Academia.eduAcademia.edu
东 ANDRÉ BUENO [Org.] MUNDOS EM MOVIMENTO: EXTREMO ORIENTE 2021 Reitor Ricardo Lodi Ribeiro Vice-Reitor Mario Sérgio Alves Carneiro Chefe de Gabinete Domenico Mandarino Projeto Orientalismo Coordenador: André Bueno www.orientalismo.blogspot.com Ficha Catalográfica: Bueno, André [org.] Mundos em Movimento: Extremo Oriente. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021. ISBN: 978-65-00-31924-8 Sumário APRESENTAÇÃO .................................................................................................. 7 EXTREMO ORIENTE: CULTURAS A DIFÍCIL ARTE DA SÍNTESE NA HISTORIOGRAFIA CHINESA ANTIGA por André Bueno ................................................................................................... 10 YU BOYA E ZHONG ZIQI: O CULTIVO DA AMIZADE NA INTERSEÇÃO COM A MÚSICA CHINESA ANTIGA PARA GUQIN por André Ribeiro ....... 18 LUÍS GONZAGA GOMES E AS CHINESICES DE MACAU por Bettina Pinheiro Martins ................................................................................................................... 26 PERSPECTIVAS DE CIÊNCIA E CIENTISTA NO MANGÁ ASTRO BOY por Bruna Navarone Santos ......................................................................................... 31 REPRESENTAÇÕES DOS SENTIDOS DE IKIGAI NO ANIMÊ CELLS AT WORK! por Bruna Navarone Santos..................................................................... 46 O PAPEL DA LÍNGUA PORTUGUESA NA DIFUSÃO DA FÉ REFORMADA por Carlos Aldlen Torres de Souza ........................................................................ 54 OS RELATOS DOS JESUÍTAS E AS TAPEÇARIAS DE BEAUVAIS: APORTES PARA A CONSTRUÇÃO DA SINOFILIA EUROPEIA por Carmen Lícia Palazzo .......................................................................................................... 62 OS BOMBARDEIOS ATÔMICOS DE 1945 E A HISTORIOGRAFIA EM DISPUTA por Douglas Pastrello ........................................................................... 71 IMPERIALISMO JAPONÊS NA PENÍNSULA COREANA NA ÓTICA DOS KDRAMAS MR. SUNSHINE: UM RAIO DE SOL E CHICAGO TYPEWRITER por Eduarda Christine Souza Pucci ....................................................................... 78 MÚMIAS ORIENTAIS: UMA BREVE DISCUSSÃO DE EMBALSAMAMENTO, TANATOLOGIA E RITOS FÚNEBRES EM CIVILIZAÇÕES DO EXTREMO ORIENTE por Eduardo Mangolim Brandani da Silva e Gessica de Brito Bueno.............................................................................. 83 TEATRO NÔ: ARTE PERFORMÁTICA JAPONESA E SUAS RELAÇÕES COM A TRAGÉDIA GREGA por Felipe Ruzene ................................................ 92 SHÀNZI WǓ 扇子舞 : A DANÇA CHINESA COM LEQUES ORIGINÁRIA NA DINASTIA HAN por Flavia Lima Corpas ............................................................ 98 MULHERES NO CURDISTÃO: PROTAGONISMO EM TODAS AS DIMENSÕES DA REVOLUÇÃO por Isabella dos Santos Daiub ..................... 103 MANGÁ E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO HISTÓRICO: UM OLHAR A PARTIR DO PERSONAGEM JAPÃO EM HETALIA por Janaina de Paula do Espírito Santo ....................................................................................................... 110 BENTO DE GOES: UM JESUÍTA PORTUGUÊS NA DEMANDA DO CATAIO [1602-1607] por João Lupi .................................................................................. 117 O PERÍODO SENGOKU, PORTUGUESES [CRISTÃOS] E JAPONESES [BUDISTAS] EM KIRISHITAN NOBUNAGA, DE OSANAI KAORU por José Carvalho Vanzelli ................................................................................................ 128 TRÊS BONECAS CHINESAS: A RE-ORIENTALIZAÇÃO DAS MULHERES CHINESAS NO FILME MULAN [1998] por José Ivson Marques Ferreira de Lima ............................................................................................................................. 135 BREVE ANÁLISE ACERCA DA REPRESENTAÇÃO DO KITSUNE MITOLÓGICO NO MANGÁ INUYASHA, DE RUMIKO TAKAHASHI por Júlia da Silva Amaral ................................................................................................... 141 BORDANDO O DIVINO: GUANYIN EM CABELO HUMANO por Julia Guimarães Alves .................................................................................................. 148 JOSÉ DE AQUINO, O BRASILEIRO QUE ESCREVEU A PRIMEIRA HISTÓRIA DE MACAU por Kamila Czepula ................................................... 159 DA UTOPIA HERÓICA AO TRAUMA DA GUERRA: MY HERO ACADEMIA E A POLÊMICA EM TORNO DO TERMO HISTÓRICO MARUTA por Lucas Marques Vilhena Motta e Luciana de Ávila Freitas ............................................ 167 PERSPECTIVAS ECOCRÍTICAS SOBRE OBRAS ARTÍSTICAS SULCOREANAS CONTEMPORÂNEAS por Maria Gabriela Wanderley Pedrosa . 173 A REPRESENTAÇÃO DO BUSHIDO NOS MANGÁS DA ERA HEISEI A PARTIR DA OBRA ‘BLADE A LÂMINA DO IMORTAL’ por Matheus Eduardo Rezende Pereira ................................................................................................... 181 BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS NATUREZAS CÍCLICA E LINEAR DE TEMPO NA CULTURA HINDU por Matheus Landau de Carvalho .......... 188 ANÁLISE DAS TRÊS FALÁCIAS E SEUS NOVE EXEMPLOS NO CAPÍTULO NOMEAÇÃO CORRETA DO FILÓSOFO XUN por Matheus Oliva da Costa ... 197 A ESTÉTICA WABI-SABI NA CERIMÔNIA DO CHÁ JAPONESA por Narumi Ito ......................................................................................................................... 206 ESTÉTICA E JOGO DE PODER: O ARQUÉTIPO FEMININO EM TAMAMONO-MAE por Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria.......... 215 O PAPEL DA ESCRITA NO MÉTODO DE EVANGELIZAÇÃO JESUÍTA NA CHINA por Renan Morim Pastor ........................................................................ 222 A FOTOGRAFIA COMO MEDIADORA DA MODERNIDADE JAPONESA [1860-1890] por Rogério Akiti Dezem ................................................................ 229 A INFLUÊNCIA ORIENTAL NA CULTURA RUSSA por Talita Seniuk ....... 239 CRIAR O QUE NUNCA FOI FEITO ANTES: GUTAI E AS ARTES JAPONESAS NO PÓS-GUERRA por Victor Vidal ........................................... 246 EXTREMO ORIENTE: POLÍTICAS A REFORMA AGRÁRIA COMO MARCO FUNDADOR DO DESENVOLVIMENTO SUL COREANO por Alexandre Black de Albuquerque ............................................................................................................................. 253 A POLÍTICA DE TRÊS REVOLUÇÕES E A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO NA REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA DA COREIA por André Felipe Costa da Luz ........................................................................................................ 260 ALÉM DO GRANDE TIMONEIRO: OUTRAS VOZES NA LIDERANÇA DA CHINA COMUNISTA ENTRE A REVOLUÇÃO E A MORTE DE MAO TSÉTUNG por Bruno Marques .................................................................................. 267 JIGME NAMGYAL: O ARQUITETO DO REINO DO BUTÃO por Emiliano Unzer .................................................................................................................... 275 REVISITANDO AS PERIFERIAS DO IMPÉRIO: A HISTÓRIA DO DIREITO EM MACAU PORTUGUESA [SÉC. XVI-XIX] por Marcus Dorneles ............. 283 A POLÍTICA EXTERNA DA COREIA DO SUL PARA A ÁSIA ORIENTAL DURANTE O GOVERNO DE PARK GEUN-HYE [2013-2017] por Maurício Luiz Borges Ramos Dias ..................................................................................... 291 EXTREMO ORIENTE: SOCIEDADES MATERNIDADE NA COREIA DO SUL: A MULHER E OS PAPÉIS DE GÊNERO por Amanda de Morais Silva .............................................................. 300 FEMINISMO NA CHINA: HISTÓRIA DO MOVIMENTO SUFRAGISTA CHINÊS por Caroline Micaela de Souza Greco e Teodora Maicá Soares .......... 308 A HOMOSSEXUALIDADE NA COREIA DO SUL: APONTAMENTOS HISTÓRICOS por Leonardo Paiva Monte .......................................................... 316 APRESENTAÇÃO ‘Ásia’ ou ‘Extremo Oriente’ são versões complexas de uma tentativa de definição geográfica e civilizacional. Esses termos oscilam entre empreendimentos de classificação cultural e etnocentradas [como ‘Sinosfera’ ou ‘Mundo indiano’] e versões cartográficas que delimitam espaços e regiões, igualmente vinculadas, de forma pontual, as flutuações das conjunturas políticas. Desde Vladimir Barthold [1946], passado por Pierre Gourou [1953] até mais recentemente, Philippe Pelletier [2011], a busca por circunscrever o ‘Extremo Oriente’ segue, envolvendo as tensões do renascimento asiático e os conflitos com as práticas orientalistas e os interesses geopolíticos do mundo globalizado. As palavras ‘Extremo Oriente’ e ‘Ásia’ foram popularizadas pelos portugueses no século 16, e se tornaram referências de uma dimensão de alteridade. A partir delas, criaram-se fronteiras imaginárias, em que o espaço dessa classificação variou com o tempo. Cláudio Pinheiro Costa [2015], em uma cartografia sobre como os latinoamericanos enxergam essas civilizações, mostrou que as fronteiras e culturas mudaram, sucessivamente, segundo percepções em grande parte derivadas de uma apreciação de sua maior ou menor ‘ocidentalidade’. Hoje, tênues tentativas de distinguir culturas se esvaem na miríade de preconceitos, que revelam a incapacidade latente de precisar essas outras dimensões do nosso mesmo mundo. Os caminhos para estudar as civilizações asiáticas ainda se dividem entre as ciências de campo [Indologia para Índia, Sinologia para China, etc.] e estudos de área [Estudos Chineses, Estudos Indianos, etc.], que construíram perspectivas diferentes sobre as culturas do Extremo Oriente. As primeiras pretendem estudar a fundo as culturas orientais, muitas vezes acreditando construir instrumentos próprios para isso; as segundas definem sua atuação a partir de uma base estratégica e política, sem necessariamente buscar o conhecimento do passado. Essas definições também não são precisas; os especialistas variam em conhecimento, e seus projetos se alinham [ou não] em funções de programas políticos. Em nossa nova obra, ‘Mundos em Movimento: Extremo Oriente’, o Projeto Orientalismo tenta contemplar essa diversidade por meio de suas manifestações culturais, políticas e sociais, trazendo ao público leituras e estudos sobre Índia, China, Japão, Coreia, entre outros, e para além das fronteiras nacionais etnoculturais. Movimentos religiosos e intelectuais são analisados a partir de perspectivas decoloniais, necessárias a pretensão de compreendê-las em sua autenticidade. É preciso uma nova epistemologia Sul-Sul, como pensado por Boaventura de Sousa Santos [2009], capaz de reconhecer as variações culturais para além da política de conhecimento eurocentrada, permitindo finalmente ao ‘subalterno’ expressar-se de modo autêntico [dentro da ideia proposta por Gayatri Spivak, 2018]. Somente assim, seremos capazes de superar as criações excludentes, em direção a um mundo pluriverso de expressões, no qual os Orientes deixam de estar nas extremidades para estarem, de fato, integrados em nossa mundividência. André Bueno EXTREMO ORIENTE: CULTURAS A DIFÍCIL ARTE DA SÍNTESE NA HISTORIOGRAFIA CHINESA ANTIGA André Bueno Disse Mêncio: “Ao estudar extensamente, e ao discutir minuciosamente o que estuda, o objetivo do Educado é capacitar-se para resumir e explicar com brevidade o essencial”. A questão Todo estudante preguiçoso, quando começa a escrever seus primeiros trabalhos, costuma afirmar que seus sucintos e rudimentares ensaios são curtos porque são ‘muito sintéticos’. A ideia da síntese é usada como desculpa para um trabalho fraco e malfeito. Quando há pouco para dizer, também há pouco para escrever. Os estudantes com mais vontade, que se desenvolvem e aprofundam seus estudos, trocam a síntese pela loquacidade e pelo prolixismo. Gostam de redigir grandes volumes, parágrafos intermináveis, períodos longos. No desejo de esmiuçar, desdobram-se em aspectos diversos, que muitas vezes escapam do tema central. Com o intuito de afirmar uma ideia, repetem-na constantemente no texto, e reproduzem um nome ou uma assertiva que a complete tantas vezes quanto for necessário. É a vontade de estar certo e de provar um ponto de vista que justifica, assim, a produção de um extenso escrito, cujo peso supostamente manifesta, de forma física e palpável, uma pretensa quantidade de estudo. Contudo, todo esse processo leva, por fim, à síntese. No ajuste ideal entre a ausência e o excesso, a medida certa é o uso acertado das palavras – em quantidade e qualidade. A arte de escrever exige exercício e paixão, e a habilidade de dizer muito com muito pouco é resultado de anos de treino. Na síntese, se expressa o domínio das expressões e dos sentidos, e dominá-la denota uma compreensão profunda das coisas. Liu Zhiji 劉知幾 [661-721ec] dizia que o mais difícil, justamente, é atingir a síntese. Em seu manual de história, o Shitong 史通, ele comentava sobre a economia das palavras nas narrativas: “Se as frases forem supérfluas e as palavras repetitivas, isso dará origem a uma complexidade desnecessária e a uma escrita caótica. [...] na narração dos eventos, uma pessoa hábil em somar palavras desnecessárias, ou liberal com a descrição dos acontecimentos, só faz perder tempo com coisas irrelevantes. Mas se alguém busca extrair o essencial, ele sintetizará tudo numa frase ou sentença. [...] Somente assim podemos separar o supérfluo das narrativas, alcançando seu sentido profundo e central” [Shitong, in Bueno, 2011:24]. Liu Zhiji buscava retomar a ideia de captar o essencial dos textos, por meio de uma gramática histórica razoavelmente estabelecida, de acordo com o projeto iniciado desde o século 6aec por Confúcio 孔夫子 no Chunqiu 春秋 [Primaveras e Outonos] [Hong, 2001]. Para ele, os escritos dos sábios deveriam ser sucintos, e estimular a reflexão, dentro de uma tradição consagrada em textos sapienciais [Zhong, 2020]. Confúcio foi austero e econômico nas suas crônicas, e seu modelo foi imitado por vários outros autores posteriores [Schaberg, 2002: 207-9]. As Conversas [Lunyu 論 語] também são fragmentadas em aforismos breves e curtos; e Laozi 老子 [século 6aec], contemporâneo de Confúcio, fundou o Daoísmo 道家 com apenas oitenta e um poemas no Daodejing 道德經. Os clássicos antigos [Shijing 詩經, Shujing 書 經, Yijing 易經 e Liji 禮記] eram longos - mas Confúcio não os escreveu, e ainda os editou, reduzindo seu tamanho; no século 1aec, a revolucionária escrita histórica do Shiji 史記 de Sima Qian 司馬遷 [Hardy, 1999] estava longe de ser parcimoniosa; e muitos outros escritores, desejando dar sentido aos sábios, usaram milhares de palavras para explicar algumas poucas. Portanto, esse é o problema: como escrever pouco, e dizer muito? Como fazer uma história sintética, moral e profunda, sem perder em informação e conteúdo? A história se pretende ser científica, e por isso preza sumamente as fontes. Longas teias narrativas são baseadas nos documentos, e as citações extraídas dos mesmos abundam. Isso é importante: afinal, um autor não deveria sair por aí afirmando, dogmaticamente, que seus livros são válidos, e que se deve acreditar neles, apenas porque ele 'supostamente' sabe. Por outro lado, quem escolhe as fontes? Quem retira delas apenas o que lhe interessa? O desejo de referendar uma hipótese com provas é correto, mas seu uso é sumamente deturpado. Nas humanidades, a manipulação das fontes é constante. Raro são os escritores que reformam seu espírito após lê-las. A coletânea de fragmentos que precede a redação do texto histórico é uma recolha pessoal. Ela é movida tanto pela ciência quanto pela paixão, pela vontade de comprovar uma hipótese pessoal; e por isso, justamente, muitos dos trabalhos históricos nascem com vícios de origem, mais dispostos a demonstrar uma convicção do que necessariamente indicar ou provar uma ideia haurida do estudo. Liu Zhiji, ao comentar sobre o Shiji de Sima Qian – e as histórias modelos que começaram a ser feitas a partir dela – fez uma análise [bastante atual ainda] sobre essa questão: “[Investigando os limites do Shiji], descobrimos que [ele] é vasto e extenso, alcançando tempos distantes. É dividido em biografias e anais, e distribuído em genealogias. Suas discussões sobre a política dos estados são separadas por uma grande distância, e quando descreve os funcionários e governantes de um período, eles não são unificados em um espaço. Esta é a fraqueza desta forma de escrita. Além disso, reunindo todos os seus registros, grande parte provém de memórias antigas e, ocasionalmente, reúne-se de relatos diversos, o que faz com que sua leitura tenha poucos fatos e muitos rumores, mas com muitas explicações sendo fornecidas. Isso é o que incomoda nesse texto. [...] os relatos têm sido misturados e confusos, mas os estudiosos estudaram calmamente este livro, e foram negligentes na leitura de novas memórias. Eles compilam inúmeros eventos, mas a maioria se perde. Pode-se dizer que eles trabalham sem mérito e, portanto, os compiladores devem tomar isso como um aviso” [Liu Zhiji, Shitong: Neipian 內篇, cap.1] Ou seja: desde aquela época, os historiadores já acumulavam milhares de dados, usando-os conforme um conjunto de intenções particulares ou institucionais desafio que o próprio Liu Zhiji enfrentou, quando trabalhou na secretaria de História do governo [Pulleyblanck, 1961:141]. O quanto isso não afasta, pois, a compreensão dos próprios documentos? Como analisar essas questões? A visão de Conjunto A leitura das fontes dá a visão do conjunto a que somente o autor poderá acessar diretamente. Qualquer redação é a projeção de suas ideias sobre a leitura desse conjunto. Não há imparcialidade. Por isso, novamente a questão: são necessários textos enormes para recontar uma história da qual se 'sabe o fim' [ou, sobre a qual já se criou uma impressão]? O resumo de uma fonte já é, em si, uma apreciação crítica e sucinta de seu texto. Isso ocorre porque as crônicas que se utilizam são, em geral, extensas e pesadas. É uma tradição histórica. Os livros se dedicam a milhares de detalhes, e muitos deles caem em discussões intermináveis sobre seus sentidos. Podemos perguntar se essa é uma reflexão importante ou vã. O debate sobre o superficial dificilmente leva ao profundo. Segundo a premissa levantada por Confúcio, os sábios escolhiam as palavras para que elas expressassem o que eles pretendiam: ‘Com uma palavra, um educado revela sua sabedoria; com uma palavra, ele trai sua ignorância - e é por isso que ele pondera suas palavras cuidadosamente’ [Lunyu, 19:25]. Elas deviam lançar o leitor na contemplação do problema apresentado, que necessitava do pensamento - e não do palavreado - para o seu discernimento [Lunyu, 15:41]; ele próprio afirmava que nada inventava, mas que apenas buscava transmitir o passado [Lunyu, 7:1]. É possível, pois, pensar uma escrita sintética para a história? É plausível uma síntese histórica, cuja reduzida quantidade de palavras corresponda à apropriada qualidade das ideias? Quantas ideias? As ideias, sentidos ou hipóteses da narrativa histórica podem ser reduzidas, quase sempre, a um número limitado de proposições. Se elas podem resumir o que será detalhado e analisado, porque a própria análise [o discernimento, o 'dissecamento'] deve ser tão maior que a afirmação inicial? A 'não-análise' torna uma hipótese, automaticamente, num dogma - o que não é o ideal em história; por outro lado, muitas vezes o aprofundamento de uma hipótese visa torná-la uma 'verdade' - por conseguinte, um 'quase-dogma'. Não será função do ensaio histórico ser mais propositivo do que afirmativo? Por isso, um ensaio adequado deveria propor as ideias para a reflexão, deixando-as em aberto, com as indicações de prova, abrindo um caminho para a reflexão. Esse é um aspecto dicotômico, mas aceito dentro da concepção de oposição complementar do pensamento chinês [Bueno, 2004] Se a história não for para refletir, para que servirá ela então? Fechar uma análise histórica é dogmatizá-la numa versão superficial. Então, talvez, é melhor que a deixe ligeiramente em aberto, flexível, pronta à crítica. Pois, o ensaio histórico é um olhar sobre um momento, um evento, sobre algo que foi. Como tal, será sempre passível de mudança e contestação. Quantas palavras? Se as ideias à serem propostas não devem ser muitas, do mesmo modo, as palavras devem buscar expressá-las do modo mais direto possível. Confúcio falava de 'retificar os nomes' [Lunyu, 13:3], e de atrelar sentidos específicos às palavras. É claro que Confúcio não apreciava polissemias. Por exemplo: quando evitava explicar o Ren 仁, talvez não quisesse usar muitas palavras, abrindo margem a ponderação e a dúvida [Lunyu, 9:1 e 12:1]. Hanyu 韩愈, porém, explicou o Ren em poucas palavras [Bueno, 2011:20]. Hanyu estaria errado? Confúcio escreveu as Primaveras e Outonos com frases lacônicas, e suas palavras já diziam tudo; mas foram necessários três comentários para explicá-los [o Zuo Zhuan 左傳, Guliang Zhuan 穀梁傳 e Gongyang Zhuan 公羊傳.], dada a distância temporal e histórica que os afastava dos sentidos originais. Muitos séculos depois, Sima Guang 司马光 escreveu o Zizhi Tongjian 资治通鉴[Espelho Completo para o Governo] para explicar e criticar as já longas Memórias Históricas de Sima Qian [Wu, 1988:22-24]. Zhuxi 朱 熹 , no Tongjian Gangmu 通 鑒 綱 目 [Esboços e Apontamentos do Espelho Completo], dedicou-se a dar sua visão dessas mesmas coisas, estendendo sua análise para outras épocas, mas criticando Sima Guang [Liu, 2017: 25-30] e empregando o método de Confúcio nas Primaveras e Outonos para realizar sua obra [Zhuang, 2017]. Estavam eles errados, ou apenas interpretando uma ideia? Ao fim, todo esse processo mostra que a raiz era Confúcio, que disse muito pouco; os que se seguiram, tentaram explicá-lo; e hoje, escrevem-se milhares de páginas para compreendê-los. Parece-nos, pois, que quanto mais distantes no tempo, mais longe ficamos dos sentidos – questão já aventada no Wenxin Diaolong 文心雕龍 de Liu Xie 劉勰[?522ec]: ‘Mas se passaram muitos anos e é difícil distinguir o que é idêntico e o que difere da realidade atual; quando os acontecimentos se amontoam é fácil confundir origem e fim. Precisamente esta é a dificuldade de lograr uma síntese’ [cap.16 in Bueno, 2012: 27]. O que nos aproximaria deles? A interpretação secundária ou a leitura direta do original? Talvez, seja a reflexão que nos transporte ao contexto, ou a ideia central. Esta mesma reflexão é a imaginação, tão cara aos chineses, e tão necessária à construção da história [como propôs Luji 陸機 [261-303ec] no Wenfu 文賦, nos cap. 2 e 3; Cheng Qianfan [1982] e Cheng Wenbiao [2004] argumentam que Liu Zhiji se inspirara diretamente em Liu Xie e Luji para escrever o Shitong, buscando não apenas classificar os conteúdos, mas também os estilos de escrita.]. Tal 'imaginar' só pode advir da reflexão fundada na leitura da fonte; do contrário, tornamos um hábito emprestar conceitos dos intérpretes, e acabamos repetindo-os, sem pensar por nós mesmos. Por isso, é crucial ler o original, e tentar captar o sentido. Assim, fazemos o 'caminho correto', e acessamos os princípios contidos nos textos. Quando isso ocorre, temos a mesma sensação de quando um jovem estudante aborda o mestre, ou um filho pequeno aborda os pais, com uma daquelas perguntas para a qual já sabemos a resposta [É justamente o que representam os ideogramas Xue 學 [Aprender] e Jiao 教 [Educar]: ambos são construídos pela imagem de mãos que conduzem uma criança. Ver o dicionário Shuowen jiezi 說文 解字, ref.2065 [xue] e ref.2026 [jiao]. No entanto, foram necessários tantos anos de experiência para saber as respostas, que precisaríamos de milhares de palavras para explicá-las - e tal esforço pode redundar inútil. Então, o que fazemos? Indicamos o caminho, e respondemos com a simplicidade mais direta, sintética e autêntica possível à questão. Ele deverá seguir o trajeto - o aprendizado, o estudo e a reflexão - para encontrar-se com a resposta. Não seria esse o mesmo roteiro que seguimos? Será a escrita da história o mesmo? Quem sabe ou consegue repetir um parágrafo inteiro, de cor, de um livro erudito? Uma poesia ou uma música são muito mais eficazes nesse sentido. Com poucas ideias, e poucas palavras, elas lançam à reflexão. Não deveria a narrativa histórica, então, fazer o mesmo? Reduzir, sintetizar, propor e deixar refletir? Huang Zongxi 黃宗羲[1610-1695] comentava que esses excessos são os ‘lugares- comuns’ do texto, que valem ser suprimidos: “Por ‘lugares-comuns’ entendemos os nunca ausentes pontos de convergência em cada texto, onde se concentra o pensamento de quem carece de ideias próprias. São como ervas daninhas emaranhadas nos textos, e é preciso eliminá-las antes de chegar a captar o essencial. É como a técnica para obter o jade oculto dentro da pedra. Precisamos perfurar a pedra dura para alcançar e ver o jade lá dentro, e não tomar por jade toda a pedra bruta” [apud Feng, 1986:163-4]. Tomemos os contos e as piadas; o que elas conseguem, que os escritos maiores não alcançam? O que é extenso torna-se difícil de apreender no todo. Nos contos e anedotas, os detalhes da narrativa revelam o conjunto, e lançam à compreensão do sentido. A narrativa curta e as poucas palavras tornam-na de fácil apreensão. Não serão elas bons modelos, se soubermos utilizá-las? Liu Xiang 刘向 [77-6aec] escreveu pequenas narrativas sobre sua época e sobre o período dos Estados Combatentes. Faltou-lhe precisar o contexto, mas essa não era sua preocupação central, pois as informações cronológicas eram dadas pelas crônicas. Contudo, ele captou tão bem o sentido dos acontecimentos, que foi equiparado a Sima Qian. Para alguns, é irritante pensar o quanto se pode contestar os vastos escritos do Shiji a partir do Shuoyuan 說苑 [Jardim das Histórias] ou do Zhanguoce 戰國策 [Anedotas dos Estados Combatentes]. Mas um bom historiador deveria se perguntar: porque as pessoas preferem as narrativas mais simples, ao invés das mais complexas? Este é um bom exemplo sobre como a economia na narrativa, se bem feita, é capaz de prender a atenção do leitor. Não se trata apenas de chamá-lo; é de como, ao sintetizar as ideias e palavras, prendemo-lhes a atenção ao sentido. O sentido da proposta Por esta razão, a proposta desse ensaio é, justamente, sobre a arte de escrever ensaios históricos e filosóficos. A prolixidade parece ser a régua da prova: mas palavras amontoadas só 'provam' pelo cansaço. Um bom ensaio pode ser sucinto e direto. Liu Zhiji afirmou que ‘o mundo muda com o tempo, e perdeu-se a simplicidade original [Qu, 1982:26]; resgatar essa austeridade nas narrativas, e expressar as ideias com precisão, esse é o ponto. Pode-se perguntar se isso não desmereceria as grandes coletâneas de informações, ou as enciclopédias do saber. Contudo, as coisas devem ser colocadas em seus devidos lugares; fontes de informação são o mesmo que fontes de reflexão? Voltamos ao início desse ensaio; palavras demais não levam à reflexão. As coletâneas de informação são fundamentais; mas sem a síntese, elas são como grandes dicionários de palavras não consultados. A síntese dá-lhes sentido, e encaminha à reflexão. Todo o autor é, portanto, um tradutor de um tema. De sua habilidade e profundidade, decorre a paixão daqueles que o leem e o seguem. Por uma conclusão Um ensaio sobre síntese que não fosse sintético seria uma contradição. Por isso, devemos pensar no quanto escrevemos para propor algo de fato. Se compreendemos que alcançamos um sentido - e é isso que desejamos expressar - não nos resta muito senão informar, dizer, e deixar refletir. Um ensaio sobre síntese deve ser sintético o suficiente para dizer o necessário e se fazer compreender. Quem entendê-lo, captou o sentido. Quem não, precisa estudar mais. Como disse Confúcio: um sábio não maltrata nem as pessoas, nem as palavras [Lunyu, 15:8] Referências André Bueno é prof. Adj. em História Oriental da UERJ. Bueno, André. A História e seus comentários [cap.16 do Wenxin Diaolong]. Escritos de História Sìnica. Ebook/Proj. Orientalismo, 2012, p.19-28. Disponível em: http://sinografia.blogspot.com/p/livros.html Acessado em 08 jan. 2021. Bueno, André. Cem textos de história chinesa. União da Vitória: Unespar/ Kaygang, 2011. Bueno, André. Não invento, apenas transmito; reinterpretando a escrita historiográfica de Confúcio. Rio de Janeiro: Anais da X Semana de História Política da UERJ, 2015, p.251-260. Bueno, André. 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Em que pese o fato das crônicas terem sido interpretadas ao longo dos séculos como a síntese do pensamento político de Confúcio, não seria inexato ler na inscrição dos personagens Boya e Ziqi nos documentos históricos um caráter prático de instrução quanto às condutas tidas como virtuosas ao Qin. Confúcio, ele mesmo amante dessa arte, teria esclarecido a este respeito de que a prática do Qin só atinge a sua maturidade quando reconhece os seus pares. A exemplo de uma passagem no Qínshǐ 琴史 [“a história do qin”], Confúcio deu provas dessa conduta, pois ele mesmo teria insistido por muito tempo no estudo da peça Wén Wáng Cāo 文王操 até conhecer intimamente o seu criador. Wén Wáng [1112–1050 ac.] é tido como fundador póstumo da Dinastia Zhou [1046-256 ac.]. Em sua homenagem, foram compostas inúmeras odes, grande parte delas se encontra no Clássico da Poesia. O testemunho acerca da relação de Confúcio com a arte do Qin nos chega através dos “Anais de História, Casa Hereditária de Confúcio” 世紀 ,孔子世 家 四 十七 Shìjì, kǒngzǐ shìjiā sìshíqī, 47; onde se lê: "Confúcio finalmente parou um dia e ficou pensando profundamente. De repente, ele sorriu e confiante disse: “Finalmente sei quem é o criador. Ele tem pele escura, é esguio, clarividente em suas decisões e tem o comportamento de um governante nobre de muitos estados. Quem mais poderia ser senão o Rei Wen de Zhou!” [SIMA QIAN [10991 ac.]] É desse modo, como veremos, que a arte do Qin solicita uma entrega ao outro, ao escolhido para ser o depositário de uma união genuína, sob os auspícios da amizade. União, lealdade, cumplicidade e respeito aos ancestrais constroem a aura da lenda. Contudo, se Boya e Ziqi existiram, não se sabe. A época em que viveram permanece incerta. Dadas as fontes documentais divergentes, a cronologia de suas vidas ora é estabelecida durante a Dinastia Zhou [1046–256 ac.] no Estado de Chu [1030 ac. – 223 dc.], ora durante a Dinastia Jin [266–420 dc.], ora entre a Dinastia Zhou e as Dinastias Nordeste e Sudeste [420–589 dc.]; ocasionalmente, entre 722 ac. e 484 dc. [Thompson, 2021]. Muito embora os textos numerosos divirjam quanto aos elementos biográficos — locais, cronologia dos acontecimentos e nomes atribuídos a Boya — por outro lado mantêm em comum a imagem de um jovem músico de ascendência nobre, talentoso e insatisfeito; após anos de estudo não se via à altura da arte. Uma das narrativas mais populares conta que seu professor, na tentativa de aplacar a angústia de Boya, o teria levado à Ilha Penglai, a famosa morada dos imortais. Uma vez lá, seu professor pediu que aguardasse enquanto buscava o seu novo mestre, desaparecendo a seguir na floresta. Passaram-se dias, e ele nunca retornava. Desanimado, Yu Boya sentou-se numa pedra à beira do rio para contemplar a natureza à sua volta. Fechado em si mesmo, foi-se abrindo à contemplação, e sem mais pesares começou a improvisar com os sons que lhe chegavam — o vento, as águas, os sons da montanha. Seu coração preencheu-se de afetos e emoções profundas. Foi quando ouviu uma voz em meio à floresta dizer: “Como é grande a montanha! Tão grande quanto o Monte Tai!” Sem saber de onde vinha a voz, Yu Boya seguiu tocando, e a voz ressoou novamente: “Como é vasto o rio. Tão vasto e poderoso como o oceano!” As peças que interpretava, respectivamente, eram “Altas Montanhas” 高 山 e “Águas Correntes” 流水 . Erguendo os olhos, Yu Boya interrompeu sua execução para surpreender-se com a silhueta de um homem saído da floresta. Era Zhong Ziqi 鍾子期. [Cleary, 2011] Diz a lenda, Yu Boya ficou profundamente emocionado por encontrar alguém que o compreendia. E sentiu-se tão completo que levantou-se e abraçou aquele estranho. “Meu amigo! Meu verdadeiro amigo! Somos um só coração!”. Separam-se, cada um seguindo viagem, sob a promessa de um novo encontro. O desfecho desse encontro é abrupto, se dá quando, a caminho de casa, Boya recebe a notícia da morte de Ziqi, e modifica o seu itinerário para visitar o local onde fora sepultado. Num ato final Boya despedaça o seu Qin na pedra do túmulo de Ziqi, jurando nunca mais voltar a tocá-lo novamente. Seja, em hipótese, fruto de uma ficção com o propósito de ilustrar as gerações de praticantes com um exemplo mais alto de conduta, entretanto, o impacto de suas supostas vidas e trajetórias entrelaçadas tornaram a lenda num recurso discursivo, uma chamada à antiguidade, como cerne da prática musical, e ao mesmo tempo restauradora dos ideais de conduta exemplares ao Qin. A narrativa Ming de Feng Meng Long Grande parte das narrativas sobre ambos foram postas em circulação durante a Dinastia Ming [1368–1644], entre os séculos 14 e 17 — e sabemos que este período da história chinesa foi marcado pelo revisionismo em vista do ressurgimento de um governo imperial Han após quase cem anos de dinastia mongol Yuan [1271-1368]. A popularização da lenda se deve, principalmente, ao poeta e novelista, Feng Meng Long 馮夢龍 [1574-1645], cuja versão se tornou modelo para as outras. De origem aristocrática, nascido numa família de escritores, Feng Meng Long cedo se encaminhou para as provas de admissão ao serviço público imperial, não obstante, sem sucesso. Viu-se, então, obrigado a carreira de tutor de ensino, parte do tempo se dedicando a editar coletâneas de histórias populares e lendas da antiguidade. Conquistou certo destaque com a publicação de sua trilogia composta por “Palavras ilustres para instruir o mundo” 喻世明言 Yushi Mingyan [mais conhecido como “Histórias Antigas e Novas » 古今小說 Gujin Xiaoshuo]; “Palavras Eternas para Despertar o Mundo” 醒世恆言 Xingshi Hengyan, e por fim, “Palavras Abrangentes para Admoestar [aconselhar] o Mundo” 警世通言 Jingshi Tongyan, 1624. Com o sucesso da trilogia obteve um cargo de instrutor oficial na administração do condado de Dantu, atualmente, Zhenjiang em Jiangsu [1630], de onde galgou na carreira até se tornar magistrado em Shouning [壽寧] em Fujian [1634]. O terceiro volume desta obra “Palavras Abrangentes para Admoestar [aconselhar] o Mundo” abre com a história de Boya e Ziqi sob o título “Boya despedaça o seu qin em gratidão por seu melhor amigo” 俞伯牙摔琴謝知音 yuboya shuai qin xie zhiyin. É digno de nota o sentido exato dos dois caracteres finais 知音 zhīyīn, cujo significado “amigo íntimo” ou “alma gêmea”, na decomposição dos termos 知 zhī, “estar consciente ou desperto”, e yīn 音 “som”, nos revela ainda um sentido musical pelo que se aproxima de “estar desperto” ou plenamente “ciente da sonoridade” [do outro], “conhecê-la intimamente”. Feng Meng Long foi responsável por firmar a narrativa sobre Boya e Ziqi, no que as subsequentes versões ao longo da Dinastia Qing [1644-1912] viriam a vulgarizála, e com isso reavivar o ideal de liberdade vinculado ao Qin, fora dos ritos e convenções sociais. Dali em diante a lenda multiplicaria em versões, não raro, alternando datas, nomes e locais. A amizade na intersecção com a música Por essa via interpretativa temos acesso a visão particular Ming sobre a amizade na intersecção com a música antiga chinesa. Em essência, ela transmite a imagem de dois amigos que se tornam um só corpo [um organismo], pelo que um [Boya] se deixa abraçar pelo outro, o amigo que o escuta e irá situar a sua arte no mundo [Ziqi]; ou conforme mencionado no Liezi 列 子 [“Clássico da simplicidade e vacuidade” 沖虛真經 chongxu zhenjing]: “Seu coração e o meu são um só”, teria dito Boya, após Ziqi dizer em voz alta qual música passava-lhe na mente, antes de sequer tocá-la. [Cleary, 2011]. Entende-se por isso que, no ideário Ming, o florescimento da amizade verdadeira é o ápice do estudo ao Qin; como também repercute a noção de que haja uma curva de aprendizado, ao longo dos anos, onde o estudo solitário, por vezes técnico, deve enveredar-se por um caminho de abertura ao outro que irá fornecer a medida de apreciação e potência musical necessárias. O amigo é o elo final da cadeia que faz a ligação entre os “amantes do Qin” e seus ancestrais. De outro ângulo, é pela conquista da intimidade [indissociável] entre a performance e a escuta do outro que o vínculo da amizade permanente se estabelece, respectivamente, entre aquele que toca perante a quem se deixa tocar, ou entre aquele que oferece a sua escuta a quem se propõe a escutar; mas não sem dizer o que se sente, pois sabe-se que as palavras exprimidas nascem dos sons conectados em ambos corações. Toda mística da amizade Ming ao Qin emana dessa relação única e simbiótica do músico em busca do outro que irá fertilizar a sua arte, paradoxalmente, ao dar-lhe a medida da vida e do temor pela morte, pois: “Segue-se que surge o sentimento de não suportar a separação, por medo de que, quando o encontro for disperso, será difícil se encontrar novamente. Vida e morte são realmente difíceis de prever. E assim, além de me acautelar, aqui vai a todos os que gostam de amigos: se alguém encontrar uma [boa] pessoa, não a deixe para trás; deve-se considerar o caso de Boya como uma lição”. [Wang, 1815]. Conforme as notas na margem de uma cópia manuscrita do texto supra-referido de Feng Meng Long, “Boya despedaça o seu qin em gratidão por seu melhor amigo”, realizada por Wang Jinwen de Beiping em 1815, um literato Qing do século 19. Hoje esse manuscrito consta do acervo da Biblioteca Capital da China. Quando Boya despedaça o seu Qin no túmulo de Ziqi o pacto entre eles é selado com mais força do que em vida. Além de honrar a memória do amigo, confere a este um ‘poder de animação’ da vida dedicada ao Qin, não obstante, perdida. Por que, então, seguir tocando Qin se todo o apreço pelo indizível, aquilo do qual nada se pode dizer, senão sentir e pulsar a dois, foi chancelado pela morte? Essa era toda a questão dos músicos Ming, no que diz respeito à apreciação do Qin e suas músicas. Diante do que não pode ser posto em palavras, a arte do Qin se firma com força inabalável, cheia de silêncios, cercada de sentidos — e todos os esforços pessoais se traduzem no encontro com o outro, o amigo que irá completar o sentido [e caminho] da prática musical. Muito por isso, resta aos dias de hoje a impressão de que se trata de uma arte que só se pode cultivar verdadeiramente a dois: “Lendo este livro, eu que estou agora com vinte e sete anos, estive pensando: Ziqi era um homem virtuoso famoso na antiguidade, enquanto eu sou apenas um homem rude do presente, então, naturalmente, não posso ter os encontros maravilhosos dos antigos. Mas eu também tenho amigos que gostam de minha crueza, de modo que toda vez que nos encontrarmos, embora não possamos falar sobre ter os mesmos sentimentos que os antigos, ainda podemos compartilhar as alegrias da compreensão sincera e o feliz encontro de palavras.” [Wang, 1815] Uma arte a dois sob a perspectiva da ancestralidade Nessa linha de reflexão, o Qin mediado pela sensibilidade de um e de outro tornase uma arte da escuta, e a performance um meio de expressão, onde dois se relacionam e compartilham aquilo que é intraduzível nas palavras ordinárias, ou, simplesmente, porque amarradas em campos de saber e prática discursivas que nada tem a contribuir que seja “enobrecedor” [seguindo aqui a etimologia do próprio nome do instrumento: guqin 古琴 como a “arte antiga [enobrecedora] do qin”], pois que as palavras não perfazem a ligação com os ancestrais. Entre escuta e expressão está todo o referencial da arte; precisamente, no que concerne ao reconhecimento do valor da antiguidade no outro. A conduta, as palavras, o estilo performático dos músicos apaixonados, devotados um ao outro, coloca em evidência o caráter auto-referente do Qin ao sobrescrever e desenhar as relações de amizade sob a perspectiva do resgate de uma identidade ancestral. Tendo em vista a amizade exemplar de Boya e Ziqi como divisa espiritual, o músico na era Ming reconhecia a necessidade de restabelecer o ‘senso de antiguidade’ que sempre guiou as gerações de intérpretes. Mas a lógica interpessoal desse reconhecimento mútuo — de dois amigos nutridos pela ancestralidade — ela mesma prescinde do saber estruturado no tempo presente, pois refere antes a ‘aura’ que envolve o ‘vínculo amoroso’ do que sua determinação em discurso, a exemplo de uma passagem do texto de Feng Meng Long: "No curso de sua animada conversa, a lua empalideceu, as estrelas escureceram e o primeiro brilho fraco do amanhecer iluminou o céu oriental. Todos os barqueiros se levantaram, prepararam as cordas e as velas e se prepararam para zarpar. Ziqi se levantou para se despedir de Boya. Oferecendo uma taça de vinho a Ziqi, Boya segurou a mão do último e disse com um suspiro: “Meu bom irmão, eu te conheci muito tarde na minha vida, e agora temos que nos separar disso com pressa!” Quando Ziqi ouviu isso, lágrimas caíram de seus olhos na xícara, involuntariamente. Ele terminou o vinho em um gole, encheu outra taça com vinho e ofereceu a Boya em troca. Nenhum deles podia suportar a ideia de se separar. “Não estou pronto para me separar de você ainda, meu irmão", disse Boya.” [Feng Meng Long, 2005, p. 14]. Em termos práticos, é esperado que os músicos se aproximem juntos do que imaginam ter sido o modo de vida dos antigos para que se sintam conectados pelos laços de uma história antiga, semifictícia e semi-transplantada de uma época a outra. Muito porque o pressuposto essencial, para quem caminha universo adentro [do Qin], é justamente a crença de que os antigos estão [e sempre estiveram] conectados ao Qin. Portanto, enveredar-se por seu caminho é exprimir uma ligação inextinguível com os antigos, pelo que vem a sustentar toda uma prática histórica. Para confirmar essa devoção diante de uma linhagem ancestral, a musicóloga Zeyuan Wu, em sua dissertação de mestrado “Playing Antiquity: Qin Musiking and Literati Culture in Late Imperial China [2015]” traz à tona uma passagem do prefácio de autoria de Yang Biaozheng 楊表正 [1520-1590], um acadêmico Ming, estudioso do Qin. No quarto volume de seu célebre compêndio ‘Manual Qin revisado segundo a tradição ortodoxa’ [1585] 重修真傳琴譜 Chongxiu Zhen chuan Qinpu, se lê: “‘O Qin dos antigos ainda pode ser tocado; e ser capaz de tocar uma música antiga [gu 古] é como ouvir as palavras dos antigos.’ Isso [significa] estar em comunhão com a antiguidade remota, imemorial, [taigu 太古]. Felizmente, embora o ethos puro tenha desaparecido, o caminho do Qin [qindao 琴道] ainda existe. Os eruditos e elegantes estudiosos do passado e do presente [gujin 古今] devem prestar atenção a isso.” [Yang Biaozheng 楊表正, vol. 4, p. 256]. No que a autora, Zeyuan Wu, conclui a partir dessa citação: “O qin era considerado um “descendente” direto dos tempos antigos e, portanto, acreditava-se que fazia a ponte entre o presente e o passado remoto.” [...] “Em suma, acreditava-se que o qin era um dos poucos instrumentos musicais valorizados pelos antigos sábios, e que fora ininterruptamente transmitido para as épocas posteriores. Tinha valor e importância especiais porque era um dos poucos instrumentos musicais — senão o único — com o qual as pessoas mais tarde podiam confiar para se comunicar com os antigos e se aproximar do puro ethos do passado remoto. Foi a crença em sua capacidade única de se conectar com os antigos sábios que fez o qin se destacar entre todos os instrumentos musicais”. [Zeyuan Wu, 2015, p. 29] Note-se que a pesquisadora traduziu ao inglês “suoxing chunfeng ji san 所幸淳風 既散” como: “Fortunately, although pure ethos were gone, the Way of qin [qindao 琴道] still exists.”; optando por traduzir chunfeng 淳風 por “ethos puro”. Preferível se fosse “costume autêntico”, no que seguiria o que acredito ser a melhor opção para legibilidade do texto: “Embora os costumes autênticos tenham sido dispersos, felizmente o caminho o qin ainda existe [persiste].” E ainda, ao empregar o adjetivo ‘disperso’, acepção válida para chunfeng 淳風, estaríamos mais próximos da poesia do verso, cujo sentido literal é: “Embora os ventos tenham se dispersado o caminho do Qin ainda persiste”, aludindo assim a dispersão dos ‘costumes’ ou ‘condutas’ [ao Qin], mas não da trilha ou marcas deixadas. É com base nessa confiança mútua depositada sobre o objeto ‘transferencial’ [o Qin] que a prática se apoiava, e ainda hoje se apoia, em contextos diversos ligados à tradição de Boya e Ziqi. O instrumento, enquanto objeto simbólico e representativo dos laços com os antigos, remete a uma série de ramificações indiciais por onde se expande o sentimento de pertencer à antiguidade. Algo que depende diretamente do olhar do outro, da figura do amigo que irá autenticar a simbiose das condutas em consonância aos valores ancestrais. É por isso também que a quebra das relações de amizade, simboliza a perda do objeto transferencial, expresso na simbologia do Qin, que proporcionava tal união. Considerações breves O guqin constitui-se como um instrumento de vinculação afetiva e identitária em relação à história social chinesa, no que visa estabelecer-se como elemento afirmativo primário de pertencimento ancestral. Enquanto objeto representativo do cultivo da amizade verdadeira, ao longo da história antiga, proporciona a expressão de valores e condutas constantemente autenticadas como virtuosas, e ainda presentes nos dias atuais. Justo por isso, serve de ponte simbólica entre passado e presente, fazendo crer em uma ligação inextinguível com os ancestrais. Para além dessas considerações, deve-se destacar ainda o papel da prática musical do guqin na constituição psico-afetiva dos músicos refletida em sua história social. Referências André Ribeiro é professor de musicologia da Universidade de Brasília [UnB], músico, compositor e etnomusicólogo pela Universidade de São Paulo [USP]. Instrumentista de guqin, sob a orientação de Peiyou Chang 張培 幼 e tem como mentor o Mestre Yuan Jung-Ping 袁中平 da Taipei Qinhall. Coordenador do grupo POEM Poéticas Orientais em Música, vinculado ao programa de pós-doutorado do Departamento de Música da Universidade de São Paulo. É pesquisador do LINE [Laboratório Interdisciplinar de Estudos do Som] na Universidade de Brasília. Cofundador e diretor da Guqin Brazil Association 巴西古琴協會 [2019], e diretor musical do Gaoshan Liushui Ensemble 高山流水 de música chinesa desde 2012 e membro da New York Qin Society. É ainda pesquisador na comunidade chinesa em São Paulo, onde conduz pesquisas etnográficas sobre música budista, seus ritos e cerimônias, na comunidade do Templo 中觀寺 de Tzong Kwan. CLEARY, Thomas. Liezi, The Book of Master Lie. Kindle Edition, 2011. FENG, Meng Long. Stories do Caution the World. University of Washington Press, Seattle, 2005. LIEZI. Tratado do Vazio Perfeito. São Paulo: Landy, 1999. THOMPSON, John. Disponível em: http://www.silkqin.com/09hist/qinshi/boya.htm Acesso em 10 ago. 2021. VAN GULIK, Robert. The Lore of Chinese Lute: an essay in the ideology of the Ch’in. Tokyo: Sophia University, 1969. WU, Zeyuan. Playing Antiquity: Qin Musiking and Literati Culture in Late Imperial China. Ohio: Ohio State University, 2015. [tese]. YANG, Biaozheng. Chongxiu zhengwen duiyin jieyao zhenchuan qinpu daquan 重 修 正 文 對 音 捷 要 真 傳 琴 譜 大 全 [Segunda edição do Manual Autêntico e Completo do Qin: com correção das letras e compilação dos sons e instruções rápidas], impressão de xilogravura, 1585. ZHENZHEN Lu, “A Friend of a Lifetime: On Yu Boya smashes his zither to mourn a dear friend, a youth book”. Disponível em: < https://www.csmc.uni-hamburg.de/publications/mom/70en.html >. Acesso em 02 Out. 2020. Documentos históricos SIMA QIAN [109-91 ac.]. Registros do Grande Historiador 太史公書 Taishigong Shu 史記 Shiji: 109 BC-91 BC. Disponível em: < https://ctext.org/shiji/kong-zishi-jia#n6952 >. LUÍS GONZAGA GOMES E AS CHINESICES DE MACAU Bettina Pinheiro Martins Luís Gonzaga Gomes, escritor, tradutor e professor, é uma grande referência macaense no que diz respeito à Sinologia. ‘Filho da terra’ nascido em 1907, contribuiu de diversas formas ao avanço da sinologia portuguesa, traduzindo textos do chinês e escrevendo acerca da cultura chinesa e macaense. Profundo conhecedor de cultura e linguística, foi aluno do preponderante poeta português Camilo Pessanha no Liceu de Macau, cuja influência é também percebida em nomes como Fernando Pessoa e Wenceslau de Moraes. Macau, região singular do território chinês, é dotada de simbolismo próprio. Tendo sido colônia de Portugal por mais de 400 anos, entre a segunda metade do século XVI e o final do século XX, formou suas características culturais a partir das raízes milenares chinesas e da penetração ocidental no território. A sociedade macaense era bastante diversificada cultural e etnicamente, incluindo a maioria chinesa, os portugueses, os mestiços sino-portugueses ‘filhos da terra’ e outras minorias étnicas, além de estrangeiros. Com isso, evidencia-se um pluralismo como característica de Macau que era, portanto, considerado um lugar de “contínuas trocas culturais, afetivas e econômicas” [SIMAS, 2017, p.69]. Estando estrategicamente situada numa zona costeira do território chinês, Macau tornou-se um importante entreposto comercial entre a China e o continente europeu devido à posse efetiva e continua do território por Portugal. Entretanto, apesar da ocupação portuguesa no território dispor do ‘consentimento’ imperial chinês, esta não se caracterizou totalmente nos moldes ocidentais. Segundo Francisco Gonçalves Pereira [1995], a atitude chinesa frente à ‘questão de Macau’ foi fortemente marcada por um pragmatismo político, evidenciando o dualismo lusochinês na vida política, comercial, religiosa e cultural macaense. Nesse sentido, os escritos deixados por Luís ‘Inho’ Gonzaga Gomes demonstram uma clara intenção de enriquecer o diálogo acerca desse intercâmbio cultural. Ciente desse impasse histórico entre Portugal e China, o autor procurava: “esforçadamente compreender o mundo chinês, no qual Macau se inseria, estava igualmente a tentar compreender o Outro, desatando os laços gnoseológicos que apertam as culturas e os homens, e que geram mal estar e mal entendidos. Esta tarefa, que parece ter tomado como uma indeclinável responsabilidade ética, permitiu encaminhar os macaenses e os portugueses metropolitanos não só para uma maior compreensão mútua, reconhecendo raízes e afectos no labirinto da história, mas sobretudo para encorajar todas as tentativas sérias de conhecimento da cultura e civilização chinesas” [ARESTA, 2001, p.1540-1541]. Entretanto, como entender a influência do colonialismo no discurso de Luís Gonzaga Gomes e na formação da identidade macaense? Norteada por essa questão, a presente pesquisa intenciona fazer uma análise historiográfica do livro Chinesices [1952], bem como dos objetivos presentes na narrativa de Gomes, para que através dela possa-se identificar a questão do que é ser macaense e os fatores que determinam essa condição. Essa intenção de pesquisa parte da premissa de que “Luís Gonzaga Gomes era um macaense dono de um poderoso instrumental retórico e científico ocidental, muito embora vivesse inteiramente, como o próprio território de Macau, cercado de China por todos os lados [SERAFIM, 2018, p.160]”. A fonte primária que será usada nesta pesquisa trata-se do livro Chinesices, escrito por Luís Gonzaga Gomes, com a primeira edição tendo sido publicada em 1952. Tratam-se de descrições e narrativas da China e de Macau, que têm por intuito descrever: “elementos da esfera sociocultural chinesa, como as organizações das casas de penhor, o sistema de recrutamento dos funcionários por meio de exames públicos, a história da indústria da seda, incluindo sua lendária origem, a história do uso de ervas chinesas para tratamentos de doenças, as formas de luta chinesa, o sistema da geomancia, os jornais chineses, o ritual de casamento, os jogos e as atividades profissionais dos vendilhões ambulantes e das penteadeiras [SIMAS, 2007, p. 146 apud SERAFIM, 2018, p. 153]”. Originalmente, os contos eram folhetins inseridos diariamente, por Luís, nos jornais ‘A Voz de Macau’ e ‘Notícias de Macau’, cujo intuito era registrar memórias, lendas, hábitos e aspectos da vida e da história de Macau. Nesse sentido, pôde-se observar que os dezoito capítulos fazem referência à oralidade macaense, que perpetua a tradição através desses contos e lendas populares. Esses aspectos regionais podem ser observados na escrita de Gonzaga Gomes já que Chinesices, apesar de ser escrito em português, possui muitas palavras e adjetivos em cantonês [língua oficial de Macau], na intenção de estabelecer um diálogo cultural e ao mesmo tempo transmitir a intenção de uma identidade própria através do vocabulário usado. Das dezoito crônicas presentes no livro, seis delas levam as palavras ‘China’ ou ‘chineses/as’ já no título, o que evidencia o enraizamento da cultura chinesa presente em Macau, mesmo com um extenso período de colonização portuguesa. Ademais, todos os contos tratam de narrativas e lendas sobre a China, não sobre Portugal, e isso se explica pelo fato de que o destinatário da “mensagem” ainda é o leitor médio português com algum interesse pela China e, por isso, esse recorte temático pretende emular um excesso de informação que dê conta de superar o esperado desconhecimento [SERAFIM, 2018, p.153]. Essa curiosidade em relação ao ‘desconhecido’ também explica a enorme relevância do trabalho de Gonzaga Gomes enquanto divulgador e tradutor de imagens da China e de Macau, já que: “[...] muito embora Luís Gomes se fie ao discurso colonial, é também a ele que se devem descrições muito vívidas de costumes chineses muito caros à sua origem macaense. É aí que emerge a força desse contar atemporal, e aí está um impasse fundamental da obra de Luís Gomes: a cisão entre o viver – no que ele é experiência e conhecimento – e o contar, ou a contaminação discursiva [orientalista] desse contar. [SERAFIM, 2018, p.156]”. Nesse sentido, é sabido que o uso das palavras ‘chineses/as’ e ‘China’ carregam a intenção de referir-se ao ‘outro’. Já no capítulo 6, numa rara referência a si mesmo, Gomes escreve ‘nós, portugueses’ [p.46], dando a entender que ele se considera mais próximo ao ocidente do que à ancestralidade chinesa. A própria palavra que dá título ao livro, ‘chinesice’, “espelha algum distanciamento da parte de quem a usa relativamente ao que a palavra refere, tal como indica o seu sufixo –ice [HAN, 2018, p.200]”. Originalmente, o termo deriva da palavra francesa ‘chinoiserie’, que significa uma moda orientalista, presente na Europa entre os séculos 18 e 19, e que evoca ou imita o estilo chinês nas artes. Entretanto, no caso de Luís Gonzaga Gomes, o emprego da palavra ‘chinesice’ possui outra conotação, possivelmente em tom pejorativo, referindo-se a uma cultura sino-portuguesa hibridizada e, sobretudo, orientalista. “Luís Gonzaga Gomes pertence, portanto, a uma espécie particular de cronistas que se detêm às “chinesices” daqueles que atravessavam o portão fronteiriço [as Portas do Cerco] e se instalam em Macau, observando as ruas macaenses, para depois extrair daí alguma comunicação distante da pura maledicência que marca o discurso colonialista português sobre o Oriente [SERAFIM, 2018, p.152]”. Entretanto, apesar desse distanciamento em relação ao ‘outro’, percebe-se o cuidado do autor em manter uma escrita narrativa, o que quase nos transporta às praças públicas e nos aproxima da vida comunitária de Macau. Essa retórica demonstra a intenção de perpetuar a identidade macaense, através da também singular literatura da região. Para Aresta [2001], Luís Gonzaga Gomes estimulava assim o desenvolvimento da apetência pela cultura chinesa, o que: “permitiu encaminhar os macaenses e os portugueses metropolitanos não só para uma maior compreensão mútua, reconhecendo raízes e afectos no labirinto da história, mas sobretudo para encorajar todas as tentativas sérias de conhecimento da cultura e civilização chinesas” [ARESTA, 2001, p.1541]. Com isso, entender a linguística usada por Luís se tornou também um dos objetivos secundários dessa pesquisa, porque a intencionalidade da escrita do autor se mostra por meio dela. A partir dessa perspectiva, a análise historiográfica do livro Chinesices proposta nessa pesquisa vem de encontro com essa intenção de reconstruir historicamente as memórias presentes na narrativa de Luís Gonzaga Gomes, na intenção de compreender a identidade macaense a partir do olhar de um macaense e de uma dinâmica literária singular produzida em Macau. Essa especificidade literária é trabalhada por Hélder Garmes no livro ‘Margens do destino – Macau e a Literatura de Língua Portuguesa, de 2007’, organizado por Mônica Simas, onde o autor demonstra “o quanto, aos poucos, se desenvolveu ali uma memória do território, assim como um “olhar intérprete”, que busca as especificidades daquela cultura [GARMES, 2017 p.177]”. Garmes atenta à peculiaridade de se trabalhar com esse tipo de fonte, uma vez que “são literaturas caracterizadas por aspectos regionais, moldadas [...] pela tensão entre cristãos e “hereges”, entre Ocidente e Oriente [2017, p.180]”. Entretanto, para este pesquisador, “ainda que marcada muitas vezes pelo ponto de vista do colonizador, é possível estudar de forma crítica essa produção literária, pois apresenta conflitos, contradições e impasses que desafiam o leitor mais perspicaz” [2017, p.181]”. Nesse sentido, a presente pesquisa busca explorar essa dualidade entre Oriente e Ocidente, para então traçar as raízes do discurso macaense de Luís Gonzaga Gomes. Com isso, a importância de entender e elucidar esse dualismo luso-chinês explicase quando lemos os escritos de Gonzaga Gomes, visto que é exatamente essa mescla cultural que se configura como característica principal da formação da sociedade e identidade macaense. Han Lili [2018] destaca em sua tese que tais iniciativas de Gomes, de escrever acerca dessa relação entre Portugal e China, são uma medida estratégica de conciliação da comunidade macaense com a comunidade chinesa, além de contribuir para a reflexão e construção da identidade macaense, especialmente ao longo dos últimos séculos, marcados por essas convulsões sociais e políticas no território. Para María Manuela Vale, “os escritores macaenses pertencem a um ‘tipo de portugueses’ que se sentem consequência de um contacto luso-oriental e se apresentam como ‘filhos’ de uma comunidade que, hoje, coloca a si própria problemas de identidade” [2001, p.307]. Daí a intenção sempre presente de destacar uma identidade própria macaense que refere-se, sobretudo, a uma identidade social, “através da qual os macaenses se olham, identificam, categorizam e comparam, numa perspectiva de preservar e guardar os sentimentos de pertença à sua comunidade ao longo da história macaense [HAN, 2018, p.49]”. Nesse sentido, fazse importante atentar ao lugar social onde foi produzido, considerando os aspectos discursivos e simbólicos da vida sociocultural. A literatura, enquanto fonte de pesquisa, nos permite atentar a esses aspectos. Tendo falecido em 1976, Luís Gonzaga Gomes é considerado uma referência na comunidade macaense. Sua considerável colaboração à sinologia é um determinante no que diz respeito às relações luso-chinesas e seu respectivo estudo. Referências Bettina Pinheiro Martins é mestranda em História Política pela UERJ e pesquisadora júnior do Real Gabinete Português de Leitura em parceria com o Instituto Internacional de Macau. A pesquisa aqui apresentada encontra-se em andamento. ARESTA, António. O professor Luís Gonzaga Gomes e a divulgação pedagógica da cultura chinesa. Administração, nº 54, vol. XIV, 2001. GARMES, Hélder. Goa e Macau: às margens do macrossistema literário de língua portuguesa. In: SIMAS, Mônica [org.]. Estudos sobre Macau e outros orientes. 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PERSPECTIVAS DE CIÊNCIA E CIENTISTA NO MANGÁ ASTRO BOY Bruna Navarone Santos Introdução Este estudo pretende analisar as concepções de ciência e cientista no mangá, história em quadrinho japonês, Astro Boy [ 鉄 腕 ア ト ム , Tetsuwan Atomu] escrito e ilustrado pelo desenhista e graduado em medicina Osamu Tezuka entre os anos 1951-1981. Foram selecionados para essa análise os volumes publicados entre os anos 1960 e 1970 que fazem referência ao contexto do final dos anos 1940 e 1950, no que diz respeito às narrativas sobre o investimento dos governos japonês e americano em desenvolvimento científico e tecnológico na construção de usinas nucleares, quando a divulgação de produtos literários e midiáticos nesse território era mediada pela ocupação estadunidense. Essa ocupação era responsável por vetar representações negativas dos Estados Unidos, como as representações das consequências humanas e ambientais do uso da energia atômica [Fuller, 2019]. Também se analisa os capítulos que fazem referência à ideia de ciência japonesa construída com base na concepção ocidental de desenvolvimento e fortemente divulgada pelos Estados Unidos no Japão [Sasaki, 2010]. Na seção a seguir, apresenta-se alguns estudos sobre as representações de ciência e cientista em mídias ocidentais durante século XX e como essas representações foram apropriadas pelo enredo do mangá japonês Astro Boy, no qual se caracteriza tanto o sentido histórico de ciência ocidental como também o sentido ressignificado pela concepção de ciência japonesa. Concepções de ciência e cientista na cultura popular ocidental e japonesa No que diz respeito aos estudos que analisam as representações de cientista na cultura ocidental, principalmente em mídias de entretenimento, o pesquisador David Kirby [2017] identifica que ainda predomina a ideia de cientista representado por um homem branco que veste jaleco e realiza experimentos em laboratório. Ele também observa que os significados culturais dessas mídias podem impactar conhecimentos, crenças, percepções e atitudes das pessoas em relação aos conhecimentos e práticas científicas [Kirby, 2017]. Esse autor também apresenta outros estudos que abordam as concepções de ciência e cientista presentes na literatura e nos filmes da cultura ocidental no século XX. Dentre esses, Kirby [2017] menciona o estudo da pesquisadora Roslynn Haynes [2003] que observa nessas produções culturais ocidentais a predominância do estereótipo de cientista cruel que produz instabilidade na ordem social com seus conhecimentos e práticas científicas, causando uma condição de vulnerabilidade nas pessoas quando essas não conseguem interpretar os códigos da linguagem científica que são necessários para compreender essas práticas científicas e os impactos de suas produções. A pesquisadora também ressalta o estereótipo do cientista envolvido no contexto de construção da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial e Guerra Fria, representado como alguém despreocupado com os impactos dessa tecnologia científica e suas consequências humanas [Haynes, 2003]. Diante dessa reflexão, Kirby [2017] interpreta que essa representação da ciência como algo para ser temido também se deve aos impactos da tecnologia científica da bomba atômica que reverberaram nos anos 1950. No que diz respeito à representação de ciência e cientista em animações, as pesquisadoras Gabriela Reznik e Luisa Massarani [2019] analisam filmes de curtametragem que abordam temas de ciência e tecnologia no Festival Anima Mundi entre 1993 a 2013. Elas identificam que os enfoques narrativos desses filmes retratam desenvolvimentos científicos, tecnológicos, questões éticas e explicação de processos científicos. Ainda, as pesquisadoras observam que a maioria dessas produções representam os cientistas como homens brancos, adultos, vestindo jaleco e praticando atividades científicas em laboratórios. As autoras interpretam que a maior parte dessas animações representam o fazer científico como uma atividade individual, realizada de acordo com a genialidade do cientista e independente da influência de suas relações interpessoais. A partir dessas representações, as pesquisadoras compreendem que as concepções de um perfil de cientista, como esse deve se comportar e praticar ciência, estão baseadas nas formas como as pessoas interpretam os significados de ciência e cientista com base em juízos de valor, crenças e práticas sociais convencionadas numa sociedade. As pesquisadoras também argumentam que esses significados podem ser comunicados em símbolos e metáforas que integram esse imaginário científico [Resnik; Massarani, 2019]. Alguns autores que analisam o enredo de Astro Boy também observam a presença de símbolos e metáforas referentes aos acontecimentos históricos, como as consequências do desenvolvimento científico e tecnológico durante o período da Segunda Guerra Mundial e o Pós-Segunda Guerra no Japão [Gibson, 2012; Budianto, 2018]. Nesse sentido, a pesquisadora Alicia Gibson [2012] observa que o personagem Astro Boy, representado como símbolo de modernização do desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade japonesa, realiza as suas ações movidas pela energia nuclear. O pesquisador Frank Fuller [2019] também apresenta como o mangá Astro Boy retrata metaforicamente esse evento do desenvolvimento científico e tecnológico, comunicando determinadas emoções que podem representar as reações de alguns japoneses diante dos impactos manifestados nos ataques atômicos. É importante ressaltar que essa ideia de desenvolvimento tem como marco o discurso do presidente dos Estados Unidos, Harry Truman, em 1949. Truman alegava que era preciso intervir nas nações consideradas economicamente atrasadas e rurais. Nessa circunstância, algumas agências internacionais foram convocadas para investirem em estudos e projetos para proporem essas soluções [Castro, 2002]. Nesse sentido, Truman caracterizava as bombas atômicas como um avanço tecnológico [Gibson, 2013]. No que diz respeito às representações no mangá sobre a energia atômica, com base em Gibson [2012] é possível entender a palavra átomo [Atomu, アトム] no enredo de Astro Boy como uma metáfora para se referir ao seu poder e possibilidades de utilizá-lo mediante a tecnologia científica. Dentre essas possibilidades, Gibson [2012] e Fuller [2019] reconhecem que essas provocaram o medo quando foram associadas ao poder da bomba atômica. Nesse sentido, ambos os autores analisam o mangá como uma produção importante para expor narrativas sobre as possíveis experiências de japoneses com os impactos dessa tecnologia científica e diante da censura instaurada pela ocupação estadunidense entre o final dos anos 1940 e 1950 [Gibson, 2012; Fuller, 2019]. Esses pesquisadores também argumentam que a censura proibiu os sobreviventes ao ataque das bombas atômicas de publicarem sobre suas experiências [Gibson, 2012; Fuller, 2019]. Fuller [2019] ressalta que as autoridades dessa ocupação impediam publicações de críticas às autoridades dos Estados Unidos e privilegiavam aquelas que encorajavam o perdão e esquecimento das consequências da Segunda Guerra Mundial. O pesquisador também reconhece que essa censura também influenciou as produções dos capítulos do mangá Astro Boy após o fim dessa ocupação, tornando-se um critério a ser obedecido para que o mangá continuasse sendo comercializado no Estados Unidos [Fuller, 2019]. Gibson [2013] interpreta que dentre os diferentes interesses representados pelos cientistas nesse mangá, como as motivações para construírem tecnologias científicas, podem refletir o interesse no modelo de desenvolvimento por controlar os recursos naturais. Entende-se que esse é um modo de intervenção e de produção que preza pelo consumo dos recursos no ambiente [Castro, 2002] sem reflexão sobre os possíveis impactos para as pessoas e o ambiente em suas dimensões relacionadas ao senso de pertencimento, bem-estar, reprodução social, econômica e cultural de seus grupos [Layrargues; Puggian, 2018]. A noção de ciência motivada por esse modelo de desenvolvimento é apresentada pelo pesquisador Chikara Sasaki como uma noção ocidental apropriada pelo governo japonês. Sasaki [2010] revela que desde o período da Restauração Meiji, na segunda metade do século XIX, o Japão tentou introduzir a ciência ocidental moderna que nessa época prezava pelos métodos matemáticos, percepção mecanicista da natureza, consolidação de instituições de ensino superior e pesquisa para produzirem resultados científicos que embasassem a produção tecnológica para modernização dessa sociedade. Esse pesquisador entende que a ciência, realizada nesse período, significa para o ocidente o estudo que investiga as leis da natureza. Enquanto a tecnologia é definida nesse mesmo período como uma técnica para confeccionar objetos ou elaborar mecanismos independente de sua utilização com algum embasamento científico. O pesquisador Sasaki [2010] interpreta que esse processo de apropriação dessa noção ocidental de ciência e tecnologia construiu uma noção de ciência específica no Japão. Essa relaciona ciência e tecnologia, tendo como modelo os resultados de ciências experimentais construídas durante a Segunda Revolução Industrial e que foram apropriadas na produção de tecnologias. Por exemplo, esses resultados experimentais foram apropriados na indústria química e indústria de energia elétrica enquanto tecnologias baseadas na ciência [Sasaki, 2010]. Noções de Ciência e Cientista no Astro Boy No que diz respeito aos personagens que participam do enredo nos cinco capítulos do mangá Astro Boy, aqueles que mais aparecem envolvidos com as repercussões de tecnologias científicas são: cientista Doutor Tenma, um cientista que ocupa o cargo de diretor no Ministério da Ciência e que utiliza os recursos desse Ministério para criar o Astro Boy à semelhança de seu filho falecido e chamado Tobio; androide Astro Boy, considerado símbolo do avanço científico e tecnológico numa sociedade japonesa futurística onde busca conviver com os seres humanos de forma à ajudá-los com os conflitos provocados pelas tecnologias científicas; professor e cientista Ochanomizu, um profissional responsável por ensinar o Astro Boy para ter controle sobre sua força e promover o bem-estar das pessoas; duquesa Anta Maria, uma liderança no território da Lua onde comanda um cientista para construir ciborgues capazes de matar os japoneses que desejam explorar esse território; androide Rag, o primeiro eleito como presidente e com o objetivo de incentivar relações mais harmoniosas entre humanos e androides; extraterrestre de um planeta chamado Alsoa 12 que busca recolher as reservas de água do planeta terra, utilizando robôs para recolhê-las e levá-las para o seu planeta; finalmente, apresenta-se o ilusionista Kino, um androide que utiliza conhecimentos científicos para fazer truques de ilusão com a intenção de alegrar os seres humanos. Na seção a seguir se propõe uma breve apresentação sobre os cinco capítulos no primeiro e no segundo volume do mangá Astro Boy. Busca-se interpretar como as representações de ciência e cientista nesses capítulos tanto se apropriam da concepção ocidental de ciência baseada na ideia de desenvolvimento como também problematizam as possibilidades de utilização de tecnologias baseadas nessa concepção e suas consequências humanas e ambientais. Primeiro capítulo: The Birth of Astro Boy No primeiro volume do mangá Astro Boy foram analisados todos os seus três capítulos. O primeiro apresenta uma sociedade japonesa situada no século XXI que produz androides que devem trabalhar para os seres humanos. Esses androides foram construídos com base numa tecnologia chamada cérebro eletrônico e produzida em 1978 por um professor e cientista americano, a qual posteriormente foi aprimorada por um professor e cientista japonês em 1982. Dentre esses androides existe um modelo considerado inovador no que diz respeito à tecnologia que o permite se assemelhar ao ser humano em sua aparência e na forma de se comunicar emocionalmente. Esse é o personagem Àtomo [Atomu,アトム], popularizado nos Estados Unidos com o nome de Astro Boy, criado pelo doutor Tenma e sua equipe. Esses cientistas são representados como cientistas que trabalham para o governo japonês no Ministério da Ciência onde Tenma é o diretor. Na ilustração a seguir se apresenta o diretor motivado pelo desejo de construir um androide semelhante ao seu filho Tobio que faleceu num acidente automobilístico, tendo coagido outros cientistas do Ministério para desenvolverem coletivamente essa tecnologia [Tezuka, 2002a]: Figura 1- Capítulo 1, The Birth of Astro Boy, página 23 [1975] O doutor Tenma começa a conviver com o Astro Boy como se esse fosse seu filho, chamando-o por Tobio, ensinando-o a brincar e estudar como se realmente fosse uma criança. A ilustração a seguir mostra o momento quando o doutor percebe que o androide não apresenta as características humanas que desejava, como o crescimento físico. Nessa situação, ele é vendido para um dono de circo que pretendia lucrar com as performances do androide lutando com outros robôs [Tezuka, 2002a]: Figura 2 – capítulo 1, The Birth of Astro Boy, página 28 [1975] No desenho a seguir se apresenta uma das performances de Astro Boy no circo enquanto o professor Ochanomizu, novo diretor do Ministério da Ciência após a saída do doutor Tenma, busca procurá-lo. Ele convida o androide para conviver com ele quando oferece a oportunidade de estudar numa escola e aprimorar sua força, tendo o dever de utilizá-la apenas para garantir e promover o bem-estar das pessoas [Tezuka, 2002a]: Figura 3 - capítulo 1, The Birth of Astro Boy, página 30 [1975] As atitudes do doutor Tenma descritas acima, enquanto diretor do Ministério da Ciência e pai que sofreu pelo falecimento seu filho, podem provocar o seguinte questionamento: qual é a concepção de ciência e os interesses que podem orientar as produções de tecnologias científicas? Percebe-se que o doutor Tenma utilizou conhecimentos e práticas científicas, investidas com recursos materiais e humanos desse Ministério da Ciência, para construir um androide que a princípio deveria ser programado para conviver e trabalhar para os seres humanos. Contudo, a construção desse androide também foi orientada pelo interesse do Tenma em criá-lo à semelhança de seu filho, possivelmente para mediar o sentimento de luto pelo falecimento desse. Segundo capítulo: The Hot Dog Corps No segundo capítulo, conforme o Astro Boy convive com os humanos numa escola onde estuda, o androide começa a ser convocado para lidar com cientistas que utilizam a tecnologia científica motivados por interesses pessoais. Esses interesses geralmente estão relacionados ao domínio de territórios e seus recursos naturais. Por exemplo, na imagem a seguir, apresenta-se uma duquesa chamada Anta Maria que deseja dominar a Lua. Ela justifica que essa a pertence devido à sua mãe ter sido a primeira astronauta do governo soviético à chegar na Lua e ter desaparecido nesse lugar. Para dominar esse território, a duquesa promove a captura de cachorros para utilizar o sistema nervoso desses animais na fabricação de robôs que possam impedir os japoneses de tomarem esse território [Tezuka, 2002a]: Figura 4 – capítulo 2, The Hot Dog Corps, página 70 [1961] Astro Boy decide investigar o caso de um cachorro capturado pela Duquesa, chamado Pero, pois o professor e cientista que adotou Astro Boy pediu sua ajuda para investigar as intenções dessa duquesa e a origem desses robôs que são programados para assassinarem os japoneses que se aproximaram da Lua. Na imagem a seguir se apresenta o médico que trabalha para a duquesa. Ele admite que devido ao fato dos cachorros poderem atacar seres humanos, seu sistema nervoso foi implantado em robôs para permitir que esses sejam programados para feri-los. Na próxima ilustração, abaixo, o professor Ochanomizu também identifica em seu laboratório o uso desse sistema nervoso em robôs [Tezuka, 2002a]: Figura 5, capítulo 2, The Hot Dog Corps, página 97 [1961] Figura 6, capítulo 2, The Hot Dog Corps, página 113 [1961] Nessa investigação, Astro Boy descobre que o médico e cientista responsável por produzir esses tipos de robôs se chama Junkovitch. Na imagem a seguir, um desses robôs questiona o fato desse médico ter os programado para atenderem interesses alheios que comprometem a sua felicidade. Nessa imagem se pode interpretar como as intenções do cientista se refletem nas atitudes dos robôs, refletindo que as repercussões da tecnologia científica também estão condicionadas às intenções que modulam sua utilização na sociedade [Tezuka, 2002a]: Figura 7, capítulo 2, The Hot Dog Corps, página 194 [1961] Terceiro capítulo: Plant People O terceiro capítulo apresenta que o androide Astro Boy, além de lidar com humanos que buscam utilizar tecnologia científica mobilizados por interesses pessoais, assim como o doutor Tenma a utilizou para mediar o sofrimento pelo falecimento de seu filho e a duquesa para realizar seu interesse em dominar um território, também precisou lidar com um extraterrestre de um planeta chamado Alsoa 12. Na ilustração a seguir, revela-se que esse reivindica construir uma base próxima à casa onde estava Astro Boy. Esse extraterrestre pretende recolher metade das reservas de água do planeta terra, utilizando robôs para recolhê-la e levá-la para o seu planeta que tem sua existência ameaçada devido a falta desse recurso natural [Tezuka, 2002a]: Figura 8, capítulo 3, Plant People, página 2014 [1961] A partir da ajuda de um outro alienígena desse planeta, mantido prisioneiro dentro da nave, está ilustrado na imagem a seguir que o Astro Boy consegue destruir os robôs e devolver as reservas de água ao planeta terra. Essa narrativa também permite interpretar como uma tecnologia cientifica pode ser utilizada para disputar territórios e controlar seus recursos, quando estrangeiros os reivindicam [Tezuka, 2002a]: Figura 9, capítulo 3, Plant People, página 219 [1961] Quarto capítulo: His Highness Deadcross No que concerne ao 2º volume do mangá, foram analisados o quarto e o quinto capítulo. No quarto capítulo, Astro Boy tem a missão não só de mediar conflitos causados por robôs comandados por seres humanos, mas também de ajudar um androide a ocupar espaços de poder na sociedade. Nessa circustância, Astro Boy é convocado por um androide chamado Rag. Esse é considerado o primeiro androide a ser eleito como presidente quando robôs e androides também puderam elegê-lo. Na ilustração a seguir, Rag solicita ao Astro Boy para que descubra quais são os humanos de uma sociedade secreta chamada Deadcross, liderada por um cientista com esse codinome, que ameaça Rag por ocupar esse cargo. O presidente enfatiza que precisa solucionar essas ameaças sem ferir as pessoas, ressaltando que embora os androides tenham sido criados para servir os humanos, cada vez mais esses têm autonomia para ocupar os papéis que as pessoas realizam na sociedade [Tezuka, 2002b]: Figura 10, capítulo 4, His Highness Deadcross, página 246 [1960] Nessa tentativa de ajudar o androide a permanecer no cargo de liderança, Astro Boy descobre que esse foi criado à semelhança do próprio cientista que o construiu. Na ilustração a seguir, revela-se que essa criação teve como motivação programar um androide para ajudar o cientista à ser eleito como presidente. Contudo, conforme esse androide começou a estudar por conta própria, também começou a problematizar sua própria condição de submissão aos interesses do seu criador e decidiu por concorrer a eleição como presidente para possibilitar que outros androides superem essa condição de submissão aos interesses alheios [Tezuka, 2002b]: Figura 11, capítulo 4, His Highness Deadcross, página 284 [1960] Na próxima imagem se apresenta o professor e cientista Ochanomizu num diálogo com o outro cientista que criou Rag, incentivando-o a reconhecer que os robôs não devem ser mais tratados como escravos e que o cientista deveria estar contente por sua própria criação ter conseguido conquistar o cargo de presidente. Esse cientista não concorda com o Ochanomizu e tenta se matar, pulando de um prédio. Durante a queda, Astro Boy o salva e o cientista desiste de continuar ameaçando Rag [Tezuka, 2002b]: Figura 12, capítulo 4, His Highness Deadcross, página 315 [1960] Quinto capítulo: The Third Magician Ainda no 2º volume desse mangá, no quinto capítulo, Astro Boy precisa ajudar um androide que também está tendo seu papel na sociedade problematizado enquanto trabalha fazendo apresentações públicas de truques. Ele se chama Kino e diz trabalhar dessa forma para deixar os humanos felizes, principalmente com o truque de atravessar paredes que é o mais admirado pelos humanos. Na próxima imagem, revela-se que por causa desse truque o mágico Kino está sendo ameaçado por um professor e cientista chamado Noh Uno. Esse pretende programá-lo para utilizar essa técnica do truque e ganhar dinheiro com roubos, por exemplo, de pinturas que valem muito dinheiro [Tezuka, 2002b]: Figura 13, capítulo 5, The Third Magician, página 335 [1961-1962] Na imagem a seguir, Astro Boy tenta convencer o androide já programado pelo Uno para ir ao Ministério da Ciência onde os cientistas podem repará-lo. Ao mesmo tempo os policiais desconfiam que o Astro Boy está favorecendo os roubos dos quadros e, por essa razão, não querem contar com a ajuda desse androide para solucionar este crime [Tezuka, 2002b]: Figura 14, capítulo 5, The Third Magician, página 363 [1961-1962] Na seguinte imagem, os policiais também planejavam recorrer ao Ministério da Ciência para reclamar sobre o androide que roubou os quadros e, como punição, exigir uma lei que obrigue a fabricação de cérebros eletrônicos em robôs para que sejam obedientes aos humanos. Contudo, os policiais ainda não sabiam que essa tecnologia científica já estava sendo utilizada para atender as intenções de um cientista [Tezuka, 2002b]: Figura 15, capítulo 5, The Third Magician, página 363 [1961-1962] Astro Boy descobre que ao invés de programar Kino para roubar, o professorcientista Noh Uno criou um androide idêntico ao Kino. As duas imagens a seguir mostram que Astro Boy reencontra o próprio Kino tendo o plano de capturar sua cópia quando descobre que os truques do ilusionista são baseados em conhecimentos científicos. Neste sentido, Kino revela que utiliza um gás que afeta os olhos humanos e dificulta para enxergar, permitindo ao androide pular para o outro lado do muro sem ser notado pelos policiais [Tezuka, 2002b]: Figura 16, capítulo 5, The Third Magician, página 378 [1961-1962] Figura 17, capítulo 5, The Third Magician, página 380 [1961-1962] Na seguinte ilustração, retrata-se que os policiais desistem de exigir a fabricação de cérebros eletrônicos para tornar os androides obedientes quando o professorcientista Ochanomizu explicou que o cientista Uno criou uma réplica de Kino para obedecê-lo, assegurando que o Kino original trouxe sua réplica para que Ochanomizu o modificasse [Tezuka, 2002b]: Figura 18, capítulo 5, The Third Magician, página 404 [1961-1962] O fato de Astro Boy e outros androides representarem uma tecnologia científica que sempre precisa controlar sua força e possíveis impactos, quando interagem com as pessoas e quando são programados para realizarem interesses humanos, pode retratar uma crítica quanto a ideia do desenvolvimento que apresenta as tecnologias científicas apenas como positivas para a sociedade, sem mencionar suas possíveis consequências. Assim como o personagem Astro Boy pode representar uma forma de ressignificar as consequências desse desenvolvimento científico e tecnológico, que impactou as vidas cotidianas nessa sociedade japonesa, quando os androides retratam uma possibilidade de promover o bem-estar das pessoas [Fuller, 2015]. Referências Bruna Navarone Santos é Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]. Mestranda em Ensino em Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz [PPGEBS/IOC/Fiocruz]. E-mail: bnavarone@gmail.com. BUDIANTO, Firman. Representation of Science, Technology, and Memory of Postwar Japan in Japanese Anime. Lingua Cultura, v. 12, n. 3, p. 215-220, 2018. CASTRO, João Paulo Macedo. Desenvolvimento e tecnologia de controle populacional. In: LIMA, A.C.S. [Org.]. Gestar e gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. 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TEZUKA, Osamu. Astro Boy. Vol. 2. Tradução Frederik L. Schodt. Dark Horse Comics. Online, 2002b. p.223-424. REPRESENTAÇÕES DOS SENTIDOS DE IKIGAI NO ANIMÊ CELLS AT WORK! Bruna Navarone Santos Introdução Numa determinada sociedade, na qual os valores morais dos indivíduos costumam ser classificados pelo sucesso individual, podemos sentir que apenas alcançamos algum prestígio quando conseguimos a promoção no emprego ou algum lucro com determinado empreendimento. Pode-se encontrar outras sociedades com valores e normas diferentes, onde o senso de comunidade e pertencimento perpassa os trabalhos realizados por cada indivíduo. Inclusive, essa forma de sociedade está representada no animê Cells at Work! [はたらく細胞, Hataraku Saibō] lançado em 2018, dirigido e escrito por Kenichi Suzuki, enquanto uma adaptação do mangá homônimo produzido pela Akane Shimizu e lançado em 2015. Compreende-se que esse senso de comunidade, representado nessa animação japonesa e que também se preocupa com os impactos causados no ambiente onde os personagens estão inseridos, tem relação com uma visão de mundo oriental que considera todos os elementos da natureza serem dotados de espírito. Nessa perspectiva, considerando os seres humanos como continuidade de divindades que habitam a natureza, acredita-se que as pessoas também seriam dotadas de espírito. Essa visão de mundo também apresenta relação com o Xintoísmo enquanto um sistema de valores que preza pelo culto à natureza e uma matriz cultural que assimila elementos de culturas estrangeiras [Sasaki, 2011]. Como exemplo da representação dessa assimilação na narrativa do animê Cells at Work! nota-se que os personagens que simulam as funções de cada célula do corpo também representam a função especializada que desempenha cada indivíduo na sociedade moderna ocidental e que caracteriza seu lugar nessa sociedade [Durkheim, 1972]. Para garantir a coesão social naquela sociedade descrita no animê, representada como um corpo humano, a coesão social está assentada tanto nos códigos e regras de conduta que aproximam os indivíduos apesar das diferenças entre cada função especializada que exercem [Durkheim, 1972] como também no senso de interdependência e importância típico dos costumes culturais no Japão a partir dos quais os personagens dedicam cuidados ao bem-estar daquele ambiente [Watanabe, 1974; Sakai, 2019] onde usufruem dos recursos necessários para sustentação dos vínculos com àquela sociedade. Nesse sentido, essa animação japonesa representa os trabalhos especializados de diferentes células do corpo humano e na forma de personagens antropomorfizados, tendo como protagonistas um glóbulo vermelho e um glóbulo branco. A narrativa dessa animação japonesa pode provocar uma identificação com o interlocutor de forma que esse se aproprie dos conhecimentos apresentados [Luyten, 2000]. Dessa forma, o animê utiliza signos tanto da cultura ocidental, como as técnicas de enquadramento cinematográfico e animação para provocar movimento e passagem do tempo nessas histórias [Linsigen, 2007] quanto utiliza os signos da cultura japonesa presentes na ausência de linguagem ou narrativa explicativa que valoriza as possibilidades de sentido a serem construídos na interação do interlocutor [Okano, 2014] com as semânticas corporais comunicadas em expressões faciais, posturas e gestos por esses personagens [Le Breton, 2019]. Esses signos permitem ao interlocutor estabelecer uma relação com as expressões dos personagens, como o desenho acentuado dos olhos [Luyten, 2000], proporcionando situações e sensações que podem remeter às emoções, lembranças e desejos do interlocutor. Essa narrativa da animação japonesa também pode comunicar conhecimentos, valores e costumes da cultura japonesa e da cultura ocidental enquanto um produto de exportação que abarca diversos mercados como os dos Estados Unidos, México e Brasil [Coêlho; Nascimento, 2010]. Nesse caso, quando temos o primeiro contato com essa animação japonesa, podemos pensar na seguinte questão: como os personagens podem sensibilizar o interlocutor inserido na cultura ocidental para refletir sobre questões do próprio cotidiano? Signos da cultura japonesa e cultura ocidental na animação Nessa animação japonesa Cells at Work! os personagens representam as funções de algumas células, como se fossem pessoas que exercem funções profissionais situadas num corpo humano. Essas células também representam grupos sociais que possuem práticas, normas e expectativas. Compreende-se que o potencial de sensibilização dessa arte acontece porque está operando com textos que consideram signos típicos tanto da cultura japonesa como também da cultura ocidental tendo em vista realizar uma identificação com o interlocutor, mediante os discursos do cotidiano sobre experiências possíveis ou desejáveis de serem vivenciadas por esse [Linsigen, 2007; Coêlho; Nascimento, 2010]. Esses textos podem ser apreensões sobre pensamentos, vontades e intenções que são comunicados pelos signos. Enquanto os signos podem ser instrumentos caracterizados em imagens, palavras e gestos que comunicam e medeiam a relação interpessoal dos indivíduos entre si [Bakhtin, 1997]. Ainda como exemplo da construção desse processo de sensibilização e identificação com os possíveis interlocutores, o animê Cells at Work! proporciona o desenvolvimento das trajetórias de dois personagens principais: a personagem AE-3803 que, desde quando era um eritroblasto situado numa fase de desenvolvimento representada como se fosse a sua infância, apresenta dificuldades para lidar com as etapas de maturação necessárias para se tornar um glóbulo vermelho. Apesar desses obstáculos, a personagem tende a considerar essas dificuldades como oportunidade para aprimorar suas funções e aprender lições com as hemácias já especializadas e experientes. Por causa desse histórico de dificuldades durante o seu desenvolvimento, ela tende a ser tratada como desajeitada pelos demais colegas. Por exemplo, AE-3803 tem muita dificuldade em se orientar e localizar os lugares onde precisar chegar. Quando ela era apenas um eritroblasto e estava numa espécie de sala de aula, participou de uma simulação de fuga e perdeu-se na medula óssea onde ela encontrou uma bactéria que acreditava ser seu professor disfarçado. Contudo, ela descobriu que era uma verdadeira bactéria que queria atacá-la e, nesse momento, um mielócito apareceu para salvála. Por fim, também apareceu um neutrófilo que eliminou a bactéria e separou ambas as células imaturas. Nesse momento, eles combinaram entre si para se encontrarem novamente. Embora as chances fossem mínimas por causa da enorme quantidade de células que circulam no corpo humano. Figura 1: AE-3803, Glóbulo Vermelho/Kenichi Suzuki Esse mielócito que buscou ajudar aquele eritroblasto se torna o glóbulo branco U1146, especificamente um neutrófilo capaz de eliminar vírus e bactérias. Esse glóbulo também consegue tornar mais eficaz e seguro o processo de transporte de gás oxigênio e gás carbônico realizado pelos glóbulos vermelhos. Além desse papel, ele também realiza um papel de conselheiro e protetor da AE-3803 quando também a orienta sobre os caminhos mais acessíveis para que ela realize aquele transporte. Nesses momentos em que as células mais precisam de proteção e orientação nesse percurso, o glóbulo branco está sempre disposto a sacrificar sua própria vida para garantir que cada célula realize sua função especializada e mantenha a homeostase do corpo humano. Figura 2: U-1146, Glóbulo Branco/Kenichi Suzuki Quando essa narrativa da animação se situa durante a infância de ambas as células, nota-se que aquela relação de cuidado e encorajamento tem sido construída desde quando eram células que não possuíam uma função especializada pelo processo de diferenciação e maturação conhecido como hematopoiese. Esse processo também representa o processo de amadurecimento dos personagens desde as fases categorizadas como a infância, a adolescência e a fase adulta, possibilitando um sentimento de empatia com esses personagens que, durante essa trajetória, sentem medo, coragem, curiosidade, paixão e amizade enquanto experiências que podem ser verossímeis. Figura 3: AE-3803, Eritroblasto;U-1146, Mielócito/Kenichi Suzuki Singularidades do Ikigai em diferentes trajetórias A partir dessa descrição sucinta sobre as trajetórias de ambas as células, pode-se compreendê-las enquanto comunicadas por atitudes, crenças e valores representados na narrativa do animê e que se aproximam da noção cultural Ikigai. Para abordar essa concepção própria da cultura japonesa, podemos considerar como exemplo o fato de ambos os personagens realizarem trabalhos favoráveis ao bemestar daquele corpo humano representado como um ambiente que integra uma forma de sociedade. O fato de realizarem essas funções pode ser justificado por uma motivação relacionada ao Ikigai, geralmente definido no senso comum como aquilo que descreve “os prazeres e os sentidos que motivam a viver” [Mogi, 2017, p.10, minha tradução]. Esse Ikigai tem sido identificado por pesquisadores como o antropólogo Gordon Matthew [1996] enquanto um fenômeno presente na ênfase da interdependência pessoal comunicada pelos japoneses, a partir de suas histórias de vida que foram analisadas em diferentes estudos que apontam a pouca ênfase atribuída à independência tão valorizada na cultura ocidental [Gordon, 1996]. De acordo com o neurocientista japonês Ken Mogi, os sentidos de Ikigai podem ter a ver com experiências cognitivas e comportamentais pelas quais hábitos e valores são organizados para realização cuidadosa e gradual de determinado objeto de interesse. Esse objeto de interesse geralmente está relacionado com algum trabalho que é capaz de imergir as pessoas no momento presente, durante a realização das atividades desse trabalho, e sem a intenção de receberem reconhecimento imediato. Assim, esse processo de realização de Ikigai pode proporcionar uma autoconsciência da contribuição que esse trabalho terá na vida dos outros. Essa autoconsciência pode ser encontrada durante o desenvolvimento do glóbulo vermelho, quando ela reconhece que embora tenha dificuldades de realizar o seu trabalho ainda assim busca aprimorá-lo enquanto valoriza o processo de experiências que implicam encontros e aprendizados com as células mais experientes. Nesse caso, o glóbulo vermelho tem consciência que cada um desses encontros são experiências transitórias pois vivencia constantemente a morte e desencontro das células. Essa noção também pode remeter à noção de Caminho [Gonçalves, 2004] enquanto um processo que, durante a trajetória do indivíduo, pode permitir que aprenda e desenvolva novos conhecimentos e atitudes de maneira não linear. Nesse sentido, o Ikigai também se aproxima dessa noção porque valoriza a autoconsciência do indivíduo nesse processo de experiências que podem aprimorar suas habilidades, valorizando a interdependência com o outro como parte desse Ikigai, diante de um propósito a ser alcançado e que se torna o próprio processo da realização desse percurso [Okano, 2013]. O antropólogo Gordon Mathews acrescenta que esses sentidos de Ikigai podem ser diferentes de acordo com as vivências de moças e rapazes japoneses, com diferentes faixas etárias, e os contextos históricos onde estão situados. Como exemplo desse fenômeno, estudos verificam que as mulheres japonesas tendem a considerar a família como o seu Ikigai enquanto os homens consideram o trabalho. No entanto, o aumento da expectativa de vida no Japão também influenciou outros possíveis sentidos de Ikigai ao mobilizar os aposentados e as aposentadas à construírem um senso de comprometimento e pertença para além das relações com a família, o grupo de colegas de trabalho e as empresas, prezando pelo exercício de hobbies como forma de realizar o seu Ikigai. Independente dos diferentes sentidos que Ikigai pode apresentar nas diversas trajetórias dos japoneses, possuem em comum tanto o senso de compromisso do eu com a sociedade e ambiente onde estão inseridos quanto a responsabilidade com a escolha individual em dedicar seus esforços ou não nesse compromisso [Gordon, 1996]. Ainda como exemplo desse compromisso e responsabilidade representados na narrativa de Cells at Work! tem o trabalho realizado coletivamente pelas plaquetas que, junto com a cooperação das células que exercem suas funções especializadas, conseguem formar coágulos para retenção de hemorragias. Figura 4: Plaquetas/Kenichi Suzuki Diante de todo esse compromisso e responsabilidade das células com as suas funções especializadas, será que existe espaço para elas expressarem alguns desejos? Durante o desenvolvimento da narrativa dessa animação, acontecem alguns momentos entre o glóbulo branco e o glóbulo vermelho que remetem a uma declaração romântica quando, de repente, acontece alguma demanda que requer à ambos retomarem as suas funções. Figura 5: AE-3803, Glóbulo Branco;U-1146, Glóbulo Vermelho/Kenichi Suzuki Percebe-se que durante o amadurecimento de ambas as células, as exigências para que assumam um papel nessa sociedade que atenda as normas e as expectativas sociais podem ter impossibilitado a concretização desse desejo amoroso que implica abrir mão das suas funções especializadas. Nesse caso, o animê Cells at Work! possibilita entender que as mudanças dos sentidos de Ikigai podem representar os esforços das pessoas para expressarem seus desejos e paixões. Nessas circunstâncias, embora não possam controlar os fatos sociais, consideram suas vivências enquanto possibilidades que ainda podem realizar seus sonhos. Referências Bruna Navarone Santos é Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ]. Mestranda em Ensino em Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz [PGEBS/IOC/Fiocruz]. E-mail: bnavarone@gmail.com. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 1997. COÊLHO, Célia Tamara.; NASCIMENTO, Elvira Lopes. Mangá: uma ferramenta didática para multiletramentos. In: Seminário de Pesquisa em Ciências Humanas, 8., 2010, Londrina, PR. Anais... Londrina: UEL, 2010. p.389-408. DURKHEIM, Émile. O suicídio: estudo sociológico. São Paulo: Abril Cultural, 1972. GONÇALVES, Ricardo Mário. “Conceito de ‘Do’ [caminho] na cultura japonesa”. In: Do – A essência da Cultura Japonesa. São Paulo: Centro de Chado Urasenke do Brasil, 2004, p.20-23. Cells at Work![Anime]. Direção: Senichi Suzuki. Japão: Estúdio David Production, 2018. Adaptação do mangá criado por Akane Shimizu, lançado em 2015 LE BRETON, David. Antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2019. LUYTEN, Sônia. Mangá – O Poder dos Quadrinhos Japoneses. 2ª edição. São Paulo: Hedra, 2000. LINSINGEN, Luana Von. Mangás e sua utilização pedagógica no ensino de ciências sob a perspectiva CTS. Ciência & Ensino, v.1, n.p., 2007. MOGI, Ken. The Little Book of Ikigai: The secret Japanese way to live a happy and long life. Quercus Publishing, 2017. MATHEWS, Gordon. The Stuff of Dreams, Fading: Ikigai and 'The Japanese Self'. Ethos, v. 24, n.4, p. 718-747, 1996. OKANO, Michiko. Prefácio: Dô – Caminho da Arte. In: SHIODA, C. K. J; YOSHIURA, E. V.; NAGAE, N. H. [Org.]. Dô – caminho da arte: do belo do Japão ao Brasil. São Paulo: Editora Unesp, 2013. p-9-14 SAKAI, Yusuke. Outro Lado da Natureza e da Educação Ambiental no Japão Contemporâneo. Revista Interdisciplinar de Literatura e Ecocrítica, v. 1, n. 2, p. 109-124, 2019. SASAKI, Elisa. Valores culturais e sociais nipônicos. In: Encontro sobre Língua, Literatura e Cultura Japonesa, 4., 2011, Rio de Janeiro. Anais… Rio de Janeiro: Associação dos professores de língua japonesa do estado do Rio de Janeiro, 2011, p.1-19. WATANABE, Masao. The conception of nature in Japanese culture. Science, v.183, n. 4122, p. 279-282, 1974. O PAPEL DA LÍNGUA PORTUGUESA NA DIFUSÃO DA FÉ REFORMADA Carlos Aldlen Torres de Souza Introdução João Ferreira de Almeida [1628-1691], um português de nascença e devoto do calvinismo, viu sua trajetória apontada para a Batávia [atual Jakarta, Indonésia] do século XVII. Longe da contrarreforma e dos embates gerados no Concílio de Trento, o erudito encabeça um projeto de tradução da Bíblia Sagrada para o português, tendo como premissa alcançar os povos que tinham o idioma como língua franca. Antônio Ribeiro dos Santos, bibliógrafo português responsável por catalogar de forma detalhada os escritos de João Ferreira de Almeida que foram conhecidos, é tomado pela historiografia como o escritor pioneiro no estudo do tradutor, e demonstra como o ministro fez uso oportuno de suas qualidades enquanto letrado: “[...] A primeira tradução regular, e que se possa chamar tal, dos livros sagrados do Testamento Velho em português, de que podemos haver notícia, foi a que no século XVII trabalhou o erudito português João Ferreira A. de Almeida. [...] Este homem erudito não estreitou o seu zelo à só trasladação do Antigo Testamento; empreendeu também a de todos os sacrossantos livros do Testamento Novo, obra em que pôs grande trabalho, e todo o cabedal de seu saber”. [Santos, 1806, p. 17]. O tradutor protestante procura, em solo asiático, concentrar seus talentos em uma literatura que tem por objetivo alcançar aqueles que não detinham conhecimento de outra língua, exceto o português. Almeida propõe uma valorização do idioma, embora possamos tomar uma miscelânea linguística como o aparato que move a realidade, ponto que procuramos abordar no presente trabalho. Em um documento importantíssimo para a compreensão dos objetivos do tradutor, intitulado Differença d’a Christandade, é possível notar comentários feitos por Almeida, que divide a narrativa entre o texto bíblico que orienta a moralidade dos cristãos reformados e pensamentos particulares acerca da vida pessoal, embora com menos frequência. Ao abordar suas motivações, Almeida faz uma retrospectiva de sua conversão, demonstrando que da mesma forma como foi atingido pelo favor imerecido de Deus, deve também um favor aos que nenhuma outra língua sabem, exceto o português: “[...] logo nos primeiros anos de minha mocidade foi servido trazer-me ao saudável conhecimento de sua Divina Verdade [a verdade do Pai das Luzes]; no mesmo instante, se serviu logo também, em mim, um ardente e inextinguível zelo e desejo de, conforme o talento que de sua paterna [...] mão recebera, o comunicar também aos que ainda de meus irmãos, segundo a carne, ficavam [...] no lamentável labirinto daquela tão mortífera e tremenda cegueira, de que esse Senhor a mim tão benignamente me livrara” [ALMEIDA, 1668, sem paginação]. A Escritura Sagrada acessível Até aqui, é possível notar que o tradutor detém grande apreço por sua conversão e a misericórdia de Deus, livrando-o de uma cegueira que o atingia enquanto ainda estava no catolicismo. Da mesma maneira como foi alcançado, quer tornar a Escritura Sagrada acessível para que o conhecimento do que é verdadeiro, segundo sua concepção, também alcance novas pessoas e faça com que devotos acessem o material de forma autônoma, sem a presença de intermediários. O missionário se reconhece como um homem alcançado pela misericórdia de Deus quando, ainda nos primeiros anos de sua mocidade, deparou-se com os dogmas protestantes. A junção do conhecimento do que considera ser verdadeiro, com a forma benigna segundo a qual foi alcançado e o talento, que acredita ser proveniente da mão de Seu Pai, que está no céu, o faz ansiar por encontrar aqueles que têm por irmãos, da mesma forma como foi alcançado. Quando João Ferreira de Almeida conhece o documento, ele está em castelhano. O português, idioma natal, está acessível aos viventes da região em que avançava o predomínio da Companhia Holandesa das Índias Orientais. O uso do português feito através do financiamento holandês é resultado, contudo, de questões enraizadas com a longa presença formal do Império Asiático Português que, quando decai, não vê todas as questões informais caírem no esquecimento, como o idioma comum à população. Em outro trecho do documento que Almeida propôs traduzir, o público alvo é, mais uma vez, abordado: “A todos os senhores católicos romanos da nação portuguesa, de qualquer Estado, qualidade e condição que sejam; com todos os demais que da língua portuguesa usam, e juntamente deveras desejam e procuram sua salvação. Por este presente livrinho, que agora de novo, com tão sincera afeição e cordial amor de minha alma vos ofereço, haver sido o único instrumento que foi servido tomar para me trazer ao saudável conhecimento de sua Divina Verdade”. [ALMEIDA, 1668, sem paginação]. Objetivamos demonstrar como a língua portuguesa foi necessária para a ampla difusão protestante e a concomitante afirmação política do projeto imperialista difundido pela República Holandesa. Como o tradutor aponta, seu objetivo é alcançar católicos de nação portuguesa, independente do Estado, qualidade ou condição de vida. Em suma, Almeida desejava conectar seus ideais à população que, como ele, eram antes pessoas que professavam a fé católica e compartilham do português como um idioma comum, buscando levar até eles a salvação que também o alcançou. Muito provavelmente Almeida lançou mão dos seus conhecimentos da língua portuguesa por acreditar estar contribuindo, de forma sincera, com o avanço do protestantismo em oposição ao que acreditava ser perpetuado como algo que não gozava de motivações saudáveis ao povo comum. Há um desenvolvimento ideológico da religião Reformada ao adentrar locais antes dominados pela Coroa portuguesa e pautados no catolicismo. Almeida, somado ao processo, será responsável por nos proporcionar uma dimensão prática do projeto religioso que ultrapassou as barreiras europeias e alcançou, também, regiões asiáticas. É importante salientar que nem sempre o Império português deteve a soberania no continente, dando margem ao hibridismo cultural, ou seja, ao resultado da troca. Podemos sintetizar o pensamento fazendo uso da fala do historiador Peter Burke, quando diz que “a troca é uma consequência dos encontros: mas quais são as consequências da troca?”. [Burke, 2006, p. 71]. Podemos avaliar, assim, que a presença do protestantismo na Ásia foi marcada pela troca exercida com demais forças, como o idioma português, já enraizado. Quando o protestantismo alcança o continente asiático, juntamente com a empreitada holandesa, não foi possível traçar um plano que abrigasse o sincretismo, apagando todo o legado construído pelos portugueses. A presença portuguesa deixou traços marcantes que permaneceram após o declínio do Império Asiático Português, como o idioma. Em outras palavras, podemos atestar que o avanço holandês, concentrado no interesse em possessões outrora lusitanas, não foi capaz de negligenciar o legado português em território asiático, caracterizando um hibridismo cultural de muitas facetas, ponto que gostaríamos de explorar. Conseguimos apontar a língua portuguesa como um traço marcante da presença lusitana em possessões que, através de uma conquista futura, abrigaram holandeses e novas características em um cenário onde traços lusitanos já estavam há muito intrínsecos. Quando os Impérios europeus competem pela dominação de regiões orientais, que veem o surgimento do embate entre católicos e protestantes, há situações oportunas formadas, na Batávia, para a prática missionária protestante. A historiadora Jakeline Pereira Nunes, ao abordar o tema, salienta que o protestantismo em língua portuguesa foi privilegiado, pois a troca de poder imperial não foi um facilitador para a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Nas palavras da historiadora, “A perda da força imperial por Portugal na região [Batávia] já no curso do século XVII não impede que a língua portuguesa continue presente nas Índias, já que o português era a língua de comunicação dos europeus em si e com os povos com quem estavam em relações”. [Nunes, 2016, p. 51]. Conseguimos compreender, então, como a Batávia, tornada sede do governo da República Holandesa em terras orientais, apresentou idiomas diversos como circulares na região. De tal maneira, entendemos que a manifestação de culturas múltiplas não pode ser apagada pela ideia de supremacia total de um ou outro Império e suas respectivas especificidades. Há variações manifestas, inclusive, na configuração linguística da região. O período que Almeida toma para a primeira tradução integral da Bíblia para o português é marcado pela vã tentativa de suprimir o legado deixado por outra sociedade, vendo a religiosidade ser tomada como exemplo prático de tal configuração. Nunes afirma que “o catolicismo [...] é substituído pelo protestantismo, que se aproveita da difusão dessa língua europeia na região, para ser alastrado pelas Índias Orientais [...]”. [Nunes, 2016, p. 52]. Pensamos que a linguagem seja um fator chave para a compreensão dos caminhos desenhados pelo hibridismo cultural presente na sociedade que tomamos como referência de análise, e a tradução de Almeida permite entender o português presente na região da Batávia. Quando aborda a construção do português enquanto idioma, através das diversas ramificações possíveis, o letrado Joaquim Teófilo Braga aponta que a tradução do missionário é “[...] o maior e mais importante documento para se estudar o estado da língua portuguesa no século XVII”. [Braga, 1875, p. 350]. Para o autor, Almeida foi responsável por tornar o português vulgar, de uma maneira que não foi adotada por “nenhum escritor cultista do seu tempo”. [Ibiden]. Assim, Almeida apresenta uma riqueza de vocabulário mesmo quando não adere à retórica comum ao período seiscentista, por procurar palavras que sejam equivalentes às utilizadas usualmente por conta de sua origem comum e o contato com o povo no ambiente cotidiano. Portanto, a técnica utilizada por João Ferreira de Almeida é entendida pelo letrado como uma forma de popularizar a língua portuguesa, com expressões próprias do período e que carregam, contudo, práticas doutrinárias que deveriam ser acessíveis aos povos. A ideia religiosa é difundida através dos escritos do missionário português em idioma vulgar, com expressões corriqueiras que facilitam a internalização por fácil assimilação do conteúdo religioso. Para além da forma como é escrito, precisamos ressaltar que é uma literatura religiosa, algo que comove, toca as pessoas e oferece as respostas necessárias para a vivência diária. Acerca do uso do português, o autor Hugo Cardoso aponta que: “Com efeito, a língua portuguesa enraizou-se na região asiática ao ponto de se converter em importante língua franca de comércio e diplomacia, sobretudo para comunicação com e entre as demais potências europeias [britânicos, franceses, neerlandeses, dinamarqueses] que se começaram a estabelecer na Ásia a partir de finais do século XVI”. [Cardoso, 2016, p. 71]. Para o autor, por conta do grande tempo de permanência do Império Asiático Português no centro dos domínios comerciais da região, o idioma foi convertido em língua franca. Cardoso destaca que o português era utilizado como balizador entre as diversas companhias representadas no comércio oriental. As zonas costeiras, assim, adquiriram extrema influência do português, aderido ao continente asiático em um panorama que dá conta de influências mútuas. Para Cardoso, a dimensão do alcance da língua portuguesa na Ásia pode não ser muito bem delimitada, contando com uma variação que alcança a casa das centenas, sobretudo por conta do múltiplo contato linguístico. Sintetizando o assunto, o especialista diz que “a partir do século XVI, a língua portuguesa teve grande difusão [...] por toda a Ásia e o Pacífico, sobretudo em consequência de dinâmicas de expansão colonial, mas também por outras vias, tais como a imigração”. [Cardoso, 2016, p. 68]. Ao tratar sobre o fenômeno chamado “orientação cultural portuguesa”, uma espécie de direcionamento cultural que tangia para a adesão de elementos que acompanhavam a expansão do Império Asiático Português, Cardoso afirma que, embora a presença institucional não fosse assegurada em alguns casos, ao menos uma presença mínima foi observada. É o caso da Batávia, região em que temos concentrado nossa análise por conta da presença neerlandesa ali firmada, cujo objetivo consistia no avanço do domínio comercial e a consequente substituição do catolicismo pelo protestantismo. Entre os séculos XVII e XX, a região da Batávia, caracterizou-se como o centro dos domínios ultramarinos holandeses no oriente. A atual Jakarta, capital da Indonésia, recebeu muitos oriundos do sul da Índia, Ceilão [hoje Sri Lanka], Malaca e algumas outras ilhas que fazem parte do sudeste asiático. Como consequência da concentração de pessoas que tinham o português como idioma nativo e de outras que faziam a língua de mediador social, a Batávia foi o centro de uma comunidade de fala portuguesa, sendo referência até para a escrita de documentação estrangeira, com resquícios que alcançam o século XIX. Conforme a diversidade de povos que tiveram a região como centro comercial e cultural, inferimos que houve uma variedade reestruturada do idioma. Há o uso da língua feita sobretudo para fins comerciais, resultado do contato entre falantes do inglês, francês, espanhol e português, por exemplo, ocasionando o que a linguística chama de pidgin, uma adaptação do idioma, mesclando variações funcionais para os falantes. Notamos, então, segundo Cardoso, uma circulação de pidgin que tem o português como base comum, embora não necessariamente o português estruturado de maneira formal, favorecendo um meio de comunicação intercomunitária. A grande difusão do português na Ásia ocorre, sobretudo, por conta da possibilidade que o idioma encontrou nas variações linguísticas proporcionadas pelo contato de falantes de outras línguas, adaptando o idioma conforme a conveniência, muitas vezes necessária diante do comércio entre os diferentes povos. Para além das questões lexicais, é possível perceber como a região foi favorável para o avanço e consolidação do português como idioma, fazendo com que o tradutor calvinista João Ferreira de Almeida fosse capaz de usar sua própria língua nativa como ferramenta para a difusão e afirmação das práticas embasadas pelos ideais reformadores. Objetivando alcançar os que não conhecem outra língua além do português, Almeida faz uso do idioma para que seus escritos sejam propagados. Luís Henrique Menezes, ao fazer uma síntese das traduções do missionário, enfatiza que houve tentativas falhas de suprimir o português em regiões asiáticas, fazendo com que não fosse possível ao avanço holandês negligenciar o que já fora estabelecido pela presença lusitana. De acordo com o historiador: “A posição do idioma português como ‘língua franca’ [...] foi atestada por diversos observadores do período, inclusive pelas próprias autoridades civis da Companhia das Índias Orientais, que demonstraram em várias ocasiões, sempre em vão, o intento de substituí-la pelo holandês”. [Menezes, 2016, p. 139]. A presença holandesa, de forma contrariada, encontra a necessidade de utilizar o português como estratégia missionária quando regiões asiáticas, como a supracitada Batávia, visualizam a circulação de populações heterogêneas, cada qual com interesses diversos e fazendo o uso da língua de acordo com a necessidade. Como a população cotidiana, a Companhia Holandesa das Índias Orientais presenciou, em suas pretensões comerciais, a língua portuguesa como algo recorrente, mesmo com a troca de governo Imperial. João Ferreira de Almeida procura, assim, alcançar uma população que tem o português como língua franca, dentro ou fora de regiões asiáticas, atendendo aos interesses comerciais da Companhia e, aparentemente, aos próprios interesses pessoais que têm por premissa levar a mesma salvação pela qual foi agraciado. De tal maneira, os dispositivos que Almeida têm por intento acabam por corroborar com a intenção da Companhia, ao fazer uso da religião como meio de governo capaz de assegurar a perpetuação comercial. O chamado “português oriental” é, portanto, dotado de influência asiática, alternando conforme a variação oferecida pelos empréstimos linguísticos que abraçam cada região do continente e o idioma que cada nativo carrega. A escrita em português era incentivada, algo que se deu inclusive pelo ensino da língua até finais do século XX, muito valorizado pelas práticas missionárias. Para além das questões lexicais, é possível perceber como a região foi favorável para o avanço e consolidação do português como idioma, fazendo com que João Ferreira de Almeida fosse capaz de usar sua própria língua nativa como ferramenta para a difusão e afirmação das práticas embasadas pelos ideais reformadores. Conclusão Propusemos trazer, aqui, um breve relato acerca do avanço protestante na Ásia Moderna, tendo o idioma português como facilitador do acesso ao conhecimento particular das Escrituras Sagradas. O calvinista João Ferreira de Almeida, assim, atua como uma vertente catalisadora do movimento reformador ao aproveitar da troca entre a população local e usar a língua franca, funcional por conta dos inúmeros usos cotidianos, para tornar os ensinamentos protestantes acessíveis aos que detém o português como língua de uso comum. O cristianismo protestante será, então, acordado como favorável à difusão em língua portuguesa, possibilitado pela tradução do protestante Ferreira de Almeida, que encontra na Ásia um ambiente favorável ao desenvolvimento do protestantismo em sua própria língua. Será possível notar que até mesmo as autoridades locais, ordenadas pela Companhia das Índias Orientais, reconhecem que há variações linguísticas que abragem as categorias formais e informais, recorrendo ao método de apresentar em língua franca aquilo que deveria ser visto como acessível e de conhecimento íntimo. Assim, tem-se por concepção que o íntimo iria perpassar as demais barreiras e alcançar o irmão próximo, da mesma maneira como Almeida foi alcançado em seu íntimo e empenhou-se numa grande empreitada religiosa. Referências Carlos Aldlen Torres de Souza é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [UFRRJ] e bolsista CAPES. Fonte: Differença d’a christandade: em que claramente se manifesta, I. A grande disconformidade entre a verdadeira e antiga doctrina de Deus [...] traduzido e acrecentado tudo, agora de novo, pelo P. Ioaõ Ferreira A. d’ Almeida, ministro pregador d’o S. Evangelho ‘na India Oriental. Nova Batavia: com privilegio d’o supremo Conselho d’a India, e aprovaçaõ d’o Consistorio ecclesiastico: Por Henrique Brando, e Joao Bruyningo, 1668. [Universitätsbibliothek Basel, fb 661. Disponível em: <https://doi.org/10.3931/e- rara-28970>]. BRAGA, Joaquim Teófilo. Manual de História da Literatura Portuguesa: desde as suas origens até o presente. Porto: Imprensa Litterario-Commercial, 1875. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo, Ed: Unisinos, 2006. CARDOSO, Hugo C. O português em contacto na Ásia e no Pacífico. Berlim: Mouton de Gruyter, 2016. FERNANDES, Luís Henrique Menezes. Diferença da Cristandade: a controvérsia religiosa nas Índias Orientais holandesas e o significado histórico da primeira tradução da Bíblia em português [1642-1694]. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: Catálogo USP, São Paulo, 2016. NUNES, Jakeline Pereira. Em busca do mais valioso e precioso tesouro, historiografia da tradução da Bíblia de João Ferreira de Almeida. 2016. 220f. Tese – Curso de PósGraduação em Estudos da Tradução, Universidade de Brasília, Brasília, 2016. OS RELATOS DOS JESUÍTAS E AS TAPEÇARIAS DE BEAUVAIS: APORTES PARA A CONSTRUÇÃO DA SINOFILIA EUROPEIA Carmen Lícia Palazzo Os relatos de Álvaro Semedo e Gabriel de Magalhães A história da missionação jesuítica no Império Chinês é muito complexa e envolve não apenas questões específicas da catequese, mas também um fecundo relacionamento entre os padres e o mandarinato, pois muitos dos inacianos exerceram atividades importantes junto à Corte, entre elas as de matemáticos, astrônomos, engenheiros e pintores oficiais. Entre os diversos jesuítas que se dedicaram ao trabalho missionário na China, do final do século XVI ao início do XVIII, o português Álvaro Semedo destacou-se na escrita de um detalhado relato com observações importantes sobre sua permanência no Império do Meio. Semedo desembarcou em Macau em 1610 e instalou-se em Nanjing em 1613, mas passou por dificuldades em virtude de um período de perseguição aos estrangeiros naquela cidade, tendo que retornar ao enclave português no ano de 1616. Eram tempos conturbados e havia uma exacerbada animosidade contra estrangeiros, pois a dinastia Ming sentia-se ameaçada por invasões de tribos do Norte e pela pirataria japonesa no litoral. Entre os anos de 1615 e 1616 Semedo chegou a ser preso, acusado de propagar crenças nocivas aos chineses. No entanto, em 1621 ele já havia sido admitido novamente no continente, onde viveu até 1658, falecendo em Guangzhou [Cantão]. Seu relato sobre a China teve uma primeira edição em espanhol em 1642 e não há nenhuma evidência de outra anterior, em português. Seguiram-se traduções para o francês, em 1645, e para o inglês, em 1655 [Mungello, 1989, 75], o que evidencia o interesse que o império chinês despertava na Europa. Acreditamos ser possível afirmar que tal interesse antecedia o chamado “orientalismo” que viria a se desenvolver a partir do século XVIII e, com maior intensidade, no decorrer do século XIX, associado ao expansionismo europeu. Semedo descreve de maneira detalhada o idioma chinês, destacando as características da escrita e a capacidade de memorização dos estudantes. [Semedo, 1642, p. 49-54] Para os jesuítas, sem dúvida, o encontro com uma sociedade que prestigiava os mestres e valorizava o estudo constituía-se numa real possibilidade de diálogo, o qual tornou-se ainda mais fecundo porque os padres dedicaram-se muito ao estudo do idioma. Álvaro Semedo referiu-se aos livros Clássicos chineses que continham textos cujo conhecimento era exigido nos concursos imperiais. O fato de que os letrados eram os principais interlocutores dos jesuítas permitia que esses obtivessem informações bastante fidedignas a respeito dos estudos na China. A escrita chinesa era também motivo de admiração para os europeus e Semedo não deixou de registrar sua antiguidade: “as letras que usam parecem ser tão antigas quanto a própria gente, pois conforme seus monumentos históricos escritos com elas, conhecem-nas há mais de 3.700 anos [...]”. [Semedo, 1642, p. 34] Sua descrição dos exames imperiais é detalhada e trata da maneira como se desenvolviam as provas e do prestígio daqueles que chegavam ao mais elevado patamar de classificação. [Semedo, 1642, p. 61-69] No relato do inaciano há uma descrição do interesse dos chineses pela Astronomia, destacando que o estudo dessa ciência era totalmente controlado pela Corte imperial. [Semedo, 1642, p. 78] Realmente, a elaboração do calendário, o detalhamento de períodos de plantio e de colheitas, as previsões de eclipses e até mesmo o estabelecimento de datas auspiciosas ou nefastas eram considerados assuntos de alto interesse e só poderiam ser tratados por mandarins da confiança do imperador. A medicina tradicional chinesa era, na época, desconhecida na Europa, mas chamou a atenção dos jesuítas e Álvaro Semedo a descreve no seu relato, destacando a precisão da prática de tomar o pulso: “No pulso realmente são admiráveis. Tomam-no muito devagar em ambos os braços, bem descansados, sobre almofadas ou outra coisa e por ele conhecem o achaque do enfermo, sem que lhe façam nenhuma pergunta sobre o que lhe dói. Não direi que acertam todos e em tudo, porque há médicos ignorantes, mas os estudiosos e bons, sim, acertam.” [Semedo, 1642, p. 83] Outro jesuíta português, o padre Gabriel de Magalhães, estabeleceu-se em Hangzhou, no sul da China, em 1640, seguindo posteriormente para Chengdu e, em 1648, instalando-se em Beijing. Seu relato foi publicado posteriormente ao de Álvaro Semedo e também continha informações importantes sobre a China e sobre o denso relacionamento que ele próprio manteve com o mandarinato. O relato de Magalhães, escrito em português, também não circulou em seguida na língua do seu autor, mas na tradução francesa feita pelo abade Claude Bernou. [Magaillans, 1688] No mesmo ano de 1688 foi publicada uma tradução para o inglês e, portanto, nestes dois idiomas é que o texto foi, inicialmente, lido pelos europeus. Sua descrição de Beijing mostrou-se bastante acurada. A partir da descrição do jesuíta, Bernou acrescentou o desenho de um mapa, o Plan de la Ville de Pekim Capitale de la Chine. [Magaillans, 1688, encarte entre as páginas 274 e 275] O idioma chinês continuava despertando grande interesse e o padre Magalhães deteve-se longamente na sua análise. Ele afirmou se tratava de uma escrita muito antiga e anterior aos hieróglifos do Egito. Mesmo beirando a fantasia, sua descrição das características dos caracteres chineses demonstra grande admiração: “Ainda que os egípcios se gabem de ter sido os primeiros a possuir letras e hieróglifos, é certo, porém, que os chineses os tiveram antes deles. Todas as outras nações tiveram uma escrita comum, que consiste em um alfabeto de mais ou menos vinte e quatro letras que têm aproximadamente o mesmo som, ainda que sua imagem seja diferente; mas os chineses têm cinquenta e quatro mil quatrocentas e nove letras, que exprimem o que elas significam com tanta graça, de vivacidade e de força, que parece que não são caracteres, mas vozes e línguas que falam ou, melhor dizendo, figuras e imagens que exprimem e representam ao vivo o que elas significam, tanto o artifício destas letras é admirável.” [Magaillans, 1688, p. 84] Fica bastante claro, em grande parte do relato, que o jesuíta se interessou com certa profundidade pela escrita chinesa. Suas explicações remontam às formas mais antigas de algumas palavras e ele as transcreve de maneira muito correta. [Magaillans, 1688, p. 85-86] O respeito dos chineses pelas pessoas mais velhas e também por seus antepassados e, mais ainda, por seus pais já falecidos, é um tipo de comportamento que fez com que os jesuítas os considerassem dignos de admiração. O culto aos ancestrais, uma prática confucionista que, no século XVIII criou tantos problemas e deu origem a tantas críticas da parte de outras ordens e até mesmo do Vaticano, foi entendido pelo padre Magalhães, bem como por outros jesuítas, como algo digno de ser apreciado: “Vemos setecentos e nove templos construídos pelos chineses em diversas épocas, em memória de seus ancestrais e consideráveis pelo seu tamanho e pela beleza de sua arquitetura. Os chineses se acostumaram com o testemunho de um amor e de uma obediência extraordinária por seus pais, principalmente depois da sua morte, e é para o demonstrar que eles mandam construir com grandes custos salas soberbas, nas quais em lugar de imagens e de estátuas eles colocam cartuchos com os nomes de seus pais. Em certos dias do ano, determinados pela família à qual pertence o templo, eles reúnem-se nessas salas, onde se prosternam no chão em sinal de amor e de respeito [...].” [Magaillans, 1688, p. 56] A descrição de Gabriel de Magalhães é bastante fiel às cerimônias nos templos confucionistas e ele não considera os rituais que homenageiam os antepassados como manifestações religiosas incompatíveis com o cristianismo. Tal debate viria a ocorrer mais adiante, com o recrudescimento da chamada “querela dos ritos”, que tantos problemas causou para a Companhia de Jesus. [Peretti, 2016, 9-12] Nem toda a longa estadia chinesa do padre Magalhães foi, porém, agradável, pois ele viveu em tempos difíceis do império, em plena conquista manchu, estando em Chengdu, na companhia do padre italiano Ludovico Buglio, numa época de insurreições contra os invasores. Com a vitória daqueles que se autodenominariam dinastia Qing, os dois jesuítas foram presos e conduzidos a Beijing quando o rebelde Zhang Xianzong foi morto por soldados manchus. Ambos escaparam de condenações graves por intercessão de outro padre, o alemão Adam Schall von Bell, que então já havia conquistado o apoio dos novos senhores da China e era prestigiado como astrônomo imperial. [Patternicò, 2014, p. 65] Mais adiante, enfrentando denúncias, Magalhães foi mais uma vez preso em virtude de acusações de alguns mandarins. Era comum que ocorressem tais problemas, pois nem todos os cientistas da corte gostavam de ter seu prestígio dividido com estrangeiros de destaque junto ao imperador. A tudo, somou-se uma longa e amarga disputa com Adam Schall, ainda que esse o tivesse ajudado no período da queda da dinastia Ming. Schall, porém, muito cuidadoso e bastante apreciado pelo imperador Shunzhi, para o qual trabalhava, evitava maiores problemas que pudessem colocar em risco o conjunto das atividades dos jesuítas. No entanto, grande parte dos desentendimentos, mesmo os mais graves, eram resolvidos dentro do império e raramente afloravam com muita repercussão na Europa. De um modo geral a maioria dos mandarins chineses acolhia os jesuítas com grande interesse por seus conhecimentos científicos, portanto boa parte das imagens veiculadas pelos padres tinha um caráter positivo e elas mantiveram-se apesar de alguns raros períodos de perseguições voltadas para as atividades missionárias da Companhia. Imagens dos jesuítas nas “chinoiseries”: as tapeçarias de Beauvais A aceitação dos inacianos no interior do império dependeu muito da política interna chinesa em cada época. Houve perseguições em momentos de crise, mas após períodos de instabilidade os padres voltavam a ser valorizados, mesmo sofrendo pontualmente em virtude de algumas rivalidades e da inveja em função dos altos cargos que ocupavam na corte. Foram, porém, imagens de prestígio que circularam intensamente na Europa e, em especial, aquelas dos padres cientistas junto aos imperadores – o que correspondia à realidade. A moda que ficou conhecida na Europa como “chinoiseries” e que se refletiu na construção de jardins, nas pinturas e em vários objetos de decoração a partir de meados do século XVII e, mais intensamente, no decorrer de todo o século XVIII [Goux, 2020], enquadra-se em um movimento mais amplo de sinofilia presente em todo o período setecentista. A presença dos jesuítas no Império do Meio é, sem dúvida parte desse contexto. Dois inacianos que exerceram a função de diretores do Observatório Astronômico de Beijing, o alemão Johan Adam Schall von Bell, ao qual já nos referimos na relação com o padre Gabriel de Magalhães, e o flamengo Ferdinand Verbiest foram, entre o final do século XVII e o início do XVIII, representados em um conjunto de tapeçarias francesas denominado “L’Histoire de l’empereur de Chine”. Como era habitual na época, as tapeçarias foram manufaturadas de acordo com as encomendas do circuito da elite europeia em um dos ateliês mais prestigiados do reino, o de Beauvais. Não é possível avaliar com exatidão quantas vezes foi reproduzida cada peça do referido conjunto, mas atualmente várias delas podem ser encontradas em museus e em coleções privadas de diversos países. Há o registro de alguns clientes que as encomendaram ao ateliê de Beauvais, entre eles o então jovem duque do Maine, Louis Auguste de Bourbon, filho do rei Luís XIV com Madame de Montespan. [Marty, 2014, p. 17] As tapeçarias eram realizadas a partir dos chamados cartões pintados por artistas da época. No caso do conjunto sobre o imperador da China, os cartões eram obras dos pintores Guy-Louis Vernansal [1648 – 1729], Jean-Baptiste Monnoyer [1636 – 1699], et Jean-Baptiste Belin de Fontenay [1653 -1715]. [Marty, 2014, p.1] Foi Luís XIV justamente o monarca que enviou para a China um grupo de jesuítas diretamente vinculados à Coroa francesa e, pela primeira vez, não submetidos ao Padroado português. Denominada Missão Francesa, seus integrantes tinham recebido também o apoio da Academia de Ciências de Paris e chegaram em Beijing no ano de 1688, sendo muito bem recebidos pelo imperador Kang’xi e por boa parte do mandarinato. [Palazzo, 2017, p. 38-40] Os padres Schall e Verbiest, porém, não faziam parte da missão enviada pelo monarca francês e a antecederam, mas suas importantes funções na China eram difundidas também na França. Justamente um dos membros da referida Missão, o padre Jean de Fontaney, escreveu uma carta ao confessor de Luís XIV na qual descrevia as homenagens que Ferdinand Verbiest havia recebido da parte dos chineses em seu funeral, realizado em 1688. [Fontaney, 2001, p. 65] Verbiest, que viveu na China entre 1659 e 1688, havia sucedido Adam Schall na direção do importante Observatório Astronômico. A imagem que segue mostra a peça denominada “Les Astronomes”, do conjunto de tapeçarias ao qual nos referimos e traz uma cena na qual estão representados, muito provavelmente, os dois jesuítas-astrônomos, Adam Schall von Bell e Ferdinand Verbiest, o imperador Shunzhi e seu filho Kang’xi. Não há registro que descreva quem são exatamente as figuras da tapeçaria, mas o padre Schall foi diretor ao Observatório durante o reinado do imperador Shunzhi, entre os anos de 1644 e 1664, portanto em um período no qual Kang’xi era ainda uma criança. Assim, o menino próximo a Verbiest, poderia ser justamente o então príncipe Kang’xi que, após suceder o pai, tornou-se um grande admirador e protetor dos jesuítas. Tapeçaria “Les Astronomes”. Foto nossa no Museu Leblanc-Duvernois, em Auxerre. Os trajes de ambos os padres são as tradicionais vestes de mandarins chineses, o que corresponde ao grau que eles atingiram na burocracia. O bordado em um quadrado no peito de Adam Schall é a figura que os mandarins de grande importância costumavam usar. Provavelmente o desenho na tapeçaria foi inspirado por uma gravura retratando Schall e que se encontra na obra de Athanasius Kircher, publicada em sua tradução para o francês um pouco antes da realização das pinturas dos cartões. [Kircher 1668, p. 138] Cabe lembrar que a obra de Kircher, ele mesmo um jesuíta, foi escrita originalmente em latim, mas circulou em muitas traduções e em diversos países europeus, difundindo também o prestígio que os padres desfrutavam no Império do Meio. Além de Louis Auguste de Bourbon, sabe-se que o conjunto das tapeçarias “L’Histoire de l’empereur de Chine” foi encomendado também por outras personalidades europeias, entre elas François-Louis de Wittelsbach, um eclesiástico do Sacro Império Romano Germânico e Joseph-Jean-Baptiste Fleuriau d’Armennonville, de uma família de comerciantes de Tours [Marty, 2014, p. 2933], o que mostra o alcance das imagens registradas em peças tão apreciadas. Observar a circulação das histórias sobre os contatos dos jesuítas na China, ainda que recontadas e interpretadas livremente pelos artistas que criaram as cenas, levanos a constatar que os europeus letrados estavam bem informados sobre as atividades de prestígio que os inacianos exerciam junto à corte de um império milenar. Conclusão Nosso objetivo neste breve artigo foi o de mostrar a importância dos inacianos como responsáveis pela divulgação, entre os europeus, de imagens de uma China admirável e, em muitos aspectos, comparável à Europa. A sua civilização milenar, ainda que não cristã, era por eles considerada como meritória de interlocução, mesmo que houvesse críticas em meio aos elogios. Tais críticas, porém, nunca impediram grande proximidade dos padres com o mandarinato, no interesse da catequese, é claro, mas também pelo contato em si, que inúmeras vezes agradava ambas as partes Com seus relatos detalhados sobre a cultura confucionista e sobre o respeito demonstrado pelos chineses às ciências, os padres estimulavam, na Europa, o que viria a ser conhecido como um período de sinofilia entre as elites. Da mesma maneira, as descrições dos concursos imperiais permitiram que os europeus tomassem conhecimento da estrutura da burocracia chinesa, na qual a qualificação baseava-se no árduo estudo. O império chinês, até meados do século XVIII era solidamente centralizado e cioso de sua importância, o que fazia com que a relação com os missionários ocorresse entre semelhantes, apesar das divergências e mesmo de disputas acirradas. O fato de ser estimulado, na Companhia de Jesus, o aprendizado do idioma das sociedades nas quais os padres exerciam suas atividades facilitou a convivência com os mandarins, permitindo que ocorresse um intercâmbio cultural. Com todas as dificuldades enfrentadas e apesar dos momentos críticos, com turbulências na política interna chinesa, especialmente durante a conquista manchu, a maioria dos padres manteve um olhar de admiração. Os manchus, por sua vez, adotando grande parte dos hábitos e o idioma dos chineses e preservando a valorização dos concursos imperiais, quando subiram ao trono como a poderosa dinastia Qing [1644–1911] tiveram nos inacianos colaboradores excepcionais. Com o apoio deles aumentaram seus conhecimentos de matemática, de mecânica e de astronomia. E o comércio de luxo que levava aos europeus a porcelana e tantos outros produtos muito apreciados, constituía-se no suporte material igualmente relevante enquanto se desenvolviam ideias sobre a China que seduziram também os pensadores Iluministas. [Terrón Barbosa, 2010, p. 267-277] É possível, então, dizer que mais do que um interesse superficial pelo exótico, o conhecimento sobre as atividades dos jesuítas no Império do Meio estava integrado na ampliação da visão de mundo do Ocidente entre os séculos XVI e XVIII. Se a catequese era um aspecto importante nas atividades dos padres, ao entender que ela poderia se dar através da valorização da ciência desenvolvida na Europa – ciência da qual eles, com razão, consideravam-se representantes – abria-se caminho para um intercâmbio que frutificava. Ainda hoje na República Popular da China, um país que se desenvolve a passos acelerados, os visitantes do Museu do Antigo Observatório Astronômico em Beijing deparam-se com uma homenagem a Adam Schall von Bell e a Ferdinand Verbiest, com painéis legendados em mandarim e inglês, relatando a atuação dos dois padres astrônomos na Corte. E o Cemitério Jesuíta de Zhalan, também na capital, no qual muitos túmulos de inacianos que viveram e morreram nas terras do império estão sob os cuidados do governo chinês, permanece como testemunho de um longo período no qual os encontros entre o Ocidente e o Oriente foram mais densos e mais fecundos do que os desencontros. Referências Carmen Lícia Palazzo é doutora em História pela Universidade de Brasília, UnB, pesquisadora convidada do UniCeub e trabalha com a temática de encontros entre o Ocidente e o Oriente, Relatos de Viajantes e Rota da Seda. Ministrou o módulo “A Rota da Seda e a Cultura como Vetor das Relações entre a China e o Ocidente” no curso de pós-graduação lato sensu Análise de Cenários Políticos, Resolução de Conflitos e Negociações para a Paz, no UniCeub [2020]. [Todas as traduções dos trechos citados no artigo são nossas.] Fontes escritas: FONTANEY, J. Carta de 15 de fevereiro de 1703, enviada a R. P. De La Chaise. Em Vissière & Vissière, I. e J.-L. [ed.]. Lettres Édifiantes e Curieuses des Jésuites de Chine [1702-1776]. Paris: Desjonquères, 2001: 59-75. MAGAILLANS, Gabriel de. Nouvelle Relation de la Chine contenant la description des particularitez les plus considérables de ce grand empire. Paris: Claude Barbin, 1688. KIRCHER, Athanasius. La Chine illustrée de plusiers monuments tant Sacrés que Profanes, et de quantité de Recherches de la Nature & de l’Art. Amsterdam: Jan Jansson & les heritiers de Elizée Weyerstraet, 1668 e 1670. SEMEDO, Álvaro. Imperio de la China y cultura evangélica en el. Madri: Juan Sanchez, 1642. Fonte iconográfica: Tapeçaria “Les Astronomes”. Museu Leblanc-Duvernois, em Auxerre, França. Foto nossa, autorizada pelo referido museu. Bibliografia: GOUX, Valentin. “The History of Chinoiseries in France”. Institute of Classical Architecture & Art. New York, 2020. disponível em https://www.classicist.org/articles/the-history-of-chinoiseries-in-france/ MARTY, Mélanie. “La tenture de Beauvais: Histoire de l’empéreur de Chine”. dissertação de Mestrado. Pau: Université de Pau et des Pays de l’Adour, 2014. MUNGELLO, David E. Curious Land. Jesuit Accomodation and the origin of Sinology. Honolulu: University of Hawaii Press, 1989. PATTERNICÒ, Luisa M. “Ludovico Buglio e la sua rocambolesca aventura cinese”. In Sulla via del Catai, v. 11. Trento: Centro Studi Martino Martini, 2014: 63-74. PALAZZO, Carmen Lícia. “De Matteo Ricci à Missão Francesa: o encontro entre os jesuítas europeus e o Império do Meio” in BUENO, André et alii [orgs.], Vários Orientes, p. 31-45. 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Sidnei Munhoz [2015] categoriza a diferença entre as correntes históricas da seguinte maneira: os ortodoxos creditam aos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki o fim do conflito, enquanto a corrente revisionista crê que não só os bombardeios atômicos eram dispensáveis como foram utilizados para outro pretexto que não a 2º GM. Por sua vez, a corrente neo-ortodoxa surge para contraargumentar o “revisionismo” e propor novos argumentos que justifique as bombas atômicas empregadas em solo japonês. A historiografia ortodoxa explicita que os bombardeios atômicos encurtaram a guerra notoriamente, além de terem salvado milhares de vidas que seriam ceifadas em uma possível invasão direta ao Japão. A partir desta corrente histórica formouse o senso comum do ocidente em relação as bombas atômicas, algo facilmente imortalizado pelo estereótipo das tropas japonesas e do Império japonês – tidos como selvagens sanguinários no imaginário popular. A benevolência resultante da bomba atômica não é apenas em relação aos Aliados, mas com todos os envolvidos. Munhoz esclarece este fato de maneira direta ao elaborar parte da argumentação usada pelos ortodoxos: “[...] com os bombardeios atômicos, evitou-se a necessidade da invasão do Japão que custaria a vida de mais de 500 mil jovens estadunidenses e um milhão de militares e civis japoneses.” [MUNHOZ. 2015. p.12]”. Logo, foram poupados não só estadunidenses como também japoneses no processo. Todavia, a bomba atômica também se justifica sob o argumento revanchista, como aborda Munhoz: “[...]a sociedade estadunidense fora impactada pelo ataque japonês e acreditava, estimulada pela propaganda desenvolvida durante os anos de conflito, na necessidade de punir severamente o Japão pela agressão cometida.” [MUNHOZ, 2015. p.6] Em contrapartida, a historiografia revisionista revisita o mesmo fato a partir de outras lentes. Para os revisionistas as bombas atômicas foram um ato de crueldade desnecessária, primeiro porque pouco teriam impactado sobre a rendição japonesa, segundo, porque foram uma jogada calculada já no vislumbre da guerra fria e não pensando no fim da Segunda Guerra Mundial. Dentro do primeiro ponto apresentado, temos o historiador Tsuyoshi Hasegawa [2005] que afirma que a rendição incondicional nipônica tem relação direta com a possibilidade de invasão da Manchúria pelo exército soviético. Hasegawa afirma que esta questão age de duas formas, uma por proporcional o medo que a destruição soviética traria sobre os japoneses e outra pelos Estados Unidos que não queriam que isso ocorresse, para evitar uma posição divisão do território japonês com a URSS. Os Estados Unidos buscavam ser o único ativo responsável pela rendição japonesa. Sidnei Munhoz [2015. p.12], corrobora com esse argumento ao afirmar que os próprios japoneses já haviam buscado os soviéticos para discutir uma rendição. O plano não teria dado certo, pois Stalin desejava a rendição incondicional, não tendo interesse em discutir termos. Gar Alperovitz [1985], também, argumenta da não necessidade da bomba atômica ao analisar o comando militar estadunidense. Nesta avaliação a própria elite militar não só desconsiderava a necessidade da participação soviética no desfecho, como a não necessidade de uma invasão direta, sendo possível encerrar o conflito apenas com o embargo a ilha japonesa. Entretanto, os preceitos éticos e humanos da “bomba salvadora” ainda permanecem, uma vez que a invasão ainda poderia ser uma eventualidade desastrosa. Todavia, tais preceitos encontram percalço em dois fatores. Primeiro, uma única bomba atômica não teria sido o suficiente para demonstrar poder bélico e levar o Japão a se render? Segundo, a escolha dos alvos ocorreu de forma arbitrária, não há grandes indícios que Hiroshima ou Nagasaki tenham sido pontos estratégicos militares. Nagasaki, inclusive, era uma zona montanhosa e rural, algo que explica o menor número de baixas na segunda bomba atômica, mesmo que sua potência tenha sido maior. Um documentário feito em sequência aos bombardeios atômicos de 1945, confiscado e publicado décadas depois pelo governo estadunidense colabora com isso. De acordo com The effects of the atomic bomb in Hiroshima and Nagasaki [1945], 80% das comunicações de Hiroshima não estavam em funcionamento após a explosão atômica. Hasegawa [2005. p.184] ilustra que para a cúpula da política japonesa a bomba atômica teria chegado apenas como “uma nova arma de destruição”, sem muitos detalhes. Desta forma, com um intervalo de três dias entre os bombardeios, não é sensato crer que o governo japonês teve tempo suficiente de assimilar o ocorrido e emitir uma resposta adequada. A segunda bomba atômica, não só teria sido igualmente desnecessária como ainda mais cruel, ao consideramos que se nem o governo japonês tinha ideia da dimensão do poder atômico, quem dirá a população. Munhoz considera, ainda, a repercussão da possibilidade atômica pela alta cúpula militar estadunidense, demonstrando como altas patentes não consideravam a necessidade dos bombardeios. Nomeando-os em sequência: “[...]os generais George C. Marshall, comandante das Forças Armadas dos EUA; Dwight Eisenhower, comandante das forças aliadas na Europa; Douglas MacArthur, comandante das forças dos EUA no Pacífico; almirante Ernst J. King, comandante da frota naval dos EUA; almirante Chester W. Nimitz, comandante da frota dos EUA no Pacífico, e o general Henry Harley “Hap” Arnold, comandante da Força Aérea dos EUA.” [MUNHOZ, 2015. p.13] Entretanto, volta-se ao grande receio do governo estadunidense: a eventual participação da União Soviética na partilha do Japão. Parte deste corpo militar acreditava que as novas armas deveriam ser aplicadas contra alvos militares primeiro, algo que não condiz com os alvos dos bombardeios atômicos de 6 e 9 de agosto. Interlocutores militares afirmavam que era possível colocar fim ao conflito apenas com embargo a ilha japonesa, como afirmou Alperovitz em seu artigo “Did America had to drop de bomb? Not to end the war, but Truman wanted to intimidate the Russians” [1985]. Soma-se a esse relato, o de Bagguley[1969] afirmando que o General Marshal expressou que a invasão da Manchúria pelo exército soviético já seria um fator decisivo para a capitulação japonesa. Entretanto, com o fim dos combates contra nazistas na Europa, grande parte dos “peritos militares haviam concluído que a intervenção soviética na Manchúria não era mais necessária” [BAGGULEY, 1969, p.140] Todavia, a narrativa ortodoxa não busca apenas justificar os artefatos atômicos por sua utilidade prática na guerra, ela faz parte do esforço do governo estadunidense em se aproximar do Estado japonês no pós-guerra. Transformando a ilha nipônica em um ponto estratégico na geopolítica da eventual Guerra Fria [PASTRELLO, 2020]. Deste modo, obtêm-se que as bombas atômicas foram utilizadas para alavancar uma vantagem política no pós-guerra, evitando a partilha japonesa com os soviéticos. A corrente ortodoxa é fortemente abraçada pela historiografia ocidental, mas, partindo para a corrente neo-ortodoxa que surge em meio as críticas revisionistas, há inclusive um historiador nipônico, Sadao Asada. Asada argumenta que as bombas atômicas foram necessárias para que os “moderados” do conselho de guerra pendessem para a rendição. A decisão da rendição ao ser deliberada no conselho de guerra teve um empate entre os seis agentes envolvidos. O imperador sacramenta a decisão final a favor da rendição, selando seu papel como grande salvador do povo japonês. Ironicamente o Imperador só deliberava na assembleia em caso de empate. Em outro caso, Robert James Maddox, de acordo com Munhoz, afirma que conseguir a rendição do Japão com poucas casualidades sem a bomba atômica seria um mito. Muito embora suas perspectivas de “200 mil mortes” pareçam otimistas frente as “500 mil” defendidas pelo governo Truman. Além de criticar esse “mito”, Maddox aponta que as evidências apontadas por Alperovitz foram desvirtuadas e descontextualizadas [MUNHOZ, 2015. p.16]. Já o historiador Michael Bess faz uma comparação direta entre os bombardeios atômicos e os bombardeios “regulares” que tomavam as cidades japonesas durante a guerra. Para o autor, o nível de morte e destruição entre eles é semelhante. Embora ele reconheça os efeitos a longo prazo da radiação, ainda não seria possível uma comparação honesta, já que, de acordo com Munhoz, não há tempo hábil para uma resposta de defesa frente aos bombardeios atômicos. Michael Bess defende a leitura histórica de que a bomba atômica teria salvado vidas, da mesma maneira que historiadores ortodoxos. Em sua argumentação, Bess afirma que o Japão possuía um intenso treinamento de milícias, tendo incrementado o efetivo de defesa da ilha de 150mil para 545 mil em Kyushu, e que uma invasão direta à ilha resultaria em uma eminente catástrofe de mortes [Ibid. p.18]. Cita, ainda, os números de baixas ocorridos na tomada das ilhas das Filipinas, demonstrando altíssimo índice de fatalidades entre civis e soldados nipônicos. Mesmo afirmando que os bombardeios nucleares tornaram a rendição mais factível para o kokutai[palavra que se refere a estrutura de governo], Bess não nega o medo da invasão soviética como um fator, também, determinante. Todavia, assim como os historiadores ortodoxos, credita ao bombardeio atômico a rendição e as vidas poupadas por uma eventual invasão a ilha japonesa. Ele argumenta que caso o embargo a ilha fosse feito, ao contrário da elite americana estadunidense, haveria “o risco de fome e morte generalizada” [MUNHOZ. 2015. p.19]. Todavia, torna-se preciso compreender se o fanatismo japonês é de fato a pedra de toque que causaria todas as mortes por meio de sua resistência. Assim, podemos apresentar os relatos trazidos por Yoshikuni Igarashi [2011], que ajudam a desconstruir essa narrativa dos japoneses fanáticos por completo. Em um destes relatos, ele narra a história do fotografo Kikujiro Fukushima. Fukushima era um crente fiel no poder do Império japonês e desejava seguir a honra em prol do Estado. Entretanto, durante seu alistamento, que ocorreu contrário a uma recomendação médica devido um problema no fígado, ele vivenciou questões que o tiraram do transe da honra: Meu estômago, enfraquecido até o limite, rejeitava as comidas dos militares que continham feijões de soja [...] o que eu comia permanecia na forma original – e sujava minhas calças quando estava em sessões de treinamento [...]. Contudo, os poucos soldados que foram devagar nas suas ações e memorizações continuaram sendo punidos [como tinha acontecido desde o começo do recrutamento]. Três deles escaparam uma noite: um deles foi encontrado como um cadáver mutilado atropelado por um trem, enquanto outros dois foram içados do poço do complexo militar, inchados como bolas de borracha. Os oficiais e líderes do pelotão que correram até a cena, ficaram chutando os corpos até que as barrigas estouraram e os órgãos internos saíram, enquanto ficavam gritando: “Seus traidores” [KIKUJIRO apud IGARASHI, 2011, p.132]. Ao vivenciar a violência do Estado japonês em primeira mão, Kikujiro percebeu o quão ingênuo era sua crença. Sabe-se, também, que não era um mero caso isolado. Keiji Nakazawa[famoso Mangaka responsável por “Gen pés descalços”], relatou como sua família foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial por seu pai ser contrário a guerra [GLEASON, 2003]. Em seu relato, Nakazawa descreve a perseguição sofrida por sua família, na cidade, na escola e na vizinhança por conta dos posicionamentos de seu pai que afirmava que os militares iriam destruir o país. Em uma de suas entrevistas [Ibid], o mangaká fala sobre seu tio Miyake Yoshio que participou dos ataques a Pearl Harbor e ao voltar para casa conversou com pai de Nakazawa, afirmando que ele estava certo em afirmar que o Japão não poderia ganhar a guerra. Igarashi, ainda, argumenta que o desgaste causado pelo conflito na sociedade era tão grande que a maior parte dos japoneses almejavam o fim do conflito. O historiador descreve como casas de banho que abriam em dias intercalados abrem suas portas, cidades fizeram um “show de luzes” e como japoneses comemoraram em festas clandestinas portando itens de luxo que eram proibidos ao descobrirem que a guerra acabara [IGARASHI, 2011. p.134]. Desta forma, percebemos como há uma clara linha de raciocínio que permite questionar a crença do “fanatismo generalizado” sobre essa suposta nação formada de milicias fanáticas e altamente treinadas prontas para lutar até o último suspiro do último homem. Todavia, há duas certezas expressas em documentos oficiais do Estado japonês: o Japão já havia manifestado uma rendição em seus próprios termos e um manuscrito nipônico colocava a rendição como consequência da invasão soviética sem sequer mencionar a bomba atômica [HASEGAWA, 2005. p.250]. Os dados e análises feitos por Michael Bess mesmo que corretos não foram manifestados pelos japoneses, não em relação ao embargo ou combate com os Estados Unidos pelo menos. Assim, as narrativas ortodoxa e neo-ortodoxa buscam justificar as bombas atômicas no contexto político da Guerra-Fria e eximir os Estados Unidos de um possível crime de guerra. Considerações finais Ao longo deste ensaio foi elucidado a criação do acontecimento em torno dos bombardeios atômicos e as ramificações práticas na historiografia deste evento. Denotamos a cada corrente historiográfica seus próprios argumentos e entendimentos, assim como cada uma destas rebate a outra. Essa dicotomia se insere no presente e se estende em círculos sociais, políticos e culturais, sendo considerado um assunto tabu em muitos desses lugares. Não é sensato crer que essa disputa será cessada em breve. Sua incorrência no tempo presente se dá justamente porque há uma memória viva que representam ambas as correntes históricos que se debruçam a ler o acontecimento. Os últimos veteranos de combate da Segunda Guerra Mundial e os últimos sobreviventes dos bombardeios atômicos falecerão neste século. Todavia, a disputa pelos lugares de memória não cessará já que se tratam, também, de uma disputa política pelo protagonismo histórico por parte do Estado estadunidense. Como afirma Norá[1989], a história do tempo presente não se trata necessariamente da proximidade temporal dos fatos, mas sim de sua relevância no presente. Está relevância encontra-se na percepção destas narrativas sobre o “acontecimento” enquanto lugares de memória. Em contrapartida se torna necessário esse debate de forma ampla e aberta como forma de se evitar o esquecimento do horror atômico. Por fim, uma pesquisa promovida pela emissora NHK e desenvolvida por Kobayashi Toshiyuki [2007] revela a diminuição do interesse ao longo do tempo no assunto. Grande parte dos entrevistados já não leva em consideração a experiência dos sobreviventes na educação sobre o perigo atômico, e como 1 a cada 4 residentes de Hiroshima não sabe a data do bombardeio atômico, por exemplo. Entretanto, não é de fácil sustentação se evitar esse esquecimento, para Hasegawa [2005] seria preciso que o Japão confrontasse seus próprios fantasmas do passado para exigir a exumação dos bombardeios atômicos. A única forma de se evitar o esquecimento é trazendo a luz todos os problemas em torno da Segunda Guerra Mundial, assim como os desdobramentos do conflito na Guerra Fria. Referências Douglas Pastrello é mestre em História Política pela Universidade Estadual de Maringá, atualmente doutorando no programa de História Política da mesma universidade, com ênfase em pesquisa no Japão contemporâneo e cinema. ALPEROVITZ, Gar. Did we have to drop the bomb?. Washington Post. 1985. Disponível online. Último acesso em 28/11/2018. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/opinions/1985/08/04/did-america-haveto-drop-the-bombnot-to-end-the-war-but-truman-wanted-to-intimidaterussia/46105dff-8594-4f6c-b6d7-ef1b6cb6530d/?utm_term=.587bf4e461d7 BAGGULEY, John. A guerra mundial e a guerra fria. In: Horowitz, David [org.]. Revolução e Repressão. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1969. P.90-148. BESS, Michael. Choices under fire: moral dimensions of world war II. 2008. GLEASON, Alan. Keiji Nakazawa Interview. The Comics Journal. Disponível online em: http://www.tcj.com/keiji-nakazawa-interview/. Último acesso em: 10 de dezembro de 2020. IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: Narrativas do pós-guerra na cultura japonesa [1945-1970] Tradução de Marco Souza e Marcela Canizo. São Paulo: Annablume, 2011. HASEGAWA, Tsuyoshi. Racing the enemy: Stalin, Truman and the surrender of Japan. Cambridge: the belknap press of harvard university press. 2005. MUNHOZ, Sidnei. Os EUA e a conclusão da II Guerra Mundial: os impasses concernentes à Guerra do Pacífico e ao extremo oriente. Huellas de Estados Unidos. Nº9. 2015. p.5-23 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28 . NORA, Pierre. O acontecimento e o historiador do presente. In: LE GOFF, J. et alii. A Nova História. Lisboa: Edições de 70, 1989. NORA, Pierre. O retorno do Fato. In: LE GOFF, J. & NORA, P. [org]. História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. PASTRELLO, Douglas T. Fragmentos da dor – a memória e o pós-guerra japonês a partir do filme Rapsódia em agosto [1991]. 122 fls. Dissertação [Mestrado em História Política]. Universidade Estadual de Maringá: Maringá. 2020. TOSHIYUKI, Kobayashi. Fading memories of the atomic bomb and growing fears of Nuclear War. Tóquio: NHK Broadcasting studies. N.5. 2007. Disponível online em: https://www.nhk.or.jp/bunken/english/reports/pdf/06-07_no5_10.pdf. Último acesso: 24/03/2020. IMPERIALISMO JAPONÊS NA PENÍNSULA COREANA NA ÓTICA DOS K-DRAMAS MR. SUNSHINE: UM RAIO DE SOL E CHICAGO TYPEWRITER Eduarda Christine Souza Pucci Com as grandes transformações que o século XIX e XX que aconteceram no continente Asiático, podemos destacar o fim do Xogunato e a ascensão do período Meiji [1868–1912], no Japão, momento este que o povo japonês vivenciou mudanças em seu cotidiano e política. A partir dessa nova forma de organização, o Japão começa a se desenvolver industrial e militarmente, com o advento da ocidentalização causada com uma interferência dos Estados Unidos em seu território. Nesse momento, o governo japonês abre o país para essa nova forma de vida e começa a planejar técnicas de ascensão do Japão na Ásia. Uma dessas técnicas de poderio do Japão foi a anexação da Península Coreana, que ocorreu no século XX, ocasião esta que ficou marcada por muitos conflitos, resistência e memória, além de um forte sentimento de nacionalismo coreano. Deste modo, será apresentado um breve resumo sobre o período do Meiji e como as características que essa revolução causou ao Japão, influenciou na futura posição imperialista que irá ocorrer e como essas relações vão afetar a Ásia Oriental, principalmente a Península Coreana, que vivia a Dinastia Joseon. Assim, irá ser exposto como acontecia essa relação entre Japão-China-Coreia, e como o Império Japonês conseguiu se tornar tão grande e expressivo em pouco tempo, além de deixar grandes marcas na vida e na cultura coreana. Assim, por último, para tentar ilustrar como ocorreu essa prática imperialista Japonesa na Coreia, os k-dramas sul-coreano “Mr. Sunshine: um raio de sol” [tvN, 2018] e o k-drama “Chicago Typewriter” [tvN, 2017] servem como exemplo esse momento. A escolha dessas produções audiovisuais se deu, pois, elas apresentam essa temática da Invasão japonesa na Península Coreana, desde os primeiros tratados até a tentativa do processo de independência, que ocorrem em consonância com a Segunda Guerra Mundial [1939–1945]. O Japão na conquista do Continente Asiático frente as potências ocidentais e a anexação da Península Coreana Antes de começar a falar sobre como foi o processo imperialista realizado pelo Japão, é importante ressaltar o que foi a Revolução Meiji e qual o seu impacto de uma nova visão que o Japão irá ganhar. Segundo Henshall, as instituições e práticas do ocidente iriam ser introduzidas não apenas na política, forças armadas, indústria e economia, mas na sociedade em geral [2008, p.114]. Esse período, foi compreendido por diversas transformações internas na política e militarização do país, além de suscitar influências dos processos de colonização de territórios como a América e África, que o continente europeu efetuou no começo do século XV. O Japão, ao observar esse fenômeno, segundo Ehalt, com a crescente influência ocidental e o com o crescimento da militarização, o país tornou-se uma potência imperialista. O ideal de Fukuzawa Yukichi, de abertura e civilização, foi gradualmente abandonado em prol do objetivo do governo de tornar o país uma das grandes potências mundiais da época [2013, p.132]. Por conta desse crescente sentimento de ser fazer presente, e pelo receio de ser dominado mais uma vez pelo ocidente, decide implementar características e estratégias como as feitas pelas potências, como a Norte Americana e de países da Europa, em a adquirir colônias, tanta para projetos militares, quanto para obtenção de matérias-primas, além de ser manter presente no cenário internacional que estava se formando. O processo de anexação da Coreia pelo Japão começa com o Tratado de Ganghwa [1876], em lembrança aos “tratados desiguais” impostos do ocidente ao governo do Japão. Esse tratado concede certos poderes ao Japão sob a Coreia, que ocorreu quando um grupo de representantes e autoridades militares, econômicas e do governo japonês buscou anexar a Península Coreana política e economicamente ao império japonês [Brites, 2020, p.17]. Logo, após 1884, com a convenção de Tiensin, o Japão conseguiu a retirada das tropas chinesas da Península Coreana, as quais regressariam com a vitória Japonesa nobre a guerra Sino-Japonesa [1894–1895] [Azenha, p.9], acontecimento que deixou o Japão em grande vantagem em reconhecimento das potências ocidentais, no período do século XIX, pois ao derrotar a China, que ao ver era um grande Império e conhecida por sua extensa territorialidade, o pequeno Japão a derrota, trazendo uma imagem de humilhação por parte da civilização chinesa e da Dinastia Qing [ 清 朝 ]. Voltando para a Península Coreana, o Japão ainda continua a tentativa de anexação do território coreano, com isso em 1905 no Tratado de Eulsa, o Japão cria a imagem que os Coreanos precisam do Império Japonês por ser uma nação asiática que está em crescimento, além do fato, do Japão ter vencido mais uma guerra, dessa vez contra a Rússia, na Guerra Russo-Japonesa [1904–1905], fazendo com que a essa imagem de crescimento japonês fique legitimada. A partir do tratado de Eulsa, passam alguns anos e o Japão anexa a Península Coreana, em 1910. O Império do Rei Gojong termina e se inicia o processo colonial com o apagamento gradual da cultura do povo coreano e a imposição de características nipônicas ao cotidiano da Coreia, o que gerou um sentimento antijaponês que já vinha sendo construído desde as primeiras tentativas de controle da península. Uma dessas práticas feitas pelos japoneses variava, entre substituir o idioma, tentativa de acabar com o uso do Hangul [alfabeto oficial da escrita coreana], e também o sistema monetário, as redes de transporte, o comércio e vendas das terras a força que posteriormente eram revendidas para Japoneses. Diante de tudo isso que estava ocorrendo, começam a eclodir manifestações em repúdio a todas essas transformações bruscas e sem consentimento do povo coreano, uma das mais repercutidas, foi o movimento 1° de março de 1919, em que vários coreanos foram as ruas pedindo por sua independência frente à ocupação japonesa que ainda era presente na península. Porém o governo japonês não respondeu de uma forma pacífica a esse movimento, pois no decorrer da passeata, muitas pessoas ficaram feridas e houve mortes também [Koreapost, 2020]. Conforme aconteciam esses levantes de intelectuais coreanos na península, a relação entre a China e Japão continuava conflituosa, por isso aconteceu a Segunda Guerra Sino-Japonesa [1937] e também alguns anos depois, na Europa eclode a Segunda Guerra Mundial [1939–1945], conflito que o Japão posteriormente adentra com a Guerra no Pacífico [1941], com o ataque a base naval de Pearl Harbor no Havaí. À medida que esses conflitos iam crescendo, que já estavam tomando grandes proporções, na Ásia, o exército japonês inicia um capítulo de uma atrocidade que iria ficar marcado na história, como “mulheres de conforto”, nome dado às mulheres que eram obrigadas a prestarem serviços sexuais a soldados japoneses. Além de mulheres coreanas, essa escravidão sexual era realizada com mulheres pertencentes aos países em que o Japão tinha domínio imperial [Andrade, 2020, p.133–134], porém o maior quantitativo de vítimas era de origem coreana e chinesa. Esse período de anexação e crimes dura 35 anos e tem seu fim na Segunda Guerra Mundial, quando o Japão renuncia à guerra após muita luta em prol da independência e, após a rendição Japonesa na Segunda Guerra Mundial, é retirado suas tropas da coreia. Porém, após o fim desse conflito em busca de liberdade, a península é dividida em Norte e Sul, com influências e ideologias divergentes, fazendo com que mais um período turbulento se aproxime da vida dos coreanos. Uma história coreana sob o olhar audiovisual dos K-dramas, a partir de Mr. Sunshine e Chicago Typewriter Para ilustrar os acontecimentos até agora já citados neste ensaio, o K-drama “Mr. Sunshine”, escrito por Kim Eun Sook, apresenta uma primeira parte de como ocorreram as tentativas de colonização do Japão na Coreia. Para seguir uma ordem cronológica, se passa na Dinastia Joseon [1392–1910]. As primeiras cenas do drama se passam no ano de 1871, ano que marca a expedição norte-americana em Joseon, que começa a contar a história de Choi Yu-jin [Lee Byung Hun], um escravo refugiado que, no decorrer do drama, sua vida muda completamente com sua ida aos Estados Unidos e mudança de seu nome para Eugene Choi. Os primeiros acontecimentos históricos retratados no drama é o Tratado de Ganghwa [1876], a Reforma Gabo [1894] e a Guerra Hispano-Americana, com enfoque na Batalha de Caney [1898]. A utilização desses episódios servem de apoio à história que irá ser contada e para dar também uma certa legitimidade e ilustrar o acontecimento histórico que o drama quer transmitir e assim prender a atenção do telespectador, principalmente para os fãs do gênero. Já o K-drama “Chicago TypeWriter”, escrito por Jin Su-wan, utiliza uma forma diferente de abordar o que estava acontecendo na Península Coreana, nos anos 30. A história se passa no tempo passado e presente, nos anos de 1930 e 2017, respectivamente, em que Han Se-joo [Yoo Ah In], um dos personagens principais, é um escritor famoso e ganha uma secreta máquina de escrever e sua vida muda completamente, com a presença de Jeon Seol [Lim Su-jeong], uma fã que junto com ele possui um passado desconhecido da outra vida que tivera. O ponto principal do drama é a presença do fantasma de Yoo-Jin-oh que, ao reencontrar Han Se-joo no presente, tenta voltar ao passado e descobrir o motivo de sua morte. A partir dessas voltas que ocorrem no decorrer da trama, é possível observar uma Coreia tomada pelos Japoneses e sem identidade, onde os três amigos juntos com um grupo de rebeldes anti-japão, buscam pela independência coreana. A forma como são retratados os acontecimentos históricos, servem para dar uma introdução para se fazer entender uma parte da história presente no conteúdo histórico ficcional. O uso do período de ocupação Japonesa na península coreana desde seu começo com o neocolonialismo japonês na Ásia no século XIX e a ocupação da Coreia em [1910– 1945], que deixaram uma grande ferida na península, faz com que chame a atenção do telespectador. Considerações Finais Diante do que foi exposto, pode-se notar que o processo de anexação da Península Coreana, aconteceu em etapas, com tratados, em referência a como os Estados Unidos chegam pela primeira vez no território Japonês. A partir dessa memória, o Japão inicia seu processo de desenvolvimento industrial. Com o começo da revolução Meiji, mudanças ocorrem no cotidiano e na militarização, fazendo com que ele se torne um gigante asiático em vista da China. O neocolonialismo na Coreia, fez com que o governo japonês pudesse crescer ainda mais em vista das potências ocidentais dos séculos XIX-XX. Porém, o que foi uma coisa boa para o Japão não foi para a Coreia, pois além de transformações impostas e mudanças de poder, houve um acontecimento que iria ficar marcado na história e nas relações entre Japão-Coreia, que são as mulheres de conforto, prática que deixou cicatrizes na memória das vítimas coreanas e mulheres de continente asiático também. Destaca-se, também, o papel do audiovisual na introdução de temas históricos. Por mais que seja algo fictício, pode gerar uma curiosidade no telespectador em referência à história que está sendo apresentada. Em virtude disso, os k-dramas mostram e estabelecem um sentimento de memória e investigação com a história que está presente na dramaturgia. A escolha de “Mr. Sunshine” e “Chicago Typewriter”, é exatamente com esse intuito. Além das produções serem bem elaboradas, elas descrevem uma parte do processo de anexação Japão-Coreia, apesar de não mostrarem fielmente os fatos de como foram os 35 anos de luta por independência, é possível criar interesse pelos temas passados. Desse modo, os fatos e exemplos até aqui mostrados, serviram para demonstrar e fazer uma breve síntese de como ocorreu o Imperialismo Japonês e como aconteceu a anexação da Coreia ao Japão. De início foi apresentado uma parte do que foi o Meiji, parte importante da história de como o Japão conseguiu se desenvolver ao passo que o ocidente adentrava na Ásia. Logo após, foi expresso como a Península Coreana e a Dinastia Joseon foi submetida às características que o Japão pretendia implementar. Por fim, foi demonstrado como os k-dramas do gênero histórico também ajudam a propagar uma história de luta pela independência do povo coreano pela sua liberdade diante do Japão. Referências Eduarda Christine Souza Pucci é discente do curso de Licenciatura em História, pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. ANDRADE, Andreyna Alencar. O estupro como tática de guerra. III MEPE – Mostra de Ensino, Pesquisa e Extensão da FACAPE. 2020, p.127-128. Disponível em: <https://1732-26884.el-alt.com/wpcontent/uploads/eventosacademicos/ANAIS%20MEPE%20%202020%20%20.pd f#page=150 > AZENHA, Tatiana. Diferendo Dokdo/Takeshima A gestão de conflitos das relações Coreanas e Japonesas Marítimas na dinastia de Joseon. Disponível em: Academia.edu. Disponível em <https://www.academia.edu/10510500/Diferendo_Dokdo_Takeshima_A_gest%C 3%A3o_de_conflitos_das_rela%C3%A7%C3%B5es_Coreanas_e_Japonesas_Mar %C3%ADtimas_na_dinastia_de_Joseon> [p.9] BRITES, Alessandra Scangarelli. Imperialismo e Colonização: A representação das relações intrínsecas e dúbias entre as elites Japonesa e Coreana através do cinema. Faces da Ásia. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/CEA-UFF, 2020. ISBN: 978-65-00-08730-7 163pp. Disponível em < https://www.academia.edu/44312376/Faces_of_Asia_Faces_da_Asia_book_ > [p. 13-23] EHALT, Rômulo da Silva. Notas sobre o nascimento da historiografia moderna no Japão da Era Meiji. História da historiografia, Ouro preto, n. 12, agosto, 2013. 119-136. doi: 10.15848/hh. v0i12.601 HENSHALL, K. História do Japão, parte IV. Edições 70, 2008, p.107-150. MOVIMENTO 1° DE MARÇO [verbete]. Koreapost [2020]. Disponível em <https://www.koreapost.com.br/conheca-a-coreia/historia/1o-de-marco-o-dia-domovimento/> MÚMIAS ORIENTAIS: UMA BREVE DISCUSSÃO DE EMBALSAMAMENTO, TANATOLOGIA E RITOS FÚNEBRES EM CIVILIZAÇÕES DO EXTREMO ORIENTE Eduardo Mangolim B. da Silva e Gessica de Brito Bueno Introdução A morte é um processo que acomete todos os seres vivos existentes, perpassando por todas as temporalidades. As sociedades compostas pela espécie humana temem esse processo devido ao desconhecido evocado. Se a vida tem sentido por meio das interações sociais, a morte se traduz em temor por quebrar tal aspecto [MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 3]. Isso fica claro no terror que um cadáver sem preparação gera. As etapas da cadaverização como o Livor Mortis, o Rigor Mortis e a decomposição geram o sentimento de desamparo [COLMAN, 1997, p. 42]. Enquanto a morte é temida de maneira natural, o cadáver recebe procedimentos artificiais devido ao terror. Esse processo, historicamente construído, está atrelado a determinantes culturais. As sociedades pré-literatas por exemplo, fugiam da morte. No entanto, aos poucos esses grupos foram reconstruindo sua relação com o fim da vida. A busca de evitar a morte designou ritos ao cadáver [MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 3-4]. Um dos ritos é o embalsamamento, este procedimento significa um confronto com a morte. Esse processo depende da visão de mundo do grupo que o pratica. Quando se compara diferentes culturas, com distintos aspectos religiosos, é possível compreender quais eram as intenções ao lado das mais diversas técnicas utilizadas [COLMAN, 1997, p. 45-48]. O embalsamamento, seja natural ou artificial, possui como produto restos humanos que preservam partes orgânicas, mantendo assim a forma e parte da aparência. O embalsamamento de forma natural, é aquele produzido em local árido, seja com ou sem intencionalidade humana. Quando havia a intenção, nesse caso, ele passa a ser considerado como natural-artificial. A mumificação mantém a estrutura intracelular apesar da perda da funcionalidade da célula [LYNNERUP, 2007, p. 162-164]. O embalsamamento, enquanto técnica, mudou no decorrer do tempo de acordo com as intenções para sua realização. Os autores Erich Brenner e Robert G. Mayer estipularam que existem três períodos distintos na história dessas técnicas, que se definem por meio das diferentes intenções para a conservação do cadáver. O primeiro período é chamado período das culturas antigas, se iniciando com as primeiras evidências até o ano de 650 D.C; o segundo período é conhecido como período dos anatomistas [650 D.C. - 1861 D.C.]; e o terceiro e último período é conhecido como período funerário [1861 D.C. - tempo presente] [BRENNER, 2014, p. 316] [JOHNSON et al, 2012, p. 983]. Diversas culturas existiram após 650 D.C., praticando o embalsamamento por motivos religiosos e mágicos. Tais motivos aparentam ser os grandes motivadores da realização da preservação cadavérica para tais culturas [JOHNSON et al, 2012, p. 983] [THOMAS, 1989, p. 236]. Geralmente a intenção era de preservar o cadáver para que seu espírito, ou identidade pudesse transitar ao seu respectivo paraíso ou pudesse continuar existindo no espaço terreno [MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 4] [THOMAS, 1989, p. 236]. Tais procedimentos tinham centralidade nessas sociedades. O lidar com a morte garante coesão social e reorganização grupal, independente do processo proposto [ARRIAZA et al, 1998, p. 196]. Os marcos temporais do embalsamamento referenciam o começo de novas intenções para embalsamar e não o fim dos interesses anteriores [BRENNER, 2014, p. 316] [JOHNSON et al, 2012, p. 983]. Esse material está centrado nos modelos de embalsamamento praticados entre culturas do extremo oriente. Como ficará claro no decorrer do texto, as intenções de tais culturas ao longo do tempo se pautaram em noções religiosas. Outro elemento que será apresentado, é a questão de que existem dúvidas se alguns casos de múmias se deram com intenções de preservação da imagem, indo além da questão religiosa. Cadáveres defumados, dessecados, encharcados e eviscerados: Embalsamamento e tanatologia em civilizações do extremo oriente A Ásia com sua ampla vastidão territorial e com uma diversidade considerável de civilizações, produziu uma série de procedimentos de embalsamamento. Partindo disso o modelo mais antigo se deu na China. No caso Chinês, existem múmias de diferentes períodos, tendo elas surgido por via natural, artificial intencional e artificial não intencional. A China desde o século II A.C. se encontra unificada como um poderoso império. A medicina dessa civilização sempre fora bem desenvolvida, questão essa que incidia em como eles lidavam com seus defuntos [MONTGOMERY e KUMAR, 2016, p. 169-191]. Múmias foram encontradas no sítio arqueológico de Mawangtui, construído durante a dinastia Han [206 A.C.–9 D.C.]. Esse conjunto arqueológico de tumbas, permitiu verificar os corpos ali encontrados, inclusive se foram embalsamados. O cadáver de um senhor feudal chinês recebia banhos com águas perfumadas e vinho de oferenda. O corpo era enrolado em tecidos para ser inumado. Esses processos retardavam a putrefação, mas não eram agentes embalsamadores. Como o corpo era inumado em caixões, provavelmente a mumificação se dava de maneira artificial não intencional. Elas surgiam da falta de oxigênio e pela decomposição dos tecidos de seda, o que tornou o PH interno ácido [bactericida] [SAKURAI et al, 1998, p. 329-334]. Esse processo de mumificação aparenta não ter intencionalidade, porém diferente das múmias naturais, ele se enquadrada num modelo artificial, devido à maneira que o corpo era sepultado. A naturalidade é porque não foram empregados recursos pensados à preservação cadavérica. A artificialidade ocorre porque esse cadáver não estava exposto à um espaço aberto natural, mas sim sepultado em um caixão. Portanto, neste contexto a mumificação não foi planejada, acontecendo por meio de sorte, dependente da decomposição da seda e da falta de oxigênio [WANG, 1996, p. 59]. A alma era muito importante na cultura chinesa. Apesar de tal relevância, a preservação não era essencial para a transição, mas sim a boa disposição fúnebre do cadáver. Mesmo que nesse caso possamos pensar na ideia de uma mumificação artificial não intencional, foram encontradas evidências em outros locais que sugerem a possibilidade do embalsamamento [WANG, 1996, p. 59]. Alguns cadáveres estudados das dinastias Song [960-1270] e Ming [1368-1644], revelaram que no interior de seus caixões havia sinais de mercúrio e de cal [SHIN et al, 2021, p. 15]. Esse método de embalsamamento era destinado apenas à nobres. Nesse método ocorria o dessecamento prévio da múmia, sendo essa disposta numa solução de mercúrio ou cal por longo tempo e depois inumada [WANG, 1996, p. 59]. Outra questão que pode ter gerado a mumificação nesses casos, pode ter sido o emprego do método Hoegwakmyo que também era utilizado pela dinastia Joseon [13921910] da Coréia do sul. Nesse modelo, o corpo era colocado em dois caixões, um dentro do outro, sendo o ar retirado de ambos. Ao redor desses caixões era colocado carvão e cal, sendo esse caixão inumado e selado com uma pedra cimentada [OH et al, 2017, p. 71-73]. Esse modelo não permitia contatos dos corpos com o ambiente externo [SHIN et al, 2021, p. 5]. No caso do Japão a maioria das múmias encontradas são de tipo natural não intencional [YAMADAL et al, 1996, p. 76]. No entanto os cadáveres do clã Fujiwara [794-1185] demonstram sinais de possíveis tratamentos preservativos [FUJITA et al, 2021, p. 7-9]. Esse clã aparenta ser o único a ter produzido múmias artificiais no Japão, sendo algo não muito comum no país, além do processo de auto-mumificação [SAKURAI et al, 1998, p. 313]. A metodologia de mumificação desenvolvida pelos Fujiwara é desconhecida. É possível que houvesse a evisceração, sendo o corpo dessecado e disposto em solução de mercúrio [FUJITA et al, 2021, p. 9] [YAMADAL et al, 1996, p. 76]. O modelo de auto-mumificação de monges budistas esteve presente em muitos países asiáticos. O modelo Japonês Nikushin é um dos mais famosos, apesar de semelhanças com o método Chinês, eles possuem diferenças [SAKURAI et al, 1998, p. 308]. O objetivo era o de encontrar o nirvana por meio de imolação, além de que eles pretendiam renascer em 5,670,000,000 anos, momento que surgiria o buda do futuro [Maitreya Buddha] [HORI, 1962, p. 225]. Esse procedimento tem sido comum na ilha asiática desde o começo do século XI [BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 47]. Essa múmia é chamada de Sokushinbutsu, sendo ela produzida por meio de uma intensa dieta e ascetismo [FUJITA et al, 2021, p. 3] [HORI, 1962, p. 226]. A dieta restringia cereais e uma série de alimentos, havendo apenas consumo de sementes, castanhas, pouca água e um chá de uma árvore chamada Urushi [BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 48-49]. O baixo consumo de alimentos tornava os níveis de gordura, massa muscular e hidratação mínimos [FUJITA et al, 2021, p. 4]. Acredita-se que o chá propicie a criação de condições bactericidas internas no corpo [BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 49]. Quando alguém importante falecia os outros monges entravam em ação colocando o corpo em uma urna funerária que seria inumada por três anos [SAKURAI et al, 1998, p. 314]. Nessa urna era colocado papel, madeira ou cal para absorver a umidade [BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 49]. Quando o cadáver não ficava bem preservado surgiam alguns auxílios por parte dos monges. Um dos processos poderia ser um dessecamento com fogo ou por meio da defumação [SAKURAI et al, 1998, p. 323]. Em casos raros havia a realização da evisceração e introdução de cal no corpo [FUJITA et al, 2021, p. 4]. Se o corpo estivesse pronto ele era disposto na posição de lótus, sendo enfeitado e pintado com ouro [BECKETT e CONLOGUE, 2015, p. 49]. O último caso de mumificação aqui apresentado é o das múmias de fogo produzidas nas Filipinas. O grupo que produz essas múmias, chamadas de Igorot, são os Ibaloy que vivem na região de Benguet. Essa técnica se originou entre 2000 A.C. e 1200 D.C. Porém, a maioria dos exemplares datam entre 1700 D.C. e 1900 D.C. As Filipinas possuem traços culturais mais próximos com a região da Oceania. Isso reflete na própria forma de embalsamamento dos Ibaloy, que tem muitas semelhanças com o realizado pelos Anga de Papua Nova Guiné [BECKETT et al, 2015, p. 127; BECKETT et al, 2017, p. 30; BECKETT, 2021, p. 4]. A intenção era embalsamar os entes queridos e colocá-los na montanha sagrada Kabunyan. Essa montanha seria o deus criador dos Ibaloy. Portanto, atrelados a tal mito cosmogônico, os mortos deveriam retornar ao seu local de criação. A alma permanecia no corpo, porém estaria com deus no interior da caverna, sendo algo realizado para os dois sexos e para todas as idades [BECKETT et al, 2015, p. 127; BECKETT et al, 2017, p. 35; BECKETT, 2021, p. 11]. Como a região era muito úmida e quente, esse procedimento dependia da ação humana. Logo no falecimento a mumificação era iniciada. Uma solução de água e sal era deglutida pelo recém falecido. O corpo era lavado com água fria, sendo todo enrolado num lenço fúnebre, com a cabeça recebendo um cachecol do mesmo tecido. O cadáver era disposto em uma cadeira fúnebre, amarrado com cipós e disposto numa cabana de defumação. Embaixo da cadeira uma chama era acendida para que ocorresse a desidratação. Os líquidos iam extravasando do corpo devido ao calor, além de que, um processo manual e a gravidade auxiliavam os fluídos corporais a caírem num jarro, além de serem absorvidos pelo lenço fúnebre [BECKETT et al, 2015, p. 128; BECKETT et al, 2017, p. 28-29; BECKETT, 2021, p. 17]. O corpo era exposto ao sol, tinha sua pele descamada e depois retornava à cadeira. Uma loção composta do extrato de plantas como Psidium guajava, Ficus septica, Phaseolus lunatus, Dolichos lablab, Embelia philippinensis era ministrada sobre a pele. A múmia ficava entre 40 e 60 dias na cabana defumando. Além da defumação corporal, fumaça de tabaco seria introduzida na boca da múmia. A fumaça e a solução salina provavelmente não tinham os respectivos efeitos de proteção e desidratação interna esperados. A composição fenólica e a presença de formaldeído da fumaça da madeira, adiavam a putrefação. O calor intenso do fogo promovia a desidratação. Por fim, as loções provavelmente geravam uma camada externa alcalina ou ácida com ação bactericida [BECKETT et al, 2017, p. 29-30; BECKETT, 2021, p. 17-19]. Esses corpos eram colocados em caixões de formatos ovais, retangulares ou de tamanho amplo onde toda uma família poderia ser disposta. Havia muitas comemorações antes de serem depositados nas cavernas, ocorrendo danças, oferendas e sacrifícios. Apesar do clima quente e úmido da ilha, as cavernas são frias e secas. Além disso, os cadáveres estão em caixões, portanto eles podem durar centenas de anos [BECKETT et al, 2015, p. 129; BECKETT, 2021, p. 18]. Considerações finais No início deste material foi informado que o primeiro período de embalsamamento foi até 650 D.C., momento em que o segundo período surgiu [BRENNER, 2014, p. 316]. Posto isso, as técnicas que pretendiam o pós-vida não desapareceram a partir de 650 D.C. e muitas ainda estariam por vir, como ficou evidente no decorrer do texto. A divisão dos períodos designa novos paradigmas surgindo, e não o desaparecimento dos prévios [BRENNER, 2014, p. 316]. O modelo do Período das culturas antigas possui longa duração. Por um lado, temos múmias como as dos Chinchorro, cultura que não foi trabalhada nesse material, sendo produzidas desde 7000 A.C. [ARRIAZA, 1996, p. 131]. Por outro lado, se nota que, até o começo dos anos 1900 os Ibaloy ainda realizavam o embalsamamento com a intenção de alcançar o pós-vida [BECKETT, 2021, p. 4]. Os métodos desenvolvidos revelam uma série de questões que podem ser discutidas e comparadas. Em alguns grupos apenas líderes, guerreiros e membros da corte poderiam ser embalsamados, enquanto em outros era algo mais coletivo. No primeiro caso se incluem os Chineses, Japoneses, Coreanos, as Múmias budistas e os Ibaloy. No caso do extremo oriente não foi achada nenhuma cultura com prerrogativas coletivas. Nos grupos com premissas menos coletivas, a posição hierárquica do indivíduo era o ponto central. Esse processo era voltado para a elite. A questão de gênero está envolvida nesse debate, pois em boa parte dos casos, apenas homens ocupavam tal posição, havendo somente o embalsamamento destes. Em relação aos chineses, japoneses e coreanos os indivíduos que ocupavam o poder eram homens. Sendo assim o embalsamamento era uma prática destinada a eles. No entanto nesses casos membros da corte também podiam passar por processos de preservação cadavérica. Essa proposição determina que esposas e mulheres com funções na corte, puderam ser embalsamadas. No caso dos Ibaloy, inicialmente apenas líderes eram embalsamados. No entanto famílias inteiras começaram a passar por tal processo, porém ainda haviam excluídos de tais ritos. As intenções nos casos apresentados de embalsamamento estiveram atreladas à uma busca pela continuidade da essência dos indivíduos [BRENNER, 2014, p. 316]. A continuidade poderia ser um paraíso terreno ou em outro plano, sendo processos utilitários ao grupo. Isso se dava de acordo com as construções teológicas e ideológicas dessas sociedades. Tais traços dependiam do espaço geográfico em que o grupo vivia, assim como a própria organização social dessa civilização [MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 3-4]. Interessa aqui estipular cada grupo dentro de um determinado modelo. Os grupos que acreditavam num paraíso em outro plano formado pelos chineses, japoneses, coreanos e budistas. O único grupo que tinha a ideia de um pós-vida terreno foram os Ibaloy nas Filipinas. Vale situar que para os Ibaloy suas múmias continuavam influenciando a sociedade. O espírito estava no plano terrestre mas também estava em contato com deus, podendo influenciar no cotidiano. A última questão a ser colocada remete às diferentes maneiras que foram propostas para embalsamar. Os primeiros grupos humanos, por longo tempo fugiram da morte, geralmente abandonando seus cadáveres pelo terror que ela causava [MOORE e WILLIAMSON, 2003, p. 4]. Isso mudou apenas com os Chinchorro, que produziram intencionalmente as primeiras múmias naturais de que se tem registro [ARRIAZA, 1996, p. 134]. Foi por meio da observação do ambiente natural, e de outras técnicas, que as civilizações puderam pensar em realizar dinâmicas de embalsamamento [COLMAN, 2997, p. 48]. As inspirações de cada grupo se deram de acordo com as condições ambientais que lhes cercava. É por meio das primeiras tentativas de conservação de corpos, fosse na observação ou realização de mumificação natural, que esses grupos começaram processos tanatopráticos de preservação [LYNNERUP, 2007, p. 162]. Com relação a certas culturas foram os dois fatores, geografia e costumes internos, como a defumação da caça, que propiciaram tal prática. Em outros foi apenas um deles, pois as condições ambientais poderiam não ser propicias para ser natural, ou o grupo não realizava defumação nem salgavam a carne, estando dependentes de um dos dois fatores [COLMAN, 2997, p. 48]. Determinadas as origens da mumificação, vale situar cada técnica de acordo com os grupos. Em relação à técnica de mumificação natural-artificial nenhum dos grupos aparenta ter tido tal tendência. A técnica de evisceração ao lado de dessecamento, se deu quando necessário entre os Budistas no Japão. O modelo de defumação se deu entre os Ibaloy das Filipinas e, quando necessário, na Automumificação Budista. Um modelo específico se deu entre Chineses e Japoneses, que foram as múmias produzidas por dessecamento e imersas em solução preservativa de mercúrio. No caso dos japoneses pode ter havido a evisceração previamente à imersão preservativa. O caso do sítio de Mawangtui é complexo. Não se sabe se foi intencional ou não, no entanto é possível propor que não foi um processo natural, pois dependeu da maneira que o cadáver fora inumado. No caso da técnica Hoegwakmyo é preciso propor que a intenção era de manter o cadáver preservado. Essa técnica foi utilizada na China e na Coréia, garantindo em alguns casos a preservação cadavérica. O esquema acima apenas resume e organiza as metodologias de embalsamamento. É possível notar que os recursos e primor técnico foram diferentes, mesmo que a lógica fosse a mesma. Portanto múmias de diferentes qualidades e resultados foram obtidas [COLMAN, 2997, p. 48]. Tal comparação não pretende dizer que existem modelos piores ou melhores, mas sim que um pode ser entendido como mais sofisticado que o outro. No entanto, a efetividade de um ou de outro método, depende também das condições naturais em que essas múmias eram preservadas. Todos os métodos apresentados foram capazes de gerar múmias com partes orgânicas ainda presentes. A comparação de efetividade só poderia acontecer se elas fossem produzidas em ambientes similares. Mas uma referência pode ser estabelecida a partir de dados como os procedimentos de mumificação adotados e com quais recursos foram utilizados [COLMAN, 2997, p. 48]. Referências Bibliográficas Eduardo Mangolim Brandani da Silva é mestrando em história na linha de História Culturas e Narrativas pelo programa de pós-graduação em história da Universidade Estadual de Maringá [PPH – UEM]. Também é membro do Laboratório de História, Ciências e Meio ambiente [LHC – UEM]. Gessica de Brito Bueno é graduanda em história pela Universidade Estadual de Maringá. Também é membro do Laboratório de História, Ciências e Meio ambiente [LHC – UEM]. ARRIAZA, B. “Preparation of the dead in coastal Andean preceramic populations” in Human Mummies. 1 ed. Nova Iorque: Springer – Verlag Wien New York, 1996, p.131-140. ARRIAZA, T.B., ARROYO, F.C., KLEISS, E. e VERANO, J.W. “South American Mummies: Cultures and disease” in Mummies, disease and ancient cultures. 2 ed. Cambridge: Cambridge university press, 1998, p.190-234. 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A arte dramática muito expressa sobre as preocupações, sentimentos e anseios comuns à sociedade, de modo que o teatro se desenvolveu ao longo dos tempos como uma importante ferramenta histórico-educacional que proporciona ao expectador uma elaborada leitura das realidades históricas e da visão dos autores sobre seu próprio contexto [CAETANO, 2011, p. 2]. Inicialmente, debateremos a formação da teatralidade Nôgaku no Japão, de modo a compreender o contexto e caracteres que fundamentam a arte Nô, bem como assimilar suas tecnicidades e elementos [atuações, dança e música, máscaras, cenário, etc.]. A posteriori, estabeleceremos uma analogia entre o teatro Nô japonês e a tragédia clássica do teatro grego antigo, observando aproximações e distanciamentos entre ambas as manifestações artísticas. Cabe ressaltar que o mito constitui uma memória de origem no Japão, de modo que o surgimento do teatro, remonta alegoricamente aos deuses. Seu surgimento faz menção à dança da deusa Ama-no-Uzume diante da caverna onde Amaterasu-ōmikami, a deusa do Sol, havia se escondido, afundando todo o mundo em trevas. Com sua performance Uzume conseguiu atrair Amaterasu, trazendo a luz do sol de volta à Terra [GIROUX, 1991, p. 109]. Assim, o teatro Nô se constitui como elemento de nobreza na sociedade nipônica, em virtude de estabelecer uma linhagem direta com a história xintoísta da deusa da alegria Uzume, que havia descido ao mundo para dar origem à família imperial e aos primeiros sacerdotes, além de difundir o teatro, com seu canto e dança, nas mais diversas formas de representação, aos seres humanos [Ibid., p. 110]. À vista disso, entre arte, história e espiritualidade, foi sendo composto, através dos séculos, o “ideograma teatral” [NAGAI, 2015, p. 177] que é o Nô japonês. Nôgaku, características do teatro japonês Ao abordar a história do teatro Nô é indeclinável que se mencione outra arte cênica, o Kyôgen. Ambas as artes estão tão ligadas que formam uma terceira categoria performática a partir de sua fusão, o Nôgaku. Além de dividirem sua história, desde a formação até os desenvolvimentos decorrentes do aperfeiçoamento ao longo de séculos, compartilham de igual espaço para atuação, um mesmo palco. Apesar disso, não é possível definir as origens exatas do Nôgaku [SAKAMOTO, 2012, p.75], mas vários estudos afirmam que ambas as formas teatrais foram desenvolvidas a partir de Sangaku, um conjunto técnico-artístico-acrobático introduzido em terras nipônicas pela China durante a Idade Monárquica, por volta do século VIII [GIROUX, 1984, p. 69]. Kyôgen e Nô se desenvolveram adjuntos, todavia salvaguardaram sua natureza distinta. Enquanto o Nô está ligado a temas históricos e sobrenaturais, não raramente tratando de conceitos espirituais e da morte, o Kyôgen se preocupa em abordar temáticas quotidianas da vida comum e, ocasionalmente, dialoga com o cômico [SAKAMOTO, 2012, p.76]. Além de divergências na forma, o Nô é um teatro de máscaras, centrado no canto e dança, a história se desenvolve em torno de um personagem e suas figuras são históricoespirituais, enquanto o Kyôgen é baseado em diálogos, não faz uso de máscaras, traz múltiplas personagens e se apoia nos acontecimentos cômicos e em figuras rotineiras, como já citado [GIROUX, 1984, p. 70]. Portanto, Donald Keene [1990, p.19] define o teatro Nô como sendo “um poema dramático baseado em eventos remotos ou sobrenaturais, realizado por um dançarino”. Este ator-dançarino pode fazer uso de máscara [apenas o protagonista], contracena com poucas personagens no palco e faz uso da musicalidade de um coro e da recitação de poesias para contar a história à plateia. O teatro Nôgaku apresenta uma rígida hierarquia cênica, definindo uma clara divisão das funções em palco. O protagonista [Shite] só pode ser interpretado por um ator que seja especializado em personagens principais, normalmente representa uma figura sobrenatural, deus, demônio, fantasma ou espírito. Não obstante, porém, há peças em que pode atuar como um ser humano vivo. O uso de máscara e o artifício da dança são exclusividades do Shite que convencionalmente veste brocado, um tecido de seda com pomposos adornos bordados em relevo, e realiza sua coreografia durante o clímax da história. A divisão tradicional de um espetáculo Nô se dá em dois atos, no primeiro temos o Maejite [Shite anterior] e no segundo o Atojite [Shite posterior] [SAKAMOTO, 2012, p.80]. Durante o primeiro ato a personagem se apresenta em sua forma no mundo dos vivos e por isso pode ser completamente diferente no segundo ato, quando assume sua forma verdadeira, do mundo espiritual – daí a divisão entre o Shite anterior e o posterior. Ademais, há o Waki, personagem coadjuvante e parceiro do protagonista, é sempre um ser humano vivo a quem o Shite recorre para encontrar a salvação de sua alma. O Waki é bastante representado como um monge, visto que é a personagem de ligação entre o mundo real e o espiritual, por isso comumente usa vestimentas monásticas pretas. Há ainda o Tsure, ator que auxilia os personagens, o Ai-kyôgen, ator responsável pela ligação entre o primeiro e o segundo ato da peça, o Kokata, um ator mirim que interpreta adultos e crianças, homens e mulheres, com o intuito de evitar na peça qualquer teor romântico ou voluptuoso [o que seria um desrespeito a essa arte com caracteres sacros]. Citamos ainda o Jiutai, um coro formado por algo entorno de seis a dez homens que vestem quimonos tradicionais e ocupam um lugar específico à direita do palco e os Hayashi, os músicos, ambos muito importantes para o desenvolvimento da peça, visto que o “espetáculo do Nô está centrado no canto e no bailado; as palavras são geralmente explicativas da ação” [GIROUX, 1984, p. 70], sendo justamente o coro o encarregado da narração lírica. Por fim, há o Kokên, um ator experiente que assegura o sucesso da peça zelando por todo o necessário e, em casos fortuitos, substitui o ator principal como Shite [SAKAMOTO, 2012, p. 82]. A exceção dos atores, os elementos utilizados no Nô são poucos, não há cenários e o palco não passa de “um tablado, uma ponte, um telhado e um pinheiro pintado ao fundo” [NAGAI, 2015, p. 176]. Esta arte, muito afeita à metafísica, prefere legar vasão à imaginação do público e à espiritualidade de sua poética, expressa em música e dança. Os acessórios adicionais, Tsukurimono, são bastante simples, não passam de um esboço ou croqui daquilo que devem representar. Segundo Keene [1990, p. 75] há três principais razões para a simplicidade dos elementos de palco no Nô. Primeiro, a facilidade de lhes colocar e retirar do palco conforme necessário; segundo, sendo simples não irão interferir no limitado lugar de atuação do palco; terceiro, evita-se interferir na atenção do público. Os Tsukurinomo são tão modestos e frágeis que exigem atenção dos atores para que não sejam destruídos em cena [SAKAMOTO, 2012, p. 92]. A classificação das obras Nô podem ser duas, variando de acordo com a natureza assumida pela peça – se acessam o mundo real ou o mundo espiritual, dos mortos [KEENE, 1990, p. 20]. São denominadas Genzai Nô aquelas cuja estrutura se assemelha ao do teatro ocidental, onde o tempo verbal das falas é presente, como se os acontecimentos ocorressem simultaneamente para personagens e plateia. Neste caso a peça faz referência ao mundo real, dos seres vivos. Também, há o Mugen Nô, sendo este o mais comum. Normalmente a narrativa se passa da seguinte forma, um viajante [Waki] chega a determinado local onde há uma intrigante história sobre alguém, o Shite lhe aparece em forma humana para lhe contar o episódio. A posteriori, o Shite revela ser ele próprio a pessoa da história e some do palco. O viajante, para pacificar a alma que encontrara, dedica preces e se recolhe em sono. Em seus sonhos o Shite retorna, agora em sua verdadeira forma, esta personagem do mundo espiritual revela a perspectiva dos mortos, expondo as motivações pela inquietação de sua alma. Derrota em batalha, ódio, vingança, ciúme, traição, amor não correspondido, dor de um filho morto, entre outros motivos que, quando aquietados pelo Waki, purga suas emoções mundanas e permite ao espírito alcançar a iluminação [KUSANO, 2013, p. 6]. Uma vez apaziguado o espírito dança em agradecimento ao monge errante e desaparece definitivamente. Segundo Mamiko Sakamoto [2012, p. 85], “sua estrutura, apresentada como um morto dentro do sonho do monge é raramente vista nas outras formas teatrais, fazendo com que o Nô seja um teatro único”. De fato, este elemento apaziguador faz do Nô uma forma singular de arte, a partir da qual se anseia sossegar as vítimas do passado japonês, ainda que suas vidas tenham sido esquecidas. Por este motivo dizem alguns autores que o Nô é um drama cujo foco concerne à salvação da alma [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 15]. Isto não de forma missionária ou evangelizadora, como no teatro cristão jesuíta, mas de maneira a acalmar a alma daqueles que se foram para que, de semelhante maneira, houvesse paz no mundo dos vivos. Afinal, a saúde e bem-estar da sociedade estava anexada à salvação das almas infelizes [Ibid., p. 276]. Não à toa, o teatro Nô e a religião [tanto Xintoísmo, quanto Budismo Zen] estavam intimamente relacionados no Japão [NAGAI, 2015, p. 176]. Exemplo disso é o fato das companhias teatrais [Za] da época estarem sempre associadas a um dos grandes templos ou santuários [KUSANO, 2013, p. 5]. Relações com a tragédia grega Por suas características, não é atípico que relacionem o teatro Nô japonês com manifestações dramatúrgicas do Ocidente, como a tragédia helênica e até mesmo a ópera moderna [SAKAMOTO, 2012, p. 77]. É inequívoco que, de fato, há aproximações principalmente entre o Nô e o teatro grego trágico. Arthur Sadler [2010, p. 15] enumera e versa sobre cada uma destas afinidades. A saber, 1] a existência do coro; 2] poucos atores contracenando em palco; 3] a não identificação do protagonista; 4] exclusividade masculina dentre os atores; 5] temática histórica ou trágica; 6] ausência de cenário e destaque dos gestos; 7] uso de máscaras. Apesar destas semelhanças o autor defende que não há relações entre os gêneros, visto que cada um deles é conceituado por diferentes características, visão esta que é ratificada por Donald Keene [1990, p. 9]. Quanto o que concerne ao coro, este não assume na teatralidade Nô nenhuma ação na peça, sua função primordial é recitar aos atores durante a execução da dança. Divergindo, portanto, do teatro grego onde o coro se caracteriza pelo diálogo e pela oferta de informações ao público [SANTOS, 2005, p. 43], o coro Nô não tece nenhum comentário sobre a narrativa, não tem voz ativa no enredo, nem possui identificação [SAKAMOTO, 2012, p. 82]. A presença de personagens históricos é comum a ambas as teatralidades, todavia o protagonista do Nô não pertence ao mundo real, aparecendo como fantasma ou demônio dentro do sonho que partilha com o coadjuvante [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 23-24]. Enquanto, via de regra, a personagem trágica grega vai de encontro ao seu destino, cujo ápice da tragicidade está na morte [SANTOS, 2005, p. 48], o Shite do Nô começa a peça finado e caminha rumo à libertação de sua alma. Fato pelo qual o dramaturgo Yukio Mishima, radicalmente, considera o Nô uma “arte necrófila”, sendo uma teatralidade única, em razão de só começar quando tudo já está findo [KUSANO, 2013, p. 6]. Também, os heróis helênicos são reconhecidamente humanos, enquanto os Shite são abstrações, uma vez que “não são mais do que sombras belas e encarnações momentâneas de grandes emoções” [SAKAMOTO, 2012, p. 79]. Sobre o uso de máscaras as perspectivas parecem divergir novamente, na tragédia grega as máscaras funcionam para que o público possa reconhecer o papel interpretado [SANTOS, 2005, p. 44], enquanto o Nô faz uso de máscaras para permitir ao ator a identificação com a personagem a ser representado [TAKAHASHI; MORITA; TAKAOKA, 2010, p. 23]. Ou seja, ao que parece as máscaras são uma ferramenta para identificação do público na tragédia dos helenos e uma ferramenta para identificação do ator no teatro Nô japonês. Por fim, o que diz respeito ao pequeno número de atores contracenando e a simplicidade do cenário, isto parece ser um elemento de escolha dentro do Nô para que se mantenha a física diminuta e se sobressaia a metafísica da poética e espiritualidade do enredo [SAKAMOTO, 2012, p. 91-92], enquanto na Antiga Hélade estes elementos variavam de acordo com os recursos do dramaturgo/diretor. Autores famosos quando encenavam em grandes festivais, como as Leneias ou nas grandes Dionisías [RUZENE, 2020, p. 78], investiam mais na participação de seus atores e na composição dos cenários, uma vez que contavam com o patrocínio do Estado [SANTOS, 2005, p. 44]. Levando-se em consideração todos estes fatores, Mamiko Sakamoto [2012, p. 79] conclui que “apesar de existir uma arte no Ocidente com alguns aspetos semelhantes, o Nô é uma arte totalmente distinta e apresenta perspectivas teatrais únicas no mundo”. Adicionaria que, de igual maneira, a tragédia grega era uma arte singular, a despeito de sua interpretação e reinterpretação em todo mundo Ocidental. Assim, não obstante as aproximações observadas, devemos compreender a singularidade de cada uma destas formas de arte. É profícuo que se teçam tais reflexões, mas não de modo a desmerecer as particularidades do teatro Nô, nem as peculiaridades da tragédia grega. O que observamos, portanto, são aproximações e distanciamentos em duas manifestações artísticas bastante apartadas temporal e geograficamente. Considerações Finais Isto posto, comparações entre as formas de teatro no oriente e ocidente, sobretudo aquelas com formas bem definidas, como o Nô japonês e a tragédia grega, são deveras interessantes. Todavia devemos zelar para não impormos as noções de uma cultura sobre a outra, pois assim estaríamos menosprezando uma destas manifestações artísticas, caracterizando-a unicamente em detrimento de um elemento externo, além de incorrermos em anacronismos. Portanto, aproximações e distanciamentos à parte, a análise do teatro Nô é um opimo meio de compreensão da cultura nipônica, bem como a observação das tragédias é farta referência para o entendimento da sociedade helênica. Cada qual a seu modo, influenciou e foi influenciado pelas consciências sociais, religiosas e históricas de seu tempo e espaço. Até por isso o Nô foi incorporado pela casa imperial e o teatro grego foi vastamente utilizado como ferramenta política nas póleis da Hélade [SANTOS, 2005, p. 44]. Enfim, por toda a sua filosofia e por sua excelência cênica, o Nô é contemplado como o núcleo da arte Nôgaku e cerne das teatralidades tradicionais do Japão [SAKAMOTO, 2012, p. 76], não à toa sua técnica artística permanece constante nos palcos desde seu princípio no medievo. Em suma, o Nôgaku se qualifica como esta longeva tradição, com mais de seis séculos de existência e que encerra grande importância para a compreensão da cultura japonesa. Dado que a essência do Nô se concentra nesta antiga arte [Nôgaku], que se manteve sólida ao longo dos tempos, é também uma forma ímpar e vultosa de alcançar o entendimento do Japão. O palco Nô, embora pequeno em proporções, possui enorme valor artístico-histórico para a cultura japonesa, uma vez que nele se reúnem personagens históricas e espirituais, heróis e vilões, deuses e demônios, imperadores e samurais, vivos e mortos. Seu teatro representa uma grande alegoria das concepções japonesas de vida e morte, felicidade e sofrimento, espiritualidade e materialidade, com o suporte das noções xintoístas e budistas constrói uma intensa metáfora meditativa e sensitiva, revelada pelas imagens, sons e representações em palco. Por todos estes aspectos diferenciados da teatralidade Nô, esta arte performática oriental recebe de seus especialistas a designação de ser uma forma singular de teatro em todo o mundo. Referências Felipe Daniel Ruzene é graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Paraná [UFPR] e no Bacharelado em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano [BAT]. Formado pelo Colégio Técnico Industrial de Guaratinguetá da Universidade Estadual Paulista [CTIG/UNESP] e pela Escola de Especialistas de Aeronáutica [EEAr], atualmente é Controlador de Tráfego Aéreo. E-mail: felipe.ruzene@ufpr.br CAETANO, Erica Antonia. Representação da mulher na dramaturgia, 2011. Disponível em: http://erevista.unioeste.br/index.php/travessias/article/view/4007 GIROUX, Sakae Murakami. “O kyôgen: seu universo e sua evolução” in Estudos Japoneses, vol. 4, 1984, p. 69-82. GIROUX, Sakae Murakami. “A formação do teatro Kabuki” in Estudos Japoneses, n. 11, 1991, p. 109-120. KEENE, Donald. Nō and Bunraku: two forms of Japanese theatre. Nova Iorque: Columbia University Press, 1990. KUSANO, Darci. Teatro tradicional japonês, 2013. Disponível em: https://fjsp.org.br/site/wp-content/uploads/2013/03/teatro_tradicional_japones.pdf NAGAI, Ângela Mayumi. “Olhos, ouvidos e ossos: percepções da luz e do som no teatro Nô” in Revista Preta, vol. 15, n. 2, 2015, p. 176-187. RUZENE, Felipe D. Panorama do perfil feminino ateniense e sua representação em Lisístrata, de Aristófanes. In: ESTEVES, Anderson; BUENO, André; CAMPOS, Carlos Eduardo [Org.]. Scholae: Estudos interdisciplinares da antiguidade. São João de Meriti: Desalinho, 2020. p. 77-88. SADLER, Arthur Lindsay. 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Exemplares antigos de procedência egípcia, romana, etrusca, grega e japonesa vêm sendo descobertos em explorações desde o estabelecimento da arqueologia como ciência. Na China, com variados formatos e trabalhados sob a utilização de múltiplas opções de materiais, estes itens são encontrados em áreas de escavações datadas ainda do período neolítico. Abanadores com mais de 5000 anos foram recuperados do sítio arqueológico de Qianshanyang na província chinesa de Zhejiang [QIAN, 2004, p. 3]. Exemplares fabricados com plumas, aplicações em seda e matéria-prima vegetal também datam da antiguidade. Durante a dinastia Shang [1600 - 1046 AEC] um tipo de leque chamado shanhan era utilizado em carruagens como abrigo contra os raios solares e a chuva de forma a proteger seus passageiros. Com o passar do tempo, o objeto, que até então se assemelhava a um guarda-chuva, foi sendo modificado, tornando-se então parte da guarda imperial e item decorativo. Entre os anos 1046 AEC e 256 AEC, durante o reinado da dinastia Zhou, os abanadores feitos de plumas tornaram-se altamente populares entre os membros da nobreza e conforme a História chinesa se desenrolava, novos tipos de leques foram surgindo com diferentes formatos e finalidades [TAGGART, 2020]. Escavações arqueológicas em sítios provenientes do período Han, localizaram lápides e murais contendo referências à utilização de leques. A primeira delas ocorreu na década de 1950 da era comum na província de Shandong, quando dezesseis rochas esculpidas com desenhos em formato de leque foram encontradas em uma tumba [QIAN, 2004, p. 5]. Abanos, adornos, instrumentos de cena em peças teatrais e danças, e até mesmo armas utilizadas na prática de artes marciais, estes objetos são atualmente classificados na arte chinesa em três grupos: leques cerimoniais, leques rígidos e leques dobráveis [WELCH, 2013, p. 1303]. Neste texto procurar-se-á caracterizar a utilização de leques durante a dinastia Han, que se estendeu entre os anos 206 AEC e 202 EC, e o uso deste item como instrumento em práticas de dança. As Danças Folclóricas e Palacianas na Dinastia Han O valor cultural de um povo do passado, pode ser observado não só através de material arqueológico recuperado ao longo dos anos. É certo que a cultura material tem grande importância na construção da compreensão de uma sociedade antiga, porém, facetas relacionadas aos hábitos de um povo podem ser replicadas a cada geração, mantendo assim a perpetuação de algum aspecto cultural. Um excelente exemplo que permite a percepção da conservação dos traços de costumes de uma população é a sua relação com a música e a dança. Como é de se imaginar, a vasta história da cultura chinesa desde seus primórdios conta com uma variada gama de representações de dança. Conforme aponta Maribel Portinari, a dança possuía grande importância no contexto da corte chinesa imperial durante a antiguidade. Sua prática era relacionada a dois princípios básicos da cultura: Yue [a música] e Li [os ritos]. Músicos e dançarinos faziam parte dos festejos palacianos e nos templos [PORTINARI, 1989, p. 43]. Cada dinastia era detentora de seus próprios hinos, coreografias e melodias que eram alterados assim que uma nova linhagem ascendia ao trono. Contudo, até o presente momento é possível identificar em solo chinês práticas populares originárias em diferentes épocas. Atualmente, existem 56 grupos étnicos reconhecidos em território chinês e cada um possui seu próprio conceito acerca de danças tanto clássicas quanto folclóricas [WU, 2016, p. 2]. Durante a dinastia Han, consolidou-se um tipo de apresentação que até hoje faz-se presente representando crenças e costumes populares. Este formato, conhecido como Baixi [Os Cem Atos], conta com números de dança, acrobacias e mágica e mantem-se até a presente data, como parte da seleção de obras da Ópera de Pequim [PORTINARI, 1989, p. 44] . Podendo ser comparadas aos atuais “shows de variedades”, estas apresentações em particular, caíram no gosto tanto da realeza quanto dos populares. No âmbito das práticas religiosas e contato com o sobrenatural, representantes dos deuses em transe, desempenhavam danças com o intuito de conjurar os mortos, curar doenças e invocar a chuva [LEWIS, 2007, p. 179]. A dinastia Han floresceu por mais de 400 anos e pode ser equiparada ao mundialmente famoso Império Romano, seja por tempo de duração, número populacional, força militar e sofisticação cultural [HARDY e KINNEY, 2005, p. 1]. Pesquisadores afirmam que no ano 2 AEC, o total de habitantes já ultrapassava o número de 59 milhões de pessoas [MCLAUGHLIN, 2016, p. 527]. De extrema importância para a formação da sociedade chinesa atual, a dinastia Han estabeleceu o início de império chinês altamente poderoso, que ao longo dos séculos foi marcado por períodos de união e desunião sob o comando de outras dinastias e se estendeu até o século XX da era comum. O último imperador chinês, Xuantong, da dinastia Qing, foi destronado em 1911, após o colapso do sistema imperial. Atualmente, a maior parte da população chinesa identifica o legado da dinastia Han, como uma espécie de “marca da nação”. Artistas chineses até hoje comumente decidem por escolher estilos originários desta época para suas apresentações internacionais. Esta escolha entra em conformidade não apenas com assimilação cultural, mas também política que contribui para a formação de uma identidade chinesa [WU, 2016, p. 10]. De acordo com Zhi Dao: “a dinastia Han foi a era da prosperidade da dança chinesa” [DAO, 2019, p. 59]. As práticas de dança ao longo deste período contavam com apresentações elaboradas que abarcavam múltiplas modalidades, tornando seus espetáculos riquíssimos em todos os seus estilos. Elementos da natureza eram frequentemente resgatados e representados em cena. Durante um festival em Belfast, na Irlanda do Norte, a bailarina de origem chinesa, Wanting Wu, apresentou para o público uma coreografia com leques típica do período Han. O ato intitulado Filha do Rio Amarelo, contava a história de uma menina nascida e criada na região ribeirinha. Conforme crescia, a personagem fictícia permanecia em constante contato com as águas do rio, brincando em suas margens. Grande parte dos espectadores presentes na plateia naquela ocasião, possuíam ascendência chinesa. Embora fictícia, a protagonista da apresentação era capaz de personificar uma massa de indivíduos que se conectavam através de um elemento em comum: O Rio Amarelo, foi de enorme importância para a consolidação das rotas comerciais asiáticas da antiguidade e foi considerado pelos povos da China antiga o provedor do alimento e da vida. Durante o show em questão, o rio foi representado pelos leques de seda, enquanto o figurino verde da artista fazia o papel da primavera, época de abundância do solo e propícia para o desenvolvimento da agricultura. Conforme aponta Mark Lewis: “Sob os impérios Qin e Han, o Rio Amarelo foi o coração da civilização chinesa e lar de noventa por cento da população” [LEWIS, 2007, p. 7]. Contudo, o autor cita que em mais de mil e quinhentas ocasiões, ainda naquele período, enchentes do rio tenham destruído represas, vilas e terras agrícolas e devido a isso ele tenha ganhado o apelido de “Tristeza da China”. Sobre a experiência da apresentação, Wu afirmou: “as habilidades corporais da dança chinesa criaram uma experiência alegre de pertencimento de uma comunidade chinesa associada ao orgulho de compartilhar a cultura dessa comunidade com outras pessoas” [WU, 2016, p. 10]. Todos os passos desempenhados em cena no momento da apresentação artística de Wanting Wu possuíam significado. A alteração de ritmo ajudava a compor a demonstração, que seguia os modelos tradicionais da antiguidade. As coreografias e a dinâmica da dança ancestral Han têm como fundamento o intuito de evocar delicadeza e suavidade, ao mesmo tempo que transmitem a força impetuosa da natureza. Os Leques e Sua Utilização na Dança Durante a Dinastia Han Sendo praticada há mais de dois mil anos, majoritariamente por mulheres, a dança com leques Shànzi wǔ [ou “dança com leques” em português] procura expressar através de seus movimentos, a graça e a leveza de seus praticantes, de forma a representar os sentimentos de alegria e harmonia e a comunhão entre os seres vivos e o meio ambiente. Ainda no início de sua prática, celebrações comemoravam a caça e a pesca e comumente os dançarinos portavam estandartes produzidos em plumas que com o passar do tempo foram tomando novas formas e ganhando novas matérias-primas, como o tecido e o bambu. Penas de gansos, águias, pombos, pavões e demais aves também poderiam ser utilizadas para este fim [WELCH, 2013, p. 1301]. Os leques de plumas nobres, constituídos por penas naturais de falcões, garças e cisnes eram acessíveis unicamente à elite, e na dança eram manipulados apenas por artistas em apresentações palacianas, enquanto os leques de tecido possuíam marcante presença na dança folclórica. Embora os movimentos coreográficos nesses dois tipos de práticas fossem similares, o que diferenciava uma da outra comumente eram os figurinos e adornos empregados, e no caso da dança com leques, estes eram os principais fatores de diferenciação [CHANG e FREDERIKSEN, 2016, p. 165]. Quanto mais elaborado o leque e mais rara sua matéria-prima, mais rico e influente seria seu portador. Os abanadores feitos com vegetais, especialmente bambu ou folhas de taboa, também foram concebidos durante a dinastia Han, assim como os leques em formato de espanador produzidos com pelos de animais como veados, cavalos ou iaques. Esta última categoria era usualmente ostentada por homens de altas classes sociais como um símbolo de status [WELCH, 2013, p. 1301]. O uso de leques também se faz presente na mitologia chinesa e na narrativa dos Oito Imortais, um grupo formado por sete homens e uma mulher que juntos simbolizam a realização do ideal Taoísta: a imortalidade. Hàn Zhōnglí é o mais popular entre os membros deste panteão. Ele é conhecido como um ex-general da dinastia Han, que teria se tornado fugitivo após a derrota para os tibetanos durante uma expedição. Conta a lenda que Hàn Zhōnglí escapou para as montanhas, tendo mais tarde alcançado o dom da vida eterna. Sua figura é comumente retratada portando um leque de plumas, utilizado como instrumento para reviver os mortos. Sabe-se que a produção de leques na China possui uma longa História e esta arte é altamente sofisticada, garantindo uma extensa variedade de formatos e técnicas artísticas de pintura e fabricação. Durante os períodos que se seguiram à dinastia Han, novos métodos de produção foram desenvolvidos e novos modelos foram importados de países parceiros comerciais, como o Japão. Conta-se que os leques dobráveis chegaram em solo chinês pela primeira vez em 988 EC, trazidos por um monge japonês [QIAN, 2004, p. 12]. Nos séculos seguintes, sua produção passou a ser executada e aperfeiçoada pelos chineses, assim como as produções de outros tipos de leques para os mais variados fins. Leques pintados a mão com cenas ou poemas tornaram-se estimados pela população a partir da dinastia Song [960 - 1279 EC] [WELCH, 2013, p. 1302]. Devido à facilidade para manuseio e transporte, atualmente leques produzidos em papel e seda são os mais populares. Considerações Finais De origens milenares, tanto a utilização dos leques para os mais diversos propósitos, quanto a prática de dança com estes objetos, fazem parte da cultura chinesa desde a antiguidade até o presente momento e seguem resistindo à globalização. Estes aspectos são capazes de se conservar mesmo em um planeta conectado. A época atual permite um intercâmbio de saberes constante e a China é capaz de apresentar à comunidade internacional, uma parcela do rico conjunto de costumes que formam seu povo. Diante disto, é notável como a arte atua na perpetuação de uma cultura tanto material quanto imaterial e contribui para a sua divulgação. Como cita André Bueno: “a Antiguidade continua viva, e temos a oportunidade de vislumbrar as permanências dos tempos clássicos no pensamento, na cultura e nos hábitos” [BUENO, 2012, p. 59]. Estas particularidades preservadas ao longo dos séculos e transmitidas entre gerações, permitem a perduração cultural de uma sociedade e preservam traços há muito tempo adquiridos, ajudando a manter de pé a identidade étnica e o orgulho de uma nação. Referências Flavia Lima Corpas é pós-graduanda do curso de História Antiga e Medieval pelo Instituto Tecnológico e Educacional de Curitiba. BUENO, A. D. S. O Extremo Oriente na Antiguidade. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, v. 1, 2012. CHANG, S.-M. L.; FREDERIKSEN, L. E. Chinese Dance in the Vast Land and Beyond. Middletown, CT: Wesleyan University Press, 2016. DAO, Z. History of Dance in China. [S.l.]: DeepLogic, 2019. HARDY, G.; KINNEY, A. B. The Establishment of the Han Empire and Imperial China. [S.l.]: Greenwood Press, 2005. KEATS. The Dancing of the Han Dinasty. Keats - Learn Chinese in China, 2021. Disponivel em: <https://keatschinese.com/china-culture-resources/the-dancing-ofthe-han-dynasty/>. Acesso em: 30 julho 2021. LEWIS, M. 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MULHERES NO CURDISTÃO: PROTAGONISMO EM TODAS AS DIMENSÕES DA REVOLUÇÃO Isabella dos Santos Daiub No final da segunda década do século XXI as Unidades de Defesa das Mulheres [YPJ] ganharam notoriedade ao desempenharem um papel decisivo na liberação de territórios importantes na Síria, como Kobanî e Raqqa. Para Abdullah Öcalan, “O século XXI deve ser a era do despertar, a era das mulheres liberadas e emancipadas”, ele justifica isso por ver na liberdade da mulher a força da civilização democrática contra a construção de dominação masculina, “É realista considerar nosso século como o século no qual a vontade da mulher livre florescerá. Por isso, é preciso estabelecer instituições permanentes para a mulher e mantê-las durante, talvez, um século. São necessários Partidos para a Liberdade da Mulher. É vital também que se formem círculos ideológicos políticos e econômicos fundamentados na liberdade da mulher” [ÖCALAN, 2016, p. 74] Essas instituições permanentes podem ser vistas sendo construídas ao longo das 4 décadas da história do movimento das mulheres curdas, que se formou das marcas que envolvem a luta de libertação nacional, desde as assimilações, das dores e do genocídio até a compreensão da identidade curda, da resistência e do sentimento de proteger a terra/pátria, a welatparêzî. As atividades das mulheres curdas foram amplas e contribuíram para a implementação da atual Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria e dentro dela, o desenvolvimento de projetos atentando a diferentes dimensões das necessidades das mulheres na região. Por isso é verdade dizer que enquanto os grupos das esquerdas curda e turcas se formavam durante a segunda metade do século XX, as mulheres curdas estão presentes em redes de relacionamentos e são diretamente afetadas nos momentos de censura e rebelião. Redes de relacionamento que se modificam ao longo dos anos em efeito das políticas de pertencimento, passando por diversas circunstâncias que as fazem não só se adaptarem, mas a se aprimorarem para determinados momentos, fornecendo um histórico de experiências útil para a eficiência das atuais instituições. Então essas redes de relacionamento de mulheres estão presente em todas essas décadas da luta de libertação, seja dentro dos quadros revolucionários curdos ou entre os deslocamentos das populações – e tudo que é razão e efeito deles. A questão curda na contemporaneidade se constrói em torno da demarcação das fronteiras após a Primeira Guerra Mundial, quando os curdos são excluídos e perde a oportunidade da criação de seu próprio estado. Nesse momento não se existe a consciência curda como uma identidade, que é construída ao longo do século XX muito em resposta aos processos de assimilação que são submetidos em diferentes políticas de pertencimento entre os Estados que ficaram divididos. A questão da mulher na construção nacional deve ser considerada especialmente pelo seu papel como reprodutora biológica e cultural da nação, nesse contexto, a mulher curda, portanto, é uma ameaça para a perpetuação da nação – turca, iraquiana, iraniana ou síria, entre as gerações e é o principal alvo da assimilação cultural. Saturday Mothers: Para ilustrar os efeitos psicossociais e materiais e as diferentes atitudes que um governo pode ter em relação a mulher e o papel de gênero/reprodutivo para garantir a manutenção de seu projeto de Estado Nacional as mulheres do protesto Saturday Mothers podem mostrar as dimensões desses efeitos e atitudes. O Saturday Mothers é um protesto que ocorre todos os sábados ao meio-dia no centro de Istambul em que parentes de desaparecidos e de mártires se reúnem durante meia hora segurando o retrato dos filhos do Curdistão. Esse protesto é um gesto repetitivo contra uma política de Estado que perpassa gerações das famílias das minorias étnicas e religiosas em uma ininterrupta violência. O sábado 1 foi em 27 de maio de 1995 onde cerca de trinta mães protestaram pela primeira vez no bairro Galatasaray em Istambul denunciando o desaparecimento de seus filhos presos sob custódia do Estado em um momento de intensificação da perseguição aos partidos políticos curdos após o golpe militar em 1980. Com o passar dos sábados a Praça Taksim começou a ser rodeada por centenas de mulheres e o governo, que não poderia mais ignorar a essas mães respondeu repreendendo com violência a ponto que em 1999, por decisão das mulheres que organizavam as reivindicações foi interrompido pelas intervenções policiais sob o pretexto de que aquele protesto, aquela denúncia e aquelas mulheres são ameaças para a unidade da identidade nacional turca. Atualmente o protesto já passou do sábado 800, desde 2018 as mães estão proibidas de se reunirem na praça e constantemente são alvos de ações policiais e processos judiciais. Mas isso não impede as mães, filhas e viúvas de continuarem denunciando os abusos do Estado. A perpetuação da violência contra as minorias étnicas é ininterrupta a ponto de que nenhuma geração, mesmo em diáspora tenha vivido em segurança espacial e todas possuem as mesmas feridas constantemente mexidas. O final do século XX foi cruel com os curdos tanto no Iraque com o regime do Partido Ba’ath durante os anos de Saddam Hussein quanto na Turquia após o golpe militar em 1980 e todo o sangue derramado e os corpos enterrados acompanham as famílias de minorias étnicas ou religiosas seja por novos traumas infligidos ou pelas cicatrizes deixadas nesses anos de massacres. Famílias por todo o Curdistão passam décadas em busca de restos mortais de seus filhos, incluindo corpos de crianças, cobram do governo por pelo menos recurso para as buscas e fazem suas próprias investigações com o apoio de organizações criadas para esses fins. Mesmo após mais de vinte anos valas coletivas, poços de ácido ou corpos jogados de helicópteros nas montanhas são encontrados acendendo esperança de enfim poder sepultar o parente assassinado ou decepção de mais uma vez reviver as memórias sem encontrar um conforto. Halabja, no Iraque passou a ser conhecida como a Cidade dos Mártires após um dos pelo menos 320 massacres durante a operação Anfal entre 1986 e 1988. Os mártires do Curdistão são homenageados cotidianamente em cada ação de resistência, são símbolos nacionais dos curdos. Suas fotos estão sempre presentes nos protestos e seus nomes nos discursos dos sobreviventes. A luta em boa parte é por eles. Mas o aspecto ideológico dessas buscas e do sentimento de resistir não pode ser considerado homogêneo e universal. E assim como a revolta produz protestos como as Saturday Mothers de Istambul, outros sentimentos podem produzir manifestações dentro dos limites estatais, buscando respostas e conforto a quem lhe impôs o destino de ser outro. No dia 9 de julho [2021] circularam entre os meios de comunicação turcos imagens do presidente Tayyip Erdoğan em Diyarbakır, centro histórico e cultural curdo, visitando e elogiando um outro grupo de mães curdas que protestam aos sábados contra o PKK para que seus filhos, que provavelmente foram para a guerrilha, voltem para casa. Parte da cobertura midiática, que atende as cobranças do governo, divulgou imagens dessas mães explorando com sensacionalismo acusando o PKK de sequestrar jovens para usá-los como armas. Nas imagens de Erdoğan com as Mães de Diyarbakır é retratado que elas se apegaram ao discurso do Estado, agradecem pela visita, se sentem ouvidas, se confortam e se revoltam contra seu passado, abraçam a uma bandeira vermelha onde não há lugar para as cores do Curdistão e que é tingida de sangue. Fica evidente assim os efeitos e as atitudes que um governo pode tomar enquanto e por onde perpetua a sua soberania. O encontro com as Mães de Diyarbakır é mais uma violência contra as mães que se levantam contra as ações militares e a etnocracia. A visita foi mais um recado para elas não se rebelarem, dessa vez não proferido por bombas, cassetetes e processos. Se as mães, filhas e viúvas curdas querem viver em paz devem arcar com a consequências do passado e do presente de reivindicarem a identidade curda. Pois afinal, nesses limites do Estado, o Curdistão não existe. Eren Keskin: Os grupos e organizações de assistência jurídica às vítimas das violações de direitos humanos podem ser representados por Eren Kerkin, advogada e ativista, vice-presidente da Associação dos Direitos Humanos da Turquia. Em 1995, após ser condenada a seis meses de reclusão por usar a palavra “curdistão” em uma matéria de jornal, fundou em 1997 um projeto Assistência Jurídica Para Mulheres que Foram Abusadas ou Estupradas pelas Forças de Segurança Nacional, atualmente ela também está relacionada como fundadora do Gabinete de Assistência Jurídica Contra o Assédio Sexual e Estupro Sob Custódia e é membro fundadora da Fundação de Direitos Humanos da Turquia, projeto de reabilitação e tratamento para sobreviventes de torturas. Em 2003 mais uma represália pela palavra “curdistão” em um artigo de jornal, ficando um ano impedida de exercer sua profissão. Desde 2016, após a intensificação de prisões de ativistas pró-curdos ela tem sido alvo do governo, em fevereiro de 2021 foi condenada à seis anos e três meses de prisão por associação ao terrorismo, tendo recorrido ao processo estando aguardando o julgamento em liberdade. Sakine Cansiz: Sakine Cansiz por si só é um símbolo nacional de resistência curda. Ela foi uma das duas únicas mulheres participantes do congresso inaugural do Partido dos Trabalhadores do Curdistão [PKK]. Se tornou esse símbolo de resistência especialmente durante os 12 anos em que esteve presa, passando por diversos presídios turcos durante a década de 1980. Os relatos de quem compartilhou cela com ela contam como Sakine realmente foi uma figura central para manter a energia e a força entre os presos políticos e incentivava a formação de redes de solidariedade e resistência. Nascida em uma família alevi em Dersim, os seus pais são filhos do massacre de 1938, então apesar de não terem desde sempre uma consciência curda formada, como uma orientação, a família de Sakine foi marcada por esse evento como ela relata no primeiro dos três volumes de suas memórias escritos entre 1996 e 1997. Durante a sua juventude ela entra em contato com os estudantes da esquerda revolucionária que seguiam Abdullah Ocalan tendo a sua consciência curda despertada nos encontros de conversas e debates sobre a cultura e a história do Curdistão que o grupo de Apo realizava. Até então ela não havia aderido a nenhum movimento apesar de participar dos protestos estudantis e durante essas conversas encontrou a ideologia que estava procurando e seguiu com esses revolucionários fundando o PKK em 1978, onde passou a reivindicar por espaço de representação e participação para as mulheres, incentivando-as a entrarem na causa revolucionária, a desafiarem os papéis de gênero dentro dos partidos políticos, na guerrilha e na vida. Em 2013 foi assassinada junto a Fidan Dôgan e Leyla Soylemez em Paris, desencadeando protestos no Curdistão e na Europa, e suas imagens estão sempre presentes nas celebrações e nas manifestações. Leyla Zana A mãe do povo curdo é Leyla Zana, que em 1991 foi a primeira deputada curda eleita para o parlamento turco. É casada com Mehdi Zana, que foi prefeito de Diyarbakır e preso político durante a década de 1980, durante esse tempo Leyla se tornou ativa na defesa dos direitos dos presos políticos. Após a vitória eleitoral e de seus comícios expressivos, tornou-se alvo do governo turco, depois de uma viagem diplomática perdeu a imunidade parlamentar e então foi condenada por uma atitude durante o juramento de sua posse, quando incluiu a defesa do povo curdo em sua fala. A condenação por pena de morte também teve como justificativa a associação ao PKK, mesmo que fizesse parte do Partido Popular SocialDemocrata, ela e outros deputados recorreram e por mim foi sentenciada há 10 anos de reclusão, tendo saído em 2004. Zehra Doğan: Zehra Doğan nasceu em 1989 em Diyarbakir, no Curdistão turco. Cresceu presenciando a perseguição às lideranças curdas, assassinadas, presas ou exiladas. Reconhecendo desde a sua infância a assimilação imposta e a ameaça que a sua existência como uma mulher curda representava para o governo turco. Mesmo tendo aprendido sobre os perigos de se posicionar, decidiu caminhar para a profissão que desde criança conhecia pelo risco mortal por um jornalismo comprometido com a arte e com a política. Estudou belas artes na faculdade e aos 23 anos colaborou para fundar o primeiro veículo de comunicação formado apenas por mulheres da Turquia, a maioria jovens de origem curda. A mensagem da JİNHA [Jin News Agency] era poderosa, “Nós estamos mudando a linguagem da comunicação. A imprensa mundial nunca mais será a mesma depois de nós”. E não foi. Em 2016, após uma tentativa de golpe militar – possivelmente falsa, o governo de Tayyip Erdoğan perseguiu seus opositores sob o pretexto de manter a ordem dentro da política da República da Turquia. Um terço da população carcerária de mulheres jornalistas do mundo estava detida na Turquia, entre elas Zehra Doğan acusada de filiação a terrorismo e por propaganda subversiva ao postar em suas redes sociais um desenho digital reproduzindo a uma foto oficial de uma atividade do Exército em Mardin, no distrito de Nusaylin durante os meses do toque de recolher. Antes desse evento Zehra já havia sido premiada por uma reportagem onde relatou a situação das yazidis que vivenciaram a invasão do Daesh na região das montanhas de Sinjar em 2014. Na prisão escreveu muitas cartas e entrou em um processo de escrita e de criação diferente. Como ficou restrita aos materiais para pintar, passou a improvisar as telas com jornais, lençóis, caixas de cigarro, fronhas; criava a pigmentação com restos de alimento, fezes de pássaros, sangue menstrual, frutas amassadas e com o que mais pudesse tirar cor; e os pincéis eram feitos de penas de pombos e mechas dos cabelos das companheiras em detenção. Usando a arte como artifício para dar voz às mulheres enclausuradas faz com que Zehra mostre pelos mesmos meios ao que se insere a sua própria existência, permitindo a presença múltiplas faces nos retratos por ela desenhados com materiais improvisados dentro de sua cela. Entre as histórias contadas pelos olhos arregalados de quem testemunhou o desumano está a de mãe Sisê, uma idosa de 85 anos de quem Zehra desenha um retrato segurando um bebê de dois anos, Dersim, filha de outra prisioneira. Mãe Sisê foi detida durante as operações de 2016 no município de Muş sob acusação de associação terrorista ao PKK, tragédia que condena inúmeras vidas de civis que em nada se envolveram com atividades políticas ou militares pró-curdos, mas no fim apoiam essas ações a partir do momento em que percebem quem são os culpados e os motivos de seus infortúnios. A criança do retrato representa a população de crianças que vivem cercadas pelos muros e o único contato com a vida e com a natureza são os pássaros que voam no céu acima do presídio. Nunca viram os campos e as montanhas do Curdistão e sonham junto com suas mães por uma possibilidade de serem realmente livres. Em entrevista, Zehra conta que ao ser liberada do presídio em 2019 foi acompanhada até onde pode pelas vozes das crianças gritando “Zehra, Zehra, você vai ver as árvores, as crianças e os pássaros agora! Faça seus desenhos e mande-os para nós!” Jinwar: Mas onde estão essas árvores e os pássaros? Se a política autoritária dos estados é intensificada, o que essas crianças podem encontrar? Mesmo sob a constante ameaça do exército turco, das facções fundamentalistas e da hegemonia masculina capitalista no Curdistão, na Administração Autônoma jardins estão ganhando vida à espera das crianças do Curdistão. Um desses lugares é Jinwar, a vila das mulheres livres, que foi inaugurada no Dia Internacional do Combate a Violência Contra a Mulher, 25 de novembro de 2018 em uma festa “celebrando a vida livre e comunitária das mulheres” onde os convidados, nas palavras da publicação no facebook sobre e inauguração foram “curdos, árabes, assírio-sírios, armênios, espanhóis, alemães, franceses, suíços e outros convidados se reuniram em Jinwar para passar o dia juntos. Pois Jinwar é uma aldeia da Nação Democrática”. O Comitê da Vila foi formado em 2016 em uma reunião da KongraStar com o objetivo de criar um lugar para acolher a capacitar mulheres afetas pela guerra. Esse contexto desses anos também remete ao momento em que as mulheres estão se empenhando para atender as necessidades dos sobreviventes da invasão do Daesh com apoio material e psicológico. O objetivo da vila era então um lugar para as mulheres e crianças que precisaram ou quiseram sair de casa e proporcionar um ambiente onde fosse possível reverter as sequelas dos conflitos presenciados e recapacitá-las incentivando o autoconhecimento e a criação de uma economia comunal e ecológica tratando dos problemas decorrente da discriminação de gênero como sistemáticos e não como patologias. A vila tem como principal fonte de resistência e de autodefesa a educação. Por isso a escola é o seu grande orgulho e é destacada em publicações seguintes de alguma outra sobre as denúncias sobre bombardeios próximos a cada avanço do exército turco. Tudo é construído baseado no autoconhecimento e no trabalho comum assumindo responsabilidades na organização da vida em comunidade. Ela é autossuficiente e atualmente a sua maior ameaça é a proximidade com a fronteira da Turquia. Conclusão A cada mulher revolucionária existe uma história em que a Autoridade pretende apagar. A mulher curda possui um rosto em cada esfera da ação política, foram décadas na luta de libertação nacional e de viabilizar as questões femininas. Sakine Canzis na guerrilha, Leyla Zana no Parlamento, Eren Keskin como advogada dos direitos humanos, Şebnem Korur Fincancı na medicina legal, Zehra Doğan na arte, esses são apenas os nomes mais conhecidos para demonstrar como as mulheres foram ativas em vários meios contribuindo para possibilitar o que hoje existe na Administração Autônoma, e são com as experiências das mulheres que a jineolojî desafia as ciências sociais e a racionalidade tradicional. Referências Isabella dos Santos Daiub – Mestranda pelo PPGHIS/UFRJ e bolsista da CAPES BAYDAR, Gülsüm; İVEGEN, Berfin. Territories, Identities, and Thresholds: The Saturday Mothers Phenomenon in İstanbul. Journal of Women in Culture and Society, Chicago, v. 31, ed. 3, 2016. CANSIZ, Sakine. Sara: My Whole Life Was a Struggle. Londres: Pluto Press, 2018. DIYAR, Zîlan. What is Jineoloji? Komun Academy, S/L, 27/06/2018. Disponível em https://komun-academy.com/2018/06/27/what-is-jineoloji/ acesso em 10/08/2021 MCDOWALL, David. A Modern History of the Kurds. Londres: I.B. TAURIS, 2007 ÖCALAN, Abdullah. Libertando a vida: a revolução das mulheres. São Paulo: Fundação Lauro Campos, 2016. RIBEIRO, Maria Florencia Guarche. A Jineologî como uma contribuição à epistemologia feminista: um debate desde a perspectiva das mulheres curdas. Peru: XXXII Congresso Internacional Alas, 2019. YUVAL-DAVIS, Nira. Gender and Nation. Londres: SAGE Publications Ltd, 1997. Referências online https://bianet.org/biamag/gender/136800-jinha-turkey-s-first-women-s-newsagency, acesso em 23/09/2021 https://hyperallergic.com/486421/artist-and-journalist-zehra-dogan-released-fromturkish-jail-after-nearly-three-years/, acesso em 23/09/2021 https://bianet.org/english/freedom-of-expression/205808-journalist-zehra-doganreleased-sise-bingol-says-i-will-stand-upright-on-my-feet, acesso em 23/09/2021 Publicação da página do facebook Gundê Jinwar do dia 26 de novembro de 2018 em https://www.facebook.com/gundejine/posts/1374077452728028 acesso em 10/08/2021, acesso 23/09/2021 MANGÁ E CONSTRUÇÃO DE SENTIDO HISTÓRICO: UM OLHAR A PARTIR DO PERSONAGEM JAPÃO EM HETALIA Janaina de Paula do Espírito Santo O mangá japonês Mangá, termo usado para definir as histórias em quadrinhos vindas do Japão e do oriente, em japonês é sinônimo, ao mesmo tempo, de: histórias em quadrinhos, revista em quadrinhos, caricatura, cartum e desenho animado [LUYTEN, 2000]. Significa literalmente “imagem a partir de si mesma” [MOLINÉ, 2004, p. 218], tendo sido usada pela primeira vez pelo pintor, cartunista e ilustrador Katsushika Hokusai no século XIX. Esse artista japonês produziu entre 1814 e 1849 várias sequências verticais que ficaram conhecidas como “Hokusai Manga”. “Os desenhos de forma caricatural – exagerando a forma dos seres humanos – tinham como tema a vida urbana, as classes sociais, a natureza fantástica e a personificação dos animais” [LUYTEN, 2004, p.246]. Somente depois de alguns anos o mangá teve seu nome adotado e consagrado, por meio do desenhista Rakuten Kitazawa [LUYTEN, 2004]. “O ideograma chinês usado por Hokusai pode ser dividido dois: ‘man’, que significa ‘involuntário ’ou ainda ‘a despeito de ’e ga, que significa ‘imagem’” [MOYA, 2003, p. 134]. No idioma japonês, “mangá” significa “desenhos espontâneos”, “sem sentido” sendo utilizada, no Japão, para referir-se a quadrinhos em geral. Foi adotada no Ocidente por extensão, com o sentido de “quadrinho japonês”, ou seja, para definir os quadrinhos produzidos no Oriente, bem como para caracterizar um estilo gráfico e narrativo próprios, característicos daquela produção. Fenômeno editorial de produção do gênero, os quadrinhos japoneses vêm ganhando cada vez mais espaço no mercado internacional – notadamente no Brasil, que,nas últimas décadas abriu espaço para algumas produções de mangás produzidas no país. Os mais bem sucedidos foram os quadrinhos em “estilo mangá”, que deram uma nova roupagem a personagens conhecidos, como a Mônica e sua turma, de criação de Mauricio de Souza. Percebe-se que mesmo que mercado editorial tenha modificado seu público nos últimos anos, há uma demanda real em torno da arte sequencial em quadrinhos, sendo que atualmente o Brasil se encontra entre os dez maiores mercado do gênero. Este é marcado por uma série de disputas editoriais/comerciais em torno do formato mais conhecido: entre a arte sequencial de origem estadunidense, o comics, já em sua quarta “geração”; o desenvolvimento da produção nacional, que chamo de aqui de gibi, sem nenhuma conotação pejorativa [VERGUEIRO, 2012], que define um produto de características próprias e potencial de exportação - como a “Turma da Monica”, que tem gibis e produtos licenciados em 40 países, sendo traduzida em 14 idiomas, de acordo com informações da editora - e os grandes fenômenos editoriais japoneses. Estas disputas ocorrem em vários níveis, desde a produção e distribuição deste ramo da indústria cultural como os estúdios, autoria, formato gerencial, publicidade, etc; As diferenças se fazem perceber já no “suporte” do quadrinho, ou seja, a capa, páginas tamanho e qualidade do papel, impressão, etc. seus roteiros e temas e tratamento gráfico que correspondem ao desenho, arte final, cor, balões, e etc. O reconhecimento institucional dos mangás no Japão iniciou-se na década de 1990, e inicia-se com a criação do Prêmio Cultural Osamu Tezuka. também nesta década as várias escolas japonesas vão adotar o “shoguaku”, que são mangás “didáticos”, voltados especialmente ao público infantil, com conteúdos do Currículo Escolar japonês, ou o “Kyoyoyo mangá”. Em 2002 o Ministério da Cultura Japonês implementou a matéria “mangá–visual pop culture” como parte das atividades curriculares de Educação Artística nas escolas públicas [SATO, 2007, p. 231] O mangá se fez onipresente na indústria cultural japonesa. Seu papel neste sistema econômico é mais importante do que seus números de vendas, já que servem como carro chefe de todo os demais produtos culturais deste “complexo”. As características dos mais difundidos produtos culturais têm sua origem nas histórias veiculadas no mangá. No que tange ao processo de exportação, o ponto de sustentação curiosamente não foi o mangá, mas o anime, que viraram sucesso trazendo cores e movimentos para os já bem elaborados quadrinhos. Na década de 50, influenciados pela mídia que vinha do Ocidente, diversos estúdios começaram a desenvolver projetos de animação experimental. Segundo SATO [2007, p. 35]: “A produção de séries de animes para a TV no Japão, devido aos altos custos envolvidos, dependem até hoje de longo planejamento prévio entre a emissora, a produtora de animação e fabricantes licenciados, que investem em conjunto na produção e geram receita através de uma cadeia de vendas de produtos e serviços correlatos, formando um complexo esquema que também envolve agencias de publicidade, gravadoras, editoras, distribuidoras, e industrias de alimentos, brinquedos e videogames e papelaria. Assim, quando uma série vai ao ar na tevê japonesa, há o lançamento concomitante de uma grande gama de produtos e serviços temáticos, num esforço concentrado para envolver emocionalmente os espectadores e satisfazer-lhes o ímpeto consumista – o que garante a viabilidade comercial do sistema. Não foi por acaso, por exemplo, que Tezuka fez com que a estréia de Astro Boy ocorresse no dia primeiro de janeiro de 1963, no principal feriado do calendário japonês: o ano novo". Neste sentido, quadrinhos e mangás partilham de uma mesma origem, o processo de consolidação da indústria cultural por um lado e por outro, a influência estadunidense na delimitação desta cultura. O Japão, entretanto, para além de consumidor do “american way of life”, transforma o pop japonês em um bem sucedido caso de customização da industrialização cultural em padrões orientais [SATO, 2007, p. 14]. Ao questionar as apropriações históricas representadas nos mangás, a preocupação principal é com a dimensão cultural da história, tomada aqui em uma perspectiva multidimensional e interdisciplinar. Hetalia: o mangá “Hetalia” foi primeiro mangá no estilo Yon-koma a ser publicado no Brasil – o Yon-koma, que também chamado de 4koma é o nome das tiras japonesas, que diferenciam-se das ocidentais por serem verticais. O enredo de “Hetalia” e construído a partir de uma perspectiva única entre as relações construídas pelos países do eixo, que são: Itália, Alemanha e Japão e os demais. O mangá não é construído como uma história linear, mas sim, a partir de uma série de pequenas histórias, em sua maior parte centradas no período histórico da Segunda Guerra Mundial. Esse não é o único período abordado, entretanto, já que alguns eventos que constroem as histórias ocorrem em épocas diferentes, seja sugerindo uma abordagem explicativa do conflito, ou explorando particularidades dos países. A leitura é bem parecida com a dos mangás, mas têm uma peculiaridade: na maior parte das histórias, lê-se em colunas, não em linhas. Estas colunas normalmente exploram piadas e situações que começam e terminam, podendo ou não ter relação com o desenrolar da história maior, no caso, no confronto entre países envolvidos na Segunda Guerra. Hidekaz Himaruya utilizou uma abordagem alegórica, onde cada país é representado em uma pessoa, que “encarnaria” os costumes de cada um destes como “mania”. Assim, descreve conflitos e relações diplomáticas em termos de “intrigas pessoais”, exacerbados por elementos culturais, atritos passados ou simples “implicância”. A obra foi pensada inicialmente foi concebido como tiras para internet - as webcomics - e em sua adaptação vendeu milhões de cópias, chegando ao topo da lista de mais vendidos nos EUA, ao mesmo tempo em que foi proibido em alguns países por seu conteúdo politicamente incorreto. No Brasil, foi publicada, ao longo dos anos, pela editora New Pop. Para construir o enredo de “Hetalia”,Himaruya, descreve o seu contato com diferentes raças e etnias durante o período em que viveu na cidade de Nova Iorque. Ao mesmo tempo em que desenvolveu um projeto sobre os "inúteis" - Hetare em japonês - acabou construindo uma história baseada em piadas étnicas, em que um país é o personagem principal “o Itália”. [Himaruya 2012: 2]. A expressão que dá título a obra, é, portanto, uma junção, da palavra Hetare com Itália e parte de seu argumento cômico está justamente na “inutilidade” da Itália, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial. Embora a questão do conflito bélico apareça como uma espécie de fio condutor da narrativa pelo autor e pelas editoras de maneira geral, percebe-se que a relação entre os países e a tentativa de produzir humor explorando estereótipos ligados a cada país acaba sendo o ponto mais presente, tanto no mangá, quanto no anime. A contracapa da edição brasileira define: “vai começar a mais estranha interpretação das guerras mundiais! Acompanhe os conflitos entre os países, com a maioria deles personificada em rapazes bonitos…. e totalmente insanos” [Himaruya, 2012, s/p] Construindo uma narrativa pensada a partir de uma não-linearidade, que foi aliada a tentativa de relacionar uma série de referências a fatos da história de cada país, com traços de personalidade dos mesmos, o autor faz uso das fichas de personagens, em que apresenta e define o espaço de cada um deles na trama, ou no desenrolar de situações específicas: Como na representação gráfica dos países do eixo, em que o Itália segura uma bandeira branca e um garfo com macarrão – um dos bordões do personagem – a palavra “pasta”. O Japão, dificilmente é retratado encarando o leitor ou seu interlocutor, bem como o Alemanha sempre está sério, de cara fechada e uniforme. Tais características aparecem também na ficha de personagens que o autor produz de tempos em tempos quanto nas páginas da revista, reforçando sua existência enquanto ícone, tomado aqui como um construto estético em torno do qual muitas das ideias sobre o passado são construídas e reafirmadas. Cabe aqui, relembrar as discussões de Edward Said, quando nos sinaliza a construção da ideia de oriente em torno do mistério e da diferença. A inadequação apresentada por Said é explorada pelo autor do mangá. Sua ideia ao propor a história era partir dos esteriótipos comuns à sua vida em Nova York na época, e a partir delas construir uma história que explorasse diferentes temporalidades e países em torno das possibilidades humorísticas desse estereótipo. Não podemos chamar o texto de Hetalia de mangá histórico, mas de texto de humor. Há espaço em suas discussões para as reflexões da história e de seu ensino? Para o âmbito desse texto, a proposta é que o mangá seja visto como um espaço para o uso público da história, e neste sentido, como artefato de cultura histórica. Entendemos que o quadrinho pode ser tomado como um exemplo de experimentação estética da cultura histórica sobre o passado e o Japão. Se considerarmos que quadrinhos são narrativas históricas esteticamente estruturadas [FRONZA, 2016, p.43], Qual o sentido de avançar nessa análise? No entendimento que as configurações que podem ser dadas ao conhecimento histórico são diversas. Percebemos, por exemplo, que os quadrinhos re-afirmam uma “cultura visual” da segunda guerra, que remete as imagens consagradas do conflito. Na linguagem dos quadrinhos os sentidos são construídos justamente no "encadeamento de série de imagens em uma relação mútua”[GROENSTEEN, 2006. p.25], é interessante observar o quanto essas imagens atuam como elementos de construção de sentido e pensamento histórico, para além da reafirmação de um espaço de visualidade construído pelas imagens canônicas em torno da Guerra das ideias pré concebidas de identidade e etnicidade. Nesse sentido, história sempre foi mais do que apenas o passado. Trata-se de uma relação entre passado e presente, percebida, por um lado, como uma cadeia temporal de eventos, e, por outro, simbolicamente como uma interpretação que dá sentido a esses eventos através de diferentes orientações culturais, acusando-a de normas e valores, esperanças e medos. Quadrinhos, livros, músicas filmes, são espaços em que a orientação pode ser percebida. Se consideramos que é a memória que liga o presente ao passado e, portanto, ela representa o processo mais fundamental da mente humana; memória e pensamento histórico são uma espécie de ponte desta mente com a experiência. Transforma o passado em um todo significativo e é, portanto, parte do presente experimentado e das projeções do indivíduo para o futuro. Para além disso, a sátira em torno da qual a segunda guerra se constitui em Hetalia também remonta ao processo de ocupação do Japão pelos Estados Unidos e toda a construção discursiva posterior. A dominação estadunidense, no território japonês, foi central no rompimento de certo isolamento cultural do país. Nesse período, grandes influências culturais dos Estados Unidos chegavam ao arquipélago, muitas delas impostas pelo processo de ocupação. Um dos mangás analisados nesta tese, El Alamein e outras histórias consagra uma história ao período, intitulado “mangá da desonra nacional”, em que o processo de ocupação é ridicularizado, provavelmente significou o indício da dificuldade em lidar com a derrota bélica. Pode se dizer que a ocupação estadunidense se construiu enquanto tática para manter a influência política e, de certa maneira, para controlar e recolher informações sobre as bombas nucleares. Os objetivos políticos estavam nítidos: Os principais objetivos da ocupação dos Aliados eram desmilitarizar e democratizar o Japão, para que este nunca mais voltasse a ser uma ameaça a outros Estados. Para esse fim, uma nova Constituição foi redigida e adotada, originalmente no idioma inglês. Com a Constituição de 1947, mais precisamente o Artigo 9º dedicado a questão "Da renúncia à guerra”, o Japão encontra-se proibido de possuir Forças Armadas ofensivas, ou com ‘potenciais beligerantes’, o que o caracteriza na literatura corrente como ‘Estado anormal’. Por meio desse documento, o arquipélago renuncia seu direito à beligerância. [WATANABE, 2011, p.13] É assim que a “paz alcançada pela Guerra” figura, por exemplo, como uma espécie de “grande lição” do país em detrimento do ocidente, que continua construindo sua história através de conflitos e batalhas: “O esforço do Japão para redefinir a próprio através da recriação de suas memórias das perdas da Guerra culminou em um período de paz e prosperidade na vida cotidiana no final da década de 1960. A imagem estilhaçada da Nação foi recomposta, religada e reabilitada durante o quarto de século que se seguiu à derrota. [...] o Japão do pós-guerra conduziu a restauração de sua nacionalidade por meio de uma teleologia de progresso e de uma recém adquirida riqueza material do país. [...] A narrativa fundadora intencionalmente [... afirmava] que essa nova constituição e a derrota final trouxeram ao Japão - a paz - era o que o povo japonês independentemente e espontaneamente almejava” [IGARASHI. 2011 p. 465-466] Talvez isso seja um espelhamento da própria literatura e do posicionamento acadêmico em torno do país no pós-guerra, uma vez que uma das argumentações centrais para dar sentido ao “povo japonês”, estaria justamente neste senso de orgulho e adaptação, inerente à população. Ele é exemplificado pela expressão japonesa Ganbare - usada frente aos desafios, cujo significado pode ser traduzido como: esforce-se. Esta palavra sinaliza a ideia a partir da qual a vida se sustenta por esforços e sacrifícios e, desta maneira, todo sacrifício é válido. Pela preponderância do Xintoísmo, a expressão é utilizada como referência a ações em nome do imperador e da nação, de maneira geral, e está presente no cotidiano japonês, por isso mesmo, relacionada, muitas vezes, a um sentido inerente ao processo de adaptação que as vezes é associado ao povo japonês como um todo. Neste sentido, ao escrever sobre os quadrinhos sinaliza Paul Gravett Com o mangá os japoneses mostraram a mesma facilidade que tiveram com o automóvel ou o chip de computador. Eles tomaram os fundamentos dos quadrinhos americanos - as relações entre imagens, cena e palavra - e, fundindo-os a seu amor tradicional pela arte popular de entretenimento, os “niponizaram” de forma a criar um veículo narrativo com suas próprias características […] os japoneses transformaram os quadrinhos em uma poderosa literatura de massa, capaz de fazer frente ao aparentemente imbatível domínio da televisão e do cinema. [2006, p. 1416]. O mangá foi um entretenimento de baixo custo e de fácil acesso, para uma nação fortemente atingida pela guerra, que passava por períodos de carestia e fome. Um dos efeitos diretos do período da ocupação foi o contato crescente com a cultura ocidental, notadamente a chamada cultura pop estadunidense. A inserção dos japoneses na lógica capitalista ocidental vai definir a produção dos quadrinhos japoneses sequencialmente. A forma de administrar a influência externa e transformá-la em algo próprio, é, como já levantamos, considerada característica nipônica. E a influência do discurso estadunidense vai estar bastante presente no exercício de “pensar a si mesmo” empreendido por Watanabe ao compor um personagem Japão como tímido e pacífico, sem interesses bélicos, mas com crescente interesse em aprendizado, mesmo tantos anos depois do pós guerra, o que indica a importância de conhecer a cultura histórica nos diferentes espaços em que se apresenta, exercício intentado por esse texto. Referências Dr. Janaina de Paula do Espírito Santo é professora no Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde atua na coordenação do Curso de Licenciatura em História e desenvolve pesquisas sobre mangás, cultura histórica e história do tempo presente. DALE, Joshua Paul. Axis Powers: Hetalia Cosplay— Another End to History? Modern Language Association convenção anual de 2012, em Seattle, Washington. Disponível em:http://www.academia.edu/2385920/_Axis_Powers_Hetalia_Cosplay_Another _End_to_History. FRONZA, Marcelo. As possibilidades investigativas da aprendizagem histórica de jovens estudantes a partir das histórias em quadrinhos. Educar em Revista, v. 32, n. 60, p. 43-72, 2016. GROENSTEEN, Thierry. O sistema os quadrinhos. Rio de Janeiro: Marsupial Editora, 2015. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, 2000 IGARASHI, Yoshikumi. Corpos da Memória, Narrativas do Pós-Guerra na Cultura Japonesa [1945-1970], trad. bras. de Marco Souza e Marcela Canizo. São Paulo: Annablume, 2011 LUYTEN, Sônia. Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Estação Liberdade, 1991. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. MOLINÉ, A. O grande livro dos Mangás. São Paulo: JBC, 2006. MOYA, Álvaro de. História da história em quadrinhos. Porto Alegre: L&PM, 1986. RÜSEN, J. Teoria da História: Uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Rezende Martins. Curitiba: Editora UFPR, 2015. SATO, Cristiane. Japop – o poder da cultura pop japonesa. São Paulo: Nsphakkosha Editora, 2007. WATANABE, Paulo Daniel. “A reinserção internacional do Japão no póssegunda guerra mundial”. 3° Encontro Nacional Abri 2011, São Paulo, vol. 3., 2011. Disponível em http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC000000 0122011000300033&lng=en&nrm=abn BENTO DE GOES: UM JESUÍTA PORTUGUÊS NA DEMANDA DO CATAIO [1602-1607] João Lupi Nosso objetivo é percorrer o itinerário do jesuíta português Bento de Goes e sua caravana, desde 1602 a 1607, partindo do Império do Grão Mogol e chegando à muralha da China, através dos territórios dos afegãos, tadjiques, quirguizes e uigures. Mas esse empreendimento é demasiado amplo e precisou ser repartido em pelo menos três etapas: esta aqui exposta dá atenção ao primeiro trecho [nas terras do Grão Mogol], e ao final [na China], e uma explicação limitada do percurso pela Ásia Central; este será, mais tarde, objeto da segunda etapa da pesquisa, e a terceira será sobre os jesuítas no Tibete. A identificação dos povoados e cidades por onde a caravana passou é difícil: alguns são tão pequenos que não aparecem nos mapas comuns; outros, que tinham alguma visibilidade, diminuíram e perderam população, até quase desaparecer; a maior parte mudou de nome, ou, não havendo uma ortografia constante, pela mudança de idiomas devido a invasões e migrações, se alterou a grafia do nome de tal modo que é duvidoso que o nome indicado num mapa corresponda ao de outro. Outras vezes o nome mudou, mas a cidade é a mesma, sem que disso possamos ter a certeza. Há, porém, descrições de viajantes dos séculos XVIII e XIX, como Wood e Wessels, que conseguiram identificar alguns locais, e propuseram a relação entre os nomes, que a edição portuguesa de Neves Águas e o correspondente mapa de Diniz transcrevem. Mas essas identificações não são acompanhadas de descrições do povoamento e sua história, o que torna tais identificações poucos úteis para contribuir para a História da Ásia. Por outro lado, dispomos de mapas e atlas dos séculos XVIII e XIX, que assinalam muitos nomes de povos e cidades e reinos nas regiões da Ásia Central, mas, quando conseguimos identificar alguns desses nomes, reparamos que eles parecem colocados ao acaso, distribuídos e misturados sem corresponder à realidade geográfica. De fato, como disse o próprio Bento de Goes: “andamos por terras onde éramos gente desconhecida e nunca vista” – e, portanto, tal como os locais nunca tinham visto europeus, também os ocidentais não sabiam nada dessas terras, ou muito pouco. Os Jesuítas, a China e o Grão Mogor Em 1540 o Papa Paulo III autorizou a criação da Companhia de Jesus; o fundador dessa ordem religiosa foi Inácio de Loyola, basco de nação. O rei de Portugal, Dom João III, pediu ao Papa missionários para o Oriente, e o Papa enviou Francisco Xavier [1506-1552], de Navarra, companheiro de primeira hora de Inácio de Loyola. Francisco chegou a Goa em 6 de maio de 1542, percorreu todo o litoral da Índia e Sudeste asiático, pregando e batizando, até chegar ao Japão, morrendo de febre na ilha de Sanchuan, às portas da China, em 3 de dezembro de 1552. Começava a missão dos jesuítas no Extremo Oriente, sob proteção dos portugueses. Em 1556 o imperador da China cedeu aos comerciantes portugueses a península de Macau, como agradecimento por terem combatido os piratas. Na Cidade do Santo Nome de Deus de Macau desembarcou o jesuíta italiano Mateo Ricci em 1582; foi admitido na Corte Imperial, onde morreu em 1610. Ricci identificou Cataio com a China e Cambalu com Pequim. Na Índia tiveram os jesuítas especial apoio dos imperadores mogóis, pelo que vamos nos deter um pouco nesse tema. Mogor, Mogol, Mughal, ou Grão Mogor é o título da dinastia de origem turco-mongol que governou um império, com sede no norte da Índia, de 1526 a 1857. Foi fundada por Babar [Babur, 1483 - 1530], de nação uzbeque, descendente de Gengis Khan, mongol [c.1158-1227], e de Tamerlão, turco-mongol [c.1336-1405]. O mais importante e conhecido imperador mogor foi Acbar [Jalal ud-Din Muhammad Akbar, 1542-1605]. Seu pai, Humayun, morreu em 1556, pelo que o governo foi entregue a um regente; Acbar passou a governar sozinho em 1560: estendeu o império para oeste até à Caxemira, e para leste até à planície do Ganges, e Bengala. Em 1565 o imperador mandou construir sua capital, Agra, junto ao rio Yamuna, mas também residia por vezes em Deli e Lahore, ou Laore, hoje Lähaur, capital do Penjabe, ou Punjab, junto ao rio Ravi. Ele se mostrou um governante diligente: mandou construir estradas, estabeleceu um sistema de pesos e medidas, fez uma reforma tributária, e foi tolerante com todas as religiões. Em 1573 Acbar entrou em contato com os portugueses de Goa, sede do Império português nos mares da Ásia; sempre se entendeu bem com eles, e deu boa acolhida aos jesuítas; em 1579 enviou um embaixador aos jesuítas de Goa pedindo missionários para o seu império. O embaixador era Abdulá, e seu intérprete um armênio cristão a quem os portugueses chamaram Domingos Pires. A 1ª missão jesuíta para o Grão Mogol não atingiu os seus objetivos, e retornou a Goa, e o mesmo aconteceu com a segunda, em 1591; em 1594 nova missão foi enviada, composta pelos padres Jerônimo Xavier, Manuel Pinheiro, e o Irmão Bento de Goes, que chegaram a Lahore em 5 de maio de 1595. Bento, muito culto e inteligente, deu-se tão bem com o imperador que este o incluiu numa embaixada que enviou aos portugueses de Goa em 1600. Acbar morreu em 1605, sucedendo-lhe seu filho Salim Yahangir; este morreu em 1627, e a ele sucedeu seu filho Muhammad Khurram [1592-1666] conhecido como Xá Yahan. Foi este que, em 1630, mandou construir em Agra o Taj Mahal, em memória de sua falecida esposa Mumtaz i Mahull; a obra foi concluída em 1648. Atualmente Agra integra o Estado de Uttar Pradesh [visitamos Agra em 15 e 16 de outubro de 2019]. Bento de Goes: um açoriano na Ásia Central Luís Gonçalves nasceu em Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, arquipélago dos Açores, em 1562. Com vinte anos embarcou para a Índia, onde foi soldado; viveu na boemia e na pândega, e aos 21 anos se arrependeu, e entrou na Companhia de Jesus. Saiu, e em 1588 voltou, e adotou o nome de Bento de Goes. Embora inteligente e apto para os estudos nunca quis ser sacerdote, e ficou sempre como irmão leigo, ou auxiliar, e nessa qualidade foi enviado à corte de Acbar. Bento aprendeu vários idiomas, entre eles o persa, língua franca da Ásia Central. Ao longo de sua viagem Bento redigiu muitas anotações sobre os lugares por onde passava, mas, quando morreu, os seus companheiros de viagem destruíram esse diário, porque continha anotações do dinheiro que Bento lhes tinha emprestado. O que se sabe do seu itinerário é a reconstituição dele feita pelo Padre Matteo Ricci, a partir de vários elementos: as cartas que, durante a viagem, Bento lhe ia escrevendo para Pequim, fragmentos do diário que se conseguiu salvar, e os relatos do companheiro de viagem, o armênio Isaac. Em 1911 Tacchi Venturi editou esse diário reconstituído, que está também incluído na obra de Fernão Guerreiro – Relação anual das coisas que fizeram os Padres da Companhia de Jesus nas suas missões [1603-1611]. Por meio desse texto vamos percorrer o itinerário do Irmão Bento de Goes SJ, por terra, desde a sede do Império Mogol até às muralhas da China. Resumimos algumas passagens, citamos outras por extenso, completando a identificação de alguns lugares, tentando esclarecer e expor sua condição à época da viagem do Irmão Bento, bem como seus antecedentes, a fim de perceber melhor a importância desta viagem. De Deli a Cabul: Missão e preparativos “Por cartas dos da Companhia que residem na Corte do Mogor soubese na Índia daquele famosíssimo reino que os mouros chamam Cataio, cujo nome chegou antigamente ao conhecimento dos europeus por intermédio de Marco Polo, veneziano, se bem que alguns séculos depois tenha caído em esquecimento de tal maneira que pouco se acreditava na sua existência. Escreviam os padres que aquele reino do Cataio se situava a Oriente, algo mais setentrional que o dito dos Mogores. Persuadiam-se que nele havia muitos cristãos, com os seus templos, sacerdotes e cerimónias sagradas. Com tais notícias o Padre Nicolau Pimenta, português, Visitador da Índia Oriental, começou a tomar-se de desejos em doutrinar aquela gente por meio dos nossos. [...] O Visitador escolheu para esta missão um nosso irmão chamado Bento de Goes, português, homem religioso e prudente, o qual pelo muito tempo que tinha residido no reino dos mogóis, sabia perfeitamente a língua persa e conhecia todos os costumes dos mouros, parecendo-lhe que estas duas coisas eram essenciais para quem tivesse de empreender aquele caminho”. [Mateo Ricci, cf. Trigault, apud Neves Águas 25]. O que estava em causa eram pelo menos três questões: se o reino de Cataio era a China, se lá havia cristãos, e se esses cristãos eram os que constituíam o Reino do Preste João. O termo Cataio parece derivar de Kitai, povo de origem manchu, um ramo dos tungus da Sibéria, e de Kitan, o seu reino, limítrofe com o Noroeste da China. Assim diz Neves Águas [p.19]: “Cataio era um reino próximo da China, ou de uma parte dela, a que tinha dado o nome”. E os apontamentos do P. Ricci [ib. p.25] dizem o mesmo: “Parecia, pois que aquele reino, por ser confinante com o da China, lhe havia dado também seu nome”. Ou seja: Kitai, Katai, ou Cataio era a China e ao mesmo tempo não se identificava com a China. “Sabiam os nossos, por cartas do Padre Mateo Ricci escritas do Reino e Corte da China, que este reino por outro nome se chamava o Cataio, o que se veio a confirmar por várias razões.” [p.25]. Mas havia dúvidas: os que viviam com os mogores diziam que o Kitai não era a China, e que lá havia cristãos; mas os jesuítas da China diziam que lá não havia cristãos, e com tudo isso o P. Nicolau Pimenta resolveu averiguar a questão, enviando Bento de Gois: “O nosso Bento preparou, pois, a sua viagem desta forma: vestiu-se com trajes de mercador arménio cristão e, com nome à maneira daquela nação, se chamou “Abdula”, que significa “senhor”, e juntou-lhe o de “Isaí”, que quer dizer “cristão”. Recebeu do rei dos mogóis, chamado Acbar, amigo dos da Companhia e principalmente do próprio Bento, diversas cartas para vários príncipes; e assim foi tomado por arménio, a quem se concede passagem livre, a qual se lhe proibiria se fosse tido por espanhol. Levou consigo várias mercadorias, tanto para sua manutenção, vendendo-as, como para que o tomassem por mercador. Muitas dessas mercadorias eram da Índia e do reino do Mogor, custeando as despesas o vice-rei, e ajudando a elas o próprio Acbar” [ib 26]. Faziam parte do grupo de Bento de Goes: um sacerdote grego de nome Leo Griman, um mercador arménio chamado Demétrio, e quatro criados de outras nações, mas cristãos. Estes deixaram Bento em Laore, e em troca recebeu o que lhe foi mais fiel, o arménio Isaac. “Partiu, pois, o nosso irmão de onde estava o seu superior a 6 de Janeiro de 1603[...]”. O disfarce de arménio, e a convivência com comerciantes arménios, era muito conveniente: os arménios desde longa data eram conhecidos em toda a Ásia como mercadores, falavam diversas línguas, e eram cristãos. Em terras do Grão Mogol A caravana anual saía de Laore para Cascar [Kashgar], e tinha que ir preparada não só para uma longa viagem, para as dificuldades do mau caminho, e para o convívio, mas também para enfrentar muitos e perigosos ladrões e assaltantes; além de tudo isso passava por povos de línguas diferentes, e precisava de levar intérpretes – mesmo que muitos comerciantes falassem vários idiomas, e quase todos falavam persa, o idioma mais comum do comércio na região. Em Athec, hoje Attock, no Paquistão, a caravana atravessou o rio Indo, em barcaças, esperou uns dias porque havia notícia da presença de muitos bandidos, e ao fim de três meses de viagem descansou em Passaur, hoje Peshawar [pron. Pacháuâr] cidade muito antiga, de cerca de três mil anos. Sua localização é importante, junto à passagem de Kiber [Khyber], nos contrafortes a sul das montanhas do Hindukush, um dos locais de maior trânsito entre Lahore e Cabul. Por ali tinham passado os exércitos de Alexandre Magno, Tamerlão, Babar, e Gazni a caminho de conquistar o norte da Índia. Antigamente chamada Purushapura, no século II a. D. foi a capital da região helenística de Gandhar; a cidade é rodeada de terras férteis, o que fez dela um entreposto de abastecimento agrícola e ponto comercial importante. Incorporada ao império do Grão Mogor, Acbar lhe mudou o nome para Cidade de Fronteira – Peshawar. Daí a caravana seguiu contornando o Hindu Kush, chegando a Caferstam, ou Kafiristam, local pouco conhecido na época. O termo kafir e a explicação que dele dá o relato de viagem mostram a razão do motivo: kafir é o termo árabe para designar infiel, equivalente ao termo europeu “pagão”, isto é, de religião anterior ao cristianismo, ou ao islamismo. Daí provem o termo cafre, que os portugueses usavam para designar os pagãos africanos, os quais já eram chamados kafir pelos árabes da África Oriental. Não sendo muçulmanos deram vinho a provar a Bento, “e era semelhante ao nosso. [...] Naquele lugar ficaram outros vinte dias” e, como nas estradas a percorrer havia muitos salteadores, receberam do “senhor” uma escolta de quatrocentos soldados, o que demonstra muita consideração da população de Kafiristan pelos mercadores. Hoje conhecido como Nuristan, no Afeganistão, o Kafiristan foi certamente um lugar diferente de tudo o que o missionário já tinha visto e ouvido falar, e não era sem razão, pois tratava-se de uma população fechada, etnicamente distinta – embora de origem indo-europeia – e que, ao contrário dos seus vizinhos muçulmanos, se mantiveram na religião tradicional, até ao final do século XIX. Viviam em grupos separados, em vales férteis e provavelmente autossuficientes, e falavam dialetos diferentes uns dos outros [Columbia]. Segundo o relato do Padre Ricci a caravana viajou vinte e cinco dias até chegar a “outro lugar chamado Ghideli”, que na Relação de Fernão Guerreiro é chamada Zedeli [pp. 27 e 56]; a nota 21 de Neves Águas identifica o lugar como Iagdalac; mas, no mapa que o mesmo autor/editor inclui como itinerário de Bento de Goes [p. 42-43], nessa localização, ou seja, entre Peshawar e Cabul, está assinalada a cidade de Jelalabad/Jalalabad cidade antiga, citada como centro importante da região greco-indiana de Ghandara; aquando da passagem de Bento de Goes pertencia ao império mogol, e hoje é capital da província de Nangashar, no Afeganistão. Fugindo dos ataques dos salteadores a caravana prosseguiu, e chegou a Cabul, que, segundo o relato da viagem, “é cidade com mercado muito frequentado, que ainda está situada nas terras sujeitas ao Mogor” [27]. Alguns membros da caravana não quiseram prosseguir, pelo que os demais ficaram em Cabul oito meses, esperando “reforços”. Bento aproveitou o tempo para vender mercadorias, e tão bem o fez que emprestou quase seiscentos ducados à irmã do rei de Cascar [Kashgar], que voltava de peregrinação a Meca e estava sem recursos. Entretanto o sacerdote Leo Grimon e o seu companheiro Demétrio abandonaram a caravana, e Bento ficou só com o armênio Isaac. Depois de alguns meses novos comerciantes se juntaram ao grupo, que podia enfim retomar a viagem; passando por Charikar, ou Tcharikar, hoje capital da província, de população de maioria tadjique, chegaram a Parvan [ou Parwan], nos contrafortes do Hindu Kush; esta deve ter sido cidade importante, para dar nome à província, mas Bento a define como “lugar pequeno” e o último “do reino dos Mogores”. A caravana estava, portanto, entrando em território menos conhecido, e onde o jesuíta já não estava protegido pelas cartas de Acbar. Entrando na Ásia Central Ao chegar às montanhas do Hindu Kush, no norte da província de Parvan, a caravana tinha várias opções de passagem das serras, porém o passo ou desfiladeiro de Solang é o mais importante [hoje em dia há um túnel], e o que ficava na rota da caravana de Bento. Em Parvan os viajantes descansaram cinco dias e começaram a subir a cordilheira: “uns altíssimos montes de uma região chamada Aingaram” de onde passaram a Calcia [Kachu], Gialalabath [Shirabad] que pertencia ao emirado de Bucara ou Bucarate, Tlhan [Talachan ou Talikhan], Chescar de Samrham [Teshkan], Burgagne; e em todo esse caminho andavam os mercadores assustados por causa de revoltas e conflitos que por lá tinham eclodido. Desde Parvan a Hiarcan [Iarcanda] a caravana percorreu o território menos conhecido de todo o trajeto, em parte pelo atual Tadjikistão, e por territórios ao norte do Tibet, hoje incorporados à China. Apesar das garantias do governador local os rebeldes atacaram e roubaram a caravana; Bento só perdeu um cavalo, que recuperou depois; mais adiante ele foi cercado por ladrões, mas brincou com eles fazendo um “jogo de bola” com o turbante, e deixaram-no ir. Seguiram por um caminho “muito mau”, que na língua local tem esse mesmo nome de Tenghi, ou Thebgi, que quer dizer mau caminho, porque “é apertadíssimo, e não dá passagem para mais que uma só pessoa, num altíssimo precipício sobre um rio” [Neves Águas 29]. Estavam chegando às montanhas do Pamir e ao rio do mesmo nome. Em Badascian os moradores roubaram mercadorias; Bento perdeu três cavalos, que recuperou com presentes. Seguiram para Ciarciunan [Tchartchounar], onde choveu muito, e os ladrões os acometeram. Daí para Serpanil [Sir-i-Pamir] subiram ao monte Sacrithma, e passaram em Sarcol [Sarikol ou Sirikol]. Chegaram ao monte Ciecialith [Chichiklik], com muita neve, passaram por Tanghetar [Tangitar] e Jacorich [Jakka Arik] onde Bento, se adiantando aos demais, entrou em Hiarcan dez meses depois de ter partido de Lahore. De Iarcanda ao Cataio Hiarcan, identificada como Iarkand ou Jarcanda, era passagem importante da Rota da Seda. Diz o relato de Bento: “Hiarcan é um famosíssimo mercado, tanto pela concorrência de mercadores como pela variedade de mercadorias. Nela dá fim à sua viagem a cáfila dos de Cabul, e daí se organiza outra ao Cataio [...]” [29]. Para a China a mercadoria de maior preço era o jade, que Bento chama jaspe, e os chineses, segundo ele, chamam yuxe. Como a viagem era perigosa, e muitos mercadores ficavam em Iarcanda, foi preciso esperar um ano até reunir o número suficiente de componentes para formar a caravana. Bento de Goes aproveitou o tempo para fazer amizades na corte, visitar o rei e dar-lhe presentes. Entretanto voltou Demétrio, que tinha acompanhado o jesuíta no princípio da viagem. Bento ainda aproveitou para ir a Cotan cobrar o dinheiro que tinha emprestado à irmã do rei local. Depois de mais algumas peripécias Bento de Goes comprou dez cavalos, preparou as mercadorias, e, “quase em meados de Novembro” de 1604, partiu para o Cataio. A caravana passou pelos seguintes lugares, em território Uighur, hoje província de Xinjiang, na China, e que Neves Águas identifica deste modo: Hancialix [ Kham Chalish], Alcegher [Ac cechil], Habagateth [não sabe], Egriar [Egri-yar], Meselelec [Mejnet ou Merket Daylie], Tallec [Talik], Horma [Curma], Toantac [Tewan Tagh], Mingieda [Mingyedi], Capetalcol [Captar Kol], Cilan [Chilyan], Sare Guebedal [Shah Yar], Cambalci [Kumbash], Aconterzec [Sak Sak], Ciacor [Shakyar].Em Acsu [Aksu] o governador, de doze anos, era neto do rei; a ele Bento deu presentes, incluindo brinquedos. Houve um baile, e o irmão Bento foi convidado a dançar ao modo da sua terra, e ele bailou, “para não parecer que lhe negava uma coisa tão pequena” [32]. Tendo passado pelo deserto de Gobi, foram a outras cidades: Oitograc [Oi Tograk ou Oitoghraq], Grasso e Casciani [não identificadas], Dellai [Daulat], Saregabedal [de novo Sha Yar], Ugan [Ugan ou Ugen], Cucia [Kutcha] lugar pequeno, mas onde havia mesquita, e onde ficaram um mês para descanso dos cavalos, que estavam sem forças, devido ao mau caminho, ao peso do mármore, e à falta de cevada. Daí, depois de 25 dias de caminho, chagaram a Cialis – KaraShah, ou Chiglik, ou Korla. A cidade, no reino de Kashgar, era pequena, mas bem fortificada. Em Cialis Bento foi convidado, pelo príncipe governador, para disputar sobre a sua Lei [islamismo] com os seus “cacizes e letrados”; Bento achou que iriam matá-lo, mas na realidade o governador só queria discutir, porque “seus antepassados tinham guardado aquela Lei”, isto é, a Lei de Bento, ou seja, eram cristãos. A nota a esse respeito [nota 60] diz que já Marco Polo tinha encontrado cristãos nestorianos no reino de Kashgar, “os quais têm próprias igrejas”. Aí ficaram três meses, porque o chefe da caravana não queria partir, alegando que o grupo era pequeno para se defender dos assaltantes, até que Bento decidiu-se a ir sozinho, contra vontade dos companheiros, mas com autorização do príncipe. Na China: As cartas Um motivo especial estimulava Bento a viajar: é que entretanto voltaram a Cialis os mercadores da caravana do ano anterior; eles tinham estado em Pequim, onde encontraram o Padre Mateo Ricci, de quem deram novas ao irmão Bento, que com isso muito se alegrou, e por terem confirmado que a China era o Cataio, “e dali em diante não tiveram dúvida alguma de que o Cataio só de nome se diferenciava da China, e de que a própria Corte, que os mouros chamavam Cambalu, era Pequim” [34], coisa que, ao partirem da Índia, sabiam mas da qual não tinham a certeza. Prosseguiram então o caminho, e levando cartas de apresentação foram bem recebidos em Puchan [Patchan, ou Pidjan], e em Turfan [Tourfan], cidade fortificada; daí para Aramuth [Karakhoja] e Camul [Hami, ou Chamil], o último lugar do reino de Cialis, onde ficaram um mês. Nove dias depois chegaram a Chiaicuan [Kiajiikwan], junto às muralhas da China; aí esperaram autorização para passar a muralha, e em finais de 1605 Bento chegou a Shoh-chow [Soceu]. Todo o caminho de Cialis até às muralhas estava devastado “com os assaltos e correrias dos tártaros”, que só comem carne, e vivem muito tempo,” ultrapassando os cem anos”. Bento de Goes chegou a Soceu acompanhado de Isaac, ambos de boa saúde, e rico: “trazia treze cavalos, cinco criados a quem pagava salários, dois rapazes escravos que tinha comprado e mármore mais precioso que todos os outros” [36]. Dali Bento escreveu ao P. Ricci, pedindo, entre outras coisas, que conseguisse para ele autorização para sair da cidade e voltar à Índia por mar. Ao receberem as cartas dele os jesuítas de Pequim ficaram muito contentes, mas acharam que não era conveniente, pela etiqueta chinesa, enviar um estrangeiro para encontrar outro estrangeiro, porque nessas questões o governo imperial era muito suscetível e desconfiado. Enviaram, pois, João Fernandes, um criado – pelo desenrolar da narrativa percebe-se que era um candidato a entrar na Companhia de Jesus “mancebo de singular prudência e virtude” que ainda não tinha entrado no noviciado. João Fernandes recebeu do P. Mateo Ricci e dos padres Pantoje e De Ursis cartas para o Irmão Bento de Goes. Bento esperou em Soceu durante um ano, que foi para ele muito difícil: faltavam mantimentos, teve que vender mercadorias abaixo do preço, viveu de empréstimos. E a ajuda demorava a chegar: a carta do P. Ricci dizia que “João Fernandes saiu desta Corte em onze de Dezembro do mesmo ano” e considerando que chegou a Soceu “no fim do mês de Março de 607” o mesmo ano citado acima é o de 1606, durante o qual Bento estava esperando por ajuda, sem poder sair da cidade, e, o que é pior, adoeceu e ficou muito mal. Mas quando João Fernandes lá chegou, e, por indicações de “não sei quem” encontrou o armênio Isaac, que o levou à casa onde Bento de Goes estava, conversaram em português; ao receber as cartas dos jesuítas de Pequim Bento ficou muito feliz e entoou o cântico evangélico: “Agora, Senhor, podeis deixar partir o vosso servo” [Lc 2, 29], como quem diz: cumpri minha missão, posso morrer – “porque lhe parecia que tinha cumprido o que se lhe mandara, e dado fim à sua peregrinação” [p.38]. E assim foi, pois não havendo médico na cidade, Bento de Goes morreu onze dias depois, em 10 de abril de 1607. Os mercadores apossaram-se de tudo o que Bento levava, e destruíram o diário de viagem. A questão foi a tribunal, e o juiz mandou entregar a João Fernandes e a Isaac os bens que sobraram do espólio de Bento de Goes. Conseguiram assim dinheiro para a viagem de retorno, e a 28 de outubro de 1607 chegaram a Pequim. Foi então que, tomando alguns documentos do Irmão Bento, as cartas, alguns pedaços do diário de Bento que Isaac e João Fernandes recuperaram, e os relatos de Isaac, o Padre Ricci conseguiu reconstituir a viagem de Bento de Goes. Soceu ou Anxi? Onde morreu o Irmão Bento de Gois? Para nos orientar nesta dúvida vamos partir do relato da morte do Irmão Bento. Redigido pelos jesuítas de Pequim, e completado pela versão do P. Fernão Guerreiro, diz o seguinte: Na parte ocidental do reino da China, voltada para o norte, ficam aquelas celebradas muralhas. Na época tinham sido construídas fortíssimas e guarnecidas cidades, que para sua defesa têm de presídio os soldados mais escolhidos. Com esse reforço os chineses conseguiram conter os “tártaros” que assolavam a China com “assaltos e correrias” [36]. O relato destaca duas cidades: Canceo [Kan-chow ou Konchow ki, na província de Xensi, ou Kiang-si, nota 69 p.62], nesta Canceo reside o vice-rei; e Soceu, [Fernão Guerreiro na p.57 diz Subecheo] que tem seu próprio governador. Nela residem, além dos chineses, mercadores vindos de muitos lugares da Ásia, que obedecem a leis locais próprias. Prossegue o relato: “Chegou o nosso Bento à cidade de Soceu no fim do ano de 605” [35 e 57]. Entretanto, enquanto esperava a autorização para entrar na China, Bento teve que vender parte das mercadorias que levava, “e assim sustentou durante um ano a sua casa” [37]. De Pequim a Soceu a viagem demorava quatro meses, e João Fernandes chegou a Soceu em março de 1607, encontrando o Irmão Bento já muito doente. Consolado com as cartas que recebeu do P. Ricci e demais jesuítas Bento de Góis morreu abraçado a elas. Os mouros, companheiros da caravana quiseram apoderar-se dos bens do falecido, conforme usos e costumes das caravanas, mas João Fernandes impediu-os, alegando que era sobrinho de Bento; infelizmente, porém, os ditos mouros conseguiram pegar no diário do Irmão e o rasgaram. João Fernandes e o armênio Isaac conseguiram salvar algumas páginas, que entregaram em Pequim para reconstituir o relato. Quanto aos demais bens, que os companheiros queriam tomar, o caso foi a julgamento na cidade, sendo juiz o governador militar, e o vice-rei de Canceu teve que intervir; por fim João Fernandes e Isaac puderam voltar a Pequim com parte dos pertences de Bento – documentos e pouco mais. Como se vê pelo relato as informações acerca de Soceu para nos permitirem identificar a cidade não são muitas. Soceo e Subecheo são formas de pronúncia portuguesa do nome do local em que ele viveu seus últimos meses. Nem esse nome, nem o de Shoh-chow se encontram em enciclopédias nem pelos motores de busca da internet. No mapa de Diniz, da edição portuguesa dos relatos da viagem [Neves Águas 42/43], Bento passou por Turfan e chegou à muralha da China; chegou, portanto, seguindo pelo trecho norte da Rota da Seda, onde já estava desde que passaram o Hindu Kush – não nomeia a Rota porque a expressão foi criada no século XIX pelo Barão de Richthoffen. A partir de Kashgar a Rota da Seda dividiase em três vias: a norte, por Turfan, a sul, por Khotan [Hotan], e a média por Aksu - note-se que os mapas da Rota da Seda são quase todos diferentes uns dos outros, mas, em todos os mapas, fosse só uma, ou as três, sempre chegavam ao mesmo ponto na Grande Muralha: Anxi. Alguns mapas não indicam aí nome nenhum, mas nenhum mapa indica outro nome que não seja Anxi [Anhsi]. Há mapas que indicam que a via média e/ou a sul chegam a Dunhuang, mas são poucos. Comparando todos os mapas antigos e recentes é evidente que o ponto de chegada da via que vinha por Turfan até à Muralha era Anxi. Mas esse nome também não consta de obras de referência, só nos mapas. Continuando a busca: o relato dos jesuítas diz que as duas cidades que controlavam a passagem das caravanas pela Muralha eram Soceu e Canceo, na província de Kiang-si. Atualmente a cidade de Anxi fica na província de Gansu, que já foi província de fronteira. Contudo perto de Dunhuang, segundo o guia da Folha [494-497], há duas portas ou torres, da dinastia Han, atualmente abandonadas, mas ainda imponentes – Wood [199] mostra fotografia feita pela expedição de Stein. Segundo o guia turístico essas torres [Wood chama-lhes beacon, marco ou torre de observação] ficam a cerca de 80km de Dunhuang; pelo mapa, em linha reta, são 70k até Anxi; na beira do deserto, esta cidade era, pois, a porta de entrada da China, junto à Muralha. Constatada a dificuldade de obter mais informações sobre Anxi consultamos a história da China de Gernet, onde diz [tradução nossa]: o Irmão português Benedict of Goez chegou a Chiu-ch’üan em Kansu em 1605, cidade que Gernet considera comercial e cosmopolita [I, 209]. Lá ele recebeu o chinês convertido Sebastian Fernandez em 1607 pouco antes de sua morte [Gernet II 469]. Apesar do erro no nome do enviado Fernandes, que ainda não era jesuíta, como ele diz, o resumo está correto, donde se segue que Chiuch’üan em Kansu/Gansu é Soceu, a que o mesmo Gernet [576] também chama Suchow, ou Su-chou, no mapa; e acrescenta: “the former and presente Chiuch’üan”. Temos assim que a cidade onde faleceu irmão Bento teve os seguintes nomes: Soceu, Shoh-chow, Suchow, Chiu-ch’üan, Su-chou. Chiu-ch’üan pode ser identificada facilmente nos mapas de Gernet a pouco mais de duzentos quilômetros a SE de Dunhuang e de Anxi. Portanto se não há nenhuma pista para identificar Soceu com Anxi, pelo contrário, são bem distantes, resta uma solução o Corredor de Gansu. Esta expressão geográfica é rara, e por vezes é dita como Corredor de Hexi, mas sua identificação é fácil. A atual Província de Gansu/Kansu no Noroeste da China, fica entre as províncias de Qinghai e Mongólia Interior; ela tem a forma aproximada de um osso de tíbia: larga nos extremos e estreita no meio, que é longo. Entre a parte larga do Norte, onde ficam Anxi e Dunhuang, e a parte larga do Sul, onde fica a capital atual da província, Lanzhou [também grafada Lanchow e Lan chou], medeiam cerca de mil e duzentos quilômetros; é realmente um corredor, tanto mais que se situa entre duas cadeias de montanhas. O longo percurso é pontilhado por grande número de cidades: Yumen, Chiu ch’üan, Jiayuguan [cidade fortificada], Jiuquan, Chang Yeh/Zhangye, Jhandum, Wu wei, Xining...Todo o lado norte, desde Anxi até Lanzhou está protegido do exterior pelas muralhas do período Ch’in e Ming, mas entre Wu wei e Lanzhou as muralhas Ming formam um imenso quadrado, dentro do qual fica a cidade, e cortado ao meio pela diagonal, também amuralhada [Gernet 102 e 422]. Vamos então deter-nos nessa cidade que, só pelas muralhas, parece ser, e ter sido, importante [Guia da Folha 479 e 484/485]. É preciso ver, antes de mais, que o Corredor de Gansu, ou de Hexi, é a primeira parte da Rota da Seda dentro da China antiga [a incorporação ao Império de territórios a norte fez a dita Rota começar na China mais ao Norte]. De Lanzhou a Rota da Seda seguia para seu termo final, a antiga capital Chang’an, hoje Xian. Portanto o local principal da Rota antes de virar para a capital era Lanzhou; a cidade fica no meio de um vale fértil e é cortada pelo Rio Huang Ho [ou Huang He, o Rio Amarelo], mas talvez o que mais a destaca é que era um nó de uma antiga rede intrincada de vias de comunicação; hoje essas vias se desenvolveram, e Lanzhou está ligada por estradas e via férrea à Rússia, Mongólia, Pequim e Tibete. Quando as caravanas chegavam a Lanzhou estavam bem dentro da China, e protegidas, mas em Anxi estavam à mercê do que vinha do deserto: bárbaros, assaltantes e ladrões. Por outro lado, se parassem um pouco mais adiante de Anxi, em Chiu-ch’üan, já estariam mais protegidas e podiam esperar a autorização de prosseguir até Lanzhou. Tudo leva a crer, pois, que Chiu-ch’üan é Soceu e que foi nessa cidade que morreu o Irmão Bento de Goes. Bibliografia e referências João Lupi é professor do Departamento de Filosofia da UFSC. Textos GUERREIRO, Fernão. 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O PERÍODO SENGOKU, PORTUGUESES [CRISTÃOS] E JAPONESES [BUDISTAS] EM KIRISHITAN NOBUNAGA, DE OSANAI KAORU José Carvalho Vanzelli O período da história japonesa conhecido como sengoku jidai [era dos estados beligerantes, em tradução livre] [1467-1615] é, sem dúvida, o mais recordado em adaptações artísticas. O preeminente papel dos célebres samurais, as complexas tramas políticas e os vários elementos culturais que hoje são vistos como “tradicionais” fazem com que essa época seja um “prato cheio” para recriações e adaptações literárias, teatrais, fílmicas, em mangá e anime, ou até mesmo videogames. Assim, há mais de um século, abundam referências, tanto no Japão como no exterior, a este período nas mais diferentes linguagens artísticas. Aos falantes de língua portuguesa, no entanto, esse período da história japonesa é especialmente interessante por razões distintas. Foi justamente durante o período sengoku que os portugueses aportaram e se estabeleceram em territórios da ilha de Kyūshū, sendo os primeiros europeus a travar relações com o[s] governante[s] do Japão. Este contato, que durou pouco mais de setenta anos, mudou de modo indelével tanto os rumos das guerras no Japão quanto a história de Portugal. Os lusitanos, ao se quedarem no Japão, além de novas tecnologias que convieram perfeitamente ao período belicoso em que o Japão se encontrava, levaram uma nova religião: o cristianismo. Como Charles Boxer [1951] explana, os portugueses lograram em monopolizar a intermediação do comércio do Japão com o exterior – não apenas com a Europa, como também com a China –, vinculando a presença do chamado kurofune [a nau que anualmente trazia e levava bens e minérios do Japão] à missão catequizadora controlada pela Companhia de Jesus e supervisionada pela coroa lusitana. Assim, estabeleceu-se um vínculo umbilical entre comércio e religião, que obteve um relativo êxito durante a segunda metade do século XVI. O protagonismo exercido por Portugal na intermediação das relações do Japão com o restante do mundo faz com que a segunda metade do Quinhentos seja o período recordado de modo quase exclusivo pelos escritores portugueses que retratam o Japão. Não são poucos os relatos de viagem e romances históricos que, desde final do século XIX até nossos dias, buscam recontar e rememorar nomes e fatos dessa presença lusitana no arquipélago japonês. Entretanto, não é apenas na arte portuguesa que o contato quinhentista entre Portugal e Japão é recriado. Textos japoneses também oferecem interessantes visões sobre o encontro desses povos, possibilitando ricas comparações em torno das visões e representações de ambos os lados. Nesta comunicação, proponho tecer algumas breves considerações em torno de um desses textos: a peça Kirishitan Nobunaga [“Nobunaga cristão”, em tradução livre] [1926], de Osanai Kaoru [18811928], conhecido como “o pai do shingeki” [Kumagai, 2015, p. 40, tradução minha]. Esta peça em um ato reconstrói um encontro histórico, ocorrido no ano de 1569, entre o famoso líder militar Oda Nobunaga [1534-1582], o padre jesuíta Luís Fróis [1532-1597] e o monge budista Asayama Nichijō [?-1577]. Obviamente, são muitos os aspectos que podem ser avultados neste texto. No entanto, atento aos limites deste trabalho, ater-me-ei apenas a algumas considerações gerais da peça e ao modo como são representados o padre jesuíta e o monge budista. Osanai Kaoru, embora seja pouco conhecido no Brasil, é um nome significativo para a literatura, o teatro e o cinema japonês do primeiro quartel do século XX. Foi figura central na adaptação das artes dramáticas tradicionais japonesas aos moldes do teatro ocidental, recebendo grande influência dos movimentos realista e naturalista europeus. Assim, foi preponderante no estabelecimento do chamado teatro moderno japonês, ou shingeki, que, grosso modo, diz respeito à dramaturgia elaborada tendo a estética europeia como paradigma. Osanai conviveu com importantes nomes das artes japonesas das eras Meiji [1868-1912] e Taishō [19121926], como Mori Ōgai [1862-1922], Tanizaki Jun’ichirō [1886-1965] e Uchimura Kanzō [1861-1930]. Este último nome parece ser de especial significância para o pensamento e a obra de Osanai, uma vez que foi por meio de Uchimura [Kato, 1983, p. 154] que o dramaturgo se converteu ao cristianismo em 1900. Osanai logo abandona a fé cristã, e se torna adepto da Sugamo-no-shiseiden [a partir de 1916] e, posteriormente, da Oomoto-kyō [a partir de 1920] [Kumagai, 2016, p. 51], duas das várias novas crenças que surgem no Japão ao longo das efervescentes eras Meiji e Taishō. Entretanto, o dramaturgo em nenhum momento deixa de ter a fé cristã no horizonte de suas reflexões. Inclusive, segundo Kumagai [2016, p. 62], na década de 1920, a última que viveu, Osanai escreveu algumas peças que têm uma “forte relação com o cristianismo” [tradução minha], sendo Kirishitan Nobunaga uma delas. Parece consenso entre os especialistas em sua obra que o convívio com Uchimura, declaradamente um pacifista [Kato, 1983, p. 154] que fez oposição à Guerra Russo-Japonesa [1904-1905], ajudou a moldar o pensamento de Osanai em torno das religiões e da espiritualidade, que, conforme indica Kumagai [2015], é um dos pontos-chave para se entender sua obra. Aqui, no entanto, não pretendo desenvolver este tópico. Como disse, minha atenção estará na representação das personagens Asayama Nichijō e Luís Fróis. Antes, no entanto, é preciso destacar que o diálogo levado aos palcos por Osanai não se trata de um encontro fictício, imaginado pelo autor, mas um evento real registrado na Historia de Japam, de Luís Fróis [Cf. Fróis, 1981, p. 282-290]. Portanto, o que o dramaturgo faz é colocar como personagem a pessoa que não só vivenciou, mas também registrou o fato histórico. Não nos é possível afirmar que o texto de Fróis tenha sido a fonte a qual o dramaturgo recorreu para montar sua obra. Entretanto, a existência do relato do sacerdote português acerca do encontro nos abre caminhos de estudos comparativos entre os textos. Sendo, ainda, os textos jesuítas fontes importantes para se entender a história do Japão, uma vez que, para Boxer [1951, p. 50, tradução minha], esses religiosos eram “agudos e inteligentes observadores da vida mundana que os rodeava” e “os principais historiadores japoneses [Anesaki, Murakami, Koda, entre outros] avaliam muito bem a correspondência [das descrições dos jesuítas com a dos japoneses]”, é válido averiguar até que ponto os relatos do jesuíta e a peça de Osanai dialogam. Na peça, Asayama Nichijō é um monge que trabalha como o engenheiro de Oda Nobunaga, o protagonista do espetáculo, na construção de um castelo ao xogum Ashikaga Yoshiaki [1537-1597]. O monge é caracterizado pelo ódio aos cristãos. A todo momento, Nichijō surge com dizeres hostis a tudo que vem de fora do Japão. Em determinado momento da peça, Oda Nobunaga pergunta ao monge se ele não achava úteis os escravos negros trazidos e ofertados pelos cristãos. Responde o budista: “Por mais que o senhor os elogie, eu os odeio. Eu odeio os cristãos. São grandes impostores, ou então, traidores do Japão” [Osanai, 1929, p. 257, tradução minha]. Adiante, prossegue: “[...] Eu odeio. Eu odeio os estrangeiros. O Japão tem sua religião. Crer em uma religião estrangeira, é perder para o exterior” [Osanai, 1929, p. 257-258, tradução minha]. Desta forma, o monge é pintado com tintas nacionalistas e xenófobas, buscando a todo momento convencer Nobunaga, sem sucesso, a proibir a missão jesuíta e a fechar o Japão a tudo [e todos] que vem do exterior. Essa caracterização de Nichijō encontra respaldo nas descrições que Fróis deixou. O padre descreve o budista da seguinte forma: “Havia neste tempo hum bonzo no Goquinai, homem de baxa sorte e escuro sangue, pequeno de estatura e mui desprazível filosomia, idiota sem letras nem inteligência em as mesmas seitas de Japão, da maior sagacidade e vivo engenho que então o demônio podia achar para conspirar nelle seo veneno, mui solto e livre no falar, hum Demostenes na eloquencia de Japão [...] se fez soldado cometendo muitos insultos e morte[s] criminosas, e pelo temor e receio de taes delitos determinou mudar o habito mas não os costumes: vestio-se em pelle de ovelha e feito bonzo, andou peregrinando de reino em reyno. [...] como era membro do demônio e capital inimigo da ley de Deos, tinha hido a Nobunaga e lhe pedio com muita instancia que antes de S. A. se partir mandasse deitar o Padre fora do Miaco e desterrá-lo daqueles reinos, porque aonde estavão estes Padres tudo se revolvia e destruia [...]”. [Fróis, 1981, p. 278-282] Outras características da descrição de Nichijō feita pelo padre cristão aparecem também na obra de Osanai. O caráter “idiota sem [...] inteligência” é evidenciado nas constantes exclamações que Nobunaga faz ao monge, uma vez que este era incapaz de enxergar os objetivos a longo prazo do militar por trás do convívio pacífico com os ocidentais. Assim sendo, termos como baka [tolo, bobo, idiota] [Osanai, 1929, p. 259]; chiisai ryōken [ideias pequenas, em tradução literal] [Osanai, 1929, p. 258]; atama no warui [burro, estúpido] [Osanai, 1929, p. 258] reforçam tipificações que vão ao encontro do ponto de vista deixado pelo jesuíta. Entretanto, outras características do monge como a eloquência e sagacidade não parecem transparecer na obra teatral. Afinal, falta a ele a capacidade de argumentação para a sustentação de um debate. Vejamos mais uma rápida comparação entre o relato de Fróis com a peça. Há, na descrição do debate com Nichijō feita pelo português, uma passagem em que são detalhados os argumentos dados pelo jesuíta sobre a existência da alma. Em determinado momento, é dito pelo padre: “E a prova que ao prezente disto vos podia dar era necessário ser fundada nos termos e proposições das nossas sciencias a que chamamos logica e filozofia, porém como as vós ignorais, usaremos como de remédio para o entenderdes de alguma comparação que não vá muito alongada desta sensibilidade a que mostrais estar tão apegado” [Fróis, 1981, p. 288] A denúncia da ignorância “das nossas sciencias a que chamamos logica e filosofia” creditada a Fróis por si mesmo, passa, na peça, a Nobunaga. Momentos antes da entrada dos cristãos no palco, diz o militar ao monge budista: “Aprender as ciências estrangeiras é agora a tarefa mais urgente. Penso até mesmo em construir uma escola com professores estrangeiros. Retórica, filosofia, lógica, filosofia – são coisas que você não entende, mas são todas ciências úteis” [Osanai, 1929, p. 260, tradução minha] Ao transferir uma observação que supostamente seria de Fróis para Nobunaga, Osanai consegue, a um tempo, se apartar do texto do padre português sem deixar de corroborar outra imagem ali presente. Afinal, reforça tanto o traço limitado do raciocínio de Nichijō, ausente na descrição jesuíta, quanto enfatiza a característica estrategista com que pinta Nobunaga – que nesta comunicação não explorarei, mas também está presente em Fróis. Tanto na peça quanto no relato do padre, a impossibilidade de competir com a retórica jesuíta faz Nichijō se “inflama[r] em fúria, tendo o rosto abrasado e os olhos encarniçados” [Fróis, 1981, p. 289]. Destaca-se, assim, a índole violenta do monge que tenta assassinar tanto o jesuíta quanto Wada Koremasa, o daimio benfeitor dos cristãos. Na Historia de Japam, a agressividade de Nichijō pode não chamar a atenção, afinal, é dito que antes de ser monge, ele teria sido soldado. No entanto, é interessante notar que, nos relatos em língua portuguesa sobre o Japão quinhentista, não é exclusividade de Asayama essa característica. Outros monges também apresentam o mesmo temperamento. Em Peregrinação, obra de Fernão Mendes Pinto [1509-1583] publicado postumamente em 1614, também há relatos e menções a debates com semelhantes ataques físicos por parte dos budistas. Não deixa de ser interessante notar como essa imagem presente em textos escritos no século XVI contrasta com a dos adeptos da “seita de Xaca” [Fróis, 1981, p. 280] nos séculos XIX, XX e, também, XXI. Afinal, desde a “febre” budista oitocentista, na qual parte da intelligentsia europeia usou a filosofia búdica para se repensar social e culturalmente [Cf. Borges; Braga, 2007], o Budismo, seus sacerdotes e seguidores foram vinculados a características como sabedoria, paciência, calma e placidez. Tipificações exatamente opostas a que vemos no monge de Osanai e nos relatos de Fróis e Mendes Pinto. Os lugares-comuns em torno dos budistas presentes na Europa oitocentista, na peça de 1926, surgem nos cristãos, que podem ser vistos como a contrapartida a Nichijō. Luís Fróis, enquanto personagem, surge em cena já na segunda metade da peça. Este entra acompanhado de outras duas personagens: Lourenço Ryōsai, seu intérprete, e Wada Koremasa. Chama a atenção que, desde a aparição no palco até sua primeira fala, transcorre-se um significativo intervalo em que as outras personagens continuam seus debates. Assim, Fróis permanece mudo, interagindo apenas com pequenos gestos. Tal fato indica uma caracterização marcada pela quietude, calma e serenidade. As rubricas deixadas pelo dramaturgo evidenciam que silêncio e discrição são caracterizações pensadas para suas personagens cristãs. A entrada destas personagens vem com a seguinte indicação do dramaturgo: “Finalmente, Wada Koremasa, Lourenço Ryōsai e Luís Fróis entram silenciosamente” [Osanai, 1929, p. 263, tradução minha]. Em seguida, uma outra rubrica indica: “Fróis, retira seu chapéu e cumprimenta [Nobunaga]” [Osanai, 1929, p. 263, tradução minha]. Reforça-se, assim, o caráter plácido do padre, que recebe a permissão do militar para não se prender a tais formalidades. Mesmo quando o jesuíta interage durante o debate com o monge budista, são comuns as indicações dramatúrgicas com a expressão shizuka ni [quietamente, calmamente, pacificamente] [Osanai, 1929, p. 266, tradução minha]. É fato que a maior parte do debate com Nichijō é conduzido pelo intérprete Lourenço Ryōsai. Entretanto, a quietude de Fróis não se deve a limitações linguísticas, uma vez que o japonês convertido também é caracterizado pela “modéstia e quietação” [Fróis, 1981, p. 290], características presentes em Lourenço também no – evidentemente não isento – relato do padre quinhentista. Deste modo, na peça japonesa, há uma clara associação dos cristãos a características de sabedoria e pacifismo, enquanto a personagem budista possui uma visão limitada, intolerante e violenta. Não deixa de ser interessante pensar como, nas artes ocidentais, cristãos e budistas costumam aparecer com tipificações inversas. É importante ressaltar que não penso, no entanto, que as cores com que o dramaturgo pinta suas personagens indiquem uma valoração qualitativa para cada crença religiosa. Em outras palavras, não creio que Osanai esteja querendo dizer que o cristianismo seria uma religião mais meritória que o budismo ou que seus seguidores seriam melhores. Tal visão não me parece plausível ao pensarmos que o dramaturgo se converteu, mas depois abandonou a fé cristã, passando a seguir outras religiões. Osanai Kaoru foi um artista que buscou em outras culturas e pensamentos formas de ressignificar sua arte e sua vida. Assim sendo, o destaque almejado pelo artista pode ser justamente no diálogo e não em um dos lados da discussão. O próprio fato de se interessar por formas novas de espiritualidade ao invés de seguir aquelas que vinham de séculos parece apontar para uma valorização do hibridismo e do diálogo intercultural – fato central em Kirishitan Nobunaga – por parte do dramaturgo. Por fim, gostaria de levantar hipóteses acerca da razão pela qual Osanai decide resgatar este encontro do Quinhentos e adaptá-lo para os palcos japoneses em pleno século XX. Para além da possibilidade da clara discussão em torno da espiritualidade, conforme propõe Kumagai [2015], penso que o dramaturgo opta por recuperar o período sengoku por este poder ser visto em paralelo com os períodos Meiji e Taishō, vividos pelo escritor. Afinal, tanto o período sengoku quanto as eras Meiji e Taishō foram períodos marcados por guerras constantes e choques culturais entre um Japão “tradicional” e o Ocidente – no caso do século XVI, com portugueses e jesuítas; nos séculos XIX e XX, com os Estados Unidos, Inglaterra e outras nações europeias. Ainda, a cultura militar japonesa desses dois períodos foi diretamente influenciada por estes contatos com o mundo ocidental, uma vez que, no Quinhentos, as armas de fogo portuguesas ofereceram novos recursos para as guerras internas do Japão, enquanto a partir das últimas décadas do Oitocentos, a modernização do exército e das estratégias militares japonesas foram inspiradas nos modelos euro-americanos. Afinal, esta foi a forma que o governo japonês entendeu como caminho de sobrevivência em um momento que o imperialismo ocidental avançava sobre diversas nações asiáticas. Nas palavras de Iriye Akira [2008, p. 265, tradução minha]: “Somente desenvolvendo-se por meio de expansão, acreditava-se, seria a nação japonesa capaz de emergir como uma potência na arena mundial e lidar com a forças expansionistas do Ocidente. Ao mesmo tempo, o expansionismo proporcionaria um novo objetivo nacional para o povo japonês”. Assim, o Japão se espelhou na política euro-americana e se tornou um país imperialista, estabelecendo guerras contínuas em busca de zonas de influência no exterior por meio século, desde a Primeira Guerra Sino- Japonesa [1894-1895] até a Guerra do Pacífico [1941-1945], cujo desfecho é marcado pelas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Recordando que Osanai veio de uma formação pacifista, é possível pensar que, metaforicamente, o dramaturgo projeta na personagem Nobunaga – e seus desejos de que “[s]eu nome ecoe até no exterior” [Osanai, 1929, p. 260, tradução minha] – o pensamento do governo central de seu país. Em outras palavras, é possível levantar a hipótese de que, para Osanai, a política de Meiji e Taishō intentava executar os mesmos almejos que um dia foram de Nobunaga. Ao observarmos que os planos do militar de sengoku resultaram em traição e em sua morte em 1582, antes de levar a cabo seu projeto de unificação do território japonês, não poderíamos conjeturar que Osanai estaria vislumbrando o mesmo destino trágico ao Japão se continuasse em sua empreitada militarista e imperialista no XX? Os ataques a Hiroshima e Nagasaki, em 1945, parecem fazer com que esta peça possa ser lida também sob este viés de alerta, uma vez que confirmariam uma suposta previsão trágica feita pelo dramaturgo nipônico. Há, por certo, ainda muito a explorar nesta obra e pretendo acrescentar algumas considerações às expostas neste trabalho em um texto futuro. Por ora, encerro minha comunicação com a esperança de que tenha fica claro que, sob muitos aspectos, Kirishitan Nobunaga traz em suas linhas pontos que nos levam a refletir e interpretar não só a história japonesa dos séculos XVI e XX, como também as relações entre Oriente e Ocidente. Assim, tanto a peça quanto o autor precisam ser mais conhecidos e estudados para além das fronteiras do arquipélago japonês. Referências José Carvalho Vanzelli realiza pós-doutorado [Estudos Literários] na Universidade Federal do Paraná [UFPR]. É mestre e doutor em Letras [Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa] pela USP. Graduado em Letras [PortuguêsJaponês] pela USP. Autor do livro Portugal e o Oriente: Antero de Quental – Camilo Castelo Branco – Eça de Queirós - Pinheiro Chagas [2021]. BORGES, Paulo; BRAGA, Duarte [Org.]. 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Kirishitan Nobunaga. in Osanai Kaoru zenshū [Obras Completas de Osanai Kaoru]. v. 3. Tóquio: Shunyodo, 1929. p. 250-271. TRÊS BONECAS CHINESAS: A RE-ORIENTALIZAÇÃO DAS MULHERES CHINESAS NO FILME MULAN [1998] José Ivson Marques Ferreira de Lima Mulan é um longa-metragem de animação dos estúdios Walt Disney, lançado no ano de 1998, produzido por Pam Coats e codirigido por Barry Cook e Tony Bancroft. O filme foi produzido durante um período que ficou conhecido como Renascimento Disney, que teve início no ano de 1989, no lançamento do filme A Pequena Sereia. Em linhas gerais, este foi uma época que marcou a saída dos estúdios Walt Disney Pictures de uma crise intelectual e financeira, voltando à sua forma clássica de contar histórias e empreendendo novos elementos vindos de musicais da Broadway. Foi nessa mesma época que o estúdio decidiu atender a críticas que lhes foram feitas durante décadas e procurou histórias que não pertenciam ao habitual eixo eurocêntrico de suas produções. O filme, que é inspirado no poema chinês de autoria anônima A Balada de Hua Mulan [FRANKEL, 1972, p. 38], conta a história de Fa Mulan, que possui problemas para se adequar às normas de gênero que lhe é imposta por sua família e sociedade, que assume o lugar de seu pai na guerra contra os invasores hunos. Dada a temática da animação, este é um filme que aborda as diferenças de gênero e a emancipação feminina que, ao assumir o papel de um homem, desafia todo o discurso acerca do que as mulheres são ou não capazes. Entretanto, a jornada de herói da personagem Mulan é ambientada em uma sociedade da qual não é a mesma do que os produtores do filme, e embora os mesmos tenham se esforçado para viajar, compreender e pesquisar sobre a História e cultura chinesa, suas convicções acerca da sociedade chinesa se sobressaem ao longo de todo o filme, especialmente no que diz respeito à sociedade chinesa no geral que será representada como terrivelmente opressora para as mulheres e homogênea tanto em pensamento quanto em etnia. Além disso, as representações de masculinidade e feminilidade se darão nos termos ocidentais, sendo sobrepostas na China presente no filme. Esta autoridade dos estúdios Disney em representar a China de maneira que atenda às próprias noções deles sobre o que é ou era a sociedade chinesa – e as mulheres chinesas – incorre do que Edward Said chama de Orientalismo, ou seja, a noção estereotipada de um Oriente inventada pelo Ocidente [SAID, 2007]. Neste caso, de uma China opressora e misógina. O presente artigo tem como objetivo discutir – a partir de três elementos retirados do filme: três bonecas que estão presentes seja na pré-produção [a chinesa que não possuía nome], no filme [a boneca de pano da passagem de Tung Shao] e nos produtos derivados [a personagem Mulan, um outro elemento do filme mas que aqui será trabalhado para além do mesmo] – a re-orientalização, ou seja, uma reinvenção estereotipada das mulheres chinesas no filme que incorre de uma objetificação sobre as mulheres que auxiliaram os produtores a significar ainda mais as suas representações orientalistas sobre a China, e de como podemos perceber isto no filme ou até mesmo em produtos licenciados [brinquedos, por exemplo] que parece cumprir uma finalidade semelhante nas mensagens que os produtores querem passar sobre a China para uma audiência global. O curta-animado China Doll Antes de ser um longa-metragem que desafia as convicções de gênero presente em uma sociedade patriarcal – e até mesmo das animações anteriores dos estúdios Disney – ou uma adaptação de um poema chinês, o projeto que então se tornaria Mulan [1998], era um curta animado sobre uma chinesa oprimida que encontra a liberdade após ser resgatada por um soldado britânico. [YIN, 2011, p. 63; WHIPP, 1998] Foi o autor de livros infantis Robert D. San Souci quem indicou para o Thomas Schumacher, o então vice-presidente executivo da Walt Disney Feature Animation, o poema chinês. Foi a partir dessa indicação que foi abandonada a ideia do curto e, no final do ano de 1992 a início de 1993, o longa metragem adaptando A Balada de Hua Mulan foi tomando forma. Porém, a ideia de uma boneca chinesa representando a fragilidade feminina estava longe de ser abandonada. A boneca encontrada na passagem de Tung Shao Durante o filme, na chamada sequência 9.8, após a canção Alguém Para Quem Voltar [do original, A Girl Worth Fighting For], a tropa liderada por Li Shang encontra um vilarejo em chamas. Lá, Mulan/Ping encontra uma boneca de pano – a mesma que o líder huno Shan-Yu encontrou na sequência 7.3. Essa boneca provavelmente pertencia à uma criança indefesa que então estava morta, assim como a sua família. A boneca de pano serve não somente como uma alegoria acerca da luta da qual a protagonista vinha travando até então, a luta por uma mulher que quer reconhecerse e poder afirmar sobre quem é; como também a da condição das mulheres chinesas enquanto frágeis e indefesas, assim como aquela boneca. A heroína, Fa Mulan A protagonista título da história, Fa Mulan é um caso especial a ser analisado. Desde os primeiros momentos do filme acompanhamos a sua falha: a falha em conseguir ser uma dama “honrada” digna de arranjar um bom casamento e de “honrar” os seus pais e suas semelhantes, resultando em uma plena insatisfação de si própria, sendo incapaz de reconhecer a si mesma. É através das experiências de Fa Mulan em sua jornada no mundo masculino que ela demonstra quebrar esse estereótipo de boneca chinesa que lhe é imposto. Além disso, ela rompe até mesmo com os padrões das princesas Disney anteriores. Ela não é submissa e nem precisa ser salva. Mulan é a única a pensar diferente na sociedade da qual ela está inserida, sociedade essa que é apresentada como homogênea em atitudes e ideias. Mulan é vista como uma chinesa que carrega ideais de uma estadunidense pós-feminista do final do século XX. A partir do filme, a personagem Fa Mulan é transformada em um produto que é consumido por inúmeras crianças ao redor do mundo. Tal fascínio pela personagem, no entanto, se dá por ela aparentar ser chinesa, mas agir enquanto uma estadunidense [MA, 2000, p. 142]. Então, ela é uma boneca – um produto pronto para ser comercializado por aqueles que verão nela sua semelhante –, mas não nos mesmos termos das outras duas bonecas apresentadas neste artigo. O Orientalismo a partir das representações do feminino Nos três exemplos apresentados há uma afirmação ou uma desconstrução do estereótipo da boneca chinesa, da mulher chinesa que é submissa, indefesa e retraída. Em dois desses exemplos há a recorrência do “indefesa” e que precisa ser salva, no último exemplo, há uma boneca que quebra esse estereótipo. No entanto, isso não ocorreu por acaso. Para dar significado aos papéis de gênero presentes no filme, foi necessário antes de tudo a ambientação em uma China extremamente orientalizada: um reino autoritário, misógino, despótico e incapaz de produzir um ser que pense de maneira diferente ao que é apresentado como um consenso. Os papéis de gênero, a forma como estão representados são de acordo aos comportamentos e ideias que acompanhamos no mundo ocidental. Ou seja, a China representada no filme é um misto dos problemas que são da sociedade estadunidense com o que os produtores do filme acreditam que foi a mulher na História da China. Parte da equipe, de fato, viajou para a China em busca de compreender melhor a sua cultura e História [KURTTI, 1998, p. 46-65], mas tal viagem não foi suficiente para desmontar as percepções orientalistas sobre a sociedade chinesa. Em resumo, a atitude da Disney com o filme Mulan [1998] pode ser compreendida como um esforço por parte do estúdio para adaptar uma história de uma sociedade da qual eles não compreendiam por “não serem chineses” [Ibidem, p. 24]. Mas que, porém, não os impediu de ter percepções orientalistas sobre os chineses. Apesar da tentativa da equipe de compreender, ainda sobressai no filme o que eles acham sobre o que de fato a sociedade chinesa é e foi. Essa autoridade de dizer sobre o que a China é ou foi está presente no filme seja nas suas representações e em seus discursos [canções e falas de personagem, por exemplo]. Essa atitude é o que demarca o Orientalismo, pois como o próprio Said argumenta, o Orientalismo surge enquanto “um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”. [SAID, op. cit., p. 29] O Ocidente, em geral, é extremamente ignorante a respeito dos chineses. Filmes como Mulan operam como uma ponte transcultural da qual uma audiência pode aprender mais sobre a História, costumes e culturas de outras sociedades. A Disney, através do filme e de seu estudo sobre a China, reclama para si a autoridade de falar sobre o que é a China, mais ainda, sobre o que é ser mulher na China. A personagem Fa Mulan, então, é vista como alguém que só é diferente por possuir esses ideais que são próprios de uma sociedade que – supostamente – possui convenções superiores no que diz respeito às mulheres. E mesmo no filme, só passam a pensar diferente aqueles que possuem algum tipo de relação com a personagem principal. Lan Dong [2011] discorre sobre diversos autores que discutem a respeito da natureza transcultural do filme Mulan [1998], enfatizando que o debate acerca das representações da China está além do debate entre “real” e “invenção” [debate semelhante temos em Said]. Fato, devemos levar em consideração que as representações orientalistas presentes no filme não surgiram com o mesmo, estas são resultado de processos históricos que dizem respeito ao colonialismo e ao imperialismo que moldaram a imagem da China e das mulheres chinesas. No entanto, há nestas representações o papel dos produtores do filme Mulan [1998] de readaptar alguns desses estereótipos para afirmar a sua hegemonia da cultura estadunidense. Mulan, ao contrário de outras personagens femininas é vista como uma representante universal do feminino. Essa noção de universalismo da história se faz presente no discurso do supervisor do projeto, Peter Schneider [KURTTI, op. cit., p. 23]. O poema A Balada de Hua Mulan trabalha com temas que podem ser facilmente assimilados por indivíduos de outras culturas e períodos, como foi o que ocorreu na própria China, na dinastia Tang [KWA, IDEMA, 2010]. Porém, essa noção de universalismo acaba por ignorar traços culturais presente nessas obras que são apagados em adaptações e sobrepostos com outros valores que irão menosprezar as discussões originais e impor as suas enquanto superiores, como ocorreu na animação. Conforme discutido, o agente direto para transmitir essa mensagem é a própria Fa Mulan, que é vista como uma chinesa apenas nos traços. Dito isto, há uma dupla consideração a ser feita através dos estereótipos orientalistas sobre as mulheres chinesas: em primeiro plano há a reafirmação de velhos estereótipos ocidentais sobre as mesmas, como o próprio estereótipo da boneca chinesa; em segundo plano, há uma orientalização no que diz respeito ao consumo das mídias e produtos que irão derivar do filme, há aqui uma sobreposição de valores e problemas ocidentais em uma roupagem oriental. Essa noção de reorientalização para consumo no filme Mulan [1998] é discutida por Sheng-mei Ma [2000]. Considerações finais A animação Mulan [1998] conta uma história que é vista como revolucionária por parte de seus realizadores. Mulan representa um espírito feminino quase que atemporal que luta por sua emancipação perante a opressão que lhe é imposta. A partir de três exemplos tirados do projeto que resultou no filme: as bonecas chinesas e a Mulan, acompanhamos a construção do discurso sobre as mulheres na China de modo que acaba por re-orientalizá-las, isto é, a partir de estereótipos presentes há uma reafirmação de alguns elementos e até mesmo uma quebra deles para então comercializá-lo, como é o caso da personagem título. Os três exemplos demonstram sobre como as mulheres chinesas são percebidas e objetificadas pelos produtores do filme, que irão trabalhar em um exemplo que desconstrua o estereótipo da boneca chinesa apresentado, com uma personagem que somente se libertar por possuir ideais e ações que dizem respeito a eles e a sua sociedade. Justificando assim uma hegemonia cultural, afinal, a solução dos problemas – que, por sua vez, são idealizados – de uma sociedade é através de atitudes de outras. Em ambos os três casos, física ou ideologicamente há um salvador ocidental para salvar as mulheres da opressão que é sintomática de uma sociedade representada enquanto atrasada e misógina. No fim, Mulan [1998] é um ótimo exemplo sobre a transculturalidade de uma mídia, mas que infelizmente está longe de evitar incorrer em estereótipos orientalistas e sobreposições para generalizar e inferiorizar uma cultura – esta que por sua vez, durante séculos, desenvolveu a história que foi apropriada. Referências José Ivson Marques é discente do curso de História - Bacharelado da UFPE, membro do LEOM – Laboratório de Estudos de Outros Medievos e faz parte da curadoria de História da China do CEÁSIA – Coordenadoria de Estudos da Ásia. DONG, Lan. Mulan’s legend and legacy in China and the United States. Pensilvânia: Temple University Press, 2011. FRANKEL, Hans H. Ballads. In: The flowering plum and the palace lady: interpretations of chinese poetry. New Haven: Yale University Press. 1976. p. 6872. KURTTI, Jeff. The Art of Mulan. Nova Iorque: Hyperion, 1998. KWA, Shiamin; IDEMA, Wilt L. Mulan: Five versions of a classic Chinese legend, with related texts. Indianapolis: Hackett Publishing, 2010. MA, Sheng-mei. Mulan Disney, it’s like, re-orients. In: The Deathly Embrace: Orientalism and Asian American Identity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000. MITCHELL-SMITH, Ilan. The United Princesses of America: Ethnic diversity and cultural Purity in Disney’s Medieval Past. In: PUGH, Tison; ARONSTEIN, Susan [Ed.]. The Disney Middle Ages: A fairy-tale and fantasy past. Springer, 2012. p. 209-224. MULAN. Direção: Barry Cook, Tony Bancroft. Produção: Walt Disney Pictures. Estados Unidos: Buena Vista Pictures, 1998. 1 DVD [88 min.]. SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. WHIPP, Glenn. Mulan Breaks the Mold with Girl Power; Newest Heroine Isn’t Typical Disney Damsel Waiting for Her Prince to Come’. Los Angeles Daily News, v. 19, 1998. Disponível em: https://web.archive.org/web/20150403112511/http://www.thefreelibrary.com/%60 MULAN'+BREAKS+THE+MOLD+WITH+GIRL+POWER%3b+NEWEST+HE ROINE+ISN'T+TYPICAL...-a083827546. Acesso em: 15 de set. de 2021. YIN, Jing. Popular culture and public imaginary: Disney vs. Chinese stories of Mulan. Javnost-The Public, v. 18, n. 1, p. 53-74, 2011. BREVE ANÁLISE ACERCA DA REPRESENTAÇÃO DO KITSUNE MITOLÓGICO NO MANGÁ INUYASHA, DE RUMIKO TAKAHASHI Júlia da Silva Amaral Introdução O presente artigo está vinculado à pesquisa de iniciação científica, intitulada: “Do folclore à cultura pop: a representação do kitsune mitológico no mangá InuYasha, de Rumiko Takahashi” já finalizada. O objetivo foi empreender um estudo a respeito dos paralelos entre a mítica raposa, em japonês, kitsune, e a personagem Shippō, um filhote de yōkai raposa, que protagoniza o mangá InuYasha [1996], observando como os mangás podem resgatar contos e tradições antigas para a cultura pop nipônica. A história em quadrinhos passou a ganhar destaque a partir dos séculos XIX e XX. Will Eisner [1995, p. 5 apud CARLOS, 2009, p. 4] define-as como “arte sequencial”, ou seja, “um veículo de expressão criativa, uma disciplina distinta, uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma idéia”. Sua linguagem é formada a partir de dois elementos básicos: a imagem e a linguagem. No Japão, as histórias em quadrinhos, tanto orientais quanto ocidentais, são chamadas de mangás [漫画]. A palavra é dada pela união dos ideogramas man 漫 [humor, algo que não é levado a sério] e ga 画 [imagem, desenho]. Esse termo foi adotado e reconhecido por meio do desenhista Rakuten Kitazawa, que pertenceu à geração de artistas pós abertura dos portos do Japão, em 1853, após 200 anos de isolamento do país do resto do mundo, determinado pelo shogunato Tokugawa, em 1640. O novo período, denominado Meiji [1867-1912], trouxe diversas inovações para o país em várias áreas, inclusive nas artísticas e jornalísticas. Com a entrada do estrangeiro, principalmente o europeu, iniciaram-se os primeiros contatos dos japoneses com as revistas de humor de moldes ingleses e franceses [LUYTEN, 2003]. Kitazawa recebeu enorme influência do inglês Charles Wirgman, que editou o jornal The Japan Punch, trazendo para o meio jornalístico os moldes da imprensa britânica com charges políticas que fascinaram os japoneses. O grande sucesso fez com surgisse a primeira revista japonesa de humor Marumarushinbun em 1877, tendo duração de 30 anos [LUYTEN, 2003]. Com o fim da Segunda Guerra Mundial ocorreram modificações no ramo editorial dos mangás. Agora eles estavam divididos por gênero, com uma produção específica para adolescentes em uma faixa etária de 12 a 18 anos. Os mangás não só relatam o cotidiano do povo nipônico, mas também se utilizam de tramas com universos fantásticos, misturando-se com referências a períodos da história do Japão. A mitologia japonesa é bastante recorrente nos mangás, sendo capaz de aparecer em pequenas menções ou em tramas inteiras. Buscando discutir a presença das narrativas mitológicas dentro dos mangás, dediquei-me à análise do mangá InuYasha, da mangaká [termo japonês utilizado para definir quem cria e/ou desenha histórias para mangás profissionalmente] Rumiko Takahashi, publicado originalmente pela revista Weekly Shōnen Sunday em 1996. A obra analisada foi concluída em 2008, totalizando 56 volumes. Para retratar a violência de forma simplificada, a autora utilizou-se do Sengoku Jidai [Período de guerras], localizado dentro do Período Muromachi [1338-1573], caracterizado por ter sido uma época de instabilidade política e distúrbios sociais. A mitologia nos mangás Uma das variadas expressões artísticas que possuem a capacidade de realizar uma releitura dos mitos são os mangás. A doutora em Letras da Universidade de São Paulo, Selma Martins Meireles, em sua comunicação O mito nas histórias em quadrinhos: um exemplo a partir do mangá [2001] expõe o fato de que o estudo dos mitos e das histórias em quadrinhos afirma-se não como um subproduto acadêmico e cultural, mas sim como uma forma “alternativa” de apreender a respeito do universo e da relação do homem com o mundo natural e social, e de expressar essa interação de um modo não apenas racional, mas também intuitivo e emocional, buscando a totalidade do ser humano. O mito torna-se algo necessário a todo ser humano independente da época, transformando-se em um fenômeno altamente presente no mundo contemporâneo. Para tentar conceituar o mito, Meireles utiliza a teoria de arquétipos do psiquiatra suíço, Carl Gustav Jung. Ela cita que, de acordo com Jung, os arquétipos não têm formas pré-definidas e finalizadas, são virtualidades que podem se materializar de formas diferentes em diferentes épocas, culturas ou grupos sociais, na forma de mitos. Desta maneira, mesmo pertencendo a culturas tão diferentes quanto a brasileira e a japonesa, esse substrato psicológico pode ser intuitivamente compreendido quando aparece em formas artísticas de expressão, entre elas o mangá [MEIRELES, 2001, p. 2]. De acordo com o autor Victor Jabouille [1986 apud MEIRELES, 2001], “mesmo racionalizado, a leitura do mito apela para o sensível, para aquilo que é perceptível intuitiva e inconscientemente. Daí, talvez, a popularidade do mito, a dimensão e a facilidade de sua implantação, o seu dinamismo e perenidade”. O que o habilita tão bem, para ser empregado em manifestações artísticas e em mídia de massa, é o seu apelo à intuição e a arquétipos universais, que prescindem da racionalização para atingir o público e passar a mensagem. Em questão de propagação de mensagem, Meireles [2001] ressalta que como os japoneses sempre tiveram a tradição de representar histórias por meio da ilustração, pode-se entender que o mangá, assim como em todas as outras formas de manifestação artística, constantemente recorre aos mitos para codificar sua mensagem, recriando-os, quando necessário, a fim de atingir o homem moderno. A autora trabalha com a ideia de que provavelmente a noção mais difundida de mito e de mitologia é aquela de um grupo hierarquizado de deuses, semideuses, heróis, demônios e criaturas sobre-humanas, com as narrativas de seus feitos e eventuais relações com os seres humanos, como na mitologia grega, egípcia, nórdica, indiana, etc. No Japão antigo, a religião original xintoísta era politeísta e animista, ou seja, havia vários deuses superiores e espíritos para as forças da natureza, bem como demônios e outros seres maléficos. Todo esse fundamento de lendas e mitos permanece no imaginário japonês e é amplamente utilizado em mangás [MEIRELES, 2001]. A letrista Meireles [2001, p. 6] reforça que nos mangás há um forte componente de misticismo e religiosidade. Nós geralmente não refletimos o quão presente ainda estão os mitos em nossa sociedade, como sendo reproduzidos por histórias em quadrinhos e cumprindo seu ofício de questionar e estabelecer o papel do homem no mundo. Os mangás e as histórias em quadrinhos em geral, deverão certamente ser reconhecidos como um novo e importante filão para o estudo das sociedades atuais e da psique do homem moderno. Como em InuYasha aparece constantemente o termo yōkai, fez-se necessário a realização de um estudo para examinar o que de fato é um “yōkai” propriamente dito. Para tal, foi utilizada a dissertação de mestrado de Aline Majuri Wanderley intitulada DETA! O yōkai e as transformações das criaturas sobrenaturais japonesas [2013]. Segundo Wanderley [2013], yōkai nomeia seres sobrenaturais gerados pelo homem em uma tentativa de apontar a causa de fenômenos desconhecidos, eventos da natureza ou doenças que em uma época distante não contavam com explicações científicas. Os yōkai seriam seres sobrenaturais que se acredita terem sido criados quando o homem sentiu medo, diante de situações além dos seus entendimentos, como doenças, desastres naturais e experiência de morte [WANDERLEY, 2013]. Também devemos desvincular a ideia de que o yōkai é a mesma coisa que um “monstro” japonês. A forma mais genérica utilizada para traduzir o termo yōkai é “espírito”. InuYasha A história inicia-se com a colegial Kagome, que é puxada por um yōkai centopeia para dentro de um poço e por esse motivo acaba se transportando para o Sengoku Jidai [1467-1568], marcado por intensas guerras e conflitos políticos. Curiosamente, aparece uma joia dentro do seu corpo, que é muito cobiçada nesse mundo. Os yōkai, por sua vez, são os mais interessados no objeto e dentre várias tentativas para obter a joia, ela acaba se partindo em vários fragmentos, que se espalham por todo território japonês. A partir disso, Kagome se torna responsável por reunir todos esses fragmentos ao lado de um “meio-yōkai” [na obra, han’yō], chamado InuYasha. O Shippō e o kitsune mitológico: semelhanças e contrariedades Durante a jornada, InuYasha e Kagome se deparam com diversos inimigos e também fazem grandes amigos, entre eles: Miroku, um monge budista; Sango, a exterminadora de yōkai; e o primeiro de todos, Shippō, um filhote de yōkai raposa, que busca vingança pela morte de seu pai, ocasionada pelos Irmãos Relâmpago. Após ser salvo pelo casal, acompanha-os em suas aventuras. Shippō tem uma boa relação com Kagome, mas vive em conflito com InuYasha. Ele tem costume de pregar peças no meio-yōkai, e sua sinceridade nos diálogos acabam gerando discussões cômicas entre os protagonistas. A relação amigável entre Shippō -e outros yōkai- com os seres humanos nos leva à comunicação de Meireles [2001, p. 4] no qual a autora ressalta que nas histórias sobre yōkai, seres sobrenaturais nem sempre são benignos. Esse tipo de mangá geralmente se foca menos nos feitos dos yōkai em si, mas sim em suas relações, amistosas ou não, com os seres humanos. Por fim, como é possível notar na imagem abaixo, Shippō é ilustrado com traços humanos e sutis, ele tem uma única cauda e patas de raposa; aparenta ter entre sete e oito anos de idade, e apesar de InuYasha ser um mangá do gênero shōnen [categoria de mangás direcionados ao público masculino], o filhote de raposa tem traços que se assemelham aos de mangá shōjo [categoria de mangás direcionados ao público feminino], atribuindo-lhe um aspecto “fofo” e dócil. Figura 1: Shippō Fonte:Takahashi, 1997 Em sua dissertação, Aline Wanderley [2013, p. 99] toca no assunto da representatividade do yōkai no Japão moderno. Aquele que sobrevive nos dias de hoje é uma criatura mais amável, meiga, extremamente diferente do perigoso kappa [yōkai de caráter anfíbio que tem um casco parecido com o de uma tartaruga] que afogava pessoas, assim como o kitsune do mangá analisado, que apesar de seus traços leves, tem características próprias do yōkai kitsune representado em narrativas antigas do Japão. O Nihon Ryōiki [“Relatos milagrosos do Japão”] é a primeira grande coletânea de setsuwa [termo japonês que literalmente significa: "história falada"] data de 822, início do Período Heian [794-1185], e foi compilado pelo monge budista Keikai [ou Kyōkai]. Nesta coletânea, nos deparamos com a narrativa 1:2 sobre “Tomando a raposa como esposa e produzindo uma criança”, na qual apresenta o aspecto metamorfósico das raposas, sendo capazes de se transformarem em belas mulheres humanas. No mangá InuYasha, o personagem Shippō também consegue se transformar em humanos, tanto homem quanto mulher, para despistar os inimigos que encontram. No capítulo três, do volume quatro do mangá, Shippō consegue assumir a forma de Kagome para ajudá-la a escapar dos Irmãos Relâmpago que a haviam sequestrado. Ele também consegue se transformar em um balão e em quase qualquer objeto existente para se proteger, colocando uma pequena folha sobre sua cabeça. Em sua dissertação de mestrado intitulada Personagens folclóricos, deuses, fantasmas e História Extraordinária de Yotsuya em Tôkaidô: o sobrenatural na cultura japonesa, Cláudio Augusto Ferreira [2014, p. 45] evidencia que os kitsune gostam de pregar peças nos seres humanos. As raposas maliciosas, ou apenas traquinas, recebem o nome de yako ou nogitsune [raposas dos campos]. As raposas do campo frequentemente pregam peças que humilham samurais arrogantes, citadinos orgulhosos e mercadores gananciosos. Mas há também narrativas onde elas se aproveitam da boa-fé de comerciantes, agricultores e monges budistas [FERREIRA, 2014, p. 45]. Shippō adora pregar peças em InuYasha. Esse é um dos motivos que fazem o protagonista perder facilmente a paciência com o filhote de raposa. Shippō também não tem medo de enfrentar InuYasha, que é um personagem bastante temperamental, o que ocasiona discussões cômicas entre os dois. O autor Kiyoshi Nozaki, em sua obra intitulada Kitsune Japan's Fox of Mystery, Romance & Humo [1961], reserva um capítulo inteiro para expor alguns contos e relatos encontrados no Japão a respeito do kitsune-bi ou fogo de raposa. Por exemplo, o conto “O menino vê raposas emitindo fogo pela boca”, publicado em 1811, na qual um homem disse que tinha visto um kitsune-bi com seus próprios olhos em sua infância nas montanhas. Em uma madrugada ele encontrou cerca de 20 ou 30 raposas, grandes e pequenas, brincando juntas no quintal de um pequeno santuário de Inari erguido lá. E ele também descobriu que o fogo que pensara serem suas tochas era na verdade a sua respiração. O aspecto em comum deste e de muitos outros contos é que as raposas conseguem emitir fogo através de sua boca. Quando ocorre a primeira aparição de Shippō no volume três, o capítulo dez é intitulado “Kistuse-Bi – Fogo de Raposa”, pois a pequena raposa aparece em meio ao seu fogo com a aparência de um balão e não com sua aparência original. No volume quatro Kagome e Shippō são salvos de um ataque mortal feito por um dos Irmãos Relâmpago pelo kitsune-bi emanado através da pele do pai de Shippō. É interessante pontuar que a mangaká Takahashi atribuiu a kitsune-bi a Shippō não saindo apenas de sua boca, mas também de sua pele e até mesmo em suas transformações em objetos e humanos. Portanto, podemos dizer que o fogo de raposa é a característica principal da personagem, já que está presente em quase todos seus movimentos, tanto de ataque quanto de defesa. Considerações finais InuYasha, sem dúvida, é um mangá muito rico em folclore japonês. São diversos os yōkai que aparecem ao decorrer de toda história. Para o leitor desatento pode parecer apenas uma história genérica, com aventura, lutas e romance, mas quando realizamos uma análise mais profunda, percebemos o quanto Rumiko Takahashi construiu uma obra amplamente detalhada, bastante rica nas histórias e no passado de sua nação. Analisar as características de Shippō trouxe à luz o quanto as raposas foram importantes para o passado nipônico, a maneira como enganavam pessoas se passando por belas mulheres; sua malandragem com seres humanos; e sua habilidade de emitir fogo pela boca. Além disso, é possível perceber o quanto o mito se faz necessário a todo ser humano e como os mangás podem ajudar sua disseminação e fixação. Para nós, brasileiros, é excêntrica a leitura sobre um folclore tão distinto, assim como seria para um japonês ler sobre “Saci-Pererê” e “Boto-cor-de-rosa”. Portanto, ter acesso ao folclore japonês por meio de suas histórias em quadrinhos é instigante para os orientais, ao mesmo tempo em que é uma alternativa de conservação de costumes e tradições para o povo nipônico. Referências Júlia da Silva Amaral - Graduanda do Curso de História – Licenciatura pela Universidade Federal do Espírito Santo [Ufes]. Email: juliaamaral.ufes@gmail.com CARLOS, G. S. Mangá: o fenômeno comunicacional no Brasil. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul, Divisão Temática – Interfaces Comunicacionais, 10, Blumenau, 2009. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2009/resumos/R16-0436-1.pdf>. Acesso em: 19 jul. 2021 FERREIRA, Cláudio Augusto. Personagens folclóricos, deuses, fantasmas e História Extraordinária de Yotsuya em Tôkaidô: o sobrenatural na cultura japonesa. Dissertação apresentada ao Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Cultura Japonesa; LUYTEN, S. M. B. Mangá – o poder dos quadrinhos japoneses. São Paulo: Hedra, 2000; LUYTEN, S. M. B. “Mangá produzido no Brasil: pioneirismo, experimentação e produção”. In: XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Belo Horizonte/MG: INTERCOM [Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação], 2003. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/1688526468684543368790171322441 34098721.pdf>. Acesso em: 02 mar. 2020; NOZAKI, K. Kitsuné: Japan's Fox of Mystery, Romance & Humor. Japão: The Hokuseido Press, 1961 MEIRELES, S. M. “O mito nas histórias em quadrinhos: um exemplo a partir de mangás”. In: 4º Congresso de Arte e Ciência da USP. São Paulo/SP: AGAQUÊ Revista eletrônica especializada em Histórias em Quadrinhos e temas correlatos, São Paulo, v. 3, n. 3, 26 out. 2001. Disponível em: <http://www.eca.usp.br/nucleos/nphqeca/agaque/indiceagaque.htm>. Acesso em: 02 mar. 2020; TAKAHASHI, R. Entrevista concedida a Toren Smith. Amazing Heroes. Disponível em: <http://www.furinkan.com/takahashi/takahashi3.html>. Acesso em: 02 mar. 2020; TAKAHASHI, R. InuYasha. Trad. Arnaldo Massato Oka. São Paulo: JBC; WANDERLEY, A. M. DETA! O yōkai e as transformações das criaturas sobrenaturais japonesas. Dissertação [Mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japonesa] - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. BORDANDO O DIVINO: GUANYIN EM CABELO HUMANO Julia Guimarães Alves Faxiu, em chinês tradicional, designa a prática de bordar com fios de cabelo humano. É desconhecido precisamente quando essa teve início: aqueles bordados que sobreviveram ao tempo, conjuntamente com relatos poéticos, autobiográficos ou anedóticos, nos revelam sua presença desde, no mínimo, a dinastia Sung [9601279]. Contudo, é na China Imperial tardia - sobretudo durante as dinastias Ming [1368-1644] e Qing [1644-1911] - que a prática se popularizou entre mulheres ascetas na feitura de imagens, usualmente retratando a bodisatva Guanyin. A prática do faxiu encontra-se, então, em um curioso entrecruzamento entre bordado, espiritualidade e gênero. Uma sofisticada forma de arte devocional produzida no período, pretendemos ponderar porque esse foi o meio eleito por mulheres das elites letradas para exprimir seus anseios de natureza espiritual. Assim, enquanto uma prática generificada, como ponto de partida, questionaremos que mulheres são essas que dedicaram seu próprio corpo e habilidade na realização de tais imagens. O ideal e o esteriótipo feminino na China Imperial tardia Em Woman’s Percepts, um poema escrito com objetivo de instruir esposas como conduzir suas responsabilidades, a matriarca Li Shi escreve: “As for daughters, we instruct them in spinning / As for sons, we instruct them in the Classic of Poetry and the Documents” [apud Fong, 2004, p.9]. Ou seja: filhas deveriam ser ensinadas a tecer e coser; filhos deveriam ser ensinados sobre os clássicos da poesia e a leitura de documentos. Estamos, portanto, diante de uma educação generificada – evidência de uma sociedade organizada a partir de categorias de gênero que, como tal, produz e perpetua as diferenciações psicossociais entre feminilidade e masculinidade, principiando ainda na infância. Compor uma paisagem que cobrisse significativamente a experiência feminina na China Imperial tardia nos parece uma tarefa demasiadamente árdua e extensa para os presentes propósitos. Entretanto, para analisar a prática do faxiu, devemos delinear alguns princípios do ideal e do estereótipo femininos [Parker, 2019, p. 97] no contexto em questão. Em um período marcado fortemente pelo neo-confucionismo, rememoremos que Confúcio define em seus escritos as mulheres como “leitoras passivas” e “recipientes” da cultura dominante masculina [apud Fong, 2004, p. 3], valorizando características como a diligência, piedade, castidade, pureza e fidelidade. Manuais de etiqueta de até XI a.C., definem as Quatro Virtudes femininas, um conjunto de princípios morais e normas sociais básicas de comportamento para mulheres casadas no leste asiático, como: moralidade, discurso, conduta e trabalho [nügong]. Francisca Bray [1997, p. 256], ao analisar as relações de gênero no contexto da prática têxtil na China Imperial tardia, propõe uma diferenciação entre “woman’s work” e “womanly work”. O primeiro, trabalhos de mulheres, designa amplamente quaisquer atividades realizadas por mulheres; enquanto o segundo, trabalhos femininos, atividades morais ligadas a uma identidade generificada feminina. Dentre os trabalhos femininos aos quais mulheres deveriam se dedicar cotidianamente, compreendidos na ideia de nügong, estão: cozinhar, educar os filhos, praticar a sericultura, tecer, coser e, claro, bordar. Assim, ainda que por extensão suas ações repercutissem social e economicamente na China, notamos que a influência exercida pelas mulheres na prática de seus trabalhos se encontrava circunscrita ao âmbito domiciliar e cotidiano. É, pois, através do cumprimento de suas virtudes, bem como do exercício religioso, o qual compreendia atividades como repetir o nome de Buda, declamar o Sutra, meditar, venerar Guanyin e manter uma dieta vegetariana, que as mulheres pertencentes às classes letradas alcançariam a iluminação espiritual - marcando aquilo que Chung-fan Yu [apud Li, 2012, p. 136] denomina “religiosidade domesticada”. Contudo, é válido ressaltar que o lar na China Imperial tardia não se configura apenas como um sítio de reforço dos papeis de gênero pautados pela ortodoxia confuciana, mas também um espaço de agência artístico-criativa. Por meio da crença de que a feitura própria de ícones religiosos seria uma atitude meritória, mulheres eram estimuladas a utilizar seus próprios recursos e habilidades para a produção dos ícones que viriam a adorar. Tal crença abria espaço para negociações de ordem subjetiva, onde mulheres reivindicavam conhecimento e autoridade artísticos [Fong, 2004; Li, 2012]. Xiu [bordar] Voltando-nos aos escritos sobre bordado, competem duas visadas distintas: as representações masculinas e as femininas. Homens, poetas em sua maioria, usualmente revestem o ato de bordar em uma aura romântica, beirando o erótico. O imaginário da jovem lânguida que borda em silêncio, incitando o interesse masculino, tamanho o seu magnetismo, apresenta-se frequentemente em sua literatura. Mulheres, em geral esposas e mães, descrevem o bordado como um afazer rotineiro e polissêmico, assumindo significados educativos, afetivos, intelectuais e espirituais. Sua visão encontra-se documentada em poesias, autobiografias e manuais, os quais podem ser compreendidos como auto-representações de virtuosidade feminina [Fong, 2004, p. 6]. À medida que objetivamos compreender suas motivações e intenções ao bordar imagens religiosas a partir de seus próprios cabelos, privilegiaremos os escritos femininos. Passado de mães para filhas, de avós para netas, de tias para sobrinhas, exercido junto a amigas e irmãs, o bordado guardava forte significado afetivo para as mulheres que o praticavam, proporcionando-lhes um espaço intimista de troca não apenas técnica, mas de vivências e ensinamentos morais. Na poesia, longas tardes de prazer passadas com outras mulheres a bordar são descritas como momentos de criação ou fortalecimento de vínculos: “How wonderful that we know each other’s interests, / Laughing we talk until the last drip of the water clock / Opening the dressing case, together we look at the almost finished embroidery, […] / In the moonlight before the lamp we bind our thoughts and dreams together” [Yunjin apud Fong, 2004, p. 22]. Entretanto, quando exercido solitariamente, o ato de bordar toma uma dimensão espiritual. Todo bordado é construído a partir de uma lenta acumulação de pequenos pontos. É, portanto, uma tarefa progressiva, demandando tempo, repetição e concentração, além de disciplina manual e visual, conquistada apenas com a prática. Por analogia, tais aspectos aproximam o bordado de atividades já citadas, como repetir nome de Buda, declamar o Sutra e meditar, encontrando espaço facilmente na vida contemplativa das mulheres. Reclusas em seus quartos de costura, as mulheres se dedicavam inteiramente ao ofício. Ding Pei [apud Fong, 2004, p. 39], no manual de bordado intitulado Xiupu, ratifica: “One concentrates one’s attention single mindedly and contemplates principles with a serene mind”. Ressaltemos entretanto, que bordar é um processo que não se inicia quando a linha passa pela agulha. Assim como calígrafos e pintores, em geral homens, deve-se preparar o ambiente, tanto interna como externamente. Ding Pei e Zhang Shuying, autora de outro manual, descrevem o quarto de bordado ideal como calmo, limpo, silencioso, bem iluminado, ornado com arranjos de flores, incensos queimando e, reforçando seu caráter elitista, mesas laqueadas e tecidos finos. Similarmente, o estado de espírito ideal para bordar seria um de despreocupação e serenidade, aparte das perturbações mundanas. Decerto, tais manuais são escritos a partir dos moldes ortodoxos de virtuosidade feminina. Ding Pei [apud Fong, 2004, p. 40] chega a dizer que a prática do bordado seria capaz de transformar características indesejáveis nas mulheres, como a loquacidade e a preguiça, em qualidades positivas, como a quietude e a produtividade. Contudo, é interessante notar que a autora vai além desse arquétipo, ressaltando que o bordado estimularia o discernimento e o julgamento independentes, incentivando aquelas que a leem a se colocarem no mundo enquanto sujeitos de ideologia e prática. Xiu Guanyin [bordar Guanyin] Conforme expomos anteriormente, a confecção própria de imagens para veneração guardava um sentido meritório, podendo ser compreendido por meio do conceito de ganying. Robert Sharf [apud Li, 2012, p. 137] explica esse aspecto da cosmologia Chinesa antiga, assimilado pelo Budismo, como um princípio que fundamenta a relação entre o devoto e o divino. Podendo ser traduzido como uma “resposta piedosa”, o suplicante deveria estimular ou afetar [gan] o Buda, por meio de uma ação que elicie uma resposta compassiva [ying] desse. Nesse sentido, quando as devotas utilizavam o bordado, um labor que demanda tempo, evidência da sinceridade de suas preces, para criar uma imagem, seria uma forma de experimentar ganying. É nesse sentido que, durante as dinastias Ming e Qing, proliferam-se as imagens bordadas, em linha ou cabelo, de Guanyin. Com origem no sânscrito, seu nome significa “aquele/a que escuta à dor do mundo”, sendo apontado/a no Lotus Sutra [apud Hedges, 2012, p. 3] como a personificação da compaixão, sempre disposta a assistir as preces daqueles que necessitam. Não por acaso, o/a bodisatva Guanyin assume frequentemente uma forma provida de milhares de olhos e milhares braços, conforme observamos no bordado abaixo: Guanyin com milhares de mãos e olhos, autoria desconhecida, c. 1644-1911. Fio de seda sobre seda, bordado, 60,5x40cm. Fonte: https://tinyurl.com/kw3uk746. Guanyin com milhares de mãos e olhos [detalhe], autoria desconhecida, c. 16441911. Fio de seda sobre seda, bordado, 60,5x40cm. Fonte: https://tinyurl.com/kw3uk746 Referida frequentemente como a “mãe universal”, Guanyin é caracterizado/a por sua capacidade de transmutação, apresentando-se por meio de diferentes corpos e, consequentemente, gêneros. Na iconografia chinesa, até a dinastia Tang [581-618], foi representado sobretudo em sua forma masculina. A proliferação da imagem feminizada de Guanyin durante as dinastias procedentes pode ser elucidada a partir da popularização da história de sua encarnação em Miao Shan. As lendas variam, mas há um consenso de que Miao Shan seria filha do rei laico Miaozhuangyan, que almejava que sua filha levasse uma vida costumeira para uma mulher de sua classe, casando-se com um nobre abastado e dedicando-se ao lar. Contudo, a jovem, influenciada pelos preceitos do Dharma, queria para si uma existência simples, de devoção e celibato monástico, implorando a seu pai que permitisse sua ordenação. Enfastiado, Miaozhuangyan concorda que Miao Shan se junte a um monastério, esperançoso de que esta desistisse. Vendo sua filha cada vez mais determinada, o rei manda que incendeiem o monastério. Miao Shan apaga o fogo com suas próprias mãos. É, então, que Miaozhuangya decide executá-la – algumas versões da história contam sobre a contratação de um carrasco, outras, que seu próprio pai se encarregou da tarefa. Também variam os desfechos dessa execução, ora contando que Miao Shan teria sido executada e mandada de volta por Iama, aquela responsável pelo juízo final dos falecidos, ora contando que a mesma teria escapado da morte com o auxílio de entidades sobrenaturais. Mas é de comum acordo que Miao Shan passa a viver isoladamente na Montanha Fragrante. Algum tempo depois, Miaozhuangya adoece com icterícia. Nenhum médico é capaz de curá-lo. Já desesperançoso, o rei recebe a visita de um monge, o qual afirma que a convalescença só seria possível por meio de um remédio cujos dois principais ingredientes eram um par de olhos e um par de mãos de alguém incapaz de sentir raiva. Sugere, também, que havia um indivíduo assim nas redondezas, morando na Montanha Fragrante. Sem saber que se tratava de sua filha, Miaozhuangya aceita que o monge interpele a jovem, que prontamente cede suas mãos e olhos para a feitura do remédio. Já convalescido, o rei decide prestar seus agradecimentos àquele que realizou tamanho sacrifício. Ao chegar na Montanha Fragrante, reconhece sua filha. É então que, enquanto Miaozhuangya implora por perdão, Miao Shan se apresenta como a Guanyin de milhares de braços e milhares de olhos, pela primeira vez uma mulher. A história se conclui com sua morte e a construção de um templo na Montanha Fragrante por mando de seu pai. Da lenda, podemos extrair algumas conclusões que podem nos auxiliar a esclarecer a predominância de Guanyin nos bordados femininos, tanto com linha, quanto com cabelo: I] Miao Shan, incapaz de se ordenar, leva uma existência que, ainda que siga os ensinamentos do Dharma, é secular: tal como aquelas que a bordam, Miao Shan é uma mulher asceta; II] Ao oferecer seus olhos e mãos para a operação de um milagre, a princesa realiza uma automutilação, assim como virão a fazer as mulheres que extraem seus fios de cabelo, utilizando seu próprio corpo, para produção de seus bordados; III] Seu sacrifício tem como fim a convalescença de seu pai. Conforme veremos, a maioria dos relatos acerca da prática do faxiu, nos contam de mulheres a pedir à Guanyin o bem-estar de seus familiares; IV] Por fim, Miao Shan é uma figura dúbia. Ainda que extremamente devota, estamos diante de uma mulher que desobedece seu pai para exercitar a fé, tomando suas próprias decisões de acordo com o que considera melhor para sua jornada espiritual. Encontramos, pois, ecos da noção supracitada das mulheres como sujeitos de ideologia e prática, que tomam decisões e realizam julgamentos críticos, conforme estimulado por bordadeiras como Ding Pei. Faxiu [bordar com cabelo] É bem sabido que, para ser ordenado monge ou monja, os devotos têm seu cabelo raspado ritualisticamente, simbolizando o abandono daquilo que é mundano. Contudo, como Yuhang Li [2012, p. 139-140] coloca, tal significado parece menos importante quando nos reportamos à prática do faxiu. Por um lado, na medicina tradicional chinesa, cinzas de cabelo humano eram utilizadas para estancar sangramentos e curar feridas – estando ligado à ideia de regeneração. Por outro, em contexto ritualístico, era comum cortar os cabelos como forma de oferenda, sendo espalhado pelo chão para a recepção do Buda ou de monges, os quais voltavam instantaneamente a seu comprimento original de forma que poderiam ser oferecidos novamente – estando ligado à ideia de renovação. Ambas qualidades são pertinentes na compreensão do faxiu, pois, em geral, as imagens bordadas são utilizadas como uma forma de buscar a convalescença [regeneração] de males que afligem seus antecedentes ou descendentes [renovação]. Segundo relatos, o processo que precede o bordar, demandava alguns cuidados com os fios de cabelo, possuindo de três a quatro etapas: I] recolher; II] limpar; III] amaciar; IV] dividir [ou não]. A primeira etapa, recolhimento, se dava a partir da prática do bafa, traduzível como “extração de fios de cabelos”. Uma forma comum de se auto infligir dor no contexto imperial, uma vez que não representava risco para vida do praticante, nem pretendia deformação significativa, a extração de fios de cabelo seria similar a sangrar-se para escrever o Sutra ou marcar-se o corpo com símbolos do divino. O tratado mahayan Dà zhìdù lùn, por exemplo, irá postular: “If you truly love the [Buddhist] law, you should take your skin and use it as paper, take one of your bones and use it as a brush, and use your blood to write this” [apud Fister, 2000, p. 232]. A dor auto infligida afetaria o estado de consciência do devoto, que passaria a um estado mais fundamental do ser [Glucklich apud Li, 2012, p. 145]. Assim, seria uma forma de experimentar ganying, fazendo com que a compaixão sagrada, antes difusa e geral, se individue, se especifique, se personalize. Em suma, a dor aproxima o devoto e o divino. No contexto do faxiu, as devotas instrumentalizavam seu corpo para dar forma às deidades, tornando-se um com aquelas que representam. Após o recolhimento dos fios os mesmos serão lavados, amaciados e, por fim, poderão ser ou não divididos em espessura. São três as formas de bordar com cabelo: I] O primeiro método de bordar seria passar múltiplos fios pela agulha. No bordado abaixo, atribuído à reconhecida pintora da dinastia Yuan [1271-1368], Guan Daosheng [1262-1319], utiliza múltiplos fios para bordar os cabelos, as sobrancelhas e os cílios de Guanyin, enquanto seu rosto, manto e corpo são feitos em linha de seda, produzindo um hipernaturalismo. Guanyin, Guan Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda, bordado, 105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53. Guanyin, Guan Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda, bordado, 105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53 II] O segundo método consiste na utilização de apenas um fio de cabelo. Vejamos abaixo como a poetisa e artista Ni Renji [1607-1685], aos 43 anos, bordou Buda inteiramente com cabelo. Renji produziu a imagem para honrar seus pais falecidos e almejava que esta fosse passada e venerada pelas gerações advindas, como explica a inscrição a acompanha. Buda, Ni Renji, c. 1649. Cabelo humano sobre seda, bordado, s.d. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53. III] No terceiro método, os fios de cabelo são divididos em espessura antes se ser utilizados para bordar. Tal prática é análoga àquela de dividir os fios de seda, produzindo várias linhas extremamente finas. Não se sabe ao certo como essas mulheres realizavam a divisão, mas um dos relatos, dessa vez por Ye Pingxiang [apud Li, p. 132], uma garota de 14 anos a qual bordou uma imagem de Buda com fios de cabelo para resgatar seu pai encarcerado por um crime que não cometeu, conta: “[I] used a metal blade, which was as sharp as the tip of the awn of an ear of rice, to split hair into four strands”. A técnica, associada à aplicação de pequenos pontos, criam um aspecto pictórico característico do estilo baimiao, popular nas dinastias Ming e Qing - uma pintura da linha, sem preenchimento ou sombreado e usualmente monocromática. No bordado abaixo, atribuído à Li Feng, nascida durante o século XVII, retrata Guanyin sentada sobre um tapete de grama em posição de meio ruyi. Realizado inteiramente a partir de finos fios, esse faxiu alcança três diferentes tons de preto por meio do acúmulo de pontos e linhas, à exemplo do cabelo de Guanyin. Guanyin, Li Feng, c. 1691. Cabelo humano sobre seda, bordado, 68x35cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53. Guanyin [detalhe], Li Feng, c. 1691. Cabelo humano sobre seda, bordado, 68x35cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53. Uma técnica notável, dividir os fios de cabelos não deve ser considerado como uma mera etapa para alcançar determinado aspecto estético. O refinamento técnico não deve ser pensado a parte de seu encantamento religioso: “We could also say that there is a triple enchantment at work here, one related to the technical process of splitting the hair, one in the process of making the embroidery, and finally in the religious relation to Guanyin” [Li, 2012, p. 150, grifo nosso]. Considerações finais Ding Pei, em seu manual Xiupu, apontou a escassez de estudos voltados para a prática do bordado, atribuindo-a à sua desimportância. Mas rebate: se ele é tão supérfluo, por que orna mantos imperiais? De forma assertiva, reclamando autoridade sobre o assunto, evidencia o potencial criativo do bordar, capaz de alcançar “similar wonders as the calligraphy of talented men and the paintings of famous masters” [apud Fong, 2004, p. 39]. Conforme pontuamos no correr de nossa argumentação, as aproximações com as práticas de caligrafia e pintura se estendem também ao caráter ritualístico, intelectual e estético do bordado, seja esse realizado a partir de fios de seda ou de cabelo. No entanto, o ofício carece de valorização. E suas artistas, essencialmente mulheres, seguem enclausuradas em seus quartos, em anonimato. No presente texto, buscamos resgatar alguns desses nomes. Em última instância, o que os escritos e obras sobreviventes de muitas bordadeiras evidenciam são os lares, aos quais essas mulheres dedicaram suas vidas, como um espaço não apenas de conformação aos moldes ortodoxos de feminilidade, mas um potente espaço de criação, apreciação estética e afeto. Enfim, um espaço de agência. Referências Julia Guimarães Alves é bacharelanda em História da Arte pela Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. BRAY, Francesca. Technology and Gender: Fabrics of Power in Late Imperial China. Berkeley: University of California Press, 1997. FISTER, Patrícia. “Creating devotional art with body fragments: The Buddhist Nun Bunchi and Her Father, Emperor Gomizuno-o” in Japanese Journal of Religious Studies, vol. 27, n. 3-4, Set-Nov, 2000, p. 213-238. Disponível em: https://tinyurl.com/aza6fart. FONG, Grace. “Female hands: embroidery as a knowledge field in women's everyday life in late imperial and early Republican China” in Late Imperial China, vol. 25, n. 1, Jun, 2004, p. 1–79. Disponível em: https://tinyurl.com/2x6buk2h HEDGES, Paul. “The Identity of Guanyin: Religion, Convention and Subversion” in Culture and Religion, vol. 13, n. 1, Mar, 2012, p. 91-106. Disponível em: https://tinyurl.com/2vd5t3a6. LI, Yuhang. “Embroidering Guanyin: Constructions of the Divine through Hair” in East Asian Science, Technology, and Medicine, vol. 36, n. 1, Ago, 2012, p. 131–166. Disponível em: https://tinyurl.com/2ztmap53. PARKER, Rozsika. “A criação da feminilidade”. In PEDROSA, Adriano; MESQUITA, Amanda [org.]. Histórias das mulheres, histórias feministas: vol. 2 antologia. São Paulo: MASP. 2019. p. 95–107. JOSÉ DE AQUINO, O BRASILEIRO QUE ESCREVEU A PRIMEIRA HISTÓRIA DE MACAU Kamila Czepula José de Aquino Guimarães e Freitas [1780-1835?] foi uma dessas figuras históricas que caracterizavam o império português como um mundo em movimento [RussellWood, 2016, p. 93-170], no qual culturas diferentes das mais distantes partes do globo circulavam e se misturavam. Nascido em Minas Gerais, Freitas transitou entre Brasil, Angola, Macau e Portugal, tornando-se um rico observador dessas realidades. Ele fazia parte de um grupo significativo de brasileiros que passaram pelo Extremo Oriente entre os séculos 16 ao 19, por vezes ocupando funções de relevo, como destacado no trabalho de Carlos Moura [2014, p.37]. Após sua formação militar no Brasil, e tendo servido algum tempo em Angola, Freitas fora designado para o batalhão de Macau, aportando na cidade em 1815, como informa António Marques Pereira: “Chegou [o coronel José de Aquino] a Macau pelos anos de 1815, e serviu no batalhão do príncipe regente, sob as ordens do brigadeiro Francisco de Mello da Gama Araújo, que mais tarde foi governador de Diu” [Pereira, 1868, p.34]. Freitas aportou numa época conturbada para Macau. Poucos anos antes, a cidade fora ameaçada pela ocupação britânica em 1808, a pretexto de protegê-la contra as forças napoleônicas. Nesse cenário complexo, foi a habilidade dos portugueses em jogar chineses contra ingleses que terminou por salvar a cidade, fazendo com que os segundos fossem embora pacificamente naquele momento [Wakeman, 2004, p. 27-34]. Era de entendimento geral entre os lusitanos que a Inglaterra desejava absorver Macau, ou fazê-la servir aos seus propósitos; e não tendo conseguido, os britânicos voltariam anos depois para tomar Hong Kong à força e criar seus próprios entrepostos. Contudo, a sobrevivência de Macau continuava em risco. Esquadras piratas ameaçavam as cidades costeiras e o comércio local, minando tanto o poder imperial Manchu quanto a influência portuguesa na região do Sul da China. Teria sido a ação determinada de outro brasileiro, Lucas José de Alvarenga [1768-1831] - governador da cidade entre 1809-1810 – que afastou o perigo da poderosa frota de Zheng Shi [em cantonês, Chiang shi ou Cheng I Sao], pirata-mulher que comandara mais de trezentos navios, trinta mil marinheiros e que impôs o terror aos mares chineses, tendo desafiado a dinastia Qing, os ingleses e os portugueses. Após a indecisa batalha da Boca do Tigre – que Lucas conta como uma vitória acachapante dos portugueses em suas memórias [publicada em 1828] – os piratas aceitaram um acordo de paz, e Zheng Shi se tornaria uma rica e sossegada dona de Cassino em Macau. Mesmo assim, a passagem de Alvarenga pela cidade foi desdenhada pelos políticos da cidade, que buscaram minimizar sua atuação. Nessa situação confusa e difícil, em que o conflito de poderes e prestígio estava evidente, Alvarenga tornarase adversário do então Ouvidor da justiça, Miguel de Arriaga, sofrendo com as intrigas promovidas por ele e pela elite macaense. Embora se colocasse como súdito do império português, José de Aquino Guimarães e Freitas era, de uma forma ou de outra, reconhecido como “brasileiro” – e o próprio faria questão de frisar, em seus escritos, que nascera em Minas Gerais. Esse modesto oficial pisava em um terreno delicado, numa sociedade em que as redes pessoais foram elaboradas ao longo de muitos anos de convivência e proximidade. Pode-se dizer que era um “estranho” para os macaenses; mas em face das especificidades de Macau, Freitas também não deixava de ser um luso-brasileiro para os chineses, o que lhe proporcionava uma posição bastante específica como observador da realidade cultural circundante. Não podemos precisar se foi por uma motivação estratégica, por uma admiração sincera, ou se simplesmente Freitas era um áulico e bajulador, em todo caso, ele se tornou um apoiador destacado de Miguel de Arriaga. Obviamente, a sobrevivência de Macau dependia de um cuidadoso equilíbrio nas relações com a dinastia Qing [e naquele momento, com os ingleses também] mas sejam quais forem as críticas à atuação do Ouvidor, não dava para negar que ele fora bem sucedido em lidar com as principais questões envolvendo a soberania da colônia portuguesa. Portanto, se Freitas desejava subir na vida, era uma opção inteligente apoiar Arriaga, evitando se indispor com ele, como fizera Alvarenga. Russell-Wood comenta que era uma prática comum entre os servidores da coroa atuar nas colônias em busca de promoção, visando um cargo mais relevante na administração imperial ou mesmo, na metrópole portuguesa [2016, p.100-115]. José de Aquino Guimarães e Freitas foi bem sucedido em conduzir-se de maneira discreta e harmonizada com os interesses dos Macaenses. Segundo Marques Pereira, “Recebida em Macau, em 1822, a notícia do regresso de D. João VI a Portugal, o governador e capitão geral desta cidade, que então era José Osório de Castro Cabral e Albuquerque, nomeou o coronel José de Aquino Guimarães e Freitas para passar a Lisboa com a comissão de felicitar a sua majestade e sua real família pela sua feliz chegada a seu país natal, e ao soberano congresso pela sua instalação e progressivo empenho pelo bem nacional, devendo ao mesmo tempo dar conta da «maneira satisfatória com que se tinha recebido e solenizado em Macau o novo sistema constitucional.» A esta nomeação se uniu o leal senado, conferindo a José de Aquino os poderes de seu deputado [Pereira, 1868, p.34]”. A honra de representar Macau em Lisboa significava, também, ascender ao contexto da metrópole, e enturmar-se com a elite governante do império. Freitas soube construir sua carreira, e retornando a Portugal em 1825, conseguiu enfim alcançar o posto de governador de Coimbra, ficando em Portugal até sua morte provável em 1835. Notavelmente, seus escritos foram todos produzidos depois da independência do Brasil em 1822, criando uma situação peculiar: ele optara por permanecer no Reino de Portugal, mas continuava a se expressar como um “nascido no Brasil”, denotando uma posição específica de discurso. Na época, a afirmação da autonomia política brasileira ainda demoraria a se consolidar, como evidencia o próprio trânsito de Pedro I entre Brasil e Portugal. É possível, pois, que o tato que conduzira Freitas até Macau e Coimbra continuasse a atuar em uma forma de expressão propositadamente ambígua, permitindo seu deslocamento dentro do panorama político. Em 1824, Miguel de Arriaga faleceu, e Freitas prestou tributo ao finado protetor de Macau em seu Ellogio do Senhor Miguel de Arriaga Brum da Silveira [1826], defendendo sua administração da cidade como exemplar, entremeada por dificuldades acerbas que revelavam o caráter excepcional do Ouvidor. Contudo, Freitas notara que sua experiência na colônia asiática poderia proporcionar mais do que apenas uma elegia biográfica. Um exame das produções históricas portuguesas mostrava que, embora os mesmos estivessem na China desde o século 16, nenhum estudo específico sobre Macau havia sido publicado. Essa consideração literária era, no mínimo, surpreendente. António Aresta [1997, p.9-18] nos mostra que embora Macau fosse o centro de uma possível sinologia portuguesa, seus próprios agentes demoraram a se dar conta das especificidades culturais da posição macaense. José de Aquino Guimarães e Freitas percebera, assim, que a história de Macau ainda estava para ser contada; e decide publicar uma recolha de suas experiências, intitulada Memória sobre Macao, que seria o primeiro trabalho historiográfico sobre a cidade. A obra Memória sobre Macao é, antes de tudo, uma obra voltada para entender o papel do império português e sua dinâmica na Ásia. Curiosamente, ele foi publicado em 1828, mesmo ano que Alvarenga publica a sua Memória... no Rio de Janeiro. Os capítulos do livro de Freitas são sucintos. O primeiro, por exemplo, informa tão somente as coordenadas geográficas da cidade. Seguem-se nos outros capítulos informações sobre topografia, solo, rios, mar, quantitativos populacionais, e descrições bem peculiares, em que destaca as construções europeias: “A Cidade está montada sobre um terreno montanhoso, circunstância, que lhe outorga uma fisionomia pitoresca e aprazível. Quando encarada da sua vasta enseada, a forma de anfiteatro, que exibe, onde por entre edifícios, pintados de branco, frondejam árvores majestosas, consola o viajor, que a demanda, e que até então só tem descoberto a monotonia lúgubre vista das Costas do Catay; em nenhuma parte do Mundo, proporção atendida, há tão grande número de Templos e Conventos. A Igreja de São Paulo merece e prende a atenção do não indiferente viajor: é produção Jesuítica, bem como tudo o que há ali de notável, ainda que, como acontece em toda a parte, aonde chegou o espírito criador daquela Sociedade” [Freitas, 1828, p. 12]. A partir do capítulo 13, o autor analisa o perfil étnico, cultural e religioso da cidade, delineando uma investigação mais profunda sobre Macau. As descrições sobre os perfis físicos e morais de portugueses, macaenses e chineses permeiam algumas linhas consideráveis da obra. É interessante notar como Freitas descreve os chineses, segundo ele: “Há boas e más feições, bem como em toda a parte; mas geralmente falando, o macaense é espirituoso, sóbrio, ortodoxo, e, conseguintemente, ótimo cidadão. — A terceira classe [os chineses] conserva ainda bastantes ressaibos do caráter moral Sinico, o que perfeitamente se compagina com o físico. A instrução em todas ainda é menos que medíocre, por falta de escolas. Ser-me-ia fácil citar exceções; mas elas não servem senão de confirmar a regra [p.16]; Quanto ao moral: — O Chim é laborioso e sóbrio; não lhe deu a natureza grande propensão para as ciências; mas toda a aptidão para as Artes e Comércio, não obstante ser desprezado este interessante veículo da prosperidade publica pelas suas tão gabadas Instituições Políticas. Jamais se desvia do respeito filial [respeito, ou antes adoração, que por morte do pai passa incólume para o filho mais velho]; mas não deixa de ser orgulhoso, ainda que dissimulado e condescendente: cruel em a prosperidade, e não menos pusilânime, quando desgraçado, desprezando soberanamente os Estrangeiros, seus usos e costumes, que, não sei até que ponto com razão, apelida bárbaros... O seu deus mais acatado é o interesse, a quem sacrifica tudo. [Nesta qualidade emula admiravelmente os Povos, que dizemos civilizados]. Assim é que só deixa de furtar, quando cessa de existir. Debaixo de um exterior grave, e em excesso polido, encobre bastantes vícios. Salvem-se as aparências! — parece ser a voz geral do Império. É porém certo que tem eco em quase todos os ângulos do Mundo” [Freitas, 1828, p. 18]. Dois elementos são notáveis nessa descrição: o primeiro, de como ela contrasta antagonicamente com o fenômeno da Chinoiserie - o fascínio europeu pela cultura chinesa, que atravessou o século 18 -, indo em franca oposição às descrições favoráveis da China feitas pelos iluministas franceses, tais como Voltaire. Freitas se revela uma manifestação personalizada do orientalismo europeu denunciado por Edward Said [1998], cuja vertente portuguesa, porém, guarda as especificidades derivadas da construção de um império multiétnico e referto de hibridismos [Hespanha, 1999, p.15-40]. Mesmo assim, esse orientalismo é eivado de prejulgamentos em relação aos asiáticos, e o trabalho do autor estava conectado a essa tendência. A segunda colocação importante acerca desses apontamentos é a herança, pois a repetição dessas ideias que colocavam o ‘outro’ como diferente, logo inferior, influenciariam profundamente o imaginário da sociedade portuguesa e brasileira. Tanto, que após cinquenta anos, nos debates a respeito da possibilidade de contratar trabalhadores chineses para o Brasil, veremos alguns intelectuais descreverem os chineses do mesmo modo, mostrando aversão sem nenhuma reflexão mais apurada em torno da cultura daquela sociedade e de seus processos históricos. José de Aquino Guimarães e Freitas continua a contar um pouco sobre o estabelecimento de Macau e suas instituições, descrevendo sucintamente como funcionava a fórmula de convivência entre lusos, macaenses e chineses, suas dificuldades e restrições [p.19-40]. Reproduzindo um discurso de seu mentor, o Ouvidor Arriaga, “Gozamos, é verdade, privilégios singulares e exclusivos neste Estabelecimento; mas alguém não vê as restrições por que passamos, e quanto a posse do local em nossas mãos causa zelo entre os Chins, por nos considerarem não só introdutores de artigos de contrabando, mas da Santa Doutrina, que até hoje não deixam de perseguir? Que outra Nação tem Empregados nos Tribunais de Pequim? E por ventura temos com eles alguma comunicação, que não seja oficialmente entregue ao Expediente dos Mandarins, ou eles ali, aonde alcançamos Casas e Igrejas, gozam outra liberdade, que a de viver no seu demarcado recinto, donde unicamente saem a exercer os seus Empregos Políticos, apenas clandestina e mui cautamente subministrando o Pasto Espiritual aos sempre vigiados Cristãos? O Governo Imperial não ignora, o que ali nos leva a Missão, e que o título de Matemática é pretexto; mas tal é o aferro a seus usos, que uma semelhante inconsequência não se torna reparável” [Freitas, 1828, p.28]. Fica evidente, é importante destacarmos, como a atuação dos portugueses nesse período em Macau era uma concessão, eles não eram os ditadores dos comandos e das ordens, mas souberam negociar e criar aberturas de transações nunca antes alcançadas por outros estrangeiros em território chinês. Segundo Cheong [1997, p. 83-88], isso só foi possível, porque os dois lados tinham a ganhar, e por conta dos portugueses em nenhum momento se imporem, muito pelo contrário, respeitaram as restrições e os limites traçados pelo governo chinês, e como forma de barganhar mais privilégios e o respeito dos chineses, algumas vezes iam além das suas obrigações, como ocorreu quando ajudaram militarmente a controlar o motim de 1564. Sobre essas restrições, Freitas acrescenta: “Prossegue o benemérito orador desenvolvendo todo o sistema restritivo, a que os Chins sujeitam os Estrangeiros, em vários outros exemplos; e eu terminarei este de sobra longo artigo, dizendo, que o Estabelecimento de Macau paga anualmente feudo ao Imperador Celestial” [Freitas, 1828, p.40]. Sua reflexão final sobre o papel de Macau no império português e na rede de comércio mundial mostra uma lucidez incrível, revelando uma consciência abrangente sobre os problemas que a colônia enfrentava, bem como o advento da questão do ópio – que levaria, uma década depois, a primeira Guerra do Ópio [183942] e a uma modificação profunda do panorama asiático. Freitas dedica um capítulo inteiro a questão [p.73-77], percebendo com clareza que num futuro próximo isso iria repercutir diretamente no futuro de Macau. Como vimos, o autor faleceu apenas quatro anos antes de ver seus temores confirmados. Após uma série de notas, que fecham a primeira parte do livro [contendo igualmente outro elogio a Arriaga e sua administração], Freitas passa à análise da questão das possessões portuguesas na Ásia. Como é comum em trabalhos da época, ele tenta fazer um diagnóstico dos problemas enfrentados pelas colônias [p.58-63], e aponta uma possível solução: a criação de uma companhia, aos moldes das Companhias Inglesa e Holandesa [p.64-72]. Um detalhe importante é o reincidente discurso de abandono e decadência que afetava as colônias do império português, como podemos observar no seguinte fragmento: “Em Macau o melhor mercado, assim para a venda das produções d'África, como para a compra das da China: especulações com o Brasil, e no mercado geral da Europa, etc., etc. Isto não é uma utopia... Ideias geográficas, de mistura com as do comércio da Ásia, mostram, sob a mais clara evidência, a verdade do que apenas indicamos n’este opúsculo. Assim pudesse ele sugerir melhores Instituições para os nossos desgraçados Domínios, restaurando um comércio, que tanto pode influir na prosperidade da Metrópole. Porém, quando mesmo nada d'isto apareça, nós não julgaremos perdido o tempo, que empregamos nesta tarefa” [Freitas, 1828, p.84]. A repetição desse discurso se transformará numa condição histórica. Manuela Ramos afirma que se trata do “Muro das Lamentações” da Sinologia Macaense, que busca infindavelmente explicar os insucessos contínuos da experiência portuguesa na China [Ramos, 2001, p.37]. Memória sobre Macao foi, enfim, o primeiro livro sobre a história de Macau a ser feito. No entanto, ele demorou a ser notado pelo público português. Como Sousa [2007, p.620-1] nos informa, o trabalho de Freitas foi totalmente eclipsado pelo trabalho do historiador sueco Anders Ljungsted, publicado em 1836, e que foi divulgado como a “primeira história de Macau e dos portugueses na China”. Apenas em um período recente sua obra foi retomada, recuperando uma primazia importante na literatura lusófona. Aparentemente, a prática de demonstrar erudição ignorando os pares lusófonos tornou-se também uma negativa tradição em Portugal, Macau e Brasil. José de Aquino Guimarães e Freitas foi tenente para Macau, e de lá saiu Coronel; conseguiu alçar o posto que desejava na antiga metrópole, e viu seu país de nascença tornar-se independente. Seu olhar percuciente atentou a necessidade de dar notícia sobre a distante colônia asiática, em que se misturavam integrantes de todo o mundo articulado pelo império português. Memória sobre Macao foi importante para fazer Portugal acordar para as premências de sua antiga possessão, mesmo que depois o livro tenha sido suplantado pelo trabalho de Ljungstedt, entre outros autores. O mais importante de tudo, porém, estava em como ele revelou o rico trânsito de pessoas que conectava Ásia, América, Europa e África. Freitas engendrou a análise que consubstanciava o projeto português, cujo trânsito interno mudava a face das culturas locais. Gilberto Freyre [2003] afirmou que não seria possível entender o Brasil sem as vastas influências orientais que estavam aqui presentes. Muitos antes disso, José de Aquino Guimarães e Freitas, o mineiro que escreveu a primeira história de Macau, já estava ciente de que um mundo novo se avizinhava, e era urgente estar pronto para ele. Referências Kamila Czepula é doutoranda do programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista FAPERJ ALUNA NOTA 10. ALVARENGA, Lucas José de. Memória sobre a expedição do governo de Macao em 1809, e 1810 em soccorro ao império da china contra os insurgentes piratas chinezes, principiada, e concluída em seiz mezes pelo governador, e capitão geral daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga, authenticada com documentos justificativos. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, e Nacional, 1828a. ALVARENGA, Lucas José de. Artigo addicional à memória. Rio de Janeiro: Typographia do diário, 1828b. ARESTA, António. “Sinologia portuguesa: um breve esboço”. Revista de cultura, n.32, II série, Julho/Setembro, 1997, p. 9-18. CHEONG, Fok Kai. Estudos sobre a instalação dos portugueses em Macau. Lisboa: Gradiva, 1997. FREITAS, José de Aquino Guimarães e. Elogio do sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira. Lisboa: Imp. de António Rodrigues Galhardo, 1826. FREITAS, José de Aquino Guimarães e. Memória sobre Macao. Coimbra: Real Imprensa de Coimbra, 1828. FREYRE, Gilberto. China tropical: e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. HESPANHA, António Manuel. “O Orientalismo em Portugal [séculos XVI-XX]” in O Orientalismo em Portugal. Organizado pela Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentos portugueses. Porto: Câmara Municipal do Porto/INAPA, 1999, p.15-41. 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Entretanto, o grande alcance destas produções também é marcado por disputas de memória. Nos últimos anos vemos diversos exemplos de embates no campo público, com destaque para China e Coréia do Sul, contestando a forma como obras japonesas referenciam/representam elementos traumáticos relacionados ao passado imperial nipônico. A maioria destas disputas por memória tem um elemento em comum: o Japão não endossa sua culpa pelos diversos crimes de guerra cometidos contra seus vizinhos asiáticos no passado [vale ressaltar que na esfera judicial, o Japão pagou compensações a estes países. Conforme apontado por [Seaton, 2007]]. Portanto, abordaremos um estudo de caso acerca desta temática, tomaremos como fonte uma controvérsia ocorrida com a obra My Hero Academia/Boku no Hero Academia de Kōhei Horikoshi. Memória e trauma Nossa seleção de pesquisar fontes midiáticas parte de uma discussão proposta por Morris-Suzuki [2005], a qual apresenta algumas questões pertinentes para compreender a relação entre mídia e memória. Para a autora existe uma dissociação entre o saber acadêmico e o obtido através das mídias, sendo este último mais divulgado e com maior acessibilidade ao grande público. Assim, obras midiáticas possuem maior potencial para influenciar e construir visões de passado em seu público consumidor; tornando estas fontes um campo de disputa relevante. Outro autor que corrobora com as reflexões de Morris-Suzuki é Otmazgin, o qual apresenta um debate acerca das possibilidades de pesquisa histórica dos mangás e, durante suas ponderações, recorre ao conceito de “memória banal”. Este conceito, na definição de Otmazgin é: “O termo "memória banal" refere-se às práticas comuns, usuais e contínuas pelas quais variedades de memórias são criadas, propagadas e reproduzidas. A palavra "banal" refere-se assim às atividades cotidianas e, portanto, muitas vezes pouco notadas que as pessoas empreendem em suas vidas em curso. Refere-se explicitamente à dinâmica despercebida do envolvimento de agentes sociais produzindo e reproduzindo lembranças. Práticas que possuem influência da memória banal são campos tão diversos como lazer, cultura material, consumo, arquitetura ou cultura popular [música, eventos esportivos, etc.]. Muitas atividades relacionadas a esses campos são eficazes precisamente por causa de sua repetição constante e natureza quase subliminar que permeia profundamente na vida cotidiana.” [OTMAZGIN, 2016, p. 12, tradução nossa] Tanto Otmazgin quanto Morris-Suzuki nos alertam das potencialidades das mídias e suas possíveis influências no campo da memória. Os autores, indiretamente, colocam em evidência outro fator presente nas produções midiáticas que podem gerar estas preocupações, sendo ele o de não seguimento do princípio da realidade. Ou seja, obras da mídia não necessariamente devem acatar fatos históricos. Tal característica permite que narrativas negacionistas e revisionistas ganhem espaço dentro do espaço público e até se consolida como “verdades” no lugar dos fatos, conforme apontado por Chartier “no mundo contemporâneo, a necessidade de afirmação ou de justificação de identidades construídas ou reconstruídas, e que não são todas nacionais, costuma inspirar uma reescrita do passado que deforma, esquece ou oculta as contribuições do saber histórico controlado” [CHARTIER, 2009, p. 30]. A partir destas breves ponderações sobre as potencialidades das mídias, nos resta comentar sobre o conceito de memória. Primeiramente, devemos demarcar que toda memória, por mais singular que seja, é coletiva. Para Halbwachs “[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos [...]. É porque, na realidade, nunca estamos sós” [HALBWACHS, 1990, p. 26]. Em suma, a memória não é construída num processo individual, mas sim coletivo; o que implica em estabelecimentos de cânones e tabus estando sempre em desenvolvimento [POLLAK, 2002]. Entendo o fenômeno da memória no âmbito da coletividade, podemos estendê-lo ao pensar em como esta construção influencia na identidade de um grupo. Pollak afirma que “[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva” [POLLAK, 2002, p. 204, grifo do autor]. Ou seja, a memória é “um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” [POLLAK, 2002, p. 2004]. Através destas reflexões de Pollak, conseguimos compreender que memória e identidade são elementos intrínsecos e, portanto, qualquer dissonância entre eles pode “[...] arruinar o sentimento de identidade” [CANDAU, 2011, p. 18]. Tanto Pollak quanto Candau apontam que elementos traumáticos podem gerar dissonâncias em memórias, sendo o caso japonês um exemplo relevante ao caso. A Guerra do Pacífico [1931-1945] é um evento que afeta as identidades do leste asiático até a atualidade, principalmente em relação à atitude do governo japonês em tentar silenciar seus inúmeros crimes de guerra frente aos traumas exercidos a seus vizinhos. Mas há uma contradição na forma como os países relembram a guerra, pois o Japão reproduz discursos em que se identifica como vítima do conflito seja pelos militares que usurparam o poder do imperador e perpetraram atrocidades [o que, de alguma maneira, serve de argumento para eximir a culpabilidade do país] ou pelos bombardeios [atômicos e incendiários] dos norteamericanos. Esse autorreconhecimento vitimista nipônico rejeita a aceitação de suas responsabilidades como perpetrador, fator que gera a maioria dos confrontos pela memória na região. Atualmente, o cenário vem se tornando cada vez mais complicado para estas disputas. Visto que o Japão continua sua movimentação política de revisar sua constituição, o que possibilitaria ao país se [re] militarizar. Mesmo sem a revisão, o país vem aumentando as verbas da JSDF [Japan Self-Defense Forces] que em 2020, mesmo com uma pandemia, alcançou seu recorde de orçamento. Esta movimentação é bastante criticada por China e Coréia do Sul que vêem o retorno de um Japão militarizado com muito receio, visto todas as atrocidades que a ocupação japonesa realizou. É neste cenário conturbado que analisamos o exemplo de My Hero Academia. Boku no Hero como uma tendência que se repete Escrito e ilustrado por Kōhei Horikoshi, Boku no Hero começou a ser publicado em 2014 pela editora Shueisha através da revista semanal Shonen Jump. Desde então, o mangá ganhou uma adaptação em anime e popularizou-se mundo afora como um dos shounens [demografia que tem como público alvo jovens do sexo masculino] mais famosos da atualidade. Na edição de número 259 do mangá, entretanto, uma polêmica foi levantada com a introdução de um novo vilão, o personagem Shiga Maruta. A controvérsia repousa no próprio nome do personagem. Maruta é um termo que possui um significado histórico e remete-se às vítimas de testes antiéticos — em sua maioria, chineses e coreanos. Esses testes ocorreram durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa, sendo promovidos pela Unidade 731 do Exército Imperial Japonês — uma unidade de guerra responsável por experimentações químicas e biológicas. Estima-se que mais de três mil pessoas tenham sido vítimas de tais atrocidades, dentre os quais incluem crianças, deficientes, mulheres grávidas e idosos. Esses atos consistiam em práticas diversas, realizadas muitas vezes sem anestesia. Exemplos eram a infestação por doenças [como o tifo e a cólera], a amputação e a vivissecção. Acontece que a coincidência não ficou apenas no nome, pois o novo vilão é um cientista que de fato faz experiências com seres humanos, o que torna o impacto da sua estreia ainda mais polêmica. A internet não fez ouvidos moucos para a escolha criativa de Horikoshi, criticandoo em inúmeras redes sociais, como o Weibo. Em reação, às plataformas chinesas Tencent e Bilibili removeram o mangá dos seus catálogos, incluindo alguns episódios da animação. O fato de não terem removido tudo, provocou uma resposta negativa dos chineses e coreanos descontentes, assim a escolha definitiva das plataformas foi de tirarem do ar completamente o anime. Quanto ao autor de Boku no Hero, este veio a público através do Twitter afirmar que não teve intenção de associar o novo vilão a fatos históricos. A revista semanal, onde os capítulos do mangá são publicados semanalmente, também se pronunciou, alegando que tanto Horikoshi quanto a revista não tinham nenhuma intencionalidade por trás do nome Maruta. A decisão final foi a renomeação do personagem que passou a chamar-se Kyudai Garaki. Assim como a escolha criativa de Horikoshi, as desculpas dele e da Shounen Jump não deixaram os fãs insatisfeitos. Para começar, não houve nenhum pedido de desculpas objetivo — tanto por parte do autor de Boku no Hero quanto da revista em que o mangá é publicado. Como mais de uma vez foi afirmado por estas partes, tudo não passou de uma coincidência infeliz, de modo que a culpa não precisava ser reconhecida. Outro fato que não passou despercebido são as declarações que foram todas redigidas em japonês, o que mostra a preocupação dos envolvidos em se desculparem com os fãs chineses e coreanos. O caso que envolve a polêmica de Boku no Hero não é isolado, sendo uma tendência maior que vem se repetindo. Nos últimos anos, inúmeros produtos culturais japoneses pertencentes à cultura pop vêm sendo acusados de fazerem apologia aos crimes de guerra — este foi o caso de Kimetsu no Yaiba [2016-2020], Shingeki no Kyojin [2009-2021] e Youjo Senki [2013-]. Nessas ocasiões, normalmente as consequências se apresentam de duas formas. O mais comum é haver censura de determinados elementos acusados de fazerem apologia; outras vezes os produtos nas plataformas chinesas e coreanas são inteiramente retirados do ar. Esses casos evidenciam a sensibilidade com que os países lesados pelo Japão encaram as representações que se remetem ao passado. Visto que “projetadas como ideologias que criam novos interesses ideais, as narrativas traumáticas podem desencadear reparos significativos na sociedade. Eles também podem instigar novas rodadas de sofrimento social” [ALEXANDER, 2012. p. 2, tradução nossa]. As reações coletivas sobre o passado, evidenciam ainda um trauma coletivo: ““Vivenciando o trauma” pode ser entendido como um processo sociológico que define uma lesão dolorosa à coletividade, estabelece a vítima, atribui responsabilidades e distribui as consequências ideais e materiais. Na medida em que os traumas são vividos e, portanto, imaginados e representados, a identidade coletiva mudará. Essa reconstrução significa que haverá uma [re] memoração em busca do passado coletivo, pois a memória não é apenas social e fluida, mas também profundamente conectada ao sentido contemporâneo do self. As identidades são continuamente construídas e garantidas, não apenas enfrentando o presente e o futuro, mas também reconstruindo a vida passada da coletividade” [IBIDEM, p. 26, tradução nossa] Dessa forma, as representações nos animes e mangás sobre eventos traumáticos provocam um retorno amargo aos eventos pregressos. Por outro lado, o modo como o Japão continua [re] visitando o passado de forma acrítica ou mesmo a resposta do país diante das desaprovações, parece refletir num desencontro de narrativas. Tendo em vista as movimentações políticas nas últimas décadas no Japão, tudo indica que não haveria como ser diferente. Segundo Oda [2018], o revisionismo e o nacionalismo têm ganhado força desde os anos de 1990. Os efeitos dessa escalada podem ser vistos na visita do ex-primeiro ministro Juniichiro Koizumi [2001-2006] ao santuário Yasukumi; ou na reforma dos livros didáticos, os quais vem difundindo uma imagem mais positiva do passado japonês. “A demanda por material revisionista nas escolas não só passou a contar com um movimento organizado a partir de 1997, como teve um livro aprovado pelo governo em 2001" [ODA, 2018, p. 26]. Soma-se a este contexto, o fortalecimento militar já comentado. Considerações Finais “Em qualquer momento e lugar é impossível encontrar uma memória, uma visão e uma interpretação única sobre o passado, compartilhada por toda uma sociedade” [JELIN, 2002, p. 5]. Esta questão aponta para o fato de que as memórias podem ser disputadas e seu conflito sinaliza uma presença que se coloca no presente. Uma presença que pode “[...] irromper, penetrar, invadir o presente sem sentido, como marcas de memória [RICOEUR, 2000 apud JELIN, 2002, p. 14, tradução nossa] como silêncios, como compulsões ou repetições” [IBIDEM]. Especialmente em situações traumáticas, “[...] podem implicar em uma fixação, um permanente retorno” [IBIDEM]. Sendo assim, compreende-se as razões pelas quais os países lesados pelo Japão não cessam de reivindicar por justiça, uma vez que o passado entre perpetrador e vítimas ainda é uma questão em aberto para estas. Desse modo, o desencontro de narrativas justifica-se pelo fato como o passado é [re] visitado. Na história contada pelas vítimas, o passado mal resolvido representa uma ferida ainda aberta; enquanto no conto dos vencedores, relativiza-se a dor. Não admira-se que quando esta dor é perpetrada, não intencionais tornem-se justificativas suficientes. Referências Lucas Marques Vilhena Motta é doutorando em História pela Universidade Federal de Pelotas. Luciana de Ávila Freitas é mestranda em História pela Universidade Federal de Pelotas ALEXANDER, Jeffrey C. Trauma: A Social Theory. Cambridge: Polity, 2012. CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2011. CHARTIER, Roger. A História ou a Leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Rio de Janeiro: Vertice, 1990. JELIN, Elisabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI, 2002, Introducción, p. 01-07, cap.1: La memoria en el mundo contemporáneo, p.09-16. LEE, Julia. My Hero Academia writer apologizes for referencing Japanese war crimes in manga. 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YE, Josh. My Hero Academia anime removed from Tencent and Bilibili after war crimes reference. South China Morning Post, Hong Kong, 6 de fev. 2020. Disponível em: <https://www.scmp.com/abacus/culture/article/3049409/my-heroacademia-anime-removed-tencent-and-bilibili-after-war-crimes>. Acesso em: 5 de set. 2021. PERSPECTIVAS ECOCRÍTICAS SOBRE OBRAS ARTÍSTICAS SUL-COREANAS CONTEMPORÂNEAS Maria Gabriela Wanderley Pedrosa Introdução Em primeira instância, escolher apenas uma obra para ser lida pareceu menos estimulante do que exercitar meditações acerca de uma seleção de produções sulcoreanas contemporâneas. Naturalmente, uma obra daria a chance de maior debruçamento analítico, mas, mesmo correndo o risco de cair em superficialidades, optei por falar brevemente das seguintes obras: O zoológico [2007] [tradução minha]; Okja [2017] e Chiclete [2009], pois sustentarei o argumento de que essas obras 1] obviamente são contemporâneas entre si, portanto, em algum nível, os temas dialogam, explícita ou implicitamente, e 2] pertencem a formas e artistas diferentes, sendo assim, não é um tema caro a apenas uma forma de expressão artística, ou a um autor, mas a um pensamento coletivo; 3] por fim, a entrada de leitura que escolhi foi a da perspectiva ecocrítica, uma linha de estudo teórico interdisciplinar e comparativo. Essa perspectiva, em particular, foi escolhida em razão dos processos históricos, sociais e econômicos pelos quais a Coreia do Sul enfrentou. A abertura de novos mercados culturais no Leste Asiático nas décadas de 80 e 90 caminharam junto à negociações políticas. Essa abertura leva aos discursos levantados sobre a globalização e mudanças expressivas nas economias nacionais, mas, enfaticamente nas relações diplomáticas internacionais [OSWELL, 2006]. No caso da Coreia do Sul, abordar a globalização é também abordar as noções de liberalização e do desenvolvimento de novas tecnologias a partir da redemocratização que a Coreia do Sul viveu em 1987, fator crucial para o desenvolvimento econômico do país, que, logo em seguida, apesar de viver momentos de altas e baixas, conseguiu encontrar uma maneira de ser a potência econômica que é hoje. Esse avanço culminou no boom da exportação de seus produtos culturais para o resto do mundo, espraiando dramas, webtoons, produtos de beleza, a música pop, dentre outros. Consequentemente, é comum referir-se a um korean way of life, no qual o consumo excessivo é o centro dessa ideia. Portanto, em resumo, essa abertura econômica e política gerou uma exportação de produtos culturais [a ideia do processo de soft power], ocasionando uma necessidade de um consumo excessivo. Com isso posto, acredito que essas obras supracitadas podem ser lidas por meio de um viés teórico que compreende a relação entre consumo, homem e natureza como ponto principal. Normalmente essa tríade gera problemas ecológicos – muitas vezes chamada superficialmente de “sustentabilidade”, pauta principal das principais discussões em todo o mundo, mas que, amiúde, continuam não entrando em questões fulcrais. Esses problemas ecológicos e suas consequências inevitáveis são de interesse dos estudos ecocríticos, ou de termos conceituais afins. Um dos tropos que estão sob o guarda-chuva da Ecocrítica, apontado por Greg Garrard [2006], é o estudo das representações sobre o tratamento em relação aos animais. As obras brevemente analisadas aqui, interdisciplinarmente e comparativamente, por meio de formas de expressão diferentes, estão se propondo a pensar sobre a violência contra os animais seja comendo-os ou expondo-os, analisando a representação deles dentro da cultura sul-coreana contemporânea. Se, como diz Greg Garrard [p. 215], “na década de 1980 [...] Hollywood produzia filmes que exploravam e reforçavam a teriofobia, ou o medo dos animais”, a trajetória hercúlea desses artistas sul-coreanos é inverter justamente esses papéis, transformando os humanos – aqueles que mastigam, olham e matam esses animais – como os verdadeiros monstros a serem temidos. Olhos imperiais Suzy Lee é uma autora sul-coreana que começou a publicar livros no começo da década de 2000. A artista trabalha com o que se chama de livro-imagem [o livro sem palavras]. Em 2007, a autora lança O zoológico no qual retrata uma garotinha que vislumbra um pavão colorido no meio de um zoológico insípido e o segue até um espaço colorido – algo semelhante ao que acontece com Alice, no país das maravilhas, seguindo o coelho –, onde todos os animais, que deveriam estar enjaulados, estão livres como podemos observar na Figura 1. A primeira página do livro é um gorila saindo de uma jaula em direção aos outros animais, em um espaço que explode cores. A paisagem se duplica: um pertence ao plano da imaginação e outro da representação de uma realidade. No primeiro plano, os animais são livres; já no segundo são aprisionados. De acordo com Garrard [p. 211], “os animais dos jardins zoológicos cruzam a mesma fronteira que os animais ferais [...], eles são objeto do olhar imperial que dirigimos aos animais selvagens, no qual nossa distância alienada é proporcional a nosso poder”. O zoológico de Suzy Lee pretende romper com essa construção de selvagem x dócil, da representação cultural que se alimentou do espaço do zoológico, fazendo isso através das cores: o cinzento é o apagamento desses animais, colocando-os na posição do Outro; as múltiplas cores, no entanto, mostram esses animais se rebelando, como eles realmente são, livres e amáveis. No entanto, como podemos ver, também na Figura 1, o espaço cinzento está sem animais, e o outro está repleto deles; é como se a história estivesse invertida a fim de refletir sobre essa natureza animal e humana e seus locais de pertencimento. Figura 1: página da tradução francesa de O zoológico, de Suzy Lee. Outros exemplos, dentro do campo infanto-juvenil no qual se encontra a arte de Suzy Lee, é, por exemplo, o universo dos filmes de Madagascar [2005, 2008 e 2012] que conseguem demonstrar bem a fuga dos animais, seja de zoológicos ou de circos, sempre de ambientes hostis criados por seres humanos a fim de gerar um consumo de entretenimento. A diferença, no entanto, é que em O zoológico a fuga acontece num plano do maravilhoso todoroviano, visto que em algum momento esses animais têm de voltar ao zoológico, como se a única escapatória fosse por meio da imaginação infantil e, portanto, pura. Dessa forma, O zoológico explora a noção de que o Outro pode transgredir o olhar imperial que o enjaula e o acinzenta, mesmo que por um momento único. Nesse livro, Suzy Lee rompe com as expectativas convencionais ao questionar se o poder determina quem enuncia, ou quem tem o direito de enunciar, ou, ainda mais, quem tem o direito de olhar. Em 2017, Bong Joon-ho lança Okja, uma história fabular sobre a relação amigável entre uma garota e um superporco – um animal modificado geneticamente. Esse filme pode ser lido como parte de uma trilogia, que aqui chamarei de “trilogia ecológica”, do diretor, começando por O hospedeiro [2006], Expresso do amanhã [2013] e terminando em Okja [2017]. Os dois primeiros filmes, cada um com sua especificidade, giram em torno de tropos como o habitar na terra, apocalipse e futuros da Terra, temas pertencentes ao escopo ecocrítico. Okja se alinha à minha proposta mais fortemente, mas considero relevante pontuar que esses outros filmes versam sobre essa preocupação, além de pertencer a um mesmo autor. A obra, bastante panfletária, tem o intuito de colocar o espectador frente a frente com a reflexão sobre consumo de alimentos de origem animal. Se em documentários como A carne é fraca [2005], Terráqueos [2005], Cownspiracy [2014], What the health [2017] e o mais novo [a despeito das críticas que se fazem aos dados apresentados no documentário] Seaspiracy [2021] não poupam o espectador das imagens explícitas, o filme de Bong Joon-ho, apesar de perfazer um caminho por meio da convergência de gêneros cinematográficos, ainda se mostra como um produto do ecohorror da indústria do agronegócio, mesmo com todos as layers que compõem o filme. Durante um evento promocional, o diretor declarou que para a concepção de Okja, ele visitou abatedouros e viu documentários sobre o assunto, decidindo, até mesmo, parar de comer carne. No entanto, quando voltou à Coreia do Sul, encontrou o “paraíso do churrasco”, onde em cada esquina há um churrasco sendo feito, então voltou paulatinamente a ingerir alimentos de origem animal – processo semelhante ao que passou a autora Han Kang do romance sulcoreano A vegetariana. Assim como em O zoológico, a discussão sobre a representação construída do que é um animal dócil e o que é um animal selvagem volta à tona. Okja é gigante, mas bastante dócil e apegado à Mija, sua amiga humana. Em um percurso comparativo, o Okja assemelha-se às esculturas hiper-realistas da artista australiana Patricia Piccinini, que, assim como Okja, coloca crianças e seres não-humanos, mutantes, em uma atmosfera pacífica, como podemos comparar nas Figuras 2 e 3. Segundo a artista, o que lhe move esteticamente é a tentativa de compreender as relações entre pessoas e seres não-humanos, entre as criaturas e o meio ambiente, entre o artificial e o natural. O ser infantil é o ator que irá mediar essas relações existentes tão distintas, sem um julgamento a partir da aparência. Mija se relaciona com Okja com leveza, encantamento e tranquilidade. Ambos, Bong Joon-ho e Patricia Piccinini, abordam questões éticas mais profundas através da emoção e da empatia, saindo da superficialidade dos discursos que circundam temas como sustentabilidade e biotecnologia, presentes atualmente em agendas de novos acordos mundiais. Figuras 2 e 3: em cima, The long awaited, 2008, de Patricia Piccinini; em baixo, cena do filme Okja, 2017. Olhos que não podem se fechar Kim Ki-taek desembala o Chiclete [2009] com o poema Nossos olhares se encontraram, no qual o eu-lírico se depara com um ser que lhe parece estranhamente familiar. O outro “estava enfiado no couro de um gato/ O seu andar sobre quatro patas parecia-lhe um tanto desajeitado/ Como se estivesse habituado à posição ereta” [p. 13]. O gosto do Chiclete já se acentua amargo e se iguala ao tom do poema O bicho, de Manuel Bandeira: o bicho não era um cão,/ não era um gato,/ não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem. A relação entre esses dois textos, no início, não se mostra gratuita, uma vez que “uma literatura é uma língua, mas não isolada e sim em perpétua relação com outras línguas, outras literaturas” [PAZ, p. 123]. Assim, quebrando uma possível exoticidade que se busca inconscientemente em textos dos países do Leste da Ásia, o poeta demonstra que a civilização pósindustrial acaba gerando uma similitude, tirando algumas referências que localizam de onde as obras vêm. Nelson Ascher [2018, p. 9] afirma que “há provavelmente mais diferenças no interior de uma megalópole cosmopolita do que entre dois pontos do planeta, por mais afastado que estejam um do outro”. Mesmo que, tanto aqui quanto lá, se compartilhem questões similares, o estilo de Kim Ki-taek permite uma vocalização única de seres não-humanos, trazendo uma crueza mordaz, provocando no leitor um incômodo lamurioso. A poesia do autor sul-coreano é tida como uma anti-poesia, talvez porque venha do âmago de questões geracionais vividas por ele: um homem que tem em média 60 anos e observou a convulsiva transformação pela qual passou a Coreia do Sul principalmente na metade do século XX. O conjunto de poemas presentes em Chiclete é um dos exemplos mais proeminentes do que o professor Oh Hyung-yup [2015] chamou de “eco literatura” [tradução minha]. Os estudos dessa “eco-crítica”, como chama Oh, começaram nos anos de 1990 com uma publicação na Foreign Literature, de Kim Seong-Kon. Posteriormente a esse “marco”, o autor aponta três ramificações, as quais ele chama de: Literatura Verde, Literatura de Vida e Literatura Ambiental, mesmo que ao final do artigo de opinião, o professor aponte para uma nebulosidade dos conceitos, que demonstram afinidades teóricas, a fim de compreender melhor o livro supracitado, irei enquadrá-lo às discussões do que ele chamou de “Literatura de Vida”, que seria: “ a literatura que cresceu a partir da percepção de que precisamos enfrentar esses tempos desumanizadores onde a cultura de matar governa e a vida humana é marcada pela destruição da ecologia natural” [tradução minha, s.p.]. Nesse sentido, a Literatura de Vida seria uma defesa acerca de uma expansão do entendimento sobre a noção de vida e de toda matéria orgânica ou inorgânica. Desde os anos 80, especialmente no ano de 1988, com os Jogos Olímpicos em Seul, uma data que marca uma das novas eras vivenciadas pela Coreia do Sul, traz consigo um alto nível de consumo. Conforme os pensamentos de Sanggum Li [2016], esse quadro irá impregnar os temas discutidos pelos artistas que começam suas produções na década de 2000. Havia uma tendência crescente por uma vida material mais fina, diversificada e complexa, a fim de atender a necessidade desses consumidores, mudando a própria Coreia do Sul. Por causa desse consumo excessivo, Nelson Ascher [2018, p. 11] reflete que sociedades, como a sul-coreana, que “já deixaram para trás o pior dos flagelos ancestrais, a fome, e que padecem antes do excesso de comida”, começam a fazer nascer no seio da sua sociedade pessoas com asco dessa exacerbação. Se em Okja Bong Joon-ho usa uma luva de película, aqui, nos poemas de Chiclete, é tudo muito sinistro, como, a título de exemplo, em Panceta de porco, o eu-lírico volta para casa depois de um churrasco, mas “o cheiro da carne não sai do corpo” e esse cheiro evolui para um odor “nauseante de onde ainda restam gritos e esperneios” [2018, p.14]. Já no poema que dá título ao livro, temos um objeto comestível que lembra uma “memória da carnificina” inerente aos acontecimentos da vida humana. O mastigar do chiclete, simbolicamente, remete às violências sofridas, aos traumas, medos e angústias que os corpos [mortos e vivos] e as paisagens guardam. Diferente do primeiro tópico do meu argumento, neste eu compreendo a existência de uma angústia presente no ser humano que ganha a consciência da violência sofrida pelo Outro, no caso, o animal. Esse tema obsessivamente tratado por Kim Ki-Taek é o fio condutor de outro romance sul-coreano: A vegetariana. Em 2007 tem-se a publicação do livro A vegetariana, da Han Kang, em que uma mulher, chamada Yeong-hye, decide parar de comer carne e esse ato leva a situações trágicas entre ela e seus familiares. Aqui me cabe dizer que a carne evitada pela protagonista se mostra como algo simbólico. A Yeong-hye começa a ter pesadelos e se ver em locais de abates de animais suja de sangue. Ela não consegue dormir por causa dos pesadelos, que parecem atormentá-la até mesmo quando está acordada, semelhante ao peixe do poema Peixe assado, de Kim Ki-Taek: “olhos privados de pálpebras/ que jamais podem ser fechados, /quando o sono vem” [p. 33]. Uma possibilidade de leitura do romance é de que o ato de parar de comer carne diz respeito à imaginação de outro corpo, livre das sistemáticas violências sofridas. A intenção é obter um corpo livre de regulamentações, a fim de existir a possibilidade de fechar os olhos novamente tanto em Kim Ki-Taek quanto em Han Kang. Considerações finais Os animais tomados como monstros se tornam dóceis por meio das palavras e lentes desses autores sul-coreanos. Os animais que fogem da jaula para alhures; o eulírico, que como um pseudo “narrador ausente” [GARRARD, 2006], como faz Kim Ki-Taek, mostra de forma quase documental as mortes dos minipolvos, peixes, galinhas e bois, como se a ele nada importasse, como se só estivesse mostrando a realidade, mas, na verdade, os versos carregam mananciais críticos às indústrias e ao modo de vida que as pessoas vêm levando, principalmente na sociedade sulcoreana. As perguntas que ficam a partir do levantamento dessas discussões são as seguintes: quando deixamos de olhar o Outro como o Outro, que preceitos sociais e morais são rompidos? Quando isso transmuta-se em uma arma de combate? Esse combate é puramente eficaz, ele completa o seu ciclo? Já em 1989, Félix Guattari [2012, p. 17] pensa que se não houver um rearranjo no que ele chama de “três ecologias”, pode-se começar a observar uma “escalada de todos os perigos: os do racismo, do fanatismo religioso, dos cismas nacionalitários caindo em fechamentos reacionários, ou da exploração do trabalho das crianças, da opressão das mulheres...”. Octavio Paz [2013] vai dar contribuições nessa esteira de pensamento, refletindo que o futuro não mais é um depositário de perfeição, mas sim de uma paisagem de horror, assim vimos em Okja e Chiclete, principalmente. Além disso, Paz diz que “a rebelião do corpo é também a rebelião da imaginação”, vimos isso em O zoológico, de Suzy Lee. Essas obras mostram, por fim, que “se um ser sofre, não pode haver justificativa moral para nos recusarmos a levar em conta esse sofrimento” [SINGER, 1983 apud GARRARD, 2006, p. 193]. A rebelião deve vir pelo Outro, mas também pelo Eu. Vilém Fussler [s.p., s.d.] diz que “a humanidade representa apenas uma das milhões de espécies de animais e plantas que povoam a Terra, e compartilha com elas não apenas a matéria da qual são compostas [...] senão também uma história e um destino comuns. Todas essas espécies se formaram [...] do mesmo caldo primordial”. O que fica parece ser que independente da forma de rebelião, o importante é jamais tapar os olhos como aponta Guattari. Referências Maria Gabriela Pedrosa é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras, na área de Teoria da Literatura e bolsista do programa Capes. Atualmente é pesquisadora associada do CEÁSIA [Centro de Estudos Asiáticos] e membro do NELI [Núcleo de Estudos em Literatura e Intersemiose], ambos localizados na UFPE [Universidade Federal de Pernambuco]. E-mail: mariagpedrosa@gmail.com. ASCHER, Nelson. Alimento para a mente. In: Chiclete. Rio de Janeiro: 7Letras, 2018. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma literatura menor. Belo Horizonte, Autêntica, 2014. FUSSLER, Vilém. Seres de outro mundo. Disponível em: http://www.flusserbrasil.com/art42.html. GARRARD, Greg. Animais. In: Ecocrítica. Brasília: Ed. Universitária de Brasília, 2006. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas, SP: Papirus, 2012. IM, Jung Yun. Traduzindo os cheiros do “Chiclete” de Kim Ki-taek. Cad. Trad., Florianópolis, 2019. LI, Sanggum. Modern Literature after the 1960s in Korea. International Journal of Area Studies, 2016. NATIONAL PORTRAIT GALLERY. In the flesh. Nov – Dez, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3XKSpWxR5tA. OH, Hyung-yup. Issues and Trends in Korean Eco-Literature. In: Korean Literature Now, Vol. 29, 23 de outubro, 2015. Disponível em: https://koreanliteraturenow.com/essay/musings/issues-and-trends-korean-ecoliterature. OSWELL, David. Between Globe and Empire. In: Culture and Society: an Introduction to Cultural Studies. Londres: Sage, 2006. PAZ, Octavio. Filhos do Barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013. A REPRESENTAÇÃO DO BUSHIDO NOS MANGÁS DA ERA HEISEI A PARTIR DA OBRA ‘BLADE A LÂMINA DO IMORTAL’ Matheus Eduardo Rezende Pereira No final do século 19 com as reformas realizadas no Japão a partir da Era Meiji, houve uma visível inserção da cultura ocidental dentro da sociedade japonesa. Além disso, também podemos observar um debate entre a formação da identidade japonesa, e a maneira como o Japão iria se portar perante o mundo, ou seja, como iria construir a sua imagem. Tais questões ainda existem, mesmo que de maneira diferente, e se desdobraram em outras discussões e debates na sociedade nipônica. Nesse texto, veremos como aparecem e são tratados nos mangás, especificamente na obra Mugen no Juunin [em tradução literal, Habitante do Infinito, no Brasil, Blade a Lâmina do Imortal] do mangaka [autor de mangás] Hiroaki Samura, na década de 1990 recorte espaço-temporal deste texto. Antes de começarmos a análise, definirei o bushido [bushi significa guerreiro, e do caminho, caminho do guerreiro em tradução], conceito historicamente criado para responder questões da sociedade japonesa que, na época de 1890, estava se inserindo no mundo, assim como seus usos posteriores. Após isso, farei um breve levantamento da historiografia sobre a utilização de mangás como fontes históricas, para, em seguida, analisarmos uma construção cultural do bushido no cinema a partir dos gêneros cinematográficos jidaigeki [filmes históricos japoneses] e chanbara [filmes sobre samurais], verificando filmes que criticam ou concordam com o bushido. Por fim, realizaremos a análise da obra. Para descrevermos o bushido, utilizaremos o livro de Oleg Benesch “Inventing the Samurai” Way [2014], onde o autor apresentou as diversas fases do bushido, dos primeiros autores no começo do período Meiji, até a contemporaneidade. O autor apontou que o bushido se constituiu como um conceito unificado apenas na era Meiji. Antes disso, coexistiam diversos pensamentos entre vários autores dentro do Japão. Inicialmente, podemos apontar o conceito de bun-bu [bun significando escrita, e bu guerra], inspirado no conceito chinês wen-wu, em que a escrita e a guerra eram tratadas como os dois pilares do governo, a diplomacia e a marcialidade. A depender de cada autor e época, o enfoque era dado em um dos dois. Durante os primeiros shogunatos, o foco foi no bu, enquanto no Shogunato Tokugawa, que foi um período pacifico, o foco era no bun. Encontramos exemplos notáveis, como os escritos de Yamaga Soko, utilizando-se de pensamentos zen budistas e confucionistas e inspirado pelo bun-bu, e se centrou em questões como lealdade, devoção, pureza e altruísmo. Ou seja, ele descrevia que o samurai deveria ser o expoente da moral e da ética da sociedade, como o cidadão exemplar confucionista [BENESCH, 2014, p. 21] Com o término do Xogunato Tokugawa em 1868, e o início da Era Meiji, é possível observar um desgaste político e social da figura do samurai, uma vez que as reformas realizadas após o fim do xogunato, a perda de privilégios sociais da classe dos samurais, e a inserção das camadas populares em um novo e reformado exército japonês, juntamente com uma introdução da cultura ocidental, fizeram com que os samurais perdessem sua importância. Esse processo resultou em rebeliões, como a rebelião de Satsuma em 1877. Além disso, um sentimento de revanchismo e uma memória anti-samurai eram formados, uma vez que agora os camponeses e cidadãos comuns estavam livres da opressão que sofriam anteriormente dessa classe [BENESCH, 2014, p. 34 - 41]. No final do século 19, surgiram, então, os autores do bushido, com destaque para Ozaki Yukio. Após viajar para o ocidente, Yukio voltou para o Japão admirado com a imagem do “lorde” inglês, pela sua etiqueta, educação, e que suas origens poderiam ser traçadas desde o período medieval, oferecendo legitimidade histórica. Isto é, o cavalheiro britânico serviu de inspiração para a criação do bushido, que buscava se respaldar em uma figura do samurai historicamente construída [BENESCH, 2014, p. 45 - 56]. O bushido foi uma das bases do crescente nacionalismo japonês em resposta à ocidentalização do país do final do século 19 e começo do 20. Os conflitos militares, como a primeira guerra sino-japonesa [1894-95] e a guerra contra a Rússia [190405], trouxeram um aspecto marcial para a nova identidade japonesa, que se baseou no bushido e em uma figura nostálgica do samurai guerreiro. Os autores do bushido propuseram até que a decadência do Japão e China perante as potências europeias se dava pelo enfraquecimento do bu [ou wu, na China] no governo, e que, dessa forma esse aspecto deveria ser acentuado [BENESCH, 2014, p 67 - 72] Com o advento do fascismo japonês durante o Período Showa [1926-89] e a criação do Yamato Damashii [espírito japonês/do Japão], o governo japonês buscou no bushido a marcialidade e a lealdade [HIRATA, 1998, p.3], como por exemplo com os kamikazes [vento divino], os pilotos da Segunda Guerra Mundial que faziam quedas suicidas com o intuito de causar baixas aos inimigos [HENSHALL, 1999, p. 53]. O Bushido sofreu diversas mutações durante os períodos posteriores à segunda guerra. Na década de 90, tivemos uma mudança brusca de paradigmas na sociedade japonesa, com a queda da URSS e o fim da Guerra Fria, o estouro da bolha econômica japonesa quando o índice de desemprego se igualou aos da época da Segunda Guerra. Dessa forma, foi quebrada a visão de futuro e progresso que existia na década de 80, de que o próximo século seria o século do Japão, com a década de 90 passando a ser alcunhada como a “década perdida” [SUGUIMOTO, 2009, p. 353]. Ao mesmo tempo, o mangá se tornava um dos maiores produtos de exportação japonesa após o estouro da bolha japonesa. Nesse período, podemos observar o bushido sendo novamente utilizado, porém abandonando o âmbito militar que existiu durante a guerra e entrando no empresarial. Um exemplo marcante é encontrado nos salarymen, trabalhadores que possuem longas jornadas de trabalho com baixa remuneração, com o forte senso de lealdade e sacrifício pela sua empresa, demonstrado a partir do trabalho [JONES & ERICSON, 2007, p.188]. Analisando o bushido a partir do conceito de tradição de Eric Hobsbawm [HOBSBAWM, 1997], buscou-se no Japão da virada do século XIX a criação de uma tradição para validar um sistema de valores e comportamentos ideais, baseando nisso uma nova identidade japonesa. Porém, durante o período Showa, podemos observar como essa tradição inventada, foi moldada para validar uma autoridade e legitimar as instituições, como, no caso do Japão, o exército. É possível dizer que foi aplicada para a estabelecer a união do país sob a causa fascista. Na década de 90, já podemos ver como foi utilizado para validar um tipo de comportamento laboral presente no meio empresarial. Isto significa que, ao analisar como foi utilizado o bushido ao longo do tempo, observamos vários usos diferentes, se encaixando em certos momentos em mais de uma categoria das três categorias de Hobsbawm. Utilizando-se o conceito de memória de Michael Pollak [POLLAK, 1992] vemos a utilização de personagens não pertencentes ao espaço-tempo do indivíduo, como os samurais, ou o evento dos 47 ronins, ou até mesmo o samurai ficcional mostrado no cinema, nos animes e nos mangás, para respaldar a criação de uma memória para a sociedade japonesa e assim legitimar o bushido. Podemos observar que ambos conceitos de tradição e memória funcionam juntos para analisar a criação e os desdobramentos do bushido. A historiografia sobre mangás é escassa, porém com várias contribuições de áreas como a comunicação. No Brasil temos a autora pioneira sobre o assunto, Sonia Bibe Luyten, que, durante a década de 70 juntamente com a Universidade de São Paulo, fundou a revista Quadreca. Nela publicou diversos trabalhos importantes como “O fantástico e desconhecido mundo das H.Q. japonesas”, “Formas de mangá” e “Técnicas de quadrinização”. Na década de 90, publicou o livro “Mangá: O poder dos Quadrinhos Japoneses” e, nos anos 2000, o trabalho “Onomatopeia e Mimesis no Mangá”. Todos eles voltados para a linguagem, arte, técnica, história e difusão dos mangás. Influenciada pelos trabalhos de Luyten, Selma Martins Meirelles, da área da linguística, publicou nos anos 2000, “O Ocidente Redescobre o Japão: O Boom de Mangás e Animes”, analisando as relações entre cultura japonesa e as características dos mangás, bem como sua influência na cultura ocidental. No campo internacional o livro “Explorations in the World of Manga and Anime”, organizado por Mark W. MacWilliams em 2008, possui diversos capítulos importantes, dando ênfase para “Explorations in the World of Manga and Anime” da autora Kinko Ito, “Contemporary Anime in Japanese Pop Culture” de Gilles Poitras, e “Considering Manga Discourse: Location, Ambiguity, Historicity” de Jaqueline Bernedt. Todos mostraram como o mangá influencia e é influenciado pelo contexto de sua época, nas questões políticas, religiosas e econômicas, e da sua evolução como meio de comunicação. O bushido foi representado muitas vezes na cinematografia japonesa, muito presente nos gêneros chanbara e jiddaigeki, pois quando era mobilizada a figura do samurai, o bushido aparecia junto nessa representação, direta ou indiretamente, até mesmo de maneira crítica, como no caso de Harakiri dirigido por Masako Kobayashi de 1962. O filme se ambienta numa narrativa sobre a honra, onde os antagonistas a defendem ferrenhamente ao exigir o ritual do seppuku de um indivíduo que, com o desenrolar da trama, revela-se o genro do protagonista. O desfecho do enredo aparece quando o protagonista relata que aqueles que forçaram o suicídio de seu genro, não eram honrados como apareciam, uma vez que foram desonrados em duelo por ele, e não cometeram o ritual de tirar a própria vida obrigatório, ao invés disso se esconderam para evitarem a vergonha. Outra representação crítica é a do filme Yojimbo dirigido por Akira Kurosawa de 1961. Nele um ronin [samurai sem mestre] se utiliza de uma rixa entre gangues na cidade para seu próprio lucro e para isso o protagonista age de maneira antiética, pensando no bem próprio, indo contrário à ideia idealizada do bushido e da própria construção da imagem do samurai. Porém, ao mesmo tempo Akira Kurosawa foi responsável por obras onde o samurai e o ronin são personificados na idealização do bushido, como no filme Os Sete Samurais de 1954, A Fortaleza Escondida de 1958, ambas histórias que se baseiam na figura de um samurai/ronin, e que servem de modelo e inspiração para outros personagens. No caso de Os Sete Samurais, os guerreiros lideram uma vila contra um ataque de bandidos, e no caso de A Fortaleza Escondida, dois protagonistas, que são soldados rasos, são guiados pelo samurai, que está sendo um herói ao salvar uma princesa. Conseguimos observar nesses exemplos de filmes, a imagem do cidadão exemplar confucionista, uma das bases do bushido, em que ele lidera e protege as pessoas hierarquicamente abaixo dele na sociedade a partir da marcialidade, como também os guia de maneira ética. No caso de Harakiri e Yojimbo, nota-se uma visão contestadora dessa imagem, ao retratar os protagonistas e antagonistas sendo hipócritas, ou não se comportando da maneira idealizada presente no bushido. Mugen No Juunin, é uma obra do mangaká Hiroaki Samura, sendo seriada no Japão pela editora Kodansha, de junho de 1993 até dezembro de 2012, do gênero seinen [mangás para jovens adultos]. No Brasil, a obra foi publicada sob o título Blade, a Lâmina do Imortal, primeira pela editora Conrad em 2004, e segundamente sendo publicada no país com o selo da editora JBC desde 2015. O mangá teve uma recepção muito boa no Japão e no ocidente, no país de origem recebendo um prêmio de excelência no Festival de Mídias Artísticas do Japão de 1997, e no ocidente sendo premiado com o Will Eisner Comic Industry em 2000, de melhor quadrinho estrangeiro. O enredo do mangá se centra a partir de dois protagonistas. O primeiro é Manji, um ronin que ao matar seu senhor perdeu o título de samurai, e ao ter seu corpo infectado com vermes sagrados, se tornou imortal. Posteriormente aceita trabalhar como Yojimbo para a outra protagonista, Rin Asano, uma jovem garota de 14 anos, que busca vingança após seu pai e mãe serem mortos pelo Dojo rival Itto-Ryu, onde o lider do Dojo, Kagehisa Anotsu, estava se vingando do Dojo da família de Rin, o Mutenichi-ryu, uma vez que uma rixa havia sido criada ao seu avô ter sido expulso pelo bisavô de Rin. Outros personagens de destaque são Makie Otono-Tachibana, uma mulher nascida em uma família de samurais, muito talentosa na esgrima, porém, por ser mulher não podia ocupar tal posto. A personagem tem uma forte ligação com Anotsu que tem interesse nas habilidades dela. Podemos observar uma questão de gênero sendo levantada a partir dessa personagem, visto que no passado trabalhou como prostituta. Em uma das cenas do mangá, a personagem chega a cortar seus longos cabelos, e os homens que a acompanham na cena a tratam como se agora o valor dela fosse diminuído, como uma perda de sua beleza e feminilidade. Outro personagem de destaque é Taito Magatsu, um homem nascido camponês com ótimas habilidades de espadachim, porém que sente ojeriza por toda classe dos samurais e o que ela representa, dado que, quando criança, um samurai matou sua irmã em sua frente, apenas porque ela parou em seu caminho. Em sua luta com Manji, ele compartilha o acontecido e esse ressentimento. Manji por outro lado, mesmo tendo nascido samurai faz constantes críticas a sua classe, chegando inclusive a indagar sobre sua importância e seus comportamentos, como o de lealdade e obediência absoluta. Manji possui essas questões pois matou seu senhor ao descobrir que os camponeses que ele matava a mando de seu senhor, eram apenas pessoas que não queriam pagar impostos abusivos. Assim, ele se revolta ao constatar que matava inocentes e comete seu crime. Manji acaba verbalizando toda essa situação ao ser confrontado por um samurai que ele estava duelando. Seu adversário diz que não é dever dos samurais questionar, e sim servir. A obra possui diversos momentos de críticas a conduta e tradições dos samurais, desde a questão de gênero com o caso da personagem Makie Otono-Tachibana, até a questão de classe com o personagem Taito Magatsu, e também o próprio Manji, uma vez que sua motivação para matar seu senhor foi o fato do abuso que ele fazia contra os menos afortunados e abaixo dele hierarquicamente. Manji ainda vai além ao confrontar ideias como honra e vingança. Figura 1 "Blade, a Lâmina do Imortal". SP: Editora JBC, 2015, volume 1 Como podemos observar na imagem, Manji não possui a aparência tradicional de herói, como limpeza, traços finos e joviais. Ele aparenta ser muito mais um vilão, tanto visualmente quanto em atitudes, posto que diversas vezes no mangá ele é grosseiro, antiético, trapaceiro, e possui hábitos nojentos. Manji é a antítese do cidadão exemplar confucionista que é uma das primeiras bases do bushido, ao qual ele aparenta ser uma crítica tanto visual quanto na mentalidade. A obra é marcada de críticas aos samurais tradicionalmente representados como heróis, os arautos da moral e da ética, modelo do bushido. Como pode se notar a partir disso um discurso subversivo em relação aos usos do bushido para validar instituições japonesas como exército, governo e até o capital, e também para validar comportamentos. Levantando questões de classe, gênero, e até mesmo sobre obediência e lealdade, a obra acerta em cheio na sua crítica os alicerces do retrato do bushido, se utilizando do próprio código de honra para fazer uma desconstrução do mesmo. Concluindo, a partir dessa obra podemos analisar uma visão crítica da representação dos samurais, do bushido, e também podemos levantar discussões sobre a década de 90 no Japão, uma vez que a obra representa discussões da sua contemporaneidade, mesmo que buscando representar um momento histórico, pois as representações dizem mais sobre sua própria época, do que a época que buscam representar. Referências Estudante de História na Universidade Estadual de Londrina, e participante do Laboratório de Pesquisa Sobre Culturas Orientais - LAPECO Fontes: SAMURA, Hiroaki. Blade - Lâmina do Imortal. SP: Editora Conrad, 2004. Bibliografia: BENESCH, Oleg. Inventing the Samurai Way. Nationalism, Internationalism, and Bushido in Modern Japan. Oxford: OUP, 2014. HENSHALL, Kenneth G. A History of Japan. From Stone Age to Superpower. Loa Angeles: Palgrave Macmillan, 1999. HIRATA, Y. O destino do “Espírito Japonês”. Estudos Japoneses, n. 18, p. 23-35, 11. HOBSBAWN, Eric. A Invenção das Tradições. 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Por tempo cíclico entende-se uma eterna repetição do tempo em ciclos periódicos, sem início nem fim, de modo que cada ciclo sempre retorne com regularidade e forma imutáveis, reproduzindo em todos os seus detalhes acontecimentais fatos ocorridos em ciclos anteriores, garantindo sempre a mesma fisiologia factual em todos os períodos previstos. Por tempo linear compreende-se uma sequência acontecimental, com um início apenas e somente um fim dos tempos, na qual cada evento é único e jamais repetível em quaisquer de suas características, de modo que a dinâmica factual do tempo sempre seja inédita, negando, assim, a reversibilidade do tempo, constituindo uma linha contínua de permanente e omnipresente mudança de todos os aspectos viventes, constantemente condicionados a movimentos dialéticos. Importante ressaltar aqui a questão de que nem o espectro semântico do termo kāla no idioma sânscrito, nem as maneiras pelas quais as tradições hindus abordam a eternidade segundo seus próprios paradigmas culturais, serão abordados nesta Comunicação, ficando para uma outra oportunidade fazê-los. Desde a historiografia de James Mill [1826], até Mircea Eliade [1991, originalmente publicado em 1951], a postura acadêmica predominante foi a de atribuir à mentalidade hindu apenas a perspectiva cíclica, muito por conta do limitado espectro documental utilizado para tal conclusão, i.e. o Manu-Smṛti, o Mahābhārata, além dos Purāṇas, sem mencionar a exclusividade tipológica dessa consulta documental, baseada apenas em determinada literatura sagrada hindu. Como bem destaca Balslev [2009, pp. 141;145], “Sustenta-se que as tradições grega e indiana nutriram uma concepção cíclica do tempo, enquanto a tradição judaicocristã manteve uma concepção linear.”; “Aceita-se, comumente, que a concepção indiana de tempo é cíclica.”. Ao considerar aspectos como as idades do universo [yugas], a causa material, a fonte original de tudo o que existe [prakṛti], assim como a dissolução de toda forma de existência material [pralaya], Eliade registrará: “O que convém reter [...] é o caráter cíclico do tempo cósmico. Na realidade, assistimos à repetição infinita do mesmo fenômeno [criação- destruição-nova criação] pressentido em cada yuga [‘aurora’ e ‘crepúsculo’], mas completamente realizada por um mahâyuga. [...] Assinalemos que o mahâpralaya implica a regressão de todas as ‘formas’ de todos os modos de existência no prakrti original indiferenciado.” [Eliade, 1991, p. 62] “Na Índia [...] essa abertura para o Grande Tempo, obtida por meio da recitação periódica dos mitos, permite prolongar indefinidamente certa ordem ao mesmo tempo metafísica, ética e social, ordem que não leva absolutamente à idolatria da história, pois a perspectiva do Tempo mítico torna ilusório qualquer fragmento do tempo histórico.” [Eliade, 1991, p. 66] Existem duas concepções cosmológicas védicas de tempo, com implicações diretas no cotidiano imediato de um praticante hindu, pertinentes para a abordagem desta Comunicação. Uma delas diz respeito ao grande ciclo cósmico [mahāyuga], dividido em quatro yugas ou idades do universo, i.e. kṛta yuga, tretā yuga, dvāpara yuga e kali yuga, de modo que um yuga subsequente sempre representa um enfraquecimento, uma desqualificação das esferas cósmica, ritual e moral em relação ao yuga anterior. No kṛta yuga, os seres humanos são virtuosos, livres do sofrimento e plenos de bem-aventurança, agindo sem interesses escusos e dedicando a vida ao cumprimento do dharma hindu. No kali yuga, o homem e o mundo atingem o limite da degradação nas esferas morais, sensoriais, ritualísticas e cósmicas [cf. Dimmitt, Buitenen, 1998, pp. 38.41]. Mil mahāyugas constituem um único dia de Brahmā [quatro bilhões, trezentos e vinte milhões de anos da contagem humana], equivalente a um kalpa, que se inicia com a criação [sṛṣṭi] do cosmos, quando o universo é emanado pela substância divina, não manifestada, e termina com a dissolução [pralaya] e reabsorção ao fundir-se novamente com o Absoluto. As dimensões do universo e todos os seres que ela comporta evanescem no final do dia de Brahmā ou kalpa, persistindo, na noite subsequente, apenas como o germe latente da necessidade de uma nova manifestação. Outra maneira de se compreender um kalpa é enxergar os quatorze manvantaras [épocas de Manu] que o compõem, cada um comportando uma sequência de setenta e um mahāyugas mais um período equivalente a um kṛta yuga, terminando com um dilúvio universal que, por sua vez, dá origem a outro manvantara, até que se completem todas as quatorze épocas de Manu que constituem um kalpa. Em cada um destes quatorze manvantaras surgem os mesmos tipos de entidades, ou seja, o progenitor e legislador da espécie humana, primeiro codificador do dharma hindu, Manu, e seus descendentes que reinarão sobre a terra, além dos devas, dos sábios hindus [ṛṣis], etc [cf. Dimmitt; Buitenen, 1998, pp 23]. Segundo as tradições hindus, encontramo-nos no sétimo manvantara, cujo progenitor e legislador é Manu Vaivasvata, “Manu, Filho do Resplandescente”, “Manu, Filho do Deus-Sol Vivasvant”. Com efeito, algumas fontes hindus [Kūrma Purāṇa I,5; Manu-Smṛti I,51-57; Bhagavad-Gītā VIII,16-19] apontam para uma dinâmica de repetição mecânica, de reprodução exata dos fenômenos discerníveis pela percepção sensorial imediata, essencialmente inspiradas pelos ritmos da natureza: “O que quer que se veja existir aqui, em pé ou em movimento, todo este mundo é destruído novamente quando o fim do yuga chega. / Assim como os múltiplos signos sazonais aparecem sucessivamente quando a estação muda, o mesmo ocorre com as existências no início dos yugas. / Assim é esta roda, sem começo e sem fim, girando no mundo, causando infinitamente criação e destruição.” [Mahābhārata I,1,36-38] “Junto com as partículas atômicas perecíveis dos cinco elementos dados pela tradição [smṛti], todo este mundo passa a existir em uma seqüência ordenada. / À medida que é gerada de novo e de novo [punaḥ punaḥ], cada criatura segue por sua conta a própria atividade designada a ela no início pelo Senhor Supremo [Prabhu]. / Violência [hiṃsā] ou nãoviolência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] ou crueldade [krūratā], dharma ou adharma, veracidade [ṛta] ou mentira [anṛta] – o que quer que ele designasse a cada um no momento da criação, atrelou-se automaticamente àquela criatura. / Como a mudança de estação adota automaticamente suas próprias características, os seres corporificados também adotam suas próprias características.” [Manu-Smṛti I,27-30, grifos meus] Aqui surgem duas reflexões importantes para a compreensão da natureza do tempo segundo as tradições hindus a partir das coordenadas cíclica e linear de ritmo cronológico. Uma relativa à dinâmica entre a dimensão religiosa [cosmológica] e a dimensão secular [histórica] de temporalidade, e outra relativa à existência de perspectivas lineares no pensamento temporal hindu. Estudos recentes têm apontado para vários exemplos na cultura hindu de linearidade temporal. Witzel [1990, p. 5] afirma que, desde o sânscrito védico, a estrutura de vários idiomas indianos, com sistemas bastante complexos de expressão de vários estágios no passado, inclusive com vários tempos verbais literalmente no passado – enquanto um referencial qualitativamente distinto do momento presente, e, portanto, com o qual estabelece um raciocínio de linearidade –, mostram que a ideia da passagem de tempo nunca esteve ausente das tradições indianas, inclusive as hindus. Na própria textualidade narrativa hindu é possível identificar momentos de concepção linear das dinâmicas cosmológicas no sentido da irrepetibilidade de acontecimentos, na qual cada evento é único e jamais repetível em quaisquer de suas características, como, por exemplo, o fato de cada yuga possuir uma duração diferente dos outros yugas, que os yugas se estabelecem numa sequência contínua, não sugere uma ciclicidade fechada, mas uma linearidade: “Então, o abençoado criador, Brahmā Bhagavān, criou tudo. Criaturas que receberam de volta os karmas que eram seus da criação anterior, / Sendo criadas de novo e de novo [punaḥ punaḥ], retornam precisamente aos mesmos karmas. Violência [hiṃsā] ou não-violência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] ou crueldade [krūratā], dharma ou adharma, verdade [ṛta] ou mentira [anṛta] – produzidos a partir disso, eles retornam a Ele; portanto, eles se ocupam nisso.” [Viṣṇu Purāṇa I,5,59-60] “Mārkaṇḍeya disse: ‘A criação está impregnada das boas e más ações da existência anterior, oh Brahman; e por causa desta lei bem conhecida, os seres criados, embora sejam destruídos na dissolução, não são libertados das consequências de suas ações. [...] Quaisquer que sejam as ações com os quais eles foram severamente dotados originalmente em sua criação, essas mesmas ações com os quais eles foram dotados quando foram criados repetidas vezes. / Violência [hiṃsā] e não-violência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] e crueldade [krūratā], dharma e adharma, verdade [ṛta] e mentira [anṛta] – trazidos assim à vida eles adquirem seu próprio ser; portanto, individualmente, eles se ocupam com essas características. / O próprio Bhagavān, o criador, estabeleceu a diversidade e a especificidade entre as coisas criadas por meio de seus órgãos, atividades e corpos. / E ele atribuiu nomes e formas aos seres criados, e propôs os dharmas dos devas e outros seres, até mesmo pelas palavras do Veda no início. / Ele dá nomes aos ṛṣis, às várias classes criadas entre os devas e às outras coisas que surgiram no fim da noite. / Como os sinais das estações aparecem em sua estação apropriada, e várias formas aparecem em alteração, então esses mesmos sinais e formas aparecem como fatos reais nas idades e outros períodos’.” [Mārkaṇḍeya Purāṇa XLVIII,2.39-44, cf. Pargiter, 1904, pp. 233.236]. Na esteira desta percepção, Lynn Thomas [1997, p. 87] destaca alguns detalhes importantes para a compreensão de certos momentos de ineditismo acontecimental que apontem para um ritmo temporal linear que negue uma reversibilidade absoluta do tempo [“O ciclo é repetido, mas não replicado”, cf. Sharma, 2003, p. 115, n. 19, itálico do autor], constituindo-se numa continuidade imbuída de mudança sobre todos os aspectos viventes, pois embora Brahmā nasça no início de cada ciclo e desempenhe as mesmas funções neste mesmo momento da criação, os detalhes de seu nascimento são diferentes em cada kalpa, assim como cada manvantara é habitado não apenas por um Manu único, diferente dos demais, mas também por saptarṣis e devas distintos entre si de acordo com seu momento cósmico: “Existem mais seis Manus na linhagem deste Manu, o filho do NãoCriado [Svāyaṃbhūva]: Svārociṣa, Auttami, Tāmasa, Raivata, Cākṣuṣa, com grande energia, e o filho de Vaivasvat. Dotado de grande nobreza e poder, cada um deles gerou sua própria linhagem. Estes sete Manus de imensa energia, com o filho do Não-Criado à frente, deram origem e garantiram todo este mundo, o móvel e o inerte, cada um em seu próprio antara. [...] Há um dharma para os homens no kṛta yuga, outro no tretā yuga, outro ainda no dvāpara yuga, e um diferente no kali yuga, de acordo com a redução progressiva ocorrendo em cada yuga.” [Manu-Smṛti I, 61-63.85, grifos meus] “Em um dos dias de Brahmā, oh Brahman, pode haver quatorze Manus. Eles vivem de acordo com suas porções [...]. Os devas, os sete ṛṣis, Indra, Manu e os reis, seus filhos, são criados com Manu e passam à dissolução com ele em ordem regular.” [Mārkaṇḍeya Purāṇa XLVI,3233, cf. Pargiter, 1904, pp. 226.227, grifo meu] Com efeito, convém destacar os argumentos de Balslev sobre a natureza da repetição exata de uma periodicidade estrita de todos os eventos cósmicos pressuposta sobre a cultura hindu. Ao discorrer sobre kalpas, yugas, manvantaras etc, Balslev registra: “Os ciclos cósmicos podem ser comparados entre si em termos de semelhança genérica, assim como um dia se parece com outro, mas a ideia de repetição exata envolvendo o retorno dos particulares não ocorre. A ideia de ciclos cósmicos ocorre tanto nos épicos quanto nas Upaniṣads.” [Balslev, 2009, p. 146] “É de se notar que a roda do devir, no contexto indiano, não envolve uma repetição mecânica do particular/do individual, nem impede a salvação, nem de forma alguma implica que uma alma libertada possa ser puxada de volta para esta existência novamente atrelada à morte.” [Balslev, 2009, p. 147]. Outros exemplos pontuais que refletem a existência de uma concepção linear de tempo na cultura hindu são, por um lado, a concepção de sucessão discipular intergeracional circunscrita à transmissão de conhecimentos ritualísticos e especulativos védicos, conhecida no sânscrito como guruparamparā, e, por outro, a noção de linhagem régia das dinastias hindus, conhecida no sânscrito como vaṃśa. A partir das palavras de Kṛṣṇa, é possível enxergar um exemplo claro de guruparamparā na Bhagavad-Gītā [IV,1-2a]: “Śrī Bhagavān disse: ‘Ensinei este imperecível conhecimento do yoga ao deva do Sol, Vivasvān, e Vivasvān ensinou-o a Manu, o pai da humanidade, e Manu, por sua vez, ensinou-o a Ikṣvāku. / Este conhecimento foi então recebido através da transmissão por sucessão discipular, e os sagrados reis compreenderam-na dessa maneira’.” A guruparamparā à qual se liga Bhaktivedānta Svāmī Prabhupāda, principal divulgador no século XX E.C. da religiosidade hindu conhecida como Gauḍīya Vaiṣṇava, é uma dentre várias ilustrações interessantes da consciência de linearidade do pensamento hindu: Kṛṣṇa → Brahmā → Nārada → Vyāsa → Madhva → Padmanābha → Nṛhari → Mādhava → Akṣobhya → Jaya Tīrtha → Jñānasindhu → Dayānidhi → Vidyānidhi → Rājendra → Jayadharma → Puruṣottama → Brahmaṇya Tīrtha → Vyāsa Tīrtha → Lakṣmīpati → Mādhavendra Purī → Īśvara Purī → Caitanya → Rūpa → Raghunātha → Kṛṣṇadāsa → Narottama → Viśvanātha → Jagannātha → Bhaktivinoda → Gaurakiśora → Bhaktisiddhānta Sarasvatī → Bhaktivedānta Svāmī Prabhupāda [Bhagavad-Gītā como ele é, 1995, p. 31]. Por sua vez, para além da linhagem real lunar [Candravaṃśa], à qual pertencem os heróis do épico Mahābhārata, a linhagem solar [Sūryavaṃśa] da Casa Real dos Ikṣvākus, à qual pertence Rāma – um dos avatāras de Viṣṇu, de acordo com o Ayodhyākāṇḍa, segundo livro do Rāmāyaṇa de Vālmīki –, é outro nítido exemplo de temporalidade linear segundo a cultura hindu: Brahmā → Marīci → Kaśyapa → Vivasvan → Manu → Ikṣvāku → Kukṣi → Vikukṣi → Bāṇa → Anaraṇya → Pṛthu → Triśaṅku → Dhundhumāra → Yuvanāśva → Māndhātṛ → Susandhi → Dhruvasandhi → Bharata → Asita → Sagara → Asmañja → Aṃśumant → Dilīpa → Bhagīratha → Kakutstha → Raghu → Kalmāṣapāda Saudāsa → Śaṅkhaṇa → Sudarśana → Agnivarṇa → Śīghraga → Maru → Praśuśruka → Ambarīṣa → Nahuṣa → Nābhāga → Aja → Daśaratha → Rāma [Ayodhyākāṇḍa CII, cf. Pollock, 2007, pp. 303-305]. A presença de Manu nesta concepção linear é significativa pelo fato da governança política [rājadharma] védica estar intrínseca e irrevogavelmente associada ao estabelecimento do dharma, em sua plenitude, entre os praticantes hindus neste mundo terreno, segundo suas próprias perspectivas confessionais. Com efeito, o próprio enredo do Rāmāyaṇa de Vālmīki encerra per se uma linearidade temporal que começa com a decisão dos devas em se transformar em avatāras para restaurar cosmicamente o dharma ameaçado por Rāvaṇa, e termina com Rāma reassumindo sua forma plena de Viṣṇu e retornando para onde os devas habitavam. Para além destes exemplos, vale ressaltar a linearidade da “biografia transmigracional” de uma alma hindu, não apenas na sequência de existências distintas entre si que ela experimenta no fluxo do saṃsāra segundo o dharma hindu, mas também entre um pralaya e uma sṛṣṭi, como registra Medhātithi em seu comentário [Manubhāṣya] ao Manu-Smṛti [I,28], ao afirmar que Prajāpati “faz a criatura nascer naquela família de criaturas que é indicada pelo ato realizado por ela durante o ciclo anterior... se a criatura teve, no passado, uma conduta virtuosa, é levada a nascer em uma família na qual seria capaz de experimentar os bons resultados dessa conduta... O que acontece é que no início de cada nova Criação [sṛṣṭi], surgem os atos praticados pelas criaturas no ciclo anterior, após terem, durante a Dissolução [pralaya], ficado latentes em sua fonte.” [Jhā, 1920, p. 67] Portanto, é possível visualizar nitidamente, a partir de trechos da literatura sagrada hindu, que sua cultura conhece sim a noção linear de temporalidade, que ela não se restringe somente à repetição mecânica dos acontecimentos, à redundância literal dos fatos mediante as expectativas confessionais hindus baseadas não somente em seu próprio e vasto manancial narrativo, mas também em suas relações interpessoais e intergeracionais. Uma última questão merece destaque aqui. Para Sharma [2003, p. 95], “não é o conceito de tempo, mas de cosmologia, que é cíclico no pensamento hindu, e, além disso, este próprio conceito aparece em sua forma completa apenas por volta do primeiro século.”. Neste caso, é necessário salientar que experiências humanas sobre o tempo são, irrevogavelmente, construções culturais que refletem diferentes contextos naturais, históricos ou sociais [Malinar, 2007, p. 1], de modo que uma distinção radical entre cosmologia [religiosa] e história [secular] se torna irrelevante para a compreensão da natureza do tempo nas tradições hindus: “Esses ritmos de ordem social se manifestam em narrativas tanto mitológicas quanto históricas, assim como em práticas rituais e artísticas ou métodos de cura.” [Idem, p. 2]. Para Malinar, lidar com o tempo é estabelecer relações com os acontecimentos e memorizá-los num contexto sócio-cultural específico. A existência dos vaṃśas como expressão de linearidade temporal no intuito de legitimar dinastias e reivindicar hegemonia política não elimina outras maneiras de interpretar o tempo enquanto uma história cósmica, conforme relatos narrativos confessionais e encenações em performances rituais: “A Índia ou Bhāratavarṣa tornou-se uma região do cosmos, e tudo o que acontecia lá era colocado na estrutura do tempo cósmico. Em conseqüência, histórias dinásticas, narrativas épicas e mitos, origens de rituais e festivais tornaram-se parte desta estrutura abrangente.” [Malinar, 2007, p. 8] Como última reflexão, ainda resta uma pergunta no ar: a partir da conclusão de que a cultura hindu possui não apenas a noção de tempo cíclico, mas também a de tempo linear, é possível visualizar a existência de uma dinâmica espiralada na noção de tempo hindu que conjugue ambas as diretrizes? Autoras como Malinar [2007, p. 2] e Thapar [2004, p. 8; 2007, p. 29] aludem apenas genericamente ao tempo enquanto uma espiral ou uma ondulação [oscilação], sem entrar no mérito de sua fisiologia, nem se lançar à prova de sua aplicabilidade na cultura hindu. Seria possível identificar nos ritmos temporais hindus a recorrência de dinâmicas paradigmáticas nos próprios acontecimentos em contextos objetivos diferentes sem reproduzi-los literalmente em sua forma, de modo que os recortes temporais acabariam servindo como plataformas que, regularmente, disponibilizam possibilidades de experiências pontuais que, em último caso, guardariam semelhanças genéricas com outros períodos, sem repeti-los mecanicamente, não se reduzindo totalmente nem à previsibilidade dos ritmos cíclicos, nem ao constante ineditismo dos ritmos lineares de tempo? Referências Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pósgraduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História das Religiões]. BALSLEV, Anindita Niyogi. A Study of Time in Indian Philosophy. Delhi, Motilal Banarsidass, 2009. DIMMITT, Cornelia; BUITENEN, J. A. Classical Hindu Mythology. Delhi: Sri Satguru Publications, 1998. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. GUPTA, Anand Swarup. [ed.]. Kūrma Purāṇa. Vārāṇasī: All-India Kashiraj Trust, 1972. JHĀ, Gangā-Nātha. [ed.]. Manu-Smṛti: The Laws of Manu with the Bhāṣya of Medhātithi. Calcutta: University of Calcutta, 1920. MALINAR, Angelika [ed.]. Time in India: Concepts and practices. 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Essas duas questões podem ser vistas como pano de fundo do capítulo 22 da obra Xunzi 荀子, ou Nomeação Correta, Zheng Ming 正名. Trata-se de uma obra homônima com o seu autor, o Xunzi 荀子, aportuguesado como filósofo Xun. Seu nome original é Xun Kuang 荀況 [310-211 Antes da Era Comum - AEC], logo, seu sobrenome é Xun, conforme a tradição cultural da língua chinesa do sobrenome aparecer primeiro. Zi 子 significa mestre, pensador destacado ou filósofo. Nosso autor viveu no período da desintegração da dinastia Zhou 周 [1046-256], a última dinastia descentralizada da antiguidade chinesa. Presenciou o final do período dos “Estados Combatentes” [403-221 AEC], que, como o próprio nome diz, era um contexto de guerras, instabilidade social e desordem política. Essa situação se refletiu em grande medida em demandas para as próprias teorias de Xun, como também fomentou uma série de outros filósofos que buscavam responder da melhor maneira a tais desafios. O filósofo Xun foi o terceiro maior defensor da Escola dos Eruditos, Rujia 儒家, depois de Mêncio [372-289 AEC] e de Confúcio [551-479 AEC] – que, devido ao seu impacto nessa tradição, fez estrangeiros a chamarem de “Confucionismo” [Costa, 2021]. Xun é conhecido justamente pelas críticas que fez às outras correntes filosóficas existentes durante sua vida. Destas, destacamos aqui os Moístas [Mojia 墨家], a Escola dos Nomes [Mingjia 名家] e a corrente Song-Yin Xuepai 宋尹學 派 [Theobald, 2011]. No capítulo Nomeação Correta ele estabeleceu uma crítica severa e direta a nove frases ou proposições dos seus oponentes intelectuais. Por sua vez, cada frase foi classificada em pelo menos uma de três falácias, ou seja, em tipos de discursos enganosos ou falsos. Para ele, mais do que apenas discursos contraditórios, falácias tem impactos sociais que não devem ser subestimados. O presente texto tem o objetivo de analisar a crítica do filósofo Xun a essas três falácias e seus nove exemplos. Após uma contextualização histórica-filosófica do problema que buscamos resolver, vamos analisar as posições filosóficas presentes nos argumentos criticados e os respectivos contra-argumentos de Xun. O contexto geral da teoria da Nomeação Correta [Zheng Ming] Uma busca pelo website Chinese Text Project [Sturgeon, 2006], mostra que o termo Zheng Ming 正名, nomeação correta ou retificação dos nomes, é encontrado já no Clássico dos Ritos, capítulo Leis do sacrifício, Ji Fa 祭法, trecho 8 [Liji, 2006]. Nessa referência, afirma-se que Huang Di 黄帝, considerado pela cultura popular e tradicional como o primeiro Imperador da Antiguidade, “foi quem nomeou corretamente a tudo, mostrando assim às pessoas como aproveitar suas qualidades”. Confúcio [2012, p. 389], no trecho 13.3 dos Analectos, reafirmou isso ao dizer que a primeira coisa a fazer em um governo são as nomeações corretas, caso contrário: “[...] se os nomes não estão corretos, o falar não é fluente; se o falar não é fluente, os atos não se completam [...]”. O que fazer caso essa desordem na linguagem e nos atos ocorra? Realizar nomeações corretas implementadas por pessoas virtuosas, Educadas [Junzi 君子], que, além de se comunicar bem, também suas ações são coerentes com o que dizem, conforme os trechos 12.10, 12.11 e 13.3 dos Analectos [Confúcio, 2012]. Contudo, o projeto confuciano não se realizou até a época do filósofo Xun. Ao contrário, discursos perversos ganharam força, sendo que “não há nenhum deles que não possam ser classificados entre as três falácias [San huo 三惑]” [Xunzi, 2006, 22.11, nossa tradução]. Já que os Educados não estavam mais no poder – logo, não tinham posição política suficiente para conter tais discursos maléficos –, o filósofo Xun defendeu a necessidade de realizar argumentações e explicações [Bian Shuo 辨說] contra as falácias. É essa defesa e uso da argumentação e o ataque ás falácias que tornou a sua teoria da nomeação correta tão influente na história da filosofia chinesa. Mas não apenas isso. Curiosamente, para defender o Caminho dos Reis Sábios, o Dao 道 confuciano, ele se nutriu do que havia de melhor no mundo intelectual à sua volta, em especial, do método argumentativo da Escola dos Nomes e dos moístas, sendo um reflexo da diversidade intelectual do seu tempo. No entanto, criticou as teses dessas escolas filosóficas. Da Escola dos Nomes, o filósofo Gongsun Long 公孫龍 [Gongsun, s. d.] apresenta dois pontos que devem ser considerados. O primeiro é que Gongsun defendeu uma perspectiva que leva leitores, como nós, a entender que havia uma realidade intrínseca aos nomes, ou seja, há uma correlação natural entre um nome e uma realidade. Segundo, esse autor estava preocupado com as consequências epistemológicas dessa correlação nome-realidade, ou seja, de como estabelecer distinções adequadas que nos possibilitam conhecer [zhi 知] objetos [shi 实 / 實] do mundo de forma mais segura [Lai, 2009, p. 147]. Dos moístas, segundo Nivison [1999, p. 798]: “[...] foi notado que o ‘Zheng ming’ é a adaptação confucianamente orientada do Xunzi ao esquema e aos temas dos ‘Cânones’ Moístas, [...] através da [1] primeira, [3] terceira e [4] quarta das ‘disciplinas’ Moístas: [1] Discurso - saber conectar nomes com objetos. Aqui, Xunzi parece estar reagindo à observação de Zhuangzi no [capítulo] ‘Qi wu lun’ [Conversa sobre a igualdade das coisas] de que ‘as coisas são assim porque são chamadas assim’ - a descoberta assustadora de que não há usos de ‘nomes’ que sejam apenas naturalmente corretos, um fato que Xunzi admite: ‘Os nomes não têm adequação intrínseca’. Haverá intolerável confusão, a menos que os nomes sejam padronizados. [3] Ciências - conhecer objetos. [Relaciona-se ao] problema do Xunzi de: ‘distinguir entre coisas que são iguais e coisas que são diferentes’. [4] Argumentação - conhecer nomes. [Relaciona-se ao] problema do Xunzi de: atribuir nomes de acordo com ‘semelhança’ e ‘diferença’ e garantir que os oponentes não confundam as coisas, como eles querem fazer e farão”. Curiosamente, a segunda das quatro disciplinas moístas, a ética [Graham, 1989, p. 139], que ainda estava faltando, é tratada como a solução para lidar com as falácias identificadas pelo filósofo Xun. Por isso mesmo, a questão ética é o pano de fundo do capítulo. Comento isso para informar que o objetivo final do nosso filósofo vai além de mostrar erros de linguagem ou inconsistências lógicas. Ele pretende dar conta da meta confuciana de haver uma coerência entre linguagem e ação para reordenar a sociedade. Vejamos a seguir o ataque que ele fez às falácias que identificou nos seus opositores. Tradução do trecho 10, capítulo 22 [Zheng Ming, Nomeação Correta], da obra Xunzi “[Afirmações como] ‘ser humilhado não é vergonhoso’, ‘o sábio não ama a si mesmo’ e ‘matar ladrões não é matar pessoas’, [são exemplos de] usos confusos [huo 惑 ] dos nomes que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar as ações derivadas dessas expressões, observará o que acontece quando elas são executadas, então poderá contê-las. ‘Montanhas e abismos estão no mesmo nível’, ‘os desejos derivados das emoções são poucos’, ‘[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas’, [e] ‘grandes sinos não são [mais] divertidos’, estes são exemplos de usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar a razão para [diferenciar] o igual e o diferente [nessas expressões], e observar a coerência própria delas, então poderá contê-los. ‘[A flecha] não encontrou a pilastra’, ‘ter ‘bois e cavalos’ não é ter cavalos’, estes são exemplos de usos confusos de nomes que causam desordem na realidade. Se alguém verificar os nomes das convenções sociais, através do que lhes é aceito, contrastando com o que rejeitam, então poderá contê-los!”. [Xunzi, 2006; tradução nossa, amparada em: Valenzuela Alonso, 2019; Hutton [Xunzi, 2014]; Zhang Jue [Xunzi, 1999]; Knoblock, 1988; Mei, 1951; Duyvendak, 1924.] Breve análise das três falácias do trecho traduzido Cada um dos parágrafos do trecho 22.10 do Xunzi apresenta um tipo de falácia, que se relacionam com as disciplinas moístas explicadas anteriormente. É estabelecida uma relação causal entre nomes [ming 名] e objetos da realidade [shi 实 / 實]. Mostra-se brevemente o impacto, as consequências, de cada uma dessas relações causais. Por fim, ele propõe uma solução para conter cada uma dessas falácias. Julguei necessário atribuir um nome para cada uma das falácias, bem como em colocar em proposições separadas, de forma que facilite metodologicamente a análise. Vejam: 1. Falácia ilocucionária, relacionada a disciplina dos Discursos dos moístas: - usos de nomes confusos [P] que confundem os nomes [Q], logo, P implica Q; - Q implica ações sociais destrutivas [R]; - o antídoto para R é a proibição política dessas proposições por meio de normas da linguagem. 2. Falácia da distorção da realidade, relacionada a disciplina das Ciências moístas: - expressões confusas sobre objetos da realidade [X] que desordenam a linguagem [Y], logo, X implica Y; - Y implica obscurecer a realização de distinções e semelhanças [Z]; - o antídoto para Z é checar a coerência interna da proposição e a distinção ou semelhança com a realidade. 3. Falácia da distração, relacionada a disciplina dos Argumentos dos moístas: - usos confusos de nomes [A] que causam desordem na realidade [B]; - B implica em confusão dos padrões sociais estabelecidos e a consequente distração do interlocutor [CeD]; - o antídoto para CeD é verificar as sentenças com o que é aceito consensualmente na sociedade. No quadro a seguir busquei sintetizar as informações de forma visual: Três falácias apontadas por Xunzi as três falácias (san huo 三惑) e as relações de implicância (→) entre nomes (A) e a referência às realidades materiais (B) 1ª falácia ilocucionária 2ª falácia da distorção da realidade 3ª falácia da distração Linguagem ming 名 (nomes) A→B A A→ Realidade shi 实/實 (objetos referenciad os) B B Fonte: elaborado pelo autor em 14/09/2021. Pela separação das proposições e pela visualização do quadro é possível notar que se trata, antes de tudo, de um problema de linguagem. Mais precisamente, trata-se da falta de clareza e exatidão, e até de uso antiético da linguagem. A primeira delas, a falácia ilocucionária, mostra que há ações mesmo dentro dos limites da linguagem e da comunicação. Ou seja, falas podem ser, em si mesmas, ações ou incitar ações – adiantando parcialmente as ideias de Austin [1990] sobre atos de fala, especialmente os atos ilocucionários. Para Xun, se forem falácias, tais atos serão socialmente danosos. A relação com a referência aos objetos da realidade é estabelecida nas duas falácias seguintes. A falácia da distorção da realidade começa com uma linguagem que busca distorcer a nossa percepção dos dados dos sentidos para confundir e obscurecer a nossa linguagem. Já a falácia da distração vai na direção contrária, confundindo os discursos para embaçar a nossa visão da realidade, e, enfim, gerar uma distração na percepção do mundo no interlocutor. Todas as três falácias visam como objetivo final causar algum tipo de confusão que acabe por beneficiar os autores das falácias. Essas ações egoístas claramente prejudicam a curto ou longo prazo a comunidade em que se convive. No próximo tópico vamos analisar os exemplos históricos de proposições da China antiga que foram criticados pelo filósofo Xun no trecho traduzido. Breve análise dos nove exemplos de falácias A frase [1] “ser humilhado não é vergonhoso” é atribuída ao filósofo Song Xing 宋 銒, autor da obra Sòngzi 宋子, e que tinha sua própria corrente de pensamento [Theobald, 2011]. Essa obra não sobreviveu aos desafios da história, porém, o trecho citado pode ser encontrado na obra Zhuangzi, cap. 33 [Tian Xia 天下, Tudo sob o Céu], trecho 3 [Wang et al., 1999, p. 593]. O ponto central atacado é que, sofrer humilhação necessariamente implica sim uma situação embaraçosa, socialmente vergonhosa, caso contrário, não seria humilhação. O filósofo Xun está questionando o fato de que, se alguém diz que não há vergonha em ser humilhado, ele não irá corrigir seus erros. Em outras palavras, dizer que “ser humilhado não é vergonhoso” implica em continuar a cometer os erros e não se importar com tentativas externas de correção. Contudo, humilhações são, justamente, correções sociais, logo, servem para gerar vergonha no humilhado, obrigando-o a mudar ou se adequar, numa análise da dinâmica social. [2] “O sábio não ama a si mesmo” é uma versão resumida de uma ideia do Mozi 墨 子 [2006], fundador do moísmo, presente no capítulo Daqu 大 取 , Grande Seleção, parte 11. Há uma obra, o Mozi Xiangu 墨子閒詁 [Comentários ao filósofo Mo], publicado por Sun Yi-Rang [2006] em 1893, que comenta que a obra Xunzi está se referindo especificamente aos trechos 8, 9, e 10 do referido capítulo do Mozi [2006]. Selecionamos o que se destaca nesses trechos, amparados livremente na tradução inglesa de Johnston [2009, p. 586-589, que enumerou a mesma passagem como 44.8]: “Mozi, 11.9: O sábio teme a doença e a decadência, mas não teme o perigo e a dificuldade. Ele mantém a integridade de seu corpo e a determinação de seu coração. Ele deseja o benefício do povo, ele não desgosta do amor do povo; Mozi, 11,10: O sábio não considera sua própria morada [...]. Xun está questionando a ética consequencialista dos moístas. Nesses trechos, os moístas defendem que o sábio [Sheng ren 聖人], já que ama a todos [P], deveria se sacrificar, se for preciso [Q]. Assim, essa é uma falácia ilocucionária por afirmar que, se P, então Q, mas não havendo nada que levaria a tal conclusão, o que a faz soar falsa. Além disso, Q é uma ação social destrutiva, tanto para o sacrificante quanto para a sociedade que vai perder um sábio. Já a famosa sentença [3] “matar ladrões não é matar pessoas” aparece nos livros moístas Xiaoqu 小取, Pequena Seleção, trecho 11.5 [Mozi, 2006; Johnston, 2009, p. 627]. Para Xunzi se trata de uma falácia ilocucionária porque, através de uma confusão da linguagem, leva a ações comunicativas violentas contra outras pessoas. No caso, leva as pessoas X a uma narrativa de desumanização de outras pessoas Y, para X legitimamente poderem assassinar Y. Uma versão brasileira atual desse tipo de falácia são as sentenças como “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos”, expressos pela atual direita cristã conservadora, atualmente no poder. Falas que, além de serem em si violentas, após conquistarem a opinião pública, geram ações físicas violentas. Passemos aos exemplos das falácias da distorção da realidade. [4] “Montanhas e abismos [estão] no mesmo nível” é uma proposição atribuída ao filósofo Huishi 惠 施. Trata-se do mais famoso representante da Escola dos Nomes, pelo menos entre nós, já que ele aparece em alguns trechos do Zhuangzi dialogando com esse autor daoísta, que por sua vez é razoavelmente conhecido no Brasil. Esse trecho sobreviveu no livro Hanshi waizhuan 韓詩外傳 [Han, 2006], capítulo 3, parte 32, e parcialmente diferente no capítulo 33 do Zhuangzi [Wang et al., 1999, p. 604605]. Xun entende que Hui Shi aqui busca confundir uma distinção facilmente identificável por nossos sentidos naturais. Assim, confunde a realidade, e consequentemente, dificulta ter parâmetros para conhecermos, e, sem saber que sabemos, inviabiliza a própria linguagem. [5] “Os desejos derivados das emoções são poucos” é uma ideia atribuída novamente ao filósofo Song Xing, também presente no Zhuangzi, capítulo 33, trecho 3 [Wang et al., 1999, p. 595]. Xun vê uma falácia aqui pelo fato de que é muito fácil de observar que os seres humanos, na verdade, apresentam muitos desejos, e esses desejos nascem de emoções naturais [biológicas]. Na verdade, a observação do comportamento mostra que os desejos humanos são muitos, logo, dizer o contrário distorce nossas referências da realidade, nos impedindo de estabelecer uma linguagem correta. Os dois próximos exemplos podem ser vistos como apontando para um mesmo tipo de problema. [6] “[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas” é atribuída ao filósofo Song Xing. Já a sentença [7] “grandes sinos não são [mais] divertidos”, conforme Valenzuela Alonso [2019], talvez seja uma menção a ideias de Mozi, e ambas reaparecem como alvo de críticas no capítulo 18 no Xunzi. O que Xun está criticando aqui, em ambos os dois casos, é a possibilidade de embaçar as distinções dos nossos sentidos [paladar e audição]. Se a falácia ter sucesso em distorcer a percepção da realidade do interlocutor, este terá problemas em estabelecer distinções, logo, terá problemas em reconhecer as diferenças dos objetos da realidade [shi] com clareza. Esse é o tipo de confusão que um agente político mal-intencionado quer causar. Por isso, assim como nos outros casos, devese sempre averiguar a coerência interna na sentença em relação a ela mesma [a proposição já supõe que há sinos pequenos, já que há os grandes, assim, há diferenças devido ao tamanho, desmentindo ela mesma]. Também a própria coerência entre o nome e realidade de ser averiguado empiricamente, daí o motivo de Nivison [1999] conectar com a noção de “ciência” moísta. E este é um exemplo explícito de quando o filósofo Xun usa as armas intelectuais dos seus oponentes para criticá-los. [8] “[A flecha] não encontrou a pilastra”: provavelmente faz menção a ideia que julga ser confusa no Mozi [2006], capítulo 10, trecho 51: “O parar: Não parando quando não há duração corresponde a ‘boi não é cavalo’ e é como ‘uma flecha passando por um pilar’. Não parar quando há duração corresponde a ‘cavalo não é cavalo’ e é como ‘um homem passando por uma ponte” [Johnston, 2009. p. 416417]. Trata-se, no entanto, de um trecho confuso [Hutton, 2014], talvez fruto de erros de copistas [Valenzuela Alonso, 2019]. O que talvez o filósofo Xun vê como falácia é o fato de que não é possível uma flecha ultrapassar um pilar, já que o pilar seria uma barreira física, vendo aqui uma clara confusão na metáfora em relação à linguagem socialmente estabelecida. No último exemplo de falácia, [9a] “ter bois e cavalos não é ter cavalos”, primeiro, trata-se de uma sentença do Mozi [2006], livro 10, trecho 168 [ver Johnston, 2009, p. 552-553]. Mas é amplamente comentado que é também uma crítica a frase de Gongsun Long [9b] “cavalo branco não é cavalo” [cf. Valenzuela Alonso, 2019]. O filósofo Xun claramente vê um problema nessas distinções: percebe uma tentativa de diferenciar objetos [shi] que são convencionalmente vistos como sendo de uma mesma grande categoria [cavalos, independentemente da cor, são, antes de tudo, cavalos]. Com essa tentativa, visa confundir as convenções sociais da linguagem [como a acordo de que cavalo branco é, sim, cavalo], e, assim, o agente que usa a falácia pode usá-las para adquirir vantagens pessoais em detrimento do bem comum. Referências Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando em Filosofia na USP e professor de Filosofia da UERR. É membro da Associação Latino Americana de Filosofia Intercultural - ALAFI. AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes médicas, 1990. CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas de Giorgio Sinedino. 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A chanoyu foi se transformando no decorrer do tempo, na modernidade, é compreendida como uma arte social ampla que combina conhecimentos de arquitetura, design de interiores, jardinagem, arranjo de flores, pintura, preparação de alimentos, entre outras coisas [CHACOBO, 1997]. Essa evolução é perceptível nas casas de chá, onde geralmente há um espaço destinado ao jardim, a estrutura da casa segue determinados padrões e as decorações, juntamente com os alimentos, são típicos e fazem referências às estações do ano. O wabi-sabi, outro conceito fundamental que buscamos apresentar nessa pesquisa, se enquadra na estética e cultura japonesa, não há uma ideia exata que corresponda ao termo. Para a professora Michiko Okano [2018], é muito difícil traduzir elementos como wabi-sabi, yūgen, yojō, ma e várias outras que se relacionam com a arte japonesa. Em uma das possíveis definições, Haga [1995] apud Okano [2018, p. 180] afirma que: “wabi é transformar a insuficiência material e descobrir nela o mundo da liberdade espiritual não vinculado a coisas materiais”. Na tentativa de traduzir algo tão complexo de se definir, não existe certo ou errado, mas sim diversas informações pertinentes que se completam em sentidos. Em um documentário chamado In Search of Wabi-sabi [Em buscca do Wabi-Sabi], produzido pela BBC4 e disponível no Youtube, Marcel Theroux vai até o Japão e pergunta para diversas pessoas [jovens, adultos e idosos] o que significa wabi-sabi. Ele encontra respostas inusitadas como “é o coração japonês” ou “você não pode simplesmente encontrar isso”, mas também percebe que vários cidadãos, mesmo sendo japoneses, não são capazes de responder de modo claro e objetivo, pois se trata de algo maior e muitas vezes inexplicável em poucas palavras. Uma outra forma de descrever o conceito, nas palavras de David Chacobo [1997] seria: “Wabi-Sabi é a beleza de coisas imperfeitas, mutáveis e incompletas. É a beleza das coisas modestas e humildes. É a beleza das coisas não convencionais. A extinção da beleza” [CHACOBO, 1997, p. 02, tradução nossa]. Dessa forma, o wabi-sabi pode ser compreendido e visto de inúmeras maneiras, isso também dependerá do contexto em que o termo se aplica e a sua funcionalidade. Wabi-sabi e suas peculiaridades Em primeiro lugar, há um consenso entre os pesquisadores quando se trata dos conceitos estéticos wabi e sabi sobre a dificuldade em defini-los ou traduzi-los de modo claro e objetivo. Wabi e sabi carregam consigo a tradição, cultura e, segundo alguns, a alma nipônica. Trata-se de termos extremamente antigos para a história oriental e que se transformaram com o passar do tempo, mudando seus significados e suas finalidades conforme o contexto em que foram aplicados. O conceito de wabi [侘び] remete ao verbo wabiru, ou seja, declinar para um estado de tristeza e abandono, sentir-se solitário, miserável, desapontado. Também pode ser entendido como uma apreciação da vida tranquila e longe das coisas mundanas, e por último pedir desculpas. Para exemplificar, pode ser visto na primeira antologia poética japonesa Man’yōshū, de 759 d.C, também na peça de teatro Nō, denominada Matsukaze, de Kan’ami Kiyotsugu [1333-1384] e em alguns poemas waka, de autoria de Fujiwara no Teika [1162-1241] [ROCHA, 2015]. A concepção de sabi [ 寂 び ] é traduzida com frequência como “rústico”, “elegância”, “simplicidade” e “platina”, pode ser compreendido como o efeito de um metal envelhecido. Os dois termos possivelmente tiveram influências do ascetismo budista, principalmente dos ideais de fugacidade e evanescência da vida, que prezam pelo desenvolvimento espiritual e desapego dos bens materiais. Para a especialista em estética japonesa, professora Michiko Okano [2018] sobre o surgimento do wabi: “A estética wabi-sabi é geralmente compreendida a partir da perspectiva em voga na Era Muromachi [1333-1573], quando ocorreu o desenvolvimento da cerimônia do chá. No entanto, o surgimento de wabi é bem mais antigo, e seu significado original pode ser encontrado na antologia poética Man’yōshū [Antologia das dez mil folhas] – compilada na Era Nara [710-794] – em forma de “wabu” ou “wabishi”, cujos significados eram de um estado de sofrimento causado pelo amor não correspondido ou de perda ou adversidade ocasionada pela falta de sorte. Não havia, portanto, no século VIII, nenhum valor estético ligado ao termo. Wabi, aos poucos, passou a indicar um sentimento sofisticado e elegante apesar de uma maneira de viver simples e rústica, longe de uma vida mundana, o que salienta a relação da estética com o modo de vida” [OKANO, 2018, p. 178-179]. Nos estudos recentes que protagonizam o conceito de wabi-sabi, na maioria das vezes é relacionado à compreensão de estética japonesa ou a própria cerimônia de chá. Porém, as duas concepções já existiam antes da criação da cerimônia de chá ou da ideia ligada a estética oriental. Conforme Okano [2018], o seu significado original era relacionado a um estado de sofrimento, que muitas vezes era causado por um amor não correspondido ou a falta de sorte. No decorrer do tempo, wabi ganhou contações diferentes, tais como: sofisticação, elegância e rusticidade ao mesmo tempo, uma vez que representam um modo de vida simples e que preza pela harmonia da mente e do corpo. Em uma figura elaborada por Eduardo Prieto González, contida em Wabi-sabi - a estética do evanescente [2018], curso ministrado entre 2017 e 2018 pela Escola Técnica Superior de Arquitetura de Madrid, é possível compreender de maneira geral a evolução dos termos wabi-sabi. Primeiramente, o sabi foi desenvolvido por volta do século VIII, sobretudo no âmbito da poesia, o significado se referia a estar desolado. No século XIII, o termo se expandiu para as demais artes japonesas, o sentido tornou-se valorizar o velho, o oxidado, ver a beleza no murcho, desgastado, incompleto, imperfeito e desigual. Apenas no século XV foi criado o conceito de wabi, relacionado à cerimônia do chá, à beleza no pobre, melancólico, solitário e simples, e assim surgiu o “wabichá”. No século XVI aconteceu a fusão entre os ideais de wabi e sabi [GONZÁLEZ, 2018, p. 30]. Assim, muitas vezes não encontramos estudos que focam a apenas no wabi ou somente sobre o sabi. Apesar de se tratarem de conceitos distintos, após o século XVI eles passaram a ser entendidos e usados como apenas um só. Em uma análise comparativa sobre a modernidade e o wabi-sabi, de acordo com David Chacobo, no artigo “Um resumo - wabi-sabi para artistas, designers, poetas e filósofos” [1997], os dois possuem relação com todos os tipos de objetos, espaços e designs desenvolvidos pelo ser humano. No que se refere às diferenças entre wabi e sabi e à modernidade, enquanto o último carrega uma visão lógica e racional do mundo, o primeiro possui um olhar intuitivo e relativo. A modernidade procura soluções e padrões universais voltados para o futuro, e o wabi-sabi soluções que sejam peculiares e pessoais que prezem pelo presente. A modernidade busca controlar a natureza e o wabi-sabi acredita na impossibilidade de controla-la. A modernidade é tecnológica, preza pelas máquinas, o wabi-sabi é orgânico, valoriza o meio ambiente [CHACOBO, 1997]. De acordo com Chacobo [1997], podemos perceber que há muito mais diferenças do que semelhanças entre o wabi-sabi e a modernidade. No entanto, wabi-sabi é um conceito que, apesar de não agradar ou fazer parte dos fundamentos da modernidade, consegue sobreviver no mundo moderno e está presente em quase todas as artes japonesas. Além disso, são ideais muito usados na arquitetura de todo o mundo, pois contém valores que impressionam e inquietam as pessoas que contemplam. Nas palavras de Lauren Prusinski [2012]: “Wabi-sabi é frequentemente sintetizado para criar cenas de uma qualidade, ou seja, aquele que tem conhecimento sobre wabi-sabi pode colocar cuidadosamente pedras em um jardim ou arrumar meticulosamente as flores intercaladas entre as pedras para parecer como se tivessem surgido em aquela matriz precisa a partir do solo. Mais importante, no entanto, se aplicando a wabi-sabi resumidamente, deve-se criar uma cena que pareça não ter sido arranjada por mãos humanas. O arranjo deve ter falhas que o façam parecer mais natural e aleatório” [PRUSINSKI, 2012, p. 29, tradução nossa]. Segundo Prusinski [2012], outra peculiaridade sobre wabi-sabi que deve ser levada em consideração é a naturalidade, uma vez que a beleza se encontra em arrumar um jardim que possa alcançar a mesma imagem da natureza intocada por mãos humanas. Apesar de ser um jardim feito pelo homem, o desafio é ser capaz de organizar as flores e as pedras de um modo que não fique artificial, mas sim natural e aleatório. Neste contexto, nosso objetivo neste tópico foi trazer a visão de diversos especialistas em torno da estética japonesa e que se debruçam sobre o estudo do wabi-sabi, que pode ser entendida como valiosa para cultura japonesa e que contém uma definição intraduzível para ser explanada em poucas palavras. Wabi-sabi e sua relação com a chanoyu Em grande parte dos estudos analisados sobre o wabi-sabi, a cerimônia de chá é referida como um exemplo clássico onde o valor estético é aplicado. Muitas pesquisas não aprofundaram como de fato acontece, por isso, a proposta deste trabalho é apresentar como surgiu e como ocorre a relação entre o wabi-sabi e a cerimônia de chá. O conceito de wabi-sabi foi criado antes da cristalização da chanoyu oficializada por Rikyū, mas em um determinado momento, após transformações, o termo estético se tornou pertinente e cabível para se referir ao costume tradicional de se beber chá verde em uma cerimônia especial. Shigeki Iwai [2006] acrescenta em relação a um novo significado de wabi na cerimônia de chá, muitas vezes chamado de “wabichá”, que pode ser compreendido como um modo de vida, tendo como base alguns princípios norteadores do que é necessário fazer e do que não praticar. De acordo com Shin´nichi Hisamatsu [1970], existem sete ideais que permeiam toda a cerimônia de chá: fukinsei [assimetria], kanso [simplicidade], kokō [minimalismo], shizen [naturalidade], yūgen [beleza não óbvia, sútil], datsuzoku [livre da convenção mundana] e seijaku [tranquilidade]. Todos estes conceitos fazem parte da estética japonesa, e também podem ser encontrados em outras artes tradicionais nipônicas. David Chacobo [1097] reflete sobre o conceito estético em uma visão moderna: “O wabi-sabi representa exatamente o oposto dos ideais ocidentais de beleza como algo monumental, espetacular e duradouro. Wabi-sabi é o inconsequente e o oculto, o provisório e o efêmero: coisas tão sutis e evanescentes que são invisíveis ao olhar comum. Uma parte rotineira da cerimônia do chá, tal como existe hoje, dedica atenção formal a todos os objetos incluídos no ritual. Isso significa não apenas prestar atenção aos detalhes das tigelas de chá, da caixa de chá, do bule de água etc., mas também de coisas como o vaso de flores e até o carvão usado para aquecer a água. A beleza pode ser encontrada na feiura. Wabi-sabi é ambivalente em separar beleza de não-beleza ou feiura. A beleza do wabi-sabi é, de certo modo, aceitar o que é considerado feio. A beleza é, portanto, um estado de consciência alterada, um momento extraordinário de poesia e graça” [CHACOBO, 1997, p. 06-07, tradução nossa]. Há uma enorme dificuldade em se resumir tantas ideias e pensamentos que surgem através do conceito estético wabi-sabi. Segundo Chacobo [1997], uma parte da cerimônia de chá é dedicada exclusivamente para a observação e contemplação das peças, cerâmicas e de tudo o que foi usado para a realização da chanoyu. É um momento onde não se valoriza apenas a tigela ou o a concha feita de bambu, mas também o vaso de flor e o carvão que serviu para aquecer a água, esses podem ser considerados feios ou não belos, mas possuem importância tanto quanto os demais objetos. Um lema importante para o wabi-sabi, conforme Chacobo [1997], é “pobreza material, riqueza espiritual”, como se os dois não conseguissem coexistir em um mesmo espaço, a existência de um, acaba com a validade do outro. Um exemplo claro e citado pelo autor é uma sala de chá, uma vez que a primeira coisa que os todos fazem na chegada é se agacharem em sinal de humildade, é comum que a porta de entrada seja pequena, baixa e pensada para essa finalidade. Dentro da sukiya, pensamentos de superioridade não são permitidos em relação às outras pessoas. Dentro das casas de chá, relacionado às características do wabi-sabi, a lama, o papel e o bambu são mais preciosos e caros do que o ouro, a prata e o diamante [CHACOBO, 1997]. É possível compreender que para que o convidado participe plenamente da cerimônia, ele deve se desprender dos valores materiais e mundanos, deixando-os antes de adentrar a casa e iniciar a cerimônia. Essa ideia lembra muito a filosofia zen budista e taoísta, uma vez que também prezam pelo espiritual, ao invés do material, em ver beleza nas pequenas coisas, mesmo que a modernidade sugira o contrário. Sobre a o wabi-sabi nas cerâmicas utilizadas em cerimônias de chá, Waldemiro Sorte-Junior [2018] contribui: “A forma não obedece a padrões simétricos. Destaca-se que não só as cerâmicas, como os demais utensílios empregados nessa cerimônia tradicional, são valorizadas à proporção que demonstram o desgaste natural de longos anos de uso, com consequente alteração na aparência como resultado da oxidação ou danificação do material. Assim, objetos antigos, desgastados e disformes são apreciados não somente em função da admiração por formas assimétricas e irregulares, mas também porque tais atributos dos utensílios mostram-se como evidência que de fato foram utilizados e que sofreram a ação do tempo. Portanto, essa apreciação pela irregularidade pode ser encarada como resultado da influência nas artes japonesas da doutrina da impermanência do Budismo [mujô 無常], que ressalta o aspecto efêmero da vida” [SORTE JUNIOR, 2018, p. 84]. Neste contexto, podemos observar alguns princípios que foram citados por Hisamatsu [1970], como a assimetria, a irregularidade e a perecibilidade. SorteJunior [2018] acrescenta que não apenas as cerâmicas usadas em cerimônias de chá contêm padrões assimétricos, mas todos os utensílios de maneira geral. O belo para a cultura chanoyu está no desgaste das coisas, no oxidado pelo tempo, no velho, rachado, uma possível explicação é que as artes japonesas foram influenciadas pela doutrina de impermanência, originada do Budismo. Valorizar objetos enferrujados, quebrados e velhos significa apreciar a efemeridade da vida e evidenciar que as cerâmicas estão desgastadas porque foram usadas e tiveram alguma utilidade, nada mais natural do que se quebrarem e envelhecerem. De acordo com González [2018], a estética japonesa surgiu através da combinação das duas religiões mais influentes no Japão: o Xintoísmo e o Budismo. Um fato importante é que todos os grandes mestres do chá foram adeptos do zen e isso repercutiu na cerimônia de chá. Tanto o conceito de wabi-sabi quanto a chanoyu foram influenciadas pelas doutrinas xintoístas e budistas, talvez essa seja a razão da combinação desses dois conceitos que ocorreu de maneira natural e peculiar. Considerações finais Este trabalho teve a intenção de apresentar o conceito de wabi-sabi e sua relação com a cerimônia de chá, dois símbolos importantes e tradicionais da cultura e arte japonesa. Apesar de serem desenvolvidos de modo separados no tempo, os dois termos se conectaram em um determinado período na história e até a modernidade podemos observar essa ligação. A estética wabi-sabi na cerimônia de chá pode nos levar a pensar na presença da estética do evanescente, pois dentre tantos princípios e fundamentos que regem esses dois termos, a efemeridade merece bastante destaque. Ser consciente de que temos um tempo limitado para viver, para experimentar o que o mundo pode nos oferecer, nos faz refletir que devemos aproveitar cada momento, valorizando as pequenas coisas e nos desligando de futilidades materiais, para que possamos focar em coisas que irão acrescentar e provocar melhorias em nós mesmos. Portanto, talvez o conceito de perecível se torne tão essencial para que o wabi-sabi e a cerimônia de chá alcancem suas finalidades. Referências Narumi Ito é mestranda do programa de pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela FFLCH-USP e bolsista da FAPESP. Com licenciatura em Letras – Inglês pela Universidade do Estado do Mato Grosso [UNEMAT]. ABE, Naoki. Sadō-sho ni miru sadō kenkyū no gaisetsu-yasu-bu choku Itsuki [Visão Geral dos Estudos da Cerimônia do Chá na Cerimônia do Chá]. In: Nagasaki International University Review, Volume 5, janeiro de 2005, p. 97-107. Disponível em: <https://niu.repo.nii.ac.jp/?action=pages_view_main&active_action=repository_v iew_main_item_detail&item_id=684&item_no=1&page_id=13&block_id=17>. Acesso em 04 de julho de 2020. BARROS, J. D. ’Assunção. Arte moderna e arte japonesa: assimilações da alteridade. Estudos Japoneses, V. 27, p. 77-96, 2007. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ej/article/view/141791>. 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ESTÉTICA E JOGO DE PODER: O ARQUÉTIPO FEMININO EM TAMAMO-NO-MAE Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria Ao ler o conto de Tamamo-no-mae, percebemos a presença de certos padrões em seu comportamento, padrões esses que se remetem aos ideais de feminilidade presentes em diários de damas da corte do período Heian. Tendo como patrono o Imperador Toba, Tamamo se torna uma dama da corte favorecida por ele, e rapidamente se estabelece como a principal dama, com grande influência sobre o imperador e suas decisões. Em sua tese de mestrado, Rebekah Hunter faz uma profunda análise das regras, normas sociais e de beleza que regem as mulheres durante o período Heian no Japão. Através dos diários das damas da corte, a autora relata o jogo político presente nesses escritos e no julgamento dos padrões de beleza estabelecidos por essas mesmas damas. A forte presença do jogo de poder nas ações de Tamamo-no-mae, bem como seu status hierárquico e os relatos de sua extrema beleza e sabedoria, podem ser interpretados em referência ao jogo político e regras sociais vistos nos relatos das damas de corte analisados por Hunter através de seus diários. Sendo assim, investiguemos mais profundamente a presença de um possível arquétipo de feminilidade no conto. Damas da Corte e seus Nikki Durante todo o período feudal, em especial durante a era Heian, as damas de corte tinham sua funcionalidade em agir como intermediárias entre as mulheres de elite a quem serviam e os homens da corte. Portanto, inteligência, sabedoria, etiqueta e bons modos eram uma necessidade como parte de sua educação, bem como conhecimentos em literatura e de textos religiosos. Ainda questionados quanto à sua real utilidade e utilização, os diários dessas damas, conhecidos como nikki, começam a reunir seus relatos e opiniões quanto aos acontecimentos da corte, ao comportamento de atendentes e outras damas, e poesias e descrições de natureza e beleza. Ao mesmo tempo, nesses diários, é possível notar o surgimento de padrões impostos a tais damas: como se vestir, tipos de maquiagem, o que seria vergonhoso ou virtuoso para uma dama da corte. Quase que em oposição, os diários também relatam as opiniões dessas damas quanto à sua apresentação: “[...] o mérito das damas de companhia estava muito ligado ao seu conhecimento de etiqueta social e charme. [...] E, no entanto, os escritos dessas mulheres revelam que também era importante não chamar muita atenção para as próprias habilidades e talentos ou parecer deliberadamente manipuladora de seus patronos [...]” [Hunter, cap.2, 2014]. Portanto, devem ser belas, porém devem agir de forma a reunir patronos, necessários para seu envolvimento na corte. A manipulação desses patronos é algo aprovado e incentivado, não passando dos limites impostos social e politicamente. Sei Shonagon Dentre todas as damas analisadas por Hunter, a mais famosa e referenciada dentro dos estudos japoneses seria Sei Shonagon. Em seu “Livro do Travesseiro” – Makura no Soshi – suas fortes opiniões e inteligência, invejadas, aprovadas e repreendidas por tantas outras damas, apresentam uma visão única quanto ao período, os acontecimentos internos da corte e às vidas de seus integrantes. Sua preocupação com decoro e compostura, com a estética a ser apresentada, com a dicção e comportamento revelam um aspecto político da feminilidade como observado na época. Seus escritos podem ser interpretados como uma construção de um arquétipo de feminilidade para a era Heian. Porém, Hunter faz também uma observação: “Sei Shōnagon parece ter se orgulhado de sua inteligência e sagacidade [...] e não tinha medo de dar voz aos seus próprios interesses.” [Hunter, cap.2, 2014]; algo que descontentava outras damas da corte. Em seus escritos, fica claro que ela se sente superior a outras damas, e mesmo outros homens de alta patente. Sua figura é relativamente contraditória, pois suas críticas a outras damas podem ser facilmente revertidas a si mesma. Uma mulher orgulhosa, inteligente e astuta, que nos aproxima de uma comparação com a figura de Tamamo-no-Mae. Arquétipo de Feminilidade Prosseguimos então para uma formulação mais direta desse possível arquétipo presente nos escritos das damas da corte. Inteligência, sabedoria, beleza, bons modos, decoro, compostura e visão política. Essas características eram esperadas de todas as mulheres que fossem parte da corte, em especial de mulheres da alta aristocracia, como imperatrizes, princesas e filhas de nobres, e de suas damas de companhia, as damas da corte. Em constante oposição e contradição, a visão política era necessária para obter um cargo de maior poder, seja sobre outra figura de poder ou sobre as demais damas da corte. Para tanto, essas mulheres precisavam ser manipulativas, passar a imagem correta para obter o que desejavam. Mas exercendo grande cuidado, ou seriam vistas como ambiciosas em demasia, uma grande falha de caráter. Também parte da construção deste possível arquétipo, os conceitos de visibilidade e não-visibilidade estão presentes nas normas que regem essas damas. A demonstração de poder presente no ato de não-visibilidade não é exclusiva à imperadores e imperatrizes: “[...] o controle da visibilidade estava diretamente ligado não só à riqueza material necessária para manter um espaço separado, mas também aos fundos para sustentar um séquito de atendentes para tornar tal vida possível. Muito mais visíveis, as ações dos atendentes exibiam o status das pessoas à quem atendiam” [Hunter, cap.4, 2014]. Entretanto, damas da corte de mais baixas hierarquias não poderiam se permitir a não-visibilidade constante. Quanto mais alto o nível hierárquico de uma mulher na corte, menos visível ela deve ser. A beleza de uma imperatriz é demonstrada através da beleza de suas damas de companhia e suas vestimentas. Quanto mais alta a qualidade do material escolhido, quanto menos visíveis e mais alto o grau de mistério quanto sua beleza, mais bela e poderosa seria a imperatriz. Sua beleza deve ser vista apenas em vislumbres e situações específicas, de forma controlada, com a finalidade de criar um ar de mistério e poder. Porém, esses conceitos criam uma dicotomia. Uma dama da corte, especificamente, também deve ser vista, ou sua presença deixa de ser importante e, com isso, seu jogo de poder se torna falho. Portanto, conceitos de beleza e estética impecáveis, visibilidade controlada como demonstração de poder, educação, inteligência e sabedoria, mistério e manipulação são a base para um arquétipo de feminilidade baseado nas damas de corte durante o período Heian. Tendo alcançado uma definição mais clara, analisemos a presença deste arquétipo no conto de Tamamo-no-mae. Tamamo-no-Mae Tamamo-no-mae foi, de acordo com o conto presente no Otogi-zoshi, uma dama de corte que serviu ao imperador enclausurado Toba, durante o reinado do imperador Konoe. Sua extrema beleza e inteligência eram incomparáveis, e o conto narra como seu corpo exalava um aroma extremamente agradável e suas vestimentas permaneciam impecáveis durante todo o dia. Tamamo possuía um conhecimento muito além de seus aparentes vinte anos de idade. Era capaz de reproduzir de memória trechos inteiros de anedotas budistas presentes em livros antigos, e respondia corretamente e de forma simples a qualquer pergunta a ela direcionada. Ela era tida como a dama mais bela e inteligente de todo o país. Tão bela que ganhou o favor do imperador Toba, que a mantinha ao seu lado em todos os momentos, e a estimava como se fosse sua imperatriz. Seu nome vem do ocorrido durante uma apresentação de música e poesia: “O imperador a levou junto e eles se sentaram por trás das cortinas de bambu. Naquele exato momento, um vento forte soprou, apagando a chama das lanternas, e a sala mergulhou na escuridão. No entanto, em um instante, parecia haver luz emanando do corpo de Tamamo-no-mae. Surpresos, os honrados ministros olharam em volta e perceberam que a luz se derramava de dentro das cortinas de bambu que a cercavam. A luz era como o sol da manhã.” [Otogizoshi]. Portanto, deu-se seu nome como Tamamo-no-mae, a dama das jóias - que também se refere à origem chinesa do conto - por seu brilho. Entretanto, o imperador adoeceu, e rumores começaram a surgir quanto ao motivo. O monge Abe-no-Yasunari fora contactado, e previu que algo de grande importância ocorreria ao imperador, aconselhando-o a rezar para ser poupado. Entretanto, nada parecia resolver ou ajudar, e Tamamo tomou para si as obrigações de cuidar do imperador. Ao ser novamente chamado, Yasunari hesitou antes de anunciar que o mal que afetara o imperador era Tamamo-no-mae, revelando então sua natureza como uma kitsune. Ao ser ordenada a fazer oferendas aos deuses, por achar essa uma tarefa desprezível, teve de ser persuadida a realizá-la. Ao se cansar de tal farsa, Tamamo se vestiu com suas melhores roupas e, durante a cerimônia, desapareceu, provando a todos que Yasunari estava correto em suas afirmações. O fim do conto apresenta uma grande batalha, seguida pela morte de Tamamo-nomae, porém, o objetivo desta análise está alcançado. A partir dos relatos apresentados pelos diários das damas da corte, podemos perceber todas as semelhanças entre Tamamo e tantas outras, sendo ela também uma dama da corte. Mas como encaixar o arquétipo de feminilidade neste conto? Jogos de Poder Tamamo-no-mae é um conto de excessos. Sua beleza, inteligência, sabedoria e ardilosidade, todos esses traços em excesso, contam a história dos exageros aos quais as damas da corte devem exercer um firme controle. A beleza excessiva traz a inveja de outras damas, imperatrizes, princesas e mesmo outros homens, por inveja também ao poder que essa beleza demonstra. O mesmo é válido para todos os outros traços, e o fato de Tamamo não demonstrar grande humildade, nos remete ao que Hunter afirma sobre Sei Shonagon: seu orgulho quanto às suas qualidades. A manipulação exercida sobre os patronos não deve exceder o aceitável pela sociedade de corte do Japão no período Heian. Portanto, certos traços, como orgulho, astúcia e lida política devem ser medidos e nunca ultrapassados, nunca se colocando acima de seu lugar na hierarquia. O texto Tsuma Kagami, Mirror for Woman, de Muju Ichien, afirma que todas as mulheres possuem sete principais pecados, segundo os ensinamentos budistas chineses: “Em primeiro lugar, [...] elas não têm escrúpulos em despertar o desejo sexual nos homens. Em segundo lugar, sua disposição ciumenta nunca é ociosa. [...] Em terceiro lugar [...] uma disposição propensa à enganação [...] Em quarto lugar, negligenciando suas práticas religiosas [...] elas não pensam em nada além de sua aparência e desejam as atenções sensuais de outros. [...] Em quinto lugar, [...] muitas vezes elas levam o mal aos outros sem temer que estejam acumulando pecados para si mesmas. Em sexto lugar, queimando-se no fogo dos desejos, elas não têm vergonha [...] Em sétimo lugar, seus corpos estão para sempre imundos, com frequentes descargas menstruais.” [Muju Ichien, 1980]. Muitos desses pecados se encaixam na narrativa sobre Tamamo-no-mae, e servem como exemplos nos diários das damas da corte. Entretanto, ao mesmo tempo que esses ‘pecados’ são algo a se manter distantes, eles são intrínsecos à sociedade de corte. Inveja, intriga e manipulação, além de presentes e pontos principais de diversos acontecimentos históricos, são também comportamentos levemente autorizados e incentivados. A existência dos jogos de poder depende da existência desses comportamentos, que, mesmo vistos como exclusivamente inerentes às mulheres, estão presentes em todos que fazem parte da corte. Portanto, as damas de corte devem ser levemente manipuladoras, inteligentes, astutas, bem letradas e belas, para ganhar o favor de um patrono. A inveja de outras damas - e de outros patronos - incentiva os jogos de poder e alimenta a fome de poder de certas figuras. O excesso, entretanto, é a falha final de qualquer personagem, por esta ótica. Performances de Feminilidade A partir de todas as análises feitas até este ponto, percebemos os diferentes tipos de performance de feminilidade retratadas durante o período Heian. Em especial: “as implicações que essa estética tem com respeito à avaliação da posição das mulheres na sociedade.” [Hunter, introdução, 2014]. Os dois principais tipos seriam, com ênfase na intenção deste texto, a mulher correta e a mulher raposa. O tipo de performance exigida para ser considerada uma mulher correta, enquanto dama da corte, seria o exercício do controle. Atos comedidos, visibilidade controlada, demonstrações de qualidades de forma não excessiva, seguir limites de acordo com a hierarquia e posição social. Ela deve ser bela, inteligente, possuir astúcia para situações políticas, seguir padrões estéticos de acordo com sua função e exercer autocontrole. Já a mulher raposa, identificada em alguns textos e anedotas como kitsune-onna ou oni-onna - mulher-demônio - não se preocupa com os limites impostos. Ela é exigente, ambiciosa, orgulhosa de si mesma e de suas habilidades, sua manipulação ultrapassa os limites sociais, é mentirosa e possessiva. E, muitas vezes, como no conto de Tamamo-no-mae, sequer é humana, uma kitsune disfarçada de dama, sedenta por poder. Conclusão Anteriormente, em um outro artigo, cito a dualidade do ser raposa, sua representação e sua dualidade. Divino e demoníaco, masculino e feminino, real e fantástico, em diferentes culturas. Na cultura japonesa, a predominância da representação da raposa é feminina: “[...] é um ser emocional de profunda sabedoria, porém igualmente astuta. Amoral por não compreender a noção de moral humana, é um ser dúbio, transitando entre o bem e o mal, entre crueldade, travessura e piedade, em comportamentos considerados então femininos.” [Sâmsara, pg. 409413, 2017]. Uma distribuição mais equilibrada de contos em que ela é demoníaca ou divina, assim como uma terceira vertente em que ela é ambas as coisas ou nenhuma delas, apenas um agente do caos. A associação da imagem da kitsune com a figura feminina evidencia a interpretação e a leitura de uma parte da sociedade por outra. O arquétipo de feminilidade não estaria completo sem seus contrapontos, sem certas contradições e exageros, sem a dualidade também do ser feminino. Ao completá-lo, conseguimos encaixá-lo sem grandes problemas no conto de Tamamo-no-mae, bem como, imagino, em diversos outros. Talvez seja possível, mergulhando mais profundamente na análise da personagem histórica, até mesmo comparar a própria Sei Shonagon a um arquétipo de kitsune. Mas, neste caso, utilizando-a como a face principal das damas de corte do período Heian, as semelhanças com Tamamo-no-mae são bem destacadas. Ambas são mulheres fortes, orgulhosas de seus feitos e suas habilidades. Em fiel dualidade, Sei Shonagon é o exemplo a ser seguido, apesar de seu leve flerte com os limites, de acordo com as outras damas da corte, enquanto Tamamo-no-mae é o exemplo a ser evitado, um vislumbre do que acontece com e como é vista socialmente uma dama que ultrapassa seu posto dentro da hierarquia da corte japonesa. Por fim, como muito bem descrito no conto, Tamamo-no-mae aparenta começar sua jornada na escala hierárquica da corte do imperador recluso Toba da mesma forma que Sei Shonagon e tantas outras damas. Entretanto, enquanto algumas se esforçam para se encaixar perfeitamente dentro do arquétipo de feminilidade criado por seus próprios diários, Tamamo se utiliza do arquétipo e o transforma, criando uma outra interpretação para a forma como certas mulheres são julgadas por seus atos e excessos. Nem todas as mulheres, sejam elas damas da corte, damas de companhia, princesas ou imperatrizes, se encaixam perfeitamente dentro das expectativas da corte e da sociedade. O arquétipo aqui abordado representa a dualidade presente em todas essas mulheres. Afinal, definir limites de comportamento em uma sociedade patriarcal é delimitar a própria existência feminina em seu meio. Referências Raphaella Ânanda Sâmsara é graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Fonte: Tamamo-no-mae. In: Enjoying Otogi Zoshi with the help of synopsis and illustrations. Online. Disponível em: <https://rmda.kulib.kyotou.ac.jp/en/item/rb00013524/explanation/otogi_09>. Acesso em: 19 de Julho de 2021. HUNTER, Rebekah A. Aesthetics of womanhood in Heian Japan. University of Oregon, 2014. KINCAID, Christopher. Come and sleep. The Folklore of the Japanese fox. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2016. MUJU, Ichien. Mirror for Woman. Tsuma Kagami. In: Monumenta Nipponica, Spring, 1980, Vol. 35, No. 1 [Spring, 1980], pp. 51-75. Tokyo: Sophia University. NOZAKI, Kiyoshi [ed.]. Kitsune. Japan's fox of mystery, romance & humor. Tokyo: Hokuseido Press, 1961. SÂMSARA, Raphaella Ânanda. Representações da raposa na literatura maravilhosa medieval: uma comparação entre o imaginário europeu e o japonês. In: Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017. O PAPEL DA ESCRITA NO MÉTODO DE EVANGELIZAÇÃO JESUÍTA NA CHINA Renan Morim Pastor Durante o século XVI, os contatos entre europeus e chineses se tornam mais frequentes, por meio de comerciantes portugueses que atingiram o território marítimo chinês procurando oportunidades de negócios. A concessão, por parte da China, do território de Macau em 1557 para que fosse usado como um porto permanente pelos lusitanos marca também a tentativa de penetração das missões religiosas no Império chinês, na década de 1560 [DIFFIE, WINIUS, 1977, pp.388391]. Durante o período, franciscanos, dominicanos e jesuítas tentaram obter licença para divulgar sua fé no império da China. Dentre as ordens religiosas, os jesuítas foram os primeiros a conseguirem tal permissão, por intermédio das ações do Visitador Alessandro Valignano. O jesuíta concluiu que a penetração na China só seria possível a partir de um estudo da língua e da cultura chinesa, elaborando uma estratégia de acomodação cultural que permitiu aos jesuítas se comunicarem com os chineses em um nível muito mais elevado que os “rudes” portugueses, que eram considerados bárbaros pelos chineses. Os jesuítas levaram este processo de acomodação para além do estudo da língua e da cultura, quando decidiram adotar as vestimentas e a aparência dos monges budistas. Os missionários procuravam uma forma de passar sua mensagem religiosa em termos que os chineses pudessem entender com mais facilidade, a partir de noções e conceitos teológicos que já fossem conhecidas por eles. Embora os jesuítas tenham impressionado os chineses o suficiente para conseguir residência, depois de uma década, Matteo Ricci decide mudar o método de acomodação cultural para afastar a imagem dos jesuítas do budismo e associa-la aos letrados chineses. O argumento de Ricci para esta proposta de mudança era de que o budismo chinês, embora possuísse muitos adeptos nas classes mais baixas da população, era completamente desprezado pelos mandarins [funcionários de Estado chineses, a maioria deles também letrados e seguidores de academias de pensamento confuciano] [BROCKEY, 2007, p.43]. Uma das características das escolas de pensamento letrado [ou ru, como eram conhecidos na China e mais tarde generalizado como confucionismo pelo mundo Ocidental] era a sua relação com a leitura e a escrita. Toda doutrina de Confúcio e outros filósofos estavam presentes em livros, que eram por sua vez comentados por outros filósofos ao longo dos séculos em suas próprias obras, criando assim uma cultura de comentários. Neste contexto os livros que os missionários passariam a publicar na China acabaram por se tornar uma importante ferramenta no método de evangelização jesuíta. Os missionários produziram uma série de livros e traduções em chinês de obras europeias e produções inéditas, com o intuito de atrair a atenção dos letrados chineses e apresentar-lhes a cultura, ciência, filosofia e a religião europeia. Os jesuítas também produziram várias obras destinadas ao público europeu, entre traduções e versões dos clássicos de Confúcio, como relatórios de viagens publicados em forma de livros que descreviam as características, curiosidades e mistérios da China para a Europa. Os livros jesuítas também foram um importante mecanismo de defesa da missão e exaltação de seus métodos de acomodação perante a Europa, principalmente no que se relacionava à adoção das vestes e do estilo de vida dos letrados chineses pelos jesuítas, um passo defendido por Matteo Ricci e seus companheiros através de sua interpretação da filosofia confuciana, que na opinião do missionário seria complementar ao cristianismo, principalmente no que concerne seus preceitos morais. Divulgar o pensamento de Confúcio na Europa foi uma forma de demonstrar isso e tentar calar as críticas que os jesuítas sofriam dentro dos círculos religiosos. Nosso objetivo aqui será destacar o papel dos livros e textos escritos na missão jesuíta na China, seja na forma de obras originais ou de traduções e adaptações linguísticas. Iremos abordar a produção textual jesuíta na China e seus temas, assim como destacar algumas obras importantes produzidas pelos missionários, tendo como alvo tanto o público chinês, quanto o europeu. A produção textual jesuíta na China e seus temas Durante o período da missão jesuíta na China, os jesuítas escreveram e publicaram cerca de 450 livros em chinês e um número desconhecido de obras derivadas do chinês para uma língua europeia [normalmente o latim, mas também português, espanhol, italiano e francês]. Deste número de 450, 120 tinham como tema a ciência europeia, na forma de matemática, astronomia, tecnologia e geografia, muito utilizada para demonstrar os conhecimentos e a erudição dos missionários, atraindo a curiosidade dos chineses para depois, em futuras conversas, relacionar a ciência com a religião cristã. Os outros 330 livros tinham como foco a religião e a filosofia [BURKE, HSIA, 2007, pp.39-40]. Ainda trabalhando com este número total de 450, cerca de 50 destes eram traduções no sentido literal da palavra, onde os jesuítas copiavam e adaptavam linguisticamente os livros europeus sem muitas modificações, trabalhando com os caracteres chineses que fossem mais próximos das palavras originais. Todavia, por vezes os missionários traduziam os livros de uma forma mais adaptada, parafraseando, compilando, sumarizando e até mesmo modificando o sentido das frases, para que pudessem cativar, ou por vezes até mesmo possibilitar o entendimento, de seu leitor chinês. O mesmo também foi feito no processo de tradução do chinês para o latim, visando um público europeu. A maior parte dos temas abordados nos livros jesuítas tinham a ver com religião, humanismo e ciências. Os textos relacionados à religião incluíam rezas, textos litúrgicos [como missas], trabalhos teológicos, hagiografias, catecismos e textos devocionais. Os livros científicos tinham como assuntos a astronomia, geometria, aritmética, armas, anatomia, ótica e até mesmo falcoaria e musicologia. Por fim, os textos humanistas tinham como tema os clássicos da filosofia grega e romana. [BURKE, HSIA, 2007, pp.39-42]. Começando pelos textos de cunho religioso, alguns deles eram traduções utilizadas pelos missionários durante a manutenção de suas obrigações religiosas para com os cristãos chineses, como o Missale romanum, de 1670 e o Breviarium romanum de 1674, ambos traduzidos por Ludovico Buglio. Um dos motivos destes livros serem traduzidos para o chinês repousava no fato de que alguns missionários acreditavam que os chineses tinham muita dificuldade em aprender o latim e que a existência de textos na língua nativa diminuía o tempo e melhorava a qualidade da conversão. Um dos defensores desta ideia foi o próprio Buglio [BROCKEY, 2007, pp. 145146]. Um outro tópico importante nas obras religiosas publicadas pelos jesuítas na China eram as hagiografias. Durante a missão da China, os jesuítas produziam textos que derivavam diretamente dos originais europeus, contando as vidas de importantes figuras como a Virgem Maria e José [que foi escolhido como Santo Patrono da China], Francisco de Borja e Francisco Xavier [BURKE, HSIA, 2007, p.41]. Com relação aos textos científicos, as traduções eram o tipo de trabalho mais comum. Os temas mais explorados eram astronomia e matemática, que receberam um foco maior de atenção na primeira geração das missões, da década de 1580 até 1620. Algumas das mais importantes traduções feitas no campo da ciência pelos jesuítas na China incluía o Euclides elementorum libri XV, Epitome arithmeticae practicae e o Geometria practica, todos do matemático Cristovão Clávio, traduzidos por Matteo Ricci com a ajuda dos chineses conversos Xu Guangqi e Li Zizhao [FONTANA, 2011, pp.213-214]. Além das obras de Clávio, foram traduzidos outros importantes tratados matemáticos da época, como o Le operazioni del compasso geometrico e militare, de Galileu Galilei por Giacomo Rho e Adam Schall e o Trigonometriae de Bartholomaeus Pitiscus por Johan Schreck. Além das traduções, os missionários também produziram obras científicas próprias, a maioria delas manuais e compilações para ensinar os chineses a matemática e astronomia europeia. Um exemplo deste tipo de livro foi o Ts’e tien yueh shuo [Teoria Abreviada Sobre as Medidas do Céu], escrito por Schreck em 1628, que tratava sobre astronomia, posicionamento orbital e instruções para o uso do telescópio [LACH, 1993, p.189]. Dos textos de cunho filosófico, as traduções jesuítas envolveram livros que eram parte do currículo humanista do Ratio Studiorum, o programa de estudos da Companhia de Jesus, que eram familiares a todos os jesuítas. O filósofo mais trabalhado pelos jesuítas na China foi Aristóteles, que teve traduzidos os textos: De coelo, Universa dialectica Aristotelis, Isagoge Porphrii, Categoriae e Analytica priora por Francisco Furtado, Alfonso Vagnone, Giulio Aleni e Francesco Sambiasi. Além destes textos na integra, o time de jesuítas também traduziu parcialmente o De coelo et mundo, Meteorologica, De anima, Parva naturalia e Ethica Nicomachea [BURKE, HSIA, 2007, p.43]. Matteo Ricci também foi responsável por algumas compilações adaptadas, como o seu famoso Jiaoyun lun [Da Amizade], o primeiro livro de Ricci escrito em chinês. A obra era composta por citações de vários autores clássicos que escreviam sobre a natureza da amizade, como Horácio, Cícero, Santo Agostinho, Aristóteles, Marcial, Erasmo de Roterdã, Sêneca e outros, que incluíam reflexões sobre afeto, afeição, solidariedade e compreensão. A compilação era baseada na obra Sententiae et exempla de Andrea Eborensis [SPENCE, 1989, p.157]. Na China Ming, a amizade era uma das relações mais valorizadas entre os homens, e o livro de Ricci fez um sucesso considerável, alavancando ainda mais a popularidade dos jesuítas. O exemplo mais importante neste tipo de obra, escrita pelos jesuítas com seu público chinês em mente foi o Tianzhu Shiyi [Verdadeiro Significado do Lorde do Paraíso], a Magnum Opus de Ricci, produto de dez anos de estudos do missionário da língua chinesa e dos livros de Confúcio, além das observações e reflexões de Ricci sobre a cultura letrada chinesa. O livro foi a principal ferramenta de evangelização de Ricci, proposta como uma obra de estudo para não-cristãos e feita sob os conformes da acomodação cultural proposta pelo Visitador Valignano. O Tianzhu Shiyi começou a ser escrito durante os primeiros anos da década de 1590 e finalmente impresso em 1603. O livro também tinha o objetivo de substituir o primeiro catecismo produzido na China, por Michele Ruggieri, que se encontrava ultrapassado na época, pois recorria a terminologias budistas para explicar conceitos cristãos, não continha praticamente nenhuma menção sobre Confúcio e sua filosofia e ainda se referia aos jesuítas como “bonzos” [nome pelo qual eram chamados os monges budistas] do Oeste. Embora o Tianzhu Shiyi seja considerado como um catecismo, sua estrutura textual era de um diálogo retórico, uma disputa argumentativa entre duas pessoas. Este tipo de recurso retórico era comum na China desde o período dos Reinos Combatentes e era conhecido como “persuasão” [shui] e foi a parte principal da formação da oratória chinesa clássica [JENSEN, 1997, p.97]. Na Europa, os jesuítas tinham familiaridade como este modelo de texto retórico e autores como Horácio, Virgílio, Cícero, Aristóteles e outros eram parte do currículo humanista dos colégios da Companhia de Jesus. Dessa forma, Ricci conseguiu encontrar um ponto em comum entre as culturas chinesa e europeia para basear sua obra. O livro de Ricci tinha como objetivo principal o de convencer seu leitor chinês de que o cristianismo seria a única religião que complementaria os ensinamentos de Confúcio, antes que sua filosofia fosse contaminada pela chegada do budismo na China. Para chegar a este objetivo, Ricci centralizou o foco de seus argumentos em características que percebeu semelhantes entre a filosofia confuciana e o cristianismo, utilizando diversas citações dos clássicos chineses para demonstrar que muitos dos temas presentes nestes clássicos – como a fé em um único deus, a noção de recompensas e punições por parte do Paraíso, a existência da alma imortal – não eram novidade na China, pois teriam sido mencionados por todos os sábios antigos, principalmente por Confúcio, porém, a influência do budismo na sociedade chinesa teria feito com que essas práticas fossem modificadas ou esquecidas. Dessa forma, o cristianismo seria a chave para uma restauração dos ensinamentos de Confúcio [RULE, 1972, p.139]. Os escritos jesuítas para a Europa Com relação às cartas, relatórios e livros escritos na China e enviados para a Europa, suas finalidades eram diversas. Obviamente a forma mais comum de comunicação entre os jesuítas e seus superiores eram as cartas. Em algumas delas, os missionários contavam a sua jornada pelos territórios da China, comentando sobre a cultura, religião, geografia, flora e fauna locais. Este tipo de carta costumava ser muito informativa e por vezes eram publicadas em forma de livros, com o objetivo não só de demonstrar o trabalho evangelizador da Companhia de Jesus, mas também de incentivar jovens missionários com a promessa de conhecer tais lugares exóticos enquanto faziam seu trabalho divino. Dentro do âmbito privado, haviam correspondências endereçadas aos superiores jesuítas, mas diferente das primeiras, estas eram seladas e continham informações que não deveriam ser divulgadas para o público. Nestas cartas, os jesuítas contavam das dificuldades que enfrentavam em território estrangeiro, os problemas financeiros que atrapalhavam seus planos e até mesmo as reclamações sobre outros jesuítas ou referentes as autoridades portuguesas em Macau. Estas comunicações mais delicadas eram chamadas de hijuelas, e por vezes eram enviados junto de outros relatórios e cartas mais amenas, mas em folha separada e selada, para que fosse lida apenas pelo Superior a qual fosse endereçada [EISENBERG, 2000, p.51]. Haviam também as cartas edificantes, embora seu conteúdo e formatação lembrasse mais um relatório. Estas cartas tinham como foco as conquistas espirituais dos jesuítas, descrevendo o trabalho missionário de maneira favorável e virtuosa, empregando apelos emocionais ligados a necessidade de terem mais missionários em campo para ajudar as almas gentias, os milagres divinos que aconteciam na China, como as curas, exorcismos e conversões em campo e até mesmo o apelo emocional do martírio, onde os missionários contavam sobre as viagens marítimas e os perigos que enfrentavam para efetuar seu trabalho. As cartas edificantes eram lidas nos colégios jesuítas, durante o jantar, para a alegria daqueles que ainda estavam na Europa, ao ouvir notícias sobre seus amigos ao redor do mundo [EISENBERG, 2000, pp.540-55]. Existem muitos exemplos de coletâneas de cartas e relatórios que acabaram se transformando em longos livros, editados em narrativas completas e informativas e normalmente dedicados à realeza e a nobreza europeia e depois impressos em versões mais baratas, de circulação popular. Tais obras tinham o intuito de informar seu leitor sobre tudo que fosse possível sobre a China, além de contar a história da missão. Um dos mais famosos exemplos nesse caso foi a adaptação dos diários de Matteo Ricci por Nicolas Trigault, denominada de Chrstiana Expeditione apud Sinas, em 1621. A obra recebeu traduções em diversas línguas após a sua impressão, circulando na Europa em português, espanhol e inglês, contendo uma narrativa completa do período de missão de Ricci na China e das informações sobre o Império Ming. Também é preciso destacar, no âmbito destas obras, o Confúcio Sinarum Philosophus, obra editada por Phillipe Couplet, com o auxílio de Prospero Intorcetta, Christian Herdtrich e François de Rougemont, que consistia num compêndio contendo um misto de tradução e interpretação das obras do filósofo em latim. Importante destacar que Couplet e os outros jesuítas não traduziram simplesmente o texto original de Confúcio do chinês para o latim, mas escreveram eles mesmos a sua própria interpretação da obra, mantendo muito do corpo original do texto e acrescentando ou retirando palavras, sentenças ou notas de rodapé para melhor adequar os textos à sua própria interpretação da filosofia confuciana e de seu papel no método de evangelização escolhido pelos missionários. Ao examinarmos essa forma de “tradução” feita pelos jesuítas, é possível relaciona-la com ao termo espanhol “trasladar” que pode significar “interpretar” algum texto de uma língua para a outra e em outras vezes significa copiar, cortar, acrescentar, unir, reforçar ou enfraquecer o discurso original, além da possibilidade de mudanças nas metáforas e frases que não combinavam com o latim [CHARTIER, 2014, p.179]. No caso dos missionários, essas decisões também eram necessárias, não apenas para se adequar Confúcio na visão que os jesuítas tinham dele, mas para traduzir certos termos e estruturas culturais que seriam incompreensíveis para um europeu cristão. É por isso que vemos menções à vários personagens da literatura europeia no Confucius Sinarum Philosophus, como Dante e Achates, além de uma série de termos cristãos e bíblicos em momentos chave. Conclusão Ao passarem dos portões do Império, em sua busca por um estabelecimento na capital Pequim, os jesuítas se viram em uma sociedade com muitas ressalvas em relação aos estrangeiros e onde não se encontravam em uma posição social alta ou relevante. Para alcançar os chineses e ter alguma chance de êxito no processo de conversões, os jesuítas precisaram desenvolver um processo de acomodação à sociedade chinesa, mudando suas vestes, hábitos alimentares e aprendendo a língua nativa. Após anos de estudos e graças às ações principalmente de Valignano e Ricci, o método de acomodação adicionou uma outra característica importante para seu funcionamento: de passar a mensagem cristã a partir de termos familiares aos letrados chineses. Neste contexto, os livros tornaram-se uma importante ferramenta na abordagem evangelizadora dos jesuítas. Naquela conjuntura, os jesuítas passaram então a produzir uma enorme quantidade de livros, sobre os mais diversos assuntos com o intuito de cativar a atenção dos chineses, tentando provar o nível avançado de cultura europeia. A escrita jesuíta tinha o papel de um intermediário, ligando a cultura europeia à chinesa e apresentando aos curiosos mandarins um novo mundo e principalmente, aproximando o confucionismo do cristianismo, como uma ponte. Mas essa ponte também ia pelo caminho contrário, e uma impressionante quantidade de livros e cartas foram escritas em latim, português, espanhol e italiano contando tudo sobre a China e sua cultura. Graças ao tipo de abordagem jesuíta, os livros exerceram um papel fundamental em promover o encontro entre dois mundos diferentes, trazendo os mistérios, costumes e progressos da cristandade na China para o curioso leitor europeu e mostrando as maravilhas científicas e o código moral europeu para os nobres letrados, e é possível analisar, por meio das palavras escritas pelos jesuítas, o encontro entre duas culturas tão distantes e com sociedades tão diferentes, de modo que podemos enxergar a produção literária jesuíta como uma ponte entre dois mundos. Referências Renan Morim Pastor, doutorando em história - UFRRJ. Bolsista CAPES E-mail: renanp8989@gmail.com BROCKEY, Liam Matthew. Journey to the East: The Jesuit Mission to China, 1579-1724. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2007. BURKE, Peter; HSIA, Ronnie Po-chia. Cultural Translation in Early Modern Europe. Cambridge, Cambridge University Press, 2007. CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Ed.UNESP, 2014. DIFFIE, Bailey.; WINIUS, George D. Foundations of the Portuguese Empire 1415-1580. Minnesota: University of Minessota Press, 1977. EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno: Encontros Culturais, Aventuras Teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. FONTANA, Michela. Matteo Ricci: A Jesuit in the Ming Court. Maryland. Laham: Rowan & Littlefield Publishers, Inc., 2011. JENSEN, Lionel M. Manufacturing Confucianism: Chinese Traditions & Universal Civilization. Durham: Duke University Press, 1997. LACH, Donald F. Asia in the Making of Europe, Volume III: A Century of Advance. Book Two. Chicago/London. University of Chicago Press. 1993. RULE, Paul A. K’ung Tzu or Confucius? The Jesuit Interpretation of Confucionism. 1972. 498f. Tese [Doutorado em Filosofia] Australian National University, Camberra. 1972. SPENCE, Jonathan D. O palácio da memória de Matteo Ricci. A história de uma viagem: Da Europa da Contra-Reforma à China da Dinastia Ming. Trad.port. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. A FOTOGRAFIA COMO MEDIADORA DA MODERNIDADE JAPONESA [1860-1890] Rogério Akiti Dezem Nas últimas décadas do século XIX, o que denominamos comumente de “Ocidente” interpretou o Japão através de um caleidoscópio no qual se fundiam o encanto da recriação literária, a admiração estética do Japonismo e olhares cheios de surpresa, admiração e temor acerca do vertiginoso processo de modernização japonês. Produto material desses olhares sobre o “outro” asiático podem ser notados em imagens [iconografia e fotografia] e nos discursos positivos e outros nem tanto, acerca do Japão e dos seus “pequenos habitantes”. Neste contexto histórico de rápidas transformações [1860-1890], a literatura de viagem e a fotografia irão se justapor, e às vezes se fundir, alimentando o ávido imaginário europeu pelo diferente, misterioso e “exótico” Japão. Foi a partir dos retratos de Yokohama [jap.Yokohama shashin], fotografias e séries fotográficas temáticas encadernadas em belos álbuns, produzidos pelos pioneiros estúdios estrangeiros na crescente cidade portuária homônima e da literatura de viagem, produzida por escritores viajantes a partir de 1860, que as bases do que denomino “desejo do olhar” sobre o Japão, seus habitantes e costumes se conformaram. A aproximação dessas diferentes formas de narrativa contribuiu para consolidação de um imaginário sobre o país perante a Europa e América do Norte, ao mesmo tempo em que uma nova intelligentsia japonesa se apropriava deste discurso literário-imagético para ora reforçar a própria imagem divulgada a partir dos olhares não-japoneses, ora negá-la, influenciando a produção literária e imagética autóctone para consolidar um ideal de nação moderna não só perante o olhar estrangeiro, mas doméstico também. Pode-se afirmar que haviam receios por parte do governo Meiji [1868-1912] de que a jovem nação japonesa fosse retratada pelos europeus e norte-americanos apenas por seus elementos tradicionais [i.e. “não modernos”], muitas vezes vistos de forma estereotipada e que sedimentavam um imaginário sobre o país na direção do rol dos exotismos asiáticos da segunda metade do século 19. Desse modo a aposta das autoridades japonesas em participar ativamente das grandes Exposições Mundiais, verdadeiras vitrines do progresso na época, foi uma estratégia que se mostrou acertada e cumpriu os objetivos do governo japonês a partir de 1873 [Expo de Viena] que era o de apresentar “a new Japan to the world at that exposition, more vigorously than at previous expositions” [National Diet Library, 2011]. A jovem nação japonesa desejava ser vista pelo público ocidental a partir de uma perspectiva que associasse os universos do tradicional [artes, artesanato, arquitetura], admirado pelos estrangeiros e do moderno [industrialização, tecnologia], perseguido pelo governo japonês. Sob essa perspectiva o uso da fotografia pode ser visto como um dos principais instrumentos modernos – como a ferrovia, o telégrafo entre outros - de mediação da modernidade japonesa perante ao “outro” não-japonês. Isso pode ser percebido na Exposição Mundial de 1888 [Expo de Barcelona], onde pela primeira vez o Japão apresentou também “uma coleção de fotografias que possibilitavam os visitantes se aproximar da realidade do Japão moderno, que naquele momento desenvolvia novas indústrias e investia em infraestrutura e construções modernas”. [Bru, 2016, p. 48] Dessa maneira veremos que o aparato fotográfico passa a dialogar também com as xilogravuras japonesas [esteticamente influenciadas pelo olhar fin d’sieclé ocidental] enfatizavam aspectos positivos do processo de modernização pari passu ao “desejo do olhar” britânico, francês e norte-americano, ávidos por consumir as impressões, muitas vezes estereotipadas da maior “descoberta” ocidental de meados do século 19: o Japão. Essa estratégia que teve na fotografia um dos seus condutores pode ser definida como representação de uma “modernidade exibitória” [ingl. exhibitory modernity] [Shao, 2004. pp.5-6] levada a cabo pelo governo japonês. Nesse jogo de imagens, a tentativa de afirmação japonesa perante as potências ocidentais teve como um dos pontos altos a publicação em Tóquio [ca.1910] do álbum fotográfico Sights and Scenes in Fair Japan pelo Imperial Government Railways [jap.Tetsudôin]. Com 50 fotografias [com legendas em inglês] produzidas pelo fotógrafo japonês Ogawa Kazumasa [1860-1929] e cuidadosamente coloridas à mão. Podemos considerar o álbum como a epítome de uma maneira de propaganda imagética japonesa associando do Japão “novo”/”velho”. Um esplendido cartão de visita aos olhos de viajantes, turistas e diplomatas estrangeiros. No entanto no início do século 20 com a vitória do Japão na Guerra Russo-Japonesa [1904-05], conflito fartamente documentado na época em artigos, livros e imagens, os olhares sobre o Japão passam a ser filtrados a partir de novos elementos, como o militarismo e o nacionalismo por exemplo, fazendo com que a semiótica sobre o Japão se tornasse cada vez mais complexa. Portanto, neste contexto de transitoriedade histórica, enquanto as potências ocidentais da época tomavam a frente na construção e disseminação de discursos literários e imagéticos sobre o Japão e os seus habitantes, a elite Meiji fazia o mesmo, produzindo discursos sobre o país e sobre a Europa. Verdadeiro jogo de espelhos, no qual o Japão passava a ser um grande espelho baço, onde europeus e norte-americanos buscavam definir/classificar o “outro” japonês, mas acabando na realidade, por encontrar o próprio reflexo. [Dezem, 2014, p. 202] Em pouco mais de trinta anos [1860-1890], esse encontro proporcionou ao “Ocidente” uma experiência incômoda, levando ao limite o seu modo de pensar e ver o Japão. Limitação configurada na busca de uma realidade japonesa imaginada/desejada que deixava de existir ou que, possivelmente, nunca existiu. Levantamos três hipóteses para demonstrar a contribuição essencial da fotografia como mediadora entre o tradicional e o moderno: 1] como um fator de afirmação da modernidade japonesa perante as potências ocidentais da época; 2] na construção e alimentação de um “desejo do olhar” sobre o Japão; 3] como fator de domesticação e diferenciação do Japão/japoneses perante ao “outro” asiático. Neste paper, por se tratar de uma pesquisa ainda em início e pela limitação da apresentação, serão exploradas apenas as hipóteses 1 e 2. A fotografia como instrumento da modernidade Podemos afirmar que a fotografia moderna chegou ao Japão em 1848 [via Ueno Shunojo um comerciante de Nagasaki], acontecimento muito mais simbólico do que prático, pois foram necessários alguns anos para que se dominasse a técnica da daguerreotipia e se produzisse a primeira “fotografia” no Japão: o retrato do daymio Shimazu Nariakira de Satsuma feita por Ichiki Shiro [1828-1903] e seus assistentes em 1857. [Bennett, 2006, p.35] Na mesma época os primeiros daguerreótipos com imagens do Japão produzidos pelo fotógrafo militar Eliphalet M. Brown Jr.[18161886], presente nas expedições do Comodoro Mathew C. Perry ao Japão [1853-54] eram divulgados nos Estados Unidos [Hight, 2011, p.54]. No âmbito dos conceitos e palavras importadas da Europa que deveriam ser adaptadas ou vertidas à língua japonesa, se encontrava a própria definição do termo “fotografia”, técnica ainda pouquíssimo difundida no arquipélago na década de 1850. O termo que se tornou recorrente até os dias atuais para representar essa nova técnica foi shashin a partir da combinação de dois ideogramas: 写 “reproduzir” 真 “verdade”. Termo de origem chinesa que já era utilizado para denominar a escola chinesa de pintura [retratos] [Iizawa, 1995, p. 38-39] No entanto, em seus primeiros anos, essa técnica de “escrever com a luz” foi descrita como um “espelho de imprimir a sombra” [jap. inei-kyô], “espelho de impressão direta da sombra” [jap. chokusha-ei-kyô] ou “espelho de imprimir sombras” [jap. inshô-kyô]. Foi só a partir da década de 1860, com a abertura de estúdios fotográficos comerciais em Yokohama que o termo shashin se tornou recorrente [Idem, p. 39]. Visto como uma forma surpreendente de representação do real [mimesis] pela elite e de acesso para poucos privilegiados devido ao alto custo de um retrato, a fotografia em terras japonesas teve de superar uma série de obstáculos iniciais. Como por exemplo, o domínio correto da técnica, o acesso aos materiais fotográficos [placas de vidro/metal, papel, químicos, lentes, câmeras etc], além de um misto de desconfiança/estranhamento por parte da população. Desconfiança acerca dos “efeitos” da mais recente novidade que se popularizava, receava-se de que após ser fotografado a sombra do retratado desapareceria, a alma ficaria presa ao retrato ou ainda que alguns dias após ter sido retratado o indivíduo não teria mais do que três anos de vida [Low, 2006, p.5] Neste contexto de superstições e transitoriedade histórica, a fotografia se consolidou como um dos principais instrumentos da modernidade europeia, influenciando o universo das artes, dos costumes e no domínio de uma tecnologia alienígena que contribuiu de forma decisiva a maneira de retratar e narrar o Japão da era Meiji. Ao longo da década de 1870 os obstáculos iniciais citados acima foram sendo superados e a fotografia japonesa começou efetivamente a criar a sua própria “identidade”. Uma nascente indústria fotográfica surgiu em Tóquio a partir de dois nomes pioneiros: Tokichi Asanuma [1852-1929] fundador da Asanuma Shokai em 1871 e Rokuemon Sugiura [1847-1921] fundador da Konishi Honten em 1873. Casas importadoras de material fotográfico rivais e que logo passaram a fabricar papéis fotográficos, produtos químicos, vender e consertar lentes e câmeras [que ainda eram importadas], tornando-se referências pioneiras na aquisição de material fotográfico no período. [Tanaka, 1991, p.4-5] O temor em ser retratado também foi se dissipando, graças inicialmente a iniciativa de alguns jovens samurais contrários ao governo do Bakufu [i.e. Shogunato] como Takasugi Shinsaku [1839-1867] e Sakamoto Ryôma [1836-1867]. Defensores incondicionais da restauração do Imperador ao poder que se deixaram fotografar no estúdio de um dos fotógrafos japoneses pioneiros Ueno Hikoma [1838-1904] em Nagasaki durante a era Keiô [1865-1867]. [Junichi, 2004, p.24] O objetivo destes jovens samurais era deixar um memento para a família caso fossem mortos em batalha. Acabando por se eternizarem como verdadeiros patriotas da história moderna japonesa, não só por suas ações, mas também graças aos seus retratos, provas documentais “realistas” de sua existência. O uso da fotografia também foi decisivo no processo de visualização e disseminação da imagem do jovem Mutsuhito [1852-1912] recém instaurado ao poder como Imperador Meiji [1868]. Representá-lo a partir de imagens cuidadosamente selecionadas, também fazia parte do projeto modernizador da elite governante. Pois a figura do novo chefe de Estado era considerada como um dos elementos coadunadores da jovem nação japonesa. Essa estratégia serviria para popularizar a figura do Imperador perante aos súditos japoneses que não tinham ideia de como seria a figura humana daquela entidade considerada “divina”. Além disso, sua imagem seria usada como instrumento de propaganda no exterior, como uma representação oficial daquele que assumia o poder em um momento que o Japão recebia os holofotes do mundo. E nada mais moderno do que retratar o governante e sua consorte, a Imperatriz Haruko [1849-1914], por meio da fotografia. Entre 1868-1873 foram produzidas imagens [xilogravuras, pinturas e fotografias] do Imperador, no entanto a quase totalidade foi considerada não satisfatória para divulgação pública, pois não eram “suficientemente modernas” [Keene, 2002, p. 237] A razão dessa interdição, deveu-se principalmente pelas imagens retratarem Mutsuhito trajando vestes tradicionais ou cerimoniais. Essa questão foi resolvida em outubro de 1873, quando apenas o Imperador Meiji foi retratado pelo fotógrafo Uchida Kuichi [1844-1875], o mais conceituado fotógrafo de retratos da capital japonesa [Low, 2006, p.11] e o único a quem havia sido permitido fotografar imperador em ocasiões anteriores. As duas fotografias em questão [figura 1 e 2] foram amplamente divulgadas em jornais estrangeiros, álbuns oficiais, repartições públicas, escolas e presenteadas a representantes diplomáticos de outros países. Elas apresentam o casal imperial de forma separada, a Imperatriz Haruko em trajes cerimoniais da corte japonesa [em foto tirada no ano de 1872] e o Imperador Meiji em trajes militares ocidentais e com cavanhaque, bigode e corte de cabelo bem ao gosto europeu da época. Essa justaposição de imagens representando o tradicional [figura feminina]” e o moderno [figura masculina], mediadas pela fotografia, apresentam de forma inequívoca as intenções da elite governante Meiji em afirmar a modernidade japonesa [vista como masculina e militar] perante as potências ocidentais como parte de uma “tradição inventada” [ver Hobsbawm, 1983, p.1-14] na qual o tradicional e o moderno passaram a coexistir. Imperador Meiji [fig. 1] e Imperatriz Haruko [fig. 2]- Impressões em albumina [c. 1873] de autoria de Uchida Kuichi. Domínio Público. [Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Uchida_Kuichi] A fotografia e o “desejo do olhar” sobre o Japão Em 1889 um jovem britânico aspirante a escritor, Rudyard Kipling [1865-1936], em sua coluna “Cartas do Japão” para um periódico indiano, escrevia: “If you buy nothing else in Japan... you must buy photographs [...]”. [Hight, 2011, p. 66] Kipling fazia alusão as belas - e exóticas - fotografias no formato de cartões de visita, um dos principais souvenirs adquiridos por turistas estrangeiros, muitos deles ávidos colecionadores deste tipo de iconografia. Ou no caso do poeta e escritor Oscar Wilde [1854-1900] que nunca havia estado no Japão, mas que na época ao examinar cuidadosamente xilogravuras dos artistas japoneses Hokusai e Hiroshige expressou uma sensação única de “sentir-se em Tóquio”.[Abou-Joude, 2016, p. 1] Esses dois exemplos da possibilidade da importância do uso de imagens como idealizador do “outro” japonês, vem de encontro a afirmação da escritora Susan Sontag [1933-2004] “[...] sentiment is more likely to crystalize around a photograph than around a verbal slogan.”[Sontag, 2003, p.85] As décadas de 1860-1880 representaram não só o aprimoramento da técnica fotográfica, como também o amadurecimento de um imaginário [geralmente positivo] sobre o Japão a partir das fotografias produzidas pelos estúdios fotográficos pioneiros nas cidades portuárias de Nagasaki e Yokohama. Neste contexto, destacam-se fotógrafos estrangeiros e japoneses como o pioneiro suíço Pierre Rossier [1829-1886] e o seu pupilo o fotógrafo japonês Ueno Hikoma [18381904] baseados em Nagasaki e os japoneses Shimooka Renjo [1823-1914], Kusakabe Kimbei [1841-1934] e o austríaco Raimund von Stillfried [1839-1911] em Yokohama. No entanto, foi a figura emblemática do fotógrafo ítalo-britânico Felice Beato [ca. 1832- ca. 1909] residente no Japão entre os anos de 1863-1877, a principal referência quando se trata da produção e comercialização de imagens do arquipélago japonês durante o período aqui perscrutado. Beato já tinha uma carreira como fotógrafo consolidada quando se estabeleceu em Yokohama, graças as suas imagens produzidas em alguns nos principais conflitos de meados do século 19 como a Guerra da Criméia [1855], Revolta dos Cipaios [1858] na Índia e a Segunda Guerra do Ópio [1860] na China. Ele foi o primeiro a reconhecer o potencial comercial não apenas das fotografias individuais comercializadas em vários tamanhos como era o costume, mas a partir da confecção de belos álbuns fotográficos contendo entre 50 a 100 imagens que se ajustassem ao gosto da clientela estrangeira que visitava o seu estúdio [Hockley, 2004, p. 68] Em 1868 o primeiro álbum confeccionado por Beato é montado Photographic Views of japan with Historical and Descriptive Notes, Compiled from Authentic Sources, and Personal Observation During a Residence of Several Years, produto de extensivas excursões pelos principais pontos turísticos [e outros nem tanto...], criando um extenso e variado portfólio sobre a nação em vias de modernização e que começava a receber um afluxo cada vez maior de turistas de classe alta. A partir desse modelo de álbum contendo séries de imagens [muitas cuidadosamente colorizadas à mão] associadas a temas recorrentes como “Paisagens” “Portos abertos: Yokohama, Nagasaki e Hakodate” [onde notamos mais claramente o processo de modernização] “Retratos”, “Templos e Santuários” e fotografias montadas em estúdio ou fora dele [jap. Shajô] retratando aspectos da “Vida urbana”, “Vida doméstica” e “Costumes”. Grande parte desse material era produzido a partir de olhares e gostos estrangeiros sobre o Japão, mas isso não impedia que estúdios fotográficos japoneses seguissem essa lucrativa empreitada. Essa demanda gerou uma concorrência entre os principais estúdios que tinham como um dos principais objetivos apresentar uma imagem idealizada do Japão, visto como verdadeira fairyland na linguagem da época e que servisse também como um souvenir raro que muitas vezes seguia o itinerário da estadia [breve ou não] de quem adquiria o álbum fotogáfico. Abaixo podemos ver dois exemplos de Yokohama shashin produzidas por Beato. As figuras 3 e 4 representam dois dos temas muito estimados pelos estrangeiros: as belezas naturais, como o Monte Fuji e todo o seu simbolismo e a beleza [jap. bijin] do feminino japonês, visto geralmente como sutil, misterioso e ingênuo. Dessa forma pode-se notar que em muitos momentos a iconografia dialoga diretamente com as narrativas presentes na literatura de viagem, que nesse instante é confrontada por imagens de uma jovem nação distante e em transição. Figura 3: Vista do Monte Fuji. Autor: Felice Beato. s/d. Domínio Público. [Fonte: https://www.theitalianeyemagazine.com/en/the-art-of-yokohama-shashinmilan/] Figura 4: Sem título. Autor: Felice Beato. s/d. Domínio Público. [Fonte: https://www.theitalianeyemagazine.com/en/the-art-of-yokohama-shashin-milan/] Para finalizar, a título de comparação seria importante citar uma outra forma muito popular e tradicional artística usada para representar a transitoriedade japonesa no período: a xilogravura [jap. moku hanga]. Como foi mencionado, a maior parte da população japonesa não tinha condições econômicas ou interesse em adquirir fotografias avulsas, cartões de visita ou os álbuns luxuosos citados na época. Provavelmente pelos mesmos retratarem, em grande parte um Japão visto como ‘ultrapassado” e apresentando elementos do cotidiano desinteressantes para os nativos. No entanto, mesmo com o advento da fotografia, as baratas xilogravuras exaltando a modernidade japonesa eram consumidas amplamente pela população. Artistas e governo estiveram em consonância sobre a forma de como muitas dessas imagens deveriam representadas e divulgadas. Um exemplo desse “Japão Novo” a ser mostrado, pode ser visto na fig. 5 abaixo. A xilogravura retrata jovens operárias japonesas vestidas com vistosos quimonos, trabalhando em uma moderna máquina de fiar seda na primeira exposição industrial nacional realizada em 1877 no parque de Ueno em Tóquio. Notamos na imagem espectadores japoneses vestindo trajes mais tradicionais e alguns trajes europeus. Olhares de estupefação do público presente direcionados a aspectos da tecnologia recém-importada, como também à destreza das jovens interagindo de forma “natural” com o maquinário. Figura 5: Máquina de enrolar seda apresentada na Exposição Nacional Industrial Japonesa, 1877. Autor: Utagawa Kuniaki II. Domínio Público. [Fonte: https://ukiyo-e.org/image/mfa/sc11160] É importante ressaltar que no período a seda japonesa era um dos principais produtos de exportação japonesa e dessa forma a escolha de representar a moderna tecnologia de produção dessa commodity a partir da representação do tradicional [seda, quimonos] e o moderno [tecnologia, operárias mulheres] fazia parte efetiva da estratégia do governo japonês como forma de criar novos simbolismos a partir de algo já existente [fiação de seda]. O historiador David G. Wittner define esse simbolismo como uma forma de “materialidade cultural” [ingl. cultural materiality”] definida por ele como “[...] the construction and reconstruction of an identity in terms of technological artifacts. ‘An identity’ can be individual or group, or even national; and all the members of the group are not necessarily active participants in the process”. [Wittner, 2009, p.4] Dessa forma, o recém-chegado aparato fotográfico e a tradicional xilogravura alimentaram o “desejo do olhar” nãoasiático sobre o Japão a partir de diferentes perspectivas, propósitos e estratégias entre as décadas de 1860 a 1890. Referências Rogério Akiti Dezem é Historiador e Professor de Cultura e História do Brasil no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Osaka [Japão]. ABOU-JOUDE, Amir. A Pure Invention: Japan, Impressionism, and the West, 1853-1906. Senior Division, Historical Paper, 2016. Disponível em: https://www.nhd.org/sites/default/files/Abou-Jaoude_Paper.pdf BENNETT, Terry. Photography in Japan 1853-1912. Hong Kong: Tuttle Publishing, 2006. BRU R. “Japón en la Exposición Universal de 1888”. Estudios de arte español y latinoamericano[17], 2016, p.41- 52. 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A INFLUÊNCIA ORIENTAL NA CULTURA RUSSA Talita Seniuk Este trabalho busca apresentar alguns elementos orientais, em especial os mongóis, enraizados e naturalizados na cultura russa, imperceptíveis aos olhos menos atentos. Estrutura-se em três tópicos, A Rússia, Império Mongol e As Influências, respectivamente. Como referenciais utilizam-se Ferro [1990], Figes [2017], Mason [2017] e Segrillo [2012], o primeiro ao apresentar um conceito sociológico relativo à fusão cultural e estes últimos três apresentam com maestria diversos elementos culturais desse país de extensões transcontinentais que por vezes se vê como europeu, outras como asiático e ainda, como euroasiático. Vale ressaltar que essa influência não se encerra na discussão proposta, extrapolando os limites aqui impostos devido a sua riqueza cultural. A Rússia A história da Rússia é marcada por ondas migratórias, guerras, invasões, anexações de territórios entre outros fatores que lhe afetam desde os primórdios da humanidade. Tudo isso a conferiu um status de melting-pot [local onde se derrete e funde o metal], emprestando o termo de Marc Ferro [1990], ao agrupar pessoas com diferentes modos de vida, culturas, religiões e grupos étnicos em oposição ao saladbowl [tigela de salada, salada mista] do mesmo teórico, em que as culturas conservam suas identidades em separado. Como parte de seus limites terrestres permeiam dois continentes, as origens de seu povo também abarcam influências de ambos, como exemplo, muitas famílias russas tinham/tem ancestrais asiáticos, como dissera Napoleão Bonaparte certa vez: “Raspe um russo e encontrará um tártaro”. As origens da Rússia contemporânea não podem ser encontradas em seu território e nação atuais, mas na sua vizinha Ucrânia. Foi o Estado Kievano - também chamado de Rus’ - existente entre os séculos IX ao XIII que compreendia diversas cidades-Estado descentralizadas compostas entre os povos eslavos orientais, os grão-russos [russos], os pequeno-russos [ucranianos] e os russos brancos [bielorussos] [SEGRILLO, 2012] que delinearam os contornos atuais. Devido à vassalagem em relação ao Grande Príncipe de Kiev e até mesmo pelas suas características descentralizadas, esses reinos não foram capazes de frear as invasões mongóis vindas do Oriente e que se estenderam entre os séculos XIII ao XV. Essa investida asiática dispersou os povos eslavos, marcando-lhes a partir desse momento como povos separados [SEGRILLO, 2012]. Só no século XV Moscou consegue unificar novamente esses povos e se livrar da dominação mongol. Contemporaneamente, a Rússia é o maior país da Europa e da Ásia ao mesmo tempo, considerando que seu território ocupa porções nos dois continentes, sendo dividida nesse sentido pelos Montes Urais; fato este que causa discussões acaloradas sobre sua localização, se é europeia, asiática, as duas [eurasiana] ou ainda, uma nação singular que apresenta aspectos únicos [SEGRILLO, 2012]. Império Mongol Temujin como seu nome verdadeiro ou mais conhecido como Genghis Khan foi o responsável pelo maior império que já existiu [cinco vezes maior que o Império Romano no seu ápice], fundando-o ao unir todas as tribos mongóis em 1.206 [MASON, 2017]. A extensão territorial conquistada por ele e seu povo atingiu entre 21 milhões de km2 segundo Mason [2017] e 33 milhões de km2 segundo Segrillo [2012] e abarcava as terras entre a Polônia e a Coreia, da Sibéria ao Vietnã, incluindo a China também por um século. Os mongóis foram exímios guerreiros, que montados a cavalo ditavam ataques velozes e ferozes sobre seus inimigos, utilizando-se para isso de técnicas de cerco e de aniquilamento sofisticadas [SEGRILLO, 2012] com uso de catapultas e foguetes [copiadas da China]. São conhecidos pela crueldade com que tratavam seus inimigos, utilizando-se de forma bem sucedida o terror sistemático como forma de submissão, poupando os rendidos e aplicando a tática de terra arrasada para os que não se subjugavam. Entretanto, não se tratavam apenas de selvagens nômades, porque selecionavam o que lhes interessava nos povos e regiões conquistadas, agregando conhecimentos e tecnologias, alcançando uma administração burocrática eficiente já naquele momento e que abarcou um milhão de pessoas [SEGRILLO, 2012]. Vale a pena ressaltar que apesar de exigirem tributos e soldados por parte de seus conquistados, além de fidelidade política, no que tange questões socioculturais como religião, lideranças locais e tradições, os povos tinham plena liberdade de mantê-las sem sofrer interferências [SEGRILLO, 2012]. Mesmo que não houvesse essa obrigatoriedade de seguir costumes e hábitos mongóis, essas comunidades mantiveram sua cultura agregando elementos de seus dominantes. Para Segrillo [2012], há a necessidade de pontuar se foi o jugo mongol de dois séculos sobre a Rússia e nações circundantes que impediu sua efetiva participação na Renascença e consequentemente o usufruto dos bens produzidos pelo Ocidente no Medievo, ou seriam outros motivos que teriam causado sua “estagnação”, estereótipo consolidado sobre o período nos livros de História. Para o mesmo autor, ao contrário do que se vê referenciado sobre a temática, foram os mongóis que contribuíram com a união dos povos eslavos ao impor um domínio unificado de séculos e que quando da sua expulsão em 1.480, o futuro Império Moscovita herdou um império eslavo unido, pois estes se valeram em relação aos outros antigos reinados colaborando com os conquistadores, o que lhes rendeu sua hegemonia sobre os demais. As influências Como resultado de relações administrativas amistosas entre os “russos” e os mongóis temos até hoje o uso das palavras tesoureiro [казначей – kaznachei] e tesouro [казна – kazna] [SEGRILLO, 2012]. No vocabulário cotidiano há inúmeras outras, em especial, como cavalo [лошадь – loshad], bazar [Базар – bazar], celeiro [амбар – âmbar], cofre [сундук - sunduk]; o próprio Gêngis Khan foi chamado de Gêngis Tzar [царь] durante algum tempo; além desses verbetes, há também expressões turcomanas como ‘Vamos embora’ [Давай поідим - davai poidem], ‘Vamos sentar’ [Давай посидим - davai possidim] e ‘Vamos embebedar’ [Давай попим - davai popem] [FIGES, 2017]. Esse uso do verbo “vamos” - em russo Давай - que cunhou diversas expressões também se percebe na Ucrânia com uma pequena variação para Давайте, utilizados até hoje. Segundo Figes [2017] havia quatro linhagens mongóis principais de que descendiam todos os russos: os nômades de língua turcomana que acompanharam Gêngis Khan no século XIII e se fixaram na Rússia depois da desestruturação da Horda Dourada como os Karamzin, Turgueniev e Rimski-Korsakov; turcomanos que foram para lá através do Ocidente como os Rachmaninoff; famílias mistas de origem eslava e tártara como os Sheremetev, Stroganov e Gogol; e ainda, famílias russas que alteraram seus sobrenomes visando relações mais amistosas com as tribos nativas e para soar mais turcomano por terem se casado com outras tártaras, como os Veliaminov que se tornaram Aksakov. Nesse sentido: “Eram europeus ou asiáticos? Eram súditos do tzar ou descendentes de Gêngis Khan?” [FIGES, 2017, p. 251]. Toda essa relação de reconhecimento e proximidade com as origens orientais se consolidou entre os séculos XV e XVII, finalizando com o czarismo de Pedro I que iniciou uma onda de transformações sociais e culturais na Rússia, desejando aproximá-la do restante da Europa, que culminou, por exemplo, com a construção da cidade de São Petersburgo, cujos elementos arquitetônicos foram levados da Europa, mas com um viés místico próprio russo e que fora o palco cultural dos escritores dos 1800 como Dostoievski, Chekov, Tolstoi, Gogol, Pushkin e de inúmeros outros. Entretanto, muitos dos que escolheram viver lá não abandonaram seus costumes antigos, pois abaixo do sonho europeu ainda se via a velha Rússia [FIGES, 2017]. Para o tzar a Rússia sempre fora vista pelos europeus como um elemento estrangeiro que não pertencia ao que se denominava como Velho Mundo, sendo reconhecidos como asiáticos no Ocidente e europeus frente aos asiáticos [FIGES, 2017] e em seu governo, enquanto o Império Russo se expandia pela Ásia, houve inúmeras discussões acaloradas sobre as heranças asiáticas entre aqueles que aceitavam com orgulho sua ascendência oriental e aqueles que a desprezavam, considerando uma traição tal incitação. Frente a esse embate, o próprio Dostoievski escreve num dos seus textos: “A Rússia não está só na Europa, mas na Ásia também [...] Devemos pôr de lado o nosso temor servil de que a Europa nos chame de bárbaros asiáticos e dizer que somos mais asiáticos do que europeus [...] Essa noção errônea de nós mesmos como exclusivamente europeus e não asiáticos [e nunca deixamos de ser estes últimos] [...] nos custou muito caro nesses dois séculos, e pagamos por ela com a perda da nossa independência espiritual [...] Para nós é difícil virar as costas à janela que dá para a Europa; mas essa é uma questão do nosso destino [...]” [DOSTOIEVSKI citado por FIGES, 2017, p. 284]. Outro intelectual, Nicolai Gogol, por exemplo, ucraniano, considerado como escritor russo devido às posses dos territórios do Império Russo na época de seu nascimento possuía descendência com os Gogel turcomanos. E muitos brasões de famílias nobres russas possuíam elementos muçulmanos como sabres, flechas, luas crescentes e a estrela de oito pontas [FIGES, 2017] que confirmam essa ascendência. Tratando-se de costumes russos herdados dos cãs mongóis temos a superstição sobre a soleira da porta, onde não se deve pisar e nem cumprimentar ninguém através dela; há ainda uma homenagem originada com esses guerreiros que se faz jogando alguém para cima para brindar um momento de felicidade, inclusive sendo representada numa das passagens das obras do escritor Nabokov [FIGES, 2017]. No quesito religioso-pagão, práticas xamânicas e uso de totens em rituais camponeses, amuletos, superstições, tudo isso fazia parte do imaginário social e ainda está presente, principalmente nas áreas rurais. Entre os objetos sagrados utilizados pelos xamãs buriatos, por exemplo, existe a figura do cavalo, que é representada por um pedaço de pau similar a um cajado, que acompanha a dança xamânica e na parte superior representa a cabeça do animal e na outra extremidade seus cascos, tendo esses formatos; durante o êxtase a parte inferior é batida no chão como se os cascos tocassem o solo durante uma cavalgada, o cavalo de pau é o veículo que leva o líder religioso ao mundo dos espíritos nas sessões. Já nas tribos fino-úgricas o tambor do xamã era chamado de cavalo, possuía rédeas e a baqueta era chamada de chicote, pois o açoite dava o ritmo, similar ao efeito sob o animal [FIGES, 2017]. O cavalo de pau ou de palha era o brinquedo por excelência das crianças camponesas russas até o século XX, mas ao contrário do que se percebe no Ocidente onde o objeto pode ser deixado no quarto delas, na Rússia, ele não era bem vindo dentro de casa. O equino tem um símbolo especial, é o legado asiático no país [FIGES, 2017]. Pushkin fala deles num poema, Blok e Briussov retratam-nos em suas obras literárias também. Os cavalos representam os mongóis que chegavam das estepes. Os Loucos Santos, entre eles Rasputin o mais famoso, igualmente derivam da cultura oriental, de perambulação religiosa, com poderes curativos e suas próprias profecias [FIGES, 2017]. Esses personagens itinerantes vagavam pelas aldeias, com roupas diferentes, sendo alimentados pelos camponeses e famílias aristocratas que acreditavam em suas adivinhações. O próprio Tolstoi descreveu que sua família contava com os serviços de um deles. Pushkin, Mussorgski e Dostoievski deram atenção em suas obras para esses personagens bastante comuns do período. Havia várias leituras sobre essas pessoas que vagavam e recebiam esmolas. No artesanato, a famosa boneca chamada de матрешка ou матриоска -matrioshka ou erroneamente de бабушка - babushka [babushkas são as idosas que usam lenço na cabeça, geralmente representam avós] não tem origem nesse país. Seu conceito foi trazido do Japão das bonecas de encaixe; só apareceram na Rússia em 1891 devido a uma encomenda da riquíssima família Mamontov para o artesão de brinquedos Maliutin [FIGES, 2017]. No final dessa década tornaram-se populares como representantes da cultura russa sem ser. A indumentária vasta, até meados do século XX, também abarcava elementos asiáticos expressos nos nomes das peças e nos seus modelos, como um casaco leve [kaftan/zipun - кафтан/зипун] e um casaco grosso [armiak – армиак]; o gorro que era considerado a coroa do tzar, segundo uma lenda, era tártaro [FIGES, 2017]. Muitas gravuras que remetem à obra Taras Bulba de Gogol, onde conta a história de uma família cossaca, podem ser vistos modelos de vestuários em questão. Os próprios regimentos cossacos tão presentes nas histórias possuem características semi-asiáticas. Viviam nas fronteiras sul e leste, no Cáucaso e na Sibéria, governados por um líder mais velho; eram ferozes, defendiam sua liberdade, ao passo que eram prestativos para alguns assuntos. A palavra cossaco [em russo Казак – kazak] deriva do turcomano e significa cavaleiro. Pushkin e Tolstoi reafirmavam essa tendência, Gogol descreve-lhes num texto: “Os cossacos são um povo que pertence à Europa na fé e na localização, mas ao mesmo tempo é totalmente asiático no modo de vida, nos costumes e vestimenta. São um povo em que duas partes opostas do mundo, dois espíritos opostos estranhamente se reuniram: prudência europeia e abandono asiático; simplicidade e esperteza; uma forte noção de atividade e amor ao ócio; um impulso para o desenvolvimento e a perfeição e, ao mesmo tempo, um desejo de parecer desdenhoso de toda perfeição” [GOGOL citado por FIGES, 2017, p. 266]. No que tange a culinária, arroz, macarrão, ricota e seu preparo também remetem ao Oriente; carne de cavalo e leite de égua remetem as tribos mongóis. Foi só no século XIX que o Ocidente descobre essas particularidades em relação aos equinos fazerem parte da dieta dos russos, o que causa estranheza e taxa-lhes de bárbaros [FIGES, 2017]. No folclore russo, em especial lendas e mitos, muitos só puderam ser compreendidos como derivados do Oriente. Seja pelas diferentes trocas culturais ou mercantis, apareceram diversos indícios desse empréstimo cultural para a composição do patrimônio russo. A lenda de Sadko que trata de um mercador em busca de riqueza num reino submerso procede da história brâmane do Harivamsha; e a história de Ilia Muromets, um herói com traços tártaros e descendente de reis míticos da Índia [FIGES, 2017]. A base da maioria dos contos se dá nas estepes asiáticas e não nas paisagens genuinamente tidas como russas. Questões culturais são difíceis de isolar e limitar suas fronteiras pela fluidez com que transitam nas relações sociais, ainda mais num país com território continental como a Rússia. Apesar de debates acalorados que se iniciaram ainda no reinado de Pedro I e que se estendem até os dias de hoje sobre as influências orientais na cultura nacional, valemo-nos das palavras de um pintor russo, Shevchenko, que no governo do referido tzar afirmava que os diferentes matizes - europeu/russo e asiático/oriental - eram um neoprimitivismo singular dessa nação [FIGES, 2017] cuja característica principal era que não se permitia estabelecer um limite: “A Rússia e o Oriente têm se interligado de forma indissolúvel desde as invasões tártaras, e o espírito dos tártaros, do Oriente, se enraizou a tal ponto na nossa vida que às vezes é difícil distinguir onde termina uma característica nacional e onde começa uma influência oriental [...]” [SHEVCHENKO citado por FIGES, 2017, p. 292]. Embora as sementes do que compreendia ser russo terem brotado durante a mocidade de Pedro I através de suas viagens pela Europa com o intuito de buscar referenciais que pudessem ser aplicados na Rússia para torna-la um Estado Moderno, trazendo discussões de que elementos faziam parte dessa identidade, o paradigma se estende até hoje. Como detestava Moscou que era uma civilização totalmente religiosa, ligada a Bizâncio, considerando-a como um antro de cultura arcaica e provinciana, que ainda vivia no Medievo, decidiu construir uma nova capital para seu império, uma cidade que forçasse os russos a adotar um estilo de vida europeu [FIGES, 2017]. Não que os russos não tivessem uma identidade cultural e social que lhes reafirmasse enquanto uma etnia com suas próprias especificidades, mas devido ao seu território continental havia muito a se considerar. No século XIX, a necessidade de construção de uma consciência nacional vai desencadear uma busca por essa essência, colocando em oposição três elementos: Moscou dos eslavófilos, religiosa e camponesa como representante da verdadeira tradição russa; São Petersburgo, símbolo iluminista e de progresso com bases europeias; e a visão dos citas que a viam como base cultural da estepe asiática: “[...] que varreria o peso morto da civilização europeia e criaria uma nova cultura na qual homem e natureza, arte e vida, fossem um só. Esses mitos eram mais do que apenas “construções” de uma identidade nacional” [FIGES, 2017, p. 16]. Nesse mesmo século o Império Russo se expandia na estepe asiática e aceitou uma política de adotar as suas culturas como parte de uma cultura maior, nacional. Considerações Os inúmeros elementos apresentados que compõe a riqueza do patrimônio cultural russo em seus mais variados segmentos - vocabulário, indumentária, culinária, lendas, mitos, folclore, histórias, rituais religiosos, literatura, personagens históricos, brinquedos, costumes, genealogia, entre outros - são algumas das influências orientais que essa nação e áreas circundantes receberam há séculos devido as constantes ondas migratórias e momentos de domínio estrangeiro. Durante muitos anos emerge o debate e o conflito em torno de um grupo que soma esforços para se aproximar da Europa em oposição àquele que busca suas raízes asiáticas; discussão essa iniciada no governo de Pedro I e que se digladiam, pelo menos no campo intelectual até a contemporaneidade. A lição que fica é que o modus operandi da cultura russa se utiliza de artefatos orientais. Referências Talita Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em Filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em Metodologia do Ensino de História e Geografia pelo Centro Universitário de Maringá e em Ensino de Sociologia pela Universidade Cândido Mendes. Coautora do livro As Ucrânias do Brasil: 130 anos de cultura e tradição ucraniana pela Editora Máquina de Escrever. Atualmente é Professora de História efetiva na Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso, colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця e colaboradora do Blog Exílio-migração política. FERRO, M. Cómo se cuenta la história a los niños en el mundo entero. México: Fondo de Cultura Econômica, 1990. [Livro] FIGES, O. Uma história cultural da Rússia. Tradução de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2017. [Livro] MASON, C. Uma breve história da Ásia. Tradução de Caesar Souza. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. [Livro] SEGRILLO, A. Os Russos. São Paulo: Contexto, 2012. [Livro] CRIAR O QUE NUNCA FOI FEITO ANTES: GUTAI E AS ARTES JAPONESAS NO PÓS-GUERRA Victor Vidal Iniciada em meados do séc. XIX, a Era Meiji [1868 – 1912] foi caracterizada por abandonar as políticas isolacionistas da era anterior [Tokugawa, 1603 – 1867] e permitir a entrada de pessoas e elementos estrangeiros no país. A intensa influência externa representou um problema para a arte moderna japonesa, provocando quase uma crise de identidade em artistas e críticos. A cena artística no Japão no final do séc. XIX foi marcada pelo embate entre dois estilos de pintura que nasceram desse confronto com a arte ocidental: o Yōga, que explorava o sistema representativo da pintura europeia, e o Nihonga, que valorizava a tradição pictórica japonesa e buscava atualizá-la por meio de novas técnicas. A adoção de parâmetros ocidentais na cultura japonesa tornou as artes tradicionais, como a Cerimônia do Chá, por exemplo, periféricas, uma vez que não se encaixavam nesses novos modelos. O debate a respeito da penetração de elementos ocidentais no país, aqui exemplificado no embate entre os estilos Yōga e Nihonga, acarretou no questionamento: é possível separar o moderno do ocidental? Para o filósofo e crítico literário Kōjin Karatani, não seria fácil realizar essa separação, uma vez que as origens da modernidade se encontravam no ocidente. Por sua vez, o curador e pesquisador de arte japonesa Doryun Chong defende que é equivocado localizar as origens da arte moderna japonesa na importação de elementos da arte moderna europeia, uma vez que a influência das estampas japonesas [ukiyo-e] na pintura impressionista é também muito grande. A intensa circulação de gravuras ukiyo-e pela Europa permitiu que os artistas japoneses imaginassem fazer parte de uma comunidade transnacional de pintores modernistas. De acordo com Ming Tiampo [2007, p. 690], após a Segunda Guerra, a noção de originalidade no Japão se atrelou à individualidade e foi amplamente explorada na figura do artista revolucionário. Nas décadas de 1940 e 1950, os artistas japoneses batalharam para redescobrir sua voz em meio à repressão durante a guerra e, em seguida, com a presença militar americana. O desejo por uma nova linguagem artística caracterizou esse período. Os artistas enfrentaram mudanças significativas em relação à postura ideológica que deveriam assumir entre as artes, a política e a sociedade, enquanto buscavam entender a conexão entre a estética japonesa e a arte internacional. A busca por uma nova linguagem artística não compreendeu uma ruptura completa com a geração anterior de artistas, reflexões em torno dos significados da guerra eram o que mantinham unidas tanto a nova quanto a antiga geração. Embora fossem novos demais para participar de maneira ativa na guerra, esses jovens artistas presenciaram os horrores que ela provocara em seu país, estimulando-os a direcionar o debate artístico em torno da questão: como os artistas e as suas obras poderiam participar de maneira efetiva da realidade em que estavam inseridas? O artista Shunsuke Matsumoto [1912–1948], por exemplo, escreveu em 1946 uma carta aberta à comunidade artística convocando-os a participar de uma associação que buscasse realizar trabalhos que questionassem o papel da arte no pós-guerra. Nesse sentido, Chong propõe organizar a arte do pós-guerra em duas narrativas: uma centrada no corpo e na figura humana e outra preocupada em transcender os gêneros artísticos tradicionais. Na primeira narrativa, encontramos os artistas que desenvolveram pinturas no período imediatamente após a guerra. Chamada de Reportagem, essa tendência artística procurou explorar os horrores da guerra, a repressão tanto do governo japonês quanto da presença militar norte-americana e as condições de trabalho que as camadas mais pobres da população enfrentavam. O crítico de arte Teiichi Hijikata [1904-1980] foi um dos principais nomes a movimentar o debate sobre realismo na arte durante o pós-guerra. Reconhecendo que esse era um momento histórico de profundas mudanças, Hijikata se perguntava como os artistas deveriam retomar a produção de obras após o trabalho militar forçado. Como continuar produzindo após terem visto o que viram durante a guerra? Hijikata acreditava que os artistas deveriam cultivar uma consciência crítica a respeito da guerra e das suas consequências que permitisse reconstruir as práticas artistas em uma sociedade que se transformava. O crítico defendia que a arte deveria participar do processo de elaboração do presente. Nesse sentido, o debate em torno do realismo na arte japonesa não se configuraria como mais um estilo artístico, como o expressionismo ou o surrealismo, mas promoveria de uma maneira geral indagações sobre as possibilidades artísticas, o papel do artista na sociedade e a relevância social da arte diante de questões como a modernidade japonesa, as consequências da guerra, os desafios para reconstruir a cultura e a economia do país. Como é possível perceber pela pintura de Reportagem, as obras manifestam características formais muito variadas, apresentando imagens tanto realistas quanto imagens que flertam com a abstração. O debate sobre o realismo na arte japonesa também marcou o início de uma crítica de arte diferente daquela realizada por Hijikata, que centrava suas análises nas habilidades do artista e nas qualidades formais; a crítica desenvolvida a partir da década de 1950 centra seus argumentos nos aspectos sociais que a obra de arte em questão permitiria elaborar. "Criar o que nunca foi feito antes!", bradava Jirō Yoshihara [1905-1972] constantemente para os artistas do grupo Gutai. Quando fundou a Associação de Arte Gutai em dezembro de 1954, Yoshihara já havia conquistado reputação nacional como pintor surrealista. O artista logo percebeu, no entanto, que explorar a linguagem surrealista não seria o suficiente para descobrir uma nova identidade artística que fosse tanto japonesa quanto moderna. Em seu papel de agenciador, Yoshihara investiu financeiramente em jovens artistas, criou uma vasta biblioteca sobre arte e em diferentes ocasiões atuou como professor. Yoshihara acreditava na possibilidade de criação de uma comunidade artística formada por diferentes nações que compartilhassem entre si interesses em comum. Durante sua juventude, Yoshihara desenvolveu uma obsessão pela ideia de originalidade na arte devido à sua aproximação com o artista Jirō Kamiyama [18951945], que repetia constantemente a importância da originalidade e individualidade em uma obra de arte. Kamiayma também o apresentou ao artista Tsuguharu Foujita [1886-1968], figura importante que marcou o diálogo entre as artes do ocidente e oriente. Em seu encontro com Foujita, Yoshihara mostrou suas obras ao artista e ficou devastado ao ouvir suas críticas: suas pinturas eram influenciadas demais por outros pintores. Os comentários de Foujita e a orientação de Kamiyama o motivaram a desenvolver uma obra de arte que fosse tanto original quanto japonesa. Ainda que estivesse ciente do status periférico do Gutai, Yoshihara orientou o grupo a estar atento às tendências artísticas internacionais e, dessa maneira, romper com a ideia de um modernismo ocidental excludente. “Yoshihara construiu o Gutai como um meio para ‘um terreno internacional comum’ de transação e influência mútua” [MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 22]. Formada por dois caracteres, gu 具 [ferramenta/meio] e tai 体 [corpo/substância], a palavra japonesa “gutai” é comumente traduzida como “concreto”. A escolha dessa palavra como nome para o grupo indica um envolvimento direto dos artistas com os materiais utilizados na produção das obras e da arte com a realidade. Ao enfatizar os gestos livres e a concretude dos materiais escolhidos, os artistas do Gutai esperavam que as suas experiências ajudassem a reconstruir a autonomia subjetiva dos japoneses, fortemente abalada pela guerra e pela ocupação militar americana. A respeito das aspirações do grupo, Yoshihara defendia que: “O mais importante para nós é tornar a arte contemporânea um local de maior liberdade para as pessoas que vivem na realidade difícil de hoje, e para a criação de um local livre o bastante para contribuir para o progresso da humanidade” [YOSHIHARA apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 45]. De acordo com Ming Tiampo, podemos dividir a história do grupo Gutai em duas fases: durante a primeira fase, aproximadamente entre a data de sua criação até 1962, os trabalhos apresentados pelo grupo podem ser caracterizados por sua ênfase em uma criação livre atrelada à exploração da materialidade; já durante a segunda fase, entre 1962 e 1972, o grupo experimentou as novas tecnologias que estavam sendo introduzidas no país, em um esforço para criticar a lógica capitalista e a desumanização que estaria por trás do rápido crescimento industrial. Apesar dessa divisão, o Gutai manteve um princípio básico ao longo dos 18 anos de atuação: a inserção de obras nos ambientes públicos e a aproximação com vida cotidiana da população. A liberdade defendida pelo Gutai não dizia respeito apenas aos regimes totalitários enfrentados pelo Japão nas últimas décadas, mas também a tendência à desumanização que, segundo eles, as sociedades contemporâneas adquiriram ao longo dos anos. Shōzō Shimamoto [1928-2013], um dos membros do Gutai, defendia a ideia de que as pessoas deveriam se preocupar também com aquilo que era inútil, em um contraste ao destaque dado ao trabalho e a otimização do tempo e dos vários setores da sociedade na reconstrução do país. “Por mais contraditório que possa parecer, eu acredito que a coisa mais útil que podemos pensar ou fazer é aquilo que é convencionalmente considerado inútil, porque é o que provará verdadeiramente que estamos vivos” [SHIMAMOTO apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 278]. No mesmo sentido, o artista Yozo Ukita [1924-2013] defendia que as pessoas deveriam ser mais estranhas. “Em minha opinião, porém, precisamos ser ‘esquisitos’ até o âmago. Se uma pessoa não é esquisita, ela não tem valor como ser humano. Se ele não tem gosto como ser humano, equipado com diferentes trabalhos mentais que falta aos animais, ele não é melhor que uma garrafa de cerveja” [UKITA apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 278]. No final da década de 1940, antes de fundar o grupo, Yoshihara foi convidado para realizar uma série de palestras para o jornal Kirin, que destacava em suas páginas poemas e trabalhos de artes feitos por crianças. Depois dessa experiência, Yoshihara se mostrou bastante atraído pela criatividade livre de estereótipos das crianças. O ato de brincar, que permeou quase todas as obras desse evento, funcionou como um veículo para o fortalecimento da democracia, um meio de incentivar o público a pensar e agir livremente. A presença das crianças e a educação infantil, voltada ao desenvolvimento da capacidade de pensar e agir de maneira livre e independente, ganharam papéis importantes para pensar um futuro livre do totalitarismo e das manipulações das massas. No artigo Vamos fazer travessuras, Shōzō Shimamoto defende a importância de transgredir regras para o desenvolvimento da independência subjetiva. Por meio dos exemplos elencados pelo artista, podemos perceber suas reais intenções com o artigo: defender a transgressão de regras das artes tradicionais para alcançar um novo tipo de arte. “Como então você faz boas travessuras? A única maneira é fazer suas próprias ferramentas para isso. Por exemplo, você pode criar uma tela de papel e quebrá-la, ou comprar uma folha de papel enorme e espalhar cores de maneira aleatória” [SHIMAMOTO apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 276]. Em seu manifesto, Yoshihara afirmava que, ainda que eles se apresentassem como grupo, não existia imposições de regras no Gutai. “O nosso espaço é um lugar de criação livre no qual buscamos ativamente diversas experimentações, que vão desde a arte para ser apreciada com o corpo inteiro até a arte tátil e a música Gutai […]” [YOSHIHARA apud. MUNROE; TIAMPO, 2013, p. 19]. Os integrantes do grupo se orientavam por um desejo em explorar a relação artista e materiais, mas cada um interpretou esse desejo à sua maneira e escolheu o material que mais o interessava. Em contraponto às ideias nacionalistas e militares do período da guerra que exaltavam o coletivismo em favor de uma causa maior, o Gutai procurou desenvolver as diferentes possibilidades de coletivismo e comunidade sem reprimir as características e os desejos individuais de cada artista. Nesse sentido, a heterogeneidade de obras era valorizada e não representava uma desorientação ou desordem do grupo; representava um desejo em repensar as ideias de comunidade e homogeneidade exaltada durante o período da guerra. Durante a segunda fase de atuação do grupo Gutai, os artistas procuraram questionar os usos das novas tecnologias que estavam sendo desenvolvidas no país e o seu potencial caráter desumanizador. Durante o período de reconstrução após a guerra, o Japão investiu tanto em implementar quanto desenvolver novas tecnologias, procurando abandonar a imagem de um país rural para se transformar em um país tecnológico. No entanto, as explosões das bombas atômicas geraram certa ansiedade nas pessoas em relação ao desenvolvimento e uso de aparatos tecnológicos. Uma das primeiras artistas do grupo Gutai a explorar as tensões entre as subjetividades humanas e as novas tecnologias foi Atsuko Tanaka [1932 - 2005]. Impactada pelo intenso desenvolvimento industrial e tecnológico que assolou o Japão durante a década de 1950, Tanaka afirmava que os trens eram suas musas para a criação artística. Nascida em Osaka, a artista viu sua cidade natal ser intensamente transformada pela implantação das primeiras linhas ferroviárias na região. Na obra Eletric Dress [1956], Tanaka aparece trajando uma roupa construída por quase duzentas lâmpadas pintadas à mão com tinta de esmalte de resina sintética. A “roupa” pesava aproximadamente 50 quilos e precisava ser suspensa no teto para que a artista conseguisse vesti-la. Dentro do seu vestido de lâmpadas, a artista aparece presa por uma estrutura tecnológica, incapaz de se movimentar de maneira habitual devido ao pesado dispositivo em seu corpo. Em Eletric Dress [1956] existe uma fusão entre o humano e a máquina, criando um ser híbrido que nos proporciona sentimentos de incompletude e estranheza. A roupa tecnológica enfatizava a capacidade da força industrial, das novas tecnologias desenvolvidas no pós-guerra, em dominar os sentidos. Na ocasião em que vestiu a roupa pela primeira vez e ouviu que ligariam a energia das lâmpadas, Tanaka se lembra de pensar: “é assim que um prisioneiro no corredor da morte se sentiria?” [TANAKA apud. KUNIMOTO, 2017, p. 144]. Além da abertura da Pinacoteca Gutai em 1962, a segunda fase de atuação do grupo foi marcada por uma grande exposição no museu Stedelijk, em Amsterdã, e pela participação na Expo 70, que ocorreu em Osaka e exibiu produtos de alta tecnologia, servindo de vitrine para o novo Japão. Em uma das performances realizadas na Expo 70, o Gutai apresentou uma máquina que piscava luzes, produzia sons e se movimentava aparentemente sem um objetivo preciso. Desenvolvida em conjunto pelo grupo, podemos perceber o desejo dos artistas em propor uma reflexão sobre a desumanização da tecnologia quando descobrimos o nome dado à performance: Pai e filho robôs [1970]. Intencionando parodiar e questionar a maneira como o mercado de arte comercializava as obras e criava tendências, o grupo Gutai elaborou em conjunto uma máquina que vendia obras de arte por preços bem baixos. Similar a uma máquina de bebidas, bastava colocar uma moeda de 10 ienes para receber uma pintura abstrata do tamanho de um cartão postal. A máquina foi instalada dentro da loja de departamentos Takashimaya, em Namba, Osaka, durante a 11ª exposição do grupo. Gutai Card Box [1962] se apresentava também como um comentário à automatização e à mecanização da sociedade. No entanto, a máquina não funcionava de maneira mecânica, dentro da estrutura permanecia um dos membros do grupo que selecionava quais cartões seriam entregues aos visitantes. Após a Expo 70, o grupo atravessou uma profunda crise que levou ao seu desmembramento depois que Yoshihara sofreu um derrame e faleceu em 1972. Os preparativos para o evento consumiram tanto financeiramente quanto intelectualmente e artisticamente o grupo, culminando em desentendimentos e afastamentos. Um dos legados do Gutai para as artes japonesas se encontra na busca dos artistas por liberdade criativa ao se expressar. As atividades do grupo pavimentaram o caminho para uma geração de jovens artistas que na década seguinte realizou experiências radicais com engajamento político afiado. Referências Victor Vidal é doutorando em Artes Visuais pelo PPGAV-UFRJ, na linha de pesquisa em História e Crítica da Arte. Sua pesquisa aborda as relações entre o grupo japonês Gutai e o movimento concretista no Brasil. CHONG, Doryun [ed.]. Tokyo 1955 – 1970: a new avant-garde. New York: The Museum of Modern Art, 2012. HAYASHI, Michio; CHONG, Doryun; KAJIYA, Kenji; SUMITOMO, Fumihiko [ed.]. From Postwar to Postmodern: Art in Japan 1945 - 1989. Primary Documents. New York: The Museum of Modern Art, 2012. KARATANI, Kōjin. Origins of Modern Japanese Literature. Durham: Duke University Press, 1993. KUNIMOTO, Namiko. "Shiraga Kazuo: the hero and concrete violence". In: Art History, vol. 36. Londres: Association of Art Historians, 2012. MEREWETHER, Charles [org.]. Art, anti-art, non-art: experimentations in the public sphere in postwar Japan, 1950-1970. Los Angeles: Getty Research Institute, 2007. MUNROE, Alexandra; TIAMPO, Ming. Gutai, Splendid Playground. New York: The Solomon Guggenheim Museum, 2013. SAS, Miryam. Experimental Arts in Postwar Japan: Moments of Encounter, Engagement and Imagined Return. Cambridge: Harvard University Press, 2010. TIAMPO, Ming. "Create what has never been done before!" In: Third Text, vol. 21. 2007. EXTREMO ORIENTE: POLÍTICAS A REFORMA AGRÁRIA COMO MARCO FUNDADOR DO DESENVOLVIMENTO SUL COREANO Alexandre Black de Albuquerque Ao fim da Segundo Guerra Mundial a península da Coreia foi dividida em dois países: A Coréia do Norte, sob influência soviética, e a Coreia do Sul, sob influência norteamericana. No norte a União Soviética empreendeu a reforma agrária através do confisco das propriedades rurais, ao sul, os EUA deu início, em 1947, a redistribuição de terras por desapropriação mediante pagamento, limitando o tamanho máximo da propriedade a 3 ha [hectares]. O primeiro governo eleito em 1948 na Coreia do Sul deu prosseguimento à reforma agrária, concluindo o processo em 1955, tendo, inclusive, continuado a distribuição de terras durante a Guerra da Coreia [1950-53], que devastou o país e causou a morte de mais de 2 milhões de sul coreanos. Note-se que Naquele momento o país era eminentemente rural, tendo em 1949 uma população de cerca de 20,1 milhões de pessoas, sendo que 14,2 milhões estavam no campo, cerca de 72% do total, 7,82 milhões eram economicamente ativas [PEA] com 6,27 milhões trabalhando na agricultura, cerca de 80% do total, e 266 mil pessoas trabalhavam na indústria, 3,4% da PEA, e possuindo apenas 2 milhões de hectares cultiváveis para 2,5 milhões de famílias de agricultores, ou seja, apenas 0,8 ha por família [Economic Statistics YearBook, 1955]. Essa reduzida disponibilidade de terras por família colocou em dúvida a viabilidade da reforma agrária, dado as dificuldades de se estabelecer uma agricultura que disponibilizasse excedentes comercializáveis em propriedades tão pequenas, como demonstra a Tabela 1: ANO 1960 1970 1980 1990 2000 2015 Tamanho médio da propriedade 2,06 0,88 1,02 1,19 1,37 1,21 Tabela 1 Tamanho médio da propriedade rural em hectares por anos selecionados Fonte: Korean Statistical Information Service – KOSIS. <https://kosis.kr/eng/>. Como nem todas as famílias foram contempladas com propriedades rurais o tamanho médio ficou acima de 0,8 ha, e foi possível estabelecer uma agricultura com excedente capaz de alimentar a população urbana, que sofreria grande incremento nas décadas seguintes em consequência do acelerado processo de industrialização que tomaria corpo após o fim da Guerra da Coreia. A reforma agrária teve impactos positivos na industrialização, mas foi realizada também como estratégia antirrevolucionária, concomitante com a intensa repressão a movimentos comunistas e socialista, e também a movimentos mais ou menos conservadores que pregavam certo grau de reformas, inclusive agrária, tendo em vista o desenvolvimento econômico do país. Antes da reforma 4% dos proprietários detinham 50% da área agricultável e 70% dos agricultores eram arrendatários. Após a reforma esses últimos praticamente deixaram de existir pois tornaram-se proprietários [Nogueira Junior, 1995, p. 29]. Breve Reflexão Teórica Segundo Barraclough [2001] A reforma agrária é uma transformação da relação de poder em prol dos beneficiados pela redistribuição e contra os antigos latifundiários, é também um ato político e, portanto, é imprescindível a atuação do Estado: “Isto porque o Estado abrange a organização política institucionalizada da sociedade. O Estado articula e implementa as políticas públicas e arbitra os conflitos. Em tese, o Estado detém o monopólio de usar, com legitimidade a força coerciva dentro de seu território, juntamente com a responsabilidade de buscar o “bem público” para todos os seus cidadãos. A reforma agrária sem a participação do Estado seria uma contradição de termos”. [ibid, 2001, p. 379]. O problema toma corpo quando o Estado está a favor de manter os privilégios da classe de latifundiários, neste sentido o bem comum e a eficiência econômica, dois objetivos que podem ser alcançados pela reforma agrária, cedem lugar a interesses de classe que deprimem o crescimento econômico ao concentrar ativos e renda. Logo, um amplo processo de reestruturação agrária não está necessariamente ligado a razões econômicas e sim à questão política. Desta forma, a estrutura prévia da zona rural influi fortemente na própria reforma agrária, na Ásia, por exemplo, em geral grandes propriedades eram arrendadas em pequenas glebas para famílias de camponeses que tinham que pagar altos valores de aluguéis. Neste sistema a reforma agrária foi realizada fundamentalmente revertendo o direito de propriedade aos arrendatários. Do ponto de vista técnico e operacional é uma forma relativamente fácil de realizar a redistribuição de terras, pois elas já são produtivas, estão relativamente bem distribuídas e são exploradas por pessoas que tem competência para administrar essas propriedades. Talvez a maior dificuldade esteja em reformar as instituições de modo a garantir o apoio financeiro, técnico e logístico necessário ao pequeno agricultor, para que ocorra um processo virtuoso de reforma agrária e aumento da produtividade, disponibilizando mais alimento tanto para o produtor rural como para as cidades, algo fundamental para manter o apoio das áreas urbanas à reestruturação rural. Além de melhorar o ambiente econômico: “A reforma agrária é primordialmente uma questão de direitos humanos básicos. Ela implica o acesso à terra e aos seus benefícios, em termos mais justos e seguros, para todos aqueles que a cultivam e dela dependem para sua subsistência. Nas estruturas agrárias injustas, isto implica a redistribuição dos direitos à terra, para beneficiar os semterra, às custas dos grandes latifundiários e outros que se apropriaram de seus benefícios antes da reforma”. [ibid]. Portanto a reestruturação da propriedade rural está intimamente ligada com a questão social em países subdesenvolvidos. Segundo Teófilo & Mendonça [2001] há diferenças estruturais importantes entres países ditos desenvolvidos e os periféricos, estes últimos não costumam agir de forma a modificar essas estruturas, sendo que no setor rural, geralmente com forte concentração agrária, permanece fonte de desigualdade social e política. Eles afirmam ainda que estudos empíricos refutam a tese de Kunetz de que há uma desconcentração “natural” de ativos e renda que acompanha a “evolução natural” do desenvolvimento econômico, na realidade, a desconcentração deve ocorrer no início do processo e está na esfera das decisões políticas, não sendo algo natural, mesmo que desejável, além disso, inúmeros estudos demonstram [ibid] que a agricultura familiar em pequenas propriedades – tendo acesso aos recursos que são direcionados, prioritariamente, aos latifúndios – , são, em geral, mais produtivas, e, nesse caso, a questão da propriedade é relevante, pois há uma tendência de se investir menos em terras arrendadas e, com o aumento dos investimentos, a terra tem função de garantia dos empréstimos, mas as pressões para a manutenção da concentração agrária em países periféricos são intensas, internas e internacionais, e a maior produtividade das pequenas propriedades que, em tese, fomentariam mecanismos de mercados pró redistribuição de renda são vetados por forças políticas que condicionam as instituições de forma a manter a estrutura agrária o mais estável possível: “Para efetuar uma análise da evolução das relações agrárias e a correspondente distribuição da propriedade de terras, existem diversos pontos-chaves. O primeiro é o de que as condições favoráveis na agricultura dão origens a uma potencial receita rent-seeking, ou receita excedente e oferecem um incentivo para que os grupos detentores de poder político e militar tentem se apossar dos aluguéis ou excedentes. O segundo é que, com tecnologia rudimentar não há economias de escala na agricultura, e que as famílias de agricultores independentes, são, do ponto de vista econômico, o modo mais eficiente de produção, com exceção de um limitado grupo de culturas. Quando comparadas com as grandes propriedades, que se amparam no trabalho contratado ou arrendado, as propriedades administradas por famílias economizam com os custos de fiscalização do trabalho, ou eliminam as ineficiências e limitações dos custos de supervisão associados ao arrendamento”. [Binswanger et al, p. 50, 2001]. Desta forma são formuladas, ou impostas, aos camponeses, instituições que possibilitem a extração do excedente por um pequeno grupo de pessoas, impedindo não apenas a descentralização da propriedade da terra como o aumento da produtividade, alimentando um círculo vicioso de pobreza e dependência que afeta não apenas as condições socioeconômicas das áreas rurais, mas de todo o país. Por outro lado, países que desmembraram os latifúndios e distribuíram entre os arrendatários e camponeses sem terra tiveram bons resultados, como a Coreia do Sul. A segurança jurídica da titularidade aumenta os incentivos ao trabalho e ao investimento em melhorias da propriedade resultando em crescimento da produtividade. Estudos indicam [ibid] que poucas culturas poderiam ser feitas em propriedades maiores com a eficiência das propriedades menores, mesmo aquelas com economias de escala na fase de beneficiamento, como é o caso da cana-deaçúcar. Mas culturas como a própria cana-de-açúcar e a banana devem ser processadas ou armazenadas em baixas temperaturas o mais rápido possível após a colheita para não estragarem ou diminuir a produtividade, o que é mais difícil para os pequenos agricultores, em decorrência da logística relativamente dispendiosa e fortemente integrada. Desta forma, em diversos países, sobretudo os periféricos, a agricultura de plantação [plantation] predomina nesses tipos de culturas. Exemplos são a cana-de-açúcar no Brasil ou bananas na América Central, onde grandes propriedades dominam a paisagem. No entanto, para mercados próximos, feiras locais, por exemplo, essas culturas também podem ser produzidas por pequenas propriedades com vantagens, abrindo espaço para a diversificação da produção ao diminuir a área plantada com esses tipos de culturas. Nem mesmo a introdução de maquinário agrícola é incontornável para o pequeno agricultor, que pode se utilizar de aluguel desse maquinário e eliminar, ou reduzir, as vantagens das economias de escala num ambiente mais intensivo em capital: “O uso de animais de tração e máquinas – insumos básicos – leva a um segmento inicial da função de produção que apresenta retornos crescentes com escala operacional, mas essas economias técnicas desapareceriam com o aumento do tamanho das fazendas, com a repetição da escala ótima de insumos básicos, ou quando os mercados de aluguéis tornarem o peso da maquinaria irrelevante”. [ibid, p. 75, 2001]. Logo, a questão da escala também está ligada a arranjos institucionais que garantam acesso a insumos por parte dos pequenos agricultores. A reforma agrária, por exemplo, ao dividir a terra e garantir a propriedade jurídica sobre esse bem imóvel, provêm o proprietário de um bem capaz de servir como forte garantia para ter acesso a crédito para o plantio, no entanto, a atuação estatal não deve ser descartada na fase de financiamento da produção, pois a agricultura envolve riscos que os bancos comerciais privados possuem baixa propensão a correr, sobretudo quando se trata de pequenos agricultores, que não possuem grandes garantias e administram plantações com baixas taxas de lucro, aumentando o risco dos credores caso ocorra algum imprevisto, como questões climáticas desfavoráveis em um determinado ano que acarrete perda de parte da colheita. Por outro lado, a reforma agrária tende a beneficiar o crescimento e o desenvolvimento econômico e esses dois fatores tendem a beneficiar a reforma agrária, em um processo de causação circular. No médio prazo o aumento da renda pode gerar demanda para bens agrícolas de maior valor agregado, como frutas e legumes, ao invés, por exemplo, de arroz, aumentando a renda do setor rural. O desenvolvimento da nação também facilitará a ampliação da infraestrutura rural, como estradas, ferrovias, sistemas de irrigação, etc., facilitando o escoamento da produção e reduzindo os custos de logística, que se forem, ao menos em parte, capturados pelos agricultores, significará aumento de renda para esse segmento da sociedade. A geração de empregos em áreas urbanas se somará ao aumento de oportunidades de trabalhos nas zonas rurais, diminuindo a oferta de trabalhadores desempregados e forçando aumento dos salários nos três setores da economia [primário, secundário e terciário]. Logo, a reforma agrária deve ser conjugada com políticas de desenvolvimento econômico, ou seja, no bojo de um Estado desenvolvimentista. No entanto, o maior impasse é a própria reforma agrária, as forças políticas e sociais contrárias são poderosas e sua realização é sempre incerta. A Reforma e seus impactos Pressões advindas aparentemente de todo o espectro político, ao fim da Segunda Guerra mundial, e a consequente ocupação da Coreia pelos EUA, favoreceram a implementação da reforma agrária. Em 1945 o governo de ocupação baixou uma portaria regulamentando o aluguel dos arrendamentos em, no máximo, um terço dos rendimentos anuais. Em 1947 foi posta em debate a Lei da Reforma Agrária, recusada pelo congresso recém-eleito, levando os EUA a iniciar a distribuição de terras a despeito da assembleia. As propriedades distribuídas tinham sido confiscadas dos japoneses e representava 18% da área agrícola. Com a eleição de um presidente coreano em 1948 a reforma foi momentaneamente interrompida, em 1950, no entanto, uma nova lei de reforma agrária foi aprovada e o governo, nos quatro anos seguintes, apesar da Guerra da Coreia, desapropriou e redistribuiu grande parte das terras que não tinham feito parte da primeira fase da reforma. Além da melhora da distribuição de renda a reforma agrária, ao eliminar o poder dos latifundiários, permitiu que o Estado se afirmasse como força promotora do desenvolvimento e, no longo prazo, evoluísse para uma entidade mais tecnocrática e eficiente, concorrendo para amplificar a industrialização da Coreia e a qualidade de vida da população. Inicialmente, no entanto, o governo praticamente estabeleceu o monopólio estatal da distribuição de alimentos, como forma de inverter renda do setor agrícola para o industrial, o pagamento aos agricultores pelos alimentos produzidos era abaixo do valor de mercado e vendidos nas zonas urbanas a preços módicos, possibilitando manter baixos os salários dos operários aumentando os lucros do setor industrial, que eram investidos na amplificação do parque industrial. Durante a década de 1950 a Coreia do Sul estava sob um processo de substituição de importações, como era um país muito pobre, necessitava direcionar todo excedente possível para indústria. Em meados da década seguinte os preços agrícolas seriam liberados e a produção do campo começaria a ser subsidiada, por outro lado, esse setor passaria a demandar insumos industriais como fertilizantes, agrotóxicos e implementos agrícolas, continuando assim, por outras vias, a fomentar o crescimento industrial e houve forte investimento do Estado em melhora das sementes, extensão rural, etc., ou seja, foi desenvolvida uma articulação para expandir a produtividade, como demonstra a Tabela 2: Ano 1961 1970 1980 1990 2000 taxa de crescimento % 1961-69 1970-79 1980-89 1990-2000 1961-2000 Produtividade (dólar 1995) 2.311,1 2.953,6 3.270,5 7.399,2 13.508,8 3,73 3,76 8,39 6,15 4.72 Tabela 2 Produtividade por pessoa lotada na agricultura em Dólar Fonte: Fan & Kang [2005]. O constante aumento da produtividade além de contribuir para aumentar a renda do campo, ajudou a balança comercial coreana, diminuindo os sucessivos déficits comercias que acompanhou grande parte da trajetória econômica do país até a década de 1980, amplificando a capacidade de importação de maquinário e insumos necessários para a continuidade do crescimento industrial e urbano. Iscan [2017] afirma que a reforma agrária engendra, em decorrência dos impactos no desenvolvimento, uma forte realocação de trabalho para os setores secundários e terciários e, no caso da Coreia do Sul, parece ter sido de grande importância para o aumento da taxa de poupança em consequência da melhora da distribuição de renda. Ainda segundo Iscan [apud Woo], há evidências que a taxa de matrícula escolar cresceu na Coreia em parte devido a reforma agrária, que ocasionou aumento da produtividade do trabalho, liberando menores de idade do trabalho agrícola e possibilitando que tivessem uma melhor formação escolar. Modelo desenvolvido por Iscan [ibid] demonstra que sem a reforma agrária a renda per capita da Coreia do Sul teria sido 10% inferior e a produtividade agregada da agricultura seria cerca de 10% mais baixa em 1960. Conclusão A reforma agrária realizada na Coreia do Sul atendeu a dois objetivos, um de ordem política: o combate à influência da Coreia do Norte e seus ideais na mente do povo do sul da península, o outro de ordem econômica: promover o desenvolvimento do país através da industrialização, nesse sentido, a distribuição de ativos e renda, além da eliminação do poder dos latifundiários, foram elementos de grande importância na busca desses objetivos e alcançaram o sucesso pretendido. Referências Alexandre Black de Albuquerque, Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. BANK OF KOREA. Economic Statistics YearBook, 1955. BARRACLOUGH, Solon L. A Reforma Agrária nos Países em Desenvolvimento: o papel do Estado e outros agentes. In Teófilo, Edson [org] et al. A Economia da Reforma Agrária: evidências internacionais. Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2001. BINSWANGER, Hans P & DEININGER, Klaus & Feder, Gershon. Poder, Distorções, Revolta e Reforma nas Relações de Terras Agrícolas. In Teófilo, Edson [org] et al. A Economia da Reforma Agrária: evidências internacionais. Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2001. FAN, Shenggen & Kang, Connnie Chan. Is Small Beautiful?: farm size, productivity, and poverty in Asian agriculture. Agricultural Economics, v. 32, issue s1. p.135-146. February 2005. ISCAN, Talan B.Redistributive Land Reform and Structural Change in Japan, South Korea, and Taiwan. American Journal of Agricultural Economics. 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A POLÍTICA DE TRÊS REVOLUÇÕES E A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO NA REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA DA COREIA André Felipe Costa da Luz Introdução Desde o ano de 1948, quando fundada a República Popular Democrática da Coreia, os coreanos têm levado adiante a construção do socialismo, um socialismo denominado “juche” [termo que, em tradução livre, significaria algo como “dono do próprio corpo”], baseado em uma cosmovisão própria e bastante peculiar ao seu desenvolvimento histórico, com raízes que remontam ao processo de libertação nacional liderado pelos comunistas contra o imperialismo japonês, responsável por colonizar a Península Coreana entre 1910 e 1945. Independe do juízo do valor que se faça a respeito do regime instaurado na porção norte da Península, não é difícil reconhecer que essa experiência é alvo constante das mais diversas caricaturas e distorções possíveis por parte dos veículos internacionais de mídia. Muitas vezes, mesmo o trato acadêmico conferido ao assunto acaba por cair em semelhante conduta, terminando por conceber a construção do socialismo na RPDC como algo de fácil explicação, geralmente recorrendo ao apelo de que a China é responsável por financiar esse processo. Muito longe de tentar esgotar a discussão, esse artigo, com o objetivo de melhor entender o desenvolvimento social e econômico da RPDC, se debruça sobre aquilo que vamos chamar de “Política de Três Revoluções”, com o objetivo de entender no que consistiu tal bandeira e quais as suas funções para a construção do socialismo juche na República Democrática Popular da Coreia. A concepção da Política de Três Revoluções Os intelectuais da RPDC, naturalmente, se debruçaram com afinco sobre as questões próprias da edificação do socialismo, principalmente a respeito da questão da luta de classes durante essa etapa do desenvolvimento das forças produtivas. Um dos principais fatores que diferencia a abordagem coreana da de outras experiência socialistas é a ênfase sobre a ideia de que as contradições sociais e econômicas não estariam findadas uma vez tendo sido vitoriosa a revolução socialista. Segundo Kim Kang Il: “A revolução é a luta para realizar a independência das massas, algo que não se atinge depois do processo socialista, já que seguem de pé as velhas formas de pensar, as atrasadas forças produtivas e técnicas e o baixo nível cultural e intelectual que restringe e oprime a soberania dessas. Esses atrasos somente podem ser eliminados por meio da revolução que, portanto, deve prosseguir no que diz respeito aos aspectos ideológico, técnico e cultural, até o fim da etapa socialista.” [Il, 1992, p. 76, tradução nossa] A Política de Três Revoluções é concebida, portanto, não como uma mera abstração por parte de um grupo de teóricos, mas como uma exigência material do próprio transcurso da revolução. Corroborando com essa perspectiva, Kim Il Sung, principal líder do processo nacional-libertador e fundador da RPDC, assinala que: “Com o estabelecimento do regime socialista se realiza o zazusong sócio-político das massas do povo trabalhador, mas fica, contudo, a tarefa de libertá-las completamente dos grilhões das velhas ideologias e da natureza. Portanto, depois da implantação do regime socialista, é necessário, juntamente com a sua consolidação e desenvolvimento ininterruptos, acelerar a escala total a transformação do homem e a natureza mediante o enérgico desenvolvimento das três revoluções para realizar por completo o zazusong das massas do povo trabalhador em todas as esferas. O Governo da República estabeleceu e vem materializando constantemente a orientação de executar as três revoluções: ideológica, técnica e cultural, desde o momento em que iniciou o caminho da construção da nova sociedade. Depois do triunfo da revolução socialista, o Governo da República desenvolveu vigorosamente as três revoluções, definindo-as como o conteúdo principal da revolução na sociedade socialista, como tarefas da revolução contínua até a construção do comunismo.” [Sung, 2018, p. 32-33] É possível notar que Kim Il Sung admite que o triunfo da revolução e a construção do socialismo por si só já presta uma valorosa contribuição no sentido da realização da independência [que ele vai conceituar como “zazusong”] das massas populares, porém, esse ainda é um processo de caráter inconcluso e, portanto, surge daí a ideia das Três Revoluções – ideológica, técnica e cultural – enquanto um processos de caráter imprescindível para edificar o socialismo e assegurar uma futura transição bem-sucedida para o estágio comunista. Revolução Ideológica Kim Il Sung estabelece que: “Das três revoluções a ideológica é a mais importante. A revolução ideológica é a tarefa de transformar o homem para converter os trabalhadores em revolucionários comunistas por meio de sua revolucionarização e proletarização, também é o trabalho político dedicado a elevar seu entusiasmo revolucionário e iniciativa criadora. Na orientação da luta revolucionária e do trabalho de construção o Governo da República considerou a revolução ideológica como a mais importante tarefa e manteve consequentemente o princípio de priorizála ante os demais trabalhos.” [Ibidem, p. 33] Para compreender tamanho grau de priorização destinado ao processo de revolução ideológica se faz necessário recapitular algumas características do processo de dominação imperialista do qual os coreanos foram alvos durante 35 anos. Por mais de três décadas, a colonização japonesa impôs um ferrenho processo de “niponização” sobre os coreanos. Tal processo contribuiu para reforçar, no seio da sociedade coreana, perspectivas ideológicas vistas como profundamente atrasadas pelos comunistas coreanos. Kim Han Gil explica que: “Os ocupantes japoneses aplicaram uma política de erradicação da cultura coreana. Eles não apenas embargaram o desenvolvimento da cultura nacional coreana em todos os aspectos, mas também destruíram e saquearam de forma imprudente a inestimável herança cultural. Eles, de forma ilegal, desenterraram tumbas antigas e reais em Pyongyang, Kaesong, Kyongju e de outros lugares para levar embora várias relíquias e preciosas peças de metal, além de saquear e danificar dezenas de milhares de volumes preservados em diferentes lugares. Eles chegaram ao ponto de distorcer a história coreana em benefício de seu controle colonial. [Gil, 1979, p. 11] O socialismo juche, por sua vez, não se limitando ao materialismo históricodialético marxista, ancora seus princípios a partir de um novo pressuposto filosófico, uma cosmovisão antropocêntrica que compreende o homem como “dono do mundo” e aquele responsável por seu destino, uma vez de que o mesmo, nutrido de independência, espirito criador e consciência, constituiria o ser mais poderoso do mundo e, por sua vez, seria aquele responsável por empreender as mudanças em seu curso, forjando seu próprio destino e rompendo com as relações de submissão impostas. Portanto, por partir de pressupostos fortemente ancorados na ideia da transformação da realidade a partir da atividade consciente do homem, os teóricos e dirigentes coreanos entendem que não é possível construir o socialismo sem que a consciência das massas populares não passe por um radical processo de transformação, daí a ênfase e prioridade dispensada em relação ao esforço da Revolução Ideológica que possibilitasse a superação das mazelas anteriormente mencionadas. Nesse sentido, Kim Il Sung reforça que: “Desenvolver sem cessar a revolução ideológica é uma exigência legítima do desenvolvimento da revolução. Se não a intensifica continuamente na sociedade socialista, é possível que na mente das pessoas revivam ideias caducas e penetrem as ideias capitalistas difundidas pelos imperialistas. Ademais, se não seguem a revolução ideológica, é provável que decaia paulatinamente o fervor revolucionário dos homens a medida em que melhora a vida e desaparecem as preocupações pelo alimento, vestuário e moradia. Apenas ao fortalecer constantemente a revolução ideológica se poderá levar a cabo com êxito o difícil, mas fundamental trabalho da educação e transformação comunista das pessoas e imprimir uma constante ascensão da revolução e da construção.” [Sung, 2018, p. 35] Revolução Técnica A Revolução Técnica constitui outro ponto crucial para a construção do socialismo, tendo em vista que este é um estágio de desenvolvimento durante o qual as forças produtivas precisam ser potencializadas no sentido de conseguir prover as demandas próprias do planejamento econômico central, sendo a industrialização algo de suma importância também para abolir a divisão do trabalho, ou seja, a diferença entre trabalho intelectual e trabalho manual, possibilitando um maior grau de igualdade entre os trabalhadores. O imperialismo japonês, durante os 35 anos em que colonizou a Coreia, adotou uma política econômica através da qual foi fomentada a atividade industrial, porém, os coreanos jamais colheram os frutos desse desenvolvimento, tendo em vista que a indústria instalada pelos japoneses tinha o objetivo de maximizar os lucros da metrópole, intensificando ainda mais a atividade imperialista caracterizada pela importação do excedente de capital e importação de matéria prima. Para Visentini: “Em termos econômicos, houve crescimento significativo, por vezes até maior do que o do próprio Japão, ainda que desigualmente distribuído. A produção agrícola expandiu-se substancialmente na década de 1920, graças a técnicas de irrigação implementadas pelos colonizadores, que visavam ao incremento da produção de arroz. Seguiu-se uma industrialização protegida nos anos 1930, voltada sobretudo para a indústria pesada no norte, cujo objetivo era fornecer bens de capital para a indústria de defesa japonesa no esforço de guerra contra a China. A parcela representada pela indústria na produção total da Coreia cresceu, aproximadamente, de 17% em 1925, para 395 em 1939. Destacam-se, em particular, o notável crescimento das indústrias química e metalúrgica e de máquinas/ferramentas, as quais, em conjunto, representavam cerca de 47% de toda a produção industrial da Coreia. Esse desenvolvimento econômico, no entanto, tinha como destino final a metrópole e trazia escassos benefícios para a população coreana. Para ilustrar essa situação, cabe lembrar que, graças à modernização promovida pelos japoneses, a produção de arroz norte-coreano aumentou em quase 40% entre 1912 e 1936; porém, no mesmo período, a quantidade de arroz consumida por coreanos diminuiu consideravelmente, de cerca de 70% para cerca de 40%. O resto da colheita era exportado compulsoriamente para o Japão, o que gerava aguda escassez alimentar na Coreia.” [Visentini; Pereira; Melchionna, 2015, p. 39] Como podemos ver, durante a colonização japonesa, a Coreia se encontrou em uma paradoxal situação na qual, ainda que presenciando o crescimento da atividade industrial, viu o desenvolvimento de suas forças produtivas ser atrasado pelo jugo imperialista. Sobre a necessidade da revolução técnica, Kim Il Sung afirma que: “A revolução técnica é uma importante parte integrante das três revoluções. Este constitui uma sagrada tarefa revolucionária endereçada a fomentar sem interrupção o bem-estar material do povo e libertar os trabalhadores de labores penosos, desenvolvendo as forças produtivas. Somente alcançando-a pode-se constituir a economia nacinal independente socialista, emancipar os trabalhadores das duras tarefas e assegurar-lhes uma laboral independente e criadora. [...] Com o enérgico desenvolvimento da revolução técnica conseguimos, em um curto espaço de tempo depois da libertação, superar totalmente a unilateralidade colonial da economia e o atraso técnico deixados pelo imperialismo japonês, e depois efetuamos a reconstrução técnica global da economia nacional e cumprimos de modo brilhante a histórica tarefa da industrialização socialista.” [Sung, 2018, p. 35-36] Para os comunistas coreanos, não se pode edificar o socialismo sem a independência, e a independência, por sua vez, tem como requisito primordial uma economia autossuficiente e autárquica, o que Kim Il Sung demonstra através de alguns números: “[...] No ano passado, a produção industrial cresceu 196 vezes em comparação com 1946, e nos anos 1946-1977 o setor da indústria mecânica aumentou de 5,1 a 33,7% no valor total da produção industrial. Nosso país cobre com a produção nacional 98% das necessidades de máquinas e equipamentos e se integrou às fileiras dos países desenvolvidos na produção per capita de artigos industriais.” [Ibidem, p. 36-37] Revolução Cultural Ao se deparar com tal termo, é quase que automática a ligação que possamos querer traçar com a Grande Revolução Cultural Proletária levada adiante por parte dos chineses, porém, cabe ressaltar que, apesar do título, a Revolução Cultural empreendida pelos comunistas coreanos constitui um processo de natureza distinta. Durante as mais de três décadas de colonização japonesa, o grau de instrução do povo coreano sofreu uma drástica queda. Totalmente desprovidos de direitos, o povo coreano foi convertido em uma massa de ignorantes em seu próprio solo, acarretando em um intenso aumento no número de analfabetos. A educação formal de qualidade passou a ser uma exclusividade das elites que colaboravam com o imperialismo nipônico. É para combater essa mazela que se destina a revolução cultural promovida na RPDC. Segundo Kim Il Sung: “A revolução cultural é outra das três revoluções, que há de cumprir o Estado da classe operária. Somente com a execução desta revolução é factível eliminar o atraso cultural, herdado da velha sociedade, e criar uma cultura socialista e comunista, assim como transformar todos os membros da sociedade em homens comunistas, desenvolvidos em diversas facetas. [...] Em nosso país, o trabalho docente registrou progresso bastante rápido. Segundo o avanço da revolução e da construção foi implantado de maneira gradual o ensino obrigatório, e hoje está em vigência o ensino obrigatório geral de 11 anos, que oferece a todos os integrantes da jovem geração o ensino secundário geral completo. Agora, 8.6 milhões de adolescentes e crianças, que são mais da metade da população, estudam gratuitamente, custeado pelo Estado, e se formam como tesouros revolucionários comunistas. [...] A revolução cultural em nosso país, que começou pela campanha alfabetizadora depois da libertação, avançou longe sob a bandeira da República, e está hoje em uma etapa tão alta que coloca como tarefa a implantação do ensino obrigatório superior. Esta é uma das façanhas mais valiosas realizadas por nossa República na construção de uma nova sociedade e um grande orgulho para nosso povo. Hoje, a tarefa mais importante da revolução cultural consiste em acelerar a intelectualização de toda a sociedade.” [Ibidem, p. 40-41] Como podemos constatar, o sentido central da revolução cultural promovida na RPDC consiste em transformar os cidadãos coreanos em sujeitos literalmente dotados de cultura, entendendo que a qualificação do ser humano é também um requisito indispensável na tarefa de construção de uma sociedade socialista, dotada de valores superiores. Conclusão Após esse breve exame acerca das três revoluções empreendidas pelo governo da RPDC, é possível concluir que, longe de serem processos isolados, cada uma dessas transformações atua de forma complementar, revolucionando os três setores de forma simultânea e complementar uns aos outros. Uma vez libertos do imperialismo japonês, os comunistas coreanos, liderados por Kim Il Sung, compreenderam que a revolução estava longe de acabar e que, muito pelo contrário, só poderia se ver completa uma vez superados todos os profundos resquícios oriundos de quase 40 anos de intensa dominação. Portanto, é possível afirmar que a Política de Três Revoluções consiste em um ponto chave para a construção do socialismo, compreendidas como o caminho para revolucionar a sociedade no sentido de edificar uma nação dona de seu próprio destino. Referências André Felipe Costa da Luz é graduando em História pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, integrante do Laboratório de Estudos e Pesquisas Orientais – LEPO e membro fundador do Grupo de Estudos Coreanos – ARIRANG, ambos pertencentes ao Centro de Humanidades da UECE. GIL, Kim Han. Modern history of Korea. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1979. Il, Kim Kang. Dirigente Kim Zong Il. Pyongyang: Ediciones em Lenguas Extranjeras, 1992. SUNG, Kim Il. RPDC e o socialismo juche. São Paulo: Edições Nova Cultura, 2018. VISENTINI, Paulo G. Fagundes; PEREIRA, Analúcia Danilevics; MELCHIONNA, Helena Hoppen. A Revolução Coreana: o desconhecido socialismo Zuche. São Paulo: UNESP, 2015. ALÉM DO GRANDE TIMONEIRO: OUTRAS VOZES NA LIDERANÇA DA CHINA COMUNISTA ENTRE A REVOLUÇÃO E A MORTE DE MAO TSÉ-TUNG Bruno Marques A figura de Mao Tsé-tung como o “Grande Timoneiro”, o grande líder, costuma concentrar quase todas as atenções quando se trata do regime comunista implantado na China. Muitos textos caracterizam Mao como incontestável e praticamente único sujeito das ações. Vide, por exemplo, a quantidade de frases com que Henry Kissinger em Sobre a China inicia justamente com seu nome seguido de algum verbo. “Mao delineou”, “Mao dividiu”, “Mao lidou”, “Mao gerou”. Ou de expressões como “estratégias de Mao”, “visão de Mao”, “filosofia de Mao”. Uma leitura na qual Mao foi sempre quem fez ou deixou de fazer, sendo o país um mero reflexo de suas intenções. Seria “a China de Mao” [KISSINGER, 2012, p. 68]. Resta pouca dúvida da proeminência de Mao. No entanto, a ênfase exagerada em seu protagonismo gera a impressão de que ele teve sempre controle absoluto sobre o Partido Comunista Chinês [PCCh], o governo, a sociedade e demais atores, como o Exército de Libertação Popular [ELP]. Este artigo busca, porém, destacar a existência de discordâncias internas e de vozes alternativas no alto escalão da China entre 1949 e 1976. Vozes capazes de gerar debates, dissensões e, eventualmente, até obrigar Mao a ceder. Já no começo dos anos 1950, divergências importantes puderam ser notadas intramuros do PCCh. O Politburo, seu órgão executivo, tinha 14 membros, e cinco deles compunham um órgão paralelo, o Comitê Central: Mao Tsé-tung, Liu Shaoqi, Zhou Enlai, Zhu De e Chen Yun. Não eram meros executores acríticos dos planos de Mao, nem concordavam sempre entre si. Liu e Zhou, especialmente, demonstraram em diferentes ocasiões terem ideias próprias. Compartilhavam do objetivo de promover uma transformação socialista da economia, mas tinham sérias ressalvas, por exemplo, quanto aos aos métodos e prazos relativos à coletivização no campo [XIAO-PLANES, 2010], bem como às restrições ao mercado e à propriedade privada. Essas diferenças originais sobre a economia – a rigor, sobre o Primeiro Plano Quinquenal – acabaram, inclusive, se mesclando com uma crise de natureza distinta, envolvendo fortes tensões entre o poder central e as autoridades locais. Nos anos imediatos à revolução de 1949 houvera a implantação de um poder partilhado entre o Governo formalmente constituído, o PCCh e o ELP, dividindose a China em seis regiões administrativas [SPENCE, 1990]. Cada uma seguia o modelo de divisão tripartite do poder central, tendo um chefe de governo, um primeiro-secretário do partido e um comandante militar. Nesse contexto, alguns líderes regionais mostraram-se especialmente poderosos, casos de Gao Gang, vicepresidente do conselho governamental na região da Manchúria [nordeste do país]; Peng Dehuai, comandante militar [noroeste], o também militar Rao Shushi [leste], além de Lin Biao [centro-sul] e Deng Xiaoping [sudeste]. Todos seriam futuramente expurgados. No inverno de 1952 para 1953, várias dessas autoridades locais, foram convocadas a Pequim. De acordo com Spence [1990, p. 524, traduções minhas], “[...] havia problemas perenes embutidos na República Popular. Tensões de autoridades regionais e centrais, de subversão da burocracia e de ambições individuais e bases de poder”. Gao Gang e Rao Shushi atacaram Zhou e Liu por suas posturas cautelosas. Segundo Xiao-Planes [2010, p. 124], Gao viajou pelo interior da China em busca de aliados. Então, Mao, que divergira de Zhou e Liu em relação à economia, reconsiderou sua posição e interveio em prol dos dois. Gao e Rao foram presos, acusados de tentarem tomar o poder. Em 1954, foram extintos os seis departamentos político-militares em que o país havia sido dividido. “O Exército foi colocado sob um recém-formado Ministério da Defesa subordinado ao Conselho de Estado em Pequim. Para implementar as decisões do partido, a China mudou para um sistema fortemente centralizado, em que secretários provinciais do partido supervisionavam a disseminação da ordem do Comitê Central” [SPENCE, 1990, p. 542]. No que diz respeito à economia, porém, Zhou Enlai e Liu Shaoqi voltariam a manifestar discordâncias com Mao, por exemplo, em abril de 1956. Segundo Teiwes [2001, p. 13], eles argumentaram contra os planos de aumentar os fundos de construção de capital. Apoiado inicialmente por apenas um membro do Politburo, Mao insistiu até seu ponto de vista ser aceito. Zhou, porém, não se deu por convencido, aproximou-se de Mao e reabriu o debate. Apesar de contrariado, Mao cedeu. “Isso mostra que, enquanto Mao foi capaz de impor sua vontade sobre o coletivo, ele também foi persuadível [...]”, diz Teiwes [Ibid., p. 12, traduções minhas]. Quase todos os grandes acontecimentos do período 1949-1976 foram perpassados por choques entre a liderança. A exemplo dos Planos Quinquenais, houve divergências de diferentes líderes com Mao e entre si durante o movimento das Cem Flores, o Grande Salto Adiante, a Revolução Cultural e a aproximação diplomática com os Estados Unidos, entre outros episódios. Mao, Zhou Enlai, Chen Yun, o novo secretário-geral Deng Xiaoping e o general Lin Biao defendiam, por exemplo, relaxar o controle sobre os intelectuais. Já Liu Shaoqi e Zhu De, o general Peng Dehuai e o prefeito de Pequim Peng Zhen insistiam na disciplina. Dessas divisões surgiu o movimento das Cem Flores [SPENCE, 1990, p. 567]. Interessante no episódio, além das dissensões em si, é a constatação de como o domínio de Mao sobre os meios de comunicação era limitado. Durante sua campanha contra a concessão de liberdade aos intelectuais, Peng Zhen tomou o controle dos principais jornais de Pequim. Mao precisou usar sua base de apoio em Xangai para defender publicamente suas posições, algo que ocorreria outras vezes até a Revolução Cultural. Somente em abril de 1957, após meses rodando o país, Mao fez imprensa e órgãos de propaganda balançarem para o seu lado quanto às Cem Flores [Ibid., p. 569]. Ao darem esperanças aos intelectuais, Mao e aliados tentaram limitar o debate em torno de temas como trabalho compulsório e economia, o que logo foi extrapolado. Acusaram-se membros do partido de terem privilégios e violarem direitos humanos. Universitários de Pequim criaram o “Muro Democrático” e o cobriram de críticas. Percebendo o agravamento da situação, Mao foi obrigado a ceder à oposição interna e bandeou para o lado dos dirigentes que Spence definiu como “linha-dura”, que sempre foram contrários às Cem Flores. Mao mudou seu discurso. E, em julho, passou-se a atacar quem criticava o partido. Outras questões cruciais como a coletivização das terras continuariam como foco de tensões. Em 1957, a produção agrícola foi decepcionante, o volume de grãos disponível aos consumidores urbanos responsáveis pelo crescimento industrial era insatisfatório. Contudo, era difícil extrair mais do campesinato sem usar métodos de coerção. Decisão delicada considerando-se que 70% do partido tinha origem camponesa. Zhou Enlai e Chen Yun defendiam que os camponeses só produziriam mais se recebessem incentivos materiais e oportunidades de comprar bens de consumo [Ibid., p. 574]. Mao ignorou ambos, apelando para incentivos morais e campanhas de mobilização de massa sob lideranças locais. Em julho de 1958 começou uma campanha para extinguir os lotes privados. Cerca de 740 mil cooperativas foram fundidas em 26 mil “comunas populares”. Os autores dos relatórios de produção, porém, não registravam dados verdadeiros, inferiores às cotas estipuladas pelo partido, com medo de serem rotulados como direitistas ou derrotistas. Em dezembro, a maioria dos líderes do PCCh já se recusava a afirmar, ao contrário de Mao, que as comunas marcavam a transição para o comunismo. No início de 1959 algumas já retornavam ao formato de cooperativas e em muitas regiões lotes privados voltaram a ser alocados a famílias. Mao, então, deixou o comando do Estado. Liu Shaoqi assumiu seu lugar. Mao conservou outras posições, como de presidente do PCCh e da Comissão de Julgamentos Militares, mas é significativo que tenha abdicado de um cargo de tal natureza. Em julho de 1959, numa conferência, o marechal Peng Dehuai escreveu uma carta privada, com críticas. Mao tomou-a como um ataque à sua liderança, reagiu vazando a carta e lançando uma denúncia contra Dehuai, que acabou removido do posto de Ministro da Defesa. Mao ameaçou ir ao interior da China novamente e liderar os camponeses na derrubada do Estado, caso se insistisse em enfatizar o lado negativo das políticas adotadas. Completou dizendo que se o ELP não o seguisse, organizaria outro Exército de Libertação. Havia tensão entre PCCh e ELP. “[Os militares] começaram a adquirir novas habilidades técnicas que os quadros comunistas ainda não haviam dominado [...]. Não estava claro que lado iria predominar”, frisa Spence [Ibid., p. 563, tradução minha]. Mao chegou a declarar: “Nosso princípio é que o Partido comanda a arma e a arma jamais poderá comandar o Partido” [Ibid., p. 563]. Sob essa perspectiva, a vitória sobre Dehuai foi significativa. Ela encorajou Mao a renovar sua confiança nas comunas. O investimento industrial cresceu. Mas o montante de grãos caiu. O resultado foi uma fome em escala gigantesca que matou, estima-se, 20 milhões de pessoas ou mais, entre 1959 e 1962. A catástrofe teve como consequência o afastamento de Mao da linha de frente do PCCh. Outras figuras tomaram a dianteira. Destaque para o chefe de Estado Liu Shaoqi, o premiê do Conselho de Estado Zhou Enlai e o secretário-geral Deng Xiaoping. E em 1961 iniciou-se uma investigação sobre as reais condições do campo. Momentaneamente fragilizado, Mao concordou em deixar a visão de Chen Yun sobre a economia prevalecer [Ibid., p. 591]. Não é claro o quanto seu recuo representou de perda efetiva de poder. Teiwes [2001, pp. 13-14] argumenta que Mao continuou com a última palavra. Wang [1996, p. 4], ao contrário, sugere que sua perda de poder não foi apenas aparente: “Deng Xiaoping não consultou mais Mao a partir de 1959. Mesmo quando tomou decisões importantes, [Deng] raramente informou [Mao]”. Para Spence [1990, p. 596], a crença no grande líder revolucionário já não era a mesma: “As opiniões divididas que surgiram na liderança da República [...] deixaram Mao se sentindo ameaçado. Liu Shaoqi, Deng Xiaoping, Chen Yun e Zhou Enlai, todos revolucionários veteranos, pareciam cada vez menos compartilhar sua visão de governança através da luta contínua. Na verdade, eles mal pareciam precisar de sua presença ou de sua inspiração”. De acordo com Lensing [2016, p. 60], Mao foi atacado pela alta cúpula do partido em 1962 e 1963, quando o Comitê Central já incorporara Deng Xiaoping e o ministro da defesa Lin Biao. Os ataques mais duros partiram de Liu Shaoqi. “Liu criticou as políticas do Grande Salto numa conferência com 7 mil partidários, o que, em essência, era criticar Mao. Mais importante, Mao fez uma autocrítica na conferência, [...] o que foi um choque para muitos. [...] O discurso de Liu pegou [Mao] desprevenido e foi apoiado pela maioria dos presentes. [...] A luta interna do partido escalou rapidamente” [Ibid., pp. 60-61, tradução minha]. Em dezembro de 1964, Xiaoping convocou uma conferência do Comitê Central para discutir questões da Campanha de Educação Socialista e sugeriu que Mao não tomasse parte no encontro [WANG, 1996, p. 4]. Mao, no entanto, conduziu ativamente a discussão. Na ocasião, porém, Liu Shaoqi interrompeu Mao quando esse começava sua fala. A interrupção enraiveceu Mao. A retomada das rédeas do partido por Mao viria com o apoio de outras forças: Exército, intelectuais radicais e massas populares. Em 1965, a economia já dava sinais de recuperação. Mas enquanto os planejadores econômicos revertiam os danos do Grande Salto, Mao lutava em outra frente. “Nesse momento de emergência nacional potencial, Mao escolheu esmagar o Estado chinês e o Partido Comunista”, afirma Kissinger [2012, p. 129]. Alegava estar chamando uma campanha socialista que colocaria o proletariado contra a burguesia, enquanto Liu e seus amigos desviavam a questão. A luta por poder no PCCh é uma das explicações da Revolução Cultural [19661976]. Seu estopim se deu no caso de Wu Han, escritor símbolo da “ideologia burguesa reacionária”, nas palavras de Mao ditas em setembro de 1965. Wang [1996, p. 5] destaca que Wu Han era também vice-prefeito de Pequim. O ataque, portanto, tinha dupla motivação, atingindo intelectuais e rivais políticos. Segundo Lensing [2016, p. 62], Liu, Deng, Peng Zhen e outros se recusaram a criticar Wu Han. “Isso provou que Mao não tinha controle completo sobre o Partido e precisava manobrar cuidadosamente para se livrar dos oponentes. Além do mais, nessa conferência, Peng Zhen fez observações desafiadoras [...]. Disse que ‘todos eram iguais diante da verdade e mesmo Mao poderia ser criticado’” [LENSING, 2016, p. 62, traduções minhas]. Nesse contexto, revelaram-se mais uma vez limites do poder de Mao em relação à imprensa. Ele se irritou com a fraca repercussão de suas críticas a Wu Han nos jornais, os quais eram controlados por seus oponentes de partido [SPENCE, 1996, p. 601]. Peng Zhen foi acusado de conspirar contra Mao. Wu Han e família foram atacados. Os protestos se alastraram. Estudantes se filiaram ao PCCh e foram declarados Guarda Vermelha. Mao inflamou a militância, pediu vigilância contra os que queriam subverter a revolução, apontando publicamente como um erro a tentativa de Liu Shaoqi de frear os protestos [SPENCE, 1990, p. 605]. Jovens destruíam edifícios, templos e objetos de arte. Atacavam professores, diretores, autoridades e seus próprios pais. Em agosto, vieram os expurgos no alto escalão: Liu Shaoqi morreria na prisão em 1969; Deng Xiaoping seria redimido em 1973. A esposa de Mao, Jiang Qing, revelou-se uma das mais radicais, a ponto de contrariar o marido. Em 1967, ela disse que o título de chefe deveria ser esmagado [Ibid., p. 609]. Mao respondeu que chefes eram necessários. Buscou-se, enfim, uma acomodação com uma nova estrutura política baseada em comitês compostos por militares, massas e “quadros corretos” do PCCh. Jiang Qing, então, passou a denunciar tendências de “extrema esquerda” e clamar o Exército chefiado por Lin Biao como “campeão da ditadura do proletariado”. “[...] Aqueles que convulsionaram o próprio partido buscavam agora assumir o comando e forçar uma volta à obediência de estudantes e trabalhadores”, resume Spence [Ibid., p. 609]. O Exército acabou por expandir seu papel, fortalecendo-se diante do partido. Recolocava-se a disputa de poder que se dera nos anos 1950. E o prestígio do ELP aumentou após choques militares na fronteira com a União Soviética [URSS], em 1969. Lin Biao emergia como herói nacional. Enquanto isso, o PCCh seguia convulsionado pela “Campanha para Purificar as Fileiras de Classe”, que, entre 1967 e 1969, perseguiu milhões de militantes suspeitos. Mas, desconfiando de Lin Biao e de como o Exército investigava antigos quadros, Mao buscaria fortalecer novamente o partido [Ibid., p. 616]. Em setembro de 1970 Lin Biao pediu a Mao que fosse nomeado Presidente da República, mas Mao negou: “Foi o primeiro sinal de que Mao se preocupava com o enorme poder adquirido por Lin” [WITKER BARRA, 2018, p. 81]. Biao morreria em setembro de 1971 num acidente aéreo, possivelmente abatido enquanto tentava deixar o país. O governo logo divulgaria a versão de que ele planejava um atentado contra Mao. Segundo Spence, Biao fora “um homem que ajudou a reconstruir a autoestima de Mao”, exaltando sua imagem pública como “grande líder”, “Grande Timoneiro”. Fora um dos artífices da Revolução Cultural e, no fim, deu respaldo militar para extirpá-la de seus aspectos populares mais inconvenientes. Acabou acusado como traidor, algo que chocou a população, que o via como herói. Além de potencial rival, Biao teria caído em desgraça pela sua oposição à aproximação diplomática com os Estados Unidos [EUA] promovida por Mao e Zhou Enlai em meio aos conflitos com a URSS [KISSINGER, 2012, p. 175]. O movimento em direção aos EUA, aliás, continuou como ponto de atrito após a morte Biao. Duas facções se formaram como possíveis herdeiras de Mao. De um lado, a Gangue dos Quatro, incluindo Jiang Qing, era avessa à aproximação com os EUA e dominou parte da imprensa, universidades e esfera cultural, difamando a outra facção, mais pragmática, composta por Zhou Enlai e Deng Xiaoping, que relutavam à ideia de “revolução permanente”. Zhou tivera peso em política externa desde os anos 1950, tendo papel central na construção de uma imagem respeitável da China na comunidade internacional e ajudando a forjar o bloco dos países não-alinhados. “O arquiteto dessa nova política externa [nos anos 1950] foi Zhou Enlai [...]”, afirma Spence [1990, p. 551]. Ele acabou acusado de “direitismo” por Nancy Tang, intérprete que era próxima de Jiang Qing, e por Wang Hairong, sobrinha-neta de Mao. “É concebível que Zhou tenha começado a ver a relação americana como um fato permanente, ao passo que Mao a tratasse como tática passageira”, sugere Kissinger [2012, p. 195]. Já Deng Xiaoping sobreviveu para fazer história. Seu perdão, em 1973, fora alvo das objeções da Gangue dos Quatro. Quando Mao morreu, em 1976, quem herdou de imediato suas posições como presidente do PCCh e da Comissão Militar Central foi Hua Guofeng, alguém que não tinha apoio político de nenhuma das facções em conflito, mas logo optou por se aliar aos pragmáticos. Guofeng e Xiaoping tendiam a concordar sobre política externa, mas a divergir sobre economia. O primeiro defendia “métodos soviéticos” e investimento na indústria pesada. O segundo, produção de bens de consumo, menos intervenção estatal e governo mais descentralizado. “Deng prevaleceu porque havia ao longo das décadas construído ligações dentro do [Partido] e especialmente no [Exército], e porque operou com destreza política muito maior”, diz Kissinger, [2012, pp. 212-13]. Por mais que a influência, liderança e ascendência de Mao Tsé-tung sobre o PCCh e o Estado tenham sido enormes, sua voz, portanto, esteve longe de ser única. Essa constatação segue importante para entender um país que desde o fim dos anos 1970 ousou adotar uma política econômica peculiar, de um “socialismo com características chinesas”, justamente sob liderança das vozes dissonantes, o ora expurgado, ora redimido Deng Xiaoping. O país que hoje ressurge como potência é provavelmente bastante mais complexo do que sugerem os relatos comuns, estereotipados, herdeiros de um maoísmo simplista. De alguma forma, o presente da China é, ainda, um legado das complexidades do “tempo de Mao” – que também é o tempo de Gao, Rao, Liu, Zhou, Deng e outros – sem cujo reconhecimento será difícil entendê-la. Referências Bruno Marques é graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo [Ufes]. KISSINGER, Henry. Sobre a China [recurso eletrônico]; tradução Cássio de Arantes Leite. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. recurso digital, pp. 67-217. LENSING, Dexter. From Mao to Xi: Chinese Political Leadership and the Craft of Consolidating Power. McNair Scholars Research Journal, Boise State University [United States of America]: Vol. 12, Iss. 1, Article 15, 2016, pp. 59-84. Disponível em: https://scholarworks.boisestate.edu/mcnair_journal/vol12/iss1/15. Acesso em: 20 abr. 2021. SPENCE, Jonathan D. 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Acesso em: 20 abr. 2021. XIAO-PLANES, Xiaohong. The Pan Hannian Affair and Power Struggles at the top of the CCP [1953-1955]. China Perspectives, French Centre for Research for Contemporary China, Hong Kong, N. 4, 2010, pp. 116-27. Versão em inglês de N. Jayaram do original em francês. Disponível em: https://journals.openedition.org/chinaperspectives/5348. Acesso em: 20 abr. 2021. JIGME NAMGYAL: O ARQUITETO DO REINO DO BUTÃO Emiliano Unzer A morte do líder Ngawang Namgyal [1594–1651], que depois ficou conhecido com o título de Zhabdrung em suas diversas reencarnações [ku tulku], assinalou o início das lutas pelo poder nas regiões ocidentais do Butão. As prolongadas contendas internas e guerra civil, caracterizado por intrigas, traições e assassinatos, trouxe crescentes pressões externas culminando na Guerra de Duar de 1864-65 que, por um tempo, ameaçou a própria sobrevivência da nação butanesa. Embora tenhamos notado que mais de quarenta Druk Desis [Expressão que pode ser traduzida por “Rei Dragão”, título nobiliárquico usado pelos monarcas do Reino do Butão.] reinaram continuamente ao longo do período, a estabilidade e o prestígio do governo central nunca foram nada perto do sistema de governança do primeiro Zhabdrung. Todas as encarnações que o sucederam durante o período eram muito jovens ou careciam do carisma pessoal e do gênio político que ele comandava. Cada um deles se tornou presa fácil das maquinações de facções rivais, usando-os como meio em sua tentativa de obter o controle da teocracia. Observada no contexto dessas convulsões, a ascensão de Jigme Namgyal durante a Guerra do Duar e seus antecedentes imediatos foi talvez o evento mais importante da história butanesa desde o primeiro Zhabdrung. Seu surgimento como o líder incontestável de um país unido, mesmo que apenas durante a breve duração da guerra, foi certamente a razão mais provável para a sobrevivência do Butão no século 19 e posteriormente. As origens de Jigme Namgyal remetem a uma das principais famílias da nobreza religiosa descendente de Pema Lingpa [1450 - 1521]. Foi durante as guerras civis que assolaram o oeste do Butão, nos primeiros anos de 1800, que dois irmãos, Pala Gyeltshen e Pila Goenpo Wangyal, trouxeram fama e prestígio ao nome da família. Lutando ao lado de forças que apoiavam o Desi Druk Jigme Drakpa II [r. 1810 11], os irmãos, mais conhecidos como Pala e Pila, tornaram-se amplamente celebrados por sua bravura e feitos armados em batalha. Os conflitos cessaram brevemente em 1811, quando o Zhabdrung da época renunciou ao seu papel no conflito e retirou-se da cena política. Pila, o mais jovem dos irmãos, cansado e profundamente perturbado pela violência, pegou sua espada e voltou para casa em Dungkar, onde se casou com Sonam Pelzom, do vilarejo de Jangsa [Phuntsho, 2013, pp. 441-3]. Nascido em 1825, Jigme Namgyal foi o segundo dos seus três filhos e uma filha. Quando ele tinha cerca de quinze anos de idade, Jigme Namgyal começou a ter sonhos repetidos dizendo-lhe que ele deveria ir para o oeste em direção a Bumthang e Trongsa, onde ele encontraria seu verdadeiro destino. Acreditando que os sonhos eram uma profecia divina, ele decidiu sair de casa e ir para o oeste. Não se sabe se ele partiu com as bênçãos de sua família ou simplesmente partiu sozinho. Em qualquer caso, parece que ele viajou sozinho e com provisões adequadas para a viagem. Não há relatos de sua jornada a Dungkar e Trongsa, que dizem ter durado vários meses, até que ele foi parar no Vale Tang de Bumthang trabalhando como pastor na vila de Narut. Depois de alguns meses em Tang, Jigme mudou-se para o vale de Chhume, onde conheceu uma pessoa que tinha aparecido em seus sonhos. O Buli Lama abençoou Jigme Namgyal, deu-lhe abrigo e organizou sua viagem para Trongsa. Lá, o lama providenciou para que ele fosse apresentado ao Trongsa Poelnop como um assistente. Nos primeiros anos em Trongsa, Jigme Namgyal foi aceito no serviço da fortaleza de Trongsa Dzong [construção típica dos reinos budistas do Himalaia, particularmente do Butão, que tem as funções simultâneas de centro religioso, militar, burocrático e administrativo de determinada região], e nomeado no nível mais baixo de servos como um Tozep [Nível mais baixo dos que serviam no Trongsa Dzong]. Os primeiros anos de sua vida no dzong devem ter contrastado totalmente com o de sua infância na família aristocrática Chhoeje. Seus deveres diários consistiam em trabalho duro, como buscar água e lenha, fazer recados, varrer pátios e assim por diante. Como um Tozep, ele teria direito a comida da cozinha comum do dzong junto com centenas de outros de categoria semelhante. Mas as diárias servidas ali estariam longe das expectativas de um jovem aristocrata. Embora o governante do dzong [poenlop] tenha reconhecido os antecedentes familiares de Jigme Namgyal, que os tornava parentes distantes, ele não poderia ter comprometido a disciplina do mosteiro ao mostrar favores especiais ou conceder privilégio. Em 1843, enquanto Jigme Namgyal ainda era um mero tozep, Ugyen Phuntsho se aposentou e foi sucedido por Tshokye Dorji - outra família com conexões com a linhagem de Pema Lingpa [[1450-1521] foi uma figura santa butanesa e siddha da escola Nyingma do budismo tibetano.]. Diz-se que Tshokye havia aprendido anteriormente numa profecia religiosa que sua associação com um homem chamado “Jigme” das regiões leste seria benéfica para todo o país. Talvez tenha sido por esse motivo, que Jigme Namgyal ficou sob a atenção pessoal e próxima do poenlop e começou sua rápida ascensão na hierarquia. No primeiro ano do governo do novo poenlop, Jigme Namgyal foi promovido como um zinggup [atendente]. Logo após três anos, ocupou os cargos conjuntos de zimmang [camareiro júnior] e darpoen [chefe dos atendentes] e foi depois promovido ao prestigioso posto de trongsa tshongpoen, encarregado da província para os negócios com as regiões tibetanas [Phuntsho, 2013, p. 445]. Com esse influente cargo, Jigme Namgyal viajou extensivamente pelo Tibete, onde suas negociações com as autoridades tibetanas ampliaram suas dimensões ao seu treinamento e experiência em assuntos judiciais. Foi também durante esse período que ele conheceu sua futura esposa, Pema Choeki, a filha mais nova do ex-poenlop, que estava no Mosteiro Lhalung do Tibete com seu irmão, sendo ele considerado uma encarnação [ku tulku] de Pema Lingpa. Aos 24 anos em 1849, Jigme Namgyal ascendeu ao importante posto de trongsa zimpoen [camareiro do governador, o trongsa], uma posição que indicava a confiança que sua lealdade e excelente serviço tinha ganhado. Entre os muitos episódios em que Jigme provou sua coragem e lealdade, um incidente em Punakha provou ser o mais importante. Sua primeira missão foi liderar um grande contingente de trabalhadores de sua trongsa para ajudar na restauração da fortalezamosteiro de Punakha Dzong, que havia queimado num grande incêndio naquele ano. Ele passou quase o ano inteiro em Punakha supervisionando os trabalhadores. Em 1850, o trongsa poenlop [governador provincial] também chegou a Punakha, onde imediatamente se tornou alvo de conspirações de assassinato. Ficou sabendo que o Trongsa Poenlop, instigado por seu jovem camareiro, nutria ambições de consolidar seu poder nas regiões do leste e se afirmar de forma mais assertiva no oeste butanês. Um forte trongsa poenlop, como visto nas guerras civis no início do século 19, sempre foi uma ameaça aos centros de poder no oeste do Butão. É, pois, compreensível que as autoridades centrais preferissem que tais ameaças fossem logo suprimidas. No entanto, Jigme Namgyal, um observador atento das intrigas políticas prevalecentes no oeste do Butão, facilmente percebeu a conspiração e permaneceu alerta e vigilante. De acordo com uma tradição, ele nunca tirou sua espada nem dormiu numa cama durante toda a estadia do governador em Punakha. No momento crucial em que os assassinos deveriam atacar, Jigme teria entrado em cena e efetuado um resgate dramático do abalado poenlop que já estava cercado e indefeso. Por essa demonstração de coragem e lealdade, Jigme Namgyal foi imediatamente recompensado com o posto adicional de lhuntse dzongpoen [governador do dzong]. Quando eles voltaram para sua sede de governo, o grato poenlop prometeu a Jigme o cargo de trongsa poenlop quando chegasse a hora adequada. No mesmo ano, em 1850, soube-se que os governadores dos dzongs de Zhongar, Trashigang, Trashiyangtse e o Gyadrung de Dungsam planejavam uma revolta contra a região central butanesa de Trongsa [Região central do Butão onde a família Wangchuck governava o distrito como descendentes de Dungkar Choji [1587 - ?]. Futuramente, a partir de 1904, essa família irá ser a dinastia real sobre todo o reino unificado]. A rebelião foi secretamente apoiada pelo governo central de Punakha. Mobilizando suas tropas perto de Mongar, os rebeldes se prepararam para marchar para Trongsa com apoio militar que deveria vir do oeste do Butão. Nesse meio tempo, Jigme Namgyal foi promovido a trongsa droenyer [convidado-mestre de Trongsa] e enviado ao comando de uma grande força de tropas de Mangde, Bumthang, Lhuntse e Zhemgang. Numa grande batalha que ocorreu perto de Lingmithang, em Zhongar, o exército de Trongsa derrotou as forças rebeldes combinadas. Durante o inverno de 1850, Jigme liderou ofensivas perseguindo o inimigo por todo o leste do Butão. Os dzongs de Zhongar, Trashigang, Dungsa e Trashiyangtse caíram e todos os dzongpoens inimigos foram feitos prisioneiros. Até então, a jurisdição efetiva do trongsa poenlop era apenas sobre os quatro distritos de Mangde, Zhemgang, Bumthang e Lhuntse; seu domínio sobre as regiões orientais era tênue. Assim, a primeira expedição militar de Jigme Namgyal não foi apenas bem-sucedida, mas um evento importante a fortalecer significativamente a base de poder de Trongsa no futuro. No ano seguinte, em 1851, os problemas começaram no oeste do Butão quando o 38º Druk Desi reinante foi morto e o ambicioso Wangdue Phodrang Dzongpoen, Chakpa Sangay, planejou assumir o trono para si. Sua ambição, no entanto, foi imperdida quando o mais alto comitê de monges butaneses rejeitou sua candidatura. Enquanto isso, os apoiadores de Zhabdrung Jigme Norbu [1831-1861] o instalaram em Thimphu como 39º Druk Desi. O Zhabdrung, entretanto, contraiu varíola e teve que abdicar logo depois. Assim, Chakpa Sangay acabou no final assumindo o trono e foi instalado como o 40º Desi em Punakha [Antigo distrito na região central ocidental do Butão. O distrito tinha em seus limites a antiga capital butanesa até ela se mudar para Timphu [Timbu] em 1955]. Mas isso provocou protestos de muitos monges, assim como apoiadores do Zhabdrung anterior recorreram a Trongsa para obter ajuda armada contra o usurpador. A virada do evento, portanto, apresentou uma oportunidade ideal para o Trongsa Poenlop intervir no oeste do Butão. Satisfeito com o sucesso de suas recentes campanhas, Jigme Namgyal se viu mais uma vez liderando as tropas de Trongsa, desta vez contra o governo em Punakha. Quando ele chegou na região, foi descoberto que o Desi havia mudado sua base para Norbugang. Jigme evitou atacar o Punakha Dzon [“Palácio da Eterna Felicidade”, nome dado a uma das fortalezas e mosteiros mais importantes do Butão, construída no século 17, e serviu de sede administrativa central do país até 1955], mas, numa escaramuça que ocorreu perto de Norbugang, ele matou Mikthoem, famoso e temido guerreiro da região. Depois disso Jigme Namgyal e suas tropas recuaram para Trongsa, deixando o 40º Desi ainda no trono. O reinado deste, contudo, durou pouco pois foi vítima de uma conspiração de assassinato em 1852. A fama de Jingme Nmagyal a partir daquele momento espalhou-se pelas regiões butanesas. E mais significativamente, Jingme acumulou experiência em campo e ampliou seus contatos nas regiões ocidentais butanesas e tibetanas. Em 1853, Jingme Namgyal conseguiu enfim ser nomeado com o influente cargo de trongsa poenlop. Com essa nova posição, Jingme tinha sob seu poder amplas regiões a ser comandada para dirigir-se contra os rebeldes no oeste butanês. Ano seguinte, Jingme interveio diplomaticamente numa disputa em Thimphu envolvendo as disputas pelo trono do Druk Desi. Eventualmente, haveria de ascender o 41º Druk Desi, Jamtul Jamyang Tenzin. Isso foi um grande trunfo para Jingme, ampliando sua influência política. Em agradecimento, o novo Druk Desi concedeu mais autonomia administrativa nas regiões controladas por Jingme, e a de nomear governadores de dzongs nas regiões leste da fortaleza de Trongsa Dzong. Efetivamente, essas medidas tornaram o trongsa poenlop hegemônico nas regiões centrais e leste do Butão em meados do século 19. Quando o 41º Druk Desi morreu em 1857, a velha rixa entre os governantes de Thimphu e Wangdue Phodrang ressurgiu e, mais uma vez, exigiu o envolvimento do trongsa poenlop, Jngme Namgyal. Como desafio, o governante de Wangdue Phodrang resolveu tomar o controle de Punakha. Diante disso, Jingme aliou-se ao governante de Thimphu, nomeando-o como o novo Druk Desi, apenas para ser morto no mesmo ano por homens ligados ao seu governante rival. De volta a Trongsa, Jingme decidiu manter-se no poder como governante do dzong, desrespeitando a acordado anterior de que sairia do cargo depois de três anos a favor do filho do poenlop local, Jakar. Assim, em 1857, as lutas pelo poder foram iniciadas em Trongsa, com as batalhas mais decisivas ocorrendo em Shamkar. O lado de Jakar parece ter sido vitorioso nos primeiros momentos, fortalecido pelo apoio recebido pelo Druk Desi em Punakha. Depois de impasses e negociações de paz, ficou decidido que Jakar receberia o controle de alguns dzongs orientais de Trongsa. Embora o resultado tenha sido um impasse no final das contas, Jigme Namgyal emergiu fortalecido, tendo se estabelecido como o indiscutível trongsa poenlop. Com o acordo de paz com Jakar, Jigme Namgyal voltou sua atenção mais uma vez para as regiões no oeste. Ansioso por reafirmar sua presença, Jigme Namgyal liderou as forças combinadas de Trongsa e Jakar contra os rebeldes do Druk Desi, sofrendo esses em 1863, uma derrota esmagadora em Lungtenphu, em Thimphu. Como havia se aliado anteriormente a Jigme e a Jakar, o governante de Thimphu [Thimphu Dzongpoen], foi nomeado e instalado como o novo Druk Desi e um parente próximo de Jigme Namgyal tornou-se o novo Thimphu Dzongpoen. Jingme como o Trongsa Poenlop em 1864, ele também ganhou controle total sobre a nomeação não apenas das fortalezas-mosteiros do Butão ocidental, mas também do Druk Desi também. Com efeito, Jigme Namgyal tornou a sua posição, de Trongsa Poenlop, como a mais importante efetivamente do país. A partir desse momento os britânicos advindos das terras indianas começam a influenciar os eventos no Butão. Ashley Eden abriu caminho para Punakha liderando uma missão britânica em 1864, e na ocasião descobriu que Jingme Namgyal, o Trongs Poenlop. era o principal negociador em nome do governo. Para Jigme, a missão era suspeita. Ele viu que a proposta britânica de estacionar uma missão residente em Punakha e abrir o Butão ao livre comércio nada mais era do que um convite à dominação britânica. Ele rejeitou o projeto de tratado trazido pelos britânicos, insistindo que ele apenas desejava discutir o retorno dos Duars de Assam ao Butão - uma questão que Ashley Eden afirmou não ser negociável. As negociações foram interrompidas e a missão britânica foi insultada e humilhada. Jigme Namgyal estava ciente das consequências de sua ação. Ele também sabia que os britânicos tinham planos de longo prazo para o Butão e que, mais cedo ou mais tarde, haveria uma guerra fatídica. Mas Jingme presumiu que os britânicos, tendo sofrido uma revolta por nos eventos das revoltas indianas em 1857, não se aventurariam imediatamente em novas conquistas estrangeiras. Assim, depois de mais negociações fracassadas, Ashley Eden voltou a relatar o fracasso de seu objetivo em 12 de novembro de 1864, e assim os britânicos declararam guerra ao Butão, anexando por proclamação toda a Bengala e Assam, regiões adjacentes ao Butão. A guerra que se seguiu refletiu a superioridade bélica dos britânicos. Em 11 de novembro de 1865, foi assinado o Tratado de Sinchula, rendendo todos os duars – as regiões fluviais férteis na região nordeste da Índia no sopé da Cordilheira do Himalaia - de Assam e Bengala e concordando com o livre comércio com a Índia britânica em troca de um subsídio anual de 50 mil rúpias [Aris, 1980, pp. 264-5]. Para Jigme Namgyal, a derrota na guerra não significou desgraça. Na verdade, ele saiu ainda mais forte disso. Ele se levantou contra as demandas feitas pela missão britânica e inspirou as facções rivais no país a deixarem de lado suas querelas e se unirem contra um inimigo externo comum. Jingme, nesse sentido, tornou-se no principal estrategista militar que coordenou as contraofensivas que surpreenderam os britânicos. A mais famosa de suas vitórias ocorreu em Deothang em 27 de janeiro de 1865. No primeiro confronto, o lado butanês perdeu Jakar e a maioria de suas tropas. Jigme Namgyal retirou-se e retomou o ataque com maior força e derrotou a coluna britânica. Ele infligiu pesadas baixas ao inimigo, fez centenas de prisioneiros e capturou dois canhões britânicos. Ataques semelhantes, todos coordenados centralmente por Jigme Namgyal, foram lançados ao longo da fronteira e demorou um mês até que os britânicos pudessem se recuperar. O Tratado de Sinchula assinado pelo governo butanês foi condicionado ao retorno seguro dos prisioneiros britânicos e de dois canhões. Jigme Namgyal, entretanto, recusou-se a aceitar esses termos [ Phuntshop, 2013, pp. 459-467]. Tendo feito isso, Jigme Namgyal cedeu quando os britânicos começaram a marchar em direção a Trongsa, ameaçando anexar todo o país. Ele encontrou a coluna britânica que avançava perto de Yongla Goenpa e devolveu todos os prisioneiros e os dois canhões. Os britânicos se retiraram e a paz entre o Butão e os britânicos prevaleceu até 1947, quando a Índia se tornou independente. Jigme Namgyal ascendeu ao trono como o novo Druk Desi com a conclusão da chamada Guerra de Duar, após alguns anos, em 1870. Um ano antes, em 1869, contudo, ainda houve sérias ameaças na estabilidade do poder no Butão. O governante de Wangdue Phodrang tinha se aliado contra o regente de Punakha que, por sua vez, tinha buscado o apoio de Jingme. O cenário foi perfeito para uma nova intervenção estrangeira, com os britânicos e chineses no Tibete. Jigme passou a agir com rapidez a evitar maiores desdobramento das rivalidades. Ele atacou as forças rebeldes combinadas guarnecidas no dzong de Wangdue Phodrang. Ao final de 1869, vemos os líderes rebeldes clamando por paz, mas foram sumariamente executados. Estava assim consolidada a autoridade butanesa a partir de então. O período de Jingme como Druk Desi durou até 1873, quando ele se aposentou e foi sucedido por um primo-irmão, Kitshelp Dorji Namgyal, como o novo Druk Desi. Haveria ainda um segundo período como o Druk Desi na vida de Jingme Namgyal. Isso ocorreu devido a ressurgência de rivalidades nas revoltas em 1877, sob o novo governante [poenlop] de Paro. Jingme ao final soube reprimir e impor a autoridade na região, conquistando o controle do dzong. Por volta da mesma época, outra rebelião irrompeu no leste butanês, em que um parente do poenlop de Paro se articulou para entronizar um rival Desi, o jovem Choglye Yeshe Nguedrup. Isso foi inaceitável aos olhos de Jingme, pois contrariava a tradição butanesa de consulta aos governantes, regentes e monges sênior das terras butanesas. As revoltas foram em momento derradeiro derrotadas após a batalha em Lobesa. O poenlop de Paro conseguiu fugir para a Índia. Logo depois, Jingme reconquistou o dzong de Punakha das mãos de rebeldes remanescentes em 1878. Esse foi o último empreendimento militar de Jingme Namgyal. Jigme Namgyal então começou a colocar seus parentes de confiança e aliados próximos em posições-chave. Seu filho mais velho, Thinley Tobgye, que estava no mosteiro Lhalung, no Tibete, foi nomeado como o governante do dzong de Wangdue Phodrang. Outro filho seu, Ugyen Wangchuck foi instalado como o poenlop de Paro. E Phuntsho Dorji, seu filho adotivo, tornou-se o Zhung Droenyer [chefe de protocolo], enquanto Lam Tshewang, seu leal e comprovado apoiador, permaneceu como o governante do dzong de Thimphu. No inverno de 1881, depois de ocupar por um ano o cargo de Desi, terceiro mandato, ao retornar de uma visita a Punakha, Jigme Namgyal caiu de seu iaque em Hongtsho perto de Dochula e ficou gravemente ferido. Ele foi levado para o dzong de Simtokha, onde logo morreu devido aos ferimentos. Conclusão Jigme Namgyal foi certamente a maior figura nacional a surgir no Butão depois de Zhabdrung Ngawang Namgyal. A contribuição mais importante de Desi Jigme Namgyal foi a instauração da paz, através de uma redução das rivalidades locais entre as lideranças locais, unificando gradualmente o Estado ao longo de três décadas, dos anos de 1850 a 1870. A redução dos conflitos internos, especialmente depois de 1878, permitiu lançar os alicerces da monarquia que, por sua vez, trouxe uma era de ordem consolidada no Butão. Mais do que qualquer outro fator, foi a liderança de Jigme Namgyal na guerra e a consolidação da autoridade central e do poder político em suas próprias mãos que lançou as bases de uma nação butanesa unida. Em termos de relações externas, especialmente com a Índia britânica, Jigme Namgyal deixou um centro de poder butanês que tornou possível a revisão construtiva dos tratados e a melhoria das relações internacionais ao longo do tempo. O seu filho, o primeiro rei do Butão, Ugyen Wangchuck, cumpriu esse papel mais tarde [Rahul, 1997, pp. 8-14]. Após o reinado de Jigme Namgyal, as relações externas foram conduzidas de forma sistemática e coordenada, porque a fragmentação do poder no Butão foi concluída. O Tratado de Sinchula, 1865, que remontava ao tempo de Jigme Namgyal, tornou-se o instrumento jurídico bilateral crucial, orientador entre o Butão e a Índia Britânica e, mais tarde, a Índia Independente. O tratado foi depois atualizado e revisto em 1910, 1949 e 2007. Jigme Namgyel deixou não somente sua marca na política, mas também nas artes e arquitetura. Restaurou o dzong de Tongsa, e construiu nele o templo Sangwa Duepa. Fundou o Palácio Wangducholing, no vale de Choekhor, em 1856. Esse palácio serviu como residência principal da Família Real desde a época de Jigme Namgyal até à do Príncipe Herdeiro Jigme Dorji Wangchuck [r. 1929-1972]. Foi o epicentro político do país durante mais de um século, desde finais da década de 1850 até ao início da década de 1950. Referências Emiliano Unzer Macedo é professor associado de História da Ásia do departamento de História da Ufes. Mail: prof_emil@hotmail.com Instagram: https://www.instagram.com/historiadaasia/ Canal no Youtube: www.youtube.com/emilunzer ARIS, Michael. Bhutan. Aris & Phillips, 1980. PHUNTSHO, Karma. The History of Bhutan. Random House India, 2013. RAHUL, Ram. Royal Bhutan: A Political History. Vikas Publishing House, 1997. REVISITANDO AS PERIFERIAS DO IMPÉRIO: A HISTÓRIA DO DIREITO EM MACAU PORTUGUESA [SÉC. XVI-XIX] Marcus Dorneles Nas iniciativas marítimas rumo ao Oriente, os europeus protagonizaram tentativas de ocupações em regiões controladas por reinos e impérios locais. Um desses territórios foi Macau, localizada no litoral chinês; depois de desastrosas iniciativas diplomáticas, os portugueses conquistaram o direito à permanência na cidade em 1557, após auxiliar os chineses na defesa contra piratas. No entanto, a China sempre procurou defender sua soberania sobre o território, e mesmo que os europeus tivessem relativa liberdade para aplicar suas próprias leis aos habitantes lusitanos, eles ainda estavam submissos às autoridades que representavam o imperador naquela província. Nesse panorama, como o último domínio europeu na Ásia, Macau chama a atenção por sua longevidade no que tange à duração dos impérios ultramarinos modernos. Do direito à permanência em 1557 à sua devolução para a República Popular da China em 1999, a cidade foi o último reduto colonial do Império Português, que fora se reduzindo gradualmente apesar das tentativas de reestabelecer controle por meio de leis, alvarás e cartas régias. Em um contexto marcado por disputas e ambições, Macau também se destacou por ter se constituído como um território que incorporou uma grande diversidade de projetos político-administrativos que foram causa de alguns dos principais conflitos entre as forças que almejavam hegemonia. Nesse cenário, serão discutidas algumas das principais transformações no âmbito jurídico que caracterizaram os longos séculos de ocupação portuguesa na cidade. A Natureza Multifacetada do Direito Português O sistema de administração jurídica em Portugal do século XV ao século XIX caracterizou-se por uma lenta e gradual transição de um direito baseado nos costumes a um direito de caráter mais erudito [HESPANHA, 2005, p. 48]. Ao longo dos anos coexistiram por muito tempo uma justiça ancorada nas Ordenações e diversas formas de justiças locais que se utilizavam das tradições. Segundo Hespanha [2005], existem mitos e vícios criados pelas tradições historiográficas que acabaram contribuindo para uma concepção muito limitada a respeito do direito português na época do Antigo Regime. Um grande exemplo seria o mito da centralização precoce do poder lusitano, construído principalmente em função de uma agenda ideológica para estabelecer um contraste entre Portugal e o resto da Europa Ocidental. Nessas circunstâncias, a Coroa foi enaltecida como agente de correção dos abusos feudais [HESPANHA, 2005, p. 50], e a separação entre Estado e sociedade civil passou a ser vista como um processo histórico natural e desejável no que dizia respeito à organização político-administrativa da nação portuguesa. O mito da centralização precoce teria contribuído para o estabelecimento de uma teleologia sobre as transformações no âmbito jurídico que se sucederam ao longo dos séculos. Em outras palavras, é como se tivesse ocorrido ao longo da Idade Moderna uma transposição incontestável de um direito feudal - imperfeito, baseado nos costumes - a um direito burguês - absoluto, baseado no rigor das leis. Essa narrativa criada a respeito da história do direito, por sua vez, negligencia os conflitos e as relações tensas entre representantes do direito erudito e as camadas sociais populares, uma vez que ratifica o discurso dos documentos escritos como se estes fossem comprovação absoluta e inquestionável da execução de apenas uma das diversas formas de justiça que eram feitas no período que compreendeu a modernidade. Essa visão a respeito do passado foi categoricamente construída por intelectuais e figuras públicas ligadas ao Iluminismo. As teorias do direito natural, por exemplo, exemplificam bem como a ideologia liberal que moldou o pensamento contemporâneo acabou se tornando um senso comum e um ponto de partida suficientemente plausível para estudiosos do assunto: “Mesmo se o historiador libera o seu olhar de vícios apologéticos, essa civilização [...] mostra ser uma formidável construtora deles. Para retornar ao nosso campo de investigação, o jurista que tiver olhos desencantados não poderá deixar de salientar tal fenômeno nas grandes correntes do jusnaturalismo do século XVIII, tão incisivas na modelagem do moderno, que frequentemente qualificamos como o iluminismo jurídico da Europa continental. Aqui talvez se possa chegar à mais inteligente [...] fundição de mitos jurídicos da longa história jurídica ocidental; um complexo de mitos organicamente imaginados e sustentados, que dão vida a uma verdadeira mitologia jurídica” [GROSSI, 2007, p. 50]. Grossi salienta que essa concepção iluminista de mundo é tão influente que mesmo acadêmicos conscientes são capazes de eventualmente contribuir para a perpetuação do que ele chama de “mitos jurídicos”. O esforço para a desconstrução dessa mitologia, assim sendo, é constante, já que se trata de um trabalho teórico e metodológico excepcionalmente complexo, cujas proposições demandam um novo tipo de abordagem não apenas com as fontes primárias como também com a própria literatura que se produziu sobre o assunto ao longo de décadas de discussão. No que se refere à história do direito no Antigo Regime, a aplicação das leis tal qual a erudição propunha nem sempre era uma realidade; muitas vezes a justiça era feita com base nas tradições e nos princípios locais. As autoridades que estavam encarregadas de aplicar e interpretar as leis muitas vezes sequer tinham pleno domínio da leitura e da escrita, o que abria margem a execuções bastante particulares e até mesmo conflituosas entre si. Essa natureza múltipla do direito antigo é bastante perceptível no que se refere à História de Macau. Quando os portugueses conquistaram o direito à permanência no vilarejo portuário chinês em 1557 depois de uma série de iniciativas diplomáticas de pouco sucesso, eles denominaram-no “povoação do Nome de Deos na China”. Variações do nome incluíam também “Porto do Nome de Deos”, “Porto de Amacao” ou simplesmente “Porto da China” [BOXER, 1968, p. 4]. Para os viajantes europeus, estava em Macau a oportunidade de expandir-se e de estabelecer rotas de comércio em uma região até então amplamente desconhecida. Em seus primeiros anos, o povoamento de Macau não foi reconhecido nem pelo governo imperial chinês e tampouco pelo Vice-rei do Estado da Índia. Teria sido apenas no ano de 1586 que Dom Duarte de Meneses, 14.º vice-rei da Índia, emitira um decreto que dava o direito à Câmara Municipal de escolher seus oficiais trienalmente. Além disso, naquele mesmo ano um alvará viria a confirmar a posição de Macau como uma cidade, muito em função dos esforços do bispo Dom Leonardo de Sá, que em 1583 ou em 1585 teria organizado a formação de um conselho municipal - o Senado da Câmara - e a eleição de cargos como vereadores, juízes e magistrados [BOXER, 1968, p. 8]. A partir desse momento, a cidade ficaria conhecida como “Cidade do Nome de Deos na China”; embora o próprio Rei ainda escrevesse nas suas cartas sobre a “povoação de Macao” em 1587. A composição do Senado incluía representantes eleitos pelos cidadãos - que nomeavam três residentes como vereadores -, indivíduos designados pela própria Coroa, três oficiais e um secretário. Essa instituição estava encarregada primordialmente da administração financeira e cível da colônia, enquanto que a jurisdição do Capitão-mor ficava restrita à guarnição. As eleições senatoriais eram normalmente anuais, mas poderiam ocorrer em um intervalo de três anos dependendo das circunstâncias. Em algumas ocasiões também era possível que militares e autoridades eclesiásticas fossem convocadas para deliberar com os senadores no Conselho Geral. Essa forma de organização política teria durado até o estabelecimento da Monarquia Constitucional em 1820, quando os poderes do Senado foram drasticamente reduzidos [BOXER, 1698, p.10]. Mas, durante esse período, o Rei não resistiu somente às novas denominações: ele também rejeitou a ideia de atribuir o governo de Macau a um capitão independente. A Coroa continuamente contrariou as petições dos habitantes da cidade a elevar seus privilégios aos níveis daqueles exercidos por Porto, com decretos reais de 1595, 1596 e 1709 que apenas ratificaram as concessões feitas pelo Vice-rei em 1586 [BOXER, 1968, p. 8-9]. No entanto, de forma alguma isso significou que o âmbito jurídico se manteve inerte ao longo dos séculos: um decreto de 1587 separou as atribuições dos ouvidores e dos capitães-mores, inclusive proibindo estes de exercer demasiado controle sobre aqueles. Ele também ordenava que a posição do Capitão-mor fosse ocupada pelo Ouvidor em conjunto com um Capitão eleito pelos cidadãos nos casos em que o Capitão-mor deixasse Macau antes da chegada de seu sucessor. A organização jurídica da cidade de Macau dessa época não era muito diferente daquela encontrada em outras cidades importantes do Império Português, a exemplo de Malaca, de Goa e de Cochim. Ainda assim, os cidadãos macaenses contavam com uma série de particularidades que os diferenciavam daqueles que viviam nos centros urbanos citados anteriormente. Um vereador de Goa, por exemplo, dificilmente iria contrariar os desejos e as ordens do Vice-rei, do Governador ou ainda das autoridades religiosas. Já em Macau, a atuação do Senado costumava limitar as tendências despóticas das lideranças locais, e a ausência do Tribunal da Santa Inquisição contribuía ainda mais para o estabelecimento de uma ordem relativamente democrática [BOXER, 1968, p. 9] - pelo menos até o estabelecimento da Monarquia Constitucional. Os fatores que contribuíram para o estabelecimento dessa ordem tão particular a Macau são muito debatidos e nem sempre são consenso entre os especialistas que investigam o assunto. Uma relação de causa e consequência constantemente levantada se volta à própria geografia do Império Português: considerando as longas distâncias entre a metrópole e suas possessões asiáticas, a duração das viagens variavam muito de acordo com uma série de circunstâncias. O trajeto de Lisboa para Goa, nos dois sentidos e sem interrupções, poderia durar seis ou oito meses, mas ao longo dos anos os portugueses deram cada vez mais preferência às paradas em portos brasileiros e açorianos para realizar reparos nos navios [RUSSELLWOOD, 2016, p. 69]; já de Goa para Macau acrescentavam-se mais um ou três meses, dependendo dos ventos de monções e da demora na aquisição das cargas. A distância entre Macau e os principais portos portugueses na Europa, nesse sentido, impossibilitava uma presença mais firme da Coroa na cidade asiática, já que era difícil estabelecer contato contínuo e duradouro. A primeira tentativa de estabelecer controle mais direto sobre a administração de Macau deu-se no ano de 1783, com a proclamação das Providências Régias, que buscaram favorecer as entidades que representavam diretamente a Coroa - o Governador e o Ouvidor - e enfraquecer as instituições independentes da cidade [SERRÃO, 1998, p. 733]. Mesmo assim, o resultado dessa mudança não teria impactado de forma tão direta a dinâmica entre poderes centrais e locais: no final das contas, a influência daqueles que procuravam fazer valer a vontade do Rei continuou mais ou menos equilibrada com aquela exercida pelos administradores eleitos do Senado. Os habitantes, por sua vez, também reagiram às imposições da metrópole, ocasionalmente contestando as tentativas de controle protagonizadas pelas autoridades designadas pelo governo central. Coexistência com o Direito Imperial Chinês Os portugueses haviam conquistado o direito de permanência em Macau no ano de 1557, mas as autoridades chinesas, por sua vez, mantiveram continuamente o interesse de defender o território como parte integral de seu império. Nesse contexto, em troca do estabelecimento e do autogoverno, os lusitanos eram obrigados a pagarem tributos anuais e a respeitarem a fiscalização chinesa nos trâmites comerciais. Além disso, os habitantes chineses estavam submetidos a uma jurisdição própria, aplicada pelo Mandarim de Xiangshan [BOXER, 1698, p. 10]. Além do Mandarim, a fiscalização também era feita pelo Administrador da Alfândega de Cantão, que manteve um escritório em Macau de 1688 a 1849 [BOXER, 1698, p. 10]. Juntas, essas figuras tentaram reforçar o domínio chinês sobre o território de Macau. Seu sucesso, no entanto, oscilou muito em função das condições políticas de seu império. Sobre a visão que os chineses tinham a respeito de sua soberania, é possível afirmar que: “Em termos práticos, os chineses olhavam para a cidade de Macau como uma espécie de enclave onde os portugueses estavam autorizados, dentro de certos limites e até um certo ponto, a reger-se pelas suas próprias leis, a ter as suas autoridades civis e militares e a praticar a sua religião. Mas isso não envolvia, do ponto de vista do Império, qualquer abdicação dos seus direitos de soberania, que se consideravam, de resto, inquestionáveis. Aquela atitude de aparente tolerância radicava apenas, por um lado, em razões de ordem prática e, por outro, na própria tradição chinesa de justiça, que considerava o grupo/comunidade a que cada um pertencia solidariamente responsável pelos atos de cada um dos seus membros e pela respectiva punição. Princípio esse que se aplicava, por extensão, à comunidade estrangeira de Macau” [SERRÃO, 1998, p. 723-724]. O conjunto de leis chinesas era muito diferente daquele praticado pelos reinos europeus, incorporando elementos do Legalismo e do Confucionismo em sua estrutura. Quando os portugueses chegaram à costa chinesa, os Ming eram responsáveis pela administração do império, tendo ascendido ao poder em 1368 depois de derrotar a dinastia Yuan, fundada por mongóis que haviam conquistado o Império do Meio. Nesse contexto, foi promulgada a primeira versão do Grande Código Ming, que compilava os princípios legais aos moldes dos desejos do imperador Zhu Yuanzhang. O Grande Código foi fundamental para criar as condições do estabelecimento de uma hierarquia entre oficiais e administradores do governo e para dar legitimidade política aos Ming, já que evocava a lei como instrumento de condução da vontade celestial [JIANG, 2005, p. 41]. Embora as diferenças culturais entre portugueses e chineses da época tenham gerado incidentes diplomáticos no início, o convívio entre os dois impérios manteve-se relativamente estável. As relações mudaram drasticamente, contudo, no século XIX, quando Portugal formalizou seus esforços para integrar o território de Macau aos domínios ultramarinos e quando a China se viu enfraquecida em função do imperialismo europeu. Nessa época, os Ming já haviam sido derrotados pelos Qing, que ascenderam ao poder em 1644. Assim como os governantes anteriores, os Qing também criaram seu próprio conjunto de leis - o Grande Código Legal Qing -, mas, diferentemente daqueles que os antecederam, poucas alterações foram realizadas em relação ao material predecessor. Seu governo observou um período inicial de crescimento, até demonstrar sinais de declínio a partir do século XVIII, muito em função da derrota em guerras que colocaram em xeque a posição hegemônica de seu império no contexto geopolítico da Ásia Oriental. As derrotas chinesas acabaram evidenciando a incapacidade de preservação da presença portuguesa frente às inciativas das potências europeias, como a Inglaterra, que havia conquistado a ilha de Hong Kong por meio do Tratado de Nanjing. Nesse contexto, pela perspectiva lusitana tornava-se urgente avançar no sentido de uma plena integração na soberania colonial, e a estratégia portuguesa de ocupação tomou um caráter mais agressivo. Até então, os lusitanos estavam dispostos inclusive a sacrificar suas reivindicações de soberania para garantir estabilidade e permanência no território [SERRÃO, 1998, p. 727], em uma relação “mutualística” de convivência. Contudo, em 1846, o início do consulado de Ferreira do Amaral foi marcado pela abolição da alfândega chinesa, pela expulsão dos mandarins da cidade e pela sujeição dos habitantes chineses ao pagamento de impostos. Durante a segunda metade do século, os portugueses então se preocuparam com outra questão ainda não resolvida: o reconhecimento internacional de sua soberania sobre Macau. Nesse contexto, Portugal tentou resolver o impasse com a elaboração de tratados, aproveitando-se da situação desfavorável para a China imposta pelos Tratados de Tianjin, em 1858, e pela Convenção de Pequim, em 1860 [SERRÃO, 1997, p. 729]. Assim sendo, o governador Isidoro Francisco Guimarães foi enviado a Pequim em 1862 no intuito de negociar um tratado, em que Portugal expressou diretamente seu desejo de se colocar em pé de igualdade com as outras nações europeias no que dizia respeito ao controle e administração da cidade. O governo chinês tentou resistir negociando o restabelecimento da alfândega e do pagamento de tributos pelos portugueses, mas o tratado veio a se concretizar no dia 13 de agosto daquele mesmo ano. Apesar disso, tratou-se de uma vitória pífia, já que Portugal não foi capaz de se lançar como concorrente à altura das potências ocidentais. Quando em 1864 os portugueses foram mais uma vez a Pequim para ratificar o tratado, os chineses retomaram discussões sobre pontos estratégicos e fundamentais para Portugal, evidenciando que os lados não estavam nem mesmo perto de um consenso em relação aos impasses envolvendo Macau [SERRÃO, 1997, p. 731]. Foi apenas em 1888 que a resolução chegou a um ponto mais definitivo, e, ainda assim, os portugueses viram-se obrigados a retroceder, retomando o controle alfandegário da região aos chineses. Outras questões como os limites geográficos do território permaneceram sem resolução, já que uma nova reunião nunca chegou a se concretizar. Do ponto de vista lusitano, pelo menos, garantiu-se uma posição de igualdade em relação às nações que estavam estabelecendo relações com a China naquele período. Considerações Finais Importantes autores destacaram a natureza heterogênea do direito no Império Português no campo teórico e metodológico da pesquisa histórica. Empiricamente, o caso de Macau corrobora as colocações levantadas pelos estudiosos em questão: existindo às margens de um império fragmentado e desuniforme, a cidade permaneceu por muito tempo desconexa, usufruindo de certo grau de independência que caracterizou suas instituições administrativas. Além disso, outra particularidade de Macau foi a coexistência das instituições portuguesas com as chinesas. Sob dois códigos de leis muito diferentes entre si, a cidade convivia em uma situação muito diferenciada se comparada com outras colônias. O território estava nos domínios de um Estado forte e centralizado, capaz de rivalizar e até mesmo de coibir as intenções dos estrangeiros que ali se fizeram presentes. Isso, de forma alguma, quer dizer que não houve conflitos ou tentativas de subverter a ordem estabelecida. A existência de mais de uma forma de direito em um único território abria margem para a eclosão de confrontos, e, principalmente no século XIX, Portugal tentou estabelecer controle mais direto sobre Macau, com graus questionáveis de sucesso. Nesse sentido, atenta-se às disputas pela soberania sobre a cidade, que marcaram boa parte de sua história. Referência Marcus Dorneles é mestrando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. BOXER, Charles. 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A POLÍTICA EXTERNA DA COREIA DO SUL PARA A ÁSIA ORIENTAL DURANTE O GOVERNO DE PARK GEUN-HYE [2013-2017] Maurício Luiz Borges Ramos Dias Introdução Através da posse de Park Geun-hye [2013-2017], em 2013, ao cargo de presidenta da República da Coreia, o escopo diplomático sul-coreano adotou uma nova estratégia de atuação internacional voltada, especialmente, às dinâmicas geopolíticas encontradas na Ásia Oriental. Nessa perspectiva, Park estruturou sua política externa baseando-se no denominado “Paradoxo Asiático” que seria resolvido mediante: 1] a resolução das divergências coloniais entre Coreia do Sul e Japão; 2] o aprimoramento da relação intercoreana; 3] e a busca de maior capacidade de ação sul-coreana frente aos grandes poderes regionais presentes na região, contradizendo o paradigma de que a nação sul-coreana seria como “um camarão em meio a baleias” [SNYDER, 2016]. A partir dessas prerrogativas, a Coreia do Sul adotou diferentes posicionamentos bilaterais, assim como trilaterais, considerando os novos pilares de sua política externa. Deste modo, o objetivo central dessa pesquisa foi compreender como a política externa de Park Geun-hye se desenvolveu em relação ao Japão, à República Popular Democrática da Coreia e à República Popular da China presentes na Ásia Oriental, depreendendo, a título de exemplos, aspectos históricos, geopolíticos, econômicos e de segurança. Para tanto, a metodologia aplicada foi baseada em uma pesquisa bibliográfica e documental, composta por artigos, livros e documentos oficiais, em consonância com a utilização do método hipotético dedutivo. A Política Externa de Park Geun-hye nas Dinâmicas da Ásia Oriental Para se compreender a política externa de Park Geun-hye em direção ao Japão administrado pelo primeiro-ministro Shinzō Abe [2012-2020], foi necessário abordar os efeitos do governo do presidente sul-coreano Lee Myung-bak [20082013] na relação Seul-Tóquio. Conforme Tamaki [2019], Lee foi pressionado pela Suprema Corte da Coreia do Sul a angariar compensações por parte do Japão às denominadas mulheres de conforto, que foram obrigadas pelo exército imperial japonês a realizar atividades sexuais entre 1930 e 1945 em meio à colonização nipônica na península coreana. Apesar dos esforços de Lee, o Estado japonês considerou que esses casos foram resolvidos na assinatura do Tratado de Relações Básicas de 1965 entre Japão e Coreia do Sul. Todavia, como a conjuntura da celebração do Tratado de Relações Básicas de 1965 foi influenciada por pressões estadunidenses e interesses econômicos de ambas partes asiáticas, não foi possível que emoções e opiniões divergentes sobre a colonização japonesa fossem de fato normalizadas, contribuindo para que diferentes interpretações sobre o passado colonial pudessem surgir a qualquer momento [KIM, 2008], assim como visualizado no governo de Lee Myung-bak e, posteriormente, no de Park Geun-hye. Como resultado, Lee proporcionou um espaço nacionalista para que o passado colonial retornasse ao escopo de discussão entre Coreia do Sul e Japão, culminando na adição da pauta de resolução de diferenças históricas coloniais frente à Terra do Sol Nascente nas prerrogativas da política externa de Park Geun-hye. De acordo com Sohn [2019], até 2014, a relação bilateral Seul-Tóquio encontrou intensos obstáculos de aproximação causados por ambos líderes políticos, à medida que: 1] Shinzō Abe, de caráter nacionalista-conservador, visitou, em 2013, o templo xintoísta Yasukuni, que homenageia militares que serviram ao Japão Imperial, e se demonstrou favorável à revisão da Declaração Kono de 1993 em que teve-se o reconhecimento japonês de suas violações às mulheres de conforto, da mesma forma que adotou uma política doméstica e externa visando a remilitarização nacional; 2] enquanto que Park Geun-hye, diante das ações japonesas, robusteceu o sentimento sul-coreano anticolonial e de vítima da colonização nipônica, considerou as atuações japonesas de Abe como ultranacionalistas e, por fim, declarou que políticas bilaterais nos âmbitos econômicos e securitários seriam desenvolvidas conforme avanços na questão das mulheres de conforto fossem alcançados. Diante disso, constatou-se que a inserção internacional de Park não conseguiu convergir com determinados aspectos político-ideológicos de Abe, distanciando as relações bilaterais de ambas nações. Essa conjuntura mudaria pontualmente graças à estratégia “Pivô da Ásia” do presidente estadunidense Barack Obama [2009-2017], tendo em vista que tanto Park como Abe, a partir de 2014, seriam pressionados pelo seu parceiro estratégico ocidental a desenvolver suas relações [LEE, 2016]. Por conseguinte, o passado colonial divergente foi colocado como caráter secundário por ambos líderes de Estado, atribuindo maior articulação bilateral nas políticas externas de Park e Abe conforme visualizado, em 2015, na assinatura do Acordo Geral de Segurança de Informações Militares [TATSUMI, 2020] e do Acordo das Mulheres de Conforto, no qual Abe se desculpou oficialmente pelo sofrimento das vítimas sul-coreanas e reconheceu a atuação do exército imperial nessa questão [JAPÃO, 2015b]. Em relação ao tópico das mulheres de conforto, apesar das desculpas e do reconhecimento de Abe, do envio de um fundo de cerca de US$ 83 milhões ao governo sul-coreano e do oferecimento de cuidados às vítimas vivas, parte da população sul-coreana não visualizou esse acordo como suficiente e organizou diversas manifestações que afetaram, inclusive, o corpo diplomático japonês presente na Coreia do Sul [SOHN, 2019]. Logo, percebeu-se o passado colonial como uma questão determinante para a melhora das relações nipô-sul-coreanas presente não somente nos posicionamentos diplomáticos que Park estava realizando anteriormente, mas também na própria população sul-coreana. Perante a desestabilização do governo de Park em meio a um processo de impeachment iniciado em 2016 e da perpetuação do passado colonial como ponto de fricção, as relações entre Seul-Tóquio não encontraram espaço para maiores desenvolvimentos. No tocante à Coreia do Norte, a política externa de Park Geun-hye adotou o termo Trustpolitik como base para as relações intercoreanas. De acordo com Snyder [2016], a partir dessa política, Park pretendeu desenvolver uma relação bilateral de longo prazo pautada, sob devida ordem, na cooperação humanitária, no fomento de projetos de infraestrutura e, por último, na geração de maior homogeneidade entre a população desses dois países que já foram um só. Ademais, em 2014, mesmo após testes militares realizados por Pyongyang no ano anterior, Park centralizou na Trustpolitik a pauta da necessidade de avanços na relação bilateral em direção à unificação coreana [WERTZ, 2017]. Nessa perspectiva, os pontos chaves para o sucesso da Trustpolitik se baseavam, justamente, na confiança entre ambos Estados, no cumprimento norte-coreano dos acordos assinados com Seul e demais nações e organizações internacionais, bem como na reciprocidade do comprometimento mútuo de desenvolver avanços bilaterais [KANG, 2014]. Consequentemente, Park inaugurou uma política intercoreana diferente de seus antecessores, já que, conforme Fiori [2017], a Sunshine Policy, utilizada pelos presidentes sul-coreanos Kim Dae-jung [19982003] e Roh Moo-hyun [2003-2008], era de caráter essencialmente reconciliatória por meio de diálogos constantes, enquanto que a política de Lee Myung-bak pretendia a desmilitarização norte-coreana a todo custo. Porém, a nova política criada pelo governo sul-coreano encontrou obstáculos que impediram seu desenvolvimento planejado ao passo que a confiança bilateral ia sendo desmantelada, principalmente, por causa do robustecimento militar norte-coreano. Sob o governo de Kim Jong-un [2011-atualmente], a Coreia do Norte realizou testes militares, inclusive com capacidades nucleares, ao longo da gestão de Park como presidenta sul-coreana. Ainda assim, a Trustpolitik havia se perpetuado entre 2013 e julho de 2014. No entanto, Fiori [2017] constatou três questões para o enfraquecimento dessa estratégia sul-coreana, sendo elas: 1] o enfoque, já em 2014, na unificação como fim e não nos meios necessários para alcançar este objetivo, tornando complexo o diálogo bilateral; 2] tensões fronteiriças durante 2015 em que dois soldados sul-coreanos se feriram ao pisar em minas terrestres, supostamente colocadas por membros norte-coreanos infiltrados, e, devido a discordâncias sobre a responsabilidade desse acontecimento posterior, trocas de tiros foram realizadas entre combatentes de ambos os lados; 3] e, em 2016, mediante a perpetuação de testes nucleares pela Coreia do Norte, independentemente das pressões estadunidenses e internacionais, desgastando os pilares de confiança e reciprocidade da Trustpolitik. Logo, o distanciamento diplomático entre Park e Kim foi aumentado, sendo proporcionado, por exemplo, pelos planos assertivos sul-coreanos voltados a sanções econômicas e fechamento do Complexo Industrial Kaesong [CIK] [WERTZ, 2017]. De acordo com Ku [2019], o encerramento das atividades no CIK, que era uma área industrial na qual ambas Coreias atuavam em conjunto, foi uma decisão unilateral tomada por Park, sem consulta de seu corpo ministerial, que acabou retirando as poucas linhas bilaterais diretas de diálogo e mantendo somente possibilidades de comunicação militar entre Seul e Pyongyang. Em direção à China, constatou-se a tentativa sul-coreana de se afastar do termo “camarão em meio de baleias” do “Paradoxo Asiático”. Dessa maneira, Moon e Boo [2015] identificaram que Park teve como objetivo robustecer uma relação entre Coreia do Sul e China pautada no balanceamento entre os interesses que Seul poderia angariar se aproximando de Pequim e, em outras conjunturas, de Washington; na capacidade de exercer maior influência sino-sul-coreana na Coreia do Norte; além do fortalecimento da cooperação econômica, securitária e humanitária com o Estado chinês. Nesse sentido, em junho de 2013, Park se encontrou oficialmente com o presidente Xi Jinping [2013-atualmente] na China. Segundo Hwang [2014], nesse encontro, ambos líderes se reconheceram mutualmente como importantes parceiros nos âmbitos político e de defesa, bem como se propuseram em fortalecer suas assistências bilaterais rumo à coexistência pacífica e ao alcance de benefícios para ambas nações. Destarte, como reflexo do desenvolvimento dessa parceria, em junho de 2015, foi assinado o Acordo de Livre Comércio entre China e Coreia do Sul e, no mesmo mês, o Estado sul-coreano passou a participar do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura [SNYDER; BYUN, 2015]. Vale ressaltar que, quando o CIK ainda não havia sido fechado, a Coreia do Sul e a China almejavam aumentar o comércio com a Coreia do Norte através do Acordo de Livre Comércio firmado em 2015 [SNYDER; BYUN, 2015]. Diante disso, além dos interesses da Trustpolitik e da parceria sino-norte-coreana, pôde-se visualizar um interesse geoeconômico em relação à Coreia do Norte, que, conforme Geiger [2019], é um território em que projetos de integração regional possuem importância econômica, política e securitária. Portanto, era de interesse tanto de Park, quanto de Xi, que o governo de Kim se mantivesse estável e que as relações diplomáticas e econômicas progredissem. Outrossim, modificações na relação Seul-Pequim foram encontradas na esfera da segurança regional. Segundo Miyamoto [2015], Park conjurou uma “diplomacia dupla”, sob a égide da Trustpolitik intercoreana, na qual com Obama o objetivo era a desnuclearização norte-coreana, enquanto que com Xi era diminuir as tensões bilaterais coreanas em virtude da paz regional. Desse modo, a Coreia do Sul se esforçou em cooperar, o máximo possível, com dois importantes atores estatais que influenciam na Ásia Oriental, sendo eles a China e os EUA, em agendas que não fossem conflitantes. Não obstante, a aproximação entre Park e Xi gerou anseios estadunidenses ante, por exemplo, a pressão chinesa, entre 2014 a 2016, para que a nação sul-coreana não participasse do acordo estadunidense Terminal High Altitude Area Defense [THAAD] cuja assinatura da Coreia do Sul só ocorreu em 2016 [KU, 2019]. Sendo assim, apesar de Park tentar estabelecer uma política regional na qual a Coreia do Sul se beneficiaria ao respeitar os interesses estadunidenses e chineses, não era possível garantir que não existiriam fricções com seus parceiros e que decisões que não fossem satisfazer ambos parceiros não tivessem que ser tomadas. Por fim, salienta-se que, nas dinâmicas da Ásia Oriental, os encontros de cooperação trilaterais entre Coreia do Sul – China – Japão e Coreia do Sul – EUA – Japão foram afetados pela conjuntura presente durante o governo de Park Geunhye. Conforme exposto anteriormente, a relação bilateral nipô-sul-coreana teve momentos de distanciamentos que não possibilitaram desenvolvimentos diplomáticos, contribuindo para que as cooperações trilaterais, nas quais tanto Coreia do Sul como Japão participavam juntos, não avançassem entre 2013 e 2014. Apesar disso, como resultado do esforço em desenvolver a relação Seul-Tóquio, Sohn [2016] demonstrou que, em 2015, aumentaram-se as oportunidades de políticas trilaterais entre Coreia do Sul – EUA – Japão, nas quais o Estado sulcoreano objetivava impedir que estratégias conjuntas causassem maior rivalidade entre China e EUA e afetassem as possibilidades de atuação conjunta sino-sulcoreana em relação à Coreia do Norte. Além do mais, no sexto encontro da cooperação trilateral Coreia do Sul – China – Japão, também em 2015, as três nações concordaram em: 1] desenvolver políticas que promovam prosperidade e estabilidade no Nordeste Asiático; 2] robustecer a cooperação econômica e social; 3] e, também, aumentar a confiança entre as populações dos Estados parte [JAPÃO, 2015a]. Portanto, notou-se que, a partir de 2015, políticas trilaterais retornaram ao escopo cooperativo da Ásia Oriental, contribuindo para formulações de atuações econômicas, diplomáticas e no âmbito da defesa. Considerações Finais Diante do exposto, foi possível constatar que os pilares do “Paradoxo Asiático” contribuíram para diferentes formas de inserção da política externa sul-coreana de Park Geun-hye na Ásia Oriental, modificando-se, porém, conforme as transformações nas conjunturas internacional e regional. Nessa perspectiva, identificou-se que, nos primeiros anos do governo de Park, a relação entre Seul e Tóquio se iniciou com distanciamentos ocasionados pelo governo de Lee Myungbak, pelas características conservadoras, ideológicas e militares de Shinzō Abe e, também, pelo princípio sul-coreano de que o desenvolvimento bilateral nipô-sulcoreano aconteceria somente se o passado colonial fosse reconhecido conforme a interpretação histórica da Coreia do Sul. No entanto, a partir da pressão estadunidense exercida por Barack Obama em seus aliados asiáticos, as atuações diplomáticas de Park e de Abe foram modificadas, possibilitando, a partir de 2015, momentos de cooperação bilaterais e trilaterais dentro do escopo da Ásia Oriental acompanhados pela resolução efêmera e contestada do Acordo das Mulheres de Conforto. Ainda assim, o passado colonial, apesar da tentativa bilateral, continuou como um assunto considerado divergente entre Seul e Tóquio. No que concerne à Coreia do Norte, percebeu-se que, diante de desentendimentos intercoreanos causados, principalmente, pela militarização norte-coreana somada à desarticulação sul-coreana em seguir suas propostas iniciais voltadas à integração bilateral, a Trustpolitk de Park não foi capaz de promover a solidificação da confiança necessária para o progresso da relação Seul-Pyongyang. Como reflexo, de uma política que visava a unificação, a atuação militar norte-coreana e as decisões de Park, tais como o fechamento do CIK, contribuíram para a emersão de distanciamentos intercoreanos, em contrapartida, portanto, do segundo pilar do “Paradoxo Asiático”. Além disso, notou-se que a política externa de Park aplicada à China governada por Xi Jinping visou expandir as possibilidades de ação da Coreia do Sul no tocante às potências regionais e à Coreia do Norte. Por conseguinte, desenvolveram-se aproximações econômicas, securitárias e diplomáticas entre Seul e Pequim que eram interessantes para a nação sul-coreana, tendo em vista a sua aproximação com a potência econômica e militar chinesa em uma espécie de balanceamento estratégico que, com algumas exceções, tais como o processo de assinatura do THAAD de 2014 a 2016, não causavam intensos momentos de pressões chinesas e estadunidenses síncronas em virtude de eventuais posicionamentos da Coreia do Sul. Outrossim, a China era uma importante parceira sul-coreana que proporcionava diferentes possibilidades de abordagens a serem aplicadas na integração intercoreana e que poderiam promover maior paz regional. Por último, então, constatou-se que o terceiro ponto do “Paradoxo Asiático” se desenvolveu conforme o desejado, perante a maior capacidade regional da ação sulcoreana em atuar seguindo seus interesses nacionais em sua relação com a China. Referências Maurício Luiz Borges Ramos Dias é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas [UNESP – UNICAMP – PUC/SP] e bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa [UNIPAMPA]. Além disso, é bolsista CAPES. E-mail: mauriciolbrdias@gmail.com. FIORI, Antonio. “Whither the inter-Korean Dialogue? Assessing Seoul´s Trustpolitik and Its Future Prospects” in Istituto Affari Internazionali, IAI Working Papers 17, 2017, p.1-19. Disponível em: www.iai.it/sites/default/files/iaiwp1713.pdf. 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EXTREMO ORIENTE: SOCIEDADES MATERNIDADE NA COREIA DO SUL: A MULHER E OS PAPÉIS DE GÊNERO Amanda de Morais Silva Introdução De acordo com o relatório do ano de 2021 do World Economic Forum’s Gender Gap [WORLD ECONOMIC FORUM, 2021, p.10], que se preocupa em medir as disparidades de gênero em questões de educação, saúde, economia, mercado de trabalho e empoderamento político, a Coreia do Sul ocupa o 102º lugar numa relação de 156 países avaliados. Apesar de mostrar-se uma nação com grande performance em desenvolvimento econômico, os avanços referentes à garantia plena da igualdade de gênero no país ainda são questões debatíveis na esfera pública e privada. Não há de se negar, no entanto, importantes transformações em direção a essa equidade e à proteção da vida da mulher, como a recente descriminalização da prática do aborto, em 01 de janeiro de 2021 [SOUTH…, 2021], e a abolição do sistema Hoju da Lei Civil sul-coreana em 2005, após 52 anos de vigência, entendido como registro familiar coreano que estabelecia um “chefe de família”, majoritariamente representado pela figura masculina [YANG, 2013]. Levando em consideração o impacto que tais mudanças nos direitos das mulheres provocaram na vida social, econômica e política do país, nota-se a importância em situar a mulher sul-coreana diante das formas de violência de gênero que lhes são infligidas. Isto é, há de se notar que tais avanços parecem realçar as relações de poder que giram em torno da ideia de maternidade e do exercício da mulher na função de mãe e esposa no seio familiar. A instituição familiar e as dimensões que esta alcançou para o condicionamento da situação social da mulher na Coreia do Sul carrega interessantes reflexões, feitas, inclusive, no âmbito jurídico e jurisprudencial no caminho de se ponderar sobre a consolidação de um movimento feminino e feminista mais acentuado no país. Discriminação de gênero e família patriarcal No passado histórico da Coreia do Sul que remete às influências graduais do Confucionismo na sociedade coreana, pode-se traçar pontos de impulsionamento da ideia da mulher enquanto figura que é conectada ao ambiente doméstico e à organização familiar [YANG, 2013, p. 53]. Durante a Dinastia Joseon [13921910], reformas sociais, políticas e econômicas foram idealizadas para a transformação do reino em uma sociedade que adotava termos de uma cultura Confucionista, ou mesmo neo-Confucionista, mesmo que indiretamente, por meio da mudança de hábitos sociais e das relações de parentesco em relação às convenções de gênero [YOO, 2008, p. 27]. No período Joseon, as relações eram definidas conforme “graus de dignidade” entre classes, idade e sexo, de forma a serem enfatizados imperativos morais como separação de funções entre marido e esposa e autoridade parental concentrada na figura masculina. A construção de graus hierárquicos entre os indivíduos conforme a classe que ocupavam trazia implicações na divisão e na ocupação da esfera pública e da esfera privada por homens e mulheres. No período Goryeo [918-1392], precedente ao Joseon, também por influências do Budismo, as mulheres ocupavam a esfera pública, exercendo funções em templos, por exemplo, e a elas eram reconhecidos direitos de herança e de casamento, não sendo este último uma instituição compulsória e determinante para a qualidade de vida da mulher, tal como iria se tornar séculos mais tarde [YOO, 2008, p. 18-19]. Com o desenvolvimento da visão Neo-Confucionista, que se atrelava ao ideal de racionalidade e ordem, a ingerência dos governantes sobre a família tornou-se quase imperativa, de forma a tornar a instituição familiar a pedra angular que determinava a estabilidade do reino como um todo. Neo-Confucionistas, também contemporaneamente chamados de tradicionalistas [YANG, 2018, p. 79], discutiam a importância dos ritos da vida familiar, como o casamento e o funeral, que determinavam as relações dentro da esfera doméstica, mas também eram vistos como os pilares centrais da estabilidade da esfera pública. Seguindo essa mentalidade, a hierarquia familiar e a noção de ordem que detonava ganhou traços mais definidos pela garantia de prerrogativas aos dirigentes da estrutura patriarcal familiar, de modo a assegurar a subserviência da mulher, que agora via sua posição social e legal deteriorar-se, através do que se chamavam “as três obediências”: a obediência ao pai, a obediência ao marido e a obediência aos filhos, dando preferência à primogenitura masculina na concessão de direitos de propriedade e de herança. Como consequência da deterioração do status econômico da mulher, esta tornava-se dependente do relacionamento firmado com seu marido [YOO, 2008, p. 19-20]. Apesar da importância dada ao papel do casamento na consagração de uma “harmonia” entre famílias, o propósito do casamento apoiava-se na “continuação da prole” do líder da família, que, não é demais afirmar, consistia na figura masculina, representante do sistema patriarcal que gradualmente assentava raízes no país. Em função da perpetuação desse sistema, o casamento era o requisito e o instrumento mediador da manutenção dessa linhagem, e a mulher recaía em suas características biológicas para garantir a sucessão masculina, a qual, a este ponto, quando posta em ordem, representava prestígio e honra para o lar [YOO, 2008, p. 22]. Pode-se afirmar, nesse sentido, que se atribuía, de certa maneira, importância para a posição da mulher na família. Contudo, ao sinal de impedimentos na perpetuação da prole com primogênitos, tais mulheres tinham seu valor diminuído, considerando sua “inutilidade” para a continuação da linhagem patrilinear. Isso se constatava pelo que se chamava de “as regras dos ‘sete males’”, que comportavam, além do adultério e de demonstrações de ciúme, a incapacidade de gerar um filho homem [YOO, 2008, p. 23]. A liberdade da mulher nesse período, no entanto, apesar de enfrentar uma divisão estrita de sexos em nome da moralidade Confucionista, não era heterogeneamente restrita. Isso porque, apesar da influência da mentalidade tradicionalista na preparação da mulher no processo de tornar-se esposa e, como consequência, mãe, essa liberdade flexionava-se conforme a classe social em que se situava. Mulheres de camadas mais altas na sociedade tendiam a sofrer mais intensamente com restrições de direitos, enquanto mulheres de camadas mais baixas ainda detinham certos direitos à liberdade pessoal e ao acesso à esfera pública, como mercados e campos, em razão de seus trabalhos, não obstante também enfrentarem tabus como restrições de casamento impostas a mulheres viúvas [YOO, 2008, p. 27-29]. Frente a tais contingências, a mulher coreana encontrava brechas na rigidez do regramento da sociedade patriarcal como forma de resistência e guarda de certo poder no seio familiar. Essa dinâmica podia ser vista na relação cultivada entre mãe e filho, haja vista que, além do papel afetivo da genitora e de ser ela a responsável pela continuação da herança patrilinear, a mãe controlava as atividades domésticas, a educação dos filhos e filhas e questões que envolviam a preparação deles para a vida adulta. A mulher, nesse sentido, no âmbito doméstico, operava como base moral constituinte do caráter de seus descendentes, e a maternidade ultrapassava os limites de uma “simples” relação entre mãe e filho [YOO, 2008, p. 30-31]. Transformações da maternidade Criou-se, segundo determinavam os padrões coreanos permeados pela ideologia Confucionista, o ideal de ‘boa esposa, mãe sábia’, ou 현모양처 [hyeonmo yangcho], que passou a consolidar-se como um aspecto peculiar da cultura coreana, com o que se alega o afrouxamento de um patriarcado tão restrito [YOO, 2008, p. 33]. Por tais lentes, e diante das contradições dos ideais Confucionistas, a mulher, mesmo submissa ao sistema patriarcal, era também uma figura de forte influência na vida cotidiana familiar. Afirma-se mesmo o fortalecimento dos meios de empoderamento da mulher conforme desenvolvia-se o empoderamento da posição de mãe. Curiosamente, ainda hoje, pesquisas de campo que buscaram investigar a qualidade de vida da população da Coreia do Sul, de acordo com a ótica de gênero, evidenciaram que a atribuição subjetiva das mulheres a uma vida de qualidade pôde ser mais fortemente identificada entre a parcela da população feminina casada [LEE, 1998, p. 44-47]. Nesse sentido, dadas tais aberturas para a consolidação de um poder de agência mais sólido na família, mulheres resistiam sob reivindicação do fornecimento de educação para o melhoramento de seu status social – especialmente entre classes da elite civil e militar, chamados de yangban, e de mercadores, agricultores e artesãos, chamados yangmin [YOO, 2008, p. 18]. O reconhecimento da importância da educação foi também um traço marcante para o desempenho da posição de mãe dentro da família. A educação consistia tanto na educação formal, destinada aos filhos, que representariam a família na esfera pública, como também a educação doméstica, destinada às filhas, para que firmassem laços de casamento com maridos de famílias abastadas [YOO, 2008, p. 31] Através das mudanças econômicas durante período Joseon em diante, comportando, inclusive, o avanço econômico pós-democratização da Coreia do Sul [pós 1987], a utilização da força de trabalho das mulheres para além da esfera doméstica começou, gradativamente, a ser mais criticamente observada, visto que a habilidade e a perspicácia de mulheres letradas seria uma característica positiva a ser levada para a esfera comercial. Após movimentos sociais e iniciativas oriundas do governo e de companhias missionárias para promoção da educação feminina, o estabelecimento das primeiras instituições de ensino com vistas à criação de mulheres mais “compatíveis” com seus maridos, permitiu – contra os dizeres iniciais do Confucionismo de que mulheres inteligentes trariam infortúnio ao lar - a visão das mulheres como mães e esposas educadas. Contudo também lhes deu a oportunidade de engajamento em outras profissões, iniciando um longo caminho para conquista de direitos voltados à igualdade de gênero [YOO, 2008, p. 35]. A educação mostrou-se um tema crucial para a compreensão da maternidade e da dinâmica dos papéis de gênero na Coreia, posto que constitui-se como um dos elementos que moldam a relação entre mãe e filho de forma particularmente intensa no país. A transição de uma dinastia secular para um governo de prioridades neoliberais pareceu reforçar tais posições para a mulher. A expansão de um sistema educacional com reformas que possibilitaram a criação de instituições privadas – como os reforços escolares, ou institutos de ensino de inglês - complementares ao ensino formal das escolas, integrando o chamado after-school market, aumentou a esfera de administração da educação de crianças e adolescentes que mães teriam de administrar [PARK, 2007, p. 190-191]. A partir do crescimento desse mercado, moldam-se também as obrigações das mães para o estabelecimento de uma base educacional que garanta um futuro promissor a seus filhos, formatando-se o que se chama de ideologia das ‘mães administradoras’ ou ‘manager mothers’, que segue um modelo da imagem da dona de casa de classe média que dedica o seu tempo à criação e ao futuro de seus filhos. As manager mothers trazem à tona a intensificação do ‘papel de mãe’ e das práticas maternas elevando, na maternidade, o senso de responsabilidade das mulheres para com suas crianças, apesar de o peso de tal responsabilidade variar conforme os diferentes marcadores sociais e econômicos que situam as mulheres na sociedade. Mesmo com as diferenças dessas práticas que se mostram, por exemplo, através da variação de classes sociais, os efeitos que a construção de um ideal materno reflete na figura da mulher também se mostra um fator vulnerabilizante para essas mulheres. Ao mesmo tempo que essa obrigação gerencial da vida dos filhos é posta no colo dessas mulheres, são elas mesmas ‘vilanizadas’ na medida em que essa “administração do sucesso” passa a ser vista como um fator que inflige sofrimento para a vida das crianças [PARK, 2007, p. 198-201]. Tais fatores têm influência na autoconsciência da mulher e no seu poder de decisão acerca da vontade de assumir ou não o papel de mãe. Considerando o peso de tal responsabilidade e levando em conta condicionantes culturais do país - como a tradição coreana em que a mulher reside com sua família até o seu casamento, momento quando se muda para a residência de seu marido e, então, passa a assumir as tarefas domésticas -, o sentimento de independência e de privacidade parece situar-se a distante alcance da mulher, que se vê num contexto de crescentes políticas neoliberais que prezam pela autonomia e pela liberdade do indivíduo [SONG, 2010, p. 141]. Esses valores quando reivindicados por mulheres contradiziam bases morais patriarcais confucionistas, pelas quais convencionou-se à mulher o papel irrevogável de esposa e mãe. Seguindo tal mentalidade, e encarando o estigma de não querer assumir um vínculo matrimonial, manifestações de mulheres, como o movimento #NoMarriage, ganharam força ao trazerem centralidade às vozes femininas que não visualizam um futuro nos caminhos do casamento e da maternidade, mas sim no investimento da própria independência [LEE, 2019; SONG, 2010, p. 143]. Tais manifestações foram, inclusive, de encontro com as políticas governamentais de incentivo ao casamento – tomadas a partir da percepção do declínio das taxas anuais de casamento e de nascimentos, impactando diretamente na seguridade social sul-coreana -, o que voltou a atenção pública às políticas de gênero e direitos da mulher que ultrapassam a esfera do casamento e da maternidade [STATISTICS KOREA, 2019; JEFFERY, 2019]. Feminismos e políticas de gênero As políticas de gênero na Coreia do Sul envolvem, especialmente, a luta por direitos das mulheres e a discussão acerca da história do Direito de Família sulcoreano [YANG. 2008, p. 78]. Antes mesmo da tomada de iniciativas governamentais contra desigualdade de gênero, movimentos feministas que tencionavam reformas legais em prol da consubstanciação legal de valores como igualdade de gênero, democracia e desenvolvimento social marcam sua história desde a consolidação das primeiras repúblicas na Coreia do Sul. O combate ao tratamento depreciante do sistema patriarcal, não por acaso, adveio das bases da estrutura familiar no país, tendo em vista que, através da “herança colonial” deixada pelo período de controle japonês sobre a Coreia [1910-1945], validouse, em 1957, o regime legal do sistema de “chefe de família” para a administração do registro familiar e do sistema de identificação de pessoas coreanas [YANG, 2013, p. 55]. Por essa estrutura, o sistema do chefe de família, ou Hoju, designava, ao momento de registro de casamento, um representante da família, normalmente um homem adulto, que teria para si atribuída a capacidade de tomada de decisões em nome da família. Nesse cenário, a mulher estaria sempre vinculada ao registro familiar cujo representante seria uma figura masculina, isto é, seu genitor ou seu esposo, tendo em vista que não seria possível estar inscrita em um registro familiar sem integrar a lógica desse sistema. O sistema de chefe de família definia, então, a mulher conforme a posição que ocupava no grupo familiar, como esposa, como mãe, ou como filha, e, conforme definia a regulação legal, regras discriminatórias de gênero seguiam perpetuando noções de inferioridade da mulher no todo familiar, que priorizavam, mesmo em questões de direitos de propriedade e de sucessão, as figuras masculinas [YANG, 2013, p. 51-53]. Com a abolição de tal sistema, em 2005, pela declaração de sua inconstitucionalidade a partir de decisão da Corte Constitucional da República da Coreia, também por pressões de movimentos feministas e pelo apoio dos Advogados por uma Sociedade Democrática nos anos 2000, que impulsionaram judicializações para o escrutínio da constitucionalidade dos artigos pertinentes a esse sistema na Lei Civil, perspectivas acerca de um feminismo jurídico puderam ser discutidas. Para além de um mero rito público burocrático, a abolição do sistema Hoju permitiu às mulheres a não subordinação da própria identidade aos laços que possuem com seus ascendentes e descendentes homens e maridos [YANG, 2008; 2013]. Políticas contra desigualdade e violência de gênero adotadas na Coreia do Sul e que vinculam-se ao papel materno atribuído à mulher também foram mais recentemente estabelecidas. É o caso da recente descriminalização do aborto em 01 de janeiro de 2021 por decisão da Corte Constitucional do país, abolindo do Ordenamento Jurídico sul-coreano os dispositivos que proibiam a prática por iniciativa das mulheres e dos médicos e médicas [SOUTH…, 2021]. Também apoiada por movimentos femininos, a descriminalização do aborto ressignifica discursos que predeterminam a tradição da maternidade e do casamento na constituição da identidade da mulher e enfatiza os direitos de autodeterminação do próprio corpo. Em verdade, o discurso da ‘tradição’ – também mais uma herança colonial – é uma das bases pelas quais o sistema patriarcal foi perpetuado na sociedade coreana. Defendeu-se, também por influência da ideologia Confucionista e Neoconfucionista, sob o nome da tradição como pedra angular filosófica do Estado, os pilares da família patriarcal. Posto isso, sendo a família patriarcal a tradição da nação, o enrijecimento da família patrilinear tornava indispensável a continuação da família por meio da geração de filhos, o que constituía a ideia da mulher como objeto de procriação. A reinterpretação da tradição pelas lentes do feminismo, funcionando como método de compreensão da história e da sociedade, especialmente no período de democratização da Coreia pós-1987, permitiu vias de reconstrução da representatividade feminina pelas bases da democracia, igualdade de gênero e desenvolvimento social [YANG, 2013, p. 7994]. Conclusão Enxergar as relações familiares na instituição familiar sul-coreana torna-se, então, importante fonte para compreensão das relações de gênero e, em especial, dos direitos e bases sociais da mulher na Coreia do Sul. Historicamente a tradição serviu de fundação para perpetuação de regras e costumes discriminatórios de gênero e inferiorização da mulher. Contrapontos foram organicamente mobilizados por movimentos feministas ao longo da história do país, sendo a abolição do sistema Hoju e a descriminalização do aborto exemplos de conquistas das mulheres por vias institucionais. A possibilidade da discussão acerca da liberdade feminina de casamento e da maternidade em espaços públicos e privados evidencia o começo de uma caminhada em prol da diminuição da desigualdade de gênero na Coreia do Sul. A tratativa do casamento e da maternidade, retomada pela agência feminina, indica, porém, um longo caminho a ser percorrido, haja vista que bases patriarcais históricas não são simplesmente apagadas da sociabilidade dos indivíduos por simples – e nem tão simples assim – reformas legais. Olhar para a atuação dos movimentos feministas sul-coreanos atualmente demanda um exercício de criatividade para ressignificação de bases culturais que formam uma certa identidade feminina, o que torna uma revisão da noção de tradição não apenas um desafio, mas uma necessidade para a afirmação de uma cultura que preze pela independência e integridade das mulheres. Referências Amanda de Morais Silva é graduanda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora voluntária PIBIC/CNPq e integrante e pesquisadora associada da Coordenadoria de Estudos da Ásia da UFPE na Curadoria de Coreia do Sul e Curadoria de Assuntos do Japão [e-mail: amndmorais@gmail.com] JEFFERY, Yasmin. #NoMarriage movement sees South Korean women reject Government pressures to marry and have kids. 2019. Disponível em: https://www.abc.net.au/news/2019-08-01/nomarriage-movement-south-koreawomen-reject-marriage-kids/11367488 LEE, Jihye. #NoMarriage: o movimento que está desafiando a Coreia do Sul. 2019. Disponível em: https://exame.com/mundo/nomarriage-omovimento-que-esta-desafiando-a-coreia-do-sul/ LEE, Suni. "Marital status, gender, and subjective quality of life in Korea" in: DEVELOPMENT AND SOCIETY, vol. 27, n. 2, 1998, 35-49 PARK, So Jin. “Educational Manager Mothers: South Koreas Neoliberal Transformation” in KOREA JOURNAL, vol. 47, n.3. 2007, p. 186-213 SONG, Jesook. “A room of one’s own: the meaning of spatial autonomy for unmarried women in neoliberal South Korea.” in Gender, place & culture: a journal of feminist geography, vol. 17, n. 2, 2010, p. 131-149. SOUTH Korea: Abortion Decriminalized since January 1. 2021. Disponível em: https://www.loc.gov/item/global-legal-monitor/2021-0318/south-korea-abortion-decrimin alized-since-january-1-2021/ STATISCS KOREA. Preliminary results of birth and death statistics in 2018. 2019. Disponível em: https://kostat.go.kr/portal/eng/pressReleases/1/index.board?bmode=read&aSeq=3 75520. WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report. 2021. Disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2021.pdf. YANG, Hyunah. A journey of family law reform in Korea: tradition, equality, and social change. Journal of Koream Law, vol. 8, 2008, p. 77-94 _____________. Colonialism and patriarchy: where the korean familyhead [hoju] system had been located. In: YANG, Hyunah [Org.]. Law and Society in Korea. Northampton: Edward Elgar Publishing, 2013. YOO, Theodore Jun. The politics of gender in colonial Korea: education, labor, and health, 1910-1945. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2008. FEMINISMO NA CHINA: HISTÓRIA DO MOVIMENTO SUFRAGISTA CHINÊS Caroline Micaela de Souza Greco e Teodora Maicá Soares Introdução Este trabalho traz um propósito de abordar a história dos movimentos feministas na China e seus desdobramentos até a primeira metade do século XX. Tem também como objetivo, demonstrar que a contextualização histórica é peça fundamental para uma plena compreensão a respeito do feminismo chinês, facilmente colocada como praticamente inexistente e desinteressante para o sistema internacional. A temática é escolhida de forma justa, pela necessidade de conscientização e repercussão de informações verídicas, ora tão caras no cenário atual. Dessa forma, analisaremos o contexto histórico de construção dos movimentos feministas chineses, buscando fornecer ao leitor ferramentas para maior compreensão do tema. Além disso, realiza-se uma breve análise e explanação, através de um segmento temporal, das ondas feministas, visualizando seus marcos históricos e analisando os passos corajosos, por assim dizer, que as feministas chinesas deram durante períodos de governos autoritários. Também, ao analisarmos inicialmente os movimentos sufragistas e suas nuances, consegue-se observar grande diferença entre a caracterização do movimento, suas pautas e ideologias entre ocidente e oriente. O senso comum, que se dá pelas fontes midiáticas das quais bebemos no ocidente, reforçam o Orientalismo de Said [2007, p. 12], no qual constrói-se a caracterização do Oriente sob a visão ocidentalista, ou seja, há, majoritariamente, uma visão subversiva a respeito do oriente e, principalmente, a respeito de suas cultura e liberdade. Em suma, o trabalho busca disseminar conteúdo feminista provindo do outro lado do globo e suas influências para as mudanças da China, além de provocar reflexão sobre a importância do exercício diário que é desprender-se do viés ocidental e abrir-se ao leque de transformações sociais ao redor do mundo. Os movimentos sufragistas A história da luta de emancipação das mulheres, não pode dar-se ao luxo de colocarse numa linha temporal, cuja qual tenha início, meio e fim, pois, embora date-se a Primeira Onda Feminista, em meados do século XIX e início do século XX, seria ilusório datar que os Movimentos Sufragistas, dão início a luta das mulheres. Contudo, esta ilusão ocorre frequentemente, pois, de fato, a luta em prol das mulheres somente ganhará força no período dos anos 1900, onde as mulheres saem às ruas clamando pela sua emancipação, como o direito ao voto, ao estudo e ao trabalho [JILES, 1952, p. 10]. Enquanto mulheres brancas e de classe alta, no século XIX e XX, buscavam em sua emancipação, o direito ao trabalho assalariado, as mulheres negras, por muito, ainda mantinham vínculos de escravização como trabalhadoras. As mulheres brancas também, vale ressaltar, mantinham-se como acessório fundamental do processo de industrialização e construção do sistema capitalista. Isto é, elas eram essenciais em seu trabalho doméstico - o qual não obtinham remuneração - para a reposição da vida trabalhadora e manutenção da conservação da sociedade [DAVIS, 1944, p. 88]. A considerada Primeira Onda Feminista, que surgiria principalmente na Europa, invocava características que hoje podem as denominar como feministas liberais [WHITWORTH, 1994, p. 12], tais como a monopolização do movimento com ideias que não abarcassem todas as mulheres e sim, somente, aquelas mulheres que estivessem numa posição de empoderamento que ainda gerasse lucros para o sistema. Outrossim, a Segunda Onda Feminista, já na segunda metade do século XX, adentra a academia [WHITWORTH, 1994, p. 21], ou seja, passa-se a construir não somente resistências feministas, como também um acumulado de teorias que serão aplicadas nos mais diversos âmbitos acadêmicos. A segunda onda tem características que hoje podemos adjetivar como feminismo radical [WHITWORTH, 1994, p. 17], onde abarca-se uma teorização radical das ideias feministas, principalmente de estudo, onde põe-se a mulher além do objeto de estudo, elucidando a ótica feminina dos acontecimentos históricos. Essa ótica, irá fornecer novos ramos para os estudos das feministas e a dialética dos mesmos, também multiplicando as pautas, como a luta pelos direitos reprodutivos. Na terceira onda feminista, nos anos 1990, é possível visualizar as influências do cenário político sob o movimento das sufragistas e a onda que as carregava, a partir do início da unipolaridade no sistema internacional, influenciando o início do neoliberalismo imperialista do ocidente. O feminismo ganha força estética e mais individualista, com slogans e propagandas de aceitação do próprio corpo e representatividade feminina em áreas de poder, a exemplo, a exaltação de Margaret Thatcher, primeira mulher a ser Primeira-Ministra da potência britânica, o que gera uma falsa sensação de representatividade. É possível analisarmos como o oriente e o feminismo na ásia, não foram citados até o momento neste capítulo. Há a ocorrência dessa exclusão do oriente na grande maioria do consenso das teorias feministas acadêmicas, principalmente de relações internacionais, de que o sufragismo asiático não poderia caracterizar-se como sufragismo, ora tampouco de que houve um sufragismo chinês. Primeira onda sufragista chinesa [1900 - 1913] Para compreendermos as ondas sufragistas feministas chinesas, é necessário, primeiramente, abrir-se mão da metodologia ocidental de compreensão dos acontecimentos históricos. Isso ocorre porque, enquanto as sufragistas ocidentais daquele período, não consideravam válidos a maioria dos movimentos em busca de direitos em prol das mulheres, que estivessem sob a órbita de regimes políticos diferentes das esmagadoras democracias burguesas liberais que dominavam o sistema internacional no século XX. No início dos anos 1900, surge o que seria a Primeira Onda Sufragista Chinesa. Todavia, é válido ressaltar que, de acordo com Edwards [2010, p. 5], as mulheres asiáticas não gostavam da palavra ‘feminista’ pois esta, de origem ocidental, as remetia a um individualismo, que era agressivo à homens e crianças, e logo, à construção de família. Para o contexto social e cultural ao qual as chinesas apoiavam-se, a associação ao feminismo ocidental era de rejeição. Sendo assim, as chinesas, e também as outras mulheres asiáticas, teriam de fundamentar suas próprias teorias feministas, baseada em suas vivências e que abraçasse sua cultura, a qual as chinesas, vale lembrar, não sentiam-se oprimidas, e sim, orgulhosas de sua origem [EDWARDS, 2010, p. 6]. Na primeira década do século XX, a China encara diversas tentativas de sobreposição imperialistas em seu território, tanto das potências ocidentais como da potência japonesa [QIAOMU, PO-TA, 2018, p. 20], que são contínuas durante a primeira metade do século. Por isso, a formação dos ideais feministas, carregam além dos objetivos de emancipação feminina e direitos igualitários, a busca pela libertação nacional de seu povo. Essa é uma característica, a exemplo, também encontrada nas feministas marxistas. A primeira onda sufragista feminista da China, pode ser datada logo na virada do século XIX para o XX, tendo como pano de fundo histórico o fim do período monárquico e as constantes tentativas de abertura econômica, através do uso da força, da vasta aliança das potências. As Chinesas fariam parte então, ao longo desta primeira década, da Aliança Revolucionária que buscava o republicanismo, através de seu líder Sun Yixian. Em 1911, ocorreu a revolução e instauração da primeira república chinesa. A instauração desta República seria democrática para homens e mulheres, a partir de seu Estatuto e da posição midiática dos líderes do partido republicano em favor da conquista dos direitos das mulheres. Ainda, as mulheres de classe alta exerciam papéis de liderança dentro das organizações do Partido, fazendo parte dos exércitos republicanos que lutavam contra os monarcas, igualmente aos homens, comandando pelotões e agindo na linha de frente [EDWARDS, 2000, p. 620]. Entretanto, as feministas chinesas logo decepcionaram-se com o seu partido que, até 1912, as tratava de forma progressista e as auxiliava na emancipação. Essa decepção se dará a partir da renúncia do líder de Sun Yixian, em prol de Yuan Shikai, que aprovará uma nova Constituição em 1912 e não incluirá o direito ao voto universal. Iniciou-se uma longa campanha, a partir do grupo Aliança pelo Sufrágio Feminino, contrastando com a retaliação ao novo presidente Yuan Shikai que, teria chegado ao poder através de interferências externas ao ser bem visto pelas potências ocidentais. Já em 1913, Yuan Shikai inicia um regime autoritário no território chinês, o que, segundo Edwards [2000, p. 623], traria um período de conturbações domésticas e fariam as sufragistas chinesas embarcarem em sua Segunda Onda. Segunda onda sufragista chinesa [1919-1927] Após o fim da primeira onda sufragista, em 1913, com o banimento da Aliança do Sufrágio Feminino pelo então presidente Yuan Shikai, o movimento só ganhou força novamente, e passou por sua segunda onda, no final da mesma década. O movimento em sua segunda onda preserva algumas características do que foi visto na sua primeira etapa, porém, algumas mudanças ocorreram, grande parte delas relacionadas com as transformações pelas quais a China passou durante os anos em questão. Durante o período que se estende desde o fim da I Guerra Mundial até a metade da década de 20, a China passou por um momento de questionamento e transformação cultural e social marcada por momentos como o Movimento 4 de Maio. O movimento feminista ganhou mais visibilidade através de revistas e jornais que surgiram naquela altura, assim como o espaço que o tema obteve na grande imprensa e, também, entre os homens. O aumento da proporção do movimento também se deu pela mudança nas mulheres que faziam parte do mesmo. Durante a primeira onda percebe-se que o movimento era basicamente composto por mulheres de classe alta e com formação acadêmica, a composição do grupo, quando a segunda etapa se iniciou, sofreu algumas transformações. O movimento ainda era majoritariamente formado por mulheres que tiveram acesso ao ensino superior, muitas inclusive no exterior, porém, houve um aumento considerável no número de mulheres de classe média urbana que começaram a integrar o movimento. Surgiram durante o período da década de 20 grupos que tiveram notável relevância dentro do movimento sufragista chinês. Dentre eles estão: a Associação das Mulheres Unidas [AMU], a Associação para a Progressiva Participação das Mulheres na Política e a Liga dos Direitos das Mulheres. Os dois últimos grupos estavam localizados em Pequim e visavam ter um alcance nacional, enquanto o primeiro grupo tinha pretensões em atuar nos ativismos feitos nas províncias, onde foi de extrema importância para a aprovação das cláusulas de igualdade de gênero nas constituições provinciais que vão ser abordadas a seguir. A Associação para a Progressiva Participação das Mulheres na Política e a Liga dos Direitos das Mulheres, por estarem localizadas em Pequim, enfrentaram algumas barreiras como o governo conservador, o que consequentemente fez com que o direito ao voto fosse adquirido na cidade apenas em 1947 [EDWARDS, 2000, p. 624]. A partir de 1920, devido a instabilidade política que vinha desde a morte do expresidente Shikai, algumas províncias chinesas passaram por um processo de consolidação política e criaram novas constituições provinciais. Nesse momento, o foco do movimento sufragista voltou-se da esfera nacional para o nível provincial. Já nos primeiros anos da década de 20, quatro províncias do sul da China [Hunan, Guangdong, Zhejiang e Sichuan] aprovaram constituições que garantiram a igualdade de gênero nos direitos políticos [EDWARDS, 2004, p. 64]. Quanto às atividades realizadas pelas sufragistas da segunda onda, elas foram semelhantes às que ocorreram na primeira geração do movimento. As ações promovidas continuaram a incluir marchas, comícios, petições, panfletagem e invasão de sessões parlamentares. As mulheres que fizeram parte do movimento na segunda onda possuíam também conexões com outros movimentos sufragistas ao redor do globo através da Women's Christian Temperance Union [WCTU], que dentre suas funções buscava pelo sufrágio feminino [EDWARDS, 2000, p. 618]. Diferentemente do que se viu no começo da década de 20, quando o movimento teve um foco grande na atuação provincial, a partir de 1928, o foco passou a ser novamente o governo central. O esboço para a nova constituição chinesa que foi lançado em 1936 foi recebido de forma positiva pelo movimento, o mesmo apresentava em si cláusulas que garantiam o voto universal, prometendo assim o direito de voto às mulheres, assim como o direito das mesmas de se candidatarem ao parlamento [EDWARDS, 2004, p. 65]. Porém, a invasão do Japão à China fez com que a resolução somente fosse promulgada dez anos depois e implementada em 1947, já na terceira onda do sufragismo chinês. Terceira onda sufragista chinesa [1936-1946] Apesar da década de 30 ter sido marcada positivamente pela conquista do voto feminino em vários países, e a China estivesse mostrando seguir o mesmo caminho devido às conquistas que o movimento sufragista teve a nível provincial, e o esboço da constituição de 1936, alguns acontecimentos alteraram o rumo pelo qual a situação se encaminhava e adiaram a conquista do direito ao voto pelas chinesas para a segunda metade da década de 40. Dois principais motivos adiaram a aprovação do esboço constitucional que havia sido proposto em 1936 para 1946. O primeiro deles foi a invasão do Japão à China em 1937, os dois países entraram então na II Guerra Sino-Japonesa, que se estendeu até o ano de 1945, quando a mesma acabou paralelamente à II Guerra Mundial. Outro motivo foi o constante adiamento das eleições pelo então presidente Chiang Kai-shek do Partido Nacionalista Chinês [GMD - Guomingang]. Nos anos de 1920, os dois partidos, GMD e PCC [Partido Comunista da China], haviam formado uma frente unida na unificação do país, porém a mesma foi desfeita no final da década pelo GMD o que, de certa forma, representou um retrocesso no que se havia avançado quanto aos direitos das mulheres. Quando a aliança fora formada, o Partido Comunista garantiu a defesa de alguns direitos femininos como a liberdade de escolha do companheiro ao casar-se, possibilidade de divórcio, entre outros. A partir do rompimento da união entre os dois partidos, foi desenvolvido pelo presidente Chiang e por sua esposa na época, Soong May-ling, o Movimento Nova Vida, com características extremamente conservadoras. A partir de 1927, quando a união entre ambos os partidos foi desfeita, as mulheres que faziam parte do movimento sufragista e se alinharam ao PCC perderam certo espaço nos grandes centros, mas levaram o movimento sufragista para as áreas rurais e interior da China. Já as sufragistas que mantiveram uma posição neutra em relação à disputa dos dois partidos, continuaram os seus trabalhos nas grandes cidades, com o foco em pressionar o governo central, comandado pelo GMD, pela igualdade de direitos no âmbito político [EDWARDS, 2004, p. 65]. Em 1936, foi apresentado o esboço da possível constituição que prometia o direito de voto às mulheres, assim como a possibilidade das mesmas se candidatarem. Porém, analisando o que ocorreu nas províncias nas quais as constituições garantiam o direito de voto e de serem votadas às mulheres, as sufragistas perceberam que a possibilidade de serem eleitas não garantia que haveria a inserção de mulheres em cargos políticos. A partir de então, o movimento adotou uma mudança em seu discurso. O movimento passou a defender a adoção de políticas especiais que garantissem a igualdade entre homens e mulheres e a inserção delas no ambiente político [EDWARDS, 2004, p. 65]. As ações das sufragistas foram bem sucedidas, quando a nova constituição foi promulgada em 1946, a mesma, além do direito ao voto às mulheres, dava a garantia às mesmas de um mínimo de 10% dos assentos em cada nível dos órgãos representativos do país [EDWARDS, 2000, p. 626]. A constituição, dez anos após a sua proposta em 1936, finalmente foi promulgada, e entrou em vigor no começo do ano seguinte, 1947, garantindo assim o direito de voto para todas as mulheres chinesas. Apesar de 1947 ser o ano em que a constituição chinesa passou a garantir o direito das mulheres ao voto, existe um debate acerca do ano do sufrágio feminino na China, se esse seria 1947, ano em que a constituição entra em vigor, ou 1949, ano em que o Partido Comunista Chinês ascendeu ao poder. Após o final da Guerra Civil Chinesa entre o Partido Comunista e o Partido Nacionalista, com a vitória do primeiro, que assume em 1949 o governo da China continental, o Partido Nacionalista se retirou para a ilha de Taiwan. O PCC, que participou ativamente na defesa do movimento sufragista e dos direitos das mulheres, definiu 1949 como o ano do sufrágio feminino chinês [EDWARDS, 2000, p. 627]. O partido replicou em nível nacional políticas que já vinha pondo em prática em regiões que estavam sob sua zona de influência no país anteriormente, como a Lei de Matrimônio que permitia a escolha pela mulher de seu futuro marido, e as inseriu na constituição de 1954. Considerações finais Apesar da pequena abordagem acadêmica por pesquisadores ocidentais sobre o sufragismo chinês, em comparação com o que se observa com pesquisas sobre o movimento em outros países, o movimento sufragista na China se mostrou, por suas distinções, ser de extrema relevância, porém, se vê ainda muitas vezes apagado quando a história global do movimento sufragista é discutida. Pode-se perceber, ao longo da análise feita, que o movimento sufragista na China não pode ser desprendido das transformações pelas quais o país passou conjuntamente com o desenvolver do ativismo das sufragistas. A primeira onda ocorreu justamente em um período de transição do período dinástico para a república, e a terceira onda no momento de ascensão do Partido Comunista da China ao poder. Apesar de algumas semelhanças com as ações pelo sufrágio no ocidente, a busca das chinesas pelos seus direitos adotou muito da cultura do país para adaptar o movimento à sua própria versão. A luta das sufragistas chinesas, que diversas vezes é apagada por uma abordagem ocidental-capitalista do movimento sufragista, é uma narrativa repleta de particularidades e narrativas de mulheres que ajudaram a construir a história da China. Referências Caroline Micaela de Souza Greco e Teodora Maicá Soares são graduandas do 5º semestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Pampa [UNIPAMPA] e pesquisadoras do Grupo de Estudos de Índia e Ásia Oriental [GEsIAO] da UNIPAMPA, coordenado pela profª drª Anna Carletti. DAVIS, Angela, 1944 - Mulheres, raça e classe / Angela Davis; tradução Heci Regina Candiani. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2016. EDWARDS, Louise e ROCES, Mina. Women’s Movements in Asia: Feminisms and transnational activism. London: Routledge, 2010. EDWARDS, Louise. ‘Chinese women’s campaigns for suffrage: nationalism, Confucianism and political agency’. Women’s Suffrage in Asia Gender, nationalism and democracy. London: Routledge, 2004, p. 59-78. 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O Tribunal Constitucional de Taiwan, por exemplo, solicitou ao governo a autorização para a realização de casamentos entre pessoas do mesmo sexo, o que acabou ocorrendo em 2019, pela primeira vez na Ásia. Por sua vez, a Coreia do Sul [CS], uma democracia liberal com economia capitalista avançada e uma sociedade heteronormativa, ainda apresenta poucas mudanças no que se refere à vivência e direitos de pessoas LGBT+. No entanto, avanços jurídicos e sociais para essa população aumentou nos últimos vinte anos. Grupos LGBT+ são politicamente ativos, não apenas em Seul [a capital coreana e maior região urbana], mas nas regiões periféricas, incluindo Busan [a segunda maior área urbana] [Hsu & Yen, 2017; Phillips & Yi, 2019]. A mentalidade aversa a vivências LGBT+ pode ser parcialmente compreendida quando se observa como a sociedade coreana tem sido talhada por ideologias oriundas do Confucionismo. Essa forma de perceber o mundo encara a homossexualidade como antinatural e fornece subsídios para atitudes negativas quanto a experiências, práticas e direitos de pessoas LGBT+ [Nguyen & Angelique, 2017; Youn, 2017]. O Leste Asiático tem sido historicamente patriarcal conforme as influências do Confucionismo. De origem chinesa, entranhou-se na região, afetando também a Coréia do Sul. No Confucionismo, a família é descrita em termos heterossexuais e dá à ideia de família uma maior relevância no que diz respeito ao valor do indivíduo e interfere no lugar ocupado pelos sujeitos na comunidade. No confucionismo coreano, a sociedade é vista como uma extensão da família. Esta está profundamente relacionada à harmonia social. Não poderia haver pior destino do que envergonhar a família. Somados, esses diferentes fatores contribuíram para estabelecer a heterossexualidade como a principal norma social e ética na CS [Kim & Hahn, 2006; Fylling, 2012]. Em sociedades predominantemente confucionistas, pessoas LGBT+ se preocupam mais com a discriminação vinda de seu núcleo familiar do que da esfera políticogovernamental [Yi & Phillips, 2015]. A homossexualidade não é ilegal ou patológica na CS. Entretanto, permanece como um tabu. Dessa forma, pessoas LGBT+ estão sujeitas ao estigma social e discriminação [Youn, 2017]. A religião fornece as justificativas para a adoção de atitudes em relação à homossexualidade. Pessoas religiosas desaprovam mais a homossexualidade do que pessoas não religiosas. No final do século XX, muitos religiosos coreanos declaravam que a homossexualidade era uma consequência do estrangeirismo e imoralidade ocidental. Os protestantes conservadores têm lutado ativamente contra os direitos de LGBT+. Em 2007, por exemplo, uma lei antidiscriminação foi apresentada, mas foi retirada sob pressão cristã. O ex-presidente Lee Myung-Bak [2008-2013], alinhado ao protestantismo conservador, se opôs à legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, referindo-se à homossexualidade como “anormal” [Youn, 2017]. O propósito do artigo é apresentar alguns pontos referentes às experiências históricas da população LGBT+ na Coreia do Sul. Assim, perceber que experiências homossexuais não são uma invenção estrangeira recente, mas esteve presente na história coreana. Registros históricos contêm algumas referências possíveis. E em época mais recente, a emergência de espaços de sociabilidade e a atuação de grupos de direitos LGBT+ são pontos importantes para a conquista de direitos. Homossexualidade na história coreana: da realeza a artistas Fontes sobre experiências homossexuais na Coreia pré-moderna são escassas. As evidências que podem ser encontradas em obras como Koryosa Choryo [traduzido para o inglês em 1452], Samguk Yusa [supõe-se que tenha sido escrito no século XIII com algumas adições posteriormente] e Chosŏn Wangjo Sillok [escritos entre 1413 a 1865] sugerem que a homossexualidade masculina pode ser encontrada em diferentes momentos da história coreana. Os registros históricos apresentam, por exemplo, evidências de práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo ou a presença de comportamentos não condizentes com o esperado de determinado gênero entre membros das famílias reais [Johannemann, 2021]. Ao contrário de vários outros países do Leste Asiático, como a China, a CS não tem uma história de atividades e tradições culturais entre pessoas LGBT+ [Martin & Berry, 2003, p. 91]. Um dos primeiros registros é sobre a vida do rei do Reino de Silla [57-935], Hyegong, que reinou entre 765 e 780. Subindo ao trono aos oito anos de idade, afirmava ter nascido como uma mulher, mostrando interesse sexual no sexo masculino. Acabou sendo assassinado por membros da corte em 780, supostamente em reação a sua sexualidade assumida [Lee, 2000]. O Rei Mokchong [monarca entre os anos 997 e 1009] era aparentemente bem conhecido por seus relacionamentos masculinos. O Rei Chungseon [1298 e volta ao trono de 1308 a 1313] supostamente tinha um relacionamento de longo prazo com um homem conhecido como Weonchung [Naaranoja, 2016]. Talvez o mais conhecido entre esses personagens seja o Rei Kongmin [governou entre 1352 a 1374], que se sentia atraído por outros homens, incluindo seus guardas pessoais com os quais foi dito ter relações sexuais [Kim & Hahn, 2006, p. 62; Lee, 2000, p. 274] Durante a Dinastia Koryŏ [918-1392], as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram supostamente comuns entre os membros da aristocracia. Essas práticas sexuais eram chamadas de yongyang-chi-chong. A tradução do termo está sujeita a discussões. Alguns sugerem que significa “o dragão e o sol”, referindo-se à união de dois símbolos masculinos [Kim & Hahn, 2006]. Em um movimento para se distanciar do comportamento de partes da aristocracia Koryŏ, práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser vistas como negativas durante a Dinastia Choson [1392-1910] [Kim & Hahn 2006]. Neste contexto, entretanto, pode-se citar outro caso na realeza durante o reinado do rei Sejong [monarca entre os anos 1418 e 1450], famoso por criar o alfabeto coreano Hangil. A princesa Pongssi, nora do rei, manteve relações sexuais com suas criadas e foi consequentemente expulsa da corte e rebaixada ao status de plebeia [Johannemann, 2021]. O hwarang [cujo significado seria algo como “jovens flores”, “garotos flores”] oferece um outro exemplo da homossexualidade antiga na Coreia. Eles eram líderes de um grupo militar da Dinastia Silla [57 AC - 935 DC.], escolhidos entre os filhos da nobreza. Seu papel principal era lutar contra inimigos e promover o bem-estar comum. Além de defender Silla, os hwarang são admirados por sua beleza, assim como pelo afeto e lealdade que demonstram por seus companheiros. Isso envolve até elementos de erotismo, o que pode ser observado na poesia da época encontrada no Samguk Yusa [Kim & Hahn, 2006; Johannemann, 2021]. Existem também registros de práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo e de sujeitos performando em trajes e maquiagens destinados ao sexo oposto. Um exemplo disso é o Namsadang - trupes itinerantes de artistas. Esses grupos eram divididos em membros “machões” [sutdongmo] e “rainhas” [yeodongmo]; estes últimos eram responsáveis pelos papéis femininos e, aparentemente, pelo papel submisso nas relações sexuais [Naaranoja, 2016]. Os “machões” podem ter permitido que as “rainhas” agissem como prostitutos nas aldeias. Os membros novatos eram jovens que deixaram suas casas quando o Namsadang atravessara sua região. De maneira mais geral, entre seus participantes, as práticas sexuais e relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e a prostituição masculina eram comuns e bem conhecidos [Shim, 2013; Kim & Hahn, 2006, p. 62]. Grupos LGBT+ na atualidade Sob os regimes autoritário e militar de 1961 a 1993 na Coréia, a homossexualidade jamais se tornou um ponto de debate político, embora a aceitação da homossexualidade fosse mínima até a década de 1980. Na Pesquisa Mundial de Valores [World Values Survey – WVS] de 1982, quase 80% dos coreanos defenderam que a homossexualidade não seria justificável, e apenas 3,4% afirmaram que sim [Youn, 2017]. Organizações voltadas a pessoas LGBT+ antes da abertura democrática no final da década de 1980 eram principalmente associações baseadas em pequenas empresas e reuniões locais, cujos objetivos eram desvinculados das representações políticas. A primeira organização de lésbicas estrangeiras e coreanas criada foi Safo, fundada por uma norte-americana em 1991. A organização estudantil Maum001, a organização gay Ch'in'gusai e a organização lésbica Kkirikkiri se estabeleceram durante a década de 1990, dando início à fundação da Associação de Direitos Humanos de Homossexuais Coreanos [Bong, 2008; Fylling, 2012]. A organizadora do Kkirikkiri fundou o Bar Lesbos em 1996, um local onde as pessoas, principalmente lésbicas, podiam se socializar. Em julho do mesmo ano, o Lapel, segundo bar lésbico, foi inaugurado em Itaewon. Em 1997, Schooner e Labris foram inaugurados em Sinchon, elevando para quatro o número total de bares destinados a mulheres lésbicas. Esses espaços, às vezes, eram empregados para a realização de vários eventos e performances, transformando-se em pontos importantes dentro da cultura lésbica e dos direitos humanos [Ohreum, 2020]. Em 2000, o primeiro evento público de “orgulho LGBT+” na Coréia foi um festival de cultura Queer, organizado por Kkirikkiri, Ch’in’gusai, grupos universitários e outras organizações. O objetivo era tornar a sociedade mais consciente da existência e atuação de homens e mulheres LGBT+ na CS, como acontece em outros festivais em Londres, Sydney e em outras partes do mundo. Em 2001, havia mais de trinta universidades com grupos LGBT+ [Fylling, 2012]. Em 2007, como reação ao anúncio da aprovação do ato antidiscriminação do Ministério da Justiça, grupos cristãos conservadores defenderam que a orientação sexual não deveria ser inserida na mesma categoria de gênero ou deficiência. Nesse embate político, sete cláusulas, incluindo aquelas relacionadas à orientação sexual, foram suprimidas. O ato foi encaminhado para aprovação, provocando reações que o qualificaram não de uma lei antidiscriminação, mas de lei pró-discriminação [Ohreum, 2020]. Como pode-se observar, pessoas LGBT+ têm enfrentado lutas em diferentes frentes em busca de igualdade. Além do espaço político, outro ponto se torna preocupação na vida social, a obrigatoriedade militar. Assumir-se gay ainda pode ser um problema, pois, cada soldado coreano passa por uma avaliação psicológica antes de entrar no exército. Se o homem for afeminado ou apresentar características que o avaliador julgue impróprias para o sexo masculino, o indivíduo acaba sendo qualificado como “deficiente mental”, logo, impróprio para servir [Kim, 2012]. O serviço militar é aceito pela maioria de homens e mulheres na Coreia do Sul. Aceito como um rito de passagem essencial para um jovem com o propósito de se tornar um homem adulto responsável pelos cuidados familiares. O alistamento militar coloca pressão psicológica entre os homens gays, uma vez que existe um estigma social contra aqueles que não fizeram parte das forças armadas. Soldados suspeitos de homossexualidade são dispensados de maneira desonrosa. Os soldados que se assumem como gays no serviço militar e são dispensados enfrentam desvantagens e discriminação para o resto da vida em uma sociedade que exige o serviço militar para todos os homens qualificados [Kim, 2012; Kim, 2016]. Apesar do crescente apoio, nem o principal partido de direita [Partido Coreia Liberdade] nem o partido “progressista” dominante [Partido Democrático da Coreia do Sul] avançam nas pautas referentes aos direitos LGBT+. Em 2017, durante a campanha presidencial, o líder do partido progressista e presidente sul-coreano, Jaein Moon, ex-advogado de direitos humanos, declarou que não aprova a homossexualidade, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou legislação contra discurso de ódio e crimes contra a população LGBT+ [Phillips & Yi, 2019]. Conclusão Na Coreia do Sul, a posição de grupos LGBT+ e o status legal da homossexualidade sofreram mudanças nas últimas décadas. As atitudes se tornaram muito mais favoráveis. Entretanto, essas atitudes em relação à homossexualidade são uma combinação paradoxal entre o contemporâneo e o conservador. Publicamente, o comportamento sexual é regulado por padrões estritos de decoro que legitimam o sexo apenas em um casamento heterossexual monogâmico. Embora a Coreia não tenha um histórico de perseguição ativa a pessoas LGBT+, a cultura da desonra estimulada pelo Confucionismo tem sido bastante para forçar a homossexualidade a viver no armário. Os direitos dos homossexuais, portanto, ainda não são reconhecidos pela sociedade coreana. Como pôde-se observar ao longo deste texto, práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo deixaram suas marcas ao longo da história coreana, ainda que esse aspecto histórico seja desprezado propositalmente por opositores das leis antidiscriminação. Já no final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, pessoas LGBT+ têm buscado lutar por igualdade e fim da discriminação. Grupos religiosos têm agido ativamente contra quaisquer medidas contra o preconceito. São inimagináveis os danos psicológicos e sociais que viver sob pressão familiar, cultural e religiosa podem causar na vida de alguém. Que a tradição não seja mais uma desculpa para defender a desigualdade, mas que seja transformada e comporte as diferenças. Referências Leonardo Paiva Monte é mestre em História Social pela Universidade de São Paulo [USP]. BONG, Y. “The Gay Rights Movement in Democratizing Korea” in KOREAN STUDIES, v. 32, p. 86 – 103, 2008. FYLLING, E. Her story: Lesbians in Japan and South Korea. Master’s Thesis in East Asian Studies African and Asian Studies. University of Oslo. 2012. HSU, C.; YEN, C. “Taiwan: Pioneer of the health and well-being of sexual minorities in Asia”. ARCH SEX BEHAV, v. 46, p. 1577 – 1579, 2017. JOHANNEMANN, H. Gay identity formation in South Korea: The blessings and curses of Capitalism in a [Post-]Developmental State. In: NAVRATIL, M.; REMELE, F. 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Mais inclusão e menos preconceito. Mais diversidade e espiritualidade.