem esposa, substituída, em sua percepção, por uma mulher gorda de cabelo tingido, estranha a ele. O fenômeno é mundial. Aturdido como milhares de outros, o narrador vaga até uma praia, onde testemunha uma chuva de pingos vermelhos. Sua perturbação é sensorial: Desde êsse instante uma acuidade tomou conta dos meus sentidos, passaram meus ouvidos a perceber outros sons, meus olhos a reparar detalhes banais e as rugas, o olhar, os gestos dos que me rodeavam assumiam um novo significado, como se eu penetrasse lentamente em uma nova dimensão, dentro dos mesmos locais onde sempre vivera.118 Mais tarde ele se imagina “louco, surdo e [capaz de enxergar só] através daquela névoa vermelha”.119 A história poderia ser lida como conto fantástico ou realismo mágico, não fosse ela estruturada dentro de “parênteses” narrativos: um vulto vestindo traje transparente é quem encontra o desesperado relato da testemunha do fenômeno, e no último parágrafo da história ficamos sabendo que ele opera um veículo prateado capas de voar a “centenas de quilômetros por segundo”. “Em todos os continentes, ao redor de toda a Terra, milhões de aparelhos iguais pairavam, enquanto os pingos vermelhos inundavam tudo.”120 A imagem surrealista dos pingos vermelhos que caem “lentamente como se estivessem cheios de gás”121 reforça a inserção desse conto na estética da New Wave. O conto seguinte, de Antonio Olinto (1919-2009), “O Menino e a Máquina”, é curto e enigmático, sobre um menino que, num contexto cotidiano que menciona um jogo de futebol com Garrincha e as luzes de Copacabana, trabalha em uma máquina de função nunca explicitada. Ao ligá-la, “foi como se tivesse sido levantado até o teto”, levado acima da paisagem do Rio de Janeiro, até se ver “sentado de repente, tranqüilo, com homens e mulheres o redor, gente que não conhecia”.122 117 Um desses homens o Dorea, Gumercindo Rocha. In Antologia Brasileira de Ficção Científica. P. 18. Grifos no original. Carneiro, André. “O Comêço do Fim”. In Antologia Brasileira de Ficção Científica, Gumercindo Rocha Dorea, ed. P. 22. 119 Idem, ibid. P. 28. 120 Idem, ibid. P. 29. 121 Idem. 122 Olinto, Antonio. “O Menino e a Máquina”. Antologia Brasileira de Ficção Científica. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 35. Antonio Olinto e Clóvis Garcia aparecem na argentina Primera antología de la ciencia-ficción latinoamericana (Buenos Aires: Rodolfo Alonso Editor, 1970), com os contos “O Menino e a Máquina” (como “El niño y la máquina”) e “O Paraíso 118 189 cumprimenta por ter sido o primeiro a vir, com “aparelhos ou com pensamentos”.123 O menino descobre que poderá voltar para casa, depois de conhecer o lugar estranho a que foi transportado. Objetivos e métodos permanecem não-ditos, mas é justo interpretar o conto como um relato de “abdução por alienígenas”, ainda dentro do assunto ufologia. Olinto parece tentar a emulação da atitude, senão dos efeitos, do americano Ray Bradbury. No ensaio “Ficção Científica” (1957), Olinto deixa clara sua admiração por ele, ao escrever que “[o] melhor autor da atual geração do gênero talvez seja Ray Bradbury”,124 e seu conto lembra aquele de Bradbury, o mais longo e mais sombrio “Venha ao meu Porão” (“Come into my Cellar”; 1962), em que um garoto recebe por via aérea um pacote com instruções de como criar cogumelos, que planta em seu porão. Ao comer os cogumelos, seu pai deixa a casa, supostamente indo ao encontro de invasores alienígenas (discos voadores são mencionados). “Todos os meninos estão recebendo” os mesmos pacotes, alguém declara, no meio do conto.125 De Clóvis Garcia (1921-2012), “O Estranho Mundo” é uma aventura de exploração em outro planeta, por seres que abandonaram o uso de nomes próprios em favor de letras e número de identificação. Na superfície, são atacados por “monstros esbranquiçados”, que, ao final do conto, se revelam como glóbulos brancos — os seres estavam no interior de um corpo humano e foram atacados como se fosse uma infecção. Anedótico, o conto exemplifica uma tendência da FC pulp da década de 1930 conhecida como “thought-variant” baseada na apresentação de um novo conceito ou na glosa que Perdido” (“El paraíso perdido”), respectivamente. A antologia trouxe ainda histórias de Alicia Suárez (Argentina), René Rebetez (Colômbia), Alberto Cañas (Costa Rica), Angel Arango, Manuel Herrera, Juan Luis Herrero e Germán Pinilla (os quatro de Cuba), Pablo Palacio (Equador), Alvaro Menén Desleal (El Salvador, com duas histórias), Oscar Acosta (Honduras, com duas histórias), Orlando Henríquez (Honduras), René Avilés Fabila (México), José Adolph e Eugenio Alarco (ambos do Peru). 123 Idem, ibid. P. 36. 124 Olinto, Antonio. “Ficção Científica”. In Cadernos de Crítica, Antonio Olinto. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1959. Olinto afirmou que esse ensaio pode ter sido o primeiro texto de crítica do gênero, escrito por um brasileiro: “Há quem diga que a primeira crítica a livros do assunto foi a que publiquei no jornal ‘O Globo’ em 1957 e que sairia no livro Cadernos de Crítica em 1959.” (in “Para Onde Vai o Futuro?”, introdução a Contos do Amanhã, de Zora Seljan. Rio de Janeiro: Cátedra/Instituto Nacional do Livro/Ministério da Educação e Cultura, 1978. p.13). Gumercindo Rocha Dorea havia declarado antes que Olinto foi “o primeiro escritor a publicar ensaio em livro de crítica [...] sôbre ficção científica, gênero de que é admirador e grande conhecedor”. (In Antologia Brasileira de Ficção Científica, Gumercindo Rocha Dorea, ed. São Paulo: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 32.) As duas afirmativas só podem ter validade se desconsiderarmos os textos críticos anteriores de Humberto de Campos e outros, que notaram semelhanças entre autores nacionais com autores estrangeiros de ficção científica, antes do gênero ser assim batizado. 125 Bradbury, Ray. “Venha ao Meu Porão” (“Come into My Cellar”). In E de Espaço (S for Space), Ray Bradbury. São Paulo: Hemus, 1978, p. 137. Tradução de Norberto de Paula Lima. O conto é de 1962, posterior ao de Olinto. Porém, ele é versão de um roteiro de Bradbury, “Special Delivery”, para um episódio do programa de TV Alfred Hitchcock Presents, de 1959. 190 amplifica de uma idéia familiar.126 Histórias dentro da tendência incluíam variações sobre a premissa do pequeno transformado em gigante, e vice-versa.127 Escrito por um dos grandes nomes da Primeira Onda, “Último Vôo para Marte”, de Fausto Cunha, já havia aparecido um ano antes na famosa coletânea do autor, As Noites Marcianas (1960), pela mesma Edições GRD. A narrativa assume a forma de uma espécie de programa televisivo do futuro distante, tratando do fim da ocupação de Marte e narrado em tom de certa ironia, com humanos desenvolvidos e espiritualizados contemplando tempos mais primitivos. Cunha parece ter experimentado com o jargão da FC — siglas, nomes e línguas estranhas, astros e fenômenos —, entremeando um poema ao texto. A inspiração bradburyana é clara. A noveleta “Estação Espacial Alfa”, de Jerônymo Monteiro, é uma rara tentativa de produzir uma FC hard (aquela mais afeita à ciência e tecnologia), enquanto mantinha um dos interesses principais da Geração GRD: o comentário da guerra fria. A história apresenta uma infinidade de elementos típicos da FC americana de aventura: foguetes, estações e lanchas espaciais, robôs, campos de força, trajes espaciais, um casal — Lot e Matilde — que está no centro da ação, e a tensão nuclear entre Ocidente e Oriente. Os americanos lançam o Espacial II, foguete a partir do qual será construída a Estação Espacial Alfa.128 Num passeio espacial, Lot, Matilde e outros tripulantes descobrem que os russos constroem secretamente uma estação semelhante, e sua lancha espacial é capturada por um campo de força, do qual se libertam detonando uma bomba na superfície externa da instalação russa. Enquanto isso, na Terra a crise entre as potências nucleares se instala, levando à guerra termonuclear total, e forçando os tripulantes das duas estações a se unirem. O enredo se assemelha àquele que seria explorado no telefilme Earth II (dirigido por Tom Gries; 1971), e toda a abordagem de Monteiro é pulp: a narrativa ligeira e centrada na ação é quase juvenil na sua falta de complexidade. Carece de verossimilhança e comete erros científicos, como confundir peso e massa no ambiente de microgravidade. Ginway enxerga nessa história um “senso de impotência e pessimismo quanto à possibilidade de uma guerra nuclear”, 129 vistos 126 Sobre o conceito e sua história, veja o verbete correspondente na The Encyclopedia of Science Fiction, 3.ª edição (online), em http://www.sf-encyclopedia.com/entry/thought-variant 127 Para uma análise de três história semelhantes — “Colossus” (1934), de Donald Wandrei; “He Who Shrank” (1936), de Henry Hasse; e “Born of the Sun” (1934), de Jack Williamson — veja Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950, pp. 276-78. 128 Interessante que, mais tarde, o Skylab seria uma estação espacial americana construída a partir do estágio de um foguete lançador. 129 Ginway, M. Elizabeth. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. Lowisburg: Bucknell University Press, 2004, p. 82. 191 como típico da FC brasileira do período. A postura de combinar a catástrofe como base de um conto cautelar, com a aventura superficial, combina as influências inglesa e americana que pautaram a carreira desse pioneiro na FC nacional. Lúcia Benedetti (1914-1988), também já era uma escritora e dramaturga experiente, muito associada ao teatro infantil, quando Dorea a convidou para escrever ficção científica. Seu conto “Correio Sideral” tem o colorido pulp de um filme B, com a particularidade bem brasileira de discutir questões espirituais em enredos de aventura espacial: o narrador, “piloto aéreo” de uma linha postal, acaba, mesmo alertado por seu colega Rômulo, apanhado em um vórtice espacial “a caminho de Centauro”, e vai parar no planeta 90, habitado por insetos gigantes. “A alma de Rômulo enfeitava o ombro daquela vasta Abelha”,130 ele observa, antes de concluir: “A minha estava destinada a ornar o cangote da Rainha”.131 O narrador explica que ali os “insetos dominavam por completo o ser humano. Através de um sistema extremamente complicado e secreto, extraíam as almas dos seres que nasciam e as usavam como enfeite ou distintivo de classe.”132 O herói recupera a alma do amigo e a devolve a ele, ao retornar à Terra. Nada faz muito sentido, e se há uma sugestão de alegoria do coletivismo soviético como um regime que rouba a alma do povo, ela pode ou não estar presente na desconjuntada narrativa. Segue-se “As Cinzentas Planícies da Lua”, conto de Scavone antes publicado na revista Mundo Melhor. Nele um astronauta, único sobrevivente de uma operação em Marte, sofre um acidente na superfície lunar no distante futuro de 1997. Sem o desconhecimento científico de Monteiro ou Benedetti, sem a estilização do jargão da FC de Cunha, Scavone descreve com verossimilhança as circunstâncias do astronauta, num conto que poderia ser uma típica problem story de FC hard — no qual o herói, usando seus conhecimentos de engenharia, consegue sobreviver ao fim do seu suprimento de oxigênio a tempo de ser resgatado —, mas que surpreende ao terminar com a morte dele. É outro texto da fase didática de Scavone, mas fantasias e lembranças do protagonista com sua esposa e filho reforçam a humanidade que se extingue ali, solitária, na planície lunar. Não é portanto uma glorificação da ida ao espaço exterior, mas não chega a ser uma narrativa contrária a ela. 130 Benedetti, Lúcia. “Correio Sideral”. In Antologia Brasileira de Ficção Científica. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 152. 131 Idem, ibid. P. 153. 132 Idem. 192 Fecha o livro “O Verbo” de Zora Seljan (? -2006). É uma narrativa curta mas de grandes qualidades expressivas, na qual, Manuel, um explorador do Corpo de Expedicionário Sideral, e seu mentor, viajando em um disco, tentam se comunicar com outros seres, concluindo que estão “espiritualizados demais para explorar planetas de uma galáxia tão atrasada”.133 Isso acontece porque eles se comunicam apenas por telepatia, mas os seres não conseguem compreendê-los. Roupas, objetos e até mesmo o disco voador são criados por eles pela força da mente. Depois de muito insistir, Manuel consegue intervir no mundo explorado — encarnando e vivendo ali por sessenta anos, para, novamente desencarnado, assumir poderes quase divinos. Conclui o Mentor: “Você reaprendeu a falar. Agora já pode criar vida. Diga em ritmo de onda o nome de uma flôr.”134 Trata-se, portanto, de outra instância de mistura de FC e espiritualidade, algo que Seljan, companheira de Olinto, viria a fazer com insistência em outras narrativas de sua coletânea Contos do Amanhã (1978), às vezes alcançando um efeito de inquietação e questionamento da realidade que poderia lembrar a New Wave anglo-americana, não fosse o desejo subjacente de edificar e esclarecer pela espiritualidade, decair num tatibitate muito distante da prosa emocionalmente detached da New Wave. Outras Antologias Aparentemente entusiasmado com o resultado da Antologia Brasileira de Ficção Científica, Dorea lançou no mesmo ano Histórias do Acontecerá 1, que ele pretendia que fosse o primeiro de uma série de antologias originais, o que não se concretizou.135 É outro livro que nos ajuda a vislumbrar o teor da produção brasileira na Primeira Onda. 133 Seljan, Zora. “O Verbo”. In Antologia Brasileira de Ficção Científica. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 6, 1961, p. 175. 134 Idem, ibid. P. 182. Note novo exemplo de simbolismo religioso — em torno do “verbo” criador — que M. Elizabeth Ginway sublinha em seu estudo, Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. 135 O termo se refere a uma antologia — i.e., uma seleção de histórias de vários autores — de histórias escritas originalmente para ela. Surgida em 2007, Ficção de Polpa, da Não Editora de Porto Alegre, seria a primeira série de antologias originais no Brasil, ainda que não dedicada exclusivamente à FC, mas também ao horror, à fantasia e à ficção de crime. Outras incluem Imaginários (surgida em 2009), da Editora Draco de São Paulo, e Paradigmas (quatro volumes, de 2009 a 2010), da Tarja Editorial, todas igualmente ecléticas, enquanto Space Opera (Draco), se especializa em aventuras espaciais (três volumes, de 2011 a 2013). 193 O primeiro conto, de Álvaro Malheiros (que dois anos depois se tornaria editor da coleção Ciencificção da editora EdArt, de São Paulo), é mais uma história natalina, “Natal G–3–327”. Nela, militares humanos do futuro dominam os habitantes do planeta 327, mas ao chegar, o Coronel Benjamin Sparks não tem a recepção que esperava, e vai interrogar o administrador Olav Olstein a respeito. No conto, predomina o diálogo desse ponto em diante. Olstein informa Sparks que o povo do lugar acredita que “um casal, vindo convocado pelas ordens do Comitê de Contrôle [sic], não encontrando onde hospedar-se, tem um filho numa gruta”.136 Sparks ordena que Olstein retorne com ele à cede do seu comando, e diz que os “robôs do Contrôle se encarregarão do resto”, 137 ao que o administrador responde: “Os robôs jamais poderão convencer uma pessoa que crê!”138 Olstein argumenta que fatos semelhantes já aconteceram em Vênus e em Marte, e o militar responde que o “Comitê de Divulgação e Propaganda acabará com essas sombras”. Mas para o administrador, o Comitê não “acabará, nunca, com crenças, com a fé das pessoas que crêem!”139 Daí se tem que o conto soa como defesa da fé cristã contra a máquina — o robô — ou contra a política autoritária, cujo possível perfil comunista transpareceria em termos como “Comitê de Controle” e “Comitê de Propaganda”. Olstein deserta para se unir aos crentes, e quando Sparks parte com sua cápsula de lançamento, ela sofre uma pane e se incendeia, fornecendo a imagem flamejante de uma estrela no céu, o último sinal do nascimento de Deus para os alienígenas (e um castigo do descrente). A narrativa seguinte está no extremo oposto. “A Organização do Dr. Labuzze”, de André Carneiro, se desenvolve como um diário. O narrador vai trabalhar em um misterioso laboratório, conhece uma bela jovem chamada Débora, mas não trabalha, aguardando a chegada de materiais. Ninguém no lugar lhe explica que pesquisas são feitas ali, e Débora lhe pergunta se ele não acha que ali as pessoas gradativamente perdem a memória. Por sua vez, o Dr. Haveloque diz a ele que o Dr. Labuzze veio de outro planeta para fazer experiências com os humanos. Quando o narrador o repreende 136 Malheiros, Álvaro. “Natal G–3–327”. In Histórias do Acontecerá 1, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º12, p. 11. 137 Idem, ibid. P. 13. 138 Idem, ibid. P. 14. 139 Idem. 194 por ironizar um funcionário, Haveloque responde: “Funcionário, você, nesta casa de doidos?”140 A par com essas declarações, o narrador vai mergulhando num estado de confusão mental, suas anotações se tornam mais subjetivas, até que ele testemunha fenômenos estranhos e decide deixar as instalações. Abalado com tudo, procura um psiquiatra, depois um segundo, que lhe pergunta quem o havia “internado no sanatório do Dr. Labuzze”.141 Ele retorna ao local da “organização”, mas nada encontra, e reflete: “Tenho saudade de Débora. Eu a achava demasiado subjetiva. Agora percebo que a vida é um subterrâneo de espelhos, dela eu enxergava uma casca enganadora. Como eu devia ser cacête [sic] com minúcias e certezas. Agora não confio em mais nada.”142 É tentador, portanto, enxergar neste texto características da New Wave: a prosa subjetiva, o contato com a psicanálise, o laboratório como espaço de perversos martírios mentais. Talvez apenas a oscilação entre loucura e a possibilidade da realidade do evento destoem. Antonio Olinto retorna com “O Desafio”, ambientado em 2462 e envolvendo um robô, T-55, que se humaniza pelo aprendizado de poesia clássica e pelo convívio com a filha de um de seus operadores, Flávio. O conto culmina em uma espécie de desafio de repentista com um poeta humano, disputado em latim (Olinto foi seminarista), e que leva à morte de T-55, quando uma palavra em latim o lembra da menina. “Foi a ternura que matou T-55”,143 conclui-se, neste conto com novos ecos de Ray Bradbury — que também estão em “O Paraíso Perdido”, de Clóvis Garcia, no qual uma família contempla de Marte a Terra deixada para trás, destruída pela guerra atômica, resultado do ser humano ter provado “o fruto da árvore da ciência e do mal”.144 À narrativa lírica e escatológica de Garcia, contrapõe-se o conto de humor absurdo de Leon Eliachar (1922-1987), “A Experiência”, sobre um homem de “peso negativo”, que, no experimento do título, perde o contato com seu corpo e tem a cabeça transformada em OVNI. Já em “A Idade da Razão”, história de Ruy Jungmann, hoje um experiente 140 Carneiro, André. “A Organização do Dr. Labuzze”. In Histórias do Acontecerá 1, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º12, p. 28. Interessante notar que “Dr. Labuze” lembra “Dr. Mabuse”, hipnólogo que protagoniza uma série de filmes de mistério dirigidos por Fritz Lang (1890-1976). 141 Idem, ibid. P. 42. 142 Idem, ibid. Pp. 45-46. 143 Olinto, Antonio. “O Desafio”. In Histórias do Acontecerá 1, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º12, p. 64. 144 Garcia, Clóvis. “O Paraíso Perdido”. Histórias do Acontecerá 1, Gumercindo Rocha Dorea, ed. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º12, p. 72. 195 tradutor, a idéia de que seguimos no rumo da razão é satirizada por um conflito entre partidos definidos por cores, numa guerra programada para diminuir a população da Terra e disputada como uma partida de xadrez. Esse conto um pouco inconsistente termina com a selvageria do presidente de um partido disparando uma arma de raios contra a cabeça de seu oponente. O conto “Ma-Hôre”, de Rachel de Queiroz (19102003), a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, envolve o homúnculo Ma-Hôre se infiltrando como clandestino em uma nave terrestre, cuja tripulação (já a terceira a chegar ao planeta) está ali para fazer contato, como os europeus fizeram aqui com os índios. E como alguns índios do passado, foi levado na nave, rumo à Terra. Tratado como um mascote estúpido, o alienígena revela inteligência não antecipada pelos arrogantes astronautas, ao matar a tripulação durante o sono e programar o cérebro eletrônico para levá-lo de volta ao seu mundo. O estilo delicado em nada antecipa o desfecho sombrio. Mais solar, “Maternidade”, de Seljan, é semelhante ao texto de Eliachar no sentido de abordar a FC a partir de um enfoque anti-realista. Mas é um conto lírico e de imagens livres, como termos como “robô doméstico” e “viagem no tempo” compondo com imagens sensuais e coloridas. Dedica-se a glorificar a maternidade. Ginway observa que em “Ma-Hôre”, Rachel de Queiroz “faz o papel de trickster”, por se apropriar da “fcção científica e volta-la contra os seus paradigmas americanos, para servir ao propósito de afirmar sua própria visão de mundo humanista e antitecnológica”.145 * Bem se vê que a prática de Dorea de convidar autores do mainstream para escrever ficção científica não redundava em um diálogo estrito ou em profundidade com o gênero — muitas vezes, recaía sobre a New Wave a mesma acusação; i.e., que seus autores faltavam naquele fator apontado por Ken Gelder, “o conhecimento e a competência”, conforme vimos no capítulo anterior. Na antologia da EdArt, Além do Tempo e do Espaço: 13 Contos de Ciencificção (1965), isso se repete, porém com grande felicidade no caso de “Água de Nagasáqui”, do poeta da Geração de 45 Domingos Carvalho da Silva (1915-2004). Trata-se de engenhosa expressão do temor à guerra nuclear e dos efeitos da radiação, mas narrados dentro de um modo muito brasileiro de história “contada” (ao escritor que ele encontra em um trem) e do qual transparece um tom sóbrio e melancólico. Não obstante, há algo 145 Ginway, M. Elizabeth. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. P. 54. 196 de pulp na premissa de um sobrevivente do bombardeio de Nagasaki que migra para o Brasil, mas conserva um esqueleto radioativo que destrói as pessoas em torno dele — aqueles que ele odeia, mas também os que ama. Como em outras narrativas da FC nacional, o protagonista abandona outro mundo em busca de uma vida simples na zona rural — o “sonho brasileiro” —, aqui impossível de se realizar, com o estigma mortal que ele carrega. Carvalho da Silva volta a ficção científica um ano depois com a interessante coletânea A Véspera dos Mortos, que combina FC e histórias de crime e suspense, nesse que foi o seu único livro de ficção. Sua aproximação ao gênero se explica por questões de política literária, já que foi ele um dos descobridores de André Carneiro como poeta, e porque, como membro da Academia Paulista de Letras, devia estar próximo de Rubens Scavone, cuja mãe, Maria de Lourdes Teixeira, também fazia parte da APL. Na coletânea está seu outro conto de grande destaque, “Sociedade Secreta”, distopia revela a influência de A Muralha Verde (ou Nós, de 1920), de Ievguêni Zamiátin, Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George Orwell. Curiosamente, a crítica normalmente dirigida às sociedades coletivistas de feição stalinista parece ser lançada ao regime militar instalado no Brasil em 1964, especialmente ao pensamento tecnocrático e à busca pelo controle e planejamento social. “Não queríamos, portanto, nada com o Plano de Ação da Produção Literária”, 146 diz o narrador, descrevendo uma sociedade arregimentada em que aos últimos rebeldes resta apenas a identificação com os poucos ratos que escaparam ao extermínio. Sempre vivaz e espirituoso, o texto de Carvalho da Silva assume aqui uma modulação diferente, em que o autor parece ter investido mais do seu descontentamento com o status quo — a cena final, em que aquele conspirador que narra a história é condenado a viajar no tempo para um Brasil rural e miserável, projeta-se com um estranho saudosismo e ira surda contra o sistema, quebrando a eloquência brincalhona de antes. Também presente n’A Véspera dos Mortos, “Entrevista com o Iéti” é um conto humorístico sobre o abominável homem das neves, enquanto a noveleta que dá título ao livro trata do projeto da bomba do Juízo Final instalada em uma ilha por um grupo sionista, e cuja detonação é frustrada por uma agente secreta negra que seduzira o seu 146 Silva, Domingos Carvalho da. “Sociedade Secreta”. In A Véspera dos Mortos, Domingos Carvalho da Silva. São Paulo: Editora Coliseu, 1966, p. 42. 197 inventor. A noveleta é narrada numa estrutura de “montagem”, com excertos de artigos de jornais, diários, etc. “Um Casamento Perfeito”, de André Carneiro, também é uma distopia, variante à qual ele retornaria várias vezes, notadamente nos romances Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991), em todos esses casos, com o controle da sexualidade e do afeto no centro das preocupações do sistema.147 Um engano previne o Computador Central de dar a um homem a companheira perfeita, dando margem ao surgimento do afeto espontâneo (e possivelmente subversivo). Ginway considera que o conto teria sido influenciado pelo romance de Zamiátin, “no qual o herói é transformado pelo amor e a paixão”,148 e também que no conto a companheira “tem o papel estereotipado da mulher intuitiva e anticientífica, e sob sua influência [o herói] se torna mais expressivo e mais humano”.149 Essa é uma das histórias de Carneiro também publicadas no exterior.150 “A Bôlha e a Cratera” [sic], de Scavone, é mais um conto de Natal em outro mundo, desta vez na Lua e com um erro científico, ou licença poética, fazendo as vezes da Estrela de Belém: “tive tempo ainda de ver, nos limites extremos do Mar da Fecundidade, o risco chamejante de um grande meteoro que se consumia nos contrafortes da cordilheira.”151 Como a Lua não tem atmosfera, não há como um meteoro incendiar-se com o atrito. Nelson Leirner, o conhecido artista plástico, homenageia Scavone em “O Espelho”, com o personagem “Enovacs”, um astronauta que fala de sua expedição a Titã, uma lua de Saturno, num trecho que parafraseia o conto “Flores para uma Terrestre” (1965), de Scavone. Em tom onírico, o conto se desdobra em situações alternadas muito rapidamente — o astronauta que narra a história acredita que encontrou uma “nova rota espacial entre nosso planêta [sic] e a Lua”152 (como se fosse preciso), mas, ao retornar à Terra, encontra-se num mundo estranhamento familiar mas onde ele é um 147 Sobre Carneiro e a distopia, veja A Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia, de Ramiro Giroldo. Campo Grande: Editora UFMS, 2013. 148 Ginway, M. Elizabeth. Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro. P. 79. 149 Idem. 150 Por exemplo, como “A Perfect Marriage” na antologia The Penguim World Omnibus of Science Fiction, Brian Aldiss & Sam Lundwall, eds. Harmondsworth: Penguin, 1986, pp. 28-38. 151 Scavone, Rubens Teixeira. “A Bôlha e a Cratera”. In Além do Tempo e do Espaço: 13 Contos de Ciencificção, anônimo, ed. São Paulo: EdArt, 1965, p. 34. O Mare Fecundis existe mesmo na Lua, nome apropriado para o drama de um nascimento. 152 Leirner, Nelson. “O Espelho”. In Além do Tempo e do Espaço: 13 Contos de Ciencificção, anônimo, ed. São Paulo: EdArt, 1965, p. 108. 198 desconhecido. Conhece lá uma mulher com quem se apaixona, e seu dilema é retornar à Terra para a sua família, ou continuar ali com a amante. Ele supõe: “Talvez esta não era a descoberta de uma nova rota entre a Terra e a Lua. Talvez tivesse caído em outro planeta que não fôsse a Terra. Talvez estivesse num planêta que fôsse o espelho da Terra.”153 O enigmático conto não oferece outras racionalizações, e termina em rompante de prosa poética. Num outro extremo, “George e o Dragão”, de Álvaro Malheiros, é texto anedótico embora sombrio, sobre um astronauta chamado George náufrago na Lua, que, delirando com privação de oxigênio, se imagina nova versão do santo a enfrentar o dragão lendário — que se revela como o foguete que desce para resgatá-lo, com os reatores despejando chamas. Supondo que a falta de conexão entre os aspectos científicos e subjetivos do astronauta no conto de Leirner seja ingenuidade narrativa, há outro nível de ingenuidade no texto de Malheiros, que imagina a universalidade da lenda de São Jorge na Lua, a ponto de afetar o supostamente WASP George, quando se sabe que a lenda é essencialmente brasileira.154 Mais interessante é o curto “Da Mayor Speriencia”, de Nilson D. Martello, escrito numa versão de português arcaico como relato do encontro do rei de Portugal com uma criatura interpretada por ele como sendo o diabo, e que para nosso olhar contemporâneo, amparado pelas idéias da ufologia, um alienígena visitando nosso planeta no passado. Por outro lado, o humorístico “Homens sob Medida”, de Nelson Palma Travassos (1903-1984), desenvolvido quase todo em diálogos, fala de aperfeiçoamentos genéticos sujeitos às oscilações do mercado, com o lançamento de novos modelos a cada nova estação, num método que parece mirabolante demais — a transformação das células por “reprodução fotográfica” — para ser verossímil.155 Outra acadêmica e importante autora, a par com Dinah e Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles está na antologia da EdArt com “A Caçada”, que, a rigor, é conto fantástico sobre uma tapeçaria que dá entrada a um outro mundo, a um custo fatal. Outros textos, não muito inspirados, presentes no livro talvez não sejam tão 153 Idem, ibid. P. 112. “A ligação de São Jorge com a lua é algo puramente brasileiro, com forte influência da cultura africana.” Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A3o_Jorge#S.C3.A3o_Jorge.2C_a_Lua_e_os_Orix.C3.A1s 155 Travassos, Nelson Palma. “Homens sob Medida”. In Além do Tempo e do Espaço: 13 Contos de Ciencificção, anônimo, ed. São Paulo: EdArt, 1965, p. 123. Travassos foi um dos fundadores da importante Gráfica da Revista dos Tribunais, onde a antologia foi publicada, aliás. 154 199 interessantes para a presente discussão: “Desafio”, de Ney Moraes; “O Elo Perdido”, de Jerônymo Monteiro; “Transfert”, de Antonio D’Elia; e “O Velho”, de Clóvis Garcia. Coletâneas É evidente que as antologias em questão têm muito de meramente participativo, expressando uma visão freqüentemente superficial da FC, entendida como o estranho, o não-realista, o absurdo lançado no cotidiano, ou como o aventuresco e anedótico. Muitos desses autores eram advogados, educados “nos clássicos e nas humanidades”, como Dunbar notou,156 pouco sabiam de ciência e tecnologia e olhavam em torno, para os assuntos do momento, para se inspirarem com histórias de discos voadores e armas atômicas. A tendência moralista de denunciar o atraso e a estupidez humana, especialmente no contexto da guerra fria e da ameaça nuclear, também estão presentes. O mesmo se dá com as coletâneas, em que os autores supostamente estariam mais livres para expressar temas e tendências pessoais. Testemunha do Tempo (1963), do autor sulista Guido Wilmar Sassi (1922-2003), não consegue fugir dessas tendências. Há em seu livro um conto natalino, “A Estrêla” [sic], ambientado num futuro em que uma guerra entre negros e brancos, lançada a partir do apartheid americano (as “leis de Jim Crow”), resulta na quase extinção global da raça, reduzida a uma população ínfima e controlada. Durante um dos censos de controle, um casal se abriga no galpão de uma fazenda, e três funcionários, um deles judeu, fazem as vezes dos Reis Magos. É possível que Sassi tenha sido influenciado aqui por Monteiro Lobato com O Presidente Negro ou O Choque das Raças, e sua noção do radicalismo da política racial americana nega a complexidade de maneira semelhante à de Lobato. “A Costela de Adão”, outra de suas histórias, envolve um jovem brasileiro, Pereirão, vítima de um gigantismo tão extremo, que o transforma num problema mundial. A radiação estaria por trás do seu crescimento exagerado — uma premissa de filme B (alguns contos do livro foram escritos para o filho de Sassi, Hélio, traindo sua proposta juvenil). A ameaça é controlada quando um robô gigante de aparência feminina (e 156 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 83. 200 curvilínea) é posto diante de Pereirão, que sucumbe prontamente. É de se perguntar se Sassi não havia lido Berilo Neves (1899-1974), que tem um livro de contos com o exato título de A Costela de Adão (1929), e se divertia escrevendo sobre como o amor e a paixão emburreciam o homem. Em “Missão T–935”, um membro de uma colônia espacial fundada por descendentes dos atlantes vem ao Rio de Janeiro para uma expedição, mas pousa durante o Carnaval e acaba tendo momentos divertidos com uma bela odalisca. “Apenas uma Questão de Tempo” é uma história de revolta da natureza em que as árvores tornam-se semoventes e flutuantes, passando a atacar implacavelmente toda forma de vida animal, enquanto o narrador de “O Filho do Vento” vê um complô de dominação alienígena nos filhos bastardos. Simão, o protagonista de “Estranha Simbiose” se entrega aos prazeres sensuais que um E.T. lhe proporciona, até se ver exangue. “A Viagem” é um conto sobre maternidade, assim como aquele de Zora Seljan, com o bebê sendo descrito como um ousado astronauta enfrentando o desconhecido. Divertido, “O Cinturão de Hipólita” é outra variação sobre temas de filme B: um homem abduzido no Brasil é levado até o planeta das amazonas, onde a estonteante rainha se entrega a ele, que resiste bravamente — já que é um padre. Uma das histórias mais interessantes é “Willy Gerber, o Missionário”, sobre um playboy que, abandonado em uma ilha no litoral do Rio, ao finalmente sair dela descobre que o mundo acabou — o desenvolvimento é interessante, até que surge um laboratório em que exemplares da humanidade estariam preservados em ovos, necessários para equilibrar o barbarismo em que o restante da espécie caiu. Na maioria das histórias do livro, impera o anedótico e o pulp.157 O 3.º Planeta (1965), de Levy Menezes, um arquiteto amigo de Olinto — que apresenta a coletânea como “contos da melhor FC”158 —, foi o último livro de um autor nacional publicado por Dorea na primeira fase da sua coleção de FC. Abre com o hilariante “Ukk”, história de premissa semelhante a “Missão T–935” de Sassi: um explorador alienígena vem parar no Rio de Janeiro, onde, depois de uma pane, é recolhido da rua por Pedro Nico, típico malandro carioca. Depois de andanças e uma briga de bar apartada a “borrachadas” dos tiras, a dupla é presa, apesar do espanto causado pela figura do E.T. Tendo reavido seu capacete, Ukk, o alienígena, congela todos na delegacia, e sai com Nico. O recurso lembra o conto de Wells, “O Novo 157 Outras histórias completam o livro: “Lamentações da Jovem Noiva”, “Prisioneiro do Círculo” e “Testemunha do Tempo”. 158 Olinto, Antonio. “Prefácio”. In O 3.º Planeta, Levy Menees. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 18, p. 13. Grifos no original. 201 Acelerador” (“The New Accelerator”; 1901). Denso de gíria e com ritmo célere, este conto de Menezes é considerado por Dunbar como “a história mais divertida e mais típica em termos de humor brasileiro dentro de todo o campo da ficção científica”.159 Segue-se o impressionante “O Último Artilheiro”, ficção de pós-apocalipse ou de “último homem na Terra”, que atualiza o motivo da “casa senhorial” na FC brasileira, também presente em “A Estrêla” de Sassi, mas dando-lhe uma face sombria. Nele, o narrador chega até uma casa-abrigo nuclear, ultramoderna, com seu próprio suprimento de bebidas, barbitúricos e discos de música clássica — além de um canhão automático. Escrito com a estrutura de uma contagem regressiva, a narrativa envolve e faz o leitor penetrar na mente desesperada de um sobrevivente a vagar por um mundo que parece aguardar a qualquer momento o seu último suspiro — talvez sobre a forma do troar de um canhão. Ao mesmo tempo, o canhão é símbolo de uma ordem desastrada que levou a vida humana ao ocaso, mas que, como símbolo, recusa-se a morrer, permanecendo como ferramenta adormecida à espera de nova mão que a empunhe. Um conto exemplar, escrito com precisão, mas que caberia (sem retoques) mais nas páginas de Galaxy ou The Magazine of Fantasy & Science Fiction, do que em New Worlds. Já “Projeto ‘Olho Lunar’” provavelmente teria de ser mais longo e distribuir o ponto de vista narrativo do narrador onisciente para os personagens, para ser tão bemsucedido. Não obstante, nessa história sobre a construção internacional de uma base e telescópio lunares, Menezes demonstra mais conhecimento científico do que a maioria dos colegas, e mais sofisticação política: após uma colaboração pessoal entre os membros americano e russo da equipe lunar para salvarem suas famílias de um incidente na Terra, a equipe toda decide rebelar-se contra a sua utilização militar. Aqui também, o assunto guerra fria está representado, sem a necessidade de destruir o mundo para firmar uma posição pacifista, como em “Estação Espacial Alfa” de Monteiro. Em “L. v. R.”, o narrador, um engenheiro brasileiro, rico e aposentado, é envolvido em uma misteriosa viagem no tempo, mal esclarecida por um alquimista o século XVI. Importa a tensão entre a descrição minuciosa e o caráter enigmático os fatos. Em “Floralis”, porém, há um retorno anedótico até a “thought-variant”, com astronautas humanos encontrando um planeta de flores gigantes, que os usam como fertilizantes. Igualmente anedótico, e irônico, “Pax Circence” revela que os representantes da Terra enviados a Marte, onde causaram grande escândalo e ofensa entre os locais, são dois 159 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 113. 202 chimpanzés. Mais divertido, “O Estranho Sumiço do Dr. Lebenthal” satiriza a figura do cientista louco; neste caso, um com o plano mirabolante de fazer crescer rabos preênseis em toda a humanidade. Quando o narrador, um amigo que Lebenthal tenta cooptar, ameaça recorrer às autoridades, o cientista salta agilmente pela janela, gritando: “Imbecil, você verá! [...] [V]ocê verá, abominável bípede cotó!”160 No mesmo livro, “Ugulú” apresenta um explorador marciano na pré-história da Terra, sendo emboscado pelo cro-magnon Ugulú. Ferido mortalmente, volta a Marte com a flecha ainda presa a seu corpo — e com ela a infecção bacteriana que destruirá a sua civilização, num conto curioso e engenhoso que funde influências de Wells e Bradbury. O tema ufológico (a abdução alienígena) reaparece no breve e humorístico “O Rapto de Marilda”. No prefácio, Olinto comparou Menezes a Arthur C. Clarke e Nevil Shute, como autores que “passaram do plano do manuseio de materiais e de números para o da palavra”,161 mas considera que seu senso poético o aproxima mais de Bradbury e Theodore Sturgeon. É pena que Menezes não tenha retornado à ficção científica em anos subseqüentes. * O primeiro livro do jornalista e escritor Wladyr Nader, Lições de Pânico (1968), traz contos densos e de premissas mais elaboradas, num estilo que deve algo à prosa subjetiva e poética de André Carneiro, e, ocasionalmente, ao lirismo de Bradbury, como em “Pássaro, Pássaro”, que começa assim: “Escoltando a ascensão da poeira, ouviu a voz familiar — indistinta — e sondou a casa”,162 e segue enigmático até o fim. “O Homem que Voava” é outra narrativa de inspiração semelhante, enquanto “O Itinerário” é um conto de parágrafo único, sobre as andanças de um homem enquanto o apocalipse nuclear paira ao fundo. Dá a tônica da maior parte do livro: o elemento de FC em contato com situações existenciais e de observação social e psicológica, tendo em “O Autômato Residencial: Paixão e Malefício” o exemplo mais paradigmático. Outro aspecto singular é a abordagem oblíqua do autoritarismo da época, já pós-Golpe de 64, com “O Ôlho Mágico” [sic], narrativa kafkiana, distópica, sobre um homem que adquire 160 Menezes, Levy. “O Estranho Sumiço do Dr. Lebenthal”. In O 3.º Planeta, Levy Menezes. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 18, 1965, p. 82. O livro traz ainda os contos “Terra Prometida” e “Pavilhão de Feira”. Menezes ilustrou seus próprios contos. 161 Olinto, Antonio. “Prefácio”. In O 3.º Planeta, Levy Menees. P. 11. 162 Nader, Wladyr. “Pássaro, Pássaro”. In Lições de Pânico, Wladyr Nader. São Paulo: Vertente Editora, 1968, p. 1. 203 um misterioso aparelho e passa a ser inquirido seguidamente por um policial civil, num futuro indefinido em que o Estado autoritário se apresenta como “o Poderio”.163 Jerônymo Monteiro tinha grandes expectativas quanto ao seu livro de contos, Tangentes da Realidade (1969), mas as limitações de sua prosa tornavam-se mais evidentes na forma curta do que nos romances, cujo impulso pulp ajudava a arrastar o leitor adiante. Entretanto, o livro traz textos especialmente significativos, como “O Copo de Cristal”, sobre um visor temporal descoberto pelo narrador, ainda menino, em um terreno baldio, e que examinado agora revela a eminência da guerra nuclear. O conto explicita aspectos centrais da sua produção, além de elementos que são distintivos da FC brasileira: a descrição de uma vida simples, o tom às vezes intimista, a crítica à imaturidade humana; e na FC da década de 1960, o temor da guerra nuclear. Aparecem ainda aspectos da vida do escritor: a infância tiranizada pelo rígido pai, a experiência de ser preso durante o regime militar, e a casa em Mongaguá, na qual se deram tantos almoços reunindo os fãs de FC que formaram o “Primeiro Fandom” brasileiro (a primeira comunidade de fãs e autores), e até sua coluna no jornal Tribuna de Santos. Tudo isso, além de explorar o episódio de sua prisão durante o golpe militar.164 Monteiro foi um dos criadores da Associação Brasileira de Ficção Científica em 1965, e esteve à testa do movimento de fãs até sua morte, em 1970. Em chave semelhante e publicado no mesmo livro, “Um Braço na Quarta Dimensão” é outro conto de destaque da época. Apresenta seu alter ego e sua companheira, Car (a esposa de Monteiro, Carmen), agora às voltas com um homem comum, caiçara de Mongaguá dotado de um dom — ou maldição — extraordinário, o de teleportar-se de um lugar a outro, quando em pânico. Um conto sobre paranormalidade, em que o hipnólogo e pesquisador do paranormal, além de autor de FC, André Carneiro, é citado como a pessoa junto a quem o narrador pretende levar o assombroso caso com o qual se depara acidentalmente. Num momento de ironia auto-reflexiva, o narrador afirma: “Não acredito muito em ficcionistas.”165 O conto termina, porém e antes que pesquisadores 163 Lições de Pânico traz ainda os contos “Biografia de uma Coisa”, “A Cicatriz”, “Febre” e “A Árvore Maravilhosa”. Conta que essa coletânea teria sido recusada por Gumercindo Rocha Dorea, levando Nader à fundação de uma editora para a sua publicação, a Editora Escrita, que se notabilizou pela edição de obras da esquerda política. 164 Monteiro, Jerônymo. Tangentes da Realidade. São Paulo: Livraria 4 Artes Editora, 1969. O traz ainda as histórias “As Pedras Radiantes”, “Estação Espacial Alfa”, “Missão de Paz”, “O Elo Perdido”, “A Incrível História de Tômas de Saagunto” e “O Sonho”. 165 Monteiro, Jerônymo. “Um Braço na Quarta Dimensão”. In Tangentes da Realidade, Jerônymo Monteiro. P. 161. 204 possam analisar o caso, com uma cobra assustando o pobre caiçara, que se teleporta sem controle para a caldeira de uma locomotiva. * Vimos já que Fausto Cunha esteve na primeira antologia da Ficção Científica GRD, mas a editora de Dorea primeiro publicou a sua estimada coletânea As Noites Marcianas (1960),166 recentemente analisada por Ramiro Giroldo em “Alteridade à Margem: Estudo de As Noites Marcianas, de Fausto Cunha” (tese; 2013). A primeira investida literária de Cunha, já então um crítico literário de relevo, se deu por conta do seu relacionamento com Dinah Silveira de Queiroz, que mantinha um círculo literário ativo na época, no Rio de Janeiro (supõe-se que até 1962, quando foi nomeada Adido Cultural da Embaixada do Brasil em Madri). Em contos como “Viagem Sentimental de um Jovem Marciano ao Planêta Terra” [sic], “Chamavam-me de Monstro” e “61 Cygni”, Cunha, na visão de Giroldo, ao tratar de encontros de alienígenas com os humanos, incorpora uma reflexão sobre o “Outro”. De fato, o escritor chega mesmo a tratar do Outro racial, no conto “Regresso”, que apresenta à FC brasileira o seu primeiro herói espacial negro. Essa reflexão sobre o Outro se confundiria com o próprio estatuto da FC junto ao sistema literário brasileiro, ou à crítica canônica, como Giroldo se refere. O Outro aqui é definido pelo pesquisador como, nas “brechas do que é consensualmente tomado como norma, [...] o que escapou a uma categorização socialmente construída”.167 Para ele, a ficção de Cunha é em grande parte dedicada a um elogio da alteridade estendido à própria configuração artística: esse “outro” que é a ficção científica não estaria em débito para com os padrões estéticos instituídos no País, mas poderia enriquecê-los ou questioná-los com uma visada particular [...].168 Para chegar a esse entendimento, não se pode alienar o papel do próprio Cunha como crítico canônico, de grande reputação na época, mas com uma atitude ambígua com respeito aos méritos da FC. Suas oscilações entre o louvor ao potencial e às realizações do gênero e sua condenação dele como subliterário ou dispensável aparecem em ensaios como “Ascenção e Queda da Ficção Científica” (1967) e no importante “Ficção 166 Traz os contos “Viagem Sentimental de um Jovem Marciano ao Planêta Terra”, “Chamavam-me de Monstro”, “61 Cygni”, “Regresso”, “Cai uma Fôlha em Setembro”, “Stella Matutina”, “O Anzol e os Peixes”, “O Dia que já Passou”, “Mobile”, e “‘A Vela que o Mundo Apagou’”. Mantendo o mesmo título, Cunha publicou em 1969 um volume com revisões e uma seleção diferente de histórias: “61 Cygni”, “Chamavam-me de Monstro”, “Viagem Sentimental de um Jovem Marciano ao Planêta Terra”, “Último Vôo para Marte”, “Cai uma Fôlha em Setembro”, “Regresso”, “O Anzol e os Peixes”, “O Comandante Passeia pelo Tombadilho” e “Mobile”. (Rio de Janeiro: Simões Editores, Coleção Gagarin N.º 2.) 167 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. P. 14. 168 Idem, ibid. Pp. 13-14. 205 Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado” (1976?), e foram notadas por David Lincoln Dunbar: Um dos críticos top do Brasil (e escritor de fc), Fausto Cunha, defende que a maior parte da fc é literatura ruim, de qualidade secundária ou substandard. Ele me disse que não há escritor brasileiro de fc de valor. Porém, mais tarde na entrevista, afirmou que a fc está em sua primeira fase (aquela da descoberta, do entusiasmo e do contato) e que ela é “poética, lírica e romântica”. Quando perguntei a ele se era possível demonstrar habilidade literária e gênio verdadeiro na fc, ele respondeu que era o melhor lugar para demonstrá-la por causa da falta de restrições e pela liberdade em se usar “truques literários”. Fausto então suavizou algo de sua afirmativa anterior sobre não haver escritor brasileiro de fc de valor, dizendo que a boa literatura depende do escritor e não do gênero. [...] Ele aponta que vários dos escritores de fc eram autores reconhecidos com grande talento, antes de se aventurarem na fc. Esclarece que bons escritores como Orígeness Lessa, Dinah Silveira de Queiroz, André Carneiro e Rachel de Queiroz produziriam literatura de boa qualidade não importando o gênero.169 Tal ambigüidade sugere que, como crítico, Cunha também se sentia pressionado a afastar-se de um gênero desprezado pela “crítica séria”. Isso é complicado ainda mais pelo fato de a maior parte de sua produção literária pertencer ao gênero. E enfim, por ser admirador do escritor americano Murray Leinster (William F. Jenkins; 1896-1975) — ao que dá a entender a atividade de editor e de autor que freqüentemente se refere a Leinster —, que pode ser considerado importante apenas pela aceitação dos valores de uma ficção popular ou pulp, e não propriamente “literários”.170 Mas talvez a sua oscilação possa ser atribuída a uma inconsistência crítica de Cunha, sugerida (com um toque de ironia) por Leo Barrow no A Dictionary of Contemporary Brazilian Authors (1981): “[Cunha] se imagina o principal crítico brasileiro. [...] Muitas vezes suas teorias brotam da sua vasta leitura e não de conclusões pessoais cuidadosamente elaboradas. Alguns dos seus ensaios são abertamente cerebrais e fáceis, não-reflexivos [...].”171 Para Ramiro Giroldo, As Noites Marcianas se opõe à tendência conservadora [da crítica e da cultura universitária] brasileira em duas frentes: na tematização dessa tendência, que é rejeitada em prol do elogio da alteridade; e na própria filiação genérica, que porta a 169 Dunbar, David Lincoln. “Unique Motifs in Brazilian Science Fiction”. P. 13. A entrevista de Dunbar com Cunha foi feita em agosto de 1972, no Rio de Janeiro. 170 Há certa genialidade pouco reconhecida em Leinster, no modo como sua ficção amplia os limites da FC por um entendimento dos seus potenciais inerentes, e não pela ruptura ou pelo empréstimo de elementos do mainstream literário. Escreveu mistério e western como Jenkins. Como editor, Cunha dirigiu a Coleção Gagarin em 1969, para a Editora Simões, do Rio de Janeiro; e com muito mais sucesso, as coleções Mundos da Ficção Científica e Mestres do Horror e da Fantasia para a Francisco Alves, também do Rio. Na Mundos da Ficção Científica, uma das melhores coleções de FC produzidas no país, editou Antologia Cósmica (1981), com a noveleta clássica de Leinster, “First Contact” (1945). 171 Foster, David William & Reis, Roberto, eds. A Dictionary of Contemporary Brazilian Authors. Tempe, AZ: Center for Latin American Studies, Arizona State University, 1981, p.42. 206 possibilidade de renovação ou questionamento da hegemonia do pensamento canônico.172 Dificilmente os contos de Cunha caberiam na tendência New Wave, mas existiria nessa tematização da tendência conservadora da crítica uma auto-reflexão particular — que nos dá, a partir da tese de Giroldo, uma pista para enxergar a ficção científica como alternativa exterior à poética pós-modernista, e adequada à situação de um país periférico como o Brasil. Romances O pesquisador Silvio Alexandre, um especialista em Jerônymo Monteiro, acredita que esse autor antecipou algo da New Wave por sua postura humanista, centrada no homem e não na máquina.173 Monteiro era um grande admirador de H. G. Wells (18661946) — tanto que usou o sobrenome do autor inglês, no seu pseudônimo para as novelas de rádio, “Ronnie Wells” —, e certamente absorveu algo da visão cósmica e apocalíptica de Wells, um dos “pais” da FC, especialmente nos romances 3 Meses no Século 81 (1947) e Fuga para Parte Alguma (1961). Este último foi chamado de “um dos marcos da ficção científica brasileira”174 por Fausto Cunha; com admirável coesão dramática, é um sombrio romance de fim de mundo. Nisso se aproxima dessa tendência dominante na New Wave inglesa, mas seu texto é pulp até a raiz dos cabelos e sua abordagem carece de qualquer aspecto experimentalista/formal que o coloque dentro da mesma chave. Aproveitando situações do anterior 3 Meses no Século 81,175 Fuga para Parte Alguma (1961) é um romance curto que narra como a sociedade do futuro distante encontra o seu fim a partir de uma praga mundial de formigas mutantes, as “attas”, surgidas da Amazônia, o último reduto natural da asséptica Terra do futuro. A narrativa 172 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. P. 158. Esse elogio da alteridade está presente, imagino, na obra de outros autores da Primeira Onda — André Carneiro e Rubens Teixeira Scavone, ambos ensaístas também; e Dinah Silveira de Queiroz e Zora Seljan, com seus alienígenas espiritualizados —, mas a posição de Fausto Cunha no cenário da crítica canônica é que o torna um estudo de caso privilegiado. 173 Alexandre, Silvio. Informação pessoal, 21 de maio de 2009. Paráfrase. 174 Cunha, Fausto. “A Ficção Científica no Brasil: Um Planeta Quase Desabitado”. In No Mundo da Ficção Científicia. Pp. 10-11. 175 Monteiro, Jerônymo. Fuga para Parte Alguma. Rio de Janeiro: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 8, pp. 19-20. 207 começa panorâmica e habilmente se afunila até concentra-se no drama da família de Aron e Ênia, que foge de sucessivas levas das formigas, até ser encurralada na Austrália. Um tema que Monteiro provavelmente emprestou do conto de Wells, “Empire of the Ants” (1905), que trata de um capitão brasileiro, Gerilleau, que leva a canhoneira Benjamin Constant pelo Rio Amazonas para investigar o surgimento, acompanhado do engenheiro inglês Holroyd, de formigas inteligentes e belicosas cuja expansão ameaça o planeta inteiro. Na Primeira Onda, Monteiro também publicou Os Visitantes do Espaço (1963), pela EdArt, nova tentativa de produzir uma FC mais característica, depois de “Estação Espacial Alfa”. Neste romance, a Terra é visitada por discos voadores que pousam na Amazônia e cujos tripulantes mantêm uma atitude cautelosa de contato, enquanto transformações atmosféricas passam a causar mudanças climáticas e aquecimento global. Antes mesmo de se darem conta disso, potências humanas os atacam, sem sucesso, já que os discos estão protegidos por campos de força inexpugnáveis. Acaba sendo que os alienígenas vêm de Io, a lua mais próxima ao planeja Júpiter, e que sua visita à Terra busca seqüestrar hidrogênio da nossa atmosfera para reconstituir a do seu mundo. As situações ufológicas do romance também incluem a abdução prévia de um engenheiro, que, devolvido anos depois, será uma espécie de interlocutor oficial com os E.T.s. M. Elizabeth Ginway notou em Ficção Científica Brasileira que os alienígenas de Monteiro diferem da “visão paradigmática americana dos alienígenas como sendo ou hostis ou altruístas”,176 já que, uma vez tendo obtido o recurso natural de que precisam, partem sem demonstrar maior interesse pelos nativos. Ginway interpreta o enredo como correspondente à experiência histórica brasileira, a qual “a maioria dos estrangeiros estão interessados no Brasil por seus recursos naturais, mas tem pouco interesse na sua cultura em si, ou, a propósito, no bem-estar ou destino do seu povo”.177 Apesar disso, a narrativa é incoerente em vários níveis, já que não se explica como aquelas poucas naves poderiam estar captando, separando e transportando o gás para fora do planeta — e considerando que a atmosfera de Júpiter, o maior planeta do sistema solar, 300 vezes maior que a Terra, é 90% composta de hidrogênio. E mesmo no alívio de a Terra não ser totalmente destruída, a narrativa ignora os danos catastróficos do aumento de 176 Ginway, M. Elizabeth. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. Lowisburg: Bucknell University Press, 2004, p. 65. 177 Idem, ibid. Pp. 65-66. 208 temperatura sobre a biosfera terrestre, causados pela imprudência arrogante dos habitantes de Io. Monteiro teria ainda uma publicação póstuma em 1972 de O Ouro de Manoa, pelo Clube do Livro, versão revista do seu romance de mundo perdido, O Irmão do Diabo (1937). É uma obra curiosa por ser uma narrativa bem dentro do que se fazia em termos de aventuras coloniais a lá H. Rider Haggard (1856-1925), transposta à floresta Amazônica com direito a onças se comportando como leões e índios brasileiros agindo como guerreiros zulus, num enredo que envolve a descoberta da cidade do El Dorado (ou Manoa) como uma versão da Atlântida. É apresentada como fato narrado por alguém que teria vivido tais aventuras improváveis — um raro caso brasileiro da farsa como gênero literário. A reescritura sugere certa maturação estilística tardia de Monteiro. Com O Planêta Perdido (1968) [sic], Luiz Armando Braga produziu em forma juvenil um dos primeiros exemplos brasileiros de space opera — FC pulp de aventura espacial e conflitos em outros planetas, como Scavone notou na introdução: “sua obra pertence ao grande ramo da space opera, que se vale de todos os recursos e de todas as soluções, desde os problemas íntimos, individuais, até a entropia estelar com a destruição dos mundos”.178 O livro é composto da novela “O Planêta Perdido”, sobre uma expedição humana que termina no planeta Luzon e suas duas cidades-estado em guerra, apresentando discos voadores, alienígenas de pele azul, viagens no tempo e planetas explodindo; e do conto “A Névoa”, na mesma chave pulp juvenil, mas com a destruição total sendo trazida à Terra. O texto é imaturo e apresenta falhas de conhecimento científico, especialmente quanto às distâncias entre as estrelas. Bem se vê que os romances do período não oferecem muita sofisticação ou ousadia que de algum modo os aproxime da New Wave. Além da noveleta de Dinah Silveira de Queiroz, analisada aqui um pouco mais detalhadamente, já vimos que as melhores chances de uma aproximação da New Wave dentro da Primeira Onda estão no trabalho de André Carneiro. 178 Scavone, Rubens Teixeira. “Nota Explicativa: A Mais Aterradora e Surpreendente Caixa de Pandora: O Cérebro Humano!” In O Planêta Perdido, Luiz Armando Braga. São Paulo: Clube do Livro, 1968, pp. 7-8. Grifo no original. 209 André Carneiro Ocupa o Espaço Interior Além dos contos já mencionados, Carneiro publicou duas coletâneas que estão entre as melhores publicadas por um brasileiro, desde então: Diário da Nave Perdida (1963) e O Homem que Adivinhava (1966), ambas pela EdArt. Na primeira, textos como “O Homem que Hipnotizava”, de Carneiro, exploram o “espaço interior” (inner space) do protagonista que se auto-hipnotiza para customizar a realidade, modificando “para cima” a aparência da esposa, a decoração da casa, etc. Carneiro aí foi um dos primeiros autores brasileiros a produzir uma narrativa que se aproximava da FC da New Wave, em seu uso de psicanálise,sua evocação de uma “cultura das drogas” (no modo como o personagem precisa de doses cada vez mais freqüentes de auto-hipnose para manter a realidade que cria para si), e pela exploração do “espaço interior” da psique humana, projetando-se no ambiente. No mesmo livro encontra-se “A Escuridão”, noveleta que foi chamada de “clássico internacional” pelo seu tradutor para o inglês, Leo Barrow, então um professor da University of Arizona. Foi publicada, como “Darkness”, na antologia Best SF of the Year, de 1972, organizada por Harry Harrison & Brian Aldiss. Ela também apareceria na edição inglesa desse livro, The Year’s Best Science Fiction No. 6 (1973), e em outros países. Um fenômeno atinge o planeta todo: a percepção da luz se enfraquece paulatinamente, até que a cegueira se instala sobre todos. Um homem tenta manter a vida e a dignidade, emprestando sua solidariedade em momentos de desespero. Nesse mundo onde não há mais luz, os cegos se tornam a última esperança, num tipo de inversão de papéis comum na FC, e que relativiza nossas percepções da realidade e nos faz reconhecer a precariedade das determinações sociais. Carneiro foi um dos primeiros a inserir esse tipo de investigação especulativa em nossa FC, e “A Escuridão” permanece como referência obrigatória para o gênero. Sua “justificativa” científica remonta aos argumentos da FC do século XIX e início do XX — o conto “A Estrela” (1887), de H. G. Wells (1866-1946), o romance O Fim do Mundo (La fin du monde; 1894), de Camille Flammarion (1842-1925), e A Nuvem da Morte (The Death Cloud;1913), de Arthur Conan Doyle (1859-1930) —, mas não dá conta da complexidade do fenômeno global de perda paulatina da luz, descrito por Carneiro. Daí essa noveleta ser às vezes lida como realismo mágico. 210 Antes desta história de Carneiro, a FC também havia apresentado um episódio de cegueira global no romance de John Wyndham, O Dia das Trífides (The Day of the Triffids; 1951), onde a cegueira se instaura quando a Terra testemunha uma chuva de meteoros. Todos os que foram expostos ao estranho espetáculo noturno perdem a visão — e se tornam presas da proliferação de plantas inteligentes e carnívoras, resultantes de uma suposta experiência soviética de bioengenharia. Por sua vez, a narrativa de Carneiro segue o preceito wellsiano de apenas uma idéia “de ficção científica” por narrativa, e não agrega outros conceitos, mantendo apenas a cegueira global como noção organizadora do estranhamento da história. Wladas, o protagonista, tenta sobreviver nesse mundo em que apenas os deficientes visuais podem conduzir as pessoas normais à segurança. A história possui uma ambientação indefinida — uma cidade relativamente grande, que pode ser tanto latino-americana quanto européia. Logo na abertura, Wladas se recorda de uma “revolução” ocorrida em sua juventude: “Algo que irrompe, à nossa revelia e nos carrega para um destino que não escolhemos. Mas, fora diferente, a revolução.”179 Não há mais detalhes que ajudem o leitor a se situar no tempo e no espaço. O arco narrativo, a prosa relativamente distanciada — centrada nas experiências imediatas de Wladas —, a descrição reduzida aos pequenos objetos ao alcance dos sentidos dos personagens, e o exame dos seus estados de espírito sugerem o tipo de exploração do tema “catástrofe” ou “fim de mundo” próprio da FC New Wave. “André Carneiro se preocupa com a abordagem da realidade”, disse Harry Harrison; “é o ‘espaço interior’ de J. G. Ballard”.180 A noveleta especula sobre a realidade que nossos sentidos formam, ao mudar o palco da condição humana pelo advento desse estranho fenômeno. É também uma tocante afirmação da solidariedade humana, propondo que ela pode se manifestar nos momentos mais duros, se a catástrofe abalar os papéis sociais que delimitam as nossas vidas. Nessa noveleta clássica, respeitada internacionalmente, a percepção do mundo é relativa e precária, com o potencial de enfraquecer as hierarquias. Na primeira coletânea de Carneiro, há ainda a noveleta que dá título ao livro. Assim como “A Organização do Dr. Labuzze”, é desenvolvida como anotações em um diário, no ano de 2284. Após um acidente no espaço, apenas um casal sobrevive — o narrador 179 Carneiro, André. “A Escuridão”. In Diário da Nave Perdida, André Carneiro. São Paulo: EdArt, Coleção Ciencificção N.º 4, 1963, p. 115. 180 Harrison, Harry. “Introduction”. In Nova 2, Harry Harrison, ed. Nova York: Dell Books, 1974, p. 10. 211 e sua colega Liz. A nave avariada sai da rota, os dois fazem todo o possível para reativar os sistemas de bordo, enquanto ingerem a droga “meproba-14” para “a estabilização emocional”, embora não possam “identificar as doses exatas como o Cibernetamental”,181 um computador psicanalista. O estoque da droga é pequeno, e eles são obrigados a racioná-la. No plano formal, a densidade do technobabble distancia a prosa do leitor e provoca um efeito disjuntivo, em recurso que lembra o foco pósmodenista na superfície do texto. Aos poucos, o narrador pára de chamar a companheira de “Sta. Liz”, para chamá-la apenas de “Liz”. Seus mecanismos de contagem do tempo também são distorcidos, enquanto as drogas se esgotam. Como resultado: — Tenho pensado. Não posso evitá-lo nestas horas [vazias]. Êsse perigoso exercício tem me fascinado. Recostado diante do painel, deixo a imaginação por todos os caminhos. Embora Coordenador de [R]eflexos, não me julgo passível de repreensões. Nossa situação continua de total emergência. Sem mep-14 e o resto, sem análise do Ciberneta-mental, não temos outro recurso senão pensar. [...]182 O narrador passa a criar fantasias, construir “enredos e aventuras”,183 e Liz afirma que sem as máquinas, ele “será agora um homem igual ao século dezoito ou vinte”.184 Mais que isso, todo o conjunto caótico da condição humana aflora em desejos, ciúmes e conflitos entre os dois, que se tornam amantes e como amantes vagam pelo espaço por dezesseis anos. Mas os problemas técnicos são superados e eles retornam à Terra. Os dois são reintegrados à sociedade e ao trabalho, mas o narrador sente-se mudado: “[são] os assuntos, os divertimentos, os modos de viver [que me perturbam]. Acho que sempre foi assim e eu não notava. [...] Não estou triste nem angustiado. Saio de helijal com Liz, mas ela não é a mesma, ou seria eu que não sou?”185 Liz o delata ao Ciberneta-mental, e, pressionado para enquadrar-se, ele decide trocar a sociedade controlada por uma outra, mais livre, em Marte.186 Giroldo interpreta a conclusão nos seguintes termos: “A fuga do prazer descartável oferecido pelos ‘robots’ e pelas drogas se equipara à busca por um 181 Carneiro, André. “Diário da Nave Perdida”. In Diário da Nave Perdida. P. 166. Idem, ibid. P. 170. 183 Idem, ibid. p. 172. 184 Idem, ibid. P. 173. 185 Idem, ibid. P. 208. 186 Reserva de uma existência de sentimentos mais puros, como em 3 Meses no Século 81, de Jerônymo Monteiro? 182 212 desprazer capaz de pôr em relevo as deficiências humanas. Ressaltando-as, o protagonista é capaz de ter uma noção da própria individualidade.”187 Também se pode comparar a aventura do casal na nave perdida com a viagem narrada em The Black Corridor (1969), de Michael Moorcock & Hillary Bailey, enxergando no texto de Carneiro inversão semelhante entre a jornada no outer space transformada em mergulho no inner space psicanalítico. As drogas de humor e de aumento cognitivo, a autoridade do Ciberneta-mental e a sociedade controlada funcionam como super-ego hipertrofiado. Liberto acidentalmente do seu bloqueio, o narrador tem acesso a um eu mais unificado, que ele busca preservar ao final da jornada, desenvolvida ela mesma como uma psicanálise que se confunde com o próprio funcinamento da nave. Com a aceitação do amor e do “estado de dúvida e mêdo [sic] que destruiu civilizações antepassadas”,188 os sistemas voltam a operar: “já não havia mais a indicação ‘bloqueio’.”189 Ginway afirma que esse renascer do protagonista “é contrário à imagem americana em histórias de espaçonave por autores como Clifford D. Simak, Edmund Cooper e Philip José Farmer, nas quais o renascimento” assinala o surgimento da ciência a partir da ignorância.190 Na segunda coletânea de Carneiro, O Homem que Adivinhava (1966), um último conto é de interesse para esta discussão. “O Mudo”, ambientado na zona rural, não apresenta nenhum dos elementos mais salientes da New Wave, mas também não traz elementos caracterísicos da FC pulp ou Golden Age (exceto pelo tema da parapsicologia). O mudo do título é um homem misterioso, sem família ou passado, a quem se atribui o poder de fazer crescer as plantas na fazenda na qual é agregado. Lúcia, a filha do novo administrador, aprecia a companhia dele, e todos notam como ela subitamente desabrocha, ganhando contornos de mulher. O amadurecimento precoce redunda em uma gravidez igualmente precoce, após o encontro com um jovem agrônomo atraído por sua formosura. Os dois se casam e se mudam para a cidade. Com a distância dela para com o Mudo, parece que seu corpo perde o viço — a narrativa também atribuindo a mudança ao parto e ao casamento: “Certas mulheres se desmancham depois de casadas. Com Lúcia foi 187 Giroldo, Ramiro. “P. 52. Carneiro, André. “Diário da Nave Perdida”. P. 191. 189 Idem, ibid. P. 192. 190 Ginway, M. Elizabeth. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. P. 71. Ginway está citando Gary K. Wolfe, em The Known and the Unknown: The Iconography of Science Fiction (Kent, OH: Kent State University Press, 1979, p. 65. 188 213 assim.”191 E longe dela, o mudo também adoece e acaba morrendo. Fica a dúvida — a incerteza — entre as duas possibilidades, a natural e a paranormal. Adaptado para o cinema por Júlio Xavier Silveira, com o título de Alguém (1970), esse conto é um dos melhores de Carneiro, em termos de tom, andamento e estilo. Aqui também, como nas histórias de Dinah Silveira de Queiroz, o understatement é o efeito central: por um lado se tem o inefável relacionamento de Lúcia com o Mudo, e do outro o relacionamento concreto, comum e natural dela com o marido. Porém, mais do que isso e adicionando ao plano do dito e do não dito e da incerteza decorrente, há uma incerteza estrutural com respeito ao gênero a que o conto pertence. A possibilidade de que pertença à ficção científica amplia os sentidos, ao trazer uma intertextualidade específica em termos de paranormalidade e raport empático. Se o conto não tem os dois pés no terreno da FC, ele nos convida a olhar por sobre a cerca que o separa do mainstream literário. Nascido em 1922, André Carneiro viveu na clandestinidade, participando de movimentos de resistência ao regime militar. Obras que estavam prontas naquela época viram a luz apenas a partir de 1980, incluindo os romances Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991), além das coletâneas A Máquina de Hyerónimos e Outras Histórias (1997) e Confissões do Inexplicável (2007). Ainda em atividade, é o decano dos escritores brasileiros de FC. Embrionária nessa primeira fase de sua carreira, sua inserção posterior no pós-modernismo se dá mais fortemente com os romances, que abraçam aspectos de anti-romance como ausência de divisões convencionais entre capítulos, personagens cujos nomes próprios variam de um dia para o outro, falta de enredo e renúncia a aspectos convencionais de caracterização. Primeira Onda ou Nova Onda? Colin Greenland, em The Entropy Exhibition (1983), aponta Bradbury como uma influência ou precursor da New Wave: 191 Carneiro, André. “O Mudo”. In O Homem que Adivinhava. São Paulo: EdArt, Ciêncificção N.º 8, 1966, p. 109. Os outros textos do livro são: “Um Casamento Perfeito”, “Um Caso de Feitiçaria”, “Planêtas Habitados”, “O Homem que Adivinhava”, “A Espingarda”, “O Relatório Secreto” e “Invasão”. 214 Na década de 1950, Bradbury escrevia com um desprezo pela tecnologia e a astronomia igual a qualquer um demonstrado mais tarde em [New Worlds]; sem atentar para a precisão científica, ele ignorava o conteúdo manifesto da fc e elaborava o seu simbolismo latente para informar uma peculiar versão estilizada só dele.192 Ele observa, porém, que a “sentimentalidade e a implacável nostalgia [de Bradbury] o separavam completamente dos visionários mais cínicos e horrorizados da década de 1960”.193 A influência de Bradbury teria sido seletiva, centrada em seus contos mais sombrios, enquanto aqueles mais plenos do sentido do maravilhoso (sense of wonder) próprio de uma FC sobre a conquista do espaço e a visita a outros mundos ficaram de fora. No Brasil, são também os aspectos mais sombrios da produção do autor que chamam a atenção de Rubens Teixeira Scavone, por exemplo: [Bradbury é] o novelista do ano dois mil que, acreditando sem explicação e com inteira naturalidade todos os produtos da civilização, se revela um inconformado, um desajustado, um saudosista da humanidade mais humana, do homem em antítese ao robot, impregnando seus heróis e suas construções duma espécie de nostalgia, da amarga lembrança de poesia e lirismo que em passado remoto o homem já possuiu. No ano dois mil a técnica é soberana, o bem-estar é fabuloso, a felicidade é obrigatória, pois o homem já se realizou e lançou seus tentáculos sôbre os demais componentes do sistema solar. Todavia, teve que pagar pesado tributo: desumanizou-se, equiparou-se às máquinas, destruiu-se a si mesmo, perfilando numa equipe de alucinados que, perdendo a noção do binômio tempo-espaço, despojou-se do individual e passou a viver uma existência mecânica onde os sentimentos são espoliados pelos testes e reações de ordem científica. 194 E ainda: “Nesse amanhã positivo e ameaçador lança Bradbury a criatura que, mesmo sem passado consciente, perambula por um universo sem segredos mas que, em antagonismo estranho, busca explorar outro mundo mais tenebroso ainda: seu inconsciente, sua personalidade.”195 Contudo, a coincidência de influências — e já afirmei acima que Bradbury foi o escritor estrangeiro mais influente junto aos brasileiros da época — não basta para supor um caráter de New Wave à FC brasileira, cuja face mais característica dizia mais respeito ao cinismo e horror existencialista dos escritores da década de 1960 e seu experimentalismo formal, do que ao lirismo saudosista de Bradbury. Uma diferença substancial está na defesa do humanismo — no apelo à solidariedade, à moralidade e à razão —, dominante na retórica literária desse momento, como resposta à crise do 192 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British New Wave in Science Fiction. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983, p. 52. 193 Idem. 194 Scavone, Rubens Teixeira. “Bradbury e o Amanhã”. In Ensaios Norte-Americanos. São Paulo, EdArt, 1963, pp. 111-12. 195 Idem, ibid. p. 114. 215 homem trazida pela tecnologia e pela ameaça nuclear. Ou, nas palavras de Antonio Olinto: “Os povos em que o avanço da tecnologia não tem sido acompanhado do necessário movimento de equilíbrio que o humanismo traz consigo sentem faltar-lhes o solo nos momentos mais perigosos”, já que “descambaram na miúda certeza de que o domínio puro e simples das coisas era mais importante do que a preparação do homem para compreender e humanizar esse domínio”.196 Em contraste, a New Wave tenta problematizá-lo, especialmente na crítica implícita ou explícita ao racionalismo e às instituições sociais. Na FC brasileira, o apelo humanista ao juízo e o apreço pela família, pela religião e espiritualidade, pelo amor romântico e pela maternidade, fogem substancialmente da abordagem da New Wave. David Lincoln Dunbar despreza essas diferenças, quando afirma que “a ‘nova onda’ chega aos EUA e à Inglaterra, mas não antes de ter causado um grande impacto no Brasil”.197 Em sua tese, Dunbar primeiro assinala os leitmotifs que ele considera únicos, na produção brasileira de FC, mesmo enquanto assinala que os próprios autores e editores brasileiros com quem conversão não enxergam essa singularidade.198 Ele enxerga as diferenças como emanando de uma cultura brasileira que até então não se orientava para a técnica, mas para “o solo, a família, a igreja e a tradição”, além do status de país subdesenvolvido com graves problemas materiais ainda não resolvidos pela tecnologia e indústria.199 Os leitmotifs seriam o “carioquismo”, termo emprestado de Dinah Silveira de Queiroz para exprimir uma idéia de brasilidade baseada na celebração da falta de pressa, da valorização do espírito gregário e do amor; da sensualidade e do sexo, mesmo que a partir de um ponto de vista às vezes machista;200 do nascimento e da maternidade; e do nascimento de Cristo.201 Sem desprezar a análise de Dunbar, que vê nesse último leitmotif expressão do vínculo cultura brasileiro com o cristianismo, aqui pode haver uma influência meramente editorial, no desejo de Gumercindo Rocha Dorea de publicar uma antologia com tema natalino, assim como hoje muitas antologias promovem temas 196 Olinto, Antonio. “Ficção Científica”. In Cadernos de Crítica, Antonio Olinto. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1959. 197 Dunbar, David Lincoln. “Unique Notifs in Brazilian Science Fiction”. P. 20. 198 Idem, ibid. P. 30 [rodapé]. Os entrevistados foram Ruy Jungmann, José Sanz, Rubens Teixeira Scavone e Gumercindo Rocha Dorea. 199 Idem, ibid. P. 31. 200 Idem, ibid. Pp. 37-44. Dunbar menciona o americano Theodore Sturgeon como exceção, mas como já vimos, mesmo em 1972 ele deveria estar ciente de que Brian W. Aldiss, J. G. Ballard e outros autores da New Wave já lidavam com sexo, e até mesmo com sexo homossexual, algo ausente na FC brasileira do período. Veja, por exemplo, The Primal Urge (1961), de Aldiss; The Atrocity Exhibition (1970), de Ballard; e Breakfast in the Ruins (1972), de Michael Moorcock, sem falar na inspiração que a New Wave encontrou em William Burroughs. 201 Idem, ibid. Pp. 30-58. 216 ou subgêneros (steampunk, space opera, ufologia, invasão alienígena, folclore brasileiro, etc.) sem que necessariamente seus participantes tenham um compromisso pessoal com eles. Militante integralista, Dorea tem forte vinculação com o pensamento católico brasileiro, e, embora afirme não ter fomentado abordagens alinhadas, certamente coloriu a Ficção Científica GRD e sua outra coleção, Ficção Científica Gigante, com suas inclinações religiosas. Publicadas por ele, obras como Além do Planeta Silencioso (Out of the Silent Planet; 1938), de C. S. Lewis (1898-1963); Um Caso de Consciência (A Case of Conscience; 1958), de James Blish (1921-1975); Os Mutantes (The Chrysalids; 1955), de John Wyndham; e Um Cântico para Leibowitz (A Canticle for Leibowitz; 1960), de Walter M. Miller, Jr. (1923-1996), incorporam alguma reflexão cristã, às vezes contestando ou problematizando. Politicamente, Dorea parecia interessado apenas na questão da guerra fria e da ameaça nuclear — de interesse universal e indistinto não só no Brasil como na América Latina,202 e seu anticomunismo não o impediu de publicar autores russos. De qualquer modo, quando a New Wave tratou da figura de Cristo, foi com aguda iconoclastia, como em Behold the Man (1969), em que um dos heróis dos múltiplos romances de Moorcock, Karl Glogauer, viaja no tempo para a época de Cristo. Greenland o entende como tipicamente um “homem moderno em busca de uma alma”,203 mas é possível ver nele o sujeito fraturado pós-modernista, de baixa volição e à mercê das forças históricas, como Breakfast in the Ruins (1972) dramatiza, numa narrativa fragmentada em que o mesmo Glogauer encarna em momentos históricos diferenciados do século XX. Em Behold the Man, o viajante temporal, desenvolvido como a imagem de uma personalidade lesada pelas circunstâncias, transforma-se ele mesmo no Cristo, absorvido pelas expectativas dos outros. As supostas semelhanças entre a FC brasileira e a New Wave estão concentradas no capítulo 4, “Man and Inner Space”, da tese de Dunbar, que escreve: “Vários escritores de brasileiros de [FC] têm explorado o gênero para penetrar no mundo consciente e inconsciente num esforço de dizer algo artística e simbolicamente acerca da condição humana, tais como alienação, identidade e integração (ou desintegração) cósmica.” 204 202 Veja Cosmos Latinos: Science Fiction in Latin America and Spain, Andrea L. Bell & Yolanda MolinaGavilán, eds. Middletown: Wesleyan University Press, 2003. 203 Greenland, Colin. The Entropy Exhibition: Michael Moorcock and the British New Wave in Science Fiction. P. 130. 204 Dunbar, David Lincoln. “Unique Notifs in Brazilian Science Fiction”. P. 91. 217 Contudo, sua análise dos símbolos de “61 Cygni” de Fausto Cunha é engenhosa mas não remete necessariamente às dramatizações explícitas do inner space da New Wave, já que a própria análise de Dunbar exige uma intermediação muito extensa da decupação psicanalítica dos símbolos. Ao tratar de “A Caverna” (1971), de Scavone, ele nota as relações simbólicas entre a exploração da caverna (o inconsciente) e a alucinação sofrida pelo explorador, mas não a prosa basicamente convencional e analítica do autor — em oposição ao estilo muitas vezes subjetivo de André Carneiro, por exemplo. O mesmo se pode dizer de outro de seus exemplos, “Estranha Simbiose” (1963), de Guido Wilmar Sassi. Por outro lado, sua interpretação junguiana de “O Espelho” de Leirner ilumina o nonsense do conto. Para além da interpretação que Dunbar dá ao conceito do inner space, meus candidatos a textos que se aproximam da New Wave são aqueles de Dinah Silveira de Queiroz e de André Carneiro, investigados mais acima. Porém, creio que duas andorinhas não fazem uma nova onda. * O empenho em cobrir certo terreno literário neste capítulo deve fornecer evidência de que a ficção científica viveu um momento interessante na década de 1960, resultando em uma fortuna ficcional que justifica a atenção acadêmica recente demonstrada em estudos como Viagem às Letras do Futuro: Extratos de Bordo da Ficção Científica Brasileira: 1947-1975 (2002), de Francisco Alberto Skorupa; Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future; 2004), de M. Elizabeth Ginway (University of Florida, em Gainesville); A Ditadura do Prazer: Sobre Ficção Científica e Utopia, de Ramiro Giroldo — e na sua tese de PhD, “Alteridade à Margem: Estudo de As Noites Marcianas, de Fausto Cunha” (2013), na qual afirma: “Fausto Cunha, bem como alguns de seus parceiros da Geração GRD, se encontram em uma situação intercalar, entre o oficializado e o esquecido, entre o canônico e o marginal, entre a tradição e sua queda.”205 A conexão que Dunbar fez entre a FC brasileira e a New Wave americana é muito interessante por exigir uma reflexão entre as características de ambas. A análise das obras e da retórica crítica existente durante a vigência da Primeira Onda sugere fortemente que as duas correntes, separadas por grandes diferenças relativas ao seu 205 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. P.44. 218 lugar (a Inglaterra, que via o seu império desaparecer; e o Brasil, que tentava se modernizar), preocupavam-se com uma conjuntura semelhante. Os brasileiros reagiam às percebidas ameaças da máquina, da destruição nuclear, da massificação da vida e da diminuição dos afetos, com histórias que olhavam para aquilo que temiam perder e que lhes parecia característico: a vida mansa, a convivência tranqüila, o convívio familiar, o humor e a religiosidade. É o sonho brasileiro, expresso na idéia de que se podia vir de qualquer lugar do mundo e encontrar aqui paz e calor humano. Além disso, esses autores se voltaram para os valores humanistas, como solução ou paliativo para o novo state of affairs. Embora evoque estas questões ao tratar dos leitmotifs singulares, a tese de Dunbar, quando escolhe fazer a comparação com a New Wave, evita enfocar a FC do período em sua conexão mais profunda com a cultura brasileira. Esse enfoque só seria realizado pela brasilianista M. Elizabeth Ginway, com seu livro Ficção Científica Brasileira. Equilibrando qualquer hipótese de uma leitura ingênua de estereótipos culturais com recursos da ecocrítica, do ecofeminismo, dos estudos de cultura e com toques de pósestruturalismo, mantendo ainda um enfoque comparativo com a FC anglo-americana,206 Ginway conclui que “um olhar crítico aos mitos brasileiros de identidade nacional na [FC] torna claro que o gênero fornece um barômetro para a medição das atitudes quanto a tecnologia, enquanto ao mesmo tempo reflete as implicações da modernização na sociedade brasileira”.207 Grosso modo, sua conclusão não está longe do reconhecimento de Dunbar, dos aspectos únicos na produção local de ficção científica: enquanto os autores, críticos e editores da época achavam que nossa produção apenas imitava a FC estrangeira, perante tais análises ela não deixava de comunicar nossos preconceitos, esperanças e desejos de futuro. Essa comunicação, porém, se dava, em sua maior parte, livre dos parâmetros formais seja da ficção científica New Wave, seja do pósmodernismo literário. Não estava livre, porém, das demandas do gênero, em torno do que Ken Gelder escreveu em Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field (2003): “Gênero é uma questão de conhecimento [...]. É impossível não apenas escrever, mas oferecer e vender e resenhar e ler, um romance de crime (por exemplo) sem um bom 206 Ginway, M. Elizabeth. Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future. Pp. 32-33. 207 Idem, ibid. P. 212. 219 entendimento da história do gênero e dos vários modos em que ele tem funcionado.”208 Trata-se de uma relação de “conhecimento e competência”, de compreender e saber lidar com os elementos do gênero, de construir sobre eles ou de oferecer alternativas coerentes e originais. É claro, a FC da Primeira Onda foi, em muitas instâncias, carente dessa competência. Ainda para Gelder, porém, o “próprio ato de ler ficção popular envolve e provoca avaliações”, que seriam feitas “por gente de fora que sabem pouco de ficção popular [...] e por gente de dentro, que pode parecer, pelo ponto de vista de alguém de fora, saber demais para o seu próprio bem”.209 Aqui, a outra lição do estudo da Primeira Onda está nas observações de Ramiro Giroldo, de que o pensamento institucional sobre literatura no Brasil “tem se constituído de forma fechada, avessa à possibilidade de uma auto avaliação [sic] que dê conta de novas manifestações literárias”. 210 Nas brechas do consenso do sistema literário brasileiro, a ficção científica surge como uma literatura que se enxerga como diferente da norma, uma identidade nascente. * Na década de 1970, a ficção científica brasileira sofre mudança de ênfase, e as explorações dos diversos temas típicos da FC perdem terreno para uma FC utópica e distópica, adequada a uma crítica oblíqua ao regime militar instalado em 1964, e à tecnocracia que o acompanhava. Esse novo momento foi o Ciclo ou Onda de Utopias e Distopias (1972-1982), que, embora prefigurado durante a Primeira Onda — com histórias como “O Copo de Cristal”, de Jerônymo Monteiro; “Sociedade Secreta”, de Domingos Carvalho da Silva; “O Ôlho Mágico”, de Wladyr Nader; e “Diário da Nave Perdida” ou “O Casamento Perfeito”, de André Carneiro —, foi a tendência que efetivamente marcou a década de 1970, de 1972 até aproximadamente 1982, quando eclode a Segunda Onda a partir do movimento de fãs. O Ciclo de Utopias e Distopias também marcou um ponto de maior aproximação entre a ficção científica e o mainstream literário, exatamente pelos recursos que o gênero facultava a escritores que respondiam ao impulso de abordar criticamente o novo 208 Gelder, Ken. Popular Fiction: The Logic and Practice of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 2. 209 Idem, ibid. P. 5. 210 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. P. 157. O pesquisador também observa que a FC é “uma literatura outra que foi precipitadamente rechaçada pela crítica brasileira. Afirmar o múltiplo é exceção quando estão em curso práticas conservadoras cujo interesse é manter o sistema de valores estático. O resultado é que a autoridade acerca do que é ou não digno de atenção se mantém nas rédeas de uma forma engessada de encarar a literatura, linear e alheia ao fato de que manifestações literárias distintas se dão paralelamente.” (Idem.) 220 contexto sócio-político. Entre estes se encontravam nomes que se tornariam estabelecidos e de reconhecimento nacional e internacional, como Chico Buarque — com a fábula distópica de inspiração orwelliana, Fazenda Modelo (1974); Herberto Salles, com o premiado (Jabuti) O Fruto do Vosso Ventre (1976); e, Ignácio de Loyola Brandão com Não Verás País Nenhum (1982), publicado em vários países. Freqüentemente, essa FC vinha temperada com traços absurdistas, muitas vezes kafkianos, outras vezes tocando a tendência mágico-realista latino-americana211 — abraçando enfim a auto-reflexão característica da ficção pós-modernista. Como resultado da mudança de foco, os autores da Geração GRD recuaram para o fundo desse quadro, embora André Carneiro tenha contribuído ao Ciclo com o distópico Piscina Livre, romance pós-modernista de traços experimentais inspirado em Aldous Huxley (de Admirável Mundo Novo; 1932) e também publicado na Suécia no mesmo ano, por intervenção de Sam J. Lundwall. Carneiro esteve bastante ativo internacionalmente durante essa década, em que sua militância no movimento de resistência armada ao regime o obrigou a viver parte do tempo na clandestinidade — o que ele exploraria de maneiras diversas no próprio Piscina Livre, no seu segundo romance, Amorquia (1991), cujos aspectos de “anti-romance” (ênfase na superfície dos eventos, fragmentação da narrativa, ausência de divisões estruturais, personagens cujos nomes variam ao longo da narrativa) são acentuados ainda mais, e em vários curtos posteriores.212 Características pós-modernistas de experimentalismo formal dentro de uma temática de FC surgiria também com o trabalho de autores da Segunda Onda como Braulio Tavares — cujos contos “Catálogo de Exposição” e “Mestre-de-Armas”, ambos de 1989, promovem essa aproximação de maneira mais característica, coesa e elegante do que os da Primeira Onda o fizeram. Também com Ivan Carlos Regina, nos contos experimentais e de fabulation de sua coletânea O Fruto Maduro da Civilização (1993); e Leonardo Nahoum, com “Controlador” (2001), reminiscente das explorações míticas da New Wave americana. Ou ainda, de um autor da Terceira Onda (a partir de 2004) como Luiz Bras (Nelson de Oliveira), em várias narrativas de arrojo estilístico presente em sua notável coletânea Paraíso Líquido (2010). 211 Com Murilo Rubião e José J. Veiga, entre outros. Sabe-se que Amorquia já tinha ao menos um primeiro rascunho pronto na década de 1970, já que Dunbar o menciona em sua tese. Muitas das histórias mais políticas de Carneiro, algumas de suspense psicológico e não de FC ou fantasia, estão na coletânea Confissões do Inexplicável (200 ). 212 221 Evidentemente, a versão brasileira do cyberpunk — chamada por mim de “tupinipunk” — também veio exacerbar, na década de 1980 e até o presente, o enfoque pós-modernista da nossa ficção científica, reciclando e recuperando mitos nacionais numa chave de paródia, conforme veremos no capítulo seguinte. 222 4. TUPINIPUNK: CYBERPUNK BRASILEIRO Poucas instâncias dentro da ficção científica tiveram o impacto que o Movimento Cyberpunk teve fora das fronteiras do gênero. Surgido dentro do espaço da FC como um novo movimento de contestação dos seus caminhos, admitia a influência da New Wave e buscava a recuperação de um ethos boêmio dentro da FC, 1 segundo o seu ideólogo, Bruce Sterling, mas às vezes identificado com o ethos pulp. Sentindo-se ainda mais inserido dentro da condição pós-moderna, o movimento adotou uma postura mais integrada, que emprestava um inédito glamour aos supostos temas dessa conjuntura — a tirania das multinacionais de alcance global, as ruas inundadas de gadgets de consumo de “massa”, o alcance planetário da indústria do entretenimento, o comportamento contracultural e as tribos urbanas. Fredric Jameson chamou o cyberpunk de “suprema expressão literária se não do pós-modernismo, então do próprio capitalismo tardio”,2 enquanto Istvan Csicsery-Ronay, Jr. (DePauw University), outro crítico marxista, o chamou de “apoteose do pós-moderno”.3 Csicsery-Ronay, Jr. desconfia profundamente da postura integrada cyberpunk. “[É] difícil ver os [leitmotifs] político-estéticos ‘integrados’ de subculturas alienadas que adotam as ferramentas high-tech do establishment do qual elas são supostamente alienadas”, escreveu.4 E ainda: “pode-se suspeitar de que o entusiasmo de [Bruce] Sterling pela sua ‘integração’ seja baseada em menos do que uma compreensiva análise social, se não em motivos menos do que sinceros.”5 Neste capítulo, as semelhanças e diferenças entre o cyberpunk e sua contraparte brasileira chamada por mim de “tupinipunk” serão analisadas, mas visando 1 Moreno, Horacio. Cyberpunk: Mas allá de Matrix. Barcelona: Circulo Latino, 2003, pp. 10-12. Este trabalho do editor e fã argentino Horacio Moreno, sob a forma de um livro de arte profusamente ilustrado, é o melhor levantamento disponível da trajetória, das influências e da repercussões do Movimento Cyberpunk. 2 Jameson, Fredric. Postmodernis, or The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1992 [1991], p. 419 [nota de fim]. 3 Csicsery-Ronay, Jr., Istvan. “Cyberpunk and Neuromanticism”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction, Larry McCaffery, ed. Durham & Londres: Duke University Press, 1991, p. 193. 4 Idem, ibid. P. 183. 5 Idem. 223 primariamente o entendimento do tupinipunk, já que o cyberpunk tem sido interesse de um substancial número de estudos no Brasil e no exterior.6 Tupinipunk, o Conceito Por volta de 1989, o debate sobre o cyberpunk aquecia as reuniões de fãs, e a antologia Reflexos do Futuro (Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology; 1986), editada por Bruce Sterling, estava disponível em português. Às vezes os fãs discutiam como seria um cyberpunk brasileiro, e durante o lançamento do primeiro livro de contos de Braulio Tavares, A Espinha Dorsal da Memória (1989), na Livraria Paisagem em São Paulo, eu cunhei o neologismo “tupinipunk”.7 De 1985 a 1995, a ficção científica brasileira apresentou um número de obras que lembravam aquilo que os norte-americanos faziam em termos do Movimento Cyberpunk na Silicone XXI FC, mas com características distintamente brasileiras: os romances (1985), de Alfredo Sirkis; Santa Clara Poltergeist (1991), de Fausto Fawcett; e Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco (1994), de Guilherme Kujawski; um par de contos de Braulio Tavares (entre eles, “Jogo Rápido”, de 1989); alguns outros de Ivan Carlos Regina (entre eles, “O Caipira Caipora”, de 1993); e uma noveleta de Ivanir Calado, “O Altar dos nossos Corações” (1993). Fawcett também escreveria histórias curtas dentro dessa tendência, reunidas em Instinto Básico (1992), com novas narrativas ocasionalmente avançando até o século XXI Veneno”, de 2005. E, já na segunda década do século — com, por exemplo, “Visita XXI, o romance Favelost (The Book) (2012). Carlos Orsi escreveu a noveleta “Questão de Sobrevivência”, também de 2005. Também no século XXI, o conto “Instinto Materno” (2010), de Pedro Vieira, 6 Veja, por exemplo, Visões Perigosas: Uma Arque-Genealogia do Cyberpunk: Comunicação e Cibercultura (Porto Alegre: Editora Sulina, 2006), de Adriana Amaral; e A Construção do Imaginário Cyber: William Gibson, Criador da Cibercultura (São Paulo: Editora Annhembi Morumbi, 2006), de Fábio Fernandes. O fato de já existir uma conversação crítica sobre o cyberpunk, e nenhuma sobre a New Wave, também justifica o maior espaço dado ao movimento New Wave neste estudo. 7 Admito que o cunhei com um espírito de ironia semelhante àquele reconhecido por Sterling, quando ele escreveu que “Os críticos, eu mesmo incluído, persistem in na rotulação, a despeito de todas as advertências: nós precisamos fazer isso, porque é uma fonte válida de insight — além de ser muito divertido.” (Prefácio a Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology. Bruce Sterling, ed. Nova York: Arbor House, 1986, p. vii.) 224 aparece na primeira antologia brasileira de histórias cyberpunk,8 mas é a única que se qualifica como pertencente à tendência que investigo aqui; e Cirilo S. Lemos publicou a sua noveleta “A Lua É uma Flor sem Pétalas” (2012). Dei a esse pequeno corpus de FC brasileira o nome de “tupinipunk”. O termo é fusão (desprezando as regras de aglutinação morfológica) das palavras “tupiniquim” e “cyberpunk”. “Tupiniquim”, que entrou na língua primeiro como nome de uma nação indígena, com o tempo se tornou sinônimo de “brasileiro”, freqüentemente empregado de maneira jocosa ou gozadora. Às vezes ele indica um produto feito no Brasil que não é tão bom quanto o original, ou um produto análogo feito sob circunstâncias não ideais — o que melhor que dá para se fazer. “Tupinipunk” como conceito crítico tem circulado para encontrar algum emprego acadêmico no Brasil e no exterior. M. Elizabeth Ginway, da University of Florida em Gainesville, o fez no seu elogiado Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Brazilian Science Fiction: National Myths and Nationhood in the Land of the Future; 2004), e Juan Ignacio Muñoz Zapata, da Université de Montreal, na tese “Le cyberpunk vernaculaire de l’Amérique latine: dystopies, virtualités et resistances” (2009),9 além de Karina Vázquez, no ensaio “Brazilian Cyberpunk and the Latin American Neobaroque: Political Critique in a Globalized World” (2012).10 E o pesquisador cubano Raúl Aguiar o mencionou na introdução da antologia organizada por ele para o fundo Casa de las Americas, Qubit: Antología de la nueva ciência ficción latinoamericana (2012).11 Depois de ter cunhado o termo em 1989, passei a notar leitmotifs recorrentes nas obras desses vários autores, o que me fez continuar investigando o conceito. Por exemplo, na resenha que Braulio Tavares fez de Santa Clara Poltergeist, ele compara 8 Cyberpunk: Histórias de um Futuro Extraordinário, Richard Diegues, ed. São Paulo: Tarja Editorial, 2010, pp. 135-50. 9 Disponível em https://papyrus.bib.umontreal.ca/jspui/bitstream/1866/3240/6/Munoz_Juan_I_2009_these.pdf 10 Vázquez, Karina. “Brazilian Cyberpunk and the Latin American Neobaroque: Political Critique in a Globalized World”. Luso-Brazilian Review Vol. 49, N.º 1 (junho 2012): 208-224. 11 “El entrecruzamiento de elementos y ambientes tradicionales de la ciencia ficción o el ciberpunk con la cosmogonía y/o el folclore de nuestros países, crea nuevas corrientes como el tupinipunk brasileño o el ciberpunk mexicano, de gran desarrollo em la actualidad.” (Raúl Aguiar. “Prólogo”. In Qubit: Antología de la nueva ciência ficción latinoamericana, Raúl Aguiar, ed. La Habana: Casa de las Americas, 2012, p. 9.) Além de Ginway, Muñoz Zapata e Vázquez, também discutiram o tupinipunk os acadêmicos brasileiros Rodolfo Rorato Londero (para refutá-lo), na dissertação de mestrado “A Recepção do Gênero Cyberpunk na Literatura Brasileira: O Caso Santa Clara Poltergeist” (Universidade Federal do MatoGrosso do Sul; 2007), e Suzane Lima Costa, na tese de doutorado “Cenas de um Brasil High-Tech” (Universidade Federal da Bahia; 2008). 225 esse romance aos cyberpunks americanos.12 Mas as características formais e temáticas apontadas por Tavares como de interesse no livro de Fawcett assemelhavam-se àquelas que o escritor Ivan Carlos Regina já explorava em histórias do final da década de 1980, reunidas na coletânea O Fruto Maduro da Civilização (1993). O próprio Tavares teria pelo menos um conto com essas características, “Jogo Rápido”. Também somei ao corpus tupinipunk Silicone XXI, chamado pela editora e pelo autor de “romance policial futurista”, além de Piritas Siderais, novela que trazia o subtítulo “de romance cyberbarroco”.13 Tais recorrências permitiram que eu investigasse o tupinipunk e encontrasse suas características específicas, que o diferenciam do cyberpunk americano. Rascunhei meus pensamentos no ensaio “Tupinipunk: Cyberpunk Brasileiro”, publicado no meu fanzine crítico Papêra Uirandê Especial N.º 1 (1996), e também comecei a chamar essas obras de tupinipunk na minha cobertura da FC brasileira para a Locus—The Magazine of the Science Fiction and Fantasy Field, e em outros veículos.14 Creio que o termo “tupinipunk” seja apropriado porque esta forma de cyberpunk brasileiro é mais relacionado a um dos principais aspectos culturais do Brasil, o sincretismo cultural, do que às características usuais do cyberpunk: a revolução dos computadores, a simbiose homem-máquina, as drogas que expandem a mente, a contracultura de fin de siècle, o comércio de informação, e o desejo do Movimento Cyberpunk de inovar sobre tradições mais antigas da FC. As características principais do tupinipunk são portanto a atitude iconoclasta, a sensualidade, o misticismo, a politização e uma perspectiva de Terceiro Mundo. As obras tupinipunks também são menos preocupadas com uma extrapolação verdadeira de 12 Isaac Asimov Magazine: Ficção Científica N.° 18 (1991), p. 21. A versão brasileira da Asimov’s existiu de 1990 a 1993, com 25 números. Contou com Ronaldo Sergio de Biasi como editor, e Adélia Marques Ribeiro como supervisora editorial. 13 É interessante notar que o primeiro romance a se declarar como ficção científica cyberpunk — ou póscyberpunk, já que seu modelo parece ser Nevasca (Snow Crash; 1992), de Neil Stephenson — é Cyber Brasiliana (São Paulo: Tarja Editorial, 2010), de Richard Diegues. Publicado por uma editora bastante associada à comunidade de ficção científica, ao contrário das editoras dos outros romances analisados aqui, ela também está mais próxima de suas categorias conceituais e comerciais. Cyber Brasialiana tem boa parte da sua movimentada ação ambientada em uma realidade virtual de aplicação comercial — como o Metaverse de Stephenson, mas chamado de “Hipermundo” — semelhante ao já existente Second Life. Diegues tem em comum com Stephenson o fato de ser um programador de computadores, e seu romance tem muitos elementos verossímeis relativos a essa área. Ao mesmo tempo, a intriga relacionada a rebanhos bovinos virtuais de importância estratégica global, o Brasil como potência mundial que teria aglutinado países vizinhos, soam improváveis mas não necessariamente satíricos. Diegues tenta contornar a situação chamando seu livro de uma “Realidade Alternativa que se desenvolve em um universo Pós-Cyberpunk” (quarta-capa). Centrado no enredo, sem muita cor local ou especificidade, e aparentemente sério quanto ao que narra, o romance não se aproxima muito do tupinipunk (apesar de uma evocação de sincretismo religioso mexicano). 14 Em 12 de março de 2012, criei uma conta no Twitter, com o título de “BrasilTupinipunk”, para divulgar o conceito: https://twitter.com/BrTupinipunk 226 hard science, do que as suas contrapartes americanas; e a cultura das drogas é menos determinante. Esse subgênero da FC nunca seria chamado de “FC hard radical”, um dos primeiros rótulos do cyberpunk. A maior parte das suas histórias é ambientada no futuro próximo, mas sua abordagem da tecnologia e da sociedade está mais para sátira e para os jogos pós-modernistas, do que para a extrapolação consistente. O cyberpunk combina ficção científica, ficção hard-boiled, cultura das drogas e atitudes punk, reciclando atitudes da New Wave — mas atraído pela ciência e a tecnologia, quando a New Wave era repelida por elas.15 Sem a New Wave como referência direta, o tupinipunk busca parecer avançado por meio de alusões a estilos e temas da vanguarda literária mais conhecida do Brasil, o Modernismo das décadas de 1920 e 30s, e de sua recuperação pelo Tropicalismo, o movimento de vanguarda da década de 1960. Os modernistas brasileiros, influenciados pelo dadaísmo, surrealismo e futurismo europeus, criaram obras originais a partir do seu conhecimento e pesquisa da realidade cultural do Brasil.16 A prosa cubista, o uso de vozes múltiplas, novas perspectivas sobre objetos conhecidos, liberação sexual, a mistura de formas literárias diferentes — todas essas técnicas de autores e artistas modernistas tiveram forte influência junto aos escritores tupinipunks. Na década de 1960, o movimento hippie teve na Tropicália ou Tropicalismo um congênere local — mas como um movimento no cinema, teatro, música e artes visuais que recuperava as idéias modernistas com toques de arte pop a lá Andy Warhol, e de ativismo político contrário ao autoritarismo. Como o modernismo, o Tropicalismo abraçou atitudes de vanguarda e uma visão nova e mais cínica e irônica do país.17 O novo movimento partilhava, assim como os primeiros modernistas brasileiros, uma propensão para a pilhéria, o escândalo e a provocação,18 mas também foi uma reação da contracultura à conformidade imposta pelo governo militar (1964-85). Por sua vez, o tupinipunk freqüentemente emprega a violência arbitrária, a pornografia e imagens escatológicas por seu valor de choque. Esses textos se apóiam na estética modernista, mas às vezes reforçam estereótipos culturais em sua representação do multicultural, do subalterno e do Outro racial. 15 Maddox, Tom. “The Wars of the Coin’s Two Halves: Bruce Sterling’s Mechanist/Shaper Narratives”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodernist Fiction, Larry McCaffery, ed. Durham & Londres: Duke University Press, 1991, p. 324. 16 Coutinho, Afrânio. “Modernismo”. In Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume II. Afrânio Coutinho & J. Galante de Sousa, eds. São Paulo: Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional/DNL, & Academia Brasileira de Letras, 2001, p.1085. 17 Góes, Fred. “Tropicalismo”. In Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume II. Pp. 1587-88. 18 Coutinho, Afrânio. “Modernismo”. P. 1087. 227 Observando a trajetória do cyberpunk, sublinham-se as diferenças entre as duas correntes. Cyberpunk: Política Literária e Principais Exemplos As primeiras articulações entre os componentes do que viria a ser o núcleo duro do Movimento Cyberpunk aconteceram em oficinas literárias, convenções de fãs de ficção científica, e por intermédio de fanzines e correspondência — elementos comuns ao fandom norte-americano de FC, na década de 1980. Em 1970, o escritor Stephen P. Brown conheceu aquele que provavelmente foi o primeiro cyberpunk em atividade, John Shirley, outro texano. Anos depois, em 1974, Brown participou de uma das oficinas Clarion. “Eu me encontrei no meio de um grupo de almas sensíveis”, Brown relata, “pessoas que vieram aprender como usar as estruturas e temas da FC para esboçar quadros melancólicos em tons pastéis”, uma descrição do que alguns chamariam mais tarde de tendência humanista da ficção científica pós-modernista. “Mas havia uma exceção — um garoto [...] de ar confiante, chamado Bruce Sterling. Bruce parecia ser a única pessoa lá com entusiasmo pelas possibilidades visionárias da FC.”19 Brown apresentou o trabalho de Shirley a Sterling, e logo os dois texanos estavam se correspondendo. Por volta de 1978, Shirley estava vivendo em Nova York, científica e fantasia. “Então, em uma convenção [de FC] FC em Vancouver em 1980 ou 1981, Shirley se encontrou em um painel com um homem chamado William Gibson. Gibson estava impaciente com a maior parte do que via, e encontrou em Shirley um espírito aparentado.”20 Os dois se tornaram amigos e Shirley convenceu Gibson a escrever e submeter suas primeiras histórias. Enquanto isso, em 1984, Bruce Sterling começou uma militância do que viriam a ser as idéias cyberpunks, por meio do fanzine crítico Cheap Truth, que ele editava sob o pseudônimo de “Vincent Omniaveritas” e com a ajuda de outro texano, Lewis Shiner. Esse fanzine representou a face combativa e de política literária aberta, do “Movimento”, conforme Sterling e seus colegas se chamavam entre si. 19 Brown, Stephen P. “Before the Lights Came Out: Observations of a Sinergy”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction. P. 174. 20 Idem, ibid. P. 175. 228 Brown testemunha que “Gibson se tornou conhecido dos texanos rebeldes, e uma sinergia se formou”, na qual esses escritores se desafiavam mutuamente, “em uma forma vital e única de interpolinização, e por um breve momento isso tudo aconteceu longe dos holofotes”.21 Os primeiros frutos foram o brilhante romance de estréia de Shiner, Frontera (1984); o primeiro volume da ambiciosa série Eclipse (1985), de Shirley [...];22 as primeiras histórias da série Shaper/Mechanist de Sterling e as fundações do seu espantoso [romance] Schismatrix (1985); e Neuromancer (1984), de Gibson. Todas essas pessoas se alimentaram e realimentaram uns aos outros, produzindo uma visão da FC moderna que refletia com mais precisão o futuro do mundo real. 23 No N.º 1 de Cheap Truth, Sterling dizia que, “enquanto a FC americana jaz em torpor reptiliano”, a fantasia ia ocupar as estantes: “O colapso da FC tem formado um vácuo que força a Fantasia a um inchaço doloroso e explosivo.”24 No N.º 2 ele elogia um conto de sua autoria e outros de Rudy Rucker e William Gibson incluídos nas antologias The 1983 World’s Best SF, editada por Donald A. Wollheim, e The Best Science Fiction of the Year # 13, editada por Terry Carr. Sterling também expressa seu interesse pela Terra SF II: FC como fenômeno internacional ao resenhar, brevemente, a antologia The Year’s Best European SF, editada por Richard D. Nolane. No N.º 3, resenha elogiosamente o trabalho do autor inglês da New Wave, Barrington J. Bayley. Cheap Truth já estava, naquela época, disponível on-line pelo endereço SMOF-BBS, 512836-7663, e Sterling conclamava os leitores a baixá-lo gratuitamente, e piratear livremente o fanzine “xerocado”. A edição 4 de Cheap Truth atacava a FC que era best-seller nas livrarias, normalmente obras derivativas, continuações de sagas iniciadas por Isaac Asimov ou Arthur C. Clarke quinze, vinte ou trinta anos atrás. Pedia o retorno de uma atitude boêmia, underground, e procedimentos editoriais e livreiros que dessem sustento aos talentos, para além dos interesses editoriais corporativos: A FC costumava ser somente a província do visionário e/ou do transtornado. Seus escritores poderiam contar com, no máximo, viver do ofício — juntamente com, é claro, a calorosa admiração de milhares dos isomorficamente visionários/transtornados [...] Isso não era uma coisa boa. Philip Dick comeu comida de cachorro; outros cometeram suicídio, mandaram tudo ao inferno, ou viveram 21 Idem. O título oficial da série é “A Song Called Youth”. 23 Idem, ibid. Pp. 175-76. 24 Vincent Omniaveritas (Bruce Sterling). “Quest for Decay”. Cheap Truth N.º 1, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.1. 22 229 vidas de constante desespero. [...] Mas aos loucos se permitia que florescessem no seu próprio modo peculiar, e os resultados eram, agora e então, espantosos. 25 No editorial do N.º 5 do fanzine lia-se simplesmente “Explorando a ideologia pop do século XXI”; 26 enquanto no do N.º 6 aparecia pela primeira vez a expressão “ficção científica hard radical” — uma das primeiras denominações do cyberpunk: EDITORIAL. FC hard radical vendo sinais de que algo novo é iminente --nova ficção a partir do dos frutos da nova tecnologia. /// as perspectivas abertas pela ficção científica contemporânea contra-atacam, usando [táticas de guerrilha novos sistemas de informação m/o/l/d/a/m essa nova ficção científica para a *era da eletrônica*27 Nesse mesmo N.º 6, ao resenhar a antologia de Gardner Dozois, The Year’s Best Science Fiction First Annual Collection (1984), Sterling observa que o “veterano editor Gardner Dozois ignora alegremente a lista [conservadora] de indicados aos [prêmios] Neb[ula] e Hugo para nos dar obras de mérito genuíno, de veículos mais esotéricos”,28 e registra uma primeira oposição entre dois pólos daquilo que o escritor Michael Swanwick mais tarde chamaria de disputa entre cyberpunks e humanistas, dentro da ficção científica pós-modernista: São particularmente animadores os esforços da “Geração dos 80”, listada por Dozois como sendo [Greg] Bear, [Pat] Cadigan, [William] Gibson, [James Patrick] Kelly, [Leigh] Kennedy, [John] Kessel, [Pat] Murphy, [Kim Stanley] Robinson, [Lewis] Shiner, [Bruce] Sterling, [Michael] Swanwick, e [Connie] Willis — certamente um dos ajuntamentos mais estranhos já vistos. Sete deles têm histórias aqui — o resto aparece proeminentemente nas Menções Honrosas. Se esses herdeiros-designados fossem jogados em um forte campo magnético, Gibson, Shiner, Sterling, Cadigan e Bear derivariam imediatamente para um pólo. Swanwick, Robinson, Kessel, Kelly, Murphy and Willis ficariam com o outro.29 Reconhecendo a oposição entre os dois campos, Brooks Landon dá a entender que os humanistas seriam um movimento que equilibraria um suposto niilismo dos 25 “Augean Stapledon”. “Reptile News”. Cheap Truth N.º 4, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.4 26 “Vincent Omniaveritas” (Bruce Sterling). “Editorial”. Cheap Truth N.º 5, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.5 27 “Vincent Omniaveritas” (Bruce Sterling). “Editorial”. Cheap Truth N.º 6, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.6 28 “Vincent Omniaveritas” (Bruce Sterling). “Ice Cracks Up with ‘83 Best of the Year”. Cheap Truth N.º 6, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.6 29 Idem. Uma listagem do conteúdo da antologia em questão está em http://en.wikipedia.org/wiki/The_Year%27s_Best_Science_Fiction:_First_Annual_Collection 230 cyberpunks,30 mas os humanistas teriam chegado antes, conforme Michael Swanwick e Stephen P. Brown sugerem. Há quem diga que esse os humanistas não existiram como movimento, mas provavelmente os cyberpunks não pensavam assim. O conto “O Contínuo de Gernsback” (“The Gernsback Continuum”), de William Gibson, é um interessante exemplo das lições do movimento New Wave, numa perspectiva a caminho de se transformar na FC cyberpunk. Apareceu primeiro na antologia original31 Universe 11 (1981), editada por Terry Carr, e mais tarde em Reflexos do Futuro (Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology; 1986), ditada por Sterling, e na coletânea de Gibson, Burning Chrome (1986). Nesse conto ambientado no presente (a década de 1980), o fotógrafo Parker é incumbido de fotografar a arquitetura futurista da década de 1930 para uma editora inglesa. Ele mergulha na tarefa a ponto de ter alucinações em que elementos desse imaginário começam a invadir a sua percepção da realidade. Ele se confessa com Merv Kihn, um amigo jornalista especializado em OVNIs, 32 que lhe dá uma racionalização para o que ele vem vivenciando — “Se você quer uma explicação de mais classe, eu diria que você viu um fantasma semiótico”33 — e lhe fornece uma saída: Parker deve consumir mídia de massa ruim, porque a mídia “realmente ruim pode exorcizar os seus fantasmas semióticos”.34 Mais que isso, Parker renuncia àquela visão do futuro positiva, gloriosa, utópica, em favor de um mergulho em sua própria realidade, mesmo que mediada pela “mídia ruim” e mesmo que distópica: “a evidência concreta da quase-distopia humana em que vivemos.”35 Interessante que Sterling tenha escolhido “O Contínuo de Gernsback” para abrir Reflexos do Futuro — a antologia do movimento. A história é quase um contomanifesto cyberpunk, embora a ambientação contemporânea e a ausência traços fortes de uma estética punk contrastem com os caminhos que o Movimento tomaria. Nele temos o interesse pelo design (que com o tempo se tornaria dominante para os cyberpunks no século XXI), a renúncia a uma 30 FC percebida como reacionária e Landon, Brooks. Science Fiction After 1900: From the Steam Man to the Stars. Nova York/Londres: Twayne Publishers/Prentice Hall International, 1997, p. 161. “Tem havido uma conversa de um movimento de FC ‘humanista’ que iria se contrapor a um percebido niilismo pós-moderno cyberpunk.” 31 A série Universe de antologias originais foi editada por Terry Carr, alcançando 17 volumes publicados anualmente de 1971 a 1987. 32 Considerando que a “ufologia” é uma forma de pesquisa científica (ou pseudo-científica) amadora, o jornalista ufólogo no conto representa no conto o princípio da “ciência nas ruas” e fora das instituições formais, tão caro aos cyberpunks. 33 Gibson, William. “The Gernsback Continuum”. In Burning Chrome, de William Gibson. Nova York: Ace Books, 1987 [1986], p. 29. 34 Idem, ibid. P. 33. 35 Idem, ibid. P. 35. 231 autoritária (Parker associa o ideário da FC pulp da década de 1930 com os movimentos autoritários de então),36 e o mergulho na sondagem, pelo gênero, de um presente de aspecto distópico, naquela chave de “integração” de que eu falava no início deste capítulo. Outro conto de 1981, “Johnny Mnemonic”, antecipa por outro lado o que Gibson levaria ao seu primeiro romance, incluindo os implantes cerebrais e anatômicos, comunidades anarquistas formadas em torno do emprego de tecnologias, e a aproximação entre megacorporações multinacionais e o crime organizado, tudo envolto por estilo em matéria de roupas, utensílios e materiais. Ainda hoje considerado a obra máxima do cyberpunk, o romance de estréia de Gibson, Neuromancer, foi publicado como um despretensioso paperback original pela Ace Books em 1984. O único sinal auspicioso em sua publicação foi ter aparecido como um Ace Special — respeitada linha de livros editada por Terry Carr e que incluiu obras distintas como Rite of Passage (1968), de Alexey Panshin, vencedor do Prêmio Nebula; A Órbita em Ziguezague, de John Brunner; e A Mão Esquerda da Escuridão (ambos de 1969), de Ursula K. Le Guin. Carr teria abordado Gibson, pedindo um romance, e o autor se aplicou, em pânico diante de um passo que nunca dera antes em sua carreira, à escrita de Neuromancer.37 O resultado foi que, em 1985, esse romance recebeu os prêmios Hugo, Nebula e Philip K. Dick (este voltado para livros publicados como paperback originals, como foi o caso com quase toda a obra de Dick), e foi por muito tempo o mais premiado romance de estréia da história da ficção científica.38 Ao longo dos anos, firmou-se como um monumento da FC e da assim-chamada “cultura cyberpunk”, “cultura eletrônica” ou “cibercultura”, tornando-se um dos livros de FC mais estudados no mundo. Csicsery- Ronay, Jr. o chamou de “um dos livros mais interessantes da era pós-moderna”,39 e a 36 Idem, ibid. P. 26: “Enquanto esperava, eu me imaginei na América de Dialta Dawnes [a autora que encomendou o trabalho fotográfico de Parker]. Quando isolei uns poucos prédios industriais no visor da [câmera] Hasselblad, eles assumiram uma espécie de sinistra dignidade totalitária, como os estádios que Albert Speer construiu para Hitler.” Para uma discussão das ansiedades autoritárias na FC brasileira da mesma época, veja o meu Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950 (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003), “Capítulo II: Romance Científico” (pp. 123-211). 37 McCaffery, Larry. “An Interview with William Gibson”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction. P. 268. 38 Rivalizado apenas muito recentemente pelo romance pós-cyberpunk de Paolo Bacigalupi, The Windup Girl (2009), que ganhou os prêmios Hugo, Nebula, Locus, John W. Campbell Memorial e Compton Crook. 39 Csicsery-Ronay, Jr., Istvan. “Cyberunk and Neuromanticism”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction, Larry McCaffery, ed. P. 185. 232 revista Time o incluiu numa lista dos 100 melhores romances de língua inglesa, lançados desde 1926. Sua fama reside, antes de tudo, em ter antecipado ou exposto um novo momento da cultura global, num conjunto que pareceu “medir o pulso do momento”, nas palavras do acadêmico canadense Peter Fitting (um americano expatriado como o próprio Gibson).40 O romance narra a formação de uma força-tarefa mercenária de meia-dúzia de indivíduos colhidos de diversas partes do mundo, para obter os meios de invadir a residência orbital de uma família de magnatas da multinacional Tessier-Ashpool AS. O grupo é comandado por Armitage, um ex-militar de atitudes robóticas, mas seu membro mais ativo é Molly Millions, cujas próteses oculares e digitais, além das neurais, a tornam uma arma humana. O ponto de vista narrativo, porém, nunca foge de Case, um cowboy ou hacker especialista em penetrações de núcleos de dados fortificados no “ciberespaço”. Mesmo alguns recursos inventivos, como o chip implantado em Molly, que faz Case sentir/enxergar pelos sentidos dela, permitem a alternância de situações sem se afastar desse ponto de vista. Um dos membros mais curiosos do bando, porém, é McCoy “Dixie Flatline” Pauley, um hacker que foi morto por uma inteligência artificial na filial do Rio de Janeiro da Tessier-Ashpool, mas que havia salvado a sua mente em formato digital; depois de morto, ela continua operante, em associação com Case.41 Outra figura particularmente grotesca é o artista sadomasoquista Peter Riviera, cujos implantes conseguem projetar objetos e cenas holográficas, obedecendo à sua vontade “criativa”. Case também é recrutado de forma “criativa”. Depois de tentar passar a perna num empregador, foi castigado com um dano cerebral permanente, que o impedia de plugar sua consciência ao ciberespaço. Armitage oferece a restituição dos seus poderes de hacker — e com um novo fígado de brinde, já que o original estava para arriar devido ao abuso de drogas e álcool. Ele só vem a saber que esse fígado o impede de sentir o efeito das drogas, depois do órgão já instalado. Seus novos patrões parecem trabalhar assim, alternando afagos e pancadas no seu ego autodestrutivo, com um saco de venenos instalado em seu corpo — lentamente degradado por enzimas — como medida derradeira de garantir sua lealdade. Antes de partir, Case sente que tem que resolver sua 40 Informação pessoal, 2005, ano em que Fitting deu um curso panorâmico de pós-graduação na FFLCH/USP. 41 Dixie Flatline é trocadilho com “Dixie Line”, a linha imaginária que separa o Norte do Sul dos EUA; Gibson nasceu na Carolina do Sul. 233 situação com um caso antigo, a prostituta Linda Lee, mas forças obscuras resolvem a questão para ele, num enorme ginásio em que espadachins lutam até a morte. Entrevistando Gibson, Larry McCaffery nota o quanto o enredo é tradicional: “o gangster no fim da linha que foi massacrado e quer se vingar com um grande golpe.” Gibson respondeu que “um bocado do que entrou em Neuromancer foi resultado do desespero”, e que ele “sabia que era inexperiente e que precisaria de um enredo tradicional como armadura que tivesse provado o seu potencial de poder narrativo”.42 O romance começa em Chiba City, caótico centro urbano no Japão, vai para Istambul, depois a Paris (onde uma nova droga enfim consegue deixar Case chapado), e termina em órbita. No caminho, descobre-se que o grupo reunido por Armitage tem como mandante uma inteligência artificial, Wintermute, patenteada pela TessierAshpool e disposta a dar sua própria declaração de independência. Parte do plano envolve obter um vírus militar chinês capaz de penetrar o “firewall” de uma inteligência artificial. No ínterim, Case descobre a identidade secreta de Armitage, desenvolve uma tipo de “relacionamento” com Molly, e escapa da morte um punhado de vezes — enquanto antecipa a desintegração da bolsa que retém os venenos dentro do seu corpo. Case possui poucas qualidades de protagonista. Diferentemente da maioria dos heróis da FC, ele não tem uma visão de mundo a defender, nem é capaz de auto-análise; na maior parte do tempo, vai no embalo dos outros. As questões filosóficas em redor — a natureza e o destino da inteligência artificial — escapam-lhe. Seu interesse é venal ou voltado à própria sobrevivência. A lembrança do seu envolvimento com Linda Lee é emocionalmente nebulosa. Às vezes algo se agita dentro dele — o ódio como motivador de uma possível transformação, mas isso oscila, parece escapar por entre os dedos durante a correria, e Case repete que havia perdido o seu ódio — ou é lembrado por outros, como Wintermute, de que deveria encontrá-lo. Case é como um Gulliver Foyle — herói do clássico de Alfred Bester, Tigre! Tigre! (Tiger, Tiger; 1956),43 um sujeito abandonado para morrer em uma nave espacial acidentada, que se revolta e, motivado pela vingança contra a empresa que o abandonou, sobrevive e retorna transformado —, mas uma versão cujo ódio transformador não consegue furar a barreira da ausência de propósitos, de valores, ou da mente obnubilada pelas drogas ou pela “alucinação consensual do ciberespaço”. “Consensual” nos dois 42 McCaffery, Larry. “An Interview with William Gibson”. Pp. 270-71. Também conhecido como Estrelas, o Meu Destino (Stars, my Destination). Gibson admite a influência de Bester sobre o seu trabalho. Larry McCaffery. “An Interview with William Gibson”. P. 276. Reproduzida em http://project.cyberpunk.ru/idb/gibson_interview.html 43 234 sentidos: o do firmado por uma coletividade, e o de com consentimento — o mergulho voluntário numa outra realidade que não a da “carne”, não a dos sentidos. Isso nos faz lembrar que a “virtualidade” de que falamos hoje está longe do contato direto mentemáquina proposto por Gibson — é uma atribuição, uma metáfora tomada ao pé da letra. O protagonista de baixa volição já é um staple da ficção pós-modernista, introduzido na FC pela New Wave. A New Wave também apresentou a cultura das drogas à FC, e a idéia do espaço interior, do qual o ciberespaço acessado pela mente diretamente “plugada” em uma interface cibernética deve ser descendente direto. Molly parece ter qualidades mais próximas das de um protagonista, mas elas compõem mais uma atitude, uma performance (como ela mesma admite) e não um posicionamento perante a vida ou os fatos que é obrigada a encarar. Tendo vendido o seu corpo — a mente desligada por um chip especial, em outra evocação de uma separação mente/corpo — para pagar pelas operações que a transformaram em arma humana, é usada pelo cafetão em situações sexuais hardcore e violentas. Essas situações são recordadas pelo sádico Riviera, e Molly promete vingar-se, demonstrando ter algum trauma psicológico e alguma dimensão interior, mas que são pouco explorados. Em entrevista a Larry McCaffery,44 Gibson aponta a influência do autor mainstream Robert Stone em Neuromancer, provavelmente com o romance Dog Soldiers (1974), premiado com o National Book Award e que tem como pano de fundo a guerra do Vietnã. Stone apresenta um grupo de personagens — dois homens e uma mulher — tentando tirar o máximo da venda de uma carga de heroína, e se estropiando pelo caminho. Lança uma luz sombria sobre a contracultura americana, e foi adaptado para o cinema como Who’ll Stop the Rain (1978). Gibson destaca a característica “paranóica” dos romances de Stone (que incluem outro premiado, A Flag for Sunrise, de 1981), mas certamente também emprestou algo da paranóia presente na obra de Philip K. Dick, e de autores de hard boiled como Dashiell Hammett e Raymond Chandler. A “mansão” orbital dos Ashpools sugere uma versão exagerada do grotesco e do monstruoso às vezes atribuído aos ricos em romances de Chandler como O Sono Eterno (The Big Sleep; 1939). Falta, obviamente, a figura do detetive solitário e inabalável, disposto a ir até o fim na resolução de um caso. Citando Erin A. Smith, em Hard-Boiled: Working-Class Readers and Pulp Magazines (2000), “a ficção pulp [...] era menos a respeito de crimes e do processo de detecção, do acerca 44 Idem, ibid. P. 264. Reproduzida em http://project.cyberpunk.ru/idb/gibson_interview.html. 235 da luta do detetive particular hard-boiled por autonomia no trabalho [e] sua habilidade em ler classe e posição social a partir de detalhe de vestimenta e decoração”. 45 Daí a obsessão pela “superespecificidade”,46 nas palavras de Gibson, e pelo mundo das aparências sociais, levado em Neuromancer a uma outra dimensão: a do mundo das aparências virtuais. No hard-boiled, um impulso utópico se apresenta na sobrevivência, na figura do detetive, do ethos do artesão (o homem que sustenta sua própria ética de trabalho) num mundo de padronizações e de acomodações sociais. O ADN pulp, por outro lado, aparece também na evocação pop, mesmo que irônica, da cultura japonesa em Mollly Millions e em outras instâncias que remetem a uma estética de história em quadrinhos,47 talvez mais especificamente, das HQs japonesas — ou mangas. Neste caso, a evocação é ainda mais significativa, considerando como o manga possui um caráter mais adulto que os comics americanos, como Paul Gravett ressalta em Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadrinhos (Manga: Sixty Years of Japanese Comics; 2004). “Boa parte da vida de um japonês em casa, na escola e no trabalho é governada por rígidas noções de respeito e hierarquia”, escreveu. “A atividade solitária de ler um mangá permite a ele [...] experimentar, ainda que de modo indireto, os reinos mais liberais da mente e dos sentidos.”48 Ao mesmo tempo, quando comparados “a europeus e americanos, os japoneses geralmente reagem de forma muito mais natural à representação do sexo e das funções corporais”.49 Tais apropriações pop em uma obra de estilo autoconsciente também são características do pós-modernismo na literatura.50 45 Smith, Erin A. Hard-Boiled: Working-Class Readers and Pulp Magazines. Filadélfia: Temple University Press, 2000, p. 17. 46 McCaffery, Larry. “An Interview with William Gibson”. P. 269. 47 A raiz pulp do quadrinho de super-herói é muito bem estabelecida por Gerard Jones, em Homens do Amanhã: Geeks, Gângsteres e o Nascimento dos Gibis (Men of Tomorrow). São Paulo: Conrad Editora, 2006 [2004]. Tradução de Guilherme da Silva Braga & Beth Vieira. A criação do personagem SuperHomem, de Jerry Siegel & Joe Shuster, é tomada como estudo de caso. 48 Paul Gravett. Mangá: Como o Japão Reinventou os Quadrinhos (Manga: Sixty Years of Japanese Comics). São Paulo: Conrad Editora, 2006 [2004], p. 17. 49 Idem. Gravett também nota a influência do quadrinho americano no Japão, país ao qual chegou durante a ocupação, a partir de 1945 (p. 16). É possível se argumentar que, mesmo hoje, o campo todo do manga representa um equivalente ao que foi o campo das revistas pulp nos EUA na década de 1930, inclusive com a sobrevivência de gêneros que no Ocidente foram reabsorvidos pelo mainstream, como as histórias de esporte ou a love story (shojo, no manga), ao lado daqueles mais reconhecíveis como a FC e a fantasia, com desenvolvimentos locais próprios, como as histórias de samurai no lugar do western, e histórias da máfia japonesad (Yakuza) como variante da ficção de crime tradicional. 50 Veja Paula Geyh, Fred G. Lebron & Andrew Levy. “III Popular Culture and High Culture Collide”. In Postmodern American Fiction: A Norton Anthology, Paula Geyh, Fred G. Lebron & Andrew Levy, eds. Nova York: W. W. Norton & Company, 1998, pp. 193-94. “[P]oucas mudanças estéticas marcam mais completamente a passagem do modernismo ao pós-modernismo do que a noção de que a cultura ‘séria’ não se define contra (e acima) a cultura popular, mas como parte de uma única cultura multíplice onde o 236 O crítico francês Thomas Michaud, no ensaio “Science Fiction and Politics: Cyberpunk Science Fiction as Political Philosophy” (2009), tenta associar o ciberespaço e a cibercultura ao Oeste Selvagem, numa chave heróica: “A comparação entre a fronteira do ciberespaço e o Oeste Americano é freqüentemente apresentada no discurso ideológico da era informacional, e Gibson é um dos pais fundadores dessa mitologia. Case é freqüentemente comparado a um cowboy [...] e o ciberespaço ao Oeste Americano.” 51 Mas querer encontrar em Case um herói anarquista e libertário, como Michaud faz, é problemático. Que o cyberpunk tenta equilibrar a atmosfera distópica do seu mundo futuro com o impulso utópico anarquista e libertário parece coerente, mas Michaud afirma que “Case também é um anarquista. Ele joga com a rede de realidade virtual e desafia as inteligências que vivem nos ambientes virtuais. Sua busca é metafísica, e ele busca conectar duas inteligências artificiais, gerando uma entidade cósmica.” 52 Que ele faça tudo isso com uma metafórica “espingarda nas costas”, e desconhecendo as implicações metafísicas da sua missão, não é mencionado por Michaud. E que o crítico francês enxergue assim deve ser projeção daquela tendência tão americana de admirar o criminoso como o sujeito que contorna o sistema limitador, tornando-se um agente, pela competição, do avanço da sociedade. Não há muito de impulso utópico em Neuromancer, por mais que se queira associar a obra fundamental do cyberpunk com essa face do movimento. Ao contrário, impera o distópico, e o próprio Gibson afirmou que criara um futuro tão aterrador, que imaginava (erroneamente) que o romance seria pouco lido, rejeitado pela maioria dos leitores. A afirmativa de que “Case [representa] uma filosofia herdada de Henry David Thoreau [1817-1862], provendo desobediência civil em nome da circulação livre de informações”,53 é um exagero. Gibson é distópico, e essa dimensão intrínseca do romance é um dos aspectos que o tornam importante. Além de mostrar aos leitores o ciberespaço, Gibson criou um mundo distópico consistente e uma construção literária que capturam parte do que críticos e teóricos enxergam como sendo a experiência humana no mundo pós-moderno. Somos ‘sério’ troca a maior parte (se não todos) dos seus privilégios modernistas pelas possibilidades artísticas inerentes nas combinações inovadoras de gêneros e formas.” (P. 193.) 51 Michaud, Thomas. “Science Fiction and Politics: Cyberpunk Science Fiction as Political Philosophy”. In New Boundaries in Political Science Fiction, Donald M. Hassler & Clide Wilcox, eds. Columbia, SC: University of South Carolina Press, 2009, p. 66. 52 Idem, ibid. P. 75. 53 Idem, ibid. P. 65. 237 todos dados no fluxo, parte do matrix, engrenagens no moto-contínuo de um processo de inovação tecnológica que parece se afastar cada vez mais das antigas coordenadas de identidade individual e coletiva. Nesse contexto, há pouco espaço para as vontades individuais, e as identidades construídas pelos indivíduos, no fluxo supostamente desenraizado de identidades que caracteriza o pós-moderno, não parecem ser particularmente libertadoras. De fato, é possível entender que, na sua construção de um futuro dominado pela computação e pela “virtualidade” eletrônica e holográfica, Gibson preenche a noosfera — a esfera das relações tomadas a partir do pensamento humano, sobrepondo-se à biosfera como o conjunto de nossas relações com o meio ambiente e as outras formas de vida — com essa nova esfera de interação mediada pela eletrônica, estendendo-a para dentro do corpo humano, para o seu cérebro, suas relações econômicas e até mesmo sua espiritualidade. Essa insidiosidade da “infosfera”, se podemos chamá-la assim, refletese na vida dos personagens como paranóia constante. Sempre parece haver alguém que sabe algo de você, e esse alguém está disposto a usar esses dados para dirigi-lo numa ou outra direção. * Um dos primeiros romances cyberpunk, Software (1982), de Rudy Rucker, ganhou a primeira edição do Prêmio Philip K. Dick, para melhor romance publicado como original paperback. Nascido em 1946, Rucker é um matemático especializado em matemática transfinita e geometria multidimensional, tataraneto do filósofo idealista alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831). Este que é o primeiro romance da “seqüência Ware” — como chama The Encyclopedia of Science Fiction os romances Software, Wetware (1988), Freeware (1997) e Realware (2000) — evidencia seu humor e a influência de William Burroughs e do pensamento darwinista social, aplicado satiricamente conta a herança da contracultura americana e os movimentos de direitos civis estendidos desmioladamente por cientistas corporativos e militantes de atitude adolescente a robôs e inteligências artificiais com o potencial de destruir a totalidade da vida na Terra. Em contraponto, John Shirley oferece a sua trilogia A Song Called Youth, iniciada com Eclipse (1985), que apresenta toda uma outra paleta de recursos literários, em comparação com as obras de Gibson e Rucker, constituindo-se numa ficção política sobre a ressurgência de uma extrema direita fascista na Europa, amparada pela indústria de contractors militares americanos, enquanto os próprios 238 EUA mergulham num fundamentalismo cristão supremacista branco, propelido por idéias de “conflito entre culturas de raízes fundamentalmente diferentes”54 — ou o choque de civilizações. A “atitude punk” e a sexualidade são componentes explícitos, com a sombra de William Burroughs também presente. O livro foi seguido de Eclipse Penumbra (1988) e Eclipse Corona (1990), e neles a menção a implantes e à cultura digital, sob forma de ciberespaço ou não, é mínima — embora a programação de identidade e a recuperação da memória humana sejam importantes para a trama, mas por meio de recursos químicos. De fato, Shirley parece oferecer uma interpretação da noosfera ou infosfera de Gibson, em torno do que o próprio Shirley chamou de “Grid”: “a maioria das pessoas não vê a Grid. Isto é, não a vê pelo que é quando a vêem. Não são capazes de se afastar dela.”55 A Grid seria um sistema de três fases: a primeira, percepções e estilos de vida codificados e oferecidos como tais; a segunda, todas as transmissões eletrônicas e a mídia em geral; e finalmente, “os receptores, o público. Mais especificamente, os cérebros do público e seus órgãos sensórias prostéticos. O inconsciente coletivo ampliado eletronicamente.”56 Embora sua extrapolação política se fundasse na ascensão de Reagan nos Estados Unidos, e de Le Pen na França, ela parece cada vez mais presciente no mundo do Tea Party, da guerra contra o terror, e das crises econômicas globais fazendo recrudescer novas ondas de extremismo xenofóbico na Europa. Uma das preocupações centrais do cyberpunk — a captura do momento pivotal de uma transformação social ou tecnológica, uma mudança radical de paradigma dentro da civilização ocidental, ou aquilo que Fredric Jameson chamou de “instante QuandoTudo-Mudou” (citando William Gibson em Mona Lisa Overdrive; 1988), porque “o pós-moderno procura rupturas, ventos ao invés de novos mundos, pelo instante que assinala que, depois dele, ele não é mais o mesmo”.57 Esse instante pode ser tecnológico, político ou cultural. Deserted Cities of the Heart (1988), de Lewis Shiner, não é ambientado no futuro ou em estações orbitais, não tem realidade virtual, implantes, robôs ou ciborgues, mas busca no discurso místico o instante Quando-TudoMudou, amparado pela cultura das drogas: um roqueiro sem eira nem beira consome cogumelos que o fazem viajar no tempo, onde ele é educado por xamãs astecas quanto 54 Shirley, John. Eclipse. Nova York: Questar, 1987 [1985], p. 85. Shirley, John. Eclipse Penumbra. Nova York: Questar, 1988, p. 83. 56 Idem, ibid. P. 85. 57 Jameson, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1992 [1991], p. ix. 55 239 às transformações físicas e metafísicas que o planeta enfrentará no futuro próximo.58 Num impulso contrário, Synners (1991), de Pat Cadigan, funciona como conto cautelar contra o fetiche da transformação humana via inovação tecnológica, quando implantes capazes de imergir as pessoas no ciberespaço formam a porta de entrada de um fatal vírus de computador que provoca AVCs massivos nos usuários. Um grupo de artistas de vídeo e de softwares, reunido por uma inteligência artificial clandestina, luta para deter o processo. O romance anterior de Cadigan, Mindplayers (1987), narra a trajetória de uma garota envolvida com drogas indutoras de estados alterados de consciência, que, uma vez descobertas pelas autoridades como tendo um talento para penetrar na mente de outros via interfaces digitais, é forçada pela justiça a trabalhar nessa área, culminando em uma investida para recuperar memórias de um artista morto. A protagonista é outro exemplo do sujeito de baixa volição, apelidada de Allie “Deadpan”,59 um adjetivo que a autora usa em excesso, como se as ações da personagem não bastassem por si mesmas, para caracterizar a sua imaturidade emocional e falta de objetivos.60 Deserted Cities of the Heart nos diz que nem toda obra cyberpunk tem a ver com o ambiente das grandes metrópoles. O mesmo se dá com a série Shaper/Mechanist, de Bruce Sterling, iniciada em 1982 com histórias publicadas em revistas, 61 mas incluindo o romance Schismatrix (1985). A série se passa em diversos habitats espalhados pelo Sistema Solar, e a Terra aparece somente nos estertores do romance, visitada apenas para uma despedida simbólica, já que a humanidade, conforme descrita na série, afastase do seu berço físico mas também biológico. Chamado de “pós-darwinista” por Tom Maddox,62 Sterling imagina um futuro em que a espécie humana se divide em duas tendências transformativas: a manipulação genética dos Shapers, e a fusão com sistemas cibernéticos dos Mechanists. O destino dos dois ramos é o afastamento da condição 58 O enredo é de realismo mágico, mas Bruce Sterling inclui esse romance na sua lista fundamental do cyberpunk. 59 “Inexpressivo”, “cara-de-pau”. 60 Esse personagem típico cyberpunk, hacker gênio em computação mas com graves dificuldades para se situar no mundo social e/ou familiar é chamado por Damien Broderick em Reading by Starlight: Postmodern Science Fiction (Londres & Nova York: Routledge, 1995) de “idiot-savant” (p. 80). 61 São elas: “Swarm”, primeiro publicada em The Magazine of Fantasy and Science Fiction de abril de 1982; “Spider Rose”, idem, edição de agosto de 1982; “Cicada Queen”, na antologia Universe 13 (1983), editada por Terry Carr; “Sunken Gardens”, na revista Omni de junho de 1984; e “Twenty Evocations”, na revista inglesa Interzone da primavera de 1984, primeiro publicada como “Life in the Shaper/Mechanist Era: Twenty Evocations”. 62 Maddox, Tom. “The Wars of the Coin’s Two Halves: Bruce Sterling’s Mechanist/Shaper Narratives”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodernist Fiction, Larry McCaffery, ed. P. 324. 240 humana rumo ao pós-humano, e o conflito entre eles é descrito com o tom paródico das intrigas imperiais/revolucionárias do século XIX e início do XX, com a evocação de um ethos boêmio. A série também dramatiza essas transformações da base biológica do ser humano como extensões de sua capacidade para lidar com um fluxo crescente de dados — embora discussões da herança inconsciente estejam conspicuamente ausentes. Contando ainda com um contato com seres alienígenas presentes no Sistema Solar para firmar acordos comerciais, a série trai a influência de Alfred Bester em obras como Tigre! Tigre! e das vistas panorâmicas da evolução, na obra de Olaf Stapleton. Por sua vez, Tom Maddox busca algo de Gibson e de Sterling em Halo (1991), primariamente ambientado em uma estação orbital, onde uma inteligência artificial articula a formação de um grupo de pessoas por meio das quais ela irá ampliar suas capacidades para além do planejado pela megacorporação que a criou. Num estilo elegante e quase delicado, segue um movimento contrário ao da série Shaper/Mechanist no sentido de que é a máquina que busca construir extensões por meio da fusão com o humano. Para os cyberpunks, as intersecções da teoria da informação com a biologia e neurobiologia é outro ponto de interesse. Greg Bear — incluído na antologia cyberpunk Reflexos do Futuro, mas que nunca aceitou o rótulo de cyberpunk, preferindo o de autor de FC hard — foi pioneiro nessa aplicação, com a história premiada “Blood Music”, de 1983, e o romance homônimo publicado em 1985, no qual um cientista aloprado, caracterizado como um geek de temperamento adolescente, contrabandeia do megalaboratório em que trabalha um experimento que mudará o mundo para sempre, alterando também a condição humana. O romance se baseia na idéia de que microcomputadores poderiam ser criados a partir dos linfócitos no corpo humano. Ativados dentro de uma função computacional complexa, combinações desses microcomputadores ganham autonomia, entram em rede, tornam-se conscientes, começam a erigir civilizações e, finalmente, a se espalhar como um vírus por toda a humanidade. Sterling, nos editoriais de Cheap Truth, tinha esse romance como um favorito para os principais prêmios da FC daquele ano,63 e ele e John Shirley escreveram uma narrativa semelhante, “The Unfolding” (1985), em que um fenômeno equivalente engloba todos os seres dotados de ADN, fundidos em uma única entidade. 63 “Vincent Omniaveritas” (Bruce Sterling). “This Year’s Model”. Cheap Truth N.º 12, disponível em http://www.csdl.tamu.edu/~erich/cheaptruth/cheaptru.12 Sterling chama Greg Bear de “o único escritor ‘cyberpunk’ que não demonstra qualquer traço de atitudes punk”. 241 Embutido nessas explorações literárias há o argumento metafísico da transcendência da condição humana, algo que aparece inclusive no desprezo dos hackers pela “carne” (meat) e a adoção do ciberespaço como extensão da consciência em Neuromancer e outros livros da Trilogia do Sprawl, de Gibson.64 Sobre o ciberespaço, Fredric Jameson escreveu: “é de fato um enclave de um novo tipo, uma subjetividade que é objetiva [...]”65 — uma sobreposição que soa bastante próxima da New Wave. Para Brian Stableford, após o questionamento do futuro mítico da Era Espacial, o cyberpunk recicla, no conceito do ciberespaço “uma nova fronteira final” selvagem, “na qual nerds podem se tornar cowboys com superpoderes e inteligências artificiais podem fornecer panteões sob medida”,66 preservando a tendência dominante da FC americana de retrabalhar seu passado mítico da fronteira e do Oeste Selvagem em futuros míticos igualmente deterministas e expansionistas. Talvez esteja uma razão dos escritores tupinipunks pouco terem tratado do ciberespaço — por não partilharem da mesma articulação entre passado e futuro míticos. Jameson elogia o globalismo explorado intensamente nas histórias de Bruce Sterling, chamadas por ele de “artefatos autênticos da pós-modernidade e pequenas obras-primas”,67 no modo como revelam uma “vocação literária mais historicamente original de um mapeamento do novo Imaginário geopolítico”.68 Curiosamente, um de seus romances mais interessantes, Tempo Fechado (Heavy Weather; 1994), volta os olhos para a terra natal de Sterling, o Texas, e expande o território físico do cyberpunk para a zona rural do Sudoeste americano, numa obra que antecipa as mudanças climáticas e o agravamento do clima causadas pelo aquecimento global, a ponto da crise ambiental caracterizar o zeitgeist. Ao mesmo tempo, ele o considera o seu “livro mais cyberpunk”,69 pela galeria de personagens idiossincráticos que formam um grupo de 64 Count Zero (1986) e Mona Lisa Overdrive (1987). Jameson, Fredric. Archaelogies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. Londres & Nova York: Verso, 2007 [2005], p.21. 66 Stableford, Brian. “Narrative Strategies in Science Fiction”. In Reading Science Fiction, James Gunn, Marleen S. Barr & Matthew Candelaria, eds. Basingstoke: Palgrave Mcmillan, 2009, p. 41. 67 Jameson, Fredric. Archaelogies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. P. 384. 68 Idem, ibid. P. 385. 69 Bruce Sterling, informação pessoal comunicada em São Paulo, novembro de 2010. Em 2010, Bruce Sterling veio ao Brasil a convite da Vivo, operadora de telefonia celular, como convidado junto ao Festival Arte.Mov, que aconteceu em várias capitais brasileiras em novembro de 2010. Veio com a esposa, a cineasta, jornalista e escritora sérvia Jasmina Tesanovic, autora de Uma Guerra que Fosse sua: Diário de uma Escritora Sérvia (A War of my Own) e Nefertiti Was Here. Sterling falou no Arte.Mov em Belo Horizonte e São Paulo, onde deu palestra, oficina de design e sessão de autógrafos. Ele já estivera no Brasil em outubro de 1997, quando foi o Convidado Internacional da V InteriorCon — a Convenção de Ficção Científica do Interior de São Paulo. 65 242 “caçadores de tornados” em busca de um fenômeno novo, um furacão F-6, de intensidade nunca registrada — símbolo de um novo estágio do agravamento climático, e novo instante Quando-Tudo-Mudou. Para Fredric Jameson, o cyberpunk é “tanto uma expressão das realidades corporativas transnacionais quanto da própria paranóia global”,70 característico de um estágio histórico marcado pelas “novas abstrações do computador e da globalização e capital financeiro da era Reagan-Thatcher em diante”.71 Por sua vez, o tupinipunk enxergaria esse contexto pelo ponto de vista de um país de Terceiro Mundo, com outra tradição literária e estratégias próprias de representação, com aproximações entre as duas formas. Ken Gelder faz a seguinte observação a respeito do posicionamento político dos cyberpunks: O cyberpunk é em geral visto como um gênero distópico, de futuro próximo, antihumanista e “pós-moderno”. Se os seus heróis e heroínas fossem mais revolucionários [...] ele até poderia ser considerado libertariano. Seus porta-vozes, por outro lado, são liberais radicais. O mais enérgico, ubíquo e declaratório é Bruce Sterling [...].72 Não obstante, a relação entre o cyberpunk e o libertarianismo se estabelece senão pela postura dos seus porta-vozes, como Gelder expressou, então pela destilação das atitudes dos seus personagens e da forma como os escritos e posturas do subgênero foram absorvidos pela emergente “cibercultura” — especialmente nos Estados Unidos. Como isso faz parte da problemática em torno do subgênero, é interessante mencionar o livro de Paulina Borsook, Cyberselfish: A Critical Romp Through the Terribly Libertarian Culture of High Tech (2000), título que já diz muito, mas vale citar um trecho representativo: Há uma teoria de estudos culturais, da qual eu ridicularizo de modo apenas semisério, que esposa a noção de que esta geração de tecnólogos, particularmente os seguidores dos campos cypherpunks e os cyberpunks, leu demais Ayn Rand e [o escritor de FC] Robert A. Heinlein [...]. Ayn Rand e Heinlein são autores que em seus próprios trabalhos celebram a competência masculina e desafiam noções convencionais do apego afetivo. Eles escrevem livros que são pura ração “Sonhos do Guerreiro”. [..] Algo similar a esta corrente do hyper-boy/cavaleiro solitário atua com toda a imagética de fronteira que é jogada quando os táticos e retóricos do ciberespaço se 70 Jameson, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham, NC: Duke University Press. 1992 [1991], p. 38. 71 Jameson, Fredric. Archaelogies of the Future:The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. P. 93. 72 Gelder, Ken. Popular Fition: The Logics and Practices of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 73. 243 juntam. O Oste Selvagem carrega com ele o Romantismo dos Grandes Espaços Abertos. Todo mundo ama um cowboy, e muitos querem ser um. Quem quer resistir à promessa de liberdade e aventura? [...]73 Também é interessante recorrer a Chris Hedges — autor de War Is a Force that Gives us Meaning (2002), American Fascists: The Christian Right and the War on America (2007), I Don’t Believe in Atheists (2008) e The World As it Is: Dispatches on the Myth of Human Progress (2010), entre outros —, a partir de uma postura francamente anti-utópica (de ser contrários à idéia da utopia), acredita que, na atual disputa ciência x religião, as duas correntes representam o mesmo fenômeno, constituindo uma “batalha entre dois grupos intoxicados com a crença utópica e mágica de que a humanidade pode dominar seu destino”,74 crença que levaria à auto-ilusão e nos encorajaria a ignorar a realidade. “É só pela construção de uma ética baseada na realidade, uma que leve em conta os perigos e os limites da situação humana, que podemos começar a ajustar nosso comportamento para lidar com problemas sociais ambientais e políticos”,75 adverte, e sentencia que a “crença de que disciplinas racionais e quantificáveis como a ciência podem ser usadas para aperfeiçoar a sociedade humana não é menos absurda do que uma crença em mágica, anjos e intervenção divina”.76 Hedges estende a comparação, afirmando que os fundamentalistas religiosos “acreditam que conhecem e podem realizar a vontade de Deus, [desconsiderando] suas severas limitações humanas”, enquanto os “utopistas seculares do século vinte também esqueceram que eram humanos. Esses dois grupos vendem absolutos. Aqueles que não vêem o que eles vêem, falam o que eles falam e agem como eles agem prestam-se apenas para a conversão ou a erradicação.”77 O problema estaria na recusa em se admitir as limitações humanas, presente tanto no fundamentalismo religioso quanto na idealização da ciência, da tecnologia e da racionalidade. O impulso utópico presente no discurso cyberpunk da transformação humana pela apropriação da ciência pelas ruas, na realidade customizada do ciberespaço, e no 73 Borsook, Paulina. Cyberselfish: A Critical Romp Through the Terribly Libertarian Culture of HighTech. Nova York: PublicAffairs, 2000, pp. 245-46. Ayn Rand (1905-1982) e Robert A. Heinlein (19071988) dramatizaram idéias libertarianas em sua ficção, e são referência para o movimento libertariano nos EUA. 74 Hedges, Chris. I Don’t Believe in Atheists. Nova York: Free Press, 2008, p. 10. 75 Idem, ibid. P. 11. 76 Idem, ibid. P. 13. 77 Idem, ibid. P. 14. 244 “romance do capital financeiro”,78 faria parte dessa síndrome originária, segundo Hedges, do Iluminismo. Silicone XXI: Entre Blade Runner e a Utopia Antropofágica Escrito por Alfredo Sirkis (Alfredo Hélio Syrkis),79 este é o primeiro romance tupinipunk que consegui localizar. Exemplifica vários traços recorrentes que apareceriam em outros textos: foco em mídia analógica e não digital, sincretismo cultural e religioso, conspirações internacionais, e sexualidade. Silicone XXI é um romance ágil, com capa e ilustrações internas pelo artista franco-brasileiro de quadrinhos Al Voss (1946-2011), conhecido por sua colaboração com as revistas Métal Hurlant/Heavy Metal.80 Ambientado em 2019, a narrativa, quando não é abertamente cômica, é de burlesco baixo, no seu tratamento de assuntos sérios, com leveza: um matador em série vem assassinando homossexuais com uma pistola laser privativa das forças armadas. Isso leva à investigação de uma operação secreta para exportar materiais nucleares a organizações terroristas no exterior e mais tarde, a uma conspiração para envenenar a água potável do Rio de Janeiro, com material radioativo. Os protagonistas são o Inspetor Zé Balduíno, um policial negro e divorciado de 52 anos, e Lili “Brag” Braga, uma repórter televisiva de 25 anos, loura e sexualmente liberada, implacável na busca de notícias — uma espécie de antecessora da personagem Marcelina Hoffman no romance de Ian McDonald, Brasyl (2007), que seria chamado de tupinipunk pelo crítico Gary K. Wolfe, da revista Locus.81 O vilão é Estrôncio Luz,82 78 Jameson, Fredric. Archaelogies of the Future:The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. P. 21. 79 Em 1985, o ano em que o governo militar cedeu à democracia, o jornalista Sirkis era um exguerrilheiro que escreveu dois relatos dos seus anos de resistência armada e exílio, Roleta Chilena (1981) e o premiado Os Carbonários (1981). Os Carbonários recebeu o Prêmio Jabuti 1981. De volta do exílio, ele se tornou um ativista anti-nuclear e um importante dirigente do Partido Verde brasileiro. Foi o candidato verde à Presidência em 1998 esteve envolvido ativamente na campanha presidencial de Marina Silva em 2010, tendo escrito o livro O Efeito Marina: Bastidores da Campanha que Mudou o Rumo das Eleições (Nova Fronteira; 2011). É atualmente deputado federal pelo PV. 80 Voss produziu uma capa diferente (mas mantendo as ilustrações internas) para uma edição capa-dura de Silicone XXI pelo Círculo do Livro, em 1988. Cada uma das cinco partes das duas edições apresentam três desenhos em preto e branco de Voss, em estilo de quadrinhos mas sem letreramento. Alguns estão disponíveis em http://www2.sirkis.com.br/noticia.kmf?noticia=8402380&canal=258&total=66&indice=0 81 Wolfe, Gary K. “Locus Looks at Books: Gary K. Wolfe”. Locus—The Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field Vol. 58, No. 4 (fevereiro de 2007): 15-17. 82 A maioria dos personagens tem nomes cômicos, pretensiosos ou de classe baixa — o herói inclusive—, tais como Próton Nogueira (outra referência à energia nuclear), Pepe Moscoso, Baby Morgado, Tatau Padilha, Enéias Aquiles, etc. Essa prática enfatiza a abordagem de paródia. 245 um ex-militar quarentão transformado em serial killer determinado a destruir o mundo. “Estrôncio” é referência ao estrôncio-90, um elemento radioativo, e Sirkis baseou esse personagem no General Newton Cruz, conhecido linha-dura dos tempos da ditadura.83 Sirkis satiriza a atitude de machismo estereotipado militar, ao dar ao vilão tendências homossexuais reprimidas (que ele tenta abafar matando outros homossexuais) e um enorme pênis de silicone. Em Silicone XXI, a media landscape,84 tão importante para o cyberpunk, é basicamente a televisão, em razão de seu papel chave durante a ditadura militar, em consolidar um único continuum cultural para o Brasil, apesar de toda a sua variedade cultural interna. Embora o texto mencione computadores, balões dirigíveis, carros elétricos e a álcool, robôs pessoais e sexuais, juntamente com bases lunares sinojaponesas, tais referencias aparecem mais como pano de fundo. O uso de drogas e o jogo estão descriminalizados, e os militares se reconciliaram o governo civil (SocialDemocrata e Verde). O Brasil é um país pacífico, sua base energética é solar, e o crime organizado é mais romântico do que aquele promovido pelos atuais traficantes do Rio de Janeiro. Nesse romance, uma nova cultura que surge nas áreas rurais exemplifica o multiculturalismo tupinipunk no seu sincretismo e mistura cultural. Essas comunidades combinam alta tecnologia e diferentes práticas religiosas: O credo era plural. Em algumas unidades se procurara recriar, com as necessárias mediações, a estrutura das tribos indígenas que, há séculos, tinham ali existido. Noutras predominava do austero catolicismo ao cristianismo primitivo do Santo Daime, passando pelo candomblé e pela quimbanda. Havia as comunidades ligadas a seitas hindus, zen-budistas, nipo-messiânicas.85 Nisso temos um forte índice de práticas sincréticas: o Santo Daime é um culto de base cristã, que emprega um chá alucinógeno feito com yagé (Banisteriopsis caapi), e o candomblé e a quimbanda são cultos sincréticos, que misturam imagens católicas com entidades africanas da natureza. Nando, um ex-namorado de Lili, é o líder de uma dessas comunidades espíritas e astrológicas, bebedoras de yagé. 83 Anônimo. “Os Carbonários. Ano 25.” In Blog de Alfredo Sirkis, 10/24/2005, http://sirkis2.interjornal.com.br/noticia.kmf?noticia=3773928&canal=258&total=7&indice=0. 84 Veja verbete a respeito em The Encyclopedia of Science Fiction, John Clute & Peter Nicholls, eds. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, pp. 792-94. O termo pressupõe a substituição, na consciência das pessoas, do mundo natural por uma “paisagem midiática” (792), e “as histórias de media-landscape [na FC] foram suplantadas pelo [cyberpunk], como o seu foco na [realidade virtual]” (794). 85 Sirkis, Alfredo. Silicone XXI. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985, p. 157. 246 No prefácio da edição de 2008 d’Os Carbonários, Sirkis reavalia o seu compromisso com a ideologia socialista e observa que os jovens radicais da sua época foram “os ‘primos pobres’ de uma efervescência cultural, artística e comportamental, cujo epicentro foi 1968, a qual deixou marcas ainda hoje atuais, e que mudaram o mundo muito mais profundamente que a [sua] luta política”.86 Ele também identifica o Tropicalismo com as suas convicções verdes posteriores: [N]ão tenho dúvida de que as raízes poéticas, afetivas, estéticas do que viemos a ser e a formular politicamente uma década mais tarde [os anos 1980], já no final do exílio e no regresso — as concepções verdes e alternativas —, estavam no tropicalismo [sic]. A visão holística, planetária, o gosto da mistura, mescla, o melting pot dos verdes teve ali suas sementes, que desabrocharam em mil flores [...]87 Sirkis lia William Burroughs, Charles Bukowski (1920-1994) e Jack Kerouac quando escreveu Silicone XXI, mas só admite ter sido influenciado pelo filme de Ridley Scott, Blade Runner: O Caçador de Andróides (Blade Runner; 1982), conhecida referência cyberpunk, freqüentemente comparado a Neuromancer, de Gibson.88 Blade Runner o filme, não o livro de Philip K. Dick, no qual o filme foi baseado, segundo Sirkis afirmou.89 Contudo, seu romance apresenta pouco do ambiente opressivo e distópico do filme, optando por uma visão mais utópica do futuro, ainda que essa visão não esteja no primeiro plano de Silicone XXI. De fato, embora a maioria dos problemas crônicos do Brasil — corrupção, crime, ineficiência do estado — sejam criticados no livro, ele é em geral otimista (talvez 86 Sirkis, Alfredo. Os Carbonários. Rio de Janeiro: BestBolso, 2008, p. 28. Idem, ibid. P. 30. 88 Veja Blade Runner discutido em “Cyberpunk 101: A Schematic Guide to Storming the Reality Studio” (in Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction, Larry McCaffery, ed. Durham & London: Duke University Press, 1991), de Richard Kadrey & Larry McCaffery: “A sensação claustrofóbica do mise-en-scène de [Ridley] Scott, com sua superabundância de imagens exóticas e de informação, sua mistura do asiático e do americano, high tech rebrilhante e seu refugo humano, além da simples intensidade da sua apresentação — esses são equivalentes cinemáticos da prosa de [William] Gibson. E tão importante quanto, o filme partilha com Neuromancer um foco nas questões morais e epistemológicas criadas pela tecnologia.” (P. 25) Já o especialista brasileiro em cinema de FC, Alfredo Suppia, observa que, “no cinema, foi Blade Runner que primeiro descreveu, de forma tão incorporada, um ‘imaginário Cyberpunk [sic]’”, e lista as características: “A diluição da subjetividade, a desumanização, as incertezas quanto ao futuro e a insegurança quanto à tecnologia, o virtual; todos esses elementos comuns ao Cyberpunk [...] estão presentes no filme de Scott. Além disso, visualmente falando, o amálgama do gótico com o ultramoderno configura outra característica relevante, a qual não deixa de dizer respeito ao embate arcaísmo x tecnologia.” (In A Metrópole Replicante: Construindo um Diálogo entre Metropolis e Blade Runner, de Alfredo Suppia. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF, 2011, p. 85.) 89 Anônimo. “Os Carbonários. Ano 25.” In Blog de Alfredo Sirkis. Sirkis também revela que o seu livro é ambientado em 2019 porque Blade Runner é ambientado nesse ano. A leitura do romance também deixa claro que Silicone XXI deve muito aos filmes de James Bond, influência também presente no trabalho de Jorge Luiz Calife, com a Trilogia Padrões de Contato (particularmente no terceiro livro, Linha Terminal, de 1991). 87 247 refletindo um senso de euforia, firmado com o fim da ditadura). No romance, a ciência consegue fornecer alternativas econômicas e os seus paradigmas se misturam naturalmente com a espiritualidade, e as pessoas são fundamentalmente boas — exceto por um “bolsão” de reacionários linha-dura, que acreditam no poder real e simbólico das armas e da energia atômicas, “atomistas” nesse sentido. Portanto, Silicone XXI está mais próximo de Piratas de Dados (Islands in the Net; 1988), de Bruce Sterling, no qual o último símbolo de uma velha ordem, representado por um submarino nuclear renegado, com seus mísseis apontados para Hiroshima, deve ser removido antes que uma nova ordem se estabeleça.90 Isso está bem longe de Neuromancer e seu anarco-capitalismo opressivo, e uma observação de Veronica Hollinger sugere a mesma compreensão, quando ao romance de Sterling: “[P]oderia ser lido como um retrato da vida depois da condição pós-moderna ter sido ‘curada’.”91 É tentador recorrer ao conceito que Person chamou de “pós-cyberpunk”, para definir uma obra tupinipunk como a de Sirkis. “Pode-se dizer que a ficção científica entrou na era pós-cyberpunk em 1988 com a publicação de Piratas de Dados, de Bruce Sterling”, Person escreveu em “Notes Toward a Postcyberpunk Manifesto” (1998). “Assim como The Artificial Kid de Sterling encapsulou muitos dos temas do cyberpunk antes que o movimento tivesse nome.”92 Para Person, o pós-cyberpunk evita “o clichê ‘high tech/low life’ do cyberpunk”, seus personagens não são solitários marginalizados e alienados vivendo dramas cheios de ação em futuros distópicos, mas têm trabalho e família, preocupações e responsabilidades comuns. Nesse sentido e a despeito do tom burlesco, os heróis de Sirkis têm profissões, famílias e relacionamentos que eles promover. Person: “Eles vivem em [um futuro que é] não necessariamente distópico (de fato, eles estão freqüentemente inundados de um otimismo que vai do cauteloso ao exuberante), mas suas vidas diárias ainda são impactadas pela rápida mudança tecnológica [...].”93 Além disso, se num sentido mais amplo pode-se assumir que pós-cyberpunk seja qualquer 90 No livro de Sterling, o bombardeio de Hiroshima pelo submarino fracassa. Considerando que a primeira bomba atômica de Hiroshima marca o início da Guerra Fria, o ataque fracassado, seguido pela destruição do submarino e pela comemoração pública, simboliza o instante pivotal do início de uma nova era que deixa para trás a atmosfera da Guerra Fria e o pesadelo da guerra nuclear. Veja Islands in the Net (Nova York: Ace Books, 1989), pp. 391-96. 91 Hollinger, Veronica. “Cybernetic Deconstruction: Cyberpunk and Postmodernism”. In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodern Fiction, Larry McCaffery, ed. Durham & Londres: Duke Universityu Press, 1991, p. 217. 92 Person, Lawrence. “Notes Toward a Postcyberpunk Manifesto”. Nova Express Vol 4, No. 4 (Winter/Spring 1998), p. 11. 93 Idem. 248 trabalho que empregue temas e idéias cyberpunks mas divirja da ideologia do Movimento e busque usar essas ferramentas para outros propósitos, seria justo pensar em uma relação similar com o cyberpunk de uma maneira sincrônica e não diacrônica: o pós-cyberpunk aparecendo durante o ápice do cyberpunk, e não depois. Não obstante, chamar Silicone XXI de pós-cyberpunk seria um modo fácil de escapar de uma discussão que deveria registrar a sua reutilização intencional de aspectos culturais e literários muito brasileiros. Silicone XXI zomba de símbolos de poder relacionados ao regime militar, no instante em que ele chegava ao fim. O título é trocadilho com “século XXI” e com a medida do implante peniano de Estrôncio Luz, e que lhe garantiu o apelido de “Siliconpênis”. Poder nuclear, político, militar, sexual são satirizados (e a ditadura militar era propensa a regular a sexualidade nas artes, e até 1990 manteve um programa para a construção de artefatos nucleares).94 Ainda assim, a paixão do cyberpunk pelos implantes corporais fica restrita a um pênis de silicone operado manualmente. Conforme Ginway observou, romances tupinipunks como Silicone XXI [c]ontrastam completamente com os conhecidos clássicos americanos do subgênero [...], nos quais o sexo não é uma parte central da história e não é certamente usado como metáfora primária para os humanos em luta contra as estruturas de poder corporativas ou governamentais. Por essa razão, é imprescindível uma consideração sobre esse aspecto físico para a análise do cyberpunk brasileiro.95 Por outro lado, há muito do espírito da literatura brasileira da década de 1970 no livro de Sirkis, principalmente com sua referência às idéias tropicalistas e sua inclusão de palavrões, sexo, referências pop e mudanças do tempo narrativo (do presente ao pretérito) e de pontos de vista narrativos. Mas conforme Ginway afirma no seu livro, “Durante os [1970s e 80s], vários escritores do Brasil usaram o erotismo e a sexualidade para denotar o mal uso de poder pelo regime militar, mas Silicone XXI é um ataque direto ao machismo militar, [antes] de ser uma fantasia revanchista sobre a violência que ele levou às suas vítimas.”96 Contudo, em certos momentos o romance soa como a 94 Malcolm Silverman mostra no seu livro de 1987, A Moderna Sátira Brasileira, que era tendência comum na literatura brasileira pós-1964 satirizar — até sexualmente — o militar. Veja A Moderna Sátira Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1987, pp. 149-60. 95 Ginway, M. Elizabeth. Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro (Brazilian Science Fiction: Cultural Myths and Nationhood in the Land of the Future). São Paulo: Devir Livraria, 2005 [2004], p. 154. 96 Idem, ibid. P. 163. Ginway se refere ao livro de Rodolfo Franconi, Erotismo e Poder na Ficção Brasileira Contemporânea (São Paulo: Anablume, 1993). 249 prosa sobrecarregada de informações da prosa cyberpunk, com algo de brasileiro misturado: O segundo cadáver da suite 303 é a mucama automática, um robô sobre rodinhas, obeso e assexuado, bem diferente daqueles com finalidades eróticas, que custam até cem vezes mais. A pobre brega sintética levou pelos peitos a descarga, foi transfixada no centro logocardíaco e está cheirando a curto-circuito. Como não tem forma humanóide com rodinhas no lugar de membros inferiores, morreu de pé. 97 Ou ainda: “Favo de mel fosforescente, gorda margarida de neon no penhasco entre os seios de Dois Irmãos, com aquele letreiro de lasers coloridos dançando no céu de piche. A aproximação se dá por pouso automático na freqüência 36 TX.”98 Essa estilística é levada ao extremo, no romance Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. Santa Clara Poltergeist e a Herança Tropical de William Burroughs Mais conhecido como jornalista, músico e performer, com sucessos do funk como “Khatia Flávia” (1987) e “Rio 40 Graus” (1993), Fawcett (Fausto Borel Cardoso) seja ele publicou o seu primeiro romance, Santa Clara Poltergeist, em 1991.99 Jorge Cassol concebeu o visual do livro, com tiras verticais nas beiradas das páginas e imagens digitais de circuitos e produtos industriais. Ele também o ilustrou com fotografias em preto e branco, gráficos e imagens retrabalhadas com halftone dots e outras técnicas para lhe dar um ar mais digital ou industrial. A maioria das imagens são fotos pornográficas que dão ao livro uma aparência de fanzine xerocado ou de revista pornô vagabunda (sem dúvida, muitas imagens foram tiradas de revistas pornográficas anônimas). O romance curto de Fawcett é uma narrativa não-convencional que usa as técnicas encontradas em romances de William S. Burroughs, autor cuja obra é fundamental para 97 Sirkis, Alfredo. Silicone XXI. P. 14. Idem, ibid. P. 198. 99 Seu primeiro disco foi Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros, com algumas letras de FC. Santa Clara Poltergeist se relaciona com uma canção de 1989 com o mesmo título (uma segunda, “Santa Clara Poltergeist II”, apareceu em 1993). As histórias de Fawcett também apareceram em várias antologias, incluindo Geração 90: Os Transgressores (Boitempo, 2003), editada por Nelson de Oliveira, na qual Oliveira nota as qualidades de nonsense e de experimentalismo de Fawcett, e a recente antologia original As Cidades Indizíveis (Llyr, 2011), editada por Oliveira & Fábio Fernandes, trouxe o seu conto “Cidade Vampira (Entidade Urbana)”. 98 250 o cyberpunk.100 Santa Clara Poltergeist consiste de longos parágrafos expositivos em uma prosa precipitada, que alterna trechos sobrecarregados de informação com partes mais lentas de info-dumps ensaísticos, e quase nenhum diálogo no livro todo. As transições são descuidadas e feitas por um narrador onisciente que se dirige ao leitor. O romance começa em São Paulo, com Mateus, um afro-descendente apresentado como um “Eletroblack” — um eletricista/expert em computadores —, fazendo sexo com Gizele, uma prostituta mulata que assume uma identidade mongol (“Gizele Khan”) para parecer mais exótica aos clientes. Mateus é convocado por uma misteriosa transmissão de Vera Blumenau, uma ex-prostituta juvenil cuja vida foi transformada quando ela foi penetrada acidentalmente por uma peça de bicicleta contaminada com uma lama estranhamente ferruginosa. Ela recebe um intestino prostético, que precisa ser recarregado com eletricidade por meio de baterias de automóvel, plugadas em seu ânus. Isso lhe dá habilidades psicocinéticas que ela emprega em shows de sexo nos quais usa objetos de metal como “consolos”: “Com seu grelinho uri geller Verinha enfiava na buceta alguns objetos que passeavam nas suas coxas. Seu corpo parecia um gigantesco magneto carnal entulhado de objetos de metal.”101 Seu sucesso chama a atenção de Ramayana Porshe, “o hindu-manda-chuva do comércio erótico do bairro [de Copacabana]”.102 Ela vai ao Rio e se torna a principal concubina de Ramayana e “reencarnação de Clara Vonheim, a Santa Clara Poltergeist, padroeira dos coitos e dos mundos paralelos”.103 Mateus deve recuperar um “míssil-ovário” nuclear, escondido na caótica Copacabana que vive sob uma bizarra “falha magnética”. Por causa dos seus poderes, ela diz a Mateus que a bomba não fará mal aos outros, se for colocada em sua vagina. Como em Silicone XXI, XXI, a energia nuclear é alegorizada como sexo, e como em Silicone o enredo e os personagens principais oferecem uma variedade racial e cultural que reflete a obsessão tupinipunk com sexo, misticismo e contracultura. O enredo soa como sátira de filmes-B e pastiche de pornografia baixa, um passo abaixo no burlesco, alcançando o grotesco com violentas tiradas surrealistas, 100 Veja “Cyberpunk 101: A Schematic Guide to Storming the Reality Studio”. P. 18. Kadrey & McCaffery afirmam que, “Sem Almoço Nu [de Burroughs] provavelmente não teria havido o cyberpunk.” 101 Fawcett, Fausto. Santa Clara Poltergeist. Rio de Janeiro: Editora Mandarino, 1991, p. 29. Uri Geller é um auto-declarado paranormal israelense que visitou o Brasil em 1976, fazendo apresentações das suas “habilidades”. 102 Idem, ibid. P. 30. 103 Idem, ibid. P. 39. 251 empréstimos de pulp fiction, e ensaios pseudo-factuais que lembram as “rotinas” de William Burroughs. No romance de Fawcett, a paisagem de Copacabana é transformada por uma “falha magnética” na magnetosfera da Terra, remodelada por experiências científicas conduzidas pelos “Xiitas Orgônicos” que nela abriram uma “brecha dimensional”. A falha magnética permite a ocorrência de um “poltergeist em massa” com uma multiplicidade de fenômenos paranormais que tornam o bairro “uma Cubatão psíquica, poluída por espectros, fantasmas de radiação, reverberações cerebrais e sensoriais, magnetismos e mentalizações repentinas”.104 Nesse contexto, Vera Blumenau se torna o demiurgo Santa Clara Poltergeist. Mateus, chegando ao Rio, descobre que não foi Vera quem o convocou, mas um grupo de cientistas renegados que tropeçaram em uma descoberta que permite a canalização da energia orgásmica, conceito baseado na idéia de Wilhelm Reich (18971957), do “orgônio”.105 Mas uma outra conspiração vem à luz quando Mateus recebe uma mensagem de um seita de “proto-vikings” encontrados pelo Cel. Percy Fawcett (1867-1925), desaparecido em uma expedição montada para encontrar o mítico Eldorado da Amazônia. Mateus é informado mais uma vez de que deve entregar a ogiva a Vera, mas agora ele precisa recuperar os cadernos originais do Cel. Fawcett, em troca de um contador Geiger especial que consegue detectar a radioatividade da ogiva. Mas no caminho Mateus, tomado pelos efeitos da falha magnética, estripa dois sem-teto em rompantes homicidas.106 Esse enredo que se contradiz seguidamente e que dispara em diversas direções lembra a própria negação do valor do enredo, por Burroughs: “Eu sou um instrumento de gravação... Não pretendo impor ‘história’ ‘enredo’ ‘continuidade’ [sic]... Não me dedico ao entretenimento...”107 Esse estilo desregrado pós-modernista domina o enredo, que às vezes é absurdo, escatológico, pervertido e violento. Burroughs (1914-1997) é fortemente associado à cena cultural da década de 1970, e foi um ícone do movimento punk; e como vimos, é uma das influências centrais dos cyberpunks. 104 Idem, ibid. P. 64. Veja http://en.wikipedia.org/wiki/Orgone, para informações sobre o orgônio. 106 Em outro episódio inspirado em Burroughs, Mateus segue pistas que o levam até um bordel nipobrasileiro, o “Ninja Semen”, onde ele é ciceronado por uma índia paranauara chamada Odete, que no bordel responde por Mula Taiwan, e finalmente a um grotesco show de sexo no “Oba Oba Espírita”. Lá, “garotas arigóticas” fazem sexo com cirurgia espiritual ou mutilação — batizadas assim em homenagem a José Arigó, um médium que alegava realizar operações espirituais sem anestesia. O nome verdadeiro de Arigó era José Pedro de Freitas, 1922?-1971). Nomes de guerra como “Mula Taiwan”, “Gizele Khan” e até mesmo “Santa Clara Poltergeist” sugerem identidades marcadas por performances sexuais. 107 Burroughs, William. “Atrophied Preface: Wouldn’t You?”. In Naked Lunch: The Restored Text, James Grauerholtz & Barry Miles, eds. Londres & Nova York: Harper Perennial, 2003, p. 184. 105 252 Andrew M. Butler havia notado como o uso de drogas, sexo e do corpo por Burroughs, força o corpo para os limites do bom gosto, e que por toda a sua obra há uma “desconfiança swiftiana do corpo, da carne, o que talvez seja uma influência sobre os cyberpunks”.108 O romance de Fawcett lembra especialmente Almoço Nu (Naked Lunch; 1959), de Burroughs (que também foi influenciado por Reich e usou o conceito do orgônio) nos momentos em que Mateus cede aos efeitos da falha magnética, que havia libertado todas as formas de “agressividade e pulsão anticivilizatória que caracteriza e é suporte da assim chamada natureza humana”.109 Em tudo, Fawcett ignora o apelo de Bruce Sterling de se “evocar um futuro autoconsistente e crível”,110 tendo declarado recentemente (quando do lançamento de seu romance Favelost): “Eu não faço ficção científica. Eu só dei uma exageradinha na nossa realidade perturbada, ou nas nossas realidades conturbadas.”111 O que ele faz é criar um mundo apocalíptico a lá Burroughs, que transforma Copacabana em uma versão da Interzona do autor americano, uma descrição literária ontológica ou teórica de um universo diverso do nosso — um “heterocosmo” — e que nega as bases ontológicas do nosso universo, de acordo com a definição de Brian McHale, para quem a “ficção pós-modernista acaba sendo mimética afinal, mas essa imitação sendo alcançada não tanto no nível do seu conteúdo, que com freqüência é manifestadamente ir- ou antirealista, quando no nível da forma”.112 A fim de compor esse heterocosmo, é preciso abandonar as estratégias narrativas realistas que a FC geralmente emprega, para realizar a suspensão da descrença e substanciar suas especulações e extrapolações científicas, tecnológicas ou sociais. 108 Butler, Andrew M. Cyberpunk. Harpenden: The Pocket Essential, 2000, p. 13. O livro de Butler é um guia de leitura e compreensão. 109 Fawcett, Fausto. Santa Clara Poltergeist. P. 69. 110 Sterling havia apontado essa e o quanto é “difícil se superestimar as dificuldades desse esforço, que é a razão de tantos escritores de FC estarem se esquivando dela há anos. Esse fracasso intelectual da conta do ominoso problema das histórias de pós-apocalipse, das fantasias de espada-e-feitiçaria, e daquelas sempre presentes space operas em que impérios galácticos escorregam convenientemente de volta à barbárie. Todos esses subgêneros são produto da necessidade urgente que o escritor tem de evitar de se enrolar com um futuro realista.” Bruce Sterling. “Preface”. In Burning Chrome. William Gibson. Nova York: Ace Books, 1987 [1986], p. x. Essa não é uma falta particular ao tupinipunk, dentro da FC brasileira. Esforços de extrapolar o contexto social brasileiro para o future próximo — digamos, os próximos 50 anos — são incomuns, e geralmente por escritores mainstream se aventurando no gênero, e mal-sucedidos na produção de extrapolações coerentes. 111 Bressane, Ronaldo. “‘Favelost’, de Fausto Fawcett, Expande Horizonte da Ficção Científica Brasileira”. Valor Econômico de 2 de outubro de 2012, caderno “Cultura & Estilo”, p. D4. Disponível em http://www.valor.com.br/cultura/2851176/favelost-de-fausto-fawcett-expande-horizonte-da-ficcaocientifica-brasileira. 112 McHale, Brian. Postmodernist Fiction. London: Methuen, 1991 [1987], p. 38. 253 Para McHale, a Interzona de Burroughs “é uma vasta estrutura caindo aos pedaços, na qual todas [...] as raças e culturas se misturam, a apoteose da favela do Terceiro Mundo”.113 Como heterocosmo, Santa Clara Poltergeist evoca uma versão corrompida do glamour hedonista de Copacabana, bairro que já esteve no centro das atividades intelectuais e artísticas durante as décadas de 1950 e 60, mas que em Fawcett representa a idéia de McHale da “paisagem ontológica pluralística e anárquica das culturas industriais avançadas”.114 Braulio Tavares mapeia as referências literárias brasileiras do romance de Fawcett, elogiando sua linguagem como “a grande contribuição de Fausto Fawcett a nossa FC”. Linguagem, mais do que temática, que afinal de contas apenas recicla o que o mundo inteiro está reciclando nas últimas décadas (a fusão entre o universo High-Tech [sic] e o Universo Psi). Porque Santa Clara Poltergeist, por mais cyberpunk que pareça, é um elo a mais numa corrente literária brasileira que tem andado meio oculta nos últimos anos. Eu me refiro àquela que podemos chamar de “literatura pop” [...] que teve um surto de relativa popularidade entre 1965-75, mais ou menos. É um tipo de prosa fragmentada, detalhista, “elétrica”, fortemente influenciada pelo cinema, pelos quadrinhos e pela pop-art, uma literatura que tem raízes externas na literatura beat americana (Jack Kerouac na prosa, Allen Ginsberg na poesia) mas também deve cromossomos ao surrealismo europeu e à “aldeia global” de MacLuhan. 115 Nessa tradição, Tavares traça o caminho de volta ao modernista Oswald de Andrade (1890-1954), figura líder do movimento na década de 1920. De fato, o romance de Fawcett se liga fortemente à tradição modernista brasileira, que inclui uma forte inclinação para o sincretismo cultural, exemplificado nesse livro pelo império pornô tântrico do hindu Ramayana Porshe, pela diversidade racial dos personagens, e pela fusão do high-tech a vários tipos de misticismo, do espiritismo aos cultos ufológicos — como acontece com os bizarros “Manson Chips”, que modificaram sua fisiologia para se tornarem espaçonaves vivas, supostamente capazes de alcançar outros planetas mas que terminam como grotescos fogos-de-artifício; esses “transformers humanos” primeiro tentaram sua tecnologia em populações de sem-teto e de bóias-frias.116 Para Tavares, o livro de Fawcett exibe “pontos de contato com a New Wave britânica dos anos 60 e com os cyberpunks dos anos 80”.117 Hermano Vianna, na introdução ao romance, afirma que “Existem semelhanças entre o estilo de Fausto e o 113 Idem, ibid. P. 44. Idem, ibid. P. 38. 115 Tavares, Braulio. “Uma Ficção Científica sem Clichês”. Isaac Asimov Magazine: Contos de Ficção Cientifica Vol. 2, No. 18 (1992), p. 24. 116 Fawcett, Fausto. Santa Clara Poltergeist. Pp. 163-68. 117 Tavares, Braulio. “Uma Ficção Científica sem Clichês”. P. 23. 114 254 dos cyberpunks [sic]”.118 Ele menciona a superespecificidade, a ciência como fenômeno pop, um fascínio com “invasores de corpos”, antes de remeter o leitor ao prefácio de Bruce Sterling a Reflexos do Futuro.119 Todavia, Vianna aponta que Fawcett não é um dos “individualistas ingênuos” que seriam os cyberpunks, e o elogia por não querer passar nenhuma moral ao leitor.120 Há mais duas diferenças centrais, porém: a rejeição dos valores de enredo, extrapolação, especulação (e até de caracterização de personagens), tradicionais da FC; e a figuração do sincretismo cultural favorecido pela literatura modernista brasileira. Instinto Básico Algo semelhante se dá com as histórias de Instinto Básico, com um pouco mais de espaço para rimas, repetições e enumerações que as conectam mais com a atividade de Fawcett como letrista. “Katia Flavia” abre a seção “Louraças”, do livro, e certamente deve algo ao hit homônimo de 1987. Logo no início, o narrador se dirige diretamente a um grupo de repórteres que se apresentam à “ex-residência do mais escatológico, excêntrico, sensual, fetichista e voyeur [sic] dos casais”,121 Katia Flavia e Salomão Calígula. Segue-se quase uma página de enumeração de substantivos, caracterizando uma paisagem urbana visitada constantemente pelo casal. Katia é caracterizada como “encarnação do mundo cão”,122 ex-menina de rua vítima do sadismo de seita obscura e da vida marginal das ruas, ex-interna da FEBEM e prostituta. Pode haver algo de Molly Millions, a ciborgue assassina de Neuromancer (1985), de William Gibson, em caracterizações como esta: “De vez em quando o mundo-cão vinha à tona e ela precisava tomar cápsulas, pílulas de autismo concentrado, pílulas de ausência mental”;123 ou nestes elementos de vestuário: 118 Vianna, Hermano. In Santa Clara Poltergeist, de Fausto Fawcett. P. 7. Idem. 120 Idem, ibid. P. 8. 121 Fawcett, Fausto. “Katia Flavia”. In Básico Instinto, de Fausto Fawcett. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992, p. 15. 122 Idem, ibid. P. 17. 123 Idem. Veja Neuromancer 25 (Neuromancer), de William Gibson. São Paulo: Editora Aleph, 2008 [1985], p. 170: “[A]ssim que eles plantam o chip disjuntor, parece um dinheiro mole de ganhar. Às vezes você acorda ralada, mas é só. Você está só alugando sua carne. Quando o negócio ta rolando, você não está em casa.” Esta edição, com tradução de Fábio Fernandes, comemora os 25 anos da conclusão do romance (e não o da sua publicação em 1985) (p.5). 119 255 “Ela coloca sua calcinha exocet, seu sutiã escorpião adesivo, seus óculos ray-ban [sic] roxos, seus tênis roxos, sua capa de chuva roxa.”124 Se eu estive certo, trata-se e uma comunicação mais direta entre os dois tipos de cyberpunk, do que aquela estabelecida pela intermediação de uma influência em comum, na obra de William Burroughs. Depois que o amante é morto numa emboscada, Katia Flavia parte num frenesi de assassinatos, transitando por um jogo de futebol (com direito à prosa assumindo os tons de uma locução esportiva) e atingindo alvos de oportunidade pelas ruas, até ser cercada pela polícia em prédio de apartamentos, onde desaparece, ganhando cores de mito junto à imprensa. Outras narrativas de ação precipitada partilham da mesma estrutura de movimento continuado e prosa frenética, enumerativa e oralizada. Melhor desenvolvida, com complexidade maior e momentos diversificados, “Vanessa von Chrysler” é também mais internacional,125 enquanto “Vanuza e Rachid” estende o delírio de Fawcett à Amazônia, também transfigurada como uma região místico-tecnológica. Piritas Siderais e Cyberbarrocas A novela Piritas Siderais, de Guilherme Kujawski, leva os aspectos formais ainda mais longe. O autor afirmou que estilo e os jogos de palavras lhe são centrais e que a sua novela é mais um criptograma do que um tratado científico sobre redes de computadores: “[há uma supervalorização do] estilo em função do mote da história e transformando a linguagem em protagonista”.126 Isso é exemplificado pelo que ele chama de “hipergazetas”, blocos de frases afirmativas soltas em fluxo livre, numa prosa aliterativa e de associação livre, que separam cada capítulo. Kujaswki as relaciona com o hipertexto, “um texto informatizado que não existe sem um contexto em uma complexa rede de bancos de dados”.127 A hipergazeta satiriza o hipertexto, projetando-o 124 Idem, ibid. P. 20. Esse conto foi incluído na antologia de Braulio Tavares, Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica (Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012). 126 Kujawski, Guilherme. “Prefácio do Autor: Pequeno Ensaio sobre as ‘Hipergazetas’”. In Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco, de Guilherme Kujawski. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 13. 127 Idem, ibid. P. 11. 125 256 a áreas de armazenagem de informação, e são integrados ao romance como um elemento cotidiano dos personagens, como uma transmissão de notícias.128 Kujawski também reconhece a sua abordagem burlesca, de acordo com a introdução de Ivana Bentes: “Ficção científica burlesca a serviço do pensamento e da imortalidade é a definição de Guilherme Kujawski para seu livro.”129 Kujawski, embora não tenha se impressionado com Neuromancer e não conhecesse Santa Clara Poltergeist, não vê problemas em sua novela ser lida como cyberpunk.130 Um típico enredo cyberpunk é aquele que vimos em Neuromancer: com mercenários que viajam pelo mundo e até a órbita da Terra, e pelo ciberespaço, para realizar as ambições de duas inteligências artificiais. Piritas Siderais apresenta um contraste agudo: em um Brasil que assumiu a umbanda como religião oficial, o herói, um corretor da bolsa e afro-descendente chamado Zé Seixas, ajuda o seu amigo branco Terêncio Vale a ficar com a deslumbrante mulata Maria Gonçalves, uma mãe-de-santo. Por meio dela eles acabam conhecendo um afro-americano, o astrofísico da NASA Berzelius Baldwin, que fala um dialeto hibrido constituído de várias línguas. Maria os convence — meio que seduzindo Terêncio num transe, e assim forçando Zé a acompanhá-los — a deixar São Paulo e ir ao Observatório de Capricórnio em Campinas, no interior do estado, para um ritual de quimbanda. Baldwin e Maria querem desbloquear um chip de computador capaz de analisar um planeta que é um gêmeo da Terra em Alpha Centauri — o chip está sendo controlado pelo orixá Okô, entidade espiritual afro-brasileira que reivindica o planeta, que é feito de ouro. Baldwin precisa de ouro para sobreviver. Ele seria a reencarnação do astronauta afro-americano Robert McNair, morto na explosão do ônibus espacial Challenger, em 1986. O ritual seria um pacto com o Diabo para tornar Baldwin imortal, mas para ele se completar, Zé Seixas, gêmeo espiritual de Baldwin, deve ser sacrificado e Terêncio deve fazer sexo com uma galinha preta chamada Leda. Por comparação, a intriga de Piritas Siderais é quotidiana e a sua premissa, absurda. Seu texto é igualmente exacerbado na superespecificidade e na elaboração barroca: A Rural finalmente deslinda em Campinas de Logum-Edé. A esta altura da noite a constelação de Alpha Centauri está em vernissage. Os cristãos aproveitam as horas de profundis da madrugada para traficar talismãs indexados. As muambas vão 128 Kujawski, Guilherme. Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco. P. 42. Bentes, Ivana. “Apresentação: A Ficção Cyberbarroca: Uma rede Eletrônica Planetária”. In Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco, de Guilherme Kujawski. P. 5. 130 Kujawski, Guilherme. “Prefácio do Autor: Pequeno Ensaio sobre as ‘Hipergazetas’”. P. 13. 129 257 desde água de Lourdes até as da cruz de filis. Os sinos dos alcaides anunciam que à meia-noite corre tudo bem, mas the British are coming!131 De acordo com M. Elizabeth Ginway, o texto de Kujawski usa a ganância do americano por ouro como alegoria do imperialismo, num estilo que lembra a obra-prima modernista de Mário de Andrade, Macunaíma (1928). De fato, as páginas finais de Piritas Siderais lembram o romance modernista, já que ambos terminam com uma frase coloquial semelhante a “e é só, pessoal!” No caso de Macunaíma, é “tem mais não”, e no de Piritas Siderais, a frase em latim que significa o mesmo: “Terminus ad quem.” De modo semelhante, ambos os textos são narrados por não-humanos: em Macunaíma, é um papagaio que conta a história do herói, enquanto que em Piritas Siderais, é o fantasma na máquina: o espírito de um secretário do escritor Tobias Barreto (18391889), preso em um banco de dados.132 Brasyl: Futebol e Indeterminação Quântica É possível estender o tupinipunk, como subgênero da FC, a obras escritas por autores estrangeiros, como Ian McDonald e o seu Brasyl (2007), romance que foi finalista dos principais prêmios da FC nos Estados Unidos e Grã-Bretanha, mas não foi a primeira obra cyberpunk a tratar do Brasil. Cybernetic Jungle (1992), de S. N. (Sharyan) Lewitt, é ambientado em Brasília, num futuro próximo no qual o país se encontra novamente sob uma ditadura militar. Seu romance seguinte, Songs of Chaos (1993), também lidou com a cultura brasileira — levando o Carnaval dos desfiles de escola de samba ao espaço em naves vivas. A caracterização dos personagens e a prosa de Cybernetic Jungle tende a diferir substancialmente, em relação aos cyberpunk da primeira geração. O pendor cyberpunk para o “show, don’t tell” expresso em seu descritivismo exagerado e no afastamento psicológico dos personagens contrasta com a propensão de Lewitt para a análise psicológica e o aprofundamento dos personagens em suas motivações e relacionamentos. Seu estilo é límpido e polido — em contraste àquela aspereza comum ao cyberpunk —, elegante, pouco irônico e com uma musicalidade com a qual apenas 131 132 Kujawski, Guilherme. Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco. P. 112. Ginway, M. Elizabeth. Informação pessoal por e-mail, 28 de julho de 2011. 258 Halo, de Tom Maddox, se compara. Um contraste marcante, com a prosa entrecortada e dissonante de Brasyl. Enquanto a principal “geografia psíquica” cyberpunk seria a borda do Pacífico (Pacific Rim), de acordo com Andrew M. Butler,133 a do tupinipunk estaria localizada nos centros urbanos do Sudeste — São Paulo-Rio de Janeiro, com uma incursão ocasional à Amazônia, como em Santa Clara Poltergeist. O mesmo vale para Brasyl, que apresenta três linhas geográficas e temporais diferentes: o Rio de Janeiro de 2006, a São Paulo de 2032, e a Amazônia de 1732. No Rio o leitor acompanha a implacável, desinibida jornalista Marcelina Hoffman, uma loura que também luta capoeira. Em São Paulo, o rapaz mulato e bissexual, Edson de Freitas, um entrepeneur da favela. Na Amazônia (com algum tempo passado em Fortaleza, então a cidade principal do país), é o padre jesuíta Luís Quinn, um irlandês (como McDonald), e o seu eventual sidekick, o filósofo natural e espadachim francês Robert Falcon. McDonald cria uma linguagem híbrida, repleta de referências, ao combinar do inglês e do português, num estilo cyberpunk ou tupinipunk inteligentemente estendido ao passado por meio de discussões eruditas que incorporam português, francês e latim, além de conceitos científicos atuais como teorias do caos e de mecânica quântica, inseridas no passado. O enredo às vezes nonsense espirala em torno de uma polícia multidimensional e sociedade secreta, bebedores de yagé, guerra religiosa, grupos de capoeira e futebol, computadores e lâminas quânticas, e sapos e índios que conseguem perceber fenômenos quânticos relacionados a diferentes universos. Assim como Fawcett sugeriu uma expedição amazônica que produziu uma sociedade secreta a partir do desaparecimento do explorador inglês de quem o escritor brasileiro empresta o nome, McDonald imagina uma figura conradiana, como o Cel. Kurtz do escritor polonês — um padre que lançou uma utopia violenta na selva — a bordo de uma basílica que flutua como balsa pelo Rio Amazonas.134 Parte de um dos mais ambiciosos projetos da FC contemporânea, de ambientar romances ambiciosos em países emergentes — Brasil, Índia, Turquia — no século XXI, Brasyl tem muito do torvelinho narrativo, da jocosidade, da sexualidade, da exploração de estereótipos culturais, e do jogo de palavras tupinipunk. Diferentemente das três narrativas longas brasileiras analisadas acima, tenta reconciliar essas características com 133 Butler, Andrew M. Cyberpunk. P. 19. Imagens emprestadas de A Jangada (La Jangada: Huit cents lieues sur l’Amazone), romance de Jules Verne (1828-1905) publicado em 1881, e de Coração das Trevas (Heart of Darkness), novela de 1902 escrita por Joseph Conrad (1857-1924). 134 259 os temas e ferramentas da FC posteriores à revolução cyberpunk, incluindo argumentos de mecânica quântica, de uma multiplicidade de universos paralelos, a presença de um indefectível magnata americano, e a descrição de uma altíssima tecnologia que parece viável do ponto de vista da extrapolação científica. Se é possível aceitar este romance de Ian McDonald como tupinipunk, Brasyl seria a obra mais ambiciosa do subgênero — a despeito de uma infinidade de erros com a língua portuguesa.135 Outros Contos e Noveletas Tupinipunks A ficção científica tupinipunk curta é muitas vezes mais simpática a uma abordagem semelhante, em que os aspectos tupinipunks mais salientes são temperados por um diálogo um tanto mais consistente com o idioma da FC internacional.136 O conto de Braulio Tavares, “Jogo Rápido” (1989), lida com gangues de rua no Rio de Janeiro, parecidas com as gangues de pixadores de hoje, mas usando, na história, testas humanas como superfície para os seus vandalismos. As pessoas são seqüestradas e devolvidas com suas cabeças redecoradas com tatuagens. Não há muita tecnologia nessa história, e sim muita ironia dirigido às questões criminais de hoje, e uma interessante exposição de como o corpo como locus político é importante para o tupinipunk, algo sublinhado por Ginway em Ficção Científica Brasileira.137 O seguinte diálogo exemplifica a tentativa de Tavares, com o estilo tupinipunk: “Leo,você está fazendo um esforço titânico, um esforço masoquista, um esforço iogi para não deixar 135 McDonald também disse coisas bobas sobre o Brasil em sua entrevista para a Locus (Vol. 57, No. 547), mas eu vejo Brasyl como um bom exemplo de tupinipunk. Sua observação de que “os brasileiros fizeram uma tonelada de filmes onde as pessoas voltam no tempo para tentar mudar o resultado da desastrosa final [da Copa do Mundo de 1950, uma das premissas de Brasyl]” (p. 67) é besteira, mas puxa vida, o tupinipunk é o terreno da hipérbole e do exagero. 136 Tentei enfatizar essa tendência em minhas histórias “Vale-Tudo” (in Duplo Cyberpunk: O Consertador de Bicicletas/Vale-Tudo, Bruce Sterling/Roberto de Sousa Causo. São Paulo: Devir Livraria, 2010, pp. 79-124.) e “Para Viver na Barriga do Monstro” (in 2013: Ano Um, Alícia Azevedo & Daniel Borba, eds. Petrópolis, RJ/Praia Grande, SP: Editora Ornitorrinco/Editora Literata, abril de 2012, pp. 95111.). Também com ironia, chamei essas histórias de “pós-tupinipunk”. Por razões óbvias, não as analiso aqui. 137 Ginway, M. Elizabeth. Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro. Pp. 157-70. 260 transparecer a alegria malevolente que dança frevo elétrico em teus neurônios. Relaxa.”138 Algo similar é visto na notável noveleta de Ivanir Calado, “O Altar dos nossos Corações”, em que o governador do Rio de Janeiro, chamado Pereira Couto, finge ter sido seqüestrado, apenas para fazer um trato com a liderança do Comando Vermelho, para receber um implante cerebral que prolonga o seu prazer sexual. Seqüestrado de verdade, o Dr. Leopoldo Stoklos é quem faz a operação. Mais tarde o governador descobre que o dispositivo é uma bomba nuclear miniaturizada, que explodirá se ele não seguir as ordens dos traficantes. A história de Calado, assim como a de Braulio, extrapola uma direção possível para fatos da realidade urbana atual. A partir de presídios em que levam uma vida nababesca, os chefões do crime ordenam seqüestros, roubos a banco e extorsão, entre outros crimes. Como em outros textos tupinipunks, a noveleta de Calado include algumas imagens muito instigantes, sexo e violência, e um tom que oscila ousadamente entre o brincalhão e a crítica social séria. A divisão social carioca, plasmada na diferença entre morro e asfalto, é enfatizada pela construção de um muro que segrega as duas populações, uma rica e favorecida pelo Estado, a outra pobre e marginalizada. A prosa é mais direta do que em Fawcett e Kujawski ou em Ivan Carlos Regina, com um momento mais “cubista” ocorrendo quando Pereira Couto e sua amante Margareth, outra mulata escultural, fazem sexo, ambos munidos de implantes afrodisíacos, enquanto as forças policiais atacam as favelas a mando do governador, matando homens, mulheres e crianças indiscriminadamente. Na narração, as duas situações se alternam em um único parágrafo, culminando com a morte grotesca de Margareth, como aviso do que poderá acontecer ao governador, se ele deixar de atender ao Comando Vermelho.139 Mas os implantes são novamente sexuais. Há até mesmo algo de Sirkis em Calado: muitos comentários sobre a transformação dos telejornais em entretenimento, e uma explosão nuclear como orgasmo, ecoando a obsessão do tupinipunk por sexualidade e poder. 138 Tavares, Braulio. “Jogo Rápido”. In A Espinha Dorsal da Memória/Mundo Fantasmo. Braulio Tavares. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1996 [1989/1994], p. 105. 139 Calado, Ivanir. “O Altar dos nossos Corações”. In O Atlântico Tem Duas Margens: Antologia da Novíssima Ficção Científica Portuguesa e Brasileira, José Manuel Morais, ed. Lisboa: Editorial Caminho, Caminho Ficção Científica N.º 155, 1993, pp., 190-91. M. Elizabeth Ginway faz uma análise mais demorada e pormenorizada desse texto, com destaque para as questões de política do corpo, no ensaio “The Body Politic in Brazilian Science Fiction” (in New Boundaries in Political Science Fiction, Donald M. Hassler & Clyde Wilcox, eds. Columbia, SC: The University of South Carolina Press, 2008, pp. 201-202. 261 Já o conto de Ivan Carlos Regina, “O Caipora Caipira” (1993), é em si mesmo uma espécie de manifesto ficcional que critica fortemente a americanização da cultura brasileira, e revela quase que explicitamente a vinculação do tupinipunk com o modernismo brasileiro. Regina também é autor do “Manifesto Antropofágico de Ficção Científica” (1988), que ecoa o “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, no qual Andrade defende que as influências culturais estrangeiras sejam consumidas para substanciar uma cultura verdadeiramente brasileira. O manifesto de Regina apareceu primeiro no fanzine Somnium, e depois no livro de contos do autor, O Fruto Maduro da Civilização (1993). Clamou por uma leitura crítica da FC importada dos Estados Unidos e do papel da ciência e tecnologia no Brasil, e por uma maior “brasilidade” em nossa produção de ficção científica, e disparou um movimento de vida curta mas de grande controvérsia dentro da FC brasileira, sem contudo oferecer muito em termos de uma influência direta sobre a produção posterior. Assim como no manifesto original de Oswald de Andrade, Regina levanta a questão da dependência de modelos literários importados, e da necessidade de transformá-los ou degluti-los, a fim de evitar a imitação vazia. Ainda que a questão de uma FC brasileira com características de terceiro mundo tenha sido primeiro levantada na década de 1960, pelo escritor da Primeira Onda, Walter Martins (1933-2010),140 Regina foi o primeiro a articular essa questão na forma de polêmica ou manifesto. De certo modo, pode-se dizer que o tupinipunk foi a realização das propostas de Regina, ainda que ele não fosse conhecido de Sirkis, Fawcett, Kujawski, e embora nenhum outro autor tupinipunk tenha oficialmente subscrito suas idéias (exceto talvez por Braulio Tavares, e tardiamente).141 “O Caipora Caipira” (1993) trata de um índio mítico, Abauê, que desce de um disco voador e pousa na Amazônia — um empréstimo da famosa canção tropicalista de Caetano Veloso, “Um Índio”, que diz, em sua primeira parte: Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante De uma estrela que virá numa velocidade estonteante E pousará no coração do hemisfério sul Na América, num claro instante Depois de exterminada a última nação indígena 140 Veja Causo, Roberto de Sousa. “Cápsula do Tempo: Entrevistas do Simpósio de FC”. In Terra Magazine, 27 de fevereiro de 2010, http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4290809-EI6622,00Capsula+do+tempo+Entrevistas+do+simposio+de+FC.html 141 Veja Tavares, Braulio. “Antropofagia na Ficção Científica”. Metáfora: Literatura e Cultura N.º 5, Ano 1 (fevereiro 2012): 50-52. “A FC brasileira tem demonstrado que pode ‘antropofagizar’ os temas e as estruturas narrativas da FC estrangeira”, ele escreveu (p. 52). 262 E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias 142 O índio do conto vem atacar a sociedade consumista ocidental, e reconstruir elementos arquetípicos do Brasil, digerindo satélites orbitais e lanchonetes do McDonald, para então regurgitar trechos reflorestados da selva de pedra que é São Paulo. O estilo é hiperbólico, onomatopéico e traz momentos como este, que subvertem o idioma da FC: “Abauê monta em sua mula sem cabeça e caminha para o antitempo com seus dois pés virados para trás, atravessa uma dobra espacial, fura um hiperespaço e irrompe jubiloso em plena Praça da Sé.”143 Mais um conto de Regina, presente em O Fruto Maduro da Civilização, também se qualifica como tupinipunk pela prosa cubista modernista e pela fusão da imagética da FC com um misticismo hindu derivado da experiência da contracultura: “Um Homem Porra-Louca por Tempo Demais.” Não obstante, consumir tecnologias e franquias estrangeiras para recriar o verde e fornecer proteína aos pobres, como em O Caipora Caipira”, é uma idéia consumadamente antropofágica. Já na noveleta de Carlos Orsi, “Questão de Sobrevivência” (2005), uma complexa ação de comando high-tech de um grupo de guerrilheiros urbanos é montada para tomar posse de um caminhão carregado de leite humano: uma droga contraceptiva holandesa fora misturada na água pelo governo brasileiro, e agora as crianças pardas da periferia pobre de São Paulo não podem digerir o leito humano que não seja processado por multinacionais, criando uma situação de insegurança alimentar que aprofunda a dependência econômica dessa população — e que simbolicamente enfatiza a sua alienação da “pátria mãe” e do Estado que a representa. Como resultado, um novo movimento de guerrilha esquerdista é formado amparar essa população. Chamam a si mesmos de “Fidelistas”, em homenagem a Fidel Castro. A história, ágil e movimentada, faz por São Paulo o que Tavares e Calado haviam feito pelo Rio de Janeiro, equilibrando o burlesco com crítica social dirigida às elites, ao mesmo tempo que satiriza a desorganização dos movimentos sociais da periferia. Na mesma linha, a noveleta “A Lua É uma Flor sem Pétalas” (2012), de Cirilo S. Lemos, fecha a polêmica antologia Geração Subzero: 20 Autores Congelados pela 142 A letra completa está disponível em http://www.free-lyrics.org/Caetano-Veloso/48527-Um%C3%8Dndio.html. A mesma canção inspirou o conto “Pindorama”, de Sidemar V. Castro (in Contos Imediatos, Roberto de Sousa Causo, ed. São Paulo: Terracota Editora, 2009, pp. 105-12). 143 Regina, Ivan Carlos. “O Caipora Caipira”. In O Fruto Maduro da Civilização. São Paulo: Edições GRD, Ficção Científica GRD N.º 16, 1993, p. 49. 263 Crítica mas Adorados pelos Leitores, editada por Felipe Pena. Em tom e em temática, parece se situar entre “O Altar dos nossos Corações” e “Questão de Sobrevivência”. É ambientada em um Rio de Janeiro no qual as comunidades faveladas possuem autonomia política, as divisões sociais parecem ainda mais exacerbadas, e os senhores do crime comercializam, além de drogas, a entrada em bailes ilegais em que acontecem orgias em carne-e-osso e em realidade virtual. Alguns trechos lembram Fausto Fawcett, como este: Através de avatares secundários clandestinos, as mulheres vinham aos montes em busca de experiências sexuais com o que chamavam de pavorosos sub-humanos da favela. Homens se conectavam para transar com representações de suas mães, seus bichos, seus filhos. O baile do Buraco da Pedra era o lugar para se realizar desejos sem medo das represálias dos puritanos. Por um precinho camarada. 144 Além do comentário satírico, a noveleta de Lemos traz ainda atualizações tecnológicas como “fuzis de agulha”, e um subenredo envolve um printer ou “fabricador 3D”145 que produz, a partir de uma entrada de dados digitais, peças para armas que vão de fuzis a tanques, de posse do chefão da favela, um sujeito chamado Tubarão. Apresentando vários personagens-ponto de vista, a história tem seus segmentos separados não por asteriscos, mas por pseudo-excertos noticiosos tomados da Internet, e que — sem a técnica cut-up fragmentada de Kujawski em Piritas Siderais — ampliam a visão do mundo futuro de Lemos, ao mesmo tempo em que aprofundam seu caráter satírico. Também ambientado no Rio de Janeiro, “Instinto Materno” (2010), de Pedro Vieira, é narrado em primeira pessoa por Paulo André, um policial que, às vésperas da visita ao Rio por um clone de Cristo, participará da sua escolta. A polícia carioca do futuro está no mercado de ações, muitas de posse da empresa que clonou “JC”. O herói é encarregado de realizar um trabalho de umbanda para garantir que a escolta será bemsucedida, e no processo ele tem que capturar um bebê velociraptor também clonado, solto no Jardim Botânico. O dinossauro fará às vezes de uma galinha de sacrifício, já que essa ave está extinta no futuro. Ecos de Piritas Siderais? Ambas efetivas, as narrativas de Vieira e de Cirilo S. Lemos mostram que o tupinipunk avança para o século XXI. 144 Lemos, Cirilo S.. “A Lua É uma Flor sem Pétalas”. In Geração Subzero: 20 Autores Congelados pela Crítica, Mas Adorados pelos Leitores, Felipe Pena, ed. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 310. 145 Essa tecnologia emergente foi assunto de recente matéria de capa da revista Wired: Anderson, Chris. “Dreaming in 3D”. Wired 20.10 (outubro 2012): 136-43. 264 Sincretismo Pós-Modernista Bruce Sterling afirmou que o cyberpunk tem “raízes [que] estão fincadas fundo na tradição de sessenta anos da FC popular”.146 Ao contrário do cyberpunk, porém, as narrativas tupinipunks, Brasyl inclusive, apresentam pouca ação no ciberespaço e pouca eletrônica — ou bem menos do que no cyberpunk à lá Gibson: “A mídia eletrônica não comunica mais nada em Copa”,147 Fawcett escreveu no seu romance, embora ele lide brevemente com a realidade virtual. Na novela de Kujawski, esses leitmotifs cyberpunks são reduzidos a um bizarro fantasma na máquina. As obras tupinipunks tendem a ser “globais” não por terem personagens viajando pelo mundo afora, ou pela caracterização de uma nova ordem mundial, como Gibson e Sterling costumam fazer, mas dando à paisagem brasileira muitas referências multiculturais. Se o cyberpunk pé uma ficção radical pós-modernista que colhe material da FC e da ficção hard-boiled, da cultura das drogas e do punk rock, o tupinipunk tenta parecer de vanguarda recuperando atitudes da vanguarda local que é mais lembrada: o modernismo antropofágico das décadas de 1920 e 30, que buscou suas idéias em movimentos europeus de vanguarda como o dadaísmo, o surrealismo e o futurismo, mas equilibrados por uma pesquisa sistemática da realidade brasileira,148 e em conjunto com uma pesquisa (ou invenção) estética, reagindo fortemente ao convencionalismo artístico e aos resíduos coloniais da sociedade brasileira — no que eles apelidaram de “passadismo”. Algo desse esteticismo é a base do estilo tupinipunk: ecos da “prosa cubista” de Oswald de Andrade,149 a produção de uma voz supostamente múltipla a partir da qual algo novo deve aparecer, como uma combinação de referências de objetos conhecidos, mas vistos então por um ponto de vista que seria mais aberto e livre, quando comparado à prosa convencional; e também uma visão utópica do sexo como uma força libertadora; a tentativa de fundir e anular as diferenças de diferentes 146 Sterling, Bruce. “Preface”. In Mirrorshades: The Cyberpunk Anthology, Bruce Sterling, ed. Nova York: Arbor House, 1986, p. viii. 147 Fawcett, Fausto. Santa Clara Poltergeist. P. 115. 148 Coutinho, Afrânio. “Modernismo”. In Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume II, Afrânio Coutinho & J. Galante de Sousa, eds. São Paulo: Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional/DNL, & Academia Brasileira de Letras, 2001, p.1085. 149 Braulio Tavares já havia apontado a relação entre Santa Clara Poltergeist e o que ele chamou de os “dois mais ilustres pilares da literatura pop brasileira, os romances Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.” (Tavares, Braulio. “Uma Ficção Científica sem Clichês”. P. 24.) 265 categorias de forma e pensamento literário; romper com as formas convencionais; e mantendo até algum tipo de primitivismo. A abordagem tupinipunk dessas atitudes dos primeiros modernistas vem misturada com movimentos de contracultura e música como a tropicália ou tropicalismo — este também uma recuperação das idéias modernistas atualizadas por conceitos de arte pop de Andy Warhol (1928-1987), ativismo político e poesia concreta. Assim como ocorreu com o modernismo, o tropicalismo abraçava atitudes de vanguarda, o novo e “a visão irônica e crítica do país.”150 Por meio de recombinações como estas, a propensão modernista para “a piada, o ridículo,o escândalo, a agitação”151 como armas de choque inspira a jocosidade tupinipunk, reencarnada como post-modernist playfulness exatamente pelo acréscimo de violência, pornografia e escatologia. Diferentemente do cyberpunk, o tupinipunk apresenta pouca ciência exata e o seu emprego dos temas e leitmotifs da FC aparece num tom de sátira e de citação, aproximando-o do pastiche. A maioria dos autores tupinipunk negaria que as raízes da sua literatura estão fincadas profundamente na tradição de sessenta anos de FC popular, como Sterling disse sobre o cyberpunk. Outro elemento diferenciador é a religião ou misticismo, aqui ligado ao sincretismo. Isso aparece em Sirkis, Regina, Fawcett, Kujawski e McDonald, geralmente com implicações sociais, culturais e políticas (como a mudança do catolicismo para a umbanda como religião “oficial”. Enfatizado, o humor sarcástico também os separa do cyberpunk anglo-americano típico, tornando o tupinipunk mais próximo daquele “cyberpunk humorístico” de Software (1982), de Rudy Rucker, ou o d’A Usina Nuclear de Papai (Dad’s Nuke; 1985), de Marc Laidlaw, que foi o primeiro romance cyberpunk publicado no Brasil (em 1988). Em geral, os autores tupinipunks escreveram sem o conhecimento de que outros se engajavam em empreitadas semelhantes. Kujawski, por exemplo, não havia lido Santa Clara Poltergeist quando escreveu Piritas Siderais, e nunca tinha ouvido falar de Ivan Carlos Regina, cujo impacto fora do fandom de FC foi nulo. O próprio Braulio Tavares aparentemente não reconheceu as similaridades entre os contos de Regina e o romance de Fawcett. Tudo isso reforça constatação de que, ao contrário do cyberpunk, o tupinipunk não foi um movimento, mas uma tendência espontânea presente na FC brasileira na sua interface com a literatura mainstream experimental, contendo algo da atmosfera cultural, das contradições e dos dilemas do país. 150 151 Góes, Fred. “Tropicalismo”. In Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume II. P. 1588. Coutinho, Afrânio. “Modernismo”. P. 1087. 266 A maioria dos escritores tupinipunks aderem a uma estética pós-modernista, na qual enredo, personagem e tema são secundários — ou inexistentes —, e na qual as epifanias interiores dos personagens não são o foco principal. Esse foco aponta para contextos exteriores, sublinhados por ambigüidades de identidade e de relacionamentos, nos quais a própria natureza do “ser” perde seus parâmetros usuais e se torna uma procura escorregadia, que raramente conduz à transformação dos personagens. É a construção do heterocosmo de Brian McHale, que, por existir de modo tão diverso da nossa ontologia, enfraquece as suas bases. E é também a fabulation de Robert Scholes, uma narrativa que aponta para a sua natureza arbitrária de narrativa, e que não se pretende representação fiel dos conteúdos da realidade. Finalmente, o tupinipunk também fala a uma audiência e a uma tradição literária que apenas tangencialmente toca a FC e os seus modos de leitura e de diálogo intertextual, sendo mais relacionada ao modernismo brasileiro e ao lugar central que essa tradição deu ao sincretismo. * O sincretismo, da acepção que darei a ele aqui, é a combinação de idéias e costumes de origens diferentes, às vezes de posições antagônicas, que produzem visões confusas de uma totalidade complexa. A condição de país do Terceiro Mundo é transparente no sincretismo brasileiro, como uma apropriação cultural que não oferece um entendimento profundo das culturas contribuintes. Isso é especialmente visível na prática multireferential, relativa a vária culturas ou elementos culturais. Sirkis reconhece o tropicalismo como a sua principal estrutura de referência. Regina joga com o tipo de filosofia mística que estiveram em voga nas décadas de 1960 e ‘70, geralmente como uma condenação aberta da vida moderna. O romance de Fawcett lida com a criação de mitos religiosos num tom muito brincalhão, e o trabalho de Kujawski apresenta um futuro no qual o regime é a “teocracia parlamentar”152 umbandista. Entretanto, o tratamento que o tupinipunk dá ao sincretismo assinala um tipo de acomodação típica da tradição política do Brasil e do seu discurso social de conciliação — em que as tensões básicas de um país contraditório são apenas acomodadas, e não abordadas para valer, ou com justiça. “Sincretismo” foi a denominação de uma fase pré-modernista (de 1910 a 1920) na literatura brasileira, indicando o “Sincretismo de elementos simbolistas e parnasianos, que afastou nitidamente os seus representantes da marca oficial da [literatura da 152 Kujawski, Guilherme. Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco. P. 33. 267 época].”153 Mas o sincretismo entre raças e culturas aparece cedo como característica distinta do pensamento intelectual brasileiro nos textos do intelectual literário Sílvio Romero (1851-1914). Escrevendo entre 1882 a 1903, Romero usou as palavras “mestiço” e “mestiçagem”: “o mestiço, o genuíno brasileiro”, “o brasileiro por excelência”.154 A partir disso, o Modernismo Brasileiro das décadas de 1920 e 30 assumiu o seu apreço por uma “arte mestiça” — de acordo com Alberto Luiz Schneider, que afirmou: “É possível também apontar certas proximidades pouco notadas ou comentadas [da obra de Romero] e os esforços de Mário de Andrade e Gilberto Freire, autores saudados como profundamente empenhados em descobrir o Brasil”;155 “[t]rata-se de dois autores que estiveram no centro das novas leituras que se produziam em torno da experiência história e cultural do país”.156 Pode-se ainda presumir uma conexão direta entre as visões de Andrade e Freire, e o “Manifesto Antropofágico” (1928) de Oswald de Andrade, e das idéias desse manifesto, num trajeto mais longo, até as manifestações tupinipunks.157 Nesse processo, algo do valor ideológico atribuído a “mestiço” migrou para o “sincrético”, um termo geralmente mais aplicado a misturas religiosas e folclóricas. É dizer que o conceito percorreu um percurso do híbrido (dois elementos combinados, como índio + branco; ou negro + branco) para o sincrético (como esforço intencional de representação artística das mestiçagens artística e cultural).158 Tal percurso conceitual atenuou o conteúdo inicial racialista dos ensaios de Romero, expresso em termos claramente darwinistas sociais: Devemos desejar que em nosso país a imensa mestiçagem da população seja habilmente reforçada pelo elemento branco. Mas historicamente é de justiça e verdade conferir ao negro papel mais eminente do que ao botocudo, ente fraco, desequilibrado e prestes a extinguir-se. É a luta pela existência; o mais débil devia ser devorado.159 [...] [E a] raça selvagem está morta; nós não temos nada mais a temer ou a esperar dela.160 153 Coutinho, Afrânio. “Sincretismo”. In Enciclopédia de Literatura Brasileira Volume II. P. 1509. O termo, nesse emprego, é atribuído ao poeta Tasso da Silveira (1895-1968). 154 Romero, Sílvio. “Poesia: Quinta Fase do Romantismo”. In Sílvio Romero: Teoria, Crítica e História Literária. Antonio Candido, ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Livros Técnicos e Científicos Editora/EDUSP, 1978, p. 43. 155 Schneider, Alberto Luiz. Sílvio Romero: Hermeneuta do Brasil. São Paulo: Annablume Editora, 2005, p. 192. 156 Idem, ibid. P. 198. 157 Basta lembrar o Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, de Ivan Carlos Regina. 158 Isto se aproximaria do conceito de “sincretismo inventivo” (inventive syncretism), que James Clifford elabora em The Predicament of Culture (Cambridge: Harvard University Press, 1988). 159 Romero, Silvio. “Poesia: Quinta Fase do Romantismo”. In Sílvio Romero: Teoria, Crítica e História Literária. Antonio Candido, ed. Pp. 49-50. 160 Idem, ibid. P. 65. 268 Romero também escreveu a respeito da “mestiçagem moral”, que pressupõe uma superioridade do elemento branco (é bom lembrar que ele começou a desenvolver esses conceitos ainda na vigência da escravatura): [os filhos dos negros e índios agregados à casa-grande do senhor de escravos] perdiam também o uso de sua língua nativa e falavam a língua da casa-grande, a língua do senhor; eram cristianizados e aprendiam umas tantas coisas, que só os brancos sabiam... Eis aí o que eu chamo de um caso de mestiçagem moral. 161 E discutiu a sexualidade colonial nestes termos: Imaginem-se centenas e milhares de mancebos portugueses nos dois primeiros séculos da conquista, rapazes que não ainda constituído família, fortes e sadios, atirados no harém brasileiro de belas pretas e caboclas fáceis, e compreender-se-á que a fusão das raças era inevitável. 162 O que é consistente com o que Robert C. G. Young aponta em Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria, Cultura e Raça (Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race; 1995), ao observar que as mulheres negras no espaço colonial eram vistas como objetos sexuais que provavam a sua qualidade sedutora com cada violência que sofriam.163 Young conclui que a “construção cultural de raça sempre foi incentivada pela conjunção corrupta de tais discursos sexuais e econômicos híbridos”.164 É comum no tupinipunk, a estereotipização sexual dos negros: a sensualidade da mulata em Piritas Siderais e “O Altar dos nossos Corações”, do homem negro garanhão em Silicone XXI e Santa Clara Poltergeist. O trabalho de Young sugere a sobrevivência dessas categorias de pensamento, argumentando que talvez “estejamos mais ligados às suas categorias do que gostamos de pensar. [...] O pesadelo das ideologias e categorias do racismo continuam a repertirse nos vivos.”165 David Slater é outro pensador que concorda que “a percepção de que formas verticais de poder não desapareceram pode ajudar a nos prevenir quanto à romantização do hibridismo, ou de esquecermos que visões positivas de hibridização 161 Idem, ibid. P. 55. Idem, ibid. Pp. 55-56. 163 Young, Robert C. G.. Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria, Cultura e Raça (Colonial Desire: Hybridity in Theory, Culture and Race). São Paulo: Editora Perspectiva, 2005 [1995], p. 185: “[O] eixo ambivalente de desejo e repugnância do homem branco foi legitimado através de uma notável dissimulação ideológica, por meio da qual, a despeito da forma como as mulheres pretas foram constituídas objetos sexuais e comprovaram sua capacidade de sedução graças à própria ação que as vitimava, elas foram também ensinadas a ver-se a si próprias como sexualmente sem atrativos.” 164 Idem, ibid. P. 194. 165 Idem, ibid. P. 33. 162 269 podem ser concomitantes com novas formas de essencialismo”.166 De fato, em se tratando da análise do pós-modernismo, é tão necessário quanto pensar nas rupturas, pensar nas continuidades. Homi K. Bhabha, o proeminente teórico pós-colonial que reposicionou o hibridismo dentro do seu conceito de um “Terceiro Espaço de Enunciação”, assinala essa continuidade ao observar que Os termos do embate cultural, seja através de antagonismo ou afiliação, soa produzidos performativamente. A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica. O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão “na minoria”. 167 [grifo meu] Em entrevista a Jonathan Rutherford, Bhabha estende a discussão da sua diferenciação entre diversidade cultural (potencialmente universalista e normativa) e diferença cultural (potencialmente contestadora), observando que [a] natureza toda da esfera pública está mudando de modo que realmente precisamos da noção de uma política que seja baseada em identidades políticas desiguais, desequilibradas, múltiplas e potencialmente antagonistas. [...] O multiculturalismo representa uma tentativa tanto de fornecer uma resposta quanto uma forma de controle do processo dinâmico de articulação da diferença cultural, administrando um consenso baseado em uma norma que propaga a diversidade cultural. [...] A diferença das culturas não pode ser algo passível de ser acomodado dentro de uma moldura universalista. [É] na verdade muito difícil e até impossível ou contraproducente, tentar encaixar juntas diferentes formas de cultura e fingir que elas podem coexistir facilmente.168 O meu argumento, portanto, é o de que formas de emprego de sincretismo e antropofagia cultural no tupinipunk alinham-se com esse modo de controlar o processo da diferença cultural — no mesmo instante em que reflete essa diferença — e administrar um consenso universalista muito próprio da cultura brasileira. Nem todas as obras tupinipunks, é claro, amparam essa crítica.169 Mas certas expressões de sincretismo acabam se integrando a uma idéia de nacionalidade baseada em essencializações de origens raciais e culturais, formuladas em circunstâncias racialistas, 166 Slater, David. “Post-Colonial Questions for Global Times”. Review of International Political Economy 5:4 (Winter 1998), p. 659. 167 Bhabha, Homi K. The Location of Culture. Londres & Nova York: Routledge Classics, 4th edition, 2006 [1994], pp. 20-21. 168 Jonathan Rutherford. “The Third Space: Interview with Homi Bhabha”. http://ccfi.educ.ubc.ca/Courses_Reading_Materials/ccfi502/Bhabha.pdf, 1990, pp. 208-209. 169 Histórias de Braulio Tavares e a noveleta de Ivanir Calado escapam parcial ou totalmente dela. 270 quando as etnias não-européias no Brasil se encontravam, em termos políticos, quase que completamente submetidas ao poder dominante. Tornou-se mais uma “identificação fixa”, nas palavras de Bhabha: um pólo de binarismo identitário, a tradição que se reinscreve “através das condições de contingência e contraditoriedade”. A própria ausência de um questionamento ou de uma sistematização maior do sincretismo e da antropofagia cultural espelha a “cristalização” desses conceitos, como o escritor e acadêmico Cristóvão Tezza notou muito recentemente: “A miscigenação brasileira [...] não recebeu uma clara ou hegemônica formulação política ou mesmo teórica (depois de Gilberto Freyre) [...]”.170 Por exemplo, é comum no tupinipunk a estereotipização sexual dos afrodescendentes, com referência ao tamanho da genitália,171 narinas largas, e a saudação da sexualidade superior sexualidade dos negros é uma constante. Por outro lado, o sexo livre está presente no conto “Stuntmind” (1989) de Tavares, entre outras histórias, e é possível rlacionar isso à atribuição libertária do sexo, argumentando que ela contrasta com a posição americana com respeito ao “ciborgue” como atribuição libertariana de controle e extensão do corpo. Nas palavras de Donna Harraway, “O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero sexual; não dá atenção à bissexualidade, à simbiose pré-odipiana, ao trabalho não alienado ou a outras seduções de integridade orgânica até uma apropriação final de todos os poderes das partes, levando a uma unidade mais elevada.”172 A visão brasileira seria até certo ponto uma reação ao desejo do regime militar de controlar a sexualidade e a reprodução, durante a ditadura, por meio de censura mora e planejamento social. Tais constatações a respeito do tupinipunk não são impedimento para que, em um outro plano, esse subgênero se posicione em uma chave de crítica pós-colonial, da cultura brasileira contra a postura dominante hegemônica dos Estados Unidos e de outros países do Primeiro Mundo. M. Elizabeth Ginway vê o tupinipunk de maneira positiva. “[A] política, o primitivismo e o erotismo deliberado são princípios básicos do tupinipunk, distinguindo-o de sua contraparte norte-americana”, escreveu. “Em sua representação de raça, sexualidade, espaço urbano e multimídia, o tupinipunk usa o corpo como um 170 Tezza, Cristóvão. “O Brasil de Jorge Amado”. Folha de S. Paulo, 24 de abril de 2010, p. E8. Feminina em Santa Clara Poltergeist, p. 14; masculina em Piritas Siderais: Romance Cyberbarroco, p. 21. 172 Haraway, Donna. “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century”. In Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature (Nova York; Routledge, 1991), pp.149-181. Disponível em http://www.stanford.edu/dept/HPS/Haraway/CyborgManifesto.html. 171 271 espaço de resistência cultural.”173 Ela também entende o tupinipunk como possível estratégia pós-colonial: [É] precisamente [a] imagem exótica [do Brasil], combinada com o tipo de tecnologia que o cyberpunk brasileiro leva ao extremo, que lhe permite contestar a hegemonia literária do cyberpunk americano e a parodiar de modo autoconsciente noções elitistas da alta cultura no Brasil. Nesse sentido, o tupinipunk relaciona-se tanto com a tradição modernista brasileira do canibalismo cultural, quanto a uma sensibilidade [pós-colonial].174 O modo jocoso do tupinipunk e o distanciamento pós-modernista implicam que na maior parte do tempo os seus protagonistas não mudam significativamente ao longo da narrativa — o que reforça o seu traço conservador. É claro, em geral os personagens do cyberpunk anglo-americano são jovens de baixa volição e capacidade de análise, envolvidos em situações muito maiores do que eles, que os levam de roldão. Não obstante a sua superficialidade, Case, o herói de Neuromancer, começa a narrativa como um rebelde interessado apenas em recuperar sua capacidade de processar drogas (tomada dele pela implantação de órgãos imunes aos efeitos estupefacientes), mas altera a sua visão das coisas após testemunhar o nível de corrupção atingido pela aristocracia capitalista do futuro, no que Jameson chamou de “intensidade trágica”.175 Personagens de Bruce Sterling como Laura Webster e Alex Unger, de Piratas de Dados e Tempo Fechado, respectivamente, são mais profundamente transformados pelas experiências dramáticas e pivotais que sofrem ou testemunham, incorporando nas suas experiências pessoais a própria idéia da mudança de paradigmas e de conjunturas. Em contraste, a post-modernist playfulness de Piritas Siderais e a sua ênfase na linguagem como “personagem principal” fazem com que o herói Zé Seixas não sofra qualquer transformação — nem guie o leitor até um novo entendimento. Em Santa Clara Poltergeist, a narrativa se move com uma qualidade cinematográfica que privilegia o plano do detalhe — o “close ginecológico”, a fragmentação pornográfica do corpo e sua objetificação em fetiches — ou a panorâmica abrangente — os movimentos dos personagens contra uma paisagem urbana que não reflete seus estados de espírito —, sem nunca descer ao plano da subjetividade dos seus personagens. O efeito é o mesmo que os esquemas alegóricos de Ivan Carlos Regina em “O Caipira Caipora”, 173 Ginway, M. Elizabeth. Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade no País do Futuro. P. 157. 174 Idem, ibid. P. 156. 175 Jameson, Fredric. Archaelogies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science Fictions. P. 384. 272 em que a natureza mítica de um herói que é antes de tudo símbolo, impede-o de se transformar com as experiências. Enfim, ainda que lide com futuros que são muito diferentes do nosso presente, o tupinipunk carece daquilo que a acadêmica canadense Diana Brydon (University of Manitoba, em Winnipeg) chama de “o valor da fricção como uma forma que possibilite a participação democrática”.176 Conforme a “globalização faz surgir simultaneamente expressões intensificadas de diversidade e pressões para uma conformidade”,177 as narrativas tupinipunks refletem essa mesma ambigüidade, ajustada às principais tendências brasileiras em torno do conceito de sincretismo. Importa, entretanto, assinalar que aqui também a ficção científica brasileira usa referencias e tradições literárias e culturais próprias, para enfocar uma problemática que nos Estados Unidos o Movimento Cyberpunk abordava quase que concomitantemente, mantendo apenas algumas influências cinematográficas e beats em comum — algo ausente na FC nacional da Primeira Onda. E aqui também, como na comparação anterior entre a FC brasileira da Primeira Onda e a New Wave, a pouca familiaridade com o gênero é a norma, mas o mergulho do tupinipunk na estratégia heterotópica e na fabulation torna a questão de conhecimento e competência perfunctória — salvo pelas exceções assinaladas, nas quais alguns esforços extrapolativos são resguardados. A ficção científica brasileira da Segunda Onda, da qual faz parte o tupinipunk, é bem mais diversificada do que foi a Primeira. Vai da FC hard de Jorge Luiz Calife e Henrique Flory, assumindo cores da Golden Age americana com Finisia Fideli e José dos Santos Fernandes; reproduzindo um lirismo que trai a influência persistente de Ray Bradbury com Roberto Schima e Marien Calixte; até uma busca da matéria brasileira sem pudores mas em linguagem clara, com Ivanir Calado. Já a Terceira Onda (de 2004 ao presente) oscila entre uma recuperação tangencial do pulp (com antologias de space opera, por exemplo),178 à exploração dos espaços fronteiriços entre a FC, a fantasia o horror e outros gêneros, com o New Weird de Jacques Barcia e Tibor Moricz; e a atualização do gênero pela exploração da corrente retrofuturista do steampunk ou da new space opera (dois subgêneros pós-cyberpunk, por sinal). 176 Brydon, Diana. “Global Friction, Alberta Fictions”. English Quarterly Special Issue: The Prairies in 3-D: Disorientations, Diversities, Dispersals, 40 (1/2) 2008, p. 3. 177 Idem. 178 A trilogia de antologias Space Opera, organizadas por Hugo Vera & Larissa Caruso para a Editora Draco, são um exemplo, assim como Sagas Volume 4: Odisseia Espacial (Argonautas Editora; 2013). 273 Por essa evolução percebe-se que a FC brasileira agrega complexidades que não afligem a expressão anglo-americana do gênero: além da reconciliação entre pulp e literário, ela precisa igualmente retornar àquela identidade própria, local, esboçada na Primeira Onda, e redescobri-la para trabalha-la com autoconsciência. Precisa pensar para si estratégias de investigação da situação particular do Brasil pelas ferramentas da extrapolação e do futurismo hard,179 encontrando um espírito visionário que ainda não dá conta de um Brasil país emergente, de presença globalizada e que anseia por ouvir a voz das ruas e suas demandas até então caladas ou intermediadas por atores sociais calculistas e comprometidos. Entre eles e frequentemente, a própria academia. 179 A forma mais rara de ficção científica por toda a história do gênero no país tem sido a de futuro próximo em que se investiga com seriedade, abrindo mão da sátira jocosa, o futuro do Brasil nos próximos 25, 50 ou 100 anos. 274 CONCLUSÃO: ALÉM DO “BINARISMO MANIQUEÍSTA” [O]s lugares continuam a existir por continuar a existir alteridade no mundo.1 —Néstor García Canclini. No capítulo “Sociedades do Conhecimento: A Construção Intercultural do Saber”, em Diferentes, Desiguais e Desconectados: Mapas da Interculturalidade (2004), Néstor Canclini busca espaços de “interrupção da homogeneidade”2 dentro da conjuntura pósmoderna, rumo a uma recuperação do conceito antropológico das sociedades do conhecimento, de que “todas as sociedades, em todas as épocas, foram sociedades do conhecimento, [...] que todo grupo humano dispôs de um conjunto de saberes apropriado ao seu contexto e aos seus desafios históricos”.3 Segundo ele, a necessidade agora é de, no contexto pós-moderno de globalização de “intercâmbios econômicos, [e das] migrações, os meios de informação e entretenimento, as condições e ecológicas e muitas enfermidades”, alcançar-se uma “concepção que reconheça as diferenças junto com as desigualdades, as interconexões entre sociedades com formas distintas de conhecimento”.4 Canclini reflete: [Q]uais conseqüências tem o fato de se aceitar a diversidade cultural como ingrediente necessário da sociedade do conhecimento? Podemos responder de modo simples: conceber a sociedade de modo multifocal e com relativa descentralização. Esta afirmação geral adquire sentidos distintos nas ciências e nos sistemas de representação sociocultural. Em relação à universalidade do conhecimento, implica buscar a compatibilidade entre saberes científicos e aqueles que correspondem a outras ordens de experiências simbólicas e modelos cognitivos. Ao mesmo tempo, nas indústrias, as tendências homogeneizadoras dos mercados não darão uma verdadeira convergência ou integração planetária se não aceitarem a versatilidade exigida por formas de elaboração simbólica pouco rentáveis comercialmente. 5 E também: A diversidade reaparece [...] no núcleo do projeto de sociedade do conhecimento. É o componente que a distingue da sociedade da informação [pós-moderna] e o ponto no qual se articulam a problemática da diferença e a problemática da conexão. 1 Néstor García Canclini. Diferentes, Desiguais e Descontectados: Mapas da Interculturalidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 [2004], p. 125. 2 Idem, ibid. P. 223. 3 Idem, ibid. P. 226. 4 Idem. 5 Idem, ibid. P. 239. 275 Podemos concectar-nos com os outros unicamente para obter informação, tal como o faríamos com uma máquina provedora de dados. Conhecer o outro, porém, é lidar com sua diferença.6 É licito emprestar essa reflexões acerca de culturas tradicionais ou nacionais tentando sobreviver como identidades dentro de um contexto globalizado, e aplicá-las a uma oposição literária entre um saber literário institucionalizado e um congênere surgido a partir de práticas de escrita e leitura de um gênero popular como a ficção científica. Portanto, neste momento em que se fala da abertura da universidade para outros saberes, neste estudo busquei representar os conceitos, a história e a evolução da FC como um campo literário dotados de valores e dinâmicas distintas. O tema escolhido — a aproximação da FC e o pós-modernismo com sua propalada aproximação entre alta e baixa culturas, e o choque entre ficção de gênero e Literatura — fornece instância reflexiva dessa mesma problemática. A ênfase dada às questões de política literária — lançada também a partir de minha própria vivência literária — equilibram o peso da teoria e remetem ao fato de que, ao mesmo tempo que se produz ficções e discursos metalingüísticos a partir de um tempo e de um local, de um ponto fixo ou em fluxo entre coordenadas culturais e pessoais, também movimentos literários e estratégias de representação são informadas por essa mesma lógica. No primeiro capítulo, tracei o contexto do movimento New Wave a partir da mudança editorial vivida pela revista inglesa New Worlds. Também verificamos que nem toda a FC da assim chamada Golden Age, ou a da década de 1950, estava comprometida com o puramente pulp, com as tendências comercias ou com o pensamento ideológico do editor John W. Campbell, Jr. Analisando as questões de política literária em torno do movimento, fica claro que ele freqüentemente fez forte generalizações — o que é comum em se tratando de movimentos literários: descrever todo um contexto como negativo, de modo a firmar uma retórica de ruptura. E finalmente, recorrendo ao pensamento de John Carey e de Clive Bloom, compreendemos a raiz essencialmente elitista da literatura modernista e pós-modernista, contrabalançada por uma freqüente independência da ficção popular ou de gênero (pulp), a ponto de Bloom afirmar que é no mundo marginal da pulp magazine e no paperback descartável [que] está a essência da imaginação dos nossos tempos. Muito mais do que nos artifícios estilísticos do modernismo existe aqui, com verrugas e tudo, o centro do sensorium moderno — 6 Idem, ibid. P. 241. 276 nossa vida imaginativa vivida no instante e o contemporâneo tanto quanto o moral e o conservador.7 A conclusão inicial é portanto que a New Wave, ao desejar reinventar a ficção científica à imagem da Literatura, tentava se apropriar de uma mecânica de determinação e compreensão da obra literária de valor de pronto reconhecível, nisso agindo no sentido de domesticar o caráter anárquico e mutável da FC pelo formalismo e experimentalismo modernista. Seu fracasso em mudar a face do gênero, embora tenha fornecido um novo estojo de ferramentas aos seus autores, é testemunho desse caráter anárquico e mutável. No segundo capítulo, busquei compreender as características da New Wave a partir dos textos dos seus modelos e expoentes mais destacados. Nisso, espero ter evidenciado soluções diferenciadas que, elas também, denotam o envolvimento de cada autor com história pessoal, local de enunciação e adversários percebidos dentro dessa dinâmica de política literária entre recursos supostamente “velhos” e “novos”, “baixos” e “elevados”, “inadequados” e “adequados”. Lá estão apontados não apenas velhos posicionamentos elitistas herdados do modernismo e das vanguardas, como o choque com o pulp e a sua sobrevivência como paródia ou paradoxo, num movimento que se voltava primeiramente contra o seu “idioma”. E seguida, comparei a produção da Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira com a New Wave anglo-americana, na trilha das pistas oferecidas por David Lincoln Dunbar, para terminar negando a sua hipótese, mas reconhecendo que grande parte daquela produção reagia — a partir do lugar cultural brasileiro da época — a uma problemática semelhante à do movimento surgido na Inglaterra. Analisando as retóricas literárias em torno daquela FC brasileira nascente, levantei a hipótese, apoiado no trabalho de Ramiro Giroldo, de uma identidade de gênero em formação e em atrito com o pensamento literário canônico. No último capítulo, discorri sobre o Movimento Cyberpunk e a forma brasileira que chamei de tupinipunk, explorando semelhanças e diferenças, para alcançar uma conclusão similar: o tupinipunk busca o pós-modernismo e reage a uma problemática que seria global a partir do lugar cultural brasileiro, com um repertório distinto de influências e de recursos “idiomáticos” e formais. Ao mesmo tempo, nota-se nesse ponto da Segunda Onda que aquela identidade embrionária surgida na década de 1960 7 Idem, ibid. Pp. 24-25. 277 ainda é incerta, e que a representação do contexto brasileiro em toda a sua amplitude e a partir da estratégia extrapolativa e visionária favorecida pelos cyberpunks americanos ainda não se estabeleceu. Contudo, os assuntos ficção científica e ficção de gênero ainda precisam ser estendidos, para responder com mais firmeza a proposição central levantada aqui: que um gênero popular pode alcançar uma dimensão crítica adequada à investigação do contexto atual, sem necessariamente recorrer aos aspectos formalistas associados à literatura pós-modernista. * Tendo em mente a dinâmica de política literária que atinge a ficção de gênero — se é possível imaginar uma única perspectiva para um coletivo de vários gêneros e inúmeras práticas —, não há descontinuidade entre o modernismo e o pós-modernismo. Ou como escreveu Linda Hutcheon, “o moderno está inelutavelmente encerrado no pós-moderno [...] mas o relacionamento é complexo em termos de conseqüência, diferença e dependência”,8 sendo que, no plano da política literária, esse relacionamento preserva muito de uma lógica elitista ou totalizante, numa espécie de teleologia que aponta para a representação ou captura do zeitgeist, o espírito da época, apenas a partir de uma corrente historicamente dominante de prática literária. No plano literário, modernismo e pós-modernismo são modulações daquela corrente vitoriosa da literatura — o mainstream — que constitui a instituição do cânone e que ocupa todas as considerações sérias, excluindo as outras formas como subliterárias, irrelevantes ou meramente comerciais. Seja na FC, na fantasia, na ficção de detetive ou qualquer outro gênero popular, uns poucos títulos são selecionados para compor com as grandes obras da “literatura séria” — na FC, Admirável Mundo Novo (Brave New World; 1932), de Aldous Huxley; 1984 (Nineteen Eighty Four; 1949), de George Orwell; A Estrada (The Road; 2006), de Cormac McCarthy —, enquanto nomes inalienáveis como H. P. Lovecraft, Philip K. Dick, Stephen King, Dashiell Hammett ou Raymond Chandler penduram-se na beirada do cânone.9 8 Hutcheon, Linda. A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction. Nova York & Londres: Routledge, 1988, p. 38. 9 Stephen King, depois de colaborar com a revista The New Yorker, recebeu uma menção especial do National Book Award, enquanto Lovecraft, Dick, Hammet e Chandler foram recentemente incluídos na Library of America, considerada a “porta de entrada do cânone”. Mais recentemente, Gary K. Wolfe organizou dois volumes contendo romances clássicos da FC americana da década de 1950: http://www.loa.org/sciencefiction/ 278 O ethos de vanguarda também representa outra continuidade entre as duas condições, ainda que, na opinião de Hutcheon, de maneira atenuada.10 A ficção pós-moderna seria herdeira da “crise do sujeito” exposta pelas primeiras vanguardas européias, resultando na desconfiança quanto à narrativa: “o múltiplo e o heterogêneo colocam-se diretamente contra a ordem totalizadora da narrativa, e então complicam e comprometem o texto [...]”.11 O que se destila no entendimento de que narrativa, estilo “transparente” e enredo são componentes superados da literatura, por serem paternalistas, autoritários, ingênuos ou simplesmente fora de moda. Com certeza, esse entendimento passa pelo argumento da “crise da representação”, concomitante com a transição do realismo para o alto modernismo.12 A decantada aproximação entre alta cultura e cultura popular não está livre de problematizações dessa mesma ordem, já que a ficção popular na maioria das vezes insiste nesses mesmos elementos supostamente superados. Brian McHale, por exemplo, observa que “apenas por acontecer de certos textos da alta cultura misturarem elementos e alta cultura e cultura popular, não há razão para concluir que as fronteiras entre alta cultura e cultura popular tenham sido apagadas na cultura mais ampla”,13 e ele mesmo, enquanto aceita que a contaminação da alta cultura pela cultura de “massa” é histórica e que o contexto pós-moderno ofereceria apenas uma velocidade maior nesse processo,14 tenta preservar hierarquias entre mainstream e ficção de gênero pela sugestão teleológica de que a finalidade precípua do processo seria o enriquecimento da “ficção mainstream avançada”.15 Isso é algo que o intelectual brasileiro José Paulo Paes (apoiando-se em Umberto Eco) fez abertamente no conhecido ensaio “Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento (ou O Mordomo Não É o Único Culpado)”: “É em relação a [um] nível superior [o mainstream] que uma literatura média de 10 Idem, ibid. P. 47. Idem, ibid. P. 177. 12 Jameson, Fredric. “Foreword”. In The Postmodern Condition : A Report on Knowledge (La Condition postmoderne: report sur le savoir), Jean-François Lyotard. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984 [1979], pp. viii-ix. Jameson está contextualizando o pensamento de Lyotard em termos filosóficos e estéticos. 13 McHale, Brian. “POSTcyberMODERNpunkISM” . In Storming the Reality Studio: A Casebook of Cyberpunk and Postmodernist Fiction, Larry McCaffery, ed. Durham & Londres: Duke University Press, 1991, p. 309. 14 Idem, ibid. P. 311. 15 Idem, ibid. P. 313. 11 279 entretenimento, estimuladora do gosto e do hábito da leitura, adquire o sentido de degrau de acesso a um patamar mais alto [...].”16 Essa aura teleológica do mainstream às vezes mascara instâncias determinantes de política literária que os teóricos da literatura falham em perceber ou abordar, exigindo um outsider como B. R. Myers (Dongseo University, em Busan, Coréia do Sul) para expô-las — o que ele fez no polêmico A Reader’s Manifesto: An Attack on the Growing Pretentiousness in American Literary Prose (2002), que critica, declaramente do ponto de vista de um leitor e não de um crítico acadêmico, os padrões da prosa mainstream contemporânea em comparação com obras clássicas como as de Thomas Wolfe e Honoré de Balzac, mas também de trabalhos de ficção de gênero de Stephen King e Louis L’Amour. A ousadia resultou numa rajada de críticas partidas do establishment, exprimindo a persistência da hierarquia entre ficção literária e ficção de gênero, denunciada previamente por Myers: “o dualismo do literário versus gênero já quase derrotou a velha trindade do lowbrow, middlebrow e highbrown [...]”.17 E ainda: “Tudo o que seja escrito numa prosa autoconsciente [...] é ficção literária — não necessariamente boa ficção literária, veja bem, mas sempre mais merecedora de respeito e resenhas do que até mesmo o melhor thriller ou romance.”18 O contínuo elogio da prosa mainstream contemporânea — vista por ele como tautológica, vacuosa e mistificadora — no plano das sentenças, e contra todas as evidências, explica-se para Myers como prevaricação dos agentes do sistema literário (o campo de Pierre Bourdieu), especialmente os ligados ao mercado livreiro e ao jornalismo cultural, mas também autores que elogiam colegas e especialistas acadêmicos. Política literária, em suma, e nos dois níveis de que tratei até este ponto: o das articulações internas de um campo literário, e o de discriminações hierárquicas mantidas pelo sistema literário. Teóricos pós-modernos também se ocupam em manter ou reforçar hierarquias, como Umberto Eco e sua distinção entre literaturas de fundo revolucionário (vanguardista/modernista/pós-modernista) e de fundo social-democrático-paternalista 16 Paes, José Paulo. “Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento (ou O Mordomo Não É o Único Culpado)”. In A Aventura Literária: Ensaios Sobre Ficção e Ficções, José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 28. 17 Myers, B. R. A Reader’s Manifesto: An Attack on the Growing Pretentiousness in American Literary Prose. Hoboken, NJ: Melville House, 2002, p. 3. 18 Idem. “Romance” aqui se refere ao gênero das histórias de amor. Os autores que Myers aborda são Annie Proulx, Don DeLillo, Cormac McCarthy, Poul Auster, David Guterson, e outros. 280 ou reformista (popular/de gênero),19 baseado em como um e outro lidam com crises propostas no texto — o primeiro, instalando-as; o segundo, apresentando-as e sanandoas, desse modo a consolar o leitor. Dicotomia a par com sua outra famosa dicotomia: apocalípticos e integrados (à cultura de “massa”), na qual, ao menos, Eco reconhece que a postura do apocalíptico também “consola o leitor porque lhe permite entrever, sob o derrocar da catástrofe, a existência de uma comunidade de ‘super-homens’, capazes de se elevarem, nem que seja através da recusa,acima da banalidade média”.20 Mais apocalíptico (aproveitando a deixa), Jean-François Lyotard, mesmo enquanto proclama o fim das grandes narrativas ou metanarrativas ou narrativas-mestre, anseia pelo alto modernismo (e seu elitismo intrínseco) como solução, como Fredric Jameson notou no prefácio da edição americana de The Postmodern Condition: A Report on Knowledge (La Condition postmoderne: report sur le savoir), ao verificar em Lyotard um “compromisso com o experimental e o novo [numa] estética que se relaciona muito mais de perto com as ideologias tradicionais do alto modernismo do que aos pósmodernismos atuais [...]”.21 Mais estridente e com um raciocínio ainda mais “outorgativo” (no sentido de não oferecer evidências às suas denúncias apocalípticas da pós-modernidade), Jean Baudrillard se mostra herdeiro em plenitude do ódio intelectual às “massas” populares observado por John Carey em Os Intelectuais e as Massas. Para os modernistas, as “massas” eram uma ameaça a ser contida ou colocada em seu lugar pelas elites ou lideranças fortes, enquanto no ensaio À Sombra das Maiorias Silenciosas: O Fim do Social e o Surgimento das Massas (1978), Baudrillard vai além dessa perspectiva para anunciar que a ameaça representada pelas “massas” concretizou-se e está além de qualquer controle. * Em Bestsellers: A Very Short Introduction (2007), John Sutherland faz uma análise ligeira da lista dos mais vendidos na Inglaterra desde 1890, recorrendo freqüentemente à 19 Eco, Umberto. O Super-Homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular (Il Superuomo di Massa: Retorica e Ideologia nel Romanzo Populare). São Paulo: Editora Perspectiva, 1991 [1976], pp. 26-27. 20 Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados (Apocalittici e Integrati). São Paulo: Editora Perspectiva, 1979 (1964), p. 9. A partir dessa dicotomia, tomada a partir do posicionamento perante a cultura de “massa”, José Paulo Paes aparentemente criou a sua, “escritor de entretenimento” e “escritor de proposta”, mas a partir do posicionamento perante o cânone (no ensaio “Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento”). 21 Jameson, Fredric. “Foreword”. In The Postmodern Condition: A Report on Knowledge (La Condition postmoderne: report sur le savoir). Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984 [1979], p. Xvi. 281 ironia ao se referir aos piores exemplos (na opinião dele), mas dando atenção séria a autores, gêneros e obras. Anterior, Bestsellers: Popular Fiction Since 1900 (2002), de Clive Bloom, ofereceu considerações teóricas antes de enfocar com atenção, autores e obras. Em contraste, em Best-Seller: A Literatura do Mercado (1985), Muniz Sodré não perde tempo discutindo autores e obras no particular, mas apenas dentro de uma discussão histórica do folhetim, concentrando-se na teoria e na denúncia de que a ficção na “indústria cultural” é “uma literatura não legitimada pela escola ou instituições acadêmicas, mas pelo próprio jogo de mercado”.22 Para ele, qualquer pensamento crítico da ficção popular está subordinados à teleologia literária do cânone e da forma: é “discurso reformista travestido de literatura: pode até causar impacto social, mas não acrescenta coisa alguma à própria arte literária, que se define pela forma”,23 em claro eco de Umberto Eco (se me perdoam o trocadilho), que conspicuamente não consta da bibliografia. Muniz Sodré discute ainda, rapidamente, a formação dos gêneros populares, mas está claro que para ele essa literatura se resume a fórmulas e receitas. Fica evidente, nesta discussão rumo à colocação inicial — que a ficção científica é capaz de exercer o papel de uma literatura que faz a crítica da atualidade, sem recorrer aos aspectos formais pós-modernistas —, que tal proposta sofre o bloqueio preventivo dos discursos em torno da cultura de “massa”, particularmente associados à Escola de Frankfurt e sua teoria crítica, um “ouriço discursivo” no qual não se pode pôr o dedo. Se você a questionar, é sinal de que tem sua consciência submetida pela ideologia, ou vendida a ela; só a teoria crítica o salvará, como Raymond Geuss observou: “a suposição básica da teoria crítica é que o simples fato de trazer à plena consciência certas atitudes, convicções, padrões de comportamento, etc., transforma os agentes.”24 Mas questiona: “Pode parecer geralmente simpática a abordagem frankfurteana da teoria social e, contudo, pode-se perguntar se a ‘teoria crítica’ é melhor interpretada como um monólito único, bem definido e que tudo abrange [...].”25 Torna-se inevitável superar esse bloqueio preventivo, na discussão da ficção científica e de outras ficções de gênero. Pode-se fazê-lo como Ramiro Giroldo o faz, explorando brechas no discurso de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, 22 Muniz Sodré. Best-Seller: A Literatura do Mercado. São Paulo: Editora Ática, Série Princípios N.º 14, 1985, p. 11. 23 Idem, ibid. P.16. 24 Geuss, Raymond. Teoria Crítica: Habermas e a Escola de Frankfurt (The Idea of a Critica Theory). Campinas: Papirus Editora, 1988 [1921], p. 153. 25 Idem, ibid. P. 155. 282 encontrando pontos aplicáveis à análise da FC,26 efetivamente diminuindo as distâncias; ou pode-se reconhecer o caráter ideológico, marxista, da Escola, e ignorá-la a partir daí — como Clive Bloom o faz ao admitir: “Meu próprio trabalho é mais marxiano do que marxista e minhas conclusões são muito mais determinadas por minhas idéias a respeito de acomodações populares do que a revolução popular.” E ainda: “Tenho visto a mentalidade capitalista sob uma luz mais gentil do que os críticos marxistas.”27 Para Bloom, a ficção popular ou pulp é o terreno do contemporâneo, e, numa entonação antiutópica, afirma que os comentários preconcebidos de Marx sobre o “pesadelo no cérebro” ou “a tradição de toas as gerações mortas” falham em reconhecer a significação positiva de pluralidade de tradições entre indivíduos, famílias, comunidades e mesmo entre nações e a constante reprodução da história pela geração atual à sua própria imagem e não mais em “linguagem emprestada”,capaz, em uma palavra, de libertar-se da mão morta do passado. Todavia, colocar-se no presente absoluto não é uma libertação mas uma tentativa fútil de sair da própria história e portanto entrar no pesadelo real de uma contemporaneidade contínua onde o destino humano estaria de uma vez por todas nas mãos da humanidade e a história estaria cancelada. Curiosamente, esse é o sonho do capitalismo selvagem e do marxismo revolucionário. [O pulp seria] um aspecto da narrativa do presente contínuo.28 Por sua vez, John Carey argumenta que os críticos da arte de “massa” não costumam apresentar evidências que apóiem seus pronunciamentos, que seriam mais baseados em imagens fantasiosas das “massas”, tendo como resultado que “suas críticas são essencialmente um ramo da ficção imaginativa”. “Isso é particularmente aparente quando elas são impulsionadas por ideais políticos”,29 escreveu em What Good Are the Arts? (2006). O crítico marxista Theodor Adordo, por exemplo, acreditava que a arte de massa é uma conspiração capitalista concebida para manter as massas subjugadas, ao impedi-las de desenvolver uma inteligência crítica independente. Para esse fim, ele afirma, a arte de massa “automatiza e estupefaz” suas faculdades mentais, e os impede de questionar a ordem social existente. 30 26 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. Tese de doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, Universidade de São Paulo, 2012, p. 85 (por exemplo). 27 Bloom, Clive. Cult Fiction: Popular Reading and Pulp Theory. Nova York: St. Martin’s Press, 1998 [1996], p. 10. 28 Idem, ibid. P. 11. 29 John Carey. What Good Are the Arts? Oxford & Nova York: Oxford University Press, 2006, p. 50. 30 Idem. 283 Citando o trabalho de Noël Carroll, A Philosophy of Mass Art (1998), Carey observa que “Carroll não tem dificuldade em mostrar que, de fato, muitas das histórias e estereótipos da arte de massa (a ficção científica, por exemplo, e os westerns) são a respeito da possibilidade da mudança social”.31 “Mas tais evidências causariam pouca impressão em Adorno, já que suas convicções sobre como a arte de massa funciona não sustentam qualquer relação com quaisquer fatos verificáveis.” E “Walter Benjamin [é] outro crítico que retira suas evidências exclusivamente da sua imaginação [...].”32 Conclusões extraordinárias exigem evidências extraordinárias, mas não se os produtos da indústria cultural incorporem em si a totalidade da problemática capitalista, como uma marca de Caim que impregna qualquer representação de crítica social ou política, anulando-a automaticamente: a vitória da indústria cultural, para Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento (1947), é dupla: “a verdade, que ela extingue lá fora, dentro ela pode reproduzir a seu bel-prazer como mentira.”33 Desse modo, o leitor que encontra a crítica à publicidade e ao capitalismo que tornou o romance Os Mercadores do Espaço (The Space Merchants; 1952), de Ferderik ohl & Cyril M. Kornbluth, a única FC americana aceita para publicação em Cuba pelo regime castrista, deve imediatamente abortar essa interpretação e aceitar, passivamente, que ela não passa de cortina de fumaça lançada pela indústria cultural. Em What Good Are the Arts?, Carey questiona a existência de valores absolutos na arte, divergindo das teleologias habituais de que a arte elevada seria superior — “porque sempre pareceram assim a um consenso das pessoas pensam corretamente[, argumento] difícil de aplicar na prática, mesmo no caso de Shakespeare”34 —, iluminadora ou emancipadora. A exceção para ele seria a literatura, por sua capacidade de fomentar uma inteligência crítica. Nisso a literatura funcionaria como mecanismo de crítica, mas também de uma moralização que “é diversa e contraditória”.35 Para Carey, a “literatura é um campo de comparações e contrastes, espalhando-se infinitamente de modo que tudo o que lemos constantemente modifica, adapta, questiona e cancela o que quer que tenhamos lido antes”.36 Carey não é contra o cânone per si, e afirma que obras literárias 31 Idem. Idem. 33 Adorno, Theodor W. & Horkheimer, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos (Dialektik der Aufklärunkg: Philosophische Fragmente). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Editor, 1985 [1969, 1947], p. 111. 34 Carey, John. What Good Are the Arts? Oxford & Nova York: Oxford University Press, 2006, p. 64. 35 Idem, ibid. P. 181. 36 Idem, ibid. P. 195. 32 284 podem incorporar essa qualidade diversa e contraditória por meio de uma linguagem metafórica e “indistinta”, mas isso me dá uma abertura para entender que uma diversidade e contraditoriedade lateral, exterior ao cânone e encontrada na ficção de gênero, reforçaria, ampliaria e multiplicaria essa qualidade. E finalmente, segundo Carey, a “deficiência mais aguda no caso contra a arte de massa é a completa falta de interesse — ilustrada por Adorno, Benjamin, [Marshall ] McLuhan e [Geoffrey] Hartman — em descobrir como essa arte realmente afeta os seus recipientes.”37 É a deixa para uma discussão aqui, da suposta passividade do leitor de literatura popular. Em A Reader’s Manifesto, B. R. Myers convoca os leitores comuns a tirarem suas próprias conclusões da leitura do mainstream ou alta literatura, observando que um livro de “suspense deve causar suspense ou ele não vale nada; isso é tão verdadeiro hoje, quanto sempre o foi”.38 Romances literários que se propõe a ativar o pensamento e a reflexão mas apenas deixam o leitor entediado, deveriam ser submetidos à mesma regra — o leitor soberano deve julgar se eles foram ou não bem sucedidos no que se propõem, não importa o que a política literária da intelligensia afirme a respeito de suas qualidades artísticas. Trata-se de um leitor capaz de decidir por si mesmo, e um leitor de ficção popular, algo que teorias literárias têm consistentemente negado existir. Críticos como Clive Bloom (em Cult Fiction; 1996), Scott McCracken (Pulp; 1998) e Ken Gelder (Popular Fiction; 2004) têm nos informado de que esse leitor existe e estabelece um relacionamento crítico e produtivo com a literatura popular. Em Hard-Boiled: WorkingClass Readers and Pulp Magazines (2000), Erin A. Smith proclama sua “impaciência com certos discursos acadêmicos”, enquanto vê na ficção hard-boiled alguns [dos seus] próprios desejos de uma retórica menos excludente e de um mundo acadêmico mais democrático”.39 Para ela, as “noções de textos populares são manipulação das massas por aqueles em controle dos meios de produção cultural também ignoram o papel das audiências no modo como a cultura de massa é formada”,40 e observa que a estética popular “é uma estética dominada, sempre ciente de modos mais privilegiados, 37 Idem, ibid. P. 64. Myers, B. R. A Reader’s Manifesto: An Attack on the Growing Pretentiousness in American Literary Prose . Hoboken, NJ: Melville House, 2002, p. 73. 39 Smith, Erin A.. Hard-Boiled: Working-Class Readers and Pulp Magazines. Filadélfia: Temple University Press, 2000, p. 3. 40 Idem, ibid. p. . 38 285 burgueses, de leitura” e que, ao invés de “dispensar objetos estéticos, os leitores de classe trabalhadora tendem a ser pluralistas e condicionais a respeito dos seus julgamentos”.41 Citado por Smith, Michel de Certeau, em The Practice of Everyday Life (Arts de faire;1984), demonstra que o povo constantemente produz suas próprias relações diante da autoridade e das sistematizações de trabalho ou de consumo, no que ele chama de “táticas de consumo”, já que representam “modos engenhosos pelos quais o fraco faz uso do forte, levando assim a uma dimensão política das práticas cotidianas”. 42 De Certeau entende essas práticas como leituras de contexto e dinâmicas, e lança o conceito do poaching, que Erin A. Smith emprega no seu estudo. Poaching significa “caça ilegal”, aplicado especialmente quando o camponês caça em terras reservadas para o divertimento do aristocrata. Daí se entende o emprego do conceito por de Certeau como leituras diferenciadas, distantes das formas institucionalizadas ou acadêmicas de leitura — justamente a alternativa que Muniz Sodré nega. A posição que Michel de Certeau mais rejeita, contudo, é a da passividade das “massas”: As massas raramente entram [nos] jardins da arte. Mas estão presas e coletadas nas redes da mídia [...]. Ao invés de um nomadismo cada vez maior, encontramos assim uma “redução” e um confinamento: consumo, organizado por esta grade expansionista, assume a aparência de algo feito por cordeiros progressivamente imobilizados e “manuseados” como resultado da crescente mobilidade da mídia, conforme ela conquista espaço. Os consumidores se acomodam, a mídia segue em frente. A única liberdade que se supõe restar às massas é a de pastar segundo a ração de simulacros que o sistema distribui a cada indivíduo. Essa é precisamente a idéia a que me oponho: tal imagem dos consumidores é inaceitável.43 Para ele, a proposição de que a “eficiência da produção implica na inércia do consumo” é uma lenda “necessária para o sistema que distingue e privilegia autores, educadores, revolucionários, numa palavra, ‘produtores’, em contraste àqueles que não produzem”.44 A leitura nunca é passiva, porque ela altera o que é lido, diz de Certeau, que questiona ainda a fixidez do sentido da obra, desvelado pelo leitor privilegiado. Ao explorar interpretações autônomas, ou nas brechas encontradas no discurso institucionalizado, o leitor como poacher exerce uma atividade subversiva, já que, ao 41 Idem, ibid. P. 136. De Certeau, Michel. The Practice of Everyday Life (Arts de faire). Berkeley: University of California Press, 1988 [1984], p. xvii. 43 Idem, ibid. Pp. 165-66. 44 Idem, ibid. P. 167. Veja o capítulo XII, “Reading as Poaching”, pp. 165-76. 42 286 tomar para ele aquilo que pertenceria a uma autoridade intelectual, encontrando usos não admitidos por essa autoridade, o leitor poacher contesta esse regime que enfatiza autor e intérprete qualificado. Transpondo o argumento para a ficção pulp ou de gênero, vale citar Clive Bloom e sua tese de que, integrado à lógica capitalista, o pulp é a corporificarão do capitalismo estetizado, consumerizado e internalizado. É portanto ao mesmo tempo opressivo e libertador, ao mesmo tempo manipulação de massa e destino individualista anárquico [...] um produto e um canal para um momento na autoconsciência humana e suas aspirações vividas no banal e no agora. O pulp verdadeiro é uma recusa da consciência burguesa e de formas burguesas de realismo. Ele é capitalista, anárquico, empreendedor e individualista [...] 45 [e se] autores se tornaram produtores e leitores se tornaram consumidores isto não é nem uma escravidão perante o mercado nem uma revolução no avanço do gosto. Ao invés, marca um estilo de negociação e reaproximação na experiência democrática de massa.46 Levando a uma identificação do papel subversivo do pulp, que representa “um ângulo anárquico na margem da propriedade burguesa e no centro da multiplicidade moderna de consumo”.47 * Outras proposições críticas e teóricas igualmente barram o caminho de uma investigação isenta dos gêneros populares. O quase desesperado e impertinente apelo de Linda Hutcheon — e de vários outros críticos e teóricos literários ou teóricos da cultura, entre eles o brasileiro Alcir Pécora (Unicamp) — para que discursos teóricos tenham status literários nos dá uma pista.48 Clive Bloom, no que talvez seja um ácido rompante de sarcasmo, concede esse status à crítica pós-estruturalista, que ele chama de o “novo pulp” vinculado ao gênero horror: [S]uas metáforas e obsessões têm paralelo com as da ficção pulp e [...] em torno do gênero da crítica, a crítica moderna criou uma subcultura que é ao mesmo tempo arcana e escapista: uma arena fantástica na qual o corpo, a sexualidade e a violência sublinham os fetiches mais loucos do culto. Tal crítica brinca com a idéia de, de algum modo, ir além, transcender e desconstruir e as realidades apresentadas nessas ficções que nós como acadêmicos somos pagos para explicar diariamente. [...] [T]al teoria literária é basicamente uma nostalgia pelo escândalo, um retro-ismo basicamente conservador definido por uma aliança frouxa entre desconstrucionistas, feministas e críticos liberais cujo relacionamento com a ordem estabelecida é aquela de uma falsa oposição que renova inadvertidamente, por misticismo e obscurecimento, o controle cultural, político e econômico, tendo substituído uma teologia do corpo por uma política de intervenção: teoria como escapismo, revestida da 45 Bloom, Clive. Cult Fiction. P. 14. Idem, ibid. P. 15. 47 Idem, ibid. P. 16. 48 Hutcheon, Linda. A Poetics of Postmodernism. P. ix, 14, etc., etc. 46 287 linguagem erótica do horror. Sua celebração de tabus violados na ficção simplesmente reforça a estabilidade do tabu no mundo. 49 Outros críticos, menos sarcasticamente, apontam o fenômeno oposto da teorização da literatura, que passa a ser performática, dirigindo-se ao mundo apenas pela intermediação de uma teoria. Na França de Antoine Compagnon, essa teoria é justamente a pós-estruturalista satirizada (talvez com uma seriedade sorridente) por Bloom. Em O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum (Le Démon de la théorie: litterature et sons commun; 1998) ele faz um balanço e um relato da evolução dessa teoria e de como ela se torna improdutiva, a partir do “dogma da autorreferencialidade [sic] do texto literário”,50 firmando a noção de que não há mais conteúdo nos textos literários, e que ler “com vistas à realidade [...] é enganar-se sobre a literatura”, restando apenas ler pelas “referências da literatura a ela mesma”.51 Ele também observa que a linguagem, a invenção da escrita, passa a substituir o real,52 já que a trajetória da crítica conduz à visão de que “o realismo [passa a ser associado] ao romance, o romance ao individualismo, e o individualismo à burguesia, e a burguesia ao capitalismo”,53 exigindo um posicionamento ideológico que negue o realismo (como textualidade, senão como movimento literário) em favor da linguagem. Compagnon então faz o caminho contrário e encontra “outras teorias de referência mais sutis [que] estão à nossa disposição há muito tempo”, e que “permitem que repensemos as relações da literatura com a realidade e desse modo inocentar igualmente a mimèsis [ou a representação realista]”.54 O programa do seu livro é portanto libertar a literatura das armadilhas da teoria literária, buscando o bom senso e o caminho do meio, contra um “binarismo maniqueísta”. O realismo, aliás, é apenas o Outro da teoria, permitindo que ela se firme como uma verdade mais profunda ou mais vigente. Sobre a pretensão de enxergar na teoria a verdadeira literatura, Compagnon reflete que “a teoria não pode sair vitoriosa. Ela não é capaz de anular o eu ledor. Há uma verdade da teoria que a torna sedutora, mas ela não é toda a verdade, porque a realidade 49 Bloom, Clive. Cult Fiction. P. 236. Compagnon, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum (Le démon de la théorie: littérature et sens commun). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2.ª edição, 2010 [1998], p. 95. 51 Idem. 52 Idem, ibid. P. 99. 53 Idem, ibid. P. 104. 54 Idem, ibid. P. 130. 50 288 da literatura não é totalmente teorizável”,55 e sentencia: “Disposto a ler romances, como não preferir aqueles que não preciso fingir que são romances?”56 Tudo isso nos é interessante aqui porque, se a questão é a ficção científica exercendo um poder crítico da época sem assumir os recursos do pós-modernismo, é preciso entender que ela abre mão do nível de auto-reflexão formalista necessário a uma literatura que, na concepção de Brian McHale, destaca sua dimensão ontológica pela linguagem. Muitos críticos já declararam o embaraço vivido pela FC, em se referir ao futuro com uma linguagem do passado, isto é, abrindo mão de uma inventividade lingüística — embora o emprego de uma linguagem familiar para falar do extraordinário e do especulativo tem no gênero uma função semelhante à tradução de textos que, em outra língua, carregariam com eles seus próprios estranhamentos. Apesar da presença crescente da fabulation na FC e fantasia, e de posturas pós- modernistas em gêneros como a ficção de crime (evidenciado pela entrada tão forte do minimalismo na ficção de crime brasileira), a ficção popular como um todo adota a modulação realista da sua prosa. Há um acordo precípuo de que, não importando os quão extraordinários os eventos narrados — existindo aí um sem-número de modulações do melodrama e do burlesco —, o leitor deve entender que o descrito é palpável e que o narrado é factual. O acordo não implica que o leitor perca a noção da sua realidade, apenas que, pela duração da leitura, ele deve mergulhar com uma cautela atenuada pelos efeitos da verossimilhança, na realidade alternativa oferecida pela narrativa. Robert Scholes resolveu para nós a questão da FC perante a crise da representação: Projetados no futuro, os problemas do realismo e da fantasia desaparecem. Não há questão de “registrar” o futuro, nem de negar as suas realidades. Toda projeção futura é obviamente construção de modelos, poiesis não mimesis. E livre do problema da correspondência ou da não correspondência com alguma realidade presente ou de algum passado previamente experimentado [...], a imaginação pode funcionar sem o auto-engano quanto aos seus meios e fins. 57 Assim, a FC futurista seria uma structural fabulation, livre dos truques literários que acenam insistentemente ao leitor que ele não está em contato com nenhuma proposição de realidade. Livre para ser realista, extrapolativo (que pressupõe um estado de coisas 55 56 Idem, ibid. P. 252. Idem, ibid. P. 253. 57 Scholes, Robert. Structural Fabulations: An Essay on Fiction of the Future. Notre Damme: University of Notre Damme, 1975, p. 18. 289 discernível, do qual partir), e até para ser divertida: “muitos seres humanos experimentam uma necessidade psicológica [...] [e] o sistema literário deve incluir obras que respondam a essa necessidade.”58 Mas a FC sobre o futuro não representa a totalidade do gênero. É preciso portanto dar um passo além e retornar às propostas de Antoine Compagnon, recorrendo igualmente à denúncia de Tzvetan Todorov de que, mais uma vez, a teoria literária causou danos e induziu a prejuízos substanciais, que precisam ser superados. A Literatura em Perigo (La Littérature in péril; 2007), de Todorov, dedica-se primariamente a questões de educação no sistema de ensino francês, denunciando a “falta de humildade no fato de ensinarmos nossas próprias teorias acerca de uma obra em vez de abordar a própria obra em si mesma”,59 e clamando que não “devemos acreditar nos espíritos maniquístas”,60 no que ecoa Compagnon. Os estudos de literatura devem voltar a buscar sentidos nos textos e os leitores a recebê-los como meios de abordar a vida e o mundo. Todorov vai adiante, porém, ao reconhecer que a “concepção redutora da literatura não se manifesta apenas nas salas de aula ou nos cursos universitários; ela também está representada de forma abundante entre os jornalistas que resenham livros, e mesmo entre os próprios escritores”.61 Jornalistas e escritores passam pela universidade e se integram ao sistema literário que valoriza uma literatura que, segundo Todorov, privilegia o formalismo, o niilismo e o solipsismo, resultando em uma idéia da literatura que é “absurdamente restrita e empobrecida”, na qual é “o mundo exterior, o mundo comum a mim e aos outros, que é negado e depreciado”.62 Num certo sentido, porém, a ficção científica já realizou o encontro do ponto de equilíbrio (admitindo que Compagnon e Todorov não se referiam à FC, quando pediram que a literatura abandonasse o “binarismo maniqueísta”): com a New Wave, ela apanhou um retorno na direção do mainstream pós-modernista mais formalista e niilista, mas o lastro pulp a desviou da rota de rendez-vous, de modo que novas liberdades conquistadas foram apreciadas e novas lições estéticas incorporadas aos moldes anteriores — ou como Bruce Sterling disse a John Kessel, durante o debate entre cyberpunks e humanistas: “Você não pode transformar um gênero pop em 58 Idem, ibid. P. 39. Todorov, Tzvetan. A Literatura em Perigo (La Littérature in péril). Rio de Janeiro: Difel, 2007, p. 31. 60 Idem, ibid. P. 32. 61 Idem, ibid. P. 41. 62 Idem, ibid. P. 44. 59 290 mainstream.”63 Pode-se argumentar que um movimento semelhante correu quando o Movimento Cyberpunk se dissipou e suas lições foram incorporadas no pós-cyberpunk ou na presença de traços cyberpunks em subgêneros e tendências tão diferenciadas quanto a new space opera e a space opera convencional, o New Weird e a FC hard de futuro próximo. * No Brasil, Ramiro Giroldo cita a delimitação de sistemas culturais que Alfredo Bosi faz no ensaio “Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras” (1992), divididos entre institucionalizados — cultura universitária e indústria cultural — institucionalizadas — a cultura criadora extra-universitária e a indústria cultural. e não 64 Para Giroldo, a “tendência crítica canônica [brasileira] é atribuir à ficção científica os efeitos negativos característicos da indústria cultural”.65 Inteligentemente, ele observa que a outra categoria da cultura criadora apenas afirma a autoridade da cultura universitária. Cultura criadora é o que a cultura universitária considera como tal. Os critérios para tanto não são trazidos à tona, apenas a autoridade da Universidade o é. Assim, a cultura criadora supostamente externa às instituições é, na verdade, alinhada a elas. 66 Recorrendo à definição do cânone de Antonio Candido, para quem é imprescindível a formação de uma continuidade literária, Giroldo entende que, “para Candido, a ausência da continuidade serve como justificativa para remover das vistas as produções literárias esquecidas”, de modo que a “‘manifestação literária’ não pode almejar o posto ocupado pela ‘literatura propriamente dita’. Num movimento, é justificado e produzido o esquecimento”67 de literaturas não-canônicas, como a FC e outros gêneros populares. Apesar disso, denúncias do esgotamento de tendências semelhantes às européias e americanas (que no Brasil deveriam se chamar formalismo, vazio de proposta e umbiguismo) têm surgido de formas variadas, ao longo dos últimos anos. Na reflexão muito pessoal em seu livro O Espírito da Prosa: Uma Autobiografia Literária (2012), 63 Kelly, James Patrick & Kessel, John, eds. Reviwered : The Post-Cyberpunk Anthology. San Francisco : Tachyon Publications, 2007, p. 36. Trata-se de trecho de uma carta de Sterling para Kessel, escrita em 29 de março de 1985. 64 Bosi, Alfredo. “Cultura Brasileira e Culturas Brasileiras”. In Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pp. 308-345. Cf. Ramiro Giroldo. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. Tese de doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, Universidade de São Paulo, 2012, pp.149-52. 65 Giroldo, Ramiro. “Alteridade à Margem: Sobre As Noites Marcianas, de Fausto Cunha”. P. 150. 66 Idem, ibid. P. 151. 67 Idem, ibid. P. 155. 291 Cristovão Tezza faz uma avaliação do quadro brasileiro, em tons semelhantes. “O ódio ao burguês tornou-se o ódio ao romance [...] e até hoje uma legião mundial de guerrilheiros avulsos da arte destrói todos os dias o romance, mal rompe a manhã”,68 escreve, antes de prosseguir: Talvez seja ainda uma consequência do grande mito revolucionário do século XIX — como o burguês inexoravelmente desapareceria com o triunfo do paraíso universal socialista, iriam junto com ele as taxas extorsivas de juros, a exploração do homem pelo homem e bibliotecas inteiras de romances decadentes. 69 Tezza também considera que, grande parte da intelligentsia crítica atual costuma ver alta literatura como “irmão gêmea da arte conceitual”, e define performance como “gesto estético que é ao mesmo tempo um gesto da vida, com a qual se confunde, mas não a assume”, sendo que, para ele, na “performance, acaba a literatura; toda performance [sic] é um panfleto (no sentido de que narrador e autor, para usar duas imagens da literatura, são a mesma pessoa)”.70 Haveria aí, para ele, a inadequação irrecuperável de submeter a literatura a uma pauta original das artes plásticas, desconsiderando a especificidade única e intransferível dos modos de produção de sentido da linguagem verbal e de tudo que, apenas nela, entra em jogo; e, consequência do primeiro ponto, a supressão do valor do sujeito como parte criadora do objeto. No conceito, tudo é objeto. Seres intercambiáveis, não estamos mais em lugar algum. Há quem ache isso interessante. Uma espécie de militarização da arte — soldados têm funções, não personalidade. O que cria um duplo fracasso do que seria uma prosa conceitual. Ou ela se realiza como conteúdo traduzido, a maldita mensagem, ou, a hipótese eventualmente melhor, como a demonstração fria de uma técnica. Tirou-se dela o componente da experiência do sujeito, ou a sua empatia, como chave modular da arte literária. [...]71 Assim como Compagnon, Tezza vê de maneira descomplicada — e potencialmente libertadora — a questão da mimèses: “Às vezes nos esquecemos deste dado simples: o ato de escrever é um evento, não uma reprodução.”72 Em outro momento, faz um gesto no sentido do retorno à narrativa, também vista por ele como “um traço indissolúvel da condição humana — não há homem sem linguagem, e não há linguagem sem narrativa”.73 Ele também expõe questões de política literária dominantes no sistema literário: 68 Tezza, Christovão. O Espírito da Prosa: Uma Autobiografia Literária. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012, p. 11. 69 Idem. 70 Idem, ibid. P. 13. 71 Idem, ibid. Pp. 14-15. 72 Idem, ibid. P. 40. Grifos no original. 73 Idem, ibid. P. 41. 292 O sistema de valores que estabelece a hierarquia literária já não consegue mais ser garantido por nenhuma procuração divina. [...] Um grande número de lobbies literários [...] estabelece, reforça, defende e luta por uma hierarquia poética e por um sistema de valores estéticos que não sejam simples função comercial, gosto popular ou modismo passageiro — esses lobbies [...] garantem espaço a gêneros e obras em cadernos literários, cursos de pós-graduação, listas de obras para o vestibular, concursos de literatura, numa disputa que tenta não perder de vista o que poderíamos chamar de “especificidade literária”[, em que] o valor estético não é um dado autoevidente; é uma dura construção da cultura ao longo do tempo histórico. 74 Já está clara, eu suponho, a coincidência entre o pensamento de Tezza e os de Compagnon e Todorov. Mas o que sua autobiografia literária nos traz é a compreensão de que pensamento dele foi formado na universidade brasileira, a partir de uma dieta de formalistas russos, e críticos estruturalistas e pós-estruturalistas: “o advento triunfal de uma certa ciência literária estruturalista que invadiu o refúgio universitário durante a ditadura esvaziava a literatura de seus sujeitos”, enquanto todo “tinham algo a dizer mas ninguém tinha nada para conversar”.75 Sua reclamação é a mesma que os dois críticos europeus: a prática crítica e a atividade literária, cultivadas no ambiente universitário, distanciaram-se demasiadamente do mundo, ao mesmo tempo em que assumiram uma face monolítica, pretendendo “englobar o conceito total de literatura, apagando dela qualquer vestígio do espírito da prosa, agora necessariamente subjugada a uma voz centralizadora, fora da qual nada respira”.76 Provocador, ele trata desse espaço centralizador como um espaço de escapismo: “o dominante de prestígio passava a ser o poético autorreferente, a negação do realismo [...], o escapismo de um mundo paralelo e excludente, protegido no sonho, e um desejo psicanalítico de ruptura a qualquer preço”.77 Sobre a oposição ao realismo, ele a define como “espécie de fantasma incapaz de definir seus termos”, “mantra dominante a partir dos estudos pós-modernos que nasceram no grande movimento contracultural dos anos 1960. Só agora, é uma esperança, começa a se esgotar.”78 Atribui às denúncias subjacentes à crise da representação, de que o texto literário não pode corresponder à realidade descrita, a um impulso paternalista que supõe que “o leitor fosse um eterno idiota a ser tutelado e levado pela mão”, no que chama de pauta “estúpida”.79 74 Idem, ibid. P. 45. Idem, ibid. P. 76. 76 Idem, ibid. P. 98. 77 Idem. 78 Idem, ibid. P. 112. 79 Idem. 75 293 Por todo O Espírito da Prosa têm-se a reflexão dessa contaminação entre teoria literária e literatura, universidade e prática de escrita em termos da renúncia ao realismo e ao enredo, no que ele chama de “vergonha de narrar”, e que, coça ele a cabeça ao constatar, não se transmuta em vergonha de ler narrativas de qualidade produzidas em outras culturas literárias, norte-americanas e européias. É preciso admitir que a literatura popular e a ficção científica — que, segundo Clive Bloom, Scott McCracken e Ken Gelder, têm uma preocupação com o mundo e com o contemporâneo — não são mencionadas nem por Compagnon, nem por Todorov ou Tezza, ao pregarem o retorno da preocupação literária com o mundo. Há quem faça essa conexão direta, porém. O premiado (Pulitzer, O. Henry, PEN/Faulkner, Nebula) autor judeu-americano Michael Chabon é um exemplo de destaque. Em 2002, ele organizou para a revista McSweeney’s a antologia McSweeney’s Mammoth Treasury of Thrilling Tales, que busca no título e no tema — até nas ilustrações internas do ilustrador e quadrinista Howard Chaykin — um retorno do pulp como símbolo de uma heterogeneidade literária e uma intensidade de efeitos narrativos de que o conto americano teria abdicado ao longo dos anos. Sabemos por John Carey que o elitismo modernista está estabelecido desde fins do século XIX, mas Chabon nota, no contexto americano, que até a década de 1950 uma investigação da forma “ficção curta” encontraria uma diversidade de tipos: “a história de fantasma; a história de horror; a história de detetive; a história de suspense, terror, fantasia, ou do macabro; a história de mar, de aventura, de espionagem, de guerra ou histórica. Histórias, em outras palavras, com enredos.”80 Admirado, reconhece por velhas antologias em paperback de histórias clássicas uma hoste de pesos-pesados da literatura, alguns deles co-fundadores do próprio modernismo: Poe, Balzac, Wharton, James, Conrad, Graves, Maughan, Faulkner, Twain, Cheever, Coppard. E não apenas dividindo as páginas com autores menos conhecidos escrevendo ficção de gênero, mas eles mesmos escrevendo ficção de gênero. Para levantar a bandeira do retorno do enredo e da variedade temática, Chabon organizou a antologia, mas não ficou apenas nesse gesto, passando a escrever, concomitantemente, fantasia juvenil com Summerland (2002), ficção científica de história alternativa com Associação Judaica de Polícia (The Yiddish Policemen’s Union; 2007), e aventura histórica com Gentlemen of the Road (2007). 80 Chabon, Michael. “The Editor’s Notebook: A Confidential Chat with the Editor”. In McSweeney’s Mammoth Treasury of Thrilling Tales, Michael Chabon, ed. Nova York: Vintage Books, 2003 [2002], p. 6. 294 No Brasil, a chocante conversão do premiado (Casa de las Americas, Associação Paulista dos Críticos de Arte) escritor Nelson de Oliveira à ficção científica — que ele passa a escrever como “Luiz Bras” —, resultou em iniciativas semelhantes, como a antologia Futuro Presente: Dezoito Ficções Sobre o Futuro (2009), combinando autores mainstream com autores de FC propriamente, e o Projeto Portal, de seis revistas semestrais obedecendo ao mesmo programa (2008 a 2010), livros de fantasia juvenil como Babel Hotel (2007), a coletânea de FC pós-cyberpunk Paraíso Líquido (2010) e o romance de último homem na Terra, Além do Deserto Extremo (2012). A militância de Oliveira produziu ainda questionamentos inéditos no contexto brasileiro, reunidos no livro de ensaios Muitas Peles (2011), todos publicados antes no Rascunho: O Jornal de Literatura do Brasil. No mais importante deles, “Convite ao Mainstream” [sic], Luiz Bras expõe o cansaço dos “heróis da prosa brasileira de ficção”.81 Modelados nos heróis de Clarice, Rosa, Kafka, Cortázar, Hemingway ou Bukowski,82 estão entediados e desmotivados, confinados às mesmas situações literárias há pelo menos vinte anos, porque, “presos ao hábito, eles continuam vivendo as mesmas situações canonizadas”.83 Recorrendo ao famoso poema de Kaváfis, “À Espera dos Bárbaros” (1908), ele comete a suprema e inédita ousadia de convocar os bárbaros da ficção científica para renovar a literatura brasileira. Mais do que atraí-los para dentro das muralhas da capital do império, propõe que os dois campos se encontrem a meio caminho, com o mainstream emprestando procedimentos literários sofisticados, e a FC emprestando a energia e a diversidade temática. Também causou certo choque a antologia organizada por Felipe Pena (Universidade Federal Fluminense), Geração Subzero: 20 Autores Congelados pela Crítica, mas Adorados pelos Leitores (2012), que, no rastro da polêmica entre a antologia Geração Zero Zero (2011), de Nelson de Oliveira, e a da revista Quanta destinada aos jovens romancistas brasileiros, aproveitou para fazer um showcase da nova onda da ficção de gênero nacional — conhecida no âmbito da FC como Terceira Onda. Pena contribui com um conto, mas também com uma provocadora introdução, na qual afirma que “[b]oa parte da literatura brasileira contemporânea presta um desserviço à leitura. Os escritores 81 Luiz Bras (Nelson de Oliveira). “Convite ao Mainstream”. In Muitas Peles, Luiz Bras. São Paulo: Terracota Editora, 2011, p. 28. 82 Idem, ibid. P. 29. 83 Idem. 295 não estão preocupados com os leitores, mas com a satisfação da vaidade intelectual.”84 Eis aí uma constatação corajosa no contexto, embora já constante do ambiente literário brasileiro, ou mais apropriadamente na sua orla, por movimentos como o Grupo Silvestre e seu manifesto pela popularização da ficção,85 citado inclusive, no texto de Pena. Sua provocação foi recebida de maneiras contraditórias: chamou a atenção do jornalismo cultural, mas foi desdenhado pela crítica acadêmica, como na resenha de João Cezar de Castro Rocha (UERJ) no O Globo, em que Rocha dispensa a questão afirmando que a literatura brasileira já se reconciliou com a narrativa, segundo ele, um “falso dilema”. Também afirma que a academia não tem, há décadas, poder de firmar ou destruir carreiras. Lá pelo meio, escreve que a antologia “possui o mérito de ampliar o horizonte da discussão, por meio da incorporação de autores que se dedicam prioritariamente a gêneros considerados ‘menores’”,86 enfiando um julgamento absoluto no meio do elogio, sem se dar ao trabalho de questionar se o contato com a narrativa e o entretenimento proposto por Pena teria alguma especificidade em torno da ficção de gênero. Na resenha, há certa impertinência acadêmica em torno de terminologia e conceitos, como se um texto editorializante em uma antologia de contos fosse um paper sob escrutínio escolar — paradoxalmente, a mesma tática empregada para se desprezar a antologia de contos mainsteam Geração Zero Zero, de Oliveira, demonstrando que questões de política literária às vezes seguem embutidas no escrutínio acadêmico e teórico da produção corrente. No ambiente da comunidade de FC, tanto a iniciativa de Pena quanto as de Oliveira/Bras foram recebidas com discreto entusiasmo por um lado, e desconfiança de outro — certamente, pelo receio de que balançassem o barco do status quo da política literária. Isso se dá porque, como de hábito e desde a Primeira Onda, a FC brasileira continuamente hesita e diverge, no processo de criar uma identidade para si, reconhecendo sua alteridade em relação ao dominante no sistema literário. Não obstante, interessa notar que, nos casos de Chabon, Oliveira e Pena, a intuição do esgotamento ou engessamento do mainstream passa não por um retorno ao passado 84 Pena, Felipe. “Introdução”. In Geração Subzero: 20 Autores Congelados pela Crítica, mas Adorados pelos Leitores, Felipe Pena, Ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012, p. 9. 85 Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2010/02/27/manifesto-do-grupo-silvestrepela-popularizacao-da-ficcao-269830.asp 86 Rocha, João Cezar de Castro. “‘Geraçao Subzero’ Mostra Impasses da Ficção de Entretenimento”. O Globo, 21 de julho de 2012, disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2012/07/21/geracao-subzero-mostra-impasses-da-ficcao-deentretenimento-456396.asp 296 do cânone — ao romance realista do século XIX, ou à vanguarda ou ao alto modernismo da primeira metade do século XX —, mas a um olhar lateral, para o pulp, para a ficção de gênero. Para uma tradição que manteve vivos a narrativa, o enredo, a ação, o sensacional e o maravilhoso, e um interesse inerente pelo contemporâneo. Pelo mundo. Tão forte é o vínculo, que a realidade pós-moderna no século XXI, soa pulp a quem conhece as referências. Aqui, Ken Gelder citando Tsvetan Todorov: É quase como se George Orwell tivesse perdido para Ian Fleming [o criador de James Bond] na previsão do futuro. Ao invés de um mundo reduzido ao conflito entre vastos impérios totalitários, como antecipado em [1984], temos um único império observando em choque enquanto um bilionário megalomaníaco escondido em uma caverna subterrânea despacha pilotos kamikazes para destruir alvos em cidades americanas.87 * No que diz respeito ao pós-moderno, há na sua discussão, grosso modo, uma divisão em vários campos. Um deles é apocalíptico, talvez o de maior repercussão, é herdeiro do modernismo e seu ódio às “massas”, desapontado com o fim das pretensões totalizantes da utopia marxista — como Terry Eggleton indica em As Ilusões do PósModernismo (The Illusions of Postmodernism; 1996). Outro é composto de apologistas do pós-moderno, que às vezes assume o fetiche da supostamente nova condição histórica e cultural — no que exprimem, paradoxalmente, algo de modernista: o pósmoderno é o novo a que devemos saudar, seja pela produção contínua de novidades tecnológicas, seja pela ambicionada superação do nacionalismo e de outras diferenças que foram tão perniciosas no passado, mas que insistem em mostrar sua cara feia, vez após vez. Há, enfim, aquela que busca brechas para a sustentação de um impulso utópico, nos espaços de um suposto fim das utopias. O filósofo italiano Gianni Vattimo, por exemplo, acredita que a “capacidade de escolher e discriminar entre as possibilidades que a condição pós-moderna nos coloca só se constrói com base numa análise dessa condição que a apreenda em suas características próprias”, reconhecendo a pósmodernidade como “campo de possibilidade e não a pense apenas como o inferno da negação do humano”.88 87 Todorov, Tzvetan. Hope and Memory: Lessons from the Twentieth Century. Londres: Atlantic Books, 2003, p. x. Cf. Gelder, Ken. Popular Fiction: The Logics and Practices of a Literary Field. Londres & Nova York: Routledge, 2004, p. 156 [nota de rodapé]. 88 Vattimo, Gianni. O Fim da Modernidade: Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-Moderna (La Fine dela Modernitá). São Paulo: Livraria Martins Fontes, 2.ª edição, 2007 [1985], p. xviii. 297 Como já vimos, pela perspectiva de Zygmunt Bauman, o enfraquecimento das certezas e das identidades herdadas abre espaço para que o sujeito se apodere de oportunidades de construção de identidades potencialmente críticas. Scott McCracken informa que essas identidades estão em fluxo, e que a leitura de obras de ficção de gênero têm o poder de colocar o sujeito em contato com essa dinâmica, numa transação entre texto, leitor e mundo. Esse conceito é amparado pelas idéias de Michel de Certeau de que o sujeito não é necessariamente passivo, que ele continuamente manipula os sistemas de poder e produz táticas e leituras que divergem da autoridade. Enfim, Clive Bloom associa a ficção de gênero a uma dinâmica semelhante em termos de estilo de vida, definido como o modo de vida de indivíduos, grupos ou culturas. Estilo de vida é a expressão mais exterior das identidades, refletindo valores e visões de mundo, e fornecendo elementos para a construção ou transformação de identidades. Como codificações de estilos de vida, projetados da exploração que a literatura popular faz do cotidiano e que o leitor reconhece, mesmo que de maneira obliqua, como na ficção científica. A “ficção popular está sempre lutando para encontrar uma equivalência lingüística (estética) ao seu poder narrativo, mas apenas se essa equivalência transbordar para além da linguagem”,89 escreveu, notando que isso vai contra as práticas do mainstream, exatamente o que o “romance artístico” luta para evitar, mantendo o texto fechado e voltado para si próprio ou para uma intertextualidade formal: “Ao buscar seus próprios limites absolutos, o romance de arte se fecha dentro de si mesmo [...]. A ficção popular sempre procura outros parceiros.”90 Ecoando o clamor de Compagnon, Tzvetan e Tezza, Bloom declara que na ficção popular a “linguagem olha para além de si mesma e para dentro do mundo, mas um mundo já distribuído e arranjado de acordo com a geometria de sua própria trajetória, suas próprias necessidades abstratas, agora lutando para se materializarem”.91 Trata-se de uma ficção como estilo de vida, i.e., identificada com ele, que Bloom descreve, em uma luta pela construção de identidades a partir daquilo que as relações no mundo oferecem. Recorrendo novamente a Canclini — e a partir de sua leitura de Bourdieu —, tem-se esta declaração que lembra também a de Certeau: “Se existe uma homologia entre a 89 Bloom, Clive. Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. Basingstoke & Nova York: Palgrave Macmillan, 2002, p. 21. 90 Idem, ibid. P. 20. 91 Idem, ibid. P. 21. 298 ordem social e as práticas dos sujeitos, mas porque estas ações inserem-se em sistemas de hábitos, constituídos na sua maioria deste a infância.” Ele relativiza o peso da ideologia, ao mesmo tempo que reforça o papel do local: “O poder simbólico não configura os sujeitos principalmente na luta das idéias, naquilo que se pode fazer presente na consciência de cada um, mas nas relações de sentido não conscientes que se organizam no habitus e só podemos conhecer por meio dele”, um habitus que “sistematiza o conjunto das práticas de cada pessoa e cada grupo, [garantindo] sua coerência com o desenvolvimento social mais do que qualquer outro condicionamento explícito”.92 Um resultado é o gosto — em si expressão de estilo de vida — entendido como “modo pelo qual a vida de cada um adapta-se às possibilidades estilísticas oferecidas pela sua classe”.93 Pode portanto o consumo de uma forma de literatura popular como a FC adquirir essa qualidade de estilo de vida, conjunto de valores e visões de mundo, expressão de identidades, funcionar como uma operação crítica? O escritor e crítico de ficção científica Orson Scott Card descreve o mecanismo do gênero para promover um relacionamento crítico com uma concepção da realidade que contempla o futuro e a mudança: Os escritores de ficção científica não prevêem o futuro — ninguém acreditaria em nossas histórias, se o fizéssemos. O curso real dos eventos é improvável demais. [...] Além disso, a maioria de nós não chega a acreditar que haja essa coisa de “o futuro”. Há escolhas. Há fulcros na história, onde a vontade de um povo — às vezes mesmo a de um indivíduo — pode fazer a diferença. Todavia, as pessoas não podem fazer escolhas que não enxergam. Por isso nós mostramos alternativas. Damos aos nossos leitores a experiência de viver em futuros que são conseqüências de certas escolhas. Escolhas que estamos assumindo agora mesmo. Isto torna a ficção científica potencialmente a mais real de todas as narrativas realistas. Não narramos apenas como as coisas são. Podemos mostrar como as coisas podem terminar acontecendo, por causa do modo como as coisas são. Mas é por isso que você lê ficção científica? Em parte, sim. A [FC] não é lida por gente estúpida. Ela exige tanta participação inteligente da parte do leitor que até a mais tola [ FC] requer um exercício mental extenuante. E a maior parte dos alongamentos surge do fato de que a [ FC], por definição, acontece em algum outro lugar. [...] Algum lugar que ainda não existe, que nunca existiu neste mundo. A fim de receber uma história de [ FC], o leitor deve realizar o ato radical de imaginar o que ele nunca viu, mapear um território inexplorado a partir dos marcos e pistas na história. Este processo é tão central para a [FC] que aqueles leitores que não estão dispostos ou não são capazes de colaborar no ato de imaginação radical não [conseguem] lê-la em absoluto. Ironicamente, quando esses leitores incapazes descobrem que a [ FC] não faz sentido para eles, eles 92 93 Canclini, Néstor García. Diferentes, Desiguais e Desconectados. P. 196. Idem. 299 geralmente chegam à conclusão de que odeiam a “fi-ci” porque ela é “irrealista demais”. Tão triste. Porque esses incapazes seguirão na vida achando que o mundo real consiste só da situação presente. Incapazes de conceber um futuro diferente do presente, eles tão são geralmente incapazes de conceber uma mudança do presente, a fim de controlar o futuro. E todavia, coitados, estão fadados a viver no futuro um dia. Quer queiram ou não, serão lançados nessa terra estranha e terrível, mas estarão completamente despreparados porque não conseguem — ou não estão dispostos— a realizar o ato de imaginação radical. Não que os leitores de [FC] estarão preparados exatamente para o futuro que virá. [...] Ao invés, os leitores de [FC] estão preparados para muitos futuros. Dúzias, centenas, milhares de vezes eles passaram pelo processo de apreender uma surpreendente realidade nova. Não importa qual seja o futuro, eles já conhecem o processo: reconhecer as contradições entre a visão familiar do modo como as coisas são e a nova ordem, extrapolar dessas contradições um novo sistema de causa e efeito; reconstruir uma visão do modo como as coisas que inclua e acomodo as antigas contradições; inventar o seu próprio papel na nova ordem; agir de acordo com seu novo papel e sua nova visão da realidade. Contradição, extrapolação, reconstrução, auto-invenção, ação — um sistema mental que é tão familiar aos leitores de [FC] quanto respirar. Quem é o realista? O leitor de Updike? Ou o leitor de Asimov? 94 O derradeiro ato de poaching — investir em realismo e em experiência vicária, quando a retórica modernista/pós-modernista os condena ao passado ou à ingenuidade literária, e derivar daí uma visão crítica voltada para o mundo e que contempla os processos históricos que conduzem do agora ao futuro. Card estende a antiga concepção de Alvin Toffler, de que o gênero ajudaria a prevenir o “choque do futuro”,95 para os conceitos de estilo de vida e identidade. A ficção científica como estilo de vida está na ênfase na repetição da leitura, na experimentação de uma diversidade de cenários; o tipo de retorno ao gênero próprio do leitor habitual ou fã. O potencial desse processo para a criação de identidade em fluxo está na ênfase à auto-invenção, a partir de um processo intelectual interiorizado. Daí a FC ser freqüentemente apontada como precursora de novas consciências comportamentais (feminismo, tolerância étnica, novas práticas de trabalho ou de mobilização), ambientais e científicas (consciência da degradação ambiental, da superpopulação, dos riscos de inovações). Coincide aí, portanto, com os pontos de vista de Clive Bloom (“[e]stilo de vida em ficção exige narrativas de prazer experiencial”),96 Scott McCracken e Michel de Certeau, mas fornecendo a descrição de um mecanismo consistente. 94 Card, Orson Scott. “Introduction: Science Fiction in the 1980s”. In Future on Fire, Orson Scott Card, ed. Nova York: Tor Books, 1991, pp. 2-4. 95 Desenvolvida no seu livro O Choque do Futuro (Future Shock; 1970). 96 Bloom, Clive. Bestsellers: Popular Fiction Since 1900. P. 23. 300 Para além da idéia difundida de que a literatura popular é engessada pela fórmula e pelo lugar-comum, ela na verdade oferece uma variedade de perspectivas, práticas, identidades e possibilidades dramatizadas a partir de sua obsessão com o contemporâneo e com os extremos do mundo. Essa variedade — codificada em gêneros, cada um deles compostos de subgêneros e tradições frequentemente muito distintas entre si —, alarga a experiência do leitor, e fornece elementos para a constituição de identidades de um sujeito que ainda procura espaços de ação e devir. 301 REFERÊNCIAS FICÇÃO ALDISS, Brian W. Non-Stop. Londres: Gollancz, SF Masterworks N.º 33, 2004 [1958]. _______________. The Primal Urge. Nova York: Ballantine Books, s.d. [1961]. _______________. A Longa Tarde da Terra (Hothouse). Lisboa: Gradiva Publicações, Coleção Contacto, 1986 [1962]. Tradução de Maria de Lurdes Medeiros. _______________. The Airs of Earth. Londres: NEL, agosto de 1972 [1963]. _______________. Jornada de Esperança (Greybeard). São Paulo: Cultrix, 1976 [1964]. Tradução de Gilberto Bernardes de Oliveira. _______________. Os Negros Anos-Luz (The Dark Light-Years). São Paulo: Cultrix, 1976 [1964]. Tradução de Reynaldo Bairão. _______________. Earthworks. 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