Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade:
da representação à resistência
Vol. 2
Meire Oliveira Silva
Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade:
da representação à resistência
Vol. 2
TUTÓIA-MA, 2021
EDITOR-CHEFE
Geison Araujo Silva
CONSELHO EDITORIAL
Bárbara Olímpia Ramos de Melo (UESPI)
Diógenes Cândido de Lima (UESB)
Jailson Almeida Conceição (UESPI)
José Roberto Alves Barbosa (UFERSA)
Joseane dos Santos do Espirito Santo (UFAL)
Julio Neves Pereira (UFBA)
Juscelino Nascimento (UFPI)
Lauro Gomes (UPF)
Letícia Carolina Pereira do Nascimento (UFPI)
Lucélia de Sousa Almeida (UFMA)
Maria Luisa Ortiz Alvarez (UnB)
Marcel Álvaro de Amorim (UFRJ)
Meire Oliveira Silva (UNIOESTE)
Rosangela Nunes de Lima (IFAL)
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UFMS)
Silvio Nunes da Silva Júnior (UFAL)
Socorro Cláudia Tavares de Sousa (UFPB)
2021 - Editora diálogos
Copyrights do texto - Autores e autoras
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei no 9.610, de 19/02/1998. Esta obra pode ser
baixada, compartilhada e reproduzida desde que sejam atribuídos os devidos créditos de autoria. É
proibida qualquer modificação ou distribuição com fins comerciais. O conteúdo do livro é de total
responsabilidade de seus autores e autoras.
Capa: Geison Araujo Silva
Diagramação: Geison Araujo Silva
Revisão: Editora Diálogos
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
P967
Protagonismos de mulheres nas artes e na sociedade: da representação à resistência vol.2
[livro eletrôni-co] / Organizadora Meire Oliveira Silva. – Tutóia, MA: Diálogos, 2021. –
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-65-994639-5-2
1. Mulheres – Condições sociais. 2. Arte. 3. Sociedade. I. Silva, Meire Oliveira.
CDD 305.4
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
https://doi.org/10.52788/9786599463952
Editora Diálogos
contato@editoradialogos.com
www.editoradialogos.com
Sumário
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................... 8
CAPÍTULO 1 - UMA ESCRITORA INESPERÁVEL: VULNERABILIDADES DA
MULHER NEGRA E PERIFÉRICA PELO OLHAR DE CAROLINA MARIA DE
JESUS ............................................................................................................................ 10
Débora Cristina Sampaio do Valle, Julianne Rosy do Valle Satil
CAPÍTULO 2 - A METAMORFOSE DE KAMBILI: UMA ANÁLISE DA FORMAÇÃO
PÓS-COLONIAL EM HIBISCO ROXO ................................................................... 26
Maria Tereza Azevedo
CAPÍTULO 3 - A ARTE COMO DISCURSO DE RESISTÊNCIA: O ANTIRRACISMO
NA COLAGEM DE GEO COELHO ......................................................................... 38
Brenna Késia de Sousa Costa, José Eduardo Pinto Duarte,
Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares
CAPÍTULO 4 - MEMÓRIA VIVA: AS LUTAS DAS MULHERES DO NORDESTE
CANAVIEIRO ............................................................................................................. 54
Valéria Costa Aldeci de Oliveira
CAPÍTULO 5 - CASAMENTO E MATERNIDADE: A CONDIÇÃO FEMININA
EM “AS TRÊS MARIAS”, DE RACHEL DE QUEIROZ ........................................... 69
Maria do Carmo de Souza e Souza, Cássia Maria Bezerra do Nascimento
CAPÍTULO 6 - DA REPRESENTAÇÃO À RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE DA
OBRA “A DIVORCIADA”, DE FRANCISCA CLOTILDE ....................................... 87
Erika Maria Albuquerque Sousa, Solange Santana Guimarães Morais
CAPÍTULO 7 - ENTRE O ELÃ ERÓTICO E A URGÊNCIA CREPUSCULAR DO
CORPO: A RESISTÊNCIA ULULANTE DA MULHER NA POÉTICA DE REGINA
LYRA ............................................................................................................................. 97
Guilherme Ewerton Alves de Assis, Hermano de França Rodrigues
CAPÍTULO 8 - LITERATURA E HISTÓRIA: AMOR E OPRESSÃO EM “O MORRO
DOS VENTOS UIVANTES”, DE EMILY BRONTËS ............................................. 110
Gabriele Teixeira Diniz, Gustavo Abílio Galeno Arnt
CAPÍTULO 9 - O PROTAGONISMO FEMININO NAS ARTES COMO
RESISTÊNCIA À DOMINAÇÃO MASCULINA .................................................... 120
Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa, Thays Alves Costa
CAPÍTULO 10 - INTERFACES ENTRE O DISCURSO DE SILENCIAMENTO
FEMININO E A LUTA DAS MULHERES POR ESPAÇO NA SOCIEDADE:
REFLEXÕES A PARTIR DA OBRA “INOCÊNCIA”, DE VISCONDE DE
TAUNAY ................................................................................................................ 135
Sangela Lígia Camilo da Silva, José Lucas Silva de Araújo
CAPÍTULO 11 - O CONTRASTE FEMININO ENTRE A MULHER CASTA E
NAMORADEIRA NAS OBRAS “CAIS DA SAGRAÇÃO” E “JUDAS EM SÁBADO
DE ALELUIA”: UMA ANÁLISE COMPARATIVA .................................................. 146
Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar,
Maria Iranilde Almeida Costa
SOBRE A ORGANIZADORA .................................................................................. 157
SOBRE OS AUTORES E AUTORAS ....................................................................... 158
ÍNDICE REMISSIVO ............................................................................................... 164
Apresentação
Neste segundo volume, as questões voltadas ao protagonismo feminino nas Artes e
nas literaturas continuam sendo verificadas por meio de estudos que se propõem a analisar
a força das autorias africana e afro-brasileira para encontrar outras escritas e manifestações
artísticas do nordeste brasileiro em trabalhos que reúnem vozes ancestrais e contemporâneas
como testemunhas e porta-vozes das memórias.
No artigo Uma escritora inesperável: vulnerabilidades da mulher negra e periférica pelo
olhar de Carolina Maria de Jesus, as autoras Débora Cristina Sampaio do Valle e Julianne
Rosy do Valle Satil descrevem as relações discursivas e interseccionais da obra Quarto de
despejo. Em A metamorfose de Kambili: uma análise da formação pós-colonial em Hibisco
Roxo, Maria Tereza Azevedo percorre as estratégias narrativas que se aproximam do romance
de formação na obra da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A arte como
discurso de resistência: o antirracismo na colagem de Geo Coelho (Brenna Késia de Sousa Costa,
José Eduardo Pinto Duarte, Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares) realiza
uma análise histórica e semiológica da arte de Geo Coelho como política de resistência.
Valéria Costa Aldeci de Oliveira, no artigo Memória Viva: As lutas das mulheres no Nordeste
Canavieiro, volta-se para o exame da memória referente à organização sindical no nordeste
canavieiro entre as relações sociais que norteiam as questões de gênero e as trabalhadoras
rurais.
As questões em torno da misoginia estrutural e das violências institucionais que
permeiam o feminino são discutidas em Casamento e maternidade: a condição feminina
em As Três Marias, de Rachel de Queiroz, de Maria do Carmo de Souza e Souza e Cássia
Maria Bezerra do Nascimento. No artigo Da representação à resistência: uma análise da obra
A Divorciada, de Francisca Clotilde, Erika Maria Albuquerque Sousa e Solange Santana
Guimarães Morais descrevem a gênese biográfica da autora cearense do século XIX. A
reivindicação de voz e liberdade femininas por meio da poesia erótica é objeto de estudos do
artigo Entre o elã erótico e a urgência crepuscular do corpo: a resistência ululante da mulher na
poética de Regina Lyra (Guilherme Ewerton Alves de Assis e Hermano de França Rodrigues).
Da mesma maneira, a constituição das relações amorosas e do feminino pautados pela lógica
capitalista norteia o debate de Literatura e História: amor e opressão em O Morro dos Ventos
Uivantes, de Emily Brontë (Gabriele Teixeira Diniz e Gustavo Abílio Galeno Arnt).
Ainda que sob autorias masculinas, as construções sociais do ser-mulher são abordadas
entre obras atuais e também do cânone do século XIX. No artigo O protagonismo feminino
nas artes como resistência à dominação masculina (Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa
e Thays Alves Costa) discute-se a representação das mulheres nas artes Interfaces entre o
discurso de silenciamento feminino e a luta das mulheres por espaço na sociedade: Reflexões a
partir da obra “Inocência” de Visconde de Taunay (Sangela Lígia Camilo da Silva e José Lucas
Silva de Araújo) analisa os discursos em torno do feminino emerso da literatura canônica
brasileira do século XIX. Em O contraste feminino entre a mulher casta e namoradeira nas
obras Cais da sagração e Judas em sábado de aleluia: uma análise comparativa, Ingrid Lopes
Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar e Maria Iranilde Almeida Costa examinam
os olhares masculinos sobre a mulher, nas obras de Josué Montello e Martins Pena, no que
se refere – ou não – à perpetuação de estereótipos desde o século XIX até a atualidade.
Ao fim das exposições, é possível recuperar as origens de certas amarras simbólicas
erigidas ao longo dos tempos de modo a confirmar inclusive as violências diversas
institucionalizadas dirigidas às mulheres que permanecem em contínuas lutas pelos seus
direitos e espaços sociais.
Meire Oliveira Silva
CAPÍTULO 1
Uma escritora inesperável:
vulnerabilidades da mulher negra e periférica pelo olhar
de Carolina Maria de Jesus
Débora Cristina Sampaio do Valle
Julianne Rosy do Valle Satil
Introdução
“Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver.
Mas quem manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros”.
(JESUS, 2014, p. 32)
Em 14 de março de 1914, no município de Sacramento – MG, nasceu Carolina
Maria de Jesus, escritora e poetisa que materializou em sua mais famosa obra – Quarto de
despejo: diário de uma favelada, publicado pela primeira vez em 1960 – as mazelas sociais
enfrentadas pela mulher negra em situação de miserabilidade. Sua morte, em 13 de fevereiro
de 1977, não apagou sua contribuição à literatura de nosso país e expôs a realidade dos
invisíveis às políticas públicas, dos apagados da sociedade.
É por uma voz feminina – dotada de sensibilidade, força e superação – que adentramos
no universo das favelas e nos deparamos com as inúmeras adversidades cotidianas de seus
moradores. A escrita de Carolina Maria de Jesus tornou-se um legado, que inspira debates
sobre o lugar de existência e vivência da mulher negra, não refutando as questões sociais
atemporais e prevalentes nas regiões periféricas do Brasil.
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-1
10
Em 2021, a autora volta ao grande noticiário, por ter recebido o título de Doutora
Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Homenagem tardia, mas que
reforça a importância de sua produção transgressora de paradigmas e de barreiras históricas,
ao ocupar um lugar que nunca foi destinado aos interditados. Ao leitor, assim, é retratado
o universo da favelada, catadora de papel, mãe de três filhos, negra: mulher. Memórias que
são reverberadas nos dias atuais e mostram-nos que muitas injustiças, ainda, permanecem.
Nessa perspectiva, temos o intuito de desenvolver uma análise linguístico-sociológica,
com base em recortes da obra Quarto de despejo, considerando o diálogo entre dois campos
investigativos: a Linguística – pela perspectiva da Análise de Discurso de escola francesa – e
a Teoria das Interseccionalidades que perscruta questões intrínsecas às mulheres negras em
um cenário de segregação, desigualdade e violência. Signos estruturais de uma sociedade
capitalista, que explora o ser humano, mas atinge muito mais fortemente as mulheres.
É nessa interface, nesse entremeio, que nosso trabalho se edifica.
Marias, Joanas, Carolinas... Quem são as mulheres negras do Brasil?
Ao longo da colonização das Américas, a usurpação das identidades e outros inúmeros
tipos de violência foram ferramentas que balizaram a construção de países e povos. No caso
do Brasil, território de proporções continentais, esse processo se constituiu pela aculturação
dos povos originários e pela escravidão dos negros, vítimas de sequestro e tráfico humano
no continente africano. Essas construções argumentativas são recuperadas nas produções de
Carla Akotirene, pesquisadora sobre o feminismo negro, conforme apresentamos a seguir:
A amefricanidade proposta por Lélia Gonzalez, na década de 1980 e, em seguida, a
abordagem decolonial, consolidada nos anos 2000 de modo cabal, através de Maria
Lugones, pensadora argentina, criticam a postura missionária da civilização ocidental
– metodologicamente interseccionam as estruturas de raça, gênero, sexualidade, nação,
classe, estabelecendo coro latino-americano contra o colonialismo, imperialismo e
monopólio epistêmico ocidental (AKOTIRENE, 2020, p. 33).
Contudo, conectado a esse passado-presente, a história por séculos contada “romantizava”
os efeitos do regime escravocrata, haja vista que era escrita por um grupo hegemônico,
representante dos interesses de poucos. Saudando a potência literal de Conceição Evaristo1
– que discute a ausência de autoras e produções literárias negras na representatividade social
– tomamos para investigação recortes do que a estudiosa define como escrevivências2, recurso
1 Maria da Conceição Evaristo de Brito, Conceição Evaristo, é romancista, poeta e contista afro-brasileira e recebeu
destaque por abrasileirar a linguagem em suas produções.
2 O termo “escrevivências” consiste no “escrever viver”. Em suas palavras: “Então, as histórias não são inventadas?
11
metodológico de escrita, que se vale da experiência de quem escreve para oportunizar
narrativas que representam a experiência coletiva de mulheres. Escrita que, até metade do
século passado, não recebia reconhecimento e, tampouco, viés editorial.
Ter passado por processo de colonização europeia contribuiu para que o Brasil
sustentasse um imaginário sobre a existência de uma igualdade racial, apagando as barreiras
ainda presentes entre as raças e reservando questões raciais a um segundo plano. As sequelas
disso foram a propagação e a defesa incessante do mito da democracia racial3, que dissimula
algo que está para além daquilo que se mostra. A formatação de sociabilidade pautada,
principalmente, após a abolição da escravatura, promoveu uma invisibilização desses povos.
Demarcadamente, nessa democracia racial, como discute o autor Silvio Almeida (2020),
perdurou a marginalização dos povos negros, os quais permaneceram desamparados,
ocultados, violentados e assassinados.
A história do Brasil caracteriza-se pela predominância de uma pretensão eurocêntrica4,
conceito destacado por teóricos que debatem o colonialismo, como Aníbal Quijano (2005),
Kabengele Munanga (2019) e Grada Kilomba (2019), os quais examinam como o registro
historiográfico da colonização das Américas foi construído pela perspectiva do homem
branco ocidental e como as consequências desse processo repercutem na sociedade hoje
em dia. A descrição do processo histórico brasileiro ancora-se, nessa lógica, em técnicas
controladoras das subjetividades, da cultura e da produção de conhecimento. (QUIJANO,
2005).
Sob o olhar decolonial, adentramos a uma arena em que há disputas e enfrentamentos
com relação a forma de se investigar os acontecimentos passados como também as
contribuições culturais e sociológicas vindas dos povos africanos, viabilizando reflexões que
se concentram no que precede à chegada do povo negro como escravizado em nosso país.
Nos estudos e produções teóricas acerca da diáspora africana, Carla Akotirene (2020) e
Djamila Ribeiro (2017) – pesquisadoras brasileiras que se apoiam na teoria social e disputa
teórica de conceitos – divulgam a essência histórica dos povos negros e a importância do
lugar de fala das mulheres, em destaque as mulheres negras. Sobre a questão diaspórica e
colonial, Sílvio Almeida acrescenta:
Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a
narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve,
o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo
que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência”. (EVARISTO, 2011, p. 5).
3 O mito da democracia racial é uma forma brasileiríssima, bastante eficaz, de controle social” (SANTOS, 1984,
p. 45). Para Márcia Campos Eurico são “mecanismos que engendram as relações raciais no Brasil e a reprodução da
desigualdade étnico-racial, mascarada pela ideologia da democracia racial” (EURICO, 2020, p. 33).
4 Conforme o autor Aníbal Quijano, a pretensão eurocêntrica é o propósito “de ser a exclusiva produtora e protagonista
da modernidade, e que toda modernização de populações não-européia é, portanto, uma europeização, é uma pretensão
etnocentrista e além de tudo provinciana” (QUIJANO, 2005, p. 123). Aqui utilizamos o conceito de modo a criticar
a centralidade ocidental e especificamente europeia na produção de conhecimento e no relato do processo histórico da
constituição do país Brasil.
12
As revoluções inglesas, a americana e a francesa foram o ápice de um processo de
reorganização do mundo, de uma longa e brutal transição das sociedades feudais para a
sociedade capitalista em que a composição filosófica do homem universal, dos direitos
universais e da razão universal mostrou-se fundamental para a vitória da civilização.
Esta mesma civilização que, no século seguinte, seria levada para outros lugares do
mundo, para os primitivos, para aqueles que ainda não conheciam os benefícios da
liberdade, da igualdade, do Estado de direito e do mercado. E foi nesse movimento de
levar a civilização para onde ela não existia que redundou em um processo de destruição
e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e que se denominou
colonialismo (ALMEIDA, 2020 p. 26-27).
Unem-se a essas questões as formas de representação da mulher, figura que esteve
historicamente inserida em uma hierarquia na sociedade, em um lugar desigual, que subjuga
o seu corpo e o seu pensar. A partir de então, diversas interseccionalidades, que imbricam
além do gênero, aditam outros fatores de opressão.
Assim, como expoente de território marginal – trazendo à tona pautas de raça e o
gênero – a publicação de Quarto de despejo é um marco na literatura brasileira, mas, muito
além disso, configura a denúncia dos efeitos de um processo histórico de violência e de
empobrecimento do negro no Brasil, denúncia feita do lugar de mulher.
É por essa voz feminina solitária, sobrecarregada de responsabilidades e corajosa, que
Carolina Maria de Jesus, em posição de escritora, nos apresenta a dor genuína da fome.
Como sujeito-autor atravessado pelo discurso decolonial, ela rompe, pela literatura, com
tradições e opressões de diversas ordens. Dessa forma, ao se dizer e dizer seu mundo, dá
visibilidade aos ignorados como ela e constrói o retrato da miséria em tom memorialista.
Com nuances de documentário, traz à tona uma parte significativa da população brasileira,
um povo desassistido e privado de direitos básicos, atacado em sua integridade.
Ao assumir posição de autoria, movimenta discursos que criticam a expropriação do
direito à vida e à dignidade. Essa voz que se fortalece no lugar social de escritora – fala por
tantas outras que não conseguem. Seu dizer é, portanto, reflexo e mensageiro de parcela
expressiva da população, composta por aqueles que têm direitos negados, formada pelos
escravizados pela fome, pelos sobreviventes da violência, enfim, pelos que (re)existem na
favela. Pela posição de autoria, Carolina Maria de Jesus, compartilha seu cotidiano cruel
com o público, até então, inacessível.
É por tudo isso, que essa obra é tão atual, fomentando, na contemporaneidade, debates
sobre as violências que assolam, sobretudo, a mulher negra, à qual, ainda, recorrentemente,
é reservado o quarto de despejo da sociedade.
13
Quadro teórico-metodológico: diálogos interdisciplinares
Gênero, raça e classe social. Quarto de despejo surge nesse enlace de enfrentamentos.
Uma obra literária que expõe um emaranhado de demandas sociais pelo ângulo do oprimido,
formada por memórias que trazem a modalidade de língua de sua narradora. Uma forma
autêntica de linguagem, que, em muitos momentos, entra em embate com os preceitos da
gramática normativa. É justamente isso que confere veracidade aos relatos contidos no livro.
A língua como expressão humana é muito mais que estrutura, sistema ou forma de
descrever o mundo em que se vive. A língua(gem) é “mediação necessária entre o homem e a
realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência
e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e a realidade em que
ele vive” (ORLANDI, 2015, p. 13). É pela linguagem que significamos o que nos rodeia
e nos significamos, é por meio dela que nos tornamos sujeitos históricos. Nessa direção,
“Bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para viver. Se nós colocamos que
à falta de linguagem não haveria nem possibilidade de sociedade, nem possibilidade de
humanidade, é precisamente porque o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar.”
(BENVENISTE, 1989, p. 222).
Pela linguagem, desse modo, relações são construídas na sociedade. Considerá-la em
nosso estudo consiste em um caminho possível para refletirmos sobre as relações humanas.
Para tanto, trazemos o postulado da Análise de Discurso de linha francesa (doravante, AD),
disciplina heterogênea - fundada pelo filósofo Michel Pêcheux no final da década de 1960constituída no entrecruzamento de três campos do saber: a Linguística, a Psicanálise e o
Marxismo, que se articulam no questionamento da evidência (obviedade) da linguagem e do
sentido. Como dispositivo de análise, a AD assume a linguagem como produção contínua
de significação e ressignificação.
Problematizar as maneiras de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem
questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da
linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos à linguagem, a seus equívocos,
sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente
cotidiano dos signos. [...] Não temos como não interpretar. Isso, que é contribuição
da análise de discurso, nos coloca em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de
sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação
menos ingênua com a linguagem. (ORLANDI, 2015, pp. 7-8).
Eni Puccinelli Orlandi, linguista e principal nome da AD no Brasil, discorre que “há
formas de saber que são diferentes e que têm funções diferentes” (ORLANDI, 2012b, p.
48), pois nossa sociedade é desigual, dividida, promovendo a existência de formas legítimas
e formas que não são legítimas (que têm de legitimar-se). Assim, quando se emprega o
conhecimento que é considerado legítimo, “através do discurso que propôs o acesso
necessário a ele, desconhece-se a luta de classes, a luta pela validade das diferentes formas de
saber, bem como a resistência cultural.” (ORLANDI, 2012b, p. 148).
14
Não restrita aos estudos linguísticos, a linguagem também interessa aos investigadores
que produzem reflexão de viés sociológico. Nas palavras da filósofa e ativista brasileira Djamila
Ribeiro, “os saberes produzidos pelos indivíduos de grupo historicamente discriminados,
para além de serem contra discursos importantes, são lugares de potência e configuração
do mundo por outros olhares e geografias.” (RIBEIRO, 2017 p. 77). Dessa maneira, a
linguagem configura-se como espaço de disputas, sendo mecanismo de poder e perpetuação
de direção e privilégio, por isso compreender essas condições proporciona o acesso a uma
pauta importante de reconhecimento e luta contra a resenha dominante.
A outra parte de nosso aporte teórico é composta pela Teoria da Interseccionalidade,
que se configura como instrumento analítico relevante para pensarmos sobre diversas esferas
sociais, e que especialmente nos interessam, como: as intersecções de raça, de gênero e de
classe. Popularizada na produção científica de Kimberlé Crenshaw – pesquisadora feminista e
afro-estadunidense – e dialogada no Brasil por Carka Akotirene na coleção Feminismos Plurais
– a interseccionalidade “visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade
estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado.” (AKOTIRENE, 2020 p. 19).
Difundir sobre a interseccionalidade exige o refutar da concepção de mulher universal.
Essa pauta é presente no discurso das ativistas, que, por meio dessa ruptura, veem um
caminho para transformações, entre elas: a descontinuidade das opressões, a manifestação e
exteriorização das iniquidades e, também, o enegrecimento das identidades e subjetividades.
Vale ressaltar que a sensibilização sobre o conceito de interseccionalidade deve assumi-la
como forma de expressão, não se categorizando como soma de identidades, mas como um
conjunto de sobreposições que ilustra como o racismo, classe social e machismo afetam, em
níveis diferentes, os sujeitos de uma sociedade, especialmente mulheres.
Nesse sentido, a noção de interseccionalidade não é irrevogável ou imutável. Atrelada
a posturas ideológicas, ela habita espaços de disputa e é utilizada em diferentes conjunturas
sobre emblemas singulares. “Dialogando com a crítica, a interseccionalidade descarta
análises aritméticas ou competitivas sobre quem sofreu primeiro.” (AKOTIRENE, 2020,
p 97), ante o exposto, a investigadora traça uma trajetória da conceituação do termo desde
a abordagem feita por Kimberlé Crenshaw: “A interseccionalidade permite às feministas
criticidade política a fim de compreenderem com a fluidez das identidades subalternas
impostas a preconceitos, subordinações de gênero, de classe e raça e às opressões da matriz
colonial moderna da qual saem.”(AKOTIRENE, 2020 p. 37-38).
É senão a complexidade do atravessamento dos diversos significados, condições
e injustiças aditivadas em mesma condição horizontal às singularidades e subjetividades
materializadas nesse texto, que, debruçadas em nosso objeto, analisaremos a produção literária
de Carolina Maria de Jesus e seu lugar de resistência e de resiliência sob práticas opressoras.
Nesse processo, signos identitários são atravessados pelas opressões e sobreposições de raça,
gênero e classe social.
15
Propomos, dessa forma, um diálogo entre essas duas áreas de conhecimento,
utilizando como partida a noção de atravessamento – existente em ambas teorias – para
analisarmos os desdobramentos de outras duas concepções essenciais: a de discurso e a de
interseccionalidade, sobre as quais discorreremos na análise. Temos, assim, uma interação
profícua e complementar, que propicia contribuição tanto aos estudos linguístico-discursivos
quanto às pesquisas que se ocupam das relações sociais, ao privilegiar a compreensão e
sensibilização sobre as desigualdades de gênero, sobre a luta de classes e as arbitrariedades
raciais.
Defendemos que, nesse percurso, pensar na importância de Quarto de despejo e na
produção intelectual de mulheres negras, é contribuir com o processo de sensibilização e
com a política de luta de mulheres negras.
Conceitos em movimento: a construção da análise
Para a realização da análise, utilizaremos alguns recortes do livro Quarto de despejo,
contrastando os conceitos de discurso e de interseccionalidade, os quais são compreendidos
como efeitos que constituem todo sujeito linguístico-histórico-cultural de uma sociedade.
A essa conjuntura definimos como atravessamento.
O sujeito é, a todo momento, transpassado por diversos desdobramentos que incidem
no seu processo de identificação. Surgem, então, projeções sobre “o ser”: pobre, negra,
periférica, mãe, mulher, etc. Os sistemas de opressão viabilizam-se pelo movimento de
discursos e pela sobreposição de identidades sociais. Como sujeitos, somos atravessados por
forças de teor ideológico e ocupamos diversos papéis sociais simultaneamente. É justamente
sobre essa complexidade que nos debruçamos.
De acordo com a Análise de Discurso, o discurso – afastando-se do lugar comum
que associa o termo a pronunciamentos de autoridades políticas – está num lugar onde
história e língua(gem) entrecruzam-se: “[...] a palavra discurso, etimologicamente, tem em
si a ideia de curso, percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando.”
(ORLANDI, p. 13, 2015).
Segundo Pêcheux (1988), o discurso constitui-se como efeito de sentido entre locutores.
Ele se materializa pela língua(gem), ou seja, em manifestações textuais, as quais são seu
suporte. Por isso, um texto, em perspectiva discursiva, não deve ser sinônimo de discurso.
O entendimento sobre o discurso exige a presença da tríade língua, sujeito e história em sua
constituição, considerando a exterioridade da língua e o campo social. Podemos afirmar que
ele é materialidade linguístico-histórica, configurando espaço de reflexão sobre as relações
16
entre língua e ideologia. Como substância simbólica, é um observatório para a pesquisa
sobre a produção de sentidos, é um lugar de confrontos.
Vale ressaltar que quando tratamos do conceito de discurso, não podemos deixar de
mencionar uma outra noção – a de interdiscurso. Para Orlandi (2015), o interdiscurso –
também chamado de já-dito e memória discursiva – compõe-se de formulações feitas e já
esquecidas, as quais determinam o nosso dizer. Nesse prisma, para que nossa fala tenha
sentido é necessário que já exista um sentido anterior.
Quando discutimos sobre a palavra “escravidão”, por exemplo, entendemos que já
circulam na sociedade sentidos sobre ela. A cada retomada do termo, mesmo que novos
sentidos sejam movimentados no presente, o embate com os sentidos anteriores torna-se
inevitável. O sentido é produto de filiação a uma formação discursiva (FD), haja vista que
um mesmo termo pode assumir significações distintas, dependendo da FD do sujeito que
enuncia. Conforme Orlandi (2012a, p. 55), “a formação discursiva é a projeção ideológica
no dizer”.
A interseccionalidade, por sua vez, consiste “na conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de
subordinação.” (CRENSHAW apud AKOTIRENE, 2020 p. 73). Essa acepção atua como
denúncia no tocante às matrizes de opressão e, dialogicamente, às iniquidades que atravessam
as existências. Desse modo, o termo, conceito, signo de linguagem interseccionalidade demarca
o paradigma teórico-metodológico da tradição feminista negra e elucida as articulações das
estruturas modernas coloniais. Entre causa e efeito atua na colisão e nos eixos estruturais das
subjetividades, aqui analisadas sob a ótica do discurso de uma literata que rompe todos os
padrões, por ser mulher, negra e favelada. Estigmatizada social e linguisticamente.
Com os esclarecimentos necessários apresentados, damos início à análise dos recortes.
Selecionamos algumas categorias, pelas quais somos transportados a um cotidiano de
pobreza extrema.. Interseccionalidades, em uma visão sociológica, ou discursos, pelo prisma
da AD, essas ordens constroem representação e ecoam sentidos sobre gênero, maternidade,
raça, relações de trabalho e miserabilidade.
A representação do “ser mulher” e do conviver em um mundo machista, desigual no
tratamento e distribuição de papéis a homens e mulheres, é abordado no recorte a seguir:
Levantei, acendi o fogo e mandei o João comprar 10 de açúcar. Bateram no barracão.
Os filhos falaram: —E o pai da Vera. —É o papai — ela sorria para ele. Eu é que não
fiquei com a tal visita. Ele disse-me que não levou o dinheiro lá no Juiz porque não teve
tempo. Mostrei-lhe os sapatos da Vera que estão furados e a agua penetra. —Quanto
pagou isto? —240. —É caro. ...Ele deu-me 120 cruzeiros e 20 para cada filho. Ele
mandou os filhos comprar doces para nós ficarmos sozinhos. Tem hora que eu tenho
desgosto de ser mulher. Dei graças a Deus quando ele despediu-se. (JESUS, 2014, p.
166, grifo nosso).
17
A frase em destaque materializa o desabafo e nos conduz à reflexão: o que é ser mulher?
O interdiscurso – relação entre discursos – permite recuperar sentidos já existentes que
edificam a representação de gênero, inscrevendo-se em uma cadeia de sentidos possíveis
e presentificando sentidos estabilizados ou ressignificando-os. O excerto em questão
retrata o desgosto da locutora ao se deparar com mais uma atitude abusiva por parte do
ex-companheiro, que acredita ter domínio sobre o corpo feminino, forçando uma situação
para que fiquem a sós, em busca de envolvimento sexual. Na cena, apontamos a presença do
discurso machista, que norteia a significação do que é ser uma mulher descasada, que se vê
desrespeitada em seu próprio lar.
O discurso perpetuado pelo senso comum, movimenta esse sentido em nossa sociedade
e mostra práticas masculinas que aproveitam de uma possível carência afetiva da ex-parceira,
para, mais uma vez, satisfazer desejos momentâneos, sem o objetivo de retomar qualquer
compromisso com a mãe de seu(s) filho(s). Submeter-se a ser alvo desse tipo de violência
simbólica em nome das necessidades dos filhos culmina no desabafo: “tenho desgosto de ser
mulher”. Há nessa fala a presentificação de sentidos que significam o “ser mulher” em uma
sociedade desigual e opressora.
O machismo, nessa direção, continua atravessando o discurso sobre a mulher, sendo
impossível de se desvincular dele historicamente. Assim, surgem “rótulos” que dizem as
mulheres sem relacionamento amoroso padrão como detentoras de moral questionável, ou
seja, como não merecedoras de respeito. Esse raciocínio pode ser verificado no excerto a
seguir:
Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As
mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetáculo. A minha
porta atualmente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os
bodes expiatórios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas.
Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de
caridade. (JESUS, 2014, p. 14, grifos nossos)
Discriminação recorrente, discursivizada em outros momentos da obra:
Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguem no mundo
a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar .
(JESUS, 2014, p. 20, grifo nosso).
No recorte anterior, são expostos pensamentos que repercutem o estereótipo circulante
na sociedade sobre a figura da mãe solo – mulher que cuida e educa os filhos sem a presença
paterna e assume a responsabilidade integral sobre a vida dessas crianças. No fragmento em
destaque, o leitor torna-se testemunha das consequências do machismo, que concentra na
mulher todas as responsabilidades, naturalizando a sobrecarga das mães solo, enquanto os
homens parecem ser bem menos estigmatizados por não fazer sua parte na criação dos filhos.
18
Esse discurso que constrói a significação da mulher em um universo de desigualdades,
demonstra que em uma mesma conjuntura de pobreza, a mulher ainda é mais afetada do
que o homem, mais exposta ao julgamento da sociedade. E, nesse momento, inserimos
nessa discussão sobre a mulher a próxima interseccionalidade: a maternidade. As
dificuldades e desafios em desempenhar o papel de mãe são, a todo momento, expostos,
pois é parte inseparável do cotidiano do sujeito do discurso. Para analisar os discursos e
interseccionalidades, é necessário saber sobre os sujeitos.
...Hoje não saí para catar papel. Vou deitar. Não estou cançada e não tenho sono.
Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas, não
vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto
em cerveja faz falta para o escencial. (JESUS, 2014, p. 18, grifos nossos).
Como sujeito histórico-ideológico, a locutora expõe as desigualdades entre gêneros,
marcando a diferença entre os discursos que significam a maternidade e a paternidade. Como
mãe, a responsabilidade com os filhos vem antes de pequenos prazeres, de pequenas fugas,
tornam-se recorrentes as privações pessoais. Na construção de sentidos da maternidade,
vemos que na região do interdiscurso – onde os discursos se relacionam – são retomados
sentidos já conhecidos, como: o sacrifício que vale a pena – “ser mãe é padecer no paraíso”;
culpabilização da mulher – “não soube escolher bons pais aos seus filhos, por isso deve
assumir todas as responsabilidades sozinha”; do amor incondicional – “uma mãe nunca
abandona seus filhos”.
No próximo excerto, vemos como o discurso é espaço heterogêneo e complexo, onde o
dizer de mãe entrecruza-se com o dizer da fome, trazendo a tristeza de não ter êxito em suprir
necessidades básicas de seus dependentes. Ao mesmo tempo em que recorda a realidade de
outras mães, somos deslocados a uma realidade em que a fome é companheira constante.
Dia das Mães. O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer homenagear as
mães que atualmente se sentem infeliz por não poder realisar os desejos dos seus filhos.
...O sol vai galgando. Hoje não vai chover. Hoje é o nosso dia.
[...]
...Ontem eu ganhei metade de uma cabeça de porco no Frigorífico. Comemos a carne e
guardei os ossos. E hoje puis os ossos para ferver. E com o caldo fiz as batatas. Os meus
filhos estão sempre com fome. Quando eles passam muita fome eles não são exigentes no
paladar. (JESUS, 2014, p. 27, grifos nossos).
A miserabilidade, espaço do sujeito que enuncia, é mais que um pano de fundo para o
enredo. A condição de fome não é passageira, é uma personagem nas lembranças relatadas,
mais uma interseccionalidade que atravessa o sujeito, mais um discurso que o constitui e o
significa.
19
O José Carlos chegou com uma sacola de biscoitos que catou no lixo. Quando eu vejo
eles comendo as coisas do lixo penso: E se tiver veneno? É que as crianças não suporta a
fome. Os biscoitos estavam gostosos. Eu comi pensando naquele provérbio: quem entra
na dança deve dançar. E como eu também tenho fome, devo comer. (JESUS, 2014, p. 43,
grifos nossos).
Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres porque hoje teve café. Só
quem passa fome é que dá valor a comida. (JESUS, 2014, p. 49).
Nesse cenário, também, é necessário pensar sobre como se dão as relações de trabalho que
vemos ao longo do livro. Carolina, interpelada em sujeito-autor, trabalha informalmente e
desempenha uma ocupação que não recebe valorização social. Seu trabalho é marginalizado,
sem vínculo empregatício, sem direitos, sem previdência social, em uma sociedade que
encaminha, cada vez mais, à exclusão. Práticas decorrentes do funcionamento capitalista:
A sociedade capitalista em seu funcionamento contemporâneo é uma sociedade que vai
além da exclusão, ela funciona pela segregação (coloca para fora da sociedade, e, quem
está fora, não existe, não é levado em conta). (ORLANDI, 2011, p. 696).
Deparamo-nos, assim, com uma re-escravização. A força de trabalho é vendida, mas
o trabalhador é mal remunerado e seu trabalho não é garantia de acesso a direitos básicos,
como a alimentação. Observemos os próximos fragmentos:
E vou sair para catar papel. Deixei as crianças. Recomendei-lhes para brincar no quintal
e não sair na rua, porque os pessimos vizinhos que eu tenho não dão socego aos meus
filhos. Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio
de gosar descanço. (JESUS, 2014, p. 11, grifos nossos).
...Vendi o papel, ganhei 140 cruzeiros. Trabalhei em excesso, senti-me mal. Tomei umas
pilulas de vida e deitei. (JESUS, 2014, p. 20, grifo nosso).
Outra interseccionalidade é a raça. Os discursos que identificam e significam a
mulher negra, propalam todo o sofrimento das agressões racistas que ela sofre. A cor da
pele e a declaração de raça aparecem de forma muito substancial na organização discursiva,
acessando o interdiscurso e recuperando acepções negativas do “ser negro”, significação
historicamente construída. Os discursos que se materializam pelo diário pessoal e retratam
as opressões experimentadas cotidianamente pelas pessoas pretas. As vulnerabilidades dos
moradores da favela atingem, em sua maioria, os negros. Nessa realidade, como sujeito
histórico-ideológico, Carolina Maria de Jesus autodeclara-se, fazendo uso de analogias e
figuras de linguagem para representar sua declaração de raça/cor.
20
...A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós
quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha,
até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (JESUS, 2014,
p. 28, grifos nossos)
No excerto anterior, há o contraste entre dois espaços distintos: o local de existência
e o local de moradia. A vida é preta como sua pele e como o espaço físico em que mora.
“Preto”, nessa conjuntura polissêmica, remete às dificuldades, sentido prévio que caracteriza
a vida desassistida que leva e dialoga com o entendimento de raça demonstrado nos dizeres
em questão. Em outras partes da obra, ainda sobre a temática racial, vemos as relações
construídas entre o presente e o passado de escravização, quando discorre sobre o dia alusivo
à abolição. Como segue abaixo:
13 DE MAIO - Hoje amanheceu chovendo. E um dia simpático para mim. E o dia
da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. ...Nas prisões os negros
eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com
despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. (JESUS, 2014,
p. 27).
A obra segue catalogando e desenhando um percurso de enfrentamentos interseccionais,
abordando, por exemplo, a representação da pele negra nos estratos sociais e como é a vida
na favela. Nesse decurso, há o detalhamento de opressões e de desigualdades, resultantes da
realidade que cerca o sujeito que (d)enuncia, que vivencia a triste herança histórica deixada
pela escravização. E como o racismo é estrutural e estruturante da organização da sociedade,
atua de modo pragmático nas relações sociais. Observemos o próximo trecho:
Olhou as crianças ao meu redor e perguntou: —Estes filhos são seus? Olhei as crianças.
Meu, era apenas dois. Mas como todas eram da mesma cor, afirmei que sim. (JESUS,
2014, p. 21, grifo nosso).
A problemática racial e a negritude do sujeito-protagonista do livro são descritas,
de forma continuada, rememorando algo negativo, como aspectos de baixa autoestima e
ofensas. Semantização, aliás, que permeia a cor/raça negra, caracterizando as bases em que
a construção identitária do negro se edificou ao longo da história: vestígios da escravidão
perpetuada. Quem já não mora na senzala acomoda-se na favela, constituindo desdobramento
de uma herança histórica de coisificação do povo negro, de inferiorização racial e, também,
do genocídio negro.
Tudo isso culmina em impedimentos e em desumanização. Em vários momentos,
Carolina Maria de Jesus – em posição de sujeito-autor – retrata a alimentação proveniente
do lixo, do inservível, algo extremo que deveria ser exceção, mas que –se torna frequente na
mesa de seus familiares.
21
O racismo ocupa todos os lugares de nossa sociedade, na favela não é diferente. Mesmo
em condições sociais equivalentes, a opressão contra o negro é incessante. Violência que se dá
até mesmo pela voz de crianças, que aprendem, desde muito cedo, a reproduzir hostilidades
e comentários que degradam o outro. Como pode ser constatado a seguir:
Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia: —
Está escrevendo, negra fidida! A mãe ouvia e não repreendia. São as mães que instigam
(JESUS, 2014, p. 24, grifo nosso).
O ideário construído no que se refere ao corpo feminino negro – baseado no legado
da escravidão associado ao racismo estrutural e ao mito da democracia racial – denota o
simbolismo do corpo destituído de humanidade e de necessidade de cuidado e apreço.
Construções coletivas e histórico-ideológicas que embebidas de simbolismos racistas,
machistas e patriarcais, impactam veementemente a auto-estima da mulher negra.
Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão.
Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia. (JESUS, 2014, p. 39, grifo
nosso).
Fui fazendo o jantar. Arroz, feijão, pimentão e choriço e mandioca frita. Quando a Vera
viu tanta coisa disse: hoje é festa de negro! (JESUS, 2014, p. 44, grifo nosso).
...A favela hoje está quente. Durante o dia a Leila e o seu companheiro Arnaldo
brigaram. O Arnaldo é preto. Quando veio para a favela era menino. Mas que menino!
Era bom, iducado, meigo, obidiente. Era o orgulho do pai e de quem lhe conhecia. —
Este vai ser um negro, sim senhor! E que na África os negros são classificados assim: —Negro
tú. —Negro turututú. —É negro sim senhor! Negro tú é o negro mais ou menos. Negro
turututú é o que não vale nada. E o negro Sim Senhor é o da alta sociedade (JESUS, 2014,
p. 44, grifos nossos).
Persiste na memória social, principalmente na brasileira, a relação entre os negros e a
escravização. Essa construção, a nosso ver, é problemática, pois o que a História por muito
tempo ressoou foi a descrição de um período passivo e acordado. Não se tratou da resistência
e nem das denúncias. Falar sobre racismo, desigualdade e violência exige abordagem do
estrutural. É um trabalho de compreensão e de ressignificação. Quarto de despejo ecoa o
grito sobrevivente, traduzindo a necessidade de desvelar as mazelas, o descaso e os crimes
aos quais a população negra está sujeita, cenário em que a mulher é notadamente afetada.
Na obra, a figura da mulher – atravessada por discursos e interseccionalidades – recebe
destaque. Como protagonista, é ela quem cria os filhos, trabalha, zela e resiste, insistindo na
luta diária e esperando por um futuro melhor. O enredo edifica-se pelo desejo constante e
ininterrupto de sair da favela:
É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso com esse dinheiro comprar um
terreno para eu sair da favela. Não tenho tempo para ir na casa de ninguém. (JESUS,
2014, p. 25).
22
Substancialmente, a locutora trata de sua vivência. Em seu testemunho, realça
a invisibilização das mulheres negras e como o sistema e suas estruturas sintetizam
procedimentos perversos de apagamento. Situação que deve ser exposta, deve ser revista,
pois mesmo com a abolição da escravatura no século XIX, não foram implementados acesso,
acolhimento ou reparação à população negra e nem à sua história. Luta que se fortalece na
atualidade, mas que se depara , ainda, com muitas injustiças.
Algumas considerações
A escrita, que rompe padrões normativos da língua, é produto das arbitrariedades que
existem na nossa sociedade. A não-escolarização, a violência tanto física quanto simbólica
e a falta de políticas públicas sobressaltam muito mais do que a transgressão da norma
culta da língua portuguesa – ou, ao menos, deveriam. De modo ímpar, as memórias são
compartilhadas com o leitor. Carolina Maria de Jesus, interpelada como sujeito-autor, relata
a luta diária da mulher periférica, sua resistência e denúncia. Foi assim que produziu livros
e discursivizou a urgência de se dar visibilidade aos excluídos, aos que são tolhidos pela
sociedade, sendo Quarto de despejo sua obra mais famosa.
O modo singelo de escrever – mesclando o literário e o documental, o objetivo e
o subjetivo – em posição de autora, assume o lugar de fala negado aos marginalizados e
narra sua jornada, atingida por inúmeras opressões, atravessada por interseccionalidades e
discursos. No caráter social, a análise permitiu discutir sobre aspectos presentes na vivência
racializada. Poucos “nascem” negros no Brasil, a declaração preta acontece quando há
uma imersão sobre origem e identificação, desta forma, tornar-se negro é um ato político,
como dizia Lélia Gonzalez5(1988), dentre tantas outras mulheres negras que, assim como
observamos em Carolina Maria de Jesus, ressignificam suas existências.
O Brasil ainda preserva em seu imaginário social representações de que o povo negro
“foi escravo”, interdiscurso que se faz presente em muitas narrativas atuais. Interdiscurso que,
também, foi retomado por séculos pela historiografia. A nosso ver, seria mais adequado dizer
que os negros foram escravizados, não apagando a opressão que sofreram. O espaço de fala,
que hoje é maior, foi conquista de muita luta, mas está em construção. Falar sobre racismo,
desigualdade e violência no Brasil é tratar de algo estrutural. Na obra que analisamos, há a
declaração, publicação e notificação que a luta e a sobrevivência de mulheres negras e pobres
não estão elencadas ou pautadas em agendas de políticas dos governos e são esquecidas pelo
5 Depoimento da pensadora e ativista Lélia Gonzalez no ano de 1988 “A gente não nasce negro, a gente se torna negro.
É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora.” Disponível em: https://revistacult.uol.com.
br/home/lelia-gonzalez-perfil/. Acesso em: 20 mar. 2021.
23
Estado. Discurso que se materializa neste relato:
Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados,
mas não toma conhecimento da existência infausta dos marginais. Vendi os ferros no
Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela (JESUS, 2014, p. 36).
A denúncia baseia-se no que o olhar da locutora capta, efetivando-se pela voz que traz
consigo as percepções dos menos favorecidos na pirâmide social.
Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos.
Eu não vejo eficiência no Serviço Social com relação ao favelado. Amanhã não vou ter
pão. Vou cozinhar a batata doce. (JESUS, 2014, p. 37).
Como sujeito político-histórico, Carolina Maria de Jesus constitui-se pelas
interseccionalidades e discursos que a atravessaram, que a significaram. As críticas sociais
retomadas em seu discurso são dialogadas como diário de vivências, marcando as diferenças
de quem lida e convive com as expressões acirradas da questão social, como a fome.
Eu sei que existe brasileiros aqui dentro de São Paulo que sofre mais do que eu. Em
junho de 1957 eu fiquei doente e percorri as sedes do Serviço Social. Devido eu carregar
muito ferro fiquei com dor nos rins. Para não ver os meus filhos passar fome fui pedir
auxilio ao propalado Serviço Social. Foi lá que eu vi as lagrimas deslisar dos olhos dos
pobres. Como é pungente ver os dramas que ali se desenrola. A ironia com que são
tratados os pobres. A unica coisa que eles querem saber são os nomes e os endereços dos
pobres. (JESUS, 2014, p. 38).
As críticas sociais, as analogias presentes em seu texto ecoam singularidades e
sobretudo, resiliência em permanecer sobrevivente, almejando a um futuro melhor fora da
favela. O lugar de fala que ocupa não concebe a passividade, seus cadernos e diários guardam
denúncias, gritos e críticas. Nessas materialidades, estão presentes a violência doméstica,
discussões sobre o saneamento básico, a ausência do Estado, entre tantos outros registros.
Autobiografia que é biografia de muitos, configurando o construto intelectual de uma
observadora e vivente do cotidiano denunciado.
Carolina Maria de Jesus sobreviveu. As narrativas que compõem sua obra mais
conhecida reproduzem resistência a opressões vivenciadas como mulher negra, mãe solo e
trabalhadora. Uma sobrevivente e, agora, Doutora Honoris Causa. Negra “Sim, Senhora”.
Doutora Maria Carolina de Jesus.
Referências
24
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra. Feminismos
Plurais Coord. Djamila Ribeiro, 2020.
ALMEIDA. Silvio. Racismo estrutural. Feminismos Plurais – Coord. Djamila Ribeiro, 2019.
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989.
EURICO. Márcia Campos. Racismo na infância. 1 ª edição. São Paulo: Cortez, 2020.
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
JESUS, Maria Carolina de [1960]. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10ª ed. São Paulo:
Ática, 2014.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Trad. Jess Oliveira.
1. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MUNANGA, Kabengelé. Negritude: Usos e sentidos -. 4ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora Coleção Cultura Negra e identidades. Belo Horizonte, 2019.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A casa e a rua: uma relação política e social. Educação e Realidade.
Porto Alegre, v. 36, n. 3, p. 693-703, set/dez., 2011. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/edu_
realidade>. Acesso em: 16 mar. 2021.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes,
2012a.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. 9 ª ed. São Paulo: Cortez; Campinas: Editora da
Unicamp, 2012b.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 12ª ed. Campinas:
Pontes, 2015.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Pontes,
1988.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (Org.). A
Colonialidade do Saber: Eurocentrismo e Ciências Sociais. Buenos Aires: CLACSO,2005.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala?. Coleção Feminismos Plurais. Letramento: Justificando.
Belo Horizonte – MG, 2017.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo. São Paulo: Abril Cultural; Brasiliense, 1984.
25
CAPÍTULO 2
A metamorfose de Kambili: uma análise da formação
pós-colonial em Hibisco Roxo
Maria Tereza Azevedo
Considerações iniciais
Este trabalho pretende mostrar a maneira como a protagonista Kambili se forma e se
transforma a partir de suas próprias reflexões. Para isto, será feita uma análise da formação
padrão, entendida como o modelo hegemônico de ensino, mas também da imposição
cultural que os países colonizados sofrem e como a personagem subverte estas imposições,
metamorfoseando-se.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie narra, em sua obra intitulada
Hibisco Roxo, os descaminhos da adolescente Kambili, uma menina que se forma entre
a superproteção, muitas vezes violenta, do pai e os conflitos políticos provocados pelos
sucessivos golpes de estado que se deram em seu país. A Nigéria foi colônia Inglesa e só
conquistou a independência na década de sessenta. Desse modo, a formação da personagem
também se dá entre as heranças desta amarga página da história do país.
O romance é dividido em quatro partes. A narrativa se inicia in media res1, e neste
primeiro capítulo a narradora nos conta sobre a ida da família à igreja no dia do Domingo
de Ramos e o retorno para casa, momento em que seu irmão Jaja se nega a comungar e
desafia o pai, Eugene, católico fervoroso e seguidor fiel dos ritos religiosos. No segundo
capítulo, a narradora descreve os acontecimentos anteriores ao Domingo de Ramos, muitas
memórias tristes habitam as lembranças da menina, pois há diversas demonstrações de
violência praticadas pelo pai, principalmente com sua mãe, Beatrice, que é alvo recorrente
1 Expressão latina que se refere a obras literárias que iniciam suas narrativas no meio do enredo.
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-2
26
dos maus tratos do patriarca e descrita constantemente com hematomas. Ainda no segundo
capítulo, a narradora explicita como são as relações do pai profissionalmente, além de cenas
de golpes militares na Nigéria e as ideologias que o pai cultivava e tentava incutir na cabeça
dos filhos e da esposa, sobretudo a negação e a consequente demonização da cultura Igbo,
tradicional da região. O terceiro capítulo narra o pós-Domingo de Ramos, quando tudo
desmoronou, principalmente no que diz respeito à instituição familiar e por fim, o quarto
capítulo intitulado “Um silêncio diferente” ao qual ela se refere ao presente como a nova
vida dela, da mãe e do irmão, depois da morte do pai.
Por se tratar de uma narrativa que demonstra a formação de um determinado
indivíduo, este romance pode ser considerado um romance de formação, pois traz, entre
outros fatores, afirmações sobre a vida escolar da personagem, além de experiências amorosas
e distanciamento do lar familiar.
A formação de Kambili era pautada na busca incessante pela perfeição, Papa era muito
rigoroso no quesito formativo de seus filhos, se orgulhava em dizer que Kambili e Jaja não
eram como a maioria dos jovens. Frequentaram escolas excelentes, as melhores de Enugu,
porém, paralelo a isso, os irmãos eram privados de liberdade, tinham hora pra tudo, só lhes
era permitido um alívio no período das férias, e foi em uma dessas férias que tudo começou
a mudar.
Entre a violência doméstica, golpes de estado e a esperança de uma nova vida, Kambili
desabrocha para o amadurecimento tal qual a muda de hibiscos roxos plantados no quintal:
raros como a sensação de liberdade vivenciada pela menina.
A metamorfose de Kambili
Era Domingo de Ramos, o dia em que a igreja cristã celebra a ressurreição de Cristo,
no entanto, Jaja, irmão de Kambili, se recusa a receber a comunhão na missa. Eugene,
furioso e certo de que o pecado havia entrado em sua casa, atira seu pesado missal sobre o
menino. Papa, como era chamado por seus filhos, era rigorosamente religioso se preocupava
com os católicos que não praticavam a comunhão, inclusive encorajava o padre da paróquia
a procurar as pessoas que se negavam, já que para ele somente um pecado mortal impediria
alguém de receber a comunhão.
- Você não pode parar de receber o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Isso é a morte,
e você sabe muito bem. [...]
- Então eu morrerei, Papa.
27
Papa olhou em torno rapidamente, como quem procura por uma prova de que algo
desabara do teto alto da sala, algo que ele jamais imaginaria que fosse cair. Pegou o
missal e atirou-o na direção de Jaja. O missal não acertou Jaja, mas atingiu a estante de
vidro que mamãe limpava com tanta frequência (ADICHIE, 2011, p. 13).
Nesse início da trama, já é possível entender um pouco sobre as construções e
desmoronamentos familiares que são pautados em violência e controle dos corpos, por
parte do patriarca da família. Esse recorte da narrativa é o princípio da negação da postura
autoritária praticada pelo pai.
Talvez Mama soubesse que não ia mais precisar das estatuetas; que quando Papa atirou
o missal em Jaja, não foram apenas elas que se quebraram, mas todo o resto. Só agora
eu percebia isso, permitindo-me pensar naquela possibilidade.
[...] A rebeldia de Jaja era como os hibiscos roxos experimentais de tia Ifeoma: rara,
com o cheiro suave da liberdade, uma liberdade diferente daquela que a multidão,
brandindo folhas verdes, pediu na Government Square após o golpe. Liberdade para
ser, para fazer (ADICHIE, p. 22).
A rebeldia de Jaja encerra o primeiro capítulo e inicia o processo de recusa da vida
rigorosamente católica e violenta que levavam. O capítulo seguinte é constituído de
memórias anteriores ao Domingo de Ramos.
No segundo capítulo, a narradora expõe as cobranças demasiadas do pai. Como ele
tinha boas condições financeiras, fazia questão de matricular os filhos nas melhores escolas,
para que tivessem uma excelente formação educacional e, sempre que podia, coagia os filhos
para que estivessem em colocações de destaque em suas respectivas classes. Papa fazia questão
de expor o privilégio que oferecia aos filhos e cobrá-los que fossem os melhores.
Eu ficara em segundo lugar na turma. Estava escrito em algarismos 2/25. Minha
professora, irmã Clara, escrevera: “Kambili tem inteligência acima da média, e é
silenciosa e responsável” A diretora, madre Lucy, escrevera: “Uma aluna brilhante e
obediente e uma filha que merece o orgulho dos pais”. Mas eu sabia que Papa não ia
ficar orgulhoso. Ele cansava de dizer para mim e para Jaja que, já que gastava tanto
dinheiro no Daughters of Immacule of Heart e no St Nicholas, nós não devíamos
deixar as outras crianças ficarem em primeiro na turma [...] Mas eu ficara em segundo
lugar, estava maculada pelo fracasso (ADICHIE, 2011, p. 45).
A busca incessante pela perfeição se estendia pelo ano inteiro, apenas nas férias, seus filhos
eram poupados e é neste período, durante o fim de ano, o momento em que a protagonista
narra sua primeira saída da casa em que moravam. A viagem de Enugu, para Abba, cidade
natal de Papa. É quando principia, timidamente, seu processo de reflexão, sobretudo acerca
da formação familiar e a condição colonial da Nigéria incluindo curiosidades sobre a cultura
e a religião Igbo.
28
Em Abba, Papa era conhecido como “Omelora” (Aquele que faz pela comunidade).
Todo natal os nativos faziam filas para receber as doações dele e ele era ovacionado por ser
um homem tão bondoso, caridoso. Ajudava os nativos com comida, dinheiro, presentes,
no entanto, para seu próprio pai não destinava o mesmo tratamento, pois este se negava à
conversão para o cristianismo, era considerado pagão pelo filho e proibido de entrar em sua
propriedade. “Papa-Nnukwu jamais pisara ali, pois quando Papa decretara que não permitiria
pagãos em sua propriedade, não abrira exceção nem para o próprio pai.” (ADICHIE, 2011,
p.70).
Eugene era filho de um senhor tradicionalista e que seguia a religião Igbo, mas sua
formação foi atravessada pela colonização e catequização inglesa. Eugene foi formado por
missionários cristãos que lhe incutiram os preconceitos advindos do cristianismo com relação
às religiões africanas, cumprindo com a docilização almejada pela colonização inglesa na
Nigéria.
A irmã de Papa, tia Ifeoma, disse um dia que Papa era muito colonizado. Disse isso de
forma gentil e indulgente, como se não fosse culpa de Papa, como quem fala de alguém
que tem um caso grave de malária e por isso grita coisas sem nexo (ADICHIE, 2011,
p. 20).
Kambili, a princípio, acredita que a formação ofertada pelo pai é ideal e que deve
sempre acatar aos mandos dele, deste modo, sua formação segue sendo orquestrada pelos
interesses do patriarca. Até que Kambili e Jaja vão visitar o avô, pois era período de festas
de fim de ano e seu pai os mandou para lá com o motorista, mas só lhes permitiu ficarem
quinze minutos, além de adverti-los que não deviam beber nem comer nada, já que o avô
cultuava outros deuses. Um símbolo da demonização da religião originária, manifestação de
apagamento da cultura e da religiosidade, decorrente da colonização europeia.
Nessa viagem, Kambili principia seu processo reflexivo, ao passo que se questiona
sobre esta relação do pai com o avô, é quando surgem faíscas de dúvidas sobre as certezas
cristãs impostas pela condição colonial, mesmo que ainda siga as regras do pai. A menina
tenta entender esse complexo comportamento do pai, bom para quase todos, mas só para
os que o obedecia, que compartilhavam da sua maneira de viver e se posicionar como ser
passivo às imposições da colonização cristã europeia e agressivo com os seus. Na visita ao
avô, Kambili narra que tentou enxergar naquele ancião algo que lhe diferenciasse dos outros,
que lhe fizesse ser destratado.
Naquele dia eu também examinara Papa-Nnukwu, desviando o olhar quando ele me
encarava, procurando por um sinal que marcasse sua diferença, sua condição de pessoa
ímpia. Não vi nenhum, mas estava certa de que eles deviam estar em algum lugar.
Tinham de estar (ADICHIE, 2011, p. 71).
29
As demonstrações de submissão ao processo colonial aparecem também no momento
em que Kambili se questiona sobre a distinção feita entre os avôs paterno e materno. Ao
passo que destratava o pai, elogiava o sogro, pedia que os filhos lhe chamassem de vovô, não
de Papa-Nnukwu como se diz em Igbo. “Ele abriu os olhos antes da maioria do nosso povo
[...] Fazia as coisas do jeito certo, do jeito que os brancos fazem não como nosso povo faz
agora!” (ADICHIE, 2011, p. 76).
Ainda nessa viagem, Kambili vivencia outro aspecto presente no Bildungsroman2, o
contato com uma pessoa mais velha, que a leva a enxergar o mundo de outra maneira, sua
Tia Ifeoma representa este ser marcado por outras possibilidades de existência, diferentes da
vivida e observada pela menina. Seu primeiro contato, na fase de construção da identidade,
ainda tímido pelo tanto que havia de julgamentos preestabelecidos, incutidos pela visão
do pai, a menina principia seu convívio com quem, no futuro da narrativa, viria a ser a
personagem mais significativa em seu processo de transformação.
Eu observava cada movimento dela sem conseguir desviar os olhos. Era por causa da
coragem que ela transmitia, evidente em seus gestos enquanto falava, na maneira como
sorria para mostrar o espaço entre os dentes (ADICHIE, 2011, p. 85).
Ifeoma é considerada por Kambili, ainda com o pensamento viciado pelos interesses
de Papa, uma mulher diferente de sua mãe, pois ela era muito mais desinibida e cheia
de atitude. Tia Ifeoma usava calça, fazia questão de ter sua voz ouvida quando falava
sobre os acontecimentos políticos da região em que morava e trabalhava como professora
universitária. Neste primeiro contato mais consciente da menina com a tia, Kambili mostrase contagiada por um sentimento de choque, já que sua tia se comportava tão diferente do
padrão feminino que ela estava acostumada. Em nova visita ao avô, juntamente com a tia,
Kambili se mostra apavorada de ter que voltar àquele lugar mal visto pelo pai.
- Porque Papa-Nnukwu é um pagão.
Papa teria ficado orgulhoso se soubesse que eu tinha dito isso.
- Seu Papa-Nnukwu não é um pagão, Kambili, é um tradicionalista – disse Tia Ifeoma.
Olhei atônita para ela. Pagão, tradicionalista, o que importava? Ele não era católico e
pronto; não era da nossa fé. Era uma dessas pessoas por cuja conversão nós rezávamos,
para que elas não acabassem no tormento eterno dos fogos do inferno (ADICHIE,
2011, p. 90).
Na missa de natal, todos se encontraram na igreja, e Kambili ficou impressionada ao
ver que sua prima usava batom, para ela isso jamais seria permitido. “Embora eu tentasse me
concentrar na missa, não conseguia parar de pensar no batom de Amaka, me perguntando
como seria espalhar cor nos meus lábios” (ADICHIE, 2011, p.98).
2 Do alemão, Romance de Formação. Gênero Literário em que se narram os processos de formação dos personagens.
30
As condições de vida de Kambili e Jaja eram muito diferentes da de seus primos, filhos
de Tia Ifeoma, sobretudo devido à condição financeira da tia, que não permitia oferecer
certos luxos aos filhos. Após a missa, todos foram para casa de Papa compartilhar a ceia
natalina e seus primos observavam com curiosidade os objetos que continham na casa. Um
som Stereo, o qual achavam o máximo e ficava intacto na mansão, a estrutura física dos
cômodos, os alimentos, tudo de qualidade superior ao que estavam acostumados. Nessa
mesma noite, durante o jantar, Tia Ifeoma sugere que Papa deveria deixar os filhos irem
visitá-la em Nsukka.
- Eugene, você precisa deixar que as crianças nos visitem em Nsukka – disse tia Ifeoma.
- Não temos uma mansão, mas pelo menos eles podem conhecer melhor os primos.
- As crianças não gostam de ficar longe de casa – disse Papa.
- Só porque nunca ficaram longe de casa. Tenho certeza de que vão gostar de ver
Nsukka. Não vão, Jaja e Kambili? (ADICHIE, 2011, p. 106)
No domingo, dia seguinte à ceia de natal, Kambili acorda menstruada e com muita
cólica. Para aliviar, pede que Mama lhe dê um remédio para a dor, mas sua mãe disse que
não deveria tomar o remédio em jejum, pois poderia afetar seu estômago. Mas era dia de
Eucaristia e todos deveriam ir em jejum. Jaja e Mama tentam encobrir Kambili para que
Eugene não perceba que a menina estava comendo antes de ir à missa. No entanto, Papa
chegou um pouco antes dela engolir os últimos flocos de cereal.
- Está comendo dez minutos antes da missa? Dez minutos?
- Ela ficou menstruada e está com cólica... – explicou Mama.
Jaja a interrompeu.
- Fui eu que mandei Kambili comer antes de tomar Panadol3, Papa. Eu preparei o cereal
pra ela.
- Será que o demônio pediu pra você fazer o trabalho dele? – disse Papa, com as palavras
em igbo saindo de sua boca numa torrente. – Será que o demônio armou uma tenda
dentro da minha casa? (ADICHIE, 2011, p. 111)
Em seguida, a narradora relata outra cena de violência explicita. Papa retira o cinto
da calça e bate nos três, respinga sua ira para todos os componentes de sua família. “[...]
estalando seu cinto em cima de Mama, de Jaja e de mim, murmurando que o demônio não
ia vencer. Não demos mais que dois passos para escapar do cinto de couro que cortava o ar”
(ADICHIE, 2011, p. 112).
Ainda subservientes, seguiram a rotina imposta pelo pai, foram trocar de roupa e
partiram para a missa, obrigados a confessar o grande pecado de comer antes do jejum
3 Remédio para cólicas menstruais.
31
eucarístico. “Papa telefonou para tia Ifeoma dois dias depois. Talvez, se não tivéssemos ido
nos confessar naquele dia, ele não tivesse ligado. E talvez jamais tivéssemos ido à Nsukka, e
tudo teria ficado igual” (ADICHIE, 2011, p. 113).
Chegando à casa da tia, foram recebidos com muito afeto, carinho que não sentiam
em casa, pois não era dado pelo pai e também ficava adormecido na mãe devido à criação
metódica e de silenciamento estabelecida pelo patriarca. As refeições não eram silenciosas
como em Enugu, os primos eram tão desinibidos e livres que Kambili não tinha reação,
um sentimento extasiante decorrente da percepção de uma possibilidade de vida diferente
daquela triste e silenciosa vivida em casa. “Até então eu me sentira como se não estivesse
ali, como se estivesse apenas observando uma mesa onde se podia dizer o que você quisesse,
onde o ar era livre para ser respirado à vontade” (ADICHIE, 2011, p. 130).
Em Nsukka, Kambili vai à universidade pela primeira vez, momento em que tia
Ifeoma mostra onde trabalha e ainda brinca dizendo onde sua filha Amaka gostaria de ficar
alojada quando entrasse na universidade e fundasse seus movimentos ativistas. Enquanto
a protagonista nem se perguntava sobre seu próprio futuro, já que não tomava nenhuma
decisão sozinha.
– Quem sabe vocês não ficam no mesmo dormitório, Kambili?
Assenti automaticamente, embora tia Ifeoma não pudesse me enxergar. Eu nunca me
perguntara em que universidade estudaria nem em que me formaria. Quando chegasse
a hora, Papa decidiria (ADICHIE, 2011, p. 140).
Kambili confronta a criação amorosa e espontânea da tia com a repressora dada pelo pai
e chega a algumas conclusões que a fazem reformular suas ânsias familiares. Tia Ifeoma
criara os filhos para a independência, não para a submissão, totalmente diferente da
educação que Kambili e Jaja recebiam em casa, seus primos tinham outra consciência
de mundo, eram educados observando a cultura de seu povo, não a negando. Ifeoma
buscava dar autonomia aos filhos.
Percebi que era isso que tia Ifeoma fazia com os meus primos, obrigando-os a ir cada vez
mais alto, graças à forma como falava com eles, graças ao que esperava deles. Ela fazia
isso o tempo todo, acreditando que eles iam conseguir saltar. E eles saltavam. Comigo
e Jaja, era diferente. Nós não saltávamos por acreditarmos que podíamos; saltávamos
porque tínhamos pânico de não conseguir (ADICHIE, 2011, p. 238).
Outro acontecimento marcante e decisivo nesta estadia em Nsukka é a aproximação
dos irmãos com Papa-Nnukwu, que precisou ir à casa de Ifeoma, pois estava muito debilitado
de saúde. No período em que esteve no mesmo lar que o avô, Jaja e Kambili sentiam
muito medo de serem castigados pelo convívio com um “pagão”. No entanto, acabaram se
aproximando do avô, pois ele era um espirituoso senhor que gostava de contar história e seu
carinho também despertou em Kambili e Jaja o sentimento de querer conhecê-lo melhor.
32
Depois de ouvi-lo rezando por todos de sua família, inclusive Eugene, Kambili ficou
ainda mais convencida, embora não quisesse acreditar, de que seu avô era um homem bom.
Infelizmente Papa-Nnukwu não resistiu à doença que lhe castigava e, depois de seu óbito,
Eugene vai à casa de tia Ifeoma para buscar os filhos, pois o tinham contrariado, estavam
dividindo o mesmo lar de um pagão. “A morte de Papa-Nnukwu obscurecera tudo mais,
empurrando o rosto de Papa para um lugar indistinto em minha mente. Mas agora esse
rosto ganha vida de novo” (ADICHIE, 2011, p. 199). Na volta pra casa, Jaja e Kambili já
estavam diferentes, com atitudes e vontades próprias.
Viu o que aconteceu com meus filhos? – Papa perguntou ao teto. – Viu como ficar com
um pagão os fez mudar, ensinou o mal a eles?
[...]
Por um segundo, me perguntei se Papa estaria certo, se estar com Papa-Nnukwu fizera
Jaja ficar malvado, se fizera nós dois ficarmos malvados (ADICHIE, 2011, p. 204).
O comportamento desafiador de Kambili e Jaja despertou a fúria do pai que desencadeou
uma sequência de castigos violentos. O primeiro acontece quando Papa pergunta à filha
porque não tinha dito que estavam dividindo o mesmo teto com um pagão. “Kambili, você
é preciosa – disse ele, com a voz tremendo, como alguém que fazia um discurso num velório,
embargado de emoção - devia almejar a perfeição. Não devia ver o pecado e caminhar
na direção dele” (ADICHIE, 2011, p. 206). Em seguida, Papa manda Kambili entrar na
banheira e derrama uma chaleira cheia de água quente nos pés da filha como castigo por
ter pecado. “É isso que você faz consigo mesma quando caminha na direção do pecado.
Queima os pés – disse ele.” (ADICHIE, 2011, p. 207). Mas o pior estava por vir.
Antes de voltar para casa, Kambili ganhou um quadro com o rosto de de Papa-Nnukwu
pintado pela prima Amaka, lembrança da época de convívio com o avô e os primos na casa
de tia Ifeoma. A jovem quis escondê-lo, mas Jaja pediu para ver, admirar a imagem de PapaNnukwu e também verificar sua semelhança com o avô. No momento em que Papa esta
distraído recebendo a visita do padre Benedict, os irmãos que estavam olhando o quadro
tentam fazê-lo sem que o pai visse, pois sabiam que seria inaceitável para o pai.
E foi o que aconteceu. Talvez fosse o que eu e Jaja quiséssemos que acontecesse, sem
ter consciência disso. Talvez todos tenhamos mudado depois de Nsukka – até Papa – e
as coisas estivessem destinadas a não ser mais as mesmas, a não estar mais na ordem
original (ADICHIE, 2011, p. 221).
Papa rasgou o desenho em pedaços e Kambili quis se agarrar a um, como se aquele
fragmento da tela pintada pela prima fosse um pedaço do avô, uma memória do pouco
33
que pôde conviver com ele, dos dias felizes em que compartilharam histórias e gargalhadas
em Nsukka. Em seguida é espancada pelo pai, ao ponto de ficar desacordada e teve que ser
internada no hospital. Tia Ifeoma visita Kambili e faz um apelo à menina, Jaja e Beatrice,
pede que saiam de casa o quanto antes.
- Isso não pode continuar nwunye m4 – disse tia Ifeoma. – Quando uma casa está
pegando fogo, a gente sai correndo antes que o teto caia em cima da nossa cabeça.
[...]
Quero que Kambili e Jaja fiquem conosco, pelo menos até a Páscoa. Faça uma mala
você também e venha para Nsukka. Vai ser mais fácil para você ir embora quando as
crianças não estiverem lá (ADICHIE, 2011, p. 226).
Quando teve alta, Kambili foi para casa da tia passar mais uns dias, junto com seu
irmão, até as coisas se acalmarem em casa. Nesse meio tempo, outro aspecto do Bildungsroman
vem à tona, o envolvimento amoroso. Nas férias que passa com a tia, conhece um padre
de Nsukka, frequentador da casa de tia Ifeoma e com pensamentos progressistas dentro da
religiosidade cristã, mas é neste retorno que a jovem é tomada por um sentimento que a faz
ficar ansiosa e radiante.
No primeiro contato, padre Amadi relembra que já esteve na paróquia em que a
família de Kambili frequentava e na ocasião cantou uma música no meio do sermão, por
isso, a menina lembra que foi mal visto por Papa que acreditava que não poderia haver
canções durante a missa. Conhecem-se um pouco mais nas visitas feitas pelo padre à casa da
tia, passeiam pela cidade, jogam handebol junto com os primos. Neste retorno à Nsukka, a
aproximação deles aumenta e Kambili experimenta um sentimento novo, o da paixão.
- É bom ver que você voltou ao normal – disse padre Amadi, me examinando de cima
a baixo, como se quisesse ter certeza de que não faltava nada.
Eu sorri. Ele indicou que eu devia me levantar para receber um abraço. O corpo dele
tocando o meu foi tenso e delicioso. Eu me afastei. Quis que Chima, Jaja, Obiora, tia
Ifeoma e Amaka desaparecessem por alguns instantes. Quis estar sozinha com ele. Quis
contar a ele o calor que sentia por ele estar ali, dizer que minha cor preferida era o tom
de argila da pele dele (ADICHIE, 2011, p. 233).
Ele também a encorajava, elogiando sua beleza e buscando mostrar que ela tinha
potencial para fazer o que quisesse. “- Você pode fazer qualquer coisa, kambili” (ADICHIE,
2011, p. 253). Quando finalmente se declara ao padre, em troca ouve: “Você tem quase
dezesseis anos, Kambili. É linda. Vai encontrar mais amor do que vai precisar para uma
4 Como as cunhadas se cumprimentam na linguagem Igbo proveniente da Nigéria, pode ser traduzido
como minha esposa.
34
vida inteira.” (ADICHIE, 2011, p. 290). O que comprova que o afeto, mesmo que seja
correspondido, pelo carinho com que o padre a trata, jamais seria vivido como ela gostaria.
Na casa da tia Ifeoma, Kambili recebe ligação de sua mãe, dizendo que Papa havia sido
encontrado morto. Ao voltar para casa, ainda atordoados com a notícia, tentando entender
o que ocasionou a morte do pai, descobrem que sua mãe que é culpada pelo envenenamento
dele.
Um aspecto pertinente ao Bildungsroman feminino, o silenciamento, é explicitado
neste romance, como um comportamento comum, sobretudo em romances que expõe
relações pautadas no patriarcalismo violentamente exposto. A protagonista só começa a
falar, a se sentir segura para manifestar seus pensamentos quando começa a interagir com a
tia e os primos. Ao longo da narrativa é apartada do diálogo com a mãe, o que é claramente
mostrado no final da narrativa. E mesmo que tenha sido ocasionada pela trágica morte do
pai, a relação com a mãe e o irmão se tornou muita mais próxima.
Mama e eu não conversamos sobre o que tínhamos ouvido. Seguimos carregando
dentro de nós, mas não compartilhando, a mesma paz, a mesma esperança concreta
pela primeira vez [...] Ainda há muito que não dizemos com nossas vozes, que não
transformamos em palavras (ADICHIE, 2011, p. 311).
A mentalidade pós-moderna, representada neste romance, é pautada na noção de crise,
essa fratura que perpassa pelos comportamentos, que deixam de ser hegemônicos ou pelo
menos deixam de ser obedientes às diretrizes conservadoras, nesse sentido, tudo entra em
crise, não somente os conceitos, mas as formas de vida, as experiências, o modelo familiar, o
que justifica as transformações pelas quais as personagens sofrem.
Personagens com comportamentos que, frente a determinadas experiências violentadoras
da sua condição de mulher, o que forma um conjunto de condições inerentes à experiência
vivida por elas, desafiam o modelo esperado pela sociedade e, ao desafiar, colocam em crise
todo um comportamento pautado nos princípios que a cultura do patriarcado espera que
elas devam cumprir.
O perigo para o já engessado modelo social e familiar é, justamente, a consciência da
sua própria vida, é quando as mulheres que sofrem ou sofreram violências, sejam físicas ou
morais, dão basta a este modelo que insiste em subjuga-las e somente a tomada de atitude,
atrelada ao estar de consciência, é capaz de reformular suas próprias vidas.
35
Considerações finais
O dessilenciamento e a consequente metamorfose de Kambili podem ser traduzidos
como o de muitas meninas, que são sufocadas pelo patriarcalismo, seu entendimento sobre
sua cultura também pode ser interpretado como a crescente necessidade de desconstrução
das imposições coloniais.
O fim de Kambili é indeterminado, mas aponta para uma mudança radical, e que é
possivelmente interpretado como um caminho emancipado, em que a menina, livre das
amarras do pai, tem a capacidade de se nutrir das próprias escolhas. Kambili se prepara para
o futuro, consciente de si mesma e dos desafios que enfrentará: “As novas chuvas vão cair em
breve” (ADICHIE, 2011, p. 321).
Conforme já observamos em estudos anteriores é “Como se a emancipação se
configurasse como uma espécie de micro revolução que acontece em nós e que deve ser
cultivada individualmente, essa força que temos para decidir em que condições buscamos
viver” (AZEVEDO & SARMENTO-PANTOJA, 2015, p. 5).
A escritora evidencia a formação dada à protagonista de Hibisco Roxo e mostra várias
etapas desta formação, sempre alicerçada na violência e na obrigatoriedade de seguir as
vontades do Pai. Chimamanda Adichie escancara a raiz colonial da dominação dos corpos e
da subjugação de povos em relação a outros, que inclusive é sua própria nação, como uma
triste prática de controle e sucessão de costumes opressores.
As mulheres da obra são um exemplo da paradoxal situação feminina, sua tia é
professora universitária e na condição de viúva é quem sustenta sua família. A criação que
dá aos filhos é construída no sentido da liberdade, do incentivo ao pensamento crítico e, por
outro lado, sua mãe, Beatrice, é uma mulher que é descrita como submissa em praticamente
todo o romance. É grata por nunca ter sido abandonada pelo marido, ao passo que sofre
inúmeras violências narradas na obra.
Estes dois exemplos paradoxais evidenciam para Kambili, adolescente em formação,
quais são suas possibilidades de construção para o futuro próximo. Em casa vive sob constante
ameaça do pai, caso não cumpra suas ordens, enquanto na casa da tia descobre que outras
formas de vida são possíveis. A autora, ao trazer esta movimentação de possibilidades, leva o
(a) leitor (a) a repensar sobre a formação, no sentido de educação dada pela criação.
A escritora não nega a formação tida como tradicional, mas expõe e contrapõe à outra, a
formação emancipadora, dada pela tia aos primos, que só é possível em liberdade, sentimento
este que não faz parte da realidade doméstica de Kambili até a morte do pai. Como bem
pontuou Linda Hutcheon (1988), a postura pós-moderna está disposta a explorar os dois
lados da história, o tradicional, engessado e o que é tido como parâmetro dos desejos da
geração contemporânea. Mulheres como Beatrice foram ensinadas a não questionarem os
maridos, sua filha, protagonista da obra, por ter sido exposta a outra modalidade formativa
pode rever seu rumo e estimar uma vida diferente.
36
Referências
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Hibisco Roxo. Tradução: Júlia Romeu. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
AZEVEDO, Maria Tereza; SARMENTO-PANTOJA, Tânia. A Emancipação Em Sartre, Adorno
E Rancière: Contribuições Para O Estudo Do Herói Guerrilheiro Na Literatura Pós-Ditatorial. In:
Anais do XIV Congresso internacional da Abralic. Belém do Pará, Julho, 2015.
HUTCHEON, Linda. A poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
MAAS, Wilma Patricia Marzari Dinardo. O Cânone mínimo. O Bildungsroman na história da
literatura. São Paulo: Editora UNESP, 2000.
PINTO, Cristina Ferreira. O Bildungsroman feminino. Quatro exemplos brasileiros. São Paulo:
Perspectiva, 1990.
37
CAPÍTULO 3
A arte como discurso de resistência:
O antirracismo na colagem de Geo Coelho
Brenna Késia de Sousa Costa, José Eduardo Pinto Duarte,
Wellytania Thaís Sousa Morais, Edgley Freire Tavares
Introdução
De acordo com Orlandi (1986), o discurso é caracterizado como o que vem a mais,
o que vem depois, o que desliza nos movimentos de retomada, repetição e diferença da
linguagem e dos sentidos. Partindo dessa premissa, iremos descrever a arte como discurso
de resistência. Como objeto de análise, utilizaremos uma colagem postada por Geo Coelho,
na página Cola da Preta, por meio da plataforma digital Instagram. Diante de linguagens
deliberadamente coloniais, resultantes de uma historicidade nacional marcada pela
segregação, exclusão e desigualdades sociais, de um racismo estrutural ainda hoje ameaçador
em diversas esferas da vida, nosso estudo orientou-se pela indagação primeira em torno do
lugar da arte na crítica aos modos de governo da vida, na cena política e cultural brasileira.
Outrossim, impulsionou-nos a possibilidade de questionar o lugar da teoria da
linguagem na grande travessia da crítica da atualidade política. Isso decorre da inspiração
foucaultiana, sobretudo, da sua indagação ontológica do presente: o que estamos fazendo
de nós mesmos? Problematização fundamental na obra do pensador francês, necessária ao
diagnóstico da condição subjetiva democrática, atravessada por relações de saber, de poder e
de verdade (FOUCAULT, 1995, 2000). Buscamos uma ressonância com a problematização
foucaultiana, indagando a um só tempo sobre o lugar da teoria dos estudos da linguagem,
posição assumida por nós, e o da experiência artística, assumida pela historiadora Geo
Coelho, em relação ao diagnóstico do presente, objetivando mostrar como essa discursividade
artística está inserida nos jogos de poder e de saber que estruturam as forças políticas e a
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-3
38
democracia no Brasil, constituindo-se como uma formulação de resistência desestabilizadora
de demarcações e resquícios históricos que perpetuam desigualdades e exclusões em nosso
país.
O percurso analítico girou em torno da seguinte materialidade:
Figura 1 - Colagem de Geo Coelho
Fonte: Página Cola da Preta no Instagram, 20201.
Objetivamos traçar aqui compreensões sobre de que modos os elementos linguísticos e
imagéticos materializam o discurso antirracista e produzem efeitos de memória que criticam
e deslocam politicamente a retórica racista. Para tanto, o aporte teórico-metodológico situase na análise dos discursos, com ênfase na arqueologia do discurso como a descrição histórica
e semiológica dos enunciados (FOUCAULT, 2007). Tal visada, só é possível por meio de
uma virada discursiva nos estudos da linguagem, está engajada num viés de pesquisa no qual
a discursividade é abordada de forma interdisciplinar, leia-se, numa descrição que conjuga à
problematização linguageira, inquietações sociais, subjetivas e históricas.
A colagem de autoria de Geovanna Coelho, professora, historiadora, artista e ativista
nordestina, é um acontecimento discursivo (FOUCAULT, 2007), enunciado verbo-imagético
cuja função enunciativa desestabiliza relações de saber e poder que há muito reforçam o
racismo estrutural no Brasil, tornando visível a política de resistência materializada na arte.
Na base do nosso percurso analítico, ressoam também as contribuições de Chauí (2008), que
pensa as relações entre sociedade, cultura e democracia, o debate sobre a arte da colagem,
1 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFVVjyQBzMe/. Acesso em: 17 de novembro de 2020.
39
por meio das contribuições de Vargas e Souza (2011), propostas articuladas aos pressupostos
da análise discursiva de matriz francesa (ORLANDI, 2008, 2009), fundamentação a partir
da qual descrevemos a colagem da artista Geo Coelho como um sincretismo semiológico,
verbo e imagem, consistindo expressão de poder-saber antirracista e produtora de ruptura
histórica. Além dessas, foram determinantes as contribuições de autores como Almeida
(2019) e Souza (2017), que abordam o conceito de racismo estrutural, sua gênese e as
formas históricas de sua perpetuação até os dias atuais na política e na sociedade brasileira.
Por uma análise antirracista das discursividades
Memória e discurso
De acordo com Orlandi (2009, p. 31), a memória discursiva acontece através de falas,
dizeres, materialidades que vieram de outros lugares e momentos, de forma independente,
uma estrutura já simbolizada e dotada de sentido: “o saber discursivo que torna possível
todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do
dizível[...]”. Impossível significar fora de uma rede de memória, lembra-nos Pêcheux (2011),
fundador da AD, para quem a memória, objeto de estudo em todas as áreas das ciências
sociais e humanas, deve ser abordada pelo linguista como discursividade. Nas palavras de
Pêcheux (2011), do ponto de vista da articulação entre uma teoria da linguagem, uma
teoria do sujeito e uma teoria da história, a memória deve ser estudada colocando em causa
o seu estatuto social em seu funcionamento discursivo, a partir da produção, circulação
e interpretação de práticas discursivas que põem em jogo determinadas formas de pensar
a sociedade. Abordada assim, a memória não é estudada em sua existência psíquica ou
cognitiva, mas como um conjunto complexo “constituído por séries de tecidos de índices
legíveis, constituindo um corpus sócio-histórico de traços.” (PÊCHEUX, 2011).
Na colagem, figura 01, o modo singular de inscrição da memória em nossa atualidade é
o ponto central aqui analisado. Na arte, uma das memórias discursivas que pode ser percebida,
por exemplo, está na representação da bandeira brasileira, retonalizada e reestilizada, dando
destaque às marcas de balas derramadas em sangue em substituição ao que nossa memória
ativa do símbolo nacional: as estrelas. E, pela construção da imagem como um todo, naquilo
que ela materializa de jogos de verdade, modos de pensar, representar e contestar, é fácil
chegar ao referente atravessado pelas manchas escarlates. O ativismo de resistência pela
arte estabelece relação de sentidos que deriva de já ditos diversos e de vozes heterotópicas,
40
alhures, apesar de os sujeitos não terem o controle “[...] sobre o modo pelo qual os sentidos se
constituem [...]” (ORLANDI,2009, p. 32). Pensando a partir da perspectiva orlandiniana,
os sentidos estão sempre em fuga, escapam e resistem ao silenciamento, pois significar é uma
relação de se mover,
[...] – que vem pela história, que não pede licença, que vem pela memória, em muitas
outras vozes, no jogo da língua que se vai historicizando aqui e ali, indiferentemente,
mas, marcada pela ideologia pelas posições relativas ao poder – traz em sua materialidade
os efeitos que atingem esses sujeitos apesar de suas vontades (ORLANDI, 2009, p. 32).
Nas artes, o deslizamento da memória e sua inscrição pela diferença, pela ruptura e pela
contestação se faz mais evidente. As materialidades da memória estabelecem significações
e sentidos não apenas com o que foi dito, mas também com o que não é dito, com aquilo
que até poderia ter sido dito e não foi. Funcionam, pois, como “margens do dizer” que
também fazem parte do estatuto social e histórico da memória. Também de acordo com a
autora, a linguagem faz sentido por seus processos de significação, que envolvem não apenas
a memória, visto que nela significam a representatividade e o esquecimento.
[...] esquecimento ideológico: ele é da instância do inconsciente e resulta do modo
pelo qual somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de ser a
origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes. [...],
os sentidos apenas se representam como originando-se em nós: eles são determinados
pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam
e não pela nossa vontade (ORLANDI, 2009, p. 35).
É central no funcionamento da memória seus modos de atualização, o modo
como determinada materialidade corporifica em simbólico certos jogos de lembrança
e esquecimento, sempre historicamente determinados. Se o que importa é considerar as
materialidades da memória, sua inscrição em enunciados, é importante pensar que tais
inscrições da memória, como vemos na colagem, funcionam atribuindo sentidos em
determinadas condições históricas. Além disso, é preciso observar as atualizações da memória
em relação às ordens do discurso (FOUCAULT, 2009) e, consequentemente, a partir dos
modos de regulação, controle e dispersão nos regimes de discursividade, como o político, o
artístico e o midiático.
A arte de Geo Coelho desestabiliza certas vontades de verdade produtoras de realidades
sociais de desigualdade e segregação. E isso se dá pelos deslocamentos de memória que a arte
instaura, materializa, fazendo deslizar, pelo efeito metafórico, determinados significantes,
realizando inversões, como as que se faz notar nas representações que remetem à bandeira
do Brasil, que figura diferente na arte, como referência a uma governamentalidade que
perpetua formas de exclusão, violência e negação da condição democrática.
41
Cultura e democracia
Segundo Chauí (2008), a origem da palavra cultura vem do verbo latino colere, cultura
significava o cultivo, o cuidado. O cultivo e o cuidado com a terra, com as crianças, com
os deuses e o sagrado. Como cultivo, a cultura era concebida como uma ação que conduz
à plena realização das potencialidades de alguma coisa ou de alguém; era fazer brotar,
frutificar, florescer e cobrir de benefícios. No século XVIII, com o surgimento da Filosofia da
Ilustração, a palavra cultura ressurge como sinônimo de civilização. Chauí (2008) também
afirma que com o Iluminismo, a cultura tornou-se o padrão ou o critério que mede o grau
de civilização de uma sociedade. Assim, a cultura passa a ser encarada como um conjunto
de práticas (artes, ciências, técnicas, filosofia, os ofícios) que permite avaliar e hierarquizar
o valor dos regimes políticos, segundo um critério de evolução. Pouco a pouco, a cultura
tornou-se sinônimo de progresso, o progresso de uma civilização passou a ser analisado pela
sua cultura, e passaram a avaliar a cultura pelo progresso que trazia a uma civilização.
No século XIX, constituiu-se a antropologia. Por tomarem a noção de progresso como
medida de cultura, os antropólogos estabeleceram um padrão para medir a evolução ou o
grau de progresso de uma cultura e esse padrão foi o da Europa capitalista. As sociedades
passaram a ser avaliadas segundo a presença ou a ausência de alguns elementos (o Estado, o
mercado e a escrita) que são próprios do ocidente capitalista e a ausência desses elementos
foi considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluída.
Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e poder diferentes
do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram definidas como culturas “primitivas”.
Em outras palavras, Chauí (2008) aponta que, com a modernidade, foi introduzido um
conceito de valor para distinguir as formas culturais, dinâmica que ainda ressoa nos dias de
hoje, pois muitos grupos e comunidades não possuem legitimidade de escrever sua memória
e de fazer lembrar suas formas culturais, e muitas vezes, além de pouco visibilizadas, são
discriminadas ou mesmo censuradas.
A discriminação e o preconceito assolam muitos povos, sobretudo, aqueles com
culturas e hábitos diferentes dos que a sociedade impõe como normal. Seja pelas formas
de linguagem, nas relações com a economia ou em suas experiências pessoais, pessoas são
excluídas e oprimidas, caso seus modos de expressão destoem do que é regulado e valorizado
socialmente, como o próprio da cultura. Na colagem, podemos ver traços desse preconceito
sofrido por pessoas que vivem em espacialidades da desigualdade no Brasil, sem as mesmas
oportunidades de acesso a bens materiais e simbólicos, que lutam contra o preconceito
e a exclusão diariamente. Ao fazer lembrar dos desafios e das formas de racismo vividos,
42
sobretudo, pelo povo negro no Brasil, a artista e ativista Geo Coelho traz em sua obra fortes
críticas ao Estado, com relação ao modo como ele opera no Brasil. Ainda que expresso
como direito fundamental na Constituição, dizer não é fazer quando se fala em cultura,
sua produção e/ou do acesso a ela, pois o Estado opera de forma antidemocrática, desigual,
centrado numa racionalidade capitalista neoliberal que transforma tudo em serviços vendidos
e comprados no mercado e, portanto, em privilégios de classe, assim, não existe garantia dos
mesmos direitos à cultura para todos e de forma isonômica.
Para Chauí (2008), no Brasil a democracia é reduzida a um regime político que se
manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes
e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais, mas que na sua concepção,
democracia se trata de algo bem mais profundo, e a considera como:
Forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos
perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vêlas discutidas, aceitas ou recusadas em público). Forma política na qual, ao contrário
de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações
institucionais para que possa exprimir-se. (...)
Forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando
o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem
como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais
introduzindo, para isso, a idéia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais).
(...)
Pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente
aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua
existência e, consequentemente, a temporalidade como constitutiva de seu modo de
ser. (...)
Única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a
evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu
alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização
jurídico-política que favorece a classe dominante. (...)
Forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só
pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela
existência das eleições, pois estas (contrariamente do que afirma a ciência política) não
significam mera “alternância no poder, mas assinalam que o poder está sempre vazio,
que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido
um mandato temporário para isto (CHAUÍ, 2008. p. 67-68).
E completa afirmando que para um país poder ser considerado democrático, precisa ter
além de eleições, partidos políticos, e divisão dos três poderes, um funcionamento legítimo
dessas instituições que acarrete igualdade de direitos para todas as pessoas, em todos os
43
segmentos. Podemos notar como a colagem postada por Geo Coelho, na página Cola da
Preta, roga por uma sociedade realmente democrática. A colagem é um arranjo semiológico
complexo, faz retornar e deslizar inúmeros jogos de memória, possibilitando ao olhar do
analista do discurso inúmeros trajetos de descrição. Da colagem, sobressai o jogo imagético
e semântico produzido entre aquilo que faz lembrar a bandeira nacional e a disposição, em
primeiro plano, de uma garota negra erguendo o braço e de punho fechado. Entre esses dois
arranjos na imagem, a arte opera sentidos entre a paráfrase e a polissemia (ORLANDI, 2008),
em sua constituição, formulação e recepção. Na colagem, entre as imagens da bandeira e da
garota perfila-se um trajeto temático em torno das condições históricas daqueles que estão,
como anota a artista, na periferia da democracia, aqueles a quem a igualdade de direitos e
de acesso não passa de textualidade na ratio juris. Entre o imagético e o verbal da arte, temos
aquilo que Dondis (2015) aborda como sintaxe da linguagem visual.
A discursividade cumpre sempre um movimento que se inicia com a formulação, passa
pelas instâncias de circulação e chega à recepção, situando-se aí, grosso modo, a travessia dos
sentidos, assim descrita por Dondis (2015, p. 85):
Expressamos e recebemos mensagens visuais em três níveis: o representacional – aquilo
que vemos e identificamos com base no meio ambiente e na experiência; o abstrato – a
qualidade cenestésica de um fato visual reduzido a seus componentes visuais básicos
e elementares, enfatizando os meios mais diretos, emocionais e mesmo primitivos
da criação de mensagens; e o simbólico – o vasto universo de sistemas de símbolos
codificados que o homem criou arbitrariamente e ao qual atribui significados.
Mais do que uma verdade, que flutua sentidos, como nos lembra Foucault (2007),
a discursividade possui uma história. É tarefa do analista fazer a história do enunciado,
no caso, buscar entender como a colagem de Geo Coelho faz retornar, para redefinir,
uma historicidade de adversidades no Brasil. Geo Coelho reproduz toda uma imagética
de contestação a um Brasil opressor e de governamentalidade desfavorável ao trabalhador
e mantedora da desigualdade de classes no país, efeito de sentido artístico e político
correlacionado, por exemplo, ao saber sociológico produzido por Jessé Souza. Em A elite do
atraso, Souza (2017) vai nos mostrar como determinadas práticas discursivas e não discursivas
no Brasil culminaram com o imaginário social do “jeitinho brasileiro”, metáfora para o
que o sociólogo chama de patrimonialismo, ideia-força que, segundo o autor, mascara as
relações de saber e poder que perpetuam as formas de racismo e as desigualdades estruturais
da sociedade brasileira.
Ao seu modo, a colagem denuncia uma sociedade autoritária, na qual muitos só podem
associar cidadania como um correlato, um resto das formas de dominação e dos privilégios
de classe, historicamente perpetuados em nosso país. Ao levantar essa crítica, a artista retoma
a estrutura do racismo nacional, mas a desloca e a subverte. É especificamente neste ponto
44
que a materialidade discursiva artística insinua outra vontade de verdade, constitui uma
expressão de saber e de poder para provocar o olhar para vermos a possibilidade de outra
sociedade em que a igualdade entre os diferentes é reivindicada, e, mais, sociedade com
políticas de cotas, mais educação, emprego, menos pobreza e sem fome. A arte cumpre sua
função social ao dar visibilidade à espacialidade de repressão e exclusão, em sua maior parte
habitada por pessoas negras, que constituem a maioria da população brasileira, vivendo na
mais completa condição de desigualdade. Até quando a violência, a exclusão, a opressão e a
democracia falha irão vencer?
Nos efeitos da arte colagem, jogos de memória retratam a realidade vivida pelos menos
favorecidos, pelos pretos, pelos pobres, pelos índios, desempregados, sem teto, os sem acesso
à cultura, à educação de qualidade e ao lazer. Na arte colagem de Geo Coelho, lemos
elementos como a frase na bandeira do Brasil, que diz “vidas negras importam”, outro efeito
metafórico, um slogan no lugar de outro, inscrição outra e protesto contra a violência e a
opressão sofridas pelos menos favorecidos. Outro elemento visível é a busca por direitos, já
que na imagem aparecem palavras como cotas sociais, educação, emprego, constituindo um
trajeto temático de resistência e reivindicação: a maioria da população, que é negra, paga
a conta de uma história nacional marcada por desigualdades. À minoria, não negros, mais
privilégios.
Uma outra inscrição linguística faz síntese na arte: “Até quando a violência vai vencer?”,
esse trecho diz muito sobre o que foi escrito por Chauí (2008), pois mostra a violência que
cai sobre os menos favorecidos, dos direitos que são roubados, da dignidade que lhes é
arrancada, a negação do direito de ir e vir e das oportunidade que lhes faltam por conta
de sua classe, de sua cor, de sua cultura, da violência que lhes é imposta, das vidas que
lhe são arrancadas, tudo isso, que constitui o Brasil e ainda é chamado pela sociedade de
“democracia”. E a imagem de uma criança preta, com a mão erguida pedindo por direitos
retrata bem as ideias de Chauí (2008) sobre o que devia ser a democracia: direitos iguais para
todos, equidade em todas as instâncias da experiência subjetiva, vidas tratadas com a mesma
importância, sem a negação das formas de distinção entre as pessoas, sem desigualdade, sem
opressão e sem preconceito. Ainda nos termos da filósofa brasileira, a cultura como o fazer
criativo e político humano, como aquilo que dota de significado a experiência de um grupo,
de uma classe, de uma comunidade e de uma nação, é um direito fundamental e um dos
pontos mais visíveis por onde podemos pensar a fragilidade da democracia brasileira. Não
por engano, é justamente este efeito de verdade e de resistência que se inscreve na colagem
aqui trabalhada, pois há nela um ativismo cultural, uma exigência para que todos, sobretudo
o que se subjetivam à margem, possam ter sua histórica escrita e visibilizada, legitimada. A
arte é um não formulado com muito engajamento sócio-histórico, um jogo de saber e de
poder contra formas de silenciamento de um racismo em sentido amplo que estrutura a
cultura e as sociabilidades nacionais.
45
Racismo estrutural
Antes de avançarmos mais na análise, é importante discorrer sobre outros conceitos
ilustrados e problematizados na arte de Geo Coelho, como o racismo, que para muitos não
existe, mas que se apresenta de forma direta ou indireta nas relações sociais, nas instituições
e até na construção de uma sociedade. Almeida (2019) define que “o racismo é uma forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento,” (ALMEIDA, 2019, p. 22),
ou seja, a segregação é justificada pela raça do indivíduo ou grupo de indivíduos. O autor
descreve em seu livro Racismo estrutural (Feminismos plurais), diferentes concepções para o
racismo. A primeira delas é a concepção individualista, que compreende o racismo como
um fenômeno individual, que poderia ser resolvido com a punição ou educação. A segunda
é a concepção institucional, na qual o racismo também está presente nas instituições, pois
elas “carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as instituições
também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e grupos que querem
assumir o controle da instituição.” (ALMEIDA, 2019, p. 27). Nesse aspecto, cabe observar
que escolas e universidades internalizam o sistema opressor. Ou seja, os conflitos raciais
também estão presentes nas instituições de ensino.
Além disso, o racismo “se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes
que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial
ao qual pertençam.” (ALMEIDA, 2019, p. 22). O autor considera que o racismo, além de
ser uma forma sistemática de discriminação, manifesta-se de forma consciente ou não. Ou
seja, a discriminação não acontece apenas quando há intenção, mas também sem que haja
consciência dessa violência. Isso acontece porque o racismo não é apenas uma manifestação
individual ou de um grupo específico, ou ainda uma “anormalidade” ou patologia de algumas
pessoas, nem tampouco é combatido apenas com a responsabilização jurídica de um único
indivíduo, como mostra a concepção individualista. O racismo, na verdade, vai além da ação
individual e está presente nos diferentes setores da sociedade como uma construção, uma
estrutura, por isso a dificuldade em combatê-lo. De acordo com a concepção institucional
“o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado do
funcionamento das instituições,” (ALMEIDA, 2019 p. 26), pois estas atuam, mesmo que
indiretamente, na reprodução dos privilégios e desvantagens de uma raça em relação a outra.
A concepção institucional trouxe avanço nos estudos das relações raciais pois permitiu
que o racismo fosse reconhecido como algo muito maior que a ação individual, já que
está presente nas instituições, por sua vez, situadas numa estrutura social pré-existente cuja
historicidade deve ser compreendida como de longa duração. Então, levamos em consideração
que “as instituições são apenas a materialização de uma estrutura social ou de um modo de
46
socialização que tem o racismo como um de seus componentes orgânicos.” (ALMEIDA,
2019, p. 31). Ou seja, o racismo é parte da ordem social e um problema nacional cuja
historicidade ressoa em práticas discursivas e não discursivas atuais. Essa perspectiva descreve
outra concepção do racismo, a concepção estrutural, na qual se defende que o racismo é
decorrente da própria estrutura social e “a viabilidade da reprodução sistêmica de práticas
racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade.” (ALMEIDA, 2019,
p. 33). Esse fundamento é ilustrado em diversos ambientes e situações, como a supremacia
branca no controle das instituições e nos espaços de poder e prestígio, nas relações pessoais,
na construção de estereótipos, nos discursos e atitudes onde o racismo aparece de forma
velada ou na segregação social, que está articulada com o racismo.
O racismo articula-se com a segregação racial, ou seja, a divisão espacial de raças em
localidades específicas – bairros, guetos, bantustões, periferias etc. – e/ou à definição de
estabelecimentos comerciais e serviços públicos – como escolas e hospitais – como de
frequência exclusiva para membros de determinados grupos raciais (ALMEIDA, 2019,
p. 24).
De acordo com o autor, da mesma forma que em alguns ambientes há predominância
de pessoas brancas, em outros acontece o contrário, as pessoas negras são maioria, como nas
favelas retratadas na colagem de Geo Coelho. Provoca-nos a arte para o debate que coloca
em causa a organização dos espaços de saber e de trabalho no Brasil, pois historicamente
ainda não fizemos as rupturas necessárias em relação ao fato de que, nas universidades e nos
postos de trabalho com melhores remunerações e condições laborais, a predominância é de
pessoas brancas. Inversamente, o povo negro permanece sendo maioria entre analfabetos, em
empregos com baixa remuneração ou desempregados. Segundo o IBGE (2019), a despeito
da distribuição de renda e condições de moradia, nota-se que a quantidade de pessoas negras
em condições abaixo da linha de pobreza é bem maior que a de pessoas brancas, assim como
a taxa de analfabetismo é maior entre pessoas pretas. Já na representação política, onde os
negros e pardos são apenas 24,4%, e nos cargos de gerência, onde há apenas 29,9% de
negros e pardos, os brancos são maioria, mesmo que os negros e pardos representem 51%
da população brasileira, como é destacado na materialidade discursiva artística em análise.
Os pontos em destaque representam um trajeto temático que produz um grito de
resistência na expressão política da professora historiadora Geo Coelho. Não é demais
apontar a importância de se observar o contexto ou as condições históricas de possibilidade
(FOUCAULT, 2007) onde a artista está inserida, pois é o lugar de fala assumido, a função
enunciativa de ativismo político em favor das questões e conflitos da população negra, aquilo
que possibilita o surgimento de uma arte que serve como denúncia das desigualdades sociais.
Além disso, a arte provoca efeitos de sentido que são possíveis a partir do conhecimento ou
da vivência dessas injustiças, um modo de pensar assumido na colagem.
47
Esses dados nos fazem refletir se os políticos que colocamos no poder realmente
representam a população brasileira ou apenas a parcela que detém os privilégios e, dessa
forma, refletirmos o que estamos fazendo para que o poder deixe de ser centralizado e a
dimensão da representatividade deixe de ser uma utopia democrática. Além disso, podemos
a colagem em seus efeitos de sentido permite refletir a questão das cotas raciais como medida
de reparação aos danos causados à população negra ao longo da história. Como consequência
do racismo, temos a segregação de um povo em ambientes e condições menos favorecidas,
produzindo uma geografia nacional visivelmente perpetuadora de desigualdades.
Esse cenário de desigualdades, construído ao longo de muitos anos, torna a vida dos
pretos muito mais difícil. Como conta ainda Almeida (2019), a atualidade faz ressoar as
sequelas do racismo estrutural e das práticas de discriminação direta e indireta no decurso
da história, produzindo uma estratificação social, passada de geração em geração, “em que
o percurso de vida de todos os membros de um grupo social – o que inclui as chances de
ascensão social, de reconhecimento e de sustento material – é afetado.’’ (ALMEIDA, 2019,
p. 23). Portanto, torna-se naturalmente mais difícil a ascensão social e o sustento material
para pessoas negras, não por falta de capacidade, mas em consequência de uma segregação
que acontece desde a chegada dos pretos ao Brasil, pela condição de escravizados na qual
foram colocados e pelos inúmeros impactos históricos do discurso e das práticas em torno
de uma infundada e irracional supremacia branca.
Discurso de resistência na colagem de Geo Coelho
Para Vargas e Souza (2011), a colagem tem sido, nos últimos 20 anos, uma das marcas
da linguagem digital. Com o uso da internet temos acesso cotidianamente a esse tipo de arte.
Neste dinamismo das linguagens digitais, é preciso levar em conta o sincretismo do verbal
com o imagético, posto que dessa dualidade constitutiva derivam o design e os sentidos em
enunciados como o que estamos analisando. Sobre o design, Vargas e Souza mencionam que
Desde a expansão dos meios de comunicação de massa no século XX, o design tem se
definido em função das tecnologias de artes gráficas, que promoveram a manipulação e
a colagem de elementos heterogêneos de origens diversas como procedimentos básicos
de composição (VARGAS & SOUZA, 2011, p. 57).
Entretanto, a colagem já existia antes mesmo da tecnologia, visto que era possível ver
esse tipo de técnica empregada em pinturas, como por exemplo a obra Fruteira e copo de
1912, feita por Georges Braque, em fotografias, vídeos e etc. De acordo com Vargas e Souza
48
(2011), o processo da colagem ocorre por meio de duas ações, a fragmentação e a junção
desses fragmentos. A tecnologia contribuiu bastante para que esse tipo de arte viesse a ser
ampliado, desenvolvido e exposto nas diversas plataformas digitais da internet, como o
Facebook, o YouTube, o Instagram, entre outras.
Na colagem feita por Geo Coelho, podemos ver a contundência de um discurso
reflexivo quanto às questões que envolvem o racismo. Na imagem, vemos diversos elementos
que envolvem problemáticas do racismo, retomadas e criticadas pela arte como exercício de
uma enunciabilidade antirracista. Atentando-nos à garota negra com um punho erguido,
vemos materializar-se na historicidade que lhe é própria um gesto que já nasce representando
modos de contestação e de protesto. Segundo Silva (2020, p. 45), “[...] na arte gráfica de
resistência, a imagem da mão foi e é um dos símbolos mais utilizados e inclui o punho
cerrado ou punho erguido.”. A arte de Geo Coelho é grito de resistência entoado pelo povo
negro. A figura da criança negra em sinal de resistência representa a contrapartida do povo ao
racismo institucionalizado e estruturado, consequência da escravização de seus antepassados.
Na camisa da criança, um nome político que se tornou simbólico, o de Marielle Franco,
ex-vereadora preta e favelada, que lutou pelos direitos do povo e foi assassinada. Ainda sobre
a questão da utilização e simbologia do punho erguido ou cerrado, Silva (2020) menciona
que
Destacamos sua utilização no campo das artes gráficas de protesto, que se perpetuou
no punho militante da esquerda e da direita, nas imagens de mãos de movimentos
antirracistas e feministas e também como ferramenta gráfica para o capitalismo e
grupos conservadores. O punho tornou-se universal e o contexto passou a ser crucial
para entender seu significado (SILVA, 2020, p. 63).
O símbolo também é associado ao movimento comunista. Porém, no contexto dos
movimentos sociais ele ganha um sentido diferente, que não se resume a um sistema político.
Sendo assim, o punho fechado tem uma significação universal que entra em diálogo com
nossas memórias e nos comunica sobre a resistência de determinado grupo ou ideologia, seja
na luta antirracista, antifascista ou outros movimentos. Portanto, quando aplicado ao contexto
da arte de Geo Coelho, o punho cerrado na performance da garota produz um efeito de
sentido em prol do movimento de resistência antirracista em favor da população negra.
Além do elemento mencionado anteriormente, na arte encontramos um recorte
de uma fotografia da favela, como forma de trazer à memória as periferias brasileiras e as
problemáticas sociais que a envolvem. No funcionamento dessa expressão política da arte,
fica ressaltada, a dinâmica da correlação entre os significantes formando um todo dotado de
sentido, uma atualização e reformulação das estruturas sociais, algo que só é possível ler na
correlação com o mundo, com o presente, pois é à nossa temporalidade e espacialidade que
a arte de Geo Coelho faz referência ao enunciar uma crítica.
49
Na bandeira do Brasil, no lugar onde costumamos ver a frase “Ordem e progresso”,
temos em destaque a frase “Vidas negras importam”, como forma de protesto a todo o
processo de inferiorização das vidas dos pretos e das pretas do Brasil, que não pode ser
caracterizado como ordem nem progresso. A frase representa um movimento iniciado
com a comunidade afro-americana, com a frase original “Black Lives Matter”, e tornou-se
universal. Nesse outro efeito metafórico, inscreve-se outro jogo de memória, que torna visível
a crítica aos projetos de governamentalidade nacionais que cada vez mais produzem formas
de racismo e desigualdades sociais, num país onde os ventos da escravização infelizmente
ainda sopram.
De acordo com o historiador Fausto (2013), em obra na qual escreve sua história
do Brasil, o autor menciona que no decorrer da escravização africana ocorrida no Brasil
Colonial, cerca de quatro milhões de africanos foram trazidos para cá. É importante
mencionar também que além dos africanos, os indígenas eram escravizados e trabalhavam
em condições desumanas, historicidade que não conheceu rupturas significativas no que
concerne, sobretudo, ao modo como as subjetividades dos pretos e dos índios são colocadas
em discurso fora dos seus referenciais simbólicos e dos seus espaços de saber e de poder.
Diante disso, é nítido o quanto a escravização deixou sequelas que remanescem até os dias
de hoje nas formas de um racismo estrutural. A metaforização no deslize de “Ordem e
progresso” para “Vidas negras importam”, constrói como efeito de sentido o clamor a uma
nova ordem e progresso, na qual a valorização da população negra do Brasil seja efetivada e
ampliada.
Ainda observando os elementos constituintes da bandeira, vemos a mira de uma arma
sobre a bandeira do Brasil, que se encontra com muitas perfurações de tiros, que fazem o
sangue escorrer sobre ela, trazendo à tona a violência ao povo negro como uma “mancha” na
história do país. A problemática da violência e do derramamento do sangue do povo negro é
algo que ocorre desde a época da escravização e ainda permeia os dias atuais. As balas no lugar
onde normalmente há estrelas representam a violência contra esta população e grande parte
dessa violência vem do sistema policial, mesmo com a pressão dos movimentos sociais e a
repercussão dos casos de homicídio, principalmente de jovens. Vale lembrar que as violências
não se resumem a tiros ou assassinatos, há violência também na falta de oportunidades, no
preconceito e na falta de reparação de toda a problemática em torno das consequências da
escravidão e do racismo estrutural. A bandeira do Brasil é reconstruída, pois, com elementos
e questões da atualidade centrais para o país, construído em cima de corpos negros, com um
sistema que mata seu próprio povo. Sendo assim, a imagética das balas em lugar de estrelas
metaforiza táticas de governo que produzem a violência nas favelas.
50
Além de trazer à tona as violências cometidas com o povo negro brasileiro, a colagem
mostra algumas informações que servem como pilar para um discurso de militância.
As frases estão com fontes de letras diferenciadas, trazendo destaque às problemáticas
mencionadas. Podemos ler na imagem “51% da população do Brasil é negra e a outra
metade tem o dobro de oportunidades”. O dado revela a injustiça social com a grande
parte da população e a centralização do poder pela branquitude, o que justifica o discurso
de defesa das cotas raciais. Dos elementos linguísticos que compõem a colagem, vemos
também as palavras “Pobreza” e “Fome”, que se referem às condições nas quais a maioria dos
negros estão submetidos atualmente na sociedade brasileira. Além do discurso de denúncia à
violência, às desigualdades e ao racismo, as frases e temáticas que compõem a imagem fazem
reivindicações importantes, como já antecipado acima, como “Cotas raciais”, “Educação”,
“Emprego” ou a frase “Até quando a violência vai vencer?”.
As palavras “Democracia e periferia” nos convidam a pensar sobre essa relação.
Facilmente é percebido o efeito de sentido pretendido pela autora da arte, ao interpretar a
realidade dos espaços que retrata, pois as condições em que vivem e resistem as pessoas das
periferias certamente não possibilitam a construção da ideia de país democrático. Enquanto
uma pequena parcela da população ostenta os maiores salários e as melhores condições
de trabalho, grande parte da população vive à margem e trabalha muito mais apenas para
garantir a sobrevivência, muitas vezes sem a possibilidade de ter momentos de lazer ou
garantir os bens materiais e simbólicos que necessita. Além disso, muitas vezes são encarados
socialmente como bandidos e assassinados pela polícia injustamente. Não à toa, as taxas
de violência e os casos de homicídio da população negra são bem maiores em comparação
a população branca. Segundo o IBGE (2019), em todas as faixas etárias, os negros têm
um número de mortes por homicídio bem maior que os brancos, com destaque aos jovens
pretos e pardos de 15 a 29 anos. Para eles, a taxa chegou a 98,5% em 2017, enquanto
para os jovens brancos era 34,0%. Considerando jovens pretos e pardos do sexo masculino
essa taxa chegou a atingir 185,0%. Observamos que os dados são do informativo sobre
“Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, do IBGE (2019).
Os respectivos dados, que fazem parte da historicidade do enunciado artístico
estudado, mostram e comprovam que há uma grande diferença e desvantagem no que tange
ao tratamento à população preta que vive no Brasil em comparação com a população branca.
Na periferia vivem as pessoas de baixa renda e as condições do local, que figuram na colagem,
já demonstram algo oposto ao que seria democrático no acesso a moradias no Brasil. Como
mencionamos anteriormente, de acordo com Chauí (2008), o conceito de democracia no
Brasil acaba se resumindo na maioria das vezes ao processo eleitoral, quando na verdade o
conceito de democracia possui uma verticalidade histórica muito forte, devendo expressar
uma disposição de igualdade em todos os aspectos da vida humana.
51
Considerações finais
Partindo de uma escolha diante dos temas relevantes da política e do status
democrático no Brasil, trouxemos, além do ponto de vista de importantes autores, que
fundamentaram nosso ponto de vista, demos visibilidade à arte colagem da professora e
artista Geo Coelho, da página Cola da Preta. Esta escrita de análise do discurso resultou de
uma descrição minuciosa das temáticas presentes na arte, de modo que encontramos muitos
elementos de memória e historicidade entre as categorias e discursividades presentes na
materialidade, além do poder que a imagem tem de descrever vários problemas existentes
em nossa sociedade, tornando possível apreendermos uma correlação entre o saber da arte
como crítica e desconstrução do discurso racista e o saber acadêmico que atravessa as obras
que tomamos como fundamentação teórica.
Evidenciamos, portanto, na prática discursiva artística, uma política do dizível e do
visível que atualiza memórias e estruturas sociais para questioná-las, lançar sobre elas uma
torsão de saber e poder. E o faz sob a forma de uma grande interrogação, como ato de
resistência e de protesto cada vez mais necessário nos dias atuais. O saber que a colagem de
Geo Coelho atualiza e assume é nitidamente uma expressão de antirracismo, um lance de
retorno e desestabilização de estruturas sociais e históricas há muito em voga no Brasil.
O diagnóstico e a crítica do presente são dois atos materializados na arte aqui
trabalhada. Desdobra-se, a partir daí toda uma enunciação reflexiva, uma fala de dentro, de
uma mulher, negra, ativista e professora de história, alguém que nos deixa como mensagem
última e primeira a via do esclarecimento político e a postura sempre ávida para a crítica
ao cenário político e democrático brasileiro. Permaneçamos em alerta, engajados teórica
e socialmente na luta por melhores condições de existência e por uma vida mais artística,
por mais saberes e atos de resistência e de contrapoder, reclamando políticas que possam
realmente colocar a população negra no centro positivo das formas de governamentalidade.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Feminismos Plurais; coordenação de Djamila Ribeiro.
São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
CHAUI, Marilena. Cultura e democracia. En: Crítica y emancipación: Revista latinoamericana de
Ciencias Sociales. Año 1, no. 1 (jun. 2008- ). Buenos Aires: CLACSO, 2008.
52
DONDIS, Donis. A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins fontes, 2015.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2013.
FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. IN: RABINOW, Paul e DREYFUS, Hubert. Michel
Foucault. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes? In: FOUCAULT, Michel. . Ditos e escritos II. Arqueologia
das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2000. p. 335-351.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2009.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e Pesquisas: Informação Demográfica
e Socioeconômica, n.41. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019.
PÊCHEUX, Michel. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In:PÊCHEUX, Michel. . Análise do
discurso: Michel Pêcheux. Campinas/SP: Pontes editores, 2011. p.141-150.
ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é linguística. São Paulo: Brasiliense, 1986.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Texto e discurso: formulação e circulação dos sentidos. Campinas/SP:
Pontes editores, 2008.
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas/SP: Pontes, 2009.
SILVA, Daniel. Escravidão no Brasil Colonial. História do Mundo. Disponível em: https://m.
historiadomundo.com.br/amp/idade-moderna/escravidao-no-brasil-colonial.htm. Acesso em 10
de dezembro de 2020.
SILVA, Rangel Rubens. A mão como símbolo político nas artes gráficas e visuais. Revista Ícone,
Recife, v. 18, n. 1, p. 41-65, jan/abr, 2020.
SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. São Paulo: Editora Leya, 2017.
VARGAS, Herom; SOUZA, Luciano de. A colagem como processo criativo: da arte moderna ao
motion graphics nos produtos midiáticos audiovisuais. Revista Comunicação Midiática, v.6, n.3, p.
51-70, set./dez.2011.
53
CAPÍTULO 4
Memória Viva: as lutas das mulheres do Nordeste
Canavieiro
Valéria Costa Aldeci de Oliveira
Introdução
As reflexões aqui produzidas fazem parte de uma pesquisa mais ampla, que visou ao
resgate da memória das lutas no campo, mais precisamente nas greves de 1979 e 1980, no
nordeste canavieiro e do ABC Paulista, no contexto do surgimento do novo sindicalismo.
O estudo conta com a colaboração de pesquisadores (as) de cinco universidades (UFRJ,
URRJ, UFABC, UFPB, UFCG), e tem como objetivo situar de que maneira as greves dos
canavieiros da Zona da Mata Pernambucana e as greves do ABC de 1979/1980 paulista
constituíram-se em lutas inovadoras, com práticas que estavam envolvidas numa dinâmica
mais ampla da sociedade brasileira por redemocratização e, sobretudo, por maior justiça
social.
O presente artigo tem o propósito de resgatar a memória da organização sindical no
nordeste canavieiro pela ótica das relações sociais de gênero e da memória da participação
das trabalhadoras rurais, que são analisadas aqui sob o parâmetro das assimetrias entre os
gêneros, destacando o aspecto relacional da interação de homens e mulheres no movimento
de trabalhadores rurais. Cabe ressaltar que a constituição da classe trabalhadora no campo
do nordeste brasileiro, sua cultura, tradições, são enredadas, tecidas em relações sociais de
opressão, mas também eivadas de reciprocidade, de compadrio, que escapam as análises
estritamente econômicas, ou dos analistas “citadinos” (apesar da falsa dicotomia entre
cidade e campo, visto que muitas tradições do campo também aparecem na classe operária
das cidades, dada as migrações ocorridas no Brasil).
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-4
54
Inspirados na análise de Thompson (2012), considera-se que a classe de trabalhadores/
as rurais no nordeste brasileiro é constituída por meio das tradições. Ao presenciar os
trabalhadores e trabalhadoras rurais reunidos na pesquisa Memórias Canavieiras, realizada em
Pernambuco, identificamos um sindicalismo que tem lugar para os afetos, para as emoções:
o canto, a poesia, a religiosidade. O grupo de mulheres e homens no encontro realizado pela
equipe de pesquisa em Carpina/PE evidenciou memórias de uma longa trajetória de lutas
contra a opressão dos patrões, mas também uma rede de solidariedades, de amizades antigas,
de casais de sindicalistas.
Nesse sentido, cabe salientar que os sindicatos rurais não possuem somente o objetivo
político e instrumental de defesa das condições materiais de existência. Apesar de que, no
nordeste canavieiro, essa é uma questão de vida ou de morte, dada as condições de miséria
experimentada pelos trabalhadores e trabalhadoras rurais, em decorrência da concentração
fundiária, da herança do escravismo, da violência, da expropriação dos pequenos proprietários.
Nos municípios do nordeste brasileiro, mais particularmente em Pernambuco, o espaço do
sindicato é tido como um porto seguro para os pobres. Nos casos de violência praticadas
pelos usineiros, os trabalhadores não buscam a delegacia, pois, por muito tempo, o Estado,
a polícia estavam a serviço dos grandes usineiros, e, desse modo, os trabalhadores buscam
os sindicatos. Para resolver conflitos de diversas ordens, o ponto de referência é o sindicato,
que assume uma função de destaque nos pequenos municípios.
Mesmo quando, em outras épocas, o sindicato assumiu serviços odontológicos,
educacionais, isso não significou que tivesse um caráter estritamente assistencialista. Na
verdade, ao incorporar tais tipos de atividade, os sindicatos rurais tentaram ressignificar o
que muitas vezes lhe foi imposto pelo Estado e supriu, mesmo precariamente, a completa
ausência de direitos sociais básicos, negados aos pobres: saúde e educação, dentre outros.
Ao assumir esse papel, desde o período das Ligas Camponeses, o sindicato passou a ser uma
ameaça política, também pela concorrência a função antes exclusiva dos patrões de “oferecer
dádivas” aos trabalhadores, no sentido que Marcel Mauss (1925, trad. 2012) dava a esse
termo, tais quais: caixões, dentista, proteção, dentre outros. Marcel Mauss elucida que as
dádivas podem explicar a sociedade em seu conjunto, porque reúnem questões religiosas,
políticas, econômicas, matrimoniais e jurídicas e, portanto, não podem ser vistas somente
no seu aspecto econômico, mas como um fator que pode falar muito da sociabilidade de
um povo.
No tocante às assimetrias de gênero, o sindicalismo rural reproduz os valores de uma
sociedade androcêntrica. No contexto da Zona da Mata canavieira, tomamos as noções de
Bourdieu (2002), da dominação masculina e também da honra, realizando uma socioanálise
tanto dos dominadores explícitos, violentos, que expressam por meio da força física as
55
opressões de classe e gênero, a exemplo das práticas de repressão adotadas pelos usineiros,
assim como da dominação que se expressa, na própria classe trabalhadora, por meio da
violência simbólica, da violência suave, invisível, imperceptível às suas próprias vítimas,
experienciado mesmo no interior do movimento sindical, por exemplo.
No que se refere ao conceito de gênero, Scott (1989) possibilita alçar as relações
de gênero a uma categoria de análise e, desse modo, superar a limitações teóricas, por
representar uma categoria própria dos estudos feministas. Para Scott (1989, p. 21) “gênero
é um elemento constitutivo das relações sociais baseados nas diferenças percebidas entre os
sexos e uma forma primeira de significar as relações de poder”. O gênero, nessa perspectiva
relacional, constitui-se em uma categoria de análise articulada a outros arcabouços categoriais,
tais como: classe e raça. Desse modo, possibilita promover uma socioanálise das questões
levantadas pelos oprimidos, buscando o entendimento do sentido da opressão (SCOTT,
1989, p. 4).
Com inspiração nos estudos de Lobo (2011), reflete-se sobre a dificuldade do
movimento operário incorporar a questão das operárias, e articular os estudos de classe e
gênero. Permanece uma tendência em considerar a classe operária homogênea, como um
comportamento unívoco.
Essa homogeneização da classe é sustentada por uma concepção que não leva em
consideração as situações concretas de trabalho, a vida cotidiana e a experiências determinadas
dentre um conjunto de relações sociais.
Para explicitar melhor esse contexto, retoma-se um breve histórico das lutas rurais e as
relações sociais de gênero na constituição do sindicalismo rural. Na Paraíba e Pernambuco,
buscando a devida inserção das mulheres na história do sindicalismo, sem necessidade de
apartá-la como uma história específica, sem participação efetiva nas grandes lutas travadas
pelo sindicalismo pernambucano.
Formação da cultura dos trabalhadores/as rurais e sindicalismo: da
invisibilidade das mulheres, a cena política
No nordeste canavieiro, evidenciou-se nesse artigo os fortes traços de exploração de classe,
de dominação de gênero e de discriminação racial, herança de uma sociedade escravocrata,
com grandes latifúndios em mãos de uma minoria poderosa e uma maioria de trabalhadores/
as com a cidadania negada, se comparado aos trabalhadores urbanos brasileiros, que têm
institucionalizado em lei seus direitos sociais desde 1943, com a CLT, enquanto os trabalhadores
rurais, os conquistaram somente em 1963, com o Estatuto do Trabalhador Rural.
56
No tocantes às relações de gênero, a Igreja católica conformou um puritanismo ao
papel da mulher e mãe, endossando um imaginário social também existente, onde a valentia
e uma cultura androcêntrica reforçam os valores da virilidade e honra masculina, inclusive
entre os homens das classes dominadas.
O espaço da mulher do campo esteve sempre numa condição de subalternidade, seja
entre as mulheres dos poderosos, seja nas casas das famílias pobres. A situação de classe
provocou relações de exploração entre as próprias mulheres, na medida em que as ricas,
muitas vezes, tratavam as serviçais quase como escravas.
No caso das trabalhadoras rurais pobres, o trabalho está vinculado aos seus papeis de
dona de casa e do cultivo no roçado de subsistência. Nas sociedades com valores tradicionais,
os papéis são predeterminados, não há questionamentos porque as funções familiares são
tidas como naturais e os fatos da vida familiar: o nascer, casar, ter filhos, o trabalho na roça,
o morrer são repetidos como se as vontades individuais não fossem importantes (SARTI,
2006 p. 43).
O homem é tido como o chefe da família e a mulher como chefe da casa. Ao chefe
da família é dada a função de providenciar o sustento e fazer a mediação com a sociedade,
principalmente nos assuntos em que honra familiar está em jogo, como em questões
materiais, tais como comercialização de produtos agrícolas. O trabalho da mulher na roça era
tido entre as famílias pobres para aqueles que se encontravam em extrema miséria, por isso
encarado como humilhante. Somente as viúvas e solteiras sem pais e irmãos eram aceitas no
trabalho de corte de cana, mas em nada era um motivo de orgulho. A exploração patriarcal
tida como horrenda, conforme o modelo de organização societária moderna é naturalizado
e a mediação dos homens nos assuntos mais corriqueiros preserva a honra familiar nas
famílias pobres do campo.
No trabalho entre os homens pobres, o papel de provedor é questão de honra, como
afirma a canção de Fagner: “E sem o seu trabalho, o homem não tem honra e sem a sua
honra, se morre e se mata, não dá para ser feliz, não dá para ser feliz [...]’’.
Desse modo, as atribuições das trabalhadoras rurais são vinculadas a casa e ao roçado
de subsistência, se houver. No eito o trabalho feminino é encarado como uma “ajuda”. A
mão de obra feminina e as crianças e jovens não tem acesso ao salário. Somente o homem, era
considerado o representante da família e recebe o salário. Como os direitos dos trabalhadores
do campo só foi considerado em meados dos anos 1960, a condição do próprio trabalhador
homem era de exploração extrema. No trabalho do eito da cana, o máximo permitido às
mulheres era semear cana e o adubo. Para o trabalho da limpa e o corte da cana era preciso
autorização do marido (SIGAUD, 1979, p. 64).
57
A partir dos anos 1960, essas marcas históricas de sujeição da mulher no campo
também impregnaram as práticas de um sindicalismo nascente. O sindicalismo do nordeste
canavieiro, nos seus primórdios, reproduziu as relações sociais de gênero inscritas no trabalho
rural. No sindicato, o trabalho das mulheres era também considerado uma “ajuda” das
esposas e filhas.
O Partido Comunista já possuía uma formulação de discurso de participação das
mulheres no sindicalismo rural, mas considerava uma questão secundária em relação aos
desafios da luta de classes. Nos anos 1950, já existia a Federação das Mulheres do Brasil,
apoiada pelos comunistas. (ABREU E LIMA, 2003, p. 223).
No campo, os sindicalistas consideravam que se homem já era sindicalizado não
precisaria a mulher se filiar porque participava como sua dependente. Ademais o sindicato
não era visto como um lugar adequado às mulheres. A FETAPE não se preocupava com a
participação das mulheres no mundo sindical. Mas o fato é que na qualidade de esposas,
funcionárias foram participando da vida sindical e, ao se inserir nas lutas passam a perceber
a própria opressão experimentada no espaço do sindicato. Era um paradoxo que foi sendo
percebido pelas trabalhadoras rurais. Os trabalhadores lutavam contra a opressão dos patrões,
mas eles próprios também eram opressores.
No tocante às esposas, em muitas situações a participação política ultrapassava os
limites da “ajuda” delimitados pelos homens. Foi o caso de Timbaúba, em Pernambuco,
1968, quando o presidente Severino Manoel Soares foi espancado e sua esposa Maria ficou
à frente do sindicato. Também teve Osana Carlos de Santana, mulher de Joaquim Camilo
Santana, que participava das atividades políticas e sindicais e inclusive foi presa na ditadura
militar (Abreu e Lima, 2003, p. 224).
A Paraíba, por outro lado, foi palco de lutas importantes e significativas para os
trabalhadores do campo, o que significou a adesão destes trabalhadores às organizações de
enfrentamento contra a ordem estabelecida. Na cidade de Sumé, por exemplo começaram
a se formar as Ligas Camponesas com o líder João Pedro Teixeira e sua esposa Elizabete
Teixeira, o que influenciou várias cidades e Estados na luta pela Reforma agrária. Alguns
anos depois, na cidade de Alagoa Grande, a luta da sindicalista Margarida Maria Alves,
torna-se símbolo da luta pela terra. Nas décadas de 1970-1980, a diversificação de espaços
ocupados e obstáculos a cargos de comando, apresentavam-se para as mulheres com poucas
alternativas profissionais e com diferenças salariais entre os sexos. Foi a partir destas décadas
que começaram a se tornar mais presentes o debate sobre as particularidades do trabalho das
mulheres no Brasil, e , como a inserção feminista nas lutas sindicais se tornaram relevantes
para a própria estrutura política do sindicalismo. Desse modo, no presente artigo, pretendese observar em que medida a memória das lutas das mulheres do Nordeste Canavieiro
contribuem para as pautas feministas na contemporaneidade.
58
Uma das nossas principais entrevistas na Paraíba foi um das lideranças sindicais de
Alagoa Grande, Soledade. Por meio de uma filmagem realizada pela equipe da pesquisa,
reviveu a memória das lutas engendradas naquele território. Inicialmente, entra no
movimento sindical através da influência de uma das companheiras de luta chamada Penha,
que realizava o movimento sindical juntamente com seu esposo e que começava aos poucos
a debater pautas sobre gênero no movimento rural. A necessidade de lutar pelo direito à
terra e sua paixão pela música levou Soledade a procurar o sindicato e a se inteirar da história
enquanto recurso para lutar por seu direto à vida e à liberdade. Recém separada devido à
violência doméstica que sofria, Soledade1 chega a Alagoa Grande-PB na década de 1970
com duas filhas e grávida, segundo ela:
Quando eu saí de Bananeiras, foi quando me separei, com duas crianças e grávida de
uma. Quando chego em Canafístula (Distrito de Alagoa Grande) com três meninas e
com uma viola, foi aquele preconceito. Aí pronto. Tinha mulher que não olhava nem
pra minha cara. Aí passava o dia trancada. Eu devo muito a Penha. Quem me libertou
foi a Penha. Eu era a ovelha negra por causa da viola, se fosse no tempo da fogueira, eu
tinha ido pra fogueira. Aí derrepente eu pego uma viola. Eu fui a vergonha da família,
porque era visto como coisa de homem, de vagabundo, de malandro, aí derrepente virei
a vagabunda (risos) (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019).
Soledade recupera a memória das lutas das mulheres por espaço político no sindicato. No
mesmo movimento de rememorar as lutas pela participação no sindicato, vai reconstituindo
participações de militantes relevantes para a experiência da Paraíba. Margarida Alves dispensa
apresentações, a companheira de Soledade de Alagoa Grande, que pagou com sua vida na luta
pelos direitos no campo, tornou-se símbolo das trabalhadoras rurais e, sua disposição para as
lutas serve de inspiração do nordeste canavieiro e no Brasil, reunindo muitas margaridas em
marchas consubstanciadas em lutas por igualdade de gênero, desenvolvimento sustentável,
agroecologia e tantos temas caros à vida no campo.
“[...] Aí quando eu cheguei aqui tinha aquele preconceito de que os homens quem
imperava nos sindicato. E a preocupação da companheira Penha e de Margarida
também, é que nas reuniões e nas assembleia que nós tínhamos.... hoje os sindicatos
mudaram. Mas no começo, na época, todo terceiro domingo do mês nós tínhamos uma
reunião, e no final do mês uma assembléia, mas todo terceiro domingo do mês, nós
tínhamos uma reunião com os trabalhadores. E nessas reuniões só se viam os homens,
mulher não, né. Então a preocupação de Margarida e da Penha é que não tinha mulher.
Aí o que é que os homens respondia? que ‘mulher não sabia falar’, que ‘mulher ia ver o
que em sindicato?’ ‘Não sabia falar, não precisava daquilo’. Então bastava ser o homem
filiado ao sindicato que a mulher era dependente dele. Então a gente foi lutando e
1 Texto publicado nos Anais de evento realizado em Campina Grande
59
quebrando esse tabu, hoje nós temos um grande número de mulheres sindicalizadas”
(Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande PB/2019).
Não muito conhecida como Margarida Alves, mas igualmente importante para
a militância das mulheres de campo, a figura de Penha é constantemente relembrada
por Soledade. Sua morte em acidente de carro junto com a professora Elisabete Lobo é
rememorada por Soledade como um momento muito triste em sua vida “foi difícil de
acreditar e de superar”. Penha está presente na vida de Soledade como a companheira que
alugou sua primeira casa, a companheira que chamou para participar das lutas por meio de
sua viola, visto que precisava sustentar suas filhas, a companheira das lutas por direitos em
Brasília. Penha se foi, mas sua memória está viva como a de Margarida Alves no cotidiano
das mulheres lutadoras da Paraíba e do Brasil. Relembrar suas lutas é encontrar o móvel
das lutas para novas gerações. Essas mulheres foram pioneiras como dirigentes sindicais na
região. Assumindo postos no sindicato de trabalhadores rurais, antes impensáveis para as
mulheres. Em universo de primazia masculina como o sindicato de trabalhadores rurais,
assumir a presidência do sindicato significava insurgência com uma ordem opressora,
inclusive entre os próprios trabalhadores rurais. Recuperar o significado dessa conquista é
recolocar continuamente as possibilidades de conquistas por uma maior equidade de gênero
no universo rural, local comumente associado a resistente às mudanças de costumes. Para
nossa entrevistada, participar do sindicato foi uma experiência significativa:
“Quando me separei que vim pra cá (Alagoa Grande), já vim com a cabeça virada nas
lutas. Quando cheguei aqui pensei ‘vou me filiar’ [...] Quando fui me filiar, quem
tava era Zé Horácio, não era Margarida ainda que tava na presidência... Aí começou a
me pedir documentos, eu disse: ta bom! Fui em casa e peguei tudo que era papel, das
crianças, de saúde e fui logo com raiva: ‘Aqui, só ta faltando a reservista, mas nunca vi
mulher ter reservista!’. Aí ele começou a rir [...] Depois da morte de Margarida, nós
vimos a necessidade de criar um grupo de mulheres aqui, aí criamos o MMB, que era
Movimento das mulheres do Brejo, no final de 83, pra 83,por aí assim [...] Aí foi quando
a gente começou a trabalhar com várias organizações. Em 92 foi a morte da Penha,
que morreu com a professora Beth Lobo. Então a gente começou a ter dificuldade
porque os últimos projetos passavam pela mão da Penha e não tinha prestado contas
quando morreu. Aí foi difícil fazer parcerias. Eu também fiquei muito abatida com
a morte dela. As parcerias diziam que era difícil porque tinha muitos movimentos,
aí davam preferência pro mais antigo. Então receberam o convite de participar junto
com o MMP – Pipirituba, eles tinham casa própria, aí ficou mais fácil, unificamos as
lutas. Em todos os municípios fazíamos eventos, saúde da mulher, saúde alternativa,
plantas, feminismo. O MT ainda continua, fraquinho, com essas crises que tão aí,
aí os projetos quase não são aprovados. MMTR – Nordeste também fazemos parte,
articulando. Eu era da articulação nacional por muito tempo desse. Também tinha o
MMC: movimento de mulheres campesinas. Também fiz parte, quando tinha reunião
ia pra lá. Fui coordenadora (Entrevista concedida por Soledade em Alagoa Grande
PB/2019).
60
A discriminação da mulher separada e sozinha não inviabilizou a entrada nas lutas
sindicais:
Aí quando chego, com a viola, com as meninas e sem marido, as mulheres só faltavam
trancar os maridos achando que eu ia roubar os maridos delas. Aí eu tocava na sexta,
sábado e domingo. Aí ficava só com uma janela aberta em casa, aí Penha foi falar
comigo e disse “mulher, né assim que você vai dar resposta ao povo não, vem pro
movimento, vamo pra luta, mostra que tu não vai pegar marido de ninguém não. Abre
essas portas. Aí eu disse “Mas Penha, eu tenho três criança, tenho que dar conta, eu
tenho que sobreviver com a viola. E ela disse: “vamo fazer os seguinte: nos eventos,
tu vai e a gente te ajuda”. Aí a gente fazia um evento de três dias, que dava umas 60
mulher, e ela dizia: “tu vai, participa, leva a viola, canta pra animar e no final, a gente
te ajuda com as compras”, aí o que sobrava das compras, ela me dava, pra mim e pra
Maria miúda, que era outra que precisava. Aí eu fui gostando, fui entrando, entrando
e fiquei.
Pra minha família era assim: Papai não era muito chegado à agricultura não, ele era
fiscal de rodage, funcionário público. Meu primeiro violão, papai me deu de presente.
Já mamãe, ela gostava da poesia né, mas pra filha dela, pra princesa dela essa fama de
vagabundo, ela não queria. No passado era tanto preconceito na escolha da arte. Ser
escrava do lar, do sujeito, essa era a saga da mulher. (Entrevista concedida por Soledade
em Alagoa Grande PB/2019)
À medida que revelava suas lutas pessoais para a criação de suas filhas, separada em
um tempo em que imperava o preconceito em relação as “mulheres separadas”, “artistas”,
“violeiras”, Soledade relata que tinha dois caminhos para escolher: o primeiro era o de
sucumbir à pressão social e, nesse aspecto, sua fala foi categórica: inicialmente eu fechava até
as janelas porque as mulheres tinham medo de mulheres separadas roubarem seus maridos”. Mas
a luta revelou possibilidades novas, as companheiras, principalmente Penha sua principal
incentivadora lhe falava:” abre essas janelas Soledade, vem para a luta, essas mulheres vão ter
que aceitar que tu és uma mulher decente e de luta”. A escolha pela luta foi paralela à sua arte
de superação do preconceito de gênero, por meio de sua viola garantiu o seu ganha pão,
cantando e embalando com sua viola as lutas inesquecível da Paraíba Canavieira.
Nesse contexto, através da arte, Soledade sente a falta de representação nos sindicatos
no que se refere aos direitos específicos da mulher e junto às suas companheiras inicia um
movimento de articulação para este eixo, filiando-se, então, ao sindicato e participando à
medida que conseguia. Em relação aos ciclos de greves e à participação das mulheres relata
o seguinte:
61
Na greve, os latifundiários naquela perseguição, corria atrás de trabalhador, a Penha
ainda apanhou do povo da usina. Eles levavam revólver, o que diziam que foi o
mandante da morte de Margarida. Comigo nunca aconteceu não, porque em 79 eu
tava participando com a viola, não tava tão dentro da luta, eu cantava. Eles diziam que
iam botar fogo no sindicato, foi um tempo difícil.
Alguns anos mais tarde, a participação e liderança de Soledade se solidificam ainda
mais com a mesma se tornando presidente do sindicato. A mesma relembra momentos de
luta:
Antes da Marcha das margaridas (meio que nos anos 90), era tanta mulher na frente do
palácio, a gente tava lá com fogão, com panela, a gente foi pra ficar, a gente foi chamar
eles pra votar no salário a maternidade e não podia chegar perto deles. Da Paraíba tava
o sindicato de Araçaji e de Alagoa Grande.... e a polícia sem deixar a gente entrar (no
Congresso Nacional), a gente recuou, pensou numa estratégia, aí entramos de uma em
uma e diz no balcão que vai pra tal gabinete, aí a gente foi, ganhava um crachá como
visitante, se escondia e entrava, isso depois de uma seleção de mulheres né. Aí a gente
se reuniu lá dentro, o grupo todo de mulheres e foi pra plenária. Quando um delegado
votava contra a gente vaiava, quando votava a favor, a gente batia palma. Aí queriam
botar a gente pra fora. Tinham trabalhadoras que tinham 7, 8 meses que tinham
encaminhado a solicitação e não tinham recebido resposta. Aquilo me deu uma raiva...
porque no máximo, 3, 4 meses, todos os pedidos eram analisados e respondidos se sim
ou não, aí eu pedi a palavra, me identifiquei que “sou da terra de Margarida Maria
Alves” e queria dizer pra vossa senhoria que sou presidente do sindicato, o mesmo que
Margarida foi, e temos companheiras que encaminhou a documentação solicitando o
benefício e não obteve respostas e eu não esperei ele me chamar de mentirosa não, eu
disse “assim que eu chegar à Paraíba, lhe mando as provas”, ele disse “minha amiga da
Paraíba, aguardo as provas”, eu disse “pode deixar, assim que eu chegar, lhe mando”, aí
voltei, botei um carro de som na rua pedindo pra todo mundo trazer os documentos,
não passou 30 dias, choveu de benefício em Alagoa Grande. Também não deixei ele me
chamar de mentirosa não, antes que ele falasse eu disse logo que trabalhava com provas.
Fiquei tão feliz que parecia que o benefício era meu (Entrevista concedida por Soledade
em Alagoa Grande PB/2019).
Para ela, quando as mulheres se reúnem e reivindicam seus direitos, podem conseguir
reestabelecer a ordem, neste caso, mesmo que a maior parte de lideranças fossem do sexo
masculino, as especificidades poderiam ser debatidas e novas propostas poderiam ser lançadas
em prol das mulheres do campo. Com a influência das lutas pela terra na Paraíba, percebiase que a história era fator determinante para novas lutas. E assim, o campo se tornava palco
de novas lideranças, mesmo em períodos turbulentos como a ditadura. Soledade sentiu o
preconceito de todos os setores da sociedade em que fazia parte, desde a casa dos pais, onde
quase foi impedida de tocar sua viola, na casa do ex-esposo, onde sofreu violência doméstica,
durante a separação, onde não era aceita pela comunidade devido seu estado como mãe
62
solteira, no sindicato, onde teve maior resistência para sua filiação enquanto condição
de mulher, na cultura, em que a mulher é vista como secundária, podemos observar esta
última no seguinte relato: “é muito difícil uma mulher ser convidada pra um festival e
quando acontece eles colocam pra ser especial (abertura dos eventos de grandes cantores),
aí os grandes cantadores são as estrelas (atrações principais). Aí eu fiz um que botava as
mulher pra concorrer e eles pro especial (risos), aí eles começaram a chamar meu festival de
feminista. Aí veio um companheiro e disse ‘quando tu vai fazer teu festival feminista?’, aí eu
disse ‘depois do teu machista’.
Sendo assim, a resistência de uma mulher para participação no sindicato, se torna
evidente de acordo com sua trajetória de mulher pobre e do meio rural da Paraíba,
representando assim várias mulheres que não tinham seus direitos assegurados. Com a
memória de figuras importantes na luta pela terra, Soledade enfatiza a articulação geral
dos trabalhadores enquanto classe, mas deixa claro que a luta pelo direito das mulheres é
extremamente importante e essencial para que todos possam viver dignamente e juntos,
possam construir uma sociedade mais justa.
A participação das mulheres na FETAPE remonta aos seus primórdios. Importante
contribuição foi dada por mulheres nas inúmeras greves, paradeiros e na organização interna
dos sindicatos. Podemos citar: Geogina Reis, Zefinha, Lucinha, Adriana, Rejane, dentre
outras, segundo Silva e Silva (2015).
Em Pernambuco as mulheres trabalhadoras rurais começaram a se organizar em 1982
fazendo pequenas reuniões no distrito de Caiçarinha da Penha, em Serra Talhada [...]
Esse trabalho específico com mulheres foi uma necessidade para se alistar na frente de
emergência [...] As assessoras da FETAPE Geogina Delmondes, Vanete Almeida, Lúcia
Lira, Maria do Carmo e Lucidalva Nascimento, conforme registros da Federação [...],
realizaram encontros nas três regiões do Estado para despertar a importância de todas
as trabalhadoras rurais também se associarem no Sindicato (SILVA E SILVA, 2015, p.
83).
A participação das mulheres no sertão Pernambucano também está vinculada aos
conflitos contra as barragens que atingiam as famílias desalojadas pela construção e remoção,
mobilizando homens e mulheres contra os grandes empresários.2
Quanto à participação das mulheres na FETAPE, foi relembrada no Seminário da
Pesquisa por Geogina (Georgina Delmondes) e Zefinha (Josefa Reis), ambas assessoras e
esposas de ex- dirigentes sindicais.
2 Reflexões sobre relações de gênero no sindicalismo de Pernambuco foram formuladas para um texto publicado na
43º ANCOCS 21 a 25 de Outubro de 2019.
63
No que se refere à Geogina e José Rodrigues, em seu livro Trajetórias do casal sindicalista,
ela relembra que em 1979, já casada com José Rodrigues, fez parte da organização dos Centros
Sociais Urbanos e em 1980 começou a trabalhar na FETAPE com a carteira assinada pelo
Pró-rural. Sua contratação não foi aceita pelo seu marido, então presidente da FETAPE:
Naquele dia Zé Rodrigues não quis participar da assembleia, ele não concordava que
a escolha porque não achava certo. Nós que estávamos lá escolhemos Geogina para
trabalhar conosco por todo apego à causa [...] vários companheiros foram favoráveis
pela sua militância comprovada em diversos municípios do Sertão do Araripe. (Amaro
Biá).
No princípio eram “as esposas de sindicalistas”, mas o envolvimento na luta foi
possibilitando a ocupação dos espaços em um meio majoritariamente masculino. No próprio
movimento sindical ocorreu um movimento de base com as mulheres nos sindicatos e,
nos anos 1970/1980, já havia crescido o número de participação das mulheres no agreste
pernambucano e no sertão, na Zona da Mata a participação foi mais lenta, mas havia a
participação das mulheres a exemplo de Marinete de Itambé, já nos final dos anos 1980.
A atuação do Movimento de Evangelização Rural (MER) influenciou as lutas
camponesas e promoveu um estímulo à promoção de greves e à participação de homens e
mulheres na ação política dos Sindicatos. No que se refere às relações que o MER e, mais
tarde, a Central de Trabalhadores Independentes (CTI), tinham com a FETAPE, Marinete
ressaltou que havia um respeito da FETAPE, pois o CTI atuava nas bases, com a massa:
“nós tínhamos os grupos que organizavam essa massa, se a gente não tivesse nada eles nem
respeitavam a nós, a gente influenciava lá dentro”.
Marinete relembra que o movimento CTI realizava reuniões com os grupos nas bases
e os trabalhadores e as trabalhadoras chegavam preparados nos congressos da FETAPE:
Quando a gente levava os trabalhadores para um congresso, eram discutidos todos
os direitos antes, quando chegava ao congresso da FETAPE então nosso povo, os
trabalhadores da nossa base, eles já sabiam o que era pra discutir ali, tava preparado, o
que era que ia aprovar no congresso. Que era a pauta de reivindicação, né? Qual todos
os direitos ali, enquanto os outros às vezes não tinham nenhuma preparação que às
vezes, olhe, às vezes discutem muitas coisas boas no movimento sindical, agora que só
fica ali na cúpula, só fica entre um diretor ou dois, e daí por diante [...] essa divergência
aí na preparação e hoje e ainda a gente tem e nós acreditamos nesse poder popular né?
Poder do povo, nós acreditamos (Marinete, Itambé, agosto, 2018).
Dessa forma, a experiência de combinar organização sindical com movimentos sociais,
no caso em tela, o MER, favoreceu formas combativas e autônomas na realização de greves
e paradeiros pelos homens e mulheres, na medida em que o movimento promovia uma
64
constante interação com as bases no encaminhamento das estratégias sindicais dos sindicatos
que eram influenciados pelo grupo do MER.
A participação das mulheres passou a ser uma questão a ser enfrentada nos sindicatos
influenciados pelo CTI. A participação de homens e mulheres na direção dos sindicatos
influenciados pelo movimento MER, e depois CTI, já era uma realidade nos anos 1980.
Em 1982, Pernambuco somente tinha Dona Lia, lá do alto sertão do Pajeú, como
presidente do sindicato. Já no ano de 2013, contavam-se 49 presidentes mulheres de STRs.
Por ocasião do 1º Encontro Estadual de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Pernambuco,
ocorrido no período de 11 a 13 de dezembro de 1987, um depoimento nos remeteu a um
despertar dos questionamentos feitos naquela ocasião por Agostinha Viana da Silva, do
sindicato de Ouricuri/Sertão de Pernambuco, que questionou quanto à filiação do sindicato
e direito à participação política:
Por que os homens deviam fazer suas carteiras e, depois a mulher e os filhos serem
dependentes? Por que a maioria dos presidentes dos sindicatos e de outras entidades
é toda de homens? Por que a mulher não é para ter direito de ser votada e votar?
Nós sendo associadas, temos o direito de ser votada e votar, tirar e botar quem nós
quisermos (Agostinha Viana da Silva, do sindicato de Ouricuri/Sertão de Pernambuco,
dezembro de 1987).
Esses questionamentos foram o princípio de uma série de batalhas para as conquistas
mais amplas das mulheres do sindicalismo rural de Pernambuco.
Em 1983, Pernambuco enfrentava uma grave seca e o plano de emergência do Governo
excluía as mulheres de receberem o benefício e, desse modo, a inserção das mulheres nas
frentes de emergência foi um marco histórico alcançado pelo movimento sindical, na pauta
específica das mulheres.
Em 1984, foi realizado o 1º Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão
Central, tendo como lema: “Somos mulheres e trabalhadoras, temos valor!” Como resultado,
foi defendida uma tese em Brasília que propunha incentivar as mulheres a serem delegadas
de base e a assumirem os cargos de direção, além de encaminhar reivindicações específicas
das mulheres, dentre outros. A pauta foi defendida por Maria Lima Ferreira de Souza,
conhecida como “dona Lia”, que era na época a única trabalhadora presidente de sindicato
rural, o sindicato de Itapetim, no sertão do Pajeú. Segundo Silva e Silva (2015), na Zona
da Mata pernambucana o trabalho de organização das mulheres “foi mais lento [...]. Nas
assembleias e reuniões, a participação das mulheres era pequena [.] caminhou por conta do
apoio de algumas funcionárias dos sindicatos e algumas delegadas de base, além de assessoras
da própria Federação”.
65
Tabela 1 - cargos ocupados por mulheres em sindicatos rurais – PE
Anos
1950
1961 a 1964
1965 a 1969
1970 a 1979
1980 a 1988
Total
Mata
01
01
02
04
Diretoria Executiva
Agreste
Sertão
01
01
14
03
27
06
42
10
Conselho Fiscal
Anos
1950
1961 a 1964
1965 a 1969
1970 a 1979
1980 a 1988
Total
Total
01
02
18
35
56
Mata
01
0
06
07
Suplente de Diretoria
Agreste
Sertão
03
09
03
26
13
38
16
Total
04
12
45
61
Suplente de Conselho Fiscal
Mata
Agreste
Sertão
Total
Mata
Agreste
Sertão
01
0
0
01
0
0
0
01
0
0
01
0
0
0
0
0
0
0
0
08
0
02
08
03
13
01
21
02
15
24
05
44
06
20
17
19
32
08
59
07
49
19
Fonte: Delegacia Regional do Trabalho-PE. Fichas dos sindicatos.
Elaboração Abreu e Lima (2003, p.225)
Total
0
0
08
24
43
75
Percebe-se um crescimento significativo de postos de direção do sindicato ocupados
por mulheres. Nos anos 1960, de apenas 4 (quatro) mulheres nos cargos de direção do
sindicato passam a 45 (quarenta e cinco) trabalhadoras rurais nos anos 1980. As regiões
de Pernambuco que mais cresceram a participação feminina foram, em primeiro lugar, o
Agreste, seguido do Sertão. Nessas regiões, a participação das mulheres está vinculada a
organização em movimentos sociais com pautas feministas e outros fatores, tais como: a luta
contra as barragens, a seca, além das características do trabalho vinculado a agricultura de
subsistência em que predomina as trabalhadoras rurais, diferente da Zona da Mata no qual
o trabalho assalariado na cana tem uma mão de obra majoritariamente masculina, entre
outros fatores.
Somente em 2019 foi eleita a primeira mulher presidente da FETAPE, Cícera Nunes:
...Estamos nesse momento aqui no primeiro congresso de assalariados e assalariadas
rurais de Pernambuco, esse congresso que acontece num momento de fundamental
importância para a classe trabalhadora, de estar se organizando, se reorganizando um
momento conjuntural que está muito ruim no Brasil, em Pernambuco e na América
Latina e no mundo. Precisamos, nesse congresso, estar junto da Fetaepe (Fetape e
Fetaepe) para que cada vez mais a classe trabalhadora que somos da agricultura familiar
e assalariamento rurais juntos nessa luta [...] Então vamos estar juntos, vamos estar
na luta para que cada vez mais essa resistência aconteça. E essa resistência aconteça
onde homens e mulheres sejam muito mais fortalecidos no campo e na cidade. (Cícera
Nunes, presidente da FETAPE, Seminário da FETAPE, 04,05,06 de Junho de 2019)
66
Verifica-se na organização da FETAPE e FETAEPE uma mudança na cultura política
dos novos dirigentes sindicais, homens e mulheres. No congresso da FETAPE, realizado em
2019, todos os depoimentos colhidos de líderes sindicais, homens e mulheres enfatizaram
a importância da paridade conquistada no sindicalismo rural. Isso não significa que as
diferenças de sexo deixaram de ser elemento de distinção e desigualdade entre os segmentos
masculino e feminino, mas que, pelo menos o discurso da paridade foi aceito como uma das
estratégias sindicais de maior democratização das lutas rurais.
Considerações Finais
Pelo breve relato das experiências das mulheres nas lutas rurais, evidencia-se que há
um esforço do movimento sindical rural de diminuir as assimetrias de gênero, no tocante
à participação nas decisões e ocupação dos postos de comando com uma política definida
de ampliação da participação das mulheres nos sindicatos. As mudanças foram tomando
forma a partir dos anos 1980 e se intensificaram no tempo presente. O discurso que pairava
entre os líderes e dirigentes sindicais do meio rural é que os interesses das trabalhadoras e
trabalhadores rurais são semelhantes e que o grande inimigo a ser enfrentado seria: o grande
capital, o usineiro, o proprietário de terras. Essa narrativa simbólica silenciava a dominação
masculina que prevalecia na correlação de forças nos momentos de eleições para os cargos
de poder no movimento sindical.
O questionamento e a luta das mulheres foi demolindo o discurso de naturalização da
perpetuação dos homens no mais alto escalão da hierarquia sindical.
Ainda não se conseguiu apagar os traços por completo de uma cultura androcêntrica
no sindicalismo rural do nordeste canavieiro, mas agora não mais está oculta sob o véu do
discurso da classe trabalhadora homogênea.
67
Referências
ABREU E LIMA, M. S. Revisitando o campo: Lutas, Organização, Contradições - Pernambuco
1962 – 1987. Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal de Pernambuco
[Tese de Doutorado], Recife, 2003.
BOURDIEU, P. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 2. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002.
LADOSKY, M. H. G; OLIVEIRA, V. C. A. A greve dos canavieiros Pernambuco 40 anos depois:
memórias e práticas da organização sindical rural na atualidade. Publicado nos Anais da 43º
ANPOCS 21 a 25/10/2019.
LOBO, Elizabeth Souza. A classe operária tem dois sexos. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011.
PERROT, Michelle. Mulheres in Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1998. pp. 167 – 213.
SIGAUD, Lygia. A luta de classes em dois atos: notas sobre um ciclo de greves camponesas. In
Dados, revista de ciências sociais. Vol. 9, n 3, 1986. pp. 319-344
SIGAUD, L. Os clandestinos e os direitos. São Paulo: Duas Cidades, 1979.
SARTI. C. A. Família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO, M.C B (org.)
A Família Contemporânea em Debate.São Paulo: EDUC/Cortez, 2003.
SCOTT, J. W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre,
vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995.
CAVALCANTI, Manuella Paiva de Holanda. Marcha das margaridas: participação política,
empoderamento e movimento social em rede das mulheres do campo e da floresta. In 3º Seminário
Internacional Desfazendo gênero. Simpósio temático nº 3: A mulher do campo em diálogos
interdisciplinares.
68
CAPÍTULO 5
Casamento e maternidade: a condição feminina em
“As Três Marias”, de Rachel de Queiroz
Maria do Carmo de Souza e Souza
Cássia Maria Bezerra do Nascimento
Introdução
As três Marias (1939) é o quarto romance publicado de Rachel de Queiroz. Rachel
foi a primeira mulher a fazer parte da Academia Brasileira de Letras, é reconhecida por suas
personagens fortes e independentes que buscam a fuga do padrão imposto pela sociedade
patriarcal, e, segundo Afrânio Coutinho, nenhum brasileiro titubeará em reconhecer a
língua de Rachel, como sua, como brasileira, ao ler suas obras. A obra racheliana trata
intrinsecamente da mulher e os “deveres” perante o Estado, a Família e a Igreja, mas que
também há apenas a mulher com desejos individuais. Foi a partir desta nossa última
observação que propomos ler Rachel de Queiroz sob o viés dos estudos de gênero, que
ganham cada vez mais espaço na academia em diferentes áreas de conhecimento.
Simone de Beauvoir afirma que basta uma crise política, econômica e religiosa para
que os direitos das mulheres sejam questionados, e o presente estudo vem ao encontro dos
últimos episódios nacionais relacionados à figura feminina, que alertam para um debate
mais profundo sobre a noção de liberdade e/ou direitos conquistados pelas mulheres ao
longo desses anos.
No atual governo, o discurso machista e misógino parece vir ainda com mais força;
o caso do deputado Márcio Labre PSL/RJ, que de acordo com o Projeto de Lei 261/2019,
apresentado à câmara dos deputados, visava proibir o dispositivo intrauterino (DIU), a
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-5
69
pílula só de progestógeno, a pílula do dia seguinte, a pílula RU 486, entre outros, com a
justificativa de serem “microabortivos”, mas logo o projeto de lei foi retirado por devido a
repercussão que casou, pois, é alguma forma de emancipação da mulher, já que não liga a
prática sexual à maternidade.
O então presidente do Brasil, eleito em 2018, vem proferindo, desde o início de
sua carreira como parlamentar, discursos de ódio, principalmente quando homenageia
torturadores e se refere às mulheres. A ficha de discursos bárbaros contra a figura feminina
não é pequena: já retratou a filha como uma “fraquejada”; disse a uma deputada que não
a estupraria porque ela não mereceria; os ataques à Dilma Rousseff quando homenageou
Ustra, aquele que torturou a ex-presidenta durante a ditadura militar, e, desejou que ela
saísse do cargo com câncer ou infartada; fala que mulheres devem ganhar menos porque
engravidam; acusações vindas de sua ex-esposa Ana Cristina Valle como agressões e ameaças
de morte e que por isso ela teria viajado à Noruega; e ainda houve o episódio a jornalista
Patrícia Campos Melo a quem o então Presidente fez uma insinuação sexual, segundo a
Revista Veja, falando que a jornalista queria “dar o furo a qualquer preço”.
Logo, dentro desse contexto em que estamos vivendo, no qual o Brasil é o 5º país no
Ranking de feminicídio, que contabilizou em 2018 mais de 66 mil casos de violência sexual,
em que cerca de 1,3 milhão de mulheres são agredidas, e uma mulher a cada dois dias morre
por conta de aborto inseguro, ter um presidente que permeia esse discurso misógino à sua
nação abre mais espaço para a insegurança das mulheres e a dominação masculina cultivada
por séculos pela sociedade que acha que a mulher é um “não homem”, um ser inferior,
que serve apenas como receptáculo para proliferação da espécie humana. Pierre Bourdieu
(2014) indaga como um grupo minoritário apropria-se e controla a representação de algo e a
implantação de um molde de status, podemos assim, começar a questão do papel da mulher
na sociedade.
Diante da urgência de nos manifestarmos, também em nossos escritos, contra estes
discursos, trazemos este trabalho resultado de pesquisa na literatura de autoria feminina/
Escolhemos As três Marias, de 1939, de Rachel de Queiroz, romance que retrata diferentes
caminhos seguidos por jovens mulheres durante a primeira metade do século XX em
sua narrativa. A escrita segue sob proposta de estudos relacionados à condição feminina.
Buscamos representações dentro de contextos históricos e literários à (des)construção de
estereótipos femininos dessa sociedade. Indagamos também, a figura de Maria, mãe de Jesus
e sua respectiva representatividade, segundo preceitos de patriarcado perante a importância
que o casamento e a maternidade têm na vida da mulher naquela época. O tema proposto é
oportuno para esse debate, do mesmo modo que, nessas duas últimas décadas, o casamento,
a maternidade e os direitos das mulheres foram discutidos, e, pelo que se pôde notar, ainda
são pressupostos da existência da mulher na sociedade.
70
Desse modo, o tema escolhido é apropriado para uma discussão, da mesma forma que
em pleno século XXI, o casamento e a maternidade ainda são pressupostos da existência
de uma mulher na sociedade. Além de propormos analisar o casamento e a maternidade,
por meio da literatura, também abordamos a autoria de Rachel de Queiroz, já que tais
personagens femininas, por tempos, foram construídas sob olhares masculinos, e colocaremos
ainda em evidência essas construções da figura feminina nos romances de períodos literários
distintos. Esse estudo ambiciona galgar a divulgação da literatura brasileira e nordestina,
personagens femininos que diferem dos habituais e, principalmente, a autoria feminina, já
que na primeira metade século XX a maioria dos modernistas era do gênero masculino.
Para estudar o texto literário que traz a mulher como personagem da narrativa na obra
de Rachel de Queiroz, há necessidade de construir uma abordagem que toma empréstimo
de estudos da História, Psicologia e Sociologia, principalmente. Nos romances do século
XIX, a mulher é enquadrada na perspectiva mariana de perfeição e idealização do casamento
e maternidade, e, de acordo com Elisabeth Badinter (1985) o amor materno continua
inquestionável pois, em nosso inconsciente coletivo, Maria mãe de Jesus é o símbolo sólido
desse amor voluntário e desmedido. Marina Massi (1992), doutora em Psicologia Social,
fala sobre a importância das mulheres conhecerem sua história.
Os estudos de Gênero estabeleceram a realidade social das mulheres na época, dessa
forma, trazemos Neivana Rolim de Lima (2019) com o embate sobre a perpetuação dos
padrões românticos na literatura e a interferência da autoria masculina quando se trata
de personagens femininas; Já Patrícia Alcântara de Souza (2008), analisa diretamente os
percursos das personagens femininas em três obras de Rachel Queiroz, oferecendo uma análise
profunda das personagens; Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro (2012) organizaram
vários artigos sobre a Nova História das Mulheres no Brasil, abarcando referências mais
específicas para esta pesquisa, dado que no período de 1930, a escrita tomou uma forma
mais singular e características do Brasil; Michelle Perrot (2019), historiadora, oferecendo
uma visão geral sobre a história das mulheres; Simone de Beauvoir (2018), importante
nome na área de estudo de Gênero.
Para embasar sobre o movimento modernista, e conhecimento teóricos de literatura
brasileira, trouxemos: Afrânio Coutinho (2005, 2014) com a Introdução à literatura no Brasil
e o Conceito de literatura brasileira; e Alfredo Bosi (2017) com a História Concisa da Literatura
Brasileira. Roberto Pontes (2006), esquematizador da Teoria da Residualidade Literária
e Cultural, e seus conceitos operacionais; resíduo, mentalidade, imaginário, cristalização,
hibridação cultural e endoculturação – conceitos esses que estudam e caracterizam o que
remanesce de tempos em tempos, por meio da cultura, da literatura, partindo do pressuposto
de que nada na cultura e na literatura é original. De acordo com Pontes (2006), resíduo é
71
o que resta, o que remanesce de um tempo em outro, seja do passado para o presente, seja
por antecipação do futuro.
Por conseguinte, Cássia M. B. Nascimento (2014, p.104) ratifica em sua tese que:
“para compreender a Residualidade, parte-se da afirmação de que todas as relações humanas
geram o que chamamos de resíduos.”. Dessa maneira, o estudo residual da construção da
mulher na literatura é fundamental.
A autoria feminina de Rachel de Queiroz no contexto do romance de
30 na literatura brasileira
A literatura de autoria feminina teve uma integração arrastada no Brasil por motivos
óbvios de dominação ideológica da sociedade patriarcal. Colocava-se em questão que homens
eram superiores intelectualmente, e, contudo, se fosse provado o contrário, a independência
financeira de mulheres não era comum, o que tornava a publicação de autorias femininas
complicada, pois a intelectualidade e o financeiro estavam ligados. É possível perceber o
quão dificultoso foi o percurso de escritoras brasileiras e como os movimentos feministas do
século XX foram importantes para difusão da autoria feminina no Brasil:
Foi com muita dificuldade que os cercos dessa cultura preconceituosa se romperam e
as mulheres começaram a publicar seus livros, já em meados do século XVIII. Porém,
só mais ao final do século XX foi possível o contato com obras que revelam a intensa
participação feminina nas letras nacionais. O trabalho algo arqueológico das pesquisas
acadêmicas e de alguns institutos culturais foi determinante, e ainda tem sido, para
trazer à luz a valiosa contribuição de escritoras do passado, seja na prosa, na crônica
ou na poesia. E hoje, graças a esforços conjugados, pode-se dizer que a reconstrução
de uma tradição literária feminina no Brasil já está bem estabelecida, já se sabe que
a lista de nomes femininos em nosso passado literário é bastante extensa, embora,
em sua grande maioria, esses nomes tenham amargado uma longa permanência na
invisibilidade. (CASTANHEIRA, 2011, p.2).
Depois dos primeiros manifestos feministas, a cultura de silenciamento das mulheres
foi sendo descontruída exaustiva e lentamente, ao longo das décadas, fazendo pequenos
furos na sociedade dominada por homens, brancos, héteros e das elites.
Em 1922, tivemos a “Semana da Arte Moderna”, em São Paulo, que fomentou a ordem
literária seguinte. Assim, a geração de 30 manifesta-se, iniciada por José Américo e a obra
A bagaceira (1928), “[...] momento em que o Modernismo começava a tomar no Nordeste
uma coloração original [...]” (BOSI, 2017, p. 422), ambientando-se nas grandes secas do
72
Nordeste. Seguimos com a definição de Afrânio Coutinho (2005), para esse Movimento
Literário denominado “Modernismo”:
A literatura moderna, no Brasil, é o que se denomina Modernismo, termo que vai
se fixando na historiografia literária para designar o período estilístico inaugurado
com a “Semana da Arte Moderna” (1922) e vindo até os dias presentes. Modernismo,
assim, não é apenas o movimento restrito à Semana de 1922, mas abrange toda a época
contemporânea. (COUTINHO, 2005, p. 247).
Rachel Franklin de Queiroz (1910-2003), natural de Fortaleza - CE. Em 1925, aos
15 anos, diploma-se professora, foi a primeira mulher a assumir uma cadeira na Academia
Brasileira de Letras e a receber o Prêmio Camões. Assim, Rachel foi escritora, jornalista,
tradutora e teatróloga, fugindo da catalogação de escrita mélica que eram classificadas as
autorias femininas de tal época. Destaca-se O quinze (1930), seu primeiro romance publicado
(inclusive em outros países) recebendo críticas positivas de Augusto Frederico Schmidt e
Mário de Andrade, além de comentários machistas como o de Graciliano Ramos sobre a
autoria ser de uma mulher. Desse modo, Rachel de Queiroz se tornou referência, no Brasil:
Raquel de Queiroz é uma das maiores escritoras brasileiras: aos vinte anos tornou-se um
ícone da Literatura, apesar da inicial resistência por parte da crítica, inaugurando a fase
do Romance de 30, com a publicação de O Quinze (1930), seguido de João Miguel
(1932), Caminhos de Pedras (1937), As Três Marias (1939), Dôra, Doralina (1975),
entre outros, além de crônicas, de peças e de traduções. Cercada de influências que
a levaram para o meio literário e jornalístico, não é de admirar que ela tenha entrado
em contato com outras culturas, bem como o fato de ter sido profunda conhecedora
da cultura nordestina, narrando, de forma peculiar, a seca, o cangaço, a religiosidade,
o sertanejo e, também, a sociedade carioca, com a qual conviveu desde que se mudou
para o Rio de Janeiro, em 1931. (SILVA; SILVA, p. 85, 2017).
Em O quinze (1930), a protagonista da obra desvia o caminho imposto para as
mulheres de sua época, o casamento. Centrada, Conceição resigna a proximidade de seu
provável “amor”, confronta a situação agressiva da seca e se dedica ao universo literário.
Rachel se faz(ia) notar tanto pelo aspecto regional e linguagem simples, “a língua do Brasil
[...] que nenhum brasileiro titubeará em reconhecer como sua [...]”(COUTINHO, 2014,
p. 15/16),como pela temática de mulheres fortes, que Heloísa Buarque de Hollanda coloca
de forma convicta em prefácio feito a uma das edições da obra As três Marias: “[...] a galeria
mais expressiva de personagens femininas, independentes, destemidas e progressistas de
nossa época”. Desta forma, a afirmação social da mulher, também era a marca de Rachel de
Queiroz:
73
Segundo a autora, sua obra As três Marias é seu romance mais autobiográfico, o que
lhe causou dificuldades em desassociar o que realmente viveu, o que viu e as memórias
daquele tempo (TORRES, 2014, p. 380). As semelhanças entre a escritora e a narradora
são visíveis: O fato de serem cearenses, de terem estudado em um colégio religioso e de
haverem se afastado da vida sagrada. (COSTA, 2018, p. 40).
Dessa forma, as produções literárias dos anos 30, também catalogadas de regionalista,
diante das configurações históricas em andamento, Rachel de Queiroz apresentou obras
que se mostravam a frente de seu tempo, apresentando também, para a sociedade da época;
debates sobre a condição da mulher ligadas a maternidade, casamento e desejos individuais;
enquanto, os romancistas desse movimento se debruçavam de maneira mais singular em
relatos sobre a fome.
As mulheres na literatura na construção do romance de 30
A literatura e a cultura brasileira são orientadas pela formação judaico-cristã. O estudo
residual da condição e da construção da mulher na literatura é imprescindível porque há
mudanças e retomadas de perfis femininos, mudanças que ocorrem porque há hibridação
cultural, o que reforça a necessidade de estudos com a aproximação de outras ciências
que nos levam a conceitos de “herança social”, “transmissão de padrões”, dentre outros
compostos ao arsenal da Teoria da Residualidade, conforme Pontes (2017). Em cada época,
espaço e cultura, as narrativas trazem mulheres, como cristalizadas no imaginário, “é, pois,
no imaginário, conjunto de imagens que a sociedade faz de si mesma através de produções
culturais, o que podemos distinguir as épocas entre si [...]” (PONTES, 2017, p. 17).
De acordo com Lima (2019), “a literatura romântica que proliferou no Brasil delimita
o espaço que a mulher ocupa na sociedade, destina à mulher o ambiente privado, o cuidado
do lar, dos filhos, a obediência aos pais, aos padrões sociais e a completa dependência do
marido e de seu mando” (p. 12). Diante disso, concordamos com Perrot (2019) que “as
mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas”.
A dominação masculina está presente em ideologias marcadas pelas políticas do
patriarcalismo. O fato de homens da elite constituírem historicamente a visão no campo
literário, configura a construção da figura feminina nas narrativas seguindo principalmente
estereótipos sexistas, tendo em vista que a escrita de autoria feminina veio a ser consolidada
no século XX. Como afirma Tayza Rossini (p. 97-98, 2016):
74
A consolidação da literatura de autoria feminina, cuja trajetória, timidamente
iniciada em meados do século XIX, ganha consistência no transcorrer do século
XX, suscita, conforme têm demonstrado muitas pesquisas no âmbito dos estudos de
gênero, novas possibilidades, inclui outras perspectivas sociais e amplia a gama das
representações literárias tradicionais. É sabido, igualmente, que o cânone literário
ocidental, historicamente constituído de obras escritas por homens, brancos e da elite
sociocultural, é impregnado de ideologias dominantes, as quais lhe regem os códigos
de produção e de representação.
Durante a primeira metade do século XX, houve conflitos, como a I e a II guerras
mundiais, crises na economia, que desalojaram com mais força a luta a feminista e, assim,
o logro da saída das mulheres para o mercado de trabalho, além da asserção do Capitalismo
e a afirmação necessária do oposto: o Socialismo. A política brasileira também passou por
embates de regimes democráticos e totalitários ao longo de todo o século XX.
Segundo Silvia Arend (2012), com o início do século XX, esperava-se que as mulheres
desempenhassem novos papéis no âmbito doméstico e na esfera pública. Isto posto, o que
ocorreu no Brasil, partindo desse pressuposto, foi que as filhas das elites e dos setores médios
começaram a frequentar cursos primário, secundário em escolas confessionais católicas
femininas e de outras congregações religiosas presentes nas capitais dos estados da federação
(AREND, 2012). Consoante Jorge Marques (2010), “Os modos de evasão do confinamento
possíveis pelas mulheres nesse contexto transitam, via de regra, por recursos que variam
entre a memória e a imaginação” e, durante a leitura, pudemos notar esses recursos em
vários trechos da narrativa racheliana como esse; “escondidas lá para os lados dos lavatórios
– o nosso quartel-general de sempre –, sentadas no chão, com as meias descidas, fizemos na
coxa, com a ponta da tesourinha, as três estrelas juntas, em fila.” (QUEIROZ, 2018, p. 47).
Dessa forma, optamos por trabalhar com o quarto livro publicado da escritora Rachel
de Queiroz, que utiliza três personagens como principais: Maria Augusta, Maria José e
Maria da Glória, representando a santíssima trindade. Trata-se de um internato católico
onde a visão se dá pela disciplina e religiosidade, em um lugar de preceitos cristãos e tendo
Maria, “símbolo” do cristianismo, exemplo de valor e moral, a referência de uma figura
feminina a ser seguida. Logo, fora do Internato, essa visão é diversificada: Guta tem um
olhar realista sobre o mundo e faz questionamentos e indagações sobre o que ela acredita, o
que se passa a sua volta e o seu papel de mulher naquela sociedade:
Se Maria é o arquétipo do feminino ou de representações do feminino na civilização
ocidental, Rachel de Queiroz elabora um texto no qual tal arquétipo é triplicado.
Essa situação leva-nos, obviamente, a configurar a imagem de uma tríade mariana (de
representação feminina, portanto) subvertendo a lógica cristã, na qual pontificam o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. (MARQUES, 2010, p. 96).
75
Se olharmos mais para o passado, no medievo, a figura feminina possuía diversas
representações impostas pela sociedade, como senhoras das casas, religiosas, uma figura
santa, de um lado; e a representação do pecado, de outro lado, que seriam, na época, as
prostitutas e as bruxas, estas eram excluídas do convívio social. Segundo Moreira (2005,
p. 25), nas culturas de coleta, as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis
e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza; agora elas são as
causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. A Literatura e a cultura ocidental, a
partir daí, registram a mulher sempre sob a guarda de seus familiares, aspirando a escolha de
um casamento aceitável por parte de seus guardiões. A finalidade do casamento, nessa época,
era, principalmente, a continuação da linhagem para que o nome da família permanecesse
vivo. E esse perfil feminino se concretizará no Romantismo enquanto projeto conservador:
No cenário mundial e em termos residuais a Idade Média inspirou a perspectiva da
aproximação religiosa como ligação espiritual que alcança todos os povos, funcionado
assim como um elemento básico para todo o escopo romântico[...] (LIMA, 2019, p.
34)
[...]
No Romantismo, a mulher é representada sob a ótica masculina. A presença de uma
mulher idealizada, divinizada, com restrições de ações é constante nas obras do período
romântico, tendo em vista que estas ações, não realizadas por mulheres, são inadequadas
ao sexo feminino, segundo a ótica masculina. A questão do protagonismo e das ações de
Simá é a mesma de tantas outras protagonistas do período romântico e das personagens
femininas que são descritas em uma ficção de autoria masculina. (LIMA, 2019, p. 103)
Consequentemente, com a leitura da obra racheliana, notamos que a idealização de
um modelo de mulher é concebida a partir da imagem de Nossa Senhora. A Virgem Maria
é detentora de toda bondade, pureza e submissão, características que pautam o imaginário
da feminilidade em uma sociedade patriarcal e cristã. Assim, esse ideal se estende a escritos
como Contos de Fadas, colocando em destaque a mulher submissa sendo salva por um
“herói” que a leva para o sonhado “felizes para sempre”; a madrasta em posição de vilã,
de “não mãe”, a bruxa impura que nunca será feliz; a rivalidade feminina, dentre outros
estereótipos que moldaram meninas/mulheres em uma forma de violência romantizada por
tempos, e, nos dias atuais, estão em constantes mudanças. Partindo da premissa da Teoria
da Residualidade de que nada é original, e sim, resíduos de outras épocas que se arraigam
por meio da mentalidade:
A mentalidade tem a ver não só com aquilo que a pessoa de um determinado momento
pensa. Mas um indivíduo e mais outro indivíduo e mais outro indivíduo, a soma
de várias individualidades, redunda numa mentalidade coletiva. E essa mentalidade
76
coletiva é transmitida através da História. Por meio da mentalidade dos indivíduos, a
mentalidade coletiva se constrói. E esta última é transmitida desde épocas remotas, e
mesmo remotíssimas, a épocas recentes (PONTES, 2006, p. 5).
Torna-se mais compreensível (compreensível no sentindo de entender as origens das
violências sofridas, não as “motivações” que as levam a sofrerem tais), a condição em que as
mulheres são colocadas:
A própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto é masculino; os homens
modelaram-no, dirigiram-no e ainda hoje o dominam; ela não se considera responsável;
está entendido que é inferior, dependente; não aprendeu as lições da violência, nunca
emergiu, como um sujeito, em face dos outros membros da coletividade, fechada em
sua carne, em sua casa, aprende-se como passiva em face desses deuses de figura humana
que definem fins e valores. (BEAUVOIR, 2019, p. 408)
No romance de Rachel, “São as três Marias! Se ao menos vivessem juntas, como as três
do Evangelho, pelo amor de Nosso Senhor! Mas sou capaz de jurar que perdem o tempo em
dissipação...” (QUEIROZ, 2018, p. 46). Percebemos nas palavras da narradora a idealização
da menina/mulher submissa que abre mão dos seus desejos é rompida, logo nos primeiros
momentos da narrativa, mas, não de maneira radical e fugindo da mentalidade patriarcal.
Conforme Souza (2008), as regras morais nas primeiras décadas do século XX eram ditadas,
também, pela igreja Católica, que impunha seus preceitos por meio das escolas e púlpitos,
pregando casamento indissolúvel e prole numerosa.
Desse modo, podemos afirmar que as mulheres que não atendiam as imposições da
Família, da Igreja e do Estado, não eram “bem vistas”, excluídas pela sociedade, e consoante
Souza (2008), as personagens de Rachel, se aproximariam do “romance de renascimento”,
já que buscam integrações individuais, renunciando sentimentos de integralidade social,
como o casamento e a maternidade, almejando algo maior, uma forma de satisfação pessoal
e amadurecimento.
Casamento, maternidade, escolhas e permissões na vida de uma mulher,
em “As Três Marias”
Nascimento (2019) afirma que um elemento residual cultural mantém-se, via de
regra, a certo espaço da cultura prevalecente, mas certa versão dele, em especial se o resíduo,
vem de uma área influente do passado, será, em grande parte dos casos, assimilado para
que a cultura dominante tenha significados. Sendo assim, antes de pensar em casamento e
77
maternidade, temos a visão histórica de dominação masculina e cristã sobre as mulheres, nas
palavras de Perrot (2019, p.49/50): “a mulher é, antes de tudo, uma imagem. Um rosto, um
corpo, vestido ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso acentua mais porque, na cultura
judaico-cristã, ela é constrangida ao silêncio em público.”.
Lima (2019) aponta que “a literatura romântica, assim como o período trovadoresco,
no qual reconhecemos os primeiros registros da literatura de língua portuguesa, oferece
muitos exemplos de misoginia.” (p. 13). O que coaduna com as análises de Perrot, quando
diz que a mulher era tida como um ser inferior, propriedade, moeda de troca, fonte de
desejos:
A virgindade das moças é cantada, cobiçada, vigiada até a obsessão. A Igreja, que
consagra como virtude suprema, celebra o modelo de Maria, virgem e mãe. Os pintores
da Anunciação, grande tema medieval, representam o anjo prosternado no quarto
da jovem virgem, diante de seu leito estreito. Essa valorização religiosa foi laicizada,
sacralizada, sexualizada também: o branco, o casamento de branco, no Segundo
Império, simboliza a pureza da prometida. (PERROT, 2019, p. 45)
Na literatura brasileira, até o início do século XX, era praticamente impossível uma
personagem feminina que não caminhasse ao casamento e/ou à maternidade, pois a Igreja
Católica constituiu o casamento como um sacramento e a maternidade como divina. Os
romances que apresentavam mulheres com desejos libertários, também reservavam finais em
forma de punições, para que soubessem quais caminhos deveriam seguir.
Temos diversas culturas no ocidente, o que nos faz procurar compreender como
funcionava o mecanicismo de cada época para melhor entender a ação do indivíduo e como
é formada a mentalidade coletiva de cada um. Para Badinter (1985, p. 5), “continua difícil
questionar o amor materno, e a mãe permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada
a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo.”, isso se dá porque a mulher foi enquadrada
na perspectiva mariana de perfeição e idealização do casamento e maternidade.
Diante disso, as personagens femininas não poderiam trilhar outro caminho:
[...] podemos afirmar que se constitui como objetivo das mulheres burguesas do início
do século XX o casamento, sendo esse objetivo primeiro na educação de mulheres que,
desde muito cedo, eram condicionadas para este momento, cabendo a elas quando
não conseguiam se casar apenas três opções: enlouquecer, morrer, ou, em último caso,
quando elas não se casavam, ficavam incumbidas de cuidar de um parente. (SAMPAIO,
SOUZA, 2017, p. 14).
Romance publicado em 1939, As três Marias não teria como apresentar de início
mulheres livres, mas com desejos de serem livres: “Moça, jovem, só a Virgem Mãe adolescente
78
do caramanchão; e, sendo de louça, tinha mais ar de vida e humanidade que aquelas outras
mulheres de carne, junto de mim.” (QUEIROZ, 2018, p. 21). Podemos perceber que Guta
já estava ciente de como seria sua vida, das opressões que sofreria para tornar-se submissa e
sem desejos, de acordo com a primeira observação feita por ela, no internato. Maria Augusta
já tinha uma ideia do destino que a sociedade dava às mulheres. O que podemos assim
explicar:
Tudo contribui para confirmar essa hierarquia aos olhos da menina. Sua cultura
histórica, literária, as canções, as lendas com que a embalam são uma exaltação do
homem. São os homens que fizeram a Grécia, o Império Romano, a França e todas as
nações, que descobriram a terra e inventaram os instrumentos que permitem explorála, que a governaram, que a povoaram de estátuas, de quadros e de livros. A literatura
infantil, a mitologia, contos, narrativas, refletem os mitos criados pelo orgulho e os
desejos dos homens: é através de olhos masculinos que a menina explora o mundo e
nele decifra seu destino. (BEAUVOIR, 2019, p. 34).
O contexto socioeconômico é desenvolvido de forma bem clara, com o propósito
de demonstrar os níveis de violência às quais as mulheres eram acometidas e a influência
passiva e/ou agressiva, nos caminhos impostos a elas, pela sociedade. Observamos essa
questão, de duas formas, na obra: Glória, entre tantas órfãs, sua “orfandade” se enroupava
na excepcionalidade, descrita como uma “aristocracia na tragédia”; e a separação das
pensionistas, “senhoras da casa” das “outras vidas antípodas”, pois eram de classes sociais
diferentes e teriam de aprender a lidar com os papeis impostos a cada uma. Também
minuciadas por Guta:
E no colégio, entre tantas outras que não tinham pai ou não tinham mãe, a orfandade
de Glória revestia-se de não sei que características sutis que a tornavam excepcional
— como de uma aristocracia na tragédia. Tinha um tutor. Dizia às vezes “meu tutor”,
elevando a voz com importância, e muita gente a olhava com inveja; e ela nos encarava
com desdém, do alto do seu drama, abafando todo o mundo com a sua infância de
romance. (QUEIROZ, 2018, p. 28)
[...]
Uma proibição tradicional, baseada em não sei que remotas e complexas razões, nos
separava delas. Só as víamos juntas na capela, alinhadas nos seus bancos do outro lado
do corredor, quietinhas e de vista baixa, porque as regras que lhes exigiam modéstia,
humildade e silêncio eram ainda mais severas do que as nossas. (QUEIROZ, 2018, p.
36).
No decorrer da narrativa, embora Maria da Glória participasse dos grupos e das
brincadeiras ali postas pelas meninas do internato, seu “destino” já estava encaminhando e
supostamente traçado pelo pai:
79
Morreu, mas, mesmo morto, deixou organizada em torno de Glória toda uma máquina
de proteção e assistência. O tutor nomeado, os bens convertidos em apólices, uma
carta à superiora do colégio pedindo amparo e amor para a órfã. Essa carta, bem
feita, patética, cheia de lágrimas, era uma das lendas do colégio e vivia no cofre da
superiora, guardada como uma relíquia, para ser dada à menina no dia da maioridade.
(QUEIROZ, 2018, p. 10).
Maria José vai se retraindo conforme o desdobramento da obra. Chega o momento
de não ligarmos mais à menina que há poucos anos sentava-se ao lado de Hosana, em uma
amizade ilegal e apaixonada, a menina de passo duro, que não havia cedido às pressões da
madre superiora relacionadas a sua amizade, pois “[...] aquele excesso de amor romanesco,
as florinhas, os santos, acabou chegando tudo aos ouvidos da irmã Germana — e era sempre
esse o fim das amizades com órfã” (QUEIROZ, 2018, p. 38).
A mãe de Maria José, Dona Júlia, fora abandonada pelo marido, era a matriarca da
família, acabou se ocupando de tudo, e, na descrição de sua história, não passa despercebido
a sina de mulheres negras, pois, apesar de tudo, havia diferença entre ser pobre, e, ser negra
pobre: “Eu tive sina de negra cativa, de negra ladrona, fugida, que só serve para apanhar.
Veja minhas irmãs: uma casou com um médico do Exército, mora no Rio; a outra, o marido
é empregado do Correio. Nenhuma passa o que eu passo, nem sonha!” (QUEIROZ, 2018,
p. 51).
As personagens secundárias do romance, mostram, ainda que rapidamente e de forma
menos detalhada, o que as figuras femininas estão sujeitas caso não façam parte de classes
“respeitáveis” da sociedade, demonstrando que a luta das mulheres não se desvincula da
antirracista, e, de classes: (Hosana) “Conheceu um viúvo, cliente dos ricaços, pobre, triste e
carregado de filhos. Casou. Maria José foi a esquecendo. Soubemos depois que morreu de
parto.” (QUEIROZ, 2018, p. 39).
Ter a escrita e autoria de Rachel difundida e quebrando os padrões das personagens da
época, no Brasil, foi um marco, pois, ela não questionava a importância, mas as situações as
quais as personagens (mulheres) eram colocadas. As mortes de jovens mães, principalmente
após o parto, são comuns ao decorrer da nativa, entretanto, nota-se, sob certa perspectiva,
um modo singular, de como Rachel denuncia, com certa ironia até:
Marília : — Marília, tão lenta, feia e boa, com a sua aparência de calma segurança
e interiormente cheia de grandes ternuras e impulsos apaixonados. Casou por amor,
mal saída do colégio, com um rapazinho de bigode e costeletas, galã juvenil do grêmio
teatral do bairro. Morreu de tifo, dois meses depois de dar à luz uma filhinha.
Fui vê-la na casa de saúde. Morria e não dava por isso, agarrava-se às mãos do marido,
perguntando, já com a fala atrapalhada pela morte: “— Válter, engomaram seu terno
branco?” (QUEIROZ, 2018, p. 207).
80
Uma das personagens secundárias que mais nos chamou atenção foi Jandira, filha de
prostituta, discriminada pela própria família, e apenas uma das tias lhe dava apoio, já era de
se imaginar o destino traçado da pobre menina. Mas, Jandira era forte e decidida, embora
soubesse o que estava predestinado para ela, não deixava de desfrutar a vida. Rachel prepara
três momentos para Jandira: casamento, aparentemente um bom casamento, assim fazendo
com que suas outras duas tias parassem de criticá-la; porém, o casamento se torna algo
insuportável, mas que ela não poderia separar, pois não iriam mais encomendar costuras de
uma mulher separada e Jandira não teria mais como sustentar o filho e a casa; e o terceiro
momento é a independência de Jandira, com a herança da tia que a apoiava:
Estava feliz, apesar do luto. Feliz, e calma, desafiando o mundo como sempre, mas
desafiando-o agora sem o seu sombrio desespero de antes.
Apareceu na sua vida um elemento de alegria e compensação: tem um amante. Contounos tudo, talvez para se justificar; disse o que nos escondera naquela última visita: a sua
vida miserável com o marido, a degradação dele, a penúria em que vivia, o seu martelar
na máquina dia e noite, para garantir o leite do filho.
A herança chegou, trouxe a salvação consigo, ia lhe dar segurança, arrancá-la do trabalho
excessivo. Já era tempo: sentia os rins rompidos de tanto se curvar sobre a máquina, e
talvez o ceguinho não resistisse por mais tempo à falta de remédios e ao desconforto. E
Jandira agora esperava viver, esperava tirar da vida algumas das boas coisas que ela lhe
negara sempre. (QUEIROZ, 2018, p. 197).
Segundo Marques (2010), por mais que as meninas tentassem fugir imaginativamente
do claustro que viviam no internato, a mentalidade patriarcal encontrava-se arraigada de tal
forma, que só conseguiam fantasiar com casamentos e formações de famílias, nada além de
uma vida estabelecida pela sociedade burguesa.
Conforme Lima (2019), “A mentalidade apresentada no Romantismo já existia antes
do próprio Romantismo, trata-se de uma ordem social pouco questionada por boa parte da
sociedade, que se preocupa em manter os lugares sociais bem definidos.”, ou seja, a fuga de
Teresa por mais que tenha sido uma atitude que ia contra a ordem e a moral da época não
saiu do contexto romântico, a amada que vai ao encontro do seu amor proibido e fogem
juntos.
Guta se mostrava curiosa, da família falava pouco, quase nada, lia muito e começava
a ter outros interesses. Com uma visão muito tradicional, ia se descontruindo e criando
indagações sobre ser mulher e a forma de como são construídas suas imagens diante da
sociedade:
81
Não conseguiria imaginar uma irmã, comendo, vestindo-se, dormindo; não podia crer
que houvesse um coração de mulher, um corpo de mulher debaixo da lã pesada do
hábito. Certo dia, olhando uma irmã muito nova, chegada há pouco da Casa-Mãe,
notei-lhe o busto redondo, farto, levantando-lhe a linha dura do corpete. Baixei
os olhos com vergonha e confusão. [...] Tudo isso, só porque um humilde busto se
afirmava, inocente e redondo, onde eu achava que devera existir um sumido peito de
asceta. (QUEIROZ, 2018, p. 40-41).
Rachel descreveu Guta como “Ela é daquelas que a Escritura chama: as filhas dos
homens”, talvez em oposição aos filhos de Deus, já que a menina possuía desejos e, não
reconhecia aos papeis postos a ela naquela sociedade, era feita de carne. Quando a mãe de
Maria José descobre que Guta está grávida, não a julga, fala apenas que a menina não era
culpada de não ter mãe, a culpa da criação de filhos sempre recai a mãe, mas, Guta teve a
madrinha que a criara, que dava tudo de melhor a ela mais que aos filhos biológicos, para
que não a julgassem de madrasta ruim e, isso remete ainda aos contos de fadas, de que se
não é mãe biológica, é madrasta (má), não-mãe.
E, por fim, Rachel de Queiroz, com toda sua proposição em torno das mulheres e da
sociedade, trabalha com o tema do aborto, tema tabu em nossa literatura, de modo sutil, a
ponto de permitir a(o) leitor(a) concordar ou pelo menos não julgar a jovem em construção:
Maria José parecia uma criança, cabelo ao vento, rindo, gritando meu nome.
O chicote tangenciava o bar, numa das curvas. Ao passar ali, ouvi um bêbedo indignado
gritando: “— Isto é um crime!”
Encolhi-me assustada na cadeira.
— Crime? Se fosse um crime, Maria José me chamaria assim tão inocente, tão alegre?
E eu continuava a ir, rodava mais, ria com ela, deixava-me arrastar loucamente, fechando
apenas os olhos a um choque mais brusco, que me abalava toda.
Certos momentos despertava, queria saltar, salvar-me, fugir dali. Mas pensava logo
que eu não fazia nada, não agia, deixava-me apenas levar pela vontade dos outros. Não
era crime. E o bêbedo já fora embora, gesticulando violentamente entre dois alemães
abrutalhados que o arrastavam para fora.
Foi-se embora para sempre o pobre pequenino. Quem sabe não teria os mesmos olhos
azuis de Isaac?
Nem mesmo chegou a ter olhos, coitadinho. (QUEIROZ, 2018, p. 211).
82
De acordo com Neila Souza (2018), caso pensemos a narrativa literária sustentada por
ligações com o mundo real, parcelas da vida aparecem na formação de sentidos advindos da
realidade, dos processos ideológicos, demonstrando um fato social comum sobre a literatura
contemporânea: condição feminina, maternidade.
Rachel, em 1939, consegue trazer para debate a independência da mulher, tanto
material quanto sexual, os salários desiguais, as condições, as permissões, o aborto de Guta,
a volta à casa do pai. Levando em consideração os fatos e o fim da narrativa aberta, qual
seria o futuro de uma jovem, que não era mais virgem e que em tal época não seria digna de
um bom casamento? Ficaria sujeita às ordens da madrinha? A escritora deixou para que os
leitores julgassem uma jovem em construção, como pessoa, como mulher.
Por isso, ainda que ficcional, Rachel, expõe as violências sofridas por mulheres, jovens
adolescentes, que se submetem ao casamento e consequentemente à maternidade por conta
de uma cultura misógina; mulhere que não sobrevivem, e, quando sobrevivem, deixam
de ser mulheres para serem esposas, donas de casa, mães, aparentemente é uma violência
silenciosa, aceita e disseminada pela sociedade.
Considerações finais
O tema relacionado ao casamento e à maternidade como “escolhas” e permissões na
vida de uma mulher surgiu quando percebemos que tudo a minha volta girava em torno da
sobrecarga das mulheres. O sentindo de “mulher completa” e a misoginia nele carregada,
me proporcionaram indagações para chegar a essa escrita, pois, mulheres são julgadas,
condenadas desde o nascimento. A mulher há de seguir determinados caminhos que são
considerados primordiais já que cristalizados no imaginário da sociedade ocidental, caso não
siga, não será considerada mulher, ou, será menos mulher.
A Teoria da Residualidade esquematizada por Roberto Pontes foi primordial para
entender sobre a sensação de perpetuação dessa violência. De modo que a Residualidade é
pautada no conceito de resíduo e que está intimamente ligado ao de mentalidade, estudando
elementos vivos que permanecem presentes ao longo das épocas na sociedade através da
mentalidade social, que seria a construção do pensar humano, porém dentro de um processo
de atualização, devido ao contato de várias culturas.
Ao ler Rachel, pudemos perceber o discurso de denúncias permeados e silenciados em
volta do casamento e, principalmente da maternidade, que é tratada pela sociedade como algo
83
divino, mas que levam jovens a perderem sua infância, a abdicar de sua vida, seus desejos, e a
morrerem. Diante do exposto, essa análise me possibilitou, sob orientação, estudar um tema
que considero importante, por se tratar de algo que é divinizado pela sociedade, mas que
colabora com a violência contra mulher. Ainda que ficcionais, as denúncias são de extrema
importância, pois, aos que leem, é permitido desenvolver a capacidade e consciência de
não mais permitir tais violências. Para isso, e por isso, o incentivo à leitura e à pesquisa, são
necessários.
Referências
AMADO, Guilherme. Bolsonaro Já Desejou Morte de Dilma “De Câncer ou de Infarte. Época,
15/06/2019. Disponível em: ”https://epoca.globo.com/guilherme-amado/bolsonaro-ja-desejoumorte-de-dilma-de-cancer-ou-de-infarte-23742421 > acessado em 19/02/2020.
AREND, Silvia Maria Fávero. Trabalho, escola e lazer. In: PEDRO, Joana Maria; PINSKY, Carla
Bessanezi (Org.). Nova história das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o Mito do Amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo Vol. I. e II. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2018.
BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina: A condição feminina e a violência simbólica. Trad.
Maria Helena Küher. Rio de Janeiro: BestBolso, 2014.
CARTA CAPITAL. Quem é Ustra o torturador celebrado por Bolsonaro até hoje. Carta Capital,
17/10/2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/quem-e-ustra-o-torturadorcelebrado-por-bolsonaro-ate-hoje/ > acessado em 22/02/2020.
CASTANHEIRA, Cláudia. Escritoras brasileiras: momentos-chaves trajetória. Revista Diadorim.
Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/diadorim/article/view/3917> acessado em
18/04/2020.
CERQUEIRA, Daniel; MOURA, Rodrigo;PASINATO, Wânia. Participação no Mercado de Trabalho
e Violência Doméstica Contra as Mulheres no Brasil. Rio de Janeiro, IPEA, 08/2019. Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2501.pdf > acessado em 19/02/2020.
COFEN. Conselho Federal de Enfermagem. Uma mulher morre a cada 2 dias por aborto inseguro,
diz Ministério da Saúde. COFEN, 03/08/2018. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/umamulher-morre-a-cada-2-dias-por-causa-do-aborto-inseguro-diz-ministerio-da-saude_64714.html
> acessado em 19/02/2020.
COUTINHO, Afrânio. Conceito de Literatura Brasileira. Petrópolis , RJ: Vozes, 2014.
84
GRAMINHA, Pedro. Deputado propõe proibir pílula do dia seguinte e recua após repercussão.
São Paulo, UOL, 06/02/2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimasnoticias/2019/02/06/deputado-do-psl-quer-proibir-abortos-e-anticoncepcionais.htm?cmpid
>
acessado em 19/02/2020.
GOMES, Paulo. Brasil registra mais de 180 estupros por dia; número é o maior desde 2009. São
Paulo, UOL, 11/09/2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/
brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-dia-numero-e-o-maior-desde-2009.shtml> acessado em
19/02/2020.
GUNKEL, Nicolas. Piada de Bolsonaro sobre sua filha gera revolta nas redes sociais. Exame, 06/04/2017.
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/piada-de-bolsonaro-sobre-sua-filha-gera-revoltanas-redes-sociais/ > acessado em 19/02/2020.
LIMA, Vanessa. Jair Bolsonaro diz que mulher deve ganhar salário menor porque engravida.
Crescer, 23/02/2015. Disponível em: https://revistacrescer.globo.com/Familia/Maes-e-Trabalho/
noticia/2015/02/jair-bolsonaro-diz-que-mulher-deve-ganhar-salario-menor-porque-engravida.
html > acessado em 19/02/2020.
LIMA, Neivana Rolim de. Protagonismo feminino e violência em Simá – romance histórico do alto
Amazonas –, de Lourenço Araújo e Amazonas. Dissertação. PPGL, UFAM, 2019.
MARQUES, Jorge. Condição feminina e confinamento em As três Marias, de Rachel de Queiroz.
Revista Diadorim. Disponível em: https://doi.org/10.35520/diadorim.2010.v7n0a3909 > acessado
em 05/01/2020.
MASSI, Marina. Vida de Mulheres: cotidiano e imaginário. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992.
MOREIRA, Maria Cecília Gonçalves. A Violência entre Parceiros Íntimos. O Difícil Processo de
Ruptura. PUC - Rio de Janeiro Dez, 2005.
MOURA, Fadul. SERAFIM, Yasmin. ZUCOLO, Nícia. (Org.) Jogos de Poder em Literatura: gênero,
transgressão, violência. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2018.
NASCIMENTO, Cássia Maria Bezerra do. A complexidade nos estatutos do homem Thiago de Mello.
Tese de Doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia, UFAM, 2014.
PERROT, Michelle. Minha História das mulheres. Tradução Angela M. S. Côrrea. São Paulo:
Contexto, 2019.
PONTES, Roberto. MARTINS, Elizabeth Dias. CERQUEIRA, Leonildo. NASCIMENTO,
Cássia Maria Bezerra do. (Org.) Residualidade e Intertemporalidade. Curitiba: CRV, 2017.
PONTES, R. (Org) et al. Todas as idades são contemporâneas: estudos de residualidade literária e
cultural. Macapá: UNIFAP, 2019.
QUEIROZ, Rachel de. As Três Marias. Rio de Janeiro: José Olympio LTDA, 2018.
REDAÇÃO. Agressão e ameaça complicam ainda mais Bolsonaro com mulheres. Exame, 25/09/2018.
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/agressao-e-ameaca-complicam-ainda-maisbolsonaro-com-mulheres/> acessado em 19/02/2020.
REDAÇÃO. Bolsonaro faz insinuação sexual a repórter; jornal acusa quebra de decoro. Veja,
18/02/2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-faz-insinuacao-sexual-a-
85
reporter-jornal-acusa-quebra-de-decoro/> acessado em 19/02/2020.
REDAÇÃO. Não estupro porque você não merece”, diz Bolsonaro a Maria
do Rosário. Isto É, 09/12/2014. Disponível em: https://istoe.com.br/395929_
PRO+PORQUE+VOCE+NAO+MERECE+DIZ+BOLSONARO+A+MARIA+DO+ROSARIO/
> acessado em 19/02/2020.
ROSSINI, Tayza. A Construção do Feminino na Literatura: Representando A Diferença. Trem de
Letras - Revista do Depto. de Letras da Unifal-MG ISSN-2317-1073.
SAMPAIO, Enderson de Souza; SOUZA, Maria Luiza Germano. Paradoxos do Feminino em Triste
Fim de Policarpo Quaresma. In. MOURA, Fadul; SOUZA, Maria Luiza Germano; OLIVEIRA,
Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira de. (Orgs.) Exercícios de teoria literária II. 1.ed. – RJ:
Letra Capital, 2017.
SOUZA, Patrícia Alcântara de. Marias de Rachel de Queiroz: percursos femininos em O Quinze, As
Três Marias e Dôra, Doralina. Dissertação, UFG, 2008.
SUDRÉ, Lu. COCOLO, Ana Cristina. Brasil é o 5º país que mais mata mulheres. São Paulo,
UNIFESP, SUMÁRIO EDIÇÃO 7. Disponível em: https://www.unifesp.br/reitoria/dci/edicaoatual-entreteses/item/2589-brasil-e-o-5-pais-que-mais-mata-mulheres> acessado em 19/02/2020.
86
CAPÍTULO 6
Da representação à resistência: uma análise da obra
“A Divorciada”, de Francisca Clotilde
Erika Maria Albuquerque Sousa,
Solange Santana Guimarães Morais
Considerações iniciais: Quem foi Francisca Clotilde?
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.
- Simone de Beauvoir.
Partindo da citação de Simone de Beauvoir (1908-1986), pretende-se aqui traçar a
gênese biográfica da autora cearense Francisca Clotilde Barbosa Lima, que nasceu em 19 de
outubro de 1862, na fazenda São Lourenço, em São João do Príncipe, local onde se encontra
hoje a cidade de Tauá, no sertão dos Inhamuns. Filha do coronel João Correia Lima e de
Ana Maria Castello Branco, casal de abastança financeira. Pertencendo a uma ascendência
familiar com valores conservadores, patriarcalistas e patrimonialistas1.
Devido à seca que assolou o Ceará, em meados da década de 70 do século XIX, a família
de Clotilde precisou se mudar para Baturité, onde a família materna tinha poder político.
Com a migração, Francisca Clotilde teve seus primeiros estudos com a professora Ursulina
Furtado. Logo ao término da instrução primária passa a estudar no Colégio da Imaculada
Conceição, em Fortaleza: “No qual estudavam as moças vindas do sertão, desejosas de uma
instrução e uma educação melhor” (GIRÃO e SOUSA, 1987, p. 86).
1 Agradecemos a participação do professor mestre Francinaldo de Jesus Morais, autor do livro Ecos da escravidão (2008)
e membro do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NUPLIM/CNPQ, pelas contribuições quanto aos
aspectos históricos citados neste artigo.
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-6
87
Nessa escola religiosa, administrada por freiras da Ordem das Irmãs de Caridade, as
filhas de grandes fazendeiros do interior cearense eram estudantes internas. Essa instituição,
ainda, prestava serviço aos órgãos públicos, os quais pagavam mensalmente para que as
irmãs adotassem as meninas pobres/órfãs que eram vítimas da seca. O colégio dividia-se
em duas alas, a das meninas abastadas, filhas dos grandes comerciantes, fazendeiros e altos
funcionários de instituição pública ou privada, e, a ala das meninas pobres, as quais não
possuíam condições sociais e/ou familiares. As primeiras recebiam uma educação que as
preparassem para saírem aptas a um casamento, e, as outras, as órfãs, para trabalharem em
casas de família ricas, seriam educadas para serem serviçais.
Pode-se perceber que as desigualdades sociais eram apresentadas desde a mais tenra
idade, pois na escola, as meninas/mulheres conheciam os ditames que a sociedade queria que
elas seguissem, influenciando esse destino em sua formação social/humana. Dessa forma,
naquela época, os casamentos eram uma negociação entre os pais, um contrato, onde o que
prevaleceria, para o sucesso de um bom negócio entre as famílias, seria a formação da moça,
para um consórcio ligado ao sacramento matrimonial.
A educação feminina, instruída numa escola religiosa, era direcionada à obediência.
Uma boa moça casadoura seria aquela educada e obediente, passiva quanto as suas próprias
vontades e educada nas formas da lei da etiqueta. Deveria conhecer prendas domésticas para
saber administrar uma casa e falar francês. Isto demonstraria que tinha cultura, pois conhecer
uma língua europeia mostrava que pertencia ao berço da civilização culta. Além de coser,
pois era a moça que costurava e bordava seu enxoval de casamento, quanto mais delicado o
bordado e a finura na costura, mais demonstrava a educação da pretendente à esposa; tocar
piano era outra característica que a colocava em um status de abastança cultural. A futura
esposa deveria seguir todos esses requintes, pois deixaria de pertencer ao pai e passaria a ser
um produto do marido. Este tinha amplos poderes sobre ela. E aquela que discordasse desse
pensamento sofreria consequências por uma atitude tão insolente.
Na capital cearense, a autora possui uma nova realidade, já não tem uma vida tão
restrita como a da cidade interiorana. Diante de novos horizontes e com novas possibilidades,
ocorrem algumas vezes choques com personalidades familiares e religiosas. E é nessa cidade,
em Fortaleza, que Francisca Clotilde manifesta seus primeiros interesses pelas Letras. Ao
quatorze anos inicia sua escrita literária, quando escreve em 1º de fevereiro de 1877, no
jornal O Cearense, a poesia Horas de delírio.
Foi nessa sociedade tão perfeita, projetada e esquematizada pelos familiares que cresceu
e viveu Francisca Clotilde. Ela, seguindo os princípios da educação que recebera, aceita
o casamento com Francisco de Assis Barbosa Lima, o Zeguedegue, assim que conclui os
estudos no Colégio da Imaculada Conceição. O casamento ocorreu em 1º de novembro de
88
1880. A união foi difícil e pesarosa por conta do hábito de embriaguez do marido, este acaba
por enlouquecer, sendo internado no Asilo de Alienados do Rio de Janeiro, de onde fugiu
para lugar desconhecido.
Vida e obra da escritora em questão sempre estiveram muito entrelaçadas, pois desde
as suas primeiras formações a autora se via diante de uma sociedade e de uma cultura em que
a mulher era vista como um ser inferior ao homem e que não possuía direito a voz dentro
da sociedade. Dessa forma, Francisca Clotilde tomou como mote a realidade em que vivia
e tornou-se protagonista da própria história, resistiu e sofreu as consequências da luta pela
emancipação feminina na sociedade cearense do século XIX.
Francisca Clotilde: o esquecimento como autora
Francisca Clotilde não só nasceu mulher, como tornou-se mulher. Dedicando toda a
sua vida na construção da própria história, pois queria ter um legado diferente das demais
mulheres cearenses. Mesmo obedecendo aos princípios que a sociedade impunha à época
não quis permanecer no papel de esposa obediente ao marido. Lutou por sua participação
ativa no universo intelectual masculino, não como coadjuvante, mas como protagonista.
Em meados do século XIX e início do século XX, participou ativamente na sociedade
fortalezense como professora e literata, enfrentando muitos preconceitos, haja vista, que era
um espaço intelectual destinado ao público masculino. Mas não desistiu, demonstrando o
quanto uma mulher pode ser ativa intelectualmente. Diante disso, escreveu em revistas e
jornais cearenses, bem como em outros Estados. Foi autora de romances, contos, poesias e
dramas. Professora das primeiras letras, lecionou as disciplinas de Pedagogia e Metodologia
da Escola Normal do Ceará. Tornou-se a primeira mulher a lecionar nessa instituição
educacional.
De acordo com os estudos de Luciana Almeida (2008), fundou uma escola mista,
fato novo para a época, em Fortaleza, e depois a transferiu para Baturité, um espaço em que
meninas e meninos estudavam juntos e podiam, provavelmente, trocarem ideias. É também
em Baturité que Clotilde lança a revista “A Estrela”, na qual muitos escritores e escritoras
publicaram textos.
A autora em questão rompeu muitas barreiras para ser escritora e professora. Em
consequência disso, foi muito criticada, recebendo indiferença e esquecimento sobre seu
trabalho intelectual. Esse estado de esquecimento que autora sofreu foi principalmente por
viver intensamente um amor proibido. Fica demonstrado, aqui, a importância de se estudar
89
a história de uma pessoa, porque em sua trajetória individual pode-se encontrar rastros
de outras pessoas, lugares, instituições, não obstante as circunstâncias, conforme assevera
Vasconcelos Junior:
Chegando à questão da biografia, é interessante notar como a trajetória biográfica de um
personagem pode se confundir com a de um lugar ou a de uma instituição. A pesquisa
biográfica representa, muitas vezes, um recurso metodológico gerador de inúmeras
possibilidades para a reconstrução histórica e, em particular, para a compreensão de
determinados contextos. O fato da biografia não ser tão utilizado pela academia não
retira a sua importância como processo descobridor e elucidativo de muitas questões
nas pesquisas historiográficas principalmente, por direcionar seu enfoque ao homem e
não às circunstâncias. [...] Outro ponto importante na produção historiográfica atual
é o resgate de facetas diferenciadas dos personagens enfocados e não apenas, como nos
trabalhos tradicionais, a vida pública e os feitos notáveis destes. Assim, emergem em
seus textos, entre outros aspectos, os sentimentos, o inconsciente, a cultura, a dimensão
privada e o cotidiano (VASCONCELOS JÚNIOR, 2011, p. 26-27).
Em 1882, Clotilde realiza o Exame de Capacidade para lecionar nas primeiras letras do
ensino público primário, sendo nomeada interinamente para a 23º cadeira do sexo feminino
de Fortaleza. No ano de 1884, prestou concurso de provimento efetivo para as cadeiras do
ensino primário superior. Em 27 de junho do mesmo ano, foi nomeada professora para a
cadeira feminina superior anexa à Escola Normal, tornando-se a primeira mulher a lecionar
na instituição.
Durante o exercício de suas atividades na Escola Normal, acaba se apaixonando
por Antônio Duarte Bezerra (Capitão Duarte), professor de Aritmética e Geometria do
Liceu, com quem passou a ter um relacionamento amoroso e com ele teve quatro filhos.
Entretanto, viu-se diante de uma situação de entrave, pois civilmente, Francisca Clotilde
ainda estava casada com o primeiro esposo desaparecido. Por conta disso, essa união não
foi bem vista pela sociedade cearense da época, pois seu dever de esposa seria esperar pela
volta do marido. Clotilde optou pela busca da felicidade e recomeçou sua vida: “desejava
ardentemente construir um novo lar. Não podia, pois não sabia se o marido vivia ou não.
A sua inteligência foi cada vez mais se deixando envolver pelos tentáculos do misticismo”
(MONTENEGRO, 1953, p, 112).
Segundo Leal (1996, p.73), em 1886, Clotilde “integrava o Clube Literário, do
qual A.D.Bezerra era um dos fundadores”, onde “desfruta o conceito de hábil filigranista
e contista” (MONTENEGRO, 1953, p. 109). Há, nesse período, um vasto número de
colaborações de Clotilde nos jornais O Domingo e no abolicionista O Libertador, do qual
participavam figuras como Rodolfo Teófilo, Clóvis Beviláqua e Juvenal Galeno. Em 1886,
ela redige com Duarte Bezerra e Fabrício de Barros o jornal científico e literário A Evolução.
90
Os autores Maria da Conceição Sousa e Raimundo Girão interpretam a participação
da escritora em jornais e revistas, como característicos “de teor romântico confessional ou
paisagístico, já em provas, nesta incluída e dramática, a de ficção e também de um ativo
e atrevido jornalismo ideológico e político” (GIRÃO e SOUSA, 1987, p.86). Dentre sua
produção literária ainda inclui Coleção de Contos, que na opinião de Barão de Studart se trata
de “belo romancete de propaganda abolicionista” (1897); Noções de Aritmética (1889); A
Divorciada, (1902); Fabiola (drama sacro em três atos) e Pelo Ceará (série de artigos editados
na Folha do Comércio, por volta de 1911).
Dentre todas as suas produções e participações ativas na sociedade cearense, o estopim
de sua carreira como escritora se deve à publicação de seu romance, em 1902, intitulado
“A Divorciada”. Cansada de tantas críticas por sua união com Antônio Bezerra, Francisca
Clotilde resolveu manifestar-se por meio da literatura. Este fato causou um grande rebuliço
dentro da sociedade da época, como afirma Almeida (2012, p. 220): “O livro chocou a
sociedade por se tratar de um assunto tão antifamiliar. A obra focalizou o tema do divórcio
setenta e cinco anos antes da lei ser aprovada no Brasil”:
Afinal, estamos em 1902. Há dois anos, em 1900, Rui Barbosa votava contra a proposta
divorcista de Martinho Garcez. E temos 75 anos ainda pela frente até assistirmos à
aprovação do projeto divorcista – permitindo novo casamento – projeto de Nelson
Carneiro, que é de 1977 (GOTLIB In CLOTILDE, 1996, p. 62).
Segundo Mota (2007, p. 84), “uma missão do Romance é propor um Mundo Novo.
E isso a romancista propôs. Uma proposta que só seria acatada pela Lei brasileira setenta
e cinco anos depois da publicação de A Divorciada”. Dessa forma, a obra foi recebida
com indiferença, como aponta Otacílio Colares: “[...] o estabelecimento de uma espécie
de cinturão de gelo, um clima pior que o de combate – o da indiferença total e mesmo
criminosa, porque significou omissão de toda a geração contemporânea da autora” (1977,
p.59-60).
Toda essa má repercussão da obra e sua atuação ativa como mulher dentro de uma
sociedade totalmente conservadora contribuiu para o seu esquecimento como autora, uma
vez que as grandes elites da época não toleravam as extravagâncias de Francisca Clotilde.
Busca-se aqui reacender essa obra que esteve à frente do seu tempo e é considerada
um clássico, levando em consideração a ideia de clássicos de Ítalo Calvino, tidos como todos
àqueles “livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam
a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou
mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)” (CALVINO, 1993, p.11). A obra em
questão é um clássico por defender um assunto que ainda é atual na sociedade do século
XXI.
91
Análise da protagonista Nazaré: da representação à resistência
Editado pela primeira vez em 1902, o romance “A Divorciada”, de Francisca Clotilde,
narra em forma de reminiscências evidentes a vida da escritora e sua trajetória, onde
pressupõe-se encontrar vestígios autobiográficos, percebidos em detalhes dentro da narrativa.
A história gira em torno da personagem Nazaré, a caçula de três irmãs, órfãs de mãe e filhas
do Coronel Pedrosa. Nazaré se encontrava com tuberculose, doença rara à época, por esse
motivo o pai ao descobrir que a filha predileta estava doente, muda-se com a família para
Redenção, interior do Ceará, no intuito de fazê-la respirar melhores ares e revigorar a saúde:
Quando a moléstia atingiu-a e pesou sobre a casa uma tristeza de morte, um
pressentimento negro de fatalidade, e o pai que a idolatrava, ainda mais depois da
morte da esposa, curtiu longas torturas em noites de insônia, julgando perder a mais
bela esperança de sua vida (CLOTILDE, 1902, p. 16).
Ao chegarem ao povoado, Nazaré acaba conhecendo Chiquinho, um matuto do
interior, quando estava na comunidade cuidando das pessoas carentes. Entretanto, reconhece
a impossibilidade desse amor, pois já era prometida ao primo Arthur Pedrosa, bacharel em
direito. Devido, também, à diferença de sua classe social ante a de Chiquinho, Nazaré segue
as orientações paternas e casa-se com Arthur. Tendo um casamento pesaroso, pois logo após
os votos matrimoniais, o primo apresenta-se um homem de péssimo caráter, dado ao vício
de jogos e bebidas. Afundando-se em dívidas, passa a roubar e por este e outros motivos
acaba fugindo para o Norte, com Glória, prima de Nazaré. Esta aguentava firme, resignada
a todos esses sofrimentos impostos pelo marido. O coronel Pedrosa, movido pelo remorso,
incentiva a filha a divorciar-se do bacharel Arthur. Pouco tempo depois, Artur vem a falecer
e, após o período de dois anos de luto, Nazaré, finalmente, conseguiu casar-se com seu
grande amor, Chiquinho.
Partindo do prólogo supracitado, pretende-se analisar neste tópico a protagonista
Nazaré, que segundo a descrição feita no enredo, apresenta-se como uma pessoa de espírito
elevado, cheia dos mais admiráveis sentimentos cristãos, pronta a doar-se em favor do
próximo:
Era uma criatura privilegiada, tinha uma alma de eleição sempre disposta à bondade,
procurando ensejo para derramar consolações no sofrimento alheio. Chorava pelos
outros, sentia pelas crianças infelizes uma ternura especial. As outras chamavam-na
irmã de caridade e ela era realmente digna desse título quando sentava ao colo um
pequerrucho que a desgraça orfanara bem cedo e cobria de beijos suas facezinhas
esmaecidas onde timidamente apareciam sorrisos que se acentuavam à tepidez daquelas
carícias nascidas ao influxo de caridade (CLOTILDE,1996, p. 91).
92
Devido a sua moral cristã, Nazaré tem romper com o padrão de família tradicional.
Mesmo diante de um casamento fracassado e com tantas dificuldades, encara o matrimônio
como instituição indissolúvel:
- Devias requerer o divórcio rompendo de uma vez os laços que te prendem àquele
miserável.
- Oh! Meu pai, não fale assim! Ele é o pai de meu filho e eu, no caráter de sua esposa,
tenho o dever de socorrê-lo e de trata-lo em casos como este em que se encontra agora.
Abandoná-lo quando ele expia os desvios de uma vida viciosa, à míngua do socorro
dos homens, seria de minha parte uma ação revoltante, e eu jamais praticarei assim
(CLOTILDE, 1996, p. 250).
Nazaré se comportava de tal maneira, tendo em vista que quando a obra foi escrita,
em 1902, ainda vigorava no Brasil o Decreto n° 181, de 1890, que instituía o casamento
civil. Esse decreto, no entanto, não determinava a dissolução do vínculo conjugal, mas
permitia apenas a separação de corpos, sendo vedado aos dois contraírem novo matrimônio
condição que recaía, principalmente, sobre a mulher.
Além disso, era comum à época que a mulher aceitasse as decisões proferidas pelos
pai e esposo, pois era vista como um objeto de enfeite, esquecendo-se que ela era um ser
humano que possuía livre arbítrio e que tinha vontades. Dessa maneira a preservação do
nome social sob quaisquer circunstâncias e o casamento por interesse eram situações em
que não só a autora-personagem vivenciava como todas as esposas que enfrentavam um
casamento ruim, assim:
O casamento, para a maioria dessas mulheres, era uma missão e não um ato amoroso
que objetivasse o prazer. Aprendiam com as mães a serem obedientes e submissas à
vontade de seus pais, como teriam que ser, no futuro, à vontade de seus maridos. Sua
felicidade consistia em ter levado essa missão até o fim e morrer cercada do carinho dos
filhos e netos e do respeito de seu marido (LEAL, 2004, p. 17l).
Nazaré representava de forma completa o papel atribuído e idealizado pela Igreja
à mulher, devendo ser obediente ao pai, amável e submissa ao marido e, como as irmãs,
casta, recatada e com uma vida social de aparências. Embora culta, somente lia as
recomendações apropriadas às moças, quais sejam, aquelas que reforçavam a idealização da
felicidade doméstica:
Admirava-se quando lia romances, do meio entontecedor das grandes capitais.
Revoltava-se com aquelas noites de loucura passadas na ópera de Paris, nos restaurantes,
em que a saúde dos moços se arruína e a falta de repouso acarreta consequências funestas
para o vigor físico e para o humor. Era tão feliz o casal rústico morando em uma
93
casinha perdida na folhagem, perto de um regato murmurante que lhes trazia agradável
frescura e onde os pássaros em doce revoada, vinham dessedentar-se nas horas de calor!
(CLOTILDE, 1996, p.93).
Seguindo as exigências da sociedade e silenciado o seu amor por Chiquinho e seu
sofrimento diante da difícil união, Nazaré mantinha seu casamento de aparências: “Resignouse a sofrer calada, e no outro dia ao entrar em casa do pai aparentou o mesmo ar prazenteiro
dos bons tempos. Não queria absolutamente que ninguém desconfiasse do seu sofrimento”
(CLOTILDE, 1996, p. 186-187). Com receio do escândalo que poderia ser se decidisse
abandonar aquele posto de esposa resignada, mantendo para si mesmo o seu martírio:
Divorciada! Esta palavra fatídica vinha ao espírito da Nazaré logo pela manhã quando
despertava e o sorriso do filho lhe envia um bom dia dulcificante e cheio de esperanças
e de paz. Quebrara todos os laços que a uniam ao marido; mas seu coração igualmente
se despedaçara. Que terrível desenlace tivera o seu casamento!
Perguntava a si mesma no silêncio, recolhia e desolada, o que havia feito para merecer
tão rude castigo, e a sua consciência de nada a exprobava. Repousava serena na certeza
do dever cumprido.
Quantas súplicas levantadas todos os dias ao Deus bondoso para que desviasse o marido
do mal!
Ele não escutara a prece fervorosa, queria acrisolar su’alma virtuosa na adversidade. Era
cristã, resignava-se. Tinha de viver dali em diante totalmente sequestrada do mundo
ocupando a mais triste posição na casa paterna. Quantos comentários se faziam a
respeito dela! (CLOTILDE, 1996, p. 270-271).
Após muito lutar pelo casamento viu ali uma obra perdida e ansiava pela separação,
tendo o apoio do pai, afinal ele se sentia culpado pelo casamento da filha, pois ela só casara
com Artur por causa da vontade e imposição do patriarca. Diante disso, para Abelardo
Montenegro (1953, p.110), a obra de Francisca Clotilde visa analisar “os problemas do lar,
a função do filho no casal, o casamento por conveniência, a intromissão dos pais no ato da
escolha. Tudo é examinado à luz da moral dominante. A mulher cearense ainda tem o esposo
escolhido pelos pais. A regra geral, entretanto, vai cada vez mais cedendo às exceções”.
Vemos em A Divorciada “um romance, enfim, profundamente marcado pelos cânones
católicos, traduzidos também nas recompensas e castigos finais distribuídos, respectivamente,
aos personagens “bons” e “maus” ”(OLIVEIRA, 2000, p.113). Pois, ao final da história,
Arthur acaba falecendo e Nazaré, divorciada e livre, casa-se com Chiquinho, o homem que
sempre amou.
94
A protagonista Nazaré, embora com todos os percalços do romance, acaba representando
muitas mulheres daquela época e, ainda, dos dias de hoje. Demonstra o que esposas, filhas
e mães sofrem em situações como a do enredo, representando a resistência que as mulheres
devem ter diante de uma sociedade machista.
Considerações finais
As mulheres não são como os homens – independentes entre si. As nossas almas são elas
umas das outras e essa corrente enorme [...] estremece quando um elo se parte. [...] enquanto
houver na terra uma mulher sacrificada, as outras não têm direito de cruzar os braços
indiferentes.
Maria Lacerda de Moura (1887 – 1945),
jornalista e anarquista mineira.
Ao se estudar a biografia de Francisca Clotilde, pretendeu-se fazer um resgate da
história não só da autora em questão, mas das mulheres da sociedade cearense do século
XIX ao limiar do século XX. Sabe-se que, ao estudar a biografia modal, encontra-se não só
histórias de vida de uma protagonista, mas todo um ambiente, um contexto social, político,
familiar, religioso e intelectual ao qual o personagem estava inserido. Desta maneira, muitas
escritoras encontram nos romances, na criação de seus personagens e nos cenários fictícios
uma oportunidade de escrever sobre suas inquietações, críticas e vivências. Fatos esses que
não poderiam ser expostos publicamente, assinados com seu próprio punho. E este foi o
caso de Francisca Clotilde.
Através de sua história, pôde-se constatar como era a educação das mulheres e os
padrões impostos à época. Clotilde retrata e denuncia, através de sua personagem Nazaré,
os anseios que sofria. Uma mulher à frente de seu tempo, obstinada, e que causou muita
repercussão. Por ser forte, destemida e corajosa pagou um preço alto, sendo levada ao
esquecimento por sua rebeldia.
Trazemo-la à tona, mais forte e mais viva!
95
Referências
ALMEIDA, Luciana Andrade de. A Estrella: Francisca Clotilde e literatura feminina em revista no
Ceará (1906-1921). Fortaleza: Museu do Ceará, Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006.
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
CLOTILDE, Francisca. A divorciada. [estudos críticos Otacílio Colares, Ângela Barros Leal e Nádia
Battella Gotlib]. 2. ed. Ceará: Editora Terra Bárbara, 1996.
CLOTILDE, Francisca. A divorciada. Ceará: Typ. Moderna a vapor - Ateliers Louls 71, RUA’
FORMOSA, 71, 1902.
COLARES, Otacílio. Lembrados e esquecidos: ensaios sobre literatura cearense. v. 1. Fortaleza:
Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1975.
GIRÃO, Raimundo e SOUSA, Maria da Conceição. Dicionário da Literatura Cearense. Fortaleza:
Imprensa Oficial, 1987.
GOTLIB, Nadia Battella. A Divorciada: um romance de dona Francisca Clotilde. in CLOTILDE,
Francisca. A Divorciada, 2ª ed. Ceará: Editora Terra Bárbara, 1996.
LEAL, José Carlos. A maldição da mulher: de Eva até os dias de hoje. São Paulo: DPL - Editora e
distribuidora de livros LTDA, 2004.
MONTENEGRO, Abelardo F. O romance cearense. Fortaleza: Ed. A Batista Fontenele (tip. Royal),
1953.
MOTA, Anamélia Custódio. Francisca Clotilde: uma pioneira da educação e da literatura no Ceará.
Ceará: Gráfica e Editora Canindé, 2007.
OLIVEIRA, Caterina Maria de Saboya. Fortaleza: seis romances, seis visões. Fortaleza: Edições
UFC, 2000.
Sobre a atuação de Francisca Clotilde na Revista A Estrela ver: ALMEIDA, Luciana Andrade de.
Francisca Clotilde a palavra em ação. (1884-1921). Dissertação de mestrado. Fortaleza: UFC, 2008.
VASCONCELOS JÚNIOR, Raimundo Elmo de Paula. O mundo do Barão de Studart: 1856 –
1938. In: MACHADO, Charliton José dos Santos;
VASCONCELOS JÚNIOR, Raimundo Elmo de Paula; VASCONCELOS, José Gerardo. O barão
e o prisioneiro: biografia e história de vida em debate. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
96
CAPÍTULO 7
Entre o elã erótico e a urgência crepuscular do
corpo: a resistência ululante da mulher na poética de
Regina Lyra
Guilherme Ewerton Alves de Assis, Hermano de França Rodrigues
Introdução
Procurar o que haja de bom
Procurar a melhor forma de amar
Sem restrições,
Independente,
Liberado
E amante.
Procurar o relacionamento perfeito
Procurar fora,
O que tem dentro de você.
(LYRA, 1998, p. 93)
Pode-se afirmar que o sexo e suas vicissitudes sempre foram um fermento para a criação
literária, possibilitando a grafia dos prazeres nas mais diversas sociedades – estas contrárias
ou não à literatura erótica. Segundo Mário Vargas Llosa, em um capítulo intitulado “O
desaparecimento do erotismo”, em seu célebre livro A civilização do espetáculo (2013),
escreve que: “Há muitas formas de definir o erotismo, mas a principal talvez consista em
chamá-lo de desanimalizar do amor físico.” (LLOSA, 2013, p. 57). O autor diz, ainda,
que, no passado, o coito era puramente instintivo, entretanto, nos dias hodiernos, o ato
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-7
97
sexual passou a ser uma atividade criativa que esgarça o prazer, cuja finalidade é encenar e
refinar, tornando-o uma obra de arte. Nesse caso, a arte expande-se e toma diferentes vestes,
a exemplo da escrita de poemas e/ou outros gêneros. Em um posfácio intitulado Da lira
abdominal, Eliane Robert Moraes, na Antologia da Poesia Erótica Brasileira (2017), disserta:
São misteriosos os laços que unem a poesia ao erotismo. Misteriosos e duradouros, já
que o despertar da lira de Eros parece coincidir com a própria origem das línguas e,
desde sempre, seus ecos vibram com intensidade por toda parte. Não admira, pois, que
a escrita erótica tenha sido praticada por tantos poetas e muitos deles tenha interrogado
tais segredos para melhor conhecer o pacto entre a carne e a letra (MORAES, 2017, p.
281).
É indissociável, à vista disso, o fazer poético voluptuoso, uma vez que os versos, repletos
de figuras de linguagem, sobretudo a metáfora, são um terreno fértil para o florescimento
do erotismo. Este, seria, portanto, amalgamado ao simulacro e/ou fingimento, posto que
se alberga no horto da fantasia e, invariavelmente, apenas neste solo da ficcionalidade pode
florescer plenamente: “Não há erotismo sem fantasia, assim como não há literatura sem
ficção” (MORAES, 1985). Assim, através da poesia, aciona-se no sujeito a fantasia, como
um mecanismo para trazer à lume o que estava mais abscôndito em seu inconsciente. Llosa
(2013) cunha que o erotismo, além de enobrecer e embelezar o prazer, “[...] é também uma
atividade que traz à superfície aqueles fantasmas escondidos na irracionalidade que são de
índole destrutiva e mortífera” (LLOSA, 2013, p. 58). É, nesse entremeio que irrompe o
erótico, imerso na ficção e quimera, como um fio condutor:
Estamos navegando nas águas da fabulação: por isso torna-se praticamente impossível
demarcar a linha entre o “real” e a ficção”. Afinal, estamos tratando de fantasias sexuais.
Graças à imaginação, o homem pode sempre passar todas as fronteiras alcançadas pelo
corpo renovando o fogo do desejo com o combustível da fantasia. Essa potência, o
fantasiar exacerbado, marca a produção pornográfica de forma específica e singular. Sua
característica é a total sexualização da realidade, isto é, a erotização de toda e qualquer
percepção que o sujeito tem no mundo, como se fosse um teatro dos seus desejos. [...] É
isso que promove a fantasia pornográfica; essa exacerbação da sexualidade, uma espécie
de discurso vivo do desejo em estado bruto, animal (MORAES, 1985, p. 57, grifo
nosso).
Dito isso, o germe da vida erótica colide com a criação literária, porquanto os dois se
transladem sob a égide do desejo, não se esgotando, mas sim, dardejam uma transcendência.
A poesia possibilita ao erotismo que se manifeste sem interditos, pois, as palavras encarnam
algo, como o sexo, transcende-o e ultrapassa-o, no entanto não perde os princípios primários
(PAZ, 1982). Os poemas eróticos, através de jogos de linguagem, ritmo e dicotomias,
remontam textualmente ao espetáculo erótico: “A imitação não pretende simplificar, mas
98
complicar o jogo erótico e assim acentuar seu caráter de representação. O erotismo não
imita a sexualidade, é sua metáfora. O texto erótico é a representação sexual dessa metáfora”
(DURIGAN, 1985, p. 8). A força poética permite ao leitor tocar o impalpável e abraçar
o Eros que nele habita. A imagem que a poesia engendra na mente de quem a ler é uma
cópula; a poesia exerce a (mal)dita função de erotizar a linguagem. Com efeito, a sexualidade
se vale de elementos metafóricos – cunhados desde A poética de Aristóteles – para grafar o
erotismo:
A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é
uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição
complementar: A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota ideias
corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez,
o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é
sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico
e o poético. É a poética que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em
ritmo e metáfora (PAZ, 1994, p. 12).
Esse fato comprova a existência tão visceral de poemas que tem, por temática basilar, o
erotismo. Ao recorrermos à historiografia mundial, lembramo-nos de grandes nomes, como:
Bocage, com a crueza vocabular do sexo; Gregório de Matos, com a profanação do divino;
Hilda Hilst, com seus malditos e gozosos poemas; Carlos Drummond e seu amor natural;
etc. Diante disso, exemplificamos o que já fora dito: a poesia é a via régia do erotismo.
Vestes poéticas da resistência feminina
Desde as calendas da antiguidade, a figura feminina, amiúde, fora vista pela Cultura
como mais frágil e, por conseguinte, submissa ao homem. Obviamente, isso refletiu na
escrita de mulheres, uma vez que, em quase todas as épocas de crise ou decadência social,
insurgiram grandes poetas. Assim, o cansaço e/ou a contravenção de uma sociedade não
extingue as artes, nem silencia uma pena, mas, pelo contrário: suscita o aparecimento de
artífices (PAZ, 1982). Em vista disso, as várias tentativas de silenciar e apagar as vozes
femininas da literatura foram, na verdade, atiçadoras para o grito destas. Os primeiros
escritos femininos eram, ainda, na alcova, de forma abscôndita, em diários. Estes, sendo
narrativas em primeira pessoa, cujo interlocutor da mensagem era ausente, pôs-se, então,
a enclausurar-se em um quarto. A mulher, longe da sociedade, poderia confessar seus
sentimentos, ímpetos e pensamentos, pois era interditada de falar sobre esses publicamente.
Isso talvez justifique a tendência dos textos de autoria feminina serem “voltados para o eu”,
99
mais intimistas e interiores. Portanto, a exemplo do século XIX, “a poesia feminina era uma
fala camuflada, um discurso de recalque de desejo, do erotismo e da sexualidade” (PAIXÃO,
1991, p. 136). Todavia, esse refreio social que tenta castrar, simbolicamente, a figura da
mulher, tornou-se o fundamento de sua escrita:
A lacuna desses textos não tem aí o efeito exatamente de esconder a verdade, mas é um
elemento estruturante: é em torno do vazio, do buraco, da falta que a escrita feminina
se constrói. Como um tecido esgarçado, como uma renda, em que as linhas constituem
e margeiam os buracos, os vazios, mas não os preenchem, não os obturam (BRANCO,
1991, p. 57).
No século XX, as mulheres, no que lhe tangem, passaram a se fazer mais presentes
na literatura. Apesar de serem vistas, ainda, de forma abjeta, bem como seus escritos serem
considerados “subliteratura” ou “literatura menor”, um grande número de escritoras, contistas
e poetisas vieram a lume com textos irreverentes, satíricos e denunciantes da hipocrisia da
“(i)moral cultura”. Essas transgressoras, por excelência, escreveram como forma de resistir
e fazer ecoar gritos de revolução, finalmente, pela minoria oprimida, ou seja, elas próprias.
Outrossim, retiram os seus corpos da posição da corpo-objeto (do desejo masculino) para o
patamar de corpo-agente, não mais como domínio das masculinidades:
Consoante com um movimento de fragmentação das identidades, percebido a partir
dos meados do século XX, ter-se-ia nesses textos – tanto em termos de autoria quanto de
estrutura fabular – um feminino deslocado e transgressor, que reivindica e agência e voz,
em meio ao silenciamento, à anulação e à neutralização que seguem operando sobre as
mulheres, desde tempos imemoriais, como garantia de uma pretensa feminilidade. Esta
concepção de feminilidade, frequentemente associada à passividade e à docilidade natas,
exclui posturas reivindicatórias ou mais agressivas por julgar que estas correspondem ao
modo masculino de organizar e construir o mundo, não sendo adequado às mulheres
direcionar seus esforços para essas questões (BORGES, 2013, p. 28).
Obviamente, essas investidas de resistência da mulher através da escrita acabam
incomodando, pois tocam em questões “sacramentais” e polêmicas da Cultura. Todavia:
“Ou por calar, por se fazer silêncio, por insistir, [...] ou simplesmente: a nada dizer. E, aí (ou
especialmente aí) ele incomoda” (BRANCO, 1991, p. 17). Dito isso, se a escrita feminina
por si só já transgride, a escrita erótica transcende a transgressão e se apresenta como uma
resistência ainda maior, visto que a sexualidade feminina, historicamente, deveria estar
condicionada ao espaço privado e sob a égide do masculino – mesmo que haja um discurso
de libertação feminina:
Nesse caso, uma postura de avanço sexual por parte de uma mulher é tida, não raras
vezes, ou como apropriação do modo masculino de sedução, ou como sintoma da
100
desvalorização que a mulher atribui a si mesma ao se ‘oferecer’ sexualmente ao desejo
masculino, sem encenar a recusa que seria própria da sensualidade feminina. (BORGES,
2013, p. 45)
Por exemplo, na Idade Mediévica, havia intensas súplicas e exigências da Igreja em
prol do matrimônio e da união conjugal. Todavia, nem sempre foi assim, nos primeiros
anos do cristianismo, a mensagem pregada era contrária ao casamento monogâmico e, com
efeito, a dissipação de qualquer prazer carnal, mesmo que ocorresse no leito do casal. Com
a vasta liturgia plasmada nos textos de Paulo, Tertuliano e Cipriano, por exemplo, houve,
nos primevos tempos da igreja, um apelo à contingência, ao celibato, por consequência, o
não “casar-se”; pois, o casamento poderia trazer pecados, já a vida casta e desacompanhada
não. (VAINFAS, 1986)
Os textos que objetivavam à virgindade, apesar de serem direcionados para todos,
eram dardejados, em especial, às mulheres: “[...] enaltecia a virgindade, educava as mulheres
para a vida continente e expunha os erros que poderiam levar as virgens à queda [...] os
textos sobre virgindade davam pouca atenção aos homens.” (VAINFAS, 1986, p. 9 -10).
Justificava-se que Maria, mãe do Cristo, concebera-o virgem. Logo, o verdadeiro casamento
era a virgindade, posto que era a representação da união divina entre Deus e o ser humano,
entre Cristo e a Igreja. Consequentemente, o discurso dos padres enfatizava o elo entre
o casamento e a morte, tornando o quarto de núpcias um lugar fúnebre, onde ocorria o
mero prazer dos sentidos. No contemporâneo, as mulheres terem e expressarem seus desejos
“carnais” é tido como, talvez, uma blasfêmia tanto aos homens quanto à religião:
Se falar de sexo é, por si mesmo, uma transgressão, a escrita erótica das mulheres se
configura como mais transgressora: culturalmente, as mulheres não são autorizadas,
pela lógica patriarcal e falocêntrica, a falar de sexo; elas são o sexo e, portanto, não falam,
elas são faladas. Enunciadas pelo desejo masculino, aparecem na literatura erótica como
prêmio a ser conquistado, ou como objeto de satisfação masculina. (BORGES, 2013,
p. 109)
Diante dessa resistência da mulher através da literatura, bem como a amálgama entre
o erotismo e a poesia. Percorreremos o plano conteudístico dos versos da poetisa paraibana
Regina Lyra, cuja escrita reivindica a voz das mulheres, chamando-as ao grito de liberdade,
sobretudo sexual, que, ao longo dos anos, foram interditadas pelo nocivo machismo latente
na sociedade. Regina, em seus escritos, atravessa a poesia e, concomitantemente, o eu-lírico
– claramente feminino – por venábulos do erótico, como forma de transgredir às proibições,
bem como demostrar o vigor de resistência da mulher.
101
O erótico como resistência no tracejo poético de Regina Lyra
Preambularmente, Regina Lyra nasceu em João Pessoa, capital da Paraíba.
Hodiernamente, é escritora, poeta, dedicou-se ao magistério na Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). Utilizando os poemas como grito de protesto social e resistência, sobretudo
das mulheres, sua poiésis verseja acerca da procura do poético, traceja massivamente sobre o
corpo, existencialismo, sensualidade e, por fim, erotismo. Ademais, alguns poemas têm uma
tendência concretista, ao (des)organizar a sintaxe para formar uma ou mais palavras, dando
ênfase ao sentido do corpo do texto:
Extasiados
No corpo de um homem forte,
Um corpo feminino surge.
Surge chamando cálido e sereno,
Almeja o encontro do parceiro ardente.
Nestas ondas reluzentes de cobiça,
Corpos suados, bocas espalmadas,
Mãos deslizantes buscam toque mágico.
Sussurros na esperança.
Amor sonhado em luz faceira,
Não tem nexo, paixão trigueira,
Agora regressar ao sexo.
Corpos amantes esmorecidos,
Saciados por um instante
Descansam.
Pernas entrelaçadas
G
e
m
i
d
o
s
(LYRA, 2011, p. 40)
102
No poema anterior, a poetisa descreve detalhadamente o ato sexual, de dois seres que,
através das mãos, “buscam o toque mágico”, ou seja, através do ritual que o sexo possibilita,
almeja-se a transcendência, o sublime, o além, o mágico e/ou sagrado: “A experiência erótica
ligada ao real é uma espera do aleatório, é de um ser dado e das circunstâncias favoráveis. O
erotismo sagrado, dado na experiência mística, quer somente que nada perturbe o indivíduo”
(BATAILLE, 1987, p. 17). Afinal, é a partir do sexo que os amantes buscam a continuidade
e fechamento de suas fendas ou fissuras corpóreas. (BIRMAN, 1999)
Em outros versos, o eu-lírico feminino descreve teatralmente o pós-sexo: “Corpos
amantes esmorecidos, / Saciados por um instante/ Descansam. / Pernas entrelaçadas”.
Pode-se depreender disso, o ímpeto dessa persona poética para manter o corpo do amado
entrelaçado ao seu. Pois, a proximidade dos amantes promove a continuidade da excitação,
e, por consequência, a excitação atinge o seu ápice quando há o máximo contato corpóreo
entre os envolvidos. (LOWEN, 1990). O desejo de permanecer fundida ao objeto amado
do eu-poético feminino “fere” o machismo de que: após o ato sexual, a figura masculina
deve abandonar a mulher na cama e ir embora. Ao cunhar esses versos, a poetisa insurge, no
papel, o desejo da maioria das mulheres após o ato sexual:
A mulher que ama eroticamente pode ficar horas e horas aconchegada ao corpo de seu
homem, ouvindo as batidas de seu coração, sua respiração, seu ressonar. Pode ficar horas
e horas a olhá-lo, a acariciá-lo, a observar sua pele, a respirar seu cheiro. O despertar do
homem, sua atividade, perturbam essa paz [...] (ALBERONI, 1986, p. 211)
Além de tudo, o que desperta a atenção do leitor é a fragmentação da palavra
“gemidos”. Trata-se, pois, de um recurso que fornece um maior sentido ao poema. Em
decorrência da disposição e cadência, as letras da palavra jorram a melopeia1: “a palavra
tem uma dimensão GRÁFICO ESPACIAL / uma dimensão ACÚSTICO-ORAL/ uma
dimensão CONTEUDÍSTICA / agindo sobre os comandos da palavra nessas dimensões”
(DE CAMPOS, 1975, p. 46). Sendo assim, o conteúdo e o sentido maior expresso por
tal digressão da palavra seria o: gozo – onde há gemidos –, cuja intenção, no momento do
êxtase, é torná-lo mais duradouro, gradativo e, de certa forma, o prazer concentrado não
apenas nas zonas claramente erógenas, mas “dividido” e/ou distribuído pelo corpo. Sobre
o gozo feminino: “Ela jamais goza no sentido em que sua excitação terminou, goza e é um
gozo que circula sempre sem extinguir-se, reabsorver-se... a sua única exigência é: tributem
honra a todas as partes, à boca e ao sexo, ao útero e à vulva, à orelha ao ânus” (ALBERONI,
1986, p. 22).
1 Segundo Ezra Pound, em Abc da literatura (2013 [1934]): “Há três modalidades de poesia: 1 – Melopeia. Aquela em
que as palavras são impregnadas de uma propriedade musical (som, ritmo) que orienta o seu significado. (POUND,
2013, p. 11)
103
Em outro poema erótico, o instrumento basilar da fase concretista também aparece
abundantemente. Além do mais, neste, o eu-lírico analisa o ato sexual como uma brincadeira
pueril, assim como n’A história do olho2 (1928), uma vez que o lúdico contém, em sua
essência, uma presença figadal de Eros, a exemplo dos fetichistas e os seus jogos eróticos. O
fetiche, por seu turno, relaciona-se ainda mais com a tenra infância – e suas brincadeiras,
pois, Safatle, ao recorrer ao pensamento freudiano, fala: “a etiologia do fetichismo está
ligada a impressões sexuais precoces próprias da infância, impressões essas que produziriam
traços mnésicos determinantes para a escolha de objeto” (SAFATLE, 2015, p. 48). Além
disso, o mestre vienense ainda afirma que o fetichismo se apresenta, abundantemente, na
vida amorosa; posto que, no amor, faz-se necessária uma grande valorização psicológica do
objeto sexual (FREUD, 1905). Em síntese, em decorrência do fascínio proporcionado pelos
prazeres, todo mundo é um tanto fetichista no amor (BINET, 2001 apud SAFATLE, 2015,
p. 40). Portanto, o brincar no momento do ato sexual, bem como os brinquedos e jogos
eróticos são estimulantes no que tange ao erotismo:
Brincando de Fazer Amor
Enquanto você brinca, eu abro orquídeas.
Levo meu cheiro de fêmea no cio.
Abro as pétalas e as coxas,
Em movimento contínuo.
Enquanto você brinca, eu abro orquídeas.
Prolongo seu êxtase,
MordidaS
i
n
g
u
l
a
r
e
s
2 Um dos maiores clássicos da literatura erótica escrito pelo francês Georges Bataille (1897 – 1962). No livro, o
narrador relata a história das descobertas de dois adolescentes, Simone e seu amigo, cujo narrador conta que, através
de brincadeiras, os personagens têm relações sexuais bizarras e com objetos estranhos, como leite de gato, ovo, urina.
104
Penetre a concha.
Neste sentir de gritos, gemidos,
Loucos sussurros.
Gere orgasmos múltiplos.
Enquanto você brinca,
Eu abro orquídeas
P
a
r
a
Você
(LYRA, 2011, p. 103)
A disposição das palavras garante uma carga de sentido, como já foi discorrido.
Todavia, nesse caso, a organização das letras pressupõe que foram organizadas semelhante
ao brincar de uma criança (ou as letras foram dispostas semelhantemente como uma criança
faria). Visto isso, o pai da psicanálise, discorre que o brincar do infante é um processo que
arquiteta a captação do que é real e que os jogos infantis se enquadram como uma atividade
sexual primeva (FREUD, 1905). Essas ideias são retomadas pelo mestre vienense, em seu
artigo seminal O escritor e a fantasia (1908), interseccionando a criança com o poeta. Freud
afirma que o brincar infantil, assim como a atividade de fazer poemas, seria a introdução de
elementos do mundo em uma nova organização criativa, dardejando a obtenção de prazer.
Postula, ainda, nesse seu breve artigo, que a capacidade de brincar não fica restrita à tenra
infância, mas pode ser revivida pelo adulto como um método para suportar o mal-estar na
civilização3 (FERREIRA, 2018).
Outrossim, a analogia gritante entre as zonas erógenas e/ou órgãos sexuais, como em:
“Enquanto você brinca, eu abro orquídeas/ [...] abro as pétalas e as coxas”, representando
mimeticamente o “desabrochar” da vulva feminina no momento do ato sexual. A exemplo
das pinturas de vaginas que Clódia fazia, no Contos D’Escárnio. Textos grotescos (1990), de
Hilda Hilst, a metáfora entre erotismo/sexo e plantas é comum na literatura, sobretudo
erótica: “[...] o sexo é a raiz, o erotismo é o talo, e o amor, a flor. E o fruto? Os frutos do
amor são intangíveis. Este é um de seus enigmas” (PAZ, 1994, p. 37). A persona poética
também deixa claro o prazer nas “mordidas”, nesse caso, diz muito acerca de um apego oral
3 O sofrimento é causado: pelo próprio corpo, que é fadado ao declínio e a degradação; pelo mundo externo, de onde
provém forças avassaladoras e algozes; e pelas relações e convenções com outros seres humanos (FREUD, 2010 [1929],
p. 20).
105
do sujeito. As mordidas são tão excitantes ao corpo que já foram postuladas no antigo
texto indiano sobre o comportamento sexual do ser humano, o famigerado Kama Sutra, de
Vatsyanyana, depois de falar sobre os profusos tipos de mordidas e como estas avultam o
desejo.
4
Em outro texto poético de Regina Lyra, percebemos mais ainda esse anseio feminino
em permitir que as mulheres retirem as mordaças colocadas pela sociedade, usufruam dos
prazeres, deleitem-se com seu corpo e, finalmente, gozem. O gozo, nesse quesito, assume o
papel de grito, de permitir à mulher a voz, uma vez que, por muitos anos, a figura feminina
teve seus desejos e anseios refreados pela Cultura. Por exemplo, historicamente, as mulheres
histéricas eram vistas como possessas por demônios, no entanto, no segundo caso de Estudos
sobre a Histeria (1895), de Sigmund Freud, tratando-se do caso da senhora Emmy von
N., ocorre a primeira “cura pela fala”. Nesse novo método, o pai da psicanálise não apenas
almeja eliminar os sintomas, mas permitir a paciente conhecer os desejos. Para tanto, Freud,
através da associação livre, leva-a a recuperar recordações (BOROSA, 2005). Logo, o mestre
vienense oferece um lugar de fala para as mulheres, que até então estavam sendo silenciadas
pela sociedade patriarcal. Na literatura, por sua vez, não poderia ser diferente:
Gozo
Como poderia esquecer-te?
Plantaste em mim teu cheiro e teu gosto.
Tens antídoto?
Quero sentir-te,
Antídoto para quê?
Vagueio em pensamentos.
Voam, chegam a ti.
Entrelaço meus braços em teu corpo,
Em um longo abraço.
Minhas pernas enroscam-se nas tuas
Sinto teu sexo pulsar dentro de mim.
Teu gemido
Em meu gozo,
Afinidade
Total.
(LYRA, 2011, p. 45)
4 Segundo Sigmund Freud, em seu livro Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), postula que há três fases
psicossexuais, respectivamente: oral, anal e fálica. O sujeito, por seu turno, pode ficar fixado em alguma dessas fases,
por exemplo: na fase oral, a criança sente prazer e satisfação através da introdução de objetos e/ou do seio materno em
sua boca.
106
O poema apresenta-nos um eu-poético que, após um primeiro coito com o amado,
fantasia outros momentos de êxtase, descrevendo-os detalhadamente: “Entrelaço meus
braços em teu corpo,/ Em um longo abraço. Minhas pernas enroscam-se nas tuas.”. Porém,
apesar da verossimilhança, não se passa de um devaneio: “Vagueio em pensamentos./ Voam,
chegam a ti.”. Esta fantasia é um meio pelo qual um conteúdo recalcado ressurge, pois se
encontra no inconsciente. A fantasia é, portanto, uma cena virtual, uma representação difusa
de nossas tendências do arcabouço psíquico. Como resultado desse elemento fantasioso,
emerge o prazer: “sua fantasia, vez por outra, é o estímulo necessário, o desencadeador que
permite obter o prazer de um orgasmo” (NASIO, 2007, p. 34). A fonte motriz da fantasia
é, assim, o núcleo do gozo, circunscrevendo a encenação fantasística, sendo a fantasia uma
maneira de gozar.
Quando partes corpóreas participam ativamente em busca da descarga da excitação
mais alavancam o prazer do orgasmo e, caso ocorra a participação do corpo inteiro, acontece
o orgasmo completo, aproximando-se do êxtase (LOWEN, 1990). Ademais, no que toca
ao “gozo”, consoante o psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981), ao retomar e
reformular os conceitos freudianos em seu “retorno a Freud”, escreve que a finalidade do
corpo é gozar. (LACAN, 1985). Logo, o corpo almeja o gozo a todo custo e de qualquer
maneira:
Colocando, pois, a satisfação e o gozo no fundamento do erotismo como sendo ao
mesmo tempo o seu motor e a sua finalidade, o discurso freudiano concebeu a sexualidade
no campo do desejo. Com efeito, aquilo que caracteriza o sujeito seria justamente a
possibilidade de desejar, sendo essa a marca insofismável do seu ser. (BIRMAN, 1999, p. 30)
Essa fantasia, por seu turno, emerge do perfume e gosto do amado: “Plantaste em
mim teu cheiro e teu gosto”. Sobre o cheiro, é necessário ter em vista que o erotismo é
uma forma de conhecimento, bem como uma troca de saberes entre o corpo dos sujeitos
envolvidos, é perceptível a linguagem “não verbal” do corpo – e as mulheres sabem disso: “O
primeiro aspecto explorado pela mulher no corpo do homem, o primeiro que ela percebe é
o cheiro. O cheiro é determinante. Quase sempre baseada no cheiro ela decide se continua a
ver aquele homem ou se o evita” (ALBERONI, 1986, p. 197 – 198). No caso do eu-poético
feminino dos versos, o perfume do objeto amado é tão avassalador e arrebatador, que se
entra em um estado fantasmagórico, imaginando o amado em atos luxuriosos. Além do
cheiro, no poema, o “sabor” do ser amado também exerce um papel fundante da fantasia:
“Explorado o cheiro, a mulher passa aos sabores. Esse ato cognitivo necessita de um início
erótico, o beijo. [...] Para a mulher, o sabor da boca é tão determinante quanto o cheiro, ou
mais ainda” (ALBERONI, 1986, p. 198).
107
Conclusão
Ao percorremos os terrenos da poesia, constatamos a repetição de um elemento
fundante em sua estrutura: o erotismo. O fazer poético, através das metáforas e outras
figuras de linguagem, propiciam a eclosão como incremento do erótico. Este, cunhado
magistralmente por punhos masculinos, em contrapartida incutiram os escritos de erotismo
das mulheres nas alcovas, nos recônditos. Todavia, sobretudo no fim do século XIX e início
do XX, grandes poetisas vieram à luz com seus textos em prol da resistência feminina e,
valendo-se do erótico, gritaram que as mulheres também podem sentir prazeres, uma vez
que, no passado, havia textos que orientavam as mulheres a controlarem todos os seus órgãos
dos sentidos, pois estes eram vistos como uma porta para o desejo sexual (VAINFAS, 1986).
É nesse entremeio, dessarte, que versa a persona poética de Regina Lyra. Os poemas
da poetisa, ao dissertarem acerca do erotismo, expõem os desejos do feminino, uma vez
que estes renegados pela sociedade durante a história. Em seus versos, inclusive, a mulher
tem livre escolha do seu amado, podendo deitar-se com mais de um, sem ser julgada e/
ou interditada pela sociedade patriarcalista. Regina Lyra permite à mulher sentir desejos
voluptuosos, gozar com próprio corpo e resistir às pressões da cultura no que tange ao sexo.
Referências
ALBERONI, Francesco. O erotismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre: L &PM, 1987.
BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34, 1999.
BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina: um estudo de
Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.
BOROSA, Julia. Conceitos da psicanálise: histeria. São Paulo: Segmento-Dueto, 2005.
BRANCO, Lúcia Castello. O que é a escrita feminina. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
DE CAMPOS, Haroldo de. Olho por olho a olho nu (manifesto). In: CAMPOS, Augusto;
PIGNATARI, Décio; DE CAMPOS, Augusto. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos
(1950 – 1960). São Paulo: Ateliê Editorial, 2014. p. 46 – 49.
DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985.
108
FERREIRA, Carlos Alberto de Matos. Freud e a fantasia: os filtros do desejo. 1. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2018.
FREUD, Sigmund. O escritor e a fantasia (1908). In: FREUD, Sigmund. Obras completas, volume
8: O delírio e os sonhos na grávida, análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos
(1906 – 1909). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 146 – 153.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências
introdutórias e outros textos (1930 – 1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 2: Estudos sobre a histeria (1893 – 1895). São Paulo:
Companhia das Letras, 2016.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 6: três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise
fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901 – 1905). São Paulo: Companhia
das Letras, 2020.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LLOSA, Mário Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e cultura. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2013.
LOWEN, Alexander. Amor, sexo e seu coração [1910]. 1. ed. São Paulo: Summus, 1990.
LYRA, Regina. O livro das emoções. João Pessoa: Editora da UFPB, 1998.
LYRA, Regina. Vão da palavra. João Pessoa: Editora da UFPB, 2011.
MORAES, Eliane Robert. Antologia da poesia erótica brasileira. Lisboa: Tinta da China, 2017.
MORAES, Eliane Robert. O que é pornografia. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
NASIO, Juan-David. A fantasia: o prazer de ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
PAIXÃO, Sylvia. A fala-a-menos: a repressão do desejo na poesia feminina. Rio de Janeiro: Numen
Editora, 1991.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
POUND, Ezra. Abc da literatura [1934]. São Paulo: Cultrix, 2013.
SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: o colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986.
VATSYANYANA, Mallanaga. Kama Sutra. São Paulo: Tordesilhas, 2011.
109
CAPÍTULO 8
Literatura e História: amor e opressão em
“O Morro dos Ventos Uivantes”, de Emily Brontë
Gabriele Teixeira Diniz, Gustavo Abílio Galeno Arnt
Introdução
A escrita do capítulo aborda questões relativas à representação do feminino e da mulher
na obra O Morro Dos Ventos Uivantes (1847), de Emily Brontë, buscando entender o modo
como a personagem protagonista foi construída por intermédio do amor e do desejo na
sociedade patriarcal no século XIX. Apresentaremos, ainda, a investigação do modo como a
literatura formalizou esteticamente esses sentimentos ao longo desse período, tendo em vista
que a obra de arte manifesta e revela as ideologias1 sociais existentes.
O texto literário possui uma função social e um valor estético, visto que o elemento
social, externo à criação artística, condiciona a estrutura literária, atuando como princípio
estruturante quando internalizado organicamente à forma artística (CANDIDO, 2006).
Sabe-se que vivemos em uma sociedade onde o machismo e o patriarcado operam silenciando,
oprimindo e violentando as mulheres; a propagação do discurso machista e patriarcal vem
ultrapassando as barreiras do tempo e atinge de forma direta e/ou subjetiva as mulheres.
Esse longo processo de estruturação criou, consequentemente, visões sociais de masculino e
feminino, diretamente ligadas aos mecanismos de dominação masculina, que serão figuradas
pelas personagens da obra analisada.
O Morro dos Ventos Uivantes retrata a história de Cathy, uma moça apaixonada por
Heathcliff. Juntos protagonizam uma história de amor impossível. Ela sofrerá opressão de
1 Entende-se por ideologia o conceito apresentado por Marilena Chauí (2008), como o conjunto de saberes e práticas
que estão a serviço de um projeto de dominação e exploração.
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-8
110
seu meio social, familiar e do seu próprio amado. Cathy é personagem de uma literatura que
participa da naturalização da divisão entre os sexos e que estabelece um sistema cognitivo
que, por sua vez, passa a funcionar como paradigma de conhecimento e reconhecimento do
mundo, de modo a fundar um círculo vicioso que impulsiona os mecanismos de percepção
da realidade do dominado a partir da perspectiva do dominador, ou seja, o dominado entende
o mundo pelos olhos do dominador (BOURDIEU, 2002). A protagonista passa a viver pela
ótica de Heathcliff; as necessidades dele passam a ser dela, os pensamentos e percepções
também. Quando esses ideais machistas são transformados em senso comum, a ideologia
encontra assim sua vitória e faz vítimas da opressão (BOURDIEU, 2011). A personagem se
torna peça chave do processo de produção e reprodução da violência sofrida, pois ela passa
a alimentar a ideologia que sustenta as práticas sociais que fomentam a opressão.
Investigar a representação do feminino na literatura (e, por contraste, do masculino)
justifica-se pela possibilidade de analisar as formas estéticas historicamente construídas para
exprimir o amor e a mulher por meio da imaginação, identificando a ideologia subjacente
às formas estéticas de representação das mulheres e refletindo sobre como o amor atua
enquanto mecanismo de dominação social em diferentes momentos. Em face da importância
do lugar ocupado pela mulher para o funcionamento do sistema capitalista e entendendo
que movimentos e análises relacionados a esse tema, onde está posto o pilar do trabalho,
desempenham um papel central na luta feminista e na luta de classe, compreendemos a
necessidade de analisar e superar esses papéis formalizados pela obra literária.
É preciso compreender, ainda, que o pilar deste trabalho está na crítica literária dialética.
Para Antonio Candido (1974), deve-se entender a obra por meio da sua complexidade e não
criando antagonismos excludentes entre a arte e a sociedade. Dessa forma, não podemos
reduzir o texto a uma continuação da sociedade nas nossas análises e, sim, fazer uma leitura
orientada pelos traços culturais e sociais que são incorporados à estrutura literária, de modo
a extrair da obra uma compreensão mais clara do que está no exterior dela. Não podemos
esquecer, também, que a literatura tem um poder social inestimável, não podendo ter sua
base atrelada a outra que não a complexidade da história e do próprio ser humano.
Para embasamento teórico dos pontos a serem levantados, foram estudadas e debatidas
obras O Mito da Beleza (1992), de Naomi Wolf, O Segundo Sexo (1949), de Simone
Beauvoir e A Dominação Masculina (1998), de Pierre Bourdieu etc. Buscando entender de
que modo o amor é formado na sociedade após a ascensão do capitalismo e, ainda, como
esse sentimento vai mediar as relações entre homens e mulheres, foram estudadas as obras O
Amor nos Tempos do Capitalismo (2012) e Erotismo de autoayuda. Cincuenta sombras de Grey
y el nuevo orden Romántico (2014), de Eva Illouz.
111
O amor nos tempos do Capitalismo
“Que pode uma criatura senão,/ Entre criaturas, amar?”... Esses versos do poema
“Amar”, de Carlos Drummond de Andrade, apontam para um aspecto essencial do amor,
mas praticamente desconsiderado pelo senso comum: o amor é uma relação social. Isso
implica dizer igualmente que essa relação é histórica e, enquanto tal, carrega consigo as
marcas das raízes profundas por meio das quais a sociedade se produz e reproduz. Ao longo
da história, o amor assumiu feições muito diversas. As formas de amar variam de acordo com
classes sociais, idade, geografia, etc. Além disso, o amor se associa às construções ideológicas
do feminino e do masculino, bem como está diretamente ligado à visão social do sexo. Neste
capítulo, nos propomos a investigar o modo como a literatura formalizou esteticamente o
amor. Buscaremos contrastar as visões do feminino e do amor no século XIX.
Apoiando-nos na perspectiva de Eva Illouz (2012), que busca compreender as formas
que o amor assumiu na era do capitalismo, partimos da hipótese de que a literatura não
apenas exprimiu ou representou as diversas formas de amar ao longo do tempo, mas também
participou ativamente da construção social ideológica dessas formas de amar. Desse modo,
não nos perguntamos apenas sobre “como as pessoas sentiram”, mas, e sim, “por que as
pessoas sentiram”, em outras palavras, por que desejamos o que desejamos? Illouz argumenta
que a modernidade constrói e instaura afetos ao mesmo tempo em que é construída por
eles. No século XX, o capitalismo teria assumido como componente estrutural de seu
funcionamento a dinâmica dos afetos, que, num mundo esvaziado pelos laços humanos, os
quais foram reificados pela sociedade da mercadoria, contraditoriamente levam os sujeitos a
manifestarem na vida pública os afetos inicialmente forjados na vida privada.
Conforme indica Peter Szondi (2004), o sentimentalismo é característico da burguesia
em sua fase de ascensão e consolidação como classe econômica e política hegemônica,
surgido como reação à impotência dos instintos diante da ascese intramundana imposta
pelo protestantismo enquanto se forjava o “espírito do capitalismo” de que fala Max Weber
(2004) e também como fuga da realidade externa na qual o burguês, em seu embate com a
aristocracia, se sente desprovido de direitos, ameaçado e impotente — o núcleo familiar se
transforma na célula organizativa da constituição da subjetividade moderna em contraste
com o mundo externo hostil.
Ao longo do século XVIII, o desenvolvimento do capitalismo se associa a um crescente
interesse pelo ego, pela dimensão subjetiva do indivíduo enquanto sujeito autônomo e
isolado (VALE DA SILVA, 2013) e alimenta toda uma literatura focada na subjetividade
enquanto elemento relativo, conformado pela experiência e pela ótica do sujeito em sua
interação com o mundo, não mais como uma constituição imutável de ordem biológica
112
ou divina. Sendo assim, nos séculos XVIII e XIX, o afeto, em especial o amor, encontra-se
fortemente assentado sobre a constituição da perspectiva subjetiva individual no seio do
núcleo familiar burguês, em oposição à exterioridade de relações sociais objetivas. Ocorre,
no entanto, que esse processo de interiorização, de ensimesmamento dos afetos, é tão social
quanto às relações objetivas exteriores ao mundo privado. Conforme explica Illouz,
O afeto é uma entidade psicológica, sem dúvida, mas é também, e talvez até mais,
uma entidade cultural e social: através dos afetos nós pomos em prática as definições
culturais da individualidade, tal como se expressam em relações concretas e imediatas,
mas sempre definidas em termos culturais e sociais. (ILLOUZ, 2012, p. 10)
No século XX, a sentimentalidade burguesa fomenta uma modificação importante nas
formas de sociabilidade, conduzindo para a esfera pública a dinâmica dos afetos próprios à
vida privada. Nesse ponto, não se trata apenas do processo de mercantilização dos afetos,
que foi tão representado no romance do século XIX, e que ganhou um caráter industrial no
século XX. O que ocorre é um fenômeno ainda mais sofisticado (e talvez ainda mais cruel),
pois se trata da emergência daquilo que Illouz chama de capitalismo afetivo.
O capitalismo afetivo é uma cultura em que os discursos e práticas afetivos e econômicos
moldam uns aos outros, com isso produzindo o que vejo como um movimento largo e
abrangente em que o afeto se torna um aspecto essencial do comportamento econômico,
e no qual a vida afetiva – especialmente a da classe média – segue a lógica das relações
econômicas e da troca (ILLOUZ, 2012, p. 6).
Esse longo processo de estruturação dos afetos na modernidade forjou consequentemente
visões sociais de masculino e feminino, indissociavelmente ligadas aos mecanismos de
dominação masculina. Conforme explica Bourdieu (2012), a dominação masculina,
enquanto forma de violência simbólica, assenta-se sobre processos que naturalizam o
histórico, transformando divisões arbitrárias vinculadas a diferenças biológicas sexuais em
diferenças essenciais que transbordam a dimensão estrita da biologia e emanam diretamente
para as relações sociais culturais, como se as divisões sociais entre os sexos se justificassem
naturalmente por fazerem parte da ordem natural das coisas.
A naturalização da divisão entre os sexos estabelece um sistema cognitivo que, por sua
vez, passa a funcionar como paradigma de conhecimento e reconhecimento do mundo, de
modo a fundar um círculo vicioso que alimenta os mecanismos de percepção da realidade
do dominado a partir da ótica do dominador, ou seja, o dominado conhece o mundo pelos
olhos do dominador. Transformada em senso comum, a ideologia encontra assim sua vitória
e faz das vítimas da opressão peça chave do processo de produção e reprodução da violência
sofrida, pois as próprias vítimas passam a alimentar a ideologia que sustenta as práticas
sociais que fomentam a opressão.
113
Esse sofisticado processo histórico de estabelecimento de hegemonia encontra na
produção de bens simbólicos um poderoso aliado. Nesse sentido, a literatura, enquanto
forma de expressão e construção da subjetividade, revela-se um meio pródigo na manifestação
das ideologias sociais. Cristalizam-se na forma literária os modos de sentir, de sonhar, de
imaginar, de desejar. Nesse sentido, a literatura ao mesmo tempo representa e constrói
visões de masculino e feminino, assim como exprime os modos como homens e mulheres
imaginam e desejam uns aos outros.
É particularmente necessário destacar aquilo que constitui o fundamento metodológico
da pesquisa proposta nesta pesquisa, o método crítico dialético. A perspectiva aqui adotada
entende a literatura como processo social e encontra nessa compreensão a linha de força
da atividade crítica. Desse modo, importa ao crítico explicar de que modo o elemento
em princípio externo é internalizado e passa a compor a estrutura da obra organicamente
(CANDIDO, 2006). A ideia de forma orgânica é central para a crítica dialética e vai aparecer
em diversas formulações teóricas dialéticas. Destaque-se, a esse respeito, a formulação de
Lukács segundo a qual a forma decorre organicamente do conteúdo, adquirindo valor
artístico por meio do trabalho artístico (LUKÁCS, 1968).
O passo metodológico tem o seu pilar na análise da bibliografia e das obras literárias
a fim de fornecer subsídios para compreensão da construção das personagens protagonistas
nas narrativas uma vez que, se trata de crítica literária, a investigação e a análise estão,
desde o início, indissociavelmente relacionadas, visto que o fato de que a própria escolha
metodológica, o posicionamento crítico e mesmo a seleção bibliográfica já indicam um
gesto interpretativo que sempre é, no limite, ideológico.
O Morro dos Ventos Uivantes
O Morro dos Ventos Uivantes é um romance trágico e irrealizado de dois protagonistas:
Heathcliff e Catherine. Desde o início da obra protagonizam um amor impossível, pois
vivem em uma sociedade pautada em valores morais e sociais vitorianos, isto é, os discursos,
as crenças e as condutas são fundamentados em pilares patriarcais e machistas.
Cathy é descrita no primeiro momento por Ellen, empregada de sua casa. Ela enxerga
a protagonista como uma menina de hábitos e atitudes desafiadoras quando comparada às
mulheres de sua época, demonstrando, no início do romance, possuir uma personalidade
que causará cansaço e preocupação em seu pai e em seu irmão. É possível notar, contudo,
como será a vida de Cathy ao longo do enredo; o pai e o irmão esperam que ela se torne
uma boa esposa, uma boa mãe e que se submeta aos desejos do marido assim como todas as
114
mulheres da história. Essa percepção tem como pilar a rigorosa divisão dos papéis sexuais: o
marido detém a autoridade e é responsável por providenciar o sustento familiar por meio do
trabalho, enquanto a esposa deve se preocupar exclusivamente com questões inerentes ao lar.
A missão imposta à mulher passa a ser a criação dos filhos, com o objetivo de que se tornem
homens honrados e racionais, capazes de manter a propriedade do pai (LESSA, 2012).
Em contrapartida aos desejos paternos, Cathy apaixona-se pelo seu irmão adotivo,
Heathcliff, um cigano encontrado por seu pai quando jovem, homem de estatura baixa,
com traços de uma classe social menosprezada pela burguesia (BRONTE, 1998), como
Daise Dias (2011, p. 6) define em seu trabalho
Ser cigano, estrangeiro, não falar inglês, e ter pele escura, desde o primeiro momento
no seio da família inglesa são fatores responsáveis pela demarcação por parte dos
personagens do espaço, da condição e do papel do garoto. Tratado com benevolência
pelo patriarca durante os poucos anos em que viveu após achá-lo, e companheiro
inseparável de Cathy, Heathcliff é odiado e discriminado pela matriarca, por Hindley,
pelo criado Joseph, e aparentemente pela narradora, a criada da família, Nelly Dean.
Heathcliff será tremendamente odiado por todos ao seu redor, sobretudo pelo seu
irmão adotivo, Hindley Earnshaw, que se sente ameaçado por ele; desta forma, oprimindo-o,
ofendendo-o e agredindo-o em grande parte da história. O enredo se desenrola e nos mostra
como Heath se tornará um homem cruel e vingativo, especialmente com aqueles que
atrapalharam a concretização de seu romance com Cathy. Ele é construído como um ser
diabólico, desprezível e violento, e acaba por sustentar a aparência/ótica de má pessoa. Em
um diálogo entre Heath e Linton, rapaz nobre que se apaixona e se casa com Cathy durante
o romance, Heath tem o seu caráter descrito “[...] miserável e degradado, sua presença é
veneno moral, capaz de contaminar os mais virtuosos” (BRONTE, 1998. p. 124).
Cathy recebe o fardo de seu grande amor, tornando-se semelhante a ele, uma mulher
miserável e violenta: uma fera. O amor das personagens protagonistas estava selado pela
vingança e pela vontade de viver de forma contrária ao que esperavam deles, Márcio José
Coutinho descreve
O romance é narrado em meio a uma época dominada pela razão, civilização cujas
emoções e instintos devem ser controlados por um sistema arbitrário de convenções,
entretanto, o morro dos ventos uivantes está afastado do meio social urbano, onde
tem-se uma aproximação maior dos elementos da natureza, que permite os personagens
libertar, por vezes, as emoções de maneira menos formal e mais instintiva, mostrando o
lado mais primitivo do ser (COUTINHO, 2017 p. 45).
115
Entende-se que as personagens priorizam a subjetividade e repudiam a realidade social,
deslegitimando, até um determinado momento da história, as práticas sociais estabelecidas
para duas classes consideradas inferiores, mulheres e ciganos. Em contrapartida, no decorrer
da narrativa, Cathy, em um importante diálogo com Nelly, assume que, apesar de amar
Heath e da história que construiu com ele, seria impossível viver com o irmão adotivo.
Admite, ainda, que é confortável aceitar sua relação com Linton, seu vizinho milionário, que
demonstra estar apaixonado e disposto a casar-se com a moça, “Ele será rico e gostarei de ser
a mulher mais importante da redondeza, e ficarei orgulhosa de ter tal marido” (BRONTE,
1998. p. 86).
Percebemos, portanto, como eram construídas as relações no interior da obra,
sobretudo como Cathy, apesar de amar Heath, abdicaria de seu sentimento para estabilizarse socialmente, casando-se com Linton. Desta forma, Cathy obteria capital para possuir
estabilidade e para livrar-se de uma vida tão castigada. Entende-se, ainda, como o amor para
as mulheres da época reduzia-se à estabilidade social. Elas buscavam encontrar um bom
marido, sobretudo que possuísse uma grande herança para ascender socialmente, construir
uma família e tornar-se uma boa mãe.
A protagonista é, diversas vezes, questionada pela sua criada sobre como o amor
sentido por ela está reduzido aos interesses sociais burgueses: família, capital, estabilidade
etc., moldando-se ao que era imposto para ela e para todas as mulheres da obra. Dessa
maneira, nota-se as mudanças que ocorrem no comportamento de Cathy ao longo da
história, quando a protagonista é descrita como uma jovem diferente das outras: selvagem,
independente e desprendida das ideias que eram despejadas sob ela. Nesse momento, Cathy
torna-se o reflexo do que é esperado e imposto pela sua família, seu irmão e pai, e pela
sociedade vitoriana. Uma mulher que se preocupa em casar-se e conquistar respeito por
meio da reputação de seu marido. Simone de Beauvoir (1970) descreve como a sociedade
machista enxerga e impõe o outrem para o feminino, dessa forma, o levando a agir de modo
conveniente ao homem e a querer tornar-se parte do que ele possui, segundo a autora
O homem que constitui a mulher como um Outro encontrará, nela, profundas
cumplicidades. Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os
meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem
sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de
Outro (BEAUVOIR, 1970, p.15).
Para Cathy esse reconhecimento será conquistado quando ela aceitar o pedido de
casamento feito por Linton, mesmo não o amando. Nesse contexto, a protagonista torna-se
completa; o homem, o casamento e a família a colocam nesse lugar. Ela passa a cumprir o
papel da forma em que lhe foi imposto, assumindo a função do Outro, abdicando o espaço
que reivindica, isto é, os seus desejos; reduzindo-se à parte que completa um sujeito e não a
de sujeito na sociedade.
116
A protagonista, além de viver um amor construído a partir da ótica dos interesses
sociais, como era o seu por Linton, e de sentir um afeto financiado pela sociedade vigente, se
contrapõe ao que foi desejado por ela ao longo da história. As personagens femininas seguem
as vontades e desejos da sociedade patriarcal. Seus afetos e os seus desejos são exprimidos
e reduzidos a sofrimentos individuais e são, ainda, escamoteados, visto que elas vivem o
que é imposto à elas. São diversas vezes ridicularizadas, animalizadas e reificadas quando
demonstram sentimentos particulares. Desta forma, o amor e o desejo construídos por meio
da ótica feminina, são estruturados a partir da ideologia burguesa, opressora, que pauta a
sociedade capitalista.
Considerações Finais
É possível perceber como a obra O Morro dos Ventos Uivantes é fundamentada nos
valores burgueses. Cathy, no primeiro momento, uma mulher independente, que desafia
os valores impostos, acredita que conseguirá romper com as imposições e desejos paternos.
Contudo, o imaginário construído por meio das personagens protagonistas, a vingança, o
ódio e o rancor, internaliza a dominação masculina, e ela passa a perceber o mundo através do
prisma masculino. Neste caso, Cathy enxerga pelos olhos de Heath e acredita estar vivendo
de uma forma revolucionária e descolonizada ao tentar salvá-lo, mas, na verdade, está mais
uma vez reafirmando os aspectos patriarcais e machistas (BOURDIEU, 2002).
Ao longo da obra, Cathy acredita, ainda, na mudança de Heath, que se tornará
um homem vingativo, maldoso: uma fera; a fera dos desenhos animados, e ela, mesmo
reconhecendo a verdadeira face que Heath construirá, luta para tirá-lo dessa realidade
crendo, fielmente, na sua mudança. Uma mudança que acontecerá por meio do amor.
A protagonista viverá, ainda, no segundo momento, uma vida que a oprime e a silencia,
representando, desta forma, o lugar imposto pelo patriarcado para as mulheres, casando-se
com Linton, homem de família rica que possui reconhecimento social. Ela buscará construir
uma família, ascender socialmente e auferir respeito ilustrando o modo de funcionamento
das convenções sociais e o apagamento da subjetividade da mulher na sociedade capitalista.
O que temos é a enfatização da necessidade do homem para constituição da mulher. O
sentimento afetivo de Cathy tem o seu pilar na família nuclear; no respeito auferido pelo
casamento; no dinheiro etc — valores burgueses.
117
Cathy terá o seu desejo e as suas atitudes apagadas e/ou silenciadas ao longo da história.
Eva Illouz (2012) defende que, para tornar as conquistas das mulheres uma prática social,
é preciso que se elas se consolidem na dimensão cultural, como podemos acompanhar na
seguinte passagem
A autorrealização passa a ser uma categoria cultural que produz um jogo sisifismo de
diferenças derridianas. Quando vivem apenas na mente, as ideias culturais são fracas.
Precisam cristalizar-se em torno de objetos, ritos de interação e instituições. A cultura,
em outras palavras, encarna-se nas práticas sociais e precisa funcionar nos planos prático
e teórico. O trabalho da cultura reside, precisamente, em suas maneiras de vincular esses
níveis. Assim, ela se estende de sistemas complexos de pensamento até atos corriqueiros
da vida cotidiana. Somente no contexto de uma estrutura prática é que um discurso
teórico se integra nas concepções comuns do eu” (ILLOUZ, 2012 p. 31).
É preciso reconhecer a importância das atitudes de Cathy, que pretende romper com
os valores morais e sociais burgueses que são impostos a ela, isso demonstra o incômodo e o
impasse do que está posto enquanto aspecto central e fundante do capitalismo: o patriarcado,
a divisão sexual do trabalho, a família nuclear etc. Contudo, é preciso reconhecer, ainda,
como os desejos dela são silenciados e apagados por essa ideologia. Ela sofrerá com a opressão
da sociedade e terá a morte como consequência.
Dessa forma, entende-se que, apesar da tentativa que a personagem tenta fazer da
submissão masculina e da dominação patriarcal, ela representa, mais uma vez, a reafirmação
dos valores machistas que envolvem a realidade das mulheres. Cathy representa a vida
das mulheres e os seus sentimentos. Entendemos, portanto, a importância da luta diária
feminina para romper com a ideologia burguesa, patriarcalista e machista de organização.
É necessário que haja um movimento prático e comum entre mulheres e sociedade
que possa romper com os valores patriarcais e o capitalismo. Essas manifestações precisam
atingir, diretamente, a cultura e as bases estruturais de organização e de pensamento,
tornando possível a libertação da mulher dessas formas de violência e, assim, rompendo os
traços estéticos pautados nesses modos de funcionamento.
118
Referências
ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: edições 70, 2008.
AUERBACH, Eric. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5a ed. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BRONTE, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Martin Claret, 1998.
CANDIDO, Antonio. A passagem do dois ao três. Revista de História. Universidade de São Paulo,
no 100, vol. L, 1974.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2008
CORREA, Murilo Filgueiras. SANGUE É SINAL DE PERIGO: questões de gênero e patriarcalismo
na Saga Crepúsculo. Revista Interfaces, v. 5, n. 1, 2014.
DIAS, DAISE. O MORRO DOS VENTOS UIVANTES: UM ROMANCE PÓSCOLONIAL.
Revista Estudos Anglo-Americanos, n. 37, p. 219-244, 2012.
LESSA, Sérgio. Abaixo a família monogâmica!. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.
ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
ILLOUZ, Eva. El consumo de la utopía romântica: el amor y las contradicciones culturales del
capitalismo. Katz: Buenos Aires, 2009.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.
119
CAPÍTULO 9
O protagonismo feminino nas artes como resistência à
dominação masculina
Roney Jesus Ribeiro, Thaynã Silva Targa,
Thays Alves Costa
Introdução
Na história da representação do corpo feminino, podemos observar que prevaleceram
a dominação e os interesses masculinos, no que diz respeito ao papel imposto à mulher na
sociedade e, consequentemente, na arte. O corpo feminino, por muitas vezes, foi representado
a partir do olhar masculino, de modo que a objetificação e a idealização da mulher tiveram
destaque em grande parte da história da arte. No contexto ocidental, a representação do
corpo da mulher teve transformações estéticas significativas, principalmente se refletirmos
sobre a questão da autoria1.
Em uma história escrita por homens e para eles, “tudo o que os homens escreveram
sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte” (POULAIN
apud BEAUVOIR, 1970, p. 15-16), podemos seguir essa lógica em relação à arte. Mesmo
existindo artistas mulheres, o espaço destinado a elas era limitado, “não é porque as
1 Em Why there have no been great women artists? Linda Nochlin defendeu o fato de que haviam artistas mulheres
eminentes, porém, elas foram silenciadas sistematicamente por instituições. Não sendo mencionadas na literatura e na
história da arte, assim impossibilitadas de ocupar também os espaços expositivos, como museus e galerias. Na década
de 1970, iniciaram pesquisas e publicações significativas com a temática mulheres artistas a partir da Idade Média. Em
1976, Linda Nochlin e Ann Sutherland Harris organizaram a exposição Women artists: 1550-1950, com objetivo de
divulgar as artistas mulheres que foram “ignoradas devido seu sexo”. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias
del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 25-26.
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-9
120
mulheres carecem naturalmente de talento artístico, mas porque ao longo da história todo
um conjunto de fatores institucionais e sociais impediram que esse talento se desenvolvesse
livremente”2 (MAYAYO, 2003, p. 22). Do mesmo modo que o lugar da mulher na sociedade
se estabeleceu a partir da relação com o homem e, por muito tempo, elas viveram “dispersas
entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela
condição social a certos homens - pai ou marido” (BEAUVOIR, 1970, p. 13).
As questões socioeconômicas e políticas influenciaram a representação do corpo
feminino na arte, assim como a religião teve papel fundamental em algumas produções
artísticas e/ou culturais que temos acesso. Para Beauvoir3, as religiões, sobretudo no ocidente,
foram “forjadas pelos homens e refletem essa vontade de domínio” (BEAUVOIR, 1970, p.
16), como exemplo a história da primeira mulher no cristianismo. Eva teria sido criada a
partir do corpo masculino e definida como “um homem incompleto, um ser ocasional”
(IBID, p. 10), lembrou a autora a respeito do posicionamento de Santo Agostinho sobre a
definição de mulher.
Desse modo, o artigo apresentará uma leitura crítica de assuntos concernentes à violência
simbólica e à objetificação do corpo feminino sob o prisma masculino. A representação
do corpo da mulher na arte como uma história que está sendo reescrita, em especial, por
artistas mulheres e pesquisadoras que se dedicam a reapropriação do discurso feminino.
Pensando a mulher sob diversas perspectivas artísticas, nosso objetivo neste artigo consiste
em reafirmar essa história de libertação e de revolução da mulher. Com isso, colocaremos em
discussão assuntos tais como: a representação do sujeito feminino em produções plásticas, a
objetificação e exploração desse sujeito nas artes e também, as ações políticas desenvolvidas
por grupos de mulheres artistas.
Dessa forma, para defesa do proposto nos embasaremos nas contribuições teóricocríticas de autores como Beauvoir (1970), Bourdieu (1996; 2007; 2020), Mayayo (2003),
Oliveira (2018). Além do disposto, no decorrer de nossas reflexões dialogaremos com outros
autores que também conferem melhor sedimentação de nosso objeto de discurso neste artigo.
2 Trecho original: “no es porque las mujeres carezcam naturalmente de talento artístico, sino porque a lo largo de la
historia todo un conjunto de factores institucionales y sociales han impedido que ese talento se desarrolle libremente”.
MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 22.
3 Para Beauvoir, desde a Antiguidade, os homens se esforçaram em representar as fraquezas femininas, como por
exemplo, nas restrições do código romano sobre os direitos da mulher, em que elas eram vistas como um perigo devido
à vulnerabilidade, sendo atribuídos desvios comportamentais, como “a imbecilidade, a fragilidade do sexo”. Os homens
romanos apelaram para a ideia de enfraquecimento da família a caso houvesse a emancipação feminina. BEAUVOIR,
Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1970, p.
10.
121
Uma breve história da representação do corpo feminino
Na pintura Adão e Eva, de Tiziano Vecellio, Eva foi retratada no momento em que
pegara a maçã, metaforicamente, como a responsável por induzir o homem a pecar. Por
outro lado, temos o mito de Lilith como a mulher que rejeitou Adão, recusando-se a situação
de submissão e assumindo uma posição de protagonista. A artista carioca Ju Morais, se
apropria da narrativa mitológica para compor sua série intitulada Lilith (2019), que explora
a diversidade do corpo feminino através de colagens de imagens históricas e contemporâneas.
Na obra Ju Morais apresenta mulheres de diferentes etnias e classes e, podemos observar em
algumas obras, as frases “très féminines” e “muy femeninos”. A artista também ressignifica
objetos religiosos que encontra em igrejas e centros espíritas incorporando-os nas colagens
na forma de bordados.
Se pensarmos em fundamentos religiosos ou na ideia de materialização do divino, o
corpo feminino simboliza a maternidade na representação de Maria na concepção cristã.
Esta mesma representação, além de trazer um conjunto de valores morais, acompanhava a
idealização da pureza (ideia da mulher virgem) que carregou no ventre o filho de Deus, como
na obra La Maestà, de Duccio di Buoninsegna ou nas inúmeras representações existentes,
em especial no Barroco. Nas representações de Joana D’Arc, na Idade Média4, a mulher,
mesmo ocupando um espaço masculino na guerra, estava associada ao objetivo religioso.
Em oposição à idealização do corpo feminino em imagens de divindades feitas por artistas
homens, temos a obra da artista brasileira Djanira da Motta e Silva com as obras Ritual de
puberdade (1962) e Três Orixás (1966), que com temáticas religiosas, nos presentea com
corpos femininos negros e indígenas estilizados numa perspectiva da realidade dos rituais
feitos por mulheres comuns e não sendo mais representadas como deusas, por exemplo.
Já a artista barroca Artemisia Gentileschi, considerada uma das artistas mais importantes
de seu tempo por Mayayo, dedicou-se em retratar “as mulheres fortes” na mitologia e no
cristianismo, como Judith decapitando Holofernes (1620).
Segundo Bürke, a respeito da construção da narrativa histórica, “o que vemos é a
opinião pintada, uma visão de sociedade, num sentido ideológico mas também visual”
(BÜRKE, 2017. p. 182), ele atenta que a representação de espaços e de papéis femininos,
4 Plinio el Viejo (23-79 d.C) em Historia Naturalis, atentou a falta de dados sobre artistas mulheres na Idade Média.
Na publicação, o autor mencionou apenas seis artistas mulheres na Antiguidade. No Medievo, as mulheres realizavam
atividades como bordado e tapeçaria, alguns trabalhos compunham os altares das igrejas. A autora Patricia Mayayo,
menciona a existência de monjas que se dedicavam a copiar e produzir iluminuras medievais, por exemplo, no século
VIII, uma mulher chamada Ende, se identificou em um manuscrito como “pintora e ajudante de Deus”, afirmando sua
posição como artista. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003,
p. 26-27.
122
assim como o lugar-comum da história da mulher, é pensado a partir de arquivos e fontes
que foram criados e organizados por homens. Por esse motivo, a nudez feminina nas obras
de arte parecia reservada ao cumprimento de funções religiosas, como nas representações
de deusas mitológicas, como vimos anteriormente. Não faltam exemplos de representações
de divindades a partir de modelos de mulheres brancas, como a Vênus de Urbino (1538),
de Ticiano, que além de reforçar a pauta religiosa, acompanhavam aspectos idealizantes.
Evidentemente, nas produções artísticas que compunham os livros de história da arte, não
era possível ver corpos negros ou com algum tipo de deficiência. Felizmente, a história
está sendo transformada, como na releitura The birth of Oshun (2017) feita por Harmonia
Rosales da obra O nascimento de Vênus (1484) de Botticelli.
Refletindo sobre questões místicas e a posição de privilégio do homem em julgar as
ações femininas, as representações das bruxas na Idade Média, sobretudo nos séculos XVI e
XVII, ofereciam uma imagem estereotipada da mulher “cozinhando ou devorando bebês”
(BÜRKE, 2017, p. 202). A gravura As bruxas5 (1510), de Hans Baldung, associa a imagem
da bruxa ao pacto com o diabo. A concepção de feiura concedida ao estereótipo da bruxa
pode ser visto como oposição ao conceito de beleza grego, que aparece na renascença.
O Renascimento nos conduziu ao retorno dos clássicos com os corpos esbeltos e rostos
serenos pintados em cenas mitológicas e/ou cristãs, que só perdiam espaço para os retratos da
nobreza, como no O retrato de uma dama, de Rogier van der Weyden. Em termos filosóficos,
os renascentistas objetivavam o “belo – junto com gracioso, bonito ou sublime, maravilhoso,
soberbo e expressões similares – é um adjetivo que usamos frequentemente para indicar
algo que nos agrada” (ECO, 2004, p. 9), assim, vivenciando o conceito de beleza grego6.
Como uma herança do pensamento clássico, os artistas reproduziram técnicas que por
muitas vezes, nos ofereceram a contemplação de corpos baseados nos ideais de proporção,
de simetria e de harmonia nas artes visuais, como se esquecessem da individualidade dos
corpos. Obviamente, existiam exceções, com artistas que apresentavam diferentes percepções
de nossa existência, como fez Bosch. Em sua maioria, os artistas tentavam recriar o ‘belo’
que estabelece uma relação estreita com o ideal de ‘bom’, como consequência, induzindo a
crença em valores morais e estéticos.
5 Nesta gravura, o corpo nu das mulheres e os rostos grotescos são vinculados ao imaginário popular em relação aos
rituais pagãos. Na parte superior da imagem, o desenho de uma bruxa nua voando em cima de um bode, reforçando a
crença de uma perversão demoníaca. No século XVII e XIX, ocorreram mudanças nos estereótipos, a bruxa passava a ser
retratada como uma “velha usando chapéu pontudo, com uma vassoura” e cercada por imagens de demônios. BÜRKE,
Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 202.
6 Na estética grega, o conceito de beleza está relacionado aos ideais aristotélicos e platônicos, de modo que a simetria,
a proporção, a harmonia e o equilíbrio eram princípios a serem alcançados. No que diz respeito ao conceito grego, o
objetivo era a perfeita união da mente com o corpo. Para Eco, o ideal de perfeição grego era representado pela palavra
Kallokagathia, que é a junção de belo e bom, consequentemente, a beleza estava relacionada à moral. ECO, H. A
história da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
123
Nessa época7, temos conhecimento de algumas artistas mulheres, como a pintora
Caterina dei Vigri e a escultora Properzia de Rossi, ambas ligadas às famílias nobres. O motivo
do “surgimento” de mulheres nas artes, estava vinculado ao ideal de comportamento ou de
virtude a serem seguidos pela aristocracia, assim, as mulheres deveriam ter uma “educação
refinada, habilidades para pintar e desenhar”8 (MAYAYO, 2003, p. 28), da mesma maneira
que precisavam de conhecimento sobre música e poesia, para desenvolver uma conversa
considerada interessante. As artistas renascentistas levavam em consideração as técnicas e
as temáticas desenvolvidas no movimento, compondo uma condição de concordância com
princípios estabelecidos pelos artistas homens, como o modelo estético.
Da mesma forma que os fatores sociais e religiosos ditaram os rumos da produção
artística, nos deram uma abundância de corpos femininos semelhantes, como A grande
Odalisca (1814), de Ingres e Louise O’Murphy (1752), de François Boucher, a mulher
vista quase como um objeto a ser contemplado. Por muito tempo, o nu feminino foi
representado a partir do olhar masculino. Além do homem objetificar a mulher, ele atribuía
pretensões ligadas ao sexo e/ou ao erotismo, como nos quadros de jovens nuas de Gustave
Klimt. Nas obras de Klimt e de Egon Schiele9, o corpo feminino é visto na perspectiva do
voyeurismo, como se estivesse presente em sonhos eróticos. Já a nudez feminina apresentada
nas performances de Marina Abramovic, tinham como propósito uma reflexão sobre o lugar
da mulher na sociedade como em Rhythm0 (1974), que além de testar os limites do próprio
corpo, a artista alcança o potencial de leitura psicológica ao apresentar o comportamento do
público diante da possibilidade de interação.
A representação do corpo feminino a partir do olhar da mulher10 nos traz uma percepção
diferenciada, como os autorretratos da artista Frida Kahlo, que parecia não se importar com
padrões de beleza e com a moral, em sua natureza era subversiva. As obras de Frida expõem
7 Para Mayayo, a publicação El cortesano (1528) influenciou o modo de vida da aristocracia e da nobreza, incorporando
a ideia de comportamento ideal, principalmente, para a mulher. MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del
arte. Madrid: Ediciones Cátedra, 2003, p. 28.
8 Trecho original: “una refinada educación, habilidades para la pintura y el dibujo”. Idem, ibidem.
9 Sobre a produção artística de Gustave Klimt, as pinturas e desenhos de jovens em cenas de nudez e com referência
ao sexo, que renderam ao artista episódios em que suas obras foram censuradas. Klimt foi acusado pelos professores da
Universidade de Viena (1894) de tentar “perverter a juventude”. Já Egon Schiele, que foi amigo de Klimt, foi acusado
de seduzir uma menor de idade, o que levou a 3 dias de prisão. O motivo da prisão de Schiele tem origem no seu
interesse por representar jovens mulheres e até adolescentes em ações de sensualidade e de masturbação, que foram
consideradas pornografias. No caso da prisão, Schiele estava com uma menor de idade em sua residência e a denúncia
foi feita pelo pai da jovem.
10 Em nosso contexto brasileiro, podemos mencionar a importância da artista Anita Malfatti que influenciada pela
estética cubista e expressionista, nos presenteia com a obra A boba (1916). Anita assim como Frida, apresenta um
autorretrato com a liberdade de produzir de forma expressiva sua visão de si mesma. Anita inovou ao trazer tendências
técnicas artísticas baseadas nas vanguardas artísticas que já estavam em atividade na Europa, porém teve sua obra
desqualificada por Monteiro Lobato que julgou negativamente a produção da artista, ridicularizando-a com a crítica
Paranóia ou mistificação? para o jornal O Estado de São Paulo (1917). Não é novidade o discurso feminino ou uma
produção artística ser invalidada por um homem.
124
o retrato de uma mulher real que se afirmava politicamente e sexualmente desafiando os
paradigmas de gênero. Se a beleza feminina estava associada aos ideais de feminilidade e de
fragilidade da mulher, Frida se apresentava com roupas compreendidas como masculinas,
como mostra a obra intitulada Autorretrato com o cabelo cortado (1940). Os autorretratos de
Frida apresentam uma arte ligada à experiência e à expressão dos sentimentos femininos,
como em Hospital Henry Ford (1932), em que a artista retrata de forma surrealista seu corpo
nu deitado numa maca após um aborto.
As artistas mencionadas ao longo do artigo, ressaltam a individualidade da mulher
dando voz ao discurso feminino que foi silenciado ao longo da história, expondo o retrato
da mulher real, como na fotografia As colhedoras de ervilhas (1936), de Dorothea Lange.
Para Bürke, as fotografias de Dorothea Lange e de Margaret Bourke-White “mudam o foco
do grupo para o indivíduo e enfatizam as tragédias pessoais por meios tais comocloses de
uma mãe e seus filhos” (BÜRKE, 2017, p. 180). Além da imagem de Dorothea reafirmar a
condição da mulher na sociedade, expõe o fato de que mesmo que este corpo ocupe seu lugar
no mercado de trabalho, os afazeres domésticos continuam como uma espécie de obrigação,
sendo responsável por jornadas duplas. As mulheres tiveram, por muito tempo, seu corpo
levado aos limites físicos e psicológicos11, com excesso de trabalho e de responsabilidades.
Nas discussões a seguir apresentaremos algumas obras de arte que criticam a lamentável
autoimposição que a sociedade insiste em exercer sobre as mulheres.
O feminino e a representação do erótico em Vênus
A sociedade sempre criou regras de comportamentos para controlar o corpo e a vida
das pessoas, sobretudo as mulheres. Por esse motivo as civilizações em uso de seus variados
aspectos sócio-culturais determinam códigos que servirão como elemento para aprovação ou
reprovação da conduta das pessoas na sociedade. Um comportamento que poderia causar
intolerância seria automaticamente reprovado sob forte interdição. O corpo desnudo e todas
as questões concernentes aos seus desejos e erotismo também eram reprimidas sob severas
censuras. Vale ressaltar que, ainda hoje a sociedade se orienta por muitos valores patriarcais
que sempre exerceu autoimposição o que pode ou não ser mostrado, e também o que deve
ser visto. Tomando por base o código imposto pela sociedade patriarcal, o corpo masculino
nunca representou uma ameaça e a desordem na conduta imposta. Diferente disso, o corpo
feminino sempre sofreu censura, ou seja, as questões relacionadas ao corpo masculino nunca
passavam pelas mesmas restrições que a mulher era submetida.
11 Como referência temos a temática da escravidão produzida por Rosana Paulino. A artista expõe a vida da mulher
escravizada, mostrando mulheres silenciadas e exploradas, como na série Ama de leite com produções em diversas
linguagens artísticas feitas em diferentes momentos da carreira de Rosana.
125
A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a
ele; ela não é considerada um ser autônomo. [...] A mulher determina-se e diferenciase em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o
essencial. O homem é o sujeito, o Absoluto; ela é o Outro (BEAUVOIR, 1967, p.10).
O disposto por Beauvoir nos leva a refletir que em âmbito geral, sobretudo nas artes, o
corpo feminino sempre foi muito explorado de forma errônea. Entretanto, a exploração desse
corpo, por exemplo, convencionou um modo muito natural de atrair olhares da contemplação
sob a perspectiva do erótico. Pensando nisso, alguns pesquisadores têm se concentrado no
esforço de desconstruir muitas ideias que reduzem as percepções do erotismo provenientes
do corpo feminino ao prazer carnal. O corpo feminino desnudo está para uma simbologia
mais ampla. Por isso, merece um exercício reflexivo melhor. De acordo com Oliveira (2018,
p. 85), o erotismo “designa uma categoria de classificação e análise das representações sobre
a sexualidade”. Pensando na ampla simbologia que o corpo feminino e seus desejos eróticos
podem alcançar, em tal estudo nos distanciaremos da definição do erótico no tocante ao
corpo feminino tradicionalmente estabelecido pelo senso comum. De acordo com Pierre
Bourdieu (2017), o que distingue o erotismo, da obscenidade e da pornografia são questões
inerentes ao capital simbólico12 a estas instâncias. O que pesa sobre tais distinções é que, por
se considerarem superiores, os grupos sociais dominantes buscam invalidar os discursos entre
o erotismo e a pornografia. Sendo assim, cria-se o rótulo de inferiores por achar que essas
perspectivas são causadoras da desordem na sociedade patriarcal. Borges (2013) Gregori e
Díaz-Benítez (2012) e Hunt (1999), aplicam ao erotismo, obscenidade e pornografia, o
valor de termos sinônimos. Por isso, nos auxiliaremos em tais contribuições teóricas para
realizar as reflexões seguintes.
Conforme defende Oliveira, as pessoas fazem um esforço grandioso para criar categorias
para o erotismo concernente ao corpo feminino e com isso, acaba trazendo prejuízo ao real
sentido simbólico do erotismo. Isso possivelmente ocorre porque “a vasta quantidade de
gêneros que representam a sexualidade de formas tão distintas, dificulta a própria definição
do que é erótico” (OLIVEIRA, 2018, p 85).
Talvez se possa supor inclusive que a impossibilidade de estabelecer diferenças entre
o que seria erótico ou pornográfico – reafirmada por muitos estudiosos do assunto,
que também empregam os dois termos indistintamente – seja em parte motivada
pela mesma indeterminação formal que dificulta uma definição precisa para a erótica
literária (MORAES, 2015, p. 26).
12 Na concepção de estrutura social de Bourdieu, o capital é visto como recurso que atribui poder a um agente. O
autor amplia a noção de capital através da diferenciação, propondo a noção de capital econômico, de capital social, de
capital cultural e de capital simbólico. O capital econômico corresponde aos recursos financeiros adquiridos através do
trabalho. O capital social demonstra a relação de pertencimento a um grupo específico. O capital cultural está ligado
“ao conhecimento adquirido pelo agente por meio da escola ou da família e que pode ser transformado em recursos”,
como os hábitos sociais, preferências de consumo, por exemplo. O capital simbólico diz respeito ao “reconhecimento
social de um indivíduo, adquirido por meio do conjunto dos capitais econômicos, sociais e culturais que ele possui”.
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu, 2003, p. 53 -54.
126
Há muitas barreiras que nos impede de estabelecer uma distinção entre o erótico e
o pornográfico porque um termo se define na fronteira com o outro. Além disso, outro
fator preponderante dessa impossibilidade se baseia na voz falocêntrica que é o lugar de
fala na sociedade ocidental e acabada se reverberando no discurso erótico. Mesmo havendo
distintas formas de representação do corpo feminino desnudo, essa questão ainda se mantém
muito estanque nos dias hodiernos. O corpo feminino por muito tempo serviu de objeto de
idealização nas artes plásticas. Segundo Oliveira, restava à mulher somente o lugar de sujeito
idealizado e, nunca de criadora. Ao sujeito feminino destinava somente o lugar de servidão
aos autores literários e aos artistas plásticos homens. “Quando pensamos nas artes plásticas,
a autorrepresentação de mulheres é uma conquista relativamente nova” (OLIVEIRA, 2018,
p. 86).
As mulheres por muito tempo sofreram grande privação de frequentar os espaços onde
quisessem ir e quando o desejassem. Seu corpo até hoje serve de espelho de observação para
muitos artistas plásticos. Segundo Gubar (1981), até início do século XX as mulheres eram
severamente privadas de ingressar nas escolas de belas-artes como alunos. Por outro lado,
seus corpos desnudos serviam de modelos para os artistas que estudavam nestas instituições.
Tomando por base O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli, analisamos que a obra
apresenta muita simbologia do feminino. Nesta obra, observamos Vênus com seu corpo
desnudo que nasce de uma concha de madrepérola. O nascimento da deusa pode ser visto
como o principal aspecto relacionado ao feminino. As muitas representações das Vênus
pudicas produzidas desde a Antiguidade Clássica até os dias hodiernos foram retratadas
cobrindo os seios com a mão direita e a genitália com sua mão esquerda e, seus longos
cabelos louros (WILLMER, 2014). Tais características estão presentes na obra de Botticelli.
No que tange, os personagens inseridos no contexto de O Nascimento de Vênus, Oliveira
explica que:
Ao seu lado esquerdo, personagens a contemplam com curiosidade e, ao seu lado
direito, outra deusa tenta cobri-la (talvez com intenção de protegê-la desses olhares,
talvez em uma busca por discipliná-la). Segundo alguns críticos, o uso dos tons claros,
a vagina metaforizada em uma concha, o olhar passivo da deusa e seus trejeitos pudicos
foram técnicas adotadas para remeter à pureza feminina (OLIVEIRA, 2018, p. 86).
Mesmo que a obra O Nascimento de Vênus tenha sido produzida em 1484, ela retoma
muitas características e valores em voga no período clássico. Entre eles, o ideal de perfeição,
beleza e a pureza feminina. Analisamos que o nascer, Vênus já é inserida no contexto do
controle, da censura e das impossibilidades. Além disso, outra deusa aparece cobrindo-a com
um manto, o que pode ser entendido como reflexo da civilização. Aquela que domará o corpo
feminino reprimindo seus desejos, seus instintos e, sobretudo, negando sua sexualidade.
127
Tomando por base os valores impostos pela sociedade patriarcal, o corpo da Vênus
representa o corpo feminino explorado e visto como um objeto a ser exposto à contemplação
do homem. Os gostos e desejos do corpo feminino eram silenciados. O pensamento
masculino era a única coisa que importava na época e, isso nos possibilita compreender
tal situação como “a erótica da conquista imperial era também uma erótica da subjugação”
(McCLINTOCK, 2010, p. 48).
Outro exemplo de exploração do corpo feminino que pode ser analisado é o caso da
Vênus de Huntentote. Mesmo tendo recebido tal rótulo seu nome real era Sara Baartman.
A referida mulher teve seu corpo explorado, sexualizado, animalizado e exposto em muitas
feiras públicas na Europa. Sara desenvolveu de forma avantajada algumas partes de seu
corpo, entre eles as nádegas e o clitóris, e como tais características destoavam muito das
demais mulheres seu corpo acabou chamando atenção de alguns médicos. Segundo Oliveira
(2018, p. 87), a existência de Sara “foi marcada por olhares alheios, seja presa em gaiolas,
frente a uma plateia que a assistia com medo e excitação, seja em espaços médicos, em
que posava nua para que medissem meticulosamente sua genitália”. Reiteram Ferreira e
Hamli que, “ver, nesse contexto, significa a possibilidade de controlar. Ser visto significa a
iminência de ser destruído – pois tornar-se objeto e ser destruído aqui significam a mesma
coisa” (FERREIRA; HAMLIN, 2010, p. 816).
Embora a relação de tempo-espaço distancie as duas representações de Vênus,
acreditamos que elas se aproximam no tocante ao silenciamento e a desaprovação de seus
desejos. Mesmo que a primeira imagem de Vênus nos sirva como representação da idealização
e do intocável a partir de uma obra de arte e, a segunda nos chega como o ser humano do
gênero feminino13 sendo animalizado e convertido como monstro. Analisamos também
que, ambas as obras representam figuras femininas marcadas pela impossibilidade de serem
naturalmente mulheres, já que seus desejos são censurados e reprimidos. A objetificação do
corpo feminino e as relações simbólicas no tocante ao erotismo faz todo sentido à lógica da
sociedade patriarcal.
A representação da dominação masculina na arte contemporânea
O corpo feminino passa por encarceramentos simbólicos desde a infância, é ensinado
através da visão androcêntrica como ele deve se comportar, falar ou pensar. É ensinado
também qual local social deve pertencer e quais os trabalhos podem executar. Tais questões
13 Que mesmo após a sua triste morte, permaneceu servindo de experimento para estudos de cientistas. Além disso,
passava pela desaprovação da platéia que observavam seu corpo com pavor e/ou horror às suas características físicas.
128
são abordadas em A Dominação Masculina (2020) por Bourdieu, no qual analisa tal estrutura
sob a ótica de oposição ao corpo masculino, criando esquemas antagônicos entre os sexos.
Percebe-se cheio/ou o que preenche a se tratar do homem e o vazio/a ser preenchido ao se
tratar da mulher, análise esta que parte do pensamento antigo de centralidade do falo na
sociedade, a vagina sendo não mais do que este em introversão. Tendo em vista o conceito
bourdieuano, o corpo da mulher sofre com a dominação física e simbólica estabelecida por
uma estrutura que tem como objetivo perpetuar o controle masculino.
Dessa forma, todas as regras sociais se iniciam por meio do símbolico sexo masculino.
É esse simbólico que se coloca no domínio das normas vigentes, dos espaços públicos e dos
pensamentos, limitando as mulheres ao contexto doméstico e ao trabalho de serventia e de
manutenção de tais lugares. Espera-se que o conhecimento feminino seja um ato prático de
‘adesão dóxica’14. Tal atitude gera a crença de que a mulher não precisaria de questionamentos
como tal e, que de certo modo, repetindo a violência simbólica15 a qual ela é submetida
(BOURDIEU, 2020, p. 62). Isso ocorre por meio de um produto de perpetuação do
trabalho incessante com auxílio de agentes que compactuam e se beneficiam desses fatores
que limitam a mulher, tais como a família, a escola, a igreja e o Estado.
Podemos observar tais particularidades na produção da artista Regina José Galindo
que, evidencia as questões relativas à violência física sofrida por mulheres de seu país de
origem, a Guatemala. Em suas performances de Regina José Galindo enfoca temáticas
tais como, a ideia de vulnerabilidade imposta ao corpo feminino e o estado de submissão
vivido por muitas mulheres na contemporaneidade. Em El dolor en un pañuelo (1999), a
artista apresenta o exercício da violência física e simbólica como formas de manutenção
da dominação masculina. Na referida obra, a artista está amarrada em uma cama com
os olhos vendados, enquanto são projetadas notícias de jornais sobre abusos sofridos por
mulheres. Ela ainda desafia o conservadorismo misógino da Guatemala com a performance
Perra (2005), em que a partir da técnica de escarificação escreve “perra” em sua coxa, como
uma referência direta à palavra encontrada nos corpos de mulheres assassinadas no país. O
contexto narrado na obra serve como uma crítica intensa à sociedade patriarcal que, insiste
em exercer domínio sobre o corpo feminino.
14 “A doxa é um ponto de vista particular dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal;
O ponto de vista daqueles que dominam o Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao
criarem o Estado”. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP : Papirus, , 1996. p.120
15 O conceito de violência simbólica diz respeito a violência de ordem emocional, moral e psicológica, sofrida pelo
indivíduo e causada por instâncias legitimadas por hierarquias que foram determinadas através de relações de poder.
Desse modo, nos espaços sociais (campo) existem configurações que determinam a atuação e o comportamento de
cada indivíduo, estabelecendo limites e pode ser manifestada de forma opressiva, como por exemplo, no sistema escolar
incorporada no discurso dos professores, por exemplo. Para Bourdieu, a “violência suave, insensível, invisível a suas
próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento”. BOURDIEU,
Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 7-8.
129
Tomando por base o pensamento bourdieuano, é possível analisar em muitos
trabalhos produzidos por artistas mulheres um embate que vai contra a uma estrutura social
autoimposta. Tais produções artísticas criam um campo16 de oposição crítica enfatizando
o repertório das violências físicas e simbólicas cotidianas para sua criação. Nesse sentido,
podemos perceber que nesses trabalhos a mimesis de situações que abordam o isolamento,
silenciamento, assédio, pressão estética, abandono, entre outros fatores que ganham
normalidade em nossa sociedade. Questões tais como as colocadas anteriormente, dialogam
diretamente com a obra Rhythm0 (1974), de Marina Abramovic que, dispõe seu corpo
para a interação com o público, como modo de evidenciar a relação e a ideia de domínio.
Sobre a performance, a artista disponibilizou diferentes objetos em uma mesa e as pessoas
foram orientadas dentro da galeria que poderiam fazer “o que quisesse com a artista”, que
ficou imóvel diante das humilhações e da violência causada durante a performance. Marina
Abramovic teve seu corpo machucado, despido e ameaçado de morte, no momento em
que uma arma foi apontada para sua cabeça. Além da violência física, reflexo da realidade
de muitas mulheres, ainda é possível observar a violência simbólica em relação ao corpo
feminino dentro dos espaços expositivos.
Tendo como princípio o cenário artístico patriarcal17, somos induzidos a
questionamentos relacionados ao tão recente aparecimento das mulheres, para além de
modelos, mas como artistas na história da arte. Nesse sentido, podemos refletir sobre a
importância desses corpos para a criação de uma narrativa que questione a dominação
masculina. De acordo com Bourdieu:
Os trabalhos de construção simbólica não se reduzem a uma operação estritamente
performativa de nominação que oriente e estruture as representações, a começar pela
representações do corpo(o que ainda não é nada); ele se completa e se realiza em
uma transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros), isto é, em um
trabalho de construção prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos
do corpo, sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível
tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero (BOURDIEU, p. 45, 2020).
16 Para Bourdieu, o campo é um espaço simbólico onde ocorrem as lutas pelas representações, de modo que existem
diferentes campos. No caso do campo da arte podem acontecer disputas pelas definições de arte e de valores de classe,
além da competição pelo capital.
17 Em oposição à estética publicitária e ao cenário artístico, ambos dominados por homens, temos os cartazes de Barbara
Kruger que se relacionam aos esquemas de domínio abordados por Bourdieu. Os cartazes inseridos no desenvolto
sistema capitalista ocidental dos anos 80, criam um campo de enfrentamento ao denunciar os dispositivos de domínio
gerados pelo marketing na tentativa de relacionar as mulheres ao consumismo. Nos referidos cartazes, encontramos
frases de efeito tais como “Seu corpo é um campo de batalha” (1989), “Eu compro, portanto, eu sou”(1987), “Você não
é você mesmo” (1981), “Não saiba nada, acredite em qualquer coisa, esqueça tudo” (1987). Tais frases nos mostram o
contra-ataque satírico de Kruger, explanando o contexto contemporâneo mercadológico colocado sob a mulher.
130
Para além das limitações públicas às quais foram submetidas por muito tempo, seus
corpos no espaço das artes também foram reduzidos ao lugar de objetos de curiosidade e
admiração. Por não pertencer ao grupo de domínio, as mulheres permaneceram excluídas
quanto à construção de pensamento. Dessa forma, a valorização histórica é recaída sob o
artista (sendo homem), pois somente ele pode ser compreendido, capaz intelectualmente
e apto a participar dos ritos institucionais e públicos. Ao contrário das mulheres, que são
mantidas nos locais de submissão e serventia em ambientes privados, como mencionou
Bourdieu sobre a dominação masculina na sociedade.
Sobre tais aspectos, o grupo Guerrilla Girls, formado em Nova York no ano de 1985,
tem sua produção voltada à luta de gênero e ao questionamento direto sobre o espaço
de pertencimento das mulheres no sistema da arte. Em seus trabalhos podemos ler frases
como “Do Women Have To Be Naked To Get Into the Met. Museum?18”(1989) (ou na versão
para a exposição que ocorreu no MASP em 2017: “As mulheres precisam estar nuas para
entrar no Museu de Arte de São Paulo?”), the advantages of being a woman artist (1985)
que atualmente se destacam e criam um repertório de manifestação contra as violências
simbólicas ainda concentradas nesse meio. A partir dessas ironicas indagações, o grupo é
capaz elucidar um mapa sobre a história da arte e expor muitas das limitações e exclusões
colocadas sobre as mulheres artistas, quando elas serviam-lhes como apoio criativo (musas e
modelos), mas as restringiam desses espaços não as relacionando diretamente ao pensamento
e à criação artística.
O cartaz em que podemos ler “as vantagens de ser uma artista mulher”, também é
seguido das possíveis vantagens como: não ter que participar de exposições com homens;
poder escapar do mundo da arte em seus quatro trabalhos como freelancer; estar segura de
que, independentemente, do tipo de arte que você faz, será rotulada como feminina; ver
suas ideias tomares vida no trabalho de outro; ter a oportunidade de escolher sua carreira
ou a maternidade; entre outras questões que são levantada no mesmo pôster. Além da
denúncia sobre a exclusão das mulheres nas instituições artísticas, podemos notar também o
questionamento a respeito da sobrecarga do trabalho feminino, que se perpetua em diversos
nichos de nossa sociedade. A última frase desse cartaz diz: “ver sua foto em revistas de arte
usando uma roupa de gorila”, podendo sugerir também questões que se relacionam com um
possível apagamento de identidade pelo adestramento social por ser mulher.
Entre muitas questões às quais as mulheres são submetidas, ainda é esperado um
padrão de vestimenta, temperamento e comportamento e quando não os seguem, são vistas
como selvagens (ou como, gorilas). Bourdieu acredita também que para além das barreiras
18 Não apenas para o Museu de Arte de São Paulo ou para o Met. Museum, mas esse trabalho consiste em questionar
diversas instituições.
131
que as camadas de roupas podem criar, como será citado abaixo usando por exemplo o
“véu”, o conjunto de imposições ensinadas na conduta das mulheres vêm desde sua infância.
A submissão de um comportamento padrão possibilita a criação do “cerco invisível”, no
qual, faz com que elas se isolem até mesmo por suas linguagens corporais. A respeito disso,
o autor fala:
“Como se a feminilidade se medisse pela arte de se “fazer pequena” (o feminino em
berbere, vem sempre no diminutivo), mantendo as mulheres encerradas em uma
espécie de cerco invisível(do qual o véu não é mais que a manifestação visual), limitando
o território deixado aos movimentos e aos deslocamentos de seu corpo -enquanto
os homens ocupam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares públicos
(BOURDIEU, 2020, p. 53).
Dessa forma, surgem questões que extrapolam os cartazes com as ácidas frases,
isto posto, é trazida à luz a inquietante observação sobre a performance de ocultação de
identidade do Guerrilla Girls através de suas máscaras. Seriam essas utilizadas como uma
forma de romper o dito cerco invisível dos gestos? ou ainda, um auxílio para a exposição de
seus pensamentos como elas gostaria de que fossem expostos (independente das normas
institucionais que recaem instintivamente sobre as mesmas)? Ou seriam estas máscaras
a propulsão para uma crítica semiótica sobre o circuito da arte, (como quem dissesse
“preferem reconhecer o talento intelectual, questionador e artístico em macacos do que em
mulheres”)? As respostas para tais questionamentos ainda se situam no local das incógnitas,
mas o que podemos observar é que mesmo com a arte do Guerrilla Girls sendo bastante
difundida e debatida nas instituições, ao ocultar suas identidades as artistas do grupo ainda
são mantidas, de certa forma, no espaço privado.
Considerações finais
Com relação às representações femininas realizadas sob a ótica masculina, podemos
observar um imaginário que recaí sobre as mulheres no desenrolar da perspectiva históricosocial. Dessa forma, cria-se um ideal de beleza, de maternidade e de santidade que afastam
as mulheres da realidade e as posicionam em uma esfera que beira o sublime no papel de
musas19.
19 Por meio das pinturas e esculturas realizadas por homens e para um espaço que, até então, pertenciam aos homens,
as mulheres não participavam como artistas, mas sim, como um objeto distante, útil para reprodução imagética,
apreciação e admiração, representadas de acordo com o ideal feminino da fantasia masculina. Podemos observar tais
132
Como coloca Bourdieu (2020), tendo em vista as particularidades comportamentais
de domínio dos homens sobre as mulheres em Cabília, na Argélia, podemos também
observar muitos indícios do estudo se repetirem em nossa atual sociedade. É compreendido
que o jogo de domínio não é encarcerado em determinada região, mas como demonstrado
ao longo do artigo, o jogo de dominação masculina ainda se mantém presente em muitos
contextos sociais, sobretudo, o nosso.
Em tentativa de desconstrução do conservadorismo que paira sob o contexto social
e artístico, muitas mulheres artistas tais como Marina Abramovic, Regina José Galindo, Ju
Morais, Djanira da Motta e Silva e, as integrantes do Guerrilla Girls, têm tido um papel de
grande importância na criação inúmeras movimentações cujo objetivo é decretar a libertação
do corpo feminino e, também a desestabilização das estruturas e das autoimposições a partir
de suas obras que, trazem um conteúdo fortemente político e crítico.
A representação do corpo feminino sob olhar da artista mulher busca reescrever a
história desse sujeito que por muito tempo sofreu muitas violências simbólicas. Dessa forma,
representando seu corpo e se inscrevendo nos espaços públicos e institucionais, as mulheres
criam narrativas que comprovam a forma como elas querem ser vistas, sem que para isso
tenham que passar pela aprovação ou desaprovação das normas ditadas pelo filtro machista.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiencia vivida. Tradução de Sérgio Millet. São
Paulo: Difusão Europeia do livro, 1967.
BEAUVOIR, Simone de.. O segundo sexo: fatos e mitos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo:
Difusão Européia do livro, 1970.
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de Pierre Bourdieu. Petrópolis: Vozes,
2003.
BORGES, Luciana. O erotismo como ruptura na ficção brasileira de autoria feminina: um estudo de
circunstâncias em famosas pinturas como as bailarinas condescendentes de Renoir; ou nas sensuais dançarinas de
Toulouse Lautrec; também, nas amabilíssimas donas dos cabelos compridos em Edmund Blair Leighton, que mesmo
ao ordenar um cavaleiro, não perde o gracejo e a doçura; o corpo feminino nas mais devidas formas aceitas socialmente
usadas, até mesmo, como carimbos humanos em “Antropometria do período azul” (1960) por Yves Klein; todas estas e
mais outras diversas representações são criadas sob a perspectiva de homens.
133
Clarice Lispector, Hilda Hilst e Fernanda Young. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2013.
BOURDIEU, Pierre. A distinção. São Paulo: Edusp, 2007.
BOURDIEU, Pierre. . A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
BOURDIEU, Pierre. . Razões Práticas. Campinas: Papirus, 1996.
BÜRKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência. São Paulo: Editora Unesp,
2017.
ECO, Umberto. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2004.
ECO, Umberto. A história da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
GREGORI, Maria Filomena; DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira. Apresentação. In: Cadernos PAGU.
N. 1, V. 38. Campinas: Unicamp/ Pagu, pp. 7-12, 2012.
FERREIRA, Jonatas e HAMLIN, Cynthia. Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre
corpos não civilizados. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18 n. 3, p. 811-836, set-dez.
2010.
HUNT, Lynn. A invenção da pornografia - obscenidade e as origens da modernidade 1500-1800.
São Paulo: Hedra, 1999.
MAYAYO, Patricia. Historias de mujeres, historias del arte. Madrid: Cátedra Ediciones, 2003.
McCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas:
Editora da Unicamp, 2010.
MORAES, Eliane Robert. Da lira abdominal. Antologia da poesia erótica brasileira. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2015.
OLIVEIRA, Juliana Goldfarb. Descolonizando Vênus: transgressões e autorrepresentação na poesia
erótica brasileira de autoria feminina. Revista Landa. Vol. 6, n. 2, pp. 83-98, 2018.
WILLMER, Rhea Sílvia. Ana Luísa Amaral e Ana Cristina Cesar: modos de pensar o feminino
na poesia contemporânea em português. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas). Rio de Janeiro:
UFRJ, 2014.
134
CAPÍTULO 10
Interfaces entre o discurso de silenciamento feminino
e a luta das mulheres por espaço na sociedade: reflexões
a partir da obra “Inocência”, de Visconde de Taunay
Sangela Lígia Camilo da Silva,
José Lucas Silva de Araújo
Considerações iniciais
Em uma década marcada pelo afloramento de teorias, do contexto científico e da
própria sociedade, podemos afirmar que o movimento literário Romântico desempenhou um
relevante papel no sentido de firmar um ideal de cunho político-ideológico que despertasse
os anseios da denominada recém-nação. Vale ressaltar que esse fato desempenhou ações que
geraram na sociedade da época que persistem até os dias atuais que é o silenciamento da voz
feminina, a inferiorização da figura feminina.
Os termos Nacionalidade e Estado-nação reforçam a ideal de uma unidade, de uma
singularidade da cultura, das tradições que poderiam, consequentemente, estabelecerse no seio da sociedade da época que paulatinamente está em constante transformação,
ao mesmo passo que atua na desconstrução de grupos sociais para que se efetive melhor
as concepções políticas-ideológicas e culturais que visam à promoção da mudança e do
estabelecimento de uma sociedade padrão operada por homens, assim, a figura feminina
sofre com o silenciamento de seu discurso ou até o “apagamento” de sua imagem social
perante a sociedade da época podendo se estender por várias épocas vindouras.
No Romantismo sertanista, é destacada a figura autêntica do sertanejo, marcada na
obra em questão pela diferença cultural, por suas peculiares tradições e por sua identidade
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-10
135
que na obra é posta num status de diferença – inferior – evidente em comparação com o
homem moderno, civilizado. O sertanejo era pouco vislumbrado em termo do seu papel
de protagonista em decorrência da atribuição de uma forte carga romântica que vem
acompanhada de uma visão que o enfatiza como sendo o herói querido que com gestos e
características grotescas que os deixavam à margem da realidade social objetivada.
Entretanto, seu valor era considerado a partir de sua marcação linguística, de seus
hábitos que são marcas próprias desses indivíduos. Ainda assim, existia em tese o reforço da
ideia de que estes indivíduos seriam um grupo distante e, até os dias atuais, o sertanejo é
representante desta categoria de sociedade arcaica e “ignorante”.
Se o intuito dos escritores românticos da época era o de rotular o sertanejo e colocar
a mulher em segundo plano ao atribuir-lhes um papel subalterno no plano do enredo e do
cenário nacional, como sendo um herói ou uma mulher tipicamente idealizada, veremos
que a obra Inocência desconstrói esta ideia, visto que é enfatizado, a partir dos personagens
Pereira, Manecão e a própria Inocência, que existe um desenhar do homem sertanejo de modo
a afastá-lo de uma perspectiva fundamentada sobre uma visão de afirmação da identidade
nacional homogênea e, ainda, observa-se a figura feminina sobre um viés de apagamento e/
ou subalternidade.
Portanto, a obra contribui para a construção e/ou reforço de um acervo literário
sertanista, sem a objetivação de ser uma obra sustentada, exclusivamente, no caráter de
Nacionalista. Indo além, pois remonta lembranças de uma época passada distante do
escritor, que outrora visitou e esteve inserido neste contexto de outra realidade que até
então os escritores literários românticos não deram ênfase dentro de seu conjunto de obras
e, também, podemos atribuir-lhe que se inserir num contexto de trazer uma reflexão sobre
a condição da mulher na sociedade.
O presente artigo busca fazer uma análise do discurso sobre a mulher na obra
“Inocência”, considerando aspectos de silenciamento, exclusão e/ou de subalternação
feminina, de modo que esta análise se efetiva como sendo uma abordagem qualitativa uma
vez que nosso trabalho se pauta numa relação social à qual a mulher esteve (está) submetida
socialmente. Lançamos como objetivos específicos: a) refletir sobre a trajetória da mulher;
b) estabelecer uma linha geral sobre a obra Inocência; c) contribuir para reflexões sobre o
papel que por muitos anos foi atribuído à mulher.
Nosso estudo foi desenvolvido a partir da seleção de uma metodologia que auxilie esta
análise, ou seja, como metodologia adotamos a realização de um levantamento bibliográfico
que versa sobre características da obra, o papel atribuído à mulher, entre outros aspectos
relevantes que rodeiam a obra e seu contexto.
136
Este estudo está estruturado em quarto partes distintas, mas que se completam
sistematicamente para tal entendimento, sendo essas partes: vertentes relacionadas à trajetória
da mulher, onde objetivamos demonstrar características que são atribuídas à mulher bem
como refletir a respeito; Em seguida, apresentaremos breves considerações sobre a obra
em estudo, momento no qual se pretende demonstrar em linhas gerais aspectos globais da
obra; o terceiro momento deste trabalho consta-se a análise e a discussão acerca do discurso
sobre a figura feminina que é apresentado na obra, com dados fundamentados em autores
e pesquisadores que contribuem para a efetivação da nossa análise que põe em cheque a
mulher em uma posição de segundo plano social e por fim encontram-se as considerações
finais e posteriormente as referências.
Vertentes em relação à trajetória da figura feminina
Por muito tempo, as características impostas socialmente para as mulheres foram: a
submissão, a objetificação, a obediência aos homens, a preservação da moralidade e da fé,
além disso, havia a falta de direitos igualitários e o silenciamento feminino diante de todas
essas questões supracitadas. Em concordância com isto, Almeida e Barzotto (2017, p. 148)
destacam que:
Historicamente, a mulher sempre foi considerada uma figura inferior ao homem,
submetida aos trabalhos domésticos, sendo excluída dos trabalhos intelectuais. Figura
submissa ao homem, vivia com o intuito de procriar e servir ao mesmo, não tendo
direito à educação, pois lhe era negada (ALMEIDA e BARZOTTO, 2017, p.148).
Desta forma, a função da mulher era casar, cuidar do lar, servir e satisfazer as vontades
do marido, sendo assim, ocorrendo a deslegitimação de suas vontades e a exclusão do
convívio social. Outrossim, Era negado o direito de exercer uma profissão na sociedade e de
participar nas eleições. Ao homem era permitido desenvolver-se intelectualidade, podendo
estudar, trabalhar e desfrutar de espaços sociais.
Assim, na sociedade o patriarcado era predominante durante período colonial,
fazendo com que a mulher fosse dependente do homem. Essa dependência evidência uma
relação de poder que é fruto de uma sociedade capitalista e que tem um sistema patriarcal.
No entanto, de acordo com Safiotti (1976) Foi com a chegada da corte portuguesa no
Brasil, que apareceu possibilidades limitadas de instruções laicas para as mulheres.
Posteriormente, foram acontecendo mudanças no cenário social, no qual as mulheres
foram tendo oportunidades de frequentar os espaços públicos e, gradativamente, foi-se
quebrando o estereotipo social de que as mulheres deveriam ficar apenas em seus lares,
137
exercendo os trabalhos domésticos. Então, é fundamental pontuar que no decorrer desses
anos não foi fácil (e ainda não é) a luta das mulheres por espaço e pelos direitos que lhe
pertencem, como cidadã de uma sociedade.
Assis e Antunes (2016, p. 18) argumentam que, a partir do primeiro terço do século
XX, havia movimentos que contrariam e questionavam barreiras impostas com relação à
participação da mulher em instituições políticas. Nesse período, as mulheres já haviam
garantido o direito de votar, porém, no Brasil, ainda não se tinha esse poder. Todavia, ainda
conforme Assis e Antunes (2016, p. 19):
Como grandes chaves da participação das mulheres no mundo público a educação,
o trabalho e o voto marcaram esta época. A cultura, a escrita e a arte se apresentavam
como brechas possíveis. O feminismo, abrindo este caminho no final do século XIX
e primeiras décadas do século XX, anunciava que as mulheres almejavam educação e
trabalho. Reivindicações que ecoavam no Brasil, trazendo influências e debates que
se espalhavam em distintos países. A produção literária e jornalística se alimentava e
repercutia as polêmicas sobre o direito das mulheres ao estudo (ASSIS E ANTUNES,
2016, p.19).
Sendo assim, o Brasil se espelhou em outros países em que já permeavam os debates
e proporcionavam visibilidade as causas das mulheres, assim como, já garantiam direitos
às mulheres. Todavia, o feminismo foi essencial para o rompimento do rígido patriarcado
que existia, oferecendo o destaque as imposições da sociedade sob as mulheres e gerando
questionamentos com relação à situação da figura feminina no meio social.
Conforme Rodrigues (2014, p.6), foi no século XX, com a expansão dos movimentos
feministas pelo mundo, que aconteciam manifestações tais como a queima de sutiãs em praça
pública e libertação da mulher com a criação da pílula. Além disso, ampliavam-se as palavras
de ordem: “Nosso corpo nos pertences!” “O privado também é político!” “Diferentes, mas
não desiguais!”.
Essas palavras de ordem, supracitadas por Rodrigues (2014) evidenciam o protesto
das mulheres em busca da liberdade de escolha, de impor que o corpo da mulher pertence a
ela, que a decisão de engravidar estar nas mãos da mulher, pois a gravidez tem que ser uma
vontade do casal, não uma imposição masculina. Além disso, as mulheres queriam se impor
diante das situações, diante das questões sociais, queriam ter voz no âmbito político, cultural
e social.
Apesar de muita resistência, ao longo desses anos, as mulheres foram conquistando
seu espaço e alcançando seus direitos. Todavia, ao ler alguns livros de literatura, nota-se que
tratam dessa temática, mostrando a influência do patriarcado, o silenciamento que exerceu
sob as mulheres e o quanto o movimento feminista foi necessário para o rompimento desses
paradigmas sociais.
138
Breves considerações sobre a Obra “Inocência”
A obra “Inocência”, escrita por Visconde de Taunay, é caracterizada como sendo uma
narrativa de tempo cronológico (romance). Durante a década de 1870, Taunay foi escolhido
pelo Conde d’Eu para compor a expedição que seria realizada no Mato Grosso com a
designação de ajudante da Comissão de Engenheiros com o ofício de informar ao governo
imperial notícias e fatos daquela expedição. Ao vivenciar esta experiência na campanha,
Taunay obteve vasto conhecimento que foi essencial para seus escritos.
Inocência (1872) é uma narrativa que pertence ao movimento literário Romantismo
que na década de 1870 já vivenciava sua fase final, vale ainda ressaltar que na obra pode-se
encontrar traços característicos do movimento literário Naturalista. O romance se enquadra
numa categoria regionalista por conter elementos característicos, como, por exemplo:
costumes, o próprio ambiente e os hábitos das pessoas que na narrativa vivem no sertão –
Santana do Paranaíba.
O romance regionalista tem como característica marcante o espaço, que se configura
como elemento típico do regionalista uma vez que o contexto histórico sentimental – amor
– entre a personagem Inocência e o Cirino é protagonizado em terras pertencentes a Pereira
(terras distantes do centro urbano, ou seja, em outras palavras é o próprio Sertão sendo
retratado na obra).
História – Memória – Ficção
A partir do entendimento de diferentes informações que permeiam a obra em estudo,
é evidenciado que, na obra, o autor se utiliza da realidade vivida outrora por ele como
subsídio material para compô-la e, dentro desse subsídio, ele distribui entre ambientes e suas
personagens características que remontam seu acervo memorativo da expedição no Mato
Grosso do Sul.
Sobre o viés da história e da memória, Visconde de Taunay lança mão da escrita que
retrata o amor entre o Cirino e Inocência. Cirino Ferreira de Campos, que é descrito na
obra como sendo físico e que tirara a carta de farmácia, ou seja, era doutor pelas experiências
obtidas numa farmácia na cidade de Ouro Preto e, também, pelo domínio do manual de
Chernoviz.
139
Inocência, que é protagonista e também nome da obra, é retratada como sendo uma
mulher sertaneja da época de 1870, cuja configuração é uma idealização romantizada de
uma jovem donzela de 18 anos, que tem como características principais sua inocência,
palidez, timidez, grandes e bonitos cabelos, olhos grandes e acometida de uma fraqueza,
mas é sonhadora e cultiva o desejo de ser feliz.
Inocência, apesar de estar com casamento arranjado com Manecão Doca e tendo
obtido a cura da sezão ou malária, agora, está acometida por uma doença sentimental –
paixão – por Cirino. Portanto, é uma obra romântica bem “apimentada” por tratar de uma
história que envolve amor e morte. Tendo como final do enredo, após a rejeição da jovem, o
Manecão atira em Cirino, que, em seu leito de morte perdoa o bárbaro Manecão.
Ao adicionar na escrita da obra um modelo simples e atraente, Visconde se projeta
como um narrador-observador ao descrever tão bem paisagens e personagens no seio da
escrita do seu enredo nesta obra.
Ao descrever Inocência, Taunay (1872) mescla pureza, beleza e a inocência tipicamente
idealizada da figura feminina pertence ao romantismo. Também traz a descrição detalhista
do cotidiano, das tradições e da realidade do povo sertanejo.
Descrevendo, detalhadamente, o cotidiano do sertanejo mato-grossense – Santana do
Paranaíba – o escritor imprime na composição ficcional do enredo uma sociedade e sua
cultura o que caracteriza fidedignamente o caráter Regionalista atribuído a obra. Existindo
uma relação entre História – Memória – Ficção esta obra não só se configura, apenas, como
ficcional visto que a construção do enredo foi fundamentada em dados verdadeiros de
pessoas e realidades que foram encenadas pelos personagens da obra e que se utilizou do
Mato Grosso como cenário real para tecer uma ficção atrativa, mágica e romântica.
O papel e as características atribuídas à personagem Inocência reforçam em tese um
apagamento e/ou subalternação da mulher na década de 70 em comparação com o homem
ou a própria sociedade, pois mesmo sendo uma personagem principal na obra, é facil perceber
que seus traços não afloram o empoderamento ou a igualdade feminina com a sociedade.
Análise e discussões
Está análise tem como foco principal o discurso de alguns personagens sobre a figura
feminina na obra Inocência, destacando, através das falas dos personagens Pereira e Cirino,
qual era o papel atribuído à mulher, como era tratada, quais eram as cobranças sociais
impostas a ela. Portanto, a análise se aterá à abordagem semântica do discurso apresentada
na narrativa.
140
Visconde de Taunay traz explicitamente à tona em sua obra a predominância do
patriarcado. A narrativa mostra que o personagem Pereira, enquanto pai, tem a função de
escolher com quem a filha (Inocência) iria casar, ou seja, configurando-se um casamento
arranjado, sem consentimento ou questionamento sobre a vontade da mulher. Todavia, no
decorrer da narrativa, nota-se o tratamento de inferiorização e silenciamento atribuído à
mulher, como poderemos ver a seguir na conversa entre Pereira e Cirino:
– Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam
estado, ficam jururus1 e fanadinhas...; se casam podem cair nas mãos de algum marido
malvado... E depois, as histórias!... Ih, meu Deus, mulheres numa casa, é
coisa de meter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Enfim, minha
filha, enquanto solteira, honrou o nome de meus pais... O Manecão que se aguente,
quando a tiver por sua... Com gente de saia não há que fiar2... Cruz!
botam famílias inteiras a perder, enquanto o demo esfrega um olho (TAUNAY, 2007,
p. 33).
Assim, a honra da família dependia do comportamento da mulher: caso ela não cassasse
ou tivesse alguma atitude que saísse dos paradigmas do patriarcado, a mulher ficava mal
falada diante da sociedade o que atingia a sua família. Em virtude disso, Pereira apressouse para conseguir um marido para Inocência, e foi assim que ele escolheu Manecão, um
negociante de gado, capaz de tudo para conseguir o que quer, inclusive atitudes agressivas.
Em concordância com a narrativa da obra Inocência, Canezin (2004) reflete que a
mulher nessa época vivia conformada com a situação que lhe era imposta pela lei e costumes
da sociedade. Canezin (2006, p.06) ainda destaca que a mulher “crescia submissa ao pai e
continuava pela vida toda submissa ao marido - só trocava de senhor - continuando “serva”
do marido e dos filhos.” Portanto, a figura feminina era resumida a submissão aos homens,
prontificavam-se a fazer tudo que lhe pediam, além disso, cuidavam do lar e eram proibidas
de tomar decisões ou ter vontades.
Com o fluir da obra, destacam-se discursos que abordam ideologias sociais. Nesse
sentido, no que diz respeito à educação, a oportunidade de estudar para mulheres que
moravam na zona rural era praticamente inexistente, visto que era cobrada a presença
dela no lar, servindo e atendendo às ordens. Em contrapartida, se as mulheres adquirissem
conhecimento, isso ocasionaria um empoderamento perante as situações que enfrentavam e
não era isso que os homens queriam.
1 Termo utilizado para expressar quando uma pessoa estiver triste ou cabisbaixo.
2 Palavra usada para dizer que não há como abonar algo.
141
No entanto, a personagem Inocência surpreende Pereira ao demonstrar curiosidade
por livros e o interesse em aprender a ler. Pereira fica espantado com as ideias e vontades de
Inocência, em uma época que não permitia que as mulheres manifestassem suas curiosidades
e desejos, pois o silenciamento era uma forma de mantê-las obedientes aos homens e temente
aos costumes sociais. Logo abaixo, veremos uma conversa entre Cirino e Pereira que nos
revela isso:
– Nem o Sr. imagina... Às vezes, aquela criança tem lembranças e perguntas que me
fazem embatucar3... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó... Pois não é
que um belo dia ela me pediu que lhe ensinasse a ler?...
Que ideia! Ainda há pouco tempo me disse que quisera ter nascido princesa...
Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princesa? Sei, me secundou ela com toda a
clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na
cabeça, muitos lavrados no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto
(TAUNAY, 20007, 35.).
A atitude supracitada de Inocência revela a busca por um movimento que provocaria a
inversão dos papéis sociais que eram impostos para a mulher naquela época, por isso Pereira
teve uma reação de espanto com o pedido feito pela filha, visto que esse pedido manifestava
a tentativa da personagem se desprender das amarras sociais.
Considerando a compreensão de gênero como uma “relação sócio-histórica que
remete às relações de poder de caráter transversal, atravessando os liames sociais, as práticas,
instituições e subjetividades” (CISNE, 2012, p. 105, é inegável que há relações de poder que
permeiam na sociedade, que influenciam nos comportamentos das pessoas e que ocasionam
uma demarcação de gênero masculino/feminino.
Entretanto, no decorrer da obra, Inocência se apaixonou perdidamente por Cirino,
mas isso torna-se um problema para a vida dela, visto que estava prometida para Manecão. E
sabendo do perigo que é essa paixão e de todos os problemas que poderia ocasionar para sua
vida, Inocência conta para Cirino sobre o medo que tem dessa paixão manchar a honra dela,
ocasionando vergonha para toda a família diante da sociedade. Como podemos ver a seguir:
Sei que devo de ter medo de mecê, porque pode botar-me a perder... Não formo juízo
como; mas a minha honra e a de toda a minha família estão em suas mãos. Sou filha
dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li em livros, nem tive quem me ensinasse
cousa alguma... Lembra-me que, há já um tempão, pararam aqui umas mulheres com
uns homens e eu perguntei a papai por que é que ele não as mandava entrar cá para
3 É quando a pessoa fica calada diante de uma situação, que lhe deixou sem reação e sem argumentos.
142
dentro, como é de costume com famílias...
O pai me respondeu: — Não, Nocência, são mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei
muito assombrada. — Mas, então, melhor: se são alegres hão de divertir-me. — Aquilo
é gente airada, sem vergonha, secundou ele. — Tive tanta dó delas que mecê não
imagina... E são os homens que fazem fica assim coitadas!.. antes morrer... (TAUNAY,
2007, 102-103).
Portanto, a personagem revelou seus medos, destacou as limitações que enfrenta sendo
mulher, além disso, deixou claro o medo que tinha de Cirino tira-lhe sua honra, e explicitou
que em uma conversa que teve com o pai, soube que havia mulheres pedidas na vida e que
davam vergonha para a família e que ela não queria torna-se assim, que antes disso acontecer,
preferia morrer. Ou seja, Inocência reconheceu sua paixão por Cirino, mas não esqueceu
dos valores e opiniões que o pai lhe transmitia, porque isso era muito forte e predominante.
Desse modo, destacamos que Inocência era a única figura feminina presente nesta
obra de Taunay, sendo assim, a personagem vivia sob dominação masculina, com seus
sentimentos e desejos anulados pela opressão social, mostrando as relações de poder,
construídas socialmente, cujo homem detinha todo o poder, e a mulher sobrava o direto de
obedecê-lo. Segundo Perrot (1988, p.167):
(...) o poder é um termo polissêmico, tem no singular uma conotação política, relacionase com o Estado e é a expressão do masculino, porém, no plural ele se estilhaça em
fragmentos múltiplos equivalentes a influências difusas e periféricas, nas quais as
mulheres têm sua grande parcela (PERROT, 1988, 167).
O poder é um ato político, permanente em toda a sociedade, cujo pode mudar com o
decorrer das transformações sociais. Diante do contexto vivenciado na obra, Pereira exercia
seu poder sobre a filha, fazendo escolhas por ela. Diante disso, a paixão que a personagem
Inocência tinha por Cirino ocasionaria a modificação dos valores enraizados. Então, lutar por
esse amor proibido proporcionaria o rompimento das desigualdades socialmente impostas
para a mulher, mas Inocência com receio de manchar sua honra, acabou morrendo de amor.
143
Considerações Finais
Considerando o direcionamento que demos para essa pesquisa, acreditamos que os
objetivos elencados foram alcançados. Em relação ao objetivo geral, apresentamos uma análise
do discurso sobre a mulher na obra Inocência, norteando-se pelos aspectos de silenciamento,
exclusão e/ou de subalternação feminina. Em relação aos objetivos específicos: a) refletimos
sobre relação à trajetória da mulher; b) estabelecemos uma linha geral relacionada à obra
Inocência; e c) contribuímos para o desencadeamento de reflexões sobre o papel que por
muitos anos foi atribuído à mulher.
Todavia, norteando-se pela obra Inocência de Visconde de Taunay, evidenciamos
como a mulher era tratada na sociedade, quais eram as formas de silenciamento, resignação
e resistência as imposições sociais que aconteciam, de modo que era nítido o quanto o
patriarcado limitava a vida da personagem e o quanto isso lhe incomodava. Além disso,
mostramos a personagem Inocência buscando romper com os padrões impostos por uma
sociedade cheia de modelos estabelecidos para que a mulher obedecesse.
Ao analisar o discurso de silenciamento feminino apresentado na obra Inocência,
evidenciamos o quanto as relações de poder reverberaram sobre a vida da mulher em
sociedade. Visto que, desde dos primórdios, há uma certa desigualdade de gênero, na qual
a mulher sempre ocupa o papel de inferiorizada, como destacamos através das falas da obra
supracitada. No entanto, a personagem por mais que tivesse menos falas na narrativa, sempre
buscava expor suas vontades de romper com as imposições sociais.
Desde outrora, as mulheres enfrentam lutas diárias para sobreviver aos padrões
sociais, para ocupar o seu espaço em meio a uma sociedade “dominada” por homens, pois
sabemos que apesar das mulheres terem alcançado tantas conquistas, tais como: o poder
do voto, poder trabalhar, expor suas opiniões e vontades, entre outros. Ainda assim, há
muitos enfrentamentos atualmente, são inúmeras cobranças sociais, padrões de estéticas, de
comportamento atribuídos para a figura feminina.
Contudo, é necessário buscarmos discutir e refletir sobre a trajetória da mulher na
sociedade, pois é uma forma de reverberar esse tema, ensejando que os sujeitos procurem
estudar, ler e se aprofundar sobre as questões aqui levantadas. Além disso, permeia-se um
direcionamento para que outras pessoas construam e contribuam com mais pesquisas
relacionadas a esse tema.
144
Referências
ALMEIDA, Claudimar Paes de; BARZOTTO, Leoné Astride. Silenciamento e resistência:
retratos da mulher nos contos freirianos. Raídos, Dourados, v. 11, p. 146-159, 2017.
ASSIS, Maria Elisabete Arruda de; SANTOS, Taís Valente dos (org.). Memória Feminina:
mulheres na história, história de mulheres. Recife: Massangana, 2016
CANEZIN, Claudete Carvalho. A mulher e o casamento: da submissão a emancipação, 2006.
CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. 1. ed. São Paulo: Outras
Expressões, 2012.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro:
Paz e terra, 1988
RODRIGUES, Valéria Leoni. A importância da mulher. Revista eletrônica Dia a dia Educação,
2014. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/729-4.pdf.
Acessado em 10 de março de 2020.
SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Quatro ArtesINL, 1969.
TAUNAY, Visconde de. Inocência. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda,
2007.
145
CAPÍTULO 11
O contraste feminino entre a mulher casta e namoradeira
nas obras “Cais da Sagração” e “Judas em Sábado de
Aleluia”: uma análise comparativa
Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino, Giovana Carvalho Alencar,
Maria Iranilde Almeida Costa
Introdução
Há bastante tempo, muito tem se discutido sobre a questão socio-histórico-cultural
da mulher. Morosamente atrelado e diminuído pelo universo masculino, o gênero feminino
sempre foi visto como uma serventia ao homem. Diante disso, todos os seus desejos e
funções eram e, muitas vezes ainda são vinculados à satisfação do marido ou às expectativas
masculinas – mentalidade tão enraizada nos indivíduos, sejam estes homens ou até,
infelizmente, mulheres.
Isto posto, a literatura brasileira, direta ou indiretamente, representa, de diferentes
formas, o feminino e a sua correlação com a sociedade ao longo dos séculos – auxiliando,
assim, o estudo da trajetória desse gênero. Dessa forma, a partir dos clássicos literários Cais
da Sagração, de Josué Montello e O Judas em Sábado de Aleluia, de Martins Pena, esta
pesquisa buscou compreender os contrastes femininos por eles evidenciados. Além disso,
traçaram-se comentários e analisaram-se os papéis das mulheres dentro dessas obras e a
forma como escritores, especificamente homens, intencionalmente ou não, enquadraram e
reforçaram os mesmos estereótipos presentes até hoje entre os indivíduos no Brasil.
Para isso, tornou-se necessário trilhar pela pesquisa qualitativa e bibliográfica, uma
vez que a primeira aprofunda, por meio de dados narrativos e observações, o entendimento
https://doi.org/10.52788/9786599463952.1-11
146
acerca do tema em questão e auxilia na busca pela resolução das hipóteses levantadas. Ao
mesmo tempo, a segunda amplia a base teórica do estudo, a fim de facilitar o desenvolvimento
do trabalho. Ademais, permite o acesso a análises anteriores sobre os assuntos e problemas
levantados.
Para tanto, utilizaram-se estudos de Rondinelle (2012) e Almeida (2019) acerca da
análise da peça de Martins Pena; Rodrigues (2010), no que tange à obra de Montello;
Abrantes (2006), em relação à contextualização histórica do gênero feminino na sociedade.
Mediante o exposto, por fim, é imprescindível salientar o quanto o número de
pesquisas relacionadas à posição feminina em contextos históricos diferentes tem crescido e,
assim, despertado o interesse de muitos pesquisadores e curiosos. À vista disto, diante desses
constantes estudos feitos em relação à mulher e à sua posição na sociedade, esta pesquisa tornase relevante ao proporcionar, por meio da visão de dois autores consagrados, a compreensão
acerca dos papéis nos quais a maioria das mulheres foram inseridas, especificamente, nos
séculos XIX e XX.
A literatura comparada: perspectivas teóricas
A Literatura Comparada surgiu na França, mais especificamente no século XIX, e
desde lá perpassou por diversos desdobramentos. Assim, em cada país, existem teóricos
literários que propõem diferentes métodos e normas para essa área. Isso é discutido por Tania
Carvalhal na obra Literatura Comparada (2006), na qual a estudiosa traça uma perspectiva
não somente histórica, mas também da produção científica da temática em questão.
Carvalhal (2006) afirma que o ato de comparar é inerente ao ser humano e faz parte
dele como forma de raciocínio e lógica. Além disso, a comparação também está presente
em outras ramificações dos estudos literários, como na Crítica Literária, logo questiona-se
o motivo de existir uma disciplina específica denominada por Literatura Comparada (LC).
Algumas respostas são dadas a essa indagação e muitas delas são explicadas por meio
das diversas formas que área pode se estabelecer. Nesse sentido,
A literatura comparada utiliza a comparação não apenas para mostrar as semelhanças e/
ou as diferenças entre os elementos da pesquisa, é um sistema ou recurso encadeador que
permite atentar para as peculiaridades de cada texto, alcançando uma visão ampla dos
processos de produção literária, ou seja, não se limita a uma análise superficial da obra,
mas acrescenta conhecimento e desenvolve a capacidade de fazer uma interpretação
profunda de textos literários. (SILVA, 2011, p.6)
147
Tendo em vista Silva (2011) e as proposições de Carvalhal (2006), nota-se que a LC
oferece uma visão mais ampla e crítica, bem como profunda. Logo, não se constrói somente
uma comparação entre obras ou autores, mas, além disso, visa-se propor e ampliar as
discussões teóricas sobre uma (ou mais) temáticas e isso se torna mais latente ao esquadrinhar
a literatura nacional. Também,
A literatura comparada ambiciona um alcance ainda maior, que é o de contribuir para
a elucidação de questões literárias que exijam perspectivas amplas. Assim, a investigação
de um mesmo problema em diferentes contextos literários permite que se ampliem os
horizontes do conhecimento estético ao mesmo tempo que, pela análise contrastiva,
favorece a visão crítica das literaturas nacionais. (CARVALHAL, 2006, p.86)
Dessa forma, considerando o exposto, busca-se nesta pesquisa apresentar, por meio da
Literatura Comparada, como a mulher é representada por meio das personagens protagonistas
de Cais da Sagração (!971) e Judas em Sábado de Aleluia (1840). Assim, destaca-se como
o papel social e político é refratado nas obras literárias e de que forma esse estereótipo é
repetido e, por consequência, reforçado na escrita de autores masculinos. Portanto, destacase, como será visto nos próximos tópicos, que, mesmo existindo uma diferença de mais de
um século, permanece estabelecido o mesmo padrão em relação à figura feminina.
Conhecendo as obras
“Judas em Sábado de Aleluia” (1840), de Martins Pena
O teatro brasileiro no século XIX não apresentava uma identidade nacionalista, pois
ainda existia uma forte influência europeia nas produções e, por isso, buscou-se valorizar
espaço e cultura locais a fim de construir uma produção essencialmente brasileira, o que
é presente nas obras de Martins Pena. Tal escritor é considerado o criador da comédia de
costumes no Brasil e esse gênero advém da Farsa – que traz personagens estereotipados e do
Teatro Popular. Neste, as classes mais baixas são representadas, o que dá espaço às narrativas
antes excluídas dos romances românticos.
Também, uma característica marcante nas peças de Pena é:
Uma mensagem de conteúdo social, construída por meio da sátira política e religiosa,
e da adaptação de temas debatidos pela imprensa fluminense da época, tais como
a circulação de moeda falsa, os preceitos da maçonaria e a presença de padres em
espetáculos teatrais (RONDINELLI, 2012, p.145).
148
Ou seja, a preocupação com a formação cidadã e consciência crítica acerca dos direitos
civis perante a corrupção latente.
Assim, a peça conta a história de Pimenta, Chiquinha, Maricota e seus pretendentes,
além de oferecer destaque a quesitos políticos e morais pertinentes à época. Em adição a
isso, o enredo se desenvolve por meio do triângulo amoroso entre Chiquinha – Faustino
– Maricota. Chiquinha, sendo a típica moça namoradeira, que parecer corresponder a
diversos pretendentes, enquanto Faustino sofre por sua atenção – sem saber que Maricota
é apaixonada por ele. Ao final, Faustino descobre que sua amada estava envolvida em um
plano de corrupção e por isso a abandona e opta em se casar com a irmã.
Outro ponto importante é a oscilação entre uma paródia aos costumes românticos e
a defesa desses. Em diversos momentos, as falas melodramáticas são exageradas e tratadas
como uma crítica ao Romantismo e, por outro lado, Maricota simboliza o pensamento
pragmático, pois sua busca incessante pelo casamento é decorrente do seu baixo status social
e financeiro, tendo em vista que somente por meio do matrimônio a mulher poderia galgar
novas posições perante a sociedade ou até mesmo garantir seu futuro. Além disso, Faustino
usa a chantagem para alcançar seus objetivos e, por consequência, contradiz-se a sua fala
moralista – aspecto essencial na estética romântica.
“Cais da Sagração” (1971), de Josué Montello
A obra de Josué Montello, publicada em 1971, traz, por meio de um enredo não linear
e com constantes flashbacks, a história de Mestre Severino – um homem que vive pelo mar
e pelos seus valores morais fortes. O próprio autor comenta sobre a escolha dessa estratégia
de escrita:
No Cais da Sagração adotei a técnica do flashback, com as sucessivas interrupções do
fluxo linear da narrativa, que frequentemente se volta sobre si mesma, para apanhar um
relato pregresso de importância capital na ação romanesca. Mas tive o cuidado de que
esta ação romanesca continuasse presente no espírito da exposição, para não Página10
suscitar a perplexidade do leitor, desorientando-o no correr da leitura (MONTELLO,
1986, p. 50).
Apesar de se encaixar no ideal modernista, esse romance traz inúmeros resquícios
realistas, apresentando o preconceito, a homofobia e a desvalorização da mulher, constantes
na sociedade da época. Além disso, Cais da Sagração coloca em foco personagens com
características divergentes, mas que, de certa forma, complementam-se e tornam a narrativa
mais empolgante e intrigante. Os principais são: Severino, o protagonista; Vanju, uma
149
prostituta pela qual ele se apaixonou perdidamente, a ponto de substituir a sua atual
companheira, casou-se com ela e teve uma filha; Lourença, parceira do protagonista antes
de Vanju, submissa, prestativa, misericordiosa e que, de acordo com o autor, perdeu a beleza
durante o tempo; Pedro, neto que levanta muitos questionamentos sobre sua sexualidade e
evidencia o comportamento homofóbico de Severino.
A narrativa volta-se para as mudanças repentinas na vida do Severino, mas,
simultaneamente, evidencia o paradoxo na imagem das duas mulheres que circundam a
vida dele: Vanju e Lourença. Esta, cuidadosa, abnegada, dedicada aos deveres da casa e às
vontades do Severino, sejam estas a seu favor ou não. Aquela, entregue à liberdade da vida,
vaidosa, de beleza chamativa e pouco apegada às obrigações domésticas e maternais.
Com Vanju, Severino tinha a esperança de ter um filho, a fim de ensinar os segredos
do mar e, assim, ter um herdeiro. Porém, ele teve uma filha, o que o estimulou a pedir
outro filho para sua esposa – a qual não aceita esse papel de progenitora e se percebe pouco
habilidosa para ser mãe. Diante disso, Lourença assume, mais uma vez, os deveres da casa,
cuidando da filha da Vanju e permanecendo ao lado de Severino – colocando em evidência
os diferentes papéis que as mulheres poderiam ocupar na época.
Ademais, por ser muito ciumento, o protagonista passa a acreditar que Vanju estava
lhe traindo. Mesmo não tendo provas, decidiu fazer um acordo com a sua companheira, o
qual consistia em caso alguém dos dois traísse, a outra pessoa teria o direito de matar o(a)
traidor(a). Diante disso, Severino acaba cometendo homicídio e passa anos na cadeia. Ao
sair de lá, volta para o seu lar e à sua antiga parceira, Lourença, a qual nunca abandonou os
seus afazeres e o próprio ex-marido – apesar de todos os problemas. Manteve-se abnegada e
fiel, cuidando da casa e da filha de Mestre Severino.
Esta filha, depois de um tempo, deu à luz um filho, o qual encheu o coração do velho
Severino de expectativas quanto ao seu relacionamento com ele, já que queria muito que
seu neto seguisse os seus passos. Contudo, logo percebeu que o destino seria outro. Severino
deixava bem clara a sua desavença o neto, pois este estava seguindo caminhos nada esperados
e aprovados por alguém mergulhado em sua masculinidade e na aversão à feminilidade.
As convergências no retrato da mulher
Nesta parte da pesquisa, pretende-se traçar os paralelos entre as quatro personagens
selecionadas. Além disso, buscou-se verificar, posteriormente, como se constrói o contraste
moral e social em torno da figura feminina a partir das próprias falas das personagens e de
importantes teóricos nesta área de estudo.
150
Maricota e Vanju
Tendo em vista a apresentação das obras, pode-se perceber que tanto Maricota como
Vanju estão inseridas em um triângulo amoroso e em uma sociedade patriarcal, na qual o
casamento assume um papel fundamental da vida da mulher. A partir disso, este tópico
tratará, essencialmente, da posição dessas duas personagens seguindo os seguintes aspectos:
a importância do casamento, a transgressão social e o final trágico/moralizante.
No que tange ao casamento, esse se enquadra como o único meio de manter uma
posição social respeitável e adquirir uma condição econômica confortável. Para Maricota,
[...] quanto mais pretendentes, maiores as chances de casar; ela não se preocupa com
a fama de namoradeira como a irmã, visto que se preocupa mesmo é com a solteirice,
num contexto social patriarcal em que a mulher dependia do marido para tudo, a
maior preocupação era não casar-se, desse modo o importante era certificar-se que cada
pretendente acreditasse ser o único (ALMEIDA, 2019, p. 113).
Além disso, ela necessitava de um dote1 e, infelizmente, sua classe social não possibilitava
isso, assim, é na busca incessante por pretendentes – e a todos responder – que Maricota
encontra uma saída para sua condição de mulher brasileira.
Para Vanju, “o casamento era apresentado como um meio de preservação da honra
feminina e da realização da função biológica, a maternidade. Assim, casar, ser uma mãe
zelosa e uma esposa submissa e recatada era o sonho da maioria das mulheres brancas”
(RODRIGUES, 2010, p.20). Portanto, percebe-se em Vanju o desejo de se tornar uma
mulher não mais marginalizada e escondida, mas sim com status de respeitabilidade.
Ademais, Vanju exige casar-se de branco em uma cerimônia religiosa e é exatamente
isso que acontece, assim, ela tem a oportunidade de mostrar para toda comunidade que
não era mais uma “mulher da vida”, mas havia se tornado esposa e, portanto, uma mulher
respeitável. Destaca-se, também, a necessidade, já citada, de casar com um vestido branco,
mesmo que não fosse mais virgem e isso é justificado por Severino, que afirma para o padre
que ela restaurou sua pureza. Logo, vê-se o casamento como o caminho para a restauração
do caráter da mulher.
Contudo, ambas têm atitudes que transgridem às regras sociais e morais estabelecidas
para a mulher, visto que essa deveria ser a “‘rainha do lar, ‘anjo tutelar’, nos moldes do ideário
1 Segundo Rodrigues (2010, p. 25 apud SAMARA, 1980), o dote constituía-se dos bens concedidos aos nubentes,
principalmente à esposa, com o objetivo de favorecer a obtenção de uniões legitimadas. Este ao ser levado para o
casamento ajudava na manutenção de despesas do novo casal.
151
positivista e burguês, reforçando os padrões de comportamento que dariam respeitabilidade
às mulheres, os espaços sociais a serem ocupados e as atividades que poderiam desempenhar”
(ABRANTES, 2006, p. 1).
Isso pode ser observado em Vanju, para além de seu passado como prostituta, que
mesmo se tornando esposa e mãe, ainda não se enquadra nesses padrões e entrega essas
obrigações para Lourença. Assim, Vanju mantém sua posição somente na satisfação dos
desejos sexuais de Severino ou na sua presença decorativa, isto é, sua obrigação em estar
bela e bem vestida. Inclusive, nota-se a influência das revistas femininas na vida dela, pois
é a partir dessas publicações que ela entende como uma mulher deveria se portar perante a
sociedade.
Enquanto isso, Maricota também rompe com os postulados morais, dado que ela está
envolvida – seja por bilhetes ou encontros –, com Faustino, Capitão Ambrósio, Tenente dos
Permanentes, um janota, um estudante de latim, um amanuense da Alfândega, um inglês,
um empregado da diplomacia que estivera na Europa, segundo Rondinelli (2012, p.8182). Portanto, ao invés de manter poucos relacionamentos de corte, enquadra-se como a
personagem tipo namoradeira, que busca diversos pretendentes.
Nesse sentido, indaga-se quais são as motivações de Maricota e observa-se que a
justificativa está localizada na perspectiva que ela possui acerca do matrimônio, que seria
“uma possibilidade de ascensão social, ou pelo menos, uma garantia de sustento e uma
colocação social melhor da que desfrutava sendo filha de Pimenta” (RONDINELLI, 2012,
p.87). Dessa forma, ela ultrapassa a classificação de moça namoradeira e apresenta uma
visão mais realista e prática do casamento, uma vez que, como foi exposto, era a única forma
que manteria sua castidade junto à garantia de um futuro mais promissor. Além disso, a
personagem representa um pensamento mais moderno acerca do comportamento feminino,
pois ela deveria ter “o direito de escolher o esposo, ou simplesmente, de namorar em público
sem sofrer reprimendas dos pais ou ser condenada pela sociedade” (RONDINELLI, 2012,
p.87).
Em decorrência de suas transgressões sociais, ambas sofrem as penalidades de seus
“delitos”. Severino acredita que Vanju o traiu, pois ela está sempre na janela, olhando os
rapazes passando e, em especial, um certo capitão. Ainda que não tenha provas, ele, possuído
por ciúmes e ao lembrar do passado dela como prostituta, afoga sua esposa na praia e,
mesmo se arrependendo, sabia que precisava “lavar sua honra”. Em relação a Maricota, esta
recebe seu pior pesadelo: casar-se com um velho.
Nota-se, por conseguinte, o fator moralizante dos dois enredos, uma vez que as moças
transgressoras, aquelas que rompem com os padrões estabelecidos pela sociedade em torno
do casamento e sexualidade, recebem as consequências negativas de suas más escolhas.
152
Chiquinha e Lourença: por trás do casamento
De acordo com Canezin (2007), “o casamento representou sempre, na história
da humanidade, um componente de socialização voltada a interesses de sobrevivência
econômica e política”. Diante disso, não havia um outro destino de sucesso feminino se não
fosse o matrimônio. Qualquer coisa fora dele seria considerada fracasso e corrompimento
dos bons costumes. As duas personagens em questão são um produto da sociedade, a qual
é marcada pela intensa valorização do casamento. A própria Chiquinha deixa esse anseio
evidente em sua fala: “Que outro futuro esperam as filhas-famílias, senão o casamento? É a
nossa senatoria, como costumam dizer” (PENA, 1840, p. 5).
Chiquinha tinha, no seu ideal, conhecer alguém especial, apaixonar-se e casar-se. Toda
a sua vida era voltada para se tornar uma boa dona de casa e, consequentemente, para a época,
uma boa esposa. Contudo, diferentemente da sua irmã (Maricota), não vivia buscando o
seu futuro marido na rua. Apenas platonizava um amor futuro, algo que a tornava uma boa
candidata ao casamento, já que não era, como ela mesma menciona, uma “namoradeira”:
A namoradeira é em breve tempo conhecida e ninguém a deseja por mulher. Julgas que
os homens iludem-se com ela e que não sabem que valor devem dar aos seus protestos?
Que mulher pode haver tão fina, que namore a muitos e que faça crer a cada um em
particular que é o único amado? Aqui em nossa terra, grande parte dos moços são
presunçosos, linguarudos e indiscretos; quando têm o mais insignificante namorico,
não há amigos e conhecidos que não sejam confidentes. Que cautelas podem resistir a
essas indiscrições? E conhecida uma moça por namoradeira, quem se animará a pedi-la
por esposa? Quem se quererá arriscar a casar-se com uma mulher que continue depois
de casada as cenas de sua vida de solteira? Os homens têm mais juízo do que pensas;
com as namoradeiras divertem-se eles, mas não se casam (PENA, 1840, p. 5).
Ou seja, a mulher que não se guardasse para o casamento corria o risco de ser vista
como indiscreta e virava motivo de chacota – tendo dificuldade de, no futuro, achar algum
marido. No caso da Chiquinha, ela fugia ao máximo desse rótulo (namoradeira), para que,
assim, ficasse conhecida como uma mulher pura, discreta, fina e pronta para ser pedida em
casamento.
A peça, apesar de se mostrar bem à frente da sua época e denunciar os costumes
da sociedade no século XIX, acaba perpetuando esses pensamentos retrógrados citados
anteriormente – já que, no final, quem se casou com a pessoa que queria e alcançou o
sucesso na história foi justamente aquela que se resguardou para isso, a Chiquinha. Ou
seja, o mesmo ideal é propagado: há mulher para casar, enquanto há mulheres que são para
“curtir a vida”, uma vez que:
153
Acreditava-se que o homem deveria ter a plenitude da realização de seus desejos sexuais,
porém a esposa, enquanto representação da moral e dos bons e costumes, não poderia
se sujeitar a extravagâncias desta natureza (ALMEIDA, 2020, p. 82).
Dessa forma, verifica-se a forte distinção entre alguns papéis femininos que poderiam
ser assumidos na sociedade da época, proporcionando ou não a possibilidade de um futuro
casamento. Em outras palavras, como o sucesso social estava vinculado ao matrimônio,
havia mulheres destinas ao fracasso e outras aos “bons olhos” da sociedade.
Quanto à Lourença, em “Cais da Sagração”, nada é tão diferente. Ela, da mesma
forma, rende-se totalmente aos quereres da sua época e do seu companheiro. Além disso,
submete-se totalmente aos desrespeitos lançados sobre ela. É essa típica personagem do
século XIX que termina abnegando-se e cuidando do seu companheiro machista, do neto e
da filha dele e, até, da Vanju – a mulher por quem foi trocada.
Uma cena que retrata essa submissão desenfreada é o momento depois que o Severino
diz a Lourença que irá se casar com outra mulher. Diante dessa notícia, ela decidiu mudar
de quarto:
Na mesma noite, cabisbaixa, enquanto Mestre Severino, à luz do contravento, à mesa
da varanda, escriturava num velho caderno preto as contas da viagem, Lourença se
mudou para o quarto estreito ao lado da cozinha, e ali armou a sua rede. [..] Como seria
a dona que enfeitiçara Mestre Severino? De si para si, pitando o cachimbo, Lourença
queria queixar-se, no teimoso esforço para se compenetrar da injustiça da sorte; mas
logo reconhecia que não era direito. Dos dois, pensando bem, quem tinha culpa era
ela. Mestre Severino dera-lhe casa, dera-lhe comida, dera-lhe roupa, dera-lhe carinho,
tirara-a das mãos do pai que lhe batia, e a verdade é que ela não lhe tinha dado, ao fim
de tantos anos, o filho que ele sempre deixava dentro dela, à noite, quando voltava das
viagens (MONTELLO, 2005, p. 67).
Diante dessa desconsideração, Lourença abdicou do seu lugar de companheira e ainda
se sentiu culpada por toda essa situação ter acontecido. Ela se entristece por não ter dado
filhos a Severino e, por isso, acredita que ele estava fazendo um favor a ela, por dar-lhe teto
e roupa.
Ao aceitar essa sua nova posição, a personagem deixa clara a condição feminina
enfrentada tanto por ela quanto por Chiquinha: desvalorização, submissão desenfreada,
dependências emocional, social e financeira. Tudo isso camuflado por um acordo social
romantizado: o casamento. Por fim, deixa clara a validação do pensamento de que “as
mulheres do lar, símbolo de pureza e do matrimônio bem consolidado, deveriam ser as
responsáveis pelo cuidado dos filhos e da casa, antro de pureza e de moral inquestionáveis”
(MORAES, 2015).
154
Considerações finais
Tendo em vista as análises apresentadas acima, notou-se que cada obra retrata dois
tipos de personagens em contraste, isto é, mulheres que ocupam o espaço antagônico entre
ser respeitável e se tornar invalidável ao matrimônio. Contudo, todas elas têm suas vidas
permeadas pelo status do casamento e por pressões sociais em relação às suas responsabilidades
– seja como dona de casa ou como objeto de satisfação masculina. Assim, “para a sociedade
da época, nada mais justo e correto que a senhora de casa fosse o símbolo da boa reputação,
ao passo que as prostitutas deveriam servir de válvulas de escape para as aventuras amorosas
e sexuais” (ALMEIDA, 2020, p. 86).
Além disso, o trabalho corrobora com as discussões atuais sobre o papel apontado
na Literatura Brasileira no que tange ao conceito propagado pelo machismo latente na
sociedade no país, na qual uma mulher é orientada que, somente no casamento, ela poderá ser
valorizada e ter uma situação financeira confortável. Ainda que este aspecto seja vivenciado
de formas diferentes pelas personagens escolhidas para esta pesquisa.
Dessa forma, é notório que a representação e o papel da mulher dentro da sociedade
brasileira não mudaram, mesmo diante de lutas por equidade e mudanças quanto a esta
opressão. A figura feminina ainda é, essencialmente, atrelada ao casamento, à vida doméstica
e à maternidade, questões que não são problemas em si, mas impedem outras possibilidades
do ser e existir como mulher.
Referências
ABRANTES, Elizabeth Sousa. “Mãe civilizadora”: a educação da mulher nos discursos feminista e
antifeminista na primeira república. Anpuh. XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006.
ALMEIDA, Gil Derlan Silva; LOPES, Sebastião Alves Teixeira. Sobre as deusas, putas e odiadas:
a presença da prostituta em Cais da Sagração de Josué Montello. Afluente: Revista de Letras e
Linguística, v. 5, n. 15, p. 77-95, 2020.
ALMEIDA, Marcia Geralda. O judas em sábado de aleluia: no mínimo gesto, o valor artístico nas
comédias de costumes de Martins Pena. Contraponto, v. 8, n. 1, 2019.
ALÓS, Anselmo Peres. A literatura comparada neste início de milênio: tendências e
perspectivas. Ângulo (FATEA), n. 130, p. 7-12, 2012.
155
CANEZIN, Claudete Carvalho. A mulher e o casamento: da submissão à emancipação. Paraná:
UniCesumar, 2007. Disponível em: < https://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/
article/view/368 >. Acesso em: 26 fev. 2021.
CARVALHAL, Tania. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006.
MONTELLO, Josué. Cais da Sagração. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
MORAES, E. R. Francesas nos trópicos: a prostituta como tópica literária. Teresa: Revista de
Literatura Brasileira, n. 15, p. 165-178, 2015.
PENA, Martins. O Judas em Sábado de Aleluia. Belém: UNAMA. Disponível em: < http://www.
portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/martins_pena4.pdf >. Acesso em: 8 jan. 2021.
RODRIGUES, Maria José Lobato. Educação feminina no recolhimento do Maranhão: o redefinir de
uma instituição. 2010
RONDINELLI, Bruna Grasiela da Silva et al. Martins Pena, o comediógrafo do Teatro de São Pedro
de Alcântara: uma leitura de O Judas em sábado de aleluia, Os irmãos das almas e O noviço. 2012.
SILVA, Manuella. Cecília e Florbela: Imagens em Espelho uma Análise Comparada da Morte nos
Poemas “Mulher ao Espelho” e “Dizeres Íntimos”. Curso de Letras, Amazonas, 2011. Disponível em:
< https://edoc.ufam.edu.br/retrieve/31b1b084-44f9-4199-af77-6dc56fc467f5/TCC-Letras-2011Arquivo.016.pdf >. Acesso em: 8 jan. 2021.
VAN TIEGHEM, Paul. Crítica literária, história literária, literatura comparada. Literatura
comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, p. 89-98, 1994.
156
Sobre a organizadora
Meire Oliveira Silva
Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é docente do curso
de Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus Foz do
Iguaçu. É também autora de Liturgia da pedra: negro amor de rendas brancas (2018) e O
cinema-poesia de Joaquim Pedro de Andrade: passos da paixão mineira (2016) e desenvolve
pesquisas em História do documentário brasileiro e Teoria do cinema documentário. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5950515096751794 ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-48636062 E-mail: meire_oliveira@uol.com.br.
157
Sobre os autores e autoras
Brenna Késia de Sousa Costa
Graduanda no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Possui interesses de pesquisa
voltados à sociolinguística, focando em questões relacionadas à variação linguística. E-mail:
brennacosta@alu.uern.br.
Débora Cristina Sampaio do Valle
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual
de Maringá (PGC),orientada pela Profa. Dra. Marivânia Conceição de Araújo. Assistente
Social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL,2009). Especialista em
Comunicação Popular e Comunitária (UEL 2012) e Gestão em Saúde (UEM, 2016).
Ativista e militante do movimento negro e contra a violência de gênero. Membra do Instituto
de Mulheres Negras Enedina Alves Marques - IMNEAM e da Rede de acolhimento de
Mulheres Nenhuma a Menos. Assistente Social da Saúde de Maringá-PR.
Edgley Freire Tavares
Doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PPGEL/UFRN). Docente no Departamento de Letras Vernáculas da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte, Campus Central. Membro do GEDUERN - Grupo de
Estudos do Discurso da UERN. Desenvolve estudos em análise do discurso nos arquivos da
política e da democracia, investigando práticas discursivas contemporâneas para estabelecer
uma arqueologia e uma genealogia da sociedade brasileira. E-mail: edgleyfreire@uern.br.
Erika Maria Albuquerque Sousa
Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade
Estadual do Maranhão - CESC/UEMA. Membro do grupo de pesquisa CNPq: Literatura,
Arte e Mídias - LAMID e do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NUPLIM/
CNPq. Membro da diretoria da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras - LICLE/ CESCUEMA.
158
Gabriele Teixeira Diniz
formada em Letras Língua Portuguesa pelo Instituto Federal de Brasília (2020), tem
especialização em “Enem: competências e habilidades em humanas” e tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Literatura e crítica literária dialética. Desenvolveu
pesquisas na Literatura e Linguística, respectivamente, durante o curso; a primeira delas
intitulada Sobre Belas e Feras: amor, fantasia e opressão em o Morro dos Ventos Uivantes e
Crepúsculo; e a segunda voltada para Análise do Discurso Crítica: Valorização das mulheres
e comunicação multimodal não violenta: manual e produção de textos para comunicações
oficiais, propagandas e publicidades. Ao longo da graduação se dedicou à pesquisa com
ênfase nos estudos de representação feminina e aos projetos de extensão, onde pôde colocar
em prática o que pesquisava.
Giovana Carvalho Alencar
Está em processo de graduação em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão.
Atualmente, é bolsista PIBID pela UEMA. Além disso, atua como professora de inglês
no programa bilíngue International School e na franquia FISK, instituto de idiomas. Tem
experiência nas áreas de Língua Inglesa e de Língua Portuguesa.
Guilherme Ewerton Alves de Assis
Graduando em Licenciatura Plena em Letras – Português pela Universidade Federal
da Paraíba (UFPB) e Graduando em Licenciatura Plena em Filosofia, pela Universidade
Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Hodiernamente, é pesquisador efetivo do Grupo de Pesquisa
em Literatura, Gênero e Psicanálise (LIGEPSI/CNQp) – UFPB, no qual é bolsista PIBIC.
Demonstra interesses nas áreas de: a) Literatura e psicanálise; b) Literatura fantástica;
c) Poesia e metapoesia; e) Literatura feminina; f ) Literatura erótica. Faz incursões pela
psicanálise, sobretudo de cunho freudiano e lacaniano.
Gustavo Abílio Galeno Arnt
Possui graduação em Letras pela Universidade de Brasília (2007), mestrado em Literatura
pela Universidade de Brasília (2009) e doutorado em Literatura pela Universidade de Brasília
(2014). Realizou pós-doutorado em Filosofia junto ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade de Brasília (2018-2020), onde desenvolveu uma pesquisa sobre
os Cursos de Estética, de G.W. Hegel. Atualmente é professor EBTT D-401 do Instituto
Federal de Brasília. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira,
atuando principalmente nos seguintes temas: crítica literária, crítica marxista, estética.
159
Hermano de França Rodrigues
Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da
Paraíba. Professor Adjunto III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB)
e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB). Especialista em ‘Psicanálise: Teoria
e Prática’, pelo Espaço Psicanalítico – EPSI. Tem experiência na área de Linguagem,
Literatura e Cultura, com ênfase em Semiótica, Literatura e Psicanálise. Desenvolve estudos
sobre: a) Literatura Erótica; b) Erotismo, Discurso e Memória; c) Semiótica e Psicanálise; d)
Literatura e Psicanálise; e) e Literatura e Estudos de Gênero.
Ingrid Lopes Rodrigues Piauilino
Graduanda em Letras-Português/Inglês pela Universidade Estadual do Maranhão. Foi
bolsista em Iniciação Científica na área de Tradução Literária pela FAPEMA e, atualmente,
estuda o Jornalismo Literário com o fomento da mesma instituição. É integrante do Grupo
de Pesquisa TECER (UEMA) e Polifonia (UFMA). Também, possui um podcast chamado
Pinguid Podcast, no qual compartilha suas investigações. As suas principais áreas de interesse
são: Literatura, Ficção e Poema.
José Eduardo Pinto Duarte
Graduando no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Membro dos grupos FALA
Barroco, Grupo de Estudos do Discurso da UERN – GEDUERN – e do Grupo de Dança
Universitária de Mossoró – GRUDUM. E-mail: joseeduardo@alu.uern.br
José Lucas Silva de Araújo
Graduando em Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) pela Universidade Estadual
da Paraíba (UEPB), Pós-graduando em Produção Textual pela Faculdade Venda Nova do
Imigrante (FAVENI), Técnico em Enfermagem pelo Centro de Ensino Aplicado à Saúde
(CEAS). Atualmente é professor contratado do componente curricular: Língua Portuguesa,
lotado na Secretaria de Educação no município de Cacimba de Dentro - PB.
160
Julianne Rosy do Valle Satil
Doutora (2021) e mestra (2015) pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Londrina-PPGEL/UEL, especialista em Língua
Portuguesa pela Universidade Norte do Paraná-UNOPAR (2008) e graduada em Letras
Anglo-Portuguesas e Respectivas Literaturas (2005), também, pela UEL. Suas pesquisas
filiam-se à Semântica do Acontecimento e à Análise de Discurso de escola francesa,
investigando o funcionamento do sentido, a partir de questões sociais e históricas. Para
tanto, a autora toma a língua(gem) como objeto de reflexão e análise.
Maria Iranilde Almeida Costa
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (1995), mestrado
(2001) e doutorado em Ciência da Literatura (2014), ambos pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Atualmente é Professora Adjunta III da Universidade Estadual do Maranhão
e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual
do Maranhão. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira,
Poesia e Ficção Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: narrativas
contemporâneas, teoria literária e literatura brasileira.
Maria Tereza Azevedo
É mãe, professora e pesquisadora. Em 2020 conquistou o título de Mestre em Literatura
pelo programa de pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Pará e Graduada
em Letras com habilitação em Língua Portuguesa também pela UFPA. Sua trajetória como
pesquisadora começou desde que ingressou no grupo de pesquisa “Narrares” que investiga
as faces da resistência em narrativas e suas representações. Seu principal nicho de pesquisa é
sobre a formação dos personagens e o gênero literário e que corresponde a este processo, o
Bildungsroman.
Roney Jesus Ribeiro
Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestre em
Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e, em Educação pela Universidad
Americana (UA). Licenciado em Letras, História e Artes Visuais. Integra os grupos de
pesquisa Crítica e Experiência Estética em Gerd Bornheim (PPGA/Ufes) e Literatura e
Educação (PPGL/PPGE/Ufes).
161
Sangela Lígia Camilo da Silva
Graduada em Pedagogia pelo Instituição Superior de educação São Judas Tadeu (2018),
graduada em letras (Habilitação em língua Portuguesa) pela Universidade Estadual da Paraíba
- UEPB (2020), Pós-graduada em psicopedagogia clínica e institucional pela ISESJT (2020),
Pós-Graduanda em Linguística Aplicada pela Faveni. Tem interesse pela psicopedagogia
institucional, letramentos, literatura e pela área da Teoria e Análise Linguística, com ênfase
na Diversidade Linguística, baseando-se na sociolinguística.
Solange Santana Guimarães Morais
Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ). Docente na Universidade Estadual do
Maranhão (CESC/UEMA). Líder do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense –
NUPLIM/ CNPq. Coordenadora da Liga Interdisciplinar dos Cursos de Letras - LICLE/
CESC-UEMA.
Thaynã Silva Targa
Mestra em História e Teoria da Arte na concentração “Nexos entre Arte, Espaço e
Pensamento” (2018) pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e bacharela em
Artes Plásticas (2014) pela mesma instituição. Entre produções artísticas e investigações
sobre Arte Contemporânea, possui experiência na área desde 2012. Integra os grupos de
pesquisa Crítica e Experiência Estética em Gerd Bornheim (PPGA/Ufes).
Thays Alves Costa
Doutoranda em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), mestra em
Artes pela Ufes (2018), e, licenciada em Artes Visuais pela Ufes (2015). Integra o grupo
de pesquisa Crítica e experiência estética em Gerd Bornheim e o projeto Vida e obra de
Gerd Bornheim: correspondência, recensões e datiloscritos originais sobre Filosofia da Arte
e História da Filosofia.
Valéria Costa Aldeci de Oliveira
Possui Graduação e Mestrado em Serviço Social pela UFRN, Doutorado em Sociologia
pela UFPB. Trabalha na UFPB, atuando como docente no Departamento de Serviço Social e
coord. do curso nas gestões 2019-2021 e 2021- 2023. Pesquisadora do LAEPT (laboratório
de estudos sobre Trabalho e Políticas Públicas da Sociologia UFPB e do LABORES (Núcleo
de Estudos sobre o Trabalho). Atua com os seguintes temas: Trabalho, gênero, territórios
rurais e tradicionais (pesqueiros e quilombolas). http://lattes.cnpq.br/079968613320465.
162
Wellytania Thaís Sousa Morais
Graduanda no curso de Letras Língua Portuguesa e Respectivas Literaturas pela
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Foi coordenadora de cultura do
Centro Acadêmico de Letras Adilino Juvêncio de Andrade (UERN/Mossoró). Participou
como voluntária do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID)
da UERN. Com publicações na área de Literatura. Os interesses atuais de pesquisa se
voltam à Literatura Brasileira, a Teoria Literária e às questões raciais e de gênero. E-mail:
wellytaniathais@gmail.com.
163
Índice remissivo
A
Antirracista 39, 40, 49, 80
Arte 6, 8, 38, 39, 40, 41, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 51, 52, 53, 61, 98, 110, 111, 120, 121, 122, 123, 124,
125, 128, 130, 131, 132, 134, 138
Artistas 61, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 127, 130, 131, 132, 133
Autoria 5, 13, 39, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 80, 100, 108, 120, 133, 134
C
Capitalismo 75, 111, 112
Carolina Maria de Jesus 6, 8, 10, 13, 16, 23, 24
Classe social 14, 16, 92, 115, 151
Colonização 11, 12, 29
Conceição Evaristo 11
Corpo 6, 8, 13, 18, 22, 27, 34, 78, 82, 97, 98, 100, 102, 103, 105, 106, 107, 108, 120, 121, 122, 123,
124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 138
Crítica 15, 16, 38, 44, 49, 50, 52, 73, 111, 114, 121, 124, 129, 130, 132, 148, 149, 159
D
Decolonial 11, 12, 13
Democracia 12, 22, 39, 42, 43, 44, 45, 51, 52, 53, 158
Democracia racial 12, 22
Denúncia 13, 17, 22, 23, 47, 51, 124, 131
Desigualdades 16, 19, 38, 39, 43, 44, 45, 47, 48, 50, 51, 88, 143
Diáspora 12
Discriminação 42, 46, 48, 56, 61
Discursividade 38, 39, 40, 41, 44
Discurso 6, 7, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 24, 25, 33, 38, 39, 40, 41, 44, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 58,
67, 69, 70, 83, 98, 100, 101, 107, 110, 118, 121, 124, 125, 127, 129, 135, 136, 137, 140, 144, 158
Dominação 7, 9, 44, 55, 56, 67, 70, 72, 74, 78, 110, 111, 113, 117, 118, 119, 120, 128, 129, 130, 131,
133, 143
164
E
Educação 32, 36, 45, 46, 55, 78, 87, 88, 95, 96, 124, 137, 138, 141, 162
Erotismo 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 107, 108, 109, 124, 125, 126, 128, 133
Escravatura 12
Escritora 6, 8, 10, 13, 26, 36, 73, 74, 75, 83, 89, 91, 92, 102
Esquecimento 41, 89, 91, 95
Estereótipos 9, 47, 70, 74, 76, 123, 146
Eu-lírico 101, 103, 104
Exclusão 20, 38, 41, 42, 45, 131, 136, 137, 144
F
Feminilidade 76, 100, 125, 132, 150
Feminino 7, 8, 9, 18, 22, 30, 35, 37, 57, 67, 75, 76, 85, 90, 100, 101, 102, 103, 106, 107, 108, 110,
111, 112, 113, 114, 116, 120, 121, 122, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135,
137, 142, 144, 146, 147, 152, 153
Feminismo 11, 60, 138
G
Gênero 8, 11, 13, 15, 16, 17, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 63, 67, 68, 69, 71, 75, 85, 119, 125, 128,
130, 131, 134, 142, 144, 146, 147, 148, 158, 161, 163
H
História 11, 12, 17, 22, 23, 26, 32, 36, 37, 40, 41, 44, 45, 48, 50, 52, 53, 56, 59, 62, 68, 71, 80, 84,
89, 90, 92, 94, 95, 96, 104, 108, 110, 111, 112, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 125, 130, 131,
133, 134, 139, 140, 145, 149, 153, 156
I
Idealização 71, 76, 77, 78, 93, 120, 122, 127, 128, 140
Identidades 11, 15, 17, 25, 100, 132
Ideologia 12, 17, 41, 49, 110, 111, 113, 117, 118, 119
Interseccionalidade 15, 24
L
língua 14, 17, 23, 41, 69, 73, 78, 88, 161, 162
linguagem 11, 14, 15, 17, 20, 34, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 48, 53, 73, 91, 98, 99, 107, 108
literatura 9, 10, 13, 37, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 78, 79, 82, 83, 91, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 103, 104,
105, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 114, 119, 120, 138, 146, 147, 148, 155, 156, 161, 162
Literatura 6, 8, 37, 71, 73, 76, 84, 85, 86, 87, 96, 110, 147, 148, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 161,
162, 163
165
M
Memória discursiva 40
Mulher 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 30, 35, 36, 52, 57, 58, 59, 60, 61, 62,
63, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 81, 82, 83, 84, 85, 87, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 96,
97, 99, 100, 101, 103, 106, 107, 108, 110, 111, 115, 116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126,
127, 128, 129, 130, 131, 133, 136, 137, 138, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150,
151, 152, 153, 154, 155, 156
Mulher negra 6, 8, 10, 13, 20, 22, 24
N
Narrativas 8, 12, 26, 74, 79, 99, 114, 133, 148, 161
Neoliberal 43
O
Objetificação 120, 121, 128, 137
Opressões 13, 15, 16, 20, 21, 23, 24, 56, 79
P
Patriarcado 35, 70, 110, 117, 118, 137, 138, 141, 144
Poesia 8, 55, 61, 72, 88, 98, 99, 100, 101, 103, 108, 109, 124, 134, 157
Poética 6, 8, 37, 97, 99, 103, 105, 108
Política 8, 15, 16, 25, 38, 39, 40, 43, 47, 49, 52, 55, 56, 58, 64, 65, 67, 68, 69, 75, 112, 143, 148, 153,
158
Práticas discursivas 40, 44, 47, 158
Preconceitos 15, 29, 89
Protagonista 12, 21, 26, 28, 32, 35, 36, 73, 89, 92, 95, 110, 111, 114, 116, 117, 122, 136, 140, 149,
150
R
Raça 11, 13, 14, 15, 16, 17, 20, 21, 46, 56, 134
Racismo 15, 21, 22, 23, 25, 38, 39, 40, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51
Representação 2, 3, 5, 6, 8, 9, 13, 17, 21, 40, 47, 61, 70, 75, 76, 87, 92, 99, 101, 107, 110, 111, 119,
120, 121, 122, 124, 125, 127, 128, 133, 154, 155, 159
Resistência 2, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 15, 16, 22, 23, 24, 38, 39, 40, 45, 47, 48, 49, 52, 63, 66, 73, 87, 92, 95,
97, 99, 100, 101, 102, 108, 120, 138, 144, 145
Revolução 36, 100, 121
Romance 8, 26, 27, 35, 36, 69, 70, 72, 73, 74, 77, 79, 80, 85, 91, 92, 94, 95, 96, 113, 114, 115, 139,
149
166
167