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Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade: da representação à resistência Vol. 2 Meire Oliveira Silva Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade: da representação à resistência Vol. 2 TUTÓIA-MA, 2021 EDITOR-CHEFE Geison Araujo Silva CONSELHO EDITORIAL Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI) Diógenes Cândido de Lima (UESB) Jailson Almeida Conceição (UESPI) José Roberto Alves Barbosa (UFERSA) Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL) Julio Neves Pereira (UFBA) Juscelino Nascimento (UFPI) Lauro Gomes (UPF) Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI) Lucélia de Sousa Almeida (UFMA) Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB) Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ) Meire Oliveira Silva (UNIOESTE) Rosangela Nunes de Lima (IFAL) Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS) Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL) Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB) 2021 - Editora diálogos Copyrights do texto - Autores e autoras Todos os direitos reservados e protegidos pela lei no 9.610, de 19/02/1998. Esta obra pode ser baixada, compartilhada e reproduzida desde que sejam atribuídos os devidos créditos de autoria. É proibida qualquer modificação ou distribuição com fins comerciais. O conteúdo do livro é de total responsabilidade de seus autores e autoras. Capa: Geison Araujo Silva Diagramação: Geison Araujo Silva Revisão: Editora Diálogos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) P967 Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade: da representação à resistência vol.2 [livro eletrôni-co] / Organizadora Meire Oliveira Silva. – Tutóia, MA: Diálogos, 2021. – Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-65-994639-5-2 1. Mulheres – Condições sociais. 2. Arte. 3. Sociedade. I. Silva, Meire Oliveira. CDD 305.4 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 https://doi.org/10.52788/9786599463952 Editora Diálogos contato@editoradialogos.com www.editoradialogos.com Sumário APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 8 CAPÍTULO 1 - UMA ESCRITORA INESPERÁVEL: VULNERABILIDADES DA MULHER NEGRA E PERIFÉRICA PELO OLHAR DE CAROLINA MARIA DE JESUS ............................................................................................................................ 10 Débora Cristina Sampaio do Valle, Julianne Rosy do Valle Satil CAPÍTULO 2 - A METAMORFOSE DE KAMBILI: UMA ANÁLISE DA FORMAÇÃO PÓS-COLONIAL EM HIBISCO ROXO ................................................................... 26 Maria Tereza Azevedo CAPÍTULO 3 - A ARTE COMO DISCURSO DE RESISTÊNCIA: O ANTIRRACISMO NA COLAGEM DE GEO COELHO ......................................................................... 38 Brenna Késia de Sousa Costa, José Eduardo Pinto Duarte, Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares CAPÍTULO 4 - MEMÓRIA VIVA: AS LUTAS DAS MULHERES DO NORDESTE CANAVIEIRO ............................................................................................................. 54 Valéria Costa Aldeci de Oliveira CAPÍTULO 5 - CASAMENTO E MATERNIDADE: A CONDIÇÃO FEMININA EM “AS TRÊS MARIAS”, DE RACHEL DE QUEIROZ ........................................... 69 Maria do Carmo de Souza e Souza, Cássia Maria Bezerra do Nascimento CAPÍTULO 6 - DA REPRESENTAÇÃO À RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE DA OBRA “A DIVORCIADA”, DE FRANCISCA CLOTILDE ....................................... 87 Erika Maria Albuquerque Sousa, Solange Santana Guimarães Morais CAPÍTULO 7 - ENTRE O ELÃ ERÓTICO E A URGÊNCIA CREPUSCULAR DO CORPO: A RESISTÊNCIA ULULANTE DA MULHER NA POÉTICA DE REGINA LYRA ............................................................................................................................. 97 Guilherme Ewerton Alves de Assis, Hermano de França Rodrigues CAPÍTULO 8 - LITERATURA E HISTÓRIA: AMOR E OPRESSÃO EM “O MORRO DOS VENTOS UIVANTES”, DE EMILY BRONTËS ............................................. 110 Gabriele Teixeira Diniz, Gustavo Abílio Galeno Arnt CAPÍTULO 9 - O PROTAGONISMO FEMININO NAS ARTES COMO RESISTÊNCIA À DOMINAÇÃO MASCULINA .................................................... 120 Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa, Thays Alves Costa CAPÍTULO 10 - INTERFACES ENTRE O DISCURSO DE SILENCIAMENTO FEMININO E A LUTA DAS MULHERES POR ESPAÇO NA SOCIEDADE: REFLEXÕES A PARTIR DA OBRA “INOCÊNCIA”, DE VISCONDE DE TAUNAY ................................................................................................................ 135 Sangela Lígia Camilo da Silva, José Lucas Silva de Araújo CAPÍTULO 11 - O CONTRASTE FEMININO ENTRE A MULHER CASTA E NAMORADEIRA NAS OBRAS “CAIS DA SAGRAÇÃO” E “JUDAS EM SÁBADO DE ALELUIA”: UMA ANÁLISE COMPARATIVA .................................................. 146 Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar, Maria Iranilde Almeida Costa SOBRE A ORGANIZADORA .................................................................................. 157 SOBRE OS AUTORES E AUTORAS ....................................................................... 158 ÍNDICE REMISSIVO ............................................................................................... 164 Apresentação Neste segundo volume, as questões voltadas ao protagonismo feminino nas Artes e nas literaturas continuam sendo verificadas por meio de estudos que se propõem a analisar a força das autorias africana e afro-brasileira para encontrar outras escritas e manifestações artísticas do nordeste brasileiro em trabalhos que reúnem vozes ancestrais e contemporâneas como testemunhas e porta-vozes das memórias. No artigo Uma escritora inesperável: vulnerabilidades da mulher negra e periférica pelo olhar de Carolina Maria de Jesus, as autoras Débora Cristina Sampaio do Valle e Julianne Rosy do Valle Satil descrevem as relações discursivas e interseccionais da obra Quarto de despejo. Em A metamorfose de Kambili: uma análise da formação pós-colonial em Hibisco Roxo, Maria Tereza Azevedo percorre as estratégias narrativas que se aproximam do romance de formação na obra da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A arte como discurso de resistência: o antirracismo na colagem de Geo Coelho (Brenna Késia de Sousa Costa, José Eduardo Pinto Duarte, Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares) realiza uma análise histórica e semiológica da arte de Geo Coelho como política de resistência. Valéria Costa Aldeci de Oliveira, no artigo Memória Viva: As lutas das mulheres no Nordeste Canavieiro, volta-se para o exame da memória referente à organização sindical no nordeste canavieiro entre as relações sociais que norteiam as questões de gênero e as trabalhadoras rurais. As questões em torno da misoginia estrutural e das violências institucionais que permeiam o feminino são discutidas em Casamento e maternidade: a condição feminina em As Três Marias, de Rachel de Queiroz, de Maria do Carmo de Souza e Souza e Cássia Maria Bezerra do Nascimento. No artigo Da representação à resistência: uma análise da obra A Divorciada, de Francisca Clotilde, Erika Maria Albuquerque Sousa e Solange Santana Guimarães Morais descrevem a gênese biográfica da autora cearense do século XIX. A reivindicação de voz e liberdade femininas por meio da poesia erótica é objeto de estudos do artigo Entre o elã erótico e a urgência crepuscular do corpo: a resistência ululante da mulher na poética de Regina Lyra (Guilherme Ewerton Alves de Assis e Hermano de França Rodrigues). Da mesma maneira, a constituição das relações amorosas e do feminino pautados pela lógica capitalista norteia o debate de Literatura e História: amor e opressão em O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (Gabriele Teixeira Diniz e Gustavo Abílio Galeno Arnt). Ainda que sob autorias masculinas, as construções sociais do ser-mulher são abordadas entre obras atuais e também do cânone do século XIX. No artigo O protagonismo feminino nas artes como resistência à dominação masculina (Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa e Thays Alves Costa) discute-se a representação das mulheres nas artes Interfaces entre o discurso de silenciamento feminino e a luta das mulheres por espaço na sociedade: Reflexões a partir da obra “Inocência” de Visconde de Taunay (Sangela Lígia Camilo da Silva e José Lucas Silva de Araújo) analisa os discursos em torno do feminino emerso da literatura canônica brasileira do século XIX. Em O contraste feminino entre a mulher casta e namoradeira nas obras Cais da sagração e Judas em sábado de aleluia: uma análise comparativa, Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar e Maria Iranilde Almeida Costa examinam os olhares masculinos sobre a mulher, nas obras de Josué Montello e Martins Pena, no que se refere – ou não – à perpetuação de estereótipos desde o século XIX até a atualidade. Ao fim das exposições, é possível recuperar as origens de certas amarras simbólicas erigidas ao longo dos tempos de modo a confirmar inclusive as violências diversas institucionalizadas dirigidas às mulheres que permanecem em contínuas lutas pelos seus direitos e espaços sociais. Meire Oliveira Silva CAPÍTULO 1 Uma escritora inesperável: vulnerabilidades da mulher negra e periférica pelo olhar de Carolina Maria de Jesus Débora Cristina Sampaio do Valle Julianne Rosy do Valle Satil Introdução “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros”. (JESUS, 2014, p. 32) Em 14 de março de 1914, no município de Sacramento – MG, nasceu Carolina Maria de Jesus, escritora e poetisa que materializou em sua mais famosa obra – Quarto de despejo: diário de uma favelada, publicado pela primeira vez em 1960 – as mazelas sociais enfrentadas pela mulher negra em situação de miserabilidade. Sua morte, em 13 de fevereiro de 1977, não apagou sua contribuição à literatura de nosso país e expôs a realidade dos invisíveis às políticas públicas, dos apagados da sociedade. É por uma voz feminina – dotada de sensibilidade, força e superação – que adentramos no universo das favelas e nos deparamos com as inúmeras adversidades cotidianas de seus moradores. A escrita de Carolina Maria de Jesus tornou-se um legado, que inspira debates sobre o lugar de existência e vivência da mulher negra, não refutando as questões sociais atemporais e prevalentes nas regiões periféricas do Brasil. https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-1 10 Em 2021, a autora volta ao grande noticiário, por ter recebido o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Homenagem tardia, mas que reforça a importância de sua produção transgressora de paradigmas e de barreiras históricas, ao ocupar um lugar que nunca foi destinado aos interditados. Ao leitor, assim, é retratado o universo da favelada, catadora de papel, mãe de três filhos, negra: mulher. Memórias que são reverberadas nos dias atuais e mostram-nos que muitas injustiças, ainda, permanecem. Nessa perspectiva, temos o intuito de desenvolver uma análise linguístico-sociológica, com base em recortes da obra Quarto de despejo, considerando o diálogo entre dois campos investigativos: a Linguística – pela perspectiva da Análise de Discurso de escola francesa – e a Teoria das Interseccionalidades que perscruta questões intrínsecas às mulheres negras em um cenário de segregação, desigualdade e violência. Signos estruturais de uma sociedade capitalista, que explora o ser humano, mas atinge muito mais fortemente as mulheres. É nessa interface, nesse entremeio, que nosso trabalho se edifica. Marias, Joanas, Carolinas... Quem são as mulheres negras do Brasil? Ao longo da colonização das Américas, a usurpação das identidades e outros inúmeros tipos de violência foram ferramentas que balizaram a construção de países e povos. No caso do Brasil, território de proporções continentais, esse processo se constituiu pela aculturação dos povos originários e pela escravidão dos negros, vítimas de sequestro e tráfico humano no continente africano. Essas construções argumentativas são recuperadas nas produções de Carla Akotirene, pesquisadora sobre o feminismo negro, conforme apresentamos a seguir: A amefricanidade proposta por Lélia Gonzalez, na década de 1980 e, em seguida, a abordagem decolonial, consolidada nos anos 2000 de modo cabal, através de Maria Lugones, pensadora argentina, criticam a postura missionária da civilização ocidental – metodologicamente interseccionam as estruturas de raça, gênero, sexualidade, nação, classe, estabelecendo coro latino-americano contra o colonialismo, imperialismo e monopólio epistêmico ocidental (AKOTIRENE, 2020, p. 33). Contudo, conectado a esse passado-presente, a história por séculos contada “romantizava” os efeitos do regime escravocrata, haja vista que era escrita por um grupo hegemônico, representante dos interesses de poucos. Saudando a potência literal de Conceição Evaristo1 – que discute a ausência de autoras e produções literárias negras na representatividade social – tomamos para investigação recortes do que a estudiosa define como escrevivências2, recurso 1 Maria da Conceição Evaristo de Brito, Conceição Evaristo, é romancista, poeta e contista afro-brasileira e recebeu destaque por abrasileirar a linguagem em suas produções. 2 O termo “escrevivências” consiste no “escrever viver”. Em suas palavras: “Então, as histórias não são inventadas? 11 metodológico de escrita, que se vale da experiência de quem escreve para oportunizar narrativas que representam a experiência coletiva de mulheres. Escrita que, até metade do século passado, não recebia reconhecimento e, tampouco, viés editorial. Ter passado por processo de colonização europeia contribuiu para que o Brasil sustentasse um imaginário sobre a existência de uma igualdade racial, apagando as barreiras ainda presentes entre as raças e reservando questões raciais a um segundo plano. As sequelas disso foram a propagação e a defesa incessante do mito da democracia racial3, que dissimula algo que está para além daquilo que se mostra. A formatação de sociabilidade pautada, principalmente, após a abolição da escravatura, promoveu uma invisibilização desses povos. Demarcadamente, nessa democracia racial, como discute o autor Silvio Almeida (2020), perdurou a marginalização dos povos negros, os quais permaneceram desamparados, ocultados, violentados e assassinados. A história do Brasil caracteriza-se pela predominância de uma pretensão eurocêntrica4, conceito destacado por teóricos que debatem o colonialismo, como Aníbal Quijano (2005), Kabengele Munanga (2019) e Grada Kilomba (2019), os quais examinam como o registro historiográfico da colonização das Américas foi construído pela perspectiva do homem branco ocidental e como as consequências desse processo repercutem na sociedade hoje em dia. A descrição do processo histórico brasileiro ancora-se, nessa lógica, em técnicas controladoras das subjetividades, da cultura e da produção de conhecimento. (QUIJANO, 2005). Sob o olhar decolonial, adentramos a uma arena em que há disputas e enfrentamentos com relação a forma de se investigar os acontecimentos passados como também as contribuições culturais e sociológicas vindas dos povos africanos, viabilizando reflexões que se concentram no que precede à chegada do povo negro como escravizado em nosso país. Nos estudos e produções teóricas acerca da diáspora africana, Carla Akotirene (2020) e Djamila Ribeiro (2017) – pesquisadoras brasileiras que se apoiam na teoria social e disputa teórica de conceitos – divulgam a essência histórica dos povos negros e a importância do lugar de fala das mulheres, em destaque as mulheres negras. Sobre a questão diaspórica e colonial, Sílvio Almeida acrescenta: Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência”. (EVARISTO, 2011, p. 5). 3 O mito da democracia racial é uma forma brasileiríssima, bastante eficaz, de controle social” (SANTOS, 1984, p. 45). Para Márcia Campos Eurico são “mecanismos que engendram as relações raciais no Brasil e a reprodução da desigualdade étnico-racial, mascarada pela ideologia da democracia racial” (EURICO, 2020, p. 33). 4 Conforme o autor Aníbal Quijano, a pretensão eurocêntrica é o propósito “de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade, e que toda modernização de populações não-européia é, portanto, uma europeização, é uma pretensão etnocentrista e além de tudo provinciana” (QUIJANO, 2005, p. 123). Aqui utilizamos o conceito de modo a criticar a centralidade ocidental e especificamente europeia na produção de conhecimento e no relato do processo histórico da constituição do país Brasil. 12 As revoluções inglesas, a americana e a francesa foram o ápice de um processo de reorganização do mundo, de uma longa e brutal transição das sociedades feudais para a sociedade capitalista em que a composição filosófica do homem universal, dos direitos universais e da razão universal mostrou-se fundamental para a vitória da civilização. Esta mesma civilização que, no século seguinte, seria levada para outros lugares do mundo, para os primitivos, para aqueles que ainda não conheciam os benefícios da liberdade, da igualdade, do Estado de direito e do mercado. E foi nesse movimento de levar a civilização para onde ela não existia que redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e que se denominou colonialismo (ALMEIDA, 2020 p. 26-27). Unem-se a essas questões as formas de representação da mulher, figura que esteve historicamente inserida em uma hierarquia na sociedade, em um lugar desigual, que subjuga o seu corpo e o seu pensar. A partir de então, diversas interseccionalidades, que imbricam além do gênero, aditam outros fatores de opressão. Assim, como expoente de território marginal – trazendo à tona pautas de raça e o gênero – a publicação de Quarto de despejo é um marco na literatura brasileira, mas, muito além disso, configura a denúncia dos efeitos de um processo histórico de violência e de empobrecimento do negro no Brasil, denúncia feita do lugar de mulher. É por essa voz feminina solitária, sobrecarregada de responsabilidades e corajosa, que Carolina Maria de Jesus, em posição de escritora, nos apresenta a dor genuína da fome. Como sujeito-autor atravessado pelo discurso decolonial, ela rompe, pela literatura, com tradições e opressões de diversas ordens. Dessa forma, ao se dizer e dizer seu mundo, dá visibilidade aos ignorados como ela e constrói o retrato da miséria em tom memorialista. Com nuances de documentário, traz à tona uma parte significativa da população brasileira, um povo desassistido e privado de direitos básicos, atacado em sua integridade. Ao assumir posição de autoria, movimenta discursos que criticam a expropriação do direito à vida e à dignidade. Essa voz que se fortalece no lugar social de escritora – fala por tantas outras que não conseguem. Seu dizer é, portanto, reflexo e mensageiro de parcela expressiva da população, composta por aqueles que têm direitos negados, formada pelos escravizados pela fome, pelos sobreviventes da violência, enfim, pelos que (re)existem na favela. Pela posição de autoria, Carolina Maria de Jesus, compartilha seu cotidiano cruel com o público, até então, inacessível. É por tudo isso, que essa obra é tão atual, fomentando, na contemporaneidade, debates sobre as violências que assolam, sobretudo, a mulher negra, à qual, ainda, recorrentemente, é reservado o quarto de despejo da sociedade. 13 Quadro teórico-metodológico: diálogos interdisciplinares Gênero, raça e classe social. Quarto de despejo surge nesse enlace de enfrentamentos. Uma obra literária que expõe um emaranhado de demandas sociais pelo ângulo do oprimido, formada por memórias que trazem a modalidade de língua de sua narradora. Uma forma autêntica de linguagem, que, em muitos momentos, entra em embate com os preceitos da gramática normativa. É justamente isso que confere veracidade aos relatos contidos no livro. A língua como expressão humana é muito mais que estrutura, sistema ou forma de descrever o mundo em que se vive. A língua(gem) é “mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e a realidade em que ele vive” (ORLANDI, 2015, p. 13). É pela linguagem que significamos o que nos rodeia e nos significamos, é por meio dela que nos tornamos sujeitos históricos. Nessa direção, “Bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Se nós colocamos que à falta de linguagem não haveria nem possibilidade de sociedade, nem possibilidade de humanidade, é precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar.” (BENVENISTE, 1989, p. 222). Pela linguagem, desse modo, relações são construídas na sociedade. Considerá-la em nosso estudo consiste em um caminho possível para refletirmos sobre as relações humanas. Para tanto, trazemos o postulado da Análise de Discurso de linha francesa (doravante, AD), disciplina heterogênea - fundada pelo filósofo Michel Pêcheux no final da década de 1960constituída no entrecruzamento de três campos do saber: a Linguística, a Psicanálise e o Marxismo, que se articulam no questionamento da evidência (obviedade) da linguagem e do sentido. Como dispositivo de análise, a AD assume a linguagem como produção contínua de significação e ressignificação. Problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. [...] Não temos como não interpretar. Isso, que é contribuição da análise de discurso, nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem. (ORLANDI, 2015, pp. 7-8). Eni Puccinelli Orlandi, linguista e principal nome da AD no Brasil, discorre que “há formas de saber que são diferentes e que têm funções diferentes” (ORLANDI, 2012b, p. 48), pois nossa sociedade é desigual, dividida, promovendo a existência de formas legítimas e formas que não são legítimas (que têm de legitimar-se). Assim, quando se emprega o conhecimento que é considerado legítimo, “através do discurso que propôs o acesso necessário a ele, desconhece-se a luta de classes, a luta pela validade das diferentes formas de saber, bem como a resistência cultural.” (ORLANDI, 2012b, p. 148). 14 Não restrita aos estudos linguísticos, a linguagem também interessa aos investigadores que produzem reflexão de viés sociológico. Nas palavras da filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro, “os saberes produzidos pelos indivíduos de grupo historicamente discriminados, para além de serem contra discursos importantes, são lugares de potência e configuração do mundo por outros olhares e geografias.” (RIBEIRO, 2017 p. 77). Dessa maneira, a linguagem configura-se como espaço de disputas, sendo mecanismo de poder e perpetuação de direção e privilégio, por isso compreender essas condições proporciona o acesso a uma pauta importante de reconhecimento e luta contra a resenha dominante. A outra parte de nosso aporte teórico é composta pela Teoria da Interseccionalidade, que se configura como instrumento analítico relevante para pensarmos sobre diversas esferas sociais, e que especialmente nos interessam, como: as intersecções de raça, de gênero e de classe. Popularizada na produção científica de Kimberlé Crenshaw – pesquisadora feminista e afro-estadunidense – e dialogada no Brasil por Carka Akotirene na coleção Feminismos Plurais – a interseccionalidade “visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado.” (AKOTIRENE, 2020 p. 19). Difundir sobre a interseccionalidade exige o refutar da concepção de mulher universal. Essa pauta é presente no discurso das ativistas, que, por meio dessa ruptura, veem um caminho para transformações, entre elas: a descontinuidade das opressões, a manifestação e exteriorização das iniquidades e, também, o enegrecimento das identidades e subjetividades. Vale ressaltar que a sensibilização sobre o conceito de interseccionalidade deve assumi-la como forma de expressão, não se categorizando como soma de identidades, mas como um conjunto de sobreposições que ilustra como o racismo, classe social e machismo afetam, em níveis diferentes, os sujeitos de uma sociedade, especialmente mulheres. Nesse sentido, a noção de interseccionalidade não é irrevogável ou imutável. Atrelada a posturas ideológicas, ela habita espaços de disputa e é utilizada em diferentes conjunturas sobre emblemas singulares. “Dialogando com a crítica, a interseccionalidade descarta análises aritméticas ou competitivas sobre quem sofreu primeiro.” (AKOTIRENE, 2020, p 97), ante o exposto, a investigadora traça uma trajetória da conceituação do termo desde a abordagem feita por Kimberlé Crenshaw: “A interseccionalidade permite às feministas criticidade política a fim de compreenderem com a fluidez das identidades subalternas impostas a preconceitos, subordinações de gênero, de classe e raça e às opressões da matriz colonial moderna da qual saem.”(AKOTIRENE, 2020 p. 37-38). É senão a complexidade do atravessamento dos diversos significados, condições e injustiças aditivadas em mesma condição horizontal às singularidades e subjetividades materializadas nesse texto, que, debruçadas em nosso objeto, analisaremos a produção literária de Carolina Maria de Jesus e seu lugar de resistência e de resiliência sob práticas opressoras. Nesse processo, signos identitários são atravessados pelas opressões e sobreposições de raça, gênero e classe social. 15 Propomos, dessa forma, um diálogo entre essas duas áreas de conhecimento, utilizando como partida a noção de atravessamento – existente em ambas teorias – para analisarmos os desdobramentos de outras duas concepções essenciais: a de discurso e a de interseccionalidade, sobre as quais discorreremos na análise. Temos, assim, uma interação profícua e complementar, que propicia contribuição tanto aos estudos linguístico-discursivos quanto às pesquisas que se ocupam das relações sociais, ao privilegiar a compreensão e sensibilização sobre as desigualdades de gênero, sobre a luta de classes e as arbitrariedades raciais. Defendemos que, nesse percurso, pensar na importância de Quarto de despejo e na produção intelectual de mulheres negras, é contribuir com o processo de sensibilização e com a política de luta de mulheres negras. Conceitos em movimento: a construção da análise Para a realização da análise, utilizaremos alguns recortes do livro Quarto de despejo, contrastando os conceitos de discurso e de interseccionalidade, os quais são compreendidos como efeitos que constituem todo sujeito linguístico-histórico-cultural de uma sociedade. A essa conjuntura definimos como atravessamento. O sujeito é, a todo momento, transpassado por diversos desdobramentos que incidem no seu processo de identificação. Surgem, então, projeções sobre “o ser”: pobre, negra, periférica, mãe, mulher, etc. Os sistemas de opressão viabilizam-se pelo movimento de discursos e pela sobreposição de identidades sociais. Como sujeitos, somos atravessados por forças de teor ideológico e ocupamos diversos papéis sociais simultaneamente. É justamente sobre essa complexidade que nos debruçamos. De acordo com a Análise de Discurso, o discurso – afastando-se do lugar comum que associa o termo a pronunciamentos de autoridades políticas – está num lugar onde história e língua(gem) entrecruzam-se: “[...] a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.” (ORLANDI, p. 13, 2015). Segundo Pêcheux (1988), o discurso constitui-se como efeito de sentido entre locutores. Ele se materializa pela língua(gem), ou seja, em manifestações textuais, as quais são seu suporte. Por isso, um texto, em perspectiva discursiva, não deve ser sinônimo de discurso. O entendimento sobre o discurso exige a presença da tríade língua, sujeito e história em sua constituição, considerando a exterioridade da língua e o campo social. Podemos afirmar que ele é materialidade linguístico-histórica, configurando espaço de reflexão sobre as relações 16 entre língua e ideologia. Como substância simbólica, é um observatório para a pesquisa sobre a produção de sentidos, é um lugar de confrontos. Vale ressaltar que quando tratamos do conceito de discurso, não podemos deixar de mencionar uma outra noção – a de interdiscurso. Para Orlandi (2015), o interdiscurso – também chamado de já-dito e memória discursiva – compõe-se de formulações feitas e já esquecidas, as quais determinam o nosso dizer. Nesse prisma, para que nossa fala tenha sentido é necessário que já exista um sentido anterior. Quando discutimos sobre a palavra “escravidão”, por exemplo, entendemos que já circulam na sociedade sentidos sobre ela. A cada retomada do termo, mesmo que novos sentidos sejam movimentados no presente, o embate com os sentidos anteriores torna-se inevitável. O sentido é produto de filiação a uma formação discursiva (FD), haja vista que um mesmo termo pode assumir significações distintas, dependendo da FD do sujeito que enuncia. Conforme Orlandi (2012a, p. 55), “a formação discursiva é a projeção ideológica no dizer”. A interseccionalidade, por sua vez, consiste “na conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação.” (CRENSHAW apud AKOTIRENE, 2020 p. 73). Essa acepção atua como denúncia no tocante às matrizes de opressão e, dialogicamente, às iniquidades que atravessam as existências. Desse modo, o termo, conceito, signo de linguagem interseccionalidade demarca o paradigma teórico-metodológico da tradição feminista negra e elucida as articulações das estruturas modernas coloniais. Entre causa e efeito atua na colisão e nos eixos estruturais das subjetividades, aqui analisadas sob a ótica do discurso de uma literata que rompe todos os padrões, por ser mulher, negra e favelada. Estigmatizada social e linguisticamente. Com os esclarecimentos necessários apresentados, damos início à análise dos recortes. Selecionamos algumas categorias, pelas quais somos transportados a um cotidiano de pobreza extrema.. Interseccionalidades, em uma visão sociológica, ou discursos, pelo prisma da AD, essas ordens constroem representação e ecoam sentidos sobre gênero, maternidade, raça, relações de trabalho e miserabilidade. A representação do “ser mulher” e do conviver em um mundo machista, desigual no tratamento e distribuição de papéis a homens e mulheres, é abordado no recorte a seguir: Levantei, acendi o fogo e mandei o João comprar 10 de açúcar. Bateram no barracão. Os filhos falaram: —E o pai da Vera. —É o papai — ela sorria para ele. Eu é que não fiquei com a tal visita. Ele disse-me que não levou o dinheiro lá no Juiz porque não teve tempo. Mostrei-lhe os sapatos da Vera que estão furados e a agua penetra. —Quanto pagou isto? —240. —É caro. ...Ele deu-me 120 cruzeiros e 20 para cada filho. Ele mandou os filhos comprar doces para nós ficarmos sozinhos. Tem hora que eu tenho desgosto de ser mulher. Dei graças a Deus quando ele despediu-se. (JESUS, 2014, p. 166, grifo nosso). 17 A frase em destaque materializa o desabafo e nos conduz à reflexão: o que é ser mulher? O interdiscurso – relação entre discursos – permite recuperar sentidos já existentes que edificam a representação de gênero, inscrevendo-se em uma cadeia de sentidos possíveis e presentificando sentidos estabilizados ou ressignificando-os. O excerto em questão retrata o desgosto da locutora ao se deparar com mais uma atitude abusiva por parte do ex-companheiro, que acredita ter domínio sobre o corpo feminino, forçando uma situação para que fiquem a sós, em busca de envolvimento sexual. Na cena, apontamos a presença do discurso machista, que norteia a significação do que é ser uma mulher descasada, que se vê desrespeitada em seu próprio lar. O discurso perpetuado pelo senso comum, movimenta esse sentido em nossa sociedade e mostra práticas masculinas que aproveitam de uma possível carência afetiva da ex-parceira, para, mais uma vez, satisfazer desejos momentâneos, sem o objetivo de retomar qualquer compromisso com a mãe de seu(s) filho(s). Submeter-se a ser alvo desse tipo de violência simbólica em nome das necessidades dos filhos culmina no desabafo: “tenho desgosto de ser mulher”. Há nessa fala a presentificação de sentidos que significam o “ser mulher” em uma sociedade desigual e opressora. O machismo, nessa direção, continua atravessando o discurso sobre a mulher, sendo impossível de se desvincular dele historicamente. Assim, surgem “rótulos” que dizem as mulheres sem relacionamento amoroso padrão como detentoras de moral questionável, ou seja, como não merecedoras de respeito. Esse raciocínio pode ser verificado no excerto a seguir: Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetáculo. A minha porta atualmente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatórios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. (JESUS, 2014, p. 14, grifos nossos) Discriminação recorrente, discursivizada em outros momentos da obra: Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguem no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar . (JESUS, 2014, p. 20, grifo nosso). No recorte anterior, são expostos pensamentos que repercutem o estereótipo circulante na sociedade sobre a figura da mãe solo – mulher que cuida e educa os filhos sem a presença paterna e assume a responsabilidade integral sobre a vida dessas crianças. No fragmento em destaque, o leitor torna-se testemunha das consequências do machismo, que concentra na mulher todas as responsabilidades, naturalizando a sobrecarga das mães solo, enquanto os homens parecem ser bem menos estigmatizados por não fazer sua parte na criação dos filhos. 18 Esse discurso que constrói a significação da mulher em um universo de desigualdades, demonstra que em uma mesma conjuntura de pobreza, a mulher ainda é mais afetada do que o homem, mais exposta ao julgamento da sociedade. E, nesse momento, inserimos nessa discussão sobre a mulher a próxima interseccionalidade: a maternidade. As dificuldades e desafios em desempenhar o papel de mãe são, a todo momento, expostos, pois é parte inseparável do cotidiano do sujeito do discurso. Para analisar os discursos e interseccionalidades, é necessário saber sobre os sujeitos. ...Hoje não saí para catar papel. Vou deitar. Não estou cançada e não tenho sono. Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas, não vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o escencial. (JESUS, 2014, p. 18, grifos nossos). Como sujeito histórico-ideológico, a locutora expõe as desigualdades entre gêneros, marcando a diferença entre os discursos que significam a maternidade e a paternidade. Como mãe, a responsabilidade com os filhos vem antes de pequenos prazeres, de pequenas fugas, tornam-se recorrentes as privações pessoais. Na construção de sentidos da maternidade, vemos que na região do interdiscurso – onde os discursos se relacionam – são retomados sentidos já conhecidos, como: o sacrifício que vale a pena – “ser mãe é padecer no paraíso”; culpabilização da mulher – “não soube escolher bons pais aos seus filhos, por isso deve assumir todas as responsabilidades sozinha”; do amor incondicional – “uma mãe nunca abandona seus filhos”. No próximo excerto, vemos como o discurso é espaço heterogêneo e complexo, onde o dizer de mãe entrecruza-se com o dizer da fome, trazendo a tristeza de não ter êxito em suprir necessidades básicas de seus dependentes. Ao mesmo tempo em que recorda a realidade de outras mães, somos deslocados a uma realidade em que a fome é companheira constante. Dia das Mães. O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por não poder realisar os desejos dos seus filhos. ...O sol vai galgando. Hoje não vai chover. Hoje é o nosso dia. [...] ...Ontem eu ganhei metade de uma cabeça de porco no Frigorífico. Comemos a carne e guardei os ossos. E hoje puis os ossos para ferver. E com o caldo fiz as batatas. Os meus filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no paladar. (JESUS, 2014, p. 27, grifos nossos). A miserabilidade, espaço do sujeito que enuncia, é mais que um pano de fundo para o enredo. A condição de fome não é passageira, é uma personagem nas lembranças relatadas, mais uma interseccionalidade que atravessa o sujeito, mais um discurso que o constitui e o significa. 19 O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo eles comendo as coisas do lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suporta a fome. Os biscoitos estavam gostosos. Eu comi pensando naquele provérbio: quem entra na dança deve dançar. E como eu também tenho fome, devo comer. (JESUS, 2014, p. 43, grifos nossos). Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida. (JESUS, 2014, p. 49). Nesse cenário, também, é necessário pensar sobre como se dão as relações de trabalho que vemos ao longo do livro. Carolina, interpelada em sujeito-autor, trabalha informalmente e desempenha uma ocupação que não recebe valorização social. Seu trabalho é marginalizado, sem vínculo empregatício, sem direitos, sem previdência social, em uma sociedade que encaminha, cada vez mais, à exclusão. Práticas decorrentes do funcionamento capitalista: A sociedade capitalista em seu funcionamento contemporâneo é uma sociedade que vai além da exclusão, ela funciona pela segregação (coloca para fora da sociedade, e, quem está fora, não existe, não é levado em conta). (ORLANDI, 2011, p. 696). Deparamo-nos, assim, com uma re-escravização. A força de trabalho é vendida, mas o trabalhador é mal remunerado e seu trabalho não é garantia de acesso a direitos básicos, como a alimentação. Observemos os próximos fragmentos: E vou sair para catar papel. Deixei as crianças. Recomendei-lhes para brincar no quintal e não sair na rua, porque os pessimos vizinhos que eu tenho não dão socego aos meus filhos. Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço. (JESUS, 2014, p. 11, grifos nossos). ...Vendi o papel, ganhei 140 cruzeiros. Trabalhei em excesso, senti-me mal. Tomei umas pilulas de vida e deitei. (JESUS, 2014, p. 20, grifo nosso). Outra interseccionalidade é a raça. Os discursos que identificam e significam a mulher negra, propalam todo o sofrimento das agressões racistas que ela sofre. A cor da pele e a declaração de raça aparecem de forma muito substancial na organização discursiva, acessando o interdiscurso e recuperando acepções negativas do “ser negro”, significação historicamente construída. Os discursos que se materializam pelo diário pessoal e retratam as opressões experimentadas cotidianamente pelas pessoas pretas. As vulnerabilidades dos moradores da favela atingem, em sua maioria, os negros. Nessa realidade, como sujeito histórico-ideológico, Carolina Maria de Jesus autodeclara-se, fazendo uso de analogias e figuras de linguagem para representar sua declaração de raça/cor. 20 ...A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (JESUS, 2014, p. 28, grifos nossos) No excerto anterior, há o contraste entre dois espaços distintos: o local de existência e o local de moradia. A vida é preta como sua pele e como o espaço físico em que mora. “Preto”, nessa conjuntura polissêmica, remete às dificuldades, sentido prévio que caracteriza a vida desassistida que leva e dialoga com o entendimento de raça demonstrado nos dizeres em questão. Em outras partes da obra, ainda sobre a temática racial, vemos as relações construídas entre o presente e o passado de escravização, quando discorre sobre o dia alusivo à abolição. Como segue abaixo: 13 DE MAIO - Hoje amanheceu chovendo. E um dia simpático para mim. E o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. ...Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. (JESUS, 2014, p. 27). A obra segue catalogando e desenhando um percurso de enfrentamentos interseccionais, abordando, por exemplo, a representação da pele negra nos estratos sociais e como é a vida na favela. Nesse decurso, há o detalhamento de opressões e de desigualdades, resultantes da realidade que cerca o sujeito que (d)enuncia, que vivencia a triste herança histórica deixada pela escravização. E como o racismo é estrutural e estruturante da organização da sociedade, atua de modo pragmático nas relações sociais. Observemos o próximo trecho: Olhou as crianças ao meu redor e perguntou: —Estes filhos são seus? Olhei as crianças. Meu, era apenas dois. Mas como todas eram da mesma cor, afirmei que sim. (JESUS, 2014, p. 21, grifo nosso). A problemática racial e a negritude do sujeito-protagonista do livro são descritas, de forma continuada, rememorando algo negativo, como aspectos de baixa autoestima e ofensas. Semantização, aliás, que permeia a cor/raça negra, caracterizando as bases em que a construção identitária do negro se edificou ao longo da história: vestígios da escravidão perpetuada. Quem já não mora na senzala acomoda-se na favela, constituindo desdobramento de uma herança histórica de coisificação do povo negro, de inferiorização racial e, também, do genocídio negro. Tudo isso culmina em impedimentos e em desumanização. Em vários momentos, Carolina Maria de Jesus – em posição de sujeito-autor – retrata a alimentação proveniente do lixo, do inservível, algo extremo que deveria ser exceção, mas que –se torna frequente na mesa de seus familiares. 21 O racismo ocupa todos os lugares de nossa sociedade, na favela não é diferente. Mesmo em condições sociais equivalentes, a opressão contra o negro é incessante. Violência que se dá até mesmo pela voz de crianças, que aprendem, desde muito cedo, a reproduzir hostilidades e comentários que degradam o outro. Como pode ser constatado a seguir: Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia: — Está escrevendo, negra fidida! A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam (JESUS, 2014, p. 24, grifo nosso). O ideário construído no que se refere ao corpo feminino negro – baseado no legado da escravidão associado ao racismo estrutural e ao mito da democracia racial – denota o simbolismo do corpo destituído de humanidade e de necessidade de cuidado e apreço. Construções coletivas e histórico-ideológicas que embebidas de simbolismos racistas, machistas e patriarcais, impactam veementemente a auto-estima da mulher negra. Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia. (JESUS, 2014, p. 39, grifo nosso). Fui fazendo o jantar. Arroz, feijão, pimentão e choriço e mandioca frita. Quando a Vera viu tanta coisa disse: hoje é festa de negro! (JESUS, 2014, p. 44, grifo nosso). ...A favela hoje está quente. Durante o dia a Leila e o seu companheiro Arnaldo brigaram. O Arnaldo é preto. Quando veio para a favela era menino. Mas que menino! Era bom, iducado, meigo, obidiente. Era o orgulho do pai e de quem lhe conhecia. — Este vai ser um negro, sim senhor! E que na África os negros são classificados assim: —Negro tú. —Negro turututú. —É negro sim senhor! Negro tú é o negro mais ou menos. Negro turututú é o que não vale nada. E o negro Sim Senhor é o da alta sociedade (JESUS, 2014, p. 44, grifos nossos). Persiste na memória social, principalmente na brasileira, a relação entre os negros e a escravização. Essa construção, a nosso ver, é problemática, pois o que a História por muito tempo ressoou foi a descrição de um período passivo e acordado. Não se tratou da resistência e nem das denúncias. Falar sobre racismo, desigualdade e violência exige abordagem do estrutural. É um trabalho de compreensão e de ressignificação. Quarto de despejo ecoa o grito sobrevivente, traduzindo a necessidade de desvelar as mazelas, o descaso e os crimes aos quais a população negra está sujeita, cenário em que a mulher é notadamente afetada. Na obra, a figura da mulher – atravessada por discursos e interseccionalidades – recebe destaque. Como protagonista, é ela quem cria os filhos, trabalha, zela e resiste, insistindo na luta diária e esperando por um futuro melhor. O enredo edifica-se pelo desejo constante e ininterrupto de sair da favela: É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (JESUS, 2014, p. 25). 22 Substancialmente, a locutora trata de sua vivência. Em seu testemunho, realça a invisibilização das mulheres negras e como o sistema e suas estruturas sintetizam procedimentos perversos de apagamento. Situação que deve ser exposta, deve ser revista, pois mesmo com a abolição da escravatura no século XIX, não foram implementados acesso, acolhimento ou reparação à população negra e nem à sua história. Luta que se fortalece na atualidade, mas que se depara , ainda, com muitas injustiças. Algumas considerações A escrita, que rompe padrões normativos da língua, é produto das arbitrariedades que existem na nossa sociedade. A não-escolarização, a violência tanto física quanto simbólica e a falta de políticas públicas sobressaltam muito mais do que a transgressão da norma culta da língua portuguesa – ou, ao menos, deveriam. De modo ímpar, as memórias são compartilhadas com o leitor. Carolina Maria de Jesus, interpelada como sujeito-autor, relata a luta diária da mulher periférica, sua resistência e denúncia. Foi assim que produziu livros e discursivizou a urgência de se dar visibilidade aos excluídos, aos que são tolhidos pela sociedade, sendo Quarto de despejo sua obra mais famosa. O modo singelo de escrever – mesclando o literário e o documental, o objetivo e o subjetivo – em posição de autora, assume o lugar de fala negado aos marginalizados e narra sua jornada, atingida por inúmeras opressões, atravessada por interseccionalidades e discursos. No caráter social, a análise permitiu discutir sobre aspectos presentes na vivência racializada. Poucos “nascem” negros no Brasil, a declaração preta acontece quando há uma imersão sobre origem e identificação, desta forma, tornar-se negro é um ato político, como dizia Lélia Gonzalez5(1988), dentre tantas outras mulheres negras que, assim como observamos em Carolina Maria de Jesus, ressignificam suas existências. O Brasil ainda preserva em seu imaginário social representações de que o povo negro “foi escravo”, interdiscurso que se faz presente em muitas narrativas atuais. Interdiscurso que, também, foi retomado por séculos pela historiografia. A nosso ver, seria mais adequado dizer que os negros foram escravizados, não apagando a opressão que sofreram. O espaço de fala, que hoje é maior, foi conquista de muita luta, mas está em construção. Falar sobre racismo, desigualdade e violência no Brasil é tratar de algo estrutural. Na obra que analisamos, há a declaração, publicação e notificação que a luta e a sobrevivência de mulheres negras e pobres não estão elencadas ou pautadas em agendas de políticas dos governos e são esquecidas pelo 5 Depoimento da pensadora e ativista Lélia Gonzalez no ano de 1988 “A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora.” Disponível em: https://revistacult.uol.com. br/home/lelia-gonzalez-perfil/. Acesso em: 20 mar. 2021. 23 Estado. Discurso que se materializa neste relato: Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existência infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela (JESUS, 2014, p. 36). A denúncia baseia-se no que o olhar da locutora capta, efetivando-se pela voz que traz consigo as percepções dos menos favorecidos na pirâmide social. Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos. Eu não vejo eficiência no Serviço Social com relação ao favelado. Amanhã não vou ter pão. Vou cozinhar a batata doce. (JESUS, 2014, p. 37). Como sujeito político-histórico, Carolina Maria de Jesus constitui-se pelas interseccionalidades e discursos que a atravessaram, que a significaram. As críticas sociais retomadas em seu discurso são dialogadas como diário de vivências, marcando as diferenças de quem lida e convive com as expressões acirradas da questão social, como a fome. Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. Em junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são tratados os pobres. A unica coisa que eles querem saber são os nomes e os endereços dos pobres. (JESUS, 2014, p. 38). As críticas sociais, as analogias presentes em seu texto ecoam singularidades e sobretudo, resiliência em permanecer sobrevivente, almejando a um futuro melhor fora da favela. O lugar de fala que ocupa não concebe a passividade, seus cadernos e diários guardam denúncias, gritos e críticas. Nessas materialidades, estão presentes a violência doméstica, discussões sobre o saneamento básico, a ausência do Estado, entre tantos outros registros. Autobiografia que é biografia de muitos, configurando o construto intelectual de uma observadora e vivente do cotidiano denunciado. Carolina Maria de Jesus sobreviveu. As narrativas que compõem sua obra mais conhecida reproduzem resistência a opressões vivenciadas como mulher negra, mãe solo e trabalhadora. Uma sobrevivente e, agora, Doutora Honoris Causa. Negra “Sim, Senhora”. Doutora Maria Carolina de Jesus. Referências 24 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra. Feminismos Plurais Coord. 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São Paulo: Abril Cultural; Brasiliense, 1984. 25 CAPÍTULO 2 A metamorfose de Kambili: uma análise da formação pós-colonial em Hibisco Roxo Maria Tereza Azevedo Considerações iniciais Este trabalho pretende mostrar a maneira como a protagonista Kambili se forma e se transforma a partir de suas próprias reflexões. Para isto, será feita uma análise da formação padrão, entendida como o modelo hegemônico de ensino, mas também da imposição cultural que os países colonizados sofrem e como a personagem subverte estas imposições, metamorfoseando-se. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie narra, em sua obra intitulada Hibisco Roxo, os descaminhos da adolescente Kambili, uma menina que se forma entre a superproteção, muitas vezes violenta, do pai e os conflitos políticos provocados pelos sucessivos golpes de estado que se deram em seu país. A Nigéria foi colônia Inglesa e só conquistou a independência na década de sessenta. Desse modo, a formação da personagem também se dá entre as heranças desta amarga página da história do país. O romance é dividido em quatro partes. A narrativa se inicia in media res1, e neste primeiro capítulo a narradora nos conta sobre a ida da família à igreja no dia do Domingo de Ramos e o retorno para casa, momento em que seu irmão Jaja se nega a comungar e desafia o pai, Eugene, católico fervoroso e seguidor fiel dos ritos religiosos. No segundo capítulo, a narradora descreve os acontecimentos anteriores ao Domingo de Ramos, muitas memórias tristes habitam as lembranças da menina, pois há diversas demonstrações de violência praticadas pelo pai, principalmente com sua mãe, Beatrice, que é alvo recorrente 1 Expressão latina que se refere a obras literárias que iniciam suas narrativas no meio do enredo. https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-2 26 dos maus tratos do patriarca e descrita constantemente com hematomas. Ainda no segundo capítulo, a narradora explicita como são as relações do pai profissionalmente, além de cenas de golpes militares na Nigéria e as ideologias que o pai cultivava e tentava incutir na cabeça dos filhos e da esposa, sobretudo a negação e a consequente demonização da cultura Igbo, tradicional da região. O terceiro capítulo narra o pós-Domingo de Ramos, quando tudo desmoronou, principalmente no que diz respeito à instituição familiar e por fim, o quarto capítulo intitulado “Um silêncio diferente” ao qual ela se refere ao presente como a nova vida dela, da mãe e do irmão, depois da morte do pai. Por se tratar de uma narrativa que demonstra a formação de um determinado indivíduo, este romance pode ser considerado um romance de formação, pois traz, entre outros fatores, afirmações sobre a vida escolar da personagem, além de experiências amorosas e distanciamento do lar familiar. A formação de Kambili era pautada na busca incessante pela perfeição, Papa era muito rigoroso no quesito formativo de seus filhos, se orgulhava em dizer que Kambili e Jaja não eram como a maioria dos jovens. Frequentaram escolas excelentes, as melhores de Enugu, porém, paralelo a isso, os irmãos eram privados de liberdade, tinham hora pra tudo, só lhes era permitido um alívio no período das férias, e foi em uma dessas férias que tudo começou a mudar. Entre a violência doméstica, golpes de estado e a esperança de uma nova vida, Kambili desabrocha para o amadurecimento tal qual a muda de hibiscos roxos plantados no quintal: raros como a sensação de liberdade vivenciada pela menina. A metamorfose de Kambili Era Domingo de Ramos, o dia em que a igreja cristã celebra a ressurreição de Cristo, no entanto, Jaja, irmão de Kambili, se recusa a receber a comunhão na missa. Eugene, furioso e certo de que o pecado havia entrado em sua casa, atira seu pesado missal sobre o menino. Papa, como era chamado por seus filhos, era rigorosamente religioso se preocupava com os católicos que não praticavam a comunhão, inclusive encorajava o padre da paróquia a procurar as pessoas que se negavam, já que para ele somente um pecado mortal impediria alguém de receber a comunhão. - Você não pode parar de receber o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso é a morte, e você sabe muito bem. [...] - Então eu morrerei, Papa. 27 Papa olhou em torno rapidamente, como quem procura por uma prova de que algo desabara do teto alto da sala, algo que ele jamais imaginaria que fosse cair. Pegou o missal e atirou-o na direção de Jaja. O missal não acertou Jaja, mas atingiu a estante de vidro que mamãe limpava com tanta frequência (ADICHIE, 2011, p. 13). Nesse início da trama, já é possível entender um pouco sobre as construções e desmoronamentos familiares que são pautados em violência e controle dos corpos, por parte do patriarca da família. Esse recorte da narrativa é o princípio da negação da postura autoritária praticada pelo pai. Talvez Mama soubesse que não ia mais precisar das estatuetas; que quando Papa atirou o missal em Jaja, não foram apenas elas que se quebraram, mas todo o resto. Só agora eu percebia isso, permitindo-me pensar naquela possibilidade. [...] A rebeldia de Jaja era como os hibiscos roxos experimentais de tia Ifeoma: rara, com o cheiro suave da liberdade, uma liberdade diferente daquela que a multidão, brandindo folhas verdes, pediu na Government Square após o golpe. Liberdade para ser, para fazer (ADICHIE, p. 22). A rebeldia de Jaja encerra o primeiro capítulo e inicia o processo de recusa da vida rigorosamente católica e violenta que levavam. O capítulo seguinte é constituído de memórias anteriores ao Domingo de Ramos. No segundo capítulo, a narradora expõe as cobranças demasiadas do pai. Como ele tinha boas condições financeiras, fazia questão de matricular os filhos nas melhores escolas, para que tivessem uma excelente formação educacional e, sempre que podia, coagia os filhos para que estivessem em colocações de destaque em suas respectivas classes. Papa fazia questão de expor o privilégio que oferecia aos filhos e cobrá-los que fossem os melhores. Eu ficara em segundo lugar na turma. Estava escrito em algarismos 2/25. Minha professora, irmã Clara, escrevera: “Kambili tem inteligência acima da média, e é silenciosa e responsável” A diretora, madre Lucy, escrevera: “Uma aluna brilhante e obediente e uma filha que merece o orgulho dos pais”. Mas eu sabia que Papa não ia ficar orgulhoso. Ele cansava de dizer para mim e para Jaja que, já que gastava tanto dinheiro no Daughters of Immacule of Heart e no St Nicholas, nós não devíamos deixar as outras crianças ficarem em primeiro na turma [...] Mas eu ficara em segundo lugar, estava maculada pelo fracasso (ADICHIE, 2011, p. 45). A busca incessante pela perfeição se estendia pelo ano inteiro, apenas nas férias, seus filhos eram poupados e é neste período, durante o fim de ano, o momento em que a protagonista narra sua primeira saída da casa em que moravam. A viagem de Enugu, para Abba, cidade natal de Papa. É quando principia, timidamente, seu processo de reflexão, sobretudo acerca da formação familiar e a condição colonial da Nigéria incluindo curiosidades sobre a cultura e a religião Igbo. 28 Em Abba, Papa era conhecido como “Omelora” (Aquele que faz pela comunidade). Todo natal os nativos faziam filas para receber as doações dele e ele era ovacionado por ser um homem tão bondoso, caridoso. Ajudava os nativos com comida, dinheiro, presentes, no entanto, para seu próprio pai não destinava o mesmo tratamento, pois este se negava à conversão para o cristianismo, era considerado pagão pelo filho e proibido de entrar em sua propriedade. “Papa-Nnukwu jamais pisara ali, pois quando Papa decretara que não permitiria pagãos em sua propriedade, não abrira exceção nem para o próprio pai.” (ADICHIE, 2011, p.70). Eugene era filho de um senhor tradicionalista e que seguia a religião Igbo, mas sua formação foi atravessada pela colonização e catequização inglesa. Eugene foi formado por missionários cristãos que lhe incutiram os preconceitos advindos do cristianismo com relação às religiões africanas, cumprindo com a docilização almejada pela colonização inglesa na Nigéria. A irmã de Papa, tia Ifeoma, disse um dia que Papa era muito colonizado. Disse isso de forma gentil e indulgente, como se não fosse culpa de Papa, como quem fala de alguém que tem um caso grave de malária e por isso grita coisas sem nexo (ADICHIE, 2011, p. 20). Kambili, a princípio, acredita que a formação ofertada pelo pai é ideal e que deve sempre acatar aos mandos dele, deste modo, sua formação segue sendo orquestrada pelos interesses do patriarca. Até que Kambili e Jaja vão visitar o avô, pois era período de festas de fim de ano e seu pai os mandou para lá com o motorista, mas só lhes permitiu ficarem quinze minutos, além de adverti-los que não deviam beber nem comer nada, já que o avô cultuava outros deuses. Um símbolo da demonização da religião originária, manifestação de apagamento da cultura e da religiosidade, decorrente da colonização europeia. Nessa viagem, Kambili principia seu processo reflexivo, ao passo que se questiona sobre esta relação do pai com o avô, é quando surgem faíscas de dúvidas sobre as certezas cristãs impostas pela condição colonial, mesmo que ainda siga as regras do pai. A menina tenta entender esse complexo comportamento do pai, bom para quase todos, mas só para os que o obedecia, que compartilhavam da sua maneira de viver e se posicionar como ser passivo às imposições da colonização cristã europeia e agressivo com os seus. Na visita ao avô, Kambili narra que tentou enxergar naquele ancião algo que lhe diferenciasse dos outros, que lhe fizesse ser destratado. Naquele dia eu também examinara Papa-Nnukwu, desviando o olhar quando ele me encarava, procurando por um sinal que marcasse sua diferença, sua condição de pessoa ímpia. Não vi nenhum, mas estava certa de que eles deviam estar em algum lugar. Tinham de estar (ADICHIE, 2011, p. 71). 29 As demonstrações de submissão ao processo colonial aparecem também no momento em que Kambili se questiona sobre a distinção feita entre os avôs paterno e materno. Ao passo que destratava o pai, elogiava o sogro, pedia que os filhos lhe chamassem de vovô, não de Papa-Nnukwu como se diz em Igbo. “Ele abriu os olhos antes da maioria do nosso povo [...] Fazia as coisas do jeito certo, do jeito que os brancos fazem não como nosso povo faz agora!” (ADICHIE, 2011, p. 76). Ainda nessa viagem, Kambili vivencia outro aspecto presente no Bildungsroman2, o contato com uma pessoa mais velha, que a leva a enxergar o mundo de outra maneira, sua Tia Ifeoma representa este ser marcado por outras possibilidades de existência, diferentes da vivida e observada pela menina. Seu primeiro contato, na fase de construção da identidade, ainda tímido pelo tanto que havia de julgamentos preestabelecidos, incutidos pela visão do pai, a menina principia seu convívio com quem, no futuro da narrativa, viria a ser a personagem mais significativa em seu processo de transformação. Eu observava cada movimento dela sem conseguir desviar os olhos. Era por causa da coragem que ela transmitia, evidente em seus gestos enquanto falava, na maneira como sorria para mostrar o espaço entre os dentes (ADICHIE, 2011, p. 85). Ifeoma é considerada por Kambili, ainda com o pensamento viciado pelos interesses de Papa, uma mulher diferente de sua mãe, pois ela era muito mais desinibida e cheia de atitude. Tia Ifeoma usava calça, fazia questão de ter sua voz ouvida quando falava sobre os acontecimentos políticos da região em que morava e trabalhava como professora universitária. Neste primeiro contato mais consciente da menina com a tia, Kambili mostrase contagiada por um sentimento de choque, já que sua tia se comportava tão diferente do padrão feminino que ela estava acostumada. Em nova visita ao avô, juntamente com a tia, Kambili se mostra apavorada de ter que voltar àquele lugar mal visto pelo pai. - Porque Papa-Nnukwu é um pagão. Papa teria ficado orgulhoso se soubesse que eu tinha dito isso. - Seu Papa-Nnukwu não é um pagão, Kambili, é um tradicionalista – disse Tia Ifeoma. Olhei atônita para ela. Pagão, tradicionalista, o que importava? Ele não era católico e pronto; não era da nossa fé. Era uma dessas pessoas por cuja conversão nós rezávamos, para que elas não acabassem no tormento eterno dos fogos do inferno (ADICHIE, 2011, p. 90). Na missa de natal, todos se encontraram na igreja, e Kambili ficou impressionada ao ver que sua prima usava batom, para ela isso jamais seria permitido. “Embora eu tentasse me concentrar na missa, não conseguia parar de pensar no batom de Amaka, me perguntando como seria espalhar cor nos meus lábios” (ADICHIE, 2011, p.98). 2 Do alemão, Romance de Formação. Gênero Literário em que se narram os processos de formação dos personagens. 30 As condições de vida de Kambili e Jaja eram muito diferentes da de seus primos, filhos de Tia Ifeoma, sobretudo devido à condição financeira da tia, que não permitia oferecer certos luxos aos filhos. Após a missa, todos foram para casa de Papa compartilhar a ceia natalina e seus primos observavam com curiosidade os objetos que continham na casa. Um som Stereo, o qual achavam o máximo e ficava intacto na mansão, a estrutura física dos cômodos, os alimentos, tudo de qualidade superior ao que estavam acostumados. Nessa mesma noite, durante o jantar, Tia Ifeoma sugere que Papa deveria deixar os filhos irem visitá-la em Nsukka. - Eugene, você precisa deixar que as crianças nos visitem em Nsukka – disse tia Ifeoma. - Não temos uma mansão, mas pelo menos eles podem conhecer melhor os primos. - As crianças não gostam de ficar longe de casa – disse Papa. - Só porque nunca ficaram longe de casa. Tenho certeza de que vão gostar de ver Nsukka. Não vão, Jaja e Kambili? (ADICHIE, 2011, p. 106) No domingo, dia seguinte à ceia de natal, Kambili acorda menstruada e com muita cólica. Para aliviar, pede que Mama lhe dê um remédio para a dor, mas sua mãe disse que não deveria tomar o remédio em jejum, pois poderia afetar seu estômago. Mas era dia de Eucaristia e todos deveriam ir em jejum. Jaja e Mama tentam encobrir Kambili para que Eugene não perceba que a menina estava comendo antes de ir à missa. No entanto, Papa chegou um pouco antes dela engolir os últimos flocos de cereal. - Está comendo dez minutos antes da missa? Dez minutos? - Ela ficou menstruada e está com cólica... – explicou Mama. Jaja a interrompeu. - Fui eu que mandei Kambili comer antes de tomar Panadol3, Papa. Eu preparei o cereal pra ela. - Será que o demônio pediu pra você fazer o trabalho dele? – disse Papa, com as palavras em igbo saindo de sua boca numa torrente. – Será que o demônio armou uma tenda dentro da minha casa? (ADICHIE, 2011, p. 111) Em seguida, a narradora relata outra cena de violência explicita. Papa retira o cinto da calça e bate nos três, respinga sua ira para todos os componentes de sua família. “[...] estalando seu cinto em cima de Mama, de Jaja e de mim, murmurando que o demônio não ia vencer. Não demos mais que dois passos para escapar do cinto de couro que cortava o ar” (ADICHIE, 2011, p. 112). Ainda subservientes, seguiram a rotina imposta pelo pai, foram trocar de roupa e partiram para a missa, obrigados a confessar o grande pecado de comer antes do jejum 3 Remédio para cólicas menstruais. 31 eucarístico. “Papa telefonou para tia Ifeoma dois dias depois. Talvez, se não tivéssemos ido nos confessar naquele dia, ele não tivesse ligado. E talvez jamais tivéssemos ido à Nsukka, e tudo teria ficado igual” (ADICHIE, 2011, p. 113). Chegando à casa da tia, foram recebidos com muito afeto, carinho que não sentiam em casa, pois não era dado pelo pai e também ficava adormecido na mãe devido à criação metódica e de silenciamento estabelecida pelo patriarca. As refeições não eram silenciosas como em Enugu, os primos eram tão desinibidos e livres que Kambili não tinha reação, um sentimento extasiante decorrente da percepção de uma possibilidade de vida diferente daquela triste e silenciosa vivida em casa. “Até então eu me sentira como se não estivesse ali, como se estivesse apenas observando uma mesa onde se podia dizer o que você quisesse, onde o ar era livre para ser respirado à vontade” (ADICHIE, 2011, p. 130). Em Nsukka, Kambili vai à universidade pela primeira vez, momento em que tia Ifeoma mostra onde trabalha e ainda brinca dizendo onde sua filha Amaka gostaria de ficar alojada quando entrasse na universidade e fundasse seus movimentos ativistas. Enquanto a protagonista nem se perguntava sobre seu próprio futuro, já que não tomava nenhuma decisão sozinha. – Quem sabe vocês não ficam no mesmo dormitório, Kambili? Assenti automaticamente, embora tia Ifeoma não pudesse me enxergar. Eu nunca me perguntara em que universidade estudaria nem em que me formaria. Quando chegasse a hora, Papa decidiria (ADICHIE, 2011, p. 140). Kambili confronta a criação amorosa e espontânea da tia com a repressora dada pelo pai e chega a algumas conclusões que a fazem reformular suas ânsias familiares. Tia Ifeoma criara os filhos para a independência, não para a submissão, totalmente diferente da educação que Kambili e Jaja recebiam em casa, seus primos tinham outra consciência de mundo, eram educados observando a cultura de seu povo, não a negando. Ifeoma buscava dar autonomia aos filhos. Percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez mais alto, graças à forma como falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo e Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos porque tínhamos pânico de não conseguir (ADICHIE, 2011, p. 238). Outro acontecimento marcante e decisivo nesta estadia em Nsukka é a aproximação dos irmãos com Papa-Nnukwu, que precisou ir à casa de Ifeoma, pois estava muito debilitado de saúde. No período em que esteve no mesmo lar que o avô, Jaja e Kambili sentiam muito medo de serem castigados pelo convívio com um “pagão”. No entanto, acabaram se aproximando do avô, pois ele era um espirituoso senhor que gostava de contar história e seu carinho também despertou em Kambili e Jaja o sentimento de querer conhecê-lo melhor. 32 Depois de ouvi-lo rezando por todos de sua família, inclusive Eugene, Kambili ficou ainda mais convencida, embora não quisesse acreditar, de que seu avô era um homem bom. Infelizmente Papa-Nnukwu não resistiu à doença que lhe castigava e, depois de seu óbito, Eugene vai à casa de tia Ifeoma para buscar os filhos, pois o tinham contrariado, estavam dividindo o mesmo lar de um pagão. “A morte de Papa-Nnukwu obscurecera tudo mais, empurrando o rosto de Papa para um lugar indistinto em minha mente. Mas agora esse rosto ganha vida de novo” (ADICHIE, 2011, p. 199). Na volta pra casa, Jaja e Kambili já estavam diferentes, com atitudes e vontades próprias. Viu o que aconteceu com meus filhos? – Papa perguntou ao teto. – Viu como ficar com um pagão os fez mudar, ensinou o mal a eles? [...] Por um segundo, me perguntei se Papa estaria certo, se estar com Papa-Nnukwu fizera Jaja ficar malvado, se fizera nós dois ficarmos malvados (ADICHIE, 2011, p. 204). O comportamento desafiador de Kambili e Jaja despertou a fúria do pai que desencadeou uma sequência de castigos violentos. O primeiro acontece quando Papa pergunta à filha porque não tinha dito que estavam dividindo o mesmo teto com um pagão. “Kambili, você é preciosa – disse ele, com a voz tremendo, como alguém que fazia um discurso num velório, embargado de emoção - devia almejar a perfeição. Não devia ver o pecado e caminhar na direção dele” (ADICHIE, 2011, p. 206). Em seguida, Papa manda Kambili entrar na banheira e derrama uma chaleira cheia de água quente nos pés da filha como castigo por ter pecado. “É isso que você faz consigo mesma quando caminha na direção do pecado. Queima os pés – disse ele.” (ADICHIE, 2011, p. 207). Mas o pior estava por vir. Antes de voltar para casa, Kambili ganhou um quadro com o rosto de de Papa-Nnukwu pintado pela prima Amaka, lembrança da época de convívio com o avô e os primos na casa de tia Ifeoma. A jovem quis escondê-lo, mas Jaja pediu para ver, admirar a imagem de PapaNnukwu e também verificar sua semelhança com o avô. No momento em que Papa esta distraído recebendo a visita do padre Benedict, os irmãos que estavam olhando o quadro tentam fazê-lo sem que o pai visse, pois sabiam que seria inaceitável para o pai. E foi o que aconteceu. Talvez fosse o que eu e Jaja quiséssemos que acontecesse, sem ter consciência disso. Talvez todos tenhamos mudado depois de Nsukka – até Papa – e as coisas estivessem destinadas a não ser mais as mesmas, a não estar mais na ordem original (ADICHIE, 2011, p. 221). Papa rasgou o desenho em pedaços e Kambili quis se agarrar a um, como se aquele fragmento da tela pintada pela prima fosse um pedaço do avô, uma memória do pouco 33 que pôde conviver com ele, dos dias felizes em que compartilharam histórias e gargalhadas em Nsukka. Em seguida é espancada pelo pai, ao ponto de ficar desacordada e teve que ser internada no hospital. Tia Ifeoma visita Kambili e faz um apelo à menina, Jaja e Beatrice, pede que saiam de casa o quanto antes. - Isso não pode continuar nwunye m4 – disse tia Ifeoma. – Quando uma casa está pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça. [...] Quero que Kambili e Jaja fiquem conosco, pelo menos até a Páscoa. Faça uma mala você também e venha para Nsukka. Vai ser mais fácil para você ir embora quando as crianças não estiverem lá (ADICHIE, 2011, p. 226). Quando teve alta, Kambili foi para casa da tia passar mais uns dias, junto com seu irmão, até as coisas se acalmarem em casa. Nesse meio tempo, outro aspecto do Bildungsroman vem à tona, o envolvimento amoroso. Nas férias que passa com a tia, conhece um padre de Nsukka, frequentador da casa de tia Ifeoma e com pensamentos progressistas dentro da religiosidade cristã, mas é neste retorno que a jovem é tomada por um sentimento que a faz ficar ansiosa e radiante. No primeiro contato, padre Amadi relembra que já esteve na paróquia em que a família de Kambili frequentava e na ocasião cantou uma música no meio do sermão, por isso, a menina lembra que foi mal visto por Papa que acreditava que não poderia haver canções durante a missa. Conhecem-se um pouco mais nas visitas feitas pelo padre à casa da tia, passeiam pela cidade, jogam handebol junto com os primos. Neste retorno à Nsukka, a aproximação deles aumenta e Kambili experimenta um sentimento novo, o da paixão. - É bom ver que você voltou ao normal – disse padre Amadi, me examinando de cima a baixo, como se quisesse ter certeza de que não faltava nada. Eu sorri. Ele indicou que eu devia me levantar para receber um abraço. O corpo dele tocando o meu foi tenso e delicioso. Eu me afastei. Quis que Chima, Jaja, Obiora, tia Ifeoma e Amaka desaparecessem por alguns instantes. Quis estar sozinha com ele. Quis contar a ele o calor que sentia por ele estar ali, dizer que minha cor preferida era o tom de argila da pele dele (ADICHIE, 2011, p. 233). Ele também a encorajava, elogiando sua beleza e buscando mostrar que ela tinha potencial para fazer o que quisesse. “- Você pode fazer qualquer coisa, kambili” (ADICHIE, 2011, p. 253). Quando finalmente se declara ao padre, em troca ouve: “Você tem quase dezesseis anos, Kambili. É linda. Vai encontrar mais amor do que vai precisar para uma 4 Como as cunhadas se cumprimentam na linguagem Igbo proveniente da Nigéria, pode ser traduzido como minha esposa. 34 vida inteira.” (ADICHIE, 2011, p. 290). O que comprova que o afeto, mesmo que seja correspondido, pelo carinho com que o padre a trata, jamais seria vivido como ela gostaria. Na casa da tia Ifeoma, Kambili recebe ligação de sua mãe, dizendo que Papa havia sido encontrado morto. Ao voltar para casa, ainda atordoados com a notícia, tentando entender o que ocasionou a morte do pai, descobrem que sua mãe que é culpada pelo envenenamento dele. Um aspecto pertinente ao Bildungsroman feminino, o silenciamento, é explicitado neste romance, como um comportamento comum, sobretudo em romances que expõe relações pautadas no patriarcalismo violentamente exposto. A protagonista só começa a falar, a se sentir segura para manifestar seus pensamentos quando começa a interagir com a tia e os primos. Ao longo da narrativa é apartada do diálogo com a mãe, o que é claramente mostrado no final da narrativa. E mesmo que tenha sido ocasionada pela trágica morte do pai, a relação com a mãe e o irmão se tornou muita mais próxima. Mama e eu não conversamos sobre o que tínhamos ouvido. Seguimos carregando dentro de nós, mas não compartilhando, a mesma paz, a mesma esperança concreta pela primeira vez [...] Ainda há muito que não dizemos com nossas vozes, que não transformamos em palavras (ADICHIE, 2011, p. 311). A mentalidade pós-moderna, representada neste romance, é pautada na noção de crise, essa fratura que perpassa pelos comportamentos, que deixam de ser hegemônicos ou pelo menos deixam de ser obedientes às diretrizes conservadoras, nesse sentido, tudo entra em crise, não somente os conceitos, mas as formas de vida, as experiências, o modelo familiar, o que justifica as transformações pelas quais as personagens sofrem. Personagens com comportamentos que, frente a determinadas experiências violentadoras da sua condição de mulher, o que forma um conjunto de condições inerentes à experiência vivida por elas, desafiam o modelo esperado pela sociedade e, ao desafiar, colocam em crise todo um comportamento pautado nos princípios que a cultura do patriarcado espera que elas devam cumprir. O perigo para o já engessado modelo social e familiar é, justamente, a consciência da sua própria vida, é quando as mulheres que sofrem ou sofreram violências, sejam físicas ou morais, dão basta a este modelo que insiste em subjuga-las e somente a tomada de atitude, atrelada ao estar de consciência, é capaz de reformular suas próprias vidas. 35 Considerações finais O dessilenciamento e a consequente metamorfose de Kambili podem ser traduzidos como o de muitas meninas, que são sufocadas pelo patriarcalismo, seu entendimento sobre sua cultura também pode ser interpretado como a crescente necessidade de desconstrução das imposições coloniais. O fim de Kambili é indeterminado, mas aponta para uma mudança radical, e que é possivelmente interpretado como um caminho emancipado, em que a menina, livre das amarras do pai, tem a capacidade de se nutrir das próprias escolhas. Kambili se prepara para o futuro, consciente de si mesma e dos desafios que enfrentará: “As novas chuvas vão cair em breve” (ADICHIE, 2011, p. 321). Conforme já observamos em estudos anteriores é “Como se a emancipação se configurasse como uma espécie de micro revolução que acontece em nós e que deve ser cultivada individualmente, essa força que temos para decidir em que condições buscamos viver” (AZEVEDO & SARMENTO-PANTOJA, 2015, p. 5). A escritora evidencia a formação dada à protagonista de Hibisco Roxo e mostra várias etapas desta formação, sempre alicerçada na violência e na obrigatoriedade de seguir as vontades do Pai. Chimamanda Adichie escancara a raiz colonial da dominação dos corpos e da subjugação de povos em relação a outros, que inclusive é sua própria nação, como uma triste prática de controle e sucessão de costumes opressores. As mulheres da obra são um exemplo da paradoxal situação feminina, sua tia é professora universitária e na condição de viúva é quem sustenta sua família. A criação que dá aos filhos é construída no sentido da liberdade, do incentivo ao pensamento crítico e, por outro lado, sua mãe, Beatrice, é uma mulher que é descrita como submissa em praticamente todo o romance. É grata por nunca ter sido abandonada pelo marido, ao passo que sofre inúmeras violências narradas na obra. Estes dois exemplos paradoxais evidenciam para Kambili, adolescente em formação, quais são suas possibilidades de construção para o futuro próximo. Em casa vive sob constante ameaça do pai, caso não cumpra suas ordens, enquanto na casa da tia descobre que outras formas de vida são possíveis. A autora, ao trazer esta movimentação de possibilidades, leva o (a) leitor (a) a repensar sobre a formação, no sentido de educação dada pela criação. A escritora não nega a formação tida como tradicional, mas expõe e contrapõe à outra, a formação emancipadora, dada pela tia aos primos, que só é possível em liberdade, sentimento este que não faz parte da realidade doméstica de Kambili até a morte do pai. Como bem pontuou Linda Hutcheon (1988), a postura pós-moderna está disposta a explorar os dois lados da história, o tradicional, engessado e o que é tido como parâmetro dos desejos da geração contemporânea. Mulheres como Beatrice foram ensinadas a não questionarem os maridos, sua filha, protagonista da obra, por ter sido exposta a outra modalidade formativa pode rever seu rumo e estimar uma vida diferente. 36 Referências ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. Tradução: Júlia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. AZEVEDO, Maria Tereza; SARMENTO-PANTOJA, Tânia. A Emancipação Em Sartre, Adorno E Rancière: Contribuições Para O Estudo Do Herói Guerrilheiro Na Literatura Pós-Ditatorial. In: Anais do XIV Congresso internacional da Abralic. Belém do Pará, Julho, 2015. HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988. MAAS, Wilma Patricia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo. O Bildungsroman na história da literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000. PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino. Quatro exemplos brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1990. 37 CAPÍTULO 3 A arte como discurso de resistência: O antirracismo na colagem de Geo Coelho Brenna Késia de Sousa Costa, José Eduardo Pinto Duarte, Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares Introdução De acordo com Orlandi (1986), o discurso é caracterizado como o que vem a mais, o que vem depois, o que desliza nos movimentos de retomada, repetição e diferença da linguagem e dos sentidos. Partindo dessa premissa, iremos descrever a arte como discurso de resistência. Como objeto de análise, utilizaremos uma colagem postada por Geo Coelho, na página Cola da Preta, por meio da plataforma digital Instagram. Diante de linguagens deliberadamente coloniais, resultantes de uma historicidade nacional marcada pela segregação, exclusão e desigualdades sociais, de um racismo estrutural ainda hoje ameaçador em diversas esferas da vida, nosso estudo orientou-se pela indagação primeira em torno do lugar da arte na crítica aos modos de governo da vida, na cena política e cultural brasileira. Outrossim, impulsionou-nos a possibilidade de questionar o lugar da teoria da linguagem na grande travessia da crítica da atualidade política. Isso decorre da inspiração foucaultiana, sobretudo, da sua indagação ontológica do presente: o que estamos fazendo de nós mesmos? Problematização fundamental na obra do pensador francês, necessária ao diagnóstico da condição subjetiva democrática, atravessada por relações de saber, de poder e de verdade (FOUCAULT, 1995, 2000). Buscamos uma ressonância com a problematização foucaultiana, indagando a um só tempo sobre o lugar da teoria dos estudos da linguagem, posição assumida por nós, e o da experiência artística, assumida pela historiadora Geo Coelho, em relação ao diagnóstico do presente, objetivando mostrar como essa discursividade artística está inserida nos jogos de poder e de saber que estruturam as forças políticas e a https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-3 38 democracia no Brasil, constituindo-se como uma formulação de resistência desestabilizadora de demarcações e resquícios históricos que perpetuam desigualdades e exclusões em nosso país. O percurso analítico girou em torno da seguinte materialidade: Figura 1 - Colagem de Geo Coelho Fonte: Página Cola da Preta no Instagram, 20201. Objetivamos traçar aqui compreensões sobre de que modos os elementos linguísticos e imagéticos materializam o discurso antirracista e produzem efeitos de memória que criticam e deslocam politicamente a retórica racista. Para tanto, o aporte teórico-metodológico situase na análise dos discursos, com ênfase na arqueologia do discurso como a descrição histórica e semiológica dos enunciados (FOUCAULT, 2007). Tal visada, só é possível por meio de uma virada discursiva nos estudos da linguagem, está engajada num viés de pesquisa no qual a discursividade é abordada de forma interdisciplinar, leia-se, numa descrição que conjuga à problematização linguageira, inquietações sociais, subjetivas e históricas. A colagem de autoria de Geovanna Coelho, professora, historiadora, artista e ativista nordestina, é um acontecimento discursivo (FOUCAULT, 2007), enunciado verbo-imagético cuja função enunciativa desestabiliza relações de saber e poder que há muito reforçam o racismo estrutural no Brasil, tornando visível a política de resistência materializada na arte. Na base do nosso percurso analítico, ressoam também as contribuições de Chauí (2008), que pensa as relações entre sociedade, cultura e democracia, o debate sobre a arte da colagem, 1 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFVVjyQBzMe/. Acesso em: 17 de novembro de 2020. 39 por meio das contribuições de Vargas e Souza (2011), propostas articuladas aos pressupostos da análise discursiva de matriz francesa (ORLANDI, 2008, 2009), fundamentação a partir da qual descrevemos a colagem da artista Geo Coelho como um sincretismo semiológico, verbo e imagem, consistindo expressão de poder-saber antirracista e produtora de ruptura histórica. Além dessas, foram determinantes as contribuições de autores como Almeida (2019) e Souza (2017), que abordam o conceito de racismo estrutural, sua gênese e as formas históricas de sua perpetuação até os dias atuais na política e na sociedade brasileira. Por uma análise antirracista das discursividades Memória e discurso De acordo com Orlandi (2009, p. 31), a memória discursiva acontece através de falas, dizeres, materialidades que vieram de outros lugares e momentos, de forma independente, uma estrutura já simbolizada e dotada de sentido: “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível[...]”. Impossível significar fora de uma rede de memória, lembra-nos Pêcheux (2011), fundador da AD, para quem a memória, objeto de estudo em todas as áreas das ciências sociais e humanas, deve ser abordada pelo linguista como discursividade. Nas palavras de Pêcheux (2011), do ponto de vista da articulação entre uma teoria da linguagem, uma teoria do sujeito e uma teoria da história, a memória deve ser estudada colocando em causa o seu estatuto social em seu funcionamento discursivo, a partir da produção, circulação e interpretação de práticas discursivas que põem em jogo determinadas formas de pensar a sociedade. Abordada assim, a memória não é estudada em sua existência psíquica ou cognitiva, mas como um conjunto complexo “constituído por séries de tecidos de índices legíveis, constituindo um corpus sócio-histórico de traços.” (PÊCHEUX, 2011). Na colagem, figura 01, o modo singular de inscrição da memória em nossa atualidade é o ponto central aqui analisado. Na arte, uma das memórias discursivas que pode ser percebida, por exemplo, está na representação da bandeira brasileira, retonalizada e reestilizada, dando destaque às marcas de balas derramadas em sangue em substituição ao que nossa memória ativa do símbolo nacional: as estrelas. E, pela construção da imagem como um todo, naquilo que ela materializa de jogos de verdade, modos de pensar, representar e contestar, é fácil chegar ao referente atravessado pelas manchas escarlates. O ativismo de resistência pela arte estabelece relação de sentidos que deriva de já ditos diversos e de vozes heterotópicas, 40 alhures, apesar de os sujeitos não terem o controle “[...] sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem [...]” (ORLANDI,2009, p. 32). Pensando a partir da perspectiva orlandiniana, os sentidos estão sempre em fuga, escapam e resistem ao silenciamento, pois significar é uma relação de se mover, [...] – que vem pela história, que não pede licença, que vem pela memória, em muitas outras vozes, no jogo da língua que se vai historicizando aqui e ali, indiferentemente, mas, marcada pela ideologia pelas posições relativas ao poder – traz em sua materialidade os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades (ORLANDI, 2009, p. 32). Nas artes, o deslizamento da memória e sua inscrição pela diferença, pela ruptura e pela contestação se faz mais evidente. As materialidades da memória estabelecem significações e sentidos não apenas com o que foi dito, mas também com o que não é dito, com aquilo que até poderia ter sido dito e não foi. Funcionam, pois, como “margens do dizer” que também fazem parte do estatuto social e histórico da memória. Também de acordo com a autora, a linguagem faz sentido por seus processos de significação, que envolvem não apenas a memória, visto que nela significam a representatividade e o esquecimento. [...] esquecimento ideológico: ele é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. [...], os sentidos apenas se representam como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa vontade (ORLANDI, 2009, p. 35). É central no funcionamento da memória seus modos de atualização, o modo como determinada materialidade corporifica em simbólico certos jogos de lembrança e esquecimento, sempre historicamente determinados. Se o que importa é considerar as materialidades da memória, sua inscrição em enunciados, é importante pensar que tais inscrições da memória, como vemos na colagem, funcionam atribuindo sentidos em determinadas condições históricas. Além disso, é preciso observar as atualizações da memória em relação às ordens do discurso (FOUCAULT, 2009) e, consequentemente, a partir dos modos de regulação, controle e dispersão nos regimes de discursividade, como o político, o artístico e o midiático. A arte de Geo Coelho desestabiliza certas vontades de verdade produtoras de realidades sociais de desigualdade e segregação. E isso se dá pelos deslocamentos de memória que a arte instaura, materializa, fazendo deslizar, pelo efeito metafórico, determinados significantes, realizando inversões, como as que se faz notar nas representações que remetem à bandeira do Brasil, que figura diferente na arte, como referência a uma governamentalidade que perpetua formas de exclusão, violência e negação da condição democrática. 41 Cultura e democracia Segundo Chauí (2008), a origem da palavra cultura vem do verbo latino colere, cultura significava o cultivo, o cuidado. O cultivo e o cuidado com a terra, com as crianças, com os deuses e o sagrado. Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação que conduz à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém; era fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de benefícios. No século XVIII, com o surgimento da Filosofia da Ilustração, a palavra cultura ressurge como sinônimo de civilização. Chauí (2008) também afirma que com o Iluminismo, a cultura tornou-se o padrão ou o critério que mede o grau de civilização de uma sociedade. Assim, a cultura passa a ser encarada como um conjunto de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite avaliar e hierarquizar o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução. Pouco a pouco, a cultura tornou-se sinônimo de progresso, o progresso de uma civilização passou a ser analisado pela sua cultura, e passaram a avaliar a cultura pelo progresso que trazia a uma civilização. No século XIX, constituiu-se a antropologia. Por tomarem a noção de progresso como medida de cultura, os antropólogos estabeleceram um padrão para medir a evolução ou o grau de progresso de uma cultura e esse padrão foi o da Europa capitalista. As sociedades passaram a ser avaliadas segundo a presença ou a ausência de alguns elementos (o Estado, o mercado e a escrita) que são próprios do ocidente capitalista e a ausência desses elementos foi considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluída. Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas “primitivas”. Em outras palavras, Chauí (2008) aponta que, com a modernidade, foi introduzido um conceito de valor para distinguir as formas culturais, dinâmica que ainda ressoa nos dias de hoje, pois muitos grupos e comunidades não possuem legitimidade de escrever sua memória e de fazer lembrar suas formas culturais, e muitas vezes, além de pouco visibilizadas, são discriminadas ou mesmo censuradas. A discriminação e o preconceito assolam muitos povos, sobretudo, aqueles com culturas e hábitos diferentes dos que a sociedade impõe como normal. Seja pelas formas de linguagem, nas relações com a economia ou em suas experiências pessoais, pessoas são excluídas e oprimidas, caso seus modos de expressão destoem do que é regulado e valorizado socialmente, como o próprio da cultura. Na colagem, podemos ver traços desse preconceito sofrido por pessoas que vivem em espacialidades da desigualdade no Brasil, sem as mesmas oportunidades de acesso a bens materiais e simbólicos, que lutam contra o preconceito e a exclusão diariamente. Ao fazer lembrar dos desafios e das formas de racismo vividos, 42 sobretudo, pelo povo negro no Brasil, a artista e ativista Geo Coelho traz em sua obra fortes críticas ao Estado, com relação ao modo como ele opera no Brasil. Ainda que expresso como direito fundamental na Constituição, dizer não é fazer quando se fala em cultura, sua produção e/ou do acesso a ela, pois o Estado opera de forma antidemocrática, desigual, centrado numa racionalidade capitalista neoliberal que transforma tudo em serviços vendidos e comprados no mercado e, portanto, em privilégios de classe, assim, não existe garantia dos mesmos direitos à cultura para todos e de forma isonômica. Para Chauí (2008), no Brasil a democracia é reduzida a um regime político que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais, mas que na sua concepção, democracia se trata de algo bem mais profundo, e a considera como: Forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vêlas discutidas, aceitas ou recusadas em público). Forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. (...) Forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). (...) Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, consequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de ser. (...) Única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. (...) Forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas (contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera “alternância no poder, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto (CHAUÍ, 2008. p. 67-68). E completa afirmando que para um país poder ser considerado democrático, precisa ter além de eleições, partidos políticos, e divisão dos três poderes, um funcionamento legítimo dessas instituições que acarrete igualdade de direitos para todas as pessoas, em todos os 43 segmentos. Podemos notar como a colagem postada por Geo Coelho, na página Cola da Preta, roga por uma sociedade realmente democrática. A colagem é um arranjo semiológico complexo, faz retornar e deslizar inúmeros jogos de memória, possibilitando ao olhar do analista do discurso inúmeros trajetos de descrição. Da colagem, sobressai o jogo imagético e semântico produzido entre aquilo que faz lembrar a bandeira nacional e a disposição, em primeiro plano, de uma garota negra erguendo o braço e de punho fechado. Entre esses dois arranjos na imagem, a arte opera sentidos entre a paráfrase e a polissemia (ORLANDI, 2008), em sua constituição, formulação e recepção. Na colagem, entre as imagens da bandeira e da garota perfila-se um trajeto temático em torno das condições históricas daqueles que estão, como anota a artista, na periferia da democracia, aqueles a quem a igualdade de direitos e de acesso não passa de textualidade na ratio juris. Entre o imagético e o verbal da arte, temos aquilo que Dondis (2015) aborda como sintaxe da linguagem visual. A discursividade cumpre sempre um movimento que se inicia com a formulação, passa pelas instâncias de circulação e chega à recepção, situando-se aí, grosso modo, a travessia dos sentidos, assim descrita por Dondis (2015, p. 85): Expressamos e recebemos mensagens visuais em três níveis: o representacional – aquilo que vemos e identificamos com base no meio ambiente e na experiência; o abstrato – a qualidade cenestésica de um fato visual reduzido a seus componentes visuais básicos e elementares, enfatizando os meios mais diretos, emocionais e mesmo primitivos da criação de mensagens; e o simbólico – o vasto universo de sistemas de símbolos codificados que o homem criou arbitrariamente e ao qual atribui significados. Mais do que uma verdade, que flutua sentidos, como nos lembra Foucault (2007), a discursividade possui uma história. É tarefa do analista fazer a história do enunciado, no caso, buscar entender como a colagem de Geo Coelho faz retornar, para redefinir, uma historicidade de adversidades no Brasil. Geo Coelho reproduz toda uma imagética de contestação a um Brasil opressor e de governamentalidade desfavorável ao trabalhador e mantedora da desigualdade de classes no país, efeito de sentido artístico e político correlacionado, por exemplo, ao saber sociológico produzido por Jessé Souza. Em A elite do atraso, Souza (2017) vai nos mostrar como determinadas práticas discursivas e não discursivas no Brasil culminaram com o imaginário social do “jeitinho brasileiro”, metáfora para o que o sociólogo chama de patrimonialismo, ideia-força que, segundo o autor, mascara as relações de saber e poder que perpetuam as formas de racismo e as desigualdades estruturais da sociedade brasileira. Ao seu modo, a colagem denuncia uma sociedade autoritária, na qual muitos só podem associar cidadania como um correlato, um resto das formas de dominação e dos privilégios de classe, historicamente perpetuados em nosso país. Ao levantar essa crítica, a artista retoma a estrutura do racismo nacional, mas a desloca e a subverte. É especificamente neste ponto 44 que a materialidade discursiva artística insinua outra vontade de verdade, constitui uma expressão de saber e de poder para provocar o olhar para vermos a possibilidade de outra sociedade em que a igualdade entre os diferentes é reivindicada, e, mais, sociedade com políticas de cotas, mais educação, emprego, menos pobreza e sem fome. A arte cumpre sua função social ao dar visibilidade à espacialidade de repressão e exclusão, em sua maior parte habitada por pessoas negras, que constituem a maioria da população brasileira, vivendo na mais completa condição de desigualdade. Até quando a violência, a exclusão, a opressão e a democracia falha irão vencer? Nos efeitos da arte colagem, jogos de memória retratam a realidade vivida pelos menos favorecidos, pelos pretos, pelos pobres, pelos índios, desempregados, sem teto, os sem acesso à cultura, à educação de qualidade e ao lazer. Na arte colagem de Geo Coelho, lemos elementos como a frase na bandeira do Brasil, que diz “vidas negras importam”, outro efeito metafórico, um slogan no lugar de outro, inscrição outra e protesto contra a violência e a opressão sofridas pelos menos favorecidos. Outro elemento visível é a busca por direitos, já que na imagem aparecem palavras como cotas sociais, educação, emprego, constituindo um trajeto temático de resistência e reivindicação: a maioria da população, que é negra, paga a conta de uma história nacional marcada por desigualdades. À minoria, não negros, mais privilégios. Uma outra inscrição linguística faz síntese na arte: “Até quando a violência vai vencer?”, esse trecho diz muito sobre o que foi escrito por Chauí (2008), pois mostra a violência que cai sobre os menos favorecidos, dos direitos que são roubados, da dignidade que lhes é arrancada, a negação do direito de ir e vir e das oportunidade que lhes faltam por conta de sua classe, de sua cor, de sua cultura, da violência que lhes é imposta, das vidas que lhe são arrancadas, tudo isso, que constitui o Brasil e ainda é chamado pela sociedade de “democracia”. E a imagem de uma criança preta, com a mão erguida pedindo por direitos retrata bem as ideias de Chauí (2008) sobre o que devia ser a democracia: direitos iguais para todos, equidade em todas as instâncias da experiência subjetiva, vidas tratadas com a mesma importância, sem a negação das formas de distinção entre as pessoas, sem desigualdade, sem opressão e sem preconceito. Ainda nos termos da filósofa brasileira, a cultura como o fazer criativo e político humano, como aquilo que dota de significado a experiência de um grupo, de uma classe, de uma comunidade e de uma nação, é um direito fundamental e um dos pontos mais visíveis por onde podemos pensar a fragilidade da democracia brasileira. Não por engano, é justamente este efeito de verdade e de resistência que se inscreve na colagem aqui trabalhada, pois há nela um ativismo cultural, uma exigência para que todos, sobretudo o que se subjetivam à margem, possam ter sua histórica escrita e visibilizada, legitimada. A arte é um não formulado com muito engajamento sócio-histórico, um jogo de saber e de poder contra formas de silenciamento de um racismo em sentido amplo que estrutura a cultura e as sociabilidades nacionais. 45 Racismo estrutural Antes de avançarmos mais na análise, é importante discorrer sobre outros conceitos ilustrados e problematizados na arte de Geo Coelho, como o racismo, que para muitos não existe, mas que se apresenta de forma direta ou indireta nas relações sociais, nas instituições e até na construção de uma sociedade. Almeida (2019) define que “o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento,” (ALMEIDA, 2019, p. 22), ou seja, a segregação é justificada pela raça do indivíduo ou grupo de indivíduos. O autor descreve em seu livro Racismo estrutural (Feminismos plurais), diferentes concepções para o racismo. A primeira delas é a concepção individualista, que compreende o racismo como um fenômeno individual, que poderia ser resolvido com a punição ou educação. A segunda é a concepção institucional, na qual o racismo também está presente nas instituições, pois elas “carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as instituições também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e grupos que querem assumir o controle da instituição.” (ALMEIDA, 2019, p. 27). Nesse aspecto, cabe observar que escolas e universidades internalizam o sistema opressor. Ou seja, os conflitos raciais também estão presentes nas instituições de ensino. Além disso, o racismo “se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam.” (ALMEIDA, 2019, p. 22). O autor considera que o racismo, além de ser uma forma sistemática de discriminação, manifesta-se de forma consciente ou não. Ou seja, a discriminação não acontece apenas quando há intenção, mas também sem que haja consciência dessa violência. Isso acontece porque o racismo não é apenas uma manifestação individual ou de um grupo específico, ou ainda uma “anormalidade” ou patologia de algumas pessoas, nem tampouco é combatido apenas com a responsabilização jurídica de um único indivíduo, como mostra a concepção individualista. O racismo, na verdade, vai além da ação individual e está presente nos diferentes setores da sociedade como uma construção, uma estrutura, por isso a dificuldade em combatê-lo. De acordo com a concepção institucional “o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do funcionamento das instituições,” (ALMEIDA, 2019 p. 26), pois estas atuam, mesmo que indiretamente, na reprodução dos privilégios e desvantagens de uma raça em relação a outra. A concepção institucional trouxe avanço nos estudos das relações raciais pois permitiu que o racismo fosse reconhecido como algo muito maior que a ação individual, já que está presente nas instituições, por sua vez, situadas numa estrutura social pré-existente cuja historicidade deve ser compreendida como de longa duração. Então, levamos em consideração que “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de 46 socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos.” (ALMEIDA, 2019, p. 31). Ou seja, o racismo é parte da ordem social e um problema nacional cuja historicidade ressoa em práticas discursivas e não discursivas atuais. Essa perspectiva descreve outra concepção do racismo, a concepção estrutural, na qual se defende que o racismo é decorrente da própria estrutura social e “a viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade.” (ALMEIDA, 2019, p. 33). Esse fundamento é ilustrado em diversos ambientes e situações, como a supremacia branca no controle das instituições e nos espaços de poder e prestígio, nas relações pessoais, na construção de estereótipos, nos discursos e atitudes onde o racismo aparece de forma velada ou na segregação social, que está articulada com o racismo. O racismo articula-se com a segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças em localidades específicas – bairros, guetos, bantustões, periferias etc. – e/ou à definição de estabelecimentos comerciais e serviços públicos – como escolas e hospitais – como de frequência exclusiva para membros de determinados grupos raciais (ALMEIDA, 2019, p. 24). De acordo com o autor, da mesma forma que em alguns ambientes há predominância de pessoas brancas, em outros acontece o contrário, as pessoas negras são maioria, como nas favelas retratadas na colagem de Geo Coelho. Provoca-nos a arte para o debate que coloca em causa a organização dos espaços de saber e de trabalho no Brasil, pois historicamente ainda não fizemos as rupturas necessárias em relação ao fato de que, nas universidades e nos postos de trabalho com melhores remunerações e condições laborais, a predominância é de pessoas brancas. Inversamente, o povo negro permanece sendo maioria entre analfabetos, em empregos com baixa remuneração ou desempregados. Segundo o IBGE (2019), a despeito da distribuição de renda e condições de moradia, nota-se que a quantidade de pessoas negras em condições abaixo da linha de pobreza é bem maior que a de pessoas brancas, assim como a taxa de analfabetismo é maior entre pessoas pretas. Já na representação política, onde os negros e pardos são apenas 24,4%, e nos cargos de gerência, onde há apenas 29,9% de negros e pardos, os brancos são maioria, mesmo que os negros e pardos representem 51% da população brasileira, como é destacado na materialidade discursiva artística em análise. Os pontos em destaque representam um trajeto temático que produz um grito de resistência na expressão política da professora historiadora Geo Coelho. Não é demais apontar a importância de se observar o contexto ou as condições históricas de possibilidade (FOUCAULT, 2007) onde a artista está inserida, pois é o lugar de fala assumido, a função enunciativa de ativismo político em favor das questões e conflitos da população negra, aquilo que possibilita o surgimento de uma arte que serve como denúncia das desigualdades sociais. Além disso, a arte provoca efeitos de sentido que são possíveis a partir do conhecimento ou da vivência dessas injustiças, um modo de pensar assumido na colagem. 47 Esses dados nos fazem refletir se os políticos que colocamos no poder realmente representam a população brasileira ou apenas a parcela que detém os privilégios e, dessa forma, refletirmos o que estamos fazendo para que o poder deixe de ser centralizado e a dimensão da representatividade deixe de ser uma utopia democrática. Além disso, podemos a colagem em seus efeitos de sentido permite refletir a questão das cotas raciais como medida de reparação aos danos causados à população negra ao longo da história. Como consequência do racismo, temos a segregação de um povo em ambientes e condições menos favorecidas, produzindo uma geografia nacional visivelmente perpetuadora de desigualdades. Esse cenário de desigualdades, construído ao longo de muitos anos, torna a vida dos pretos muito mais difícil. Como conta ainda Almeida (2019), a atualidade faz ressoar as sequelas do racismo estrutural e das práticas de discriminação direta e indireta no decurso da história, produzindo uma estratificação social, passada de geração em geração, “em que o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado.’’ (ALMEIDA, 2019, p. 23). Portanto, torna-se naturalmente mais difícil a ascensão social e o sustento material para pessoas negras, não por falta de capacidade, mas em consequência de uma segregação que acontece desde a chegada dos pretos ao Brasil, pela condição de escravizados na qual foram colocados e pelos inúmeros impactos históricos do discurso e das práticas em torno de uma infundada e irracional supremacia branca. Discurso de resistência na colagem de Geo Coelho Para Vargas e Souza (2011), a colagem tem sido, nos últimos 20 anos, uma das marcas da linguagem digital. Com o uso da internet temos acesso cotidianamente a esse tipo de arte. Neste dinamismo das linguagens digitais, é preciso levar em conta o sincretismo do verbal com o imagético, posto que dessa dualidade constitutiva derivam o design e os sentidos em enunciados como o que estamos analisando. Sobre o design, Vargas e Souza mencionam que Desde a expansão dos meios de comunicação de massa no século XX, o design tem se definido em função das tecnologias de artes gráficas, que promoveram a manipulação e a colagem de elementos heterogêneos de origens diversas como procedimentos básicos de composição (VARGAS & SOUZA, 2011, p. 57). Entretanto, a colagem já existia antes mesmo da tecnologia, visto que era possível ver esse tipo de técnica empregada em pinturas, como por exemplo a obra Fruteira e copo de 1912, feita por Georges Braque, em fotografias, vídeos e etc. De acordo com Vargas e Souza 48 (2011), o processo da colagem ocorre por meio de duas ações, a fragmentação e a junção desses fragmentos. A tecnologia contribuiu bastante para que esse tipo de arte viesse a ser ampliado, desenvolvido e exposto nas diversas plataformas digitais da internet, como o Facebook, o YouTube, o Instagram, entre outras. Na colagem feita por Geo Coelho, podemos ver a contundência de um discurso reflexivo quanto às questões que envolvem o racismo. Na imagem, vemos diversos elementos que envolvem problemáticas do racismo, retomadas e criticadas pela arte como exercício de uma enunciabilidade antirracista. Atentando-nos à garota negra com um punho erguido, vemos materializar-se na historicidade que lhe é própria um gesto que já nasce representando modos de contestação e de protesto. Segundo Silva (2020, p. 45), “[...] na arte gráfica de resistência, a imagem da mão foi e é um dos símbolos mais utilizados e inclui o punho cerrado ou punho erguido.”. A arte de Geo Coelho é grito de resistência entoado pelo povo negro. A figura da criança negra em sinal de resistência representa a contrapartida do povo ao racismo institucionalizado e estruturado, consequência da escravização de seus antepassados. Na camisa da criança, um nome político que se tornou simbólico, o de Marielle Franco, ex-vereadora preta e favelada, que lutou pelos direitos do povo e foi assassinada. Ainda sobre a questão da utilização e simbologia do punho erguido ou cerrado, Silva (2020) menciona que Destacamos sua utilização no campo das artes gráficas de protesto, que se perpetuou no punho militante da esquerda e da direita, nas imagens de mãos de movimentos antirracistas e feministas e também como ferramenta gráfica para o capitalismo e grupos conservadores. O punho tornou-se universal e o contexto passou a ser crucial para entender seu significado (SILVA, 2020, p. 63). O símbolo também é associado ao movimento comunista. Porém, no contexto dos movimentos sociais ele ganha um sentido diferente, que não se resume a um sistema político. Sendo assim, o punho fechado tem uma significação universal que entra em diálogo com nossas memórias e nos comunica sobre a resistência de determinado grupo ou ideologia, seja na luta antirracista, antifascista ou outros movimentos. Portanto, quando aplicado ao contexto da arte de Geo Coelho, o punho cerrado na performance da garota produz um efeito de sentido em prol do movimento de resistência antirracista em favor da população negra. Além do elemento mencionado anteriormente, na arte encontramos um recorte de uma fotografia da favela, como forma de trazer à memória as periferias brasileiras e as problemáticas sociais que a envolvem. No funcionamento dessa expressão política da arte, fica ressaltada, a dinâmica da correlação entre os significantes formando um todo dotado de sentido, uma atualização e reformulação das estruturas sociais, algo que só é possível ler na correlação com o mundo, com o presente, pois é à nossa temporalidade e espacialidade que a arte de Geo Coelho faz referência ao enunciar uma crítica. 49 Na bandeira do Brasil, no lugar onde costumamos ver a frase “Ordem e progresso”, temos em destaque a frase “Vidas negras importam”, como forma de protesto a todo o processo de inferiorização das vidas dos pretos e das pretas do Brasil, que não pode ser caracterizado como ordem nem progresso. A frase representa um movimento iniciado com a comunidade afro-americana, com a frase original “Black Lives Matter”, e tornou-se universal. Nesse outro efeito metafórico, inscreve-se outro jogo de memória, que torna visível a crítica aos projetos de governamentalidade nacionais que cada vez mais produzem formas de racismo e desigualdades sociais, num país onde os ventos da escravização infelizmente ainda sopram. De acordo com o historiador Fausto (2013), em obra na qual escreve sua história do Brasil, o autor menciona que no decorrer da escravização africana ocorrida no Brasil Colonial, cerca de quatro milhões de africanos foram trazidos para cá. É importante mencionar também que além dos africanos, os indígenas eram escravizados e trabalhavam em condições desumanas, historicidade que não conheceu rupturas significativas no que concerne, sobretudo, ao modo como as subjetividades dos pretos e dos índios são colocadas em discurso fora dos seus referenciais simbólicos e dos seus espaços de saber e de poder. Diante disso, é nítido o quanto a escravização deixou sequelas que remanescem até os dias de hoje nas formas de um racismo estrutural. A metaforização no deslize de “Ordem e progresso” para “Vidas negras importam”, constrói como efeito de sentido o clamor a uma nova ordem e progresso, na qual a valorização da população negra do Brasil seja efetivada e ampliada. Ainda observando os elementos constituintes da bandeira, vemos a mira de uma arma sobre a bandeira do Brasil, que se encontra com muitas perfurações de tiros, que fazem o sangue escorrer sobre ela, trazendo à tona a violência ao povo negro como uma “mancha” na história do país. A problemática da violência e do derramamento do sangue do povo negro é algo que ocorre desde a época da escravização e ainda permeia os dias atuais. As balas no lugar onde normalmente há estrelas representam a violência contra esta população e grande parte dessa violência vem do sistema policial, mesmo com a pressão dos movimentos sociais e a repercussão dos casos de homicídio, principalmente de jovens. Vale lembrar que as violências não se resumem a tiros ou assassinatos, há violência também na falta de oportunidades, no preconceito e na falta de reparação de toda a problemática em torno das consequências da escravidão e do racismo estrutural. A bandeira do Brasil é reconstruída, pois, com elementos e questões da atualidade centrais para o país, construído em cima de corpos negros, com um sistema que mata seu próprio povo. Sendo assim, a imagética das balas em lugar de estrelas metaforiza táticas de governo que produzem a violência nas favelas. 50 Além de trazer à tona as violências cometidas com o povo negro brasileiro, a colagem mostra algumas informações que servem como pilar para um discurso de militância. As frases estão com fontes de letras diferenciadas, trazendo destaque às problemáticas mencionadas. Podemos ler na imagem “51% da população do Brasil é negra e a outra metade tem o dobro de oportunidades”. O dado revela a injustiça social com a grande parte da população e a centralização do poder pela branquitude, o que justifica o discurso de defesa das cotas raciais. Dos elementos linguísticos que compõem a colagem, vemos também as palavras “Pobreza” e “Fome”, que se referem às condições nas quais a maioria dos negros estão submetidos atualmente na sociedade brasileira. Além do discurso de denúncia à violência, às desigualdades e ao racismo, as frases e temáticas que compõem a imagem fazem reivindicações importantes, como já antecipado acima, como “Cotas raciais”, “Educação”, “Emprego” ou a frase “Até quando a violência vai vencer?”. As palavras “Democracia e periferia” nos convidam a pensar sobre essa relação. Facilmente é percebido o efeito de sentido pretendido pela autora da arte, ao interpretar a realidade dos espaços que retrata, pois as condições em que vivem e resistem as pessoas das periferias certamente não possibilitam a construção da ideia de país democrático. Enquanto uma pequena parcela da população ostenta os maiores salários e as melhores condições de trabalho, grande parte da população vive à margem e trabalha muito mais apenas para garantir a sobrevivência, muitas vezes sem a possibilidade de ter momentos de lazer ou garantir os bens materiais e simbólicos que necessita. Além disso, muitas vezes são encarados socialmente como bandidos e assassinados pela polícia injustamente. Não à toa, as taxas de violência e os casos de homicídio da população negra são bem maiores em comparação a população branca. Segundo o IBGE (2019), em todas as faixas etárias, os negros têm um número de mortes por homicídio bem maior que os brancos, com destaque aos jovens pretos e pardos de 15 a 29 anos. Para eles, a taxa chegou a 98,5% em 2017, enquanto para os jovens brancos era 34,0%. Considerando jovens pretos e pardos do sexo masculino essa taxa chegou a atingir 185,0%. Observamos que os dados são do informativo sobre “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE (2019). Os respectivos dados, que fazem parte da historicidade do enunciado artístico estudado, mostram e comprovam que há uma grande diferença e desvantagem no que tange ao tratamento à população preta que vive no Brasil em comparação com a população branca. Na periferia vivem as pessoas de baixa renda e as condições do local, que figuram na colagem, já demonstram algo oposto ao que seria democrático no acesso a moradias no Brasil. Como mencionamos anteriormente, de acordo com Chauí (2008), o conceito de democracia no Brasil acaba se resumindo na maioria das vezes ao processo eleitoral, quando na verdade o conceito de democracia possui uma verticalidade histórica muito forte, devendo expressar uma disposição de igualdade em todos os aspectos da vida humana. 51 Considerações finais Partindo de uma escolha diante dos temas relevantes da política e do status democrático no Brasil, trouxemos, além do ponto de vista de importantes autores, que fundamentaram nosso ponto de vista, demos visibilidade à arte colagem da professora e artista Geo Coelho, da página Cola da Preta. Esta escrita de análise do discurso resultou de uma descrição minuciosa das temáticas presentes na arte, de modo que encontramos muitos elementos de memória e historicidade entre as categorias e discursividades presentes na materialidade, além do poder que a imagem tem de descrever vários problemas existentes em nossa sociedade, tornando possível apreendermos uma correlação entre o saber da arte como crítica e desconstrução do discurso racista e o saber acadêmico que atravessa as obras que tomamos como fundamentação teórica. Evidenciamos, portanto, na prática discursiva artística, uma política do dizível e do visível que atualiza memórias e estruturas sociais para questioná-las, lançar sobre elas uma torsão de saber e poder. E o faz sob a forma de uma grande interrogação, como ato de resistência e de protesto cada vez mais necessário nos dias atuais. O saber que a colagem de Geo Coelho atualiza e assume é nitidamente uma expressão de antirracismo, um lance de retorno e desestabilização de estruturas sociais e históricas há muito em voga no Brasil. O diagnóstico e a crítica do presente são dois atos materializados na arte aqui trabalhada. Desdobra-se, a partir daí toda uma enunciação reflexiva, uma fala de dentro, de uma mulher, negra, ativista e professora de história, alguém que nos deixa como mensagem última e primeira a via do esclarecimento político e a postura sempre ávida para a crítica ao cenário político e democrático brasileiro. Permaneçamos em alerta, engajados teórica e socialmente na luta por melhores condições de existência e por uma vida mais artística, por mais saberes e atos de resistência e de contrapoder, reclamando políticas que possam realmente colocar a população negra no centro positivo das formas de governamentalidade. Referências ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. 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O estudo conta com a colaboração de pesquisadores (as) de cinco universidades (UFRJ, URRJ, UFABC, UFPB, UFCG), e tem como objetivo situar de que maneira as greves dos canavieiros da Zona da Mata Pernambucana e as greves do ABC de 1979/1980 paulista constituíram-se em lutas inovadoras, com práticas que estavam envolvidas numa dinâmica mais ampla da sociedade brasileira por redemocratização e, sobretudo, por maior justiça social. O presente artigo tem o propósito de resgatar a memória da organização sindical no nordeste canavieiro pela ótica das relações sociais de gênero e da memória da participação das trabalhadoras rurais, que são analisadas aqui sob o parâmetro das assimetrias entre os gêneros, destacando o aspecto relacional da interação de homens e mulheres no movimento de trabalhadores rurais. Cabe ressaltar que a constituição da classe trabalhadora no campo do nordeste brasileiro, sua cultura, tradições, são enredadas, tecidas em relações sociais de opressão, mas também eivadas de reciprocidade, de compadrio, que escapam as análises estritamente econômicas, ou dos analistas “citadinos” (apesar da falsa dicotomia entre cidade e campo, visto que muitas tradições do campo também aparecem na classe operária das cidades, dada as migrações ocorridas no Brasil). https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-4 54 Inspirados na análise de Thompson (2012), considera-se que a classe de trabalhadores/ as rurais no nordeste brasileiro é constituída por meio das tradições. Ao presenciar os trabalhadores e trabalhadoras rurais reunidos na pesquisa Memórias Canavieiras, realizada em Pernambuco, identificamos um sindicalismo que tem lugar para os afetos, para as emoções: o canto, a poesia, a religiosidade. O grupo de mulheres e homens no encontro realizado pela equipe de pesquisa em Carpina/PE evidenciou memórias de uma longa trajetória de lutas contra a opressão dos patrões, mas também uma rede de solidariedades, de amizades antigas, de casais de sindicalistas. Nesse sentido, cabe salientar que os sindicatos rurais não possuem somente o objetivo político e instrumental de defesa das condições materiais de existência. Apesar de que, no nordeste canavieiro, essa é uma questão de vida ou de morte, dada as condições de miséria experimentada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais, em decorrência da concentração fundiária, da herança do escravismo, da violência, da expropriação dos pequenos proprietários. Nos municípios do nordeste brasileiro, mais particularmente em Pernambuco, o espaço do sindicato é tido como um porto seguro para os pobres. Nos casos de violência praticadas pelos usineiros, os trabalhadores não buscam a delegacia, pois, por muito tempo, o Estado, a polícia estavam a serviço dos grandes usineiros, e, desse modo, os trabalhadores buscam os sindicatos. Para resolver conflitos de diversas ordens, o ponto de referência é o sindicato, que assume uma função de destaque nos pequenos municípios. Mesmo quando, em outras épocas, o sindicato assumiu serviços odontológicos, educacionais, isso não significou que tivesse um caráter estritamente assistencialista. Na verdade, ao incorporar tais tipos de atividade, os sindicatos rurais tentaram ressignificar o que muitas vezes lhe foi imposto pelo Estado e supriu, mesmo precariamente, a completa ausência de direitos sociais básicos, negados aos pobres: saúde e educação, dentre outros. Ao assumir esse papel, desde o período das Ligas Camponeses, o sindicato passou a ser uma ameaça política, também pela concorrência a função antes exclusiva dos patrões de “oferecer dádivas” aos trabalhadores, no sentido que Marcel Mauss (1925, trad. 2012) dava a esse termo, tais quais: caixões, dentista, proteção, dentre outros. Marcel Mauss elucida que as dádivas podem explicar a sociedade em seu conjunto, porque reúnem questões religiosas, políticas, econômicas, matrimoniais e jurídicas e, portanto, não podem ser vistas somente no seu aspecto econômico, mas como um fator que pode falar muito da sociabilidade de um povo. No tocante às assimetrias de gênero, o sindicalismo rural reproduz os valores de uma sociedade androcêntrica. No contexto da Zona da Mata canavieira, tomamos as noções de Bourdieu (2002), da dominação masculina e também da honra, realizando uma socioanálise tanto dos dominadores explícitos, violentos, que expressam por meio da força física as 55 opressões de classe e gênero, a exemplo das práticas de repressão adotadas pelos usineiros, assim como da dominação que se expressa, na própria classe trabalhadora, por meio da violência simbólica, da violência suave, invisível, imperceptível às suas próprias vítimas, experienciado mesmo no interior do movimento sindical, por exemplo. No que se refere ao conceito de gênero, Scott (1989) possibilita alçar as relações de gênero a uma categoria de análise e, desse modo, superar a limitações teóricas, por representar uma categoria própria dos estudos feministas. Para Scott (1989, p. 21) “gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseados nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primeira de significar as relações de poder”. O gênero, nessa perspectiva relacional, constitui-se em uma categoria de análise articulada a outros arcabouços categoriais, tais como: classe e raça. Desse modo, possibilita promover uma socioanálise das questões levantadas pelos oprimidos, buscando o entendimento do sentido da opressão (SCOTT, 1989, p. 4). Com inspiração nos estudos de Lobo (2011), reflete-se sobre a dificuldade do movimento operário incorporar a questão das operárias, e articular os estudos de classe e gênero. Permanece uma tendência em considerar a classe operária homogênea, como um comportamento unívoco. Essa homogeneização da classe é sustentada por uma concepção que não leva em consideração as situações concretas de trabalho, a vida cotidiana e a experiências determinadas dentre um conjunto de relações sociais. Para explicitar melhor esse contexto, retoma-se um breve histórico das lutas rurais e as relações sociais de gênero na constituição do sindicalismo rural. Na Paraíba e Pernambuco, buscando a devida inserção das mulheres na história do sindicalismo, sem necessidade de apartá-la como uma história específica, sem participação efetiva nas grandes lutas travadas pelo sindicalismo pernambucano. Formação da cultura dos trabalhadores/as rurais e sindicalismo: da invisibilidade das mulheres, a cena política No nordeste canavieiro, evidenciou-se nesse artigo os fortes traços de exploração de classe, de dominação de gênero e de discriminação racial, herança de uma sociedade escravocrata, com grandes latifúndios em mãos de uma minoria poderosa e uma maioria de trabalhadores/ as com a cidadania negada, se comparado aos trabalhadores urbanos brasileiros, que têm institucionalizado em lei seus direitos sociais desde 1943, com a CLT, enquanto os trabalhadores rurais, os conquistaram somente em 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural. 56 No tocantes às relações de gênero, a Igreja católica conformou um puritanismo ao papel da mulher e mãe, endossando um imaginário social também existente, onde a valentia e uma cultura androcêntrica reforçam os valores da virilidade e honra masculina, inclusive entre os homens das classes dominadas. O espaço da mulher do campo esteve sempre numa condição de subalternidade, seja entre as mulheres dos poderosos, seja nas casas das famílias pobres. A situação de classe provocou relações de exploração entre as próprias mulheres, na medida em que as ricas, muitas vezes, tratavam as serviçais quase como escravas. No caso das trabalhadoras rurais pobres, o trabalho está vinculado aos seus papeis de dona de casa e do cultivo no roçado de subsistência. Nas sociedades com valores tradicionais, os papéis são predeterminados, não há questionamentos porque as funções familiares são tidas como naturais e os fatos da vida familiar: o nascer, casar, ter filhos, o trabalho na roça, o morrer são repetidos como se as vontades individuais não fossem importantes (SARTI, 2006 p. 43). O homem é tido como o chefe da família e a mulher como chefe da casa. Ao chefe da família é dada a função de providenciar o sustento e fazer a mediação com a sociedade, principalmente nos assuntos em que honra familiar está em jogo, como em questões materiais, tais como comercialização de produtos agrícolas. O trabalho da mulher na roça era tido entre as famílias pobres para aqueles que se encontravam em extrema miséria, por isso encarado como humilhante. Somente as viúvas e solteiras sem pais e irmãos eram aceitas no trabalho de corte de cana, mas em nada era um motivo de orgulho. A exploração patriarcal tida como horrenda, conforme o modelo de organização societária moderna é naturalizado e a mediação dos homens nos assuntos mais corriqueiros preserva a honra familiar nas famílias pobres do campo. No trabalho entre os homens pobres, o papel de provedor é questão de honra, como afirma a canção de Fagner: “E sem o seu trabalho, o homem não tem honra e sem a sua honra, se morre e se mata, não dá para ser feliz, não dá para ser feliz [...]’’. Desse modo, as atribuições das trabalhadoras rurais são vinculadas a casa e ao roçado de subsistência, se houver. No eito o trabalho feminino é encarado como uma “ajuda”. A mão de obra feminina e as crianças e jovens não tem acesso ao salário. Somente o homem, era considerado o representante da família e recebe o salário. Como os direitos dos trabalhadores do campo só foi considerado em meados dos anos 1960, a condição do próprio trabalhador homem era de exploração extrema. No trabalho do eito da cana, o máximo permitido às mulheres era semear cana e o adubo. Para o trabalho da limpa e o corte da cana era preciso autorização do marido (SIGAUD, 1979, p. 64). 57 A partir dos anos 1960, essas marcas históricas de sujeição da mulher no campo também impregnaram as práticas de um sindicalismo nascente. O sindicalismo do nordeste canavieiro, nos seus primórdios, reproduziu as relações sociais de gênero inscritas no trabalho rural. No sindicato, o trabalho das mulheres era também considerado uma “ajuda” das esposas e filhas. O Partido Comunista já possuía uma formulação de discurso de participação das mulheres no sindicalismo rural, mas considerava uma questão secundária em relação aos desafios da luta de classes. Nos anos 1950, já existia a Federação das Mulheres do Brasil, apoiada pelos comunistas. (ABREU E LIMA, 2003, p. 223). No campo, os sindicalistas consideravam que se homem já era sindicalizado não precisaria a mulher se filiar porque participava como sua dependente. Ademais o sindicato não era visto como um lugar adequado às mulheres. A FETAPE não se preocupava com a participação das mulheres no mundo sindical. Mas o fato é que na qualidade de esposas, funcionárias foram participando da vida sindical e, ao se inserir nas lutas passam a perceber a própria opressão experimentada no espaço do sindicato. Era um paradoxo que foi sendo percebido pelas trabalhadoras rurais. Os trabalhadores lutavam contra a opressão dos patrões, mas eles próprios também eram opressores. No tocante às esposas, em muitas situações a participação política ultrapassava os limites da “ajuda” delimitados pelos homens. Foi o caso de Timbaúba, em Pernambuco, 1968, quando o presidente Severino Manoel Soares foi espancado e sua esposa Maria ficou à frente do sindicato. Também teve Osana Carlos de Santana, mulher de Joaquim Camilo Santana, que participava das atividades políticas e sindicais e inclusive foi presa na ditadura militar (Abreu e Lima, 2003, p. 224). A Paraíba, por outro lado, foi palco de lutas importantes e significativas para os trabalhadores do campo, o que significou a adesão destes trabalhadores às organizações de enfrentamento contra a ordem estabelecida. Na cidade de Sumé, por exemplo começaram a se formar as Ligas Camponesas com o líder João Pedro Teixeira e sua esposa Elizabete Teixeira, o que influenciou várias cidades e Estados na luta pela Reforma agrária. Alguns anos depois, na cidade de Alagoa Grande, a luta da sindicalista Margarida Maria Alves, torna-se símbolo da luta pela terra. Nas décadas de 1970-1980, a diversificação de espaços ocupados e obstáculos a cargos de comando, apresentavam-se para as mulheres com poucas alternativas profissionais e com diferenças salariais entre os sexos. Foi a partir destas décadas que começaram a se tornar mais presentes o debate sobre as particularidades do trabalho das mulheres no Brasil, e , como a inserção feminista nas lutas sindicais se tornaram relevantes para a própria estrutura política do sindicalismo. Desse modo, no presente artigo, pretendese observar em que medida a memória das lutas das mulheres do Nordeste Canavieiro contribuem para as pautas feministas na contemporaneidade. 58 Uma das nossas principais entrevistas na Paraíba foi um das lideranças sindicais de Alagoa Grande, Soledade. Por meio de uma filmagem realizada pela equipe da pesquisa, reviveu a memória das lutas engendradas naquele território. Inicialmente, entra no movimento sindical através da influência de uma das companheiras de luta chamada Penha, que realizava o movimento sindical juntamente com seu esposo e que começava aos poucos a debater pautas sobre gênero no movimento rural. A necessidade de lutar pelo direito à terra e sua paixão pela música levou Soledade a procurar o sindicato e a se inteirar da história enquanto recurso para lutar por seu direto à vida e à liberdade. Recém separada devido à violência doméstica que sofria, Soledade1 chega a Alagoa Grande-PB na década de 1970 com duas filhas e grávida, segundo ela: Quando eu saí de Bananeiras, foi quando me separei, com duas crianças e grávida de uma. Quando chego em Canafístula (Distrito de Alagoa Grande) com três meninas e com uma viola, foi aquele preconceito. Aí pronto. Tinha mulher que não olhava nem pra minha cara. Aí passava o dia trancada. Eu devo muito a Penha. Quem me libertou foi a Penha. Eu era a ovelha negra por causa da viola, se fosse no tempo da fogueira, eu tinha ido pra fogueira. Aí derrepente eu pego uma viola. Eu fui a vergonha da família, porque era visto como coisa de homem, de vagabundo, de malandro, aí derrepente virei a vagabunda (risos) (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019). Soledade recupera a memória das lutas das mulheres por espaço político no sindicato. No mesmo movimento de rememorar as lutas pela participação no sindicato, vai reconstituindo participações de militantes relevantes para a experiência da Paraíba. Margarida Alves dispensa apresentações, a companheira de Soledade de Alagoa Grande, que pagou com sua vida na luta pelos direitos no campo, tornou-se símbolo das trabalhadoras rurais e, sua disposição para as lutas serve de inspiração do nordeste canavieiro e no Brasil, reunindo muitas margaridas em marchas consubstanciadas em lutas por igualdade de gênero, desenvolvimento sustentável, agroecologia e tantos temas caros à vida no campo. “[...] Aí quando eu cheguei aqui tinha aquele preconceito de que os homens quem imperava nos sindicato. E a preocupação da companheira Penha e de Margarida também, é que nas reuniões e nas assembleia que nós tínhamos.... hoje os sindicatos mudaram. Mas no começo, na época, todo terceiro domingo do mês nós tínhamos uma reunião, e no final do mês uma assembléia, mas todo terceiro domingo do mês, nós tínhamos uma reunião com os trabalhadores. E nessas reuniões só se viam os homens, mulher não, né. Então a preocupação de Margarida e da Penha é que não tinha mulher. Aí o que é que os homens respondia? que ‘mulher não sabia falar’, que ‘mulher ia ver o que em sindicato?’ ‘Não sabia falar, não precisava daquilo’. Então bastava ser o homem filiado ao sindicato que a mulher era dependente dele. Então a gente foi lutando e 1 Texto publicado nos Anais de evento realizado em Campina Grande 59 quebrando esse tabu, hoje nós temos um grande número de mulheres sindicalizadas” (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019). Não muito conhecida como Margarida Alves, mas igualmente importante para a militância das mulheres de campo, a figura de Penha é constantemente relembrada por Soledade. Sua morte em acidente de carro junto com a professora Elisabete Lobo é rememorada por Soledade como um momento muito triste em sua vida “foi difícil de acreditar e de superar”. Penha está presente na vida de Soledade como a companheira que alugou sua primeira casa, a companheira que chamou para participar das lutas por meio de sua viola, visto que precisava sustentar suas filhas, a companheira das lutas por direitos em Brasília. Penha se foi, mas sua memória está viva como a de Margarida Alves no cotidiano das mulheres lutadoras da Paraíba e do Brasil. Relembrar suas lutas é encontrar o móvel das lutas para novas gerações. Essas mulheres foram pioneiras como dirigentes sindicais na região. Assumindo postos no sindicato de trabalhadores rurais, antes impensáveis para as mulheres. Em universo de primazia masculina como o sindicato de trabalhadores rurais, assumir a presidência do sindicato significava insurgência com uma ordem opressora, inclusive entre os próprios trabalhadores rurais. Recuperar o significado dessa conquista é recolocar continuamente as possibilidades de conquistas por uma maior equidade de gênero no universo rural, local comumente associado a resistente às mudanças de costumes. Para nossa entrevistada, participar do sindicato foi uma experiência significativa: “Quando me separei que vim pra cá (Alagoa Grande), já vim com a cabeça virada nas lutas. Quando cheguei aqui pensei ‘vou me filiar’ [...] Quando fui me filiar, quem tava era Zé Horácio, não era Margarida ainda que tava na presidência... Aí começou a me pedir documentos, eu disse: ta bom! Fui em casa e peguei tudo que era papel, das crianças, de saúde e fui logo com raiva: ‘Aqui, só ta faltando a reservista, mas nunca vi mulher ter reservista!’. Aí ele começou a rir [...] Depois da morte de Margarida, nós vimos a necessidade de criar um grupo de mulheres aqui, aí criamos o MMB, que era Movimento das mulheres do Brejo, no final de 83, pra 83,por aí assim [...] Aí foi quando a gente começou a trabalhar com várias organizações. Em 92 foi a morte da Penha, que morreu com a professora Beth Lobo. Então a gente começou a ter dificuldade porque os últimos projetos passavam pela mão da Penha e não tinha prestado contas quando morreu. Aí foi difícil fazer parcerias. Eu também fiquei muito abatida com a morte dela. As parcerias diziam que era difícil porque tinha muitos movimentos, aí davam preferência pro mais antigo. Então receberam o convite de participar junto com o MMP – Pipirituba, eles tinham casa própria, aí ficou mais fácil, unificamos as lutas. Em todos os municípios fazíamos eventos, saúde da mulher, saúde alternativa, plantas, feminismo. O MT ainda continua, fraquinho, com essas crises que tão aí, aí os projetos quase não são aprovados. MMTR – Nordeste também fazemos parte, articulando. Eu era da articulação nacional por muito tempo desse. Também tinha o MMC: movimento de mulheres campesinas. Também fiz parte, quando tinha reunião ia pra lá. Fui coordenadora (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019). 60 A discriminação da mulher separada e sozinha não inviabilizou a entrada nas lutas sindicais: Aí quando chego, com a viola, com as meninas e sem marido, as mulheres só faltavam trancar os maridos achando que eu ia roubar os maridos delas. Aí eu tocava na sexta, sábado e domingo. Aí ficava só com uma janela aberta em casa, aí Penha foi falar comigo e disse “mulher, né assim que você vai dar resposta ao povo não, vem pro movimento, vamo pra luta, mostra que tu não vai pegar marido de ninguém não. Abre essas portas. Aí eu disse “Mas Penha, eu tenho três criança, tenho que dar conta, eu tenho que sobreviver com a viola. E ela disse: “vamo fazer os seguinte: nos eventos, tu vai e a gente te ajuda”. Aí a gente fazia um evento de três dias, que dava umas 60 mulher, e ela dizia: “tu vai, participa, leva a viola, canta pra animar e no final, a gente te ajuda com as compras”, aí o que sobrava das compras, ela me dava, pra mim e pra Maria miúda, que era outra que precisava. Aí eu fui gostando, fui entrando, entrando e fiquei. Pra minha família era assim: Papai não era muito chegado à agricultura não, ele era fiscal de rodage, funcionário público. Meu primeiro violão, papai me deu de presente. Já mamãe, ela gostava da poesia né, mas pra filha dela, pra princesa dela essa fama de vagabundo, ela não queria. No passado era tanto preconceito na escolha da arte. Ser escrava do lar, do sujeito, essa era a saga da mulher. (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019) À medida que revelava suas lutas pessoais para a criação de suas filhas, separada em um tempo em que imperava o preconceito em relação as “mulheres separadas”, “artistas”, “violeiras”, Soledade relata que tinha dois caminhos para escolher: o primeiro era o de sucumbir à pressão social e, nesse aspecto, sua fala foi categórica: inicialmente eu fechava até as janelas porque as mulheres tinham medo de mulheres separadas roubarem seus maridos”. Mas a luta revelou possibilidades novas, as companheiras, principalmente Penha sua principal incentivadora lhe falava:” abre essas janelas Soledade, vem para a luta, essas mulheres vão ter que aceitar que tu és uma mulher decente e de luta”. A escolha pela luta foi paralela à sua arte de superação do preconceito de gênero, por meio de sua viola garantiu o seu ganha pão, cantando e embalando com sua viola as lutas inesquecível da Paraíba Canavieira. Nesse contexto, através da arte, Soledade sente a falta de representação nos sindicatos no que se refere aos direitos específicos da mulher e junto às suas companheiras inicia um movimento de articulação para este eixo, filiando-se, então, ao sindicato e participando à medida que conseguia. Em relação aos ciclos de greves e à participação das mulheres relata o seguinte: 61 Na greve, os latifundiários naquela perseguição, corria atrás de trabalhador, a Penha ainda apanhou do povo da usina. Eles levavam revólver, o que diziam que foi o mandante da morte de Margarida. Comigo nunca aconteceu não, porque em 79 eu tava participando com a viola, não tava tão dentro da luta, eu cantava. Eles diziam que iam botar fogo no sindicato, foi um tempo difícil. Alguns anos mais tarde, a participação e liderança de Soledade se solidificam ainda mais com a mesma se tornando presidente do sindicato. A mesma relembra momentos de luta: Antes da Marcha das margaridas (meio que nos anos 90), era tanta mulher na frente do palácio, a gente tava lá com fogão, com panela, a gente foi pra ficar, a gente foi chamar eles pra votar no salário a maternidade e não podia chegar perto deles. Da Paraíba tava o sindicato de Araçaji e de Alagoa Grande.... e a polícia sem deixar a gente entrar (no Congresso Nacional), a gente recuou, pensou numa estratégia, aí entramos de uma em uma e diz no balcão que vai pra tal gabinete, aí a gente foi, ganhava um crachá como visitante, se escondia e entrava, isso depois de uma seleção de mulheres né. Aí a gente se reuniu lá dentro, o grupo todo de mulheres e foi pra plenária. Quando um delegado votava contra a gente vaiava, quando votava a favor, a gente batia palma. Aí queriam botar a gente pra fora. Tinham trabalhadoras que tinham 7, 8 meses que tinham encaminhado a solicitação e não tinham recebido resposta. Aquilo me deu uma raiva... porque no máximo, 3, 4 meses, todos os pedidos eram analisados e respondidos se sim ou não, aí eu pedi a palavra, me identifiquei que “sou da terra de Margarida Maria Alves” e queria dizer pra vossa senhoria que sou presidente do sindicato, o mesmo que Margarida foi, e temos companheiras que encaminhou a documentação solicitando o benefício e não obteve respostas e eu não esperei ele me chamar de mentirosa não, eu disse “assim que eu chegar à Paraíba, lhe mando as provas”, ele disse “minha amiga da Paraíba, aguardo as provas”, eu disse “pode deixar, assim que eu chegar, lhe mando”, aí voltei, botei um carro de som na rua pedindo pra todo mundo trazer os documentos, não passou 30 dias, choveu de benefício em Alagoa Grande. Também não deixei ele me chamar de mentirosa não, antes que ele falasse eu disse logo que trabalhava com provas. Fiquei tão feliz que parecia que o benefício era meu (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019). Para ela, quando as mulheres se reúnem e reivindicam seus direitos, podem conseguir reestabelecer a ordem, neste caso, mesmo que a maior parte de lideranças fossem do sexo masculino, as especificidades poderiam ser debatidas e novas propostas poderiam ser lançadas em prol das mulheres do campo. Com a influência das lutas pela terra na Paraíba, percebiase que a história era fator determinante para novas lutas. E assim, o campo se tornava palco de novas lideranças, mesmo em períodos turbulentos como a ditadura. Soledade sentiu o preconceito de todos os setores da sociedade em que fazia parte, desde a casa dos pais, onde quase foi impedida de tocar sua viola, na casa do ex-esposo, onde sofreu violência doméstica, durante a separação, onde não era aceita pela comunidade devido seu estado como mãe 62 solteira, no sindicato, onde teve maior resistência para sua filiação enquanto condição de mulher, na cultura, em que a mulher é vista como secundária, podemos observar esta última no seguinte relato: “é muito difícil uma mulher ser convidada pra um festival e quando acontece eles colocam pra ser especial (abertura dos eventos de grandes cantores), aí os grandes cantadores são as estrelas (atrações principais). Aí eu fiz um que botava as mulher pra concorrer e eles pro especial (risos), aí eles começaram a chamar meu festival de feminista. Aí veio um companheiro e disse ‘quando tu vai fazer teu festival feminista?’, aí eu disse ‘depois do teu machista’. Sendo assim, a resistência de uma mulher para participação no sindicato, se torna evidente de acordo com sua trajetória de mulher pobre e do meio rural da Paraíba, representando assim várias mulheres que não tinham seus direitos assegurados. Com a memória de figuras importantes na luta pela terra, Soledade enfatiza a articulação geral dos trabalhadores enquanto classe, mas deixa claro que a luta pelo direito das mulheres é extremamente importante e essencial para que todos possam viver dignamente e juntos, possam construir uma sociedade mais justa. A participação das mulheres na FETAPE remonta aos seus primórdios. Importante contribuição foi dada por mulheres nas inúmeras greves, paradeiros e na organização interna dos sindicatos. Podemos citar: Geogina Reis, Zefinha, Lucinha, Adriana, Rejane, dentre outras, segundo Silva e Silva (2015). Em Pernambuco as mulheres trabalhadoras rurais começaram a se organizar em 1982 fazendo pequenas reuniões no distrito de Caiçarinha da Penha, em Serra Talhada [...] Esse trabalho específico com mulheres foi uma necessidade para se alistar na frente de emergência [...] As assessoras da FETAPE Geogina Delmondes, Vanete Almeida, Lúcia Lira, Maria do Carmo e Lucidalva Nascimento, conforme registros da Federação [...], realizaram encontros nas três regiões do Estado para despertar a importância de todas as trabalhadoras rurais também se associarem no Sindicato (SILVA E SILVA, 2015, p. 83). A participação das mulheres no sertão Pernambucano também está vinculada aos conflitos contra as barragens que atingiam as famílias desalojadas pela construção e remoção, mobilizando homens e mulheres contra os grandes empresários.2 Quanto à participação das mulheres na FETAPE, foi relembrada no Seminário da Pesquisa por Geogina (Georgina Delmondes) e Zefinha (Josefa Reis), ambas assessoras e esposas de ex- dirigentes sindicais. 2 Reflexões sobre relações de gênero no sindicalismo de Pernambuco foram formuladas para um texto publicado na 43º ANCOCS 21 a 25 de Outubro de 2019. 63 No que se refere à Geogina e José Rodrigues, em seu livro Trajetórias do casal sindicalista, ela relembra que em 1979, já casada com José Rodrigues, fez parte da organização dos Centros Sociais Urbanos e em 1980 começou a trabalhar na FETAPE com a carteira assinada pelo Pró-rural. Sua contratação não foi aceita pelo seu marido, então presidente da FETAPE: Naquele dia Zé Rodrigues não quis participar da assembleia, ele não concordava que a escolha porque não achava certo. Nós que estávamos lá escolhemos Geogina para trabalhar conosco por todo apego à causa [...] vários companheiros foram favoráveis pela sua militância comprovada em diversos municípios do Sertão do Araripe. (Amaro Biá). No princípio eram “as esposas de sindicalistas”, mas o envolvimento na luta foi possibilitando a ocupação dos espaços em um meio majoritariamente masculino. No próprio movimento sindical ocorreu um movimento de base com as mulheres nos sindicatos e, nos anos 1970/1980, já havia crescido o número de participação das mulheres no agreste pernambucano e no sertão, na Zona da Mata a participação foi mais lenta, mas havia a participação das mulheres a exemplo de Marinete de Itambé, já nos final dos anos 1980. A atuação do Movimento de Evangelização Rural (MER) influenciou as lutas camponesas e promoveu um estímulo à promoção de greves e à participação de homens e mulheres na ação política dos Sindicatos. No que se refere às relações que o MER e, mais tarde, a Central de Trabalhadores Independentes (CTI), tinham com a FETAPE, Marinete ressaltou que havia um respeito da FETAPE, pois o CTI atuava nas bases, com a massa: “nós tínhamos os grupos que organizavam essa massa, se a gente não tivesse nada eles nem respeitavam a nós, a gente influenciava lá dentro”. Marinete relembra que o movimento CTI realizava reuniões com os grupos nas bases e os trabalhadores e as trabalhadoras chegavam preparados nos congressos da FETAPE: Quando a gente levava os trabalhadores para um congresso, eram discutidos todos os direitos antes, quando chegava ao congresso da FETAPE então nosso povo, os trabalhadores da nossa base, eles já sabiam o que era pra discutir ali, tava preparado, o que era que ia aprovar no congresso. Que era a pauta de reivindicação, né? Qual todos os direitos ali, enquanto os outros às vezes não tinham nenhuma preparação que às vezes, olhe, às vezes discutem muitas coisas boas no movimento sindical, agora que só fica ali na cúpula, só fica entre um diretor ou dois, e daí por diante [...] essa divergência aí na preparação e hoje e ainda a gente tem e nós acreditamos nesse poder popular né? Poder do povo, nós acreditamos (Marinete, Itambé, agosto, 2018). Dessa forma, a experiência de combinar organização sindical com movimentos sociais, no caso em tela, o MER, favoreceu formas combativas e autônomas na realização de greves e paradeiros pelos homens e mulheres, na medida em que o movimento promovia uma 64 constante interação com as bases no encaminhamento das estratégias sindicais dos sindicatos que eram influenciados pelo grupo do MER. A participação das mulheres passou a ser uma questão a ser enfrentada nos sindicatos influenciados pelo CTI. A participação de homens e mulheres na direção dos sindicatos influenciados pelo movimento MER, e depois CTI, já era uma realidade nos anos 1980. Em 1982, Pernambuco somente tinha Dona Lia, lá do alto sertão do Pajeú, como presidente do sindicato. Já no ano de 2013, contavam-se 49 presidentes mulheres de STRs. Por ocasião do 1º Encontro Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco, ocorrido no período de 11 a 13 de dezembro de 1987, um depoimento nos remeteu a um despertar dos questionamentos feitos naquela ocasião por Agostinha Viana da Silva, do sindicato de Ouricuri/Sertão de Pernambuco, que questionou quanto à filiação do sindicato e direito à participação política: Por que os homens deviam fazer suas carteiras e, depois a mulher e os filhos serem dependentes? Por que a maioria dos presidentes dos sindicatos e de outras entidades é toda de homens? Por que a mulher não é para ter direito de ser votada e votar? Nós sendo associadas, temos o direito de ser votada e votar, tirar e botar quem nós quisermos (Agostinha Viana da Silva, do sindicato de Ouricuri/Sertão de Pernambuco, dezembro de 1987). Esses questionamentos foram o princípio de uma série de batalhas para as conquistas mais amplas das mulheres do sindicalismo rural de Pernambuco. Em 1983, Pernambuco enfrentava uma grave seca e o plano de emergência do Governo excluía as mulheres de receberem o benefício e, desse modo, a inserção das mulheres nas frentes de emergência foi um marco histórico alcançado pelo movimento sindical, na pauta específica das mulheres. Em 1984, foi realizado o 1º Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central, tendo como lema: “Somos mulheres e trabalhadoras, temos valor!” Como resultado, foi defendida uma tese em Brasília que propunha incentivar as mulheres a serem delegadas de base e a assumirem os cargos de direção, além de encaminhar reivindicações específicas das mulheres, dentre outros. A pauta foi defendida por Maria Lima Ferreira de Souza, conhecida como “dona Lia”, que era na época a única trabalhadora presidente de sindicato rural, o sindicato de Itapetim, no sertão do Pajeú. Segundo Silva e Silva (2015), na Zona da Mata pernambucana o trabalho de organização das mulheres “foi mais lento [...]. Nas assembleias e reuniões, a participação das mulheres era pequena [.] caminhou por conta do apoio de algumas funcionárias dos sindicatos e algumas delegadas de base, além de assessoras da própria Federação”. 65 Tabela 1 - cargos ocupados por mulheres em sindicatos rurais – PE Anos 1950 1961 a 1964 1965 a 1969 1970 a 1979 1980 a 1988 Total Mata 01 01 02 04 Diretoria Executiva Agreste Sertão 01 01 14 03 27 06 42 10 Conselho Fiscal Anos 1950 1961 a 1964 1965 a 1969 1970 a 1979 1980 a 1988 Total Total 01 02 18 35 56 Mata 01 0 06 07 Suplente de Diretoria Agreste Sertão 03 09 03 26 13 38 16 Total 04 12 45 61 Suplente de Conselho Fiscal Mata Agreste Sertão Total Mata Agreste Sertão 01 0 0 01 0 0 0 01 0 0 01 0 0 0 0 0 0 0 0 08 0 02 08 03 13 01 21 02 15 24 05 44 06 20 17 19 32 08 59 07 49 19 Fonte: Delegacia Regional do Trabalho-PE. Fichas dos sindicatos. Elaboração Abreu e Lima (2003, p.225) Total 0 0 08 24 43 75 Percebe-se um crescimento significativo de postos de direção do sindicato ocupados por mulheres. Nos anos 1960, de apenas 4 (quatro) mulheres nos cargos de direção do sindicato passam a 45 (quarenta e cinco) trabalhadoras rurais nos anos 1980. As regiões de Pernambuco que mais cresceram a participação feminina foram, em primeiro lugar, o Agreste, seguido do Sertão. Nessas regiões, a participação das mulheres está vinculada a organização em movimentos sociais com pautas feministas e outros fatores, tais como: a luta contra as barragens, a seca, além das características do trabalho vinculado a agricultura de subsistência em que predomina as trabalhadoras rurais, diferente da Zona da Mata no qual o trabalho assalariado na cana tem uma mão de obra majoritariamente masculina, entre outros fatores. Somente em 2019 foi eleita a primeira mulher presidente da FETAPE, Cícera Nunes: ...Estamos nesse momento aqui no primeiro congresso de assalariados e assalariadas rurais de Pernambuco, esse congresso que acontece num momento de fundamental importância para a classe trabalhadora, de estar se organizando, se reorganizando um momento conjuntural que está muito ruim no Brasil, em Pernambuco e na América Latina e no mundo. Precisamos, nesse congresso, estar junto da Fetaepe (Fetape e Fetaepe) para que cada vez mais a classe trabalhadora que somos da agricultura familiar e assalariamento rurais juntos nessa luta [...] Então vamos estar juntos, vamos estar na luta para que cada vez mais essa resistência aconteça. E essa resistência aconteça onde homens e mulheres sejam muito mais fortalecidos no campo e na cidade. (Cícera Nunes, presidente da FETAPE, Seminário da FETAPE, 04,05,06 de Junho de 2019) 66 Verifica-se na organização da FETAPE e FETAEPE uma mudança na cultura política dos novos dirigentes sindicais, homens e mulheres. No congresso da FETAPE, realizado em 2019, todos os depoimentos colhidos de líderes sindicais, homens e mulheres enfatizaram a importância da paridade conquistada no sindicalismo rural. Isso não significa que as diferenças de sexo deixaram de ser elemento de distinção e desigualdade entre os segmentos masculino e feminino, mas que, pelo menos o discurso da paridade foi aceito como uma das estratégias sindicais de maior democratização das lutas rurais. Considerações Finais Pelo breve relato das experiências das mulheres nas lutas rurais, evidencia-se que há um esforço do movimento sindical rural de diminuir as assimetrias de gênero, no tocante à participação nas decisões e ocupação dos postos de comando com uma política definida de ampliação da participação das mulheres nos sindicatos. As mudanças foram tomando forma a partir dos anos 1980 e se intensificaram no tempo presente. O discurso que pairava entre os líderes e dirigentes sindicais do meio rural é que os interesses das trabalhadoras e trabalhadores rurais são semelhantes e que o grande inimigo a ser enfrentado seria: o grande capital, o usineiro, o proprietário de terras. Essa narrativa simbólica silenciava a dominação masculina que prevalecia na correlação de forças nos momentos de eleições para os cargos de poder no movimento sindical. O questionamento e a luta das mulheres foi demolindo o discurso de naturalização da perpetuação dos homens no mais alto escalão da hierarquia sindical. Ainda não se conseguiu apagar os traços por completo de uma cultura androcêntrica no sindicalismo rural do nordeste canavieiro, mas agora não mais está oculta sob o véu do discurso da classe trabalhadora homogênea. 67 Referências ABREU E LIMA, M. S. Revisitando o campo: Lutas, Organização, Contradições - Pernambuco 1962 – 1987. Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Pernambuco [Tese de Doutorado], Recife, 2003. BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. LADOSKY, M. H. G; OLIVEIRA, V. C. A. A greve dos canavieiros Pernambuco 40 anos depois: memórias e práticas da organização sindical rural na atualidade. Publicado nos Anais da 43º ANPOCS 21 a 25/10/2019. LOBO, Elizabeth Souza. A classe operária tem dois sexos. 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Simpósio temático nº 3: A mulher do campo em diálogos interdisciplinares. 68 CAPÍTULO 5 Casamento e maternidade: a condição feminina em “As Três Marias”, de Rachel de Queiroz Maria do Carmo de Souza e Souza Cássia Maria Bezerra do Nascimento Introdução As três Marias (1939) é o quarto romance publicado de Rachel de Queiroz. Rachel foi a primeira mulher a fazer parte da Academia Brasileira de Letras, é reconhecida por suas personagens fortes e independentes que buscam a fuga do padrão imposto pela sociedade patriarcal, e, segundo Afrânio Coutinho, nenhum brasileiro titubeará em reconhecer a língua de Rachel, como sua, como brasileira, ao ler suas obras. A obra racheliana trata intrinsecamente da mulher e os “deveres” perante o Estado, a Família e a Igreja, mas que também há apenas a mulher com desejos individuais. Foi a partir desta nossa última observação que propomos ler Rachel de Queiroz sob o viés dos estudos de gênero, que ganham cada vez mais espaço na academia em diferentes áreas de conhecimento. Simone de Beauvoir afirma que basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados, e o presente estudo vem ao encontro dos últimos episódios nacionais relacionados à figura feminina, que alertam para um debate mais profundo sobre a noção de liberdade e/ou direitos conquistados pelas mulheres ao longo desses anos. No atual governo, o discurso machista e misógino parece vir ainda com mais força; o caso do deputado Márcio Labre PSL/RJ, que de acordo com o Projeto de Lei 261/2019, apresentado à câmara dos deputados, visava proibir o dispositivo intrauterino (DIU), a https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-5 69 pílula só de progestógeno, a pílula do dia seguinte, a pílula RU 486, entre outros, com a justificativa de serem “microabortivos”, mas logo o projeto de lei foi retirado por devido a repercussão que casou, pois, é alguma forma de emancipação da mulher, já que não liga a prática sexual à maternidade. O então presidente do Brasil, eleito em 2018, vem proferindo, desde o início de sua carreira como parlamentar, discursos de ódio, principalmente quando homenageia torturadores e se refere às mulheres. A ficha de discursos bárbaros contra a figura feminina não é pequena: já retratou a filha como uma “fraquejada”; disse a uma deputada que não a estupraria porque ela não mereceria; os ataques à Dilma Rousseff quando homenageou Ustra, aquele que torturou a ex-presidenta durante a ditadura militar, e, desejou que ela saísse do cargo com câncer ou infartada; fala que mulheres devem ganhar menos porque engravidam; acusações vindas de sua ex-esposa Ana Cristina Valle como agressões e ameaças de morte e que por isso ela teria viajado à Noruega; e ainda houve o episódio a jornalista Patrícia Campos Melo a quem o então Presidente fez uma insinuação sexual, segundo a Revista Veja, falando que a jornalista queria “dar o furo a qualquer preço”. Logo, dentro desse contexto em que estamos vivendo, no qual o Brasil é o 5º país no Ranking de feminicídio, que contabilizou em 2018 mais de 66 mil casos de violência sexual, em que cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas, e uma mulher a cada dois dias morre por conta de aborto inseguro, ter um presidente que permeia esse discurso misógino à sua nação abre mais espaço para a insegurança das mulheres e a dominação masculina cultivada por séculos pela sociedade que acha que a mulher é um “não homem”, um ser inferior, que serve apenas como receptáculo para proliferação da espécie humana. Pierre Bourdieu (2014) indaga como um grupo minoritário apropria-se e controla a representação de algo e a implantação de um molde de status, podemos assim, começar a questão do papel da mulher na sociedade. Diante da urgência de nos manifestarmos, também em nossos escritos, contra estes discursos, trazemos este trabalho resultado de pesquisa na literatura de autoria feminina/ Escolhemos As três Marias, de 1939, de Rachel de Queiroz, romance que retrata diferentes caminhos seguidos por jovens mulheres durante a primeira metade do século XX em sua narrativa. A escrita segue sob proposta de estudos relacionados à condição feminina. Buscamos representações dentro de contextos históricos e literários à (des)construção de estereótipos femininos dessa sociedade. Indagamos também, a figura de Maria, mãe de Jesus e sua respectiva representatividade, segundo preceitos de patriarcado perante a importância que o casamento e a maternidade têm na vida da mulher naquela época. O tema proposto é oportuno para esse debate, do mesmo modo que, nessas duas últimas décadas, o casamento, a maternidade e os direitos das mulheres foram discutidos, e, pelo que se pôde notar, ainda são pressupostos da existência da mulher na sociedade. 70 Desse modo, o tema escolhido é apropriado para uma discussão, da mesma forma que em pleno século XXI, o casamento e a maternidade ainda são pressupostos da existência de uma mulher na sociedade. Além de propormos analisar o casamento e a maternidade, por meio da literatura, também abordamos a autoria de Rachel de Queiroz, já que tais personagens femininas, por tempos, foram construídas sob olhares masculinos, e colocaremos ainda em evidência essas construções da figura feminina nos romances de períodos literários distintos. Esse estudo ambiciona galgar a divulgação da literatura brasileira e nordestina, personagens femininos que diferem dos habituais e, principalmente, a autoria feminina, já que na primeira metade século XX a maioria dos modernistas era do gênero masculino. Para estudar o texto literário que traz a mulher como personagem da narrativa na obra de Rachel de Queiroz, há necessidade de construir uma abordagem que toma empréstimo de estudos da História, Psicologia e Sociologia, principalmente. Nos romances do século XIX, a mulher é enquadrada na perspectiva mariana de perfeição e idealização do casamento e maternidade, e, de acordo com Elisabeth Badinter (1985) o amor materno continua inquestionável pois, em nosso inconsciente coletivo, Maria mãe de Jesus é o símbolo sólido desse amor voluntário e desmedido. Marina Massi (1992), doutora em Psicologia Social, fala sobre a importância das mulheres conhecerem sua história. Os estudos de Gênero estabeleceram a realidade social das mulheres na época, dessa forma, trazemos Neivana Rolim de Lima (2019) com o embate sobre a perpetuação dos padrões românticos na literatura e a interferência da autoria masculina quando se trata de personagens femininas; Já Patrícia Alcântara de Souza (2008), analisa diretamente os percursos das personagens femininas em três obras de Rachel Queiroz, oferecendo uma análise profunda das personagens; Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro (2012) organizaram vários artigos sobre a Nova História das Mulheres no Brasil, abarcando referências mais específicas para esta pesquisa, dado que no período de 1930, a escrita tomou uma forma mais singular e características do Brasil; Michelle Perrot (2019), historiadora, oferecendo uma visão geral sobre a história das mulheres; Simone de Beauvoir (2018), importante nome na área de estudo de Gênero. Para embasar sobre o movimento modernista, e conhecimento teóricos de literatura brasileira, trouxemos: Afrânio Coutinho (2005, 2014) com a Introdução à literatura no Brasil e o Conceito de literatura brasileira; e Alfredo Bosi (2017) com a História Concisa da Literatura Brasileira. Roberto Pontes (2006), esquematizador da Teoria da Residualidade Literária e Cultural, e seus conceitos operacionais; resíduo, mentalidade, imaginário, cristalização, hibridação cultural e endoculturação – conceitos esses que estudam e caracterizam o que remanesce de tempos em tempos, por meio da cultura, da literatura, partindo do pressuposto de que nada na cultura e na literatura é original. De acordo com Pontes (2006), resíduo é 71 o que resta, o que remanesce de um tempo em outro, seja do passado para o presente, seja por antecipação do futuro. Por conseguinte, Cássia M. B. Nascimento (2014, p.104) ratifica em sua tese que: “para compreender a Residualidade, parte-se da afirmação de que todas as relações humanas geram o que chamamos de resíduos.”. Dessa maneira, o estudo residual da construção da mulher na literatura é fundamental. A autoria feminina de Rachel de Queiroz no contexto do romance de 30 na literatura brasileira A literatura de autoria feminina teve uma integração arrastada no Brasil por motivos óbvios de dominação ideológica da sociedade patriarcal. Colocava-se em questão que homens eram superiores intelectualmente, e, contudo, se fosse provado o contrário, a independência financeira de mulheres não era comum, o que tornava a publicação de autorias femininas complicada, pois a intelectualidade e o financeiro estavam ligados. É possível perceber o quão dificultoso foi o percurso de escritoras brasileiras e como os movimentos feministas do século XX foram importantes para difusão da autoria feminina no Brasil: Foi com muita dificuldade que os cercos dessa cultura preconceituosa se romperam e as mulheres começaram a publicar seus livros, já em meados do século XVIII. Porém, só mais ao final do século XX foi possível o contato com obras que revelam a intensa participação feminina nas letras nacionais. O trabalho algo arqueológico das pesquisas acadêmicas e de alguns institutos culturais foi determinante, e ainda tem sido, para trazer à luz a valiosa contribuição de escritoras do passado, seja na prosa, na crônica ou na poesia. E hoje, graças a esforços conjugados, pode-se dizer que a reconstrução de uma tradição literária feminina no Brasil já está bem estabelecida, já se sabe que a lista de nomes femininos em nosso passado literário é bastante extensa, embora, em sua grande maioria, esses nomes tenham amargado uma longa permanência na invisibilidade. (CASTANHEIRA, 2011, p.2). Depois dos primeiros manifestos feministas, a cultura de silenciamento das mulheres foi sendo descontruída exaustiva e lentamente, ao longo das décadas, fazendo pequenos furos na sociedade dominada por homens, brancos, héteros e das elites. Em 1922, tivemos a “Semana da Arte Moderna”, em São Paulo, que fomentou a ordem literária seguinte. Assim, a geração de 30 manifesta-se, iniciada por José Américo e a obra A bagaceira (1928), “[...] momento em que o Modernismo começava a tomar no Nordeste uma coloração original [...]” (BOSI, 2017, p. 422), ambientando-se nas grandes secas do 72 Nordeste. Seguimos com a definição de Afrânio Coutinho (2005), para esse Movimento Literário denominado “Modernismo”: A literatura moderna, no Brasil, é o que se denomina Modernismo, termo que vai se fixando na historiografia literária para designar o período estilístico inaugurado com a “Semana da Arte Moderna” (1922) e vindo até os dias presentes. Modernismo, assim, não é apenas o movimento restrito à Semana de 1922, mas abrange toda a época contemporânea. (COUTINHO, 2005, p. 247). Rachel Franklin de Queiroz (1910-2003), natural de Fortaleza - CE. Em 1925, aos 15 anos, diploma-se professora, foi a primeira mulher a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e a receber o Prêmio Camões. Assim, Rachel foi escritora, jornalista, tradutora e teatróloga, fugindo da catalogação de escrita mélica que eram classificadas as autorias femininas de tal época. Destaca-se O quinze (1930), seu primeiro romance publicado (inclusive em outros países) recebendo críticas positivas de Augusto Frederico Schmidt e Mário de Andrade, além de comentários machistas como o de Graciliano Ramos sobre a autoria ser de uma mulher. Desse modo, Rachel de Queiroz se tornou referência, no Brasil: Raquel de Queiroz é uma das maiores escritoras brasileiras: aos vinte anos tornou-se um ícone da Literatura, apesar da inicial resistência por parte da crítica, inaugurando a fase do Romance de 30, com a publicação de O Quinze (1930), seguido de João Miguel (1932), Caminhos de Pedras (1937), As Três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975), entre outros, além de crônicas, de peças e de traduções. Cercada de influências que a levaram para o meio literário e jornalístico, não é de admirar que ela tenha entrado em contato com outras culturas, bem como o fato de ter sido profunda conhecedora da cultura nordestina, narrando, de forma peculiar, a seca, o cangaço, a religiosidade, o sertanejo e, também, a sociedade carioca, com a qual conviveu desde que se mudou para o Rio de Janeiro, em 1931. (SILVA; SILVA, p. 85, 2017). Em O quinze (1930), a protagonista da obra desvia o caminho imposto para as mulheres de sua época, o casamento. Centrada, Conceição resigna a proximidade de seu provável “amor”, confronta a situação agressiva da seca e se dedica ao universo literário. Rachel se faz(ia) notar tanto pelo aspecto regional e linguagem simples, “a língua do Brasil [...] que nenhum brasileiro titubeará em reconhecer como sua [...]”(COUTINHO, 2014, p. 15/16),como pela temática de mulheres fortes, que Heloísa Buarque de Hollanda coloca de forma convicta em prefácio feito a uma das edições da obra As três Marias: “[...] a galeria mais expressiva de personagens femininas, independentes, destemidas e progressistas de nossa época”. Desta forma, a afirmação social da mulher, também era a marca de Rachel de Queiroz: 73 Segundo a autora, sua obra As três Marias é seu romance mais autobiográfico, o que lhe causou dificuldades em desassociar o que realmente viveu, o que viu e as memórias daquele tempo (TORRES, 2014, p. 380). As semelhanças entre a escritora e a narradora são visíveis: O fato de serem cearenses, de terem estudado em um colégio religioso e de haverem se afastado da vida sagrada. (COSTA, 2018, p. 40). Dessa forma, as produções literárias dos anos 30, também catalogadas de regionalista, diante das configurações históricas em andamento, Rachel de Queiroz apresentou obras que se mostravam a frente de seu tempo, apresentando também, para a sociedade da época; debates sobre a condição da mulher ligadas a maternidade, casamento e desejos individuais; enquanto, os romancistas desse movimento se debruçavam de maneira mais singular em relatos sobre a fome. As mulheres na literatura na construção do romance de 30 A literatura e a cultura brasileira são orientadas pela formação judaico-cristã. O estudo residual da condição e da construção da mulher na literatura é imprescindível porque há mudanças e retomadas de perfis femininos, mudanças que ocorrem porque há hibridação cultural, o que reforça a necessidade de estudos com a aproximação de outras ciências que nos levam a conceitos de “herança social”, “transmissão de padrões”, dentre outros compostos ao arsenal da Teoria da Residualidade, conforme Pontes (2017). Em cada época, espaço e cultura, as narrativas trazem mulheres, como cristalizadas no imaginário, “é, pois, no imaginário, conjunto de imagens que a sociedade faz de si mesma através de produções culturais, o que podemos distinguir as épocas entre si [...]” (PONTES, 2017, p. 17). De acordo com Lima (2019), “a literatura romântica que proliferou no Brasil delimita o espaço que a mulher ocupa na sociedade, destina à mulher o ambiente privado, o cuidado do lar, dos filhos, a obediência aos pais, aos padrões sociais e a completa dependência do marido e de seu mando” (p. 12). Diante disso, concordamos com Perrot (2019) que “as mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas”. A dominação masculina está presente em ideologias marcadas pelas políticas do patriarcalismo. O fato de homens da elite constituírem historicamente a visão no campo literário, configura a construção da figura feminina nas narrativas seguindo principalmente estereótipos sexistas, tendo em vista que a escrita de autoria feminina veio a ser consolidada no século XX. Como afirma Tayza Rossini (p. 97-98, 2016): 74 A consolidação da literatura de autoria feminina, cuja trajetória, timidamente iniciada em meados do século XIX, ganha consistência no transcorrer do século XX, suscita, conforme têm demonstrado muitas pesquisas no âmbito dos estudos de gênero, novas possibilidades, inclui outras perspectivas sociais e amplia a gama das representações literárias tradicionais. É sabido, igualmente, que o cânone literário ocidental, historicamente constituído de obras escritas por homens, brancos e da elite sociocultural, é impregnado de ideologias dominantes, as quais lhe regem os códigos de produção e de representação. Durante a primeira metade do século XX, houve conflitos, como a I e a II guerras mundiais, crises na economia, que desalojaram com mais força a luta a feminista e, assim, o logro da saída das mulheres para o mercado de trabalho, além da asserção do Capitalismo e a afirmação necessária do oposto: o Socialismo. A política brasileira também passou por embates de regimes democráticos e totalitários ao longo de todo o século XX. Segundo Silvia Arend (2012), com o início do século XX, esperava-se que as mulheres desempenhassem novos papéis no âmbito doméstico e na esfera pública. Isto posto, o que ocorreu no Brasil, partindo desse pressuposto, foi que as filhas das elites e dos setores médios começaram a frequentar cursos primário, secundário em escolas confessionais católicas femininas e de outras congregações religiosas presentes nas capitais dos estados da federação (AREND, 2012). Consoante Jorge Marques (2010), “Os modos de evasão do confinamento possíveis pelas mulheres nesse contexto transitam, via de regra, por recursos que variam entre a memória e a imaginação” e, durante a leitura, pudemos notar esses recursos em vários trechos da narrativa racheliana como esse; “escondidas lá para os lados dos lavatórios – o nosso quartel-general de sempre –, sentadas no chão, com as meias descidas, fizemos na coxa, com a ponta da tesourinha, as três estrelas juntas, em fila.” (QUEIROZ, 2018, p. 47). Dessa forma, optamos por trabalhar com o quarto livro publicado da escritora Rachel de Queiroz, que utiliza três personagens como principais: Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória, representando a santíssima trindade. Trata-se de um internato católico onde a visão se dá pela disciplina e religiosidade, em um lugar de preceitos cristãos e tendo Maria, “símbolo” do cristianismo, exemplo de valor e moral, a referência de uma figura feminina a ser seguida. Logo, fora do Internato, essa visão é diversificada: Guta tem um olhar realista sobre o mundo e faz questionamentos e indagações sobre o que ela acredita, o que se passa a sua volta e o seu papel de mulher naquela sociedade: Se Maria é o arquétipo do feminino ou de representações do feminino na civilização ocidental, Rachel de Queiroz elabora um texto no qual tal arquétipo é triplicado. Essa situação leva-nos, obviamente, a configurar a imagem de uma tríade mariana (de representação feminina, portanto) subvertendo a lógica cristã, na qual pontificam o Pai, o Filho e o Espírito Santo. (MARQUES, 2010, p. 96). 75 Se olharmos mais para o passado, no medievo, a figura feminina possuía diversas representações impostas pela sociedade, como senhoras das casas, religiosas, uma figura santa, de um lado; e a representação do pecado, de outro lado, que seriam, na época, as prostitutas e as bruxas, estas eram excluídas do convívio social. Segundo Moreira (2005, p. 25), nas culturas de coleta, as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza; agora elas são as causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. A Literatura e a cultura ocidental, a partir daí, registram a mulher sempre sob a guarda de seus familiares, aspirando a escolha de um casamento aceitável por parte de seus guardiões. A finalidade do casamento, nessa época, era, principalmente, a continuação da linhagem para que o nome da família permanecesse vivo. E esse perfil feminino se concretizará no Romantismo enquanto projeto conservador: No cenário mundial e em termos residuais a Idade Média inspirou a perspectiva da aproximação religiosa como ligação espiritual que alcança todos os povos, funcionado assim como um elemento básico para todo o escopo romântico[...] (LIMA, 2019, p. 34) [...] No Romantismo, a mulher é representada sob a ótica masculina. A presença de uma mulher idealizada, divinizada, com restrições de ações é constante nas obras do período romântico, tendo em vista que estas ações, não realizadas por mulheres, são inadequadas ao sexo feminino, segundo a ótica masculina. A questão do protagonismo e das ações de Simá é a mesma de tantas outras protagonistas do período romântico e das personagens femininas que são descritas em uma ficção de autoria masculina. (LIMA, 2019, p. 103) Consequentemente, com a leitura da obra racheliana, notamos que a idealização de um modelo de mulher é concebida a partir da imagem de Nossa Senhora. A Virgem Maria é detentora de toda bondade, pureza e submissão, características que pautam o imaginário da feminilidade em uma sociedade patriarcal e cristã. Assim, esse ideal se estende a escritos como Contos de Fadas, colocando em destaque a mulher submissa sendo salva por um “herói” que a leva para o sonhado “felizes para sempre”; a madrasta em posição de vilã, de “não mãe”, a bruxa impura que nunca será feliz; a rivalidade feminina, dentre outros estereótipos que moldaram meninas/mulheres em uma forma de violência romantizada por tempos, e, nos dias atuais, estão em constantes mudanças. Partindo da premissa da Teoria da Residualidade de que nada é original, e sim, resíduos de outras épocas que se arraigam por meio da mentalidade: A mentalidade tem a ver não só com aquilo que a pessoa de um determinado momento pensa. Mas um indivíduo e mais outro indivíduo e mais outro indivíduo, a soma de várias individualidades, redunda numa mentalidade coletiva. E essa mentalidade 76 coletiva é transmitida através da História. Por meio da mentalidade dos indivíduos, a mentalidade coletiva se constrói. E esta última é transmitida desde épocas remotas, e mesmo remotíssimas, a épocas recentes (PONTES, 2006, p. 5). Torna-se mais compreensível (compreensível no sentindo de entender as origens das violências sofridas, não as “motivações” que as levam a sofrerem tais), a condição em que as mulheres são colocadas: A própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino; os homens modelaram-no, dirigiram-no e ainda hoje o dominam; ela não se considera responsável; está entendido que é inferior, dependente; não aprendeu as lições da violência, nunca emergiu, como um sujeito, em face dos outros membros da coletividade, fechada em sua carne, em sua casa, aprende-se como passiva em face desses deuses de figura humana que definem fins e valores. (BEAUVOIR, 2019, p. 408) No romance de Rachel, “São as três Marias! Se ao menos vivessem juntas, como as três do Evangelho, pelo amor de Nosso Senhor! Mas sou capaz de jurar que perdem o tempo em dissipação...” (QUEIROZ, 2018, p. 46). Percebemos nas palavras da narradora a idealização da menina/mulher submissa que abre mão dos seus desejos é rompida, logo nos primeiros momentos da narrativa, mas, não de maneira radical e fugindo da mentalidade patriarcal. Conforme Souza (2008), as regras morais nas primeiras décadas do século XX eram ditadas, também, pela igreja Católica, que impunha seus preceitos por meio das escolas e púlpitos, pregando casamento indissolúvel e prole numerosa. Desse modo, podemos afirmar que as mulheres que não atendiam as imposições da Família, da Igreja e do Estado, não eram “bem vistas”, excluídas pela sociedade, e consoante Souza (2008), as personagens de Rachel, se aproximariam do “romance de renascimento”, já que buscam integrações individuais, renunciando sentimentos de integralidade social, como o casamento e a maternidade, almejando algo maior, uma forma de satisfação pessoal e amadurecimento. Casamento, maternidade, escolhas e permissões na vida de uma mulher, em “As Três Marias” Nascimento (2019) afirma que um elemento residual cultural mantém-se, via de regra, a certo espaço da cultura prevalecente, mas certa versão dele, em especial se o resíduo, vem de uma área influente do passado, será, em grande parte dos casos, assimilado para que a cultura dominante tenha significados. Sendo assim, antes de pensar em casamento e 77 maternidade, temos a visão histórica de dominação masculina e cristã sobre as mulheres, nas palavras de Perrot (2019, p.49/50): “a mulher é, antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um corpo, vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso acentua mais porque, na cultura judaico-cristã, ela é constrangida ao silêncio em público.”. Lima (2019) aponta que “a literatura romântica, assim como o período trovadoresco, no qual reconhecemos os primeiros registros da literatura de língua portuguesa, oferece muitos exemplos de misoginia.” (p. 13). O que coaduna com as análises de Perrot, quando diz que a mulher era tida como um ser inferior, propriedade, moeda de troca, fonte de desejos: A virgindade das moças é cantada, cobiçada, vigiada até a obsessão. A Igreja, que consagra como virtude suprema, celebra o modelo de Maria, virgem e mãe. Os pintores da Anunciação, grande tema medieval, representam o anjo prosternado no quarto da jovem virgem, diante de seu leito estreito. Essa valorização religiosa foi laicizada, sacralizada, sexualizada também: o branco, o casamento de branco, no Segundo Império, simboliza a pureza da prometida. (PERROT, 2019, p. 45) Na literatura brasileira, até o início do século XX, era praticamente impossível uma personagem feminina que não caminhasse ao casamento e/ou à maternidade, pois a Igreja Católica constituiu o casamento como um sacramento e a maternidade como divina. Os romances que apresentavam mulheres com desejos libertários, também reservavam finais em forma de punições, para que soubessem quais caminhos deveriam seguir. Temos diversas culturas no ocidente, o que nos faz procurar compreender como funcionava o mecanicismo de cada época para melhor entender a ação do indivíduo e como é formada a mentalidade coletiva de cada um. Para Badinter (1985, p. 5), “continua difícil questionar o amor materno, e a mãe permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo.”, isso se dá porque a mulher foi enquadrada na perspectiva mariana de perfeição e idealização do casamento e maternidade. Diante disso, as personagens femininas não poderiam trilhar outro caminho: [...] podemos afirmar que se constitui como objetivo das mulheres burguesas do início do século XX o casamento, sendo esse objetivo primeiro na educação de mulheres que, desde muito cedo, eram condicionadas para este momento, cabendo a elas quando não conseguiam se casar apenas três opções: enlouquecer, morrer, ou, em último caso, quando elas não se casavam, ficavam incumbidas de cuidar de um parente. (SAMPAIO, SOUZA, 2017, p. 14). Romance publicado em 1939, As três Marias não teria como apresentar de início mulheres livres, mas com desejos de serem livres: “Moça, jovem, só a Virgem Mãe adolescente 78 do caramanchão; e, sendo de louça, tinha mais ar de vida e humanidade que aquelas outras mulheres de carne, junto de mim.” (QUEIROZ, 2018, p. 21). Podemos perceber que Guta já estava ciente de como seria sua vida, das opressões que sofreria para tornar-se submissa e sem desejos, de acordo com a primeira observação feita por ela, no internato. Maria Augusta já tinha uma ideia do destino que a sociedade dava às mulheres. O que podemos assim explicar: Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem explorála, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo e nele decifra seu destino. (BEAUVOIR, 2019, p. 34). O contexto socioeconômico é desenvolvido de forma bem clara, com o propósito de demonstrar os níveis de violência às quais as mulheres eram acometidas e a influência passiva e/ou agressiva, nos caminhos impostos a elas, pela sociedade. Observamos essa questão, de duas formas, na obra: Glória, entre tantas órfãs, sua “orfandade” se enroupava na excepcionalidade, descrita como uma “aristocracia na tragédia”; e a separação das pensionistas, “senhoras da casa” das “outras vidas antípodas”, pois eram de classes sociais diferentes e teriam de aprender a lidar com os papeis impostos a cada uma. Também minuciadas por Guta: E no colégio, entre tantas outras que não tinham pai ou não tinham mãe, a orfandade de Glória revestia-se de não sei que características sutis que a tornavam excepcional — como de uma aristocracia na tragédia. Tinha um tutor. Dizia às vezes “meu tutor”, elevando a voz com importância, e muita gente a olhava com inveja; e ela nos encarava com desdém, do alto do seu drama, abafando todo o mundo com a sua infância de romance. (QUEIROZ, 2018, p. 28) [...] Uma proibição tradicional, baseada em não sei que remotas e complexas razões, nos separava delas. Só as víamos juntas na capela, alinhadas nos seus bancos do outro lado do corredor, quietinhas e de vista baixa, porque as regras que lhes exigiam modéstia, humildade e silêncio eram ainda mais severas do que as nossas. (QUEIROZ, 2018, p. 36). No decorrer da narrativa, embora Maria da Glória participasse dos grupos e das brincadeiras ali postas pelas meninas do internato, seu “destino” já estava encaminhando e supostamente traçado pelo pai: 79 Morreu, mas, mesmo morto, deixou organizada em torno de Glória toda uma máquina de proteção e assistência. O tutor nomeado, os bens convertidos em apólices, uma carta à superiora do colégio pedindo amparo e amor para a órfã. Essa carta, bem feita, patética, cheia de lágrimas, era uma das lendas do colégio e vivia no cofre da superiora, guardada como uma relíquia, para ser dada à menina no dia da maioridade. (QUEIROZ, 2018, p. 10). Maria José vai se retraindo conforme o desdobramento da obra. Chega o momento de não ligarmos mais à menina que há poucos anos sentava-se ao lado de Hosana, em uma amizade ilegal e apaixonada, a menina de passo duro, que não havia cedido às pressões da madre superiora relacionadas a sua amizade, pois “[...] aquele excesso de amor romanesco, as florinhas, os santos, acabou chegando tudo aos ouvidos da irmã Germana — e era sempre esse o fim das amizades com órfã” (QUEIROZ, 2018, p. 38). A mãe de Maria José, Dona Júlia, fora abandonada pelo marido, era a matriarca da família, acabou se ocupando de tudo, e, na descrição de sua história, não passa despercebido a sina de mulheres negras, pois, apesar de tudo, havia diferença entre ser pobre, e, ser negra pobre: “Eu tive sina de negra cativa, de negra ladrona, fugida, que só serve para apanhar. Veja minhas irmãs: uma casou com um médico do Exército, mora no Rio; a outra, o marido é empregado do Correio. Nenhuma passa o que eu passo, nem sonha!” (QUEIROZ, 2018, p. 51). As personagens secundárias do romance, mostram, ainda que rapidamente e de forma menos detalhada, o que as figuras femininas estão sujeitas caso não façam parte de classes “respeitáveis” da sociedade, demonstrando que a luta das mulheres não se desvincula da antirracista, e, de classes: (Hosana) “Conheceu um viúvo, cliente dos ricaços, pobre, triste e carregado de filhos. Casou. Maria José foi a esquecendo. Soubemos depois que morreu de parto.” (QUEIROZ, 2018, p. 39). Ter a escrita e autoria de Rachel difundida e quebrando os padrões das personagens da época, no Brasil, foi um marco, pois, ela não questionava a importância, mas as situações as quais as personagens (mulheres) eram colocadas. As mortes de jovens mães, principalmente após o parto, são comuns ao decorrer da nativa, entretanto, nota-se, sob certa perspectiva, um modo singular, de como Rachel denuncia, com certa ironia até: Marília : — Marília, tão lenta, feia e boa, com a sua aparência de calma segurança e interiormente cheia de grandes ternuras e impulsos apaixonados. Casou por amor, mal saída do colégio, com um rapazinho de bigode e costeletas, galã juvenil do grêmio teatral do bairro. Morreu de tifo, dois meses depois de dar à luz uma filhinha. Fui vê-la na casa de saúde. Morria e não dava por isso, agarrava-se às mãos do marido, perguntando, já com a fala atrapalhada pela morte: “— Válter, engomaram seu terno branco?” (QUEIROZ, 2018, p. 207). 80 Uma das personagens secundárias que mais nos chamou atenção foi Jandira, filha de prostituta, discriminada pela própria família, e apenas uma das tias lhe dava apoio, já era de se imaginar o destino traçado da pobre menina. Mas, Jandira era forte e decidida, embora soubesse o que estava predestinado para ela, não deixava de desfrutar a vida. Rachel prepara três momentos para Jandira: casamento, aparentemente um bom casamento, assim fazendo com que suas outras duas tias parassem de criticá-la; porém, o casamento se torna algo insuportável, mas que ela não poderia separar, pois não iriam mais encomendar costuras de uma mulher separada e Jandira não teria mais como sustentar o filho e a casa; e o terceiro momento é a independência de Jandira, com a herança da tia que a apoiava: Estava feliz, apesar do luto. Feliz, e calma, desafiando o mundo como sempre, mas desafiando-o agora sem o seu sombrio desespero de antes. Apareceu na sua vida um elemento de alegria e compensação: tem um amante. Contounos tudo, talvez para se justificar; disse o que nos escondera naquela última visita: a sua vida miserável com o marido, a degradação dele, a penúria em que vivia, o seu martelar na máquina dia e noite, para garantir o leite do filho. A herança chegou, trouxe a salvação consigo, ia lhe dar segurança, arrancá-la do trabalho excessivo. Já era tempo: sentia os rins rompidos de tanto se curvar sobre a máquina, e talvez o ceguinho não resistisse por mais tempo à falta de remédios e ao desconforto. E Jandira agora esperava viver, esperava tirar da vida algumas das boas coisas que ela lhe negara sempre. (QUEIROZ, 2018, p. 197). Segundo Marques (2010), por mais que as meninas tentassem fugir imaginativamente do claustro que viviam no internato, a mentalidade patriarcal encontrava-se arraigada de tal forma, que só conseguiam fantasiar com casamentos e formações de famílias, nada além de uma vida estabelecida pela sociedade burguesa. Conforme Lima (2019), “A mentalidade apresentada no Romantismo já existia antes do próprio Romantismo, trata-se de uma ordem social pouco questionada por boa parte da sociedade, que se preocupa em manter os lugares sociais bem definidos.”, ou seja, a fuga de Teresa por mais que tenha sido uma atitude que ia contra a ordem e a moral da época não saiu do contexto romântico, a amada que vai ao encontro do seu amor proibido e fogem juntos. Guta se mostrava curiosa, da família falava pouco, quase nada, lia muito e começava a ter outros interesses. Com uma visão muito tradicional, ia se descontruindo e criando indagações sobre ser mulher e a forma de como são construídas suas imagens diante da sociedade: 81 Não conseguiria imaginar uma irmã, comendo, vestindo-se, dormindo; não podia crer que houvesse um coração de mulher, um corpo de mulher debaixo da lã pesada do hábito. Certo dia, olhando uma irmã muito nova, chegada há pouco da Casa-Mãe, notei-lhe o busto redondo, farto, levantando-lhe a linha dura do corpete. Baixei os olhos com vergonha e confusão. [...] Tudo isso, só porque um humilde busto se afirmava, inocente e redondo, onde eu achava que devera existir um sumido peito de asceta. (QUEIROZ, 2018, p. 40-41). Rachel descreveu Guta como “Ela é daquelas que a Escritura chama: as filhas dos homens”, talvez em oposição aos filhos de Deus, já que a menina possuía desejos e, não reconhecia aos papeis postos a ela naquela sociedade, era feita de carne. Quando a mãe de Maria José descobre que Guta está grávida, não a julga, fala apenas que a menina não era culpada de não ter mãe, a culpa da criação de filhos sempre recai a mãe, mas, Guta teve a madrinha que a criara, que dava tudo de melhor a ela mais que aos filhos biológicos, para que não a julgassem de madrasta ruim e, isso remete ainda aos contos de fadas, de que se não é mãe biológica, é madrasta (má), não-mãe. E, por fim, Rachel de Queiroz, com toda sua proposição em torno das mulheres e da sociedade, trabalha com o tema do aborto, tema tabu em nossa literatura, de modo sutil, a ponto de permitir a(o) leitor(a) concordar ou pelo menos não julgar a jovem em construção: Maria José parecia uma criança, cabelo ao vento, rindo, gritando meu nome. O chicote tangenciava o bar, numa das curvas. Ao passar ali, ouvi um bêbedo indignado gritando: “— Isto é um crime!” Encolhi-me assustada na cadeira. — Crime? Se fosse um crime, Maria José me chamaria assim tão inocente, tão alegre? E eu continuava a ir, rodava mais, ria com ela, deixava-me arrastar loucamente, fechando apenas os olhos a um choque mais brusco, que me abalava toda. Certos momentos despertava, queria saltar, salvar-me, fugir dali. Mas pensava logo que eu não fazia nada, não agia, deixava-me apenas levar pela vontade dos outros. Não era crime. E o bêbedo já fora embora, gesticulando violentamente entre dois alemães abrutalhados que o arrastavam para fora. Foi-se embora para sempre o pobre pequenino. Quem sabe não teria os mesmos olhos azuis de Isaac? Nem mesmo chegou a ter olhos, coitadinho. (QUEIROZ, 2018, p. 211). 82 De acordo com Neila Souza (2018), caso pensemos a narrativa literária sustentada por ligações com o mundo real, parcelas da vida aparecem na formação de sentidos advindos da realidade, dos processos ideológicos, demonstrando um fato social comum sobre a literatura contemporânea: condição feminina, maternidade. Rachel, em 1939, consegue trazer para debate a independência da mulher, tanto material quanto sexual, os salários desiguais, as condições, as permissões, o aborto de Guta, a volta à casa do pai. Levando em consideração os fatos e o fim da narrativa aberta, qual seria o futuro de uma jovem, que não era mais virgem e que em tal época não seria digna de um bom casamento? Ficaria sujeita às ordens da madrinha? A escritora deixou para que os leitores julgassem uma jovem em construção, como pessoa, como mulher. Por isso, ainda que ficcional, Rachel, expõe as violências sofridas por mulheres, jovens adolescentes, que se submetem ao casamento e consequentemente à maternidade por conta de uma cultura misógina; mulhere que não sobrevivem, e, quando sobrevivem, deixam de ser mulheres para serem esposas, donas de casa, mães, aparentemente é uma violência silenciosa, aceita e disseminada pela sociedade. Considerações finais O tema relacionado ao casamento e à maternidade como “escolhas” e permissões na vida de uma mulher surgiu quando percebemos que tudo a minha volta girava em torno da sobrecarga das mulheres. O sentindo de “mulher completa” e a misoginia nele carregada, me proporcionaram indagações para chegar a essa escrita, pois, mulheres são julgadas, condenadas desde o nascimento. A mulher há de seguir determinados caminhos que são considerados primordiais já que cristalizados no imaginário da sociedade ocidental, caso não siga, não será considerada mulher, ou, será menos mulher. A Teoria da Residualidade esquematizada por Roberto Pontes foi primordial para entender sobre a sensação de perpetuação dessa violência. De modo que a Residualidade é pautada no conceito de resíduo e que está intimamente ligado ao de mentalidade, estudando elementos vivos que permanecem presentes ao longo das épocas na sociedade através da mentalidade social, que seria a construção do pensar humano, porém dentro de um processo de atualização, devido ao contato de várias culturas. Ao ler Rachel, pudemos perceber o discurso de denúncias permeados e silenciados em volta do casamento e, principalmente da maternidade, que é tratada pela sociedade como algo 83 divino, mas que levam jovens a perderem sua infância, a abdicar de sua vida, seus desejos, e a morrerem. Diante do exposto, essa análise me possibilitou, sob orientação, estudar um tema que considero importante, por se tratar de algo que é divinizado pela sociedade, mas que colabora com a violência contra mulher. Ainda que ficcionais, as denúncias são de extrema importância, pois, aos que leem, é permitido desenvolver a capacidade e consciência de não mais permitir tais violências. Para isso, e por isso, o incentivo à leitura e à pesquisa, são necessários. Referências AMADO, Guilherme. Bolsonaro Já Desejou Morte de Dilma “De Câncer ou de Infarte. Época, 15/06/2019. Disponível em: ”https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-ja-desejoumorte-de-dilma-de-cancer-ou-de-infarte-23742421 > acessado em 19/02/2020. AREND, Silvia Maria Fávero. Trabalho, escola e lazer. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla Bessanezi (Org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o Mito do Amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo Vol. I. e II. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A condição feminina e a violência simbólica. Trad. 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Partindo da citação de Simone de Beauvoir (1908-1986), pretende-se aqui traçar a gênese biográfica da autora cearense Francisca Clotilde Barbosa Lima, que nasceu em 19 de outubro de 1862, na fazenda São Lourenço, em São João do Príncipe, local onde se encontra hoje a cidade de Tauá, no sertão dos Inhamuns. Filha do coronel João Correia Lima e de Ana Maria Castello Branco, casal de abastança financeira. Pertencendo a uma ascendência familiar com valores conservadores, patriarcalistas e patrimonialistas1. Devido à seca que assolou o Ceará, em meados da década de 70 do século XIX, a família de Clotilde precisou se mudar para Baturité, onde a família materna tinha poder político. Com a migração, Francisca Clotilde teve seus primeiros estudos com a professora Ursulina Furtado. Logo ao término da instrução primária passa a estudar no Colégio da Imaculada Conceição, em Fortaleza: “No qual estudavam as moças vindas do sertão, desejosas de uma instrução e uma educação melhor” (GIRÃO e SOUSA, 1987, p. 86). 1 Agradecemos a participação do professor mestre Francinaldo de Jesus Morais, autor do livro Ecos da escravidão (2008) e membro do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NUPLIM/CNPQ, pelas contribuições quanto aos aspectos históricos citados neste artigo. https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-6 87 Nessa escola religiosa, administrada por freiras da Ordem das Irmãs de Caridade, as filhas de grandes fazendeiros do interior cearense eram estudantes internas. Essa instituição, ainda, prestava serviço aos órgãos públicos, os quais pagavam mensalmente para que as irmãs adotassem as meninas pobres/órfãs que eram vítimas da seca. O colégio dividia-se em duas alas, a das meninas abastadas, filhas dos grandes comerciantes, fazendeiros e altos funcionários de instituição pública ou privada, e, a ala das meninas pobres, as quais não possuíam condições sociais e/ou familiares. As primeiras recebiam uma educação que as preparassem para saírem aptas a um casamento, e, as outras, as órfãs, para trabalharem em casas de família ricas, seriam educadas para serem serviçais. Pode-se perceber que as desigualdades sociais eram apresentadas desde a mais tenra idade, pois na escola, as meninas/mulheres conheciam os ditames que a sociedade queria que elas seguissem, influenciando esse destino em sua formação social/humana. Dessa forma, naquela época, os casamentos eram uma negociação entre os pais, um contrato, onde o que prevaleceria, para o sucesso de um bom negócio entre as famílias, seria a formação da moça, para um consórcio ligado ao sacramento matrimonial. A educação feminina, instruída numa escola religiosa, era direcionada à obediência. Uma boa moça casadoura seria aquela educada e obediente, passiva quanto as suas próprias vontades e educada nas formas da lei da etiqueta. Deveria conhecer prendas domésticas para saber administrar uma casa e falar francês. Isto demonstraria que tinha cultura, pois conhecer uma língua europeia mostrava que pertencia ao berço da civilização culta. Além de coser, pois era a moça que costurava e bordava seu enxoval de casamento, quanto mais delicado o bordado e a finura na costura, mais demonstrava a educação da pretendente à esposa; tocar piano era outra característica que a colocava em um status de abastança cultural. A futura esposa deveria seguir todos esses requintes, pois deixaria de pertencer ao pai e passaria a ser um produto do marido. Este tinha amplos poderes sobre ela. E aquela que discordasse desse pensamento sofreria consequências por uma atitude tão insolente. Na capital cearense, a autora possui uma nova realidade, já não tem uma vida tão restrita como a da cidade interiorana. Diante de novos horizontes e com novas possibilidades, ocorrem algumas vezes choques com personalidades familiares e religiosas. E é nessa cidade, em Fortaleza, que Francisca Clotilde manifesta seus primeiros interesses pelas Letras. Ao quatorze anos inicia sua escrita literária, quando escreve em 1º de fevereiro de 1877, no jornal O Cearense, a poesia Horas de delírio. Foi nessa sociedade tão perfeita, projetada e esquematizada pelos familiares que cresceu e viveu Francisca Clotilde. Ela, seguindo os princípios da educação que recebera, aceita o casamento com Francisco de Assis Barbosa Lima, o Zeguedegue, assim que conclui os estudos no Colégio da Imaculada Conceição. O casamento ocorreu em 1º de novembro de 88 1880. A união foi difícil e pesarosa por conta do hábito de embriaguez do marido, este acaba por enlouquecer, sendo internado no Asilo de Alienados do Rio de Janeiro, de onde fugiu para lugar desconhecido. Vida e obra da escritora em questão sempre estiveram muito entrelaçadas, pois desde as suas primeiras formações a autora se via diante de uma sociedade e de uma cultura em que a mulher era vista como um ser inferior ao homem e que não possuía direito a voz dentro da sociedade. Dessa forma, Francisca Clotilde tomou como mote a realidade em que vivia e tornou-se protagonista da própria história, resistiu e sofreu as consequências da luta pela emancipação feminina na sociedade cearense do século XIX. Francisca Clotilde: o esquecimento como autora Francisca Clotilde não só nasceu mulher, como tornou-se mulher. Dedicando toda a sua vida na construção da própria história, pois queria ter um legado diferente das demais mulheres cearenses. Mesmo obedecendo aos princípios que a sociedade impunha à época não quis permanecer no papel de esposa obediente ao marido. Lutou por sua participação ativa no universo intelectual masculino, não como coadjuvante, mas como protagonista. Em meados do século XIX e início do século XX, participou ativamente na sociedade fortalezense como professora e literata, enfrentando muitos preconceitos, haja vista, que era um espaço intelectual destinado ao público masculino. Mas não desistiu, demonstrando o quanto uma mulher pode ser ativa intelectualmente. Diante disso, escreveu em revistas e jornais cearenses, bem como em outros Estados. Foi autora de romances, contos, poesias e dramas. Professora das primeiras letras, lecionou as disciplinas de Pedagogia e Metodologia da Escola Normal do Ceará. Tornou-se a primeira mulher a lecionar nessa instituição educacional. De acordo com os estudos de Luciana Almeida (2008), fundou uma escola mista, fato novo para a época, em Fortaleza, e depois a transferiu para Baturité, um espaço em que meninas e meninos estudavam juntos e podiam, provavelmente, trocarem ideias. É também em Baturité que Clotilde lança a revista “A Estrela”, na qual muitos escritores e escritoras publicaram textos. A autora em questão rompeu muitas barreiras para ser escritora e professora. Em consequência disso, foi muito criticada, recebendo indiferença e esquecimento sobre seu trabalho intelectual. Esse estado de esquecimento que autora sofreu foi principalmente por viver intensamente um amor proibido. Fica demonstrado, aqui, a importância de se estudar 89 a história de uma pessoa, porque em sua trajetória individual pode-se encontrar rastros de outras pessoas, lugares, instituições, não obstante as circunstâncias, conforme assevera Vasconcelos Junior: Chegando à questão da biografia, é interessante notar como a trajetória biográfica de um personagem pode se confundir com a de um lugar ou a de uma instituição. A pesquisa biográfica representa, muitas vezes, um recurso metodológico gerador de inúmeras possibilidades para a reconstrução histórica e, em particular, para a compreensão de determinados contextos. O fato da biografia não ser tão utilizado pela academia não retira a sua importância como processo descobridor e elucidativo de muitas questões nas pesquisas historiográficas principalmente, por direcionar seu enfoque ao homem e não às circunstâncias. [...] Outro ponto importante na produção historiográfica atual é o resgate de facetas diferenciadas dos personagens enfocados e não apenas, como nos trabalhos tradicionais, a vida pública e os feitos notáveis destes. Assim, emergem em seus textos, entre outros aspectos, os sentimentos, o inconsciente, a cultura, a dimensão privada e o cotidiano (VASCONCELOS JÚNIOR, 2011, p. 26-27). Em 1882, Clotilde realiza o Exame de Capacidade para lecionar nas primeiras letras do ensino público primário, sendo nomeada interinamente para a 23º cadeira do sexo feminino de Fortaleza. No ano de 1884, prestou concurso de provimento efetivo para as cadeiras do ensino primário superior. Em 27 de junho do mesmo ano, foi nomeada professora para a cadeira feminina superior anexa à Escola Normal, tornando-se a primeira mulher a lecionar na instituição. Durante o exercício de suas atividades na Escola Normal, acaba se apaixonando por Antônio Duarte Bezerra (Capitão Duarte), professor de Aritmética e Geometria do Liceu, com quem passou a ter um relacionamento amoroso e com ele teve quatro filhos. Entretanto, viu-se diante de uma situação de entrave, pois civilmente, Francisca Clotilde ainda estava casada com o primeiro esposo desaparecido. Por conta disso, essa união não foi bem vista pela sociedade cearense da época, pois seu dever de esposa seria esperar pela volta do marido. Clotilde optou pela busca da felicidade e recomeçou sua vida: “desejava ardentemente construir um novo lar. Não podia, pois não sabia se o marido vivia ou não. A sua inteligência foi cada vez mais se deixando envolver pelos tentáculos do misticismo” (MONTENEGRO, 1953, p, 112). Segundo Leal (1996, p.73), em 1886, Clotilde “integrava o Clube Literário, do qual A.D.Bezerra era um dos fundadores”, onde “desfruta o conceito de hábil filigranista e contista” (MONTENEGRO, 1953, p. 109). Há, nesse período, um vasto número de colaborações de Clotilde nos jornais O Domingo e no abolicionista O Libertador, do qual participavam figuras como Rodolfo Teófilo, Clóvis Beviláqua e Juvenal Galeno. Em 1886, ela redige com Duarte Bezerra e Fabrício de Barros o jornal científico e literário A Evolução. 90 Os autores Maria da Conceição Sousa e Raimundo Girão interpretam a participação da escritora em jornais e revistas, como característicos “de teor romântico confessional ou paisagístico, já em provas, nesta incluída e dramática, a de ficção e também de um ativo e atrevido jornalismo ideológico e político” (GIRÃO e SOUSA, 1987, p.86). Dentre sua produção literária ainda inclui Coleção de Contos, que na opinião de Barão de Studart se trata de “belo romancete de propaganda abolicionista” (1897); Noções de Aritmética (1889); A Divorciada, (1902); Fabiola (drama sacro em três atos) e Pelo Ceará (série de artigos editados na Folha do Comércio, por volta de 1911). Dentre todas as suas produções e participações ativas na sociedade cearense, o estopim de sua carreira como escritora se deve à publicação de seu romance, em 1902, intitulado “A Divorciada”. Cansada de tantas críticas por sua união com Antônio Bezerra, Francisca Clotilde resolveu manifestar-se por meio da literatura. Este fato causou um grande rebuliço dentro da sociedade da época, como afirma Almeida (2012, p. 220): “O livro chocou a sociedade por se tratar de um assunto tão antifamiliar. A obra focalizou o tema do divórcio setenta e cinco anos antes da lei ser aprovada no Brasil”: Afinal, estamos em 1902. Há dois anos, em 1900, Rui Barbosa votava contra a proposta divorcista de Martinho Garcez. E temos 75 anos ainda pela frente até assistirmos à aprovação do projeto divorcista – permitindo novo casamento – projeto de Nelson Carneiro, que é de 1977 (GOTLIB In CLOTILDE, 1996, p. 62). Segundo Mota (2007, p. 84), “uma missão do Romance é propor um Mundo Novo. E isso a romancista propôs. Uma proposta que só seria acatada pela Lei brasileira setenta e cinco anos depois da publicação de A Divorciada”. Dessa forma, a obra foi recebida com indiferença, como aponta Otacílio Colares: “[...] o estabelecimento de uma espécie de cinturão de gelo, um clima pior que o de combate – o da indiferença total e mesmo criminosa, porque significou omissão de toda a geração contemporânea da autora” (1977, p.59-60). Toda essa má repercussão da obra e sua atuação ativa como mulher dentro de uma sociedade totalmente conservadora contribuiu para o seu esquecimento como autora, uma vez que as grandes elites da época não toleravam as extravagâncias de Francisca Clotilde. Busca-se aqui reacender essa obra que esteve à frente do seu tempo e é considerada um clássico, levando em consideração a ideia de clássicos de Ítalo Calvino, tidos como todos àqueles “livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (CALVINO, 1993, p.11). A obra em questão é um clássico por defender um assunto que ainda é atual na sociedade do século XXI. 91 Análise da protagonista Nazaré: da representação à resistência Editado pela primeira vez em 1902, o romance “A Divorciada”, de Francisca Clotilde, narra em forma de reminiscências evidentes a vida da escritora e sua trajetória, onde pressupõe-se encontrar vestígios autobiográficos, percebidos em detalhes dentro da narrativa. A história gira em torno da personagem Nazaré, a caçula de três irmãs, órfãs de mãe e filhas do Coronel Pedrosa. Nazaré se encontrava com tuberculose, doença rara à época, por esse motivo o pai ao descobrir que a filha predileta estava doente, muda-se com a família para Redenção, interior do Ceará, no intuito de fazê-la respirar melhores ares e revigorar a saúde: Quando a moléstia atingiu-a e pesou sobre a casa uma tristeza de morte, um pressentimento negro de fatalidade, e o pai que a idolatrava, ainda mais depois da morte da esposa, curtiu longas torturas em noites de insônia, julgando perder a mais bela esperança de sua vida (CLOTILDE, 1902, p. 16). Ao chegarem ao povoado, Nazaré acaba conhecendo Chiquinho, um matuto do interior, quando estava na comunidade cuidando das pessoas carentes. Entretanto, reconhece a impossibilidade desse amor, pois já era prometida ao primo Arthur Pedrosa, bacharel em direito. Devido, também, à diferença de sua classe social ante a de Chiquinho, Nazaré segue as orientações paternas e casa-se com Arthur. Tendo um casamento pesaroso, pois logo após os votos matrimoniais, o primo apresenta-se um homem de péssimo caráter, dado ao vício de jogos e bebidas. Afundando-se em dívidas, passa a roubar e por este e outros motivos acaba fugindo para o Norte, com Glória, prima de Nazaré. Esta aguentava firme, resignada a todos esses sofrimentos impostos pelo marido. O coronel Pedrosa, movido pelo remorso, incentiva a filha a divorciar-se do bacharel Arthur. Pouco tempo depois, Artur vem a falecer e, após o período de dois anos de luto, Nazaré, finalmente, conseguiu casar-se com seu grande amor, Chiquinho. Partindo do prólogo supracitado, pretende-se analisar neste tópico a protagonista Nazaré, que segundo a descrição feita no enredo, apresenta-se como uma pessoa de espírito elevado, cheia dos mais admiráveis sentimentos cristãos, pronta a doar-se em favor do próximo: Era uma criatura privilegiada, tinha uma alma de eleição sempre disposta à bondade, procurando ensejo para derramar consolações no sofrimento alheio. Chorava pelos outros, sentia pelas crianças infelizes uma ternura especial. As outras chamavam-na irmã de caridade e ela era realmente digna desse título quando sentava ao colo um pequerrucho que a desgraça orfanara bem cedo e cobria de beijos suas facezinhas esmaecidas onde timidamente apareciam sorrisos que se acentuavam à tepidez daquelas carícias nascidas ao influxo de caridade (CLOTILDE,1996, p. 91). 92 Devido a sua moral cristã, Nazaré tem romper com o padrão de família tradicional. Mesmo diante de um casamento fracassado e com tantas dificuldades, encara o matrimônio como instituição indissolúvel: - Devias requerer o divórcio rompendo de uma vez os laços que te prendem àquele miserável. - Oh! Meu pai, não fale assim! Ele é o pai de meu filho e eu, no caráter de sua esposa, tenho o dever de socorrê-lo e de trata-lo em casos como este em que se encontra agora. Abandoná-lo quando ele expia os desvios de uma vida viciosa, à míngua do socorro dos homens, seria de minha parte uma ação revoltante, e eu jamais praticarei assim (CLOTILDE, 1996, p. 250). Nazaré se comportava de tal maneira, tendo em vista que quando a obra foi escrita, em 1902, ainda vigorava no Brasil o Decreto n° 181, de 1890, que instituía o casamento civil. Esse decreto, no entanto, não determinava a dissolução do vínculo conjugal, mas permitia apenas a separação de corpos, sendo vedado aos dois contraírem novo matrimônio condição que recaía, principalmente, sobre a mulher. Além disso, era comum à época que a mulher aceitasse as decisões proferidas pelos pai e esposo, pois era vista como um objeto de enfeite, esquecendo-se que ela era um ser humano que possuía livre arbítrio e que tinha vontades. Dessa maneira a preservação do nome social sob quaisquer circunstâncias e o casamento por interesse eram situações em que não só a autora-personagem vivenciava como todas as esposas que enfrentavam um casamento ruim, assim: O casamento, para a maioria dessas mulheres, era uma missão e não um ato amoroso que objetivasse o prazer. Aprendiam com as mães a serem obedientes e submissas à vontade de seus pais, como teriam que ser, no futuro, à vontade de seus maridos. Sua felicidade consistia em ter levado essa missão até o fim e morrer cercada do carinho dos filhos e netos e do respeito de seu marido (LEAL, 2004, p. 17l). Nazaré representava de forma completa o papel atribuído e idealizado pela Igreja à mulher, devendo ser obediente ao pai, amável e submissa ao marido e, como as irmãs, casta, recatada e com uma vida social de aparências. Embora culta, somente lia as recomendações apropriadas às moças, quais sejam, aquelas que reforçavam a idealização da felicidade doméstica: Admirava-se quando lia romances, do meio entontecedor das grandes capitais. Revoltava-se com aquelas noites de loucura passadas na ópera de Paris, nos restaurantes, em que a saúde dos moços se arruína e a falta de repouso acarreta consequências funestas para o vigor físico e para o humor. Era tão feliz o casal rústico morando em uma 93 casinha perdida na folhagem, perto de um regato murmurante que lhes trazia agradável frescura e onde os pássaros em doce revoada, vinham dessedentar-se nas horas de calor! (CLOTILDE, 1996, p.93). Seguindo as exigências da sociedade e silenciado o seu amor por Chiquinho e seu sofrimento diante da difícil união, Nazaré mantinha seu casamento de aparências: “Resignouse a sofrer calada, e no outro dia ao entrar em casa do pai aparentou o mesmo ar prazenteiro dos bons tempos. Não queria absolutamente que ninguém desconfiasse do seu sofrimento” (CLOTILDE, 1996, p. 186-187). Com receio do escândalo que poderia ser se decidisse abandonar aquele posto de esposa resignada, mantendo para si mesmo o seu martírio: Divorciada! Esta palavra fatídica vinha ao espírito da Nazaré logo pela manhã quando despertava e o sorriso do filho lhe envia um bom dia dulcificante e cheio de esperanças e de paz. Quebrara todos os laços que a uniam ao marido; mas seu coração igualmente se despedaçara. Que terrível desenlace tivera o seu casamento! Perguntava a si mesma no silêncio, recolhia e desolada, o que havia feito para merecer tão rude castigo, e a sua consciência de nada a exprobava. Repousava serena na certeza do dever cumprido. Quantas súplicas levantadas todos os dias ao Deus bondoso para que desviasse o marido do mal! Ele não escutara a prece fervorosa, queria acrisolar su’alma virtuosa na adversidade. Era cristã, resignava-se. Tinha de viver dali em diante totalmente sequestrada do mundo ocupando a mais triste posição na casa paterna. Quantos comentários se faziam a respeito dela! (CLOTILDE, 1996, p. 270-271). Após muito lutar pelo casamento viu ali uma obra perdida e ansiava pela separação, tendo o apoio do pai, afinal ele se sentia culpado pelo casamento da filha, pois ela só casara com Artur por causa da vontade e imposição do patriarca. Diante disso, para Abelardo Montenegro (1953, p.110), a obra de Francisca Clotilde visa analisar “os problemas do lar, a função do filho no casal, o casamento por conveniência, a intromissão dos pais no ato da escolha. Tudo é examinado à luz da moral dominante. A mulher cearense ainda tem o esposo escolhido pelos pais. A regra geral, entretanto, vai cada vez mais cedendo às exceções”. Vemos em A Divorciada “um romance, enfim, profundamente marcado pelos cânones católicos, traduzidos também nas recompensas e castigos finais distribuídos, respectivamente, aos personagens “bons” e “maus” ”(OLIVEIRA, 2000, p.113). Pois, ao final da história, Arthur acaba falecendo e Nazaré, divorciada e livre, casa-se com Chiquinho, o homem que sempre amou. 94 A protagonista Nazaré, embora com todos os percalços do romance, acaba representando muitas mulheres daquela época e, ainda, dos dias de hoje. Demonstra o que esposas, filhas e mães sofrem em situações como a do enredo, representando a resistência que as mulheres devem ter diante de uma sociedade machista. Considerações finais As mulheres não são como os homens – independentes entre si. As nossas almas são elas umas das outras e essa corrente enorme [...] estremece quando um elo se parte. [...] enquanto houver na terra uma mulher sacrificada, as outras não têm direito de cruzar os braços indiferentes. Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945), jornalista e anarquista mineira. Ao se estudar a biografia de Francisca Clotilde, pretendeu-se fazer um resgate da história não só da autora em questão, mas das mulheres da sociedade cearense do século XIX ao limiar do século XX. Sabe-se que, ao estudar a biografia modal, encontra-se não só histórias de vida de uma protagonista, mas todo um ambiente, um contexto social, político, familiar, religioso e intelectual ao qual o personagem estava inserido. Desta maneira, muitas escritoras encontram nos romances, na criação de seus personagens e nos cenários fictícios uma oportunidade de escrever sobre suas inquietações, críticas e vivências. Fatos esses que não poderiam ser expostos publicamente, assinados com seu próprio punho. E este foi o caso de Francisca Clotilde. Através de sua história, pôde-se constatar como era a educação das mulheres e os padrões impostos à época. Clotilde retrata e denuncia, através de sua personagem Nazaré, os anseios que sofria. Uma mulher à frente de seu tempo, obstinada, e que causou muita repercussão. Por ser forte, destemida e corajosa pagou um preço alto, sendo levada ao esquecimento por sua rebeldia. Trazemo-la à tona, mais forte e mais viva! 95 Referências ALMEIDA, Luciana Andrade de. A Estrella: Francisca Clotilde e literatura feminina em revista no Ceará (1906-1921). Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CLOTILDE, Francisca. A divorciada. [estudos críticos Otacílio Colares, Ângela Barros Leal e Nádia Battella Gotlib]. 2. ed. Ceará: Editora Terra Bárbara, 1996. CLOTILDE, Francisca. A divorciada. Ceará: Typ. Moderna a vapor - Ateliers Louls 71, RUA’ FORMOSA, 71, 1902. COLARES, Otacílio. Lembrados e esquecidos: ensaios sobre literatura cearense. v. 1. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1975. GIRÃO, Raimundo e SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza: Imprensa Oficial, 1987. GOTLIB, Nadia Battella. A Divorciada: um romance de dona Francisca Clotilde. in CLOTILDE, Francisca. A Divorciada, 2ª ed. Ceará: Editora Terra Bárbara, 1996. LEAL, José Carlos. A maldição da mulher: de Eva até os dias de hoje. São Paulo: DPL - Editora e distribuidora de livros LTDA, 2004. MONTENEGRO, Abelardo F. O romance cearense. Fortaleza: Ed. A Batista Fontenele (tip. Royal), 1953. MOTA, Anamélia Custódio. Francisca Clotilde: uma pioneira da educação e da literatura no Ceará. Ceará: Gráfica e Editora Canindé, 2007. OLIVEIRA, Caterina Maria de Saboya. Fortaleza: seis romances, seis visões. Fortaleza: Edições UFC, 2000. Sobre a atuação de Francisca Clotilde na Revista A Estrela ver: ALMEIDA, Luciana Andrade de. Francisca Clotilde a palavra em ação. (1884-1921). Dissertação de mestrado. Fortaleza: UFC, 2008. VASCONCELOS JÚNIOR, Raimundo Elmo de Paula. O mundo do Barão de Studart: 1856 – 1938. In: MACHADO, Charliton José dos Santos; VASCONCELOS JÚNIOR, Raimundo Elmo de Paula; VASCONCELOS, José Gerardo. O barão e o prisioneiro: biografia e história de vida em debate. Fortaleza: Edições UFC, 2011. 96 CAPÍTULO 7 Entre o elã erótico e a urgência crepuscular do corpo: a resistência ululante da mulher na poética de Regina Lyra Guilherme Ewerton Alves de Assis, Hermano de França Rodrigues Introdução Procurar o que haja de bom Procurar a melhor forma de amar Sem restrições, Independente, Liberado E amante. Procurar o relacionamento perfeito Procurar fora, O que tem dentro de você. (LYRA, 1998, p. 93) Pode-se afirmar que o sexo e suas vicissitudes sempre foram um fermento para a criação literária, possibilitando a grafia dos prazeres nas mais diversas sociedades – estas contrárias ou não à literatura erótica. Segundo Mário Vargas Llosa, em um capítulo intitulado “O desaparecimento do erotismo”, em seu célebre livro A civilização do espetáculo (2013), escreve que: “Há muitas formas de definir o erotismo, mas a principal talvez consista em chamá-lo de desanimalizar do amor físico.” (LLOSA, 2013, p. 57). O autor diz, ainda, que, no passado, o coito era puramente instintivo, entretanto, nos dias hodiernos, o ato https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-7 97 sexual passou a ser uma atividade criativa que esgarça o prazer, cuja finalidade é encenar e refinar, tornando-o uma obra de arte. Nesse caso, a arte expande-se e toma diferentes vestes, a exemplo da escrita de poemas e/ou outros gêneros. Em um posfácio intitulado Da lira abdominal, Eliane Robert Moraes, na Antologia da Poesia Erótica Brasileira (2017), disserta: São misteriosos os laços que unem a poesia ao erotismo. Misteriosos e duradouros, já que o despertar da lira de Eros parece coincidir com a própria origem das línguas e, desde sempre, seus ecos vibram com intensidade por toda parte. Não admira, pois, que a escrita erótica tenha sido praticada por tantos poetas e muitos deles tenha interrogado tais segredos para melhor conhecer o pacto entre a carne e a letra (MORAES, 2017, p. 281). É indissociável, à vista disso, o fazer poético voluptuoso, uma vez que os versos, repletos de figuras de linguagem, sobretudo a metáfora, são um terreno fértil para o florescimento do erotismo. Este, seria, portanto, amalgamado ao simulacro e/ou fingimento, posto que se alberga no horto da fantasia e, invariavelmente, apenas neste solo da ficcionalidade pode florescer plenamente: “Não há erotismo sem fantasia, assim como não há literatura sem ficção” (MORAES, 1985). Assim, através da poesia, aciona-se no sujeito a fantasia, como um mecanismo para trazer à lume o que estava mais abscôndito em seu inconsciente. Llosa (2013) cunha que o erotismo, além de enobrecer e embelezar o prazer, “[...] é também uma atividade que traz à superfície aqueles fantasmas escondidos na irracionalidade que são de índole destrutiva e mortífera” (LLOSA, 2013, p. 58). É, nesse entremeio que irrompe o erótico, imerso na ficção e quimera, como um fio condutor: Estamos navegando nas águas da fabulação: por isso torna-se praticamente impossível demarcar a linha entre o “real” e a ficção”. Afinal, estamos tratando de fantasias sexuais. Graças à imaginação, o homem pode sempre passar todas as fronteiras alcançadas pelo corpo renovando o fogo do desejo com o combustível da fantasia. Essa potência, o fantasiar exacerbado, marca a produção pornográfica de forma específica e singular. Sua característica é a total sexualização da realidade, isto é, a erotização de toda e qualquer percepção que o sujeito tem no mundo, como se fosse um teatro dos seus desejos. [...] É isso que promove a fantasia pornográfica; essa exacerbação da sexualidade, uma espécie de discurso vivo do desejo em estado bruto, animal (MORAES, 1985, p. 57, grifo nosso). Dito isso, o germe da vida erótica colide com a criação literária, porquanto os dois se transladem sob a égide do desejo, não se esgotando, mas sim, dardejam uma transcendência. A poesia possibilita ao erotismo que se manifeste sem interditos, pois, as palavras encarnam algo, como o sexo, transcende-o e ultrapassa-o, no entanto não perde os princípios primários (PAZ, 1982). Os poemas eróticos, através de jogos de linguagem, ritmo e dicotomias, remontam textualmente ao espetáculo erótico: “A imitação não pretende simplificar, mas 98 complicar o jogo erótico e assim acentuar seu caráter de representação. O erotismo não imita a sexualidade, é sua metáfora. O texto erótico é a representação sexual dessa metáfora” (DURIGAN, 1985, p. 8). A força poética permite ao leitor tocar o impalpável e abraçar o Eros que nele habita. A imagem que a poesia engendra na mente de quem a ler é uma cópula; a poesia exerce a (mal)dita função de erotizar a linguagem. Com efeito, a sexualidade se vale de elementos metafóricos – cunhados desde A poética de Aristóteles – para grafar o erotismo: A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar: A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a poética que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora (PAZ, 1994, p. 12). Esse fato comprova a existência tão visceral de poemas que tem, por temática basilar, o erotismo. Ao recorrermos à historiografia mundial, lembramo-nos de grandes nomes, como: Bocage, com a crueza vocabular do sexo; Gregório de Matos, com a profanação do divino; Hilda Hilst, com seus malditos e gozosos poemas; Carlos Drummond e seu amor natural; etc. Diante disso, exemplificamos o que já fora dito: a poesia é a via régia do erotismo. Vestes poéticas da resistência feminina Desde as calendas da antiguidade, a figura feminina, amiúde, fora vista pela Cultura como mais frágil e, por conseguinte, submissa ao homem. Obviamente, isso refletiu na escrita de mulheres, uma vez que, em quase todas as épocas de crise ou decadência social, insurgiram grandes poetas. Assim, o cansaço e/ou a contravenção de uma sociedade não extingue as artes, nem silencia uma pena, mas, pelo contrário: suscita o aparecimento de artífices (PAZ, 1982). Em vista disso, as várias tentativas de silenciar e apagar as vozes femininas da literatura foram, na verdade, atiçadoras para o grito destas. Os primeiros escritos femininos eram, ainda, na alcova, de forma abscôndita, em diários. Estes, sendo narrativas em primeira pessoa, cujo interlocutor da mensagem era ausente, pôs-se, então, a enclausurar-se em um quarto. A mulher, longe da sociedade, poderia confessar seus sentimentos, ímpetos e pensamentos, pois era interditada de falar sobre esses publicamente. Isso talvez justifique a tendência dos textos de autoria feminina serem “voltados para o eu”, 99 mais intimistas e interiores. Portanto, a exemplo do século XIX, “a poesia feminina era uma fala camuflada, um discurso de recalque de desejo, do erotismo e da sexualidade” (PAIXÃO, 1991, p. 136). Todavia, esse refreio social que tenta castrar, simbolicamente, a figura da mulher, tornou-se o fundamento de sua escrita: A lacuna desses textos não tem aí o efeito exatamente de esconder a verdade, mas é um elemento estruturante: é em torno do vazio, do buraco, da falta que a escrita feminina se constrói. Como um tecido esgarçado, como uma renda, em que as linhas constituem e margeiam os buracos, os vazios, mas não os preenchem, não os obturam (BRANCO, 1991, p. 57). No século XX, as mulheres, no que lhe tangem, passaram a se fazer mais presentes na literatura. Apesar de serem vistas, ainda, de forma abjeta, bem como seus escritos serem considerados “subliteratura” ou “literatura menor”, um grande número de escritoras, contistas e poetisas vieram a lume com textos irreverentes, satíricos e denunciantes da hipocrisia da “(i)moral cultura”. Essas transgressoras, por excelência, escreveram como forma de resistir e fazer ecoar gritos de revolução, finalmente, pela minoria oprimida, ou seja, elas próprias. Outrossim, retiram os seus corpos da posição da corpo-objeto (do desejo masculino) para o patamar de corpo-agente, não mais como domínio das masculinidades: Consoante com um movimento de fragmentação das identidades, percebido a partir dos meados do século XX, ter-se-ia nesses textos – tanto em termos de autoria quanto de estrutura fabular – um feminino deslocado e transgressor, que reivindica e agência e voz, em meio ao silenciamento, à anulação e à neutralização que seguem operando sobre as mulheres, desde tempos imemoriais, como garantia de uma pretensa feminilidade. Esta concepção de feminilidade, frequentemente associada à passividade e à docilidade natas, exclui posturas reivindicatórias ou mais agressivas por julgar que estas correspondem ao modo masculino de organizar e construir o mundo, não sendo adequado às mulheres direcionar seus esforços para essas questões (BORGES, 2013, p. 28). Obviamente, essas investidas de resistência da mulher através da escrita acabam incomodando, pois tocam em questões “sacramentais” e polêmicas da Cultura. Todavia: “Ou por calar, por se fazer silêncio, por insistir, [...] ou simplesmente: a nada dizer. E, aí (ou especialmente aí) ele incomoda” (BRANCO, 1991, p. 17). Dito isso, se a escrita feminina por si só já transgride, a escrita erótica transcende a transgressão e se apresenta como uma resistência ainda maior, visto que a sexualidade feminina, historicamente, deveria estar condicionada ao espaço privado e sob a égide do masculino – mesmo que haja um discurso de libertação feminina: Nesse caso, uma postura de avanço sexual por parte de uma mulher é tida, não raras vezes, ou como apropriação do modo masculino de sedução, ou como sintoma da 100 desvalorização que a mulher atribui a si mesma ao se ‘oferecer’ sexualmente ao desejo masculino, sem encenar a recusa que seria própria da sensualidade feminina. (BORGES, 2013, p. 45) Por exemplo, na Idade Mediévica, havia intensas súplicas e exigências da Igreja em prol do matrimônio e da união conjugal. Todavia, nem sempre foi assim, nos primeiros anos do cristianismo, a mensagem pregada era contrária ao casamento monogâmico e, com efeito, a dissipação de qualquer prazer carnal, mesmo que ocorresse no leito do casal. Com a vasta liturgia plasmada nos textos de Paulo, Tertuliano e Cipriano, por exemplo, houve, nos primevos tempos da igreja, um apelo à contingência, ao celibato, por consequência, o não “casar-se”; pois, o casamento poderia trazer pecados, já a vida casta e desacompanhada não. (VAINFAS, 1986) Os textos que objetivavam à virgindade, apesar de serem direcionados para todos, eram dardejados, em especial, às mulheres: “[...] enaltecia a virgindade, educava as mulheres para a vida continente e expunha os erros que poderiam levar as virgens à queda [...] os textos sobre virgindade davam pouca atenção aos homens.” (VAINFAS, 1986, p. 9 -10). Justificava-se que Maria, mãe do Cristo, concebera-o virgem. Logo, o verdadeiro casamento era a virgindade, posto que era a representação da união divina entre Deus e o ser humano, entre Cristo e a Igreja. Consequentemente, o discurso dos padres enfatizava o elo entre o casamento e a morte, tornando o quarto de núpcias um lugar fúnebre, onde ocorria o mero prazer dos sentidos. No contemporâneo, as mulheres terem e expressarem seus desejos “carnais” é tido como, talvez, uma blasfêmia tanto aos homens quanto à religião: Se falar de sexo é, por si mesmo, uma transgressão, a escrita erótica das mulheres se configura como mais transgressora: culturalmente, as mulheres não são autorizadas, pela lógica patriarcal e falocêntrica, a falar de sexo; elas são o sexo e, portanto, não falam, elas são faladas. Enunciadas pelo desejo masculino, aparecem na literatura erótica como prêmio a ser conquistado, ou como objeto de satisfação masculina. (BORGES, 2013, p. 109) Diante dessa resistência da mulher através da literatura, bem como a amálgama entre o erotismo e a poesia. Percorreremos o plano conteudístico dos versos da poetisa paraibana Regina Lyra, cuja escrita reivindica a voz das mulheres, chamando-as ao grito de liberdade, sobretudo sexual, que, ao longo dos anos, foram interditadas pelo nocivo machismo latente na sociedade. Regina, em seus escritos, atravessa a poesia e, concomitantemente, o eu-lírico – claramente feminino – por venábulos do erótico, como forma de transgredir às proibições, bem como demostrar o vigor de resistência da mulher. 101 O erótico como resistência no tracejo poético de Regina Lyra Preambularmente, Regina Lyra nasceu em João Pessoa, capital da Paraíba. Hodiernamente, é escritora, poeta, dedicou-se ao magistério na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Utilizando os poemas como grito de protesto social e resistência, sobretudo das mulheres, sua poiésis verseja acerca da procura do poético, traceja massivamente sobre o corpo, existencialismo, sensualidade e, por fim, erotismo. Ademais, alguns poemas têm uma tendência concretista, ao (des)organizar a sintaxe para formar uma ou mais palavras, dando ênfase ao sentido do corpo do texto: Extasiados No corpo de um homem forte, Um corpo feminino surge. Surge chamando cálido e sereno, Almeja o encontro do parceiro ardente. Nestas ondas reluzentes de cobiça, Corpos suados, bocas espalmadas, Mãos deslizantes buscam toque mágico. Sussurros na esperança. Amor sonhado em luz faceira, Não tem nexo, paixão trigueira, Agora regressar ao sexo. Corpos amantes esmorecidos, Saciados por um instante Descansam. Pernas entrelaçadas G e m i d o s (LYRA, 2011, p. 40) 102 No poema anterior, a poetisa descreve detalhadamente o ato sexual, de dois seres que, através das mãos, “buscam o toque mágico”, ou seja, através do ritual que o sexo possibilita, almeja-se a transcendência, o sublime, o além, o mágico e/ou sagrado: “A experiência erótica ligada ao real é uma espera do aleatório, é de um ser dado e das circunstâncias favoráveis. O erotismo sagrado, dado na experiência mística, quer somente que nada perturbe o indivíduo” (BATAILLE, 1987, p. 17). Afinal, é a partir do sexo que os amantes buscam a continuidade e fechamento de suas fendas ou fissuras corpóreas. (BIRMAN, 1999) Em outros versos, o eu-lírico feminino descreve teatralmente o pós-sexo: “Corpos amantes esmorecidos, / Saciados por um instante/ Descansam. / Pernas entrelaçadas”. Pode-se depreender disso, o ímpeto dessa persona poética para manter o corpo do amado entrelaçado ao seu. Pois, a proximidade dos amantes promove a continuidade da excitação, e, por consequência, a excitação atinge o seu ápice quando há o máximo contato corpóreo entre os envolvidos. (LOWEN, 1990). O desejo de permanecer fundida ao objeto amado do eu-poético feminino “fere” o machismo de que: após o ato sexual, a figura masculina deve abandonar a mulher na cama e ir embora. Ao cunhar esses versos, a poetisa insurge, no papel, o desejo da maioria das mulheres após o ato sexual: A mulher que ama eroticamente pode ficar horas e horas aconchegada ao corpo de seu homem, ouvindo as batidas de seu coração, sua respiração, seu ressonar. Pode ficar horas e horas a olhá-lo, a acariciá-lo, a observar sua pele, a respirar seu cheiro. O despertar do homem, sua atividade, perturbam essa paz [...] (ALBERONI, 1986, p. 211) Além de tudo, o que desperta a atenção do leitor é a fragmentação da palavra “gemidos”. Trata-se, pois, de um recurso que fornece um maior sentido ao poema. Em decorrência da disposição e cadência, as letras da palavra jorram a melopeia1: “a palavra tem uma dimensão GRÁFICO ESPACIAL / uma dimensão ACÚSTICO-ORAL/ uma dimensão CONTEUDÍSTICA / agindo sobre os comandos da palavra nessas dimensões” (DE CAMPOS, 1975, p. 46). Sendo assim, o conteúdo e o sentido maior expresso por tal digressão da palavra seria o: gozo – onde há gemidos –, cuja intenção, no momento do êxtase, é torná-lo mais duradouro, gradativo e, de certa forma, o prazer concentrado não apenas nas zonas claramente erógenas, mas “dividido” e/ou distribuído pelo corpo. Sobre o gozo feminino: “Ela jamais goza no sentido em que sua excitação terminou, goza e é um gozo que circula sempre sem extinguir-se, reabsorver-se... a sua única exigência é: tributem honra a todas as partes, à boca e ao sexo, ao útero e à vulva, à orelha ao ânus” (ALBERONI, 1986, p. 22). 1 Segundo Ezra Pound, em Abc da literatura (2013 [1934]): “Há três modalidades de poesia: 1 – Melopeia. Aquela em que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta o seu significado. (POUND, 2013, p. 11) 103 Em outro poema erótico, o instrumento basilar da fase concretista também aparece abundantemente. Além do mais, neste, o eu-lírico analisa o ato sexual como uma brincadeira pueril, assim como n’A história do olho2 (1928), uma vez que o lúdico contém, em sua essência, uma presença figadal de Eros, a exemplo dos fetichistas e os seus jogos eróticos. O fetiche, por seu turno, relaciona-se ainda mais com a tenra infância – e suas brincadeiras, pois, Safatle, ao recorrer ao pensamento freudiano, fala: “a etiologia do fetichismo está ligada a impressões sexuais precoces próprias da infância, impressões essas que produziriam traços mnésicos determinantes para a escolha de objeto” (SAFATLE, 2015, p. 48). Além disso, o mestre vienense ainda afirma que o fetichismo se apresenta, abundantemente, na vida amorosa; posto que, no amor, faz-se necessária uma grande valorização psicológica do objeto sexual (FREUD, 1905). Em síntese, em decorrência do fascínio proporcionado pelos prazeres, todo mundo é um tanto fetichista no amor (BINET, 2001 apud SAFATLE, 2015, p. 40). Portanto, o brincar no momento do ato sexual, bem como os brinquedos e jogos eróticos são estimulantes no que tange ao erotismo: Brincando de Fazer Amor Enquanto você brinca, eu abro orquídeas. Levo meu cheiro de fêmea no cio. Abro as pétalas e as coxas, Em movimento contínuo. Enquanto você brinca, eu abro orquídeas. Prolongo seu êxtase, MordidaS i n g u l a r e s 2 Um dos maiores clássicos da literatura erótica escrito pelo francês Georges Bataille (1897 – 1962). No livro, o narrador relata a história das descobertas de dois adolescentes, Simone e seu amigo, cujo narrador conta que, através de brincadeiras, os personagens têm relações sexuais bizarras e com objetos estranhos, como leite de gato, ovo, urina. 104 Penetre a concha. Neste sentir de gritos, gemidos, Loucos sussurros. Gere orgasmos múltiplos. Enquanto você brinca, Eu abro orquídeas P a r a Você (LYRA, 2011, p. 103) A disposição das palavras garante uma carga de sentido, como já foi discorrido. Todavia, nesse caso, a organização das letras pressupõe que foram organizadas semelhante ao brincar de uma criança (ou as letras foram dispostas semelhantemente como uma criança faria). Visto isso, o pai da psicanálise, discorre que o brincar do infante é um processo que arquiteta a captação do que é real e que os jogos infantis se enquadram como uma atividade sexual primeva (FREUD, 1905). Essas ideias são retomadas pelo mestre vienense, em seu artigo seminal O escritor e a fantasia (1908), interseccionando a criança com o poeta. Freud afirma que o brincar infantil, assim como a atividade de fazer poemas, seria a introdução de elementos do mundo em uma nova organização criativa, dardejando a obtenção de prazer. Postula, ainda, nesse seu breve artigo, que a capacidade de brincar não fica restrita à tenra infância, mas pode ser revivida pelo adulto como um método para suportar o mal-estar na civilização3 (FERREIRA, 2018). Outrossim, a analogia gritante entre as zonas erógenas e/ou órgãos sexuais, como em: “Enquanto você brinca, eu abro orquídeas/ [...] abro as pétalas e as coxas”, representando mimeticamente o “desabrochar” da vulva feminina no momento do ato sexual. A exemplo das pinturas de vaginas que Clódia fazia, no Contos D’Escárnio. Textos grotescos (1990), de Hilda Hilst, a metáfora entre erotismo/sexo e plantas é comum na literatura, sobretudo erótica: “[...] o sexo é a raiz, o erotismo é o talo, e o amor, a flor. E o fruto? Os frutos do amor são intangíveis. Este é um de seus enigmas” (PAZ, 1994, p. 37). A persona poética também deixa claro o prazer nas “mordidas”, nesse caso, diz muito acerca de um apego oral 3 O sofrimento é causado: pelo próprio corpo, que é fadado ao declínio e a degradação; pelo mundo externo, de onde provém forças avassaladoras e algozes; e pelas relações e convenções com outros seres humanos (FREUD, 2010 [1929], p. 20). 105 do sujeito. As mordidas são tão excitantes ao corpo que já foram postuladas no antigo texto indiano sobre o comportamento sexual do ser humano, o famigerado Kama Sutra, de Vatsyanyana, depois de falar sobre os profusos tipos de mordidas e como estas avultam o desejo. 4 Em outro texto poético de Regina Lyra, percebemos mais ainda esse anseio feminino em permitir que as mulheres retirem as mordaças colocadas pela sociedade, usufruam dos prazeres, deleitem-se com seu corpo e, finalmente, gozem. O gozo, nesse quesito, assume o papel de grito, de permitir à mulher a voz, uma vez que, por muitos anos, a figura feminina teve seus desejos e anseios refreados pela Cultura. Por exemplo, historicamente, as mulheres histéricas eram vistas como possessas por demônios, no entanto, no segundo caso de Estudos sobre a Histeria (1895), de Sigmund Freud, tratando-se do caso da senhora Emmy von N., ocorre a primeira “cura pela fala”. Nesse novo método, o pai da psicanálise não apenas almeja eliminar os sintomas, mas permitir a paciente conhecer os desejos. Para tanto, Freud, através da associação livre, leva-a a recuperar recordações (BOROSA, 2005). Logo, o mestre vienense oferece um lugar de fala para as mulheres, que até então estavam sendo silenciadas pela sociedade patriarcal. Na literatura, por sua vez, não poderia ser diferente: Gozo Como poderia esquecer-te? Plantaste em mim teu cheiro e teu gosto. Tens antídoto? Quero sentir-te, Antídoto para quê? Vagueio em pensamentos. Voam, chegam a ti. Entrelaço meus braços em teu corpo, Em um longo abraço. Minhas pernas enroscam-se nas tuas Sinto teu sexo pulsar dentro de mim. Teu gemido Em meu gozo, Afinidade Total. (LYRA, 2011, p. 45) 4 Segundo Sigmund Freud, em seu livro Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), postula que há três fases psicossexuais, respectivamente: oral, anal e fálica. O sujeito, por seu turno, pode ficar fixado em alguma dessas fases, por exemplo: na fase oral, a criança sente prazer e satisfação através da introdução de objetos e/ou do seio materno em sua boca. 106 O poema apresenta-nos um eu-poético que, após um primeiro coito com o amado, fantasia outros momentos de êxtase, descrevendo-os detalhadamente: “Entrelaço meus braços em teu corpo,/ Em um longo abraço. Minhas pernas enroscam-se nas tuas.”. Porém, apesar da verossimilhança, não se passa de um devaneio: “Vagueio em pensamentos./ Voam, chegam a ti.”. Esta fantasia é um meio pelo qual um conteúdo recalcado ressurge, pois se encontra no inconsciente. A fantasia é, portanto, uma cena virtual, uma representação difusa de nossas tendências do arcabouço psíquico. Como resultado desse elemento fantasioso, emerge o prazer: “sua fantasia, vez por outra, é o estímulo necessário, o desencadeador que permite obter o prazer de um orgasmo” (NASIO, 2007, p. 34). A fonte motriz da fantasia é, assim, o núcleo do gozo, circunscrevendo a encenação fantasística, sendo a fantasia uma maneira de gozar. Quando partes corpóreas participam ativamente em busca da descarga da excitação mais alavancam o prazer do orgasmo e, caso ocorra a participação do corpo inteiro, acontece o orgasmo completo, aproximando-se do êxtase (LOWEN, 1990). Ademais, no que toca ao “gozo”, consoante o psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), ao retomar e reformular os conceitos freudianos em seu “retorno a Freud”, escreve que a finalidade do corpo é gozar. (LACAN, 1985). Logo, o corpo almeja o gozo a todo custo e de qualquer maneira: Colocando, pois, a satisfação e o gozo no fundamento do erotismo como sendo ao mesmo tempo o seu motor e a sua finalidade, o discurso freudiano concebeu a sexualidade no campo do desejo. Com efeito, aquilo que caracteriza o sujeito seria justamente a possibilidade de desejar, sendo essa a marca insofismável do seu ser. (BIRMAN, 1999, p. 30) Essa fantasia, por seu turno, emerge do perfume e gosto do amado: “Plantaste em mim teu cheiro e teu gosto”. Sobre o cheiro, é necessário ter em vista que o erotismo é uma forma de conhecimento, bem como uma troca de saberes entre o corpo dos sujeitos envolvidos, é perceptível a linguagem “não verbal” do corpo – e as mulheres sabem disso: “O primeiro aspecto explorado pela mulher no corpo do homem, o primeiro que ela percebe é o cheiro. O cheiro é determinante. Quase sempre baseada no cheiro ela decide se continua a ver aquele homem ou se o evita” (ALBERONI, 1986, p. 197 – 198). No caso do eu-poético feminino dos versos, o perfume do objeto amado é tão avassalador e arrebatador, que se entra em um estado fantasmagórico, imaginando o amado em atos luxuriosos. Além do cheiro, no poema, o “sabor” do ser amado também exerce um papel fundante da fantasia: “Explorado o cheiro, a mulher passa aos sabores. Esse ato cognitivo necessita de um início erótico, o beijo. [...] Para a mulher, o sabor da boca é tão determinante quanto o cheiro, ou mais ainda” (ALBERONI, 1986, p. 198). 107 Conclusão Ao percorremos os terrenos da poesia, constatamos a repetição de um elemento fundante em sua estrutura: o erotismo. O fazer poético, através das metáforas e outras figuras de linguagem, propiciam a eclosão como incremento do erótico. Este, cunhado magistralmente por punhos masculinos, em contrapartida incutiram os escritos de erotismo das mulheres nas alcovas, nos recônditos. Todavia, sobretudo no fim do século XIX e início do XX, grandes poetisas vieram à luz com seus textos em prol da resistência feminina e, valendo-se do erótico, gritaram que as mulheres também podem sentir prazeres, uma vez que, no passado, havia textos que orientavam as mulheres a controlarem todos os seus órgãos dos sentidos, pois estes eram vistos como uma porta para o desejo sexual (VAINFAS, 1986). É nesse entremeio, dessarte, que versa a persona poética de Regina Lyra. Os poemas da poetisa, ao dissertarem acerca do erotismo, expõem os desejos do feminino, uma vez que estes renegados pela sociedade durante a história. Em seus versos, inclusive, a mulher tem livre escolha do seu amado, podendo deitar-se com mais de um, sem ser julgada e/ ou interditada pela sociedade patriarcalista. Regina Lyra permite à mulher sentir desejos voluptuosos, gozar com próprio corpo e resistir às pressões da cultura no que tange ao sexo. Referências ALBERONI, Francesco. O erotismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L &PM, 1987. BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999. BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina: um estudo de Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013. BOROSA, Julia. Conceitos da psicanálise: histeria. São Paulo: Segmento-Dueto, 2005. BRANCO, Lúcia Castello. O que é a escrita feminina. 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São Paulo: Tordesilhas, 2011. 109 CAPÍTULO 8 Literatura e História: amor e opressão em “O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë Gabriele Teixeira Diniz, Gustavo Abílio Galeno Arnt Introdução A escrita do capítulo aborda questões relativas à representação do feminino e da mulher na obra O Morro Dos Ventos Uivantes (1847), de Emily Brontë, buscando entender o modo como a personagem protagonista foi construída por intermédio do amor e do desejo na sociedade patriarcal no século XIX. Apresentaremos, ainda, a investigação do modo como a literatura formalizou esteticamente esses sentimentos ao longo desse período, tendo em vista que a obra de arte manifesta e revela as ideologias1 sociais existentes. O texto literário possui uma função social e um valor estético, visto que o elemento social, externo à criação artística, condiciona a estrutura literária, atuando como princípio estruturante quando internalizado organicamente à forma artística (CANDIDO, 2006). Sabe-se que vivemos em uma sociedade onde o machismo e o patriarcado operam silenciando, oprimindo e violentando as mulheres; a propagação do discurso machista e patriarcal vem ultrapassando as barreiras do tempo e atinge de forma direta e/ou subjetiva as mulheres. Esse longo processo de estruturação criou, consequentemente, visões sociais de masculino e feminino, diretamente ligadas aos mecanismos de dominação masculina, que serão figuradas pelas personagens da obra analisada. O Morro dos Ventos Uivantes retrata a história de Cathy, uma moça apaixonada por Heathcliff. Juntos protagonizam uma história de amor impossível. Ela sofrerá opressão de 1 Entende-se por ideologia o conceito apresentado por Marilena Chauí (2008), como o conjunto de saberes e práticas que estão a serviço de um projeto de dominação e exploração. https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-8 110 seu meio social, familiar e do seu próprio amado. Cathy é personagem de uma literatura que participa da naturalização da divisão entre os sexos e que estabelece um sistema cognitivo que, por sua vez, passa a funcionar como paradigma de conhecimento e reconhecimento do mundo, de modo a fundar um círculo vicioso que impulsiona os mecanismos de percepção da realidade do dominado a partir da perspectiva do dominador, ou seja, o dominado entende o mundo pelos olhos do dominador (BOURDIEU, 2002). A protagonista passa a viver pela ótica de Heathcliff; as necessidades dele passam a ser dela, os pensamentos e percepções também. Quando esses ideais machistas são transformados em senso comum, a ideologia encontra assim sua vitória e faz vítimas da opressão (BOURDIEU, 2011). A personagem se torna peça chave do processo de produção e reprodução da violência sofrida, pois ela passa a alimentar a ideologia que sustenta as práticas sociais que fomentam a opressão. Investigar a representação do feminino na literatura (e, por contraste, do masculino) justifica-se pela possibilidade de analisar as formas estéticas historicamente construídas para exprimir o amor e a mulher por meio da imaginação, identificando a ideologia subjacente às formas estéticas de representação das mulheres e refletindo sobre como o amor atua enquanto mecanismo de dominação social em diferentes momentos. Em face da importância do lugar ocupado pela mulher para o funcionamento do sistema capitalista e entendendo que movimentos e análises relacionados a esse tema, onde está posto o pilar do trabalho, desempenham um papel central na luta feminista e na luta de classe, compreendemos a necessidade de analisar e superar esses papéis formalizados pela obra literária. É preciso compreender, ainda, que o pilar deste trabalho está na crítica literária dialética. Para Antonio Candido (1974), deve-se entender a obra por meio da sua complexidade e não criando antagonismos excludentes entre a arte e a sociedade. Dessa forma, não podemos reduzir o texto a uma continuação da sociedade nas nossas análises e, sim, fazer uma leitura orientada pelos traços culturais e sociais que são incorporados à estrutura literária, de modo a extrair da obra uma compreensão mais clara do que está no exterior dela. Não podemos esquecer, também, que a literatura tem um poder social inestimável, não podendo ter sua base atrelada a outra que não a complexidade da história e do próprio ser humano. Para embasamento teórico dos pontos a serem levantados, foram estudadas e debatidas obras O Mito da Beleza (1992), de Naomi Wolf, O Segundo Sexo (1949), de Simone Beauvoir e A Dominação Masculina (1998), de Pierre Bourdieu etc. Buscando entender de que modo o amor é formado na sociedade após a ascensão do capitalismo e, ainda, como esse sentimento vai mediar as relações entre homens e mulheres, foram estudadas as obras O Amor nos Tempos do Capitalismo (2012) e Erotismo de autoayuda. Cincuenta sombras de Grey y el nuevo orden Romántico (2014), de Eva Illouz. 111 O amor nos tempos do Capitalismo “Que pode uma criatura senão,/ Entre criaturas, amar?”... Esses versos do poema “Amar”, de Carlos Drummond de Andrade, apontam para um aspecto essencial do amor, mas praticamente desconsiderado pelo senso comum: o amor é uma relação social. Isso implica dizer igualmente que essa relação é histórica e, enquanto tal, carrega consigo as marcas das raízes profundas por meio das quais a sociedade se produz e reproduz. Ao longo da história, o amor assumiu feições muito diversas. As formas de amar variam de acordo com classes sociais, idade, geografia, etc. Além disso, o amor se associa às construções ideológicas do feminino e do masculino, bem como está diretamente ligado à visão social do sexo. Neste capítulo, nos propomos a investigar o modo como a literatura formalizou esteticamente o amor. Buscaremos contrastar as visões do feminino e do amor no século XIX. Apoiando-nos na perspectiva de Eva Illouz (2012), que busca compreender as formas que o amor assumiu na era do capitalismo, partimos da hipótese de que a literatura não apenas exprimiu ou representou as diversas formas de amar ao longo do tempo, mas também participou ativamente da construção social ideológica dessas formas de amar. Desse modo, não nos perguntamos apenas sobre “como as pessoas sentiram”, mas, e sim, “por que as pessoas sentiram”, em outras palavras, por que desejamos o que desejamos? Illouz argumenta que a modernidade constrói e instaura afetos ao mesmo tempo em que é construída por eles. No século XX, o capitalismo teria assumido como componente estrutural de seu funcionamento a dinâmica dos afetos, que, num mundo esvaziado pelos laços humanos, os quais foram reificados pela sociedade da mercadoria, contraditoriamente levam os sujeitos a manifestarem na vida pública os afetos inicialmente forjados na vida privada. Conforme indica Peter Szondi (2004), o sentimentalismo é característico da burguesia em sua fase de ascensão e consolidação como classe econômica e política hegemônica, surgido como reação à impotência dos instintos diante da ascese intramundana imposta pelo protestantismo enquanto se forjava o “espírito do capitalismo” de que fala Max Weber (2004) e também como fuga da realidade externa na qual o burguês, em seu embate com a aristocracia, se sente desprovido de direitos, ameaçado e impotente — o núcleo familiar se transforma na célula organizativa da constituição da subjetividade moderna em contraste com o mundo externo hostil. Ao longo do século XVIII, o desenvolvimento do capitalismo se associa a um crescente interesse pelo ego, pela dimensão subjetiva do indivíduo enquanto sujeito autônomo e isolado (VALE DA SILVA, 2013) e alimenta toda uma literatura focada na subjetividade enquanto elemento relativo, conformado pela experiência e pela ótica do sujeito em sua interação com o mundo, não mais como uma constituição imutável de ordem biológica 112 ou divina. Sendo assim, nos séculos XVIII e XIX, o afeto, em especial o amor, encontra-se fortemente assentado sobre a constituição da perspectiva subjetiva individual no seio do núcleo familiar burguês, em oposição à exterioridade de relações sociais objetivas. Ocorre, no entanto, que esse processo de interiorização, de ensimesmamento dos afetos, é tão social quanto às relações objetivas exteriores ao mundo privado. Conforme explica Illouz, O afeto é uma entidade psicológica, sem dúvida, mas é também, e talvez até mais, uma entidade cultural e social: através dos afetos nós pomos em prática as definições culturais da individualidade, tal como se expressam em relações concretas e imediatas, mas sempre definidas em termos culturais e sociais. (ILLOUZ, 2012, p. 10) No século XX, a sentimentalidade burguesa fomenta uma modificação importante nas formas de sociabilidade, conduzindo para a esfera pública a dinâmica dos afetos próprios à vida privada. Nesse ponto, não se trata apenas do processo de mercantilização dos afetos, que foi tão representado no romance do século XIX, e que ganhou um caráter industrial no século XX. O que ocorre é um fenômeno ainda mais sofisticado (e talvez ainda mais cruel), pois se trata da emergência daquilo que Illouz chama de capitalismo afetivo. O capitalismo afetivo é uma cultura em que os discursos e práticas afetivos e econômicos moldam uns aos outros, com isso produzindo o que vejo como um movimento largo e abrangente em que o afeto se torna um aspecto essencial do comportamento econômico, e no qual a vida afetiva – especialmente a da classe média – segue a lógica das relações econômicas e da troca (ILLOUZ, 2012, p. 6). Esse longo processo de estruturação dos afetos na modernidade forjou consequentemente visões sociais de masculino e feminino, indissociavelmente ligadas aos mecanismos de dominação masculina. Conforme explica Bourdieu (2012), a dominação masculina, enquanto forma de violência simbólica, assenta-se sobre processos que naturalizam o histórico, transformando divisões arbitrárias vinculadas a diferenças biológicas sexuais em diferenças essenciais que transbordam a dimensão estrita da biologia e emanam diretamente para as relações sociais culturais, como se as divisões sociais entre os sexos se justificassem naturalmente por fazerem parte da ordem natural das coisas. A naturalização da divisão entre os sexos estabelece um sistema cognitivo que, por sua vez, passa a funcionar como paradigma de conhecimento e reconhecimento do mundo, de modo a fundar um círculo vicioso que alimenta os mecanismos de percepção da realidade do dominado a partir da ótica do dominador, ou seja, o dominado conhece o mundo pelos olhos do dominador. Transformada em senso comum, a ideologia encontra assim sua vitória e faz das vítimas da opressão peça chave do processo de produção e reprodução da violência sofrida, pois as próprias vítimas passam a alimentar a ideologia que sustenta as práticas sociais que fomentam a opressão. 113 Esse sofisticado processo histórico de estabelecimento de hegemonia encontra na produção de bens simbólicos um poderoso aliado. Nesse sentido, a literatura, enquanto forma de expressão e construção da subjetividade, revela-se um meio pródigo na manifestação das ideologias sociais. Cristalizam-se na forma literária os modos de sentir, de sonhar, de imaginar, de desejar. Nesse sentido, a literatura ao mesmo tempo representa e constrói visões de masculino e feminino, assim como exprime os modos como homens e mulheres imaginam e desejam uns aos outros. É particularmente necessário destacar aquilo que constitui o fundamento metodológico da pesquisa proposta nesta pesquisa, o método crítico dialético. A perspectiva aqui adotada entende a literatura como processo social e encontra nessa compreensão a linha de força da atividade crítica. Desse modo, importa ao crítico explicar de que modo o elemento em princípio externo é internalizado e passa a compor a estrutura da obra organicamente (CANDIDO, 2006). A ideia de forma orgânica é central para a crítica dialética e vai aparecer em diversas formulações teóricas dialéticas. Destaque-se, a esse respeito, a formulação de Lukács segundo a qual a forma decorre organicamente do conteúdo, adquirindo valor artístico por meio do trabalho artístico (LUKÁCS, 1968). O passo metodológico tem o seu pilar na análise da bibliografia e das obras literárias a fim de fornecer subsídios para compreensão da construção das personagens protagonistas nas narrativas uma vez que, se trata de crítica literária, a investigação e a análise estão, desde o início, indissociavelmente relacionadas, visto que o fato de que a própria escolha metodológica, o posicionamento crítico e mesmo a seleção bibliográfica já indicam um gesto interpretativo que sempre é, no limite, ideológico. O Morro dos Ventos Uivantes O Morro dos Ventos Uivantes é um romance trágico e irrealizado de dois protagonistas: Heathcliff e Catherine. Desde o início da obra protagonizam um amor impossível, pois vivem em uma sociedade pautada em valores morais e sociais vitorianos, isto é, os discursos, as crenças e as condutas são fundamentados em pilares patriarcais e machistas. Cathy é descrita no primeiro momento por Ellen, empregada de sua casa. Ela enxerga a protagonista como uma menina de hábitos e atitudes desafiadoras quando comparada às mulheres de sua época, demonstrando, no início do romance, possuir uma personalidade que causará cansaço e preocupação em seu pai e em seu irmão. É possível notar, contudo, como será a vida de Cathy ao longo do enredo; o pai e o irmão esperam que ela se torne uma boa esposa, uma boa mãe e que se submeta aos desejos do marido assim como todas as 114 mulheres da história. Essa percepção tem como pilar a rigorosa divisão dos papéis sexuais: o marido detém a autoridade e é responsável por providenciar o sustento familiar por meio do trabalho, enquanto a esposa deve se preocupar exclusivamente com questões inerentes ao lar. A missão imposta à mulher passa a ser a criação dos filhos, com o objetivo de que se tornem homens honrados e racionais, capazes de manter a propriedade do pai (LESSA, 2012). Em contrapartida aos desejos paternos, Cathy apaixona-se pelo seu irmão adotivo, Heathcliff, um cigano encontrado por seu pai quando jovem, homem de estatura baixa, com traços de uma classe social menosprezada pela burguesia (BRONTE, 1998), como Daise Dias (2011, p. 6) define em seu trabalho Ser cigano, estrangeiro, não falar inglês, e ter pele escura, desde o primeiro momento no seio da família inglesa são fatores responsáveis pela demarcação por parte dos personagens do espaço, da condição e do papel do garoto. Tratado com benevolência pelo patriarca durante os poucos anos em que viveu após achá-lo, e companheiro inseparável de Cathy, Heathcliff é odiado e discriminado pela matriarca, por Hindley, pelo criado Joseph, e aparentemente pela narradora, a criada da família, Nelly Dean. Heathcliff será tremendamente odiado por todos ao seu redor, sobretudo pelo seu irmão adotivo, Hindley Earnshaw, que se sente ameaçado por ele; desta forma, oprimindo-o, ofendendo-o e agredindo-o em grande parte da história. O enredo se desenrola e nos mostra como Heath se tornará um homem cruel e vingativo, especialmente com aqueles que atrapalharam a concretização de seu romance com Cathy. Ele é construído como um ser diabólico, desprezível e violento, e acaba por sustentar a aparência/ótica de má pessoa. Em um diálogo entre Heath e Linton, rapaz nobre que se apaixona e se casa com Cathy durante o romance, Heath tem o seu caráter descrito “[...] miserável e degradado, sua presença é veneno moral, capaz de contaminar os mais virtuosos” (BRONTE, 1998. p. 124). Cathy recebe o fardo de seu grande amor, tornando-se semelhante a ele, uma mulher miserável e violenta: uma fera. O amor das personagens protagonistas estava selado pela vingança e pela vontade de viver de forma contrária ao que esperavam deles, Márcio José Coutinho descreve O romance é narrado em meio a uma época dominada pela razão, civilização cujas emoções e instintos devem ser controlados por um sistema arbitrário de convenções, entretanto, o morro dos ventos uivantes está afastado do meio social urbano, onde tem-se uma aproximação maior dos elementos da natureza, que permite os personagens libertar, por vezes, as emoções de maneira menos formal e mais instintiva, mostrando o lado mais primitivo do ser (COUTINHO, 2017 p. 45). 115 Entende-se que as personagens priorizam a subjetividade e repudiam a realidade social, deslegitimando, até um determinado momento da história, as práticas sociais estabelecidas para duas classes consideradas inferiores, mulheres e ciganos. Em contrapartida, no decorrer da narrativa, Cathy, em um importante diálogo com Nelly, assume que, apesar de amar Heath e da história que construiu com ele, seria impossível viver com o irmão adotivo. Admite, ainda, que é confortável aceitar sua relação com Linton, seu vizinho milionário, que demonstra estar apaixonado e disposto a casar-se com a moça, “Ele será rico e gostarei de ser a mulher mais importante da redondeza, e ficarei orgulhosa de ter tal marido” (BRONTE, 1998. p. 86). Percebemos, portanto, como eram construídas as relações no interior da obra, sobretudo como Cathy, apesar de amar Heath, abdicaria de seu sentimento para estabilizarse socialmente, casando-se com Linton. Desta forma, Cathy obteria capital para possuir estabilidade e para livrar-se de uma vida tão castigada. Entende-se, ainda, como o amor para as mulheres da época reduzia-se à estabilidade social. Elas buscavam encontrar um bom marido, sobretudo que possuísse uma grande herança para ascender socialmente, construir uma família e tornar-se uma boa mãe. A protagonista é, diversas vezes, questionada pela sua criada sobre como o amor sentido por ela está reduzido aos interesses sociais burgueses: família, capital, estabilidade etc., moldando-se ao que era imposto para ela e para todas as mulheres da obra. Dessa maneira, nota-se as mudanças que ocorrem no comportamento de Cathy ao longo da história, quando a protagonista é descrita como uma jovem diferente das outras: selvagem, independente e desprendida das ideias que eram despejadas sob ela. Nesse momento, Cathy torna-se o reflexo do que é esperado e imposto pela sua família, seu irmão e pai, e pela sociedade vitoriana. Uma mulher que se preocupa em casar-se e conquistar respeito por meio da reputação de seu marido. Simone de Beauvoir (1970) descreve como a sociedade machista enxerga e impõe o outrem para o feminino, dessa forma, o levando a agir de modo conveniente ao homem e a querer tornar-se parte do que ele possui, segundo a autora O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro (BEAUVOIR, 1970, p.15). Para Cathy esse reconhecimento será conquistado quando ela aceitar o pedido de casamento feito por Linton, mesmo não o amando. Nesse contexto, a protagonista torna-se completa; o homem, o casamento e a família a colocam nesse lugar. Ela passa a cumprir o papel da forma em que lhe foi imposto, assumindo a função do Outro, abdicando o espaço que reivindica, isto é, os seus desejos; reduzindo-se à parte que completa um sujeito e não a de sujeito na sociedade. 116 A protagonista, além de viver um amor construído a partir da ótica dos interesses sociais, como era o seu por Linton, e de sentir um afeto financiado pela sociedade vigente, se contrapõe ao que foi desejado por ela ao longo da história. As personagens femininas seguem as vontades e desejos da sociedade patriarcal. Seus afetos e os seus desejos são exprimidos e reduzidos a sofrimentos individuais e são, ainda, escamoteados, visto que elas vivem o que é imposto à elas. São diversas vezes ridicularizadas, animalizadas e reificadas quando demonstram sentimentos particulares. Desta forma, o amor e o desejo construídos por meio da ótica feminina, são estruturados a partir da ideologia burguesa, opressora, que pauta a sociedade capitalista. Considerações Finais É possível perceber como a obra O Morro dos Ventos Uivantes é fundamentada nos valores burgueses. Cathy, no primeiro momento, uma mulher independente, que desafia os valores impostos, acredita que conseguirá romper com as imposições e desejos paternos. Contudo, o imaginário construído por meio das personagens protagonistas, a vingança, o ódio e o rancor, internaliza a dominação masculina, e ela passa a perceber o mundo através do prisma masculino. Neste caso, Cathy enxerga pelos olhos de Heath e acredita estar vivendo de uma forma revolucionária e descolonizada ao tentar salvá-lo, mas, na verdade, está mais uma vez reafirmando os aspectos patriarcais e machistas (BOURDIEU, 2002). Ao longo da obra, Cathy acredita, ainda, na mudança de Heath, que se tornará um homem vingativo, maldoso: uma fera; a fera dos desenhos animados, e ela, mesmo reconhecendo a verdadeira face que Heath construirá, luta para tirá-lo dessa realidade crendo, fielmente, na sua mudança. Uma mudança que acontecerá por meio do amor. A protagonista viverá, ainda, no segundo momento, uma vida que a oprime e a silencia, representando, desta forma, o lugar imposto pelo patriarcado para as mulheres, casando-se com Linton, homem de família rica que possui reconhecimento social. Ela buscará construir uma família, ascender socialmente e auferir respeito ilustrando o modo de funcionamento das convenções sociais e o apagamento da subjetividade da mulher na sociedade capitalista. O que temos é a enfatização da necessidade do homem para constituição da mulher. O sentimento afetivo de Cathy tem o seu pilar na família nuclear; no respeito auferido pelo casamento; no dinheiro etc — valores burgueses. 117 Cathy terá o seu desejo e as suas atitudes apagadas e/ou silenciadas ao longo da história. Eva Illouz (2012) defende que, para tornar as conquistas das mulheres uma prática social, é preciso que se elas se consolidem na dimensão cultural, como podemos acompanhar na seguinte passagem A autorrealização passa a ser uma categoria cultural que produz um jogo sisifismo de diferenças derridianas. Quando vivem apenas na mente, as ideias culturais são fracas. Precisam cristalizar-se em torno de objetos, ritos de interação e instituições. A cultura, em outras palavras, encarna-se nas práticas sociais e precisa funcionar nos planos prático e teórico. O trabalho da cultura reside, precisamente, em suas maneiras de vincular esses níveis. Assim, ela se estende de sistemas complexos de pensamento até atos corriqueiros da vida cotidiana. Somente no contexto de uma estrutura prática é que um discurso teórico se integra nas concepções comuns do eu” (ILLOUZ, 2012 p. 31). É preciso reconhecer a importância das atitudes de Cathy, que pretende romper com os valores morais e sociais burgueses que são impostos a ela, isso demonstra o incômodo e o impasse do que está posto enquanto aspecto central e fundante do capitalismo: o patriarcado, a divisão sexual do trabalho, a família nuclear etc. Contudo, é preciso reconhecer, ainda, como os desejos dela são silenciados e apagados por essa ideologia. Ela sofrerá com a opressão da sociedade e terá a morte como consequência. Dessa forma, entende-se que, apesar da tentativa que a personagem tenta fazer da submissão masculina e da dominação patriarcal, ela representa, mais uma vez, a reafirmação dos valores machistas que envolvem a realidade das mulheres. Cathy representa a vida das mulheres e os seus sentimentos. Entendemos, portanto, a importância da luta diária feminina para romper com a ideologia burguesa, patriarcalista e machista de organização. É necessário que haja um movimento prático e comum entre mulheres e sociedade que possa romper com os valores patriarcais e o capitalismo. Essas manifestações precisam atingir, diretamente, a cultura e as bases estruturais de organização e de pensamento, tornando possível a libertação da mulher dessas formas de violência e, assim, rompendo os traços estéticos pautados nesses modos de funcionamento. 118 Referências ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: edições 70, 2008. AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. BRONTE, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Martin Claret, 1998. CANDIDO, Antonio. A passagem do dois ao três. Revista de História. Universidade de São Paulo, no 100, vol. L, 1974. CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2008 CORREA, Murilo Filgueiras. SANGUE É SINAL DE PERIGO: questões de gênero e patriarcalismo na Saga Crepúsculo. Revista Interfaces, v. 5, n. 1, 2014. DIAS, DAISE. O MORRO DOS VENTOS UIVANTES: UM ROMANCE PÓSCOLONIAL. Revista Estudos Anglo-Americanos, n. 37, p. 219-244, 2012. LESSA, Sérgio. Abaixo a família monogâmica!. São Paulo: Instituto Lukács, 2012. ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. ILLOUZ, Eva. El consumo de la utopía romântica: el amor y las contradicciones culturales del capitalismo. Katz: Buenos Aires, 2009. WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 119 CAPÍTULO 9 O protagonismo feminino nas artes como resistência à dominação masculina Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa, Thays Alves Costa Introdução Na história da representação do corpo feminino, podemos observar que prevaleceram a dominação e os interesses masculinos, no que diz respeito ao papel imposto à mulher na sociedade e, consequentemente, na arte. O corpo feminino, por muitas vezes, foi representado a partir do olhar masculino, de modo que a objetificação e a idealização da mulher tiveram destaque em grande parte da história da arte. No contexto ocidental, a representação do corpo da mulher teve transformações estéticas significativas, principalmente se refletirmos sobre a questão da autoria1. Em uma história escrita por homens e para eles, “tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte” (POULAIN apud BEAUVOIR, 1970, p. 15-16), podemos seguir essa lógica em relação à arte. Mesmo existindo artistas mulheres, o espaço destinado a elas era limitado, “não é porque as 1 Em Why there have no been great women artists? Linda Nochlin defendeu o fato de que haviam artistas mulheres eminentes, porém, elas foram silenciadas sistematicamente por instituições. Não sendo mencionadas na literatura e na história da arte, assim impossibilitadas de ocupar também os espaços expositivos, como museus e galerias. Na década de 1970, iniciaram pesquisas e publicações significativas com a temática mulheres artistas a partir da Idade Média. Em 1976, Linda Nochlin e Ann Sutherland Harris organizaram a exposição Women artists: 1550-1950, com objetivo de divulgar as artistas mulheres que foram “ignoradas devido seu sexo”. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 25-26. https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-9 120 mulheres carecem naturalmente de talento artístico, mas porque ao longo da história todo um conjunto de fatores institucionais e sociais impediram que esse talento se desenvolvesse livremente”2 (MAYAYO, 2003, p. 22). Do mesmo modo que o lugar da mulher na sociedade se estabeleceu a partir da relação com o homem e, por muito tempo, elas viveram “dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens - pai ou marido” (BEAUVOIR, 1970, p. 13). As questões socioeconômicas e políticas influenciaram a representação do corpo feminino na arte, assim como a religião teve papel fundamental em algumas produções artísticas e/ou culturais que temos acesso. Para Beauvoir3, as religiões, sobretudo no ocidente, foram “forjadas pelos homens e refletem essa vontade de domínio” (BEAUVOIR, 1970, p. 16), como exemplo a história da primeira mulher no cristianismo. Eva teria sido criada a partir do corpo masculino e definida como “um homem incompleto, um ser ocasional” (IBID, p. 10), lembrou a autora a respeito do posicionamento de Santo Agostinho sobre a definição de mulher. Desse modo, o artigo apresentará uma leitura crítica de assuntos concernentes à violência simbólica e à objetificação do corpo feminino sob o prisma masculino. A representação do corpo da mulher na arte como uma história que está sendo reescrita, em especial, por artistas mulheres e pesquisadoras que se dedicam a reapropriação do discurso feminino. Pensando a mulher sob diversas perspectivas artísticas, nosso objetivo neste artigo consiste em reafirmar essa história de libertação e de revolução da mulher. Com isso, colocaremos em discussão assuntos tais como: a representação do sujeito feminino em produções plásticas, a objetificação e exploração desse sujeito nas artes e também, as ações políticas desenvolvidas por grupos de mulheres artistas. Dessa forma, para defesa do proposto nos embasaremos nas contribuições teóricocríticas de autores como Beauvoir (1970), Bourdieu (1996; 2007; 2020), Mayayo (2003), Oliveira (2018). Além do disposto, no decorrer de nossas reflexões dialogaremos com outros autores que também conferem melhor sedimentação de nosso objeto de discurso neste artigo. 2 Trecho original: “no es porque las mujeres carezcam naturalmente de talento artístico, sino porque a lo largo de la historia todo un conjunto de factores institucionales y sociales han impedido que ese talento se desarrolle libremente”. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 22. 3 Para Beauvoir, desde a Antiguidade, os homens se esforçaram em representar as fraquezas femininas, como por exemplo, nas restrições do código romano sobre os direitos da mulher, em que elas eram vistas como um perigo devido à vulnerabilidade, sendo atribuídos desvios comportamentais, como “a imbecilidade, a fragilidade do sexo”. Os homens romanos apelaram para a ideia de enfraquecimento da família a caso houvesse a emancipação feminina. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1970, p. 10. 121 Uma breve história da representação do corpo feminino Na pintura Adão e Eva, de Tiziano Vecellio, Eva foi retratada no momento em que pegara a maçã, metaforicamente, como a responsável por induzir o homem a pecar. Por outro lado, temos o mito de Lilith como a mulher que rejeitou Adão, recusando-se a situação de submissão e assumindo uma posição de protagonista. A artista carioca Ju Morais, se apropria da narrativa mitológica para compor sua série intitulada Lilith (2019), que explora a diversidade do corpo feminino através de colagens de imagens históricas e contemporâneas. Na obra Ju Morais apresenta mulheres de diferentes etnias e classes e, podemos observar em algumas obras, as frases “très féminines” e “muy femeninos”. A artista também ressignifica objetos religiosos que encontra em igrejas e centros espíritas incorporando-os nas colagens na forma de bordados. Se pensarmos em fundamentos religiosos ou na ideia de materialização do divino, o corpo feminino simboliza a maternidade na representação de Maria na concepção cristã. Esta mesma representação, além de trazer um conjunto de valores morais, acompanhava a idealização da pureza (ideia da mulher virgem) que carregou no ventre o filho de Deus, como na obra La Maestà, de Duccio di Buoninsegna ou nas inúmeras representações existentes, em especial no Barroco. Nas representações de Joana D’Arc, na Idade Média4, a mulher, mesmo ocupando um espaço masculino na guerra, estava associada ao objetivo religioso. Em oposição à idealização do corpo feminino em imagens de divindades feitas por artistas homens, temos a obra da artista brasileira Djanira da Motta e Silva com as obras Ritual de puberdade (1962) e Três Orixás (1966), que com temáticas religiosas, nos presentea com corpos femininos negros e indígenas estilizados numa perspectiva da realidade dos rituais feitos por mulheres comuns e não sendo mais representadas como deusas, por exemplo. Já a artista barroca Artemisia Gentileschi, considerada uma das artistas mais importantes de seu tempo por Mayayo, dedicou-se em retratar “as mulheres fortes” na mitologia e no cristianismo, como Judith decapitando Holofernes (1620). Segundo Bürke, a respeito da construção da narrativa histórica, “o que vemos é a opinião pintada, uma visão de sociedade, num sentido ideológico mas também visual” (BÜRKE, 2017. p. 182), ele atenta que a representação de espaços e de papéis femininos, 4 Plinio el Viejo (23-79 d.C) em Historia Naturalis, atentou a falta de dados sobre artistas mulheres na Idade Média. Na publicação, o autor mencionou apenas seis artistas mulheres na Antiguidade. No Medievo, as mulheres realizavam atividades como bordado e tapeçaria, alguns trabalhos compunham os altares das igrejas. A autora Patricia Mayayo, menciona a existência de monjas que se dedicavam a copiar e produzir iluminuras medievais, por exemplo, no século VIII, uma mulher chamada Ende, se identificou em um manuscrito como “pintora e ajudante de Deus”, afirmando sua posição como artista. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 26-27. 122 assim como o lugar-comum da história da mulher, é pensado a partir de arquivos e fontes que foram criados e organizados por homens. Por esse motivo, a nudez feminina nas obras de arte parecia reservada ao cumprimento de funções religiosas, como nas representações de deusas mitológicas, como vimos anteriormente. Não faltam exemplos de representações de divindades a partir de modelos de mulheres brancas, como a Vênus de Urbino (1538), de Ticiano, que além de reforçar a pauta religiosa, acompanhavam aspectos idealizantes. Evidentemente, nas produções artísticas que compunham os livros de história da arte, não era possível ver corpos negros ou com algum tipo de deficiência. Felizmente, a história está sendo transformada, como na releitura The birth of Oshun (2017) feita por Harmonia Rosales da obra O nascimento de Vênus (1484) de Botticelli. Refletindo sobre questões místicas e a posição de privilégio do homem em julgar as ações femininas, as representações das bruxas na Idade Média, sobretudo nos séculos XVI e XVII, ofereciam uma imagem estereotipada da mulher “cozinhando ou devorando bebês” (BÜRKE, 2017, p. 202). A gravura As bruxas5 (1510), de Hans Baldung, associa a imagem da bruxa ao pacto com o diabo. A concepção de feiura concedida ao estereótipo da bruxa pode ser visto como oposição ao conceito de beleza grego, que aparece na renascença. O Renascimento nos conduziu ao retorno dos clássicos com os corpos esbeltos e rostos serenos pintados em cenas mitológicas e/ou cristãs, que só perdiam espaço para os retratos da nobreza, como no O retrato de uma dama, de Rogier van der Weyden. Em termos filosóficos, os renascentistas objetivavam o “belo – junto com gracioso, bonito ou sublime, maravilhoso, soberbo e expressões similares – é um adjetivo que usamos frequentemente para indicar algo que nos agrada” (ECO, 2004, p. 9), assim, vivenciando o conceito de beleza grego6. Como uma herança do pensamento clássico, os artistas reproduziram técnicas que por muitas vezes, nos ofereceram a contemplação de corpos baseados nos ideais de proporção, de simetria e de harmonia nas artes visuais, como se esquecessem da individualidade dos corpos. Obviamente, existiam exceções, com artistas que apresentavam diferentes percepções de nossa existência, como fez Bosch. Em sua maioria, os artistas tentavam recriar o ‘belo’ que estabelece uma relação estreita com o ideal de ‘bom’, como consequência, induzindo a crença em valores morais e estéticos. 5 Nesta gravura, o corpo nu das mulheres e os rostos grotescos são vinculados ao imaginário popular em relação aos rituais pagãos. Na parte superior da imagem, o desenho de uma bruxa nua voando em cima de um bode, reforçando a crença de uma perversão demoníaca. No século XVII e XIX, ocorreram mudanças nos estereótipos, a bruxa passava a ser retratada como uma “velha usando chapéu pontudo, com uma vassoura” e cercada por imagens de demônios. BÜRKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 202. 6 Na estética grega, o conceito de beleza está relacionado aos ideais aristotélicos e platônicos, de modo que a simetria, a proporção, a harmonia e o equilíbrio eram princípios a serem alcançados. No que diz respeito ao conceito grego, o objetivo era a perfeita união da mente com o corpo. Para Eco, o ideal de perfeição grego era representado pela palavra Kallokagathia, que é a junção de belo e bom, consequentemente, a beleza estava relacionada à moral. ECO, H. A história da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007. 123 Nessa época7, temos conhecimento de algumas artistas mulheres, como a pintora Caterina dei Vigri e a escultora Properzia de Rossi, ambas ligadas às famílias nobres. O motivo do “surgimento” de mulheres nas artes, estava vinculado ao ideal de comportamento ou de virtude a serem seguidos pela aristocracia, assim, as mulheres deveriam ter uma “educação refinada, habilidades para pintar e desenhar”8 (MAYAYO, 2003, p. 28), da mesma maneira que precisavam de conhecimento sobre música e poesia, para desenvolver uma conversa considerada interessante. As artistas renascentistas levavam em consideração as técnicas e as temáticas desenvolvidas no movimento, compondo uma condição de concordância com princípios estabelecidos pelos artistas homens, como o modelo estético. Da mesma forma que os fatores sociais e religiosos ditaram os rumos da produção artística, nos deram uma abundância de corpos femininos semelhantes, como A grande Odalisca (1814), de Ingres e Louise O’Murphy (1752), de François Boucher, a mulher vista quase como um objeto a ser contemplado. Por muito tempo, o nu feminino foi representado a partir do olhar masculino. Além do homem objetificar a mulher, ele atribuía pretensões ligadas ao sexo e/ou ao erotismo, como nos quadros de jovens nuas de Gustave Klimt. Nas obras de Klimt e de Egon Schiele9, o corpo feminino é visto na perspectiva do voyeurismo, como se estivesse presente em sonhos eróticos. Já a nudez feminina apresentada nas performances de Marina Abramovic, tinham como propósito uma reflexão sobre o lugar da mulher na sociedade como em Rhythm0 (1974), que além de testar os limites do próprio corpo, a artista alcança o potencial de leitura psicológica ao apresentar o comportamento do público diante da possibilidade de interação. A representação do corpo feminino a partir do olhar da mulher10 nos traz uma percepção diferenciada, como os autorretratos da artista Frida Kahlo, que parecia não se importar com padrões de beleza e com a moral, em sua natureza era subversiva. As obras de Frida expõem 7 Para Mayayo, a publicação El cortesano (1528) influenciou o modo de vida da aristocracia e da nobreza, incorporando a ideia de comportamento ideal, principalmente, para a mulher. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 28. 8 Trecho original: “una refinada educación, habilidades para la pintura y el dibujo”. Idem, ibidem. 9 Sobre a produção artística de Gustave Klimt, as pinturas e desenhos de jovens em cenas de nudez e com referência ao sexo, que renderam ao artista episódios em que suas obras foram censuradas. Klimt foi acusado pelos professores da Universidade de Viena (1894) de tentar “perverter a juventude”. Já Egon Schiele, que foi amigo de Klimt, foi acusado de seduzir uma menor de idade, o que levou a 3 dias de prisão. O motivo da prisão de Schiele tem origem no seu interesse por representar jovens mulheres e até adolescentes em ações de sensualidade e de masturbação, que foram consideradas pornografias. No caso da prisão, Schiele estava com uma menor de idade em sua residência e a denúncia foi feita pelo pai da jovem. 10 Em nosso contexto brasileiro, podemos mencionar a importância da artista Anita Malfatti que influenciada pela estética cubista e expressionista, nos presenteia com a obra A boba (1916). Anita assim como Frida, apresenta um autorretrato com a liberdade de produzir de forma expressiva sua visão de si mesma. Anita inovou ao trazer tendências técnicas artísticas baseadas nas vanguardas artísticas que já estavam em atividade na Europa, porém teve sua obra desqualificada por Monteiro Lobato que julgou negativamente a produção da artista, ridicularizando-a com a crítica Paranóia ou mistificação? para o jornal O Estado de São Paulo (1917). Não é novidade o discurso feminino ou uma produção artística ser invalidada por um homem. 124 o retrato de uma mulher real que se afirmava politicamente e sexualmente desafiando os paradigmas de gênero. Se a beleza feminina estava associada aos ideais de feminilidade e de fragilidade da mulher, Frida se apresentava com roupas compreendidas como masculinas, como mostra a obra intitulada Autorretrato com o cabelo cortado (1940). Os autorretratos de Frida apresentam uma arte ligada à experiência e à expressão dos sentimentos femininos, como em Hospital Henry Ford (1932), em que a artista retrata de forma surrealista seu corpo nu deitado numa maca após um aborto. As artistas mencionadas ao longo do artigo, ressaltam a individualidade da mulher dando voz ao discurso feminino que foi silenciado ao longo da história, expondo o retrato da mulher real, como na fotografia As colhedoras de ervilhas (1936), de Dorothea Lange. Para Bürke, as fotografias de Dorothea Lange e de Margaret Bourke-White “mudam o foco do grupo para o indivíduo e enfatizam as tragédias pessoais por meios tais comocloses de uma mãe e seus filhos” (BÜRKE, 2017, p. 180). Além da imagem de Dorothea reafirmar a condição da mulher na sociedade, expõe o fato de que mesmo que este corpo ocupe seu lugar no mercado de trabalho, os afazeres domésticos continuam como uma espécie de obrigação, sendo responsável por jornadas duplas. As mulheres tiveram, por muito tempo, seu corpo levado aos limites físicos e psicológicos11, com excesso de trabalho e de responsabilidades. Nas discussões a seguir apresentaremos algumas obras de arte que criticam a lamentável autoimposição que a sociedade insiste em exercer sobre as mulheres. O feminino e a representação do erótico em Vênus A sociedade sempre criou regras de comportamentos para controlar o corpo e a vida das pessoas, sobretudo as mulheres. Por esse motivo as civilizações em uso de seus variados aspectos sócio-culturais determinam códigos que servirão como elemento para aprovação ou reprovação da conduta das pessoas na sociedade. Um comportamento que poderia causar intolerância seria automaticamente reprovado sob forte interdição. O corpo desnudo e todas as questões concernentes aos seus desejos e erotismo também eram reprimidas sob severas censuras. Vale ressaltar que, ainda hoje a sociedade se orienta por muitos valores patriarcais que sempre exerceu autoimposição o que pode ou não ser mostrado, e também o que deve ser visto. Tomando por base o código imposto pela sociedade patriarcal, o corpo masculino nunca representou uma ameaça e a desordem na conduta imposta. Diferente disso, o corpo feminino sempre sofreu censura, ou seja, as questões relacionadas ao corpo masculino nunca passavam pelas mesmas restrições que a mulher era submetida. 11 Como referência temos a temática da escravidão produzida por Rosana Paulino. A artista expõe a vida da mulher escravizada, mostrando mulheres silenciadas e exploradas, como na série Ama de leite com produções em diversas linguagens artísticas feitas em diferentes momentos da carreira de Rosana. 125 A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] A mulher determina-se e diferenciase em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (BEAUVOIR, 1967, p.10). O disposto por Beauvoir nos leva a refletir que em âmbito geral, sobretudo nas artes, o corpo feminino sempre foi muito explorado de forma errônea. Entretanto, a exploração desse corpo, por exemplo, convencionou um modo muito natural de atrair olhares da contemplação sob a perspectiva do erótico. Pensando nisso, alguns pesquisadores têm se concentrado no esforço de desconstruir muitas ideias que reduzem as percepções do erotismo provenientes do corpo feminino ao prazer carnal. O corpo feminino desnudo está para uma simbologia mais ampla. Por isso, merece um exercício reflexivo melhor. De acordo com Oliveira (2018, p. 85), o erotismo “designa uma categoria de classificação e análise das representações sobre a sexualidade”. Pensando na ampla simbologia que o corpo feminino e seus desejos eróticos podem alcançar, em tal estudo nos distanciaremos da definição do erótico no tocante ao corpo feminino tradicionalmente estabelecido pelo senso comum. De acordo com Pierre Bourdieu (2017), o que distingue o erotismo, da obscenidade e da pornografia são questões inerentes ao capital simbólico12 a estas instâncias. O que pesa sobre tais distinções é que, por se considerarem superiores, os grupos sociais dominantes buscam invalidar os discursos entre o erotismo e a pornografia. Sendo assim, cria-se o rótulo de inferiores por achar que essas perspectivas são causadoras da desordem na sociedade patriarcal. Borges (2013) Gregori e Díaz-Benítez (2012) e Hunt (1999), aplicam ao erotismo, obscenidade e pornografia, o valor de termos sinônimos. Por isso, nos auxiliaremos em tais contribuições teóricas para realizar as reflexões seguintes. Conforme defende Oliveira, as pessoas fazem um esforço grandioso para criar categorias para o erotismo concernente ao corpo feminino e com isso, acaba trazendo prejuízo ao real sentido simbólico do erotismo. Isso possivelmente ocorre porque “a vasta quantidade de gêneros que representam a sexualidade de formas tão distintas, dificulta a própria definição do que é erótico” (OLIVEIRA, 2018, p 85). Talvez se possa supor inclusive que a impossibilidade de estabelecer diferenças entre o que seria erótico ou pornográfico – reafirmada por muitos estudiosos do assunto, que também empregam os dois termos indistintamente – seja em parte motivada pela mesma indeterminação formal que dificulta uma definição precisa para a erótica literária (MORAES, 2015, p. 26). 12 Na concepção de estrutura social de Bourdieu, o capital é visto como recurso que atribui poder a um agente. O autor amplia a noção de capital através da diferenciação, propondo a noção de capital econômico, de capital social, de capital cultural e de capital simbólico. O capital econômico corresponde aos recursos financeiros adquiridos através do trabalho. O capital social demonstra a relação de pertencimento a um grupo específico. O capital cultural está ligado “ao conhecimento adquirido pelo agente por meio da escola ou da família e que pode ser transformado em recursos”, como os hábitos sociais, preferências de consumo, por exemplo. O capital simbólico diz respeito ao “reconhecimento social de um indivíduo, adquirido por meio do conjunto dos capitais econômicos, sociais e culturais que ele possui”. BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu, 2003, p. 53 -54. 126 Há muitas barreiras que nos impede de estabelecer uma distinção entre o erótico e o pornográfico porque um termo se define na fronteira com o outro. Além disso, outro fator preponderante dessa impossibilidade se baseia na voz falocêntrica que é o lugar de fala na sociedade ocidental e acabada se reverberando no discurso erótico. Mesmo havendo distintas formas de representação do corpo feminino desnudo, essa questão ainda se mantém muito estanque nos dias hodiernos. O corpo feminino por muito tempo serviu de objeto de idealização nas artes plásticas. Segundo Oliveira, restava à mulher somente o lugar de sujeito idealizado e, nunca de criadora. Ao sujeito feminino destinava somente o lugar de servidão aos autores literários e aos artistas plásticos homens. “Quando pensamos nas artes plásticas, a autorrepresentação de mulheres é uma conquista relativamente nova” (OLIVEIRA, 2018, p. 86). As mulheres por muito tempo sofreram grande privação de frequentar os espaços onde quisessem ir e quando o desejassem. Seu corpo até hoje serve de espelho de observação para muitos artistas plásticos. Segundo Gubar (1981), até início do século XX as mulheres eram severamente privadas de ingressar nas escolas de belas-artes como alunos. Por outro lado, seus corpos desnudos serviam de modelos para os artistas que estudavam nestas instituições. Tomando por base O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, analisamos que a obra apresenta muita simbologia do feminino. Nesta obra, observamos Vênus com seu corpo desnudo que nasce de uma concha de madrepérola. O nascimento da deusa pode ser visto como o principal aspecto relacionado ao feminino. As muitas representações das Vênus pudicas produzidas desde a Antiguidade Clássica até os dias hodiernos foram retratadas cobrindo os seios com a mão direita e a genitália com sua mão esquerda e, seus longos cabelos louros (WILLMER, 2014). Tais características estão presentes na obra de Botticelli. No que tange, os personagens inseridos no contexto de O Nascimento de Vênus, Oliveira explica que: Ao seu lado esquerdo, personagens a contemplam com curiosidade e, ao seu lado direito, outra deusa tenta cobri-la (talvez com intenção de protegê-la desses olhares, talvez em uma busca por discipliná-la). Segundo alguns críticos, o uso dos tons claros, a vagina metaforizada em uma concha, o olhar passivo da deusa e seus trejeitos pudicos foram técnicas adotadas para remeter à pureza feminina (OLIVEIRA, 2018, p. 86). Mesmo que a obra O Nascimento de Vênus tenha sido produzida em 1484, ela retoma muitas características e valores em voga no período clássico. Entre eles, o ideal de perfeição, beleza e a pureza feminina. Analisamos que o nascer, Vênus já é inserida no contexto do controle, da censura e das impossibilidades. Além disso, outra deusa aparece cobrindo-a com um manto, o que pode ser entendido como reflexo da civilização. Aquela que domará o corpo feminino reprimindo seus desejos, seus instintos e, sobretudo, negando sua sexualidade. 127 Tomando por base os valores impostos pela sociedade patriarcal, o corpo da Vênus representa o corpo feminino explorado e visto como um objeto a ser exposto à contemplação do homem. Os gostos e desejos do corpo feminino eram silenciados. O pensamento masculino era a única coisa que importava na época e, isso nos possibilita compreender tal situação como “a erótica da conquista imperial era também uma erótica da subjugação” (McCLINTOCK, 2010, p. 48). Outro exemplo de exploração do corpo feminino que pode ser analisado é o caso da Vênus de Huntentote. Mesmo tendo recebido tal rótulo seu nome real era Sara Baartman. A referida mulher teve seu corpo explorado, sexualizado, animalizado e exposto em muitas feiras públicas na Europa. Sara desenvolveu de forma avantajada algumas partes de seu corpo, entre eles as nádegas e o clitóris, e como tais características destoavam muito das demais mulheres seu corpo acabou chamando atenção de alguns médicos. Segundo Oliveira (2018, p. 87), a existência de Sara “foi marcada por olhares alheios, seja presa em gaiolas, frente a uma plateia que a assistia com medo e excitação, seja em espaços médicos, em que posava nua para que medissem meticulosamente sua genitália”. Reiteram Ferreira e Hamli que, “ver, nesse contexto, significa a possibilidade de controlar. Ser visto significa a iminência de ser destruído – pois tornar-se objeto e ser destruído aqui significam a mesma coisa” (FERREIRA; HAMLIN, 2010, p. 816). Embora a relação de tempo-espaço distancie as duas representações de Vênus, acreditamos que elas se aproximam no tocante ao silenciamento e a desaprovação de seus desejos. Mesmo que a primeira imagem de Vênus nos sirva como representação da idealização e do intocável a partir de uma obra de arte e, a segunda nos chega como o ser humano do gênero feminino13 sendo animalizado e convertido como monstro. Analisamos também que, ambas as obras representam figuras femininas marcadas pela impossibilidade de serem naturalmente mulheres, já que seus desejos são censurados e reprimidos. A objetificação do corpo feminino e as relações simbólicas no tocante ao erotismo faz todo sentido à lógica da sociedade patriarcal. A representação da dominação masculina na arte contemporânea O corpo feminino passa por encarceramentos simbólicos desde a infância, é ensinado através da visão androcêntrica como ele deve se comportar, falar ou pensar. É ensinado também qual local social deve pertencer e quais os trabalhos podem executar. Tais questões 13 Que mesmo após a sua triste morte, permaneceu servindo de experimento para estudos de cientistas. Além disso, passava pela desaprovação da platéia que observavam seu corpo com pavor e/ou horror às suas características físicas. 128 são abordadas em A Dominação Masculina (2020) por Bourdieu, no qual analisa tal estrutura sob a ótica de oposição ao corpo masculino, criando esquemas antagônicos entre os sexos. Percebe-se cheio/ou o que preenche a se tratar do homem e o vazio/a ser preenchido ao se tratar da mulher, análise esta que parte do pensamento antigo de centralidade do falo na sociedade, a vagina sendo não mais do que este em introversão. Tendo em vista o conceito bourdieuano, o corpo da mulher sofre com a dominação física e simbólica estabelecida por uma estrutura que tem como objetivo perpetuar o controle masculino. Dessa forma, todas as regras sociais se iniciam por meio do símbolico sexo masculino. É esse simbólico que se coloca no domínio das normas vigentes, dos espaços públicos e dos pensamentos, limitando as mulheres ao contexto doméstico e ao trabalho de serventia e de manutenção de tais lugares. Espera-se que o conhecimento feminino seja um ato prático de ‘adesão dóxica’14. Tal atitude gera a crença de que a mulher não precisaria de questionamentos como tal e, que de certo modo, repetindo a violência simbólica15 a qual ela é submetida (BOURDIEU, 2020, p. 62). Isso ocorre por meio de um produto de perpetuação do trabalho incessante com auxílio de agentes que compactuam e se beneficiam desses fatores que limitam a mulher, tais como a família, a escola, a igreja e o Estado. Podemos observar tais particularidades na produção da artista Regina José Galindo que, evidencia as questões relativas à violência física sofrida por mulheres de seu país de origem, a Guatemala. Em suas performances de Regina José Galindo enfoca temáticas tais como, a ideia de vulnerabilidade imposta ao corpo feminino e o estado de submissão vivido por muitas mulheres na contemporaneidade. Em El dolor en un pañuelo (1999), a artista apresenta o exercício da violência física e simbólica como formas de manutenção da dominação masculina. Na referida obra, a artista está amarrada em uma cama com os olhos vendados, enquanto são projetadas notícias de jornais sobre abusos sofridos por mulheres. Ela ainda desafia o conservadorismo misógino da Guatemala com a performance Perra (2005), em que a partir da técnica de escarificação escreve “perra” em sua coxa, como uma referência direta à palavra encontrada nos corpos de mulheres assassinadas no país. O contexto narrado na obra serve como uma crítica intensa à sociedade patriarcal que, insiste em exercer domínio sobre o corpo feminino. 14 “A doxa é um ponto de vista particular dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal; O ponto de vista daqueles que dominam o Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao criarem o Estado”. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP : Papirus, , 1996. p.120 15 O conceito de violência simbólica diz respeito a violência de ordem emocional, moral e psicológica, sofrida pelo indivíduo e causada por instâncias legitimadas por hierarquias que foram determinadas através de relações de poder. Desse modo, nos espaços sociais (campo) existem configurações que determinam a atuação e o comportamento de cada indivíduo, estabelecendo limites e pode ser manifestada de forma opressiva, como por exemplo, no sistema escolar incorporada no discurso dos professores, por exemplo. Para Bourdieu, a “violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 7-8. 129 Tomando por base o pensamento bourdieuano, é possível analisar em muitos trabalhos produzidos por artistas mulheres um embate que vai contra a uma estrutura social autoimposta. Tais produções artísticas criam um campo16 de oposição crítica enfatizando o repertório das violências físicas e simbólicas cotidianas para sua criação. Nesse sentido, podemos perceber que nesses trabalhos a mimesis de situações que abordam o isolamento, silenciamento, assédio, pressão estética, abandono, entre outros fatores que ganham normalidade em nossa sociedade. Questões tais como as colocadas anteriormente, dialogam diretamente com a obra Rhythm0 (1974), de Marina Abramovic que, dispõe seu corpo para a interação com o público, como modo de evidenciar a relação e a ideia de domínio. Sobre a performance, a artista disponibilizou diferentes objetos em uma mesa e as pessoas foram orientadas dentro da galeria que poderiam fazer “o que quisesse com a artista”, que ficou imóvel diante das humilhações e da violência causada durante a performance. Marina Abramovic teve seu corpo machucado, despido e ameaçado de morte, no momento em que uma arma foi apontada para sua cabeça. Além da violência física, reflexo da realidade de muitas mulheres, ainda é possível observar a violência simbólica em relação ao corpo feminino dentro dos espaços expositivos. Tendo como princípio o cenário artístico patriarcal17, somos induzidos a questionamentos relacionados ao tão recente aparecimento das mulheres, para além de modelos, mas como artistas na história da arte. Nesse sentido, podemos refletir sobre a importância desses corpos para a criação de uma narrativa que questione a dominação masculina. De acordo com Bourdieu: Os trabalhos de construção simbólica não se reduzem a uma operação estritamente performativa de nominação que oriente e estruture as representações, a começar pela representações do corpo(o que ainda não é nada); ele se completa e se realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um trabalho de construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero (BOURDIEU, p. 45, 2020). 16 Para Bourdieu, o campo é um espaço simbólico onde ocorrem as lutas pelas representações, de modo que existem diferentes campos. No caso do campo da arte podem acontecer disputas pelas definições de arte e de valores de classe, além da competição pelo capital. 17 Em oposição à estética publicitária e ao cenário artístico, ambos dominados por homens, temos os cartazes de Barbara Kruger que se relacionam aos esquemas de domínio abordados por Bourdieu. Os cartazes inseridos no desenvolto sistema capitalista ocidental dos anos 80, criam um campo de enfrentamento ao denunciar os dispositivos de domínio gerados pelo marketing na tentativa de relacionar as mulheres ao consumismo. Nos referidos cartazes, encontramos frases de efeito tais como “Seu corpo é um campo de batalha” (1989), “Eu compro, portanto, eu sou”(1987), “Você não é você mesmo” (1981), “Não saiba nada, acredite em qualquer coisa, esqueça tudo” (1987). Tais frases nos mostram o contra-ataque satírico de Kruger, explanando o contexto contemporâneo mercadológico colocado sob a mulher. 130 Para além das limitações públicas às quais foram submetidas por muito tempo, seus corpos no espaço das artes também foram reduzidos ao lugar de objetos de curiosidade e admiração. Por não pertencer ao grupo de domínio, as mulheres permaneceram excluídas quanto à construção de pensamento. Dessa forma, a valorização histórica é recaída sob o artista (sendo homem), pois somente ele pode ser compreendido, capaz intelectualmente e apto a participar dos ritos institucionais e públicos. Ao contrário das mulheres, que são mantidas nos locais de submissão e serventia em ambientes privados, como mencionou Bourdieu sobre a dominação masculina na sociedade. Sobre tais aspectos, o grupo Guerrilla Girls, formado em Nova York no ano de 1985, tem sua produção voltada à luta de gênero e ao questionamento direto sobre o espaço de pertencimento das mulheres no sistema da arte. Em seus trabalhos podemos ler frases como “Do Women Have To Be Naked To Get Into the Met. Museum?18”(1989) (ou na versão para a exposição que ocorreu no MASP em 2017: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?”), the advantages of being a woman artist (1985) que atualmente se destacam e criam um repertório de manifestação contra as violências simbólicas ainda concentradas nesse meio. A partir dessas ironicas indagações, o grupo é capaz elucidar um mapa sobre a história da arte e expor muitas das limitações e exclusões colocadas sobre as mulheres artistas, quando elas serviam-lhes como apoio criativo (musas e modelos), mas as restringiam desses espaços não as relacionando diretamente ao pensamento e à criação artística. O cartaz em que podemos ler “as vantagens de ser uma artista mulher”, também é seguido das possíveis vantagens como: não ter que participar de exposições com homens; poder escapar do mundo da arte em seus quatro trabalhos como freelancer; estar segura de que, independentemente, do tipo de arte que você faz, será rotulada como feminina; ver suas ideias tomares vida no trabalho de outro; ter a oportunidade de escolher sua carreira ou a maternidade; entre outras questões que são levantada no mesmo pôster. Além da denúncia sobre a exclusão das mulheres nas instituições artísticas, podemos notar também o questionamento a respeito da sobrecarga do trabalho feminino, que se perpetua em diversos nichos de nossa sociedade. A última frase desse cartaz diz: “ver sua foto em revistas de arte usando uma roupa de gorila”, podendo sugerir também questões que se relacionam com um possível apagamento de identidade pelo adestramento social por ser mulher. Entre muitas questões às quais as mulheres são submetidas, ainda é esperado um padrão de vestimenta, temperamento e comportamento e quando não os seguem, são vistas como selvagens (ou como, gorilas). Bourdieu acredita também que para além das barreiras 18 Não apenas para o Museu de Arte de São Paulo ou para o Met. Museum, mas esse trabalho consiste em questionar diversas instituições. 131 que as camadas de roupas podem criar, como será citado abaixo usando por exemplo o “véu”, o conjunto de imposições ensinadas na conduta das mulheres vêm desde sua infância. A submissão de um comportamento padrão possibilita a criação do “cerco invisível”, no qual, faz com que elas se isolem até mesmo por suas linguagens corporais. A respeito disso, o autor fala: “Como se a feminilidade se medisse pela arte de se “fazer pequena” (o feminino em berbere, vem sempre no diminutivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisível(do qual o véu não é mais que a manifestação visual), limitando o território deixado aos movimentos e aos deslocamentos de seu corpo -enquanto os homens ocupam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares públicos (BOURDIEU, 2020, p. 53). Dessa forma, surgem questões que extrapolam os cartazes com as ácidas frases, isto posto, é trazida à luz a inquietante observação sobre a performance de ocultação de identidade do Guerrilla Girls através de suas máscaras. Seriam essas utilizadas como uma forma de romper o dito cerco invisível dos gestos? ou ainda, um auxílio para a exposição de seus pensamentos como elas gostaria de que fossem expostos (independente das normas institucionais que recaem instintivamente sobre as mesmas)? Ou seriam estas máscaras a propulsão para uma crítica semiótica sobre o circuito da arte, (como quem dissesse “preferem reconhecer o talento intelectual, questionador e artístico em macacos do que em mulheres”)? As respostas para tais questionamentos ainda se situam no local das incógnitas, mas o que podemos observar é que mesmo com a arte do Guerrilla Girls sendo bastante difundida e debatida nas instituições, ao ocultar suas identidades as artistas do grupo ainda são mantidas, de certa forma, no espaço privado. Considerações finais Com relação às representações femininas realizadas sob a ótica masculina, podemos observar um imaginário que recaí sobre as mulheres no desenrolar da perspectiva históricosocial. Dessa forma, cria-se um ideal de beleza, de maternidade e de santidade que afastam as mulheres da realidade e as posicionam em uma esfera que beira o sublime no papel de musas19. 19 Por meio das pinturas e esculturas realizadas por homens e para um espaço que, até então, pertenciam aos homens, as mulheres não participavam como artistas, mas sim, como um objeto distante, útil para reprodução imagética, apreciação e admiração, representadas de acordo com o ideal feminino da fantasia masculina. Podemos observar tais 132 Como coloca Bourdieu (2020), tendo em vista as particularidades comportamentais de domínio dos homens sobre as mulheres em Cabília, na Argélia, podemos também observar muitos indícios do estudo se repetirem em nossa atual sociedade. É compreendido que o jogo de domínio não é encarcerado em determinada região, mas como demonstrado ao longo do artigo, o jogo de dominação masculina ainda se mantém presente em muitos contextos sociais, sobretudo, o nosso. Em tentativa de desconstrução do conservadorismo que paira sob o contexto social e artístico, muitas mulheres artistas tais como Marina Abramovic, Regina José Galindo, Ju Morais, Djanira da Motta e Silva e, as integrantes do Guerrilla Girls, têm tido um papel de grande importância na criação inúmeras movimentações cujo objetivo é decretar a libertação do corpo feminino e, também a desestabilização das estruturas e das autoimposições a partir de suas obras que, trazem um conteúdo fortemente político e crítico. A representação do corpo feminino sob olhar da artista mulher busca reescrever a história desse sujeito que por muito tempo sofreu muitas violências simbólicas. Dessa forma, representando seu corpo e se inscrevendo nos espaços públicos e institucionais, as mulheres criam narrativas que comprovam a forma como elas querem ser vistas, sem que para isso tenham que passar pela aprovação ou desaprovação das normas ditadas pelo filtro machista. Referências BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiencia vivida. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1967. BEAUVOIR, Simone de.. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1970. BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003. BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina: um estudo de circunstâncias em famosas pinturas como as bailarinas condescendentes de Renoir; ou nas sensuais dançarinas de Toulouse Lautrec; também, nas amabilíssimas donas dos cabelos compridos em Edmund Blair Leighton, que mesmo ao ordenar um cavaleiro, não perde o gracejo e a doçura; o corpo feminino nas mais devidas formas aceitas socialmente usadas, até mesmo, como carimbos humanos em “Antropometria do período azul” (1960) por Yves Klein; todas estas e mais outras diversas representações são criadas sob a perspectiva de homens. 133 Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013. BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2007. BOURDIEU, Pierre. . A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020. BOURDIEU, Pierre. . Razões Práticas. Campinas: Papirus, 1996. BÜRKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência. São Paulo: Editora Unesp, 2017. 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Vale ressaltar que esse fato desempenhou ações que geraram na sociedade da época que persistem até os dias atuais que é o silenciamento da voz feminina, a inferiorização da figura feminina. Os termos Nacionalidade e Estado-nação reforçam a ideal de uma unidade, de uma singularidade da cultura, das tradições que poderiam, consequentemente, estabelecerse no seio da sociedade da época que paulatinamente está em constante transformação, ao mesmo passo que atua na desconstrução de grupos sociais para que se efetive melhor as concepções políticas-ideológicas e culturais que visam à promoção da mudança e do estabelecimento de uma sociedade padrão operada por homens, assim, a figura feminina sofre com o silenciamento de seu discurso ou até o “apagamento” de sua imagem social perante a sociedade da época podendo se estender por várias épocas vindouras. No Romantismo sertanista, é destacada a figura autêntica do sertanejo, marcada na obra em questão pela diferença cultural, por suas peculiares tradições e por sua identidade https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-10 135 que na obra é posta num status de diferença – inferior – evidente em comparação com o homem moderno, civilizado. O sertanejo era pouco vislumbrado em termo do seu papel de protagonista em decorrência da atribuição de uma forte carga romântica que vem acompanhada de uma visão que o enfatiza como sendo o herói querido que com gestos e características grotescas que os deixavam à margem da realidade social objetivada. Entretanto, seu valor era considerado a partir de sua marcação linguística, de seus hábitos que são marcas próprias desses indivíduos. Ainda assim, existia em tese o reforço da ideia de que estes indivíduos seriam um grupo distante e, até os dias atuais, o sertanejo é representante desta categoria de sociedade arcaica e “ignorante”. Se o intuito dos escritores românticos da época era o de rotular o sertanejo e colocar a mulher em segundo plano ao atribuir-lhes um papel subalterno no plano do enredo e do cenário nacional, como sendo um herói ou uma mulher tipicamente idealizada, veremos que a obra Inocência desconstrói esta ideia, visto que é enfatizado, a partir dos personagens Pereira, Manecão e a própria Inocência, que existe um desenhar do homem sertanejo de modo a afastá-lo de uma perspectiva fundamentada sobre uma visão de afirmação da identidade nacional homogênea e, ainda, observa-se a figura feminina sobre um viés de apagamento e/ ou subalternidade. Portanto, a obra contribui para a construção e/ou reforço de um acervo literário sertanista, sem a objetivação de ser uma obra sustentada, exclusivamente, no caráter de Nacionalista. Indo além, pois remonta lembranças de uma época passada distante do escritor, que outrora visitou e esteve inserido neste contexto de outra realidade que até então os escritores literários românticos não deram ênfase dentro de seu conjunto de obras e, também, podemos atribuir-lhe que se inserir num contexto de trazer uma reflexão sobre a condição da mulher na sociedade. O presente artigo busca fazer uma análise do discurso sobre a mulher na obra “Inocência”, considerando aspectos de silenciamento, exclusão e/ou de subalternação feminina, de modo que esta análise se efetiva como sendo uma abordagem qualitativa uma vez que nosso trabalho se pauta numa relação social à qual a mulher esteve (está) submetida socialmente. Lançamos como objetivos específicos: a) refletir sobre a trajetória da mulher; b) estabelecer uma linha geral sobre a obra Inocência; c) contribuir para reflexões sobre o papel que por muitos anos foi atribuído à mulher. Nosso estudo foi desenvolvido a partir da seleção de uma metodologia que auxilie esta análise, ou seja, como metodologia adotamos a realização de um levantamento bibliográfico que versa sobre características da obra, o papel atribuído à mulher, entre outros aspectos relevantes que rodeiam a obra e seu contexto. 136 Este estudo está estruturado em quarto partes distintas, mas que se completam sistematicamente para tal entendimento, sendo essas partes: vertentes relacionadas à trajetória da mulher, onde objetivamos demonstrar características que são atribuídas à mulher bem como refletir a respeito; Em seguida, apresentaremos breves considerações sobre a obra em estudo, momento no qual se pretende demonstrar em linhas gerais aspectos globais da obra; o terceiro momento deste trabalho consta-se a análise e a discussão acerca do discurso sobre a figura feminina que é apresentado na obra, com dados fundamentados em autores e pesquisadores que contribuem para a efetivação da nossa análise que põe em cheque a mulher em uma posição de segundo plano social e por fim encontram-se as considerações finais e posteriormente as referências. Vertentes em relação à trajetória da figura feminina Por muito tempo, as características impostas socialmente para as mulheres foram: a submissão, a objetificação, a obediência aos homens, a preservação da moralidade e da fé, além disso, havia a falta de direitos igualitários e o silenciamento feminino diante de todas essas questões supracitadas. Em concordância com isto, Almeida e Barzotto (2017, p. 148) destacam que: Historicamente, a mulher sempre foi considerada uma figura inferior ao homem, submetida aos trabalhos domésticos, sendo excluída dos trabalhos intelectuais. Figura submissa ao homem, vivia com o intuito de procriar e servir ao mesmo, não tendo direito à educação, pois lhe era negada (ALMEIDA e BARZOTTO, 2017, p.148). Desta forma, a função da mulher era casar, cuidar do lar, servir e satisfazer as vontades do marido, sendo assim, ocorrendo a deslegitimação de suas vontades e a exclusão do convívio social. Outrossim, Era negado o direito de exercer uma profissão na sociedade e de participar nas eleições. Ao homem era permitido desenvolver-se intelectualidade, podendo estudar, trabalhar e desfrutar de espaços sociais. Assim, na sociedade o patriarcado era predominante durante período colonial, fazendo com que a mulher fosse dependente do homem. Essa dependência evidência uma relação de poder que é fruto de uma sociedade capitalista e que tem um sistema patriarcal. No entanto, de acordo com Safiotti (1976) Foi com a chegada da corte portuguesa no Brasil, que apareceu possibilidades limitadas de instruções laicas para as mulheres. Posteriormente, foram acontecendo mudanças no cenário social, no qual as mulheres foram tendo oportunidades de frequentar os espaços públicos e, gradativamente, foi-se quebrando o estereotipo social de que as mulheres deveriam ficar apenas em seus lares, 137 exercendo os trabalhos domésticos. Então, é fundamental pontuar que no decorrer desses anos não foi fácil (e ainda não é) a luta das mulheres por espaço e pelos direitos que lhe pertencem, como cidadã de uma sociedade. Assis e Antunes (2016, p. 18) argumentam que, a partir do primeiro terço do século XX, havia movimentos que contrariam e questionavam barreiras impostas com relação à participação da mulher em instituições políticas. Nesse período, as mulheres já haviam garantido o direito de votar, porém, no Brasil, ainda não se tinha esse poder. Todavia, ainda conforme Assis e Antunes (2016, p. 19): Como grandes chaves da participação das mulheres no mundo público a educação, o trabalho e o voto marcaram esta época. A cultura, a escrita e a arte se apresentavam como brechas possíveis. O feminismo, abrindo este caminho no final do século XIX e primeiras décadas do século XX, anunciava que as mulheres almejavam educação e trabalho. Reivindicações que ecoavam no Brasil, trazendo influências e debates que se espalhavam em distintos países. A produção literária e jornalística se alimentava e repercutia as polêmicas sobre o direito das mulheres ao estudo (ASSIS E ANTUNES, 2016, p.19). Sendo assim, o Brasil se espelhou em outros países em que já permeavam os debates e proporcionavam visibilidade as causas das mulheres, assim como, já garantiam direitos às mulheres. Todavia, o feminismo foi essencial para o rompimento do rígido patriarcado que existia, oferecendo o destaque as imposições da sociedade sob as mulheres e gerando questionamentos com relação à situação da figura feminina no meio social. Conforme Rodrigues (2014, p.6), foi no século XX, com a expansão dos movimentos feministas pelo mundo, que aconteciam manifestações tais como a queima de sutiãs em praça pública e libertação da mulher com a criação da pílula. Além disso, ampliavam-se as palavras de ordem: “Nosso corpo nos pertences!” “O privado também é político!” “Diferentes, mas não desiguais!”. Essas palavras de ordem, supracitadas por Rodrigues (2014) evidenciam o protesto das mulheres em busca da liberdade de escolha, de impor que o corpo da mulher pertence a ela, que a decisão de engravidar estar nas mãos da mulher, pois a gravidez tem que ser uma vontade do casal, não uma imposição masculina. Além disso, as mulheres queriam se impor diante das situações, diante das questões sociais, queriam ter voz no âmbito político, cultural e social. Apesar de muita resistência, ao longo desses anos, as mulheres foram conquistando seu espaço e alcançando seus direitos. Todavia, ao ler alguns livros de literatura, nota-se que tratam dessa temática, mostrando a influência do patriarcado, o silenciamento que exerceu sob as mulheres e o quanto o movimento feminista foi necessário para o rompimento desses paradigmas sociais. 138 Breves considerações sobre a Obra “Inocência” A obra “Inocência”, escrita por Visconde de Taunay, é caracterizada como sendo uma narrativa de tempo cronológico (romance). Durante a década de 1870, Taunay foi escolhido pelo Conde d’Eu para compor a expedição que seria realizada no Mato Grosso com a designação de ajudante da Comissão de Engenheiros com o ofício de informar ao governo imperial notícias e fatos daquela expedição. Ao vivenciar esta experiência na campanha, Taunay obteve vasto conhecimento que foi essencial para seus escritos. Inocência (1872) é uma narrativa que pertence ao movimento literário Romantismo que na década de 1870 já vivenciava sua fase final, vale ainda ressaltar que na obra pode-se encontrar traços característicos do movimento literário Naturalista. O romance se enquadra numa categoria regionalista por conter elementos característicos, como, por exemplo: costumes, o próprio ambiente e os hábitos das pessoas que na narrativa vivem no sertão – Santana do Paranaíba. O romance regionalista tem como característica marcante o espaço, que se configura como elemento típico do regionalista uma vez que o contexto histórico sentimental – amor – entre a personagem Inocência e o Cirino é protagonizado em terras pertencentes a Pereira (terras distantes do centro urbano, ou seja, em outras palavras é o próprio Sertão sendo retratado na obra). História – Memória – Ficção A partir do entendimento de diferentes informações que permeiam a obra em estudo, é evidenciado que, na obra, o autor se utiliza da realidade vivida outrora por ele como subsídio material para compô-la e, dentro desse subsídio, ele distribui entre ambientes e suas personagens características que remontam seu acervo memorativo da expedição no Mato Grosso do Sul. Sobre o viés da história e da memória, Visconde de Taunay lança mão da escrita que retrata o amor entre o Cirino e Inocência. Cirino Ferreira de Campos, que é descrito na obra como sendo físico e que tirara a carta de farmácia, ou seja, era doutor pelas experiências obtidas numa farmácia na cidade de Ouro Preto e, também, pelo domínio do manual de Chernoviz. 139 Inocência, que é protagonista e também nome da obra, é retratada como sendo uma mulher sertaneja da época de 1870, cuja configuração é uma idealização romantizada de uma jovem donzela de 18 anos, que tem como características principais sua inocência, palidez, timidez, grandes e bonitos cabelos, olhos grandes e acometida de uma fraqueza, mas é sonhadora e cultiva o desejo de ser feliz. Inocência, apesar de estar com casamento arranjado com Manecão Doca e tendo obtido a cura da sezão ou malária, agora, está acometida por uma doença sentimental – paixão – por Cirino. Portanto, é uma obra romântica bem “apimentada” por tratar de uma história que envolve amor e morte. Tendo como final do enredo, após a rejeição da jovem, o Manecão atira em Cirino, que, em seu leito de morte perdoa o bárbaro Manecão. Ao adicionar na escrita da obra um modelo simples e atraente, Visconde se projeta como um narrador-observador ao descrever tão bem paisagens e personagens no seio da escrita do seu enredo nesta obra. Ao descrever Inocência, Taunay (1872) mescla pureza, beleza e a inocência tipicamente idealizada da figura feminina pertence ao romantismo. Também traz a descrição detalhista do cotidiano, das tradições e da realidade do povo sertanejo. Descrevendo, detalhadamente, o cotidiano do sertanejo mato-grossense – Santana do Paranaíba – o escritor imprime na composição ficcional do enredo uma sociedade e sua cultura o que caracteriza fidedignamente o caráter Regionalista atribuído a obra. Existindo uma relação entre História – Memória – Ficção esta obra não só se configura, apenas, como ficcional visto que a construção do enredo foi fundamentada em dados verdadeiros de pessoas e realidades que foram encenadas pelos personagens da obra e que se utilizou do Mato Grosso como cenário real para tecer uma ficção atrativa, mágica e romântica. O papel e as características atribuídas à personagem Inocência reforçam em tese um apagamento e/ou subalternação da mulher na década de 70 em comparação com o homem ou a própria sociedade, pois mesmo sendo uma personagem principal na obra, é facil perceber que seus traços não afloram o empoderamento ou a igualdade feminina com a sociedade. Análise e discussões Está análise tem como foco principal o discurso de alguns personagens sobre a figura feminina na obra Inocência, destacando, através das falas dos personagens Pereira e Cirino, qual era o papel atribuído à mulher, como era tratada, quais eram as cobranças sociais impostas a ela. Portanto, a análise se aterá à abordagem semântica do discurso apresentada na narrativa. 140 Visconde de Taunay traz explicitamente à tona em sua obra a predominância do patriarcado. A narrativa mostra que o personagem Pereira, enquanto pai, tem a função de escolher com quem a filha (Inocência) iria casar, ou seja, configurando-se um casamento arranjado, sem consentimento ou questionamento sobre a vontade da mulher. Todavia, no decorrer da narrativa, nota-se o tratamento de inferiorização e silenciamento atribuído à mulher, como poderemos ver a seguir na conversa entre Pereira e Cirino: – Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam estado, ficam jururus1 e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as histórias!... Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se aguente, quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar2... Cruz! botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho (TAUNAY, 2007, p. 33). Assim, a honra da família dependia do comportamento da mulher: caso ela não cassasse ou tivesse alguma atitude que saísse dos paradigmas do patriarcado, a mulher ficava mal falada diante da sociedade o que atingia a sua família. Em virtude disso, Pereira apressouse para conseguir um marido para Inocência, e foi assim que ele escolheu Manecão, um negociante de gado, capaz de tudo para conseguir o que quer, inclusive atitudes agressivas. Em concordância com a narrativa da obra Inocência, Canezin (2004) reflete que a mulher nessa época vivia conformada com a situação que lhe era imposta pela lei e costumes da sociedade. Canezin (2006, p.06) ainda destaca que a mulher “crescia submissa ao pai e continuava pela vida toda submissa ao marido - só trocava de senhor - continuando “serva” do marido e dos filhos.” Portanto, a figura feminina era resumida a submissão aos homens, prontificavam-se a fazer tudo que lhe pediam, além disso, cuidavam do lar e eram proibidas de tomar decisões ou ter vontades. Com o fluir da obra, destacam-se discursos que abordam ideologias sociais. Nesse sentido, no que diz respeito à educação, a oportunidade de estudar para mulheres que moravam na zona rural era praticamente inexistente, visto que era cobrada a presença dela no lar, servindo e atendendo às ordens. Em contrapartida, se as mulheres adquirissem conhecimento, isso ocasionaria um empoderamento perante as situações que enfrentavam e não era isso que os homens queriam. 1 Termo utilizado para expressar quando uma pessoa estiver triste ou cabisbaixo. 2 Palavra usada para dizer que não há como abonar algo. 141 No entanto, a personagem Inocência surpreende Pereira ao demonstrar curiosidade por livros e o interesse em aprender a ler. Pereira fica espantado com as ideias e vontades de Inocência, em uma época que não permitia que as mulheres manifestassem suas curiosidades e desejos, pois o silenciamento era uma forma de mantê-las obedientes aos homens e temente aos costumes sociais. Logo abaixo, veremos uma conversa entre Cirino e Pereira que nos revela isso: – Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me fazem embatucar3... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que ideia! Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto (TAUNAY, 20007, 35.). A atitude supracitada de Inocência revela a busca por um movimento que provocaria a inversão dos papéis sociais que eram impostos para a mulher naquela época, por isso Pereira teve uma reação de espanto com o pedido feito pela filha, visto que esse pedido manifestava a tentativa da personagem se desprender das amarras sociais. Considerando a compreensão de gênero como uma “relação sócio-histórica que remete às relações de poder de caráter transversal, atravessando os liames sociais, as práticas, instituições e subjetividades” (CISNE, 2012, p. 105, é inegável que há relações de poder que permeiam na sociedade, que influenciam nos comportamentos das pessoas e que ocasionam uma demarcação de gênero masculino/feminino. Entretanto, no decorrer da obra, Inocência se apaixonou perdidamente por Cirino, mas isso torna-se um problema para a vida dela, visto que estava prometida para Manecão. E sabendo do perigo que é essa paixão e de todos os problemas que poderia ocasionar para sua vida, Inocência conta para Cirino sobre o medo que tem dessa paixão manchar a honra dela, ocasionando vergonha para toda a família diante da sociedade. Como podemos ver a seguir: Sei que devo de ter medo de mecê, porque pode botar-me a perder... Não formo juízo como; mas a minha honra e a de toda a minha família estão em suas mãos. Sou filha dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li em livros, nem tive quem me ensinasse cousa alguma... Lembra-me que, há já um tempão, pararam aqui umas mulheres com uns homens e eu perguntei a papai por que é que ele não as mandava entrar cá para 3 É quando a pessoa fica calada diante de uma situação, que lhe deixou sem reação e sem argumentos. 142 dentro, como é de costume com famílias... O pai me respondeu: — Não, Nocência, são mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei muito assombrada. — Mas, então, melhor: se são alegres hão de divertir-me. — Aquilo é gente airada, sem vergonha, secundou ele. — Tive tanta dó delas que mecê não imagina... E são os homens que fazem fica assim coitadas!.. antes morrer... (TAUNAY, 2007, 102-103). Portanto, a personagem revelou seus medos, destacou as limitações que enfrenta sendo mulher, além disso, deixou claro o medo que tinha de Cirino tira-lhe sua honra, e explicitou que em uma conversa que teve com o pai, soube que havia mulheres pedidas na vida e que davam vergonha para a família e que ela não queria torna-se assim, que antes disso acontecer, preferia morrer. Ou seja, Inocência reconheceu sua paixão por Cirino, mas não esqueceu dos valores e opiniões que o pai lhe transmitia, porque isso era muito forte e predominante. Desse modo, destacamos que Inocência era a única figura feminina presente nesta obra de Taunay, sendo assim, a personagem vivia sob dominação masculina, com seus sentimentos e desejos anulados pela opressão social, mostrando as relações de poder, construídas socialmente, cujo homem detinha todo o poder, e a mulher sobrava o direto de obedecê-lo. Segundo Perrot (1988, p.167): (...) o poder é um termo polissêmico, tem no singular uma conotação política, relacionase com o Estado e é a expressão do masculino, porém, no plural ele se estilhaça em fragmentos múltiplos equivalentes a influências difusas e periféricas, nas quais as mulheres têm sua grande parcela (PERROT, 1988, 167). O poder é um ato político, permanente em toda a sociedade, cujo pode mudar com o decorrer das transformações sociais. Diante do contexto vivenciado na obra, Pereira exercia seu poder sobre a filha, fazendo escolhas por ela. Diante disso, a paixão que a personagem Inocência tinha por Cirino ocasionaria a modificação dos valores enraizados. Então, lutar por esse amor proibido proporcionaria o rompimento das desigualdades socialmente impostas para a mulher, mas Inocência com receio de manchar sua honra, acabou morrendo de amor. 143 Considerações Finais Considerando o direcionamento que demos para essa pesquisa, acreditamos que os objetivos elencados foram alcançados. Em relação ao objetivo geral, apresentamos uma análise do discurso sobre a mulher na obra Inocência, norteando-se pelos aspectos de silenciamento, exclusão e/ou de subalternação feminina. Em relação aos objetivos específicos: a) refletimos sobre relação à trajetória da mulher; b) estabelecemos uma linha geral relacionada à obra Inocência; e c) contribuímos para o desencadeamento de reflexões sobre o papel que por muitos anos foi atribuído à mulher. Todavia, norteando-se pela obra Inocência de Visconde de Taunay, evidenciamos como a mulher era tratada na sociedade, quais eram as formas de silenciamento, resignação e resistência as imposições sociais que aconteciam, de modo que era nítido o quanto o patriarcado limitava a vida da personagem e o quanto isso lhe incomodava. Além disso, mostramos a personagem Inocência buscando romper com os padrões impostos por uma sociedade cheia de modelos estabelecidos para que a mulher obedecesse. Ao analisar o discurso de silenciamento feminino apresentado na obra Inocência, evidenciamos o quanto as relações de poder reverberaram sobre a vida da mulher em sociedade. Visto que, desde dos primórdios, há uma certa desigualdade de gênero, na qual a mulher sempre ocupa o papel de inferiorizada, como destacamos através das falas da obra supracitada. No entanto, a personagem por mais que tivesse menos falas na narrativa, sempre buscava expor suas vontades de romper com as imposições sociais. Desde outrora, as mulheres enfrentam lutas diárias para sobreviver aos padrões sociais, para ocupar o seu espaço em meio a uma sociedade “dominada” por homens, pois sabemos que apesar das mulheres terem alcançado tantas conquistas, tais como: o poder do voto, poder trabalhar, expor suas opiniões e vontades, entre outros. Ainda assim, há muitos enfrentamentos atualmente, são inúmeras cobranças sociais, padrões de estéticas, de comportamento atribuídos para a figura feminina. Contudo, é necessário buscarmos discutir e refletir sobre a trajetória da mulher na sociedade, pois é uma forma de reverberar esse tema, ensejando que os sujeitos procurem estudar, ler e se aprofundar sobre as questões aqui levantadas. Além disso, permeia-se um direcionamento para que outras pessoas construam e contribuam com mais pesquisas relacionadas a esse tema. 144 Referências ALMEIDA, Claudimar Paes de; BARZOTTO, Leoné Astride. Silenciamento e resistência: retratos da mulher nos contos freirianos. 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São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2007. 145 CAPÍTULO 11 O contraste feminino entre a mulher casta e namoradeira nas obras “Cais da Sagração” e “Judas em Sábado de Aleluia”: uma análise comparativa Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar, Maria Iranilde Almeida Costa Introdução Há bastante tempo, muito tem se discutido sobre a questão socio-histórico-cultural da mulher. Morosamente atrelado e diminuído pelo universo masculino, o gênero feminino sempre foi visto como uma serventia ao homem. Diante disso, todos os seus desejos e funções eram e, muitas vezes ainda são vinculados à satisfação do marido ou às expectativas masculinas – mentalidade tão enraizada nos indivíduos, sejam estes homens ou até, infelizmente, mulheres. Isto posto, a literatura brasileira, direta ou indiretamente, representa, de diferentes formas, o feminino e a sua correlação com a sociedade ao longo dos séculos – auxiliando, assim, o estudo da trajetória desse gênero. Dessa forma, a partir dos clássicos literários Cais da Sagração, de Josué Montello e O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, esta pesquisa buscou compreender os contrastes femininos por eles evidenciados. Além disso, traçaram-se comentários e analisaram-se os papéis das mulheres dentro dessas obras e a forma como escritores, especificamente homens, intencionalmente ou não, enquadraram e reforçaram os mesmos estereótipos presentes até hoje entre os indivíduos no Brasil. Para isso, tornou-se necessário trilhar pela pesquisa qualitativa e bibliográfica, uma vez que a primeira aprofunda, por meio de dados narrativos e observações, o entendimento https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-11 146 acerca do tema em questão e auxilia na busca pela resolução das hipóteses levantadas. Ao mesmo tempo, a segunda amplia a base teórica do estudo, a fim de facilitar o desenvolvimento do trabalho. Ademais, permite o acesso a análises anteriores sobre os assuntos e problemas levantados. Para tanto, utilizaram-se estudos de Rondinelle (2012) e Almeida (2019) acerca da análise da peça de Martins Pena; Rodrigues (2010), no que tange à obra de Montello; Abrantes (2006), em relação à contextualização histórica do gênero feminino na sociedade. Mediante o exposto, por fim, é imprescindível salientar o quanto o número de pesquisas relacionadas à posição feminina em contextos históricos diferentes tem crescido e, assim, despertado o interesse de muitos pesquisadores e curiosos. À vista disto, diante desses constantes estudos feitos em relação à mulher e à sua posição na sociedade, esta pesquisa tornase relevante ao proporcionar, por meio da visão de dois autores consagrados, a compreensão acerca dos papéis nos quais a maioria das mulheres foram inseridas, especificamente, nos séculos XIX e XX. A literatura comparada: perspectivas teóricas A Literatura Comparada surgiu na França, mais especificamente no século XIX, e desde lá perpassou por diversos desdobramentos. Assim, em cada país, existem teóricos literários que propõem diferentes métodos e normas para essa área. Isso é discutido por Tania Carvalhal na obra Literatura Comparada (2006), na qual a estudiosa traça uma perspectiva não somente histórica, mas também da produção científica da temática em questão. Carvalhal (2006) afirma que o ato de comparar é inerente ao ser humano e faz parte dele como forma de raciocínio e lógica. Além disso, a comparação também está presente em outras ramificações dos estudos literários, como na Crítica Literária, logo questiona-se o motivo de existir uma disciplina específica denominada por Literatura Comparada (LC). Algumas respostas são dadas a essa indagação e muitas delas são explicadas por meio das diversas formas que área pode se estabelecer. Nesse sentido, A literatura comparada utiliza a comparação não apenas para mostrar as semelhanças e/ ou as diferenças entre os elementos da pesquisa, é um sistema ou recurso encadeador que permite atentar para as peculiaridades de cada texto, alcançando uma visão ampla dos processos de produção literária, ou seja, não se limita a uma análise superficial da obra, mas acrescenta conhecimento e desenvolve a capacidade de fazer uma interpretação profunda de textos literários. (SILVA, 2011, p.6) 147 Tendo em vista Silva (2011) e as proposições de Carvalhal (2006), nota-se que a LC oferece uma visão mais ampla e crítica, bem como profunda. Logo, não se constrói somente uma comparação entre obras ou autores, mas, além disso, visa-se propor e ampliar as discussões teóricas sobre uma (ou mais) temáticas e isso se torna mais latente ao esquadrinhar a literatura nacional. Também, A literatura comparada ambiciona um alcance ainda maior, que é o de contribuir para a elucidação de questões literárias que exijam perspectivas amplas. Assim, a investigação de um mesmo problema em diferentes contextos literários permite que se ampliem os horizontes do conhecimento estético ao mesmo tempo que, pela análise contrastiva, favorece a visão crítica das literaturas nacionais. (CARVALHAL, 2006, p.86) Dessa forma, considerando o exposto, busca-se nesta pesquisa apresentar, por meio da Literatura Comparada, como a mulher é representada por meio das personagens protagonistas de Cais da Sagração (!971) e Judas em Sábado de Aleluia (1840). Assim, destaca-se como o papel social e político é refratado nas obras literárias e de que forma esse estereótipo é repetido e, por consequência, reforçado na escrita de autores masculinos. Portanto, destacase, como será visto nos próximos tópicos, que, mesmo existindo uma diferença de mais de um século, permanece estabelecido o mesmo padrão em relação à figura feminina. Conhecendo as obras “Judas em Sábado de Aleluia” (1840), de Martins Pena O teatro brasileiro no século XIX não apresentava uma identidade nacionalista, pois ainda existia uma forte influência europeia nas produções e, por isso, buscou-se valorizar espaço e cultura locais a fim de construir uma produção essencialmente brasileira, o que é presente nas obras de Martins Pena. Tal escritor é considerado o criador da comédia de costumes no Brasil e esse gênero advém da Farsa – que traz personagens estereotipados e do Teatro Popular. Neste, as classes mais baixas são representadas, o que dá espaço às narrativas antes excluídas dos romances românticos. Também, uma característica marcante nas peças de Pena é: Uma mensagem de conteúdo social, construída por meio da sátira política e religiosa, e da adaptação de temas debatidos pela imprensa fluminense da época, tais como a circulação de moeda falsa, os preceitos da maçonaria e a presença de padres em espetáculos teatrais (RONDINELLI, 2012, p.145). 148 Ou seja, a preocupação com a formação cidadã e consciência crítica acerca dos direitos civis perante a corrupção latente. Assim, a peça conta a história de Pimenta, Chiquinha, Maricota e seus pretendentes, além de oferecer destaque a quesitos políticos e morais pertinentes à época. Em adição a isso, o enredo se desenvolve por meio do triângulo amoroso entre Chiquinha – Faustino – Maricota. Chiquinha, sendo a típica moça namoradeira, que parecer corresponder a diversos pretendentes, enquanto Faustino sofre por sua atenção – sem saber que Maricota é apaixonada por ele. Ao final, Faustino descobre que sua amada estava envolvida em um plano de corrupção e por isso a abandona e opta em se casar com a irmã. Outro ponto importante é a oscilação entre uma paródia aos costumes românticos e a defesa desses. Em diversos momentos, as falas melodramáticas são exageradas e tratadas como uma crítica ao Romantismo e, por outro lado, Maricota simboliza o pensamento pragmático, pois sua busca incessante pelo casamento é decorrente do seu baixo status social e financeiro, tendo em vista que somente por meio do matrimônio a mulher poderia galgar novas posições perante a sociedade ou até mesmo garantir seu futuro. Além disso, Faustino usa a chantagem para alcançar seus objetivos e, por consequência, contradiz-se a sua fala moralista – aspecto essencial na estética romântica. “Cais da Sagração” (1971), de Josué Montello A obra de Josué Montello, publicada em 1971, traz, por meio de um enredo não linear e com constantes flashbacks, a história de Mestre Severino – um homem que vive pelo mar e pelos seus valores morais fortes. O próprio autor comenta sobre a escolha dessa estratégia de escrita: No Cais da Sagração adotei a técnica do flashback, com as sucessivas interrupções do fluxo linear da narrativa, que frequentemente se volta sobre si mesma, para apanhar um relato pregresso de importância capital na ação romanesca. Mas tive o cuidado de que esta ação romanesca continuasse presente no espírito da exposição, para não Página10 suscitar a perplexidade do leitor, desorientando-o no correr da leitura (MONTELLO, 1986, p. 50). Apesar de se encaixar no ideal modernista, esse romance traz inúmeros resquícios realistas, apresentando o preconceito, a homofobia e a desvalorização da mulher, constantes na sociedade da época. Além disso, Cais da Sagração coloca em foco personagens com características divergentes, mas que, de certa forma, complementam-se e tornam a narrativa mais empolgante e intrigante. Os principais são: Severino, o protagonista; Vanju, uma 149 prostituta pela qual ele se apaixonou perdidamente, a ponto de substituir a sua atual companheira, casou-se com ela e teve uma filha; Lourença, parceira do protagonista antes de Vanju, submissa, prestativa, misericordiosa e que, de acordo com o autor, perdeu a beleza durante o tempo; Pedro, neto que levanta muitos questionamentos sobre sua sexualidade e evidencia o comportamento homofóbico de Severino. A narrativa volta-se para as mudanças repentinas na vida do Severino, mas, simultaneamente, evidencia o paradoxo na imagem das duas mulheres que circundam a vida dele: Vanju e Lourença. Esta, cuidadosa, abnegada, dedicada aos deveres da casa e às vontades do Severino, sejam estas a seu favor ou não. Aquela, entregue à liberdade da vida, vaidosa, de beleza chamativa e pouco apegada às obrigações domésticas e maternais. Com Vanju, Severino tinha a esperança de ter um filho, a fim de ensinar os segredos do mar e, assim, ter um herdeiro. Porém, ele teve uma filha, o que o estimulou a pedir outro filho para sua esposa – a qual não aceita esse papel de progenitora e se percebe pouco habilidosa para ser mãe. Diante disso, Lourença assume, mais uma vez, os deveres da casa, cuidando da filha da Vanju e permanecendo ao lado de Severino – colocando em evidência os diferentes papéis que as mulheres poderiam ocupar na época. Ademais, por ser muito ciumento, o protagonista passa a acreditar que Vanju estava lhe traindo. Mesmo não tendo provas, decidiu fazer um acordo com a sua companheira, o qual consistia em caso alguém dos dois traísse, a outra pessoa teria o direito de matar o(a) traidor(a). Diante disso, Severino acaba cometendo homicídio e passa anos na cadeia. Ao sair de lá, volta para o seu lar e à sua antiga parceira, Lourença, a qual nunca abandonou os seus afazeres e o próprio ex-marido – apesar de todos os problemas. Manteve-se abnegada e fiel, cuidando da casa e da filha de Mestre Severino. Esta filha, depois de um tempo, deu à luz um filho, o qual encheu o coração do velho Severino de expectativas quanto ao seu relacionamento com ele, já que queria muito que seu neto seguisse os seus passos. Contudo, logo percebeu que o destino seria outro. Severino deixava bem clara a sua desavença o neto, pois este estava seguindo caminhos nada esperados e aprovados por alguém mergulhado em sua masculinidade e na aversão à feminilidade. As convergências no retrato da mulher Nesta parte da pesquisa, pretende-se traçar os paralelos entre as quatro personagens selecionadas. Além disso, buscou-se verificar, posteriormente, como se constrói o contraste moral e social em torno da figura feminina a partir das próprias falas das personagens e de importantes teóricos nesta área de estudo. 150 Maricota e Vanju Tendo em vista a apresentação das obras, pode-se perceber que tanto Maricota como Vanju estão inseridas em um triângulo amoroso e em uma sociedade patriarcal, na qual o casamento assume um papel fundamental da vida da mulher. A partir disso, este tópico tratará, essencialmente, da posição dessas duas personagens seguindo os seguintes aspectos: a importância do casamento, a transgressão social e o final trágico/moralizante. No que tange ao casamento, esse se enquadra como o único meio de manter uma posição social respeitável e adquirir uma condição econômica confortável. Para Maricota, [...] quanto mais pretendentes, maiores as chances de casar; ela não se preocupa com a fama de namoradeira como a irmã, visto que se preocupa mesmo é com a solteirice, num contexto social patriarcal em que a mulher dependia do marido para tudo, a maior preocupação era não casar-se, desse modo o importante era certificar-se que cada pretendente acreditasse ser o único (ALMEIDA, 2019, p. 113). Além disso, ela necessitava de um dote1 e, infelizmente, sua classe social não possibilitava isso, assim, é na busca incessante por pretendentes – e a todos responder – que Maricota encontra uma saída para sua condição de mulher brasileira. Para Vanju, “o casamento era apresentado como um meio de preservação da honra feminina e da realização da função biológica, a maternidade. Assim, casar, ser uma mãe zelosa e uma esposa submissa e recatada era o sonho da maioria das mulheres brancas” (RODRIGUES, 2010, p.20). Portanto, percebe-se em Vanju o desejo de se tornar uma mulher não mais marginalizada e escondida, mas sim com status de respeitabilidade. Ademais, Vanju exige casar-se de branco em uma cerimônia religiosa e é exatamente isso que acontece, assim, ela tem a oportunidade de mostrar para toda comunidade que não era mais uma “mulher da vida”, mas havia se tornado esposa e, portanto, uma mulher respeitável. Destaca-se, também, a necessidade, já citada, de casar com um vestido branco, mesmo que não fosse mais virgem e isso é justificado por Severino, que afirma para o padre que ela restaurou sua pureza. Logo, vê-se o casamento como o caminho para a restauração do caráter da mulher. Contudo, ambas têm atitudes que transgridem às regras sociais e morais estabelecidas para a mulher, visto que essa deveria ser a “‘rainha do lar, ‘anjo tutelar’, nos moldes do ideário 1 Segundo Rodrigues (2010, p. 25 apud SAMARA, 1980), o dote constituía-se dos bens concedidos aos nubentes, principalmente à esposa, com o objetivo de favorecer a obtenção de uniões legitimadas. Este ao ser levado para o casamento ajudava na manutenção de despesas do novo casal. 151 positivista e burguês, reforçando os padrões de comportamento que dariam respeitabilidade às mulheres, os espaços sociais a serem ocupados e as atividades que poderiam desempenhar” (ABRANTES, 2006, p. 1). Isso pode ser observado em Vanju, para além de seu passado como prostituta, que mesmo se tornando esposa e mãe, ainda não se enquadra nesses padrões e entrega essas obrigações para Lourença. Assim, Vanju mantém sua posição somente na satisfação dos desejos sexuais de Severino ou na sua presença decorativa, isto é, sua obrigação em estar bela e bem vestida. Inclusive, nota-se a influência das revistas femininas na vida dela, pois é a partir dessas publicações que ela entende como uma mulher deveria se portar perante a sociedade. Enquanto isso, Maricota também rompe com os postulados morais, dado que ela está envolvida – seja por bilhetes ou encontros –, com Faustino, Capitão Ambrósio, Tenente dos Permanentes, um janota, um estudante de latim, um amanuense da Alfândega, um inglês, um empregado da diplomacia que estivera na Europa, segundo Rondinelli (2012, p.8182). Portanto, ao invés de manter poucos relacionamentos de corte, enquadra-se como a personagem tipo namoradeira, que busca diversos pretendentes. Nesse sentido, indaga-se quais são as motivações de Maricota e observa-se que a justificativa está localizada na perspectiva que ela possui acerca do matrimônio, que seria “uma possibilidade de ascensão social, ou pelo menos, uma garantia de sustento e uma colocação social melhor da que desfrutava sendo filha de Pimenta” (RONDINELLI, 2012, p.87). Dessa forma, ela ultrapassa a classificação de moça namoradeira e apresenta uma visão mais realista e prática do casamento, uma vez que, como foi exposto, era a única forma que manteria sua castidade junto à garantia de um futuro mais promissor. Além disso, a personagem representa um pensamento mais moderno acerca do comportamento feminino, pois ela deveria ter “o direito de escolher o esposo, ou simplesmente, de namorar em público sem sofrer reprimendas dos pais ou ser condenada pela sociedade” (RONDINELLI, 2012, p.87). Em decorrência de suas transgressões sociais, ambas sofrem as penalidades de seus “delitos”. Severino acredita que Vanju o traiu, pois ela está sempre na janela, olhando os rapazes passando e, em especial, um certo capitão. Ainda que não tenha provas, ele, possuído por ciúmes e ao lembrar do passado dela como prostituta, afoga sua esposa na praia e, mesmo se arrependendo, sabia que precisava “lavar sua honra”. Em relação a Maricota, esta recebe seu pior pesadelo: casar-se com um velho. Nota-se, por conseguinte, o fator moralizante dos dois enredos, uma vez que as moças transgressoras, aquelas que rompem com os padrões estabelecidos pela sociedade em torno do casamento e sexualidade, recebem as consequências negativas de suas más escolhas. 152 Chiquinha e Lourença: por trás do casamento De acordo com Canezin (2007), “o casamento representou sempre, na história da humanidade, um componente de socialização voltada a interesses de sobrevivência econômica e política”. Diante disso, não havia um outro destino de sucesso feminino se não fosse o matrimônio. Qualquer coisa fora dele seria considerada fracasso e corrompimento dos bons costumes. As duas personagens em questão são um produto da sociedade, a qual é marcada pela intensa valorização do casamento. A própria Chiquinha deixa esse anseio evidente em sua fala: “Que outro futuro esperam as filhas-famílias, senão o casamento? É a nossa senatoria, como costumam dizer” (PENA, 1840, p. 5). Chiquinha tinha, no seu ideal, conhecer alguém especial, apaixonar-se e casar-se. Toda a sua vida era voltada para se tornar uma boa dona de casa e, consequentemente, para a época, uma boa esposa. Contudo, diferentemente da sua irmã (Maricota), não vivia buscando o seu futuro marido na rua. Apenas platonizava um amor futuro, algo que a tornava uma boa candidata ao casamento, já que não era, como ela mesma menciona, uma “namoradeira”: A namoradeira é em breve tempo conhecida e ninguém a deseja por mulher. Julgas que os homens iludem-se com ela e que não sabem que valor devem dar aos seus protestos? Que mulher pode haver tão fina, que namore a muitos e que faça crer a cada um em particular que é o único amado? Aqui em nossa terra, grande parte dos moços são presunçosos, linguarudos e indiscretos; quando têm o mais insignificante namorico, não há amigos e conhecidos que não sejam confidentes. Que cautelas podem resistir a essas indiscrições? E conhecida uma moça por namoradeira, quem se animará a pedi-la por esposa? Quem se quererá arriscar a casar-se com uma mulher que continue depois de casada as cenas de sua vida de solteira? Os homens têm mais juízo do que pensas; com as namoradeiras divertem-se eles, mas não se casam (PENA, 1840, p. 5). Ou seja, a mulher que não se guardasse para o casamento corria o risco de ser vista como indiscreta e virava motivo de chacota – tendo dificuldade de, no futuro, achar algum marido. No caso da Chiquinha, ela fugia ao máximo desse rótulo (namoradeira), para que, assim, ficasse conhecida como uma mulher pura, discreta, fina e pronta para ser pedida em casamento. A peça, apesar de se mostrar bem à frente da sua época e denunciar os costumes da sociedade no século XIX, acaba perpetuando esses pensamentos retrógrados citados anteriormente – já que, no final, quem se casou com a pessoa que queria e alcançou o sucesso na história foi justamente aquela que se resguardou para isso, a Chiquinha. Ou seja, o mesmo ideal é propagado: há mulher para casar, enquanto há mulheres que são para “curtir a vida”, uma vez que: 153 Acreditava-se que o homem deveria ter a plenitude da realização de seus desejos sexuais, porém a esposa, enquanto representação da moral e dos bons e costumes, não poderia se sujeitar a extravagâncias desta natureza (ALMEIDA, 2020, p. 82). Dessa forma, verifica-se a forte distinção entre alguns papéis femininos que poderiam ser assumidos na sociedade da época, proporcionando ou não a possibilidade de um futuro casamento. Em outras palavras, como o sucesso social estava vinculado ao matrimônio, havia mulheres destinas ao fracasso e outras aos “bons olhos” da sociedade. Quanto à Lourença, em “Cais da Sagração”, nada é tão diferente. Ela, da mesma forma, rende-se totalmente aos quereres da sua época e do seu companheiro. Além disso, submete-se totalmente aos desrespeitos lançados sobre ela. É essa típica personagem do século XIX que termina abnegando-se e cuidando do seu companheiro machista, do neto e da filha dele e, até, da Vanju – a mulher por quem foi trocada. Uma cena que retrata essa submissão desenfreada é o momento depois que o Severino diz a Lourença que irá se casar com outra mulher. Diante dessa notícia, ela decidiu mudar de quarto: Na mesma noite, cabisbaixa, enquanto Mestre Severino, à luz do contravento, à mesa da varanda, escriturava num velho caderno preto as contas da viagem, Lourença se mudou para o quarto estreito ao lado da cozinha, e ali armou a sua rede. [..] Como seria a dona que enfeitiçara Mestre Severino? De si para si, pitando o cachimbo, Lourença queria queixar-se, no teimoso esforço para se compenetrar da injustiça da sorte; mas logo reconhecia que não era direito. Dos dois, pensando bem, quem tinha culpa era ela. Mestre Severino dera-lhe casa, dera-lhe comida, dera-lhe roupa, dera-lhe carinho, tirara-a das mãos do pai que lhe batia, e a verdade é que ela não lhe tinha dado, ao fim de tantos anos, o filho que ele sempre deixava dentro dela, à noite, quando voltava das viagens (MONTELLO, 2005, p. 67). Diante dessa desconsideração, Lourença abdicou do seu lugar de companheira e ainda se sentiu culpada por toda essa situação ter acontecido. Ela se entristece por não ter dado filhos a Severino e, por isso, acredita que ele estava fazendo um favor a ela, por dar-lhe teto e roupa. Ao aceitar essa sua nova posição, a personagem deixa clara a condição feminina enfrentada tanto por ela quanto por Chiquinha: desvalorização, submissão desenfreada, dependências emocional, social e financeira. Tudo isso camuflado por um acordo social romantizado: o casamento. Por fim, deixa clara a validação do pensamento de que “as mulheres do lar, símbolo de pureza e do matrimônio bem consolidado, deveriam ser as responsáveis pelo cuidado dos filhos e da casa, antro de pureza e de moral inquestionáveis” (MORAES, 2015). 154 Considerações finais Tendo em vista as análises apresentadas acima, notou-se que cada obra retrata dois tipos de personagens em contraste, isto é, mulheres que ocupam o espaço antagônico entre ser respeitável e se tornar invalidável ao matrimônio. Contudo, todas elas têm suas vidas permeadas pelo status do casamento e por pressões sociais em relação às suas responsabilidades – seja como dona de casa ou como objeto de satisfação masculina. Assim, “para a sociedade da época, nada mais justo e correto que a senhora de casa fosse o símbolo da boa reputação, ao passo que as prostitutas deveriam servir de válvulas de escape para as aventuras amorosas e sexuais” (ALMEIDA, 2020, p. 86). Além disso, o trabalho corrobora com as discussões atuais sobre o papel apontado na Literatura Brasileira no que tange ao conceito propagado pelo machismo latente na sociedade no país, na qual uma mulher é orientada que, somente no casamento, ela poderá ser valorizada e ter uma situação financeira confortável. Ainda que este aspecto seja vivenciado de formas diferentes pelas personagens escolhidas para esta pesquisa. Dessa forma, é notório que a representação e o papel da mulher dentro da sociedade brasileira não mudaram, mesmo diante de lutas por equidade e mudanças quanto a esta opressão. A figura feminina ainda é, essencialmente, atrelada ao casamento, à vida doméstica e à maternidade, questões que não são problemas em si, mas impedem outras possibilidades do ser e existir como mulher. Referências ABRANTES, Elizabeth Sousa. “Mãe civilizadora”: a educação da mulher nos discursos feminista e antifeminista na primeira república. Anpuh. XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006. ALMEIDA, Gil Derlan Silva; LOPES, Sebastião Alves Teixeira. Sobre as deusas, putas e odiadas: a presença da prostituta em Cais da Sagração de Josué Montello. Afluente: Revista de Letras e Linguística, v. 5, n. 15, p. 77-95, 2020. ALMEIDA, Marcia Geralda. O judas em sábado de aleluia: no mínimo gesto, o valor artístico nas comédias de costumes de Martins Pena. Contraponto, v. 8, n. 1, 2019. ALÓS, Anselmo Peres. A literatura comparada neste início de milênio: tendências e perspectivas. Ângulo (FATEA), n. 130, p. 7-12, 2012. 155 CANEZIN, Claudete Carvalho. A mulher e o casamento: da submissão à emancipação. Paraná: UniCesumar, 2007. Disponível em: < https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/ article/view/368 >. Acesso em: 26 fev. 2021. CARVALHAL, Tania. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. MONTELLO, Josué. Cais da Sagração. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. MORAES, E. R. Francesas nos trópicos: a prostituta como tópica literária. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, n. 15, p. 165-178, 2015. PENA, Martins. O Judas em Sábado de Aleluia. Belém: UNAMA. Disponível em: < http://www. portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/martins_pena4.pdf >. Acesso em: 8 jan. 2021. RODRIGUES, Maria José Lobato. Educação feminina no recolhimento do Maranhão: o redefinir de uma instituição. 2010 RONDINELLI, Bruna Grasiela da Silva et al. Martins Pena, o comediógrafo do Teatro de São Pedro de Alcântara: uma leitura de O Judas em sábado de aleluia, Os irmãos das almas e O noviço. 2012. SILVA, Manuella. Cecília e Florbela: Imagens em Espelho uma Análise Comparada da Morte nos Poemas “Mulher ao Espelho” e “Dizeres Íntimos”. Curso de Letras, Amazonas, 2011. Disponível em: < https://edoc.ufam.edu.br/retrieve/31b1b084-44f9-4199-af77-6dc56fc467f5/TCC-Letras-2011Arquivo.016.pdf >. Acesso em: 8 jan. 2021. VAN TIEGHEM, Paul. Crítica literária, história literária, literatura comparada. Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, p. 89-98, 1994. 156 Sobre a organizadora Meire Oliveira Silva Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é docente do curso de Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus Foz do Iguaçu. É também autora de Liturgia da pedra: negro amor de rendas brancas (2018) e O cinema-poesia de Joaquim Pedro de Andrade: passos da paixão mineira (2016) e desenvolve pesquisas em História do documentário brasileiro e Teoria do cinema documentário. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5950515096751794 ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-48636062 E-mail: meire_oliveira@uol.com.br. 157 Sobre os autores e autoras Brenna Késia de Sousa Costa Graduanda no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui interesses de pesquisa voltados à sociolinguística, focando em questões relacionadas à variação linguística. E-mail: brennacosta@alu.uern.br. Débora Cristina Sampaio do Valle Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (PGC),orientada pela Profa. Dra. Marivânia Conceição de Araújo. Assistente Social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL,2009). Especialista em Comunicação Popular e Comunitária (UEL 2012) e Gestão em Saúde (UEM, 2016). Ativista e militante do movimento negro e contra a violência de gênero. Membra do Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques - IMNEAM e da Rede de acolhimento de Mulheres Nenhuma a Menos. Assistente Social da Saúde de Maringá-PR. Edgley Freire Tavares Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGEL/UFRN). Docente no Departamento de Letras Vernáculas da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus Central. Membro do GEDUERN - Grupo de Estudos do Discurso da UERN. Desenvolve estudos em análise do discurso nos arquivos da política e da democracia, investigando práticas discursivas contemporâneas para estabelecer uma arqueologia e uma genealogia da sociedade brasileira. E-mail: edgleyfreire@uern.br. Erika Maria Albuquerque Sousa Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Maranhão - CESC/UEMA. Membro do grupo de pesquisa CNPq: Literatura, Arte e Mídias - LAMID e do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NUPLIM/ CNPq. Membro da diretoria da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras - LICLE/ CESCUEMA. 158 Gabriele Teixeira Diniz formada em Letras Língua Portuguesa pelo Instituto Federal de Brasília (2020), tem especialização em “Enem: competências e habilidades em humanas” e tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura e crítica literária dialética. Desenvolveu pesquisas na Literatura e Linguística, respectivamente, durante o curso; a primeira delas intitulada Sobre Belas e Feras: amor, fantasia e opressão em o Morro dos Ventos Uivantes e Crepúsculo; e a segunda voltada para Análise do Discurso Crítica: Valorização das mulheres e comunicação multimodal não violenta: manual e produção de textos para comunicações oficiais, propagandas e publicidades. Ao longo da graduação se dedicou à pesquisa com ênfase nos estudos de representação feminina e aos projetos de extensão, onde pôde colocar em prática o que pesquisava. Giovana Carvalho Alencar Está em processo de graduação em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão. Atualmente, é bolsista PIBID pela UEMA. Além disso, atua como professora de inglês no programa bilíngue International School e na franquia FISK, instituto de idiomas. Tem experiência nas áreas de Língua Inglesa e de Língua Portuguesa. Guilherme Ewerton Alves de Assis Graduando em Licenciatura Plena em Letras – Português pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia, pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Hodiernamente, é pesquisador efetivo do Grupo de Pesquisa em Literatura, Gênero e Psicanálise (LIGEPSI/CNQp) – UFPB, no qual é bolsista PIBIC. Demonstra interesses nas áreas de: a) Literatura e psicanálise; b) Literatura fantástica; c) Poesia e metapoesia; e) Literatura feminina; f ) Literatura erótica. Faz incursões pela psicanálise, sobretudo de cunho freudiano e lacaniano. Gustavo Abílio Galeno Arnt Possui graduação em Letras pela Universidade de Brasília (2007), mestrado em Literatura pela Universidade de Brasília (2009) e doutorado em Literatura pela Universidade de Brasília (2014). Realizou pós-doutorado em Filosofia junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília (2018-2020), onde desenvolveu uma pesquisa sobre os Cursos de Estética, de G.W. Hegel. Atualmente é professor EBTT D-401 do Instituto Federal de Brasília. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, crítica marxista, estética. 159 Hermano de França Rodrigues Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB). Especialista em ‘Psicanálise: Teoria e Prática’, pelo Espaço Psicanalítico – EPSI. Tem experiência na área de Linguagem, Literatura e Cultura, com ênfase em Semiótica, Literatura e Psicanálise. Desenvolve estudos sobre: a) Literatura Erótica; b) Erotismo, Discurso e Memória; c) Semiótica e Psicanálise; d) Literatura e Psicanálise; e) e Literatura e Estudos de Gênero. Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino Graduanda em Letras-Português/Inglês pela Universidade Estadual do Maranhão. Foi bolsista em Iniciação Científica na área de Tradução Literária pela FAPEMA e, atualmente, estuda o Jornalismo Literário com o fomento da mesma instituição. É integrante do Grupo de Pesquisa TECER (UEMA) e Polifonia (UFMA). Também, possui um podcast chamado Pinguid Podcast, no qual compartilha suas investigações. As suas principais áreas de interesse são: Literatura, Ficção e Poema. José Eduardo Pinto Duarte Graduando no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Membro dos grupos FALA Barroco, Grupo de Estudos do Discurso da UERN – GEDUERN – e do Grupo de Dança Universitária de Mossoró – GRUDUM. E-mail: joseeduardo@alu.uern.br José Lucas Silva de Araújo Graduando em Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Pós-graduando em Produção Textual pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI), Técnico em Enfermagem pelo Centro de Ensino Aplicado à Saúde (CEAS). Atualmente é professor contratado do componente curricular: Língua Portuguesa, lotado na Secretaria de Educação no município de Cacimba de Dentro - PB. 160 Julianne Rosy do Valle Satil Doutora (2021) e mestra (2015) pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina-PPGEL/UEL, especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Norte do Paraná-UNOPAR (2008) e graduada em Letras Anglo-Portuguesas e Respectivas Literaturas (2005), também, pela UEL. Suas pesquisas filiam-se à Semântica do Acontecimento e à Análise de Discurso de escola francesa, investigando o funcionamento do sentido, a partir de questões sociais e históricas. Para tanto, a autora toma a língua(gem) como objeto de reflexão e análise. Maria Iranilde Almeida Costa Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (1995), mestrado (2001) e doutorado em Ciência da Literatura (2014), ambos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é Professora Adjunta III da Universidade Estadual do Maranhão e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Maranhão. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, Poesia e Ficção Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: narrativas contemporâneas, teoria literária e literatura brasileira. Maria Tereza Azevedo É mãe, professora e pesquisadora. Em 2020 conquistou o título de Mestre em Literatura pelo programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Pará e Graduada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa também pela UFPA. Sua trajetória como pesquisadora começou desde que ingressou no grupo de pesquisa “Narrares” que investiga as faces da resistência em narrativas e suas representações. Seu principal nicho de pesquisa é sobre a formação dos personagens e o gênero literário e que corresponde a este processo, o Bildungsroman. Roney Jesus Ribeiro Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestre em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e, em Educação pela Universidad Americana (UA). Licenciado em Letras, História e Artes Visuais. Integra os grupos de pesquisa Crítica e Experiência Estética em Gerd Bornheim (PPGA/Ufes) e Literatura e Educação (PPGL/PPGE/Ufes). 161 Sangela Lígia Camilo da Silva Graduada em Pedagogia pelo Instituição Superior de educação São Judas Tadeu (2018), graduada em letras (Habilitação em língua Portuguesa) pela Universidade Estadual da Paraíba - UEPB (2020), Pós-graduada em psicopedagogia clínica e institucional pela ISESJT (2020), Pós-Graduanda em Linguística Aplicada pela Faveni. Tem interesse pela psicopedagogia institucional, letramentos, literatura e pela área da Teoria e Análise Linguística, com ênfase na Diversidade Linguística, baseando-se na sociolinguística. Solange Santana Guimarães Morais Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ). Docente na Universidade Estadual do Maranhão (CESC/UEMA). Líder do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NUPLIM/ CNPq. Coordenadora da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras - LICLE/ CESC-UEMA. Thaynã Silva Targa Mestra em História e Teoria da Arte na concentração “Nexos entre Arte, Espaço e Pensamento” (2018) pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e bacharela em Artes Plásticas (2014) pela mesma instituição. Entre produções artísticas e investigações sobre Arte Contemporânea, possui experiência na área desde 2012. Integra os grupos de pesquisa Crítica e Experiência Estética em Gerd Bornheim (PPGA/Ufes). Thays Alves Costa Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestra em Artes pela Ufes (2018), e, licenciada em Artes Visuais pela Ufes (2015). Integra o grupo de pesquisa Crítica e experiência estética em Gerd Bornheim e o projeto Vida e obra de Gerd Bornheim: correspondência, recensões e datiloscritos originais sobre Filosofia da Arte e História da Filosofia. Valéria Costa Aldeci de Oliveira Possui Graduação e Mestrado em Serviço Social pela UFRN, Doutorado em Sociologia pela UFPB. Trabalha na UFPB, atuando como docente no Departamento de Serviço Social e coord. do curso nas gestões 2019-2021 e 2021- 2023. Pesquisadora do LAEPT (laboratório de estudos sobre Trabalho e Políticas Públicas da Sociologia UFPB e do LABORES (Núcleo de Estudos sobre o Trabalho). Atua com os seguintes temas: Trabalho, gênero, territórios rurais e tradicionais (pesqueiros e quilombolas). http://lattes.cnpq.br/079968613320465. 162 Wellytania Thaís Sousa Morais Graduanda no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Foi coordenadora de cultura do Centro Acadêmico de Letras Adilino Juvêncio de Andrade (UERN/Mossoró). Participou como voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) da UERN. Com publicações na área de Literatura. Os interesses atuais de pesquisa se voltam à Literatura Brasileira, a Teoria Literária e às questões raciais e de gênero. E-mail: wellytaniathais@gmail.com. 163 Índice remissivo A Antirracista 39, 40, 49, 80 Arte 6, 8, 38, 39, 40, 41, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 61, 98, 110, 111, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 128, 130, 131, 132, 134, 138 Artistas 61, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 130, 131, 132, 133 Autoria 5, 13, 39, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 80, 100, 108, 120, 133, 134 C Capitalismo 75, 111, 112 Carolina Maria de Jesus 6, 8, 10, 13, 16, 23, 24 Classe social 14, 16, 92, 115, 151 Colonização 11, 12, 29 Conceição Evaristo 11 Corpo 6, 8, 13, 18, 22, 27, 34, 78, 82, 97, 98, 100, 102, 103, 105, 106, 107, 108, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 138 Crítica 15, 16, 38, 44, 49, 50, 52, 73, 111, 114, 121, 124, 129, 130, 132, 148, 149, 159 D Decolonial 11, 12, 13 Democracia 12, 22, 39, 42, 43, 44, 45, 51, 52, 53, 158 Democracia racial 12, 22 Denúncia 13, 17, 22, 23, 47, 51, 124, 131 Desigualdades 16, 19, 38, 39, 43, 44, 45, 47, 48, 50, 51, 88, 143 Diáspora 12 Discriminação 42, 46, 48, 56, 61 Discursividade 38, 39, 40, 41, 44 Discurso 6, 7, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 24, 25, 33, 38, 39, 40, 41, 44, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 58, 67, 69, 70, 83, 98, 100, 101, 107, 110, 118, 121, 124, 125, 127, 129, 135, 136, 137, 140, 144, 158 Dominação 7, 9, 44, 55, 56, 67, 70, 72, 74, 78, 110, 111, 113, 117, 118, 119, 120, 128, 129, 130, 131, 133, 143 164 E Educação 32, 36, 45, 46, 55, 78, 87, 88, 95, 96, 124, 137, 138, 141, 162 Erotismo 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 107, 108, 109, 124, 125, 126, 128, 133 Escravatura 12 Escritora 6, 8, 10, 13, 26, 36, 73, 74, 75, 83, 89, 91, 92, 102 Esquecimento 41, 89, 91, 95 Estereótipos 9, 47, 70, 74, 76, 123, 146 Eu-lírico 101, 103, 104 Exclusão 20, 38, 41, 42, 45, 131, 136, 137, 144 F Feminilidade 76, 100, 125, 132, 150 Feminino 7, 8, 9, 18, 22, 30, 35, 37, 57, 67, 75, 76, 85, 90, 100, 101, 102, 103, 106, 107, 108, 110, 111, 112, 113, 114, 116, 120, 121, 122, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 142, 144, 146, 147, 152, 153 Feminismo 11, 60, 138 G Gênero 8, 11, 13, 15, 16, 17, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 63, 67, 68, 69, 71, 75, 85, 119, 125, 128, 130, 131, 134, 142, 144, 146, 147, 148, 158, 161, 163 H História 11, 12, 17, 22, 23, 26, 32, 36, 37, 40, 41, 44, 45, 48, 50, 52, 53, 56, 59, 62, 68, 71, 80, 84, 89, 90, 92, 94, 95, 96, 104, 108, 110, 111, 112, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 125, 130, 131, 133, 134, 139, 140, 145, 149, 153, 156 I Idealização 71, 76, 77, 78, 93, 120, 122, 127, 128, 140 Identidades 11, 15, 17, 25, 100, 132 Ideologia 12, 17, 41, 49, 110, 111, 113, 117, 118, 119 Interseccionalidade 15, 24 L língua 14, 17, 23, 41, 69, 73, 78, 88, 161, 162 linguagem 11, 14, 15, 17, 20, 34, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 48, 53, 73, 91, 98, 99, 107, 108 literatura 9, 10, 13, 37, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 78, 79, 82, 83, 91, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 114, 119, 120, 138, 146, 147, 148, 155, 156, 161, 162 Literatura 6, 8, 37, 71, 73, 76, 84, 85, 86, 87, 96, 110, 147, 148, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163 165 M Memória discursiva 40 Mulher 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 30, 35, 36, 52, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 87, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 103, 106, 107, 108, 110, 111, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 133, 136, 137, 138, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156 Mulher negra 6, 8, 10, 13, 20, 22, 24 N Narrativas 8, 12, 26, 74, 79, 99, 114, 133, 148, 161 Neoliberal 43 O Objetificação 120, 121, 128, 137 Opressões 13, 15, 16, 20, 21, 23, 24, 56, 79 P Patriarcado 35, 70, 110, 117, 118, 137, 138, 141, 144 Poesia 8, 55, 61, 72, 88, 98, 99, 100, 101, 103, 108, 109, 124, 134, 157 Poética 6, 8, 37, 97, 99, 103, 105, 108 Política 8, 15, 16, 25, 38, 39, 40, 43, 47, 49, 52, 55, 56, 58, 64, 65, 67, 68, 69, 75, 112, 143, 148, 153, 158 Práticas discursivas 40, 44, 47, 158 Preconceitos 15, 29, 89 Protagonista 12, 21, 26, 28, 32, 35, 36, 73, 89, 92, 95, 110, 111, 114, 116, 117, 122, 136, 140, 149, 150 R Raça 11, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 46, 56, 134 Racismo 15, 21, 22, 23, 25, 38, 39, 40, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51 Representação 2, 3, 5, 6, 8, 9, 13, 17, 21, 40, 47, 61, 70, 75, 76, 87, 92, 99, 101, 107, 110, 111, 119, 120, 121, 122, 124, 125, 127, 128, 133, 154, 155, 159 Resistência 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 15, 16, 22, 23, 24, 38, 39, 40, 45, 47, 48, 49, 52, 63, 66, 73, 87, 92, 95, 97, 99, 100, 101, 102, 108, 120, 138, 144, 145 Revolução 36, 100, 121 Romance 8, 26, 27, 35, 36, 69, 70, 72, 73, 74, 77, 79, 80, 85, 91, 92, 94, 95, 96, 113, 114, 115, 139, 149 166 167