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1 VOLUME 1 Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca do MAST SEMINÁRIO DE PESQUISA EM MUSEOLOGIA DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA E ESPANHOLA (IV SIAM)( 4. : 2013 : Rio de Janeiro) Museologia, Patrimônio, Interculturalidade: museus inclusivos, desenvolvimento e diálogo intercultural / Organização Marcus Granato e Tereza Scheiner .- Rio de Janeiro : Museu de Astronomia e Ciências Afins: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, 2013. 2v. Conteúdo: v.1. Museologia e interculturalidade: narrativas plurais: textos selecionados. v.2. Museologia, Políticas Públicas e Inclusão Social. Museus, Patrimônio, Natureza e Biodiversidade. Museus e Patrimônio Científico e Tecnológico : textos selecionados. ISBN 978-85-60069-51-4 (obra completa).—ISBN 978-85-60069- 52-1 (v.1) 1. Museologia-Reunião, 2013.2. Política – Reunião. I. Granato, Marcus II. Scheiner, Tereza. III. IV SIAM. IV. Título. CDU: 069.01    Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca do MAST SEMINÁRIO DE PESQUISA EM MUSEOLOGIA DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA E ESPANHOLA (IV SIAM)( 4. : 2013 : Rio de Janeiro) Museologia, Patrimônio, Interculturalidade: museus inclusivos, desenvolvimento e diálogo intercultural / Organização Marcus Granato e Tereza Scheiner .- Rio de Janeiro : Museu de Astronomia e Ciências Afins: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, 2013. 2v. Conteúdo: v.1. Museologia e interculturalidade: narrativas plurais: textos selecionados. v.2. Museologia, Políticas Públicas e Inclusão Social. Museus, Patrimônio, Natureza e Biodiversidade. Museus e Patrimônio Científico e Tecnológico : textos selecionados. ISBN 978-85-60069-51-4 (obra completa).—ISBN 978-85-60069- 53-8 (v.2) 1. Museologia-Reunião, 2013.2. Política – Reunião. I. Granato, Marcus II. Scheiner, Tereza. III. IV SIAM. IV. Título. CDU: 069.01   IV SIAM As opiniões e conceitos emitidos nesta publicação são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo necessariamente o pensamento do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio. É permitida a reprodução, desde que citada a fonte e para fins não comerciais. IV SIAM IV Seminário de Pesquisa em Museologia dos Países de Língua Portuguesa e Espanhola (IV SIAM). Museologia, Patrimônio, Interculturalidade: museus inclusivos, desenvolvimento e diálogo intercultural. Volume 2. Museologia, Políticas Públicas e Inclusão Social. Museus, Patrimônio, Natureza e Biodiversidade. Museus e Patrimônio Científico e Tecnológico. (Textos Selecionados) Realização Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - PPG PMUS (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro / Museu de Astronomia e Ciências Afins) Organização • Prof. Dr. Marcus Granato (MAST), Brasil • Prof. Dra. Tereza Scheiner (UNIRIO), Brasil Comissão de Edição • Prof. Dra. Alice Semedo • Prof. Dr. Luis Carlos Borges • Prof. Dr. Marcus Granato Comitê Científico • Prof. Dr. Alda Maria Costa (Universidade Eduardo Mondlane, Moçambique) • Prof. Dr. Alice Semedo (Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Portugal) • Prof. Dr. Armando Coelho Teixeira da Silva (Universidade do Porto, Portugal) • Prof. Dr. Diana Farjalla Correia Lima (PPG-PMUS/UNIRIO, Brasil) • Prof. Dr. Francisca Hernández-Hernández (Espanha) • Prof. Dr. Heloisa Helena Gonçalves da Costa (UFBA e PPG-PMUS, Brasil) • Prof. Dr. Luiz Carlos Borges (PPG-PMUS, MAST, Brasil) • Prof. Dr. Mikel Asensio Brouard (Universidad Autónoma de Madrid, Espanha) • Prof. Dr. Marcus Granato (PPG-PMUS, MAST, Brasil) • Prof. Dr. Maria Amélia Gomes de Souza Reis (PPG-PMUS/UNIRIO, Brasil) • Prof. Dr. Marcio Rangel (PPG-PMUS, UNIRIO/MAST, Brasil) • Prof. Dr. Maria do Rosário Pinheiro (Universidade de Coimbra, Portugal) • Prof. Dr. Marilia Xavier Cury (USP, Brasil) • Prof. Dr. Marta Lourenço (Universidade de Lisboa, Portugal) • Prof. Monica Risnicoff de Gorgas (Estancia Jesuítica e Museu Virrey Liniers, Argentina) • Prof. Nelly Decarolis (ICOFOM LAM, Argentina) • Prof. Dr. Olga Nazor (Universidade de Rosário, Argentina) • Prof. Dr. Oscar Navarro Rojas (Universidade Nacional e Universidade de Costa Rica, Costa Rica) Diagramação Bruno Correia SUMÁRIO SUMÁRIO Pág. Museologia, Políticas Públicas e Inclusão Social O Museu na América Latina num contexto de mudanças 10 Nilson A. Moraes Discursos e Práticas na (Re) Organização da Museologia Portuguesa no Início do Séc. XX 25 Joana Baião O Estatuto de Museus e a Política Pública Federal na Perspectiva da Inclusão Social 38 Gilson Antônio Nunes; Ana Cristina Audebert Ramos de Oliveira Un Museo Sin Paredes: el Museo Itinerante San Benito y su acción cultural en las comunidades 48 Régulo Rincón; Vanessa Casanova A Formação Histórica do Acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro: da Pinacoteca da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) ao MNBA 60 Carlos Henrique Gomes da Silva; Lena Vania Ribeiro Pinheiro Informação Especial no Museu Inclusivo e Pessoa com Deficiência Visual: áudiodescrição – tradução visual 78 Diana Farjalla Correia Lima; Ana Fátima Berquó Carneiro Ferreira Um Museu de Cidade: imaginário, debate museológico e o caso de Juiz de Fora 89 Luciana Scanapieco; Nilson Alves de Moraes A Coleção Luíza Ramos na Construção da Imagem do Nordeste 104 Márcia Pereira de Oliveira; Nilson Moraes Cultura e Inclusão Social no Museu do Marajó PE. Giovanni Gallo 119 Karla Cristina Damasceno de Oliveira; Luiz Carlos Borges O Valor do Negro: as políticas de patrimônio e as memórias negras no Brasil 133 Marcos Uchoa da Silva Passos; Priscila Faulhaber Barbosa A Arquitetura dos Lugares de Memória da Cidade de Petrópolis 148 Cêça Guimaraens; Luiz Manoel Gazzaneo; Ana Albano Amora; Mauricio Castilho Museología, Políticas Públicas e Inclusión Social En El Ecuador 160 Lucía Astudillo Loor “O caráter educativo dos museus”: apontamentos a partir de documentos escritos a partir de documentos escritos por Nair de Moraes Carvalho, em meados do séc. XX 167 Ana Carolina Gelmini de Faria Museus, Patrimônio, Natureza e Biodiversidade Da Memória ao Arquivo: proposições sobre o patrimônio genético 179 Alexandro Silva de Jesus A Musealização Áreas Naturais: o estudo de caso do Parque Nacional da Tijuca Elisama Beliani; Tereza Scheiner 7 190 Notas Sobre a Criação do Museu de História Natural e o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra: Iluminismo, Ciências Naturais, Viajantes e Império em Coimbra no séc. XVIII 205 Julio Cézar Chaves Museus e Patrimônio Científico e Tecnológico Patrimônio Científico Brasileiro: inventário nacional de conjuntos de objetos 219 Marcus Granato; Elias da Silva Maia; Fernanda Pires Santos; Gloria Gelmini de Castro; Mariana Silveira Damasceno Legislação de Proteção ao Patrimônio Cultural de Ciências e Tecnologia: análise e proposições 234 Marcus Granato; Pedro Louvain Museu de Ciência: o diálogo com as diferenças 250 Silvilene de Barros R. Morais; Mônica Pereira dos Santos As Coleções de Ciência e Tecnologia: contribuições dos estudos antropológicos 267 Cláudia Penha dos Santos; Marcus Granato Cronômetros, Palmeiras e Chimpanzés: o objeto musealizado como ‘documento por atribuição’ 281 Maria Lucia de Niemeyer Matheus Loureiro; Flávia Braga Araújo da Silva; Mariane Aparecida do Nascimento Vieira A Musealização do Meteorito de Bendegó do Museu Nacional/UFRJ como Representação da Idéia de Nação 294 Sabrina Damasceno Silva; José Mauro Matheus Loureiro Museus de Ciência e Tecnologia (C&T) da Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF: aspectos das coleções 307 Patricia Muniz Mendes; Marcio Ferreira Rangel Musealização e Educação: a construção conceitual para o Centro de Memória do Colégio Estadual 319 Ramon Vieira Santos; Nathalia Larsen Museus Escolares no Brasil e o Desejo de Memória 332 Vânia Maria Siqueira Alves; Maria Amélia Gomes de Souza Reis Museu do Instituto Benjamim Constant: trajetória de formação e perspectivas 342 Débora de Almeida Rodrigues; Marcus Granato Reflexão sobre a interação dos Atores Sociais com o Patrimônio através da Experiência do Parque Paleontológico de São José de Itaboraí/RJ 356 Aline Rocha de Souza F. de Castro; Deusana Maria da Costa Machado As Narrativas do Público do Museu de Artes e Ofícios sob a Perspectiva do Pensamento Latino Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade (PLACTS): da curiosidade epistemológica às epistemologias do sul 370 Renata da Silva Monteiro; Maria Auxiliadora Delgado Machado Patrimonialização de Remanescentes da Industrialização: reflexões e estudos de caso Cláudia Machado Ribeiro; Marcus Granato 8 383 Museologia, Políticas Públicas e Inclusão Social O MUSEU NA AMÉRICA LATINA NUM CONTEXTO DE MUDANÇAS Nilson A. Moraes 1 Resumo Nossa pesquisa enfatiza três movimentos em que os Estados ocupam papéis centrais na América Latina. A Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, que destacou os museus no mundo contemporâneo e sua contribuição para a educação e o desenvolvimento social; a proposta do “Decenio Mundial para el Desarrollo Cultural 19881997” da UNESCO, sobre a necessidade de “fomentar o cultural como ferramenta para o progresso social dos povos”; e a proposta liderada pelo IBERMUSEUS em que a sociedade civil, instituições internacionais e profissionais do campo propõem transformar o período 2012-2022 em “Década dos Museus”, destaca o papel do Estado, da sociedade e do campo museológico na definição de políticas públicas para o setor. Palavras-Chave: Museu; Museologia, Estados; Políticas Públicas; América Latina Resumen Nuestra investigación hace enfatiza tres movimientos en los que los Estados comparten los roles centrales, en la de América Latina. La Mesa Redonda de Santiago de Chile, en 1972, que puso de en relieve a los museos en el mundo contemporáneo y [destacó] su contribución al hacia el desarrollo social y de la educación; la propuesta a la UNESCO de un "Decenio Mundial del Desarrollo Cultural, 1988-1997" el Cultura" UNESCO, en que pusiera en relieve la necesidad de "fomentar a la cultura como una herramienta para el progreso social de los pueblos"; y la propuesta liderada por IBERMUSEUS de dónde la sociedad civil, las instituciones internacionales y los profesionales en el del campo de proponer proponen transformar inflexión en el período 2012-2022 en un "Decenio de los Museos", poniendo en de relieve el papel rol del Estado, la sociedad y el campo de los museos en la definición de políticas públicas para el sector. Palabras clave: Museo; Museología; Estados; Políticas Públicas en América Latina Abstract Our research emphasizes three movements in which States occupy central roles in Latin America. The Roundtable of Santiago, Chile, in 1972, which highlighted the role of museums in the contemporary world and its their contribution to education and to social development; the proposal of a UNESCO "World Decade for Cultural Development 1988-1997" (“Decenio Mundial para el Desarrollo Cultural 1988-1997”) to UNESCO, on the need to "foster culture as a tool for social progress of the peoples"; and the proposal led by IBERMUSEUS, in which civil society and international and professional institutions on the field propose turning the period 2012-2022 into a "Decade of Museums", highlighting the role of the State, society and the museum field in the definition of public policies for the sector. Keywords: Museum; Museology; States; Public Policies; Latin America 1                                                                                                                         Cientista Social e Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio 10 1. Reflexões Iniciais Os museus nos anos pós-1960, em todo o ocidente, produziram uma centralidade em relação ao mundo da cultura. Esta centralidade não diz respeito apenas às massas que recorrem à instituição em busca do lazer, da emoção e da informação, sua importância é também política e cultural. A ideia de casa do passado, de lugar de guarda, conservação e exposição se modificaram. O museu é um lugar de encontros e de produção de sentidos (Moraes, 2012), para a criação, a comunicação e a produção de conhecimento. No Brasil, o Cadastro Nacional de Museus (CNM) aponta a existência de mais de 3.000 instituições de diferentes tipologias: arqueologia, história, etnografia, ciência e tecnologia, belas artes, biográficos, museus de sítio, ecomuseus. Museus públicos e privados disputando e convivem com públicos específicos. Este cenário não é especificidade do Brasil, ele envolve diferentes países da América Latina suscitando –inclusive- políticas públicas de Estado. A presença ativa da sociedade civil na defesa e promoção de políticas culturais produziu um novo eixo e relações entre museologia, patrimônio e cidadania. A cultura foi convidada a repensar e produzir códigos e valores culturais assumindo uma dimensão política. Política no sentido de coletiva e cidadã, articulando, defendendo e integrando o processo de promoção das identidades e da cidadania, contribuindo para a solidariedade e as relações sociais. Isto é, além de introduzir novos temas o museu considera outros atores sociais. Pluralidade é a ideia que percorre os estudiosos da cultura na América Latina. Ela reúne diferentes traços e presenças. O museu era, até a segunda metade do século XX, o lugar de uma prática e de um saber que se apresentava como exposição como parte do projeto de Estado ou de educação sem contribuir com uma crítica destes saberes, apenas uma trajetória ou discurso. A historiografia herdada da tradição europeia enfatiza a presença de indígenas, europeus e africanos, a realidade é mais complexa e mais tensa. Além de a região receber e concentrar estas populações e os elementos matérias e simbólicos destas populações ela produziu novos cruzamentos e elementos simbólicos e relacionais refletindo a abundância natural e a criatividade humana envolvida. O nosso texto é parte de reflexões desenvolvidas pela pesquisa encerrada, em dezembro de 2012, tendo como objeto as políticas públicas para o museu no último decênio. A tomada da América Latina como objeto de análise revela que existe um profundo nexo entre o processo brasileiro e o processo em curso na América Latina. Um modelo relacional em crise, uma profunda mudança social e simbólica. 11 2. A América Latina A América Latina como idéia única é uma impossibilidade histórica, cultural e social, o mesmo pode ser afirmado com relação ao museu e a museologia na América Latina. Nesta região a pluralidade, a diferença e as tensões -tanto na sociedade como no campo museológico- são marcas estruturantes ou fundantes. A América Latina, para os estudiosos, militantes e artistas produziu diversos movimentos intelectuais e culturais que –diante da alarmante conjuntura- reclamam uma profunda e sistemática revisão teóricometodológica e de reflexões científicas herdadas da uma tradição intelectual que se constitui no século XVIII na Europa. Nas últimas décadas as ciências sociais e as ciências humanas constataram a necessidade urgente em repensar seus saberes, teorias e metodologias de análise sobre a América Latina. As tensas e aceleradas mudanças estruturais em curso na América Latina, em especial desde os anos 1950, são observadas e objeto de diferentes respostas pelo campo do museu, do patrimônio, dos produtores culturais e pela sociedade. A busca estatal de fazer esquecer e condenar o empenho social e de instituições comprometidas com o processo de comunicação, informação e produção da democracia ajudam a retomar a memória e a história das sociedades da região na luta contra o processo de destruição ou de ressignificação e mercantilização dos patrimônios e das culturas regionais promovendo –organizadamente ou não- resistência e estratégias diferentes de lutas. Ao final do século XX não era mais permitido desconsiderar a existência da América Latina. Os intelectuais, artistas, militantes sociais e o próprio circuito comercial traziam à tona o desafio de identidades e de mercados que se renovam e exigem participar das definições que dizem respeito ao desenvolvimento regional. A sociedade e as instituições da sociedade civil produzem e reagem de maneira distinta a diferentes e contraditórios interesses sociais, simbólicos e materiais que varrem a região empenhados, que estão, em produzir dominação, controle e submissão. No início do século XXI algumas tendências foram modificadas, mudanças são viabilizadas e ideias desconsideradas como democracia, participação e controle social são consideradas. A América Latina permitiu a existência de reflexões científicas e movimentos intelectuais que reclamam uma revisão teórico-metodológica. Não se trata só de pensar, mas pensar criticamente. As ciências sociais e as ciências humanas buscam, desde a segunda metade do século XX, novos temas, objetos e diálogos permanentes com o museu e seu campo de reflexões acadêmicas. 12 A partir dos anos 1960, em especial nos países do ocidente, a questão da cultura revela e passa a exigir diferentes e tensas confluências entre as Ciências Sociais, as Ciências Humanas e as reflexões sobre Museu, num diálogo que tem se intensificado. Tais relações e complexidade resulta inclusive nas críticas à sociedade “do espetáculo”, da “indústria cultural”, do “entretenimento” pelo uso intenso de novas tecnologias, processos informacionais e comunicacionais e pelas ações e políticas públicas implementadas. As ciências sociais, as Ciências Humanas e a museologia são produtos científicos e institucionais da razão iluminista, entre eles é possível a existência e o estabelecimento de “empréstimos recíprocos”. As mudanças nos métodos, teorias e objetos provoca e invoca o status epistemológico de seus objetos. A crítica arrasadora que as instituições e o conhecimento científico provocaram nos anos 1960 foi impactante. Nada foi poupado da desconfiança, da suspeição de legitimidade e da revelação de interesses não explicitados. O museu, anteriormente, um lugar de silêncio e de admiração revela as diversas vozes e versões que estavam silenciadas ou omitidas. A museologia e o museu exigem um vigoroso saber especializado, se transformou na fustigação crítica e se constitui sob o império das disputas entre disciplinas científicas e demandas da sociedade. Neste contexto a museologia e o museu se vêem fustigados pelo compromisso e anseio de sua comunidade em deixar de ser área de síntese de saberes e práticas importadas de outras disciplinas, um conjunto de técnicas de exposição dissociando a sua existência de um campo ou lógica passiva e pouco comprometida com o seu contexto e passa a se exigir, como um ator privilegiado de um processo, uma ação reflexiva e parte de campo do conhecimento, como elementos constitutivos, significantes, estruturantes e estruturadores de mudanças que expressam disputas sociais e culturais que não comportam controles ou convivem com fronteiras físicas, sociais, tecnológicas e culturais. A cultura na América Latina empolga, mobiliza e envolve intelectuais, artistas, militantes sociais, cientistas e políticos num vigoroso debate. Na verdade, a América Latina, como invenção intelectual e tema de análise, desde o século XIX é motivação de diferentes esforços de compreensão e de transformação social. Trata-se de um desafio que afirma e marca a identidade regional e as dificuldades de análise, qualquer que seja a tradição intelectual ou projeto que exige este empreendimento, qualquer que seja a influência ou o objetivo esperado. Compromissados e herdeiros de tradições positivistas, marxistas, estruturalistas e pós-modernas encontram limites e armadilhas na imposição 13 de seus objetivos e de suas capacidades de perceber a realidade. O único consenso existente aponta a diversidade e da pluralidade. 3. A América Latina como Tema de Diferentes Desafios A virada para o século XXI na América Latina, com a chegada aos governos, por vias eleitorais, de lideranças populares comprometidas com algumas demandas da sociedade e com o processo democrático, não expressam consenso ou desejo de todos os segmentos da sociedade. A idéia de democracia, justiça e direitos são valores e podem ser estratégias discursivas, mais que compromissos sociais. Eles podem contrariar interesses ao garantir a adoção de políticas que produzem mínimas mudanças na qualidade de vida das populações do continente. Alguns grupos sociais resistem em produzir melhor redistribuição da riqueza e dos equipamentos sociais. Observamos que melhorias e mudanças necessariamente não modificam substancialmente a qualidade de vida, mas que enchem de entusiasmo populações que viveram excluídas dos benefícios sociais e mesmo do reconhecimento social e estatal. Na América Latina a busca de uma sociedade eqüitativa, moderna e integrada parece dar os primeiros passos. As mudanças sociais devem ser encaradas com os cuidados e resistências que estas mudanças mínimas provocam, estimulam resistências políticas e ideológicas; e a garantia da continuidade do processo democrático e universalizante dependem da capacidade de mobilização e organização das instituições sociais e da sociedade civil que reclama por estas demandas. A democracia, justiça e direitos não são necessariamente desejos ou garantias universais de Direitos. Não produzem consenso em sociedades autoritárias, excludentes e concentradoras de poderes e privilégios (Moraes, 2011). A produção de políticas públicas e, em especial, de cultura é um desafio conjuntural para o Brasil e países da América Latina. A existência de uma política pública não remete ao seu imediato, a sua execução. Isto significa outro ou mais um complexo processo de disputas sociais. Isto é, além de existir, deve ser considerado para quem e como se faz a política reconhecida e pactuada. Estudar as políticas públicas na América Latina é defrontar-se com o processo de produção, organização e distribuição de bens culturais excessos e de grandes demandas sociais, em sociedades centradas na exclusão social e na concentração de privilégios e poderes que atingiu seu apogeu ao longo do século XX. O modelo histórico de desenvolvimento adotado transformou o continente em cenário de diferentes tragédias e 14 experimentos históricos que foram violentamente acelerados, na última década do século, pelos infamantes e trágicos experimentos neoliberais. Experimentos que confundem alguns analistas, principalmente intelectuais e militantes sociais europeus e norte-americanos que, por não conhecerem a História do continente e seus impactos para as populações locais, por vezes se surpreendem com a importância que o tema das políticas públicas assume nos países da América Latina (MORAES, 2008). Os gestores dos processos econômicos e políticos fazem com que eles estejam voltados numa mesma direção. Enquanto os Estados Unidos, ao final dos anos 1990, produzem uma hegemonia política e militar, cresce e consolida-se a fragmentação e desconcentração do capital num longo ciclo recessivo. A coerência do projeto e de seu discurso são maiores que a sua possibilidade de impor sem resistências. Uma recessão agravada pela redução do meio circulante, pela superação pelo capital financeiro especulativo de um modelo regulador, conhecido como keynesiano ou de prevalência do estado de bem-estar social, responsável pela desregulação das economias e imposição das teses de livre mercado. Estudar o Brasil e os demais países do continente, em especial quanto às políticas públicas adotadas, não é um esforço intelectual simples: as teorias e as metodologias, produzidas para pensar outras realidades e interesses, se mostram incapazes de perceber os traços regionais e conjunturais. As relações e alianças, os acontecimentos do cotidiano e das estruturas sociais produzem armadilhas e pegam de surpresa os analistas. Fiori (2009) acredita que o processo denominado de globalização econômica não é recente e não traduz o fim das economias nacionais. Ao contrário, a globalização econômica resultaria da expansão dos “Estados-economias nacionais”, quando impõem seu poder sobre um território econômico supranacional. Pela natureza concentradora, esta dominação será crescentemente mais ampla. Segundo Fiori, os sistemáticos fracassos político-militares norte-americanos do início do século XXI, e a crise econômica mundial não apontam para o fim do “regime de produção capitalista”, nem mesmo para uma possível “sucessão chinesa” como nação hegemônica. Para Fiori, esta “explosão expansiva” do sistema inter-estatal capitalista, e uma nova “corrida imperialista” entre as grandes potências, deverá ser intensificada. Portanto, não existiria nenhuma novidade significativa neste processo. Fiori compreende que, nos anos iniciais do século XXI, a situação política mudou na América Latina. Segundo o autor, os partidos e coalizões políticas de bases nacionais, fundados em teses desenvolvimentistas e inspirações sociais vagamente socialistas, 15 imprimiram outra orientação política e ideológica no continente. Inicialmente, estes governos não realizaram mudanças profundas na economia, eles mantiveram a essência da política macroeconômica ortodoxa imposta pelos neoliberais nos anos 1990. Garantida as bases econômicas – leia-se, o modelo adotado de estabilidade - foram realizadas algumas mudanças que não alteraram ou promoveram a desorganização da estrutura e de inserção internacional da economia. Consolidada a estrutura econômica, domesticada as finanças havia o desafio social. A cidadania na região está por ser construída, há um esforço, que encontra diferentes formas de resistência de grupos e interesses sociais favorecidos ao longo deste período, em viabilizar as mudanças mínimas exigidas pela sociedade. Superar todas as concentrações e privilégios que movem e orientam o cenário social na região é uma ação que implica em esforços simultâneos, que envolvem competência e decisões técnicas, políticas e culturais. No caso brasileiro, a presença do Estado na definição e implementação das políticas públicas é fundamental. Considerado o papel estratégico da cultura e da saúde, e de suas instituições, todo e qualquer estudo produz novidades e exige repensar teorias e sentidos destas políticas para a constituição mínima de uma cidadania e, em diferentes casos, o próprio sentido de humanidade. O Brasil e a América Latina não permitem, aos analistas sociais, a existência ou produção de nenhum modelo analítico capaz de encontrar e enfrentar, com um mínimo de racionalidade e capacidade explicativa, o processo de reestruturação das sociedades e instituições locais, a partir de um modelo comum ou unívoco de desenvolvimento (DANTAS, 1998). As análises devem considerar as diversas realidades e estratégias de produção de sentidos. Os modelos científicos de análise, os diversos interesses sociais e os tensos processos sociais em curso, por vezes, contraditórios, aparentemente ignoram ou são construídos independentes do secular processo de globalização e do capitalismo neoliberal. 4. Mudanças em Curso na América Latina Os primeiros anos do século XXI demonstram a negação social do neoliberalismo e a afirmação de um novo cenário. O momento fez emergir ao centro de poder novas forças políticas, sociais e culturais. O fracasso das expectativas criadas pelas políticas adotadas nos anos 1990, fundadas em soluções globalizadoras e de mercados, no fracasso dos modelos de distribuição de riquezas, na desnacionalização dos recursos e empresas nacionais e no 16 esgotamento das políticas de bem-estar, aprofundaram as incertezas e produziram as condições para as vitórias eleitorais das novas lideranças políticas. Os analistas afirmaram que se tratava de uma “virada histórica à esquerda”, com a garantia da manutenção das relações democráticas. Isto significou a ascensão de governos que expressam uma nova tendência política. Outro modo de olhar e intervir na sociedade, outra relação entre Estado e sociedade. São muitos os exemplos: ascensão na Bolívia pelo MAS de Evo Morales, a consolidação de Hugo Chávez como liderança do Socialismo Bolivariano. No Brasil, Argentina, Equador, Uruguai e Chile são eleitos governos preocupados com o social e com a integração sul-americana. Na origem destes governos, diversos representantes de movimentos sociais buscam desenvolver mudanças empenhadas em transformar as suas realidades. Assim, são realizadas as nacionalizações bolivianas. No Brasil, os indicadores econômicos e sociais demonstram que melhoram a distribuição de renda e a qualidade de vida no Brasil, embora esta mudança não seja estrutural, mas localizada. As mudanças, entretanto, não são universais, estão centradas ou concentradas em grupos sociais que estavam nos limites da pobreza e da miséria. Na Venezuela, Chávez resiste às pressões norte-americanas sobre o seu modelo de gestão. No Equador é convocada uma Assembléia Constituinte; na Argentina cresce as polarizações da sociedade; no Paraguai as mudanças geram apreensões e um golpe branco, ao contrário de sua antiga tradição. Nos primeiros anos do século XXI, no Brasil e na América Latina, constatamos uma crescente preocupação com um processo iniciado nas duas últimas décadas do XX. Velhas e novas palavras, antigos e novos problemas e temas, conceitos e métodos parecem conviver desafiando os interessados em estudar a região. Numa análise que sempre corre o risco de ser generalizante e simplificadora, há que se enfatizarem as muitas e contraditórias mudanças sociais que anuncia a existência de estratégias e concepções políticas, econômicas, financeiras e produtivas - inclusive tecnológicas -, que marcam uma aparente descontinuidade em relação ao processo histórico que forjou o modelo de desenvolvimento desta região. Os países da América Latina herdaram, do modelo predominante na segunda metade do XX, um profundo déficit fiscal e comercial, dívida externa, crescente dependência do capital estrangeiro, baixos investimentos, inflação e desequilíbrio na balança de pagamentos. Num primeiro e apressado esforço era possível compreender ou afirmar que o cenário que se apresentava era trágico, definitivo e não apontava solução de curto prazo: processo de globalização e políticas neoliberais estimuladas pelas agências internacionais e grupos financeiros, a política de generalização da privatização 17 de diversas empresas estatais com a justificativa de “busca de equilíbrio orçamentário”, os altíssimos níveis de desigualdade e concentração na distribuição de renda só faziam tornar impossível qualquer outra solução que não fosse a recomendada - ou imposta pelos agentes do capital e corrupção generalizada nas instituições e grupos que atuam em diferentes instâncias sociais e estatais. A incerteza e a descontinuidade não eram novidades para os excluídos, a conjuntura fazia da violência, da incerteza e da descontinuidade um traço estrutural que combatia e eliminava os excluídos sociais e angustiava aqueles habituados aos privilégios e poderes. As condições que produziram a insegurança e incerteza na região avançaram motivadas pela intolerância, desrespeito e concentrações que caracterizam – com apoio intensivo de novas tecnologias - o processo internacional de dominação e controle social. A globalização se consolida na destruição de todos os modelos sociais, relacionais e simbólicos que orientaram gerações possibilitando o esforço de apagar as memórias sociais e culturais e implantar novas e docilizadas identidades sociais, culturais e produtivas fundadas na ideia de mercado e de imediato. A idéia que só é válido, tolerado e recomendado o que é produto da hegemonia do capitalismo generaliza e politiza as tensões. As cotidianas e aceleradas inovações tecnológicas e materiais, as condições técnicas e econômicas para a generalização da produção, circulação e consumo de idéias, capitais e bens criam novos mercados e interesses que se empenharam em afastar o Estado e entregar aos interesses privados a condução dos processos sociais. Eles viabilizam o surgimento de uma rede global de transações e transformações de bens materiais e imateriais, de trocas simbólicas constituindo um valor caro aos intelectuais e militantes dos anos 1960. Certamente, a forma de ingresso, que, quem e como ter acesso e participação nestas inovações retrata a estrutura social. Isto é, são marcadas pelas desigualdades e pelos interesses do mercado como eixo favorecido. Não existe uma universalização dos equipamentos e dos bens produzidos. Ao mesmo tempo foi possível constatar a produção de uma aliança social e política e de um discurso único entre os setores sociais e interesses favorecidos. 5. O Museu e as Diferentes Políticas Neste trabalho, em desenvolvimento, pensamos as relações entre políticas públicas de cultura e de museu no processo histórico e social na América Latina nas últimas décadas. Consideramos que a conjuntura internacional e os fenômenos regionais 18 e locais ajudam a produzir um novo e complexo cenário em que as instituições e políticas de cultura ganham relevância nas relações de poder e na organização da sociedade. As políticas culturais, as instituições da cultura e os museus são considerados parte de um cenário que exige revisão dos modelos que orientaram ações, políticas, modos de compreensão e de fazer. Consideramos que as reflexões contemporâneas enfrentam setorialmente desafios e discursos que se articulam como realidades objetivas. O cotidiano, a subjetividade, as disputas de orientação exigem aportes e capacidade de incorporar novos elementos às práticas e ao conhecimento. Estudamos enfatizando o papel do Estado em suas tensões e soluções face às pressões das populações da região, às volumosas demandas e carências que cercam a população da região. Portanto, enfatizamos uma dimensão estrutural que, no campo da cultura e do museu, implicam em três movimentos em que os Estados ocupam papéis centrais na América Latina. A Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, que destacou o papel do museu no mundo contemporâneo e sua contribuição para a educação e o desenvolvimento social; a proposta de um “Decenio Mundial para el Desarrollo Cultural 1988-1997” da UNESCO, sobre a necessidade de “fomentar o cultural como ferramenta para o progresso social dos povos”; e a proposta liderada pelo IBERMUSEUS, em que a sociedade civil, instituições internacionais e profissionais do campo propõem transformar o período 2012-2022 em “Década dos Museus”, destacando o papel do Estado, da sociedade e do campo museológico na definição de políticas públicas para o setor. O estudo, fundamentado em acervos documentais, bibliografia selecionada e depoimentos orais analisa as relações entre o museu, a sociedade e Estados preocupados com o processo de inclusão social. Estas relações influenciam nos modos de fazer e compreender o campo museológico em que cenários são orientados por agências, projetos e estratégias internacionais e resistências locais. A metodologia adotada revela os sentidos e dimensões das mudanças em curso utilizando a “análise de discurso”, na tradição francesa, em instrumentos teóricos e metodológicos das ciências sociais e ciências humanas, mapeando as disputas, atores e estratégias envolvidos na conjuntura. O estudo sistemático dos museus, da prática museológica, das instituições e políticas de museu e da museologia na América Latina revela as armadilhas históricas de sociedades em mudanças. Consideramos que a racionalidade científica contemporânea é – no mínimo - estranha à realidade regional. Consideramos a integração regional, a conquista da cidadania, o direito à cultura e à identidade entre as continuidades, 19 descontinuidades, resistências e mudanças sociais, gerenciais e tecnológicas, exigindo reflexões inovadoras para contextualizar a contribuição do museu e seus modos de produção de exposição, conhecimento e veiculação de informação na região. O contexto influenciou o debate. A derrota do projeto neoliberal na América Latina, fez emergir um novo ator e uma nova estratégia de articulação no setor de museu, que se fundamenta numa situação em que o Estado possui um papel de liderança e expressa uma preocupação e de inclusão de populações até então desconsiderada das políticas sociais e de cultura: O IBERMUSEUS O IBERMUSEUS resulta e expressa uma novidade desta década na América Latina. Trata-se de uma busca de encontro entre setores sociais e interesses distintos onde o coletivo se coloca como prioridade, ao contrário do processo predominante de valorização do privado e do corporativo. O Estado é obrigado a conviver e acolher demandas de grupos excluídos. Neste sentido, alguns setores sociais acostumadas aos benefícios estatais se portam como alijados ou desconsiderados. Uma fração da tecnoburocracia estatal identifica-se com interesses e visões de mundo de setores populares. O IBERMUSEUS não constitui uma ação ou decisão unilateral ou individual, é parte de um processo e iniciativa pactuada, de âmbito intergovernamental, envolvendo membros institucionais representativos de governos da região. A ponte cultural envolvendo países da América Latina e países europeus permitem trocas complexas e desmonta uma lógica colonizadora. Remete a uma conjuntura e a um contexto que emerge na região a partir da valorização –em escala planetária- de blocos regionais como estratégia de valorização local e de racionalização nas disputas econômicas internacionais. Trata-se de uma iniciativa e decisão política que, reunindo um Conselho Intergovernamental, por adesão de governos nacionais, se realiza no contexto e com o compromisso de favorecer a integração multilateral que envolve países da Ibero américa. Resultado de encontros e debates prévios orienta a reunião de encerramento, em 2007, do Primeiro Encontro de Cúpula Ibero-Americana de Museus. Na ocasião foi discutida e aprovada a Declaração de Salvador, através de vinte e dois países representados nesta Reunião se comprometeram com as diretrizes e prioridades do IBERMUSEUS. Ela se define como: instância de fomento e de articulação de uma política museológica para a região com mecanismos multilaterais de cooperação e desenvolvimento de ações conjuntas no domínio dos museus e 20 museologia dos países da Ibero - América. Tem como objetivo proporcionar à troca de experiências no campo museal, a criação de um fundo de desenvolvimento para os cerca de dez mil museus e a formação de uma rede ibero-americana de museus. Esta definição compreende que: a amplitude de definições museológicas e do reconhecimento da importância estratégica do intercâmbio cultural entre os países iberoamericanos – especialmente no campo dos museus e da museologia –, se destaca a necessidade de definição de diretrizes para a implementação de políticas públicas de cultura e para a criação de mecanismos multilaterais de cooperação e de desenvolvimento de ações conjuntas no campo dos museus e da museologia dos países iberoamericanos. No Programa consta: “O Programa Ibermuseus é uma iniciativa de cooperação e integração dos países ibero-americanos para o fomento e articulação de políticas públicas para a área de museus e da museologia” A reunião realizada em janeiro de 2008 no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Na reunião foram definidas a formação e capacitação; o mapeamento dos museus iberoamericanos; a contribuição para consolidar a Rede Ibero-americana de Museus e a criação de um Portal, como seus primeiros passos. Os Estados nacionais pressionados por grupos e classes sociais empenhados em produzir uma nova hegemonia política e social mudaram – ao menos conjunturalmente suas estratégias, considerando as alianças, interesses e forças sociais envolvidas. América Latina: a cultura além da economia e da política Ibero-Americana ou latino-americana, as estratégias estão colocadas. As mídias, as burocracias e os políticos identificados com o neoliberalismo acusam todas as novas lideranças eleitas que não expressam os interesses e a aliança social tradicional de poder e do controle dos meios de comunicação de terem como base “o populismo”. A categoria populismo é transformada em instrumento político utilitário e excludente, ela ressignifica e desqualifica aqueles que imprimem ou lutam por mudanças. A existência de um mundo global se realiza na lógica da produção e disseminação da insegurança, incerteza, descontinuidade e intranqüilidade. As fragmentações sociais e culturais convivem com a cultura do individualismo e do mercado de tudo e a qualquer preço, ameaçando os Direitos Humanos e a existência de uma ordem legal de garantias individuais. Todas as formas de patrimônio sociais, culturais, simbólicos, materiais, imateriais estão condenados a usos privados ou à sua destruição em nome de interesses privados. Mais grave e coerentemente, este cenário se 21 constitui num ambiente devastado pelos modelos irracionais de exploração e uso. Nenhuma esperança humana ou social será possível ou desejada segundo os analistas dos interesses produtivos. Neste sentido, existe uma convergência estratégica, a convergência representada pelo processo e o papel da integração regional como ação estatal. O tema da integração regional ocupa lugar central na pauta política regional, em especial a brasileira, pois se constituiu num pilar da política externa. A idéia de internacionalização e de fixação do Brasil como referência e agenda internacional atende alguns interesses econômicos. Ao lado dos esforços econômicos, as disputas ideológicas e de hegemonia na orientação política dos países da região serve como justificativa. Estamos considerando, para a compreensão destas reformas, a convivência tensa entre Estados, sistemas políticos de representação, as bases socioeconômicas dos atores políticos, movimentos sociais atuando em redes e as relações culturais. Portanto, um novo cenário e modelos relacionais. As reformas nas sociedades fazem emergir com intensidade as disputas ideológicas, institucionais e políticas. A cultura, imperceptível aos olhos e preocupações dos analistas dos meios de comunicação tradicionais, segue intervindo na construção das identidades e discutindo, sem nenhuma concessão, as realidades e estratégias de superação. Intelectuais, acadêmicos, militantes sociais e profissionais da cultura e de museus estão condenados a cotidianamente repensar as relações e situação da cultura, dos museus e das políticas no Brasil e no continente. O desafio é continental e não diz respeito a um único segmento da sociedade e da cultura. Trata-se de superar um grave processo histórico que foi acelerado violentamente e com graves efeitos sociais com a experiência neoliberal dos anos 1990, derrotada política e ideologicamente em todas as partes do continente, não apenas no Brasil. Os povos do continente, a par de todas e reconhecidas efeitos de exclusão social e concentração dos efeitos sociais que o modelo social produziu, estão obrigados a enfrentar a recuperação do pensamento crítico e da democracia latino-americana. O museu como espaço institucionalizado de veiculação, produção e disseminação da informação, numa tradição intelectual herdada do pensamento de Antonio Gramsci, pretende priorizar ou transformar as condições e a cultura local em saber hegemônico ou confrontar-se com o poder numa perspectiva de transformação do contexto social e histórico. O museu na América Latina não é neutro ou desinteressado. O campo museológico na América Latina, como foi demonstrado, é um desafio –inclusive político e 22 de gestão- que se constitui no cotidiano e que considera as especificidades de cada sociedade. Além do papel central ou estratégico dos Estados observamos a importância crescente do setor mercadológico e da força transformadora das sociedades civis através dos diferentes movimentos sociais. Ao logo de quase todo século XX o museu –na América Latina- foi caracterizado por constituir uma instituição predominantemente estatal e a partir dos anos 1970 outros olhares, interesses e estratégias se voltaram para o museu. Os movimentos sociais e setores privados, em especial articulados ao capital financeiro, utilizaram-se do museu como lugar de memória, de lazer e entretenimento. Nos três processos destacados para a pesquisa, a Mesa Redonda de Santiago do Chile; a proposta de “Decenio Mundial para el Desarrollo Cultura 1988-1997” da UNESCO e a proposta liderada pelo IBERMUSEUS revelam as armadilhas de sociedades em mudanças. Observamos que a racionalidade científica contemporânea é estranha à lógica das instituições e à própria realidade regional que se movem segundo estratégias conjunturais. Consideramos que a integração regional, a conquista da cidadania, o direito à cultura e à identidade entre as continuidades, descontinuidades, resistências e mudanças sociais, gerenciais e tecnológicas, exigindo reflexões inovadoras para contextualizar a contribuição do museu e seus modos de produção de exposição, conhecimento e veiculação de informação na região e que elas devem ser consideradas na dimensão e nos embates científicos, éticos e políticos. Nesta primeira década do século XXI, o museu –compreendendo os quadros que assumem este compromisso- na América Latina teve diante de si a possibilidade histórica, cultural e institucional de ser um ator social estratégico capaz de reinventar e considerar a existência e legitimidade de todos os povos e sociedades esmagados ao longo de cinco séculos de poder e exploração, livre de qualquer controle social e justificado pelas instituições e pelos saberes do sistema social em escala internacional. Na América Latina o museu -como identidade, história ou mercado cultural- se insere na vida dos indivíduos e nos projetos dos grupos e classes sociais. 6. Referências BARROS, Carlos. História Imediata. A Cantareira. Niterói: FH-UFF, 2006. DANTAS, A. T. Neoliberalismo e Globalização. Arché Interdisciplinar, Rio de Janeiro, v. 20, 1998. 23 FIORI, José Luís. América Latina, um continente sem teoria. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15943>. Acesso em: 18 jun. 2009. LYOTARD. Jean-Francois. A Condição Pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. MORAES, Nilson. Estado, cultura e patrimônio: o museu entre a ciência e a sociedade. In: DANTAS, Alexis T.; LEMOS, Maria Tereza Toribio B.. Narrativas e História: A construção do Estado Latino-americano. Rio de Janeiro, 7Letras, 2012. p. - . _____, Integração e Identidades culturais na América Latina. Maracanan, v. 5, 2008. _____, Memória Social: Solidariedade Orgânica e Disputa de Sentidos. In: Gondar, Jo; DODEBEI, Vera. Memória Social. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2006. SCHEINER, Tereza C. Sociedade, Cultura, Patrimônio e Museus num País Chamado Brasil. Apontamentos Memória e Cultura, v. 4, n. 1, UNIRIO, Rio de Janeiro, 1994 Site http://www.ibermuseus.org/ . Acesso em: 12 de outubro de 2012. 24 DISCURSOS E PRÁTICAS NA (RE)ORGANIZAÇÃO DA MUSEOLOGIA PORTUGUESA NO INÍCIO DO SÉCULO XX. Joana Baião1 Resumo Em 1911 é publicada em Portugal a primeira legislação republicana sobre o património artístico e arqueológico nacional, na sequência da qual são dadas as premissas para a (re)estruturação do panorama museológico nacional. Esta reestruturação esteve assente numa conceção diretamente vinculada a um discurso nacionalista que, apesar das suas especificidades, se alinhava com as práticas seguidas um pouco por toda a Europa. Anos mais tarde, a instituição do regime autocrático do Estado Novo viria a dar um novo enquadramento legislativo aos museus portugueses, insistindo contudo na mesma conceção pró-nacionalista, agora mais diretamente ligada às intenções e agenda do novo regime. Nesta comunicação propomos dar a conhecer os contextos políticos e institucionais do panorama museológico português nas primeiras décadas do século XX, fazendo uma breve reflexão acerca de que modo as intenções legislativas se refletiram (ou não) nas práticas seguidas. Palavras-chave: Museologia em Portugal, Legislação, 1.ª República, Estado Novo. Resumen En 1911 se publica en Portugal la primera legislación republicana referente al patrimonio arqueológico y artístico nacional. Este documento ha dado los presupuestos para la (re)estructuración del panorama museológico portugués y fue basado en un concepto directamente relacionado con un discurso nacionalista que, a pesar de su especificidad, se alineó con las prácticas seguidas en casi toda Europa. Años más tarde, la institución del régimen autocrático del Estado Novo daría un nuevo contexto legislativo a los museos portugueses, insistiendo en el misma concepción pro-nacionalista, ahora más directamente vinculada a las intenciones y agenda del nuevo régimen. En esta comunicación nos proponemos informar de los contextos políticos e institucionales del panorama museológico portugués en las primeras décadas del siglo XX, con una breve reflexión sobre la interrelación entre las intenciones legislativas e las prácticas seguidas en la definición de una estructura museológica nacional. Palabras clave: Museología en Portugal, Legislación, 1 ª República, Estado Novo. Abstract In 1911 was published in Portugal the first republican law about the artistic and archaeological national heritage. This legislation was directly related to the nationalistic narratives that marked the European culture in the beginning of the century and gave the premises to the (re)organization of the Portuguese museological structure. Some years 1 Membro do Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FSCH-UNL) e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Licenciada em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e Mestre em Museologia pela FCSH-UNL, onde é doutoranda em História da Arte – Especialização em Museologia e Património Artístico.   25 later, the institution of the autocratic regime of "Estado Novo" gave a new legislative context to the Portuguese museums, insisting again on the pro-nationalistic discourses, now more linked to the intentions and agenda of the new establishment. In this communication we propose to make a brief presentation of the political and institutional contexts of the Portuguese museological panorama in the first decades of the twentieth century, presenting a brief reflection about the relationship between the legislative intentions and the effective practices in the definition of the museological politics in Portugal. Key-words: Museology in Portugal, Legislation, 1st Republic, Estado Novo. 1. Apresentação. Entender o desenvolvimento das "políticas" e práticas museológicas em Portugal nas primeiras décadas do século XX implica compreender o quadro contextual que antecedeu esse período, pelo menos a partir da instituição do liberalismo, em 1834. Embora marcado por várias vicissitudes relacionadas, na sua maioria, com uma clara incapacidade de coordenação e gestão das instituições por parte das suas entidades tutelares (motivada grandemente pela crónica falta de recursos materiais e humanos), o século XIX acabou por ser um período bastante profícuo no que diz respeito ao incremento do tecido museológico português. Para isso, contribuiu não só alguma ação do Estado (principalmente no que diz respeito à conceção de enquadramentos legislativos2, ainda que falhos de uma efetiva visão de conjunto e na prática nem sempre totalmente concretizados), mas também – e sobretudo – os desideratos e a atividade de algumas personalidades e de entidades particulares ou públicas, num contexto específico de organização das instituições liberais. Verificamos, pois, neste período a criação, organização e abertura ao público de instituições como o Museu Portuense (1833), a Galeria Nacional de Pintura (1868), a Galeria de Pintura do Rei D. Luís (1869), o Museu Industrial e Comercial do Porto (1883), o Museu Nacional de Belas-Artes e Arqueologia (1884) ou o Museu Etnográfico Português (1893). Apesar deste quadro aparentemente rico (e que contava mesmo com algumas experiências a nível regional, como o Museu de Arte Sacra em Coimbra, o Museu de Castelo Branco ou o Museu Municipal de Beja), e do efetivo processo de crescimento das coleções públicas artísticas, arqueológicas e etnográficas do país (fator fortemente potenciado pelo processo de nacionalização dos bens das ordens religiosas extintas 3 e 2 De destacar o conjunto de leis publicado a partir de 1836, cujo objetivo era «promover a civilização geral dos portugueses, a difusão da instrução pública e o gosto do belo que se consubstanciou em importantes reformas dos estudos (...), na criação de conservatórios, de academias, de escolas politécnicas e de museus» (RAMOS, 1993, p. 30).   3 A partir de 1834 o Estado colocou à venda, em hasta pública, os bens das extintas ordens religiosas que foram nacionalizados e incorporados na Fazenda Pública. Contudo, por Carta de Lei de 15 de abril de 1835, 26 pelo desenvolvimento de disciplinas como a Arqueologia e a Etnografia), a maioria das instituições museológicas criadas no Portugal de oitocentos apresentava grandes deficiências, quer ao nível das suas instalações (muitas vezes desadequadas, apesar das adaptações, para uma boa exposição e conservação dos objetos), quer ao nível daquelas que deviam ser as suas funções primordiais - inventariar, preservar e estudar as obras. Assim, na transição do século XIX para o século XX vários eruditos portugueses constatavam a pobreza do panorama museológico nacional: em 1888 a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho lamentava que «não temos museus, não temos exposições, não temos escolas, não temos publico, não temos um Estado ou (...) municipios que, sendo ricos, possam proteger largamente as bellas-artes (...)» (O Reporter, 1888, p.1); em 1896 Ramalho Ortigão reconhecia que em Portugal «não ha um museu de arte decorativa, nem um simples mostruário da nossa arte industrial, nem um museu de pintura, coordenado, catalogado e etiquetado de maneira que communique ao publico» (ORTIGÃO, 1896, pp.112-113); e já em 1901 José de Figueiredo constatava também a «má organisação dos museus, ou antes, a sua desorganisação», fator que prejudicava, a seu ver, a missão educadora e pedagógica daquelas instituições (FIGUEIREDO, 1901, p.29). 2. Os Museus na Reorganização Patrimonial Republicana. Foi no dealbar do século XX que o panorama museológico nacional veio a sofrer uma intensa reforma legislativa, na sequência da reestruturação das instituições do país após a implantação da República, em 5 de outubro de 1910. A formulação de um programa patrimonial e artístico constituiu, desde logo, uma preocupação do novo regime, que entendia a cultura como um importante meio de se afirmar e chegar às massas, por via da arte, da educação, da preservação e divulgação do património nacional. Num país em que a maioria dos 5 milhões de habitantes era pobre e analfabeta, a ação republicana na área cultural e patrimonialista teria de ser marcada, portanto, por um programa de cunho eminentemente pedagógico, que estimulasse na população a educação e os sentimentos de unidade e de progresso, centrado na premissa de interrelacionar o desenvolvimento do ensino livre, a reorganização dos arquivos e das bibliotecas e as reformas no ensino e nos museus. passaram a ser protegidos os bens móveis e imóveis de «notavel antiguidade», que deviam ser conservados como «primores de arte ou como Monumentos historicos de grandes feitos ou de Épocas Nacionais». O património artístico móvel protegido pela nova legislação passou a ser depositado nas recém-criadas Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto, incrementando as coleções nacionais.   27 Apesar das intenções reformadoras do novo regime, o ambiente de instabilidade e crise económica, financeira, política e social que se vivia no início do século em Portugal – e que se prolongou durante toda a I República – fez com que a atuação do novo regime nas áreas da educação e da cultura se repercutisse sobretudo na produção de legislação e na definição de enquadramentos para uma nova política cultural, mais do que na sua concretização efetiva: Os salvadores, cheios da melhor vontade, legislaram – e, embora sem real mudança de estruturas económicas, numa república imediatamente burguesa por força do seu idealismo francês e dos interesses que se conjugavam, grandes reformas institucionais se esboçaram. (FRANÇA, 1990, p.299). Três leis redigidas logo após a revolução de 5 de outubro salientam-se pela sua indubitável importância na reorganização do panorama patrimonial, artístico e museológico do nosso país: a Lei de Proteção Artística, de 19 de novembro de 1910; a Lei de Separação do Estado e da Igreja, de 20 de abril de 1911; e o Decreto n.º 1, com força de lei, de «Reorganização dos Serviços Artisticos e Archeologicos», de 26 de maio de 1911. A primeira dessas leis, redigida por José de Figueiredo (1871-1937) e por José Pessanha (1865-1939) e cujo projeto fora apresentado ainda em período monárquico à Academia Real de Belas-Artes de Lisboa4, visava criar um enquadramento legislativo que defenda, da deterioração e da saída para o estrangeiro, o pouco que ainda nos resta de verdadeiramente valioso em materia de arte, ao mesmo tempo que facilite a entrada do que saiu e de outras obras que, pelo seu incontestavel valor artistico, ou pela sua valia como documento historico, concorram para a educação e elevação do povo portuguez (Diário do Governo, 22 de novembro de 1910, p.515). Aqui os museus são referenciados apenas como elementos consultores, uma vez que ficaria a cargo das Academias de Belas-Artes de Lisboa e do Porto (que tutelavam os museus de belas-artes daquelas cidades) e do Museu Etnológico Português a avaliação e produção de pareceres sobre os bens artísticos, arqueológicos e etnográficos. A segunda lei acima referida, relativa à separação da Igreja do Estado, não foi criada com um propósito patrimonialista, merecendo contudo referência porque acabou por ter grandes consequências culturais: a desamortização dos bens da igreja levou ao crescimento e criação de novas e importantes coleções estatais (que seriam igualmente 4 Cf. Ata da Assembleia Geral da ARBAL [1 de março de 1910]. Fundo ANBAL, Livro 12. Códigos de referência PT-ANBA-ANBA-A-001-00012_m0360-369 e PT-ANBA-ANBA-A-001-00012_m0379-380. Acedido em setembro de 2012 em: http://digitarq.dgarq.gov.pt?ID=4611674. 28 ampliadas através do processo de integração no Estado dos bens provenientes da família real exilada) e à conjuntura de criação de novos museus um pouco por todo o país, muitos deles instalados em antigos Paços Episcopais. Mas o mais importante ato legislativo artístico e patrimonial republicano foi o decreto de 26 de maio de 1911. Da lavra do então Ministro do Interior, António José de Almeida, e antecedido de um interessante relatório, neste decreto são abordados temas como o património artístico e os monumentos nacionais, o ensino artístico, os pensionistas do Estado no estrangeiro, os museus, o arrolamento de obras de arte e peças arqueológicas, sendo prevista a criação de estruturas como os Conselhos de Arte e Arqueologia, o Conselho de Arte Nacional e as Comissões de Monumentos. Ressalvese que a maioria das resoluções publicadas nesta legislação já vinham sendo discutidas e preparadas «pelo menos desde 1907, como comprovam sucessivas actas da Academia de Belas-Artes» (SILVA, 2001, p.75), notando-se na sua redação o cunho dos mais ativos membros da Academia naquele período - os já mencionados José de Figueiredo e José Pessanha e ainda Luciano Freire (1864-1934) e Abel Botelho (1856-1917). O relatório que antecede esta legislação demonstra a base conceptual que esteve por trás da sua construção, assente numa retórica centrada em valores como democracia, igualdade ou educação. Logo nos primeiros parágrafos o legislador aclama que um Estado, quanto mais democrático é, mais obrigações tem para com o artista. A democracia, visando á mais ampla igualdade, acaba por completo com as castas e com as communidades, que, nos regimes antigos, eram, os grandes protectores da arte (…). E, acabando com essas instituições anachronicas e substituindo-se a ellas nas suas funcções, pertencem-lhe, é claro, tambem, os deveres que pertenciam áquellas. (Reorganização..., 1911, p.3). A República, construída sobre valores democráticos e de igualdade, pretendia, pois, chamar a si a responsabilidade de preservar o património da nação, de estimular o ensino artístico e de divulgar a arte nacional. Das importantes disposições desta nova legislação artística e patrimonial ressaltemos, em primeiro lugar, a intenção de se criar uma política cultural «o mais descentralizadora possível» (Idem, 1911, p.4), do que surge a resolução de extinguir as academias de Lisboa e do Porto, e a consequente criação dos Conselhos de Arte e Arqueologia. Estes conselhos, divididos em três circunscrições artísticas, teriam as respetivas sedes em Lisboa, Coimbra e Porto, escolha justificada no relatório pelos «factores especiaes de que dispõem», e por ser «innegavel que tanto Lisboa, como Coimbra, como o Porto, são o centro das regiões do sul, centro e norte do país», sendo 29 ainda nestas cidades que «se tem mantido uma especie de hegemonia artistica, que as impõe para séde das instituições a que é, agora, confiada a guarda dos monumentos, a direcção suprema dos museus» (Ibidem, p.5). Embora a nova legislação pretendesse, com a criação dos Conselhos de Arte e Arqueologia, de certo modo evidenciar uma rutura com as instituições anteriores, na prática os conselhos republicanos viriam a prolongar as ações – agora mais abrangentes – que vinham sendo desenvolvidas nas antigas academias: “Os CAA, não se afirmando como academias de belas-artes, partilhavam muito da sua estrutura e da sua essência. Prolongavam o academismo, modernizando-o” (CUSTÓDIO, 2008, p.741). De facto, não podemos deixar de verificar uma certa continuidade prática e teórica no programa museológico e patrimonialista do novo regime em relação às instituições anteriores, uma vez que a sua base narrativa – centrada na exaltação da pátria e num sentido de cultura coletiva – começara a ser forjada ainda no século XIX, ao longo do qual as várias áreas da cultura portuguesa foram construindo os seus discursos na busca romântica das origens e das identidades nacionais. Apesar destes fatores, os novos organismos foram efetivamente a grande estrutura cultural da I República, contando com a colaboração – direta ou indireta – de praticamente todos os nomes da elite intelectual portuguesa do início do século XX, entre escritores, artistas, arquitetos, engenheiros, professores, historiadores, críticos de arte, professores5. O decreto de 1911 constituiu o primeiro documento legislativo português a desenvolver alguma reflexão acerca daquele que devia ser o papel dos museus na sociedade, e o papel do Estado na sua criação e organização. Para o regime republicano os museus eram entendidos como elementos fundamentais da formação cívica e cultural dos cidadãos, não apenas como complementos de ensino, mas como estruturas essenciais para a divulgação dos discursos de apelo aos valores coletivos de nacionalidade e patriotismo. Deste modo, era premente para o novo regime «valorizá-los, tornando-os, a par dos nossos mais bellos monumentos, padrões, tanto quanto possivel, vivos, da nossa cultura e modo de ser typico, através dos tempos» (Reorganização..., 1911, p.8), criando e/ou reestruturando quer os museus de valor nacional (representativos da identidade coletiva da nação), quer os museus de caráter regional (representativos das especificidades das culturas locais). 5 Refiram-se, a título de exemplo, além das personalidades já mencionadas, os nomes de Adães Bermudes, Miguel Ventura Terra, Afonso Lopes Vieira, Joaquim de Vasconcelos, António Augusto Gonçalves, Columbano Bordalo Pinheiro, Simões de Almeida ou Augusto da Costa Mota.   30 A nível de representação nacional foram reconvertidos ou criados museus nas sedes das três circunscrições artísticas dos Conselhos de Arte e Arqueologia – Lisboa, Coimbra e Porto. Em Lisboa foi extinto o oitocentista Museu Nacional de Belas Artes e Arqueologia, cujas coleções seriam incorporadas nos recém-criados Museu Nacional de Arte Antiga e Museu Nacional de Arte Contemporânea (que receberam as coleções de arte anteriores e posteriores a 1850, respetivamente). Foram também reestruturados, na capital, o Museu Nacional dos Coches (que fora inaugurado em 1905 e onde se deviam expor os «coches, berlindas, carruagens de gala, cadeirinhas, liteiras, jaezes e outros artigos que se relacionem com a tracção e a equitação, uma vez que se recommendem pelo seu valor artistico ou historico, e, ainda, peças de indumentaria») e o Museu Etnológico Português (que entretanto mudava de tutela, e no qual deveriam ser expostos «todos os objectos que se relacionem com a ethnologia do povo português, quer pertencentes ao passado, quer ao presente») (Idem, p.18). Em Coimbra, sede da 2.ª circunscrição, foi criado o Museu Machado de Castro, Museu de Geral de Arte Geral, organizado principalmente no intuito de offerecer ao estudo publico collecções e exemplares da evolução da historia do trabalho nacional; e que será ampliado com uma secção de artefactos modernos, destinada á educação do gosto publico e á aprendizagem das classes operarias” e que englobaria ainda o Museu de Arte Religiosa, “instituido junto da Sé Catedral (…) (Ibidem, p.19). E, finalmente, no Porto, as coleções do Ateneu D. Pedro e as da Academia de Belas-Artes fundiram-se para dar origem ao Museu Soares dos Reis, subordinado ao Conselho de Arte e Arqueologia da 3.ª circunscrição. Seriam diretores destes museus nacionais personalidades «que comprehendem a collecção dos nossos artistas de epocas passadas a artistas ou eruditos da especialidade, de reconhecida competência» (Ibidem, p.8), sendo então nomeados António Augusto Gonçalves (1848-1932) para a direção do museu de Coimbra; Marques da Silva (1869-1947), para o Museu Soares dos Reis; José de Figueiredo para o Museu Nacional de Arte Antiga; e Carlos Reis (1863-1940) para o Museu Nacional de Arte Contemporânea. O novo decreto não legislava diretamente acerca da instituição dos museus regionais, embora saliente a importância da sua criação. Foi dentro deste espírito descentralizador – e muitas vezes graças à ação pessoal de algumas personalidades – que entre 1912 e 1924 foram publicados os diplomas fundadores de diversos museus regionais, geridos através de diversas tutelas públicas: os museus de Aveiro, Évora, Faro, Bragança, Viseu, Tomar e Lamego, financiados diretamente pela administração 31 central; os de Leiria, Braga, Abrantes e Chaves, pelas respetivas Câmaras Municipais; e os museus de Beja e Vila Real, pelas Juntas Gerais do Distrito (SILVA, 2001, p.75). Apesar da diversidade tutelar e da intenção descentralizadora, a coordenação do funcionamento e atividade dos museus regionais competia aos Conselhos de Arte e Arqueologia, tutelados pelo Ministério da Instrução Pública. Em 1915, a regulamentação dos serviços do Conselho de Arte Nacional previa a criação de um cargo de superintendência dos museus regionais – a "inspeção dos museus regionais" – que em teoria passaria a ser responsável por todos os museus de arte e arqueologia do Estado ou por ele tutelados ou subvencionados, com exceção dos museus instituídos nas sedes de cada circunscrição (cf. Decreto n.º 1422 de 1915, capítulo II, art. 10.º). Este cargo não chegou a ser efetivado, ficando os museus regionais subordinados aos respetivos Conselhos de Arte e Arqueologia, através de um vogal nomeado para o efeito. Em 1924, nova reformulação legislativa determina que sejam os presidentes dos Conselhos de cada circunscrição a exercer, gratuitamente, a inspeção dos museus de arte e arqueologia do Estado e dos que por ele forem subvencionados (Lei n.º 1.700 de 1924, Cap. IV, Art. 29.º e seg.). Mais tarde, em 1932, o novo reenquadramento legal viria conferir ao Conselho Superior de Belas-Artes, a capacidade de superintender algumas das mais importantes atividades dos museus, cabendo-lhe «delegar, sempre que o julgue necessário, em vogais da sua escolha, e segundo a sua especialização, as funções de inspecção geral dos museus e colecções de arte pertencentes ao Estado e às autarquias locais» (Decreto-Lei n.º 20.985 de 1932, capítulo II, art. 15.º, 6.º). 3. A Legislação Museológica Portuguesa no Dealbar do Estado Novo. Quando o golpe militar de 1926 derrubou o regime republicano vigente e instituiu a Ditadura Nacional (1926-1933), o sistema museológico português encontrava-se já organizado, prevalecendo, nos primeiros anos da sua vigência, as estruturas legais e institucionais criadas pela República. Porém, no início da década de 1930 começou a definir-se uma nova linha de ação no que diz respeito aos museus e ao património, que adaptava e desenvolvia algumas das premissas anteriores aos discursos e objetivos do novo regime. Verificamos, então, que se em 1931 o Decreto n.º 20.586 (que visava salvaguardar os bens não arrolados pelas leis anteriores) manteve na íntegra os princípios da legislação precedente, no ano seguinte surgiriam já as primeiras mudanças, com a publicação de um diploma (Decreto n.º 20.985 de 1932) mais moldado ao espírito e linhas de ação do regime nascente, o Estado Novo (1933-1974) (v. LIRA, 2010, 189). 32 A legislação de 1932 sugeria que a organização do património cultural deveria ser orientada através de uma «rede de elementos corporativos» interessados na salvaguarda e divulgação do património artístico. A reestruturação dos organismos reguladores do património e dos museus nacionais implicava agora a extinção dos Conselhos de Arte e Arqueologia Republicanos (substituídos pelas renascidas Academias Nacionais de BelasArtes de Lisboa e do Porto) e a atribuição de novas funções ao já mencionado Conselho Superior de Belas-Artes6. É justamente em relação aos museus que o Decreto n.º 20.985 apresenta algumas novidades, não sendo por acaso que este documento tenha ficado conhecido pela designação de "Carta Orgânica dos Museus". Dos pressupostos apresentados na nova legislação, destaquem-se três: a) o entendimento do panorama museológico nacional como um todo – independentemente das suas tutelas e tipologias –, estabelecendo-se uma classificação dessas instituições nas categorias de «museus nacionais», «museus regionais» e «museus municipais, tesouros de arte sacra e outras mais coleções oferecendo valor artístico, histórico ou arqueológico»; b) a relevância dada ao papel dos diretores dessas instituições, não só os dos museus nacionais mais importantes (que tinham particular destaque no Conselho Superior de Belas-Artes), mas também os dos museus locais que, nomeados por decisão governamental, passariam ter representação nas Comissões Municipais de Arte e Arqueologia; c) e a vontade de regulamentar a atividade profissional ligada aos museus, uma vez que embora as primeiras disposições nesse sentido tenham sido esboçadas ainda durante a I República7, só em 1933 é que são regulamentados oficialmente os tirocínios que, exercidos no principal museu português (Museu Nacional de Arte Antiga), permitiriam o acesso à profissão de conservador de museu (Decreto n.º 22.110 de 1933)8. Tal como acontecera anteriormente, os museus foram entendidos pelo novo regime como importantes instrumentos de propaganda política, integrando-se no programa cultural geral da "política do espírito" promovida por António Ferro, 6 Este organismo já havia sido criado e regulamentado - ainda que com atribuições diferentes - pela Lei n.º 1700 de 1924.   7 Referimo-nos à publicação do Decreto n.º 9.746 de 1924, que regulava a forma de provimento dos lugares de conservadores dos museus de arte.   8 Poucos dias após a publicação do Decreto n.º 22.110 de 1933, José de Figueiredo, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, solicita à Direção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes que sejam admitidos como conservadores-tirocinantes António Rodrigues Cavalheiro, Luís de Castro de Vasconcelos e Sá Pereira de Almeida, Carlos Manuel da Silva Lopes, Manuel Carlos de Almeida Zagalo e Augusto Cardoso Pinto (Arquivo do MNAA. Copiador de correspondência remetida 1932-1933). Este grupo acabou por constituir a primeira turma dos designados "Cursos de Conservadores de Museus” que foram ministrados no MNAA nas décadas seguintes, ainda que a designação de "Curso de Conservador de Museus, Monumentos e Palácios" só viesse a ser reconhecida legalmente no Decreto n.º 46.758 de 1965.   33 principalmente nos primeiros anos do Estado Novo9. Seguindo a trilogia «restauração material, restauração moral e restauração nacional» (SALAZAR, 1937 apud ACCIAIUOLI, 1991, p.4), o regime pretendia exaltar a ideia de glorificação da cultura portuguesa, da sua tradição e do seu passado, premissas que acabariam por se refletir não só na definição das políticas relativas aos museus e ao património nacionais, mas também no efetivo investimento feito em estruturas museológicas e monumentos: Não julgamos carecer de muita discussão afirmar que este tipo de investimento não se destinava apenas à salvaguarda do património enquanto acção cultural desprovida de interesses: pelo contrário, a propaganda, interna e externa, era um objectivo evidente de declarado (LIRA, 2010, p.193). Podemos verificar, então, que a museologia portuguesa beneficiou, nos anos de consolidação e de apogeu cultural do Estado Novo, do calendário de propaganda do regime, sendo de destacar os contributos gerados pelo programa das Comemorações dos Centenários (Centenários da Fundação e Restauração de Portugal, em 1940 e 8.º Centenário de Lisboa, em 1947). Este programa proporcionou não só importantes intervenções nas instituições museológicas já existentes (destaque-se a ampliação do Museu Nacional de Arte Antiga10 ou o forte investimento feito na reestruturação do Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto11), mas também a constituição de novas estruturas museológicas, das quais o Museu de Arte Popular, inaugurado em 1948 num antigo pavilhão da Exposição do Mundo Português de 1940, será um exemplo paradigmático. Refira-se também que é neste quadro propagandístico que se irá dar especial atenção não só aos museus de arte e arqueologia (detentores de um património único que refletiria a grande história do país e da alma portuguesa, e dos quais o Museu Nacional de Arte Antiga e o Museu Etnológico Português eram os grandes exemplos), mas também aos museus etnográficos locais que, organizados em todo o país, deveriam ter como missão «manter no povo os costumes tradicionais de são carácter» (CHAVES, 9 Jornalista de profissão, António Ferro (1895-1956) foi o responsável pela criação do Secretariado de Propaganda Nacional (depois Secretariado Nacional de Informação), tendo sido a figura de máxima responsabilidade na máquina de propaganda do Estado Novo entre os anos de 1933 e 1949. Ferro defendia um Estado intervencionista que guiasse a sociedade e protegesse a arte, seguindo uma "política do espírito" cujos objetivos seriam a defesa de uma arte nacionalista e o aprimoramento dos padrões estéticos da sociedade.   10 A ampliação do museu, projetada pelos irmãos arquitetos Rebelo de Andrade, fora um desejo do seu antigo diretor, José de Figueiredo. Contudo, só viria a ser efetivado depois da sua morte. O novo edifício anexo foi inaugurado com a grande "Exposição dos Primitivos Portugueses", organizada no âmbito das Comemorações de 1940 e que permitiu a reunião de obras dispersas pelo país, fator que contribuiu largamente para o avanço das investigações sobre aquele tema.   11 O Museu Nacional de Soares dos Reis, primitivamente instalado no Convento de Santo António da Cidade, viria a ser transferido em 1941 para o Palácio dos Carrancas (edifício que entretanto fora alvo de uma intensa campanha de restauro), ganhando um novo fôlego e um novo papel no panorama museológico nacional.   34 1939, apud RAMOS, 1995, 51). O primeiro verdadeiro estímulo à criação de museus etnográficos nas diversas regiões do país surgiu por volta de 1939, durante a organização das Comemorações dos Centenários, visando de certo modo aproveitar os contributos das exposições efémeras previstas para 1940. Na sequência deste programa, em 1945 António Ferro propõe a criação de museus regionais e museus etnográficos das Casas do Povo, projeto que, embora «claramente conotado com as linhas mestras da cultura do regime» (SILVA, 2001, 24), não viria a ser totalmente implementado, devido à falta de condições materiais (recordemos que este período coincide com o início do endurecimento do regime, após a 2.ª Guerra Mundial) e de empenhamento na sua execução prática (para o que terá contribuído certamente o próprio afastamento de Ferro, em 1948). Para António Ferro os museus regionais etnográficos deveriam constituir pequenos núcleos de valorização das culturas locais, que registassem, salvaguardassem e dessem a conhecer a variedade e riqueza dos usos e costumes portugueses. Na capital do país as várias regiões seriam representadas do ponto de vista etnográfico e folclorista no Museu de Arte Popular, que na sua conceção deveria ser «um exemplo de soberania espiritual, da nossa profunda diferenciação, retrato da alma de um povo que não quer renunciar nem à sua graça nem ao seu poder.» (FERRO, 1948, 27). Finalmente, recordemos que é a partir da década de 1930, já no contexto político, social e cultural do Estado Novo, que a museologia portuguesa viria a conhecer fortes desenvolvimentos noutros campos, que não o meramente legislativo ou o das decisões políticas. É, pois, neste período que se assiste ao alargamento das competências das várias áreas de atuação dos museus, quer as relacionadas com as suas funções internas (manutenção e apresentação das coleções, investigação, laboratórios de conservação e restauro), quer as relativas à sua interação com os públicos (serviços de educação, ligação com as instituições de turismo). Esse processo foi a sequência natural das movimentações que desde o início do século vinham sendo desenvolvidas não só a partir do poder central (cujo contributo deu-se principalmente ao nível da legislação e da regulamentação), mas também através da ação de numerosas entidades locais, grupos e indivíduos que, mais ou menos comprometidos ideologicamente com os diferentes contextos que o país atravessou, trabalharam em prol do património e do aperfeiçoamento da museologia nacional. 4. Nota Conclusiva Da breve exposição já fizemos, podemos verificar que, apesar das constantes dificuldades que marcaram o quadro político e social de Portugal no início do século XX, 35 existiu um efetivo investimento em áreas relacionadas com a preservação e salvaguarda do património nacional. Num contexto marcado pelos discursos nacionalistas que nas décadas de transição de séculos caracterizaram toda a cultura europeia, em Portugal os diferentes regimes entenderam os museus e as exposições como espaços privilegiados de contacto com população, dentro de uma conceção alargada do património e das suas instituições como elementos com um grande potencial para a definição e consolidação da estrutura identitária da nação. 5. Referências Fontes primárias (Legislação (por ordem cronológica) Decreto, com força de lei, de 19 de novembro de 1910 [Lei de Proteção Artística]. Diário do Governo n.º 41, de 22 de novembro de 1910. Decreto, com força de lei, de 20 de abril de 1911 [Lei de Separação do Estado das Igrejas]. Diário do Governo n.º 92, de 21 de abril de 1911. Decreto, com força de lei, de 26 de maio de 1911 [Reorganização dos Serviços Artísticos e Arqueológicos]. Diário do Governo n.º 124, de 29 de maio de 1911. Lei n.º 1.700 [Constituição, regulamento e atribuições do Conselho Superior de BelasArtes]. Diário do Governo n.º 53, de 15 de março de 1924. Decreto n.º 9.746 [Regulamento da forma de provimento dos lugares de conservadores nos museus de arte]. Diário do Governo n.º 119, de 29 de maio de 1924. Decreto-lei n.º 20.985 ["Carta Orgânica dos Museus"]. Diário do Governo n.º 56, de 7 de março de 1932. Decreto n.º 22.110. Diário do Governo n.º10, de 12 de janeiro de 1933. Decreto n.º 46.758 [Regulamento Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia]. Diário do Governo n.º 286, de 18 de dezembro de 1965. ACCIAIUOLI, Margarida. Os anos 40 em Portugal. O país, o regime e as artes. "Restauração" e "celebração". Tese de Doutoramento em História da Arte. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas das Universidade Nova de Lisboa, 1991. [Texto policopiado]. CUSTÓDIO, Jorge Manuel Raimundo. “Renascença” artística e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1.ª República. Tese de Doutoramento em Arquitetura. Évora: Universidade de Évora, 2009. [Texto policopiado]. FERRO, António. Museu de Arte Popular, Discurso do Secretariado Nacional de Informação no acto inaugural do Museu de Arte Popular aos 15 de Julho de 1948. Lisboa: Edições SNI, 1948. FIGUEIREDO, José de. O Legado Valmor e a reforma do serviço de bellas-artes. Lisboa: M. Gomes, 1901. FRANÇA, José-Augusto. A Arte em Portugal no século XIX. [2 Vol.]. 3.ª edição. Venda Nova: Bertrand Editora, 1990 [1966]. 36 GOUVEIA, Henrique Coutinho. Acerca do conceito e evolução dos museus regionais portugueses desde finais do século XIX ao regime do Estado Novo. Bibliotecas, Arquivos e Museus, v.I, Tomo I, p. 147-184, Janeiro-Junho. Lisboa: Instituto Português do Património Cultural, 1985. LIRA, Sérgio. Museus no Estado Novo: continuidade ou mudança? 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Essa política estabeleceu novas metas, maior nível de ações que por exemplo resultaram em consistentes índices como o aumento superior a 100% do número de visitantes nos museus brasileiros (totalizando cerca de 33 milhões) e um aumento de mais de 300% nos aportes financeiros destinados ao setor pelo Governo Federal. Entre as ações de consolidação do campo museológico a política de governo foi convertida em uma política de estado com a aprovação pelo Congresso Nacional e sanção presidencial no início de 2009 das leis 11.904 que institui o Estatuto dos Museus, marco regulatório para o setor e 11.906 que implanta depois de vinte anos mais uma autarquia no âmbito do Ministério da Cultura, o Instituto Brasileiro de Museus. A lei que regulamenta o setor possui seis artigos explicitamente dedicados à inclusão social e uma subseção que se refere especificamente à difusão cultural e ao acesso aos museus. A legislação incorpora e oficializa princípios que pelo menos conceitualmente estão presentes nas práticas museológicas principalmente ná área de comunicação. Existe no entanto a necessidade de apropriação e aplicação plena da legislação tanto na gestão dos museus quanto na da política pública, especialmente nos níveis estadual e municipal. Palavras Chave: Política Pública, Museus, Inclusão Social, Legislação Resumen El concepto de inclusión social tiene variaciones dependiendo del autor elegido, pero como revela la razón de ser del proyecto de ley del Senado 640/2007 que dio lugar a la ley de la inclusión social, esto indica un paso más hacia la consecución de los derechos de diversos sectores de la sociedad, como los discapacitados, los explotados, excluidos y discriminados por motivos de origen, raza, sexo, orientación sexual, religión, edad, entre otros. La inclusión está claramente presente en los supuestos y la directriz de "Democratización y acceso al patrimonio cultural" de los museos nacionales lanzados en 2003 por el Ministerio de Cultura. Esta política establece nuevas metas, acciones de alto nivel que dieron lugar a índices como el incremento constante de más del 100% en el número de visitantes en los museos brasileños (un total de aproximadamente 33 1 Possui graduação em Engenharia Civil (UFOP) e mestrado em Engenharia de Materiais (REDEMAT/CETEC-UEMG-UFOP). É professor assistente do Departamento de Museologia da UFOP e Coordenador do Museu de Ciência e Técnica da Escola de Minas da UFOP. 2 Museóloga (UNIRIO) e mestre em História Social da Cultura (PUC/RJ). Professora Assistente da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) no Departamento de Museologia. 38 millones) y un aumento de más del 300% de las contribuciones financieras para sector por parte del Gobierno Federal. Entre las acciones para consolidar la política gubernamental se convirtió en una política de Estado, con la aprobación por el Congreso y la aprobación presidencial a principios de 2009 de la ley 11.904 que establecen el Estatuto de los Museos, el marco regulatorio para el sector y de la ley 11.906, que después de veinte años, cria una unidad del Ministerio de Cultura, el Instituto Brasileño de Museos. La ley que regule el sector cuenta con seis artículos dedicados explícitamente a la inclusión social y un apartado que se refiere específicamente a la difusión cultural y el acceso a los museos. La legislación incorpora principios que conceptualmente están presentes en las prácticas de museo principalmente en el área de la comunicación. Sin embargo, existe una necesidad de la apropriacion y la plena aplicación de la legislación, tanto en la gestión de los museos y en las políticas públicas, especialmente en los niveles estatal y municipal. Palabras clave: Políticas públicas, Museos, Inclusión Social, Legislación Abstract The concept of social inclusion has variations depending on the chosen author, but reveals how the justification of the law project by the Federal Senate 640/2007 law that gave the day of inclusion, this indicates another stage in the conquest of rights by various segments of society such as the disabled, the exploited, excluded and discriminated against on grounds of origin, ethnicity, gender, sexual orientation, religion, age, among others. The inclusion is clearly present in the assumptions and the guideline of "Democratization and Access to Cultural Heritage" of the National Museums launched in 2003 by the Ministry of Culture. This policy set new goals, higher level actions that resulted in such indexes as the consistent increase of over 100% in the number of Brazilian visitors in museums (totaling about 33 million) and an increase of over 300% in financial contributions for sector by the Federal Government. Among the actions to consolidate the camp museum government policy was converted into a state policy with the approval by Congress and presidential approval in early 2009 of 11.904 laws establishing the Statute of Museums, the regulatory framework for the sector and that 11.906 implanted under the Ministry of Culture to the Brazilian Institute of Museums. The law regulating the sector has six articles explicitly dedicated to social inclusion and a subsection that specifically refers to cultural diffusion and access to museums. The legislation incorporates principles that formalizes and at least conceptually are present in museological practices primarily in the area of communication. There is however a need for ownership and full implementation of legislation in both the management of museums and in public policy, especially at the state and municipal. Keywords: Public Policy, Museums, Social Inclusion, Legislation 1. Os Museus e a Inclusão Social Os museus são instituições que atuam na preservação e promoção do patrimônio cultural, especialmente dos bens culturais móveis. Em todo o mundo museus das mais variadas tipologias tais como de arte, ciência e tecnologia, história, arqueologia, etnologia, cultura popular entre outros, trabalham diariamente para adquirir, pesquisar, documentar e expôr suas coleções com a finalidade de educação, entretenimento e lazer. 39 Instituições voltadas para a sociedade e seu desenvolvimento, os museus cumprem missão social importantíssima ao transmitir conhecimentos para todos os públicos oferecendo serviços, atuando na construção da cidadania e no fortalecimento de identidades de diferentes grupos. Ao construir discursos os museus definitivamente contam histórias, constroem memórias. Entretanto, essas instituições tem também suas próprias histórias e trajetórias institucionais. Analisar os trâmites e disputas envolvidas para a criação de um museu, a legislação e os marcos legais que os regulam, suas normativas e códigos de ética é tarefa fundamental para compreendermos o lugar e os limites dos museus no mundo contemporâneo. Quando olhamos rapidamente para a história dos museus verificamos uma trajetória marcada pela constante democratização. Inicialmente voltados para um público seleto, praticamente de convidados, os gabinetes de curiosidades e os museus do século XVIII e XIX, verdadeiros espaços de contemplação e fortalecimento de elites econômicas e políticas, os museus irão transformar-se em fórum de cultura, abertos ao grande público, dispostos a questionar suas próprias verdades, cientes de que suas exposições e narrativas apenas se realizam na presença do visitante, pois na ausência deles tornamse depósitos. Ainda assim, precisamos nos questionar sobre o papel dos visitantes, sobre os discursos hegemônicos, sobre as memórias confortáveis que os museus professam. Quanto falta para que os museus cumpram sua função social? Qual afinal a função social de um museu ou colocando de outra forma, como é que um museu pode tornar-se indispensável para a sociedade? Interessante observar que as políticas de inclusão social surgem porque há enorme clareza de que existem excluídos. Assim, qualquer política de inclusão social nos museus irá obviamente precisar se perguntar sobre os excluídos. Serão pobres, indivíduos economicamente ineficientes nesse mundo capitalista, mercado global? Serão mulheres, indivíduos historicamente consideradas inferiores, que no Brasil ganharam o direito de votar somente em 1934, que ainda ganham muito menos comparativamente aos homens desempenhando as mesmas funções e que hoje tem uma representante como presidente do país? Serão os negros, maioria da população em alguns estados brasileiros, componente crucial na cultura brasileira? Serão as crianças, para quem os museus poderiam representar o acesso ao conhecimento de forma mais dinâmica, mais divertida? Seriam os idosos, parcela da população que cresce exponencialmente num país que fica cada década mais velho? Quantas memórias cabem numa sociedade como a brasileira? Quais e como são os museus que guardam essas memórias? Se os museus não têm fôlego para mostrar e 40 admitir as cicatrizes sociais. A maquiagem simula, disfarça, colore aqui e sombreia ali. Esconde mas não desfaz o que ali existe. A cicatriz continua e força a rememoração sobre o evento gerador dos embates políticos e lutas sociais. Há exatos quarenta anos, em 1972, encerrava-se um período de onze dias de encontro quando muito se debateu sobre museus e Museologia. O resultado deste encontro, a conhecida Declaração da “Mesa Redonda de Santiago de Chile, ICOM 1972” é documento crucial para os museólogos e para todos os profissionais engajados com o fazer museal tanto por sua atualidade quanto por nos trazer alguns dos problemas e desafios detectados para os museus de outrora que continuam vigorando. O principal desafio talvez seja o dos museus, idependente de sua tipologia conceitual ou de acervo engajarem-se no desenvolvimento das localidades onde atuam. Outro aspecto interessante é que o documento reconhece claramente a importância da abordagem interdisciplinar no contexto museológico ao tempo em que cobra do museólogo um posicionar-se ideológico e político pois assume o museu como instituição que tem por objetivo o desenvolvimento social bem como a ideia do museu como ação. Por isso chama a atenção o conceito de museu integral proposto na Declaração. Um modelo de museu “(...) que por suas características particulares, o novo tipo de museu parece ser o mais adequado para uma ação em nível regional, em pequenas localidades, ou de médio tamanho.” (PRIMO, 1999). Assim, o museu integral deverá “proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural” (PRIMO, 1999). 2. A Inclusão Social Portanto há muito tempo, mas formalmente desde a “Mesa Redonda de Santiago de Chile, ICOM 1972” os museus tem na sua missão o papel de incluir a sociedade no debate e na ação de preservar e reconhecer sua memória. O conceito de inclusão social possui variações dependendo do autor escolhido. Valendo-se do recorte de analisar e refletir sobre a presença desta inclusão no marco regulatório dos museus e na própria política desenvolvida pelo Governo Federal para o setor, partiremos de outro texto legal para escolhar um conceito de inclusão social. Desta forma, utilizou-se a justificativa do Projeto de Lei do Senado Federal n. 640/2007 (Brasil, 2007) que originou a lei n. 12.073, de 29 de outubro de 2009, que criou o dia da inclusão social, dez de dezembro, com o objetivo de promover e conscientizar toda a sociedade sobre a importância dos direitos humanos e sua efetividade (BRASIL, 2009). Esta reconhece que dentre os diveros autores existe uma unidade, um ponto em 41 comum: que a inclusão social introduz um novo horizonte para a sociedade, uma etapa no processo de conquista dos direitos por parte dos mais diversos segmentos sociais, tais como, os deficientes, os explorados, excluídos e discriminados em razão da origem, etnia, gênero, orientação sexual, religiosa, idade, dentre outras. Portanto as instituições museológicas necessitam prepara-se para incorporar em sua missão, em sua prática e principalmente em seu planejamento de mais alto nível ações efetivas que contemplem a inclusão social. 3. A Política Nacional de Museus Uma política pública como a atual para o setor de museus é fruto de um processo com lutas e conquistas, avanços e recuos. Acreditamos ser ponto pacífico que a mais antiga experiência museológica no Brasil remonta ao século XVII, com a implantação de um museu, jardim botânico e zoológico em Pernambuco durante o período da dominação holandesa (Brasil, 2005). Desde então apenas na segunda metade do século XVIII surgiria no Rio de Janeiro a conhecida popularmente Casa dos Pássaros institucição com alguma similaridade a um museu de história natural. Estas isntituições, no entanto, foram extintas (Brasil, 2005). Destas experiências à chegada ao Brasil a Família Real Portuguesa em 1808 e a criação, dez anos depois, do Museu Real, atual Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro o mais antigo museu brasileiro em funcionamento, passando pela Independência e Proclamação da República até os dias atuais, o setor evidentemente em muito se moificou. Chegando até os dias atuais com o significativo universo de mais de 3000 museus mapeados pelo Cadastro Nacional de Museus (CNM, 2010). Apenas em 2003, o Ministério da Cultura estabeleceu novas metas para o setor com a implementação da Política Nacional de Museus que redundou na criação do Sistema Brasileiro de Museus em 2004 e o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) em 2009. Essa política está estruturada em diversas diretrizes, sendo que a inclusão está claramente presente nos pressupostos e particularmente na diretriz de “Democratização e Acesso aos Bens Culturais”. A política que lançou novas metas e alcançou um maior nível de ações para o setor que por exemplo resultaram em consistentes índices como o aumento superior a 100% do número de visitantes nos museus brasileiros (totalizando cerca de 33 milhões) e 42 um aumento de mais de 300% nos aportes financeiros destinados aos museus setor pelo Governo Federal, atingindo o valor de R$ 119 milhões em 2008 (Brasil, 2010). 4. Uma Lei para os Museus Como uma acertada estatégia para consolidação da Política Nacional de Museus e sua penererização como Política de Estado, cujas diretrizes centrais e programas prioritários tem continuidade, mesmo com a alternancia de governos de partidos diferentes, ao contrário da Política de Governo, limitada cronologicamente pelo mandato do governante (NUNES, 2011), a equipe do Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) articulou com a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados para iniciar no Congresso Nacional a discussão do projeto de lei que redundou no Estatuto dos Museus. O referido projeto de lei (PL n. 7.568/2006) teve o início de sua tramitação na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados em 14 de novembro de 2006. A proposta foi debatida no Comitê Gestor do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), órgão consultivo e representativo do setor museológico. A matéria foi aprovada no plenário da Câmara dos Deputados no dia 25 de junho de 2008 e encaminhada para o Senado Federal (PLC n. 115/2008) que o aprovou em redação final no dia 12 de dezembro do mesmo ano. A lei n. 11.904 foi promulgada pelo Presidente da República em 14 de janeiro de 2009, com cinco capítulos e sessenta e seis artigos, recebeu vetos presidenciais em quatro artigos (10, 51, 64 e 65) e parágrafos de outros dois artigos (5 o e 27). Desta forma, o novo Estatuto dos Museus regulamenta o setor, apresentando uma definição para a instituição museu e requisitos legais para sua criação, fusão ou extinsão. Obriga os museus a elaborarem o Plano Museológico, atribuindo ao profissional museólogo a competência para eraborá-lo. Outra importante determinação deste texto legal é a atribuição ao poder público ou às instituições mantenedoras a obrigação pela manutenção dos respectivos museus, inclusive com a destinação de equipe técnica especializada, donde interpreta-se a presença do museólogo. A legislação também incorpora o texto do Decreto Presidencial n. 5.264, de 5 de novembro de 2004 que instituiu o Sistema Brasileiro de Museus, conceitua este tipo de rede de museus integrada ao poder público nas diversas esferas de governo e portanto, prevê a criação dos sistemas estaduais e municipais de museus. 43 A lei do Estatuto dos Museus também estabelece a obrigação das instituições para a realização as ações de preservação de acervos, o estabelecimento de linhas de pesquisa e a criação e manutenção de programas de ações educativas. O funcionamento das associações de amigos e a forma como estas entidades devem se relacionar com os museus também são matéria do estatuto. Finalmente a lei estipula penalidades aos transgressores pela inadequada preservação ou correção de danos causados pela degradação, inutilização e destruição de bens dos museus. Por último, mas não menos importante, a lei abre a possibilidade para que os bens culturais dos museus, em suas diversas manifestações, possam ser declarados como de interesse público, no todo ou em parte. Possivelmente este instrumento permita que o órgão competente do poder público, no caso o IBRAM ao declarar um eventual acervo como de interesse público na prática atue como uma espécie de tombamento federal aumentando a proteção e a partir de então a obrigação de preservação do mesmo. 5. O Estatuto de Museus e a Inclusão Social O texto da lei, os conceitos e discussões que a originaram possibilitaram que a inclusão social permeasse diversos artigos da legislação. Logo no início do texto legal o artigo 2o enumera os princípios fundamentais dos museus como a valorização da dignidade humana; a promoção da cidadania; o cumprimento da função social das instituições; a universalidade do acesso aos museus, o respeito e a valorização à diversidade cultural dentre outros princípios. Todos estes pontos deixam claro o compromisso da legislação para que os museus orientem sua prática para a inclusão social. O texto não deixa dúvidas, no seu artigo 29, quanto ao dever dos museus em promover ações educativas, fundamentadas no respeito à diversidade cultural e na participação comunitária, contribuindo para ampliar o acesso da sociedade às manifestações culturais e ao patrimônio material e imaterial do país. Essa disposição legal converge para o conceito do museu integral, sendo a ação educativa o elemento que proporcionará à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural. A difusão cultural e o acesso da população em geral aos museus estão prevista na Subseção III composta por seis artigos. No artigo 31 o acesso do público 44 especificamente está delegado como não poderia deixar de ser às atividades de comunicação museológica. O próprio artigo estabelece que as ações de comunicação constituem as formas de se fazer conhecer os bens culturais incorporados ou depositados no museu para a inclusão do público. Demonstrada a forte preocupação com o acesso do público ao museu e às suas coleções, esse artigo estabelece que as condições de conservação e segurança dos acervos sejam parâmetros considerados nos planejamentos das atividades de comunicação. Uma comunicação museológica que estimule o público à reflexão e ao reconhecimento do valor simbólico dos bens culturais, principalmente na elaboração e implementação dos programas de exposições em função da vocação e tipologia do museu, com a finalidade de promover o acesso aos bens culturais está prevista no artigo 32. Em um contexto mais amplo a inclusão social em todos seus aspectos está claramente contemplada na lei em seu artigo 35 que determina que os museus se caracterizem pela acessibilidade universal dos diferentes públicos, na forma da legislação vigente, como por exemplo a Lei Federal n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000. A referida legislação estabelece as normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, abordando principalmente os aspectos relacionados à remoção das barreiras arquitetônicas em edifícios públicos e privados, como os museus. 6. Os Demais Estatutos de Museus e Possibilidade de Ampliação das Ações de Inclusão Social O próprio Estatuto de Museus prevê, em seu artigo 56, a instalação gradativa dos sistemas estaduais ou regionais, distritais e municipais de museus nos demais entes federados. No mesmo artigo a lei federal determina que os entes federados discutirão e estabelecerão as respectivas leis, denominadas Estatuto Estadual, Regional, Municipal ou Distrital dos Museus. Neste momento detectamos que apenas os estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Minas Gerais, em diferentes medidas, iniciaram os debates acerca da criação de seus estatutos estaduais de museus, sendo que nos dois primeiros estados os respectivos sistemas de museus lideram esse debate. 45 Considerando que o texto legal federal deverá ser usado como referência na elaboração dos estatutos estaduais e municipais, como verifica-se no projeto em tramitação na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2011) e que na lei federal como pode-se demonstrar existe significativa presença da inclusão social, desta forma nas normas estaduais espera-se o rebatimento desta presença. No nível municipal, não foi possível perceber nenhuma discussão para implementação do estatuto de museus nos municípios brasileiros, fora o trabalho monográfico apresentado no Curso de Museologia da Universidade Federal de Ouro Preto que propõe um projeto que deverá ser debatido pelo sistema de museus desta cidade (DA SILVA, 2012). Nesta proposta também verifica-se que a mesma foi inspirada na legislação federal e repercute os conceitos de inclusão social nos museus. Caso essas quatro leis sejam efetivamente promugadas, poderão instrumentalizar o poder público para a aplicação plena da legislação tanto na gestão dos museus quanto na política pública, especialmente nos níveis estadual e municipal destes três estados e município citado. Este será um primeiro estímulo, após a promulgação da lei federal, que talvez tenha desdobramentos nas mais de vinte unidades da federação e que ao reproduzir as experiências citadas, reproduza também o espírito da lei inclusive nas questões de inclusão. Para tanto, o Estatuto de Museus define um prazo de cinco anos contados a partir de sua promulgação em 2009 para que todos seus artigos sejam cumpridos, ou seja, que os demais estatutos de museus sejam também implementados. 7. Referências BRASIL, Política Nacional de Museus Relatório de Gestão 2003/2004. Brasília. Ministério da Cultura. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Departamento de Museus e Centros Culturais. Minc/IPHAN/Demu, 2005. BRASIL, Política Nacional de Museus Relatório de Gestão 2003/201. Brasília. Ministério da Cultura. Instituto Brasileiro de Museus. Minc/IBRAM, 2010. BRASIL, Decreto Presidencia n. 5.264, de 5 de novembro de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5264.htm. Acesso em: 27 de Ago. 2012. BRASIL, Senado Federal. Projeto de Lei do Senado Federal n. 640/2007. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/mate-pdf/11740.pdf. Acesso em: 28 de Ago. 2012. BRASIL, Senado Federal. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 7.568/2006. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=335902. Acesso em: 27 de Set. 2012. BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n. 115/2008. 46 Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=86534. Acesso em: 27 de Set. 2012. BRASIL, Lei n. 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l10098.htm. Acesso em: 16 de Set. 2012. BRASIL, Lei n. 12.073, de 29 de outubro de 2009. Institui o dia 10 de dezembro como o Dia da Inclusão Social. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L12073.htm. Acesso em: 28 de Ago. 2012. CNH, Cadastro Nacional de Museus, Sítio do Sistema Brasileiro de Museus. Disponível em: http http://www.museus.gov.br/sbm/cnm_estatistica.htm. Acesso em: 04 de Jun. 2010. DA SILVA, Raiany Aparecida, Politicas Públicas para a àrea da Museologia: A experiência do Sistema de Museus de Ouro Preto – MG. Universidade Federal de Ouro Preto. Ouro Preto, 2012. MINAS GERAIS, Assembleia Legislativa, Projeto de Lei n. 1.066/2011. Institui o Estatuto Estadual de Museus. Disponível em: http://www.almg.gov.br/atividade_parlamentar/tramitacao_projetos/interna.html?a=2011& n=1066&t=PL. Acesso em: 29 de Set. 2012. NUNES, Gilson Antônio, Perspectivas para a continuidade da Política Nacional de Museus. Revista Museu, 2011. Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/artigos/art_.asp?id=31366. Acesso em: 25 de Set. 2012. PRIMO, Judite. Museologia e Patrimônio: Documentos Fundamentais – Organização e Apresentação. Cadernos de Sociomuseologia/ nº 15, Págs.95-104; ULHT, 1999; Lisboa, Portugal. Tradução: Marcelo M. Araújo e Maria Cristina Bruno. Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/mesa_chile.asp. Acesso em: 24 de Set. 2012. 47 UN MUSEO SIN PAREDES: EL MUSEO ITINERANTE SAN BENITO Y SU ACCIÓN CULTURAL EN LAS COMUNIDADES Régulo Rincón1; Vanessa Casanova2 Resumo O presente artigo é produto do trabalho sociocultural que representa o Museu Itinerante San Benito, em sua interação com as comunidades e diferentes confrarias de vassalos de San Benito, das sub-regiões Costa Oriental do Lago e Sul do Lago de Maracaibo, na busca de construir espaços para o estudo, promoção e difusão sobre culto de San Benito de Palermo, o chimbánguele e sua relevância, como símbolos da diversidade cultural representada por grupos afro-descendentes, indígenas e crioulos. Palavras chave: comunidades, museu itinerante, San Benito de Palermo, diversidade cultural, transmissão de saberes Resumen La presente ponencia es producto del trabajo sociocultural que representa el Museo Itinerante San Benito en su interacción con las comunidades y distintas cofradías de vasallos de San Benito de las subregiones Costa Oriental del Lago y Sur del Lago de Maracaibo, en la búsqueda de construir espacios para el estudio, promoción y difusión sobre la trascendencia del culto a San Benito de Palermo y el chimbánguele, como emblemas de la diversidad cultural representada por grupos afrodescendientes, indígenas y criollos. Palabras clave: comunidades, museo itinerante, San Benito de Palermo, diversidad cultural, transmisión de saberes Abstract The following paper is the product of the social and cultural work represented by the Museo Itinerante San Benito in its interaction with the communities and different confraternities of vassals of San Benito of the eastern coast subregions and south of Lake Maracaibo, with the purpose of building spaces for the study, promotion and diffusion of cult of San Benito de Palermo, the chimbánguele and its relevance, as symbols of the cultural diversity represented by afrodescendants, indigenous and criollos. Keywords: communities, itinerant museum, San Benito de Palermo, cultural diversity, knowledge transmission                                                                                                                         1 Comunicador Social, MSc en educación Abierta y a Distancia, docente da Universidad Nacional Experimental "Rafael Maria Baralt", Museo Itinerante San Benito (Venezuela). 2 Comunicador Social, MSc en ciencias da comunicación, em antropologia e em linguística Docente da 2 Comunicador Social, MSc en ciencias da comunicación, em antropologia e em linguística Docente da Universidad del Zulia, Departamento de Ciencias Humanas, Facultad Experimental de Ciencias, Museo Itinerante San Benito (Venezuela), museoitinerantesanbenito@gmail.com 48 1. La experiencia del Museo Itinerante San Benito Hablar del inicio del Museo Itinerante San Benito es remontarnos al 27 de junio del año 2000, cuando Juan de Dios Martínez, cultor de los pueblos negros del Zulia, propuso a Gregorio Boscán, artista plástico de reconocida trayectoria, hacer una exposición de arte sobre San Benito de Palermo desde una visión contemporánea, para mostrar cómo veían los artistas todo lo relativo al culto del Santo Negro en la región zuliana. A esa convocatoria asistieron diez artistas: Lucía Antillano, Gregorio Boscán, Richard Cardona, Aitor Romano, José Bravo, Jesús Laviera, Martín Rincón, Luigi Viscilo, Paola Rago y Régulo Rincón. Asimismo, el Centro de Bellas Artes de Maracaibo fue escenario de la exhibición de las capas ofrecidas a la imagen sagrada del Santo traídas del Sur del Lago de Maracaibo o los pueblos de la costa, como solían llamarlos. Esa exposición sobrepasó las expectativas: a ella asistieron miles de personas que no solo observaban la obra artística sino que, en muchos casos, se convertían en objeto de devoción y hasta motivo para encender una vela y pagar una promesa. Una vez concluido el tiempo de exposición, se propuso itinerar las obras a los municipios donde se celebraba el culto a San Benito junto con la Universidad Experimental Nacional Rafael María Baralt (UNERMB), que entendió desde el principio la relevancia de esta actividad en el desarrollo educativo y la dinámica cultural de los pueblos. La primera en recibir las obras fue Cabimas, ciudad petrolera y que acoge la segunda fiesta religiosa masiva del país, después de la procesión de la Divina Pastora en el estado Lara. Nunca se pensó en los sentimientos que podía suscitar esta exposición: muchas personas disfrutaron de la obras y del repique de los tambores, y algunos visitantes afirmaban sentirse en una fiesta de San Benito del 27 de diciembre. Tres meses duró la colectiva en la sala de Exposiciones Emerio Darío Lunar de Cabimas. Posteriormente se llevó al Museo Histórico de los Puertos de Altagracia, donde el ambiente generado en la casa por la gente, el montaje, la música y hasta la guarapita de panela, ron y piña fue indescriptible. La magia que envolvía la actividad solo se podía entender moviendo el cuerpo, dejándose llevar por el golpe del tambor y la energía que producía. Así como en los Puertos, en cada lugar donde se instala el museo los tambores y los bailarines hacen vibrar la comunidad, invitándolos a participar del baile y a cargar el santo como signo de entrega y respeto. Igualmente el vasallo es atendido con una botella de ron y su acostumbrado sancocho como reconocimiento por el trabajo y su devoción al Santo Negro. 49 En esta celebración, como en el resto se ejecutaron una serie de ritos y toques que tienen pertinencia con la celebración ancestral, donde se escuchan letanías que encierran ese deseo de demostrar el amor por San Benito y el orgullo que se tiene por la misma. Pasados cinco meses, la gente se sentía dueña de la colectiva y concebía la necesidad de participar. A partir de allí inició una nueva etapa donde nuevos artistas comenzaron a donar sus obras, siempre alusivas al Santo Negro. Después de la exhibición en los Puertos de Altagracia, la colectiva visitó otros municipios zulianos: Simón Bolívar, Lagunillas, Baralt, Santa Rita y, dos años más tarde, regresó a Cabimas con 19 obras producto de ese inexplicable encantamiento que producía y, que hasta la fecha no ha cesado. Era increíble que no se terminara de montar la colectiva en un espacio cuando ya otra comunidad la estaba solicitando. En cada uno de esos encuentros se aprendía mucho, hasta el punto de entender la necesidad de formalizar la colectiva y convertirla, no solo en un espacio rodante que llevara el arte y las requisas culturales, sino que asumiera la responsabilidad de recoger y resguardar los saberes relacionados con San Benito y su celebración. Desde el 2003, el museo adquiere una figura institucional con mayor responsabilidad y que, con la inserción del Vasallo de Ramón Ochoa de Cabimas, las Danzas Humberto Ferrer, la Universidad Nacional Experimental Rafael María Baralt (UNERMB) y los amigos del Museo, asumen no solo el compromiso de mostrar la tradición, sino de investigarla para garantizar que cada comunidad chimbangalera de Venezuela se sintiera atendida, reconocida y partícipe del proyecto. Luego de más de una década, el Museo Itinerante ha recorrido prácticamente la geografía zuliana, otros estados venezolanos y algunos países entre otros, Colombia, México y Palermo – Italia, donde reposa el cuerpo incorrupto del Santo Negro. Lo inusitado del Museo Itinerante San Benito es la estrecha relación que se forja entre la institución y la comunidad, quien se convierte en el principal custodio de su obra, así como en promotor de la muestra y organizador de la programación de actividades que la acompañan (proyección de películas, talleres, performances, ejecuciones musicales y rituales); en síntesis, en un actor distinto al público visitante tradicional de los espacios museísticos. El museo no solo se encarga de llevar a las comunidades la herencia cultural, representada en las artes plásticas, la danza y la música, sino que su propósito es recoger, en cada una de las comunidades visitadas, toda la memoria documental que los representa y su relación con la cultura sambenitera. 50 El Museo se destaca, de este modo, por su rol educativo, religioso y hasta turístico, y se renueva cada día como depositario de información, proveída por la propia comunidad, que puede estimular a los nuevos investigadores. 2. El Museo En Manos de la Comunidad El Museo Itinerante de San Benito desarrolla dos acciones principales de vinculación con la población: la primera es la instalación del museo en la comunidad seleccionada o que hiciera la solicitud del mismo, y la segunda, convertir la muestra en una experiencia de aprendizaje insertada dentro de diversos proyectos educativos y que responda a propósitos muy claros, como el resguardo del patrimonio cultural de los pueblos que participan en el culto a San Benito de Palermo. Otro de los propósitos pueden relacionarse exclusivamente con el esparcimiento y la recreación, o con el ejercicio y apropiación de sus derechos culturales y religiosos, pero el uso del museo como herramienta didáctica para la introducción o abordaje de ciertos contenidos relacionados a su realidad, contribuyen a fortalecer y reafirmar las culturas afrodescendientes, indígenas y criollas que rinden culto, de múltiples y particulares formas, a San Benito de Palermo. Así fue concebido el museo como espacio educativo. Cada vez se piensa más en instituciones de esta índole como recurso didáctico, como apoyo para la formación y la promoción culturales y como espacio que se suma sinérgicamente a una amplia red en la que tienen lugar los aprendizajes, entendiendo por aprendizaje un proceso complejo y permanente, una experiencia acumulativa y de carácter individual. Particularmente en el campo de la educación de personas jóvenes y adultas, los museos adquieren cada vez más relevancia como uno de los escenarios que favorecen la formación a lo largo de toda la vida, y como espacio que permite el aprendizaje de libre elección. Por ejemplo, cuando se expone el museo en alguna comunidad, se trata de respetar sus particularidades en torno a las formas estéticas del abordaje social, cultural y religioso del chimbánguele y el culto a San Benito, entendiendo que cada comunidad puede tener sus propias particularidades, pero en ocasiones desconoce los orígenes y las historias, documentadas por escrito o por tradición oral, de estas manifestaciones y sus riquezas ancestrales. Es allí justamente donde el museo entra en acción, haciendo exposiciones etnográficas y/o audiovisuales que revelen de manera sustancial o transmitan estos saberes. 51 De igual manera, se invita a la comunidad a observar los principios del chimbánguele y cómo se realizan los rituales en honor al santo negro donde, sin perder su particularidad, puede reconocer y aprender de dónde nace la manifestación que practican, y sus rasgos son recogidos en materiales audio y visuales a fin de almacenar los datos de esa comunidad en específico. El material audio y visual que se va recogiendo a lo largo y ancho de nuestra presencia, quedá como aporte a las investigaciones propias del museo, así como de aquellos investigadores que requieran. El Museo cuenta hoy con un trabajo catalizador y sensibilizador de las expresiones populares y contemporáneas, capitalizado por más de 160 obras de las artes visuales, realizadas por artistas nacionales e internacionales de reconocida trayectoria; de igual manera, cuenta con material bibliográfico, hemerográfico y audiovisual, que brinda al usuario la mayor información posible de la presencia, culto y devoción de San Benito en Venezuela por intermedio de un Museo Itinerante que recorre todo el país, no solo para mostrar la obra plástica de nuestros artistas, sino para enseñar las formas estéticas y costumbres, a través de la danza y la música, que forman parte de la diversidad cultural nacional. Asimismo, se ha logrado dignificar las fiestas sambeniteras haciendo que las comunidades no participantes de la creencia, entiendan que dentro de la celebración existe un gran respeto y devoción por el santo, donde las formas estéticas de rendirle culto no son más que una tradición heredada por nuestros pueblos, donde se celebra la fiesta del Santo católico con toda la divinidad y presencia de la esencia africana, y por otra parte, el valor artístico de las obras que pueden ser apreciadas como arte sin que lo religioso sea obstáculo para el disfrute y la apreciación. En consecuencia se revela la pertinencia de llevar a cabo una investigación del trabajo cultural y social del Museo Itinerante San Benito desde espacios académicos universitarios, donde cada miembro, especialmente docentes y estudiantes sean participantes proactivos y multiplicadores de esta obra cultural, con previa preparación para elaborar ensayos, investigaciones, trabajos radiales y audiovisuales, a objeto que las comunidades puedan fortalecer sus identidades local, regional y nacional, como un hecho importante de invalorable riqueza de la diversidad cultural. Sin embargo, es necesario insistir que si no se crean políticas culturales que fortalezcan estas acciones con la participación de todas las instituciones y colectivos, el camino de la preservación de los valores culturales será cada vez más lejano. 52 3. ¿Por qué un Museo dedicado a San Benito de Palermo? El culto a San Benito de Palermo se caracteriza por ser una de las manifestaciones culturales y religiosas más importantes de Venezuela, y que es seguida con mayor fervor en el estado Zulia. La devoción fue introducida durante el período colonial por parte los españoles quienes, en su afán de cristianizar los grupos indígenas y de esclavos negros africanos, recurrieron a personajes sagrados con los que estos pudieran identificarse plenamente y así abandonar sus ritos, creencias y costumbres ancestrales. En el Sur del Lago de Maracaibo, el culto se desarrolla y transforma con mayor ímpetu a partir del contacto de diversas culturas africanas: Ewe Fon, Efok, Kongo, Abakúa, Fom, Yoruba, entre otras, trasplantadas a esta región por el régimen esclavista (García, 2006). En estas inhumanas prácticas negreras, los esclavizados eran apartados de sus familias y hasta de sus coterráneos con la intención de aislarlos para lograr la dominación; sin embargo, pese a todos los intentos de dominación e imposiciones, lograron sembrar su riqueza cultural que aunada a la indígena, desarrollaron una de las expresiones socioculturales más ricas del país. Los africanos, así como los indígenas locales, tenían sus propias culturas y creencias, lo que llevó a los colonizadores a establecer estrategias para acabar cualquier manifestación religiosa que no fuese la católica, por lo cual muchos hombres y mujeres fueron maltratados y hasta ajusticiados por resistirse a la cristianización. La Iglesia Católica decide entonces imponer la imagen de San Benito de Palermo, un mulato católico hijo de esclavos africanos, nacido en libertad por el beneficio que le otorgara el esclavista y dedicado en cuerpo y alma a Dios con el propósito de sustituir la deidad africana conocida hoy con el nombre de Aje (Dios de las Agua Azules). Increíblemente, la imagen de Benito ha sido asumida por todas las comunidades descendientes de esclavos e indios, pero la misma, nunca dejó de ser venerada con toda la estética africana e indígena junto a la música de tambor, el baile, la gastronomía y hasta la forma de elevar una plegaria. Los chimbangles o chimbángueles, como se denomina durante la fiesta al vasallo del santo, conformado por hombres y mujeres que integran el gobierno del chimbanguele, cargadores del Santo, ejecutantes de los tambores, bandereros, mandadores, entre otros, son los encargados de organizar y desarrollar todo lo relacionado con la celebración y el culto. A diferencia de otras celebraciones religiosas, las fiestas de San Benito tienen una ambivalente compromiso con la formalidad de la iglesia católica, que otorga el permiso para la salida del Santo Negro, pero una vez que el Santo sale a la calle adquiere características distintas, donde se dan encuentros entre San Benito, el pueblo y el 53 vasallo, y se reproducen en síntesis los roles aprendidos y transmitidos por las antiguas culturas indígenas y etnias africanas de diversas y desconocidas procedencias. Durante todo el año podemos observar movimiento sambenitero en todo el país, exceptuando en época de cuaresma y en los chimbángueles de obligación, que se celebran entre el primer domingo de octubre y hasta la víspera de la Purísima Inmaculada Concepción el 8 de diciembre, donde San Benito guarda reposo espiritual con el propósito de prepararse para sus fiestas. El 27 de diciembre es la celebración más importante, sin embargo, hay otras fechas como el 29 en los andes venezolanos, el 1 de enero en Bobures y el 6 de enero en Gibraltar o Cabimas, entre otras, que tienen gran importancia religiosa y social. Desde una perspectiva antropológica, el culto al santo es una forma de vida, puesto que la devoción no solo se expresa en el tiempo de fiesta o en la petición de favores al santo, sino que forma parte del día a día de la comunidad. Los creyentes hacen siempre manifiesta su relación con San Benito, en un saludo o un reclamo que pudieran hacer creer que el Negro es uno más de la familia. La festividad callejera viene a certificar la misma unión y resistencia ofrecida por nuestros ancestros en el pasado. Cuando se asumió este proyecto museístico, se pensó en rendir honor a una deidad que en el estado Zulia denominan Aje. Según algunos cultores populares se trata de una deidad Yoruba o Lucumi provenientes de África, tal como lo señala Martínez (2003). Por alguna razón la presencia africana continúa con la nueva imagen europea, que fue asumida por sus seguidores para evitar los castigos y hasta la muerte por parte de la Santa Inquisición, pero que no lograron exterminar los golpes del tambor y la estética del baile africano. Pero es conveniente decir que el golpe de los chimbángueles no solo representa sones musicales que invitan al baile, sino que constituyen formas específicas de comunicación entre el pueblo y su Santo. Cada golpe de tambor tiene su especificidad y un momento de ejecución, que debe ser respetado celosamente por el vasallo, lo que crea un vínculo íntimo y mágico entre la deidad y el devoto que hace del chimbángueles una manifestación de carácter sagrado. 4. El Culto a San Benito como Forma de Resistencia Simbólica En la colonia, la religión católica constituía un modo de imposición de los valores europeos. Al respecto, Rojo (1985), investigador de la cultura sambenitera, afirma que una forma de resistencia cultural muy importante para los africanos transferidos a 54 América fue mantener su religión de origen. Dado que era obligatorio participar en los ritos católicos, se produjo desde la colonia hasta el presente una religión secreta que combina las creencias cristianas con las africanas y las indígenas. Entre las más difundidas hoy se encuentran el culto a San Benito de Palermo en Venezuela, Colombia, Paraguay, Uruguay, Brasil, Ecuador, la santería (Caribe, especialmente Cuba, y Centroamérica), el vudú (Haití) y la macumba (Brasil). De allí que la preservación y cultivo de tradiciones religiosas africanas ha sido un importante medio de resistencia cultural y un refugio de poder para combatir la dominación socioeconómica. Del mismo modo, lo relacionado con las prácticas religiosas, la música y la danza fueron expresiones fundamentales que permitieron que los esclavos mantuvieran su amor por la vida. Los tambores, los ritmos y las danzas soportes de la música caribeña, comenzaron a usarse dentro de los rituales religiosos que muchos esclavos preservaron. Hoy más que nunca, persisten estas manifestaciones importantísimas del espíritu y la fuerza de las poblaciones de ancestro africano en toda la América Latina, a pesar de las acciones de discriminación sociocultural y racial en ámbitos nacionales y locales, así como la negación de sus prácticas en diversos espacios de la vida nacional que se resisten al desarrollo de saberes populares. Aquí vale destacar los estudios pioneros que desde el decenio de 1970 Juan de Dios Martínez desarrolló, cuando pocos investigadores daban importancia a las culturas de los pueblos negros del Zulia, y que aún no son de interés primordial para los distintos niveles educativos. 5. El Museo Itinerante San Benito en el Marco de las Políticas Culturales El Museo Itinerante San Benito nace con la intención de contribuir a la preservación y promoción de las manifestaciones culturales afrovenezolanas, haciéndolas visibles al resto del país e inclusive al mundo. Por ello, se propuso como meta, en un principio, el estudio de los orígenes étnicos y la configuración identitaria de los antepasados africanos, acción fundamentada en la filosofía de acción sociocultural expuesta por Ugas Fermín (2005), donde el sujeto es reconocido en su totalidad y relacionado con su vida, saberes y con su entorno natural. Hoy en día, sus objetivos se han ampliado hasta abarcar otros grupos étnicos –indígenas y criollos– que participan activamente en el culto, con lo cual se reconoce el carácter multicultural de estas manifestaciones en Venezuela. Dentro de un proceso cultural, consideramos que las políticas deben partir desde la visión de las comunidades, son ellas quienes tienen la tarea de reivindicar, aclarar y 55 socializar, todos aquellos elementos de su cultura que han sido tergiversados a partir de un conocimiento irreal que los ha reducido a la condición de "pueblos exóticos", cuya identidad no es respetada ni entendida en su contexto y dimensión real, y sus prácticas a muestras aisladas del "folklore nacional". De allí el riesgo de indagar sobre el patrimonio cultural de estas poblaciones desde afuera, sin considerar el saber cultural de los receptores, narrado y expuesto desde su propia realidad. Por ello, el hecho de trasladar esta investigación a las instituciones educativas universitarias propicia lineamientos de trabajo conjunto que permita comprender y fortalecer las diversas identidades que se han gestado en el mapa nacional. Por ende, el proyecto denominado Museo Itinerante San Benito está concebido como un espacio crítico y multidisciplinario de reflexión, a partir del cual se socialicen las investigaciones, experiencias y hallazgos referentes a la música y valores de la realidad cultural nacional, donde los investigadores (saberes académicos) podrán obtener conocimiento directamente de la fuente (saberes populares), tratando de evitar los desaciertos históricos, que han venido cometiendo quizás por la falta de interés en el tema o la exclusión de las propias comunidades como la verdadera fuente de riqueza y saber. En consecuencia, resalta la intención de hacer énfasis en las observaciones etnográficas mediante la cual es necesario tomar conciencia de la discriminación existente en las políticas culturales de la nación, que desconocen la presencia real de las manifestaciones culturales. En ese sentido, el Museo Itinerante San Benito viene realizando en los últimos años una serie de acciones encaminadas a encontrar una vía efectiva que nos permitiera ejecutar proyectos de protección, salvaguarda y difusión del patrimonio cultural nacional desde la perspectiva del fortalecimiento de las culturas que conforman la identidad venezolana, con el objeto de afianzar en las comunidades la transformación y el cambio hacia la construcción de una sociedad basada en principios y valores de consolidación de la vida cultural. En este marco de argumentaciones se pretende, mediante estas acciones, recabar toda la información generada por los hombres y mujeres en un trabajo de exhaustiva oralidad, que permita no solo la recaudación de datos importantes para la construcción de las memorias del pueblo, sino además la interrelación entre las comunidades y los distintos niveles educativos, principalmente el universitario, y que se tiene como resultado la creación de materiales bibliográficos y audiovisuales, previamente aprobados por la comunidad, para ponerlas al servicio de los investigadores, 56 docentes y estudiosos de la cultura, a fin de contribuir con el desarrollo integral de la identidad local, regional, nacional y latinoamericana. 6. La Acción Cultural y el Reto Educativo del Museo Itinerante San Benito Según la International Council of Museums (ICOM), conforme a sus estatutos adoptados durante la 22ª Conferencia General de Viena (Austria), un museo es considerado como una "institución permanente, sin fines de lucro, al servicio de la sociedad y abierta al público, que adquiere, conserva, estudia, expone y difunde el patrimonio material e inmaterial de la humanidad con fines de estudio, educación y recreo" (ICOM, 2012). A pesar de esta definición, no podemos asegurar que pueda definirse realmente la "esencia" de un museo, puesto que sus identidades, objetivos, funciones, conocimientos, materias, etc. son variables y están sujetos a las relaciones de poder, a constricciones sociales o políticas. No obstante, los museos han tenido desde siempre un papel activo en la modelación del conocimiento; esto implica que el conocimiento que cada museo genera y difunde no es neutral, sino que tiene sesgos políticos y sociales derivados de los valores y premisas del contexto en el que se construye y afianza. De la misma manera, su tarea educativa responde a valores y visiones sociopolíticas específicas. No en vano los museos han fungido tradicionalmente como instituciones sociales que se insertan en un entramado de relaciones de poder entre aquellos que pretenden controlar, incluso, aquello que se quiere definir como “cultura”. Como instituciones de elite, los museos se han dirigido típicamente a un grupo social específico: aquel que tiene acceso y poder sobre los bienes simbólicos, esto es, el mismo grupo que posee mayores posibilidades de acceso y permanencia dentro del sistema formal de enseñanza. El público desplazado del espacio museístico es, a menudo, un conjunto de individuos pertenecientes a las clases menos favorecidas, quienes al visitar los museos "se sienten fuera de lugar, faltos de preparación", debido a que "nada se ha hecho (o muy poco) para que la visita sea más agradable y las obras expuestas, más accesibles" (Bourdieu, 2010: 46-47). Tanto la institución artística como la educativa han contribuido, durante siglos, a la exclusión de los grupos que no poseen control sobre los bienes culturales. Así, las diferencias culturales legitiman las diferencias sociales, en especial "las que el sistema de enseñanza reproduce y sanciona" (Bourdieu, 2010: 110). En dicha relación, el grupo en desventaja es aquel que se siente ajeno a la producción cultural, y este "sentimiento de estar excluido de la cultura legítima es la expresión más sutil de la dependencia y el 57 vasallaje, ya que implica la imposibilidad de excluir lo que excluye, única manera de excluir la exclusión" (Bourdieu, 2010: 111). De allí que, en la actualidad, diversos movimientos políticos, sociales y científicos estén obligando a los museos a revisar y ampliar sus discursos, reconociendo los sesgos de sus contenidos y perspectivas, y las exclusiones que éstos suponen, a fin de incluir una mirada más abierta y plural sobre los conocimientos que difunden. El Museo Itinerante San Benito, en este sentido, se orienta hacia un modelo pedagógico donde la tecnología permite el avance educativo de la sociedad, al disponer y hacer uso de todos los recursos posibles para la circulación de los bienes culturales que resguarda. En este modelo se visualiza también lo que Simón Rodríguez afirmaba con respecto a la educación popular, al convertirla en modelo de ciudadanos a individuos pertenecientes a todas las clases sociales y grupos étnicos, sin perder sus costumbres e identidad. Busca ser ejemplo de democratización de los museos haciéndolos más accesibles a distintos públicos, incluyendo la difusión de valores democráticos, y/o promoviendo la participación de diversos actores sociales en la formación de las colecciones y acciones. El Museo Itinerante San Benito permite dar vida al legado de los grandes pedagogos de Latinoamérica: Simón Bolívar, Simón Rodríguez, Andrés Bello, Luis Beltrán Prieto Figueroa, José M. Mariátegui, cuyo pensamiento educativo sirve de inspiración para despertar un espacio sociocultural que estaba olvidado, con el propósito de lograr que forme parte de las comunidades y coadyuve a alcanzar una sociedad inclusiva. Lo antes expuesto ratifica el compromiso del Museo Itinerante San Benito con el proceso educativo venezolano; por ello, nace para remover los cimientos de las viejas estructuras museísticas que solo se encargaban de resguardar y exhibir obras de arte, sin tomar en cuenta su entorno y la educación de las comunidades. 7. Referencias BELLO, Andrés (1985). Obra literaria. Caracas: Biblioteca Ayacucho. BOURDIEU, Pierre (2010). El sentido social del gusto. Elementos para una sociología de la cultura. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores. GARCÍA, Jesús “Chucho” Caribeñidad: Afroespiritualidad y Afroepistemología. Ministerio de la Cultura, Fundación Editorial El Perro y la Rana. Caracas, 2006. International Council of Museums (2012). Definición del Museo. http://icom.museum/la-vision/definicion-del-museo/L/1/. Consultado el: 20/08/12. 58 En: Martinez, J. Mitos; Leyendas y Rostro sobre el culto a San Benito de Palermo. Ediciones la Llama Violeta. Maracaibo, 2003. NASCIMENTO JÚNIOR, José do. Los museos como agentes de cambio social y desarrollo. Museos.es: Revista de la Subdirección General de Museos Estatales, n. 4, p.16-27, 2008. ROJO, V. E., San Benito de Palermo. Ediciones Atenas. Madrid, 1985. TRUPIA, F. S. Benedetto il Moro. Ediciones C.SMG. Sicilia, 2006. UGAS G. Epistemología de la Educación y la Pedagogía. Ediciones del taller permanente de Estudios Epistemológicos en Ciencias Sociales. Táchira, 2005. www.unesco.org/new/es/unesco 59 A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO ACERVO DO MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES DO RIO DE JANEIRO - DA PINACOTECA DA ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES (AIBA) AO MNBA Carlos Henrique Gomes da Silva1; Lena Vania Ribeiro Pinheiro2 Resumo Pesquisa sobre a constituição histórica da formação do acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Rio de Janeiro, de 1937 até 1945, com o objetivo de identificar a política de aquisição tanto a partir de diretrizes governamentais, quanto internas, de orientação institucional. O corpus documental é constituído por documentos até então não pesquisados, referentes aos processos de aquisição das obras de arte que passaram a fazer parte do patrimônio artístico e cultural do referido Museu, um dos mais antigos e importantes do cenário museológico brasileiro. A análise dos processos possibilitou acompanhar a sua tramitação para aquisição e a compreender as ideias e decisões do Governo e da diretoria do MNBA, em relação à construção do patrimônio do Museu, além de tornar evidente a preocupação com a criação de uma Comissão de Especialistas permanente para analisar as propostas. Os resultados desta pesquisa podem contribuir para as políticas atuais de aquisição e gerenciamento de acervos museológicos do MNBA e de outros museus, e estimular novas pesquisas que tragam mais conhecimentos sobre a questão. Palavras Chave: Patrimônio, Museu, Acervo, Política de aquisição, Documentação museológica, Museu Nacional de Belas Artes/RJ/BRASIL. Resumen La investigación sobre la constitución histórica de la formación de la colección del Museo de Bellas Artes (MNBA) en Río de Janeiro, a partir de 1937 hasta 1945, con el objetivo de identificar la política de adquisición, tanto de las directrices del Gobierno, ya que el interior orientación institucional. El corpus documental consta de documentos no estudiados previamente, en cuanto a los procedimientos para la adquisición de obras de arte que han pasado a formar parte del patrimonio artístico y cultural de este museo, uno de los museos más antiguos e importantes del panorama brasileño. El análisis de los procesos permitieron seguir su curso para adquirir y comprender las ideas y las decisiones del Gobierno y de la junta directiva del MNBA, en relación a la construcción del patrimonio del Museo, y hacer evidente preocupación con la creación de una Comisión permanente de expertos revisar las propuestas. Los resultados de esta investigación pueden contribuir a la actual política de adquisición y gestión de las colecciones de museos del MNBA y otros museos, y estimular nuevas investigaciones para aportar más conocimientos sobre el tema.                                                                                                                         1 Mestre em Museologia e Patrimônio, UNIRIO/MAST. Bacharelado e Licenciatura em História (IFCS/UFRJ). Docente I, SME, Rio de Janeiro, Brasil. hegii@ig.com.br 2 Doutora em Comunicação e Cultura, UFRJ/ECO, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT, Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, IBICT-UFRJ, e do Programa de Pós-Graduação em MJuseologia e Patrimônio. lenavania@ibct.br 60 Palabras clave: Patrimonio, Museo, coleccion, la política de adquisición, documentación de los museos, Museo Nacional de Bellas Artes / RJ / BRASIL. Abstract Research about the establishment of the National Museum of Fine Arts’ collection through its historical arrangement from 1937 to 1945. The objective of this study is to identify the acquisition policies taking as source the government and institution guidelines. The documental corpus is built of documents, not yet analyzed, related to the process of art collection acquisition that became part of the artistic and cultural patrimony of this specific Museum, one of oldest and important of Brazilian museum scenario. The analysis of the process made possible to follow its process to acquisition and to understand the government and Museum idea and decision related to the development of the Museum’s patrimony, in addition it give evidence the concern with the creation of a permanent Expert Commission to analyze the proposals. These research finding can contribute to the today policies for acquisition and management of the National Museum of Fine Arts’ collection and other outros museum, and to stimulate new research that would bring further knowledge on this question. Keywords: Patrimony, Museum, Collection, Acquisition policies, Museum documentation, National Museum of Fine Arts / RJ / BRAZIL. 1. Introdução O Museu se faz de suas coleções e sua respectiva organização, com a finalidade de comunicar e disseminar informações que o representem, expostas ao público em exposições. Neste sentido, para a documentalista Helena Dodd Ferrez (1994, p.65) os museus são instituições que mantém relação com a informação contida nos objetos das coleções. Para a autora, tanto os objetos como as coleções devem ser tratadas igualmente como documentos. Percebidos dessa forma, tornam-se “fontes para a pesquisa científica e para a comunicação que, em decorrência, geram e disseminam novas informações”. Sendo assim, assinala a autora, a documentação exerce, nos museus, um papel relevante na identidade e historicidade do objeto sob sua guarda. Segundo Ferrez (1994, p.64), a documentação museológica seria o conjunto de informações individuais sobre os objetos musealizados e sua representação por meio da palavra e da imagem, ou registro fotográfico, transformado num sistema de informação. Esse conjunto informacional é, ao mesmo tempo, “um sistema de recuperação de dados capaz de transformar as coleções dos museus de provedores de informação em fontes de pesquisa científica ou em instrumentos de transmissão de conhecimento”. Para Chagas (1996, p.46-47), as pesquisas e a comunicação conferem sentido e atribuem uso social aos objetos, justificando, ai incluindo, sua preservação. Desse modo, 61 a documentação museológica representa no museu um dos procedimentos relevantes, no conjunto das informações sobre o acervo, organizados num sistema de recuperação de Informação. A finalidade da organização documental é, conforme já mencionado, tornar acessíveis as informações da coleção, por meio de ações como as de classificação, ordenamento, recuperação e difusão e, neste sentido, a documentação tem por função servir de base a todas as outras atividades desenvolvidas no museu. Uma das preocupações existentes no processo de gerenciamento da documentação museológica refere-se aos procedimentos e métodos utilizados para organizar os objetos e o registro dos dados sobre estes, levando em conta sua trajetória, antes e depois de sua entrada na instituição. Nesse pocesso, o passo inicial é a aquisição, que deveria ser orientada pela política institucional ou mesmo políticas públicas de museus, o que correponde aos objetivos desta pesquisa. O corte cronológico no tema proposto ao estudo, conforme ressaltado, é o Estado Novo, momento de mudanças no campo político, econômico e social, período da República brasileira que se estendeu de 10 de novembro de 1937, quando Getúlio Vargas (1882-1954) anunciou o golpe de Estado, até 29 de outubro de 1945, quando foi obrigado a renunciar (FAUSTO, 2012, p.181-183). O período caracterizou-se por ser autoritário e centralista. Segundo Fausto (2012, p. 200-208), na vigência do Estado Novo são observadas a institucionalização da cultura e a formulação de políticas voltadas para o campo. Nesse momento, aponta o autor, a cultura passa a ser concebida como principal instrumento ideológico, tornando-se campo privilegiado à formação da nacionalidade brasileira e difusão ideológica do regime. Sendo o MNBA um museu de Arte, é oportuno abordar esse tipo de coleção. Sobre coleções de Arte, Lima (1995, p.17) refere-se aos objetos artísticos dos Museus como categorias de informação, objetos culturais indicativos de formas da representação do conhecimento com propriedades específicas para informação. Neste caso, conforme expõe Pinheiro (1996, p.13), o objeto de trabalho nos museus de Arte são as obras de arte e todo e qualquer documento ou informação Assim, ainda segundo Pinheiro, Informação em arte é o estudo da representação do conteúdo informacional de objetos de Arte, a partir de sua análise e interpretação. Nesse sentido, a obra de arte é fonte de informação, abrange o objeto de arte, documento no seu sentido mais amplo, oriundo de múltiplas manifestações e produções artísticas. (PINHEIRO, 2005, p.53) 62 Ampliando essa definição, a autora ressalta que, por serem atividades que abrangem a análise e interpretação, incluem [...] linguagens e técnica artísticas, assim como a ambiência, o cenário, o contexto, sua inserção num determinado tempo e espaço (Historia da Arte), fluxos e transferência de informação em museus de Arte, especialmente em exposições, implantação de redes e sistemas em museus, impactos das tecnologias de informação e comunicação - TIC’s em museus etc. (PINHEIRO, 2008, p.10) Este é o ambiente do estudo, cujo objeto está concentrado no conjunto documental dos processos de aquisição das obras de arte, a ser visto e compreendido nesse contexto. Assim percebido, tanto o objeto de arte quanto o documento referenciado ao mesmo, mais do que uma produção natural, são uma construção, logo, é a partir de nossa interpretação que lhes atribuímos relevância histórica, social e artística. E a informação para ser transformada em conhecimento deve ser estruturada e representada, ou melhor, sistematizada em instrumentos que possibilitem sua organização e disseminação. Caso isso não aconteça, conforme explicitado por McGarry (1984, p.19), a informação permanecerá uma pura essência. Segundo McGarry (1984, p.20), para a informação se transformar em conhecimento necessita de um veículo que a torne discriminável, ou seja, um recurso que ordene, identifique e relacione as informações entre si, fazendo com que o seu acesso e disseminação sejam facilitados. Para a informação transformar-se em conhecimento é necessário sistematizá-la e, em se tratando de Documentação Museológica, é aqui entendida como a informação contida nos objetos das coleções dos museus, em bases de dados, com o objetivo de organização e controle, tendo em vista a rápida recuperação e divulgação das informações ali armazenadas. Os inventários e as revisões que são processados nos acervos, somados às pesquisas que trazem novas e atualizadas informações sobre os objetos das coleções dos museus, como já assinalado, são significativos como fonte de transmissão de conhecimento. Dessa forma, o inventário documental e informacional dos objetos, ou seja, a organização das informações dos acervos num sistema de gerenciamento de dados de rápida recuperação é instrumento importante no processo de geração do conhecimento, a partir de um determinado objeto. 63 2. Objetivos e Metodologia O objetivo desta pesquisa 3 é analisar o processo de aquisição das obras de arte do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), Rio de Janeiro, até 1945, a fim de identificar a existência de diretrizes externas (políticas públicas do Estado), internas ou de orientação institucional para tomada de decisão, de forma a contribuir para as políticas atuais de aquisição e gerenciamento de acervos museológicos. A pesquisa aborda, portanto, a constituição histórica da formação do acervo do MNBA a partir de sua institucionalização como unidade museológica 4 até 1945, sendo direcionada aos procedimentos que orientaram as aquisições dos objetos de arte que passaram a fazer parte do patrimônio artístico e cultural do referido Museu, um dos mais antigos e importantes do cenário museológico brasileiro. A pesquisa é de natureza exploratória e documental e, para concretização de seu objetivo, como parte do procedimento metodológico foi analisado o corpus documental, constituído pelos processos de aquisição que resultaram na compra das obras de arte para o MNBA, bem como as propostas de venda dos objetos de arte remetidas à Instituição no período assinalado. Esses documentos, reunidos, serviram de base à análise e discussão dos resultados da presente pesquisa 5. Esse material é inédito, por ainda não ter sido utilizado em pesquisas e muito relevante para compreensão das atuais políticas de aquisição e gerenciamento de acervos museológicos. O corpus documental do estudo contém fontes primárias e originais, que até o presente não foram objeto de estudo ou publicação. Em face disso, é necessário definir os conceitos de fonte primária e fonte secundária para o entendimento adequado da forma como foi tratado o conjunto de documentos, parte integrante das obras de arte do acervo do MNBA. Documentos institucionais são suportes de comunicação, ou seja, uma fonte de informação. Segundo exposto em Ferreira (1986, 797), a nomenclatura “fonte” designa origem, ou seja, procedência de informação e conhecimento, pois remetem a algo que esteja sendo investigado, pesquisado, analisado.                                                                                                                         3 Comunicação extraída de: SILVA, Carlos Henrique Gomes da; O Estado Novo (1937-1945) e a política de aquisição do acervo do Museu Nacional de Belas Artes. 15 de março de 2013. Dissertação (Mestrado em Museologia e Patrimônio) UNIRIO-MAST, Rio de Janeiro. Orientadora: Lena Vania Ribeiro Pinheiro. 4 Art. 48. Fica creado o Museu Nacional de Bellas Artes, destinado a recolher, conservar e expor as obras de arte pertencentes ao patrimônio federal. Lei nº 378 de 13/01/1937. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=75953. Acesso em: jul. 2010. 5 As fontes de pesquisa foram selecionadas quando da participação do autor principal desta pesquisa no projeto “Plano de Recuperação Emergencial (PRONAC 03-2549)”, entre março de 2009 a janeiro de 2010. 64 Assim sendo, conforme expõe Lakatos e Marconi (1992, p.43), fonte primária são “fontes” que se apresentam de primeira mão, provenientes dos próprios órgãos que produziram os documentos. Compreendem, segundo as autoras, todos os materiais, ainda não elaborados, escritos ou não, que podem servir como fonte de informação para a pesquisa cientifica, como objetos de arte e seu corpus documental, conforme os indicados nesta pesquisa. Terminologicamente, grosso modo, fonte primária significa “primeira” ou “original” e fonte secundária refere-se a documentos que apresentam informações que já foram tratadas ou motivo de apreciação e interpretação em pesquisas anteriores (LAKATOS; MARCONI, 1992, p.43 e 44). Em vista disso, conforme define Honório Rodrigues (1982), fonte “primordial” (original) é a que contém a informação de testemunho direto dos fatos, enquanto a secundária (derivada) contém a informação extraída por terceiros (apud SAMARA; TUPY, 2010, p.73). Após breve conceituação de fonte documental em primária e secundária, termos utilizados para qualificar o material da pesquisa, a seguir apresentamos os procedimentos metodológicos. 2.1 Procedimentos metodológicos A primeira investida descritiva da documentação foi a elaboração de uma base de dados (programa ACCESS) para armazenar e organizar as informações levantadas do acervo documental da Instituição. Essa base correspondeu à fase preparatória ou preliminar, visando ao momento posterior de análise documental. O objetivo, a partir do levantamento documental e a elaboração da base (ACCESS) para inserção dos dados, foi usar uma ferramenta de organização informacional que facilitasse o exame da documentação, isto é, das informações levantadas. O sistema de informação do acervo do MNBA, SIMBA foi criado em 1992, quando foi feito o inventário e a catalogação de todo o acervo. O objetivo foi o de organizar as informações dos objetos de arte e garantir maior controle, visando a ampliação do acesso e disseminação das informações armazenadas na base de dados elaborada para tal finalidade. Esse é o momento quando se estabelece a representação dos objetos do acervo, cujas informações foram transferidas, em 1995, para um programa gerenciador 65 do banco de dados, o DONATO versão 3.0 6, uma das fontes de representação da obra de arte, utilizada na fase preliminar do estudo. O “Sistema Donato” é a ferramenta interna da Instituição, na qual podemos consultar as informações sobre as obras de arte. Nesta fase foi realizado o levantamento geral correspondente aos anos de 1937 a 1949. Cabe lembrar que o corte cronológico desta pesquisa são os anos que cobrem o Estado Novo (1937-1945), do momento de criação do MNBA ao fim do regime político vigente no País na ocasião. O programa foi desenvolvido e adotado pelo Museu, para fazer a gestão das informações do acervo e atender às necessidades das atividades dos técnicos da Instituição, e proporcionar a pesquisadores, bem como a visitantes, uma busca rápida às informações referentes às obras de arte do acervo. Toda e qualquer base de dados, conforme mencionado, potencializa o conteúdo informacional que representa, e a Donato 3.0 foi um instrumento fundamental na pesquisa empírica. 3. Histórico do Acervo: da Pinacoteca da Escola Real de Ciência, Arte e Ofícios (AIBA) ao MNBA. O acervo artístico do MNBA tem, na chegada da Família Real Portuguesa, em 1808, o marco inicial e as origens históricas da documentação no Tesouro Real. Assim sendo, descreveremos, resumidamente, a origem do acervo e a documentação referente ao período. A procedência do acervo herdado pelo MNBA é a Coleção de quadros encomendados pelo Príncipe Regente D. João (1767-1826) e trazidos ao Brasil por Joaquim Lebreton (1760-1819), líder da Missão Artística Francesa, que aqui chegou em 1816 para iniciar oficialmente o ensino artístico em território brasileiro (CAMPOFIORINO, 1983, p.17-27). Esses primeiros exemplares da representação pictórica europeia foram agrupados como Coleção Lebreton e destinados ao estudo e à contemplação de alunos e público em geral, no edifício projetado por Grandjean de Montigny (1776-1850), estabelecido na esquina da Avenida Passos com Travessa das Belas Artes, para abrigar a então fundada Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios. Instituída pelo Príncipe Regente D. João, em                                                                                                                         6 O nome do programa homenageia o professor, pesquisador e arquiteto Donato Mello Jr., devido à sua importante contribuição para a documentação do acervo do Museu. MNBA. SIMBA. Donato 3.0. Disponível em: <http://www.mnba.gov.br/>. Acesso em: mar. 2011. 66 1816, foi criada pelo decreto de 12 de agosto de 1816, com a finalidade de promover e difundir o ensino de conhecimentos considerados como indispensáveis para a “comodidade e civilização dos povos”, abrangendo áreas como agricultura, mineralogia, indústria e comércio 7. O objetivo da Academia era lançar as bases do ensino das artes no Brasil, seguindo os padrões acadêmicos do neoclassicismo francês. Começou a funcionar efetivamente em 1826 e o núcleo inicial de professores foi formado pelos mestres da Missão Artística Francesa. Depois denominada AIBA, permaneceu no local como Escola de Arte até sua demolição, em 1938 (MNBA, 2007). A Coleção Lebreton foi reunida à coleção particular de D. João VI, em 1843, transformando-se na “Pinacoteca” da Academia que, em 1889, com o advento da República, passa a ser denominada Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). As obras arte da Casa Real Portuguesa (Coleção D. João VI), vindas com Corte em 1808, foram deixadas aqui em 1821, com o retorno de D. João VI e sua corte para Portugal (MNBA, 2008). Cabe salientar, ainda, que além dos conjuntos de quadros comprados em 1816 e da Coleção Real, o acervo herdado pelo MNBA foi ao longo do tempo enriquecido por estudos enviados da Europa pelos alunos da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), com bolsas concedidas por D. Pedro II (1825-1891); pelas ofertas/doações de particulares (ao longo do período Imperial e nos anos iniciais da República); por incorporações dos prêmios de viagens, a partir de 1845, das Exposições de Belas Artes (1840-1934), Salões de Belas Artes (1934-1990) e Arte Moderna (1951); e por aquisições, compras realizadas para o MNBA a partir de 1937 (MNBA, 2002). O MNBA, Instalado no mesmo prédio da ENBA, assim permaneceu até 1975 quando, incorporada à UFRJ, em 1971, a Escola é transferida para o campus da Ilha do Fundão, como Escola de Belas Artes (EBA). As obras de Arte que pertenciam a ENBA/EBA hoje compõem o acervo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ que, criado em 1979, tem como objetivo a preservação da memória do ensino artístico oficial e de fomentar o estudo e a pesquisa da História da Arte Brasileira 8. A Pinacoteca herdada da Academia fez parte do acervo da ENBA. Em 1937, com criação do MNBA, instituição ligada ao antigo Ministério da Educação e Saúde, parte das obras de arte que compunham a Pinacoteca foram transferidas para seu acervo. A                                                                                                                         7 Decreto por meio do qual o príncipe regente estabelece a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, e concede mercê de pensões a vários estrangeiros que seriam empregados na instituição. Fundo Tesouro Nacional, códice 62, v. 2, f. 30, 31, 12/08/1816. Fonte: ARQUIVO NACIONAL. 8 Histórico do Museu D. João VI. Disponível em: <http://www.museu.eba.ufrj.br/>. Acesso em: set. 2012. 67 maioria das obras de arte, “originais” 9, foi para a Instituição recém-criada e a outra parte, voltada ao ensino artístico, de cunho mais didático, ficou para ENBA 10, distribuídas entre as salas e os ateliês da Escola, que ocupava a parte de trás do prédio, na esquina das ruas Araujo Porto-Alegre e México, enquanto o Museu, a parte da frente, na Avenida Rio Branco 11. Ao mencionarmos os documentos do período referido destacamos o Livro de Registro da ENBA (1924-1936); Os Catálogos da Academia Imperial de Belas Artes (1937-1889); o Catálogo de 1829 e os documentos do Arquivo Histórico do Museu Nacional (1822-1832). As obras de arte que se encontravam nas dependências da Escola estão descritas no Livro de Registro de Obras da ENBA, de 192412. O livro apresenta os quadros expostos nas galerias e salas da Escola, da data indicada até 1936, constando como último registro, uma doação do quadro de autoria de Oswaldo Teixeira, futuro diretor do MNBA 13 . No livro estão listados cerca de 1000 quadros, entre “originais” e cópias de exalunos, vindos da Academia, bem como doações, incorporações e compras efetuadas para Escola, com indicações de autoria, datas de aquisição e os nomes dos antigos proprietários. É um documento importante, pois acrescenta informações significativas à história do acervo herdado pelo MNBA, por apresentar em suas páginas quais quadros se encontravam nas dependências da Escola desde a Academia. Outra fonte expressiva são os catálogos da Academia que, datando de 1837, listam as obras de arte expostas nas galerias da AIBA até 1889, trazendo um breve resumo sobre a sua origem, autoria, datação e forma de aquisição 14 . Uma fonte valiosa para traçar o histórico do acervo do MNBA é o catálogo da primeira Exposição, ocorrida nas dependências da AIBA, em 1829                                                                                                                         9 15 . Elaborado por um “Original” faz referência aos quadros das Coleções D. João VI e Lebreton, conforme são apresentados no livro de Registro da ENBA, 1924 que descreve o que pertencia a Escola até 1936 e os que foram transferidos ao recém instituído Museu de Belas Artes. Cabe salientar que as obras de arte que foram transferidas da ENBA para o MNBA fazem parte das obras que pertenciam ao Tesouro Real, quando da Proclamação da República, passam a pertencer ao Tesouro Nacional. 10 Museu D. João VI. Disponível em: <http://www.eba.ufrj.br/index.php/a-eba/museu-d-joao-vi>. Acesso em: set. 2012. 11 O prédio do MNBA foi tombado pelo SPHAN/IPHAN e, está inscrito pelo processo nº 860-T, no livro das Belas Artes, fls. 92, datado de 24 de maio de 1973. In: O Histórico do prédio do MNBA. Pastas - Histórico ENBA e MNBA. Fonte: Arquivo Histórico do MNBA, Seção Registro e Controle. 12 Escola Nacional de Belas Artes – Em cumprimento do Artº 159 letra A do regulamento desta Escola, foi impresso o presente livro, contendo cem (100) paginas de números seguidos, para nele relacionar todos os quadros existentes nas galerias e salas desta Escola./Salão de restauração de pintura, em 16 de setembro de 1924./Restaurador de pintura/Sebastião vieira Fernandes. Fonte: Arquivo Histórico do MNBA. 13 O quadro é um óleo/tela “Retrato de Roberto Gomes” doado em 11 de dezembro de 1936. 14 Os catálogos da AIBA (1937-1889) encontram-se digitalizados e arquivados, na Biblioteca do MNBA. 68 de seus professores, Jean Baptiste Debret (1768-1848), no catálogo estão listadas as pinturas de cunho histórico expostas nos salões da Academia, entre originais e as cópias produzidas por professores e alunos. Outra fonte expressiva são os catálogos da Academia que, datando de 1837, listam as obras de arte expostas nas galerias da AIBA até 1889, trazendo um breve resumo sobre a sua origem, autoria, datação e forma de aquisição 16. Além da referência feita ao livro de 1924/1936, os catálogos (1837-1889) e o Catálogo de 1829, também são fontes significativas para esboçar a história do Acervo em estudo os documentos produzidos no Tesouro Real, depositados hoje no arquivo do Museu Nacional/UFRJ, na ocasião Museu Real, onde pode ser mapeada a trajetória de parte das Coleções transferidas para o acervo do MNBA, em 1937 17 . São documentos que vêm desde a ordem do Imperador Pedro I (1798-1834), para transferir os quadros de sua propriedade que se encontravam depositados no Tesouro Real 18 (Paço Imperial) para o Museu Real em 1822 Academia, em 1832 20 19 , até a transferência destes para . Nos documentos são arrolados os quadros das Coleções que formaram a pinacoteca da Academia, entre outras obras. 4. Corpus Documental e Análise do Processo de Aquisição Os processos com a documentação reunida na fase preliminar e descritiva da pesquisa foram organizados em três pastas, que se encontram arquivadas na Seção de Registro e Controle do MNBA, no armário identificado como “Aquisições”, distribuídas da seguinte forma: • uma pasta “Anos 30 (1939; 1938; 1937)”; e                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         15 Exposição da Classe de Pintura Histórica da Imperial Accademia das Bellas-Artes no Anno de 1829 Terceiro anno da sua instalação. Trevessa do Sacramento perto da Casa da Moeda. “Depositado à e te Bibliotheca Imperial, J B Debret”. O exemplar leva a assinatura de Jean Baptiste Debret. Seção de Iconografia, IC-27 – 1929. Fonte: Biblioteca Nacional, RJ. 16 Os catálogos da AIBA (1937-1889) encontram-se digitalizados e arquivados, na Biblioteca do MNBA. 17 O histórico documental da Coleção D. João VI encontra-se em detalhes no catálogo da Exposição Coleção D. João VI – Acervo MNBA, 2008 e, as pesquisas relativas ao histórico da Coleção Lebreton, no catalogo Exposição: Le Breton e a Missão Artística Francesa de 1816, 1960, ambos produzidos pela Instituição. 18 Inventário do Tesouro real com a Relação dos quadros remetidos do Paço imperial para o Museu Nacional. Pasta 78, Documento 3. Fonte: Arquivo Histórico do MUSEU NACIONAL. 19 Por ordem de Sua Alteza Real (...) neste Muzeu Nacional recebi do Fiel do Real Thezouro Pedro Nolasco Heitor, cento e oitenta e três quadros, de differentes qualidades, que accusão os Inventários do mesmo Real Thezouro (...) 26 de setembro de 1822. Frei José da Costa Azevedo – Diretor do Muzeo. Pasta nº 2, Documento nº 10 – 26/09/1822. Fonte: Arquivo Histórico do MUSEU NACIONAL. 20 Pasta 1A, Documento 153 - 12/12/1831; Pasta 1A, Documento 154 - 22/12/1831; Pasta 1A, Documento 156 - 18/01/1832; Pasta 1A, Documento 159 - 17/03/1832. Fonte: Arquivo Histórico do MUSEU NACIONAL. 69 • duas pastas “Anos 40: I (1942; 1941; 1940)” e “II (1949; 1948; 1946; 1945; 1944; 1943)”. Em 1947 foram enviadas cento e noventa e oito (198) propostas para aquisição de obras de arte ao MNBA, no entanto, todas foram indeferidas. A pesquisa empírica efetuada resultou no levantamento dos seguintes dados gerais: 1 Anos 30 (1937-1939): foram levantados oitenta (80) processos de aquisição de obras de arte enviados ao MNBA, destes, cinquenta e três (53) foram indeferidos e vinte e sete (27) deferidos. Dos processos deferidos há aproximadamente o montante de cento e noventa e um (191) documentos que fazem referência a cinquenta e uma (51) obras adquiridas e incorporadas ao patrimônio do Museu. 2 Anos 40 (1940-1949): foram duzentos e noventa e três (293) processos de aquisição de obras de arte identificados, sendo duzentos (200) processos indeferidos e noventa e três (93) que obtiveram deferimento. Dos processos deferidos há aproximadamente o montante de duzentos e setenta (270) documentos que fazem referência a duzentas e dez (210) obras adquiridas e incorporadas ao patrimônio nacional. Na documentação inventariada dos anos de 1937 a 1949, foram adquiridas pela União e incorporadas ao patrimônio artístico do MNBA, duzentos e quarenta e sete (247) obras de arte. No levantamento, cerca de quatrocentos e sessenta e um (461) documentos que compõem os processos de aquisição, foram separados para estudo aqueles correspondentes aos anos de 1937 a 1945, período do corte cronológico da pesquisa. Nesta fase de seleção, constatou-se que os anos 40, no somatório geral das aquisições, apresentaram o maior volume de propostas enviadas e obras de arte adquiridas pelo MNBA. Cabe salientar, portanto, que o período concentra significativo percentual de propostas e aquisições. Para os anos de 1940-1945 há duzentos e seis (206) processos com setenta e dois (72) deferidos e centro e trinta e quatro indeferidos. No corte cronológico da pesquisa, os processos deferidos selecionados para o estudo correspondem à compra de cento e oitenta (180) obras de arte. Os processos de aquisição, com a documentação produzida ao longo da negociação de compra, serão apresentados junto com o documento diretamente a eles relacionado, o Livro de Entrada de Obras de Arte (1937-1968), entendidas como fontes primárias e inéditas, a seguir. 70 4.1 As propostas de aquisição - a abertura do processo Os processos são constituídos de vários documentos que, ao longo da negociação, foram produzidos. O documento que marca a abertura do processo é a carta do proponente interessado em vender a obra de arte para o Museu, enviada ao Gabinete do Ministro da Educação e Saúde (MES) e que, após as devidas anotações do Ministro, era encaminhada ao MNBA para deliberação do Diretor. A partir de suas primeiras considerações sobre o bem oferecido à aquisição, iniciava-se a abertura do processo. No período em questão, o cargo de Ministro da Educação e Saúde era ocupado por Gustavo Capanema, intelectual mineiro, responsável por vários projetos significativos de reformulação da educação no Brasil, bem como pela organização do Ministério que ocupava, no modelo que chegou até nós. Capanema ficou como Ministro da Educação de 1937 a 1945 (SCHWARTZMAN, 1985, p.165). Com relação à composição dos processos de aquisição de obras de arte para o MNBA, o mesmo tinha início, conforme assinalado, com a carta do proponente enviada ao MES, apresentando a proposta de venda que, após verificação da existência de verba orçamentária do Ministério, em seguida, é remetida ao Museu para deliberação do Diretor sobre a aquisição do quadro oferecido à venda. Na carta o proponente se apresenta, como se fosse um currículo, traçando o seu perfil, além do breve histórico da obra de arte, sua importância e os motivos pelos quais oferece à venda ao Museu. Em seguida, após parecer favorável a aquisição efetuada pelo diretor da Instituição, outros documentos são juntados ao processo, tais como carta do diretor ao proponente, informando ser favorável à aquisição do bem para figurar no acervo do MNBA; comunicações internas entre a direção e a administração financeira, para verificar a existência de dotação orçamentária para a compra; entre outros comunicados até o final do processo que é a efetiva aquisição, ou seja, a entrada da obra de arte para o acervo do Museu. Os processos eram avaliados por uma Comissão de Arte reunida a pedido do Diretor da Instituição, mas na maioria das vezes quem decidia sobre a proposta era o próprio Diretor, investido dessa autoridade, na ausência de uma Comissão Técnica Permanente para deliberar sobre as aquisições, conforme relatado nos documentos 71 estudados, e o nome do Presidente da Comissão era indicado pelo Diretor do SPHAN/IPHAN 21. Ofícios trocados entre a Instituição e o Gabinete do MES traz informação da necessidade de instaurar a Comissão permanente, pois as aquisições dependiam das verbas que precisam ser utilizadas no ano corrente. A ausência de uma Comissão Permanente para deliberar sobre as propostas implicava em demora na avaliação e, conforme exposto nos documentos consultados, ocasionava a devolução da verba destinada às aquisições 22 . A insistência do Diretor do MNBA na conveniência de designar a Comissão resulta na deliberação, pelo chefe de Gabinete do MES, de que, na ausência da Comissão, cujas atividades deveriam ser reguladas por um Estatuto, ainda não existente, era o Diretor quem estava autorizado a avaliar e decidir sobre as aquisições de obras de artes para o Museu, o que está reproduzido a seguir, em carta de Carlos Drummond de Andrade, Chefe do Gabinete ao Diretor do MNBA: Sr. Diretor: É pensamento do Sr. Ministro, como sabeis, atribuir a uma comissão de especialistas, de que faça parte o Diretor do museu, o exame das propostas de venda de obras de arte para esse estabelecimento./Tal comissão deverá ter as suas atividades definidas no regulamento do Museu, a ser oportunamente baixado./Enquanto não se expede o citado regulamento, resolveu o Sr. Ministro autorizar-vos a proceder à escolha das obras que mereçam ser adquiridas, dentro da verba existente, sejam ou não objeto de proposta dos interessados, devendo essa escolha ser submetida à aprovação de s. Exc., que autorizará a despesa./Solicito, pois, vossas providencias a fim de serem revistos os processos de 1938 e 1939, em que figurem propostas de venda de obras de arte, e que se achavam provisoriamente arquivados.” 23 A insistência do Diretor em que fosse formada a Comissão para deliberar sobre as propostas enviadas ao Museu se justificava pelo volume das mesmas no ano de 1938 e                                                                                                                         21 Tendo sido encaminhados a esta repartição diversos processos referentes a propostas de aquisições de obras de arte, a fim de aguardarem a instituição de uma comissão técnica permanente incumbida de deliberar sobre essas aquisições, apraz-me comunicar a V.Excia, que apoio inteiramente tal iniciativa e que muito me desvaneceu o fato de haver o Snr. Diretor do Serviço patrimônio Histórico Artístico Nacional indicando o meu nome para presidente dessa comissão./Estando a encerrar-se o exercício financeiro, tomo a liberdade de sugerir a V.Excia, a conveniência de serem essas medidas tomadas o mais breve possível a fim de ser aproveitado o saldo existente no orçamento em vigor para aquisição de obras de arte [...]. Ofício nº. 317 de Oswaldo Teixeira/Diretor/Ao Exmo. Sr. Dr. Gustavo Capanema/M.D. Ministro da Educação e Saude /em 1 de dezembro de 1938. (1fl). Pasta: “Anos 30 - 1939; 1938; 1937”, Seção de Registro e Controle, MNBA. 22 Reitero os termos do meu oficio n.317, de 1 do corrente, tomo a liberdade de lembrar a V.Excia. a conveniência que há em ser designada com possível brevidade em virtude de estar a se extinguir o corrente exercício financeiro, a comissão técnica permanente incumbida de deliberar sobre aquisições de obras de arte [...].. Ofício nº. 339, de 27 de dezembro de 1938, do Diretor do MNBA ao Gabinete do Ministro. (1fl). Pasta: “Anos 30 - 1939; 1938; 1937”, Seção de Registro e Controle, MNBA. 23 Ofício nº. 0-79 - Carlos Drummond de Andrade, Chefe do Gabinete./Ao Sr. Diretor do Museu Nacional de Belas Artes,/ em 12 de maio de 1939. (1fl). Pasta: “Anos 30 - 1939; 1938; 1937”, Seção de Registro e Controle, MNBA. 72 início de 1939, quarenta e três propostas, e o fim do exercício financeiro, com recursos 24 do orçamento para as aquisições, estava próximo de se extinguir 24 . A comunicação trocada entre o Diretor da Instituição e o Ministro coloca em evidência que a Comissão era reunida quando havia a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o objeto de arte, ou seja, eram os especialistas em arte que deveriam julgar a proposta, cabendo ao Diretor apresentar os nomes dos componentes que iriam deliberar sobre a obra de arte. Os ofícios enfatizam a necessidade da instauração da Comissão de Arte e do 25 Estatuto do Museu, ambos criados somente décadas depois 25 . Integrariam a Comissão, conforme aponta LEITE (1988: p. 164, 457-458), dois pintores, dois escultores, um desenhista, um especialista em xilogravura e dois críticos de arte, incluindo o diretor do MNBA, e o ministro da Educação e Saúde. Este último tinha a incumbência de fazer a indicação dos artistas e críticos de arte para presidir a Comissão, que viria de uma lista tríplice, formada pelas associações de classe, representadas sempre por um artista de estilo acadêmico e um moderno, cada qual com um mandato previsto de quatro anos. A Comissão, além de organizar os Salões, incumbia-se também de escolher as obras a serem adquiridas para integrar o acervo do MNBA, preferência essa feita necessariamente entre os trabalhos premiados nos Salões. O primeiro presidente da Comissão de Belas Artes foi o Diretor do SPHAN/IPHAN, Rodrigo Melo 26 Franco de Andrade (1898-1969) 26 . Apresentamos uma síntese da documentação em estudo e os cuidados que cercavam os procedimentos referentes à aquisição de obras de arte para o MNBA. Será abordado, a seguir, o Livro de Entrada, onde estão relacionadas as obras de arte adquiridas pelo Museu, entre os anos de 1937 e 1968. 27 4.2 O Livro de Entrada de Obras de Arte (1937-1968) 27                                                                                                                           24 24 A verba para o MNBA era garantida pela lei nº 942, de 10 de dezembro de 1938.. lei nº 942/38. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-942-10-dezembro-1938-349125publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: mar.2012. 25 25 A Comissão Nacional de Belas Artes só foi criada no início da década de 1950, pela Lei nº 1512, de 19/12/1951, enquanto o Regimento Interno do MNBA só seria instaurado pela Portaria nº 486, de 7/10/1975, cuja consolidação se deu por intermédio da Determinação nº 620, de 2/05/1989. Lei nº 1.512, de 19 de Dezembro de 1951. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:lei:1951-12-19;1512>. Acesso em: jan. 2013. 26 26 O advogado, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade comandou o IPHAN desde sua fundação em 1937, até 1967. 27 27 MNBA. Livro de Entrada de obras de Arte, vol.1 (1937 a 1968). O livro encontra-se digitalizado em DVDs e pode ser consultado na Seção de Registro e Controle, Setor da Divisão Técnica da Instituição. 73 abordado, a seguir, o Livro de Entrada, onde estão relacionadas as obras de arte adquiridas pelo Museu, entre os anos de 1937 e 1968. 4.2 O Livro de Entrada de Obras de Arte (1937-1968) 27 Para registrar as aquisições foi confeccionado o Livro de Entrada de Obras de                                                                                                                         24 Arte, documento onde inscrito, a partir de 1937, o dezembro patrimônio o Museu e A verba para o MNBA erafoi garantida pela lei nº 942, de 10 de de adquirido 1938.. lei nºpara 942/38. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-942-10-dezembro-1938-349125- pertencente ao Tesouro Nacional. doações de artistas e particulares, incorporações publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em:Inclui mar.2012. 25 A Comissão Nacional de Belas Artes só foi criada no início da década de 1950, pela Lei nº 1512, de dos prêmios de viagem dos Salões BelassóArtes, legado, epela as Portaria transferências outras 19/12/1951, enquanto o Regimento Interno de do MNBA seria instaurado nº 486, dede 7/10/1975, cuja consolidação por intermédio Determinação deste nº 620,para de 2/05/1989. Lei nº 1.512, de 19 do de instituições paraseo deu Museu, além dosdaempréstimos outros museus e órgãos Dezembro de 1951. Disponível em: <http://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:federal:lei:1951-12-19;1512>. Acesso em: jan. 2013. Estado. 26 O advogado, jornalista e escritor Rodrigo Melo Franco de Andrade comandou o IPHAN desde sua fundação em 1937, até 1967. 28 27 Livro Entrada de de Obras de Arte é uma fonte documental MNBA.OLivro de de Entrada de obras Arte, vol.1 (1937(1937-1968) a 1968). O livro encontra-se digitalizado em DVDs e pode ser consultado na Seção de Registro e Controle, Setor da Divisão Técnica da Instituição. significativa para traçar o histórico do acervo da instituição, pois as registra como patrimônio do Tesouro Nacional 29 . Apresenta a separação do que pertencia ao MNBA e à ENBA, uma vez que a recém criada Instituição, conforme assinalado, encontrava-se estabelecida no mesmo espaço físico da Escola e, embora desde o seu início independentes, houve a necessidade de demarcar a separação dos acervos. As informações sobre as obras adquiridas, transcritas nesse livro, foram cruzadas com os dados levantados nos documentos dos processos de aquisição para o MNBA, no período em estudo. Esse documento é uma fonte básica de informação, por permitir a checagem dos dados. O Livro de Entrada de Obras de Arte é composto por campos de preenchimento com os seguintes dados para registro: Nº DE PROCESSO; DATA (aquisição); TÍTULO (obra); AUTOR; PROCEDÊNCIA (nome do proponente ou a quem pertenceu à obra, se foi compra, doação, legado, incorporação, ou transferência); PREÇO; OBSERVAÇÕES (com informações sobre o processo, as obras adquiridas, material, tipo, pintura, desenho, gravura, escultura etc.). 5. Considerações Finais Ao ser traçada a trajetória da formação histórica do acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), focada no período do Estado Novo (1937-1945), foi necessário retomar à suas origem, a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808. Nesse percurso foram abordados a documentação no Tesouro Real, os quadros encomendados                                                                                                                         28 O primeiro registro no Livro se deu em 22 de novembro de 1937 e o ultimo em 1 de janeiro de 1968. MNBA. Livro de Entrada de obras de Arte, vol.1 (1937 a 1968). 29 A pesquisa também levantou outros documentos, como os livros de Inventário e de Tombo/Registro que não serão por nós tratados, apenas citados como fontes onde foram transcritas as informações das obras de arte registradas no mencionado Livro de 1937-1968. Os livros encontram-se distribuídos em DVDs, cujas cópias e originais estão armazenados na Seção de Registro e Controle, no armário de guarda dos livros de Entrada, Inventários e Registro. MNBA. Livro de Inventário, vol.1 (1940/1941), vol.2 (1941), vol.3 (1944), vol.4 (1944) e vol.5 (1948 a 1955); MNBA. Livro de Registro, vol.1 (1 a 2105), vol.2 (2106 a 3827), vol.3 (3828 a 5190), vol.4 (5191 a 6749), vol.5 (6750 a 8390), vol.6 (8391 a 0.149), vol.7 (10150 a 16244) e vol.8 (16245 a [...]). 74 pelo Príncipe Regente D. João, a Missão Artística Francesa de 1816 e o início do ensino artístico em nosso país, na Escola Real de Ciência, Artes e Ofícios, em 1816, até a Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ. Este foi um período importante também para o ensino de Artes no Brasil e para educação em geral, quando pontificaram intelectuais do porte de Gustavo Capanema e o poeta Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Por outro lado, o corpus documental analisado no processo de aquisição de obras de Arte para o MNBA, tema central desta pesquisa documental e exploratória, contém fontes primárias e originais, não estudadas até então. A análise foi direcionada aos procedimentos orientadores das aquisições dos objetos de arte que passaram a integrar o patrimônio artístico e cultural não somente do Museu, um dos mais antigos e importantes do Brasil, mas também nacional. Outro aspecto que se destaca é a documentação de objetos de Arte que, musealizados, apresentam sigularidades e especificidades próprias da Arte, na sua representação, marcada por imagens. Nesse pocesso, o passo inicial é a aquisição, analisada para o desvelamento da política institucional e políticas públicas, na presente pesquisa o Estado Novo (19371945), momento de mudanças no campo político, econômico e social, período da República brasileira dominado pelo centralismo e o ideário da formação da cultura e identidade nacionais. A exigência da organização da documentação de um museu fica evidente no desenvolvimento do estudo. Os processos refletem a preocupação com as aquisições e a necessidade da criação de uma Comissão de Especialistas, permanente, para analisar as propostas. Ao mesmo tempo, a demora na sua criação deixou as decisões concentradas no Diretor do Museu, até porque não existia, ainda, o Estatuto da Instituição, ambos criados décadas depois. A leitura desses documentos possibilita acompanhar a tramitação dos processos de aquisição e compreender as ideias e postura do Governo e da diretoria do MNBA, em relação à construção do patrimônio do Museu no período em estudo. Da presente pesquisa emergem questões que se entrelaçam, relacionadas à História política, cultural, dos museus de Arte e da Museologia, da educação em Arte, entre outras, quando se desenha um rico e multifacetado cenário, relevante para diferentes campos do conhecimento. 75 6. Referências CAMPOFIORINO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983. 5v. CHAGAS, Mário de Souza. Museália. Rio de Janeiro: JC Editores, 1996. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2012. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. In: Caderno de ensaios, nº2 Estudos de museologia. Rio de Janeiro, Minc/Iphan,1994 p. 64-73. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 1992. LEITE, José Roberto Teixeira. Dicionário crítico da pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Artlivre, 1988. LIMA, Diana Farjalla Correia. Acervo artístico: proposta de um modelo estrutural para pesquisa em artes plásticas. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Documento), UNIRIO, Rio de Janeiro, 1995. Orientadores: Lena Vania Ribeiro Pinheiro e Lamartine Pereira da Costa. LIMA, Diana Farjalla Correa; COSTA, Igor R.F. 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História & Documento e metodologia de pesquisa. 2. Ed. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2010. 77 INFORMAÇÃO ESPECIAL NO MUSEU INCLUSIVO E PESSOA COM DEFICIÊNCIA VISUAL: ÁUDIO-DESCRIÇÃO –TRADUÇÃO VISUAL Diana Farjalla Correia Lima1; Ana Fátima Berquó Carneiro Ferreira2 Resumo A sociedade contemporânea está cada vez mais sujeita ao domínio do sentido da visão. E os museus, em especial, estão apoiados na comunicação visual seja para apresentação de coleções ou no simples caminhar por territórios musealizados. Independente da especificidade das representações museológicas tratando tanto de objetos expostos como de espaços e seus trajetos é notória a predominância de imagem e textos que, de modo geral, também são veiculados de forma visual. As pessoas com deficiência visual, portanto, têm sido gradativamente excluídas de atividades e manifestações culturais, contrariando um dos direitos básicos de cidadania, que se refere à igualdade de oportunidades de acesso à informação. E a áudio-descrição em museu difere de um tour usando um audioguia. Embora a comunicação possa ser transmitida pelo mesmo aparato eletrônico, a interpretação elaborada pela Informação Especial que é aplicada à áudio-descrição tem foco diferente: descreve o objeto ‘real’ porque a prioridade é tornar inteligível sua forma, isto é, suas características físicas; o contextual é o pano de fundo interpretativo. A áudio-descrição possibilita construções imagéticas, oferece condições para que o ouvinte decida ‘por si só’, de modo a apreciar e compreender a informação/comunicação no espaço museológico. Embora haja, ainda, desconhecimento por parte da sociedade sobre o assunto, a utilização da áudiodescrição é obrigatória por lei em várias instâncias baseada no direito do cidadão ao acesso à igualdade de condições. A acessibilidade tem celebrado novas conquistas, a destacar a lei federal (10.098/2000), o decreto que a regulamenta (5.296/2004) e recentemente (2008) através de emenda constitucional. Na atualidade, o Museu Inclusivo é a compreensão expressa pelo campo da Museologia para atender o direito à diferença. Palavras Chave: Áudio-descrição – Informação Especial -- Pessoa com deficiência visual -- Museu Inclusivo. Resumen La sociedad contemporánea es cada vez más sujetos al dominio del sentido de la vista. Y los museos en particular son compatibles con la comunicación visual es el de presentar las colecciones o simplemente caminar por territorios musealizados. Independientemente de las representaciones específicas de los objetos de museo expuestos por el tratamiento tanto como espacios y sus rutas es notorio predominio de la imagen y el texto que, en general, también se transmite visualmente. Las personas con discapacidad visual, por lo tanto, han sido gradualmente excluídos de las actividades y eventos culturales, lo que contradice uno de los derechos básicos de la ciudadanía, que se refiere a la igualdad de                                                                                                                         1 Museóloga (Museu Histórico Nacional MHN/UFRJ); Mestre em Memória Social e Documento (UNIRIO); Doutora em Ciência da Informação (IBICT/ECO-UFRJ). Professora do Curso de Museologia, UNIRIO; e Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST (PPG-PMUS). 2 Professora do Instituto Benjamin Constant; Áudio-descritora, Mestre em Museologia e Patrimônio UNIRIO/MAST; Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). 78 oportunidades para el acceso a la información. Y el audio-descripción difiere de un recorrido por el museo con una guía de audio. Aunque la comunicación se transmite a través del mismo dispositivo electrónico, la interpretación elaborada por la información especial que se aplica a la audio-descripción tiene enfoque diferente: describe "real" del objeto, porque la prioridad es hacer de forma inteligible, es decir, su físico , es el telón de fondo contextual para la interpretación. La descripción de audio permite construcciones que provocan las imágenes, proporcionando las condiciones para la escucha de la verdad "solo" con el fin de apreciar y comprender la información / comunicación en el espacio del museo. Aunque hay también desconocido por gran parte de la sociedad sobre el tema, el uso de audio-descripción es requerido por la ley, en muchos casos, con base en el derecho del ciudadano al acceso a la igualdad de condiciones. Accesibilidad ha celebrado nuevos logros, destacan la ley federal (10.098/2000), el decreto que regula (5.296/2004) y recientemente (2008) por la enmienda constitucional. En la actualidad, el Museo Inclusivo es la comprensión expresada por el campo de la museología para abordar las cuestiones relativas al derecho a la diferencia. Palabras clave: Audio-descripción - Información Especial - persona especial con discapacidad visual - Museo Incluido. Abstract Contemporary society is increasingly subject to the domain of the sense of sight. And the museums in particular are supported in visual communication is to present collections or simply walking in musealized territories. Regardless of the specific representations of museum treating the objects exhibition or other spaces of the museum is notorious the predominance of image and text that, in general, are also conveyed visually. People with visual impairment, therefore, have been gradually excluded from activities and cultural events, contradicting one of the basic rights of citizenship, which refers to equal opportunities for access to information. And the Audio-description differs from a museum tour using an audio guide. Although communication is transmitted through the same electronic device, the interpretation elaborated by the Special Information that is applied to the audio-description has different focus: describes the object 'real' because the priority is to make intelligible form, ie, its physical , is the contextual backdrop for interpretation. The Audio description enables provoking imagery constructions, providing conditions for the listener to decide "alone" in order to appreciate and understand the information / communication in the museum space. Although there are also unknown by society on the subject, the use of audio-description is required by law in many instances, based on the citizen's right to access to equal terms. Accessibility has celebrated new achievements, highlight the federal law (10.098/2000), the decree that regulates (5.296/2004) and recently (2008) by constitutional amendment. Currently, the Inclusive Museum is the understanding expressed by the field of Museology to address the issues of the right to difference. Keywords: Audio-description - Special Information - Special Person visually impaired Inclusive Museum. 1. Museu: o contexto imperativo da visualidade e a barreira para inclusão da pessoa com deficiência visual O artista renascentista Leonardo da Vinci (1452-1519) proferiu a frase "o olho é a janela da alma, o espelho do mundo". Diante desta afirmação torna-se possível em um 79 exercício de reflexão apontar que a Sociedade da Informação, hoje, sofre da doença de exercício de reflexão apontar que a Sociedade da Informação, hoje, sofre da doença de enxergar demais e ver de menos. O caos informacional sob formato imagético se instalou enxergar demais e ver de menos. O caos informacional sob formato imagético se instalou e coloca-se frente a um dilema que o pintor renascentista jamais imaginaria: o do e coloca-se frente a um dilema que o pintor renascentista jamais imaginaria: o do excesso das imagens e da impossibilidade de se enxergar, de fato, em meio a tanta excesso das imagens e da impossibilidade de se enxergar, de fato, em meio a tanta informação visual. informação visual. O Museu como produto dessa sociedade ‘visual’ convida os visitantes a O Museu como produto dessa sociedade ‘visual’ convida os visitantes a estabelecerem relação com o conteúdo exposto através, principalmente, da exploração estabelecerem relação com o conteúdo exposto através, principalmente, da exploração pelo sentido da visão. E nesse contexto de visitação pública há que ressaltar o caráter pelo sentido da visão. E nesse contexto de visitação pública há que ressaltar o caráter conceitual de instituição social voltada ao atendimento do público, portanto, de caráter conceitual de instituição social voltada ao atendimento do público, portanto, de caráter aberto e que deve oferecer condições de amplo acesso aos seus edifícios, suas aberto e que deve oferecer condições de amplo acesso aos seus edifícios, suas coleções, seus outros espaços e demais elementos musealizados, como ratifica a coleções, seus outros espaços e demais elementos musealizados, como ratifica a definição de Museu do Estatuto do Conselho Internacional de Museus, International definição de Museu do Estatuto do Conselho Internacional de Museus, International Council of Museums --- ICOM 33: Council of Museums --- ICOM : Instituição permanente, sem fins lucrativos, aberta ao público, a serviço Instituição permanente, fins lucrativos, aberta ao público, pesquisa, a serviço de uma sociedade e de sem sua evolução, que adquire, conserva, de uma sociedade e de sua evolução, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe para fins de estudo, educação e lazer os comunica fins meio-ambiente de estudo, educação testemunhosedoexpõe homempara e do seu (grifo nosso)e. lazer os testemunhos do homem e do seu meio-ambiente (grifo nosso). Em meio às discussões que ocorrem no campo museológico e são expressas Em meio às discussões que ocorrem no campo museológico e são expressas tanto por estudantes como pelos museólogos com referência às habilidades e tanto por estudantes como pelos museólogos com referência às habilidades e competências que devem deter com vistas à informação e comunicação em um tempo de competências que devem deter com vistas à informação e comunicação em um tempo de novas tecnologias e as perspectivas que se descortinam nos Museus, torna-se possível novas tecnologias e as perspectivas que se descortinam nos Museus, torna-se possível verificar que uma questão permanece ainda negligenciada no âmbito dos estudos verificar que uma questão permanece ainda negligenciada no âmbito dos estudos acadêmicos e se reflete nos espaços musealizados, ou seja, no mundo da prática acadêmicos e se reflete nos espaços musealizados, ou seja, no mundo da prática cotidiana e que é observada no tema da visitação: como atender o público com cotidiana e que é observada no tema da visitação: como atender o público com deficiência visual nos Museus? A este público está sendo dada a oportunidade de acesso deficiência visual nos Museus? A este público está sendo dada a oportunidade de acesso adequado à informação disponível nestes espaços? Pode-se falar de sua inclusão nos adequado à informação disponível nestes espaços? Pode-se falar de sua inclusão nos Museus? Museus? 2. Informação Especial e o Modelo Inclusivo no Museu: os recursos Áudio2. Informação Especial e o Modelo Inclusivo no Museu: os recursos Áudiodescrição e Tecnologia Assistiva descrição e Tecnologia Assistiva O Museu para fazer valer o que lhe compete, portanto de modo a servir as O Museu para fazer valer o que lhe compete, portanto de modo a servir as diferentes modalidades de público visitante, precisa aplicar o que se nomeia de diferentes modalidades de público visitante, precisa aplicar o que se nomeia de Informação Especial. Informação Especial.                                                                                                                          3      Criado                        em              1946,                      o      ICOM                      é        uma                 Organização não governamental que mantém relações formais com a 3 Criado em 1946, o ICOM é uma Organização governamental queconsultivo mantém no relações formais com a UNESCO, executando parte de seu programa paranão museus, tendo status Conselho Econômico UNESCO, executando parte de em: seu programa para museus, tendo status consultivo no Conselho e Social da ONU. Disponível <http://www.icom.org.br/index.cfm?canal=icom> Acesso em: Econômico 20 agosto e Social da ONU. Disponível em: <http://www.icom.org.br/index.cfm?canal=icom> Acesso em: 20 agosto 2013. 2013. 80 Tal modelo informacional consiste em adaptações para que este segmento de público seja incentivado a participar e desfrutar de oportunidades iguais as das pessoas sem deficiência e, nesse caso, fazendo-se uso do recurso da áudio-descrição, modalidade conceitual e técnica que merece ser oferecida ao público com deficiência visual no espaço museológico através do áudio-descritor que, [...] traz a formalidade para algo que era, anteriormente, feito informalmente, graças à sensibilidade e boa vontade de alguns. Isso acontece e acontecia quando as pessoas com deficiência visual, mais curiosas, começavam a fazer perguntas, tirar dúvidas, durante o filme, peças de teatro e outros tipos de espetáculo. Entretanto, nem todas as pessoas que os acompanham estão preparadas para prestar esse tipo de serviço, e, além disso, essas pessoas também querem assistir o [sic] filme ou espetáculo e, ter que dar informações adicionais, pode fazer com que a pessoa perca o fio da meada, deixe de entender determinadas coisas e cenas. Como uma atividade formal, ligada às artes visuais e ao entretenimento, entretanto, é algo bem mais recente, tendo início nos anos 80 nos Estados Unidos e Inglaterra (grifo nosso) (MOTTA ). E se o olho é a janela da alma, como afirmou da Vinci, o Museu ao acolher aquele que não vê valendo-se do recurso da áudio-descrição, que é a arte de transformar imagens em palavras, abre uma janela para o mundo às pessoas com deficiência visual e as possibilita enxergar por outro sentido que não o da visão, dizendo de outra maneira, permite fazê-las formar imagem pelo sentido da audição e, deste modo, cumpre o que preconiza o Código de Ética para Museus do ICOM 4. No Museu este recurso pode ser oferecido por meio de um audioguia com texto áudio-descrito ou mesmo através de um agente atuando no papel de áudio-descritor – pessoalmente descrevendo os conteúdos exibidos – que não chega a incomodar os demais visitantes que, muitas vezes, se beneficiam da Informação Especial (via áudiodescrição) dispensada à pessoa com deficiência visual, ainda, permitindo a socialização deste segmento de público com deficiência visual aos conteúdos informacionais presentes nos Museus. Trata-se de uma perspectiva que ‘enxerga’ um projeto de sociedade na qual a informação é um bem público, não uma mercadoria, a comunicação é um processo participativo e interativo, o conhecimento a ser disseminado como construção social compartilhada não é propriedade privada, e as tecnologias um suporte para tudo isso, sem que se convertam em um fim em si.                                                                                                                         4 ICOM – INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. Código de Ética do ICOM. Disponível em: <http://www.icom.org.br/codigo_de_etica_lusofono_iii_2009.pdf>. Acesso em: 20 agosto 2013. 81 Também nesse quadro a relevância do assunto da diversidade sob qualquer aspecto e da inclusão dos grupos culturais e sociais que integram tal configuração pode ser apreciada pelo expresso na Lei Federal nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000, que estabelece no capítulo VII, art.17 (BRASIL, 2000): O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantirlhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer (grifo nosso). Em razão do que a lei estabelece, aplicar a áudio-descrição no Museu é uma ação voltada para promover a acessibilidade, utilizando as denominadas Tecnologias Assistivas (TI), uma maneira concreta de neutralizar as barreiras causadas pela deficiência e inserir esse indivíduo nos vários ambientes proporcionados pela cultura nos quais se abrem múltiplas oportunidades para a aprendizagem e desenvolvimento. Tecnologia Assistiva ainda é um termo novo e diz respeito ao elenco de ferramentas que pode auxiliar no cotidiano de pessoas com deficiência e, também, pode ser definida como "uma ampla gama de equipamentos, serviços, estratégias e práticas concebidas e aplicadas para minorar os problemas encontrados pelos indivíduos com deficiências” (COOK; HUSSEY, 1995). Durante o terceiro Encontro Baiano de Museus, em 22 de setembro de 2011, o Prof. Dr. Francisco Lima5 evidenciou a necessidade de utilizar os recursos da áudiodescrição na busca pela acessibilidade comunicacional nos Museus Se não é para todos, não é inclusão. É preciso que os museus cheguem a todas as pessoas, independentemente da sua origem geográfica, linguística e sexual. Para isso, é necessário transformar a sociedade, 6 assim como o modo pelo qual nós pensamos os museus, ressaltou . Portanto, as informações visuais do material exibido nos Museus disponibilizadas por meio da áudio-descrição constituem uma das maneiras de garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência visual.                                                                                                                         8 9 Francisco José de Lima é Tradutor e Intérprete (Escola Americana Instituto Mackenzie-SP, 1983); Licenciado e Bacharel com formação em Psicologia (UNESP-Assis/SP, 1995); PHD em Psicofísica Sensorial (USP-RP/SP, 2001). Professor Francisco Lima também é formador de áudio-descritores em curso de Tradução Visual com ênfase na áudio-descrição, voltada ao teatro, ao cinema, à televisão, aos museus, às configurações bidimensionais estáticas (encontradas em livros, folders e outros), bem como destinadas à mostra de artes, em geral, aos eventos culturais, e educacionais diversos (conferências, congressos e demais situações educacionais similares). Disponível em: <http://www.blogdaaudiodescricao.com.br/2011/09/audiodescricao-foi-discutida-no-3.html>. Acesso em: 20 agosto 2013. 82 Os meios de comunicação são veículos de informação e difusão de produtos culturais (audiovisuais, multimídia) que têm, em última instância, a função sociológica de formar e informar os cidadãos, proporcionando-lhes as ferramentas necessárias para participar da vida pública. Mas não só isso. As imagens também são experiências (PAYÁ, 2007, p.81). E há algo interessante e pertinente a ser dito: o ver (ou não ver) ‘diferente’ não se restringe ao o-que-se-enxerga, mas abarca o-como-se-enxerga. A ‘norma de ouro’ mais usada no treinamento de áudio-descritor estabelece: descreva o que você vê. Contudo, pelo ponto de vista teórico, isto pode ser um dado problemático, por exemplo: dez pessoas videntes são orientadas a permanecer numa sala. E para elas é pedido que descrevam alguma coisa. Os resultados serão pelo menos dez diferentes descrições, conforme já se constatou nas práticas sobre áudio-descrição. Portanto o que se ‘vê’ é diferente para cada um, dependendo de quem está vendo e em qual contexto a situação ocorre. 3. Referências para Aplicação da Áudio-Descrição: normas existentes no exterior e norma brasileira em construção Com o intuito de estabelecer requisitos básicos que devem orientar o trabalho daqueles que fazem produções áudio-descritas para pessoas com deficiência visual, existem normas já estabelecidas, são elas: a britânica (ITC Guidance on Standards for Audiodescription, 2000)7, a espanhola (UNE153020, 2005) Description Coalition, 2008) 8 e a americana (Audio 9. No Brasil, a Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT-- formalizou a criação de um grupo de trabalho, em junho de 2010, que tem como objetivo a discussão do projeto para uma futura norma de Áudio-descrição brasileira, e concentra-se em aspectos relativos à produção de roteiros de áudio-descrição, sua inserção em produtos audiovisuais e nas formas a ser disponibilizada para o público, ainda em fase de conclusão. A áudio-descrição no Brasil aos poucos vem sendo implantada em diferentes áreas. Em se tratando das emissoras de televisão digital foi exigido um mínimo de duas                                                                                                                         7 ITC Guidance on Standards for Audiodescription, Audetel, 2000. ITC – INDEPENDENT TELEVISION COMMISSION. Guidance on Standards for Audiodescription, London: ITC Monograph, 2000. 8 UNE 153020. Audiodescripción para personas com discapacidad visual. Requisitos para la audiodescripción y elaboración de audioguías, Madrid: AENOR, 2005. 9 AUDIO DESCRIPTION COALITION. Standards for áudio description and code of Professional conduct for describers: based on the training and experience of áudio describers and trainers from across the United States. [S.L]: Audio Description Coalition, 2007. Disponível em: <http://audiodescriptioncoalition.org>. Acesso em: 20 agosto 2013. 83 horas semanais de áudio-descrição, conforme Portaria do Ministério das Comunicações nº188/2010 que alterou a Portaria nº 310/2006, conceituando a áudio-descrição e estabelecendo prazos diferenciados para sua adequação (BRASIL, 2010). 4. Pesquisa em Andamento e a Contribuição para Inclusão nos Museus da Pessoa com Deficiência Visual. No quadro atual da Informação Especial, especificamente no que concerne à áudio-descrição e sua implantação no Brasil de forma eficiente para contribuir, bem como participar da formação e capacitação de profissionais para atuar nesta área, insere-se a pesquisa em andamento para tese (doutorado) na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), curso de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – UNIRIO/MAST (PPG-PMUS) 10. O tema envolve a construção mental da imagem pelo cego através da áudiodescrição e dirigida ao foco do Museu de Arte. A pesquisa, prevendo o processo de recepção por cegos congênitos (comunicação) da Informação Especial em Museu de Arte, busca encontrar respostas às questões que investigam o modelo e a utilização do recurso da áudio-descrição considerado em nível teórico e prático como o mais adequado para este público. Os sujeitos da pesquisa a serem selecionados serão oriundos do Instituto Benjamin Constant (IBC), órgão específico singular dotado de autonomia limitada e centro de referência nacional na área da deficiência visual, subordinado diretamente ao Ministro de Estado da Educação do Brasil, criado pelo Decreto Imperial nº 1.428, de 12 de setembro de 1854, localizado no bairro da Urca, na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa também se formula como um elemento integrante da ‘luta’ que está sendo travada para defender o direito a cidadania na sociedade brasileira para a plena inclusão social da pessoa com deficiência visual que, mesmo tendo por apoio legal o Decreto nº 5296, datado de 2 de dezembro de 2004 11, determinando a acessibilidade em portais e sítios eletrônicos da administração pública brasileira, no Capítulo VI, art.47, até a presente data, muitas vezes, tem o seu direito negado.                                                                                                                         10 A pesquisa está sendo desenvolvida pela doutoranda Ana Fátima Berquó Carneiro Ferreira, tendo por orientadora a Professora Dra. Diana Farjalla Correia Lima (UNIRIO). 11 BRASIL. Decreto nº 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5296.htm>. Acesso em: 20 agosto 2013. 84 No prazo de até doze meses a contar da data de publicação deste Decreto, será obrigatória a acessibilidade nos portais e sítios eletrônicos da administração pública na rede mundial de computadores (internet), para o uso das pessoas portadoras de deficiência visual, garantindo-lhes o pleno acesso às informações disponíveis. o §1 Nos portais e sítios de grande porte, desde que seja demonstrada a inviabilidade técnica de se concluir os procedimentos para alcançar integralmente a acessibilidade, o prazo definido no caput será estendido por igual período. o §2 Os sítios eletrônicos acessíveis às pessoas portadoras de deficiência conterão símbolo que represente a acessibilidade na rede mundial de computadores (internet), a ser adotado nas respectivas páginas de entrada. §3o Os telecentros comunitários instalados ou custeados pelos Governos Federal, Estadual, Municipal ou do Distrito Federal devem possuir instalações plenamente acessíveis e, pelo menos, um computador com sistema de som instalado, para uso preferencial por pessoas portadoras de deficiência visual. (grifo nosso). Um dos mais contundentes e delicados exemplos, que não pode deixar de ser mencionado como um chamado de alerta para a imediata e necessária correção, ocorre na seara dos Museus brasileiros: o site do Instituto Brasileiro de Museus -- IBRAM 12 , órgão governamental do Ministério da Cultura -- MinC, responsável pela gestão da Política Nacional de Museus. O texto eletrônico afirma em um dos sete eixos programáticos, o de número 2, que busca implementar a: Democratização e acesso aos bens culturais. No entanto, conforme se pode verificar na tela, não usa recurso eletrônico que possibilite a pessoa com deficiência visual acesso ao conjunto do conteúdo informacional que o órgão governamental oferece no ambiente internet, inclusive, não possibilita horizontes para realizar pesquisas em qualquer de seus itens, por exemplo, o Cadastro Nacional de Museus que reúne mais de duas mil instituições registradas. A situação serve como ilustração para o panorama que se relata e que foi confirmado por pesquisa anterior ao se examinar as condições de (in)acessibilidade para a pessoa com deficiência visual em três expressivos museus (qualitativamente e quantitativamente) situados na cidade do RJ: Museu Histórico Nacional (MHN), Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) e Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST). Tratase da pesquisa realizada para a dissertação de mestrado Dedos de ver: informação especial no museu e a inclusão social da pessoa com deficiência visual (BERQUÓ, 2011) defendida no PPG-PMUS UNIRIO/MAST, em 2011, apresentada no Auditório Maestro Francisco Gurgulino de Souza – sala 251 -- do Instituto Benjamin Constant com lotação                                                                                                                         12 IBRAM - INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS – Política Nacional de Museus Disponível em: < http://www.museus.gov.br/SBM/politica_apresentacao.htm>. Acesso em: 20 de agosto 2013. 85 de oitenta lugares totalmente preenchida, vindo a demonstrar o interesse que o assunto desperta no espaço da demanda por mudanças. E a pesquisa para o doutorado visa dar continuidade ao estudo iniciado no mesmo curso de Pós pela relevância que o tema da inclusão social encontra no mundo. E no campo da Museologia é representado pelo termo/conceito Museu Inclusivo, indicando a premência de abandonar um formato socialmente ultrapassado e, por que não se dizer, inadmissível, e que o insere na face do contexto da exclusividade (Museu exclusivo? por antinomia). A Informação Especial, então, e a transmissão por meio sonoro, a áudio-descrição será, enfim, uma prática de caráter ostensivo, isto é, posta em uso e naturalmente integrada ao espaço dos Museus. 5. Referências AENOR- Asociación Española de Normalización y Certificación. UNE – Norma Espanõla. Audescripción para personas com discapacidad visual – requisitos para La audiodescripción y elaboración de audioguías. Madrid-Espãna, AENOR, 2005 (Comité Técnico AEN/CTN 153, Ayudas Técnicas para Personas com Discapacidad cuya Secretaría desempeña FENIN) AMBROSI, Alain; PEUGEOT, Valérie; PIMIENTA, Daniel (Coord.). Desafios de palavras: enfoques multiculturais sobre sociedades da informação. França. C e F Éditions, 2005. 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Regulamenta as Leis nos10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 de dezembro de 2004. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2004/decreto/d5296.htm>. Acesso em: 20 agosto 2013. BRASIL, 2010. Ministério das Comunicações. Portaria 188, de 24/03/2010. Estabelece recursos de acessibilidade, para pessoas com deficiência, na programação veiculada nos serviços de radiodifusão de sons e imagens e de retransmissão de televisão, aprovada pela Portaria nº 310, de 27 de junho de 2006. Disponível em <http://www.mc.gov.br/images/2011/6_Junho/portaria_188.pdf>.Acesso em: 20 agosto 2013. COOK, A., HUSSEY, S. Assistive technologies: Principles and practice. 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Pretende-se observar especificamente o caso do Museu de Juiz de Fora, fundado em 1982, submetido à administração da FUNALFA, mas que encontra-se hoje desativado. Para tal, são analisadas as definições de “museu”, “cidade” e “museu de cidade”, utilizando especialmente os trabalhos desenvolvidos pelo CAMOC / ICOM – Comitê para Atividades e Coleções dos Museus de Cidade. Palavras – chave: museu de cidade; Juiz de Fora; CAMOC Resumen La investigación se centra en el análisis y definición del término "museo de ciudad", ya que hemos visto un uso cada vez mayor y una creciente preocupación a repensar, considerando su inclusión en el escenario contemporáneo de las ciudades. Está destinado específicamente para observar el caso del Museo de Juiz de Fora, fundado en 1982, presentado a la administración de FUNALFA, pero que ahora está desactivado. Para ello, se analizaron las definiciones de "museo", "ciudad" y "museo de ciudad", sobre todo mediante el trabajo realizado por CAMOC / ICOM - Comité de las colecciones y actividades de Museos de las ciudades. Palabras clave: Museo de ciudad; Juiz de Fora; CAMOC Abstract The research focuses on the analysis and definition of the term "City Museum", since we have seen an increasing use and an increasing concern in rethinking them, considering their insertion in the contemporary city scenario. It is intended specifically to observe the case of the Museum of Juiz de Fora, estabilished in 1982, submitted to the administration of FUNALFA, but that is now disabled. For that, we analyzed the definitions of "museum", "city" and "city museum", especially using the work done by CAMOC / ICOM - Committee for the Collections and Activities of Museums City. Keywords: museum city, Juiz de Fora; CAMOC                                                                                                                         1 Bacharel e Licenciada em História (UFJF); M.Sc. em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Museóloga do Centro Cultural Câmara dos Deputados. 2 Graduado em Ciências Sociais (UFRJ); M.Sc. em Sociologia e Antropologia (UFRJ), D.Sc. em Ciências Sociais (PUC/São Paulo) e pós-doutor pela CESLA. Professor Associado da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e professor do PPG-PMUS (UNIRIO-MAST). 89 1. Introdução Analisar a cidade, ou o espaço urbano é contar com a presença de multidões de anônimos submetidos a um regime social e simbólico em que a hierarquia social, a pluralidade e a necessidade da convivência passam a orientar comportamentos. O espaço urbano, a cidade em si, permite a convivência de diferentes usos, modos de estar e de compreender. No espaço urbano ou da cidade convivem sentimentos, expectativas e projetos que induzem diversas narrativas. A cidade, em si, constitui um espaço que vive em função da sua capacidade de permitir e de produzir a sua (re)organização espacial, a construção de outros territórios em seu território e o espaço como sistema informacional e relacional dinâmicos, tensos e contraditórios. As cidades crescem, mas muitas vezes pouco de seu passado é conhecido entre seus habitantes. Ainda encontramos o pensamento de que o novo é progresso é melhor, e o passado é visto como “velho”. Somado ao pouco apoio dado aos setores culturais, vemos essa situação se agravar a cada dia, pois cada vez mais alteram-se (ou perdem-se) os referenciais que contribuem para que nos sintamos pertencentes a um determinado lugar. São especulações imobiliárias, obras de planejamento... Vamos assim, vivendo em um constante e veloz movimento de mutação, na busca de nosso espaço e do reconhecimento de nós mesmos enquanto seres no mundo e em relação ao ambiente que nos rodeia. O museu pode ser considerado um porto para nos ancorarmos, além de permitir à cidade a convivência e a disputa de sentidos produzindo novidades e multiplicando os processos relacionais e as trocas espaciais. Apesar das dificuldades encontradas no caso brasileiro, como o baixo índice de visitação, o museu é vital na construção da história e da identidade da cidade e de seus moradores, além de termos que, cada vez mais, a própria cidade tem se tornado um importante tema para o museu. A cidade é considerada como patrimônio, e um patrimônio é parte da identidade e da memória coletiva da sociedade. O patrimônio possui um sentido importante no desenvolvimento local onde ele se insere sendo objeto de valorização, nomeadamente através de ações de pesquisa, conservação preventiva, formação e divulgação. Há, portanto, um esforço em ressignificar a cidade e suas diferentes histórias, memórias e representações sociais, ou seja, a possibilidade de constituir outros sentidos. É um desafio coletivo, de grupos e próprio a alguns sujeitos que fazem ou insistem nos diferentes discursos e desejos da cidade. Podem ser encontrados – no Brasil e no mundo - muitos museus que se denominam “museu de cidade” – ou “museu da cidade X”, os quais contam com um comitê dedicado 90 exclusivamente às suas coleções e atividades – CAMOC – no quadro do ICOM (Conselho Internacional de Museus) desde 2005. Este fato chamou a atenção para a elaboração de uma pesquisa de cunho acadêmico em nível de mestrado. Esse interesse foi despertado a partir do caso específico de Juiz de Fora, cidade mineira com pouco mais de 517 mil habitantes, mas que representa um polo agregador para a região, além de ter sido destino de grande número de imigrantes em fins do século XIX e começo do XX. Esta cidade teve em 1982 a criação do “Museu de Juiz de Fora”. 32 anos antes, em 1950, em Juiz de Fora, como parte das comemorações dos 100 anos da cidade, fora inaugurada uma sala com retratos, porcelanas, pratarias, esculturas e demais objetos relacionados aos beneméritos da cidade, dentro das dependências do já existente Museu Mariano Procópio, visto que a cidade não possuía nenhum museu cuja temática fosse o município.3 A então denominada sala “Juiz de Fora” funcionou por cerca de 20 anos. Após esse período houve a iniciativa de criação do “Museu de Juiz de Fora”, aprovado por decreto em 1982,4 durante o mandato do Prefeito Francisco Antônio de Mello Reis, ficando sob responsabilidade da recém-fundada Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA). No entanto, este Museu contou apenas com uma única exposição relativa à história da cidade, tendo funcionado posteriormente como galeria de arte com eventuais exposições. Após esse período, outras atividades menores e pontuais foram realizadas pela FUNALFA no sentido de buscar a divulgação da história da cidade. Ultimamente vêm se observando o retorno ao interesse pelo patrimônio e história locais por parte não só dos órgãos responsáveis como pela população, porém o “Museu de Juiz de Fora” permanece desativado. Tendo em vista a situação dos centros urbanos atuais, nos perguntamos qual seria a importância especificamente de um museu sobre a cidade? Que papel ele desempenharia para a melhoria da vida urbana? Antes de pensar tais questões, é necessário identificar, dentro do contexto das atuais pesquisas sobre museus e museologia, se haveria uma definição para o que se entende por “museu de cidade”. Por ser uma área que vem ainda se consolidando, as definições fornecidas pela museologia sempre são passives de reinterpretações e adaptações, muitas vezes sendo extrapoladas na realidade, mas será que poderíamos encontrar um identificador comum, uma linha que permeasse os diversos museus de cidade? Como tais museus trabalham a fim de compreender e abarcar a cidade que desejam representar?                                                                                                                         3 Há de ressaltar que o MMP é um museu criado a partir do colecionismo de Alfredo Lage, e portanto, voltado para a exposição de sua coleção, não cabendo assim transformá-lo em um “museu da cidade”. 4 Decreto Nº. 2850, de 31 de dezembro de 1982. 91 2. Metodologia O objetivo principal, considerando a natureza acadêmica do trabalho, é a formação de um conhecimento na área, acreditando que tal conhecimento poderá subsidiar políticas sobre o tema. Em função disto, nos preocupamos em aprofundar o conhecimento acerca da relação museu-cidade e a complexidade que envolve a musealização da cidade, pois não basta afirmar o interesse ou alocar verbas e pessoal para que essa relação seja exitosa ou para que promova o desenvolvimento local, de forma sustentável e fundado na identidade e na cultura local. Estudamos o Museu de Cidade como problema e ambiente de estudo. A natureza interdisciplinar do tema exige que utilizemos como quadro teórico autores das Ciências Humanas, das Ciências Sociais e da Museologia. A pesquisa empírica é desenvolvida analisando as justificativas para a constituição do Museu de Juiz de Fora e as expectativas, comportamentos e as relações entre público, agentes políticos e museais. Para atingir os objetivos propostos neste projeto, nossa pesquisa está dividida em três etapas: Primeiramente são analisadas as concepções sobre “Museu”, seu histórico e definições, utilizando para tal, não somente as definições oficiais adotadas por órgãos e instituições de cultura como também os estudos teóricos sobre o Museu, desenvolvido por museólogos e pesquisadores de áreas afins, destacando as propostas de definição do termo. Com base no conceito de “Museu”, procura-se identificar e delinear o que seria um Museu de Cidade, através de um rápido estudo bibliográfico sobre o tema e os modos de analisar que vem sendo utilizados em outras pesquisas – compilados nas reuniões e publicações do CAMOC5 especialmente, além de demais autores e instituições apontadas como referências. Utilizamos como apoio as publicações sobre o tema, e a observação dos museus assim denominados. Por fim, o histórico do Museu de Juiz de Fora é levantado, bem como as disputas que se seguiram por sua continuidade. Entender o contexto em que se situam essas ações é fundamental para compreender os desejos e anseios da população, bem como sua resposta na política local. Para obter maiores dados sobre tal instituição, foi feito levantamento documental, bibliográfico e jornalístico em arquivos, bibliotecas, órgãos responsáveis (FUNALFA) e Câmara Municipal, bem como realizadas entrevistas com antigos funcionários e possíveis envolvidos nesse processo, a fim de se conhecer seu histórico e traçar as concepções iniciais e os motivos que levaram ao término de suas atividades.                                                                                                                         5 Temos como destaque as seguintes publicações: Museum International:Urban Life and Museums, v. 58, n. 231, UNESCO September 2006 e JONES;MCDONALD & MCINTYRE (Ed.) City Museums and City Development. Lanhan: Altamira Press, 2008 92 O desenho do estudo: ele é de natureza qualitativa, descritiva e analítica. O estudo é baseado nos enunciados e materiais documentais reunidos ao longo do projeto. A metodologia de análise adotada em nossa pesquisa segue um padrão tradicional e pouco inova em relação ao modo predominante da produção acadêmica. Definido o tema e a conjuntura de análise, desenvolvemos um debate sobre cidade, museus e museus de cidade. Consultamos as fontes e reunimos o acervo segundo os critérios adotados: tema e cronologia. Pelo nosso projeto, o estudo pretende observar, registrar, analisar e interpretar o fenômeno buscando compreendê-lo no contexto histórico, simbólico e social. Portanto, a análise exige um diálogo sistemático com outras fontes secundárias, importantes documentos e textos da área de cultura, da história, do museu, da filosofia, da comunicação, da história da cidade que abordam conceitos relacionados à cultura, museus e cidade. Esta exigência deve-se ao fato que consideramos o museu e a cidade narrativas da discursividade contemporânea e da produção de sentidos do homem de Minas Gerais. 3. Museus: dos templos à apreensão do real complexo O tema “museus” é de uma significativa e ampla abrangência, amplo tanto no sentido dos diversos olhares das mais diversas áreas, quanto em tempo. Para se compreender os “museus de cidade”, é imprescindível ter em mente a complexidade existente em cada um dos termos que o compõem: “museu” e “cidade”. A origem dos museus remonta à Antiguidade grega, ao “mouseion” de Alexandria, ou seja, ao “templo das musas”, que era ao mesmo tempo uma instituição de pesquisa. Sua preocupação era com o saber enciclopédico, com os estudos científicos, artísticos e literários (SUANO, 1986). De acordo com Letícia Julião, o termo foi pouco usado durante a Idade Média, reaparecendo no séc. XV, com a difusão do colecionismo (JULIÃO, 2006). Originalmente destinadas à fruição única de seus proprietários e convidados, o acesso público foi sendo ampliado e permitido de acordo com as funções que os museus passavam a agregar e os objetivos de seus proprietários, responsáveis ou até mesmo do governo e seus dirigentes. O acesso só se abriria realmente com o movimento revolucionário de fins do século XVIII, tornando os museus e as coleções públicas de fato (SUANO, Op.cit.). Os museus foram ao longo dos séculos se multiplicando, ora assumindo feições mais cientificas, ora mais históricas. E por vezes se viu questionado pela sociedade que passava a se modificar mais rapidamente. O fato é que assumiram um papel de destaque na sociedade, e com isso sua organização e trabalhos foram sendo estudados e sistematizados. Surgem 93 especialmente no século XX associações e organizações promovendo encontros, discussões e publicações sobre o assunto. Uma dessas organizações é o Office International de Musées (OIM), criado em 1926. Mas a organização que mais irá se destacar nos estudos da área é o Conselho Internacional de Museus (ICOM), criado em 1946 dentro dos quadros da Unesco. Por ser uma organização internacional, o ICOM permitiu a reunião de especialistas de diversos países, contribuindo para a discussão sobre diferentes assuntos ligados aos museus. Em especial, fornecendo definições e/ou especificações sobre os temos “museu”, “museologia” e “museografia”. O alargamento e o maior entendimento desses termos dá-se progressivamente ao longo do século XX, estendendo-se para o século XXI, e pode-se dizer que influenciam-se mutuamente. Aos poucos a Museologia foi sendo compreendida como “ciência do museu”, distinguindo-se da “museografia”, que seria o conjunto de técnicas (DESVALLÈS, 1997). Conforme o campo da Museologia se desenvolve, amplia seu escopo e define-se, identificando seus métodos, procedimentos e seu objeto de estudo, ela contribui para com as modificações do siginificado de “museu”. Essa relação – e a própria Museologia – se fortalece a partir da criação do Comitê Internacional para Museologia (ICOFOM / ICOM), em 1977. O que não significa que antes não se pensasse o “museu” e sua definição, nem que já não se falasse de “museologia” e “museografia”. Os termos porém ainda não possuíam delimitações concretas, e persistia a confusão e variedade de usos, os quais foram aos poucos sendo alcançados. A apreensão do termo museu hoje pode ser analisada seguindo a linha de diferentes autores e pesquisadores, porém é inegável a afirmação de que atualmente a noção de museu se expandiu, o que possibilita diversas interações entre o homem e o seu meio. 4. Por um Entendimento do Termo “Museu de Cidade”: a cidade como objeto museológico 4.1 Compreendendo o objeto: um olhar sobre as cidades Para chegarmos a uma concepção do termo “museu de cidade”, sobre a qual orientamos nossas reflexões ao longo de nossa pesquisa, é preciso conhecer o objeto sobre o qual se debruçam tais museus. Mesmo utilizando abordagens diferentes, tipologia diversa de acervo ou maneiras tradicionais ou inovadoras de exposição, uma característica é comum aos museus que assim 94 se denominam, e pode ser encontrada no próprio nome das instituições: todas são, de uma forma ou de outra, sobre cidades, qualquer que seja a cidade. Cidade não é uma palavra de um único conceito, modo de ser e de se constituir. Ao longo da História diferentes modos de ser e de fazer uma cidade foram imprimidos. Elas tomaram diferentes faces e modos de se organizar, produziram diferentes efeitos históricos, sociais e culturais. As cidades podem se constituir ou ser produzidas, nisto elas se produzem segundo narrativas, processos, expectativas e sentimentos distintos e plurais. Não existe uma definição clara e precisa de “cidade”. A natureza deste fenômeno impossibilita uma única concepção. Por conta da inexistência deste conceito muitos são os seus usos, as formas de analisá-la e o número de estudiosos que se dedicaram a pensá-la (e por vezes, transformálas), entre eles urbanólogos, geógrafos, sociólogos e historiadores. Utilizamos em nossa pesquisa as concepções do geógrafo Isaac Buzo Sanchez6, do historiador José d’Assunção Barros (2012) e do jornalista, crítico, acadêmico e intelectual americano Lewis Mumford (1961), além de explicitarmos que mesmo quando são utilizados os mesmos critérios para definições (geralmente administrativos e quantitativos), os resultados são diversos e variam de país para país. Portanto, antes de adentrar no estudo específico sobre estes museus, devemos pensar um pouco sobre as cidades, e assim possibilitar a ampliação de nosso entendimento acerca das idéias e decisões que norteiam as atividades desenvolvidas nos museus de cidade, visto que são influenciadas pela compreensão que cada museu tem de Cidade. Independentemente das diferentes definições existentes para “cidade”, podemos considerá-las como um agrupamento de pessoas em busca de uma maneira de viver que supra suas carências e necessidades. As cidades são assim, em sua origem, fruto da capacidade criativa do homem em busca de uma forma de sobrevivência de acordo com suas necessidades e imposições do meio. Portanto, se quisermos analisar a cidade, ou o espaço urbano, devemos contar com a presença de multidões de anônimos submetidos a um regime social e simbólico em que a hierarquia social, a pluralidade e a necessidade da convivência passam a orientar comportamentos. Tendo em vista as diversas e amplas formas de se compreender o fenômeno, torna-se mais claro a dimensão da complexidade ao se pretender abordar a cidade em um museu.                                                                                                                         6 SANCHEZ, Isaac Buzo. Apuntes de geografía humana. Disponível em: http://ficus.pntic.mec.es/ibus0001/portada.html . Acesso em: 29 Abr. 2012. 95 4.2 Algumas considerações sobre Museus e suas relações com a cidade Entre tantos projetos existentes nas cidades, iremos nos ater especificamente, para fins desta pesquisa, nos Museus. Mesmo se debruçando sobre temas variados, o museu seria, ao longo da história do ocidente uma instituição predominantemente urbana, expressando uma cultura urbana e um modo de produção ideológico e estético centrados no urbano (MORAES, 2012.). Sendo as cidades centros de aglomeração populacional e de organização política de uma sociedade, os museus presentes neste meio acabam por estar sujeitos à projetos maiores, de alcance extenso, visando atingir à toda a população. Não é objetivo desta pesquisa analisar os diferentes museus existentes em meio urbano, apenas elucidar as singularidades agregadas por conta desse contexto. Lembremos que o foco será dado às manifestações do fenômeno Museu encontradas institucionalizadas em qualquer que seja o modelo conceitual (tradicional, de território, virtual)7, que tenham como objeto / tema de coleta, de pesquisa e de exposição, a cidade. Estamos lidando portanto com a análise da musealização da cidade. (MENSCH, 2011; CURY, 2005; GUARNIERI, 1990). O processo de musealização está relacionado à mudança de contexto (original) para o contexto museológico. Nesse movimento de mudança o objeto perde sua função utilitária e são re-significados no contexto museológico. Esse dado processo tem início quando o objeto é selecionado em seu contexto e se completa quando é comunicado por meio de exposições. Deve ser salientado por fim que a musealização não é um processo neutro, ele é permeado por questões políticas, ideológicas, subjetivas, arbitrárias e atribuição de valores. Procuramos analisar as fontes sobre museus de cidade pensando sempre nas formas encontradas pelos diversos museus para se musealizar a cidade. 4.3 A velocidade das mudanças e a vontade de musealizar no contexto urbano Os estudos sobre a memória na era da chamada Alta Modernidade 8 têm crescido numerosamente. Dentre seus estudiosos um ponto é debatido em comum: a rapidez com que as mudanças ocorrem, levando assim a consideráveis consequências. Giddens9 e Huyssen10 são referências nesse campo.                                                                                                                         7 Anotações de aula coletadas durante a disciplina de Teoria e Metodologia da Museologia, ministrada pelos professores Tereza Scheiner e Marcio Rangel – 1º semestre 2011. 8 Conceito utilizado por A. Giddens em: GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 9 GIDDENS, Anthony.Op. Cit.; 96 Uma dessas consequências pode ser apontada no fato de que a sociedade ocidental vive um momento em que se preocupa com a memória, construindo museus ou lugares de memória. "Não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós representamos nossos papéis neste processo"11. A frase diz respeito ao momento atual da sociedade ocidental que teme o esquecimento. Com o medo do esquecimento, vários grupos clamam pela preservação de sua memória, e é preciso sublinhar que este é um campo de batalhas, onde há seleção, descarte e exclusão. Paradoxalmente, o índice de visitação nos museus ainda é baixo no caso brasileiro.12 Ainda assim, continuamos a encontrar hoje diversos e variados museus no ambiente urbano. Observando os resultados de pesquisa realizada pelo IBRAM13 recentemente, constata-se que a quantidade de museus brasileiros varia de acordo com a distribuição geográfica dos municípios pelo território, e de acordo com a concentração de renda das regiões. Logo, maior densidade populacional representa mais museus. Tendo em vista esse cenário, cabe, portanto, levantar alguns questionamentos: Qual o papel de um Museu no mundo contemporâneo? Como ele pode vir a ser de fato algo que contribua para o melhoramento da sociedade? 4.4 Novos questionamentos sobre os museus de cidade Algumas questões se levantam, tendo em vista a complexidade e diversidade de significados e apreensões do fenômeno urbano: como este “objeto” pode ser englobado e tratado por um museu? Do que seria composto seu acervo? Como dar conta da mutabilidade e movimentação da cidade? Por que um museu de cidade? Que importância, ou qual seria seu papel na sociedade atual? Assim como o seu objeto, “Museu de Cidade” também não é uma idéia unívoca ou consensual. Não possui um modelo único que se reproduz em diferentes contextos ou conjunturas. Suas origens estão atreladas às “Historical Societies” (SANDWEISS, 2008), comuns principalmente nos Estados Unidos até hoje, os quais podemos comparar aos Institutos Históricos e Geográficos brasileiros; Grewcock (2006) porém aponta como                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         10 HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória – arquitetura, monumentos e mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. 11 Idem, p. 15 12 MACIEL, Nahima. Museus fazem esforço para atrair visitantes. In: Correio Braziliense. 16 de julho de 2010. Disponível em: http://www.correioweb.com.br/euestudante/noticias.php?id=12539 Acessado em 04/04/2012 13 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Museus em Números. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. 97 antecedentes os “Museus Sociais” e também as Exposições Internacionais por serem lugares onde já se pensava a questão urbana. A primeira grande onda destes museus se deu nas décadas iniciais do século XX (JOHNSON, 1995). São desse período o Museu da Cidade de Nova York (1923) e também o Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro (1934). Segundo Ian Jones (2008), os museus de cidade têm sido guardiões dos ‘tesouros’ da cidade, museus ecléticos da história da cidade e do colecionismo de indivíduos, evitam o passado recente e certamente o futuro das cidades. Porém, informa que tem havido uma crescente mudança no modo de enxergar estes museus: “The city museum is increasingly focusing on the city itself. The city has become the artifact”. (Idem, p.5) 14 Tais museus tiveram suas discussões ampliadas, em conjunto e em nível internacional, especialmente a partir da década de 90, com a realização de encontros e criação de grupos interessados no debate do tema, como veremos a seguir. Diretores e demais envolvidos nos diversos museus de cidade, ao verem-se responsáveis por uma instituição cujo tema representado – a cidade – crescia e modificava-se rapidamente, constataram a necessidade de se repensar o museu (idem). Em nosso estudo, observamos três importantes movimentos: Em 1993, ocorreu no Museu de Londres um simpósio internacional sobre museus de cidade, intitulado “Reflecting Cities”, o qual daria origem à Associação Internacional de Museus de Cidade (International Association of City Museums), propiciando os primeiros encontros para debate do tema.15 Sendo frutos do trabalho desenvolvido especialmente por Nichola Johnson, então responsável pelo Departamento de História e Coleções da Londres Moderna, no Museu de Londres, o caminho se abria para uma nova mentalidade que se formava. No Brasil, em 2003 foi realizado pelo Museu Histórico Nacional (MHN) o Seminário Internacional “Museus & Cidades” (SANTOS; KESSEL; GUIMARAENS, 2004), no qual foram discutidas as relações que os diversos museus em meio urbano podem ter com a cidade que os abriga. No entanto a maioria dos palestrantes enfatizaram aspectos arquitetônicos de museus, e também a relação edifício-cidade, patrimônios no meio urbano, o papel dos equipamentos culturais na revitalização urbana e ainda a monumentalidade a céu aberto das cidades, salvo as apresentações de Ulpiano Bezerra de Meneses e de Afonso Carlos Marques dos Santos. Estes enfocaram a cidade como objeto museológico. Em 2005 a discussão sobre museus de cidade foi levada para o âmbito do Conselho Internacional de Museus (ICOM), com a criação do Comitê Internacional para Coleções e                                                                                                                         14 “O museu de cidade está se focalizando cada vez mais a própria cidade. A cidade tem se tornado o artefato”(Tradução nossa) 15 As reuniões da International Association of City Museums foram sediadas em Barcelona (1995), Luxemburgo (2000) e Amsterdã (2005). 98 Atividades dos Museus de Cidade – CAMOC. Almejava-se assim oferecer uma plataforma para uma série de apresentações sobre museus de cidade em diferentes países.16 Desde então, o Comitê promove reuniões anuais, contando com a participação de representantes de diversos países – incluindo o Brasil – nas quais são discutidos temas variados relacionados aos museus de cidade. Suas reuniões foram sediadas em Moscou(2005), Boston(2006), Viena(2007), Seul(2008), Istambul(2009), Xangai(2010), Berlim(2011), Vancouver(2012) e Rio de Janeiro(2013), sendo que esta última ocorrerá juntamente com a Reunião Geral do ICOM. Tais reuniões têm contribuído não somente para a apresentação e discussão das diferentes realidades museais como também tem fornecido subsídio e material para publicações sobre o assunto. Dentre os pontos debatidos, destacamos o crescente desejo de incluir nas preocupações dos museus o presente e os possíveis futuros das cidades cujas histórias e passados são representados e interpretados pela instituição. Outro ponto que merece destaque é a aproximação cada vez maior do museu com a sociedade na qual se insere, buscando contribuir para a melhoria de vida desta, especialmente na promoção da tolerância e respeito às diversas culturas que coexistem no ambiente urbano – ou ainda mesmo como se perguntou Robert Archibald: “Parfois je me démande même ce qu’il faudrait faire pour que chacun prenne tout simplement conscience de l’existance de ses voisins” (ARCHIBALD, 2006, p.7). 17 Resumidamente, um Museu de Cidade é uma instituição que tem como objeto museológico a cidade. É, portanto, um museu sobre a cidade. Este objeto pode ser abordado de inúmeras maneiras, mas vêm se defendendo que não seja apenas trabalhada a história da cidade, o seu passado, mas que seja abrangido também o seu presente e possíveis futuros. Através da utilização do espaço do museu como um fórum de debates, aberto, neutro e democrático, busca-se discutir questões atuais concernentes à vida na cidade, aos seus problemas, visando contribuir para o entendimento da urbe e, consequentemente, para a construção de um melhor futuro, agindo direta ou indiretamente no planejamento e desenvolvimento urbano e na construção da paz a partir da compreensão e defesa do multiculturalismo presente nas cidades. 5. Juiz de Fora e seu “Museu de Cidade” A história da cidade remonta ao século XVIII com a abertura do “Caminho Novo”, ao longo da qual se originaram diversas fazendas (FERENZINI, 2010.). Segundo Sonia Miranda,                                                                                                                         16 CAMOC. CAMOC’s Conference report – Moscow 2005. Disponível em: http://camoc.icom.museum/conferences/conference_reports.php 17 Às vezes me pergunto o que seria necessário fazer para que todos apenas tomassem consciência da existência de seus vizinhos”. (tradução nossa) 99 o novo caminho facilitou o acesso dos comerciantes vindos da cidade portuária para o centro do estado, tornando a região em um importante entreposto de abastecimento das tropas, com suas roças e pequenas vendas (MIRANDA, 1990). Este trabalho culminou no enriquecimento dos proprietários de terras e forneceu a base para que grandes empreendedores se destacassem na cidade, entre eles o engenheiro Fernando Halfeld, o Barão de Bertioga e Mariano Procópio Ferreira Lage, sendo assim considerados seus fundadores. (Idem) Mariano Procópio foi também o principal responsável pela vinda de imigrantes alemães para a cidade, os quais comporiam as forças de trabalho na construção da primeira estrada macadamizada da América Latina, a Estrada União e Indústria (ligando Juiz de Fora à Petrópolis) (Idem). Citando Sônia Miranda, “não transcorreu muito tempo entre a dinamização do núcleo urbano ao lado da expansão cafeeira e a definição de um status urbano” (MIRANDA, p.91), transformando-se assim no “principal centro atrativo de população da Zona da Mata e de outras regiões” (MIRANDA, p. 99). A cidade viria pouco tempo mais tarde a ser palco de investimentos na área industrial, fator que dinamizou a sua infra-estrutura (MIRANDA, Op. Cit). Os imigrantes, que vieram em grande número para cidade, atraídos por seu desenvolvimento, também compõem o cenário. Não apenas os alemães, como já citados anteriormente, mas italianos, portugueses, sírios e libaneses se estabeleceram na região. Tiveram de se adaptar à nova realidade, ao novo mundo, mas também trouxeram consigo costumes, saberes e tradições que se mesclaram aos da cidade. Foi grande a influência destes imigrantes nas artes, no comércio, na construção civil, na religião, etc. O crescimento da economia, a dinamização dos transportes, a difusão das artes e cultura fizeram com que a cidade fosse chamada de “Manchester Mineira” e “Princesa de Minas”, sendo esse período conhecido como “Belle Époque Mineira”. ... até a década de 20, Juiz de Fora é apontada como o centro cultural do Estado, seja pelo seu número de jornais e teatros, seja pela expressão de suas escolas e instituições culturais. (CHRISTO, 1994, p.1) Exemplo do período é a data de inauguração do Museu Mariano Procópio, de 1915, com sua posterior doação ao município em 193618. Com um dos mais significativos acervos artísticos, históricos e de ciências naturais do país, o Museu Mariano Procópio é um marco do pioneirismo da cidade e da obstinação de seu fundador, Alfredo Ferreira Lage, sendo a instituição símbolo da memória histórica do Brasil, de Minas e de Juiz de Fora.                                                                                                                         18 Em 1915 Alfredo F. Lage transforma o prédio da Villa em Museu. Em 1922 ele é inaugurado e aberto à população geral e em 1936 doado à municipalidade. 100 Uma das interpretações existentes para o desenvolvimento da cultura é a de Zaghetto, segundo o qual a história da cidade pode ser dividida em “antes” e “depois” da administração de Itamar Franco como Prefeito (1967-1970) (ZAGHETTO, 2012). Sua administração fez com que a cidade mudasse, e tornou o campo fértil e propício para, anos mais tarde, a administração “visionária” de Mello Reis (1977-1982). Data dessa época o tombamento dos imóveis da Fábrica Bernardo Mascarenhas, castelinho da Cia. Mineira de Eletricidade, Grupos Centrais e da Prefeitura Municipal. Foi também nesta época que um grande projeto cultural teve lugar em Juiz de Fora: A criação da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (FUNALFA) em 1978, responsável pela política cultural do município. É a primeira fundação municipal responsável por cultura a ser criada no Estado de Minas Gerais, substituindo a Secretaria Municipal de Cultura e a de Turismo. Nesse contexto foi criado o “Museu de Juiz de Fora”, mais conhecido como “Museu da Cidade”, com a finalidade de “guarda do acervo e memória da cidade”,19 ficando ao encargo administrativo da Funalfa. Funcionaria no saguão térreo da antiga Prefeitura, um ponto central na cidade. O Museu da Cidade foi inaugurado no final do mandato de Mello Reis, como integrante do também novo Centro Cultural (o qual abrigaria juntamente a Pinacoteca Municipal e a Biblioteca Municipal, e Museu da Imagem e do Som). Além do Centro Cultural, foi inaugurado na época o Museu do Bonde e a reabertura do Museu Mariano Procópio, fechado para reformas. (ambos ao encargo da Funalfa). Segundo Zaghetto, que foi o primeiro superintendente da Funalfa, o Museu da Cidade seria de grande importância “na medida em que vai reunir numa grande unidade tudo aquilo que é específico da história e da arte de Juiz de Fora”20, além de abrir espaço para o Museu Mariano Procópio, cujas características são outras, e não a de ser um museu sobre a cidade. Ainda segundo Zaghetto, o museu seria de importância por “levantar e fixar a memória sociocultural de Juiz de Fora” e servir aos pesquisadores “numa cidade de bibliografia pobre”.21 O acervo de tal museu seria composto por peças provenientes do Museu Mariano Procópio, além de doações que eram solicitadas à população. No entanto, com a mudança da administração municipal, e a consequente troca de superintendente da Funalfa, o que se observou foi a perda da preocupação com a história e memória da cidade pelo Museu da Cidade. Este passou a abrigar apenas exposições de arte esporádicas, seja de artistas locais como de fora, e até mesmo essa função foi sendo abandonada com o tempo.                                                                                                                         19 Decreto 2850, de 31 de dezembro de 1982. Diário Mercantil, 06/01/1983, p. 5 21 idem 20 101 Entretanto, a vontade e a necessidade de um museu sobre a cidade ficou no imaginário dos juizforanos, tanto que em 1994 tem início um Movimento pela Reativação do Museu da Cidade, encabeçado pelo artista plástico Eduardo Leão, contando com o apoio de grandes nomes na cena cultural local. Mesmo assim, esse movimento não obteve frutos, e percebe-se portanto o desconhecimento e despreparo dos governantes locais para lidar com a cultura e com museus, não conhecendo – ou não se interessando – pelos benefícios que estes trazem para a sociedade. Este dado se mostra como motivador para compreender e estudar o papel que os museus possuem nas cidades em que se inserem, e os que poderiam possuir, visando melhoria da vida em comunidade no espaço urbano – e preocupamo-nos especialmente com o espaço de Juiz de Fora. 6. Referências ARCHIBALD, Robert. Liéux réels dans um monde virtuel. In: UNESCO. Museum International, n.231, 2006. p.7-15 BARROS, José D’Assunção. Cidade e História. Petropólis: Vozes, 2012 BRASIL. Decreto Nº. 2850, de 31 de dezembro de 1982. BRASIL. Diário Mercantil, 06/01/1983. CAMOC. CAMOC’s Conference report – Moscow http://camoc.icom.museum/conferences/conference_reports.php. 2005. Disponível em: CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. Europa dos Pobres: a belle-époque mineira. Juiz de Fora: EDUFJF, 1994. CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo. Annablume. 2005. DESVALLÈS, André. Thesaurus. ICOFOM, 1997. FERENZINI, Valéria. A “Questão São Roque”: Devoção e Conflito. SP: Annablume / Juiz de Fora: Prefeitura de Juiz de Fora, 2010. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002. GREWCOCK, Duncan. Musées de Ville et avenirs urbains: une nouvelle politique d’urbanisme et de nouveaux défis pour les musées de ville. Museum International, n.231, p. 35-46, 2006. GUARNIERI, Waldisa Russio. 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O IAUC foi extinto em 1969 dando origem ao atual Departamento de Ciências Sociais e Filosofia e seu acervo, depois de passar por várias sedes, foi incorporado à Casa de José de Alencar (CJA), equipamento cultural que também pertence à UFC. Palavras-chave: Museu, coleção, Antropologia, Folclore. Resumen Análisis de la Colección Luisa Ramos; colleccionado por la profesora y esposa del antropólogo y médico alagoano, Arthur Ramos, en las primeras décadas del siglo XX. Fue adquirida por la entonces Universidade do Ceará (UC), hoy Universidade Federal do Ceará (UFC) en 1957 para componer la colección museográfica del Instituto de Antropología (IAUC) de esa institución. La colección es parte de la colección de la Casa de José de Alencar, equipamiento cultural de UFC. Palabra-clave: Colección, Museo, Antropología, Folklore. Abstract This article is the beginning of the analysis of Luiza Ramos Collection. It was formed by the teacher and wife of the anthropologist and physician alagoano, Arthur Ramos, in the first decades of the twentieth century and acquired by the then Universidade do Ceará (UC) atual Universidade Federal do Ceará (UFC) in 1957 to compose the museum collection of the Institute of Anthropology (IAUC) of that institution. The IAUC was abolished in 1969 giving rise to the current Department of Social Sciences and Philosophy and its collection, after passing through various venues, the collection is now shown at Casa de José de Alencar (CJA), cultural facility that also belongs to the UFC. Keywords: Museum, collection, Anthropology, Folklore. 1 Márcia Pereira de Oliveira é museóloga formada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro em 2002. Desde 2004 é museóloga da Universidade Federal do Ceará onde é responsável pelo acervo da Casa de José de Alencar. Em 2011 ingressou na Pós-graduação da UNIRIO. 2 Nilson Alves de Moraes é sociólogo e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 104 1. Introdução Em 2004 fui aprovada em concurso público para integrar o quadro de servidores da Universidade Federal do Ceará para a função de museóloga da instituição. Vinculada ao Instituto de Cultura e Arte (ICA) passei a trabalhar no Museu de Arte (MAUC). No mesmo ano fui convidada a participar do projeto de reestruturação da Casa de José de Alencar. Minha participação no projeto era centrada no levantamento de dados acerca da CJA e no mapeamento e inventário das coleções do Museu Arthur Ramos (MAR). Em minha primeira visita fui levada à uma sala na qual ficavam as peças do museu e a partir de então iniciei a higienização e o acondicionamento das peças dentro dos limites possíveis naquela época. A etapa seguinte consistia na coleta de documentos como fichas, relatórios, anotações e fotografias entre outros que possibilitassem mapear a origem de cada peça e a formação de cada coleção. Contando apenas com a ajuda de uma colega, também servidora da UFC, realizamos praticamente todo o trabalho de higienização e acondicionamento, mas para uma coleta mais elaborada e o cruzamento dos dados foi necessário contar com a ajuda de, pelo menos, mais dois bolsistas. Atualmente a CJA mantém seis bolsistas que trabalham diretamente com as coleções, não apenas do acervo do museu, mas com os documentos levantados durante o processo; documentos que foram higienizados e catalogados e que, atualmente, estão disponíveis para a pesquisa na CJA e, em breve, serão digitalizados e disponibilizados por meio digital assim como todo o acervo. Foi durante este longo processo que tive contato com a Coleção Luíza Ramos. Composta por mais de três mil amostras de rendas de bilros, mecânica e de agulha, a coleção, também conta com algumas peças como toalhas de mesa em filé, peças com amostras de bordado, tricot, crochet, almofadas, bilros e espinhos. Peças confeccionadas em vários estados brasileiros e e em outros países e coletadas por Luíza Ramos e seu marido, o antropólogo e médico Arthur Ramos, para o estudo acerca da produção das rendas, notadamente, as rendas de bilros e a elaboração da publicação intitulada Renda de bilros e sua aculturação no Brasil de 1948. Com a publicação, Luíza e seu marido realizaram o primeiro estudo sócio-antropólogico- cultural acerca deste tipo de artesanato no Brasil. Em 1957 Antônio Martins Filho, fundador e primeiro Reitor da então Universidade do Ceará (UC), criou o Serviço de Antropologia da Universidade do Ceará (SAUC). Em 1960 o SAUC foi elevado à categoria de Instituto (IAUC). Idealizado e dirigido inicialmente pelo engenheiro Thomaz Pompeu Sobrinho3 o IAUC tinha como meta principal o estudo da 3 Engenheiro do Departamento Nacional de Obras contra as secas (DNOCS). Fundador e primeiro diretor do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará (IAUC). 105 cultura brasileira, especialmente a nordestina sendo “um equipamento voltado para a pesquisa global das condições sócio-culturais do Ceará” (OLIVEIRA, 2010, p. 34). No mesmo ano em que criou o SAUC, Martins Filho providenciou junto à família do renomado médico psiquiatra e antropólogo alagoano, Arthur Ramos, as coleções etnográficas formadas a partir de seus estudos acerca da cultura negra e das religiões afrobrasileiras e as rendas coletadas pela esposa do intelectual, Luíza. Em 1969 o IAUC foi extinto e sua extinção deu origem ao Departamento de Ciências Sociais e Filosofia. O acervo adquirido para o museu antropológico passou para o Departamento e lá permaneceu até o ano de 1981 quando foi transferido para a Casa de José de Alencar, onde se encontra até hoje. Tomando como ponto de partida a análise de K. Pomian (1997), ao afirmar que coleção é “um conjunto de objetos que expressam narrativas e não são coletados ao acaso”. Dotados de intencionalidade e significado, os objetos da coleção são suportes materiais da fala de quem os coletou. Objetos que, ao serem retirados do cotidiano, reunidos e apresentados para a apreciação pública, perdem seu valor de uso original e recebem um novo valor, passando a ser o que o autor classificou como “semióforos”: objetos mediadores entre o tangível e o intangível, o visível e o invisível. Procurou-se interpretar o lugar dessa coleção na formação de um discurso acerca da região Nordeste. Nas palavras de Durval Muniz de Albuquerque Júnior o Nordeste é definido como uma invenção reelaborada pelos intelectuais a partir da década de vinte do século passado. A nova região não tinha mais como pressuposto o paradigma naturalista dos séculos anteriores onde as diferenças entre os diversos espaços do país eram pensadas a partir da natureza, do meio e da raça, mas em um olhar regionalista resultado de um novo “olhar em relação ao espaço, uma nova sensibilidade social em relação a nação”, que trouxeram a necessidade de pensar o questões como a identidade nacional, o caráter nacional, além de uma cultura nacional que fosse capaz de integrar os diferentes espaços do país. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009). 2. Tecendo uma Imagem da Região Nordeste: a coleção e seus significados Em 2012 ingressei no curso de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (PPGPMUS) UNIRIO/MAST. Cursando três disciplinas do programa que são ministradas no MAST, pelo menos três vezes na semana tenho que estar no referido museu. Como a instituição fica no bairro de São Cristóvão e no mesmo bairro está a feira de São Cristóvão 4, 4 Funciona no bairro de São Cristóvão há mais de cinquenta anos. Até 2003 funcionou nas ruas do bairro, 106 tenho que passar pela feira que até 2003 funcionava nas ruas do bairro quando foi transferida para dentro do Pavilhão de São Cristóvão5, quando recebeu o nome de Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, também conhecida como, “feira dos nordestinos” ou de forma pejorativa “feira dos paraíbas”. Durante o trajeto ou quando circulo pela parte externa do museu, é comum parar e observar as imagens que compõem a fachada do Pavilhão de São Cristóvão fazendo uma leitura particular das referidas imagens que foram escolhidas para mostrar aos moradores, frequentadores do bairro e turistas, nacionais e estrangeiros, que ali funciona um Centro de “Tradições Nordestinas”, marcando assim a identidade do local. Embora alguns apontem para a descaracterização da feira com a venda de produtos que não são nordestinos ou a perda de sua autenticidade com a realocação do espaço para dentro do pavilhão, gostaria de frisar que esses não são aspectos relevantes, pois não estou analisando a feira, mas as imagens que a representam na minha leitura, a partir das minhas observações. O Centro conta com dois acessos situados em lados opostos do pavilhão. De um lado está a entrada “Luiz Gonzaga”. Deste lado há uma estátua do “Rei do Baião” em cima do mapa do Brasil, trajando sua indumentária “típica” com sua sanfona e cercado por mandacarús e um banco. No alto da entrada existem três painéis que se sobrepõem formando uma imagem com mais símbolos emblemáticos. Em primeiro plano os bonecos de barro crú e a já referida sanfona. A seguir Mestre Vitalino, bonecos de barro e ao fundo um grande painel com vários tipos de rendas. Em diagonal baners estreitos com outras imagens que remetem ao Nordeste como o caju, castanhas, amêndoas, fitas do Senhor do Bonfim, chapéu de couro em forma de meia-lua entre outros símbolos. Na saída oposta estão uma estátua do padre Cícero e acima da entrada outros painéis, cujas únicas diferenças são a imagem de Patativa do Assaré e da viola. Os demais símbolos se repetem e, mais uma vez, é possível perceber a presença quase que imponente da rendas, que enfeitam a parede quase de ponta a ponta. Trabalhando, há quase oito anos, em um museu que possui uma das maiores coleções de rendas do país, que fica no Estado do Ceará; um dos estados da região Nordeste há muito tempo conhecido pela produção do referido artesanato, é comum ser questionada quanto a origem das rendas e, ao responder que sua origem é incerta, mas que tudo indica que nasceu na Europa há mais de setecentos anos e que chegou ao Brasil com as portuguesas entre os séculos XVI e XVII, vejo meu interlocutor surpreso com a resposta, depoisdesta data, o então Prefeito César Maia determinou que passasse a funcionar dentro do Pavilhão de São Cristóvão, passando a ser denomina Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas. 5 Inaugurado em 1956 no Campo de São Cristóvão, o Pavilhão de São Cristóvão, projeto do arquiteto Sérgio Bernardes, era o maior centro de exposições da cidade até a inauguração do Rio Centro em 1977. O Pavilhão ficou por muitos anos desativado e ia ser demolido. 107 pois em grande parte, as pessoas acreditam que a renda surgiu no Nordeste e mesmo os nordestinos surpreendem-se com estas afirmações. Unindo minhas observações à bibliografia pesquisada até o momento compreendo que a eleição de determinados elementos como representantes da cultura local ou nacional faz parte de um processo complexo e historicamente datado. Este processo envolve diversos personagens com poder político ou representação social. No caso do Brasil, foram os modernistas da década de 1920 que, imbuídos de um forte credo nacionalista, assumiram a tarefa de mapear, conhecer e eleger os ícones nacionais, educando o povo e instituindo as imagens que nos representam até hoje. Segundo Mônica Velloso a proclamação da independência do Brasil e o processo de construção da jovem nação brasileira colocaram os intelectuais na condição de guias inspirados pela “idéia nacional”. Os escritores românticos acreditavam ter a missão sagrada de criar um temário nacionalista destinado a auto-valorização do país. Durante a passagem do regime imperial para a República, os “homens de letras” aparecem como “mosqueteiros” ao se auto-atribuírem o papel de condutores do processo de modernização e civilização da sociedade brasileira. Lutando contra a incapacidade técnica e administrativa dos políticos, buscavam remodelar o Estado através do instrumental cientificista (VELLOSO, 1987). Velloso destaca que na “proclamação da República, na Revolução de 30 e no Estado Novo, as elites intelectuais marcaram sua presença no cenário político, defendendo o direito de interferirem no processo de organização nacional” (1987, p. 2). O mito cientificista e o ideal cosmopolita de desenvolvimento, a partir da década de 1920, cedem lugar completo ao credo nacionalista. Consolidou-se como o centro das atenções dos intelectuais a busca de nossas raízes e o ideal de brasilidade. É com o movimento modernista que os intelectuais pretendem conhecer a realidade brasileira através da arte e assim apresentar alternativas para o desenvolvimento da nação. O papel do governo centrava-se na elaboração de políticas de incentivo à cultura e aos intelectuais cabia “educar” a coletividade de acordo com os ideais doutrinários do regime. Na década de 1930 consolidou-se a união de intelectuais e políticos para a elaboração de um “projeto político pedagógico” destinado a popularizar o Estado Novo, fato marcado pela entrada de Getúlio Vargas na Academia Brasileira de Letras, que reforçou um dos principais postulados do regime: “A união entre o homem de pensamento e o homem de ação” (VELLOSO, 1987, p. 12). Cada vez mais as atuações do grupo intelectual são direcionados para o Estado, identificado como representação superior da ideia de nação. A sociedade civil é percebida como um corpo conflituoso, indefeso e fragmentado e somente o Estado seria o cérebro 108 capaz de coordenar todo o organismo social. É no período getulista, especialmente entre 1937-1945, que a organização social, coordenada pelo aparelho estatal, ganha contornos definidos. As elites intelectuais passam a situar suas tarefas nos domínios estatais e verifica-se, então, a união dessas elites e dos políticos, “que se pretendem as verdadeiras expressões de uma política superior” (VELLOSO, 1987, p. 4). Foi construída uma nova concepção de intelectual que diluiu a fronteira entre o “homem de letras” e o “homem político”. Ambos deveriam educar as classes “primitivas” ou “atrasadas” e elevá-las às etapas mais evoluídas da “civilização”, o que só poderia ser conseguido por uma revolução educacional que agisse em profundidade, o que Arthur Ramos chamou de “revolução 'vertical' e intersticial,' que desça aos degraus remotos do inconsciente collectivo e solte as amarras pre-logicas a que se acha acorrentado” (RAMOS; RAMOS, 1948, p. 22). Nesse contexto são lançadas as diretrizes para a construção do imaginário de nação elaborado a partir da eleição do chamado “patrimônio histórico e artístico nacional”. Mário de Andrade, com suas “viagens de descoberta do Brasil”, é o intelectual chave nos debates sobre o patrimônio (NOGUEIRA, 2005). As pesquisas de Mário de Andrade acerca dos temas “cultura” e “folclore popular”, iniciadas em 1924, demonstram a preocupação em entender e conhecer a realidade brasileira. Segundo Nogueira (2005), a relação com o passado, a apropriação ou a a invenção das tradições são estratégias criadas pelo Estado na criação da noção de continuidade. A materialidade dos bens reforça esse estratagema e contribui para a apreensão do sentimento de pertencimento do indivíduo a nação brasileira. Em seus estudos de folclore, Mário de Andrade considerava o Norte e o Nordeste como locus da tradição e da cultura popular. “O popular é o autêntico e o original que está associado ao natural, longe da cidade que desumaniza e ameaça” (NOGUEIRA, 2005, p. 115). Neste contexto cabe ao intelectual mapear, proteger e auxiliar o governo na elaboração de políticas patrimoniais. Para Durval Muniz os projetos modernistas passavam pela incorporação de diversos Brasis, que substituíssem o Brasil da elite afrancesada. O objetivo era superar o segmentário regionalista para a criação de um “todo brasileiro”, superando os diversos tipos regionais para a constituição de um “povo homogêneo na alma e no corpo”. Ao contrário do modernismo instituído na Europa, o nosso não significava um rompimento com a tradição, mas sua instituição. O “popular” era idealizado e associado ao campo. Nesse aspecto, Arthur Ramos afirma que é: 109 (...) um aspecto inconfundível da folk-cultura migrar das áreas rurais e suburbanas para a chamada 'civilização' da cidade. O traço cultural, então, se modifica, atrofiando-se e desaparecendo, ou se aperfeiçoando com os melhoramentos introduzidos pela civilização técnica (RAMOS; RAMOS, 1948, p. 70). De acordo com Brandão, Arthur Ramos compreendia o folclore como “uma divisão da Antropologia Cultural que estuda os aspectos da cultura de qualquer povo, que dizem respeito, entre outras questões, à literatura tradicional: mitos, contos, fábulas, advinhas, música e poesia, provérbios, sabedoria tradicional e anônima” (2006, p. 30). Mas na época de publicação de Renda de bilros e sua aculturação no Brasil, para o antropólogo competia aos estudiosos da Antropologia Cultural e do folk-lore um estudo “pormenorizado e comparativo” do artesanato “popular”, até então pouco analisado. Aos elementos do governo e aos membros das associações de assistência social cabia a assistência material aos artesãos e o seu aperfeiçoamento tecnológico, a fim de elevar os trabalhos populares do Brasil a “um nível de alta expressão artística” e, finalmente, o “estímulo aos cientistas que se debrução sôbre todas as formas de vida do homem no Brasil, no afã de educá-lo e compreendê-lo” (RAMOS; RAMOS 1948, p. 70-71). Na referida publicação, Arthur Ramos fez algumas considerações acerca do trabalho etnográfico desenvolvido por ele e sua esposa no esforço de valorizar o trabalho artesanal da renda e, ao mesmo tempo, mapear a situação econômica dos que viviam desse ofício. Até as décadas de 1930 e 1940, época em que o casal Ramos atuou, as pesquisas com o folclore e a produção artesanal tinham como objetivo principal, portanto, a inserção da chamada “cultura popular”6 na construção do imaginário nacional e a criação de um projeto político pedagógico que assegurasse o papel do Estado na condução da nação. Arthur Ramos nasceu no dia 7 de julho de 1903, filho do médico Dr. Manuel Ramos de Araújo Pereira e Dona Ana Ramos de Araújo Pereira, em Pilar, cidade da zona açucareira de Alagoas, à beira da lagoa Manguaba. Nas décadas 1920 e início de 1930 concluiu seus estudos em Medicina e começou, em Salvador, uma carreira que se tornaria sólida no Rio de Janeiro. Em Maceió participou de grupos literários e editou jornais. Campos (2004) informa que após a formatura na Faculdade de Medicina da Bahia, em 1926, Arthur Ramos tornou-se diretor da Biblioteca de Divulgação Científica, na Editora Civilização Brasileira, patrocinando publicações na área de Ciências Sociais, em especial as 6 Segundo Antônio Augusto Arantes em O que é cultura popular, um grande número de autores pensa a “cultura popular” como “folclore”, mas para alguns mais sofisticados, a cultura popular são manifestações da “cultura tradicional”, um resíduo da cultura “culta” de outras épocas. 110 obras de Nina Rodrigues. No final de 1934 escreveu os primeiros livros de sua autoria, que tinham como tema os problemas raciais. No ano seguinte começou a revisão dos escritos de Nina Rodrigues e passou a ocupar a cadeira de Psicologia Social da Universidade do Distrito Federal. Em 1935 casou-se com Luíza Gallet, viúva do maestro Luciano Gallet. Foi nomeado professor interino da cadeira de Antropologia e Etnologia (na qual tornar-se-ia catedrático em 1946, após concurso, com o recebimento do título de Doutor em Ciências Sociais). Em maio de 1938 inscreveu-se na Fundação Guggenheim que, até aquele momento, não oferecia bolsas para pesquisadores brasileiros. Apenas em 1940 Ramos consegue uma bolsa de pesquisa. Por intermédio de Donald Pierson foi convidado pelo diretor do Departamento de Sociologia da Lousiana State University, Thomas Lynn Smith, para dar cursos sobre relações raciais naquela Universidade, em 1939. Em 1941 retornou ao Rio de Janeiro e fundou a Sociedade de Antropologia Brasileira. Em 1949 ocupou o cargo de chefe do Departamento de Ciências Sociais da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), cargo no qual permaneceu até a sua morte em Paris, no dia 31 de outubro daquele mesmo ano. Quanto à Luíza Ramos, as poucas informações levantadas ao seu respeito estão ligadas as figuras de seu primeiro marido, o musicólogo e pesquisador Luciano Gallet, como também de Arthur Ramos, de quem foi colaboradora. Essas poucas referências são encontradas no texto de Dantas (2003). A autora informa que Luíza, uma paulista criada no Rio de Janeiro, nascida numa família de boa condição social, tornou-se pianista. Conheceu Arthur por meio de Mário de Andrade, em 1934. Na introdução do livro O negro brasileiro, publicado no referido ano, Ramos escreveu sobre aquela que viria a ser sua esposa: Dirijo aqui a expressão dos meus mais effusivos agradecimentos a todos aquelles que directa ou indirectamente collaboraram na feitura deste trabalho (...) a D. Luíza Gallet, estudiosa dos assumptos de folk-lore musical de origem negra, pelas muitas valorosas sugestões, dados bibliográphicos, que teve a gentileza de me fornecer (RAMOS, 1934, p. 24) Essa passagem, somada a análise dos documentos que pertenceram ao casal, hoje depositados na Casa José de Alencar (em Fortaleza), como cartas, telegramas, postais, rascunhos, fotografias, filmes, partituras musicais, programas de ópera, cadernos com lições de francês, revistas de moda do final do século XIX (escritas em inglês), manuscritos sobre rendas e bordados em francês e italiano entre outros, revelam uma mulher de educação esmerada, com domínio de línguas estrangeiras, sobretudo o francês. 111 Em 1935, pouco tempo depois do primeiro encontro, eles oficializaram um casamento que durou 15 anos. Durante todo esse tempo, Luiza auxiliou Arthur em todas as pesquisas por ele desenvolvidas. Segundo Dantas (2003), era ela a responsável pela organização dos arquivos, o levantamento da bibliografia, datilografia dos textos, transcrição de cantos para a pauta musical, realizando todo um eficiente trabalho de suporte à atividade intelectual do marido. Em vários de seus livros Arthur fez menção à contribuição de sua esposa. Os manuscritos de Luíza Ramos, que serviram de base para a produção do catálogo Renda de Bilros e sua aculturação no Brasil, em 1948, mostram que ela efetivamente participou da investigação, não ficando somente na condição de coadjuvante da pesquisa ou de mera auxiliar do marido, o renomado intelectual, como a biografia escrita por Dantas (2003) nos faz pensar. Após a morte prematura do médico e antropólogo alagoano, Luíza viveu por mais seis anos e sua coleção foi adquirida pela Universidade do Ceará dois anos depois, quando Antônio Martins Filho foi ao Rio de Janeiro para comprar, da família do antropólogo, parte do acervo de pesquisa do casal e parte da biblioteca de Arthur Ramos a fim de compor o Instituto de Antropologia da UC (Universidade do Ceará). Em 2009, a Casa de José de Alencar (CJA) foi tema de uma edição especial de A rede da renda, uma publicação independente, criada e mantida por um pesquisador deste tipo de artesanato. Meses antes, o responsável pela publicação, o Sr. Sinval Cardoso, procurou a CJA pedindo informações acerca de Luíza, pois sua intenção era homenageá-la. Ele disse que procurou em diversos museus e arquivos documentos sobre a colecionadora, mas não encontrou dados suficientes para uma publicação. Diante da afirmação de que não havia maiores dados sobre ela, o editor resolveu mudar o tema do número da revista para a Casa de José de Alencar. Na edição, dedicou duas páginas para homenagear Luíza. Parte desta homenagem, transcrevo a seguir: Luiza... Quem foi essa benfeitora da renda? Pouquíssimo se sabe, (...). De onde veio e para onde foi? Não seria ela a maior representante de todas essas rendeiras anônimas brasileiras que só ficaram para a história através de fotos? (…) Luíza de que? Luíza Anônima? Luíza do mundo? Luíza do Luciano? Luíza do Arthur? Luíza, que foi a sombra de dois homens. Quem sabe foi essa sua força, a força do amor (A rede da renda, 2009, p. 6). O despertar de Arthur Ramos para a pesquisa das rendas nasceu não apenas de um interesse acadêmico vinculado a inserção da chamada “cultura popular”, de forma disciplinada, no imaginário nacional e na construção de uma nação “moderna” e “civilizada” 112 sob os auspícios do Estado. Segundo Dantas (2003), esse interesse está relacionado também às suas lembranças da infância, ao seu casamento com Luíza e a preocupação em melhorar a vida das rendeiras. Arthur entrou em contato com as rendas ainda menino, tanto pela presença das rendeiras em Pilar, sua cidade natal, quanto pela fábrica de rendas mecânicas que seu pai criou na cidade. Segundo Dantas (2003), o pai do médico foi o responsável pela modernização da cidade, antecipando experiências que só mais tarde seriam tentadas em Petrópolis, Rio de Janeiro. A dificuldade em conseguir a matéria prima vinda da Europa provocou o fechamento da fábrica. Luíza Ramos, por sua vez, tornou-se colecionadora de rendas desde que recebeu de seus pais, Tereza de Araújo e Luiz Augusto de Araújo, as primeiras peças como presente, que mais tarde se tornariam parte da Coleção Luíza Ramos. Eram exemplares de rendas produzidas na Itália, no final do século XIX, e adquiridas pelos pais de Luíza para dar de presente às filhas (RAMOS; RAMOS, 1948, p. 5). O casamento com Arthur, portanto, uniu a paixão da colecionadora com o seu crescente interesse pelos estudos antropológicos. A coleção de rendas que surgiu como um hobbie começou a ganhar volume e status de coleção científica na medida em que várias amostras do artigo, dos artefatos utilizados para a sua produção e informações foram coletados diretamente pelo casal e depois por uma rede de informantes que os Ramos conseguiram tecer ao longo dos anos, em várias regiões do Brasil e do mundo (como França, China, Portugal e Itália). Todo o material foi analisado, dando corpo à publicação de Renda de Bilros e sua aculturação no Brasil: nota preliminar e roteiro de pesquisas, editado em 1948. Nessa data, a coleção tinha um número aproximado de mil peças (RAMOS; RAMOS, 1948, p. 3). O título já expressa que os autores sentiam ainda a necessidade de continuar as pesquisas e ampliar a coleta de material, mas a morte inesperada do antropólogo em 1949 cancelou os projetos do casal. A investigação consistia no levantamento das origens da renda na Europa, na expansão por outros continentes, sua entrada no Brasil a partir do século XVI e as transformações de acordo com a cultura regional. A pesquisa, segundo Arthur Ramos, foi desenvolvida pela esposa e a ele coube “imprimir uma diretriz antropológica a um traço de cultura, o que representa uma tentativa de tratamento científico à altura do interêsse recreativo e estético do assunto” (RAMOS; RAMOS, 1948, p. 3). Mesmo com toda a dedicação, o trabalho esbarrou em inúmeras dificuldades. Os objetivos do casal nem sempre eram compreendidos e os questionários ou não eram respondidos ou o eram de forma inadequada. Outros problemas eram a inexistência de bibliografia acerca do tema e ao contrário com o que acontecia com outros 113 tipos de manifestação cultural, a falta de apoio oficial, que os Ramos afirmavam ser comum em estudos como o da produção de rendas de bilros. Assim, eles trabalharam por conta própria e nos intervalos de outras tarefas. Os Ramos concluem seu estudo afirmando que a renda de bilros no Brasil “é um artesanato popular, uma folk-cultura de características inconfundíveis” (RAMOS; RAMOS, 1948, p.69) e assinalam que o estudo da sua difusão deverá ser completado com o da sua compreensão funcional. Trata-se de um traço cultural que só poderá ser investigado e compreendido no contexto geral da cultura da qual faz parte. A obra pioneira de Arthur e Luíza demonstra o interesse dos autores em analisar todos os itens envolvidos na produção da renda de bilros, seu significado, sua importância e seu papel na geração de emprego e renda das comunidades fora dos padrões da sociedade industrial, situadas à época em grandes áreas do Nordeste brasileiro, como forma de contribuir para o desenvolvimento regional. Outro aspecto a ser considerado é o esforço de ambos na divulgação das rendeiras. Ao contrário do que se observa em muitas pesquisas, no livro publicado pelo casal Ramos e nos documentos pertencentes à UFC, encontramos diversos nomes de artesãs, o que demonstra a intenção de não deixá-las no anonimato e fazer com que não apenas o trabalho desenvolvido, mas as suas autoras, fossem reconhecidas, dando a um ofício artesanal, notadamente feminino, uma identidade. Em 1960, Antônio Martins Filho, então Reitor e fundador da Universidade do Ceará, atual UFC, criou o Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará – IAUC, adquirindo diversas peças para esse Instituto. As primeiras coleções foram compostas pelos objetos etnográficos do antropólogo e médico alagoano, Arthur Ramos e as rendas de sua esposa Luíza Ramos. Além das peças, Martins Filho, adquiriu também, um conjunto documental formado de cartas, anotações e questionários de pesquisa do casal. Neste conjunto de documentos pessoais, ressaltamos a presença dos questionários de pesquisa e as anotações elaboradas por Luísa e Arthur Ramos e enviados a “informantes”, - responsáveis pela entrevista e aplicação dos questionários junto às rendeiras, bem como da devolução deste material ao casal. Junto com os questionários preenchidos, os “informantes” deveriam enviar para Arthur e Luísa, uma pequena amostra da renda pesquisada e coleta com um tamanho aproximado de 20 cm. Neste contexto, os documentos e as amostras das rendas constituíram fonte de estudo para a publicação do catálogo “Rendas de Bilros e sua aculturação no Brasil”; trabalho de cunho antropológico e etnográfico que segundo Luísa Ramos tinha como principal finalidade a valorização do trabalho das rendeiras. 114 Inicialmente coleção de estudo e posteriormente coleção de museu, as amostras de rendas adquiridas pela UC no final da década de 1950, podem ser pensadas como um conjunto de objetos que formam uma narrativa a acerca da cultura nacional através de uma de suas partes, cultura regional nordestina. José Reginaldo Gonçalves assinala que ao visitarmos um museu pouco ou nada percebemos acerca da complexidade de relações sociais e simbólicas que possibilitaram a formação do museu e também que asseguram seu funcionamento. O processo de produção dos objetos - cujo papel é representar determinadas categorias culturais como o primitivo, o passado e a nação - a história de cada um deles e todo o trabalho necessário à sua aquisição, preservação e exposição. Uma extensa e complexa cadeia de ações sociais são empreendidas (GONÇALVES, 2007, p. 82). No caso da coleção Luíza Ramos podemos considerar dois momento relevantes da coleção. O primeiro está em sua formação e no propósito nítido dos autores em compreender uma manifestação cultural iniciada em um tempo e lugar indefinidos, implantada no Brasil através de imigrantes europeus e reinterpretada pelas populações locais em seus mitos e lendas, na adaptação dos materiais utilizados para a confecção das rendas como o uso de espinhos, bilros feitos a partir de sementes, almofadas com enchimento de palha, entre outras adaptações, para indicar esta manifestação como uma característica regional a compor o grande edifício de manifestações culturais “autenticas” brasileiras e, nos seus desdobramentos, sociais, culturais e também econômicos 7. O segundo momento é a aquisição deste acervo por uma universidade pública federal de um dos estados nordestinos apontados pelo casal como portador excelência na produção de rendas em quantidade e qualidade. Esse segundo momento não está ligado a formação do discurso regionalista/nacionalista, mas é um reflexo deste discurso. No Museu de Antropologia a coleção foi catalogada e as técnicas utilizadas em sua confecção fizeram parte de um outro catálogo intitulado Rendas de Bilros8. Além da coleção Luíza Ramos este catálogo apresenta os estudos desenvolvidos acerca da produção de rendas no Estado do Ceará. Segundo a ex-conservadora do IAUC, Valdelice Girão, tratava-se de um trabalho a ser desenvolvido em toda a região Nordeste, mas que ficou restrito ao Ceará por questões financeiras. Este trabalho tinha como finalidade dar suporte a criação de cooperativas de rendeiras, oferecendo treinamento e material de trabalho em uma tentativa de oferecer opções economicamente viáveis às artesãs colocando-as em condições de competir com as 7 Correspondências entre Luíza Ramos e Regina Chabloz (esposa do artista plástico suíço Jean Pierre Chabloz) e entre a Sra Ramos e o Presidente do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), demonstram a preocupação e o objetivo de ajudar na criação de cooperativas de rendeiras que tinham entre outros objetivos acabar com a figura do atravessador. 115 rendas industriais. Outro objetivo era aumentar o lucro das rendeiras e ao mesmo tempo baixar o preço das peças, retirando de cena ou diminuindo a ação dos chamados atravessadores, compradores vindos de outros estados que compravam a renda a preço muito baixo para revendê-la muito mais caro em outros estados. A divulgação do litoral nordestino e suas belas praias e sol o ano todo fazem com que o artesanato seja mais um item atrativo do comércio da Região. 3. Considerações Finais Além da criação de um imaginário e de uma identidade regional/nacional, outros aspectos podem ser ressaltados a partir da documentação estudada até o presente momento. Transformar a renda e a própria rendeira em produto e personagem característicos da região, além de marcar a presença nordestina no mosaico da identidade nacional dão a este fazer um status de patrimônio cultural, elevando assim o valor cultural que irá se refletir também do valor econômico das peças, na forma como este artesanato, ocupação majoritariamente feminina, voltado para a decoração do espaço interno da casa passou a ser visto dentro e fora da região Nordeste. A musealização deste acervo demonstra o êxito que a renda alcançou como elemento cultural característico da região nordeste. Não apenas fora da região, mas dentro dela. Correspondências da Sra Ramos com Regina Chabloz (esposa do artista plástico suíço Jean Pierre Chabloz) na década de 1940 e com o presidente do recém-criado Banco do Nordeste do Brasil em 1954 (década em que o Governo Federal começa a demonstrar interesse em investir no artesanato (DRUMMOND, 2006) assinalam que naquele período os produtos artesanais, especialmente os vindos do chamados do norte ganhavam notoriedade entre as camadas mais abastadas da população dos chamados estados do Sul, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Estes produtos chegaram as diversas regiões do país através migrantes e, ganhando cada vez mais espaço em mercados e lojas nos estados industrializados passaram a ser uma opção ao produto industrial representando poder econômico e distinção social, despertando o interesse de viajantes em demonstrar posses e bom gosto, além dos atravessadores que traziam estes produtos para as lojas especializadas em decoração (DANTAS, 2006). 8 De autoria da então conservadora, e atualmente professora aposentada da UFC, Valdelice Carneiro Girão 116 4. Rerefências ABREU, Regina, CHAGAS, Mário (orgs). contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. Memória e Patrimônio: ensaios ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A Invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009. ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 2007. DANTAS, Beatriz Góis. Rendas e Rendeiras no Rio São Francisco: Estudos e Documentos sobre a renda de bilro de Poço Redondo – SE. 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Fortaleza: Universidade do Ceará. 1963. ________. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1965. ________. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1966. 117 ________. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1967. ________. Relatório Geral do Museu Antropológico do Instituto de Antropologia da Universidade do Ceará. Fortaleza: Universidade do Ceará. 1968. _______. Relatório Geral do Museu da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará. 1969. RAMOS, Luíza e Arthur. Renda de bilros e sua aculturação no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Antropologia, 1948. 118 CULTURA E INCLUSÃO SOCIAL NO MUSEU DO MARAJÓ PE. GIOVANNI GALLO Karla Cristina Damasceno de Oliveira1; Luiz Carlos Borges2 Resumo Museu é uma instituição a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, segundo o International Council Of Museums – ICOM. Fundado em 1972, o Museu do Marajó Pe. Giovanni Gallo (MdM) atua em consonância com essa premissa. Trata-se de uma instituição cuja proposta museológica fundamental consiste em utilizar a cultura marajoara como meio de desenvolvimento e de inclusão social, de modo a possibilitar que diversos segmentos populacionais, antes socialmente desorganizados e postos à margem econômica e culturalmente, passem a inserir-se em um processo de reivindicação, conquista e manutenção de seus direitos. O MdM vem, já desde sua fundação, desenvolvendo ações que têm possibilitado a inclusão social de moradores da cidade de Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, onde se localiza. Este trabalho objetiva analisar, de uma parte, o partido museológico do MdM, e, de outra, algumas das ações de inclusão social levadas a efeito no e por esse museu. Palavras Chave: Inclusão, Ilha do Marajó, Patrimônio, Museu. Resumen Museo es una institución al servicio de la sociedad y de su desarrollo, de acuerdo con el Consejo Internacional de Museos - ICOM. Fundado en 1972, el Museo de Marajó P. Giovanni Gallo (MdM) actúa de acuerdo con esa premisa. Se trata de una institución que tiene como propuesta museológica la utilización de la cultura como un medio para el desarrollo marajoara y la inclusión social, a fin de que los distintos segmentos de la población, antes socialmente desorganizados y relegados a los márgenes económica y culturalmente, comienzan a insertarse en un reclamo de proceso, el logro y el mantenimiento de sus derechos. El MdM tiene, desde su fundación, el desarrollo de acciones que han permitido la inclusión de los residentes de la ciudad de Cachoeira do Arari en la Isla de Marajó, donde se ubica. Este trabajo tiene como objetivo analizar, en una parte el partido museológico de MdM, y otra, algunas de las acciones llevadas a cabo en la inclusión social a través de este museo. Palabras clave: Inclusión, Isla de Marajó, Patrimonio, Museo. Abstract According to the International Council of Museus – ICOM, museum is defined as an 1 Bacharel em turismo. Atuou como pesquisadora – junto ao IPHAN – nos inventários culturais da ilha do Marajó e da festividade de São Sebastião de Cachoeira do Arari - ilha do Marajó. Mestre em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Museu de Astronomia e Ciências Afins (UNIRIO/MAST). Doutoranda no mesmo Programa. E-mail: karladoliveira@gmail.com. 2 Doutor em Linguística, pesquisador titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins e professor do Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Desenvolve pesquisas na área de estudos patrimoniais, com trabalhos que discutem a relação entre patrimônio e valor. E-mail: lcborges@mast.br 119 institution at the service of society and of its development. The Museum of Marajó Pe. Giovanni Gallo (MdM), founded in 1972, functions in accordance to the above premise. The MdM’s museological proposition aims to use the local culture as a medium for the Marajoara development and social inclusion, in an attempt to favor the insertion in a process of claiming , achievement and maintenance of its rights of several segments of the population that once were socially disorganized and economically and culturally casted aside. The MdM, since its foundation, has been building up programs that have been enabling the socio-economical inclusion of residents of the city of Cachoeira do Arari, in the Marajo island, where it is placed. The purpose of this paper is to analyze, on one hand, the MdM’s museological guideline and, on the other, some action for social inclusion that have been taken by and in this museum. Key words: Inclusion, Marajó Island, Heritage, Museum 1. Um Museu no Marajó Museu, segundo o International Council Of Museums – ICOM, é “uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, pesquisa, comunica e exibe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio ambiente, para fins de educação, estudo e deleite” (ICOM, 2001, não paginado). Neste sentido e em sua total acepção social-histórica, todo museu se constitui em um espaço de pesquisa, de comunicação, de posicionamento político-ideológico, de formulação e de reformulação de sentidos; enfim, uma arena onde, em variados graus de tensão, desenvolve-se um jogo de/entre memórias, identidades, aproximações e afastamentos, paixões e conflitos. Mário Chagas (2006), ao analisar o pensamento museológico de Mário de Andrade, observou que, para esse pensador, os museus deveriam ser instituições a serviço das classes trabalhadoras e sua atuação serviria como elemento de fixação da identidade cultural. Segundo o modelo andradiano de museu, a proposta museológica deveria surgir do diálogo permanente com a população interessada na construção desse museu (CHAGAS, 2006). Chagas também ressalta que, na contemporaneidade, há, ainda, muita resistência à participação popular nos destinos dos museus, e que isso pode ser entendido como um desafio a ser enfrentado tanto pelos segmentos populacionais como pelos dirigentes de museus. No que tange à fundação do MdM, podemos inferir que o seu fundador, Padre Giovanni Gallo, encontra-se alinhado aos ideais de Mário de Andrade. O MdM, foi fundado em 1972, na cidade de Santa Cruz do Arari, Ilha do Marajó, e representa a materialização da obra de Giovanni Gallo, um padre jesuíta italiano que entendia que só através da cultura o verdadeiro desenvolvimento poderia realizar-se plenamente. A ideia para a criação de um museu surgiu-lhe a partir de um episódio em 120 que ele recebeu, de um amigo, fragmentos de artefatos 3 arqueológicos cerâmicos. Em 1983, Gallo transferiu o MdM para o município de Cachoeira do Arari, fronteiriço a Santa Cruz do Arari. Em seu endereço atual, o MdM localiza-se à margem do Rio Arari e possui uma área de 20 mil m², sendo 10 mil m² para o prédio central e arboreto e outros 10 mil m² para estruturas de apoio, como Fazendola Ecológica, o prédio da secretaria e as oficinas> Conta, ainda, com uma área de expansão de, aproximadamente, 7 mil m². A exposição de longa duração, com mezanino, ocupa um espaço de 1.000 m² (OLIVEIRA, 2012). O museu criado por Gallo baseia-se na ideia de (re)apresentar o homem que existe por trás de cada objeto, pois, segundo ele, “o homem é a nossa peça mais importante” (GALLO, 1996, p. 260). Esta afirmação de Gallo apresenta uma dupla implicação. De um lado, refere-se àquilo que intrinsecamente caracteriza um museu, como um espaço em que ficam registrados, ao menos fragmentariamente, os percursos simbólicos da humanidade; de outra, tem a ver as ações desenvolvidas no MdM com vista à melhoria da vida dos marajoaras. Afinal, objetos e artefatos se fazem patrimônio – ou são musealizados – porque investidos de valor cultural e histórico. Assim, são postos em coleções ou em museus porque, de alguma forma, esse valor é significativo não apenas “para uma minoria [...[“, mas tem força de um “valor social, derivado de uma consciência que dele se tem como fator fundamental, como condição absoluta de ser e de existir” (GUARNIERI, 2010, p. 121), e isto significa justamente a presença, nesses bens culturais, do trabalho humano. Desse modo, visto ser o homem o ator/interlocutor principal do MdM que foi desenvolvida a proposta de comunicação museográfica, a qual parte da convicção de Gallo que o brasileiro “tem os olhos nas pontas dos dedos” (GALLO, 1996, p. 260) e um museu, na região marajoara e para os marajoaras, não poderia calcar-se em parâmetros usuais (de segurança ou de comportamento idealizado), segundo os quais o visitante não tem a liberdade de tocar nas peças em exposição. O “Favor Não Tocar” poderia tornar o MdM pouco atrativo para os locais e uma barreira que dificultaria a recepção da mensagem que Gallo queria transmitir. Segundo a Declaração de Caracas, realizada na Venezuela em 1992, os museus não podem ser entendidos, somente, como espaços e informação e de conhecimento, mas como meios de comunicação que, juntamente com os objetos, transmitem conteúdos significativos e produzem discursos. Essa Declaração recomenda que sejam 3 Utilizamos, aqui, a distinção que Waldísia Rússio Camargo Guarnieri (2010a) estabelece entre objeto, em seu sentido específico, e artefato. Objeto é tudo aquilo que é percebido pelo sujeito e que, portanto, lhe é exterior; artefato é tudo aquilo que é criado/produzido pelo homem, a que ele dá função ou a que altera. 121 realizadas pesquisas sobre as comunidades nas quais está inserido o museu, em busca de elementos que facilitem a compreensão de seu processo sociocultural, “envolvendo-a nos processos e atividades museológicos, desde a investigação e coleta de elementos significativos existentes em seu contexto até sua preservação e exposição” (CARACAS, 1992). Essas recomendações da Declaração de Caracas, referentes à comunicação e ao patrimônio, podem ser observadas no trabalho desenvolvido por Gallo no MdM (OLIVEIRA, 2012). O Museu do Marajó conta somente com uma exposição de longa duração. Não são organizadas exposições temporárias. Entretanto, foi criado um “computador” para ser utilizado em exposições itinerantes. A originalidade do MdM reside em seu projeto expográfico, no qual merece destaque, sobretudo, o que Gallo chamou de “computadores caipiras”, ou seja, instalações de estrutura simples, compostas por uma série de mecanismos que podem ser manipulados pelos visitantes e que trazem informações sobre diversos temas referentes ao homem marajoara (OLIVEIRA, 2012). Confeccionados em materiais como madeira e fios de algodão, “os computadores”, inventados por Gallo, aguçam a curiosidade do público, graças ao seu apelo à interatividade, talvez por isso Gallo tenha projetado a exposição como um brinquedo, montado a partir da utilização de materiais facilmente encontrados na região. A informação sobre os objetos expostos é desvendada pouco a pouco, a partir das escolhas que o visitante faz ao puxar de cordas, girar manivelas, levantar, abrir e fechar de tapumes. Os temas das coleções expostas no MdM passam pela Arqueologia, com peças originais e réplicas4 -.são peças como tangas5, caretas, urnas, fragmentos, machados, muiraquitã -; pela Etnologia, tanto referentes a assuntos indígenas, à escravidão ou aos caboclos: instrumentos de castigo, objetos relativos ao universo da pesca, como alguns tipos de embarcações e de nós utilizados em embarcações; pela Zoologia, especialmente mediante o uso de animais taxidermizados, como o peixe-boi (Trichechus inunguis). Um diorama que representa o universo das fazendas. Outros temas são: Caça, Artesanato; As lendas amazônicas e as lendas de Cachoeira; Objetos científicos; Coleção de imaginária; Coleção de pajelança cabocla, dentre outros assuntos referentes à vida marajoara. 4 De acordo com Frade (2002), adefiniu reprodução de réplica foi uma opção de Gallode porque muitasartificiais peças inteiras, Krzysztof Pomian coleção como “um conjunto objetos ou apesar de raras, estavam em poder dos fazendeiros da região. A réplica tinha a função de aproximar o naturais coletados, mantidos, temporária ou definitivamente, fora do circuito de caboclo doreunidos, bem patrimonial. 5 “Tanga ou babal é uma espécie de protetor púbico de uso exclusivamente feminino. As tangas marajoaras atividades econômicas, a uma especial local fechado, são peças admiradas por suasubmetidos ocorrência única. […]. proteção Cada uma das peças em tem um desenho únicoarrumado […], o que sugere que tratava-se de uma classe de objetos que traziam insígnias ou signos de identificação da sua para este fim, esses objetos expostos ao olhar” (POMIAN, 1984, p. 53). De acordo com portadora” (FRADE, 2002, p. 308). Scheiner (2008), é através das coleções que se reconhece a proposta do museu, seus valores, tempos e mitos da sociedade que os criou. É através dos objetos que os museus falam à sociedade e que se desenvolve122 a ação do museu referente a uma área do conhecimento. “O objeto torna-se a metáfora do museu, a materialização de todas as marajoara. Krzysztof Pomian definiu coleção como “um conjunto de objetos artificiais ou naturais reunidos, coletados, mantidos, temporária ou definitivamente, fora do circuito de marajoara. atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial em local fechado, arrumado Krzysztof Pomian definiu coleção como “um conjunto de objetos artificiais ou para este fim, esses objetos expostos ao olhar” (POMIAN, 1984, p. 53). De acordo com naturais reunidos, coletados, mantidos, temporária ou definitivamente, fora do circuito de Scheiner (2008), é através das coleções que se reconhece a proposta do museu, seus atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial em local fechado, arrumado valores, tempos e mitos da sociedade que os criou. É através dos objetos que os museus para este fim, esses objetos expostos ao olhar” (POMIAN, 1984, p. 53). De acordo com falam à sociedade e que se desenvolve a ação do museu referente a uma área do Scheiner (2008), é através das coleções que se reconhece a proposta do museu, seus conhecimento. “O objeto torna-se a metáfora do museu, a materialização de todas as valores, tempos e mitos da sociedade que os criou. É através dos objetos que os museus relações entre o homem e o real” (SCHEINER, 2008, p. 62). Neste sentido, e como já falam à sociedade e que se desenvolve a ação do museu referente a uma área do havia percebido Gallo, existe entre objeto/artefato, museu e sociedade uma relação de conhecimento. “O objeto torna-se a metáfora do museu, a materialização de todas as mão dupla. Uma vez que se, a partir do objeto o museu fala à sociedade na qual o museu relações entre o homem e o real” (SCHEINER, 2008, p. 62). Neste sentido, e como já está inserido, o objeto fala ao museu a respeito da sociedade da qual ele provém e, havia percebido Gallo, existe entre objeto/artefato, museu e sociedade uma relação de assim, sociedades e sujeitos, mesmo que de diferentes temporalidades e culturas, põemmão dupla. Uma vez que se, a partir do objeto o museu fala à sociedade na qual o museu se em contato mediado pelos objetos/artefatos no espaço relacional do museu. está inserido, o objeto fala ao museu a respeito da sociedade da qual ele provém e, De todo modo, objetosmesmo musealizados e, como tal, passam por assim, sociedades e sujeitos, que de compõem diferentes coleções temporalidades e culturas, põemum processo deslocamento, tradução e ressignificação. Podemos se em contatode mediado pelos objetos/artefatos no espaço relacional do entender museu. o ato de colecionar como algo que se refere ao desejo de classificar e de se apropriar do mundo, De todo modo, objetos musealizados compõem coleções e, como tal, passam por e representa poder sobre a natureza e a cultura, um ato que representa construção de um processo de deslocamento, tradução e ressignificação. Podemos entender o ato de conhecimento (SEPÚLVEDA, 2005). Ao se tornarem itens de uma coleção, os artefatos colecionar como algo que se refere ao desejo de classificar e de se apropriar do mundo, adquirem o status de semióforos6. Um semióforo é alguma coisa ou acontecimento e representa poder sobre a natureza e a cultura, um ato que representa construção de investido de força simbólica, “algo único [...] e uma significação simbólica dotada de conhecimento (SEPÚLVEDA, 2005). Ao se tornarem itens de uma coleção, os artefatos sentido para uma coletividade (CHAUÍ, 2006, p. 117). Visto em sua representatividade, adquirem o status de semióforos6. Um semióforo é alguma coisa ou acontecimento semióforos têm o “poder” de desencadear associações mnemônicas e de sentido, investido de força simbólica, “algo único [...] e uma significação simbólica dotada de suscitando a atribuição de significado (SEPÚLVEDA, 2005), como parte e representação sentido para uma coletividade (CHAUÍ, 2006, p. 117). Visto em sua representatividade, da cultura e, portanto, devido à sua materialidade histórica. Finalmente, sendo aqueles semióforos têm o “poder” de desencadear associações mnemônicas e de sentido, que se põem à frente, como portadores de significado social-histórico, ou ainda, aqueles suscitando a atribuição de significado (SEPÚLVEDA, 2005), como parte e representação que carregam, ou inscrevem as marcas da distintividade, os semióforos, por fazerem a da cultura e, portanto, devido à sua materialidade histórica. Finalmente, sendo aqueles mediação entre as várias instâncias da socioesfera, afetam a memória e seus suportes. que se põem à frente, como portadores de significado social-histórico, ou ainda, aqueles Entre a ou coleção (enquanto unidade sentido) e oosmuseu (enquanto instituição que carregam, inscrevem as marcas da de distintividade, semióforos, por fazerem a disciplinadora afirma Sepúlveda, podem ser estabelecidas diversas formas mediação entredeassentido), várias instâncias da socioesfera, afetam a memória e seus suportes. de relação. Uma das formas de relacionamento valoriza o “espírito da coleção”, que nada Entre a coleção (enquanto unidade de sentido) e o museu (enquanto instituição mais é do que os critérios estabelecidos pelo colecionador original. Essa particularidade disciplinadora de sentido), afirma Sepúlveda, podem ser estabelecidas diversas formas também é observada no MdM. de relação. Uma das formas de relacionamento valoriza o “espírito da coleção”, que nada 6 Do grego semeion, ‘sinal’, e phóos ‘expor’, ‘carregar’, ‘brotar’ > phorós, ‘que leva’, ‘que sustenta, ‘que comunicacionais gestos interpretativos, as exposições são mais é Enquanto do que osestruturas critérios estabelecidos peloecolecionador original. Essa particularidade carrega’. enunciados que se textualizam através dos objetos. Neste sentido, os visitantes, em sua 6 função desemeion, interlocutores, participam ciclo ‘brotar’ comunicacional fazendo a sustenta, leitura e‘que a Do grego ‘sinal’, e phóos ‘expor’, do ‘carregar’, > phorós, ‘que leva’, ‘que carrega’. interpretação do texto expositivo. E, justamente por suscitar indefiníveis possibilidades de interpretações, a exposição é, discursivamente, marcada “pela opacidade e pela incompletude” (CAMPOS; BORGES, 2012). 123 Ainda segundo esses autores, com relação ao discurso, as exposições podem ser classificadas em duas categorias: a) exposições também é observada no MdM. Enquanto estruturas comunicacionais e gestos interpretativos, as exposições são enunciados que se textualizam através dos objetos. Neste sentido, os visitantes, em sua função de interlocutores, participam do ciclo comunicacional fazendo a leitura e a interpretação do texto expositivo. E, justamente por suscitar indefiníveis possibilidades de interpretações, a exposição é, discursivamente, marcada “pela opacidade e pela incompletude” (CAMPOS; BORGES, 2012). Ainda segundo esses autores, com relação ao discurso, as exposições podem ser classificadas em duas categorias: a) exposições parafrásticas – quando objeto (bens culturais), espaço e público pertencem à mesma formação histórico-ideológica; b) exposições polissêmicas – quando objeto, espaço e público pertencem a ordens ou formações histórico-ideológicas distintas e há, entre eles, uma distância cultural irredutível. Dessa forma, no que se refere aos objetos/artefatos (bens culturais), pode-se inferir que a exposição de longa duração do MdM é do tipo parafrástica, pois os objetos, em relação à comunidade do entorno, denotam um alto grau de ressonância e de aderência. Numa exposição polissêmica, o nível de aderência é baixo, se se considerar que objeto e público não compartilham das mesmas referências culturais, de forma a distância (de cultura, de significados) entre a formação histórico-ideológica do objeto e a do público apresenta um grau muito baixo de reversibilidade (BORGES, 2011; BORGES; OLIVEIRA, 2011). A exposição de longa duração do MdM, enquanto parafrástica, constitui um canal em que, mais do que o visitante de fora, o morador local se expressa e evoca um conjunto de relações e representações concernentes à tradição, ao imaginário etc. Vista de uma perspectiva cultura e considerando-se o trabalho desenvolvido por Gallo, a exposição montada por ele deve ser entendida sob a perspectiva etnográfica. De forma ampla, consideramos que os objetos que compõem exposições etnográficas são bens culturais que, por seu valor intrínseco e sua relação com o imaginário local, pertencem à categoria de patrimônio etnográfico, em geral “coletados por antropólogos para representar sistemas culturais específicos” (ABREU, 2008, p. 49). Esses artefatos, ainda de acordo com Abreu, funcionariam como registros capazes de expressar aspectos dos diferentes sistemas culturais pesquisados. Os museus, ou outras instituições de memória, seriam os espaços que reuniriam e transformariam esses registros em documentos, narrados ou descritos, pelo antropólogo, o responsável “por fornecer a chave para alguns dos significados dos patrimônios etnográficos” (ABREU, 2009, p.50). 124 2. Inclusão Social e Cultural Através do Museu Segundo Gabriela Aidar (2002), exclusão social é tudo aquilo que limita o acesso das pessoas a uma efetiva participação na sociedade. De acordo com sua definição e seu lugar na sociedade, os museus possuem responsabilidades no sentido de promoverem a reinserção dos socialmente excluídos na efetividade da vida social, especialmente o que se refere ao franqueamento aos instrumentos e aos dispositivos de tudo aquilo que constitui a sociabilidade. Assim, um museu deve agir em contraposição à exclusão, promovendo, dentro de suas possibilidades, a inclusão. Dessa forma, e segundo Aidar e Chiovato (2011), os museus podem ser entendidos como instituições voltadas à mobilização da sociedade. Ao se tornarem espaços de inclusão, os museus terminam por produzir mudanças em três âmbitos: a) individual, relacionado a esferas psicológicas e emocionais do indivíduo, estimulando aumento de autoestima, da identidade e pertença; b) comunitário, diz respeito ao fortalecimento das comunidades através de trabalhos regeneradores de vizinhanças carentes; c) societário, no qual as práticas de seleção, exposição e dos discursos criados pelos museus, favorecem o sentimento de pertença de grupos marginalizados (AIDAR, 2002). Esse nível de atuação das instituições museológicas foi proposto na Declaração de Santiago (1972), na qual o museu é entendido como parte integrante das sociedades e a serviço destas, uma vez que possui elementos que lhe permitem participar na formação da consciência dos sujeitos que, primariamente, atuam em comunidades, contribuindo para o engajamento destas comunidades na ação. Tais propostas foram reiteradas pela Declaração de Quebec (1984), que afirmou que a nova museologia era um movimento que afirmava a função social do museu e o caráter global das suas intervenções. Quando Giovanni Gallo chegou, em 1973, para trabalhar na paróquia do município de Santa Cruz do Arari, foi morar numa localidade conhecida como Vila de Jenipapo, uma comunidade de pescadores localizada às margens do Lago Arari. Inserindo-se e atuando nessa comunidade, incentivou a produção de artesanato, que era confeccionado com os recursos disponíveis no local; organizou cursos de arte culinária, confecção de flores, corte e costura bordado e produção de sacolas. Construiu um posto médico, um centro comunitário, um laboratório onde ensinou as mulheres a embalsamar 12 mil piranhas, que foram enviadas para o exterior. Com o lucro obtido com a venda, pagou as trabalhadoras, construiu 350 metros de pontes com esteios em madeira de lei, um trapiche comunitário, um cemitério para o período das águas grandes, uma pista de 800 125 metros para o pouso de aviões, e “sobrou até uma ponta para iniciar o nosso museu” (GALLO, 1996, p. 170). A criação do Museu é coextensiva à proposta de dispor de um espaço que contribuísse para a recuperação da cultura local, visando preservá-la e divulgá-la, e que estivesse voltado para o desenvolvimento da comunidade, numa forma bastante original, e bem atual, ser um pólo de desenvolvimento da comunidade. Por outro lado, a comunidade não seria apenas o fim, mas igualmente um elemento ativo nesse processo. É por essas características que a comunidade vem participando, desde o início, das atividades do MdM. Gallo desejava tornar as pessoas qualificadas, não só tecnicamente, mas almejava que as pessoas se tornassem capazes de observar, analisar e alterar sua realidade, tendo como suporte das experiências do passado – daí a importância da exposição como representação desse passado. Inicialmente, ele estava convicto de que o caminho seria a escola, mas como fazer isso num município que só oferecia ensino até a quarta série do ensino fundamental? Então deveria ser criada uma outra forma de atingir a comunidade integralmente e um museu pareceu-lhe ser o caminho. Mas não um museu apenas informativo, e que, preso a um discurso competente e autoritário, permanecesse alheio à realidade local. Era necessário um museu que tivesse como objetivo de pesquisa não as coisas isoladas e sim as coisas no seu contexto cultural, em última análise o homem marajoara. Desta forma, um empreendimento tipicamente intelectual se transformaria em polo de desenvolvimento social. Museu quer dizer pesquisa e neste caso seria pesquisa voltada à ação, para criar atividades produtivas: o Museu deveria ser polo de desenvolvimento através da cultura. Um museu incentiva a escola, oferece matéria-prima para várias formas de artesanato, provoca uma evolução do ambiente (GALLO, 1996, p. 192). Podemos observar que o pensamento de Gallo alinhava-se aos princípios que orientaram as decisões da Declaração de Santiago (1972), que definiu as bases do museu integral, qual seja, “destinado a proporcionar à comunidade uma visão de conjunto de seu meio material e cultural” (SANTIAGO, 1972). Gallo acreditava que apenas garantir o alimento das pessoas carentes não resolveria todos os problemas. Era necessário impulsionar a cultura, para que o desenvolvimento fosse integral. Ele acreditava que o projeto do Museu alinhava-se ao trabalho jesuítico, “que sempre usaram a cultura como recurso fundamental do seu apostolado” (GALLO, 1996, p. 255). Em suas pesquisas, Gallo decodificou os motivos ornamentais das cerâmicas arqueológicas que chegavam até ele e, após vinte anos de pesquisas, consegue publicar, 126 em 1996, a primeira edição do livro “Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara Modelos para o Artesanato de Hoje”, que se encontra, hoje, em sua terceira edição. Trata-se de um compêndio de 114 motivos gráficos apresentados em papel quadriculado (para facilitar o trabalho das bordadeiras, em ponto cruz) e em traços contínuos (para ser utilizado em trabalhos de serigrafia, entalhe em madeira e outros fins). De acordo com Denise Schaan, Gallo “criou um banco de dados que é hoje o mais completo que se tem sobre os grafismos marajoaras” (SCHAAN, 2005: p.18). Em outro prédio amplo, localizado em frente à entrada principal do Museu, funciona a oficina de costura que, na época em que Gallo era vivo, denominava-se 'casa do artesanato', lugar no qual as bordadeiras produziam peças ornamentadas com motivos arqueológicos marajoaras. Atualmente, a oficina não está em funcionamento e os bordados são produzidos de modo eventual, quando há demanda por parte da gestão do MdM. Além desses espaços, há também uma biblioteca e uma escola de informática funcionando em outros espaços da instituição. O MdM também possui uma Escola de Música7 e abriga a Banda de Música Giovanni Gallo. Assim sendo, de acordo com sua proposta museológica e, “como qualquer museu moderno que se respeite, o Museu do Marajó dá ênfase à atividade comunitária” (GALLO, 1996, p. 265). Tais atividades aconteciam (e ainda acontecem) em edificações anexas ao prédio central8. A realização de oficinas de serigrafia, cerâmica, bordado e confecção de adornos, somada às de aulas de informática, à montagem da biblioteca e à transformação do MdM em Ponto de Cultura, proporcionaram, aos moradores de Cachoeira do Arari, possibilidades de profissionalização e de geração de renda. Apesar da atuação do MdM, a cidade ainda permanece carente de outras iniciativas que promovam o desenvolvimento econômico, cultural e social da população. Além do impacto econômico, a mediação do MdM conseguiu um efeito cultural. Com a utilização dos motivos arqueológicos transcritos por Gallo e, posteriormente, reproduzidos nos mais diferentes suportes, os habitantes de Cachoeira passaram a conhecer e a reconhecer o valor das peças arqueológicas encontradas na região. Desse 7 A Escola foi criada em 2001, em parceria com a Prefeitura Municipal de Cachoeira do Arari e a Fundação Carlos Gomes. Ganhou seu atual nome em homenagem a seu criador, falecido em 2006. Gallo pretendia não só oferecer mais um serviço do Museu à comunidade, integrando e despertando o interesse pela música nos jovens do município, mas, também, reativar a antiga Banda de Música, criada em 1935, por João Vianna (1909-1965). Disponível em <www.omuseudomarajo.com.br>. Acesso em 10 fev. 2012. 8 Como construções anexas, o MdM possui a casa do artesanato - construída com recursos do Banco Real –, localizada na lateral do prédio central, com acesso pela rua; o atelier de cerâmica, que atualmente está sendo reformado para voltar a funcionar, e que tem acesso pela rua e pelo arboreto; a antiga sala de audiovisual, onde se desenvolvia o trabalho do Ponto de Cultura do Museu do Marajó; a Fazendola Ecológica, construída com o auxílio dos fazendeiros da região: “uma maloca sobre a qual estou curtindo o projeto de transformá-la numa escola alternativa, com arte, teatro e folclore” (GALLO, 1996, p. 265). 127 modo, passaram a pensar naqueles achados como algo mais do que cacos de cerâmica. De acordo com Schaan (2007), pode-se dizer que, antes de Gallo, pouco ou nada se sabia acerca da importância dos achados arqueológicos para a história local, sendo o contrabando de peças arqueológicas atividade muito comum na região. Mais recentemente, alguns moradores, tendo reconhecido a importância desses artefatos, passaram a considerá-los como patrimônio. Neste sentido, o MdM desempenha um papel importante na formação da consciência étnica e histórica dos moradores do lugar, pois passaram a valorizar o patrimônio cultural da região. Assim, através da importância dada ao conhecimento do passado, bem como a produção/reprodução de objetos, nas oficinas, o Museu passou a influenciar no desenvolvimento cultural e econômico da região. Pode-se pensar que, ao reproduzir os desenhos marajoaras e repassá-los para os moradores, Pe. Gallo buscou fazer a mediação da tensão existente entre conservação e desenvolvimento. Esse processo – de conhecimento do passado e reprodução das peças – encontra-se muito bem assentado no MdM que, cumpre, de acordo com Bruno (1996), a missão de viabilizar a comunicação entre o passado e o presente, mediados pelos objetos que compõem o acervo. O museu, como agente de desenvolvimento, pode ser entendido como um caminho, dotado da especificidade que lhe é própria, para se compreender a cultura e, do ponto de vista dos habitantes, um caminho para conhecerem a si mesmos. 3. Considerações Finais Examinando o MdM, seja na especificidade trabalho museológico, seja no que concerne às ações desenvolvidas no e pelo museu visando transformar as condições de existência da população – incluindo-se aí fatores de autoestima ligados à valorização da cultura local e do modo de vida marajoara -, entendemos que a proposta de criação do museu e de todo o trabalho aí realizado passa pelo desejo de propor à comunidade cachoeirense um caminho diferente para alcançar o desenvolvimento. Tal qual proposto por Mário de Andrade, essa via de desenvolvimento humano consiste na valorização do existente, como processo de afirmação e de ressignificação da identidade marajoara. Qual seja, da compreensão crítica daquilo que “faz o marajoara, ser marajoara”, e, ao mesmo tempo, como proposta para descobrir e entender o outro. Uma das especificidades do MdM reside no fato de ser a comunidade, na qual está inserido, o elemento propulsor das ações desenvolvidas pelo museu, em 128 consonância com o seu entorno. A isso se conjuga o seu projeto de desenvolvimento e de inclusão social através da cultura local. As oficinas realizadas pelo MdM, juntamente com sua proposta museológica, são utilizadas como ferramentas que possibilitam a inclusão social, mediante o repasse de conhecimentos e narrativas. Isso tem permitido tornar artefatos e objetos culturais em patrimônio e, em consequência, atuar na preservação e valorização de memórias e de seus suportes. Com isso, o MdM não se limita a registrar e a musealizar os vestígios materiais (artefatos, crenças, o saber-fazer, o cotidiano) dos marajoaras, ou os objetos relativos à fauna e flora da região. A partir dos ideais de Gallo, o MdM entranha-se no Marajó, buscando valorizar, preservar e popularizar os aspectos biossocioculturais da Ilha. Mais ainda, enquanto agente transformador ocupa-se em fazer com que os marajoaras valorizem a si mesmos, como condição fundamental para que possam valorizar a diversidade biológica, histórica e cultural da ilha, com vistas à patrimonialização desses elementos. Sabemos que, para que esse processo se efetive, é necessário que exista e seja efetiva uma política que envolva a população, contribuindo para que esta se conscientize da importância do patrimônio cultural local. Uma política (e as ações que a acompanham) desse porte, levada a efeito por um museu, estaria em consonância com o propósito educativo de que as instituições museais encontram-se investidas. Em vista disso, podemos afirmar que o MdM cumpre esse papel, pondo-se de acordo com o que ficou expresso na Conferência Geral da UNESCO – 25ª Reunião, realizada em Paris, em 15 de novembro de 1989, e segundo a qual, “[...] a cultura tradicional e popular [...] é um poderoso meio de aproximação entre povos e grupos sociais existentes e de afirmação de sua identidade cultural” (IPHAN, 2004, p. 294). Esse papel social do museu não se encontra dissociado do fato das instituições museais seguirem uma lógica própria, e que as representações da realidade produzidas pelo museu correspondem à sua condição de agente social (isto é, técnica, política e ideologicamente inscrito em uma dada situação/posição do campo social) investido de uma competência que lhe permite propor museológica e expositivamente um ordenamento da memória e de sentidos. Na condição de um sujeito-intelectual orgânico e coletivo, o museu é inseparável do movimento histórico, por estar inserido em um campo constituído de tensões e contradições, e sua atuação reflete e refrata o jogo ideológico do qual ele participa. Ademais, o museu é também uma instituição que, por suas especificidades, tende a desenvolver-se autonomamente e, em última instância, a se tornar auto-referendada e auto-referenciada. No que tange especificamente ao MdM, vemos que, devido a suas 129 características museais, atuou decisivamente na comunidade mediante a criação de instrumentos teóricos, práticos e comunicacionais que, de certa maneira, foram contrahegemônicos, contribuindo para a transformação da realidade cachoeirense. Seguindo o ideário de Giovanni Gallo e apoiado em movimentos renovadores no campo da muselogia, o MdM, enquanto espaço de negociação, de reprodução e disciplinarização de sentidos, atuou igualmente como agente promotor de inserção social e, por conseguinte, logrou contribuir para transformar a realidade local. 4. Referências ABREU, Regina Maria do Rego Monteiro. A emergência do patrimônio genético e a nova configuração do campo do patrimônio. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: lamparina, 2009: p. 34-48. ______. Patrimônios etnográficos e museus: uma visão antropológica. In: DODEBEI, Vera; ABREU, Regina (Org.). E o patrimônio? Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008: p. 33-58. AIDAR, Gabriela. Museus e inclusão social. In Ciências & Letras - Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. n. 31. Jan-Jun. 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Processos de institucionalização apoiados com base em instrumentos jurídicos específicos. Pensar a questão negra dentro do repertório patrimonial no Brasil significa refletir como suas manifestações foram interpretadas e valoradas pelas diversas instâncias discursivas. Observamos as transformações sobre as representações negras no âmbito das políticas de patrimônio, palco de disputas de poder entres instâncias governamentais, organismos internacionais, acadêmicas, midiáticas, grupos sociopolíticos (igrejas, ONGs, movimentos negros, entre outros), no qual esses segmentos criam e se constituem pelo patrimônio. Através da lista de bens patrimonializados pelo IPHAN, um olhar panorâmico sobre alguns acervos museológicos que tematizam a cultura negra e de fontes bibliográficas, apresentamos neste trabalho uma noção preliminar dos âmbitos das apropriações realizadas em torno das memórias negras no discurso da nação. A construção deste contexto compõe um estudo elaborado com o objetivo de fundamentar a pesquisa dissertativa em torno da análise das narrativas expositivas de objetos relacionados à escravidão e abolicionismo, pertencentes ao Museu do Ceará, no estado pioneiro na abolição no Brasil (1885). Entender como a identidade negra se constrói no plano nacional é fundamental para compreensão de suas possíveis ramificações na composição da identidade local cearense. O que foi e o que é ser negro no Brasil em termos identitários? Palavras Chave: Memórias negras, Políticas culturais, Patrimônio, Museu, Identidade, Valor. Resumen Entendemos el patrimonio en términos cognitivos, fomentando imaginários en la población por médio de instrumentos simbólicos como lugares de memorias (museos, monumentos, plazas, etc) y puntos de referencia nacionales (fechas comemorativas, fiestas cívicas, etc). Las expresiones humanas y el médio natural, apenas ganan esta nominación cuando pasan por los procesos de aprendizaje, valoración y comunicación de sus características, es decir, por el terreno de la subjetividad. Procesos de institucionalización apoyados en instrumentos jurídicos específicos. Pensar la cuestión 1                                                                                                                         Graduação em História (UECE). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Bolsista CAPES. 2 Possui graduação em Sociologia e Política, mestrado em Antropologia pela UNB e doutorado em Ciências Sociais pela UNICAMP. Pesquisadora do Museu de Astronomia e Ciências Afins/MCT (RJ) e Pesquisadora Associada do Museu Goeldi/MCT (PA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFAM). Atualmente desenvolve projeto de pesquisa sobre a história da antropologia no Brasil. 133 negra dentro del repertorio del patrimonio del Brasil significa reflejar cómo sus manifestaciones fueron interpretadas y valoradas por las diversas instancias discursivas. Obervamos las transformaciones sobre las representaciones negras en el ámbito de la política de patrimonio, escenario de las disputas de poder entre instancias gubernamentales, organismos internacionales, academias, médios, grupos sociopolíticos (Iglesias, ONGs, movimientos negros, entre otros), un escenario en el cual estas instituciones crean y se constituyen por el patromonio. A través de la lista de bienes patrimonializados por el IPHAN y de una mirada panorámica sobre algunas colecciones museológicas que tematizan la cultura negra, así como de la consulta de fuentes bibliográficas, se presenta en este trabajo una noción preliminar de los ámbitos de las apropiaciones realizadas alrededor de las memorias negras en el discurso de la nación. La construcción de este contexto compone un estudio elaborado con el objetivo de fundamentar la investigación de maestría alrededor del análisis de las narrativas expositivas de objetos relacionados con la esclavitud y el abolicionismo, pertenecientes al Museo de Ceará, en el estado pionero en el abolicionismo en el Brasil (1885). Entender como la identidad negra se construye en el plano nacional es fundamental para la comprensión de sus posibles ramificaciones en la composición de identidad local cearense. ¿Qué fue y qué es ser negro en el Brasil en términos de identidad? Palabras clave: memorias negras, políticas culturales, Patrimonio, Museo, Identidad, Valor. Abstract We understand the patrimony in cognitive terms, fomenting imagery at the population by use of symbolic instruments such as places of memory (museums, monuments, parks, etc) and national events (celebratory dates, civic parties, etc). Human expressions and the environment can be given that title when undergo the processes of apprehension, valuation and communication of their characteristics, that is, the area of subjectivity. Processes of institutionalization are based on specific legal instruments. To think about the question of the Black people within the patrimonial repertoire in Brazil means to reflect about how their manifestations were interpreted and valued by the many discursive instances. We observed the transformations about the Black representations in the area of the patrimony policies, place of power disputes among the government instances, international organisms, academic, media, sociopolitical groups (churches, NGOs, Black movements, among others), where these segments create and are constituted by the patrimony. By the list of patrimonialized items of the IPHAN, an overview on some museum collections which thematize the Black culture and bibliographical resources, we present in this paper a preliminary notion on the scope of the appropriations made around the Black memories on the national discourse. The construction of that context composes a study prepared with the objective of substantiate the dissertative research on the analyses of the expository narratives of objects related to the slavery and the abolitionism, belonging to the Museum of Ceará, at that pioneer state during the abolition in Brazil (1885). Understanding how the Black identity is built up nationally is fundamental to the comprehension of its possible ramifications on the creations of the local identity in Ceará. What did and what does being Black in Brazil mean in terms of identity? Keywords: Memory of the Black, Cultural policies, Patrimony, Museum, Identity, Value. 134 1. Patrimônio, Museus e as Representações do Negro no Brasil O patrimônio constitui-se através de uma densa malha cultural. Uma laboriosa trama tecida por muitas mãos. Essa relação acontece em diversos âmbitos sociais: Estado, comunidades, academia e mercado participam deste empate. Estes selecionam e interpretam os bens culturais para dar forma e fundamento às nossas identidades. Perpassam por questões que incluem do afetivo ao burocrático. Uma intrincada rede discursiva responsável por contar e recontar a narrativa da nação. Nossos conjuntos patrimoniais são mecanismos de lembranças. Meios de acessar o passado e transmitir ritos. Elementos materiais e simbólicos que se perpetuaram no tempo, o que NORA (1993) denominou de lugares de memória. Entretanto, nem tudo que chega até nós de outras temporalidades é assim classificado. É necessária uma intenção de memória. Uma atribuição de valor. Reconhecimento social sobre objetos, edificações e variadas manifestações como representantes de certa tradição. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação simbólica, é, ao mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar. Os três aspectos coexistem sempre (...). É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um acontecimento ou uma experiência vivida por pequeno número uma maioria que deles não participou (NORA 1993, p.21-22). Concebido em sua integridade e continuidade, o patrimônio mantém com o tempo uma relação ambígua. Ao passo que é responsável pela degradação material, como, também, pela descaracterização da proclamada autenticidade das manifestações tradicionais. Qualquer ameaça a perpetuação da memória do país é encarada como nocivo à nação. No entanto, aparentemente externo, a perda é um elemento estruturante e mobilizador do discurso de preservação. É a consciência de fugacidade sobre nossa herança que mobiliza as ações que desencadeiam na institucionalização dos bens culturais (GONÇALVES, 2002). É por esse sentimento de efemeridade que se justifica a valoração em patrimônio e proteção de uma série de heranças simbólicas. É na seara do poder público que esse processo de patrimonialização é instituído oficialmente e comunicado a população. As políticas culturais criam um conjunto de mecanismos legais e financeiros para dar suporte às suas ações, que visam promover o 135 acesso cognitivo e físico às produções culturais, bem como, incentivar seus desenvolvimentos. Atuações que devem primar pelo trato igualitário entre diferentes manifestações, regiões e comunidades do país. Contudo, o histórico das instituições públicas de cultural no Brasil é marcado por autoritarismos, centralizações políticas e orçamentárias, descontinuidades de projetos e pela delegação ao mercado de funções estruturantes do setor (CALABRE, 2007). Desde meados da década de 20, diversos intelectuais apregoam a necessidade de uma maior valorização do passado do país. Gustavo Barroso ilustra esse cenário. Sua luta em prol da defesa da história da nação culminou na fundação do Museu Histórico Nacional - MHN (1932). Certamente esse espaço museológico não foi o primeiro com cunho histórico, mas o pioneiro em abrangência nacional, influenciando o modelo de patrimônio adotado posteriormente. É pouco recorrente na bibliografia especializada referências ao primeiro órgão federal voltado para o patrimônio, também, gerido por Barroso, nomeado Inspetoria dos Monumentos Nacionais - IMN (1934) (MAGALHÃES, 2004). Com o fim do IMN surge o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional – SPHAN (1936) (hoje, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) e a criação do Decreto lei nº 253 (1937), instrumento jurídico que rege o patrimônio material até a atualidade. Ambos os acontecimentos provocaram uma consolidação das políticas de patrimônio na esfera governamental. O IPHAN é um importante lugar de fala acerca do patrimônio no Brasil, normatizando-o pelo mecanismo do tombo4 (bens materiais) e do registro5 (bens imateriais). Anteriormente a implantação do IPHAN, os museus já cumpriam o papel de instrumentos discursivos sobre o patrimônio do país (Museu Real criado por D. João VI em 1818 como a primeira instituição museológica brasileira) que por meio de suas coleções narram sobre diversas temáticas da nossa cultura. Somam-se a esse universo as legislações estaduais e municipais que agregaram, em muitas regiões, meios semelhantes à esfera federal de patrimonialização. 3                                                                                                                          Ver: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm>. 4 “Por tombamento se entende o instituto jurídico através do qual o Pode Público determina que certos bens culturais serão objeto de proteção especial. O decreto lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que continua em vigor, normatizou na esfera federal o ato de tombamento e é um dos instrumentos legais básico do IPHAN”. Cf.: <http://www.iphan.gov.br/ans/inicial.htm> (acessado em 25.09.2012). 5 “O Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, instituído pelo Decreto 3551/00, é um instrumento legal de preservação, reconhecimento e valorização do patrimônio cultural imaterial brasileiro, composto por aqueles bens que contribuíram para a formação da sociedade brasileira. Consiste na produção de conhecimento sobre o bem cultural imaterial em todos os seus aspectos culturalmente relevantes”. Cf.: <http://www.iphan.gov.br/bcrE/pages/folRegistroE.jsf> (acessado em 25.09.2012). 136 Nossa intenção é observar na constituição, no desenvolvimento e nas ações das instituições que agem sobre o patrimônio nacional discursos que “atuam no sentido de fazer ver como universais, em termos estéticos, e nacionais, em termos políticos, valores, atribuídos a partir de uma perspectiva e de um lugar no espaço social” (FONSECA, 2009, p. 21). Queremos resaltar uma perspectiva que conceitua o patrimônio como ato cognitivo e fruto de constantes disputas. Um mesmo país, um mesmo passado, mas diferentes formas de interpretar nossa memória. Entender os movimentos do patrimônio requer prioritariamente a verificação de sua instância criativa, contexto de pensamento de cada época e o lugar de fala dos sujeitos que o promovem. O patrimônio, assim, como seus correlatos, memória e identidade, se multiplicam em diversos usos e abordagens. São transitórios, processos sociais, abertos e inconclusos. A breve discussão realizada acima desenvolve as bases essenciais para o aprofundamento de nossa problemática. Entender a dimensão constitutiva do patrimônio compreende adentrar em uma análise do panorama das ações oficiais de instituição dos bens culturais pelo Estado. Instância a qual se desvela a sua elaboração, ordenação e legitimação. Espaço o qual podemos verificar como o patrimônio é imaginado. Assim, pensar a memória da comunidade negra significa refletir como suas manifestações foram apreendidas, interpretadas e valoradas pelas instâncias discursivas. Com isso, possibilitando o traçado das transformações sobre as representações negras nas narrativas do patrimônio no país. Como fontes para tal objetivo, selecionamos as listas de bens patrimonializados pelo IPHAN (Livro de Tombo: Belas Artes, Histórico, Artes aplicadas e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; e o livro de Registro: Celebrações, Formas de expressão, Lugares e Saberes)6 e os trabalhos de teóricos (Lilia Schwarcz, Marcelo Cunha, Myrian Sepúlveda e Regina Abreu) sobre alguns espaços museológicos brasileiros. Um diagnóstico preliminar dessa documentação possibilitou a construção de quatro modelos para classificar as representações dos negros nesse universo patrimonial: o valor pelo “exótico”, o valor pela “dor”, o valor pelo “popular” e o valor pela “liberdade”. As categorias não são apresentadas pelo viés da sucessão cronológica. Embora surgindo em períodos distintos, eles coexistem. Inicio destacando o período Colonialista (séc. XV-XX), no qual, sobretudo, os europeus com sua visão centralista de mundo categorizavam aqueles indivíduos viventes 6                                                                                                                         Analisamos os arquivos no site institucional do IPHAN (http://portal.iphan.gov.br).   137 fora dos seus limites continentais e de uma suposta ideia de civilização como o “outro”, o bárbaro, o exótico. Os objetos oriundos da natureza e da cultura material desses grupos espalhados pelo globo eram abrigados nos chamados gabinetes de curiosidades (séc. XVI e XVII). Restritos ao deleite dos pesquisadores e à elite econômica da época. Deter o “conhecimento” de diferentes culturas era uma forma de poder, controle e subjugação dos territórios conquistados. Os museus com abordagens sobre a História Natural eram a tônica anterior a uma maior especialização temática dos espaços museológicos (histórico, etnográfico, arqueológico, etc.) alimentados em grande medidas pelas expedições promovidas por viajantes com uma visão etnocentrista que marcava o início da Antropologia (séc. XVIII) (PRATT, 1999). Um método comparativo e uma abordagem linear das sociedades. Entendiam os evolucionistas que os costumes se demarcavam como substância, como finalidade, origem, individualidade e não como um elemento do tecido social, interdependente de seu contexto. Esse foi o mote que constituiu as coleções e os enredos de grandes museus brasileiros em suas fases iniciais como o Museu Paulista – SP (1895), Museu Nacional - RJ (1818) e o Museu Paraense Emílio Goeldi – PA (1871), sobretudo na relação com grupos indígenas e negros (SCHWARCZ, 1993; ABREU, 2008). Diversas teorias raciais etnocêntricas7 tentaram explicar a composição social brasileira e influenciou, durante décadas, o olhar sobre o negro (SCHWARCZ, 1993), inclusive sobre suas manifestações culturais. As origens da cultura brasileira, segundo Rodrigo Melo Franco de Andrade, então diretor do SPHAN (1936-1967), estaria formada pelas contribuições de europeus, indígenas e africanos, mas ele coloca em níveis diferentes essas tradições. Sua concepção de civilização era evolucionista, variando em estágios do mais “primitivo” até os mais “avançados”. Índios e negros estavam lotados no passado, não faziam parte do patrimônio preservado. Lembremos que neste período as expressões religiosas afrodescendentes eram violentamente oprimidas pela polícia com fechamento de terreiros e a prisão de seus líderes e objetos de culto, que viriam a compor acervos de museus na atualidade (GONÇALVES, 2002). O próprio acervo tombado pelo IPHAN, em 1938, trás as marcas da violência, registrado como Museu da Magia negra (termo estereotipado) ou Museu da polícia Civil através da apreensão como provas de inquéritos contra práticas culturais negras proibidas pelo Estado. 7                                                                                                                         Símbolo de uma vertente mais radical, o médico baiano Nina Rodrigues (1862-1906) considerava o mestiço como um degenerado físico e o negro como um dos fatores de nossa inferioridade como povo. 138 Uma nova perspectiva à exótização dos grupos humanos foi cunhada por Franz Boas e Bronislaw Malinowski, estabelecendo outro termo de análise, a cultura. Surgiriam os museus etnográficos fundamentados nesse pensamento. Como marco o Museu do Homem, nos anos 40-50, (Paris – FR) concebido por Gerorges-Henri Rivière e Paul Rivet. No Brasil, podemos citar a experiência do Museu do Homem do Nordeste (Recife – PE), elaborado por Gilberto Freire em 1979. No campo da Arte, criou-se uma categoria específica para nomear a produção artística não enquadrada na roupagem ocidental do sistema artístico. A produção material realizada pelas comunidades negras foi taxada de arte primitiva 8 (séc. XX) por não abranger padrões acadêmicos, conter técnicas e materiais ditos rudimentares e apresentar temáticas propagadas como simples, ingênuas e místicas. Percebemos, assim como nos citados museus de História natural, a tendência a vincular as culturas autóctones, entre elas a negra africana, ao diferente, ao inusitado, valorando-os pelo “exótico”. Nos museus de cunho histórico temos outra relação com a memória negra. Tradicionalmente vinculado com a divulgação das glórias e feitos mais célebres do nosso passado (atuação amplamente revista), os negros receberam um lócus bastante delimitado, o período escravocrata no Brasil (a partir da primeira metade do século XVI). Eles são lembrados como uma força de trabalho determinante na exploração das maiores riquezas do período colonial, a cana-de-açúcar e os minérios, e o início do plantio do café durante o Império. As coleções que representam esse momento histórico são formadas, em grande parte, por instrumentos de suplício e documentos de compra e venda de escravos. Uma vinculação dos negros com os maus tratos físicos e simbólicos sofridos por gerações. “Dor, vergonha, humilhação, frustração e impotência são sentimentos que se reproduzem. A volta à situação do trauma pode produzir uma dor contínua, causada por um ferimento que não foi curado e que tem o poder de enfraquecer aqueles que se lembram” (SANTOS, 2008, p. 185). 8                                                                                                                         “Com isso, é considerada primitiva a arte das crianças, dos doentes mentais, a arte popular e folclórica, a arte da pré-história, a arte naïf, bem como a arte advinda de fora da Europa, como a africana, a da América pré-colombiana, a indígena, a dos habitantes das ilhas do Pacífico e outras. Em última instância, essa visão profundamente eurocêntrica considera primitiva toda manifestação artística portadora de valores estranhos ou diversos dos vigentes nas sociedades ocidentais economicamente avançadas.” Cf.: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete= 3183> (acessado em 25.09.2012). 139 Oriundos de muitas regiões da África9 e com culturas díspares, os grupos étnicos trazidos ao Brasil foram tratados como uma massa homogenia. Diversos relatos replicam esse olhar, com escassas informações dos abrangentes saberes e fazeres trazidos para estas terras (CUNHA, 2008). O processo abolicionista é composto por personagens da elite que hastearam bandeiras humanitárias e levaram os créditos pelo fim da escravidão. Silenciam sobre as formas de resistências negras pelas fugas, pela formação de quilombos, pelos suicídios e pelas tentativas de manutenção de traços culturais. Quando mencionados relembram o quilombo de Palmares e seu líder Zumbi, transformado em símbolo quase hegemônico. Com a Abolição (1988), os negros praticamente desaparecem das narrativas. Lembrados como eternas vítimas de genocídios e etnocídios. São os valorados pela “dor”. No pós-abolição não houve o acesso do negro às conquistas sociais e colocou em segundo plano a participação do negro no enredo patrimonial. Analisando a lista de bens tombados pelo IPHAN (1937 – 1985) temos participações pontuais de bens relacionados aos negros. Citamos o tombamento de algumas igrejas devotadas a Nossa Senhora do Rosário, construídas por Irmandades de negros, e as obras Barrocas de Aleijadinho em Minas Gerais. Embora ambas as realizações estejam relacionadas a produção de personalidades negras, os bens possuem uma vinculação maior com uma identidade com traços elitista, branco e católico. Podemos presumir que existiu um silenciamento sobre a memória do negro no repertório da nação. Quando lembrados, os negros são relacionados a manifestações “populares”. Amplamente ligados ao futebol e ao carnaval, onde seus corpos são exaltados como fortes e viris, na primeira, e opulentos e sensuais na segunda. Outras expressões como as religiões afrodescendentes ganham espaço em museus folclóricos (categoria considerada reducionista), permeados de personagens como o pescador, o artesão, o capoeirista, a mãe de santo, a baiana de acarajé, etc (CUNHA, 2008). Apenas em 1986, como o tombamento do Terreiro da Casa Branca Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Salvador – BA) e no mesmo ano a Serra da Barriga/República dos Palmares (União dos Palmares - AL) temos a promoção de patrimônios vinculados diretamente ao que concebemos como cultura negra. Pelo mesma perspectiva, ocorreu, posteriormente, a patrimonialização do Terreiro do Axé Opô Afonjá (Salvador – BA), em 2000, e do Quilombo Ambrósio (Ibiá - MG) em 2002. 9                                                                                                                          Dividiam-se em três grupos: sudaneses, guinenos-sudaneses muçulmanos e bantus. 140 A transformação conceitual sobre o patrimônio pelo SPHAN ocorre com a direção de Aluízio Magalhães (1979-1982). O foco desloca-se do passado para o presente cotidiano da população. O mote da preservação estaria em primar pelo desenvolvimento e diversidade cultural do Brasil. A cultura brasileira, também, é vista a partir das contribuições de distintas culturas, mas diferente de Rodrigo Melo Franco de Andrade, não existe a pretensão de uma linearidade evolutiva. As expressões africanas e ameríndias são formas de vidas atuais em constante transformação e partícipes desse complexo que é o patrimônio, apesar de um tom ainda folclórico (GONÇALVES, 2002). A introdução do patrimônio imaterial (2000) como bens preservados pela instância governamental contribuiu para intensificar essa modificação da participação do negro no discurso da nação: Tambor de Criola do Maranhão (2007), Complexo Cultural do Bumba meu boi do Maranhão (2011), Jongo do Sudeste (2005), Matrizes do Samba no Rio de Janeiro (2007), Samba de roda do Recôncavo baiano (2004), Roda de Capoeira (2008), Ofícios dos mestres de capoeira (2008) e Ofícios das baianas de acarajés (2005). Diferentemente do patrimônio tombado, a maioria dos registros realizados até a atualidade são compostos em sua maioria pelas expressões que carregam elementos da cultura negra. É essa mudança de enfoque10, a qual denominamos de valor pela “liberdade”. Novos temas e sujeitos foram incorporados aos limiares do patrimônio, este passou a ser visto em processo, composto enquanto mecanismo de legitimação, autoestima e cidadania de variados grupos. As identidades locais, comunitárias e étnicas desprovidas de espaço no enredo na nação, ganham força como instrumentos de luta política e garantias sociais, em busca de histórias alternativas e revisionistas. O trabalho com a memória como elemento político e cultural de destaque na sociedade brasileira se justifica em face do processo de escravidão, colonização e das desigualdades sociais que afetam, com relativa antiguidade, as camadas populares, rurais e urbana, incluindo segmentos como pescadores ribeirinhos, camponeses, indígenas, negros e mulheres. (...) Observa-se que inúmeros grupos se constituem como sujeitos políticos, e sua voz muitas vezes incorpora a memória, a cultura e a identidade (RATTS, 2009, p. 107-108). Incluímos a organização e a articulação do movimento negro no país (ganhou impulso com o encerramento da ditadura militar no final da década de 80) que utiliza 10                                                                                                                         “Deve ser destacada entre as ações de valorização da História e cultura africana e afro-brasileira a promulgação da Lei nº 10.639, de janeiro de 2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de História da áfrica, culturas africanas e cultura afro-brasileira, na regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos” (CUNHA, 2008, p. 169). 141 como instrumento de luta a construção de uma identidade negra11 como forma de buscar a garantia de direitos civis por meio de políticas afirmativas (entre as mais conhecidas estão as cotas raciais nas universidades). A valorização de novas interpretações que refutem o estigma do exótico e uma eterna associação com a escravidão. Narrativas que compreendam a dimensão das manifestações ocorridas durante o período escravocrata, mas também saliente o vasto repertório cultural desencadeado depois da abolição, a tentativa de atribuição de valores que os libertem deste estigma. Não se trata, portanto, de incluir os pobres e os excluídos, de “dar cidadania” para uma massa amorfa, nem de eternizar para apagar. Em seu desejo de eternização, os movimentos sociais contribuem para demarcar seu lugar numa ordem que permanentemente se deseja excluir. É nesse sentido, aliás, que se podem pensar as novas ações museais e as novas bases sobre as quais as ações patrimoniais se orientam. Verifica-se a possibilidade de inscrever grupos até então não inseridos, contexto em que surgem centros de memória de grupos subalternizados, como o Museu da Maré, museus de centros de candomblé, e lutas pela afirmação da pintura, arte, línguas indígenas, e por reconhecimento de comunidades quilombolas, percebendo-se junto a isso a abrangência de um novo conceito de patrimônio (FERRAZ, 2008, p.12). Evidentemente apenas a valoração em patrimônio dessa gama cultural negra, até então marginalizada, não é suficiente para resolver históricos problemas sociais12, mas abre caminhos para uma maior reflexão sobre a memória negra e as condições atuais dessa comunidade. Outros documentos e exemplos poderiam contribuir a analise deste panorama apresentado. Contudo, acreditamos que apesar das limitadas dimensões de uma comunicação de congresso conseguimos elencar um esboço inicial de nossas políticas de patrimônio relacionadas aos negros. O relevante para nossa discussão a partir deste momento é entender as possíveis reverberações daqueles discursos sobre os acervos do Museu do Ceará. 11                                                                                                                         “trata-se da adesão a uma estética da negritude – vestuário, penteados, adereços, ditos afro. Além de sua própria imagem, a adesão deve passar pela valorização e mesmo adoção de elementos da "cultura africana", tais como música, dança, jogos e até hábitos alimentares, traduzidos nos jornais em receitas atribuídas aos antigos descendentes de escravos. Para completar o modelo, insiste-se na adoção, para as crianças, de nomes africanos, que aparecem sempre nos jornais acompanhados de sua tradução para o português” (MAUÉS, 1991, p.127). 12 “Negros e pardos recebem menores salários, têm maior dificuldade em conseguir emprego, lideram estatísticas de vítimas de mortes violentas e constituem maioria da população carcerária”. Cf.:<http://www.institutobrasilverdade.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=872&Itemid=2>. Acesso em 17.06.2011. 142 2. O Negro entra no Museu do Ceará Comemoramos os 80 anos de criação do Museu do Ceará em 2012. Oportunidade para refletirmos sobre suas práticas museológicas durante décadas como o principal museu histórico do Estado. Porta voz e guardião oficial dos fragmentos do passado cearense. O museu faz parte do nosso objeto de pesquisas13. Continua na pauta de investigações em nível de Pós-Graduação no Mestrado em Museologia e Patrimônio, linha Museologia, Patrimônio integral e Desenvolvimento, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO (turma 2012). Em linhas gerais, a problemática condutora do trabalho dissertativo permeia a compreensão da relação entre os campos da Museologia e da História na construção expositiva. Em outras palavras, a escrita da história pelos objetos musealizados. O Museu do Ceará com sua coleção sobre escravidão e abolição negra é o objeto de análise. A investigação consistirá em evidenciar como essas peças, a partir dos instrumentos museológicos de salvaguarda e comunicação, formaram suportes de discursos por meio da apropriação de diferentes pensamentos historiográficos, patrimoniais, museológicos, antropológicos. Configurando narrativas sobre os negros. Podemos perceber as ressonâncias dos modelos de valoração do negro sobre o patrimônio nacional na constituição do seu acervo. Evidenciar em que medida houve continuidade e/ou rupturas. O ato de musealização, assim como a patrimonialização, é conferir sentido de memória, atribuir significados simbólicos. Está permeado pela visão de mundo daqueles profissionais que compõe o museu. Trabalha na fronteira do subjetivo. Com isso, nosso foco recaiu na primeira política de aquisição do Museu do Ceará. Precisamente nos artefatos adquiridos que de alguma forma foram atrelados aos negros. Fundado por Eusébio de Souza (1932-1943) (batizado inicialmente de Museu Histórico do Ceará – MHC), era composto por duas salas nas instalações do, também, recém-criado Arquivo Público do Estado. Os objetos coletados e expostos pelo diretor possuíam a intenção de atrelar a identidade cearense personagens e eventos que glorificariam a História do Ceará. Dos povos considerados tradicionalmente formadores 13                                                                                                                         Estudo sobre as apropriações históricas que adolescentes estudantes de escolas públicas formaram sobre a Ditadura militar no Brasil após visitarem à mostra Memorial Frei Tito do Museu do Ceará (PASSOS, 2011). 143 do Ceará, entre índios, negros e brancos, valorizou-se uma memória lusitana14, considerada instauradora da “civilização”. Houve influência de Gustavo Barroso no pensamento de Eusébio. Ele chegou a frequentar o MHN buscando referências para aplicar no MHC. No entanto, as duas entidades diferiam em alguns pontos. “(...) Enquanto Barroso conseguiu excluir a presença de índios e negros da sua Instituição (...)” (HOLANDA, 2005, p. 142), no Ceará, houve a presença de peças indígenas compondo o acervo. Sobre a organização das salas no período não existe uma definição exata, mas registros apontam para a disposição das peças: O Museu histórico está dividido em três seções: a de objetos leves, como móveis, fotografias, medalhas, estandartes, bandeiras, células etc., instalada na sala Antônio Bezerra; a de objetos pesados, como canhões, balas e semelhantes; finalmente a do Instituto Histórico [do Ceará], cedida a esse sodalício de letras e estudos, sob o patrocínio de Paulino Nogueira (A RUA, 10/03/1933 apud.SILVA FILHO; RAMOS, 2007, p. 51). Podemos perceber um delineamento do que SANTOS (2006) denominou museumemória. As mostras possuem aspectos de antigos antiquários. Românticas, patrióticas, maniqueístas e não trabalham com recortes temáticos da história (não cronológica). Todos os objetos deveriam ser expostos. Os artefatos não exemplificavam o passado, eram as próprias mostras do passado. Elencamos do conjunto de objetos expostos àqueles que podemos relacionar aos negros: bandeira da sociedade Libertadora Estudantal (grupo abolicionista), botão de punho do jornal O Libertador (jornal abolicionista), o quadro Fortaleza liberta (retratação da sessão na Assembleia provincial de assinatura da abolição no Ceará), tela dos sócios fundadores da sociedade Perseverança e Porvir (grupo abolicionista), as bandeiras das sessões da Libertadora Icoense (grupo abolicionista), a pintura de Francisco José do Nascimento (Dragão do Mar) e a imagem de proa da barca Laura II (Navio negreiro). Quais apropriações foram feitas sobre os objetos? Em que esquemas retóricos esses enunciados se agruparam? Os negros estão delimitados dentro do período escravocrata. Lembrados pelo sofrimento. Valorizados pelas dores acometidas durante anos nas senzalas. Com o advento da abolição surge um novo personagem: a elite intelectual branca. Nas palavras 14                                                                                                                         “(...) Parte das ruínas da igreja e hospício jesuítas, a mesa da Câmara de Aquiraz e a lápide de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção” (HOLANDA, 2005, p. 58). 144 da historiadora Maria Amélia Oliveira observamos as atribuições dadas por Eusébio ao movimento abolicionista: (...) Percebemos a quem ele atribui as glórias pela emancipação dos cativos no Ceará. Os abolicionistas são apresentados como os “libertadores”, revolucionários responsáveis por uma espécie de cruzadas em prol do fim da escravidão. O autor parece atribuir ao movimento abolicionista uma espécie de predestinação na luta pela mão de obra cativa no Ceará, ao afirmar que, do núcleo revolucionário irradiava naturalmente, todo o movimento emancipador (OLIVEIRA, 2009, p. 172). Temos os papeis bem definidos. Os negros são as vítimas das atrocidades, os brancos viraram heróis, já não cabem vilões. Não existe problematização da condição de resistência da comunidade negra e, menos ainda, da vida no pós-abolição. Eusébio não dialoga sozinho. Ele está em sintonia com o pensamento vigente na época. A tradicional historiografia cearense utilizou como mote de exaltação da identidade local o fato de ter sido o primeiro estado no país a realizar o fim da escravidão em 1884. Serviu como justificativa para criar a imagem de uma próspera civilidade marcada pela intelectualidade e humanitarismo. Ao destacar uma grande quantidade de objetos relativos a agremiações abolicionistas, o diretor do MHC busca glorificar o passado cearense. Por outro lado, não existe nenhuma peça oriunda de uma produção cultural negra. O negro é coadjuvante nessa história, serve apenas de trampolim para engrandecimento de uma parcela branca da população. A exceção estaria na figura do Dragão do mar. Cunhado como um dos símbolos da luta contra a escravidão. Um negro que liderou a greve no porto de Fortaleza para impedir o tráfico negreiro para os cafezais do sul em 1881. Podemos considerá-lo um símbolo da ausência. Posteriormente a abolição, falava-se na inexistência de índios e negros no Ceará, existiria a mistura, ou seja, caboclos ou “morenos”. Assim como aconteceu durante décadas na construção do patrimônio nacional, no MHC, o negro não conquistou o mesmo espaço e valorização que outras manifestações amealharam. Se podemos dizem que o negro entrou por meio de representações materiais no MHC, seria correto afirmar metaforicamente que sua entrada deu-se pela porta dos fundos. 145 3. Considerações Finais O que apresentei nestas linhas foi o caminhar inicial de uma pesquisa em construção, ainda, sujeita a avanços, recuos, curvas, pausas e uma série de imprevistos naturais da investigação acadêmica. Mostrei o retrato de um momento. Ao nos debruçarmos sobre a formação inicial da coleção sobre a escravidão e abolição temos o primeiro passos para a compreensão de como esses mesmos objetos serão reportados em diferentes momentos da instituição e integrados com outros artefatos para validar diferentes discursos. O Olhar sobe a memória e a cultura negra vem em constante transformação no Brasil e, também, no Ceará. Desde a década de 1970 com a identificação de comunidades negras indígenas, a emergência do movimento negro nos fins da década de 1980 e o aumento pesquisas científicas que possuem questões negras como objeto criam demandas para novas formas de representação. Procurando romper com perigosas naturalizações e esteriotipações. Devemos abrir portas e janelas. Tornar os museus espaços de debate e mediadores das demandas da sociedade. Possibilitado não apensas a comunidade negra, mas todos os grupos sociais se reconhecerem no que é patrimonializado. 4. Referências ABREU, Regina. Patrimônios etnográficos e museus: uma visão antropológica. In.: ABREU, Regina; Dodebei, Vera. E o patrimônio? Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008, p. 33 – 58. CALABRE, Lia. Políticas Culturais no Brasil: balanço e perspectivas. In: III ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado, na Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador, 2007. Disponível em: [http://www.gestaocultural.org.br/pdf/Lia%20%20Pol%C3%ADticas%20Culturais%20no%20Brasil%20balan%C3%A7o%20e%20persp ectivas.pdf]. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, São Paulo: Estação Liberdade; Editora UNESP, 2001. CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo. 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E, embora o distrito-sede da cidade de Petrópolis não tenha sido a área mais atingida pelo impacto das chuvas de janeiro de 2011, ressalta-se que houve uma situação de perda de empreendimentos criativos, incluindo o lazer e o turismo cultural. O estudo faz parte de Projeto de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro que se propõe a intensificar o processo de trocas com a sociedade e estimular, por meio da integração pesquisa/ensino/extensão, a complementação da formação de alunos de graduação e pós-graduação. O estudo propõe uma ação continuada de reconhecimento por meio de realização de percursos, encontros, palestras e oficinas efetuadas nas instituições estudadas. Essas atividades visam formar multiplicadores comprometidos com o processo de reconhecimento do patrimônio da cidade, entendendo-se que a educação patrimonial age sobre a dinâmica econômica municipal. Palavras-Chaves: Patrimônio Requalificação urbana. cultural, Espaços culturais, Lugares de memória, Resumen El texto presenta las actividades llevadas a cabo en el estudio de la arquitectura de los lugares de memoria de Petrópolis, una ciudad en la Región Serrana del estado de Río de Janeiro, observando que la definición de los lugares de memoria incluye significativamente los edificios de los museos y centros culturales. Las prácticas                                                                                                                         1 Cêça Guimaraens é arquiteta, pesquisadora do CNPq e professora associada do Programa de Pósgraduação em Arquitetura da UFRJ. Doutora em Museologia e Planejamento Urbano e Regional é diretora de Cultura do Instituto de Arquitetos do Brasil e coordenadora do DOCOMOMO-Rio; escreve e organiza livros e artigos sobre arquitetura moderna, museologia e patrimônio.   2 Luiz Manoel Gazzaneo, é arquiteto e professor associado do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ. Doutor em Urbanismo, organiza livros e escreve artigos sobre a história do Urbanismo no Brasil e Portugal. Lidera grupo de pesquisas sobre espaços públicos vinculando pesquisadores e professores de universidades brasileiras, portuguesas e espanholas.   3 Ana Albano Amora é arquiteta, doutora em Planejamento Urbano e Regional e professora adjunta do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ. Foi professora da UFSC e secretária do DOCOMOMO-Rio. Autora e organizadora de livros e artigos sobre a história e a arquitetura de equipamentos de saúde, é também professora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz.   4 Mauricio Castilho é arquiteto da UFRJ e mestre em Arquitetura com dissertação sobre reservas técnicas do Museu da República e do Museu Histórico Nacional onde fez parte da equipe de museografia. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da mesma universidade, realizou exposições em museus em várias cidades do país.   148 nacionales e internacionales que ponen de relieve la importancia y el papel de la arquitectura de estos edificios para la renovación de los centros urbanos degradados y las periferias son la base de la obra. También se observó que los espacios culturales del estado de Rio de Janeiro tienen gran importancia simbólica para el país. Y aunque la ciudad sede del distrito de Petrópolis no ha sido la zona más afectada por el impacto de las lluvias de enero de 2011, es notable que hubo una situación de pérdida de los esfuerzos creativos, incluyendo el ocio y el turismo cultural. El estudio forma parte del Proyecto de Extensión de la Universidad Federal de Rio de Janeiro que se propone intensificar el proceso de intercambio con la sociedad y fomentar, mediante la integración de la investigación / enseñanza / extensión, como complemento de la formación de los estudiantes de graduación y post graduación. Por lo tanto, se propone una acción continua del reconocimiento de los lugares de memoria a través de la realización de cursos, reuniones, conferencias y talleres llevados a cabo en las instituciones estudiadas. Estas actividades tienen como objetivo capacitar a multiplicadores individuales y personas comprometidas con el proceso de reconocimiento del patrimonio de las ciudades, con el entendimiento de que la equidad de la educación actúa directamente sobre la dinámica de la economía municipal. Palabras clave: Patrimonio Cultural, Espacios Culturales, Lugares de la memoria, Renovación Urbana.   Abstract This research will present activities related to the study of the architecture of cultural places of the City of Petrópolis, located in the so-called Região Serrana of Rio de Janeiro’s country side, noting that the definition of these cultural places significantly encompasses museum buildings and cultural centers. The main focus of this work is to show the national and international practices that single out the importance and the role that the architecture heritage of these buildings play to encourage the renovation of degraded areas in urban centers and their surroundings. It also shows that Rio de Janeiro’s cultural countryside possess an expressive symbolic importance for the country as a whole. Even though the district where the City of Petrópolis sits was not the most impacted by the floods of January 2011, nonetheless it incurred a significant loss of creative input, including those related to leisure and cultural tourism. The study is part of an Exchange Project of the Federal University of Rio de Janeiro which seeks to broaden the spectrum of exchange within the society, and stimulate the integration of researchstudy exchange, in order to complement the education of high school and college graduates. This work proposes continuous action rewarded by fieldtrips, meetings, discussions and workshops set up at the institutions undergoing the study. Such activities purports to develop individuals and interests committed with the process of preserving the city’s cultural heritage, with the understanding that education wealth influences the municipal economic dynamic. Key words: cultural heritage, cultural environment, places of memory, urban preservation. 1. Introdução Os estudos da arquitetura dos lugares de memória de Petrópolis, cidade localizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, constituem o eixo e os objetivos das atividades de extensão realizadas no âmbito do projeto de pesquisa “A importância dos museus e centros culturais para a reabilitação de centros urbanos”. 149 Esses projetos são desenvolvidos no Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ — PROARQ e, nesse sentido, as atividades compreendem as pesquisas acerca de diferentes tipos e naturezas da arquitetura de edifícios de museus e centros culturais. Observa-se, de início, que os espaços culturais das principais cidades fluminenses possuem importância simbólica expressiva para o estado do Rio de Janeiro, em razão dos critérios que envolvem a proteção da visibilidade e a preservação da ambiência de edifícios e conjuntos arquitetônicos e urbanísticos, sejam estes protegidos por normativas legais ou não. No caso de Petrópolis, a relevância histórica atinge o nível nacional, tendo em vista que a espacialidade simbólica e a arquitetura que identificam a cidade são produtos do poder central do Brasil. Nessa condição, o ambiente urbano se constituiu desde o Império, quando d. Pedro I comprou a fazenda do Rio Seco (Figura 1), em 1830, estendendo-se sob a forma de lugar da memória nacional até a República. Figura 1 - Fazenda do Córrego Seco, cerca de 1800. Fonte: Arquivo do Museu Imperial. Assim, as fases Imperial e Republicana produziram expressões arquitetônicas residenciais representativas da evolução intelectual, comercial e industrial do nosso país. Desse modo, casas e palacetes resultaram de modos de vida únicos, retratando, ainda hoje, a posição social e cultural de seus proprietários que são, ou foram, personagens famosos e anônimos habitantes da serra fluminense. O entendimento do sentido e significado dos vocábulos museu e centro cultural demandaram esforços de leitura e de interpretação dos edifícios articulados ao contexto urbano, dado que é neste lugar que as atividades museológicas estão inseridas. Desse modo e na perspectiva da requalificação urbana que prioriza (e é também priorizada) na 150 proteção do patrimônio cultural, entende-se que os aspectos arquitetônicos e urbanísticos devem ser destacados. À pergunta: quais são os Lugares de Memória? buscou-se responder: são os museus, arquivos e bibliotecas, sim; mas, também as ruas, edifícios e paisagens são lugares de memória, pois estes são espaços onde está presente a história dos indivíduos, pessoas e grupos sociais. Portanto, considera-se que o “espaço cultural” se expressa de modo singular em lugares de memórias configurados fisicamente em espaços onde se encontram os edifícios de museus e centros culturais. Então, a abordagem conceitual e metodológica da forma física desses edifícios e lugares busca reafirmar a condição que estes detêm de elementos determinantes do caráter e da imagem da vida cultural dessas cidades. Tais fundamentos, que se baseiam em estudos de âmbito nacional e internacional, imprimem importância ao papel da arquitetura de edifícios de museus e centros culturais nas ações de renovação das áreas degradadas existentes em centros e periferias urbanas. Na leitura de textos de estudiosos e em projetos de arquitetos foi verificado largamente que o tipo museu e centro cultural é um dos programas arquitetônicos mais difundidos nas últimas décadas; e também foram encontrados diferentes argumentos e exemplos que os consideram importantes vetores da reabilitação urbana e da participação das comunidades nas ações voltadas para a educação patrimonial. Muitas dessas instituições foram abrigadas em edificações históricas projetadas inicialmente para outras atividades, o que demanda um trato particular no processo de adaptação do espaço físico desse patrimônio. Esse estudo permitiu verificar que alguns edifícios e espaços culturais contêm situações físico-espaciais diferenciadas em razão da história e também da localização, quando observadas as escalas do bairro, da cidade e da região. Por outro lado, a investigação a respeito das ações de requalificação urbana levou a conhecer e reconhecer a importância da criação e da proteção desses tipos de indivíduos arquitetônicos, pois, os mesmos abrigam parte considerável da produção cultural e artística (ou seja, histórico-simbólica) de grupos fluminenses diversos, em diferentes períodos. Acrescenta-se, dessas leituras, que foi possível observar o fato de que as arquiteturas e o urbanismo são fatores decisivos para a adaptação das cidades aos impactos do comércio internacional e da globalização. Tal fato indica, entretanto, que a 151 economia e a técnica não se impõem de modo exclusivo na perene atualização do espaço físico. Porém, verificou-se que os museus, quaisquer que sejam as situações físicas em que se encontram, privilegiam, impulsionam e anunciam dotação de valor aos ambientes, o que incentivaria a implementação de soluções dos problemas sociais. Além disso, observa-se que esses lugares de memória são espaços configurados em territórios, têm recortes patrimoniais específicos e, portanto, são espaços em que as ações de revitalização e o gerenciamento da informação podem ocorrer tanto de modo real quanto de modo virtual. Em razão da importância do apropriado uso da arquitetura dos edifícios culturais para as ações de requalificação urbana, o estudo do papel destas instituições no campo da proteção patrimonial e a difusão das atividades, o trabalho também se justifica dos pontos de vista local, regional e nacional. Destaca-se, nesse sentido, que os municípios da Região Serrana do Rio de Janeiro sofreram o impacto das chuvas de janeiro de 2011. O distrito sede da cidade de Petrópolis não foi a área mais atingida, mas ressalta-se a situação de perda de visitantes para atividades de lazer de final de semana, bem como o fluxo do turismo. Tal situação torna oportuna a promoção das atividades culturais ali realizadas a fim de recuperar, por meio de empreendimentos criativos, o lazer e o turismo. Importa ainda ressaltar que a busca de complementação da formação de alunos de graduação e pós-graduação intensifica o processo de trocas entre a universidade e a sociedade. Dessa maneira, a integração de atividades de pesquisa, ensino e extensão articulam segmentos da academia, técnicos e publico em geral, residente e visitante desta cidade, estimulando o processo de implantação de políticas de preservação da memória. As ações e atividades são planejadas em conjunto com quadros técnicos dos museus, comunidade local e usuária destes bens, visando incrementar as atividades culturais. Nesta perspectiva, estudantes e público em geral estão inseridos em um processo de extensão, no qual a educação patrimonial permite que sejam compartilhadas as experiências, agindo, ao mesmo tempo, sobre a dinâmica da economia municipal. Alguns resultados dos estudos, visitas aos bens, levantamentos e encontros presenciais na cidade de Petrópolis aqui divulgados, promovem a importância e o papel da universidade na produção e democratização do conhecimento. Além disso, as atividades da pesquisa propiciam a ampla difusão do valor simbólico e cultural das 152 instituições estudadas, implementando o debate constante com vistas ao aprimoramento do papel dos bens culturais para a requalificação urbana da cidade. O escopo das atividades disciplinares na graduação e na pós, até agora desenvolvidas, procura associar de forma sistemática as atividades de ensino, pesquisa e extensão, construindo metodologia de trabalho na qual os estudantes são vistos não somente como depositários, mas ativos participantes do processo de produção do conhecimento. Nesse sentido, busca-se qualificar o olhar dos estudantes para atender a demanda do setor museológico, o qual, segundo se percebe, necessita de profissionais qualificados no campo da arquitetura. As atividades desenvolvidas integram estudantes de diversos níveis, desde a graduação, envolvidos como estagiários – bolsistas de Iniciação Científica, e de extensão, – e de pós-graduação, pois os estudos fazem parte de seus projetos de pesquisa de mestrado e doutorado. É de ressaltar que a UFRJ tem atualmente cerca de 500 bolsistas de extensão com recursos da própria instituição. A unidade onde o estudo se desenvolveu — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo — tem dois programas de pós-graduação, e um deles, o PROARQ, que abriga o Grupo de Estudos de Arquitetura de Museus, responsável por este Projeto, conta com linhas de pesquisa fundamentais para o desenvolvimento das atividades, tais como as de Teoria, História e Crítica e de Restauração e Gestão do Patrimônio. 2. Ações e Resultados Conhecer, levantar, identificar, catalogar, disponibilizar informações e propor soluções são objetivos gerais que estão sendo colocados em prática por meio de análises da importância da arquitetura dos museus e centros culturais da cidade de Petrópolis. As análises abrangem também os estudos da situação e localização, naturezas dos acervos e formas de expor, incluindo as alterações formais e programáticas referentes aos usos originais e atuais das construções. As atividades realizadas incluíram visitas, roteiros, palestras e oficinas, e a produção de artigos acadêmicos elaborados pelos professores e estudantes de modo conjunto. 153 A realização de visitas e encontros com acadêmicos e técnicos dos museus e centros culturais estudados para a discussão dos resultados em oficinas configuraram as atividades complementares. Assim, foram confrontadas e discutidas as informações sobre a delimitação conceitual e física do entorno das construções; os levantamentos sobre a situação e localização, tipos de usos, níveis de conservação e manutenção e graus de segurança e acessibilidade; a definição e hierarquização de indicadores físicoambientais e histórico-simbólicos; a identificação dos edifícios e espaços culturais da malha constituída pelos entornos; os levantamentos das intervenções e ações e obras de proteção realizadas entre 1985-2010 em edifícios e conjuntos preservados existentes no entorno; e as tendências de desenvolvimento. As oficinas e sessões abertas para os técnicos tiveram a perspectiva de pesquisaação, objetivando difundir as informações, checar dados e discutir soluções, com a finalidade de contribuir para o incremento das atividades museológicas nas instituições escolhidas. Vale esclarecer que as apresentações de alguns resultados ocorreram em paralelo às atividades de levantamento, classificação e análises. Assim, delimita-se a natureza do escopo do trabalho e garante-se a qualidade dos dados levantados. Os encontros, realizados no Museu Imperial, compreenderam as aulas e oficinas com alunos de graduação e pós-graduação, grupos técnicos e servidores. Desse modo, cumpriu-se o objetivo de constituir uma maneira de formar multiplicadores do projeto, comprometidos com o processo de reconhecimento do patrimônio cultural da cidade. Nessas reuniões, as informações coletadas e processadas foram discutidas, permitindo o planejamento das ações futuras. As primeiras atividades abrangeram a preparação da equipe no atelier do PROARQ na UFRJ. Ali foram realizadas as reuniões de estudos e pequenos seminários sobre a história da formação da Região Serrana e da cidade de Petrópolis; e foram também ministradas aulas para os estudantes sobre as linguagens arquitetônicas dos séculos XIX e XX, e a museografia e arquitetura de museus e centros culturais. Essas atividades objetivaram primordialmente o conhecimento e a promoção da importância do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade de Petrópolis. Os trabalhos iniciais visaram identificar as relações físico-espaciais dos seguintes museus e centros culturais: Museu Imperial e Casa do Colono (Figuras 2 e 3) Palácio Rio Negro; Casa de Santos Dumont; e Hospital da Casa de Caridade de Petrópolis, atual Hospital de Santa Teresa. 154 Figura 2 - Museu Imperial: fachadas principal e lateral, 2012. Foto de Maurício Castilho. Figura 3 - Casa do Colono: fachada principal, 2012. Foto de Camila Armbrust. Entretanto, importa aqui destacar que o Museu Imperial foi definido na condição de ponto focal dos estudos, tendo em vista a importância desta instituição e a infraestrutura e o interesse dos funcionários. Observamos, nesse sentido, que alguns dos funcionários desse museu são professores e alunos da rede pública de ensino petropolitano, o que tornaria esta composição uma comunidade representativa da sociedade com a qual se pretende interagir. Os roteiros e percursos a pé entre a Casa do Colono e o Museu Imperial e entre o Museu Imperial e o Palácio Rio Negro (Figura 4 a e b) resultaram em registros visuais dos tipos de construções e das linguagens estilísticas existentes no entorno (Figura 5 (a, b e c)). Esses registros serviram de base para as aulas ministradas para os funcionários. 155 Figuras 4 (a e b) - Mapas de percursos. Casa do Colono – Museu Imperial e Museu Imperial – Palácio Rio Negro . Desenhos de Camila Armbrust e Larissa Perna, 2012. Base dos mapas: Google. Figuras 5 (a, b e c) - As arquiteturas excepcionais no entorno do Museu Imperial Modernismo e brutalismo em edifício residencial, escola e centro cultural. Fotos de Cêça Guimaraens, 2012. No Museu Imperial foram realizadas as reuniões e aulas-oficinas com funcionários para apresentar os resultados das pesquisas e planejar novas atividades; visitas monitoradas às exposições permanentes e temporárias; sessões de fotografação, filmagens e desenhos dos espaços físicos públicos abertos e das construções do conjunto e do entorno. A finalidade dos registros visuais devia-se à importância destes para a cidade, tendo em vista a categorização arquitetônica e urbanística que os diferenciaria dos existentes em outras cidades. As leituras sobre a história da formação do urbanismo, a arquitetura dos edifícios, o paisagismo dos jardins e do entorno do Museu Imperial resultaram em trocas e discussões sobre os aspectos sociais e políticos da formação da imagem desta instituição. Em paralelo, as visitas às exposições do Museu Imperial (Figura 6 (a e b)), Casa Cláudio de Souza (Figura 7 (a e b)), Casa do Colono e Palácio Rio Negro motivaram os exercícios dos estudantes e a participação deles nas aulas nas apresentações dos resultados das pesquisas para os funcionários. 156 Figuras 6 (a e b) - Exercício Análise qualitativa da exposição “Artistas italianos no Brasil Imperial”. Museu Imperial, 2012. Desenho e foto de Pedro H. Penalva Rodrigues. Figuras 7 (a e b) - Exercício Análise qualitativa da exposição “O olhar feminino na literatura de Cláudio de Souza”. Casa Cláudio de Souza, 2012. Desenho e foto de Pedro H. Penalva Rodrigues. A preparação de material para worshops (maquetes e desenhos) com os funcionários do setor de exposições do Museu Imperial configurou uma situação especial em que a participação conjunta dos professores e estudantes da UFRJ concretizou uma proposta para a reestruturação de espaço expositivo no edifício da Ucheria (Figura 8). Esse anexo faz parte do conjunto arquitetônico do Museu Imperial, e aí se encontravam em exibição a cena da batalha da Guerra do Paraguai e veículos de transporte de diferentes épocas, destacando-se, dentre estes, a carruagem de d. Pedro II. Figura 8 - Proposta para exposição na Ucheria do Museu Imperial. Grupo de Estudos de Arquitetura de Museus da UFRJ, 2012. 157 A proposta para a nova exposição baseou-se na interpretação de fato histórico relacionado à vida afetiva de uma das princesas, o qual provocou a Guerra do Paraguai. O cavalo, animal referenciado nas peças principais da exposição, foi escolhido para representar as iniciativas positivas e negativas das fases da história que seria narrada. Assim, sons, imagens e objetos relacionados aos movimentos selvagens e civilizados que geram afetos, progresso e conflitos são os eixos constantes em todos os módulos da exposição, desde o acesso até à última sala em que se aprecia a cena da Batalha. 3. Conclusão Embora em espaço restrito deste artigo, é imprescindível lembrar que elaboramos para o estudo um aparato técnico-científico usual e, de certa maneira, corriqueiro. Portanto, o trabalho foi realizado com a participação ativa dos professores e estudantes bolsistas. Neste sentido, no que diz respeito ao desempenho e à qualificação dos trabalhos e encontros com os funcionários do Museu Imperial, tanto os professores quanto os estudantes, desempenharam as atividades que foram programadas com propriedade, qualidade e entusiasmo. Este desempenho apoia-se em escopo de trabalho que procura articular de forma sistemática as atividades de ensino e pesquisa, construindo metodologia de trabalho na qual a equipe é não somente depositária, mas partícipe ativa do processo de produção e difusão do conhecimento adquirido. Aqui também não há referências nem comentários detalhados a respeito do nível das descobertas e da riqueza de situações que vivenciamos, porque a estes relatos impõe-se medida restrita que os destina a apresentar apenas parte dos resultados que as experiências e reflexões objetivas puderam proporcionar. No entanto, é oportuno destacar que a consecução positiva dos principais objetivos do estudo também se configura na ampliação da produção acadêmica dos docentes e discentes a ser discutida em reuniões científicas. 4. Referências COSTA, Maximino da. (2002). A proteção do Centro histórico de Petrópolis, RJ. Dissertação de Mestrado, UFRJ- FAU/PROARQ. Orientadora: Cêça Guimaraens. MARTINS, Ismênia de Lima. Subsídios para a história da industrialização em Petrópolis. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis,1978. MONTANER Josep Maria. Museu contemporâneo, lugar e discurso. Revista Projeto, n.144, São Paulo, p. 34-41,1991. MORLEY, Edna June. (2001). A forma da utopia. Dissertação de Mestrado, UFRJFAU/PROARQ. Orientador: Vicente Del Rio.. 158 NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris, Gallimard, 1994. PROEXT-MEC. UFRJ/FAU-PROARQ. (2011-2012) Projeto de Extensão “A arquitetura dos lugares de memória da cidade de Petrópolis.” Coordenadora: professora Cêça Guimaraens; subcoordenadores: professores Luiz Manoel Gazzaneo, Ana Albano Amora e Maurício Marinho Alves de Castilho; estudantes bolsistas: Camila Machado Armbrust, Carla Magalhães. Gabriel Ramos, Juliana Gomes, Larissa Perna, Marinah Raposo, Mayara Maia Corrêa, Pedro Henrique Penalva Rodrigues e Piero Martins. SERRA, Patrimônio em risco. (22/4/2012). O GLOBO, Jornal da Região Serrana. 159 MUSEOLOGÍA, POLÍTICAS PÚBLICAS E INCLUSIÓN SOCIAL EN EL ECUADOR Lucía Astudillo Loor1 Resumo A Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, CONAIE, trabalhando desde 1986, foi muito importante para uma maior inclusão social no país. As duas últimas Constituições, 1998 e 2008, marcaram desenvolvimentos positivos assinalados em termos de políticas públicas e inclusão social. No entanto, é a prática cotidiana, a mente e as ações dos cidadãos que nos levarão a conseguir que no país haja relações interculturais plenas e inclusão social com respeito profundo pelos outors. A visão do Ministério da Cultura é a de exercer "a administração das políticas culturais públicas e do Sistema Nacional de Cultura, que garantem o pleno exercício dos direitos culturais e afeta a integração simbólica do Equador e na mudança cultural da sociedade baseada na interculturalidade, contribuindo para a realização do bem viver". O Sistema Equatoriano de Museus (SIEM) "visa facilitar o diálogo entre museus e instituições públicas e privadas para promover a gestão coordenada no campo e promover a efetiva implementação da política nacional em todo o território, com a participação das partes interessadas na esfera cultural". Esperamos que o Ministério motivem os museus para trabalhar em prol da sociedade e que os eventos pasados e presentes sejam exibidos com pesquisa e imparcialidade, tendo em conta os pontos de vista das comunidades em favor ou contra este evento, ou seja, com vários pontos de vista e que a visão estatal não seja única. O Equador é um país onde os museus foram criados no século XX. Desejamos que, orientada pela Museologia, por uma filosofia concebida a partir de instituições públicas e privadas, bem como das pessoas, a Lei Nacional de Cultura, que está para ser aprovada, conte com políticas culturais inclusivas no que diz respeito aos museus e a todas as suas ações. Palavras-chave: CONAIE, Constituições, Ministério, inclusão, sistema, museus. Resumen La Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador, CONAIE, trabajando desde1986, tuvo gran importancia para una mayor inclusión social en el país. Las dos últimas Constituciones, 1998 y 2008, marcaron avances positivos en cuanto a las políticas públicas y a la inclusión social. Sin embargo, es la práctica cotidiana, es la mente y el actuar de los ciudadanos lo que nos llevará a lograr que en el país existan plenas relaciones interculturales e inclusión social con profundo respeto hacia los otros. La visión del Ministerio de Cultura es ejercer “la rectoría de las políticas públicas culturales y del Sistema Nacional de Cultura que garantiza el ejercicio pleno de los derechos culturales e incide en la integración simbólica del Ecuador y en el cambio cultural de la sociedad basado en la interculturalidad, contribuyendo a la materialización del Buen Vivir” El sistema Ecuatoriano de Museos (SIEM) “busca facilitar el diálogo entre 1 Doutora em História (Universidade de Azuay), presidente del Comité Nacional del ICOM (ICOM – Ecuador), Directora do Museo de los Metales (Ecuador). Previamente fue Directora del Museo de Artes Populares (Cuenca) e Directora Regional do Instituto Nacional do Patrimonio Cultural do Ecuador. 160 museos e instituciones públicas y privadas para propiciar una gestión articulada en el campo y promover la implementación efectiva de la )política nacional en todo el territorio, con la participación de los actores involucrados en este ámbito cultural”. Aspiramos que el Ministerio llegue a motivar para que los museos trabajen en bien de la sociedad y que los eventos pasados y presentes se exhiban con investigación e imparcialidad, tomando en cuenta las opiniones de las comunidades a favor o en contra de ese acontecimiento, es decir con múltiples miradas y que la visión estatal no sea la única. El Ecuador es un país con museos creados en el siglo XX. Deseamos que, guiada por la museología, por una filosofía pensada desde las instituciones públicas y privadas, así como desde las personas, la Ley Nacional de Cultura que está por aprobarse, cuente con políticas culturales incluyentes en lo que respecta a los museos en todo su accionar. Palabras claves: CONAIE, Constituciones, Ministerio, inclusión, sistema, museos. Abstract The Confederation of indigenous nationalities of Ecuador, CONAIE, working since 1986, had great importance for a greater social inclusion in the country. The last two Constitutions, 1998 and 2008, were positive developments in terms of public policies and social inclusion. However, it is the daily practice, the mind and the actions of citizens, which will lead us to discover that in the country there are intercultural relations and social inclusion with deep respect towards others. The vision of the Ministry of Culture is "…the rectorship of public cultural policies and of the national system of culture, which guarantee the full exercise of cultural rights, the symbolic integration and cultural change of society based on interculturality, contributing to the realization of a good life.” The Ecuadorian Museums System (SIEM) "…seeks to facilitate an open dialogue between museums and public and private institutions, promoting an articulated work in the field management and promote the effective implementation of the national policy throughout the whole territory with the participation of the actors involved in this cultural field." We aspire to the Ministry’s motivation, so museums work for the good of society and past and present events exhibit researched with impartially, taking into account the views of communities for or against this event, i.e. with multiple looks and that the State vision is not the only one. Ecuador is a country whose museums were created in the twentieth century. We believe that guided by museology, a philosophy thought from public and private institutions as well as of persons, the national law on culture which is to be approved, will have cultural policies concerning museums that are all inclusive actions. Keywords: CONAIE, constitutions, Ministry, inclusion, system, museums. Museología, Políticas Públicas e Inclusión en el Ecuador La Museología materia de análisis de los especialistas del Comité de Museología del ICOM, ICOFOM, es considerada como la base teórica, reflexión crítica, una filosofía, que sirve de sustento y contexto a las actividades realizadas por los museos. En el Subcomité para América Latina, ICOFOM LAM, la Región, liderada por Nelly Decarolis, Tereza Scheiner y actualmente Gladys Barrios, ha continuado en forma permanente brindando oportunidades para plantear la teoría museológica, desde la óptica regional y analizar casos concretos de la práctica museológica. 161 Para este trabajo deseamos presentar un breve análisis sobre políticas públicas en nuestra Región, por lo que hemos tomado como caso de estudio la situación ecuatoriana presente. Queremos comenzar informando sobre la gran importancia que para la inclusión de todos los ecuatorianos, especialmente el sector indio, tuvo el trabajo organizado de la Confederación de Nacionalidades Indígenas del Ecuador, CONAIE, quienes desde el año 1986 iniciaron una lucha continua para ser incluidos en la vida política del país. Ellos establecieron su objetivo como” lograr la unidad de las diversas organizaciones indígenas que aisladamente luchaban por sus derechos, así como armonizar y compatibilizar las demandas históricas y la lucha frente al Estado Uninacional Ecuatoriano, sus gobiernos y autoridades de turno”. Los mismos realizaron varios levantamientos indígenas para hacer escuchar su voz creando en 1995 un partido político Pachakutic. Ellos afirman que son 45% de indígenas, sin embargo, el Censo del Instituto de Estadísticas y Censos, INEC 2010, en auto identificación de la población afirma que indígenas son el 7%. En nuestro país somos 77.9% mestizos, 7.2% afroecuatorianos y 7,4% montubios. Sin embargo esto no es relevante, ya que la importancia de la CONAIE radica en haber logrado una excelente organización y participación activa tanto en la vida política y organización del Estado. La Constitución Política de la República del Ecuador de 1998, tomando en cuenta las justas demandas, de la CONAIE, estableció que: Art.1.- Forma de Estado y Gobierno. El Ecuador es un estado social de derecho, soberano, unitario, independiente, democrático, pluricultural y multiétnico. Su gobierno es republicano, presidencial, electivo, representativo, responsable, alternativo, participativo y de administración descentralizada. El Estado respeta y estimula el desarrollo de todas las lenguas de los ecuatorianos. El castellano es el idioma oficial. El quichua, el shuar y los demás idiomas ancestrales son de uso oficial para los pueblos indígenas, en los términos que fija la ley. Art.62.-Promoción y políticas culturales. La cultura es patrimonio del pueblo ecuatoriano y constituye elemento esencial de su identidad….El estado fomentará la interculturalidad, inspirará sus políticas e integrará sus instituciones según los principios de equidad e igualdad de las culturas. La Constitución de 2008, ratificó estos principios: Art.1.- El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada. Art.2.-....El castellano es el idioma oficial del Ecuador; el castellano, el kichua y el shuar son idiomas oficiales de relación intercultural. Los 162 demás idiomas ancestrales son de uso oficial para los pueblos indígenas en las zonas donde habitan y en los términos que fija la ley. El estado respetará y estimulará su conservación y uso. Son sin duda, ambas Constituciones avances incluyentes dentro de la vida democrática del Ecuador. Sin embargo existen otros grupos como los afroecuatorianos y los pueblos montubios de la Costa que han elevado protestas porque dicen sentirse preteridos y no expresamente mencionados en las dos Constituciones. El primer artículo de nuestras dos Constituciones es un gran paso hacia la inclusión de toda la población en la vida del territorio nacional, pero es la práctica cotidiana la que inspira y guía para lograr la totalidad de la inclusión; es la mente y el actuar de los ciudadanos, del pueblo, lo que nos llevará a lograr que en el país exista plenas relaciones interculturales e inclusión social con profundo respeto hacia los otros. Un artículo de la Constitución de 1998 menciona: Art.63.- Garantías culturales. El Estado garantizará el ejercicio y participación de las personas, en igualdad de condiciones y oportunidades, en los bienes, servicios y manifestaciones de la cultura y adoptará las medidas para que la sociedad, el sistema educativo, la empresa privada y los medios de comunicación, contribuyan a incentivar la creatividad y las actividades culturales en sus diversas manifestaciones. Los intelectuales y artistas participarán, a través de sus organizaciones, en la elaboración de políticas culturales Dos artículos de la Constitución de 2008 dicen: Art. 21. Las personas tienen derecho a construir y mantener su propia identidad cultural, a decidir sobre su pertenencia a una o varias comunidades culturales y a expresar dichas elecciones, a la libertad estética, a conocer la memoria histórica de sus culturas y a acceder a su patrimonio cultural, a difundir sus propias expresiones culturales y tener acceso a expresiones culturales diversas. Art. 377.-El sistema nacional de cultura tiene como finalidad fortalecer la identidad nacional, proteger y promover la diversidad de las expresiones culturales, incentivar la libre creación artística y la producción, difusión, distribución y disfrute de bienes y servicios culturales; y salvaguardar la memoria social y el patrimonio cultural. Se garantiza el pleno ejercicio de los derechos culturales. Vemos que en el 2008 se omite a la empresa privada y medios de comunicación, porque la mayoría de acciones serán decididas por el Estado. Tampoco se cita a intelectuales y artistas como participantes en la elaboración de políticas culturales, creo esto se debería talvez a que se tenía en mente la creación del nuevo Ministerio de Cultura que sería el que establecería las reglas incluyentes para la cultura. Además creeríamos que en acción conjunta con el Ministerio de Educación, dentro de la vida 163 escolar, debería trabajarse para que la inclusión y los derechos culturales sean respetados desde las aulas. El Ministerio de Cultura, creado en el 2008, expresa: Visión: El Ministerio de Cultura ejerce la rectoría de las políticas públicas culturales y del Sistema Nacional de Cultura, garantiza el ejercicio pleno de los derechos culturales e incide en la integración simbólica del Ecuador y en el cambio cultural de la sociedad basado en la interculturalidad, contribuyendo a la materialización del Buen Vivir” Nos surge una inquietud sobre la frase el “cambio cultural de la sociedad” que es lo que quiere decir, que alcance tiene, no será talvez una imposición como la que ocurrió con la llamada “revolución cultural en China”, liderada por el Estado con visión única, que tanto mal causó en la sociedad y de la que actualmente está intentando salir ese país, como lo notamos durante nuestra visita del año 2010. Esperamos que en el Ecuador signifique un avance en la inclusión de todos los ecuatorianos. El Ministerio de Cultura ha establecido como sus ejes programáticos: 1. Descolonización. 2. Derechos Culturales. 3. Emprendimientos culturales y 4. Nueva Identidad Ecuatoriana contemporánea. Como ejes transversales tiene: la interculturalidad, la equidad en sentido integral (de género, étnica, intergeneracional), el fortalecimiento de la institucionalidad ligada al desarrollo cultural y el posicionamiento internacional de la cultura ecuatoriana diversa. Con los ejes programáticos 2 y 3, estaríamos de acuerdo, sin embargo discrepamos con el 1 y el 4. El término es ajeno a esta época: “Descolonización” porque a pesar de que los estudios culturales y Franz Fanon nos hablaron de la descolonización; en América del Sur, nuestros países celebraron con gran pompa los bicentenarios de su independencia, y si bien es cierto que existen rezagos de pensamiento dependiente, no podemos admitir que necesitemos descolonización, sería conservar una falta de autoestima en el ser ecuatoriano, la misma que también estaría implícita en el cuarto eje de “Nueva Identidad Ecuatoriana”, nosotros tenemos varias identidades, muy fuertes todas, especialmente la de ser ecuatorianos. Si, apoyaríamos los ejes transversales. Pasando ya al campo de los museos, y de la museología como un respaldo teórico del accionar de los mismos, vemos que en el país se ha creado dentro del Sistema Nacional de la Cultura, el Subsistema de la Memoria Social en el que están inmersos los museos. 164 En este ámbito no se menciona la necesidad de la Museología, como base teórica, creemos que esto se debería a que las instituciones de museos en el Ecuador son recientes, del siglo XX, y no han existido filósofos que se hayan dedicado a pensar en la museología. Nosotros hemos realizado esfuerzos en este campo, sin embargo nos consideramos más practicantes de la museología. Creemos que la verdadera revolución cultural en el campo de los museos fue efectuada desde los años sesenta por el Banco Central del Ecuador, porque empezaron desde cero. Ellos crearon, organizaron y mantuvieron los grandes Museos Nacionales en Quito, Guayaquil y Cuenca y varios museos en el ámbito del territorio nacional. Como figura preeminente de los museos podemos citar al Arquitecto Hernán Crespo Toral, fue quién inspiró la creación de los museos del Banco Central en el territorio nacional. Otra figura destacada fue Olaf Holm quién desde el museo en Guayaquil, desarrolló una gran labor de investigación, especialmente de la arqueología. Por este motivo creemos que es necesario continuar realizando un llamado para que estos museos sean mantenidos, como así lo han expresado, las nuevas administraciones de cultura, porque es muy fácil destruir y es muy difícil construirlo nuevamente. Vemos como positiva la creación del Sistema Nacional de Museos Ecuatorianos, un gran paso hacia la colaboración interinstitucional. El Ministerio de Cultura dice: El sistema Ecuatoriano de Museos (SIEM) es un órgano integrador y consultivo de planes, programas y proyectos relacionados al sector museístico. Como sistema busca facilitar el diálogo entre museos e instituciones públicas y privadas para propiciar una gestión articulada en el campo y promover la implementación efectiva de la política nacional en todo el territorio, con la participación de los actores involucrados en este ámbito cultural. Cabe indicar que entre las características del SIEM está la 2 que es: 2. La construcción del SIEM ha incorporado e incorporará la participación de instituciones, organizaciones y personas tanto del ámbito público como del privado, a fin de complementar discusiones y reflexiones sobre la temática museística. Deseamos que estas aseveraciones que son incluyentes como políticas públicas y para el desarrollo de los museos en el país, se lleven a la práctica y así, se logrará una verdadera inclusión de las instituciones de museos, tanto los públicos como los privados, que necesitamos unirnos, involucramos y colaborar para que esto se llegue a concretar. Aspiramos a que el Ministerio de Cultura llegue a motivar, para que los museos trabajen 165 en bien de la sociedad y que los eventos pasados y presentes se exhiban con investigación e imparcialidad, tomando en cuenta las opiniones de las comunidades a favor o en contra de ese acontecimiento, es decir con múltiples miradas y que la visión estatal no sea la única. Creemos que guiados por la teoría museológica, una filosofía pensada desde las instituciones públicas y privadas, así como de las personas, la Ley Nacional de Cultura que está por aprobarse, cuente con políticas culturales referentes a los museos que sean en todo su accionar incluyentes. Bibliografía CHARBET, Erika Sylva. Políticas para una Revolución Cultural. Ministerio de Cultura. Quito, 2011. CONAIE. Disponible en: http://www.conaie.org/. Acezado en: 20 Jul. 2013. DESVALLÉES André; MAIRESSE, François. Conceptos Claves de Museología, Paris: Armand Colin, 2010. ECUADOR. Constitución Política de la República del Ecuador 1998, Disponible en: http://www.wipo.int/wipolex/es/text.jsp?file_id=252253, Acezado en: 20 Jul. 2013. ECUADOR. Constitución, República del Ecuador, 2008. Disponible en: http://www.dirnea.org/data/leyes_y_reglamentos/Leyes%20Generales%20PDF/constituci on_republica_ecuador_2008.pdf, Acezado en: 20 Jul. 2013. Derechos culturales, OEI, Lima, 2007. ECUADOR. Política Nacional de Museos, Ministerio de Cultura, Quito, 2012. Disponible en: http://sistemaecuatorianodemuseos.blogspot.com.br/2011/11/siem-y-politicas-demuseos.html. Acezado en: 20 Jul. 2013. ECUADOR. Sistema Ecuatoriano de Museos. Disponible http://sistemaecuatorianodemuseos.blogspot.com.br/. Acezado en: 20 Jul. 2013. en: INEC, Instituto Nacional de Estadística y Censos. http://www.inec.gob.ec/estadisticas/. Acezado en: 20 Jul. 2013. en: 166 Disponible “O CARÁTER EDUCATIVO DOS MUSEUS”: APONTAMENTOS A PARTIR DE DOCUMENTOS ESCRITOS POR NAIR DE MORAES CARVALHO, EM MEADOS DO SÉCULO XX Ana Carolina Gelmini de Faria1 Resumo Este artigo tem por finalidade apresentar dois documentos produzidos pela antiga funcionária do Museu Histórico Nacional, Nair de Moraes Carvalho, que versam sobre o papel e as ações modernas dos museus e, nesta perspectiva, seu caráter educativo: um relatório produzido em Março de 1946, como produto de sua visita técnica a museus americanos, e um de seus artigos publicado em 1957 (atribuído ao ano de 1947) nos Anais do Museu Histórico Nacional, intitulado “Papel Educativo do Museu Histórico Nacional”. Estes documentos contribuem para a construção da história dos museus, bem como da dimensão educativa que se faz presente nestas instituições. Palavras-chave: Educação em museus, Nair de Moraes Carvalho, Museu Histórico Nacional, museus americanos, papel educativo do Museu Histórico Nacional. Resumen Este artículo tiene como objetivo presentar dos documentos elaborados por el antigua empleada del Museo Histórico Nacional, Nair Carvalho de Moraes, que se centran en el papel y las acciones modernas de los museos y desde la perspectiva la carácter de educación: Un informe producido en Marzo 1946, como producto de la visita técnica a los museos americanos, y uno de sus artículos publicados en 1957 (dado que el año 1947) en las Actas del Museo Histórico Nacional, titulado "El papel educativo del Museo Histórico Nacional". Estos documentos contribuyen a la construcción de la historia de los museos, así como la dimensión educativa que está presente en estas instituciones. Palabras-clave: Educación en museos, Nair de Moraes Carvalho, Museo Histórico Nacional, museos estadounidenses, el papel educativo del Museo Histórico Nacional. Abstract This article aims to present two documents produced by the former employee of the National Historic Museum, Nair Carvalho de Moraes, which focus on the role and actions of modern museums and from this perspective, their character educative: A report produced in March 1946, as a product of its technical visit to American museums, and one of hers articles published in 1957 (given to the year 1947) in the National Historic Museum Annals, entitled "Role of Education National Historic Museum." These documents                                                                                                                         1 Docente do Curso de Museologia do Departamento de Ciências da Informação/ Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (DCI/ FABICO/ UFRGS); Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu/ UFRGS). Email. carolina.gelmini@ufrgs.br   167 contribute to the construction of the history of museums, as well as the educational dimension that is present in these institutions. Keys-word: Education in museums, Nair de Moraes Carvalho, National Historic Museum, American museums, the educational role of the National Historic Museum. 1. Introdução Educação e Museologia são duas áreas em contínuo desenvolvimento e com um potencial inestimável para múltiplas articulações. No Brasil, por exemplo, o Museu Real atual Museu Nacional - além de ser um apoiador e promovedor das atividades de ensino desde sua fundação, em 1818, declarou sua tendência educativa em regulamento em 1916, desenvolvendo atendimentos escolares que culminaram na criação de um serviço educativo específico para os visitantes na década de 1930, denominada 5ª Seção de Assistência ao Ensino de História Natural do Museu Nacional 2 (LOPES, 1997). Este é apenas um apontamento da apropriação dos museus como espaços do conhecimento, posição que implicou gradativamente no aprofundamento de estudos sobre educação a fim de embasar estas instituições culturais enquanto ferramentas para a aprendizagem. O Museu Histórico Nacional, fundado em 1922, também exprimiu seu caráter educativo desde sua criação. Tendo como objetivo a salvaguarda e a exibição da história da nação por meio do patrimônio, ao longo das gestões diversos projetos o tornaram uma referência no cenário museológico brasileiro. O decreto de criação nº15.596 de 02 de Agosto de 1922 encontrado na compilação de documentos referente à legislação da instituição, bem como as palavras do idealizador, Gustavo Barroso, no Jornal A Pátria em 24 de Agosto do mesmo ano, ressaltavam esse compromisso educativo: [...] será da maior conveniência para o estudo da História da Pátria reunir objetos a ela relativos que se encontram nos estabelecimentos oficiais e concentrá-los em museu, que os conserve, classifique e exponha ao público e, enriquecido com os obtidos por compra ou doação ou por legado, contribua, como escola de patriotismo, para o culto do nosso passado (BRASIL, 1946, p.03). O Museu Histórico Nacional não será somente um organismo receptor, um depósito de coisas históricas. [...] Não, ele será também um organismo vivo, como um coração histórico da Pátria, que pulsará e derramará pelo país o interesse e o amor pelo Culto da Saudade, quer publicando seus anais, documentos, peças de erudição, trabalhos notáveis, cópias, fotografias, enfim, tudo quanto se relacione com a História, quer revivendo em cursos especiais, em conferências públicas, em leitura e outros meios de publicidade as nossas melhores tradições,                                                                                                                         2  Para mais detalhes sobre a história do Museu Real, atual Museu Nacional, vide Lopes (1997). Informações sobre a 5ª Seção de Assistência ao Ensino de História Natural do Museu Nacional são encontradas na pesquisa desenvolvida por Pereira (2010).   168 [...] além do que farão, naturalmente, os seus visitantes, as suas coleções (BARROSO, 1922, apud BRASIL, 1989, p.05). O trabalho apresentado é um recortes provenientes da trajetória de pesquisa realizada na dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGEdu/ UFRGS), na linha de pesquisa História, Memória e Educação, sob orientação da prof. Drª. Zita Rosane Possamai. Ao realizar o levantamento empírico da pesquisa, dois documentos encontrados em espaços diferentes me chamaram atenção pela intensa relação: a cópia de um relatório da antiga funcionária do Museu Histórico Nacional, Nair de Moraes Carvalho, resultado de sua viagem de estudos aos Estados Unidos em 1945 para conhecer diferentes museus e suas dinâmicas, em especial relacionadas à educação em museus; e um de seus artigos publicado nos Anais do Museu Histórico Nacional em 1957 (atribuído ao ano de 1947), texto em que a autora apresentou diversos trabalhos internacionais e os relacionou com o caráter educativo do Museu Histórico Nacional. Ao mapear estes documentos foram percebidas múltiplas possibilidades de articulação, proposta desenvolvida neste artigo pela relevância de, após noventa anos de fundação, destacar e analisar as diversas concepções do papel educativo do Museu Histórico Nacional em sua trajetória institucional. 2. Um Relatório a Contemplar a Dinâmica dos Museus Americanos Ao mapear a diversidade de materiais sobre a trajetória do Museu Histórico Nacional disponível para consulta, um acervo em especial me chamou atenção: a coleção do Projeto de Memória da Museologia no Brasil do Curso de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Buscando reunir, investigar e preservar diversos fragmentos da memória da trajetória do Curso de Museologia, em 2005 sob coordenação do prof. Dr. Ivan Coelho de Sá foi iniciado este projeto, formando um acervo doado por personalidades da área; composto por fotografias, textos originais, livros, reportagens, diplomas, cadernos de anotações, entre outros; em 2007 o projeto obtinha mais de oito mil (8.000) itens, sendo constituído por coleções que representam a história da área museológica no país (MEMÓRIA, 2007). Entre as diversas coleções disponíveis para consulta a doada por Nair de Moraes Carvalho, antiga funcionária do Museu Histórico Nacional, foi investigada por esta ter uma produção vinculada ao papel educativo desta instituição como, por exemplo, a 169 coordenação do Curso de Museus (1944 a 1967). Ao mapear a Coleção Nair de Moraes Carvalho (NMC)/ Série Museologia I (1937-1946)/ Caixa 09, um documento foi evidenciado pela aproximação com a temática educação em museus: a cópia de um relatório submetido pela funcionária ao diretor Gustavo Barroso em 1946, apresentando diferentes museus e suas atividades a partir de um estudo in loco - compreendendo-as enquanto ações voltadas para a educação do público - incorporado na coleção com o número de registro NMC2218. Este relatório de seis páginas tem por finalidade descrever a viagem de estudos de Nair de Moraes Carvalho, realizada no período de 19 de Novembro de 1945 a 21 de Fevereiro de 1946 sem ônus para o Governo, cumprindo o afastamento de três meses estipulado para visita técnica aos museus dos Estados Unidos. Diversas instituições museológicas foram estudadas, outras visitadas, durante a estadia em Nova Iorque. São estas: Metropolitam Museum of Art, Whitney Museum of American Art, Brooklyn Museum, The Cloisters, The Frick Collection, The Museum of Modern Art e Museum of the city of New York, museus que trabalham com diversos acervos, desde arquitetura e arte da Idade-Média da Europa até a história da cidade. Foi relatado pela autora que nas três primeiras instituições citadas foi possível freqüentá-las a fim de conhecer o cotidiano institucional e seus projetos desenvolvidos, mediante autorização de seus diretores. A autora revelou que em todas as visitas realizadas buscou congregar diversos materiais que abordassem o funcionamento das instituições, em especial sobre a gestão de acervos, enfatizando a organização, catalogação, exposições e práticas educativas como, por exemplo, cursos ministrados. Ao julgar os materiais impressos, Nair os considerou de grande importância para o Museu Histórico Nacional, contribuindo para a composição de sua biblioteca e arquivo, enviando-os antecipadamente por via aérea, marítima, ou mesmo trazendo-os para o Brasil com sua bagagem pessoal. A partir de suas experiências, Nair analisou que os museus americanos estavam amparados de condições técnicas para a plena execução de seus trabalhos. Resguardados pelos recursos advindos das esferas federal, estadual e municipal, além de iniciativas privadas ou de entidades coletivas, os estudos e a implantação de projetos voltados para a qualidade das instituições proporcionavam uma ampla infraestrutura visando à salvaguarda do patrimônio e a fruição do visitante, segundo a autora percebida no cotidiano institucional e em detalhes, tais como na construção de mobiliários luxuosos e tecnicamente perfeitos; na instalação de aparelhos de controle dos agentes agressores; em laboratórios e oficinas especializadas em conservação e restauro de diversos 170 materiais; na implantação de diversas mediadas de segurança; em cantinas e restaurantes para o público, bem como espaço para apresentações culturais - como orquestras - para entreter o público; no amplo material de divulgação das exposições; e no pagamento generoso de pessoal técnico, ensinante e fiscalizante, promovendo um museu aberto à disposição do público em diversos turnos, incluindo o da noite. Em geral, os museus americanos se apresentam como estabelecimentos dotados de todas as condições técnicas precisas: edifícios apropriados, iluminação por sistemas científicos perfeitos, arejamento completo, calefação e refrigeração, não só das dependências como dos próprios mostruários, mobiliários de acordo com os preceitos mais modernos e grande abundância de meios pecuniários, o que lhes permite pagar vantajosamente o seu pessoal técnico e ensinante, compor as exposições definitivas, realizar exposições temporárias e obter colaboração de individualidades nos seus cursos especializados (CARVALHO, 1946, p.03). Porém, distanciando-se do aprimoramento advindo de recursos financeiros, que permitia uma qualidade técnica e de serviços, Nair analisou que em relação à numeração, etiquetagem e catalogação dos acervos, bem como a arrumação de exposições, o Museu Histórico Nacional em nada perdia aos museus americanos, pois ambos trabalhavam embasados de acordo com as modernas técnicas publicadas. A grande defasagem do Museu Histórico Nacional segundo a autora se dava por escassez de capital, impossibilitando seu pleno desenvolvimento por falta de recursos, situação recorrente na realidade brasileira. Este é um assunto diversas vezes apontado nos relatórios anuais do Museu Histórico Nacional, podendo ser exemplificado nesta escrita do diretor Gustavo Barroso: Lutamos com várias dificuldades que derivam da extrema parcimônia orçamentária, relativamente ao Museu Histórico, e da falta de pessoal, que, no início da vida desta Repartição, era estritamente preciso para os seus serviços e hoje não pode atender aos múltiplos encargos correspondentes ao desdobramento das salas, ao estudo dos objetos, aos cursos científicos que mantemos, ao movimento de visitantes e a fiscalização dos mostruários (BRASIL, 1933, p.01-02). Mas, segundo Nair, se o recurso financeiro distanciava o Museu Histórico Nacional dos museus americanos, uma atividade o singularizava: o Curso de Museus. Em nenhuma das instituições freqüentadas a autora encontrou um curso voltado para a formação de funcionários, visando o preparo pessoal para o aprofundamento de especializações relacionadas com os acervos musealizados, projeto muito elogiado pelos diretores das instituições visitadas. Os cursos ministrados nos museus americanos eram livres, de curta duração e sem matrícula, caracterizados como conferências avulsas de 171 variados temas. A autora destacou as conferências do Metropolitam Museum, realizadas por funcionários do museu ou convidados com periodicidade quase que diária, abordando diversos assuntos como o Mobiliário Americano e Arquitetura Gótica, por exemplo – prática também desenvolvida no Museu Histórico Nacional, mas em menor escala devido à deficiência de recursos pecuniários. Nesta perspectiva a autora avaliou que, por meio da organização e recursos disponíveis, os museus americanos ofereciam ao público uma ampla relação de aprendizagem e lazer sendo, em suas palavras, espaços de recreio, de estudo e mesmo de prazer, cumprindo seu papel cultural na vida moderna – situação esta almejada pelos museus brasileiros, como o Museu Histórico Nacional: [...]   faço votos que as nossas instituições do gênero consigam com o tempo e melhor compreensão dos relevantes serviços que prestam à educação do público por parte dos nossos administradores atingirem aquele grau de adiantamento que tecnicamente conhecem, porém, por parte deficiente de recursos, não podem transportar ao terreno da realidade prática (CARVALHO, 1946, p.06). Entre todos os museus visitados, o que mais impressionou a autora em relação às ações para o público foi o Metropolitam Museum of Art, em especial, pelo Junior Museum, instituição vinculada à primeira citada. O Junior Museum, considerado pela autora único do gênero, era um centro de atividades para o público infantil, exercendo o papel de colaborador para a aprendizagem deste público a partir de seus acervos. Assim, sua estrutura organizacional e programação eram adaptadas para o seu público-alvo, promovendo exposições infantis, guias especializados, biblioteca com temáticas infantojuvenis e sala de merenda. Além disso, promovia aos finais de semana conferências especiais para pais e filhos. Esta iniciativa deixou Nair encantada, ampliada também pela qualidade e versatilidade de materiais impressos. Para Nair, os museus americanos contribuíam de forma significativa para a cultura do povo, estimulando a educação popular, potencialidade que também caberia aos museus brasileiros, que teriam total competência mediante verbas destinadas à execução do papel educativo em museus. 3. Um Olhar sobre a Educação em Museus: refletindo o papel do Museu Histórico Nacional Retornando ao Brasil, em um dos volumes dos Anais do Museu Histórico Nacional - mais precisamente o volume VIII publicado em 1957 (atribuído ao ano de 1947) - Nair 172 de Moraes Carvalho escreveu o artigo intitulado “Papel Educativo do Museu Histórico Nacional” (CARVALHO, 1957). A proposta da autora era de analisar o papel da educação nos museus, se apropriando das referências mais recentes para a área, ações segundo ela já postas em exercício no Museu Histórico Nacional desde sua fundação, em 1922. Para esta proposta, a autora dialoga com a publicação “Musées et Jeunesse” (1952), do Conselho Internacional de Museus, composto por estudos de Germanine Cart (Museu do Louvre), Molly Harrison (Museu Geffrye de Londres) e Charles Russel (Museu de História Natural de Nova Iorque), prefaciados por Henri Fould e Georges-Henri Rivierè. A autora contextualiza a relação entre educação e museus, fortalecida após a década de 1920, quando influências de educadores e mestres entusiasmaram a inserção das visitas escolares ao cotidiano dos museus, para o descontentamento de muitos membros mais antigos destas instituições, que achavam as propostas educativas ultramodernas e uma verdadeira ameaça para a salvaguarda do patrimônio. Fundamentando-se no preâmbulo escrito por Henri Fould, a autora afirma que o método de ensino a ser utilizado nos museus deve ser o mais familiar e o menos formal ou acadêmico possível, sendo condenáveis visitas escolares de grandes turmas, propondo como ideal a formação de grupos de 15 alunos para um conservador. A visita deveria   causar a impressão de que o museu é um lugar especial, maravilhoso, despertando o interesse do retorno. Para a autora, o visitante infanto-juvenil era um público em potencial para as instituições museológicas e, por isso, se fazia necessário desenvolver a função educativa destes espaços. Alguns projetos visavam aproximar público com a instituição museológica, como os museus infantis dos Estados Unidos – iniciativa que se espalhava no mundo. Sendo em meados do século XX objeto de análise crítica de diversos teóricos, pontos positivos e negativos sobre os museus infantis eram evidenciados; como positivo, as propostas de estimular o interesse dos jovens, como a aproximação com este público através de temáticas atrativas; em oposição pesquisadores suecos, entre outros, apontavam o risco dos museus representarem um mundo irreal e fantástico, ou mesmo transmitir a sensação de que estes espaços seriam destinados somente para crianças, não os atraindo na adolescência. Segundo Henri Fould, a solução era que museus já existentes criassem departamentos com abordagens para este público-alvo. Outro debate que se relacionava diretamente com a proposta educativa dos museus era a elaboração excessiva de exposições temporárias, que visando aplicar modernas técnicas e dinamizar a instituição levava as exposições permanentes ao esquecimento. Embasada no texto de Fould, a autora observa que as exposições 173 temporárias poderiam levar ao vício dos números, fazendo o museu perder em qualidade na sua principal exposição. A partir das referências de profissionais de museus da Europa, Inglaterra e América, Nair de Moraes Carvalho apresentou na publicação algumas atividades educativas, ressaltando três possibilidades de idas escolares: dirigidas, livres ou combinadas, destacando que esta diversidade era também encontrada no Museu Histórico Nacional. As visitas escolares dirigidas eram as que ocorriam durante as horas de aula, com uma programação prévia estabelecida pelos conservadores. Neste tipo de visita era possível, após a ida às galerias expositivas, se estender a aulas ou conferências em sala especial com projeções, sendo consideradas muito eficazes. As visitas escolares livres eram realizadas com as indicações dos próprios professores, sem acompanhamento dos conservadores do museu, muitas vezes trabalhando um tema / obra específica ou mesmo, segundo a autora, deixando-os com o poder de iniciativa. Já as visitas escolares combinadas eram compostas de duas partes: num primeiro momento, uma visita dirigida para todo o grupo escolar; depois, eram divididos em subgrupos com a finalidade de realizar estudos indicados pelo guia; para concluir, as observações e análises eram realizadas por todos, sendo redigido um relatório em que todos colaboravam. Paras estas visitas escolares ocorrerem com sucesso o entrosamento entre conservador3 (museu) e professor (escola) era primordial. Nesta perspectiva os profissionais formados pelo Curso de Museus teriam muito a contribuir para o processo de construção de conhecimento, pois estimulariam a aprendizagem por meio dos objetos, neutralizando o uso excessivo das palavras ao introduzir na educação moderna a apropriação do visual. Assim, a autora analisa que desde a fundação da instituição, o Museu Histórico Nacional revelou seu caráter educativo, refletindo-se em inúmeras visitas realizadas pelo                                                                                                                         3 Os formados pelo Curso de Museus - coordenado pelo Museu Histórico Nacional - ganhavam o título do conservador de Museus. Os funcionários do Museu Histórico Nacional que trabalhavam com a preservação, investigação e comunicação do acervo da instituição também eram reconhecidos com esta nomenclatura. Para Barroso (1957) nomear o técnico de Museus como conservador era atribuí-lo de grande prestígio, pois equivaleria ao termo utilizado por especialistas da América e Europa.   174 público para conhecer e aprender na Casa do Brasil. Se adaptando e ultrapassando os diversos obstáculos resultantes de escassez de recursos, o Museu Histórico Nacional contribuiu não só para a educação in loco, mas também na defesa ao patrimônio histórico e artístico de todo o país através de suas iniciativas de ampla repercussão, como a Inspetoria de Monumentos Nacionais e o Curso de Museus, projetos que semearam a “irradiação cultural” a partir do bem cultural. Através dos dois documentos encontrados é possível observar, ainda que de forma abrangente, a importância atribuída à educação em museus pelo Museu Histórico Nacional, em especial por meio de alguns funcionários engajados com o papel dos museus na educação moderna, como Nair de Moraes Carvalho. Seu relato contribui não só para salientar debates e projetos internacionais relacionados à temática em meados século XX, mas para destacar que o compromisso de valorizar a aprendizagem e a produção de conhecimento em museus é de longa data, inerente a própria trajetória destes espaços culturais. Estas são ricas fontes a serem estudadas, investigadas e articuladas com outras literaturas de diversas áreas para contribuir na construção da história dos museus, bem como da dimensão educativa que se faz presente nestas instituições. 4. Referências BARROSO, Gustavo. A carreira de conservador. Anais do Museu Histórico Nacional, v. VIII. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1957. p.229-234. [Volume atribuído ao ano 1947]. BRASIL. Ministério da Educação e Saúde. Museu Histórico Nacional. Legislação. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde/ Serviço de Documentação, 1946. [folheto nº46]. BRASIL. Ministério da Educação e Saúde Pública. Museu Histórico Nacional. Relatório Anual do Museu Histórico Nacional - 1933. Museu Histórico Nacional, 1933. BRASIL. Museu Histórico Nacional. O Museu Histórico Nacional. São Paulo: Banco Safra, 1989. CARVALHO, Nair de Moraes. Cópia, Rio de Janeiro, 1946. [Projeto de Memória da Museologia no Brasil do Curso de Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Coleção Nair de Moraes Carvalho (NMC)/ Série Museologia I (1937-1946)/ Caixa 09, NMC2218]. CARVALHO, Nair de Moraes. Papel Educativo do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional, v.VIII. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1957. p.18-30. [Volume atribuído ao ano 1947]. LOPES, Maria Margaret. O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Editora HUCITEC, 1997. 369p. MEMÓRIA da Museologia no Brasil. Início - Apresentação, 2007. Disponível em: http://www.unirio.br/museologia/nummus/inicio.htm. Acesso em: Fev/2012. 175 PEREIRA, Marcelle Regina Nogueira. Educação Museal: entre dimensões e funções educativas: a trajetória da 5ª Seção de Assistência ao Ensino de História Natural do Museu Nacional, 2010. 180p. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e do Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST, Rio de Janeiro, 2010. Orientador: Mario Chagas. 176 Museus, Patrimônio, Natureza e Biodiversidade DA MEMÓRIA AO ARQUIVO: PROPOSIÇÕES SOBRE O PATRIMÔNIO GENÉTICO Alexandro Silva de Jesus1 Resumo Desde o século dezenove, as museo-lógicas vêm se deparando com gestos filosóficos (Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno) e literários (Gustave Flaubert) que não hesitaram em afirmar a relação estreita e bifurcada da maquinaria museal e patrimonial com a morte: a um só tempo, elaboração das perdas de um passado cada vez mais próximo do que costumeiramente entendemos como presente e produção de um mais de arquivo que resulta no imobilismo dos elementos vitais de uma cultura. Recentemente, no entanto, a noção de patrimônio genético — que além de inaugurar a possibilidade de uma nova relação entre os domínios do patrimônio, da economia e dos usos, aponta para um novo protagonismo das comunidades tradicionais — é anunciada como uma espécie de ultrapassagem dessa condição. Este artigo se propõe como lugar de teste da consistência dessa promessa. Sua consecução urde quatro proposições sobre: o dever de memória e a (im)possibilidade do pensamento crítico; o capitalismo e a (im)possibilidade de uso; a relação entre ciência e tradição; o deslocamento das memórias tradicionais para o arquivo. Essas proposições nos permitem pensar, respectivamente, sobre a possibilidade efetiva de uma Teoria Museológica Contemporânea, antecipar a tensão entre consumo e livre uso do patrimônio genético, reavaliar a função antropológica - e das Ciências Sociais por extensão - neste cenário, e determinar, assim, os efeitos da intervenção político-científica nas comunidades tradicionais. Com isso, esperamos oferecer uma perspectiva sobre a relação entre as museo-lógicas e a biodiversidade a partir de pesquisas desenvolvidas dentro da nossa linha de pesquisa sobre políticas de patrimonialização e museus em espaços póscoloniais. Palavras Chave: Contemporânea. Museo-lógicas, Biodiversidade, Arquivo, Teoria Museológica Resumen Desde el siglo XIX, las museo-lógicas encuentran gestos filosóficos y literarios que afirman la relación estrecha y bifurcada presente entre la maquinaria del museo y del patrimonio y la muerte: al mismo tiempo, la elaboración de las pérdidas de un pasado cada vez más cerca de lo que comprendemos como presente y la producción de exceso de archivo que resulta en la inmovilización de los elementos vitales de una cultura. Sin embargo, actualmente la noción de patrimonio genético – además de abrir la posibilidad de una nueva relación entre los ámbitos del patrimonio, la economía y los usos, apunta a un nuevo papel de las comunidades tradicionales - es considerada como una especie de superación de esa condición. Este artículo está pensado para colocar en prueba la consistencia de esa promesa. Para su logro, elige cuatro proposiciones: el deber de la memoria y la imposibilidad del pensamiento crítico, el capitalismo y la imposibilidad de                                                                                                                 1 Professor Adjunto I lotado no Departamento de Antropologia e Museologia; docente responsável pelas cadeiras de Teoria Museológica; coordenador do Grupo de Pesquisa Museo-lógica; dinamizador das linhas de pesquisa Arquivo, Experiência e Polícias da Cultura e Intervalos Decoloniais.   178 uso, la relación entre la ciencia y la tradición, el desplazamiento de los recuerdos tradicionales para el archivo. Esas propuestas permiten reflejar sobre la posibilidad de una efectivaTeoría Museológica Contemporánea, anticipar la tensión entre el consumo y el uso gratuito del patrimonio genético, evaluar de nuevo la función antropológica – y de las Ciencias Sociales, por extensión – en ese contexto, y así determinar los efectos de la intervención política y científica en las comunidades tradicionales. Con eso, esperamos ofrecer una perspectiva sobre la relación entre las museo-lógicas y la biodiversidad a partir de la investigación desarrollada dentro de nuestra línea de investigación sobre las políticas de patrimonio y museos en espacios postcoloniales. Palabras Clave: Contemporánea. Museo-lógicas, Biodiversidad, Archivo, Teoría Museológica Abstract Since the nineteenth century, the museum-logics have coming across with philosophical (Friedrich Nietzsche, Theodor Adorno) and literary (Gustave Flaubert) gestures that don not hesitated to affirm the thigh and bifurcated relation of the patrimonial and museum machinery with death: at the same time, the elaboration of a past more and more closer than what normally we understand as present and the production of a plus of archive, which results on the immobilism of vital elements of a culture. Recently, nevertheless, the notion of genetic patrimony – that goes farther inaugurating the possibility of a new relation between the patrimony, economy and uses domains, indicates a new protagonism of traditional communities – has been announced as a kind of overcoming of that condition. This article has the aim of being the locus of testing this promise. Its making demands four propositions about: the duty of memory and the (im)possibility of critical thought; the capitalism and the (im)possibility of usage; the relation between science and tradition; the traditional memories displacement to the use of archive. Such propositions allow us to think, respectively, on the effective of a Contemporary Musicological Theory, forestall the tension between consume and free usage of genetic patrimony, reevaluate the anthropological function – and of the social sciences for extension – in this scene, and determine, thus, the effects of political scientific intervention on traditional communities. On that way, we hope to offer a perspective on the relation between museum-logics and the biodiversity since researches developed within our research line about patrimonialisation and museums in post-colonial spaces. Key Words: Museum-logics. Biodiversity, Archive, Contemporary Musicological Theory. 1. Introdução ou as Proposições e o Vazio. As consequências dispostas a partir das quatro proposições de que se ocupará essa comunicação são intuitivas. Isso não significa que elas tenham surgido sem qualquer apoio de objetos empíricos, pura especulação, mas que esses objetos disparadores são diversos, dispersos, e para os quais ainda procuramos o melhor modo de alinhamento. Elas dizem, portanto, o que esses objetos nos faz sentir; trata-se, portanto, de uma aposta. Nosso objetivo, aqui, é demonstrar o potencial que elas possuem para nos esclarecer sobre as forças e as expectativas que se encontram na e com a emergência de uma agenda sobre a Biodiversidade a partir do conceito de 179 patrimônio genético. Desta agenda as proposições investigam encontros (entre uso e consumo e, através deste, da experiência e ciência), funções (mediação, proteção, informação) e promessas (de protagonismos e justas repartições). Escolhemos apresentar as proposições do modo como elas apareceram: independentes umas das outras. Retomaremos cada uma delas nas considerações finais de modo que elas se tornem convergentes. É que cada proposição representa uma procura capaz de se justificar por si só, e de ser aplicada a outros objetos dentro e fora da museologia. Em todo caso, elas possuem um ânimo comum: todas acontecem em função de uma resposta que continua esvaziada: afinal, o que é museologia? 2. Primeira Proposição: o dever de memória é o que faz da Teoria Museo-lógica Extemporânea algo por vir. Sobre isso nos apoiaremos na dúvida de Zbynek Zbyslav Stránský(2008), aquela incapaz de se decidir sobre a museologia ser ciência ou apenas trabalho prático, como sintoma do ainda não da Teoria Museo-lógica Extemporânea2. Pois nosso esforço, aqui, consiste em demonstrar em que condições torna-se (im)possível fazê-la viger. Por isso, interessa-nos, fundamentalmente que essa dúvida tornada pública em 1980 no idioma inglês, tenha conhecido sua tradução na língua portuguesa em 2008 (ou seja, na madrugada de hoje ou, no máximo, de ontem), na forma de um visitar de novo3. Registrese, desde agora, que não lemos este re-visitar como algum tipo de cortesia ou afeição que se prestasse a uma história. Pensamos, ao contrário, que esse ter em vistas novamente possui o sentido de uma urgência, ou melhor, que a urgência da dúvida ainda nos pressiona; Por outro lado, é importante registrar que essa mesma indecidibilidade esteja ligada à constatação, no nível scholar, de, na maioria dos casos, uma "base teórica relativamente fraca", que ocupa, mesmo nos centros especializados, "o segundo plano” (STRÁNSKÝ, 2008, p.103). Tratar-se-ia, assim, de uma teoria positiva, isto é, festiva, sem potência, talvez — e aqui estamos nos apropriando de seu diagnóstico livremente — , para constituir seus delineamentos.                                                                                                                 2 Seja o que for esta teoria por vir, deverá assumir a função intempestiva que Friedrich Nietzsche reclamava para a filologia clássica: “Não sei que sentido [ela] poderia ter hoje, senão aquele de exercer uma influência intempestiva, quer dizer, agir contra a época, por conseguinte, sobre esta época e, esperamos nós, em benefício de uma época vindoura" (NIETZSCHE, 2005, p.70).   3 O texto Museologia: ciência ou apenas trabalho prático, de Zbnek Z. Stránský foi publicado no idioma português pela Museologia e Patrimônio, revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). Cabe destacar que se tratava da primeira edição da Revista e que a seção onde o artigo aparece, aparece sob a rubrica Revisitando.   180 A dúvida de Stránský diria assim, apenas o fato de uma teoria inconsistente, jamais saída de seu esboço, sem nada nos revelar em que ponto esta sua condição se cruza com as exigências que informa a Museologia em seu plano técnico; esclarecer essa relação será a única chance para validarmos nossa proposição. E é neste ponto que se torna necessário reclamar o sentido forte do trabalho de tradução, que não é outro senão escrever de novo, nos termos de uma re-invenção. A dúvida de Stransky deve sofrer, portanto, uma re-elaboração, que é o mesmo que dizer que ela mesma precisa ser duvidada. E a dúvida sobre a dúvida consiste nisto: é realmente necessário decidir sobre a Museologia (e é importante marcar que em o Stránský termo diz o mesmo, ao menos uma vez, que teoria museológica), engajá-la, com exclusividade, do lado da ciência ou do trabalho prático? Para que a dúvida seja re-fundada, esse “ou” que efetua uma relação de oposição entre as suas possibilidades é realmente essencial? Da nossa parte escolhemos caminhar com os dois pés, ou seja, com a teoria museológica (rigorosamente, com aquela teoria fraca que Stránský indica) e com o trabalho prático, para re-fundarmos a dúvida em termos que nos permitam indagar em que medida o sentido que determina o como do trabalho prático não seria o mesmo que faz viger o agora inconsistente da teoria. Ora, o que dá sentido ao como da prática e a vigência da teoria em questão é o dever de memória. Trata-se, aí de um diagrama4 político, ou, o que dá no mesmo, de uma espécie de máquina abstrata de governo. E a forma mais avançada que esta sua realidade abstrata se materializa entre nós (ao modo de políticas públicas), submete a teoria de agora a condição de arconte, para o bem e para o mal, de uma agenda de Estado (pressente-se desde já que as coisas se passando dessa forma, haverá implicações sobre a avaliação da função mediadora que alguns autores reclamam para os cientistas sociais, em relação às distintas demandas em torno do patrimônio genético). Tudo (teoria e prática), ou quase, acontece, então, a partir de um imperativo de governo — a partir, portanto, de sua urgência, sempre a mesma, de re-fundar a servidão voluntária5. Novamente: arquivar (tudo) é o dever que se deve fazer e aquilo que faz                                                                                                                 4 Diagrama. 1. “mecanismo de poder levado a sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico” (FOUCAULT, 1987, p. 170); 2. Definindo-se por meio de funções e matérias informes, ele ignora toda a distinção entre conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não discursiva. É uma máquina quase muda e cega embora seja ela que faça ver e falar (DELEUZE, 2005, p. 44).   5 É por isso, adiantamos que a teoria por vir deve levar em consideração o modo se sujeição nos espaços decoloniais, ou de outro modo, aos lugares de encontro das estruturas (subjetivas, de acesso) de colonização e das formas de descolonização.   181 pensar obrigado. Neste ponto, a teoria de agora deve ser acordada sobre as condições de seu modo crítico, quer dizer, sem embaraços com o Estado; como teoria deverá reconhecer que o compromisso com o dever de memória é a própria falência da teoria. Seria preciso, mais do que nunca, sub-escrever (com todo e apesar de seu idealismo) uma "razão [...] livre por sua natureza e [que] não acolhe nenhuma ordem para aceitar algo como verdadeiro (nenhum crede, mas apenas um credo livre)” (KANT, 1993, p. 22). Por isso, a teoria por vir não terá problema em funcionar a partir de uma lateralidade com a prática, desde que essa paridade não signifique estar, essencialmente, a serviço da técnica, e de modo que, a partir de seu gesto crítico, se possa determinar um lado de fora do Estado (assim, por exemplo, a teoria sobre museu e patrimônio integral deverá pensar também o Estado totalitário)6. 3. Segunda Proposição: o caráter sacramental da experiência capitalista opõe consumo a todo uso. Por mais familiar que seja o seu nome, o uso não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Para aqueles, entre nós, que acompanham a problemática sobre a experiência (problemática que deverá se tornar nevrálgica para a teoria por vir) a partir dos escritos de Walter Benjamin (1994), torna-se dispensável avisar que começamos calçados em uma paráfrase. Em modo próprio, seu diagnóstico afirma o desaparecimento do narrador e da arte de narrar (desaparecimento este, já podemos pressentir, que coloca todo o pequeno mundo da arte-educação e o outro, um pouco maior, da educação patrimonial, em maus lençóis). Se nos pareceu necessário introduzirmos o desenvolvimento da proposição desta forma, é porque acreditamos que o narrador e o uso possuem uma mesma data de desaparecimento. O que queremos demonstrar é que não se trata, nisto, de uma coincidência, e sim que o narrador e o uso enquanto inatuais se acham submetidos aos mesmos dispositivos de rarefação. Tal tarefa nos exige que a relação entre capitalismo e uso seja avaliada através da perspectiva de uma filosofia da cultura, especificamente, aquela que faz passar o capitalismo por uma experiência religiosa. De saída, devemos esclarecer que o que torna possível que o capitalismo seja traduzido nestes termos é o fato desta filosofia fazer cessar a oposição convencional entre religião e secularização fazendo com que a tensão se aplique entre religião e profanação.                                                                                                                 6 De resto, o dever de Estado que prática museal e teoria de agora se acham submetidas, exige, necessariamente, que a teoria por vir considere os gestos conceituais e afetivos que desde o Oitocentos, se empenharam em desencobrir o Estado (ou seja, o imobilismo) no dever de memória.   182 É preciso [...] fazer uma distinção entre secularização e profanação. A secularização é uma forma de remoção que mantém intactas as forças, que se restringe a deslocar de um lugar a outro. Assim, a secularização política de conceitos teológicos (a transcendência de Deus como paradigma do poder soberano) limita-se a transmutar a monarquia celeste em monarquia terrena, deixando, porém, intacto seu poder. A profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana (AGAMBEN, 2007, p. 68). Genealogicamente, podemos remontar essa cobertura religiosa do capitalismo (muito diferente da cobertura religiosa que Max Weber descreve analiticamente) a Walter Benjamin, pois, de fato, a análise de Giorgio Agamben se resolve como desdobramento da leitura benjaminiana. Desta, o que importa destacar — não teremos condições, aqui, de oferecer análise: uma religião de devoção extrema (talvez a mais extrema que já existiu, Benjamin dirá), cujo culto acontece de maneira permanente (todos os dias da semana), e que não é capaz, nunca, de expiar, mas apenas culpabilizar. Trata-se, portanto, de uma religião do e para o consumo (e é por isso que hoje, mais do que nunca, devemos levar a sério a relação entre consumo e destruição). Ora, o capitalismo como religião, e mais ainda, como devoção consumista (destruidora) se opõe a todo uso. Dissemos: e mais ainda. É porque a indisposição das coisas religiosas para o uso, essa indisponibilidade que experimentamos em todas as nossas ações de mercado, ou seja, em todas as nossas ações, não foi algo que o capitalismo tenha inventado; antes, faz parte do modo mesmo como a operação religiosa deve ser definida (inclusive juridicamente). Ou seja: é-lhe essencial. Os juristas romanos sabiam perfeitamente o que significa "profanar". Sagradas ou religiosas era as coisas que de algum modo pertenciam aos deuses. Como tais, elas eram subtraídas ao livre uso e comércio dos homens, não podiam ser vendidas nem dadas como fiança, nem cedidas em usufruto ou gravadas de servidão. Sacrílego era todo ato que violasse ou transgredisse essa sua especial indisponibilidade [...] (Idem, p.65). E mais, Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais, ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso (Id.). Toda a nossa atenção deve recair, portanto, para essa indisponibilidade, para esse por em reserva (que é uma operação propriamente técnico-religiosa) que impede o uso livre e o uso comum de homens, lugares e coisas. Em todo caso, sabemos que podemos ser acusados, aqui, de pouco critério em nome de uma conveniência, que 183 enfatizamos apenas os elementos que beneficiam o sentido de nossa leitura, e que toda a nossa atenção deveria recair também para a indisponibilidade dos homens, lugares e coisas para o comércio como característico do gesto religioso, e que assim, os lugares sagrados (e o próprio lugar do sagrado) continuariam antipáticos às casas dos mercadores. O que podemos dizer: o que se passa com o capitalismo dá mostras que a indisponibilidade comercial que os juristas tomavam por essencial para a definição do religioso era apenas um acidente, e como tal sua vigência dependia de uma sociedade para a qual as relações de consumo não constituíam sua escolha original7 Pressente-se para onde tudo isso deverá nos conduzir: certamente para o consumo (mercado), onde, Agamben concluiu, "[...] tudo o que é feito, produzido e vivido [...] acaba sendo dividido por si mesmo e deslocado para uma esfera separada que já não define nenhuma divisão substancial e na qual todo o uso se torna duravelmente impossível (AGAMBEN, op. cit. p. 71). Mas não somente. Pois se tudo o que mostramos sobre a religião puder ser asseverado, significa que o que chamamos, entre nós, de processo de musealização (isso o termo deve dar conta do que acontece tanto no museu ou no interior do IPHAN, quanto das museo-lógicas de uma maneira geral), não é outra coisa senão um procedimento religioso singular (e é exatamente por isso que não podemos tocar nos objetos que a musealização, pela via do rito, consagra) que retira as coisas da esfera do uso e as reserva indisponíveis. É por isso que de vez em quando apanhamos alguém confundindo museu e mercado e a essa confusão estão sujeitos todos os tipos de museu e não apenas os museus de arte. 4. Terceira Proposição: as condições de época impedem qualquer acordo entre experiência (tradicional) e ciência. Falamos a pouco de uma herança benjaminiana no pensamento de Giorgio Agamben. A rigor, se trata de uma re-fundação da problemática sobre a experiência a partir do diagnóstico de Walter Benjamin, mas precisamente, sobre o desaparecimento da experiência tradicional, não conceitual, apreendida no silêncio das coisas que, de forma dispersa e em toda parte, simplesmente estavam aí (sabia-se exatamente, Benjamin dizia, o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, [ou] prolixa [...], muitas vezes como narrativa [...] (BENJAMIN, 1994, p. 114)). Trata-se, assim, do desaparecimento das condições de possibilidade que                                                                                                                 7 Neste sentido, ter em mente as análises que José Ortega Y Gasset sobre o papel do dinheiro nas sociedades ocidentais de hoje e de ontem, possivelmente dará ao nosso argumento mais consistência. ORTEGA Y GASSET, 2007. Especialmente A dinâmica do tempo.   184 sustentavam certas formas de existir junto (formas, aliás, que testemunham sobre seu próprio desaparecimento, tanto mais agora que se tornam objeto especial das museológicas). Ora, se essas condições foram desfeitas (e aqui continuamos a argumentar sob a mesma perspectiva da filosofia da cultura que sustentou a proposição anterior), isto ocorreu em benefício da experiência técnico-científica. Tomemos um dos gestos essenciais, no século dezesseis, em que essa descolocação assume a forma de uma oposição. a experiência pura e simples [...], quando ocorre por si, é chamada de acaso e, se buscada, de experiência. Mas essa espécie de experiência é como uma vassoura desfiada, como se costuma dizer, mero tateio, à maneira dos que se perdem na escuridão, tudo tateando em busca do verdadeiro caminho, quando muito melhor fariam se aguardassem o dia ou acendessem um archote para então prossegui-rem. Mas a verdadeira ordem da experiência, ao contrário, começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o caminho, começando por uma experiência ordenada e medida — nunca vaga e errática —, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo novos 8 experimentos (BACON ) . Saber que só pode ocorrer ocasionalmente, somente possível como pathos (pois ocorrido no escuro, choca-se constantemente contra seus objetos) trata-se, aí, como Agamben já observara, de uma condenação, em favor da ciência, da experiência tradicional. Mas mesmo nos ensaios de Michel de Montaigne (2001), cuja topografia constitui um dos mais belos cantos desta experiência que começa ver a si própria passar (pois Montaigne escrevia tendo como horizonte seu próprio desaparecimento), uma hierarquia sobre os modos de conhecer também testemunha uma positividade favorável à ciência: Não há desejo mais natural do que o desejo de conhecimento. Experimentamos todos os meios que nos podem levar a ele. Quando a razão nos falta, empregamos a experiência, [...] que é um meio mais fraco e menos digno [...] (MONTAIGNE, 2001, pp. 422-3). Não é necessário insistir, tamanha a evidência, de que essa repartição entre experiência e experimento continua a coser nossa atualidade. Ela ocorre (na forma de uma tensão, por exemplo, entre medicina e curandeirismo), entre nós, brasileiros, ao menos desde o Oitocentos (É para ver, dizia um cronista pernambucano em 1832, o desempenho e fresquidão, com que um assassino destes [o curandeiro] de curiosidade                                                                                                                 8 Versão eletrônica do livro “Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da natureza”. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis   185 tateia o pulso de um pobre doente, sem saber o que é pulso, nem onde ele está, nem qual seu estado normal [...] (APEJE, 1832)), sempre na forma de uma desqualificação (e o rebaixamento atual tem na Política nacional de Plantas medicinais e fitoterápicos um bom exemplo, posto que a ação dos terapeutas tradicionais deve se restringir a parte da população que tem dificuldade em garantir uma boa atenção em saúde). Isso dirá, portanto, sobre o modo próprio da Museologia se relacionar com seus novos objetos. 5. Quarta Proposição: os procedimentos de arquivo indicam redução e não aumento de memória. Eis os aspectos que, para nosso plano teórico, melhor definem um arquivo: “exterioridade de um lugar, operação topográfica de uma técnica de consignação e de um lugar de autoridade (o arconte [...]) (DERRIDA, 2001, p. 8.)”. É fácil, a partir daí, fazer o museu passar por arquivo. Pois as funções do museu não são outras senão domiciliar (por em segurança, conservar) os documentos da cultura colocados sob sua jurisdição e consigná-los (reuni-los sob um mesmo sentido, rubrica ou sistema). E cada um desses aspectos (um lugar que conserva e uma lei que fixa o sentido e a relação) é conduzido partir de uma curadoria produzida pelo seu arconte (o museólogo). É em sua figura que o arquivo concretiza suas funções econômicas: “guarda, põe em reserva, economiza, mas não de modo natural, isto é, fazendo a lei (nomos) ou fazendo respeitar a lei” (Ibid,, p. 17). Disto, todo e qualquer processo de musealização torna-se, em função de sua natureza, um procedimento político. Escolhemos, assim, uma definição de arquivo capaz de ignorar as distinções tradicionais entre o entendemos ser sua instituição e a museal (e que certamente não se esgota aí). Tal definição derridiana permite tal indistinção não somente pelos aspectos que destaca do arquivo; ela procura, sempre que possível, implicar diretamente o museu. Pois o que é, para essa ciência do arquivo, algo como a psicanálise? “Projeto de saber”, certamente, mas também “de prática e de instituição, comunidade, família, domiciliação, consignação, ‘casa’, ou ‘museu’ no estado presente de seu arquivamento” (Ibid., pp. 15-). Ou ainda, quando essa mesma ciência desenha os poderes presentes na regência arquival: “transformada em museu, a casa de Freud hospeda todos esses poderes da economia” (Ibid., p. 18). Temos, então, que a estrutura específica do museu é a do arquivo. O museu, aqui, não se diferencia mais da biblioteca, nem do próprio arquivo; em certo nível não diverge também, de dispositivos como câmeras fotográficas, o HDs ou o pen drives. Sua estrutura específica é, na verdade, generalizada (era o que Henry-Pierrre Jeudy tem em vista quando afirma que o espírito patrimonial é proteiforme). Por isso, 186 [...] museu não designa [...] um lugar ou um espaço físico determinado, mas a dimensão separada para a qual se transfere o que há um tempo era percebido como verdadeiro e decisivo, e agora já não é. O museu pode coincidir, nesse sentido, com uma cidade inteira (Évora, Veneza, declaradas por isso mesmo patrimônio da humanidade), como uma região (declarada parque ou oásis natural), e até mesmo com um grupo desapareceu). De forma mais geral, tudo hoje pode tornar-se Museu, na medida em que esse termo indica simplesmente a exposição de uma impossibilidade de usar, de habitar, de fazer experiência (AGAMBEN, op cit., 73). Tudo isso prenuncia a redução de potência das comunidades tradicionais quando submetidas aos processos de musealização. E estes sinais já começam a ser colhidos. Exibida, colocada no museu, passada pelas mãos de arqueólogos, etnólogos e conservadores, essa ambivalência que se manifestou cada vez que se pensou em conservar ou destruir os ‘instrumentos de trabalho’, por ocasião de revoltas e de insurreições desapareceu: foi inteiramente esvaziada de sua intensidade, para se tornar o resumo objetivo de uma história de bravura (JEUDY, 2005, p. 29). 6. Considerações Finais ou sobre o Encadeamento das Proposições Durante muito tempo o dever de memória funcionou, por Necessidade, como o móvel e o impensado da política de conservação e da teoria de agora. Hoje, porém, sua vida de dispositivo começa a ser problematizada. E essa abertura exige que a teoria por vir enxergue a si mesma como teoria sobre o arquivo, que não é outra coisa senão uma teoria sobre suportes de memória ou memórias protéticas. Ela deverá se esforçar para exercer um pensamento que almeje o lado de fora do Estado (e o significado disto não ficará totalmente evidenciado para o campo museológico, enquanto a perspectiva sobre os bens culturais de Jean-Jacques Rousseau continuar negligenciado), pois até aqui, o engajamento da teoria de agora com o mesmo não lhe permitiu formar uma gramática independente. Eis, portanto, o estado das coisas e o desejo de povir que a primeira proposição fixa. Todas as outras proposições deveriam oferecer a teoria por vir, a partir do conceito de patrimônio genético, ocasião de teste. Firmamos (através da segunda proposição) uma oposição entre uso e consumo para evidenciar que a analítica de uma teoria por vir não poderá sub-escrever a agenda política determinada para o patrimônio genético. Ela não poderá sub-escrever ainda, e pelo mesmo motivo, a mediação das ciências sociais, especialmente a mediação museológica, nos desacordos de tal agenda. Em parte por que estamos tratando de um lugar onde não há nenhuma mediação possível entre uso coletivo e consumo capitalista; o esforço seria, dessa forma, inútil. O motivo mais importante, contudo, é de natureza 187 técnica e diz a disposição museológica (reservar indisponível), ou melhor, diz seu partido. Tudo isso pressiona a teoria por vir: sua definição de patrimônio genético deverá dar conta do jogo de cercamento do uso e de abertura para o consumo. Podemos, com o apoio da terceira proposição, desdobrar o que dissemos sobre a intervenção museológica: no que concerne a sua relação com o modo de vida tradicional — com o seu novo objeto, portanto—, não será possível nem mediação nem proteção. E isso porque, seja como ciência ou apenas trabalho técnico, a museologia é animada por condições que exigem a despossessão da experiência tradicional. Por outro lado, seria preciso investigar a consistência desse objeto tradicional que a museologia, hoje começa a tomar posse. Em outras palavras, a teoria deve se perguntar em que medida a museologia partilha, no fundo, de uma invenção antropológica9. Todas essas coisas dizem, finalmente, um pouco mais. Dizem que também que a intervenção museológica como intervenção de arquivo, reduz ainda mais a vitalidade deste seu objeto (e, lembremos, isso já aconteceu com a Antropologia). Pois aquilo que, nos enunciados sobre a biodiversidade, torna a comunidade tradicional “protagonista” é tão somente a crença de que tal comunidade possui um saber fazer que se reserva fora, ainda, dos arquivos técnico-científicos. Quando essa condição estiver superada, será o arquivo (museu) a nos falar sobre as coisas. 7. Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ARGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de Globalização. Mana, v.7, n.2, p. 733, Oct. 2001. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.7ª. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasilense, 2005. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2005. KANT, Immanuel. O conflito das faculdades. Lisboa: Edições 70, 1993. MONTAIGNE, Michel de. Ensaios: livro III. São Paulo: Martins Fontes, 2001. NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre História. São Paulo: Edições Loyola, 2005.                                                                                                                 9 A preocupação de Michel Argier (2011) com os modernos distúrbios identitários e as análises de Jeudy sobre a maquinaria patrimonial já nos dizem alguma coisa a respeito.   188 ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. 3ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. 3ª. Ed. São Paulo Martins, Fontes, 2005. STRÁNSKÝ, Zbinesk Z. Sobre o tema “Museologia – ciência ou apenas trabalho prático?” Museologia e Patrimônio, v.1, n.1, p. 101-105, 2008. 189 A MUSEALIZAÇÃO DE ÁREAS NATURAIS – O ESTUDO DE CASO DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA Elisama Beliani1; Tereza Scheiner2 Resumo A musealização é um processo específico da Museologia, sendo um termo técnico usado para expressar o caminho que leva uma determinada referência, material ou não, a ser inscrita no âmbito do Museu. Na atualidade a musealização tem assumido novos lugares e significados e pode ser aplicada a todos os tipos de processos e produtos da natureza e do fazer humano, incluindo a conservação in situ. Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados finais da pesquisa-dissertação defendida em 2012, no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, intitulada As contribuições da Museologia para a preservação e musealização do Parque Nacional da Tijuca. O processo de musealização do Parque Nacional da Tijuca (PARNA-Tijuca) se iniciou especificamente em 1973 e apresenta dois períodos específicos, porém, contínuos. Como um processo dinâmico e específico do campo museológico, funciona como uma das formas de preservar o patrimônio e de estabelecer condições de conservação, legibilidade e acessibilidade ao público que visita o museu. Assim, a natureza musealizada adquire uma nova função – de representar o patrimônio dito natural; e a Museologia contribui com a conservação do PARNA-Tijuca, organizando, através da interpretação, a ideia de patrimônio a ser apresentada à sociedade. O trabalho dos museus frente ao patrimônio natural fundamenta-se numa proposta ética de construção do futuro pela transformação do presente – que inclui pensar e trabalhar a representação do patrimônio como bem comum, através dos 4 pilares da musealização: documentação, pesquisa, preservação e comunicação. Palavras chave: museologia, patrimônio, Parque Nacional da Tijuca, musealização. Resumen La musealización es un proceso específico de la Museología y también un término técnico, utilizado para expresar el camino que conlleva a una determinada referencia, material o no, a inscribirse en el ámbito del Museo. En la actualidad, la musealización ha asumido nuevos significados y lugares y se puede aplicar a todos tipos de procesos y productos de la naturaleza y del quehacer humano, asimismo como a la conservación in situ. Este artículo tiene como objetivo presentar los resultados finales de la investigación realizada para la disertación de Master defendida en 2012 en el Programa de Postgrado en Museología y Patrimonio - PPG-PMUS, RJ/Brasil, con el título Las contribuciones de la Museología para la preservación y musealización del Parque Nacional de Tijuca. El proceso de musealización del Parque Nacional de Tijuca (PARNA-Tijuca) se inició concretamente en 1973 y presenta dos períodos específicos, pero continuados. Como un proceso dinámico y específico del campo museológico, funciona como una forma de preservar el patrimonio y de establecer las condiciones de conservación, legibilidad y accesibilidad al público visitante de este museo. De esta forma, la naturaleza 1 Psicóloga e Licenciada em Ciências Biológicas. Doutoranda e Mestre em Museologia e Patrimônio. Email: elisamabeliani@gmail.com. 2 Museóloga, Geógrafa, Mestre e Doutora em Comunicação. Coordenadora e docente do Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio (PPG-PMUS - UNIRIO/MAST). Email: tacnet.cultural@uol.com.br. 190 musealizada adquiere una nueva función - la de representar al patrimonio dicho natural; y la Museología contribuye hacia la conservación del PARNA-Tijuca, organizando, a través de la interpretación, la idea de patrimonio a ser presentada a la sociedad. La labor de los museos frente al patrimonio natural se fundamenta en una propuesta ética de construir el futuro por la transformación del presente - lo que incluye pensar y trabajar la representación del patrimonio como un bien común, a través de los cuatro pilares de la musealización: la documentación la investigación, la conservación y la comunicación. Palabras clave: museología, patrimonio, Parque Nacional de Tijuca, musealización. Abstract Musealization is a specific process of Museology as well as a technical term, used to express the means by which given reference, material or not, enters into the sphere of the Museum. Today the musealization process has assumed new meanings and can be applied to all kinds of processes and products of nature and of the human activity, as well as to in situ conservation. This article aims to present the final results of the research for the Master dissertation defended in 2012 in the Graduate Program in Museology and Heritage - PPG-PMUS, RJ/Brazil, entitled Contributions of Museology to the preservation and musealization of the National Park of Tijuca. The process of musealization of the National Park (PARNA-Tijuca) started in 1973, and was developed in two specific, although continuous periods. As a dynamic and specific process of the Museum field, it works as a way of protecting heritage, establishing conditions of conservation, legibility and accessibility to the visitor of this museum. Thus, musealized nature acquires a new function - that of representing the so-called natural heritage; and Museology contributes to the conservation of the Park - organizing, through interpretation, the idea of heritage to be presented to society. The work of museums on behalf of the natural heritage is based on an ethical proposal: building the future through the transformation of the present - which includes thinking and working the representations of heritage as a common good, by means of the four pillars of musealization: documentation, research, preservation and communication. Keywords: museology, heritage, National Park of Tijuca, musealization. 1. Introdução O diálogo entre os saberes tem se tornado uma prática cada vez mais intensa no mundo contemporâneo – principalmente a partir do final do século XX e início deste século XXI, com o fim de encontrar novos caminhos e soluções para o enfrentamento dos problemas emergentes da humanidade. Isto explica a importância que hoje têm os estudos transdisciplinares no âmbito do conhecimento. Entre os muitos problemas que vimos enfrentando nas últimas décadas, a conservação do Meio Ambiente tem se tornado um imperativo para a humanidade; e a Museologia também vem refletindo e trabalhando esta questão. Uma das alternativas possíveis de trabalhar a relação entre Museologia e meio ambiente é a musealização de áreas naturais, que vem funcionando como uma das formas de preservar o patrimônio dito natural. Os Parques Nacionais, como exemplo de representação do Museu de 191 Território e da conservação da natureza, estão entre os focos de atuação da Museologia no campo ambiental. Neles, o processo de musealização busca estabelecer condições de conservação, legibilidade e acessibilidade ao público visitante, organizando as informações e demandas sobre o cuidado com a natureza. O presente artigo tem como objetivo apresentar os resultados finais da pesquisa desenvolvida para a dissertação de Mestrado defendida, em fevereiro de 2012, no Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio3, com o título As contribuições da Museologia para a preservação e musealização do Parque Nacional da Tijuca - na qual se apresenta uma abordagem do processo de musealização em parques nacionais. 2. Parque Nacional Como Museu O tema Parque Nacional é complexo, já que se articula à noção de paisagem; às questões sociais e turísticas; às questões ecológicas e ambientais; e reflete importantes aspectos da relação íntima entre homem e natureza. O primeiro parque nacional criado no mundo foi o Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos em 1872, e a partir dele se definiu uma matriz/modelo valorativo/conceitual para a proteção destas áreas. Atualmente outros valores se agregam aos motivos pelos quais áreas naturais devem ser protegidas. Em 1994, a Comissão de Parques Nacionais e Reservas Naturais Protegidas da IUCN (apud BRITO, 2000:44) definiu que os Parques Nacionais devem ser “manejados principalmente para conservar ecossistemas intactos para as futuras gerações, permitindo a recreação e educação ao ar livre e instalações compatíveis com as finalidades conservacionistas, tolerando moderadas intervenções humanas” 4. No Brasil, a denominação de Parque Nacional (PARNA)5 é dada a uma categoria de Unidade de Conservação (UC), do tipo Proteção Integral, onde há a proteção da natureza admitindo-se o uso indireto dos seus recursos naturais. Todo Parque Nacional, de acordo com o SNUC (2000:7), tem a finalidade de: Preservar ecossistemas naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, possibilitar a realização de pesquisas científicas e 3 BELIANI, Elisama. As contribuições da Museologia para a preservação e musealização do Parque Nacional da Tijuca. Dissertação. Mestrado em Museologia e Patrimônio, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio-PPG-PMUS, UNIRIO/MAST. RJ, 2012. 197 p. Orientador: Tereza Scheiner. 4 É importante lembrar que o Plano de Manejo é um documento importantíssimo na conservação da natureza, pois organiza os critérios de delimitação das zonas que devem ser mantidas intactas preservando a evolução natural dos ecossistemas, e dentre outras, aquelas que podem ser desenvolvidas atividades de interpretação ambiental. 5 As unidades de conservação dessa categoria, quando criadas pelo Estado ou Município, serão denominadas, respectivamente, Parque Estadual e Parque Natural Municipal, conforme o Sistema Nacional de Unidades de Conservação - SNUC (2000:8). 192 desenvolver atividades de educação e interpretação ambiental, de recreação, de proteção e operacionalização, dentre outras [Grifos nossos]. Verifica-se que a presença humana se dá através da visitação pública, permitida para recreação, interpretação ambiental, educação e turismo ecológico; e ainda para pesquisa científica, dependente de autorização prévia do órgão administrador da unidade. Com estas atividades é possível sensibilizar o visitante para a conservação; e é neste caminho que a Museologia se conecta e começa a realizar um trabalho, efetivo e com qualidade, com o patrimônio dito natural. Lembremos aqui que desde a 8ª. Assembleia Geral realizada em Munique (BOYLAN), Alemanha, em 1968, o ICOM6 define as reservas naturais como museus. De 1979 até 2001 o termo parques naturais é incluído na definição de Museu do ICOM (BOYLAN, Op. Cit.); Qualquer instituição permanente que conserva e exibe, para fins de estudo, ensino e diversão, as coleções de objetos de importância cultural e científica. Dentro desta definição estão incluídos: (...) reservas naturais. [Grifo nosso] Em 2007, na Assembleia Geral do ICOM em Viena, o Museu passa a ser definido como Uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público e que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da Humanidade e de seu meio ambiente, para fins de educação, estudo e deleite [Grifo nosso]. Comparando e analisando as definições de Museu do ICOM relativas aos anos de 1979 a 2007 com a definição de Parque Nacional do SNUC do ano de 2000, podemos concluir que os parques são efetivamente museus, pois se inserem no conjunto das ideias propostas para o Museu – a visitação pública, a pesquisa, a conservação e a comunicação. Ambos os conceitos, de parque e de museu, se interpenetram. Assim sendo, todo Parque Nacional é, por definição, um museu; mas nem todos estão preparados para atuar, nem como Parque Nacional, nem como museu, pois não cumprem sua finalidade básica de articular pesquisa, conservação e comunicação. Para reconhecer se um Parque Nacional atua efetivamente como museu (instituído), deve-se partir da análise de sua gestão; ou seja, é preciso que o gestor do Parque compreenda, primeiramente, o valor daquela unidade para os diversos campos do conhecimento que 6 International Council of Museums. 193 estarão envolvidos no processo de sua gestão: a biologia, a botânica, a zoologia, a ecologia, a geologia, a geografia, a historia, a sociologia, a administração - e, naturalmente, a Museologia, a comunicação e a educação. A análise conceitual do valor do Parque para cada um desses campos permitirá ao gestor compreender porque parques nacionais são museus, e perceber a importância de articular todos os campos implicados na gestão do Parque com o campo da Museologia. 3. Patrimonialização e Musealização da Natureza Considerar uma área natural como patrimônio tem sido uma atitude desenvolvida há séculos, mas por motivos diferentes. Nas últimas décadas, a natureza tem se tornado patrimônio pelo fato de conservar o mundo para as futuras gerações. Para Scheiner (2004:79), a questão ‘patrimonial’ se define a partir do séc. XVIII, quando as sociedades ocidentais definem suas metodologias de preservação; é quando se relaciona a ideia de patrimônio à ideia de permanência. Paes-Luchiari (2007:25) sugere que “a natureza, tornada patrimônio, herança e memória, é materialidade que se expressa a nós pela paisagem”, em uma relação íntima entre homem e natureza que se define como a alma do lugar. Do mesmo modo, Delphim (2004:5) assinala que a paisagem testemunha e preserva dados de épocas passadas, sob os pontos de vista geológico, paleontológico e arqueológico. A observação da paisagem informa sobre processos de formação do planeta, da vida, da humanidade. Testemunha a aventura do homem pelo planeta (...). Qualquer marca que o homem introduza na paisagem significa uma modificação pra sempre, um novo significado, um diferente valor cultural. A paisagem é uma chave para a compreensão do mundo, de seu passado, presente e futuro. O ser humano é o único ser vivo capaz de discorrer sobre o tema patrimônio e de qualificá-lo. Valorar é um processo humano, e a natureza em si mesma não está dotada de valor; são os atores sociais que atribuem significados e valores específicos às diferentes realidades, no tempo e espaço. Isto implica a existência de um processo social de seleção e a atribuição de valores simbólicos e culturais. Hoje, cultura e natureza, analisadas sistematicamente, são interpretadas como patrimônio. Segundo Gonçalves, (2005:17), o patrimônio é uma “categoria extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana”: seu objetivo é garantir a sobrevivência dos grupos sociais e também interligar gerações umas às outras. Paes-Luchiari (2007:27) diz que “a natureza e seus processos têm a sua própria lógica e dinâmica, mas a patrimonialização da natureza é uma ação política e cultural”. As leis de 194 tombamento e de estabelecimento de áreas protegidas são determinadas pela esfera cultural e sociopolítica em cada período histórico, nos quais se imprime um olhar 'patrimonializado' à natureza; a partir destes processos as referências naturais são percebidas como culturais e poderão ser musealizadas. É interessante pensarmos que “é em torno do homem que o sistema da natureza conhece uma nova valorização e, por conseguinte, um novo significado” (SANTOS, 1997:90). Partindo desta noção de patrimonialização, é possível delinear o caminho que leva a natureza a ser considerada patrimônio musealizável. Quando uma determinada referência, material ou não, é inscrita no âmbito do Museu, aí se inicia o processo de musealização. Segundo o Dicionário Enciclopédico de Museologia (ICOM: 2010:51), musealização é um processo científico, que inclui, necessariamente, as atividades essenciais do museu: preservação (seleção, aquisição, coleta, gerenciamento, conservação), pesquisa (incluindo, catalogação) e comunicação (através de exposição, publicação, etc.) ou, de outro ponto de vista, as atividades em torno da seleção, coleção e exibição. [Tradução e grifos nossos] Para a Museologia aplicada este processo se divide em quatro grandes funções específicas: a documentação, a preservação (compreende a coleção, identificação, conservação, restauração), a pesquisa (investigação do acervo) e a comunicação (exposição, divulgação do acervo e das pesquisas e educação). Estas ações, quando realizadas dentro dos parâmetros técnicos e conceituais da Museologia, definem o processo de musealização - através do qual as referências valoradas como patrimônio se inserem no âmbito do Museu. (Figura 1). Identificar MUSEU Musealização Figura 1. Processo de Musealização. Fonte: Beliani, 2011 195 Na atualidade a musealização tem assumido novos lugares e significados e pode ser aplicada a todas as coisas naturais e artificiais, bem como à conservação in situ. Não há nenhuma diferença real entre uma coleção de xícaras de prata e uma coleção de montanhas, plantas e animais em um parque nacional (SCHÄRER, 2008, p.88). Considerando que os Parques Nacionais estão inseridos na categoria dos chamados museus de território, é importante ressaltar que, nestes museus, não predomina a coleta de registros, uma vez que estes já estão preservados in situ. Particularmente, nos Parques Nacionais, assim como em outras áreas naturais preservadas, o objeto a ser musealizado pode ser constituído por grupos vegetais e/ou animais importantes naquele território, uma vez que o “museu coleciona sinais (informações, ou seja, processos)” (Ibid.). Musealizar a Mata Atlântica, por exemplo, pressupõe preservar, antes de tudo, a diversidade e a integridade do patrimônio dito genético, ou seja, parte da riqueza da biodiversidade do mundo. Outro aspecto que deve ser devidamente considerado quando se contempla a possibilidade de musealização de áreas naturais, é que museus são centros de pesquisa e produção de conhecimento e, evidentemente, de repasse e transmissão do conhecimento produzido. Vale ressaltar que o processo de musealização, de certa forma, interrompe ações dinâmicas pertinentes ao objeto, o 'espírito' original e seu contexto social: o “objeto é salvo através de sua ‘morte’ (partida do seu contexto)”. No caso da natureza, em parques nacionais, o processo dinâmico do objeto é mantido, já que ele é preservado em sua dinâmica de vida; os processos ecológicos são garantidos em diferentes tempo e espaços, pois não são interrompidas pela ação humana. Desta forma, o contexto social assume outra representação, pois seu uso passa a ser restrito. Assim, a natureza musealizada adquire uma nova função – representar o patrimônio dito natural; e a Museologia contribui com a conservação dos Parques Nacionais, organizando, através da interpretação, a ideia de patrimônio comum, a ser comunicado e representado à sociedade, através das ações de musealização. O processo de musealização de Parques Nacionais no Brasil se iniciou em 1973, no período em que Alceo Magnanini atuou no IBDF 7, como Diretor dos Parques Nacionais Brasileiros (1967-1975), sendo o primeiro especialista em áreas naturais protegidas do Brasil a compreender a necessidade de contar, em sua equipe, com 7 Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal. 196 profissionais da Museologia8. Em entrevista cedida para esta pesquisa, Magnanini (2011) enfatiza que o museólogo é a pessoa que sabe como ‘mostrar’ a peculiaridade da natureza ao público visitante, e pode contribuir perfeitamente com a conservação da natureza, pois consegue traduzir a ideia de conservação para todos os públicos – crianças, jovens, técnicos e turistas. 4. Estudo de Caso A área de pesquisa é conhecida internacionalmente; é ícone de visitação no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil; apresenta ligação direta com a cultura carioca e é uma área musealizada desde 19739. A ação de valorização da área ocorreu quando esta foi decretada Floresta Nacional, em 1861, sendo determinante para o início do processo de patrimonialização daquele território. Em 1961 a área foi decretada Parque Nacional, com o nome de Parque Nacional do Rio de Janeiro; em 1967 seu nome foi alterado para Parque Nacional da Tijuca10. Localiza-se geograficamente no centro da cidade do Rio de Janeiro, nas montanhas do Maciço da Tijuca, e é formada por quatro setores descontínuos11. A área do PARNATijuca constitui um importante fragmento de Mata Atlântica, coberta por Floresta Ombrófila Densa Secundária, em avançado estágio de regeneração. O processo de musealização da área iniciou-se especificamente em 1973, e apresenta dois períodos específicos, porém, contínuos: o primeiro período ocorreu dos anos 1973 a 1980; e o segundo, de 1997 até o presente momento. É preciso destacar que durante 17 anos ocorreu uma interrupção nas ações de musealização da área. 4.1 Primeiro período da musealização: 1973-1980 As ações de patrimonialização ocorreram de forma sistemática neste primeiro período. Para que a segurança da proteção do patrimônio dito natural ocorresse, optouse então pelo tombamento da área e dos monumentos naturais e culturais. Vários bens e 8 Com a chegada do museólogo ao IBDF pode-se iniciar o processo de musealização do PARNA-Tijuca e de outros Parques Nacionais brasileiros. 9 Neste período foram realizados trabalhos para os Parques Nacionais de Aparados da Serra, Brasília, Iguaçu, Itatiaia, Monte Pascoal, Serra dos Órgãos, Sete Cidades e outros, bem como projetos que atendiam às necessidades de todos os parques nacionais - como os projetos de placas e de guaritas. Foi ainda dado apoio museológico ao Museu Kuhlman, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e ao Museu de Fauna. 10 No mesmo ano, foi tombado pelo Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), através do Processo nº 0762-T-65, no livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. 11 Floresta da Tijuca; Serra da Carioca; Pedra Bonita/Pedra da Gávea e Pretos Forros/Covanca. 197 monumentos existentes no PARNA-Tijuca foram inscritos e tombados pelo IPHAN em diferentes anos. Verifica-se que, dos seis bens tombados, quatro foram inscritos durante o primeiro período em que havia um museólogo auxiliando na equipe do Parque – O Parque Nacional da Tijuca e a Floresta da Tijuca; o Morro dois Irmãos, o Corcovado e a Pedra da Gávea. O outro bem – o Cristo Redentor – foi inscrito no segundo período em que também se tem a presença do museólogo no parque. Quanto às ações específicas do museu, se direcionaram, neste período, para a documentação, pesquisa, projetos técnicos e preservação como forma de organizar a história do objeto a ser musealizado: o PARNA-Tijuca; e a ‘captura’ do patrimônio em sua condição de excepcionalidade, como documento. Tereza Scheiner foi a museóloga que iniciou o processo de musealização no PARNA-Tijuca. A equipe, liderada por Magnanini e integrada por arquiteta, museóloga e dois engenheiros florestais12, realizou, em 1975, uma pesquisa sobre o Comportamento de Público nos Centros de Visitantes de Parques Nacionais, publicado nos Anais da AMICOM-BR (1975:55-57). Outra pesquisa foi o levantamento de dados, através de pesquisa fundiária e em fontes arquivistas, sobre a Ocupação Humana no Parque Nacional da Tijuca, que rendeu uma publicação, em 1976, na Revista Brasil Florestal (SCHEINER, 1979:12-20)13. Entre os anos de 1977 e 1978, foi realizada uma pesquisa de visitação na área da Floresta da Tijuca14, visando definir o perfil dos visitantes da área, bem como suas preferências. No mesmo período (1977-1979) foi realizada pesquisa de público no Museu de Fauna. Cabe ainda explicitar que, no âmbito do projeto "Estudos e projetos para adequação ao público das áreas de visitação do Parque Nacional da Tijuca" (1974-1980) foi realizado o inventário das bicas e fontes do Parque e a análise sistemática de seu estado de conservação, assim como o mapeamento adequado das trilhas e caminhos do PARNA. Quanto às edificações, já existia um levantamento prévio à chegada da museóloga, provavelmente realizado quando da implantação do Parque. No que tange à Floresta da Tijuca, também já existia uma relação de edificações datada da administração de Castro Maia, sendo algumas delas tombadas pelo IPHAN - como a Capela Mayrink. 12 Neste mesmo período realizaram pesquisas no Parque e sobre o Parque o primatologista Adelmar Coimbra Filho (projeto Mico-Leão Dourado) e ainda três biólogos e uma geógrafa - sendo que esta realizou um trabalho pioneiro de mapeamento das sub-áreas do Parque. Alguns dados destas pesquisas foram incorporados ao trabalho de musealização. 13 Este texto é referência até os dias de hoje, inclusive para a construção do Plano de Manejo dos anos 1981 e 2008. Esta pesquisa continuou rendendo frutos, incluindo outra publicação - Sobre Turismo e Visitação em Parques Nacionais, em 1979, na Revista de Ciências Humanas, da Universidade Candido Mendes. 14 SCHEINER, Tereza. Análise do Público da Floresta da Tijuca. Rio de Janeiro, 1977/1978 (xerox). 198 Segundo Scheiner (2011), o trabalho de Museologia deste período abrangeu ainda o registro, classificação, catalogação e inventário das coleções do Museu de Fauna (cerca de 3 mil objetos) e a realização de exposições temporárias no museu, bem como atividades de recepção de visitantes portadores de necessidades especiais - trabalho este realizado com o apoio de três estagiários de Museologia15. A proposta de musealização do primeiro período não se encontra disponível no Parque. Isto se deve, provavelmente, à rotatividade dos chefes do PARNA-Tijuca e a não conservação dos documentos. Consideramos que com isto também possa ter ocorrido a perda dos documentos sobre o trabalho realizado, já que houve um período de 17 anos sem um profissional da Museologia dentro da Unidade. Note-se que, no período de 1973 a 1980, o trabalho de musealização do PARNATijuca desenvolveu-se de forma transdisciplinar, com o envolvimento de todos os especialistas da equipe nas atividades direcionadas para o público, de forma integrada e com planejamento do uso dos diferentes setores do Parque. Segundo Scheiner (2011), este é provavelmente o primeiro trabalho efetivo de Museologia 'integral' realizado no país. 4.2 Atual proposta de musealização: 1997... Ana Cristina Vieira é a museóloga que tem dado continuidade ao processo de musealização no PARNA-Tijuca. Apesar de o trabalho ter sido interrompido por 17 anos, faz parte de um mesmo processo dinâmico, pois são interdependentes. A atual proposta se organiza como apresentado na Tabela 1 a seguir. Nas ações de musealização, foram mantidas a pesquisa e a documentação como prioridade. Como parte da documentação, foi realizado o Inventário dos Bens Culturais do Parque Nacional da Tijuca, estando hoje os bens do Parque devidamente catalogados e classificados. No que se refere ao Projeto Memória do Parque Nacional da Tijuca, houve um trabalho em conjunto com uma historiadora a partir de 2002, a fim de identificar, registrar e mapear as propriedades e seus respectivos proprietários que ocuparam a área do Parque e seu entorno. Esta pesquisa se mantém até o presente, ampliando o conhecimento do patrimônio não citado em livros. 15 Cabe ainda acrescentar que durante este período realizou-se um levantamento dos sítios históricos e arqueológicos localizados no Parque, com ênfase na subárea Floresta da Tijuca - e alguma pesquisa arqueológica de campo. Os resultados e materiais desta pesquisa, realizada por Bandeira, estão disponíveis na Biblioteca do Parque. Segundo Vieira (2011) algumas peças encontradas nesta época fazem parte do acervo da Exposição Permanente Uma Floresta na Metrópole, no Centro de Visitantes, no setor Floresta da Tijuca. 199 Tabela 1. Atual proposta de musealização do PARNA-Tijuca ATUAL PROPOSTA DE MUSEALIZAÇÃO DO PARNA-Tijuca PESQUISA e DOCUMENTAÇÃO PROJETO MEMÓRIA DO PARQUE NACIONAL DA TIJUCA COMPLEXO CULTURAL TRILHAS INTERPRETATIVAS E PLACAS INDICATIVAS PROJETO MEIO AMBIENTE ESPAÇO SAGRADO EXPOSIÇÕES TEMPORÁRIAS E ATIVIDADES CULTURAIS EXPOSIÇÃO PERMANENTE PUBLICAÇÕES Fonte: Vieira e Plano de Manejo, 2011 A proposta do Complexo Cultural abrange o estreitamento da relação da comunidade com o território, através da criação de equipamentos em quatro pontos específicos dentro do Parque: o primeiro seria um Espaço Cultural no Restaurante Cascatinha; o segundo, o Centro de Visitantes na Floresta da Tijuca; o terceiro, a Casa do Pesquisador; e o quarto, um Museu de Arqueologia e Biodiversidade. Hoje, tanto a Casa do Pesquisador como o Centro de Visitantes, ambos situados no setor Floresta da Tijuca, são projetos concretizados. Vieira acredita que o Museu de Arqueologia e Biodiversidade venha a ser viabilizado dentro de pouco tempo. Trilhas específicas, com três roteiros diferenciados, foram desenhadas, configurando um Circuito Cultural, mas o projeto ainda não foi colocado em prática. Ainda nesta proposta se identificaria algumas espécies endêmicas no percurso das trilhas, para viabilizar sua interpretação nas áreas e sítios demarcados, ou seja, placas interpretativas deveriam ser fixadas sobre os locais de ocorrência das principais espécies, comunicando sua utilidade, origem e significado. Cabe explicitar que o PARNA-Tijuca possui trilhas interpretativas, placas indicativas e placas informativas desde o seu estabelecimento. No período de 1999-2001 as placas indicativas do Parque foram reeditadas e atualmente estão recebendo novo tratamento, e o setor de Museologia contribui. No que se refere às placas indicativas, dá-se muita ênfase à sub-área, por exemplo, da Floresta da Tijuca, e não ao Parque como um todo. Em julho de 2011, em equipe, o setor de Museologia participou do desenvolvimento de uma trilha interpretativa para indivíduos com necessidades especiais visuais e de locomoção, visando promover a interação desses visitantes com o ambiente 200 natural do parque. Ainda no que se refere ao tema da inclusão, existe um mapeamento de sessenta espécies de vegetais, que irá integrar placas de identificação com indicações em Braille e com uma disposição acessível aos cadeirantes. Dentre os projetos desenvolvidos junto ao público visitante, destaca-se o Projeto Meio Ambiente Espaço Sagrado, desenvolvido de 1997 a 2010, em conjunto com o Núcleo de Educação Ambiental. O trabalho foi integrado e multidisciplinar, desenvolvido em processo dinâmico e contínuo, e se configurou com a contribuição de várias instituições de Educação Ambiental, instituições privadas e ONGs, bem como associações e entidades religiosas de vários tipos (Federação Brasileira de Umbanda e Candomblé, Federação Espírita Brasileira). O resultado foi a conscientização dos praticantes sobre o culto aos seus deuses de maneira a preservar o Parque. Com a equipe reduzida, ficou impossível manter o projeto. As exposições temporárias, atividades culturais e a exposição permanente também são destaque nas ações de comunicação. Foram realizadas 32 exposições temporárias de 1997 até 2007. A Exposição Fauna em Foco (da artista plástica Dorée Camargo) foi o destaque das exposições temporárias desenvolvidas em 2010. Os animais criados pela artista estão em exposição até hoje no Parque. As exposições temporárias dinamizam a visitação no Centro de Visitantes, construído em 2001, e em consequência se forma o hábito de que, de dois em dois meses, se pode entrar em contato com um novo tema a ser interpretado. No mesmo ano, 2010, foi inaugurada a exposição permanente Uma floresta na Metrópole, após 9 anos de concepção. A exposição é dividida em três fases: Mata Original, Intervenção Humana e Enfim, um Parque. São quarenta e sete painéis em 90m 2 de área, com o objetivo principal de comunicar a importância do Parque e conscientizar sobre o patrimônio a ser preservado. A caracterização da fauna e flora originais e a comparação com a que existe hoje se tornam destaque na exposição. Com a exposição permanente o fluxo de desenvolvimento de exposições temporárias diminuiu, mas isto não interferiu nos índices de visitação: ao contrário - verifica-se que este equipamento cultural aumentou o fluxo de visitação no Parque. O setor de Museologia realiza ainda um estudo de público, no Centro de Visitantes, onde um levantamento do perfil do visitante é desenvolvido de forma sistemática e diária, há mais de 10 anos; analisam-se categorias como: sexo, idade, procedência, pesquisadores, grupos (escolares, guiados). É preciso destacar que a Museologia se fez presente, em equipe, na elaboração do dossiê de candidatura do Rio de Janeiro a Patrimônio da Humanidade, na categoria 201 Paisagem Cultural, encaminhado para análise da UNESCO. O PARNA-Tijuca é parte fundamental desta candidatura. Em julho de 2011, foi realizada outra ação em equipe, desta vez para a comemoração do Aniversário de 50 anos do Parque e 150 anos do reflorestamento: além da celebração, aconteceu a solenidade de lançamento da Medalha Major Gomes Archer (cunhada pela Casa da Moeda) e do Selo Comemorativo do Parque Nacional da Tijuca. Neste evento, o primeiro diretor - Alceo Magnanini - foi um dos homenageados, e recebeu a medalha em virtude do papel desempenhado na unidade. A Museologia auxiliou na elaboração desta medalha. No que tange às pesquisas, vêm servindo de subsídio às ações de preservação do Parque – fundamentando, além do trabalho de documentação e exposição, as narrativas que buscam comunicar, em publicações, o trabalho realizado no e sobre o Parque, além da participação na construção do Plano de Manejo. No que se refere à comunicação, a Museologia tem-se feito presente, em equipe, para elaborar informações disponíveis sobre o Parque, veiculadas no site oficial do PARNA-Tijuca. O trabalho está sendo realizado em parceria com a Associação de Amigos do Parque, ONG sediada no Parque Lage. Para Vieira (2011), a maior contribuição da Museologia para a preservação do PARNA-Tijuca se dá buscando-se criar a consciência de todos os atores sociais sobre a preservação do patrimônio cultural presente no Parque: Vista Chinesa, Mesa do Imperador, Capela Mayrink, Cristo Redentor, que são destaques para o uso público. Estes devem ser valorizados pelos visitantes com auxílio da Museologia. Um fato importante e que deve ser lembrado é que o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) está realizando o levantamento de todos os museus para compor o Cadastro Nacional de Museus, onde se incluem as Unidades de Conservação. Segundo Vieira (2011) o PARNA-Tijuca já recebeu o questionário do IBRAM, por meio de seu setor, e a mesma prontamente o respondeu e devolveu. Vieira reforça a existência de dificuldades de ambas as áreas, a Museologia e a Ambiental, em compreender o Parque como museu na prática. É possível ainda analisar que os aspectos técnicos da documentação e da comunicação sobressaem mais efetivamente no segundo período – o atual – em que a museóloga Ana Vieira se encontra na equipe do PARNA-Tijuca, mesmo trabalhando muitas vezes sem o apoio de outros setores do Parque. 202 5. Considerações Finais O trabalho dos museus frente ao patrimônio dito natural fundamenta-se numa proposta ética de construção do futuro pela transformação do presente – que inclui pensar e trabalhar a representação do patrimônio como bem comum, através dos 4 pilares da musealização: documentação, pesquisa, preservação e comunicação. A Museologia pode contribuir para a construção de sujeitos conscientes de suas demandas sociais, culturais e ambientais; e proporciona a cada indivíduo o conhecimento e a consciência de si mesmo e do ambiente que o cerca, valorizando o patrimônio integral. Acreditamos que a integração entre ICMBio e IBRAM poderá contribuir para reafirmar o potencial da Museologia dentro dos parques, facilitando a percepção da sociedade de que eles são, efetivamente, museus – e assim devem ser interpretados para uso público. Isto requer que os museólogos atualizem e renovem sua percepção sobre museus, parques nacionais e sobre a própria Museologia, qualificando-se para o trabalho em museus de território, entre os quais se encontram as áreas naturais preservadas. Sem dúvida a musealização de parques nacionais deve ser levada a cabo por equipes multidisciplinares – e nelas será sempre fundamental a presença do museólogo. 6. Referências Anais do I Seminário brasileiro sobre a Análise do Comportamento do Visitante no Museu. RJ: AMICOM-BR, 1975. p-55-57. BELIANI, Elisama. As contribuições da Museologia para a preservação e musealização do Parque Nacional da Tijuca. Dissertação. Mestrado em Museologia e Patrimônio, Programa de Pós Graduação em Museologia e Patrimônio-PPG-PMUS, UNIRIO/MAST. RJ, 2012. 197 p. Orientador: Tereza Scheiner. BOYLAN, Patrick. Defining Museums and Galleries – ICOM International Committee for the Training of Personnel (ICOM-ICTOP). Disponível em: <http://www.city.ac.uk/ictop/mus-def.html> Acesso em: 28 de Dezembro de 2010. BRASIL. Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Brasília: MMA/SBF, 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9985.htm>. Acesso em: 12 de dezembro de 2010. ___________. Plano de Manejo do Parque Nacional da Tijuca. Brasília: Ministério do Meio Ambiente e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, 2008. DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. O Patrimônio Natural no Brasil. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=418. 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Entrevista concedida por ocasião da pesquisa-dissertação. Rio de Janeiro, 2011. 204 NOTAS SOBRE A CRIAÇÃO DO MUSEU DE HISTÓRIA NATURAL E O JARDIM BOTÂNICO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA: ILUMINISMO, CIÊNCIAS NATURAIS, VIAJANTES E IMPÉRIO EM COIMBRA NO SÉCULO XVIII1 Julio Cézar Chaves2 Resumo Esse trabalho foi realizado em 2011 para a Disciplina Cultura e Sociedade: temas contemporâneos em Antropologia, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Sandra Xavier, do Mestrado em Antropologia Social e Cultural da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade de Coimbra, como requisito à obtenção da aprovação na referida disciplina. O objetivo principal com esse trabalho foi traçar um pequeno esboço sobre a criação do Museu de História Natural e do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra no século XVIII, no bojo das reformas da Universidade, realizadas no reinado de D. José I e de seu primeiro ministro – o Marquês de Pombal. O Iluminismo, as Ciências Naturais, Viagens Filosóficas e Império são itens essenciais para adentrar no mundo dos museus e jardins botânicos dos setecentos. No caso português, também é imprescindível conhecer o pensamento do naturalista Domingos Vandelli, um dos mais importantes cientistas de Portugal de então. Palavras-chave: Museu. Jardim Botânico. Ciências Naturais. Viagens Filosóficas. Iluminismo. Resumen Este trabajo fue realizado en 2011 para la cátedra “Cultura y sociedad: temas contemporáneos de antropología”, a cargo de la Profa. Doctora Sandra Xavier, dentro de los estudios de Mestrado en “Antropología social y cultural de ciencias y tecnología” de la Universidad de Coímbra, como requisito para aprobar dichos estudios. El principal objetivo fue trazar un pequeño esbozo sobre la creación del Museo de Historia Natural y el Jardín Botánico de la Universidad de Coímbra en el siglo XVIII, en el marco de las reformas de la universidad, realizadas durante el reinado de D. José I y de su primer ministro – el Marqués de Pombal. La ilustración, las ciencias naturales, los viajes filosóficos y el imperio son los temas esenciales para poder adentrarse en el mundo de los museos y de los jardines botánicos del siglo XVIII. En el caso portugués, también es                                                                                                                         1 O interesse pelo tema surgiu durante as aulas do mestrado na Universidade de Coimbra – Portugal. Cursava a Disciplina Cultura e Sociedade: temas contemporâneos em Antropologia, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Sandra Xavier. Paralelamente tive contato com o autor português João Carlos Brigola que escreveu sobre museus e colecionismo em Portugal no século XVIII e, por fim, a descoberta dos livros do Projeto Transnatural que tem como tema o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. 2 Museólogo do Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore da Universidade Federal de Alagoas (MTB/Ufal). Atualmente, cursa uma Especialização em Antropologia na Ufal e é mestrando em Antropologia Social   e Cultural no Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências e Tecnologia, da Universidade de Coimbra.   205 imprescindible conocer el pensamiento del naturalista Vandelli, uno de los científicos más importantes del Portugal de aquella época. Palabras-clave: Museo. Jardín Botánico. Ciencias Naturales. Viajes Filosóficos. Ilustración. Abstract This research was conducted in 2011 for the Chair “Cultura e Sociedade: temas contemporâneos em Antropologia”, taught by Professor Sandra Xavier PhD, who is an expert in Social and Cultural Antropology, and a member of the Faculty of Sciences and Technology at the University of Coimbra, as a requirement to obtain approval for the previously mentioned position. The main aim was to outline the creation of the Museum of Natural History and the Botanical Garden of the University of Coimbra, during the transformation of the University in the Eighteenth Century, which occured during the reign of D. José I and the Prime Minister, Marquess of Pombal. Iluminism, the Natural Sciences, Travelers and the Kingdom are key elements in understanding the world of museums and botanical gardens in the Eighteenth Century. In the case of Portugal, it is also crucial to know the thought of the naturalist Domingos Vandelli, one of the most important scientists working in Portugal at that time. Key-words: Museum. Botanical Garden. Natural Sciences. Phylosofical trips. Iluminism. 1. Introdução O objetivo principal com este trabalho é abordar alguns aspectos sobre a criação do Museu de História Natural e do Jardim Botânico de Coimbra, inseridos no projeto político/cultural do Iluminismo e do Império português no século XVIII. O que se busca é pensar a forma como os museus e jardins botânicos se organizavam e suas relações com o Iluminismo, Ciências Naturais, Viagens Científicas e Império. Pesquisar os museus e jardins botânicos de Portugal no século XVIII é também conhecer o trabalho de seu principal pensador, Domingos Vandelli, “[...] indiscutivelmente, o mais importante museólogo setecentista do nosso país [...]” (BRIGOLA, 2009, p. XVI). Vandelli não esteve ligado apenas à criação e direção de museus e jardins botânicos, participou também da criação da Academia Real de Ciências de Lisboa, promoção das “Viagens Philosophicas”, além de tomar parte de atividades docentes. Este é um trabalho incipiente, cujo autor tem como objetivo levantar questões sobre as relações de proximidade entre museus e jardins botânicos. Parte-se do pressuposto que os jardins botânicos são instituições museais e como tais, têm como funções e objetivos coletar, preservar, comunicar/exibir. 206 pesquisar/documentar (classificar) e Na verdade, essa não é uma ideia nova, em 1956, o Instituto Internacional de Museus – ICOM definiu museu como [...] um estabelecimento de caráter permanente, administrado para interesse geral, com a finalidade de conservar, estudar, valorizar de diversas maneiras o conjunto de elementos de valor cultural: coleções de objetos artísticos, históricos, científicos e técnicos, jardins botânicos, 3 zoológicos e aquários. Ao mesmo tempo, assinala-se que a definição do ICOM não foi primeira referência a tratar das relações de proximidade entre museus e jardins botânicos. A ligação entre as duas instituições é bem anterior, por exemplo, no período helenístico (século III a. C.), o Mouseion4 na cidade de Alexandria, criado por Ptolomeu I, era formado por “[...] una biblioteca y uma casa de fieras, um refectorio, um observatorio, un anfiteatro, salas de trabajo y un jardín botânico” (RIVIÈRE, 1989, p. 68). Outro exemplo de interesse para o presente trabalho ocorreu em Portugal, no século XVIII, mais especificamente em Lisboa e Coimbra. Nestas duas cidades, foram criados com objetivos complementares jardins botânicos e museus, o Museu e Jardim Botânico da Ajuda, e o Jardim Botânico e o Museu de História Natural da Universidade de Coimbra. Entender o museu/jardim botânico é uma das formas possíveis de adentrar nos meandros das relações de poder, de uma determinada época (século XVIII), assim como, no pensamento sociocultural de uma sociedade específica (portuguesa) é também “[...] entender o museu com uma instituição central da cultura. Local onde confluem ideias sobre as sensibilidades, o gosto, o saber científico de uma época [...]” (BRIGOLA, 2003, p. 28). Mas, é conveniente assinalar, como afirma Mário Chagas, que se há uma gota de sangue em cada museu, alegoria poética que o autor emprega para se referir ao condicionamento espaço-temporal e, assim, à historicidade5, podemos admitir que estes mesmos condicionamentos podem ser observados num jardim botânico. Como diz o autor trata-se de                                                                                                                         3 Site do Instituto Brasileiro de Museus – IBRAM, Disponível em: <http://www.museus.gov.br/museu/>. Acesso em: 23 de Nov. 2011. 4 Para Luis Alonso Fernandéz (1993, p. 27), a palavra museu é originária do latim museum, que por sua vez, é proveniente da palavra grega mouseion (casa das Musas). Segundo L.A. Fernandes (idem, p. 57), esse foi o termo escolhido por Ptolomeu Filadelfo para designar sua instituição. “(...) Aquel recinto donde franternizaban artistas, poetas y sabios en una especie de cooperación intelectual (...). Era, sin duda, uma especie de ciudad universitaria que no solo concedía importancia al cultivo del intelecto, ya que la naturaleza era considerada como elemento indispensable para la formación humana (...)”. 5 Título da obra museólogo, poeta e professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio, Mário Chagas. 207 [...] uma dimensão especificamente humana. Este “sinal de sangue” é também um inequívoco sinal de historicidade, de condicionamento espaço-temporal. Admitir a presença de sangue no museu [jardim botânico] significa também aceitá-lo como arena, como espaço de conflito, como campo de tradição e contradição. Toda a instituição museal apresenta um determinado discurso sobre a realidade. Este discurso, como é natural, não é natural e compõe-se de som e silêncio, de cheio e de vazio, de presença e de ausência, de lembrança e de esquecimento (CHAGAS, 2006, p. 30). Nos museus e/ou nos jardins botânicos, tal historicidade decorre ou pode ser observada nas escolhas, na coleta, nas classificações e hierarquias de organização e mesmo na exposição dos objetos e plantas nestas instituições. A ordenação desses acervos está relacionada a um tempo e lugar e, também aos padrões de época. Está vinculada, também, a um modo de pensar a ciência própria de um período. Se por um lado, trata de alguma forma da memória histórica, por outro, como está relacionada ao rememorar, traz em si o seu inverso, os silêncios ou esquecimento sobre saberes, usos e costumes dos produtores dos artefatos e, também dos detentores de conhecimentos sobre as plantas. Em Portugal6, no século XVIII, as ciências, os museus e jardins botânicos estavam subordinados ao projeto político e econômico do Império português. O conhecimento de povos e plantas era um dos pré-requisitos para gerar riquezas e dominação nos territórios de além-mar (conhecer para dominar). No quesito museus e jardins botânicos, nos setecentos, a figura mais importante foi sem dúvida Domingues Vandelli. 2. Domingos Vandelli Vandelli era um homem das ciências7. Atuou profissionalmente em diversas áreas: na política, na economia, na museologia e nas ciências naturais, apenas para citar algumas. Nasceu em Pádua, Itália, em 8 de julho de 1736. Estudou Filosofia. Desde cedo se sobressaiu no estudo da flora. Manteve ainda em Pádua, correspondência com o naturalista sueco Lineu que o homenageia batizando uma planta com o nome Vandellia.                                                                                                                         6 Segundo Brigola, [...] uma ideia já então em prática noutros países europeus e que haveria de ser incorporada, sobremaneira no pós-pombalismo, na estratégia governamental de articulação entre naturalismo econômico, comércio ultramarino, conhecimento científico e equipamentos museológicos. [...] (2009, p. XV). 7 No artigo, Numa Estreita Vereda Aberta na Floresta: Botânica, Iconografia, Território, Sandra Xavier (2005, p. 77) em interlocução com David Philip Miller, um dos editores do livro Visions of Empire: voyages, botany and representations of nature escreve que Miller “(...) defende que o fundo cultural que sustenta as representações da natureza do século XVIII extravasa as fronteiras disciplinares e conceituais actuais (...)”. A referência a esse trecho do artigo é para corroborar que Vandelli como um cientista do século XVIII, também não se limitou a carreira de naturalista, atuou em diversas áreas. 208 Percorreu o norte da Itália coletando e adquirindo objetos arqueológicos e de História Natural com o objetivo de montar seu gabinete de curiosidades 8 (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 21). Esse gabinete de curiosidades posteriormente foi adquirido pelo Marquês de Pombal para compor o Museu de História Natural da Universidade de Coimbra. O Marquês de Angeja, o convidou para organizar o seu parque e jardim no Lumiar, em Lisboa (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p.21). Cardoso (2002, p. 3), afirma que o convite foi feito pelo Marquês de Pombal e que Vandelli chegou em Lisboa em 1764 juntamente com outros professores italianos para “[...] leccionar matérias científicas (matemática, química, física e história natural) no Real Colégio dos Nobres [...]”. Ainda segundo Proença-Mamede (2008), posteriormente, o Marquês de Pombal convidou Vandelli para delinear e dirigir o Real Jardim Botânico da Ajuda e em 1772, quando Pombal inicia a Reforma da Universidade de Coimbra [...] para ela começa enviando o doutor em Filosofia Giovanni António Dalla Bella, natural de Pádua, a 4 de Maio de 1772. Face a péssima recepção que este italiano teve em Coimbra da parte da igreja e dos poderes instituídos, decide o próprio primeiro ministro cá vir e trazer com ele os homens certos para os lugares que entendia serem os correctos, empossando-os ele mesmo com os graus acadêmicos desejados. É assim que, a 9 de Outubro de 1772, recebem as insígnias doutorais o dito Dr. Dalla Bella em Filosofia, bem como Domingos Vandelli em Medicina e, logo a 12 de Outubro, em Filosofia [...]. (PROENÇAMAMEDE, 2008, p. 22). A interferência do primeiro ministro tornou evidente naquele contexto, as divergências com os professores da Universidade, muitos deles contrários a Reforma Universitária empreendida pelo Marquês de Pombal. Com o aval do primeiro ministro do Rei D. José I e do novo bispo de Coimbra e reitor D. Francisco de Lemos, Vandelli iniciou sua vida acadêmica na referida Universidade. Lecionou Química e História Natural, paralelamente criou o Laboratório Químico e o Gabinete de História Natural, além de colaborar na criação do Jardim Botânico (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 21-31). Importante também é assinalar, mesmo de forma breve, a passagem de Vandelli pela Academia Real de Ciências de Lisboa, “[...] podendo considerar-se um dos principais mentores da acção da Academia no domínio económico.” (CARDOSO, 2003, p. 3). O trabalho de Vandelli nesta instituição não estava dissociado de suas atividades docentes, como veremos a seguir.                                                                                                                         8 Alguns autores caracterizam os gabinetes de curiosidades como espaços que “(...) reúnem animais, objetos ou obras raras, fabulosas ou insólitas, em um bricabraque no qual impera o amontoamento”. (BOUILHET; GIRAUDY, 1990, p. 23). 209 O trecho abaixo é elucidativo sobre a questão econômica aliada às ciências naturais, segundo José Luís Cardoso a [...] colaboração de Vandelli na série de Memórias Económicas da Academia das Ciências de Lisboa (1789-1815) pautou-se por uma atenção de pendor descritivo sobre os recursos produtivos do reino e suas colônias, especialmente o Brasil. O seu propósito era claro e as suas intenções transparentes: proceder a um inventário rigoroso e sistemático de recursos e matérias-primas minerais, vegetais e animais, tendo em vista a sua exploração ou utilização económica. Para isso, socorreu-se dos seus conhecimentos nos diferentes ramos da história natural e procurou, através de processos sistemáticos de observação e experimentação, demonstrar a utilidade de tais conhecimentos (2003, p. 5). Esse trecho reverbera a ligação entre a pesquisa científica (história natural) e sua utilização econômica em benefício do Reino. Até então, pouco se conhecia 9 sobre as riquezas naturais do Reino, pelo menos, em termos científicos. Como professor, Vandelli pôs em prática a tarefa de conhecer e compilar os recursos naturais do Reino português (Portugal e Domínios Ultramarinos) por meio da organização das “Viagens Filosóficas”, incentivando seus alunos10 a viajarem para suas terras de origem com intuito de pesquisar e coletar amostras da flora, da fauna, da mineralogia, hidrologia etc. Iniciando pelo próprio país, Serra da Estrela, Extremadura, Beira, regiões do Douro Litoral, Minho, Trás-os-Montes, Algarve, lezírias do Tejo e Sado, Alentejo etc. Posteriormente, outras mais longínquas, como a “Viagem Philosophica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Matto Grosso e Cuyabá”, no Brasil, além de outras para Cabo Verde, Angola e Moçambique (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 26-28). Por fim, cabe assinalar que Vandelli jubilou-se em 1789, dez anos antes, morria o Rei D. José e, com a queda do Marquês de Pombal, o naturalista perdeu seus principais protetores. Mesmo assim, conseguiu o apreço da Rainha D. Maria e do Príncipe Regente. Com a invasão francesa e a fuga da família real juntamente com a alta nobreza, o                                                                                                                         9 Segundo Proença-Mamede, “(...) Até a chegada de Vandelli a Portugal, tudo se quanto sabia sobre a flora e botânica do nosso país resumia-se aos trabalhos do alemão Gabriel Grisley que após a Restauração, em 1640, havia estudado o tema e impresso várias obras. Também o francês Jean Vigier se debruçou sobre o estudo de algumas plantas quando, ainda no reinado de D. Pedro II, se estabeleceu em Lisboa com uma loja de drogas medicinais. Este publicou uma obra de dois volumes sobre o tema em Lyon (França) no ano de 1718” (2008, p. 22). 10 Segundo João Carlos Brigola (2009, p. XVII) “(...) Os mestres [incluindo Vandelli] tinham vindo a preparar uma elite acadêmica, quase toda de origem brasileira, apetrechando-a com um corpo de instrumentos teóricos e práticos, sobretudo na área da História Natural e da Química, que lhes garantia a legitima aspiração à profissionalização em cargos estatais: Joaquim Veloso de Miranda, Manuel Galvão da Silva, Alexandre Rodrigues Ferreira, João da Silva Feijó e Joaquim José da Silva, entre outros”. Cabe incluir o nome de José Bonifácio de Andrada e Silva como participante das Viagens Filosóficas, ele e Nepeon, um naturalista piemontês, fizeram uma expedição mineralógica às costas da Extremadura e Beira (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 27). O brasileiro formou-se na Universidade de Coimbra e posteriormente foi o organizador da Cadeira de Mineralogia dessa instituição e posteriormente seu titular. 210 naturalista permaneceu em Portugal sem seus principais aliados e a mercê de antigos desafetos. Esses aproveitaram as circunstâncias 11 e acusaram-no de “afrancesado”, pouco patriota e enciclopedista, no período em questão, em Portugal, eram acusações graves. Por fim, Vandelli foi preso em Coimbra, devido um processo existente contra ele e enviado primeiramente para Lisboa, depois Açores e, por fim, Inglaterra12 (1811), juntamente com o filho Alexandre António13. Somente em 1815 foi permitido seu retorno a Portugal, quando Vandelli já estava com 80 anos de idade e com a saúde debilitada. Morre em 1816, em Lisboa (PROENÇA-MAMEDE, 2008: 30-31). Domingos Vandelli foi um dos principais articuladores entre as ciências naturais, os museus, os jardins botânicos, a economia e o império, em Portugal, na segunda metade do século XVIII. 3. Notas Sobre a Criação do Museu de História Natural e o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra no Século XVIII O Museu de História Natural e o Jardim Botânico da Universidade de Coimbra foram criados no seio da Reforma da Universidade de Coimbra14, inserida no projeto de modernização do Estado português, realizado pelo então primeiro ministro de D. José I, o Marquês de Pombal. Para Brigola (2009, p. XIII) foi este o momento de aproximação entre intelectuais ilustrados e políticos absolutistas com incorporação da ciência em favor das grandes questões de Estado. A referida aproximação entre as ciências naturais e                                                                                                                         11 De forma resumida, os dois episódios foram: primeiro, com a invasão francesa, o responsável pelo Laboratório Químico resolveu produzir pólvora para combater os invasores. Vandelli foi contra, alegando que o laboratório não tinha sido criado com esse objetivo. Logo, para ser acusado de afrancesado não demorou muito. Segundo, a esposa de Vandelli era prima do Marquês de Saint-Hilaire, naturalista que acompanhava as tropas invasoras, além de responsável pela seleção de objetos de coleções portuguesas que seriam levadas para França, incluindo objetos dos Museus Naturais de Lisboa e Coimbra, nesse último episódio Vandelli foi acusado de cúmplice (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 30-31). 12 No período que viveu na Inglaterra contou com o apoio de Sir Joseph Banks, importante naturalista e importante membro na Royal Society of London (PROENÇA-MAMEDE, 2008, p. 31). 13 Interessa aqui assinalar que Alexandre António Vandelli (1784-1859) foi o responsável pela preservação dos manuscritos do pai, anexando-os aos demais documentos da Academia Real de Ciências de Lisboa, durante o período que ocupou o cargo guarda mór da referida instituição (PROENÇA-MAMEDE, 2008 p. 31). Na leitura do texto Domingos Vandelli – Uma Biografia Transnatural, escrita por Eduardo Proença-Mamede, intrigou-me o fato do filho de Vandelli, Alexandre A. Vandelli tivesse morrido no Rio de Janeiro em 1859 (2008, p. 31). Posteriormente, na leitura do livro José Bonifácio de Andrada e Silva Projetos para o Brasil, organizado por Miriam Dollmikoff (1998, p. 13-42), consegue elucidar em parte o motivo da morte de Alexandre António Vadelli no Rio de Janeiro. Descobri que Andrada também tinha sido membro da Academia Real de Ciências de Lisboa e ocupou o cargo de secretário da referida instituição entre 1812 a 1819, quando retorna ao Brasil, deixando em Portugal a filha mais velha – Carlota Emília, recém-casada com o auxiliar de José Bonifácio, Alexandre Antonio Vandelli. Presume-se que o casal, provavelmente deve ter emigrado posteriormente para Brasil. 14 Sobre a Reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, cabe destacar as principais medidas: «(...) a completa secularização do ensino ministrado, a revisão curricular (o “restabelecimento dos estudos”) da Faculdade de Medicina, a criação de duas novas Faculdades Naturais, a de Matemática e a de Filosofia Natural (...)» (BRIGOLA, 2009, p. XIV). 211 atividades econômicas e sociais já era praticada em outros reinos da Europa15. Mesmo em Portugal, no período joanino, sua presença já era detectável. Brigola, apesar de reconhecer os avanços do projeto português de modernização empreendido pelo ministro de D. José I, assinala que [...] a renovação da cultura portuguesa setecentista como independente do ministro josefino (...). Pombal terá apenas acelerado e, em parte, envenenado um movimento que vinha de longe e que na altura das suas primeiras reformas, se tornara incoercível [...] (2003, p. 91). Como exemplo, podemos citar o médico português, António Nunes Ribeiro Sanches, residente em Paris, em 1763, que escreveu um documento16 sobre a importância de gabinetes e jardins botânicos para o aprendizado da história natural e da medicina. Segundo Brigola (2003, XIV), no que tange a reforma da Faculdade de Medicina, o estatuto foi inspirado nesse documento. Na análise do documento de Sanches, nota-se que a preocupação com a coleta e análise das riquezas do Reino era anterior às Viagens Filosóficas, posteriormente organizadas por Vandelli. O médico português recomendava, em 1763 que Quando tratarmos das viagens que devem fazer os que tivessem acabado os seus estudos, por ordem desta Universidade, e com quem se corresponderiam, então proporemos a necessidade que tem o Reino de Médico versados na História Natural para indagarem o que tem as nossas conquistas e colónias de útil para a Medicina, para as Artes e para o comercio: método de que têm usado todas as Nações da Europa com tanto aumento das ciências e dos seus Estados [..]. (BRIGOLA, 2003, p. 11). Ou seja, o pensamento sobre a utilidade das riquezas naturais dos Reinos era recorrente entre diversos pensadores e Estados europeus. A Reforma da Universidade de 1772 inseriu Portugal no rol dos países que aliavam as Ciências Naturais como disciplinas acadêmicas e a serviço do Reino. Por meio de suas instituições, algumas já criadas, como o Museu de História Natural de Lisboa, o Jardim Botânico da Ajuda e outras em processo de criação, o Jardim Botânico e o Museu de História Natural da                                                                                                                         15 Por exemplo, as Instruções linneanas de 1753 e 1759 articulavam-se funcionalmente e conceptualmente através de duas ideias-chave: as viagens filosóficas, pela sua natureza profissional e pelo seu alcance económico, são um assunto público e uma tarefa de Estado; o museu de história natural é o loca por excelência onde se desenrola o labor profissional final do naturalista, tendo por objecto cientifico os produtos remetidos pelo viajante. (BRIGOLA, 2003, p.192) 16 No livro, Coleccionismo no Século XVIII – Textos e Documentos de autoria de Brigola (2009, p. 9-11), consta o documento: Método para aprender e estudar a medicina, illustrado com os aponteamentos para estabelecerse huma universidade real na qual deviam aprender-se as sciencias humanas de que necessita o estado civil e politico, Paris, s/e. 212 Universidade de Coimbra estavam em plena atividade com o “ciclo de acumulação”, de acordo com Sandra Xavier (2005). A mesma autora (XAVIER, 2005, p. 83), em interlocução com Miller e Latour, aponta que “[...] através de cada nova viagem ao se basear no conhecimento útil que é acumulado no «centro» contribui em simultâneo para o aumento desse stock [...]”. O interesse da autora é enfatizar o conceito de “ciclo de acumulação”, criado por Latour. Penso que o referido conceito nos ajuda a compreender os propósitos tanto da reforma da Universidade de Coimbra no período da reforma pombalina, como também nos objetivos de criação do Museu de História Natural e o Jardim Botânico, ambos pertencentes à referida Universidade. Cabe agora assinalar brevemente alguns aspectos sobre a criação do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico, a partir dos Estatutos17 da Universidade de 1772 (BRIGOLA, 2009, p. 12-14), ressaltados como de interesse para nossos objetivos. Ø O contato visual de objetos e plantas (herbário) era um dos objetivos da criação do Gabinete de História Natural. O imprescindível era ter sob os olhos constantemente objetos e plantas mais do que as descrições e as imagens sobre eles; Nota-se aqui, em primeiro lugar, a função pedagógica das duas instituições, tanto para o Museu de História Natural como para o Jardim Botânico que, naquele momento, eram importantes para o ensino das disciplinas da recém-criada Faculdade de Filosofia e, também, necessária para a reforma curricular da Faculdade de Medicina. No bojo da reforma universitária de 1772, não bastava visualizar plantas e imagens em livros e gravuras, mas a necessidade de estudos que poderiam dela decorrer pela observação direta, digamos “ao vivo”, na dimensão bi ou tridimensional tanto dos objetos como das plantas. Ø Ampliar a referida Coleção do modo mais completo possível com os novos produtos da Natureza; Percebe-se aqui o desejo institucional de tudo conhecer, colecionar e pesquisar, tão comum ao século XVIII. O Museu de Historia Natural e o Jardim Botânico da Universidade, de acordo o Estatuto, são as instituições depositárias das colecções de objetos e plantas dos três reinos da natureza (animal, vegetal e mineral).                                                                                                                         17 1772 Junta de Previdência Literária Estatutos da Universidade de Coimbra do anno de MDCCLXXII. Livro III que contém os cursos das sciencias naturaes e filosoficas, Lisboa, Na Regia Officina Typografica.   213 Ø Finalidade na Instrução pública, ao contrário das colecções particulares; Ao contrário dos gabinetes de curiosidades e jardins da primeira metade do século XVIII, ambos privados, cujo acesso era restrito aos amigos dos proprietários ou, às vezes, a algum viajante estrangeiro, o museu e o jardim botânico da Universidade estavam destinados à instrução pública dos alunos da Universidade. Regina Abreu, no artigo “Tal Antropologia, qual museu?” escreveu que [...] Durante o final do século XVIII e início do século XIX, constituíram-se os chamados museus de ciências, ou museus enciclopédicos, voltados para a produção de pesquisa cientifica por parte de especialistas formados para esse fim. Por outro lado, desenvolveu-se a idéia de que os museus eram lugares também destinados a um público amplo, que podia e devia se ilustrar com visitas periódicas a essas casas de memória e saber [...]. (2007, p. 140). A preocupação com o a ampliação do acesso às instituições museológicas é uma constante no século XVIII, aliás, é uma das prerrogativas do museu moderno que surgiu justamente nos setecentos. Ø O Museu ou Gabinete estará dividido em três salas e cada uma delas representando um dos Reinos da Natureza, procurando-se ordená-los metodicamente pelas suas Classes, gêneros e espécies; Este item assinala a visão predominante das Ciências Naturais no período – a taxionomia – ou seja, a necessidade de tudo classificar para conhecer. Ø O Jardim Botânico como complemento do Gabinete ou Museu de História Natural. As plantas vivas exibidas no Jardim e as plantas (“mortas”) no Gabinete ou Museu; Aqui evidencia a separação e complementaridade nos estudos das plantas “mortas” (depositadas no herbário) e plantas “vivas” (depositadas no jardim botânico). Ø No Jardim, se cultive todo gênero de Plantas, particularmente aquelas necessárias aos estudos da Medicina e nas outras Artes, com a atenção especial para as plantas dos meus Domínios Ultramarinos, os quais têm riquezas imensas no que pertence ao Reino Vegetal. Com estes tópicos, ressaltamos os seguintes aspectos na criação das duas instituições, relembrando que faziam parte do pensamento científico do período, não apenas em Portugal, mas em vários reinos da Europa: contato visual com objetos e plantas; coletar e ampliar o maior número de objetos e plantas para as coleções; 214 instrução pública em oposição às coleções privadas; ordenar as coleções do Museu de acordo os Reinos da Natureza, classificando-os metodicamente pelas suas Classes, gêneros e espécies; complementaridade entre as duas instituições (Jardim Botânico e Museu de História Natural); o cultivo de todo o gênero de plantas com ênfase nas dos domínios ultramarinos. O desejo de conhecer e cultivar as plantas dos Domínios Ultramarinos era um objetivo de Estado para D. José I. A simbiose entre as Ciências Naturais e os assuntos econômicos, por meio de diversas instituições, entre elas a Universidade de Coimbra (jardim botânico e museu), a Academia Real de Ciências de Lisboa, como já citado anteriormente, era uma das características do projeto de modernização implementado pelo Monarca e seu primeiro ministro, o Marques de Pombal. 4. Considerações Finais Como se pode perceber, há uma série de variáveis que entrelaçam a concepção de museus e de jardins botânicos, revelando maior complexidade de relações para constituir o campo das ciências naturais do que se pode supor num primeiro momento. Nos reinos europeus ao longo do século XVIII, como em Portugal (durante o reinado de D. José I e o governo do Marques de Pombal, mesmo anteriormente, no período joanino), predominou uma visão e organização do mundo taxionômica, aliada, à preocupações econômicas. Essa visão e organização do mundo estavam inseridas nos projetos de criação e modernização de museus, jardins botânicos, gabinetes, na Academia Real de Ciências e na Universidade de Coimbra. Ao longo do século XVIII (o século das Luzes), juntamente com o nascimento da ciência moderna, projetaram em Portugal diversos nomes ligados às ciências; Vandelli é apenas um deles. Existiam homens que frequentaram universidades, membros de sociedades e da Academia Real de Ciências de Lisboa, que mantinham correspondência com outros cientistas europeus. De fato, existiu nesse período uma rede de interações sociais formada por cientistas. O exemplo de Vandelli é expressivo, correspondeu-se com Linneu (Suécia) e sua esposa era prima de Saint-Hilaire (França). Além disso, contou com o apoio de Joseph Banks (Inglaterra) no período em que viveu (forçado) em Londres. Esses três senhores com o qual Domingos Vandelli manteve contato direto ou indireto são alguns dos maiores nomes da ciência de então. 215 As Ciências Naturais para esses cientistas não se restringia apenas à disciplina, viam-na associada com os mais diferentes ramos do conhecimento com vistas, inclusive, para respostas sobre os problemas cotidianos, além de ser imprescindível para a economia dos respectivos países. Para isso, era necessário coletar, conhecer, pesquisar e classificar os elementos dos três reinos da natureza. E para o conhecimento dos três reinos era importante a criação de museus, jardins botânicos, herbários guardando coleções extensas, além de equipamentos em laboratórios ou em observatórios astronômicos. Também era importante alargar o acesso de tais conhecimentos para um público maior. É também nos setecentos que surge a formação do que hoje pode ser visto como trabalho especializado de museu: equipes especializadas, o trabalho de documentação, a organização e ordenamento de coleções com o objetivo de instruir o público. Cabe evidenciar que o público nem sempre se referia a todas as pessoas, mas já era um avanço em relação aos museus privados. O primeiro museu realmente público surgirá com a Revolução Francesa – o Louvre. 5. Referências Bibliográficas ABREU, Regina. Tal antropologia, qual museu? In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário de Souza; SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. (Orgs.). Museus, coleções e patrimônios: narrativas polifônicas. Rio de Janeiro: Garamond, Minc/IPHAN/DEMU, 2007, p. 138178. BERNASCHINA, Paulo. Catálogo Transnatural. Coimbra: Editora Artez, 2006. BERNASCHINA, Paulo. Catálogo Missão Botânica – Transnatural – Angola 19271937. Coimbra: Editora Artez, 2007. BERNASCHINA, Paulo. Catálogo Gabinete Transnatural de Domingos Vandelli. Coimbra: Editora Artez, 2008. BOUILHET, Henri e GIARAUDY, Danièle. O Museu e a Vida. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1990. 100p. BRIGOLA, João Carlos. Introdução. In: Coleccionismo no Século XVIII – Textos e Documentos (Ed. Brigola, João Carlos). Porto: Porto Editora, 2009, p. V-XXVI. BRIGOLA, João Carlos. Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no Século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2003. BRIGOLA, João Carlos. Os viajantes o ‘livro dos museus’ – As colecções portuguesas através do olhar dos viajantes estrangeiros (1700-1900). Porto: Edição Dafne/CHAIA e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2010. CHAGAS, Mário. Museu: Antropofagia da Memória e do Patrimônio. Revista do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional, n.31, p.14-25, 2005. CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu – a ótica museológica de Mário de Andrade. Chapecó: Argos, 2006. 216 CARDOSO, José Luís. Memórias de História Natural – Domingos Vandelli. Porto: Porto Editora, 2003. DOLHNIKOFF, Miriam (org). José Bonifácio de Andrade e Silva - Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. FERNÁNDEZ, Luis Alonso. Museología – Introducción a la Teoria y Práctica del Museu. Madrid: Ediciones Istmo, 1993. LOPES, Maria Margaret. O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: Os Museus e as Ciências Naturais no Século XIX. São Paulo: Editora Hucitec, 1997. PROENÇA-MAMEDE, Eduardo. Domingos Vandelli – Uma Biografia Transnatural. In BERNASCHINA, Paulo (org.). Catálogo Gabinete Transnatural de Domingos Vandelli. Coimbra: Editora Artez, 2008. RIVIÈRE, Georges Henri. La Museología – Curso de museología/Textos y testimonios. Madri: Ediciones Akal, 1993. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças – Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SUANO, Marlene. O que é museu? Coleção Primeiros Passo. 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Em função de amplitude dessa tarefa, foram realizados recortes de área de conhecimento e temporal que orientam a pesquisa em desenvolvimento. Assim, estão no escopo do projeto aqueles objetos produzidos antes da década de 1970, e que pertençam às áreas das chamadas ciências exatas e engenharias, assim como a geografia, geologia e oceanografia. Em linhas gerais, verifica-se que os conjuntos em melhor situação de preservação são aqueles que estão sob a guarda de museus e instituições militares. Uma parte substancial de instituições e de objetos de interesse para o projeto está no âmbito das universidades e a existência de objetos históricos nesses locais relaciona-se a duas situações principais: iniciativas pessoais de professores ou técnicos que possuem, normalmente, algum vínculo emocional com os artefatos, geralmente por terem feito parte da sua vida profissional, e guardam os objetos muitas vezes em suas próprias salas; objetos que são esquecidos em armários e salas nas universidades, às vezes por muitos anos e que são reencontrados em algumas situações específicas. Em muitos desses locais, o conhecimento sobre as atividades que o MAST desenvolve e sobre o projeto “Valorização”, seus objetivos e primeiros resultados, mas com mais freqüência, a partir das visitas aos locais, determina uma mudança qualitativa de posição das pessoas que têm alguma relação com esses conjuntos. Este trabalho apresenta os resultados obtidos até o momento, relativos à maioria dos estados brasileiros. Palavras Chave: Patrimônio científico, Inventário nacional, Museologia, Museu de Astronomia e Ciências Afins Resumen La mayoría de los componentes del patrimonio científico brasileño se encuentra aún por ser identificado. En 2010, el Museo de Astronomía y Ciencias Afines (MAST), ubicado en Río de Janeiro, inició un levantamiento nacional de conjuntos de artefactos con el objetivo de ampliar el conocimiento sobre el patrimonio de ciencias y tecnología (CyT) existente en el país, y promover así su mejor preservación. En función del tamaño de esta tarea, se 1 Engenheiro metalúrgico (UFRJ), M.Sc. e D.Sc. em Engenharia Metalúrgica (COPPE/UFRJ), Coordenador de Museologia do MAST, Vice-coordenador e professor do programa de PósGraduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST), bolsista produtividade 1D do CNPq. marcus@mast.br 2 Historiador, M.Sc. em história (UFF). Doutorando em história da Ciência (UFRJ). 3 Historiadora, mestranda em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). 4 Graduanda em Museologia (UNIRIO), bolsista de Iniciação Científica à época do evento. 5 Graduanda em Museologia (UNIRIO), bolsista de Iniciação Científica à época do evento. 219 realizaron recortes de área de conocimiento y temporal que orientan la investigación en desarrollo. Por lo tanto, el proyecto comprende aquellos objetos producidos antes de la década de 1960 que estén fuera de uso y que pertenezcan a las áreas de las llamadas ciencias exactas e ingenierías, así como a la geografía, geología y oceanografía. En líneas generales, se verifica que los conjuntos mejor preservados son aquellos que están bajo la guarda de museos e instituciones militares. Un número significativo de instituciones y de objetos de interés para el proyecto se encuentra en las universidades y la existencia de objetos históricos en estas instituciones está relacionada a dos situaciones principales: iniciativas personales de profesores o técnicos que poseen, normalmente, algún vínculo emocional con los artefactos, generalmente por haber formado parte de su vida profesional y los guardan, muchas veces, en sus propias salas; objetos que son olvidados en armarios y salas en las universidades, a veces por muchos años y que son hallados nuevamente en algunas situaciones específicas. En muchas de estas instituciones, el conocimiento acerca de las actividades desarrolladas por el MAST y del proyecto “Valoración”, sus objetivos y primeros resultados, y con más frecuencia, a partir de las visitas a las instituciones, determina un cambio cualitativo de posición en las personas que tienen alguna relación con estos conjuntos. Este trabajo presenta los resultados obtenidos hasta el momento, relativos a la mayoría de los estados brasileños. Palabras Clave: Patrimonio científico, Inventario nacional, Museología, Museo de Astronomía y Ciencias Afines Abstract Most of Brazil’s scientific heritage has yet to be identified. In 2010, Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), a science and technology museum in Rio de Janeiro, started a national survey of sets of objects with the aim of expanding knowledge about the country’s S&T heritage in order to foster its preservation. In view of the breadth of this task, specific areas of knowledge and time periods were selected to orient the research. The project scope therefore focuses on objects produced prior to the 1960s that are no longer being used and which are from the exact sciences, engineering, geography, geology and oceanography. Overall, it has been found that the best preserved sets of objects are the ones safeguarded by military museums and institutions. A significant portion of the institutions and objects of interest to the project are at universities, and the existence of historical objects at these locations is normally the outcome of one of two circumstances: either initiatives that have been taken individually by professors or technicians because of some emotional attachment to the artifacts, generally because they were part of their professional life, in which case the objects are often kept in their own offices; or objects that have been left in cupboards and rooms at universities, sometimes for years, and are unearthed for different reasons. In many such cases, when people who are involved with these sets of objects find out about the activities being undertaken by MAST and the national survey, its goals and preliminary results, and especially when visits are made to see the collections, this has the effect of rendering a qualitative change of attitude on their part. This study presents the findings obtained thus far from the majority of the states of Brazil. Key-words: scientific heritage; national survey; museology; Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST) 220 1. Introdução Os estudos relacionados ao patrimônio permitem ampliar cada vez mais esse conceito, possibilitando entender sua importância na construção da identidade individual e coletiva, atentar para os diferentes usos possíveis que pode adquirir, identificar os diversos valores atribuídos ao longo de sua existência, pelos diferentes grupos que com eles interagem, entre muitas outras questões. O termo “patrimônio” tem suas origens em um campo diferente da cultura, estando relacionado à herança familiar (CHOAY, 2001). Poulot relaciona o uso deste termo e do discurso em torno do patrimônio coletivo como uma estratégia eficaz: O termo “patrimônio” remete, portanto, desde a sua origem, a esse “bem de herança” (...) não invoca a priori um tesouro ou abra-prima – tanto quanto não provém stricto sensu da categoria de verdadeiro ou falso, cara às ciências, mesmo que ela deva alegar uma autenticidade. Dessa forma, na retórica das lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, como foi freqüentemente observado, com as análises do historiador, do etnólogo ou do arqueólogo. Mas pouco importa: mesmo desprovida de realidade, e até de verossimilhança, elas se mostram regularmente eficazes (POULOT, 2008, p.28). É amplamente aceito que o conceito de patrimônio, tal qual conhecemos hoje, é fruto da modernidade e está intimamente ligado ao movimento de construção da Nação, sobretudo na segunda metade do século XIX. Esta relação entre o inicio da preservação do patrimônio histórico com as estratégias nacionalistas existiu em vários locais do mundo, já que as práticas de preservação remontam ao processo de construção dos Estados Nacionais, baseando-se na construção de uma comunidade imaginária, com uma história comum, e na crença em um progresso através da preservação desse passado. A França é “o lugar por excelência da elaboração progressiva, e às vezes contraditória, dos valores patrimoniais gerais” (POULOT, 2008, p.30). A preocupação em preservar o passado de uma Nação gerou a necessidade de se escolher o que viria a compor o seu patrimônio, ou seja, quais os símbolos daquela sociedade. Seriam eleitos por um grupo considerado capacitado para tal, e que intermediaria o Estado nesta função, dentro de um projeto totalizante. Trabalhava-se na esfera do simbólico e da legitimação da memória coletiva (NOGUEIRA, 2004, p.219). GONÇALVES (2009) amplia essa categoria, ao pensar várias possibilidades e limitações para o conceito de patrimônio, analisando sistemas de pensamentos “não modernos ou tradicionais” (GONÇALVES, 2009, p.26). O autor apresenta a palavra patrimônio sendo usada para além de elementos culturais, etnográficos, arquitetônicos, artísticos e intangíveis, mas também para elementos econômicos, financeiros, 221 imobiliários, entre outros, que fogem aos aspectos históricos, artísticos e culturais. Defende justamente que nas sociedades modernas, a divisão das categorias de patrimônio acompanha a própria organização da sociedade de campos fragmentados. Contrariando a clássica visão da noção de patrimônio cultural como fruto da Revolução Francesa e da era moderna, Gonçalves afirma que esta possui caráter milenar, quando se pensa em algo que seja extremamente importante para a vida social e mental de qualquer coletividade humana. Para o autor, o patrimônio não é simplesmente uma invenção moderna. Está presente no mundo clássico e na Idade Média, sendo que a modernidade ocidental apenas impôs os contornos semânticos específicos. Pode-se dizer que a categoria "patrimônio" também se faz presente nas sociedades tribais, medievais e outras pré-modernas (GONÇALVES, 2009, p.30). A atribuição de valor, assim como a preservação e o próprio conceito do que vem a ser patrimônio cultural vem modificando no tempo e no espaço, em conformidade com as transformações das sociedades. Poulot afirma: “A extensão do patrimônio é a sua característica mais evidente” (POULOT, 2008, p.28). Essas definições vêm incorporando novos objetos e significados, podendo gerar mudanças de sentido ou de função simbólica, uma vez relacionados a fatores econômicos, sociais, políticos e, atualmente, turísticos (ALENCAR, 2008, p.16). A nível internacional, o patrimônio deixou de ser exclusividade da cultura das classes mais abastadas, assim como deixou de ter uma significação estritamente nacional, passando a identificar-se como espaço cultural amplamente fracionado. E engloba, além da herança monumental, figuras e atividades consideradas significativas (POULOT, 2003). 2. O Patrimônio da Ciência e Tecnologia O reconhecimento da diversidade do patrimônio cultural no país é uma realidade, no entanto, faltam políticas preservacionistas que especifiquem a salvaguarda do patrimônio de ciência e tecnologia. Granato considera a situação do patrimônio científico e tecnológico preocupante: “Não há um livro de tombo para objetos e monumentos relacionados à ciência e à tecnologia e, assim, seu patrimônio, quando tombado, recai no item ‘Histórico’ ou ‘Natural’” (GRANATO, 2009, p.81). E atenta para a necessidade da implementação de “medidas imediatas para a proteção do que resta do patrimônio da ciência e da tecnologia no Brasil” (GRANATO, 2009, p.82). 222 As coleções científicas são produtos da experiência humana, portanto pertencem à sociedade e são importantes para o entendimento da História da Ciência no Brasil. Também se podem analisar as coleções como “monumento/documento” (LE GOFF, 1992), pois além de falarem dos contextos histórico, social, político, entre outros, possuem sua própria historia, que deve ser preservada. Dentro dessa perspectiva, os objetos pertencentes a coleções científicas podem produzir conhecimento mesmo quando não usados em sua função original, pois são testemunhos das atividades e do desenvolvimento dos diversos campos do saber. Conhecer como esse tipo de patrimônio cultural está sendo tratado pelas instituições de tutela poderá gerar uma reflexão sobre os procedimentos de preservação desses artefatos. Em relação ao que constitui patrimônio cultural de C&T, considera-se o conhecimento científico e tecnológico produzido pelo homem, além de todos aqueles objetos (considerando também documentos em suporte papel), inclusive as coleções arqueológicas, etnográficas e espécimes das coleções biológicas, que são testemunhos dos processos científicos e do desenvolvimento tecnológico. Também se incluem nesse grande conjunto as construções arquitetônicas produzidas com a funcionalidade de atender às necessidades desses processos e desenvolvimentos. Cabe esclarecer que áreas diversas poderão estar representadas, algumas onde a contribuição para o patrimônio cultural de C&T será maior, como a Física, e outras de forma mais relativa (GRANATO, 2009). Grande parte do patrimônio tangível de Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil permanece desconhecida em obscuros depósitos, salas e gavetas espalhados pelo país. A legislação brasileira em torno de sua proteção, apesar de atual, é escassa e não leva em consideração as singularidades que este tipo de patrimônio apresenta. Inexiste hoje no país uma política de Estado para a preservação desse patrimônio, algumas iniciativas se restringem à ação individual de algumas instituições, poucas, que possuem a guarda de itens desse tipo, e de indivíduos ou pequenos grupos formados nas próprias instituições, e que compartilham o mesmo sentimento. Para alterar este quadro, é necessária uma iniciativa efetiva que alie a preservação do patrimônio cultural de C&T à melhoria e criação de instrumentos legais mais adequados. 223 Nesse sentido, está sendo desenvolvido no MAST um projeto de pesquisa6 com objetivo de estudar esse tipo específico de patrimônio cultural no país, numa tentativa de delimitação e conhecimento das formas de proteção (especialmente a legislação relacionada), além de desenvolver uma pesquisa de campo para produzir um levantamento que permita visualizar um panorama sobre conjuntos de objetos que são candidatos a constituir um possível inventário nacional do patrimônio cultural de C&T no país. Os estudos aqui apresentados fazem parte desse projeto no que concerne ao levantamento em âmbito nacional de conjuntos de artefatos que estão incluídos nessa categoria de patrimônio cultural. São aqueles que participaram do cotidiano dos laboratórios de pesquisa do país e contribuíram para o desenvolvimento da ciência e tecnologia no Brasil.Esses bens estão em centros de pesquisa, nas universidades, nas escolas técnicas e em sua maioria não tem seu valor reconhecido. Uma parte, por outro lado, encontra-se em museus e já está sendo preservada para o futuro. 3. Levantamento de Conjuntos de Objetos: metodologia e resultados Pouco se sabia sobre a realidade desses objetos ao início dos trabalhos, mostrando a necessidade da realização de um levantamento em âmbito nacional para identificar quais instituições ainda possuíam objetos que poderiam ser preservados, qual a sua condição e sua quantidade aproximada. O resultado mostrou-se impressionante. A maior parte dos objetos científicos e tecnológicos anteriores ao século XX já foi descartada ou se perdeu. O que ainda resta desse período está protegido nos museus, pouquíssimos exemplares estão nas universidades. Por outro lado, existe um número imenso desses objetos que são mais recentes e que estão em situação de abandono especialmente nas universidades e institutos de pesquisa. Em função do panorama sobre os levantamentos e de ter que fazer visitas e contatos com um número extremamente maior de instituições do que o previsto procurouse estabelecer parcerias com algumas instituições que auxiliassem nesse trabalho. Assim, foram parceiros do projeto e formaram uma rede de estudos as Escolas de Museologia das Universidades Federais da Bahia, de Pernambuco, de Pelotas, de Brasília (integrada mais ao final do projeto) e de Ouro Preto. Esses grupos ficaram 6 Projeto Valorização do Patrimônio Científico e Tecnológico Brasileiro. Site do projeto disponível em: http://www.mast.br/projetovalorizacao/index.html. Acesso em: 30 de Ago. 2012. 224 responsáveis, respectivamente, pelos levantamentos nos estados da Bahia, de Pernambuco, do Rio Grande do Sul, de Goiás, do Distrito Federa e de Minas Gerais. Para o desenvolvimento dos trabalhos foi elaborada, em processo inovador, uma ficha de registro e documentação desses conjuntos, inédita no país, a partir de processo de avaliação e adaptação de outras fichas de registro utilizadas em levantamentos similares em outros países. As adaptações foram realizadas com base na realidade brasileira, bastante particular, e permitiram, durante o desenvolvimento do projeto, uma análise crítica da ficha e seu aprimoramento. Os campos principais que se destacam nesse registro são: designação (nome corrente do conjunto ou coleção); dimensão (número estimado de artefatos ou objetos); enquadramento institucional e legal (se a coleção é propriedade da instituição ou se está em depósito, se existem referências no Estatuto ou Regulamento da instituição ou algum outro documento legal / institucionais relevantes para a coleção); nota descritiva e histórica (breve parágrafo sobre a história da coleção); relevância (breve comentário sobre a relevância dos objetos ou conjuntos de objetos particularmente significativos); utilização (usos recentes ou regulares da coleção); inventário (se a coleção está inventariada ou não); documentação (se a coleção possui documentação associada e se esta se encontra organizada); estado de conservação. Para delimitação do universo de interesse do projeto foram realizados dois cortes, um temporal e outro relacionado às áreas do conhecimento. Foram consideradas as instituições no âmbito das ciências exatas, as geociências e engenharias. O corte de áreas do conhecimento tem relação com as áreas de atuação do próprio Museu de Astronomia e Ciências Afins e das áreas que podem contribuir para a sua coleção museológica. Com relação ao corte temporal, foram incluídos no âmbito do projeto artefatos fabricados/construídos até o final da década de 1960, pois a partir daí considerou-se que os instrumentos e aparatos poderiam ainda estar em funcionamento, saindo do âmbito do projeto. As instituições consideradas estavam inseridas em quatro tipologias: Instituições de Ensino Superior, Institutos de Pesquisa Científica e / ou Tecnológica, Instituições Museológicas e Instituições de Ensino Médio. Para identificação do patrimônio cultural relacionado à ciência e tecnologia, foram feitas buscas por meio de correio eletrônico, contato telefônico e visitas presenciais. Para levantamento dos objetos de ciência e tecnologia do patrimônio cultural pertencentes às universidades brasileiras, foram utilizados os seguintes critérios: 225 - Levantamento das universidades brasileiras constantes no E-MEC. O E-MEC foi criado por meio da Portaria Nº 40 (12/12/2007)7 para instituir o cadastro de instituições e cursos superiores. A utilização desta base justifica-se por tratar-se da base de dados oficial e única de informações relativas às instituições e cursos de educação superior, mantido pelo Ministério da Educação. No cadastro, foram selecionadas as instituições consideradas como: pública federal (aquelas mantidas pelo Poder Público Federal, com gratuidade de matrículas e mensalidades) e pública estadual (mantida pelo Poder Público Estadual, com gratuidade de matrículas e mensalidades). - Nas instituições federais e estaduais cadastradas no EMEC, foram identificados e selecionados os departamentos e cursos concernentes à grande área das Ciências Exatas, Geociências e Engenharias, conforme classificação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Para levantamento dos objetos de ciência e tecnologia do patrimônio cultural pertencentes aos museus brasileiros, utilizou-se o seguinte critério: - Levantamento dos museus brasileiros a partir do Cadastro de Museus do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). O projeto do Cadastro Nacional de Museus, criado em 2006, tem por finalidade conhecer e mapear a diversidade museológica brasileira. No Projeto Valorização do Patrimônio, utilizou-se o Guia dos Museus Brasileiros8, publicação que contém os museus presenciais, virtuais e instituições em implantação constantes da referida base de dados. No referido Guia, foram selecionados os museus que possuíam no item “tipologia do acervo” as categorias “ciência e tecnologia” e “história”, além de museus municipais. Para levantamento dos objetos de ciência e tecnologia do patrimônio cultural pertencentes às instituições de pesquisa, utilizou-se o seguinte critério: - Levantamento das instituições de pesquisa cadastradas no Programa de Informação e Comunicação para Ciência e Tecnologia - Prossiga. O Prossiga, criado pelo IBICT, tem como objetivo principal organizar e disseminar informações para a gestão de ciência, tecnologia e inovação. Nos levantamentos dessas instituições também foram utilizadas as seguintes fontes: portais das prefeituras das cidades e dos governos dos estados brasileiros na internet; sites de busca na web. 7 Disponível em: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em: 18 Set. 2013. BRASIL. Guia dos Museus Brasileiros. Instituto Brasileiro de Museus, 2011. Disponível em: http://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2011/05/gmb_norte.pdf. Acesso em: 28 Set. 2012. 8 226 O levantamento de contatos institucionais realizado pelo Projeto Valorização do Patrimônio Científico e Tecnológico Brasileiro selecionou 1301 instituições possivelmente detentoras de objetos de C&T históricos, sendo 229 na Região Norte, 291 na Região Nordeste, 210 na Região Sul, 179 na Região Centro-Oeste e 392 na Região Sudeste. Há que se ressaltar que nos Estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, em função dos resultados obtidos pelas instituições colaboradoras, será preciso complementar o trabalho e esses números nas respectivas regiões poderão ser ampliados. O Gráfico apresentado na Figura 1 mostra a distribuição do número de instituições pesquisadas por estado da federação. Figura 1 – Gráfico apresentando a distribuição do número de instituições pesquisadas por estado da federação. Quanto ao tipo de instituição, 720 foram classificadas como Instituições de Ensino Superior, o que corresponde a 55% dos contatos levantados, 138 são Instituições de Pesquisa Científica e/ou Tecnológica, 11% do levantamento, 431 instituições foram consideradas Museus, correspondendo a 33% da pesquisa inicial e 12 Instituições de Ensino Médio, relativo a 1% do levantamento. Após os contatos realizados, foram registrados 261 locais com conjuntos de artefatos de interesse para o Projeto, nas cinco regiões e das três diferentes tipologias de instituições, referente a 20% ao número total de contatos levantado. Concluiu-se que 817 locais, isto é, 63% do levantamento, não possuem objetos de C&T históricos e, portanto, não foram registrados pelo projeto. Os demais 223 contatos, 17% do total, ficaram indefinidos. Estes contatos se referem a instituições que, apesar de inúmeras tentativas da equipe do projeto, não atenderam aos telefonemas, não responderam aos diversos e- 227 mails enviados ou não confirmaram a existência de conjuntos históricos até o fechamento do projeto. Desta forma, pode-se afirmar que o contato foi finalizado com sucesso em 83% das instituições selecionadas na pesquisa inicial. A Figura 2 apresenta um gráfico que mostra a distribuição desses números por região. Figura 2 - Gráfico apresentando resultados do levantamento, relacionados à distribuição do tipo de instituição por região, além de identificar quais os que possuem e não possuem acervo de interesse para o projeto. Os resultados apresentados no gráfico mostram que a região com maior percentual de instituições que detém a posse de conjuntos de objetos de interesse é a Sudeste (44% do total), em seguida estão as regiões Nordeste (25%), Sul (14%), Norte (9%) e Centro-Oeste (8%). Esses números apresentam certa coerência, pois a região com maior concentração de instituições de pesquisa e as mais antigas é mesmo a Sudeste. Em seguida, situam-se as regiões com um histórico cada vez mais recente de desenvolvimento e ocupação. Em termos do número de objetos relacionados aos diversos conjuntos e coleções identificados, verifica-se um resultado bastante surpreendente, com um total de cerca de 30 mil objetos. É importante mencionar que esse número é uma estimativa, pois em várias instituições não havia uma lista ou inventário disponível que possibilitasse a obtenção do número exato de peças existentes. Além disso, os próprios responsáveis muitas vezes não sabiam dizer com precisão qual seria o total de artefatos existente. Essa questão ainda se torna mais problemática, pois apesar dos avanços trazidos com o projeto, não foi possível frear a constante prática de descarte que ocorre principalmente nas universidades. Sendo assim, objetos que foram identificados e registrados podem não fazer mais parte do conjunto. 228 A maioria dos artefatos identificados está nas instituições de Ensino Superior, ainda mais se levarmos em consideração que grande parte dos museus também estão nesse tipo de instituição. Fica claro também, que é na região Sudeste onde está concentrada a maior parte do patrimônio que é foco dessa pesquisa. O resultado não é surpreendente em vista de que a maioria das instituições de pesquisa e museus se encontra nessa região, inclusive as mais antigas e com maior potencial de possuírem esses artefatos. A relevância atribuída aos conjuntos identificados constitui-se em fator importante a ser considerado no estudo e também para posteriores políticas de Estado para o setor. Por relevante entende-se aqui aquele conjunto com valores atribuídos por terceiros que dão destaque ao conjunto ou ao objeto específico e irão interferir decisivamente sobre a sua classificação ou não como patrimônio cultural. Nessa pesquisa, foram estabelecidos níveis de relevância que poderiam estar associados aos conjuntos: internacional, nacional, regional, local e institucional. No caso específico aqui pesquisado, destacam-se os valores relacionados ao desenvolvimento científico e tecnológico, ou seja, artefatos que foram produzidos no país, ou adquiridos no exterior, e participaram de desenvolvimentos científicos e tecnológicos. Outro aspecto determinante na atribuição de valor, diz respeito ao caráter histórico desses objetos. Aqui, inserem-se aspectos relacionados à história das instituições que detém os conjuntos e que poderão resultar em relevância em níveis variados, dependendo da própria atuação institucional no cenário brasileiro e internacional. Outro aspecto importante a ser considerado, diz respeito à raridade do artefato. Aqui está situada a maioria dos protótipos de equipamentos e instrumentos, que são os primeiros a serem desenvolvidos. Como em toda dimensão subjetiva, a atribuição de relevância e dos valores agregados aos conjuntos levantados é muito relativa e depende sempre de quem atribui os valores. Nas IES é comum a relevância ser atribuída à importância que os objetos tiveram no ensino e na pesquisa desenvolvida na instituição. Nos ICT a relevância está ligada à importância que a instituição teve em relação à sua área de atuação. Nos museus a relevância estava ligada a alguma personalidade que manteve contato com o objeto, ou à história local, destacando-se a atividade que desenvolveu. Apesar de criado um critério em 5 níveis, foi bastante complexa a tarefa de atribuição de nível de relevância para os conjuntos. Muitas vezes foi solicitado que o responsável pelo conjunto atribuísse a importância ou comentasse sobre o que destacava o conjunto que estava de posse da instituição. Na maioria das vezes, as 229 respostas eram inconclusivas, pois grande parte desses profissionais não conseguia atribuir valores positivos aos artefatos, como já mencionado nesse texto. A noção de que instrumentos e aparatos antigos têm valor é nova para a maioria dos profissionais que trabalham em laboratórios. A visita de membros da equipe a algumas instituições trouxe, na verdade um efeito positivo nesse aspecto, despertando em muitas pessoas uma nova consciência. A Figura 3, apresentada a seguir, mostra os resultados obtidos nesse quesito. Figura 3 – Resultados sobre a relevância atribuída aos conjuntos identificados, por região do país. Do total de conjuntos registrados, cerca de 20% não apresentou possibilidade de identificação de sua relevância. O que pode ser considerado bastante baixo, pela dificuldade intrínseca a esse aspecto. Apenas 2% dos conjuntos foram correlacionados para relevância internacional. Aqui talvez exista uma subavaliação e possivelmente o número real deve ser mais elevado, pela própria significância que a pesquisa brasileira possui no cenário internacional. Fica claro que é mais fácil identificar os conjuntos com uma pretensa relevância institucional (44%), já que o maior conhecimento da história institucional pelos avaliadores (profissionais que detém a guarda dos objetos) permite maior aderência com esse nível do critério. O critério de conservação dos conjuntos é bastante controverso para sua avaliação, pois dentro dos conjuntos frequentemente encontravam-se objetos em bom e outros em péssimo estado de conservação e essa avaliação foi realizada muitas vezes pelas próprias pessoas que detém a guarda dos artefatos e que, em sua maioria, não 230 possuem conhecimento para tal, mesmo considerando que era repassada uma ampla explicação sobre como fazer quer seja por telefone, quer seja por e-mail. Assim, esses dados devem ser analisados com cautela. Apenas 1% do total de conjuntos foi considerado com estado de conservação ruim e, por outro lado, 40% foram considerados em bom estado. Esse resultado, como já mencionado, deve ser avaliado com cautela, mas não deixa de ser surpreendente, pois o que se esperava seria que a maioria estaria em más condições de preservação. 4. Considerações Finais É importante ressaltar que o trabalho desenvolvido, além de seu caráter de ineditismo, representa um passo importante para a preservação do patrimônio de C&T, no sentido que permite, entre outros avanços, conhecer de forma bastante detalhada e completa o que constitui esse patrimônio. Outro ponto positivo, embora numa dimensão mais restrita, foi a possibilidade de conscientização de alguns profissionais das instituições visitadas da nova função que esses objetos podem adquirir quando finda seu uso nos laboratórios e também da importância da elaboração de critérios específicos para seu descarte. Mesmo sendo de efeito inesperado pelo projeto, observamos a contribuição para a preservação de muitos desses conjuntos. Os contatos da equipe do projeto com os detentores dos artefatos de interesse determinaram um movimento de esclarecimento e de tomada de ações por um grande número dessas pessoas, que passaram a olhar os objetos de outra forma e mesmo a pensar em caminhos e saídas para a sua preservação. O patrimônio cultural científico e tecnológico brasileiro era praticamente desconhecido e um dos objetivos principais foi produzir um panorama sobre esses conjuntos no país. Quanto a esse ponto, podemos dizer que houve um avanço imenso em relação ao estado anterior ao desenvolvimento do projeto. Esse panorama possibilitou a reflexão sobre alguns dos principais desafios que devem ser enfrentados para a preservação dos objetos que fazem parte da nossa história científica e tecnológica. O panorama acaba indiretamente mapeando os locais pioneiros nas atividades de C&T no país e expondo as particularidades regionais no que tange ao setor. Foi produzido um inventário nacional de instituições e seus conjuntos de objetos que poderão constituir parte do patrimônio cultural de C&T do país. As informações produzidas a partir dos levantamentos realizados em todos os estados brasileiros permitem uma avaliação da situação atual, que é grave na maioria dos casos, 231 verificando-se um estado de abandono e de descarte continuado dos itens que são constituintes desse patrimônio por parte da maioria das instituições de pesquisa e das universidades. Esses resultados, corroborados pelos levantamentos feitos nos livros de tombo do IPHAN, onde somente foram encontrados três casos de tombamento de bens relacionados à C&T, permitem afirmar que o patrimônio cultural de C&T brasileiro está em situação de risco. Os resultados do projeto contribuem significativamente para a elaboração de políticas públicas de proteção e preservação desse Patrimônio pelo Estado brasileiro, em especial para as políticas universitárias de como lidar com o patrimônio nessas instituições, incluindo a constituição de lugares de memória e de museus universitários, diferenciando o que é patrimônio cultural dos demais itens constituintes do patrimônio material da instituição. A partir dessa diferenciação, poder-se-á designar tipologias de patrimônio cultural e proceder à preservação dos bens de forma mais adequada, incluindo a socialização desses bens para o público em geral. Sugere-se, inclusive, criar a Semana Nacional do Patrimônio Cultural Universitário, quando as universidades estariam dando destaque aos seus museus e coleções e abertas ao público para sua disseminação. Na continuidade do projeto, outras iniciativas pretendem ser desenvolvidas. Nesse sentido, insere-se a elaboração de uma cartilha para preservação de acervos de C&T, contendo informações gerais e orientações para as pessoas que têm a guarda desses artefatos e não sabem muito bem como proceder e a publicação de um livro com os resultados finais dos levantamentos realizados. Finalmente, serão feitas gestões junto ao Ministério da Cultura e ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, no sentido de criar uma política de Estado para preservação dessa tipologia de patrimônio cultural. 5. Agradecimentos Os autores agradecem os apoios do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ para o desenvolvimento dessas pesquisas, sem os quais teria sido impossível realizar esse trabalho. 6. Referências ALENCAR, José Almino de. Isso é bonito e isso é feio. In: CARVALHO, C. S. de; GRANATO, Marcus; BEZERRA, Rafael Z; BENCHETRIT, Sara F. (Orgs.). Um Olhar 232 Contemporâneo sobre a Preservação do Patrimônio Cultural Material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria do pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003b GRANATO, Marcus. Panorama sobre o patrimônio da ciência e tecnologia no Brasil: Objetos de C&T. In: GRANATO, Marcus; RANGEL, Marcio. Cultura Material e Patrimônio da Ciência e Tecnologia, 2, 2009, Rio de Janeiro: MAST, 2009. 1 CD-ROM, p.78-102. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, et al. 2° Ed. Campinas: UNICAMP, 1992. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Por um inventário dos sentidos: Mario de Andrade e a concepção de patrimônio e inventário. São Paulo: HUCITEC / FAPESP, 2004. POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente. São Paulo: Liberdade. 2009. POULOT, Dominique. Um ecossistema do patrimônio. In: CARVALHO, Claudia S. de; GRANATO, Marcus; BEZERRA, Rafael Z; BENCHETRIT, Sarah F. (Orgs.). Um Olhar Contemporâneo sobre a Preservação do Patrimônio Cultural Material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008. p.26-43. 233 LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA: ANÁLISE E PROPOSIÇÕES Marcus Granato1; Pedro Louvain2 Resumo A maioria dos bens culturais relacionados à Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil permanece desconhecida do público. Existem apenas três bens tombados nos livros do IPHAN que se relacionam com a C&T, situação incompatível com a realidade que se tem verificado a partir do levantamento nacional de conjuntos de objetos de valor científico realizado pelo MAST. A legislação brasileira em torno de sua proteção, apesar de atual, é escassa e insuficiente. Analisando as Constituições Estaduais brasileiras, percebe-se que sete estados não fazem menção ao patrimônio científico e poucos estados desenvolveram mecanismos originais. Portanto, a legislação brasileira em torno da questão é limitada e, no âmbito regional, é marcada pela descontinuidade. Devido à pertinência ao estudo, além das Cartas Patrimoniais da UNESCO, foram analisadas nesse trabalho as constituições e instrumentos legais de proteção ao patrimônio cultural dos seguintes países: Argentina, Chile, Cuba, Espanha, México, Peru e Portugal. Procurou-se identificar, nesses casos, mecanismos de proteção e valorização do patrimônio cultural de C&T que pudessem influenciar positivamente a legislação brasileira. Dos países analisados, nenhum protege o patrimônio de C&T em Carta Magna, porém todos o fazem por legislação complementar. O estudo comparativo com a legislação brasileira apontou para a necessidade de medidas para ampliar a proteção e valorização do patrimônio cultural brasileiro de C&T. Nesse trabalho, além de apresentados aspectos de destaque das diversas legislações sob o enfoque do patrimônio de C&T, serão também mencionados os poucos casos de tombamento pelo IPHAN de bens relacionados à C&T. Palavras chave: patrimônio científico, legislação cultural, preservação, ciência, tecnologia. Resumen En Brasil, la mayoría de los bienes culturales relacionados con la Ciencia y Tecnología (CyT) permanece desconocida del público. Existen solos tres bienes declarados patrimonio cultural en los libros del IPHAN relacionados con la CyT, una situación incompatible con la realidad y verificada a partir del levantamiento nacional de los conjuntos de objetos de valor científico realizado por el MAST. La legislación brasileña relativa a su protección, si bien actual, es escasa e insuficiente. Analizando las Constituciones de los Estados brasileños, se observa que siete Estados no mencionan el patrimonio científico y pocos Estados han desarrollado mecanismos originales. Por lo tanto, la legislación brasileña concerniente a esta cuestión es limitada y, en el ámbito regional, es marcada por la discontinuidad. Debido a la pertinencia del estudio, además de las Cartas Patrimoniales de la UNESCO, se analizaron en este trabajo las constituciones e instrumentos legales de protección al patrimonio cultural de los siguientes países: Argentina, Chile, Cuba, España, México, Perú y Portugal. En estos 1 Engenheiro Metalúrgico e de Materiais (UFRJ), M.Sc e D.Sc. em Engenharia Metalúrgica e de Materiais (COPPE/UFRJ). Pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins, onde atua como Coordenador de Museologia e Diretor Substituto. Vice-Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST); pesquisador 1D do CNPq. 2 Historiador (UFF), mestrando em Museologia e Patrimônio (UNIRIO/MAST). 234 países se buscó identificar los mecanismos de protección y valoración del patrimonio cultural de CyT que pudiesen influir positivamente en la legislación brasileña. De los países analizados, ninguno protege el patrimonio de CyT en su Carta Magna. Sin embargo, todos lo hacen a través de legislación complementaria. El estudio comparativo con la legislación brasileña señaló la necesidad de medidas para ampliar la protección y valoración del patrimonio cultural brasileño de CyT. En este trabajo, además de presentarse los aspectos de destaque de las diversas legislaciones bajo el enfoque del patrimonio de CyT, se mencionarán también los pocos casos de bienes declarados patrimonio cultural por el IPHAN en el ámbito de la CyT. Palabras-clave: tecnología. patrimonio científico, legislación cultural, preservación, ciencia, Abstract Most of Brazil’s science and technology heritage has yet to be tracked down. There are only three registered properties in the IPHAN classification books that are related to S&T, a situation incompatible with the reality that has been evident from a national survey of sets of objects of scientific value performed by MAST. Brazilian law around S&T heritage protection, despite current, is scarce, and insufficient. Analyzing the Brazilian State Constitutions, one realizes that seven states do not mention the scientific heritage and few states have developed specific mechanisms. Therefore, the Brazilian legislation on the issue is limited and is regionally marked by discontinuity. Due to the relevance to the study, in addition to legal instruments defined by UNESCO, were analyzed the constitutions and legal instruments that protect the cultural heritage of the following countries: Argentina, Chile, Cuba, Spain, Mexico, Peru and Portugal. We sought to identify in these cases, mechanisms for protection and enhancement of S&T cultural heritage that could positively influence the Brazilian legislation. None of the countries surveyed protects the assets of S&T in their Constitutions, but all do by legislation. The comparative study with Brazilian law pointed to the need for measures to increase the protection and enhancement of Brazilian S&T cultural heritage. In this work, besides the aspects presented, it is also highlighted the few cases of S&T heritage classified by IPHAN (Institute of Historical and Artistic Heritage). Key-words: scientific heritage, cultural legislation, preservation, science, technology 1. Introdução O termo patrimônio é requalificado por múltiplos adjetivos e, segundo Gonçalves (2005, p.17), parece não “haver limite para o processo de qualificação dessa palavra”. Tereza Scheiner qualifica como patrimônio “todo espaço, território, lugar, atividade humana ou produto dessa atividade” (SCHEINER, 2007, p.38). Engana-se quem associa a palavra patrimônio ao estático, ao perene e ao passado. Valor fundamental, o patrimônio cultural constitui a identidade de cada sociedade ou grupo social, sendo dinâmico em sua essência, pois este acompanha a evolução dos campos simbólicos, impossibilitando associá-lo à idéia de permanência. “Mais que dinâmica, a essência do patrimônio é duplamente fugaz: ela é um ato criativo e, portanto, intangível em sua própria natureza” (SCHEINER, 2004, p.72). 235 A partir desse contexto, para situar o foco a que se relaciona esse trabalho, é preciso definir o que se considera patrimônio cultural e, conseqüentemente, o que se entende por patrimônio cultural relacionado à Ciência e Tecnologia. Considera-se patrimônio cultural aquele conjunto de produções materiais e imateriais do ser humano e seus contextos sociais e naturais que constituem objeto de interesse a ser preservado para gerações futuras. Em relação ao que constitui patrimônio cultural de C&T, considera-se o conhecimento científico e tecnológico produzido pelo homem, além de todos aqueles objetos (considerando também documentos em suporte papel), inclusive as coleções arqueológicas, etnográficas e espécimes das coleções biológicas, que são testemunhos dos processos científicos e do desenvolvimento tecnológico. Também se incluem nesse grande conjunto as construções arquitetônicas produzidas com a funcionalidade de atender às necessidades desses processos e desenvolvimentos. Cabe esclarecer que áreas diversas poderão estar representadas, algumas onde a contribuição para o patrimônio cultural de C&T será maior, como a Física, e outras de forma mais relativa (GRANATO, 2009). Grande parte do patrimônio tangível de Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil permanece desconhecida em obscuros depósitos e salas espalhados pelo país. A legislação brasileira em torno de sua proteção, apesar de atual, é escassa e não leva em consideração as singularidades que este tipo de patrimônio apresenta. Inexiste hoje no país uma política de estado para a preservação desse patrimônio, que se restringe à ação individual de algumas instituições, poucas, que possuem a guarda de itens desse tipo. Para alterar este quadro, é necessária uma iniciativa efetiva que alie a preservação do patrimônio cultural de C&T à melhoria e criação de instrumentos legais mais adequados. Nesse sentido, está sendo desenvolvido no MAST um projeto de pesquisa 3 com objetivo de estudar esse tipo específico de patrimônio cultural no país, numa tentativa de delimitação, as formas de proteção especialmente a legislação relacionada, além de desenvolver uma pesquisa de campo para produzir um levantamento que permita visualizar um panorama sobre conjuntos de objetos que são candidatos a constituir um possível inventário nacional do patrimônio cultural de C&T no país. Os estudos aqui apresentados fazem parte desse projeto no que concerne à vertente que analisa a legislação brasileira, refletindo sobre sua proteção e sobre o tipo de patrimônio cultural 3 Projeto Valorização do Patrimônio Científico e Tecnológico Brasileiro. Site do projeto disponível em: http://www.mast.br/projetovalorizacao/index.html. Acesso em: 30 de ago. 2012. 236 que é objeto dos estudos, e sobre a legislação de alguns países, no sentido de identificar quais dentre os pesquisados, possuem mecanismos próprios de proteção e valorização do patrimônio cultural de C&T, e que poderiam influenciar positivamente a legislação brasileira. A metodologia empregada divide-se em quatro etapas. A primeira consistiu na análise da legislação brasileira contemporânea, tanto a nível federal quanto a nível estadual. Em seguida, através de pesquisas dos sites oficiais na internet, foram identificadas e analisadas as legislações de diversos países como: Argentina, Chile, Cuba, México e Peru, na América Latina, Portugal e Espanha, na Europa. Outros documentos relacionados ao patrimônio foram também incorporados à pesquisa, especialmente as cartas patrimoniais e recomendações da UNESCO, objetivando construir um panorama internacional a respeito dos mais atuais e eficientes mecanismos de proteção do patrimônio científico. De posse dos dados obtidos, iniciou-se o processamento, através de uma análise comparativa, confrontando a legislação brasileira com as estrangeiras, chegando a conclusões importantes a respeito de possíveis aperfeiçoamentos que propiciem uma melhor proteção ao patrimônio cultural científico e tecnológico. Finalmente, foram analisados os quatro Livros do Tombo do IPHAN, para identificar se, na prática, este tipo específico de patrimônio vem sendo contemplado. Os instrumentos legais da legislação cultural brasileira foram obtidos no endereço eletrônico do Ministério da Cultura e do Diário Oficial. Para acesso aos Livros de Tombo do IPHAN, foram utilizadas as bases virtuais em seu endereço eletrônico, bem como visitação às bases do Arquivo Central no Palácio Capanema. Todas as fontes legislativas internacionais utilizadas são documentos originais provenientes dos endereços eletrônicos oficiais dos governos estrangeiros. Interessante mencionar que diversas fontes, internacionais e nacionais, puderam ser encontradas com o auxílio do banco de dados da UNESCO, que mantêm uma base virtual com a legislação cultural nacional de diversos países membros, muitas vezes traduzida ao inglês. Como traduções não possuem peso jurídico, optamos por não utilizá-las. 2. O Patrimônio de Ciência e Tecnologia: breve panorama no Brasil O patrimônio cultural de C&T, assim como o patrimônio da industrialização, é considerado como parte do que se denomina de “novos patrimônios”. Segundo Scheiner (2004, p.142-143) os novos patrimônios se constituem “pela recombinação das muitas 237 falas articuladas sobre a natureza, a cultura, o homem, o tempo, o espaço, a arte, a ciência, a história”. O patrimônio cultural de C&T se insere nesse contexto. Apesar de toda diversidade de bens que estão incluídos nessa categoria de patrimônio, a sua identificação e a proteção ainda se apresentam como desafio. Nesse sentido, é importante esclarecer que nossos estudos estão voltados apenas para parte desse grupo: os objetos de ciência e tecnologia. E sobre esses ainda são feitos dois recortes: interessam à pesquisa os objetos relacionados às ciências exatas e da terra e às engenharias, e que tenham sido produzidos até a década de 1960. A partir dessa delimitação, foram avaliadas e discutidas as formas de registrar os conjuntos de objetos de interesse para o projeto e analisadas algumas experiências realizadas na Europa de levantamentos de patrimônio. Decidiu-se elaborar uma ficha de registro a partir de ficha utilizada em Portugal para levantamentos similares. A ficha brasileira contém os seguintes campos de preenchimento: Designação, Dimensão e Número; Instituição, Unidade de tutela direta, Localização, Website, Diretor/Responsável, Contato, Enquadramento institucional e legal; fotos do local e de objetos; Nota Descritiva e Histórica, Relevância, Utilização, Estado do inventário, Documentação, Estado de Conservação, Pessoal e Observações. O levantamento de contatos institucionais realizado pelo Projeto selecionou 1159 instituições possivelmente detentoras de objetos de C&T históricos, sendo 183 na região Norte, 254 na região Nordeste, 175 na região Sul, 177 na região Centro-Oeste e 370 na região Sudeste. Há que se ressaltar que nos estados de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Sul, será preciso complementar o trabalho e esses números nas respectivas regiões poderão ser ampliados. Quanto ao tipo de instituição, 562 foram classificadas como Instituições de Ensino Superior, o que corresponde a 48% dos contatos levantados, 172 são Instituições de Pesquisa Científica e/ou Tecnológica, 15% do levantamento, e 425 instituições foram consideradas Museus, correspondendo a 37% da pesquisa inicial. Foram registrados 251 locais com conjuntos de artefatos de interesse para o Projeto, nas cinco regiões e das três diferentes tipologias de instituições, referente a 22% ao número total de contatos levantado. Desse total, 730 locais, isto é, 63% do levantamento, não possuem objetos de C&T históricos e, portanto, não foram registrados pelo projeto. Os demais 178 contatos, 15% do total, ficaram indefinidos. Estes contatos se referem a instituições que, apesar nas inúmeras tentativas da equipe do projeto, não atenderam aos telefonemas, não responderam aos diversos e-mails enviados ou não 238 confirmaram a existência de conjuntos históricos até o fechamento do projeto. Desta forma, pode-se afirmar que o contato foi finalizado com sucesso em 85% das instituições selecionadas na pesquisa inicial. Em termos do número de objetos relacionados aos diversos conjuntos e coleções identificados, verifica-se um resultado bastante surpreendente, com um total de cerca de 30 mil objetos. É importante mencionar que esse número é uma estimativa, pois em várias instituições não havia uma lista ou inventário disponível que possibilitasse a obtenção do número exato de peças existentes. É na região Sudeste onde está concentrado o patrimônio que é foco dessa pesquisa. O resultado não é surpreendente em vista de que a maioria das instituições de pesquisa e museus se encontra nessa região, inclusive as mais antigas e com maior potencial de possuírem esses artefatos. 3. A Legislação Brasileira de Proteção do Patrimônio: análise em relação ao patrimônio de C&T Está previsto no inciso 3 do artigo 216 da Constituição de 1988, como sendo patrimônio cultural tangível brasileiro as criações científicas e tecnológicas, e no inciso 5 os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico e científico. No primeiro parágrafo do mencionado artigo, o Poder Público é responsabilizado em promover e proteger tal patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, entre outras formas de acautelamento e preservação. O Quadro 1, apresentado abaixo, resume os resultados obtidos na pesquisa realziada. Quadro 1 – Resultados gerais da pesquisa sobre a legislação brasileira. Estados que reproduzem os incisos III e V do Artigo 216 (Constituição Federal) Região Sudeste MG e SP e RJ Região Sul RS Região Centro-Oeste GO Região Norte AM, AP, RO, PA e TO Região Nordeste SE, AL, PB, MA e RN Estados que só reproduzem o Inciso III DF, AC, BA, RR e SC Estados que não fazem nenhuma menção ao Patrimônio C&T ES, PR, MT, MS, PE, CE e PI 239 Sem dúvida Minas Gerais é um dos estados mais avançados em relação aos mecanismos legais de preservação do Patrimônio de C&T. Além de possuir o modelo padrão de proteção da Constituição Federal, possui mecanismos próprios originais, que se destacam dos outros estados da Federação, impedindo a evasão e a destruição, bem como a descaracterização, como nos casos de “canibalismo”, típicos desse tipo de patrimônio.4 Comparando com outros estados, a Constituição Sergipana surpreende, pois faz várias menções ao Patrimônio de C&T. Além de seguir a redação da Constituição Federal, concebeu mecanismos próprios para proteger, tombar, amparar e promover as criações históricas, culturais e científicas.5 Sete estados não fazem menção específica ao Patrimônio de C&T: Espírito Santo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Ceará e Piaui. Isso se deve basicamente ao fato de não seguirem os moldes do Artigo 216 da Constituição Federal. Contrariando paradigmas, temos em todas as constituições da Região Norte menção a proteção do patrimônio citado, diferente de certos estados situados em regiões ditas “desenvolvidas” como o Sul e o Sudeste. Isso se deve basicamente a todos os estados nortistas reproduzirem fielmente a redação federal. Portanto na medida em que um instrumento “migra” do seu lugar de origem, de uma instituição de desenvolvimento científico de ponta, para um lugar de preservação da memória social, no próprio processo de desenvolvimento, é necessário uma Legislação de Ciência & Tecnologia congruente com uma Legislação Cultural, para que tal passagem possa acontecer de maneira prática e satisfatória. Nesse sentido, temos o estado de São Paulo, com seu Artigo 272, na vanguarda de todo o país, inclusive até se compararmos com o texto da Carta Maior.6 Podemos afirmar que apenas este estado faz alguma menção ao patrimônio de C&T dentro da seção constitucional de Ciência & Tecnologia. Apesar de não haver nenhuma menção específica ao patrimônio de C&T nessa seção das demais constituições estaduais brasileiras, temos um ambiente onde uma futura redação específica de proteção a este tipo de patrimônio seria bem-vinda e pode-se dizer até mesmo complementar. 4 Constituição do Estado de Minas Gerais, Artigos 207-210, Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Belo Horizonte, 21 de setembro de 1989; Disponível em: <http://www.almg.gov.br/opencms/export/sites/default/consulte/legislacao/Downloads/pdfs/ConstituicaoEstadu al.pdf> Acesso em: Setembro de 2012 5 Constituição do Estado de Sergipe, Artigos 225-229, Assembleia Legislativa de Sergipe, Aracaju, 5 de outubro de 1989; Disponível em: <http://www.al.se.gov.br/constituicao_estadual.asp> Acesso em: Setembro de 2012 6 Constituição do Estado de São Paulo, Artigo 272, São Paulo, 5 de outubro 1989; Disponível em: <http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/constituicao/1989/constituicao%20de%2005.10.1989.htm > Acesso em: Setembro de 2012 240 Em relação à análise dos diversos instrumentos jurídicos relacionados com a legislação cultural presentes no banco de dados do Ministério da Cultura e no banco de dados da legislação cultural nacional dos estados membros da UNESCO, foram analisados 28 Leis e 57 Decretos, totalizando 85 documentos da legislação cultural brasileira. Podemos perceber que certos instrumentos jurídicos mencionam os direitos autorais sobre bens culturais científicos, como a Lei Nº 9.610, de fevereiro de 1998, que estabelece como crime contra o Patrimônio Cultural, o ato de destruir, inutilizar ou deteriorar instalação científica, patrimônio imóvel de C&T. Temos igualmente o Decreto Nº 3.166, de 14 de setembro de 1999, que promulga a Convenção da UNIDROIT, concluída em Roma em 24 de junho de 1995, sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados.7 Esta convenção entende como bens culturais, aqueles bens com importância para a história ou a ciência, inclusive à história das ciências e da técnica, além de manuscritos raros e iconografia, livros antigos, documentos e publicações de interesse científico, isolados ou em coleções. Uma das reflexões mais importantes possibilitadas pela pesquisa realizada é em torno da legislação brasileira é a lei Nº 10.413, de 12 de março de 2002,8 sobre o tombamento dos bens culturais das empresas incluídas no Programa Nacional de Desestatização. A lei, que data do último mandato de Fernando Henrique Cardoso, determina que os bens culturais móveis e imóveis sejam tombados e desincorporados do patrimônio das empresas incluídas no Programa Nacional de Desestatização, de que trata a Lei no 9.491, de 9 de setembro de 1997, passando a integrar o acervo histórico e artístico da União. Segundo Sílvia Maria C. Paiva, 25 empresas foram privatizadas. 9 A maioria das empresas eram ligadas às áreas de siderurgia, petroquímica e fertilizantes, além de diversos outros setores, como transporte marítimo, aeronaves, computadores, e áreas de serviço público, como a distribuição de energia elétrica e de transporte ferroviário. Muitas delas desenvolviam pesquisa científica e tecnológica de ponta há décadas, e, portanto, possuíam indubitavelmente bens declarados “obsoletos” tecnologicamente, porém que constituem importante testemunho para a história da ciência brasileira. Analisando os Livros de Tombo do IPHAN, podemos ver vários tombamentos ligados à extinta RFFSA e 7 Decreto Nº 3.166, de 14 de setembro de 1999, Promulga a Convenção da UNIDROIT sobre bens culturais furtados ou ilicitamente exportados, concluída em Roma, em 24 de junho de 1995. Artigo 2º; Disponível em:<http://www.unesco.org/culture/natlaws/media/pdf/bresil/brazil_decreto_3166_14_09_1999_por_orof.pdf> Acesso em: Julho de 2012 8 Lei Nº 10.413, de 12 de março de 2002, Brasília; Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/wpcontent/uploads/2007/11/lei-10413-de-2002.pdf> Acesso em: Julho de 2012 9 PAIVA, Sílvia Maria C, “A Privatização no Brasil: Breve Avaliação e Perspectivas” in: Revista da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser; Porto Alegre, Brasil; Disponível em: <http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/viewFile/821/1086> Acesso em: Julho de 2012 241 ao setor ferroviário, porém são insuficientes os tombamentos referentes aos outros setores privatizados como determina a lei. Devido à situação de dezenas de milhares de bens culturais estarem obscuros ao público e à pesquisa científica, abandonados em depósitos em diversas instituições de ensino superior pelo país, torna-se pertinente a criação do Dia do Patrimônio Universitário Brasileiro. Em tal data comemorativa, as universidades de todo o país abririam suas portas à sociedade, promovendo seminários, palestras, workshops, promoção de visitas de diversos setores da sociedade às coleções e museus das instituições de ensino superior, entre outras atividades de valorização. Esta iniciativa já vem sendo promovida por diversas universidades européias há uma década. Com o intuito de aumentar a conscientização da importância da preservação do patrimônio universitário, o Conselho da Europa estabeleceu a data 18 de Novembro como o Dia do Patrimônio Universitário Europeu. 10 Nesse dia, as universidades européias celebram seu patrimônio cultural comum através de atividades, debates, conferências e acesso aos seus museus, coleções e monumentos, o que nos leva a pensar que seria igualmente interessante a criação do dia do Patrimônio Universitário Sul-Americano. Através da Análise da Recomendação da Europa de 2005, podemos perceber relevantes considerações, que apesar de serem concebidas para uso em âmbito europeu, podem auxiliar a compreensão do caso brasileiro em sua realidade atual. Embasado na Lei Nº 12.345, de 9 de dezembro de 2010, que regula sobre a criação de datas comemorativas, o Dia do Patrimônio Universitário Brasileiro, deveria ser criado. Seria interessante que a legislação cultural, a legislação de ciência e tecnologia e a legislação do ensino superior, convergissem para proteger e valorizar o patrimônio cultural brasileiro relacionado com a ciência e tecnologia através de uma sinergia entre diferentes categorias de leis. Podemos perceber quatro decretos brasileiros que ratificam diferentes convenções da UNESCO que mencionam o patrimônio de C&T: a Convenção Interamericana sobre os direitos de autor em obras literárias, em Washington, junho de 1946, a Declaração de Haia de 1954, protocolo para a proteção de bens culturais em caso de conflito armado, e as Convenções de Paris de 1970 e de 1972. Concluímos que apesar da existência de menções ao patrimônio cultural de ciência e tecnologia, tanto na Constituição Federal, como na legislação federal cultural, tais menções são demasiadamente genéricas e não atendem às especificidades deste 10 Recomendação da Europa (2005) 13, Conselho Da Europa, 2005, Disponível em: <http://www.universeum.it/council.html> Acesso em: Novembro 2011 242 tipo de patrimônio, sendo pertinente o aprofundamento de tais mecanismos jurídicos. Se houvessem Emendas Constitucionais que ampliassem a proibição da destruição e descaracterização dos instrumentos científicos pelas instituições científicas, e submetessem tais instrumentos a uma triagem especializada, obteríamos um mecanismo mais eficiente de preservação do Patrimônio de C&T. 4. Os Livros de Tombo do IPHAN e o Patrimônio de C&T De forma a avaliar se a legislação existente no país propicia a proteção formal de bens móveis e imóveis relacionados ao patrimônio científico e tecnológico brasileiro, foi realizada uma pesquisa nos livros de tombo do IPHAN para verificar entre os processos de tombamento quais podem ser incluídos nessa tipologia. O Arquivo Central do IPHAN localiza-se na cidade do Rio de Janeiro e sua origem remonta à criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Este é o setor responsável pela abertura, guarda e acesso aos processos de tombamento, de retorno e saída de obras de arte do país, além de emitir certidões para efeito de prova. Identificamos apenas três exemplos de patrimônio cultural de ciência e tecnologia nos registros do arquivo do IPHAN, são eles: o Observatório Nacional, a Escola Nacional de Engenharia, ambos no Rio de Janeiro, e o Observatório da Universidade, no Rio Grande do Sul. Podemos chegar à conclusão que o patrimônio de Ciência e Tecnologia brasileiro encontra-se em sua imensa maioria desprotegido, dado a assustadora escassez de registros inscritos nos Livros do Tombo do IPHAN. São raríssimos exemplos de patrimônio de C&T inscritos nos livros do IPHAN. O ON encontra-se no Livro Histórico e no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, a Escola de Engenharia só no Livro Histórico e o Observatório da UFRGS igualmente apenas no Livro Histórico. 5. As Legislações de Alguns Países: análise em relação ao patrimônio de C&T O passo seguinte da pesquisa foi direcionado para as legislações internacionais. Esse estudo é relevante no sentido de procurar identificar alguns mecanismos originais, que considerem as peculiaridades do patrimônio C&T e que possam ser adaptados para aprofundar a legislação br