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IMPRENSA NACIONAL
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EDIÇÃO
Imprensa da Universidade de Coimbra
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CONCEÇÃO GRÁFICA
Imprensa da Universidade de Coimbra
INFOGRAFIA
Mickael Silva
REVISÃO
INCM
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
INCM
ISBN
978-989-26-1547-9 (IUC)
978-972-27-2710-5 (INCM)
ISBN DIGITAL
978-989-26-1548-6 (IUC)
978-972-27-2702-0 (INCM)
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1548-6
DEPÓSITO LEGAL
443 485/18
CÓDIGO DE EDIÇÃO
1022651
©SETEMBRO 2018,
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA
5
S UMÁRIO
Introdução ............................................................................................................... 7
José Augusto Cardoso Bernardes e José Camões
I Parte – Textos e contextos .................................................................................. 13
I. Gil Vicente: um nome para identidades plurais ...........................................................15
José Camões e João Nuno Sales Machado
II. Gil Vicente e o teatro português de Quinhentos ........................................................49
José Camões
III. Gil Vicente e o teatro europeu da primeira modernidade .........................................67
Hélio J. S. Alves
IV. Gil Vicente e a cultura popular ..................................................................................85
Pere Ferré
V. A fortuna editorial da obra de Gil Vicente ................................................................ 123
José Camões
II Parte – Temas e formas.................................................................................... 169
VI. Formas del discurso vicentino .................................................................................. 171
Armando López Castro
VII. Os géneros no teatro de Gil Vicente ...................................................................... 195
José Augusto Cardoso Bernardes
VIII. «O que valem cavaleiros». Indagações sobre a obra de Gil Vicente ...................... 215
Isabel Almeida
IX. Lo pastoril en el teatro de Gil Vicente ..................................................................... 239
José Javier Rodríguez Rodríguez
X. A sátira no teatro de Gil Vicente ............................................................................... 277
José Augusto Cardoso Bernardes
XI. Gil Vicente: religião em teatro ................................................................................. 299
Maria Idalina Resina Rodrigues
INTRODUÇÃO
III Parte – Traduções ........................................................................................... 329
XII. Las traducciones de Gil Vicente al español ............................................................ 331
Manuel Calderón Calderón
XIII. Gil Vicente em língua francesa .............................................................................. 347
Christine Zurbach
XIV. Gil Vicente em Itália ............................................................................................... 359
Sebastiana Fadda
XV. Gil Vicente in english translation ............................................................................ 379
Patricia Odber de Baubeta
IV Parte – Texto, imagem e palco ....................................................................... 399
XVI. Depois do espetáculo teatral vicentino: «Este livro e cancioneiro» ........................ 401
Jorge A. Osório
XVII. O papel da música no teatro de Gil Vicente ........................................................ 431
José Camões
XVIII. Actores y técnicas de representación en tiempos vicentinos ............................. 447
Tatiana Jordá Fabra
XIX. O teatro por imagem .............................................................................................. 467
João Nuno Sales Machado
V Parte – Investigação e ensino .......................................................................... 495
XX. Os estudos vicentinos ............................................................................................. 497
José Augusto Cardoso Bernardes
XXI. Gil Vicente no cânone escolar. O(s) texto(s) e a(s) leituras ................................. 517
Amélia Maria Correia
VI Parte – Gil Vicente por editar ......................................................................... 545
XXII. Trovas de Gil Vicente «a umas senhoras fermosas» (texto inédito).
Leitura e apresentação com breves notas linguísticas ........................................... 547
Telmo Verdelho
Índices ................................................................................................................. 593
Índice de títulos de teatro .............................................................................................. 595
Índice onomástico .......................................................................................................... 603
6
IV
Gil Vicente
e a cultura popular
Pere Ferré
UNIVERSIDADE DO A LGARVE /CIAC
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1548-6_4
A
CULTURA POPULAR NOS SÉCULOS XV E XVI
Interessar-me-á, neste trabalho, verificar o modo como algumas expressões da literatura tradicional (romances, canções, provérbios e contos) se
imiscuem no seu labor teatral e observar a razão (ou razões) pela qual Gil
Vicente insere um extraordinário número de composições de cariz tradicional ou tradicionalizante, isto é, de autoria alheia ou própria, na sua
produção dramática.
Desde as suas origens, o teatro teve um papel sincrético (ainda que
também, por vezes, na sua história, se tenha remetido a minimalismos radicais recorrendo através da simples leitura em voz alta à assunção de toda
a epifania teatral) e a música nele sempre (ou quase sempre) foi parte
integrante pelo que dizer poesia narrativa ou lírica é dizer música, não só
pela «musicalidade» intrínseca da rima e do ritmo mas muito principalmente porque se não havia poesia sem música com mais razão ainda esta
afirmação se aplicaria aos romances, às cantigas ou aos «villancicos».
Recordemos: «[...] no existe en la historia cultural de Occidente una época
en la que se haya producido una relación tan estrecha entre la música y la
poesía como la que se dió durante el Renacimiento» 1.
1 Margit Frenk, «Música y poesía en el Renacimiento español (1490-1560)», in Poesía
popular hispánica: 44 estudios, México, Fondo de Cultura Económica, 2006, p. 177.
87
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
Situamo-nos num período muito concreto onde o gosto pela literatura
popular ou de «tipo popular» impera. Este gosto é claramente observável,
entre outros fatores, pela abundantíssima colecionação deste tipo de poesia
em cancioneiros ou cancioneiros musicais, a partir, essencialmente, de finais
do século xv, começos do século
XVI ,
em plena corte dos reis de Espanha
D. Fernando e D. Isabel.
Hay indicios para pensar que la valoración de la lírica popular, como la del
romancero, tuvo sus primeras manifestaciones en la corte de Alfonso V de
Aragón. Pero donde se le ve por primera vez «en bloque» es en la corte de
Isabel y Fernando. El impresionante Cancionero musical de Palacio, compilado a comienzos del siglo X VI , que reúne buena parte del repertorio de
música vocal de esa corte, muestra ya en pleno auge el gusto por la canción
lírica popular. 2
No campo do romanceiro, o mais antigo testemunho conhecido é do
domínio privado: data de 1421 e é o texto transcrito por um estudante da
ilha de Maiorca que verteu num seu caderno pessoal o romance «Gentil
dona, gentil dona», em catalão. Seguem-se-lhe os romances do «Arçebispo
de Çaragoça» de 1429 e «Si s’estava en Campo Viexo» de 1448 (ambos transcritos em duas folhas soltas dentro de protocolos notariais). A este
incipiente número de testemunhos conhecidos suceder-se-á um importantíssimo incremento de versões conservadas dado que o seu número
crescerá tanto quanto mais nos aproximemos dos últimos anos do século
XV
para, por fim, chegados ao
XVI ,
passarmos a dispor de um caudalosíssi-
mo número de romances impressos, com as suas versões dispersas por
cancioneiros e folhetos de cordel 3.
2 Margit Frenk, «Valoración de la lírica popular en el Siglo de Oro», in op. cit., p. 61.
3 Numa contagem já desatualizada, mas que serve aqui como mero exemplo, num artigo
publicado por S. G. Morley («Chronological List of early spanish Ballads», Hispanic Review,
XIII, 1945, pp. 273-287), oferece-se uma lista de romances fixados entre 1421 e 1511: 85.
Para uma informação mais atualizada, cf. Giuseppe Di Stefano, «La documentación primitiva
del romancero», en Ogni onda si rinnova. Studi di ispanistica offerti a Giovanni Caravaggi,
a cura di Andrea Baldissera, Giuseppe Mazzocchi e Paolo Pintacuda, Pavia, Ibis Edizioni,
2011, vol. I , pp. 123-138 .
88
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
Assim, tanto na lírica como na poesia narrativa se pode constatar o incremento de testemunhos conservados a partir dos últimos lustros de 1400
atingindo este tipo de literatura a sua cúspide até, aproximadamente, os
finais da década de 70 do século seguinte 4.
Ao fazer este brevíssimo ponto da situação, não pretendi restringir ao
período entre 1480 e 1580 o momento de criação e transmissão da literatura popular. É minha convicção profunda, baseando-me nas investigações
feitas essencialmente por Menéndez Pidal e seus discípulos, que muitos
destes textos assentam as suas origens em séculos anteriores. Tive como
fito, no entanto, provar que a popularidade destes textos era imensa, pois
só assim se explica a sua fixação em suporte de papel, por vezes em luxuosos cancioneiros, bem como as tiragens verdadeiramente impensáveis
e surpreendentes que alcançaram alguns «pliegos sueltos poéticos» num
século em que o número de leitores era tão escasso 5.
Floresce este interesse em pleno Renascimento no qual, como Américo
Castro escreveu, se «idealizará los niños y sus juegos; el pueblo, sus cantares y sus sentencias que se juzgan espontáneas y primitivas (refranes); el
salvaje no adulterado por la civilización; se menospreciará la corte y se
alabará la aldea» 6, período este onde se procede à «exaltación de lo natural y primitivo» e onde
al «salir del divino y natural troquel», el hombre era bueno y feliz, porque
llevaba en sí, inalterados y puros, los gérmenes de lo divino. Pero después
vinieron la cultura y la civilización, y con ellas los afeites y las máscaras, la
4 V., para uma parte deste período, Brian Dutton, El cancioneiro del siglo XV (c. 1360-1520),
sete tomos, Salamanca, Universidad de Salamanca, 1990. Cf., ainda, Antonio Rodríguez Moñino,
Diccionario de pliegos sueltos poéticos (siglo XVI), Madrid, Castalia, 1970 (nova edição corrigida e
atualizada por Arthur L.-F. Askins e Víctor Infantes, Nuevo diccionario bibliográfico de pliegos
sueltos poéticos. Siglo XVI, Madrid, Castalia, 1997); e, do mesmo autor, Manual bibliográfico de
cancioneiros y romanceros impresos durante el siglo XVI, 2 vols., coordenado por Arthur L. F.
Askins, Madrid, Castalia, 1973; Manual bibliográfico de cancioneiros y romanceros impresos durante
el siglo XVII, 2 vols., coordenado por Arthur L. F. Askins, Madrid, Castalia, 1977 e 1978.
5 Cf. Giuseppe Di Stefano, «Il pliego suelto cinquecentesco e il romancero», in Studi di
filologia romanza offerti a Silvio Pellegrini, Padova, Liviana, 1971, pp. 111-143 e «La difusión
impresa del romancero antiguo en el siglo XVI », Revista de Dialectología y Tradiciones
Populares, XXXII - XXXIII , 1976-1977: Homenaje a Vicente García de Diego, vol. II , pp. 373-411.
6 El pensamiento de Cervantes, Madrid, Imprenta de la Librería y Casa Editorial Hernando, 1925,
p. 178, apud Margit Frenk, «Valoración de la lírica popular en el Siglo de Oro», in op. cit., p. 58.
89
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
codicia, el fraude, las guerras, que corrompieron la humanidad. De ahí la utopía
prerrouseauniana de la «Edad de oro», suma de todas las perfecciones.7
Claro que, como exemplarmente fez notar esta estudiosa,
esa idealización está en contradicción con otras tendencias contemporáneas;
que «se llega a la dignificación de lo popular en una época que desprecia
soberanamente al vulgo como incapaz de juicio y razonar propio» ello se explica
por la compleja ideología renacentista. «El Renacimiento — dice Castro — rinde
culto a lo popular; como objeto de reflexión, pero lo desdeña como sujeto
operante; el Renacimiento lleva su interés a la materia popular, sirviéndose de
la razón afinada y de cultura, instrumentos no populares.» 8
Ora, é precisamente deste modo, recorrendo «a la razón afinada» e «à
cultura» que a literatura desta época, quando convoca a chamada cultura
popular, o faz. Fá-lo com a lírica, fá-lo com os adágios, fá-lo com o romanceiro, quando os edita em dispendiosos livros, mas fá-lo também nessas
primitivas expressões materiais da cultura de massas que eram os folhetos
de cordel; os textos editados eram substancialmente os mesmos, retocados
à saciedade, de modo a alcançar regularidades métricas ou eliminando
outras imperfeições (com o recurso a várias versões ou mesmo através da
recriação poética). A crítica textual, tal como então era entendida, foi, sem
dúvida, aplicada a estes textos. Assim se explica o modo como Martín Nucio
editou os romances por ele publicados. Eis o que ele nos disse: encontrando-se «muy corruptos» alguns deles devido
a la flaqueza de la memoria de algunos que me los dictaron que no se podian
acordar dellos perfectamente. Yo hize toda diligencia porque vuiesse las menos
faltas possible y no me ha sido poco trabajo juntarlos y enmendar y añadir
algunos que estauan imperfectos.9
7 Op. cit.
8 Ibidem, pp. 59-60.
9 Cito pela edição fac-similada, com uma introdução de Ramón Menéndez Pidal, do
Cancionero de romances impreso en Aberes sin año, Madrid, CSIC, 1945, fólio 2 r. e v.º
90
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
De facto, a cultura popular, neste período (e em tantos outros mais),
é absorvida pela «alta cultura» de uma forma tal que, ainda que o elemento «tradicional», o seu substrato, a sua essência caracterizante, seja
reconhecida pelo auditório, dificilmente é apresentada a nu, sem a roupagem que camufla o corpo deixando à vista a silhueta. José María Alín,
atento a estes problemas, ofereceu-nos, num antológico artigo, estas
palavras:
Cuando se estudia la poesía cantada del siglo XVI surge, inevitablemente, una
pregunta ¿Qué canciones fueron populares? La respuesta es harto difícil por
un doble motivo: de un lado porque un siglo es un período de tiempo muy
amplio, tiempo en el cual se producen cambios constantes, diversos y sucesivos
en la forma de vivir y entender la vida, que, en consecuencia, conllevan otros
tantos cambios en los gustos; de otro, porque aun disponiendo hoy en día de
un corpus relativamente amplio de textos cantados, carecemos de un cancionero, siquiera uno, que sea, sensu strictu, popular. [...] No pretendo decir, sin
embargo, con lo anterior que en cancioneros musicales como el citado
C(ancionero) M(usical de) P(alacio) o en poetas como Castillejo, o incluso
Góngora, no aparezcan canciones populares.10
«Siquiera uno» na sua totalidade, afirmou perentoriamente. Algumas
canções tradicionais (ou romances), não obstante, vão aparecendo respigadas nessas coletâneas. É o caso muito singular do livro de Salinas De
musica libri septem que, segundo Alín,
es el único, que yo sepa, que deja constancia de que los ejemplos que aduce
son populares o bien conocidos. [...] Nadie hizo nada semejante. Los demás
se limitan, cuando lo hacen a decirnos «cantar viejo» (sin que sepamos, por
desconocer la extensión temporal del adjetivo, qué quiere decir exactamente)
o «canción ajena». [...] Todavía más: en una veintena de los textos con que
10 «Francisco Salinas y la canción popular del siglo XVI », in Pedro M. Piñero Ramírez
(ed.), Lírica Popular/Lírica tradicional. Lecciones en homenaje a Don Emilio García Gómez,
Sevilla, Universidad de Sevila/Fundación Machado, 1998, pp. 137 e 138.
91
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
ejemplifica, la tradicionalidad, o el proceso de tradicionalización, es
demostrable.11
Por essa razão, também, quando observamos (agora graças ao nosso
conhecimento dos textos) no Cancioneiro de Londres as «corrompidas» versões do «Conde Niño», contaminada com o «Conde Arnaldos», ou do «Cavaleiro
enganado», da mesma forma que observamos o discurso e a intriga da
balada catalã «Gentil dona, gentil dona» (já anteriormente mencionada)
constata-se que estamos, sem dúvida, perante umas das poucas versões
verdadeiramente tradicionais e, por consequência, livres de retoque culto
ou mesmo de «rifacimento».
POPULAR ,
TRADICIONAL ?
Utilizei, indistintamente, os termos «popular» e «tradicional». Mas serão a
mesma coisa? A designação «popular» aplicada à literatura ou à cultura é
utilizada, com frequência, nos estudos literários. Trata-se, sem dúvida, de
um termo consagrado e — atrever-me-ia a dizer — maioritariamente aceite
pela crítica, que o prefere a outros que com ele partilham, ou parecem
partilhar, os mesmos traços, problemas ou paradigmas estéticos. Aliás, ainda
que se lhe possa encontrar antecedentes mais antigos, vê-se consagrado
desde o Romantismo que, através de uma oposição entre Naturpoesie e
Kunstpoesie, estabelece o confronto entre a poesia popular, aquela que brota da alma da coletividade, cujas origens se perdem nos confins dos tempos,
vivendo na mais profunda anonímia, e a arte moderna, artificiosa, nascida
da alma individual, com autor reconhecido através da sua criação artística12.
Esta visão, ainda que corrigida naquilo que apresentava de mais idealista,
chegou aos nossos dias outorgando a um certo tipo de expressões culturais
11 Op. cit., p. 139.
12 «C’est a ce moment que se fit entendre la rude voix de Herder pour recommender le
retour aux sources vives de la chanson traditionelle, et d’abord en condenser l’idée dans les
mots de Volkslied et de Volkspoesie, forgés à l’imitation tant de l’expression française ‘poesie
populaire’ que de l’anglais popular song et popular poetry.», in J.-A. Bizet, La poésie populaire
en Allemagne, Paris, Aubier, 1959, p. 12.
92
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
a etiqueta popular e, por essa via, apresentar esse traço como elemento
diferenciador e, ao mesmo tempo, caracterizador da sua essência artística.
Contudo, as múltiplas utilizações dadas a este conceito outorgaram-lhe,
paradoxalmente, um esvaziamento semântico: ao abandonar a mítica visão
romântica, os termos «popular» ou «povo» exigiram novas respostas. A cultura popular foi, assim, submetida a questões que outrora se escamoteavam,
e no interrogatório passou-se a exigir soluções para insolúveis problemas.
De tal forma que, amiúde, o recurso à «etiqueta» popular se transformou
mais num bordão, numa muleta, do que num conceito, como tantas e tantas
vezes ocorre na linguagem, até na científica. Note-se como é diferente um
texto ser «popular» por ser produzido pelo «povo» ou por ser do seu agrado.
Veja-se também que não é ociosa a falta de definição clara do que é o «povo»,
neste contexto, nem se o «popular» é um estilo (prístino ou adquirido).
A escola pidalina, ainda que por vezes tenha partilhado alguns excessos
românticos, neste capítulo deu um passo certeiro ao adotar uma nova categoria e assim utilizar mais um conceito (tradicional) para dar significado
a uma das partes desse todo anteriormente outorgado, apenas, ao «popular».
E, como é bem sabido, «popular» ficou consignado à poesia (porque foi
sobre ela que Menéndez Pidal discreteou) que, apesar da sua divulgação e
aceitação amplas, ainda não escapara à redoma autoral, tendo, assim, como
consequência a ausência de variação. Pelo contrário, a poesia tradicional,
precipitada no anonimato e sentida como património comum, passou a
viver em variantes, fluindo, assim, os seus textos ao sabor de uma força
centrípeta reguladora dos limites de variação.
Na poesia popular há um inequívoco estilo próprio (o do autor): a sua
sintaxe e o seu léxico são únicos, irrepetíveis, e mesmo que certos chavões
(muito comuns em poetastros) possam aparentar afinidades de estilo entre
obras diferentes, cada criação artística assume a sua singularidade; na poesia tradicional, perderam-se essas marcas diferenciadoras e, por essa razão,
se detetará a perturbante (e também fascinante) marca da identidade coletiva: a visão dos seus textos confunde-se com a que temos das estrelas e
planetas numa galáxia.
Pela minha parte, em consonância com os estudos que venho realizando neste domínio e na linha do magistério pidalino, prefiro a designação
93
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
tradicional. Contudo, enquanto que para o romanceiro, por exemplo, é
fácil — ou relativamente fácil — determinar a tradicionalidade de um texto, na lírica colocam-se sérios problemas para assegurar se um cantar é de
criação recente ou se se encontra já burilado pela memória coletiva. De
facto, como fez notar Sánchez Romeralo:
El villancico plantea a quien lo estudia un problema previo que no presenta
el romance: el de la autenticidad. El problema suele soslayarse empleando un
término no comprometedor, el de poesía de tipo tradicional (o de tipo popular); amplia capa con que se encubre una heterogénea muchedumbre lírica.13
Deste modo, segundo o mesmo autor:
Por su brevedad y concentración, la canción es casi toda ella un conjunto de
fórmulas y rasgos de estilo; y los rasgos de estilo pueden facilmente converstirse en bienes mostrencos al alcance de todos (los que sepan usarlos). Por
ello, cuando en una comedia de Lope o de Tirso encontramos una canción,
la identificación suele ser fácil (es vieja, o es de Tirso), pero a veces no lo es,
la duda existe. Igualmente difícil es la detectación del retoque.14
Com efeito, na lírica deparamo-nos com um sério problema: enquanto
na balada peninsular a variação imprime-lhe o cunho tradicional, na canção,
a variante pode dar azo a um novo cantar 15. É o que, com uma enorme
agudeza, notou Stephen Reckert ao escrever que «Assim como o romanceiro, na expressão de Menéndez Pidal, ‘vive em variantes’ [...], o vilhancico
vive em metamorfoses.» 16
13 «Hacia una poética de la tradición oral. Romancero y lírica: apuntes para un estudio
comparativo», in El romancero en la tradión oral moderna, ed. Diego Catalán e Samuel G.
Armistead com a colaboração de Antonio Sánchez Romeralo, Cátedra Seminario Menéndez
Pidal — Rectorado de la Universidad de Madrid, 1973, p. 210.
14 Artigo cit., p. 212.
15 Para além do estudo de Sánchez Romeralo aqui assinalado, cf., para esta questão, do
mesmo autor, El villancico (Estudios sobre la lírica popular en los siglos XV y XVI), Madrid,
Gredos, 1969.
16 «A lírica vicentina: Estrutura e estilo», in Espírito e Letra de Gil Vicente, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 162.
94
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
A
LITERATURA TRADICIONAL NO TEATRO DE
GIL VICENTE
Em Gil Vicente deteta-se uma relevante presença de romances, canções,
contos, provérbios provenientes da cultura tradicional que, para além das
importantes funções que desempenham na sua obra, estabelecem um produtivo diálogo com os seus espectadores.
Partilharão todos os textos a que aqui me refiro, no entanto, dessa tradicionalidade? Façamos mais uma pausa imprescindível para melhor
compreender o que se acabou de afirmar.
Gil Vicente incorpora na sua obra dramática um vastíssimo leque de
textos tradicionais (ou de raiz tradicional) do mesmo modo que será o autor
de alguns deles. A contabilização não é fácil: por exemplo, das mais de 164
composições líricas detetadas, quantas serão, exatamente, de Gil Vicente?
Sólo para cuatro canciones de la Compilaçam poseemos un testimono explícito
de que son obras de Gil Vicente: Las cuatro — cosa curiosa — están en castellano: «Muy graciosa es la doncella» (Auto da Sebila Casandra), «El que quiere
apurarse» (Frágoa de amor), «En el mes era de mayo» (Farsa dos físicos), «Bozes
davam prisioneros» (História de Deos). En las demás canciones podemos preguntarnos en qué medida le pertenecen.17
Refere-se Asensio, como é bem notório, às informações veiculadas pelas
didascálias onde ficou o registo de que Gil Vicente fez esses poemas. Mas,
mesmo com estas informações sobre estas quatro peças (e sem querer
questionar, neste momento, a pouquíssima fiabilidade das didascálias presentes na Copilaçam), a pergunta «¿en qué medida le pertenecen? também
deverá ser feita. Eis umas breves notas.
Na primeira delas, um verdadeiro «villancico», construído à base do estribilho «Muy graciosa es la doncella: / ¡cómo es bella y hermosa!», as glosas
desenvolvem, recorrendo a marinero, caballero e pastorcico, de acordo com
as regras tradicionais, um perfeito villancico cuja fonte tradicional, segundo
17 Eugenio Asensio, Poética y realidad en el cancioneiro peninsular de la Edad Media,
segunda ed. aumentada, Madrid, Gredos, 1970, p. 167.
95
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
penso, tem por base um romance. Os versos 13 e 14 (com assonância em
í-a) de um poema presente no Cancioneiro do British Museum (f. 27 v.º),
cujo incipit é «Por unos puertos arriba», cujo testemunho conhecido nos
mostra um romance construído em duas partes, sendo a primeira de Juan
del Encina, a saber:
Digas me tu, el ermitaño,
Que hazes la santa vida,
Como bem assinalou Diego Catalán, dado que aqui começa a segunda
parte deste texto, «Aunque nada sepamos del origen de la pregunta al ermitaño, es evidente que el romance responde a la temática de la poesia
trovadoresca de fines del s.
XV
y que no es un texto tradicional.»18. Ora, a
glosa vicentina segue, até na sua assonância, os versos acima transcritos
deste poema narrativo trovadoresco — tão na moda que Cumillas também o
contrafez («Digasme tu, el pensamiento, / que sostienes triste vida») no
Cancionero General de 1511 —, pelo que, sem pôr em causa a autoria, o
que se constata é que é uma recriação vicentina a partir de texto tradicional19.
Para o segundo caso, não consegui localizar paralelo, não obstante, no
terceiro dos poemas («En el mes era de mayo»), estamos perante uma criação
vicentina mas, de novo, edificada a partir da tradição oral. O seu incipit é
tomado de um dos romances mais glosados (e até parodiados) ao longo do
século
XVI ,
que se mantiveram na memória coletiva até aos nosso dias.
O trabalho poético do dramaturgo foi contrafazê-lo, alterando a assonância,
num centão composto a partir de outros temas. Os primeiros versos, desta
perfeita contrafacta, estabelecem uma clara oposição paródica com o romance fonte. Neste, um prisioneiro lamentava-se do seu castigo por não poder
viver o amor anunciado pela Natureza. O tempo em que decorria a ação era,
como transcreve Gil Vicente, o mês de maio (seguindo-se na documentação
18 Por campos del romancero, Madrid, Gredos, 1979, p. 38.
19 Estes mesmos versos figuram no romance tradicional velho de «Lancelot e o cervo
de pé branco». Eis os versos, segundo o Cancionero de romances, estampado em Anvers,
em 1550: «Digas me tu el hermitaño / tu que hazes santa vida / esse cieruo de pie blanco
/ donde haze su manida»
96
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
antiga o canto da «calandria» a resposta do «ruiseñor», aves de canto primaveril e do amor)20; em Gil Vicente, disparatadamente, ao «En el mes era de
Mayo» sucede-se o anacrónico «víspera de Navidad», recuperando-se a Natureza
mas sem recurso ao campo semântico da canção tradicional: aqui prefere-se
a ociosa «cigarra». Mas não cessa neste ponto o diálogo do centão vicentino
com o romanceiro. O «Conde Claros» (um dos romances mais propagados
pelos cancioneiros quinhentistas) segue-se na lista das fontes utilizadas.
O «Media noche era por filo, / los gallos quieren cantar, / Conde Claros con
amores / no podía reposar» é grotescamente recriado nos disparatados «Media
noche con lunar / al tiempo que el sol salía / recordé, que no dormía / con
cuidado de cantar». Mais uma vez, o segundo verso opõe-se semanticamente
ao primeiro, produzindo um absurdo: à meia-noite nasce o sol. Por sua vez,
o cuidado amoroso que impedia o conde de dormir transforma-se num pouco avisado desejo de cantar que o impedirá de dormir.
Finalmente, na quarta canção assinalada por Asensio («Bozes davam prisioneros») «entrando Sam Ioam naquella prisam, com admiraçam de grande
alegria, cantaram os presos o romance seguinte»: «Voces daban prisioneiros, /
luengo tiempo están llorando» Mais uma vez, tal como afirmara Asensio e já
muito antes Carolina Michaëlis de Vasconcelos 21, este romance é uma criação
vicentina, só que, para sermos mais precisos, uma contrafacta ao divino do
romance que ainda se conserva na tradição (espanhola e portuguesa) «Voces
daba el marinero, voces daba que se ahogaba» e só graças a ela conhecido,
pois, na tradição antiga, não se encontra referenciado.
De forma muito hábil, Gil Vicente introduziu na sua obra canções e romances ouvidos na tradição, ainda que, em muitos casos, readaptando-os, de
modo paralelo ao que as suas criações tradicionais insinuam: uma elaboração
inspirada não só pela letra dos cantares tradicionais como pela sua estrutura.
É certo que continua válida a conjetura de Asensio quando diz
cuando cita brevemente dos, tres o cuatro versos únicamente, hay vehemente posibilidad de que procedan de alguna canción popular o de moda.
20 Cf. E. Asensio, op. cit., pp. 230-262.
21 Cf. Romances Velhos em Portugal, 3. a ed., Porto, Lello & Irmão Editores, 1980, p. 313.
97
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
La cualidad tradicional o culta de los fragmentos ha de discutirse en cada
caso tomando en cuenta la métrica, el vocabulario, el estilo. No basta que
su conocimiento aparezca mencionado en documentos literarios, como
dicho en boga, ni que un texto, más o menos gemelo, ande inserto en
cancioneiros musicales.
Cuando Gil Vicente ha incluído un cantable más dilatado — estribo y una o
más estrofas — podemos dar por sentado que Gil Vicente, si no ha inventado
la letra entera, si ha pautado las estrofas a una melodía añeja o ha empezado
repitiendo un cantarcillo antiguo, a lo menos ha transformado y adaptado
ampliamente la glosa.22
Mas, como tentei mostrar, dever-se-á dar mais atenção à segunda parte
desta citação de D. Eugenio: Gil Vicente, neste domínio, era, como um
excelente criador deste período, alguém cuja mestria era consentânea com
a capacidade de imitar um estilo herdado, de ampliar uma fonte ou mesmo
de a contrafazer. A sua criação poética (no âmbito do romanceiro e da lírica tradicionais) é profundamente respeitadora dos textos de que partia,
ainda que, nestes casos, os pudesse subverter por completo. E se, como
disse, cumpria o ofício na perfeição, a exigência do reconhecimento entre
texto e auditório exigia-lhe que fosse exímio neste propósito, caso contrário correria o risco de provocar uma interrupção na comunicação: o seu
auditório poderia ficar sem entender a mensagem.
Não minimizo o trabalho artístico de Gil Vicente, subjugando-o, aparentemente, a uma técnica comunicacional; pelo contrário, reconhecendo a
profunda razão de Margit Frenk quando escreveu:
la canción lírica popular entra de lleno en el teatro gracias a la genial intuición
de Gil Vicente, quizá el primero y, durante mucho tempo, el único, que sintió
verdaderamente, como la sentimos hoy, la belleza poética de tantos cantares
de la tradición popular hispánica.23
22 E. Asensio, op. cit., pp. 167-168.
23 Margit Frenk, op. cit., p. 75.
98
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
sustenho, perentoriamente, a perfeição vicentina da sua «tejné» poética,
pois como também M. Frenk disse: «Gil Vicente supo sin duda imitar el
estilo tradicional a tal punto, que sus canciones se confunden con las
auténticas.» 24
O
LIRISMO TRADICIONAL OU DE « TIPO » TRADICIONAL , EM
GIL VICENTE
Eugenio Asensio em «Gil Vicente y las cantigas paralelísticas ‘restauradas’.
¿Folclore o poesía original?» 25 apresentou a seguinte proposta para a classificação das funções dos cantares no teatro vicentino, a saber:
– A ambientação;
– A caracterização e, por fim,
– A duplicação em plano épico ou lírico, em forma direta ou simbólica
da ação.
Com efeito, os intertextos tradicionais, ora espelhando a ação (duplicação), ora incorporando traços caracterizadores para o significado das
personagens (caracterização), ora como adereço cénico (ambientação),
vão-se incrustando na obra de Gil Vicente. Sempre, no entanto, através do
reconhecimento que provocam em quem vê e ouve esses textos tradicionais
que nunca funcionam como uma novidade mas como algo partilhado por
todos os que ali, naquele instante, perante um exercício de memória, reconhecem, cumplicemente, o seu sentido; por outras palavras, um sentido só
revelado a quem for tão conhecedor, como o próprio Gil Vicente, desses
mesmos textos.
Gil Vicente, no Auto da Sibila Casandra, apresenta-nos uma jovem (a
sibila Cassandra) que, segundo o argumento, profetizando «o mistério da
24 Idem, ibidem.
25 Trata-se de um dos capítulos da já citada obra Poética y realidad en el cancioneiro
peninsular de la Edad Media, pp. 134-176. Seleciono deste capítulo as partes que me servirão
de base para estruturar a continuação deste estudo, pelo que, obviamente, não o terei em
conta na sua totalidade.
99
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
encarnação, presumiu que ella era a virgem de quem o Senhor havia de
nascer: E com esta opinião nunca quis casar», desta forma, Cassandra, em
forma de pastora, entra em cena manifestando que não existe pastor digno
de com ela se casar 26.
Quién mete ninguno andar
1
ni porfiar
en casamentos comigo?
Pues séame Dios testigo
que yo digo
que no me quiero casar.
Cuál será pastor nacido
tan polido
ahotas que me meresca?
Alguno hay que me paresca
10
en cuerpo, vista y sentido?
(I, p. 51.)
Não se fica, contudo, pelo demérito dos pretendentes: arenga, também,
contra o casamento devido às suas nefastas consequências, a saber:
Cuál es la dama polida
12
que su vida
juega pues pierde casando
su libertad cautivando
otorgando
que sea siempre vencida?
Desterrada en mano ajena
siempre en pena
abatida y sojuzgada
y piensan que ser casada
26 Cito por As Obras de Gil Vicente, I, direção científica de José Camões, Lisboa, Centro
de Estudos de Teatro, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.
100
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
que es alguna buena estrena.
(I, pp. 51-52.)
O pobre Salomão, que aqui a vem cortejar, não consegue obter de
Cassandra a menor das simpatias, ouvindo sistemáticas recusas.
Yo te digo
69
que comigo
no hables en casamiento
que no quiero ni consiento
ni con otro ni contigo.
[...]
Y en esa afrenta
74
tengo contigo d’ estar.
No me quiero cautivar
pues nascí horra e isienta.
[...]
No quiero ser desposada
89
ni casada
ni monja ni ermitaña.
(I, pp. 53-54.)
E assim prosseguirá com estas negativas, o que fará que Salomão lhe
acabe por perguntar
Qué te hizo el casamiento?
112
Es tormiento
que se da por algún hurto?
(I, p. 54.)
Para, finalmente, dizer
Y aun por esso le surto
porque es curto
101
115
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
su triste contentamento.
Muchos dellos es notorio
purgatorio
sin concierto ni templanza
y si algún bueno se alcanza
no es medio placentorio.
Veo quexar la vecinas
de malinas
condiciones de maridos
125
unos de ensoberbecidos
y aborridos
otros de medio gallinas
otros llenos de mil celos
y recelos
siempre aguzando cuchillos
sospechosos amarillos
y malditos de los cielos.
Otros a garzonear
por el lugar
135
pavonando tras garcetas
sin dexar blancas ni prietas
y reprietas
y la muger sospirar.
Después en casa reñir
y groñir
y la triste allí cautiva
nunca la vida me viva
si tal cosa consentir.
(I, pp. 54-55.)
O lirismo tradicional, no que diz respeito à mulher, apresenta um conjunto de traços que o afasta do lirismo «culto».
102
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
Entre la lírica popular hispánica de la Edad Media y la poesía de las clases
dominantes el rasgo diferenciador más notable y asombroso es, sin duda, la
presencia, en la primera, de la voz femenina.27
Mas mais do que a voz dada à mulher, a canção «popular» outorga-lhe
não só uma liberdade como uma capacidade de decisão verdadeiramente
notável, em claro confronto com as expressões literárias que refletiam uma
muito maior proximidade com a cultura dominante.
Assim, a lírica tradicional mostra-nos mulheres com vontade própria que,
por vezes, entram em clara oposição com os desígnios masculinos, oriundos
da vontade paterna, de seus maridos ou, simplesmente, de familiares.
O tema popular da malcasada, exemplarmente retomado por Gil Vicente,
discrimina, através da voz de Cassandra, os grandes males do casamento...
para a mulher. Essencialmente, o prazer do casamento tem uma escassa
duração temporal, os ciumentos maridos dão-lhes maus-tratos, isto sem
esquecer os galanteios masculinos fora de casa atribuindo-se à mulher um
mero papel de figura secundária expectante e resignada, perdendo, assim,
a sua felicidade e liberdade ao ficar subjugada ao marido. Em síntese, para
a mulher, tudo é preferível ao casamento. E, como dizia, a capacidade de
a mulher, no lirismo popular, tomar decisões fará que também neste caso
a Sibila pretenda comandar o seu destino. Ora, terminará esta cena com a
seguinte canção entoada por Cassandra
Dicen que me case yo
198
no quiero marido no.
Más quiero vivir segura
nesta sierra a mi soltura
que no estar en ventura
si casaré bien o no.
Dicen que me case yo
no quiero marido no.
27 Margit Frenk, op. cit., p. 21.
103
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
Madre no seré casada
por no ver vida cansada
o quizá mal empleada
la gracia que Dios me dio.
Dicen que me case yo
210
no quiero marido no
No será ni es nacido
tal para ser mi marido
y pues que tengo sabido
que la flor yo me la so.
Dicen que me case yo
no quiero marido no.
(I, pp. 56-57.)
Para fazer a síntese de toda a cena, Gil Vicente socorreu-se de um villancico cuja cabeça — que será glosada ao longo de três estrofes — é
retomada como remate de cada uma delas, provocando o efeito de conclusão à glosa e, simultaneamente, de cabeça da seguinte. Esta circularidade,
de sabor tão tradicional, num poema que parece ter como autor Gil Vicente
(tocada no entanto por essa capacidade de «imitar» a tradição), cria a ilusão
de unidade dentro da diversidade do poema. Do protesto contra a prisão
do casamento (preferindo a liberdade que lhe dá a vida na agreste serra),
à recusa explícita da boda, mesmo contra a vontade da mãe (que aqui
prenuncia a chegada de suas tias), provocando, sem dúvida, a perplexidade de quem a ouvia, já que se afasta este diálogo do vulgar topoi da
cantiga de amigo em que a filha tenta obter de sua mãe autorização para
o amor, para, por fim, reiterar a inexistência de um pretendente à sua altura. Desta forma, com esta canção condensa-se toda a primeira parte
desta obra ou, seguindo a classificação de Asensio, obtém-se a duplicação
em plano lírico da ação 28.
28 Vimos como Casandra caracterizou, num dos seus protestos contra o casamento, a
vida da mulher casada: «Y la muger sospirar / Despues en casa reñir Y groñir» Como já
destaquei num estudo publicado na Revista Lusitana, encontra-se nestes versos a primeira
104
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
Mas não se achará na obra vicentina canções «verdadeiramente» tradicionais? Isto é: não se encontrarão vilhancicos ou outro tipo de cantares
«velhos» que o dramaturgo tenha incluído na sua produção teatral, tomados
da oralidade, sem retoques ou, pelo menos, com retoques mínimos? Será
possível, tendo em conta, como vimos, as dificuldades em determinar se
um cantar é autêntico (e não um pastiche), ousar afirmar que se encontram
na obra vicentina textos líricos tomados da tradição? Ou, mais modestamente, poderemos encontrar, pelo menos, fragmentos de cantares velhos
(estribilhos, por exemplo)? Margit Frenk publicou, num livro de homenagem
a Menéndez Pidal, um artigo intitulado «Autenticidad folclórica de la antigua
lírica ‘popular’» 29. Nesse estudo escreveu o seguinte:
Con razón ha dicho Le Gentil a propósito de esta poesía: «Es bien difícil distinguir lo auténticamente primitivo de lo que quiere parecer primitivo». [...]
Nos preguntamos, pues: ¿no habrá modo de traspassar la barrera de comprobar
la antigüedad siquiera de algunos textos, de saber, por lo menos, que efectivamente se cantaban entre el pueblo antes de su valoración? Lograrlo equivaldría
a probar también la tradicionalidad de los temas, las formas métricas y el estilo
de esos cantares. Pues bien: sí existen tales pruebas,
Talvez tenha sido demasiado assertiva esta estudiosa mexicana. Mas, o
que é um facto é que ensaia, mediante o recurso a cinco testes ou provas,
a exumação de peças líricas «auténticas». Em Gil Vicente poderíamos, a
referência ao romance vulgarmente designado «Él reguñir, yo regañar» (Pere Ferré, «El romance
Él reguñir, yo regañar en el Auto de la Sibila Casandra de Gil Vicente», Revista Lusitana, 3,
1982.1983, pp. 55-67.) que, até então, encontrara como citação mais antiga aquela que
Gonzalo Correas fizera no Vocabulario de refranes y frases proverbiales de 1627: «Regañar,
regañar, que no se lo tengo de remendar. Avísala el marido amenazado y puesto pena que
la haría tal cosa si no le remendaba el jubón.» O romance tem como argumento uma mulher
malcasada de pastor que lamenta a fealdade do marido bem como a sua falta de liberdade,
para além do mais, o marido obriga-a a ser pastora, dando-lhe também maus-tratos. Contudo,
assume a sua rebeldia e às ordens e enfado do marido responde dizendo: «Yo gruñir, él
regañar / No se las tengo de ir a buscar» Noutras versões, em vez de «gruñir» e «regañar»
figura como alternativa, entre outras, «Él a reñir y yo regañar». Como se pode observar, deste
romance e do provérbio surgiu o verso vicentino que, parodicamente, nos mostra os pastores
Cassandra e Salomão, cabendo àquela representar o papel da rebelde malcasada do romance.
Eis, pois, mais um caso em que a referencialidade está em profunda relação com o conhecimento
que o público vicentino tinha deste romance. Assim se completava o sentido.
29 Este estudo foi reeditado na já citada Poesía popular hispánica: 44 estudios, pp. 275-294.
105
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
partir das suas investigações, tentar encontrar alguns desses «cantares autênticos» seguindo duas vias. Uma delas seria encontrar um antecedente ao
poema «vicentino». É o que nesse mesmo estudo faz esta professora traçando o paralelo entre (1) a cabeça da cantiga com que finaliza o Auto da
Lusitânia e (2) uma kharğa do século
XII
(a 38 a de Josep Maria Solá-Solé30).
Eis os versos em confronto:
(1) Vanse mis amores, madre, [...] ¿Quién me los hará tornar?
(2) bay-še mio qoragon de mib yā rab ši še me tornarad?
Parece, de facto, haver uma relação entre o primeiro e o último dos versos
vicentinos e a kharğa medieval: o mesmo tempo verbal e o mesmo possessivo (no primeiro verso) e o mesmo verbo e interrogação (no último verso).
A outra via seria encontrar coincidências com canções conhecidas pela
tradição posterior a Gil Vicente. Vejam-se, como meros exemplos, os seguintes textos:
Ru ru menina ru ru
577
mouram as velhas e fiques tu
co a tranca no cu.
(I, p. 384.)
Este cantar da Feiticeira a Cismena que, significativamente, não só nos
dá o ambiente da cena como é caracterizador da personagem que entoa o
cântico, revela ainda, mediante um realismo grotesco, o ciclo da vida: do
nascimento e da morte, da juventude e da velhice. Ora, estes versos parecem ter paralelo na tradição moderna galega:
Durme, me ruliño, durme,
Que si non dou-te no cu,
Qur morran os vellos todos
E quedamos eu mais tú.
30 Las jarchas romances y sus moaxajas, Madrid, Taurus, 1990, p. 146.
106
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
Obviamente, perdeu a atual tradição o estilo da velha escola assumindo
a forma de uma vulgar quadra como expressão do mesmo tema com idênticos motivos.
O
ROMANCEIRO TRADICIONAL , EM
GIL VICENTE 31
As versões romancísticas que a seguir apresento foram tomadas da tradição oral (ou escrita, através de algum folheto de cordel), não sendo,
então, da lavra vicentina 32.
O romance cidiano Helo, helo por do viene foi utilizado por Gil Vicente,
de um modo muito especial no Auto da Lusitânia (1532). Nesta obra dramática, um judeu canta o romance. Vejamos a cena completa:
31 Pelo que apresento ao longo deste trabalho, poderá parecer que a intervenção
ou criação vicentina não atingiu a balada hispânica. Nada de mais errado: Gil Vicente
foi também autor de romances. Pouquíssimos são os romances tradicionais com autor
conhecido. O processo de tradicionalização, no romanceiro, cumpriu-se de tal forma
que apagou os autores da canção narrativa peninsular medieval e renascentista. Uma
das raras exceções a este fenómeno é Gil Vicente. Dona Carolina apresentou a lista dos
que, segundo ela, lhe pertencem, não distinguindo, contudo, os de «nova invenção»
daqueles que não passam de contrafações. No entanto, entre os que derivam totalmente
da pena vicentina encontra-se o romance de «Flérida e D. Duardos» cuja transmissão
não se limitou ao cárcere das impressões desta obra teatral: a sua fortuna chegou à
própria tradição oral moderna. O romance com que se encerra a Comedia de D. Duardos
(adoto a convincente designação dada por I. S. Révah) — obra que deriva do segundo
livro da saga dos Palmeirins, o Primaleón — revela a enorme mestria de Gil Vicente.
Se dúvidas houvesse quanto à capacidade de este autor imitar o estilo do romanceiro
velho, com este exemplo, todas essas dúvidas ruiriam. Por um lado, neste romance
poder-se-á observar a tudo quanto se disse sobre as funções deste género na obra
vicentina. Aqui, faz-se a grande síntese da obra dramática ao mesmo tempo que se
ratifica o universo da literatura de cavalaria: a sublimação do valor do cavaleiro bem
como a conquista do amor ideal. Mas, por outro lado, o seu estilo «tradicionalizante»
fez que uma das mais seletas coletâneas romancísticas o acolhesse no seu seio. Refirome ao Cancionero de romances de Martín Nucio, tanto na edição sem data como na de
1550. A sua presença na memória coletiva portuguesa, asturiana e sefardita é também
uma mostra de que este texto superou a mais exigente de todas as provas: o seu
acolhimento pela tradição. Também Almeida Garrett, em 1851, no seu Romanceiro,
incorpora esta versão vicentina.
32 Já muitas dúvidas me suscita o texto lírico cantado pela mãe judia: o seu caráter
artificioso, recorrendo ao encadenado usado por Juan del Encina, fazem-me pensar tratarse de um poema de cariz tradicionalizante de autoria vicentina (ainda que possa admitir
uma inequívoca base tradicional).Tal como escreveu Asensio (op. cit., p. 147) «Gil Vicente,
lo mismo que sus contemporâneos españoles, iniciaba sus canciones con una cabeza de
la que sólo repetía en el estribillo la parte final.».
107
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
PAI
Assentai-vos a fiar
270
Saulinho e eu a coser
Lediça guise o jantar
como acabar de varrer
e a loiça de lavar.
Cantam pai e filho cosendo:
Ai Valença guay valença
de fogo sejas queimada
primeiro foste de moiros
que de cristianos tomada.
Alfaleme na cabeça
en la mano una azagaya
280
guai Valença guay Valença
cómo estás bien asentada
antes que sejam três dias
de moiros serás cercada.
PAI
M ÃE
E assi o foi.
Por vida de dona Hecer
dom Judah quereis que vos diga
coidais que o sabeis todo
pera cantar e coser
haveis de dizer cantiga
que vos tire o pé do lodo,
a cantiga que eu queria
ora olhay como a digo:
C ANTA:
Donde vindes filha
branca e colorida?
De lá venho madre
de ribas de hum rio
108
290
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
achei meus amores
em um rosal florido.
Florido enha filha
300
branca e colorida.
De lá venho madre
de ribas de um alto
achei meus amores
num rosal granado.
Granado enha filha
branca e colorida.
PAI
Se a cantiga nam falar
em guerra de coitiladas
e d’ espadas desnuadas
310
lançadas e encontradas
e coisas de peleijar
nam nas quero ver cantar
nem as posso oivir cantadas.33
Foi já muito estudada a presença do romance cidiano neste auto vicentino,
podendo-se resumir do seguinte modo algumas das observações já formuladas:
a) por um lado, a presença do romance, com a sua transcrição numa linguagem
«mixta»34, pode ser uma prova significativa da tradicionalização, em Portugal,
do romance do «Cid y el moro Búcar»35; b) por outro lado, a utilização em
simultâneo, mediante o recurso a personagens diversas, de um romance épico
33 Edito também por As Obras de Gil Vicente, II, pp. 389-390.
34 «Como se pode observar, neste caso é o próprio judeu a entoar um romance, sendo
de notável importância a aparição do tema cidiano por, além de provar a sua tradicionalidade,
surgir já com versos vertidos para o português», in Pere Ferré, «O Romanceiro entre os cristãosnovos portugueses», Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2.ª série, I, 1987, p. 155.
35 Escreve Catalán (Por campos, p. 150): «G. di Stefano, Sincronia, pp. 91-100, recomienda,
con razón, cautela ante los textos vicentinos como testimonios del folklore contemporáneo,
pues Gil Vicente supo utilizar al estilo ‘tradicional’ en su creación poética individual. Pero di
Stefano va demasiado lejos cuando deduce que Gil Vicente creó este texto romancístico a partir
de una versión prácticamente igual a la que a mediados de siglo publicó el Cancionero s.a.».
109
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
e de uma cantiga cria um muito significativo contraste cénico. Enquanto o pai,
«tipo perfeito dos medrosos inconscientes que se deleitam com fantasias heroicas, bravateia de valente e de altercador»36, a mãe canta apenas temas líricos,
obviamente, dedicados ao amor. Consequentemente, o que não seria mais do
que um simples retrato de uma típica cena familiar, em que se contrastavam
características varonis com tendências mais especificamente femininas (a ambientação), converte-se num saboroso engano. O pai era um judeu — não
esqueçamos que a cobardia era um dos traços caracterizadores desta raça na
ideologia da época — e assim, os seus gostos romanceiris, claramente relacionados com temas dedicados a batalhas, deverá ser lido como uma forma
de hiperbolizar o seu caráter fanfarrão, bem como, cantando como qualquer
cristão-velho, nele se tentava confundir (a caracterização). Por isso, aparecerão, a seguir, os seguintes versos, pronunciados pela sua mulher:
M ÃE
Dom Judah assi tenhais bem
315
que se vir a guai espada
tirada na mão d’ alguém
desnuada pera dar
guaias de Hecer Beacar
e da saúde que tem
porque logo som finada
com a afronta que me vem.
(II, pp. 390-391.)
Creio, não obstante, que devemos ir mais longe. Ao selecionar Gil Vicente
este romance também o fez porque a balada hispânica apresenta profundas
semelhanças com a situação dramática representada que Asensio designou
como a duplicação em plano épico (em forma direta ou simbólica) da ação.
O romance Helo, helo não assenta na clássica estrutura do enfrentamento
entre dois heróis. Como é sabido, na literatura, a fim de reforçar a coragem
de uma personagem, far-se-á do seu adversário um rival terrível e tão destro
36 Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Romances Velhos em Portugal, Coimbra, Imprensa
da Universidade, 1934, p. 52.
110
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
no uso das armas como o próprio herói. Deste modo se louvam os vencedores que conseguem derrotar os mais temíveis inimigos. Sem embargo, o
nosso Búcar não pertence a esse grupo de tipos literários. Mais, as suas
ameaçadoras palavras iniciais
aquel perro de aquel Cid
prenderelo por la barua
su muger doña Ximena
sera de mi captiuada
su hija Vrraca Hernando
sera mi enamorada,
despues de yo harto della
la entregare a mi compaña.37
não têm paralelo com o seu cobarde comportamento ao tratar de fugir no
momento em que ouve «del cauallo Bauieca [...] la patada». Talvez por essa
razão, a meticulosa descrição do mouro, na abertura do romance, muito
notada por Di Stefano, seja muito mais do que uma simples contaminação
com o espírito da sua época 38.
Em síntese, entre o texto vicentino e a versão romancística observa-se
um efeito de espelho. O mouro fanfarrão e o judeu belicoso confundem-se.
Por esta razão, Gil Vicente escolheu o romance de «Cid e Búcar». A parodização atinge a sua mais elevada expressão.
Observemos outro caso. Na Comedia de Rubena, depois da apresentação
do «argumento» por um licenciado que informa o público de que Rubena
ficou grávida de um jovem clérigo, entra ela em cena, queixando-se da sua
37 Cancionero de romances (Anvers, 1550), edición, estudio, bibliografía e índices por
Antonio Rodríguez-Moñino, Madrid, Editorial Castalia, 1967, p. 243.
38 Di Stefano, en Sincronia e diacronia nel Romancero, Pisa, Università di Pisa, 1967,
pp. 25-26, assinalou o caráter fronteiriço deste tema. Na antologia, publicada em 1993, afirma:
«Dado el tema, la versión romancística del personaje está contagiada por la poética ‘fronteriza’,
con sus motivos y recursos formales, desde el atuendo del moro hasta su inclinación por la
galantería, rasgos típicos de los guerreros musulmanes en el romancero fronterizo tardío y
semi-culto. Este modelo impulsa el antiguo episodio épico hacia giros originales, como el
papel que le toca a la hija del Cid y la consiguiente debilitación de la estatura épica del
héroe, que culmina en su frustración final al escapársele el moro.» (Romancero, p. 372.)
111
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
triste ventura. Benita, a sua criada, observando que a ama mantém um
longo monólogo, pergunta-lhe:
Señora, con quién habláis?
112
Vos veis alguna visión
no sé de que mal os quexáis.
Rubena, que não deseja que o seu estado seja conhecido, responde:
Del mal de mi corazón.
115
(I, p. 370.)
No entanto, a arguta Benita apercebe-se da profunda transformação do
corpo de Rubena e, a partir de aqui, desenvolve-se um divertido diálogo entre
a ama e a criada, tentando a primeira disfarçar o seu estado enquanto a segunda revela, com perspicazes frases, ser conhecedora da verdadeira situação
de Rubena. Precisamente, entre estes diálogos, a serva conta-lhe uma facécia,
interrompida pela sua ama, começando, então, a cantar um romance do qual
Gil Vicente só transcreve dois versos:
Tiempo era caballero
187
que se m’ acorta el vestir.
(I, p. 372.)
Já muitas vezes foi discutida a hipótese de que a presença de textos tradicionais fragmentados (especialmente romances) no teatro era devida a questões
tipográficas, nomeadamente à poupança de espaço, sendo, no entanto, os
mesmos integralmente cantados. Neste caso, contudo, por duas razões fundamentais posso, categoricamente, afirmar que não foi assim. Em primeiro lugar,
por questões rimáticas, em segundo, pelo que Acutis designou como prenotorietà39. Para o público que ouvia um romance cantado em cena, neste século,
39 Cesare Acutis, «Romancero ambíguo (prenmotorietà e framentismo nei romances dei
secc. XV e XVI )», Studi Ispanici, 28, 1, 1974, pp. 43-80.
112
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
era suficiente escutar alguns versos (bastava o seu incipit) para o reconhecer
e, consequentemente, decifrá-lo, percebendo logo a razão da sua presença no
meio de uma qualquer peça teatral. Este é precisamente um desses casos.
O romance Tiempo es el caballero, conhecidíssimo já na primeira metade
do século
XVI,
descreve a vergonhosa gravidez de uma donzela da corte (que
no puedo estar en pie / ni al emperador servir; / vergüença he de mis donzellas, / las que me dan el bestir) cuja situação suscita irónicas graças às suas
criadas (míranse unas a otras, / no hazen sino reír). O público vicentino também se riria com a agudeza desta interpolação romancística40.
Mais uma vez, a presença de um romance no teatro deste período não é
fruto do acaso, nem mesmo se tratou de um simples jogo dramático-poético,
destinado a possibilitar a introdução de peças cantáveis, como simples divertimento cénico. Pelo contrário, de novo, transcreve-se, mediante a exemplaridade
literária, um fragmento de vida real. E assim, ao incorporar estas citações romancísticas no texto dramático, produz-se um novo efeito: a herdada ficcionalidade
cavalheiresca do romance converte-se num episódio de fino recorte realista.
O paralelismo entre os versos vicentinos e os interpolados versos do romanceiro é evidente, tendo sido elaborado com o mesmo efeito paródico: a filha do
abade e o jovem clérigo têm o seu contraponto na dama do paço e no falso
lavrador que, afinal, é filho do rei de França. Eis aqui mais um exemplo de dois
níveis sociais opostos: o teatro com os seus plebeus e o romance adornado por
figuras de alta alcúrnia. A ironia feita a partir de dois mundos, espelho de um
tempo no qual se fecha a Idade Media e se abre a Idade Moderna41.
A
PRESENÇA DE PROVÉRBIOS NA OBRA VICENTINA
Apresentei, anteriormente, em nota, um caso em que Gil Vicente recorreu
a um romance em que uns quantos versos seus se encontravam proverbia40 Cf. a saborosíssima nota dedicada por Di Sefano (Romancero, p. 176) a este romance
«antifeminista»: «Las risas de las doncellas sin duda eran contagiosas para el público. Hubo
en particular una pandilla de amigos del versificador valenciano Francisco de Lora que le
pidió — nos lo dice él mismo — una glosa del R(omance).»
41 Cf. Manuel Calderón, «Una aproximación a las comedias de Gil Vicente», Caligrama,
4, 1991, pp. 185-212, especialmente, pp. 201-202.
113
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
lizados. Encontraremos, então, neste autor a presença de verdadeiros
provérbios?42 Da bibliografia existente sobre este assunto não posso deixar
de destacar o artigo de Armando López Castro
43,
que aqui aproveitarei para
compor estas breves linhas dedicadas aos provérbios. Defende López Castro
que os provérbios desempenham, no teatro vicentino, as seguintes funções:
1) Ocupan en la obra posiciones claves, bien antecipando su mensaje [...],
o bien sintetizándolo [...].
2) Dado que Gil Vicente es un poeta dramático, más que filósofo, pensador o moralista, su arte consiste en presentar a los personajes dentro
de una situación determinada. De ahí que los refranes, en la representación teatral, sirvan para potenciar la situación dramática gracias a la
caracterización sicológica. [...]
3) Puesto que en la época medieval música y poesía se condicionan
mutuamente y es sobre todo como poeta que Gil Vicente se nos
muestra, no es difícil encontrar en su teatro casos de refrán con música, por medio de la cual el refrán logra una mayor supervivencia.44
De 1) omitirei, por agora, a primeira função (estudá-la-emos um pouco
mais abaixo), cingindo-me apenas à segunda delas, associando-a a 3). Na
Tragicomedia de Dom Duardos, com Flérida já rendida às pretensões amorosas deste nobre, dirige-se esta a Artada perguntando
Qué será de mí Artada
1828
pues amar y resistir
es mi pasión?
Ao que responde Artada
Señora estoy espantada
1831
42 Cf. o artigo de Maria Josefa Postigo Aldeamil, «Contribución al estudio de los refranes
en Gil Vicente», Paremia, 6, 1996, pp. 499-504, onde nos faz uma breve síntese das investigações
dedicadas à presença de provérbios em Gil Vicente.
43 «Gil Vicente y los refranes», Paremia, 5, 1996, pp. 31-42.
44 Ibidem, pp. 34-35.
114
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
y cantando quiero decir
la conclusión:
Al amor y a la fortuna
no hay defensión ninguna.
(II, p. 650.)
Estes dois versos da cantiga entoada por Artada são o estribilho de uma
canção de Beltrán de la Cueva que diz
Al amor y a la fortuna
No hay defensa ninguna
Pensauamos guarecer
Para nunca entristecer
Amor nos fiso vencer
A fauor de solo vna
Por sua vez, Correas, no seu já citado Vocabulario de refranes, inclui o
seguinte provérbio: Amor y Fortuna no tiene defensa alguna. Eis pois um caso
em que a música e a frase proverbial se juntam de modo a reforçar, de forma
sintética, tanto o pensamento de Artada como a situação em que se encontrava Flérida, completamente impotente para resistir ao amor de D. Duardos.
No Pranto de Maria Parda temos um autêntico repositório de provérbios
peninsulares. Aqui, o provérbio desempenha um papel decisivo: Maria Parda
pede fiado e cada personagem justifica a sua negativa recorrendo a provérbios.
Por esta via, através da codificação semântica do adagiário tradicional, constrói
o dramaturgo o seu Pranto ficando o discurso artístico totalmente subordinado
ao discurso proverbial, sendo a mensagem apreendida pelo conhecimento intrínseco que o auditório tem desse património comum. Mais uma vez, Gil Vicente
utiliza a cultura tradicional como importante utensílio da sua linguagem dramática potenciada no seu sentido por mensagens que, sendo tão particulares
como as ações dramáticas que se representam, partilham, ao mesmo tempo,
dos significados gerais que os provérbios encerram nas suas fórmulas. Assim,
115
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
a Biscainha alega que «Dizem lá que não é tempo / de pousar o cu ao vento»
e «agora tem vez a Guarda / e a raia no avento» que, conforme Carolina Michaëlis
anotou, cruza dois provérbios: «Venho de Tomar e vou para a Guarda» e «Tudo
vem a seu tempo e os nabos — ou a raia — em advento»45 João Cavaleiro argumenta «que una cosa piensa el bayo / y otra quien lo ensilla» bem como que
«quien su yegua mal pea / aunque nunca más la vea / él se la quiso perder».
Por seu turno, Branca Leda responde: «dizem que em tempo de figos / não ha
hi nenhuns amigos» e ainda «bem passa de guloso / o que come o que não
tem». João Lumiar responderá com o «que nos ninhos dera a um ano / não há
pássaros de ogano» bem como «que eu não me hei de fiar / de mula com matadura». Em Martim Alho ser-nos-á dito que «quem quer fogo / busque a lenha»
e «quem quiser comer comigo / traga em que se assentar». Falula inclui na sua
argumentação os seguintes provérbios: «Diz Nabucodonosor, / no Sideraque e
Miseraque / aquele que dá grão traque / atravesso-o no salvanor» e «quem
muito pede, / mana minha, / muito fede». Através destes provérbios, Gil Vicente
edificou as razões para as negativas aos pedidos sucessivos de Maria Parda.
Agora, com a intervenção de provérbios, constatou-se, mais uma vez, o importantíssimo papel que tinha a cultura tradicional na construção da obra vicentina.
E NTRE
O PROVÉRBIO E O CONTO 46
Recupero agora as observações que há pouco deixei em suspenso: o
refrão que ocupa um lugar-chave e antecipa a própria «fábula» da peça
45 Notas Vicentinas, IV, 1923, p. 291
46 Entre outros exemplos da presença de versos vicentinos que remetem para relações com
o conto tradicional, veja-se, por exemplo, o Auto de Mofina Mendes. «Um pote de azeite é paga
de maus serviços e modo de inverter a sorte mofina de Mofina. A fala do amo anuncia uma ida
à feira e a possível forma de prosperidade de Mofina. Tem sido assinalada a relação intertextual
que este passo estabelece com textos anteriores e posteriores ao auto: a fábula indiana do livro
V do Panchatantra, a versão castelhana do livro de Kalilah e Dimnah de Abdallah ben Almocaffa,
o Directorium humanae de João de Cápua, o Conde Lucanor de D. João Manuel, por certo
conhecido de Vicente visto existir na biblioteca real desde D. João I, Las Aceitunas de Lope de
Rueda, um conto tradicional alentejano, La laitière et le pot au lait de La Fontaine e versões
portuguesas desta fábula.» Maria João Brilhante, Mofina, Lisboa, Quimera, 1990, p. 23. Este conto
corresponde ao 1430 «The Man and His Wife Build Air Castles», in Isabel Cardigos, Catalogue
of Portuguese Folktales, Helsinkia, Academia Scientiarum Fennica, 2006.
116
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
teatral. Manuel Viegas Guerreiro publicou um estudo, em 1981, dedicado à
Farsa de Inês Pereira onde, a partir de um conjunto de versões de um conto 47, estabeleceu o paralelo entre o tema tradicional e a obra vicentina.
Aliás, no argumento, publicado numa folha volante quinhentista, ainda que
sem data impressa, diz-se: «O seu / argumento he, um exemplo comum que
dizem: mais / quero asno que me leue, que cauallo que me derrube.» 48
De facto, este relato, recolhido tanto em Espanha como em Portugal,
apresenta claríssimas analogias com a obra vicentina de tal modo que a sua
conclusão encerra em si o exemplo estampado na didascália.
O conto em si, independentemente das variações particulares e próprias
de qualquer obra tradicional, narra a história de uma mulher casada que
tinha amores com um clérigo ou ermitão. A fim de tentar descansar o marido do que, dizia ela, seria uma mentira, vai com ele visitar o amante.
O marido leva-a às costas durante o caminho. De regresso a casa, cansada,
continua a fazer de seu marido cavalgadura. Nalgumas versões, para além
de transportar a mulher, carrega ainda duas lousas ou outros objetos. Pelo
exposto, como escreveu Viegas Guerreiro
Gil Vicente trouxe o conto para a sua comédia, mudando o que devia ser
mudado de acordo com o seu plano. A uma moça fantasiosa com pretensões
a cortesã, que queria marido «avisado» e bem falante, não ficavam bem
amores ilícitos com um guloso abade de aldeia, por isso lhe fingiu um antigo
apaixonado, galante e aprimorado na arte de amar, como fidalgo ou escudeiro, que era ou não era. [...] Ante os enganos e desprezo de Inês, a quem
fielmente servia, fez-se ermitão para sofrer em silêncio a sua coita de amor.
[...] É um quadro perfeito de amor cortes, com os desenvolvimentos que
sofreu o código amoroso cavalheiresco. [...] Mas não ficara o ermitão no
sublimado culto de Cupido, [...] Inês [...] já tem o lavrador abastado que lhe
47 Cf. 1242A* «Carring Part of the Load (Relief for the Donkey)», in Isabel Cardigos, op. cit.
48 Cito aqui, excecionalmente, por I. S. Révah, «Édition critique de l’Auto de Inês Pereira»,
Bulletin d’Histoire du Thêatre Portugais, II, 2, 1952, p. 208. Parece-me, tal como provou
Révah, que entre muitos outros defeitos a Copilaçam apresenta didascálias extremamente
fantasiosas. Este é, sem dúvida, mais um caso, pelo que prefiro considerar o que se encontra
impresso no folheto que, aliás, já contém os elementos necessários para o estabelecimento
de relações entre o provérbio e a obra vicentina.
117
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
dará vida folgada, asno que a leve, vai ficar agora com o «homem avisado»
e bem falante que a console.49
Recordemos agora os versos vicentinos que claramente têm por fonte o
conto tradicional:
I NÊS P EREIRA
Marido, aquele ermitão
1096
é um anjinho de Deos.
P ERO M ARQUES
Corregê vós esses véus
E ponde-vos em feição.
I NÊS
Sabeis vós o que eu queria?
P ERO
Que quereis minha mulher?
I NÊS
Que houvésseis por prazer
1100
De irmos lá em romaria.
P ERO
I NÊS
Seja logo sem deter.
Este caminho é comprido;
Contai ua estória marido.
P ERO
Bofá que me praz molher.
I NÊS
Passemos primeiro o rio.
Descalçai-vos.
P ERO
I NÊS
E pois como?
E levar-me-eis ao ombro
1110
não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
Marido assi me levade.
P ERO
Ides à vossa vontade?
49 «Gil Vicente e os motivos populares: Um conto na ‘Farsa de Inês Pereira’», Revista
Lusitana, 2, 1981, pp. 48-49.
118
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
I NÊS
P ERO
I NÊS
Como estar no paraíso.
Muito folgo eu com isso.
Esperade ora esperade
olhai que lousas aquelas
pera poer as talhas nelas.
P ERO
I NÊS
Quereis que as leve?
Si.
Ua aqui e outra aqui.
1120
Oh como folgo com elas.
Cantemos marido quereis?
P ERO
I NÊS
Eu não saberei entoar.
Pois eu hei só de cantar
e vós me respondereis
cada vez que eu acabar:
pois assi se fazem as cousas.
Canta Inês Pereira:
Marido cuco me levades
e mais duas lousas.
P ERO
I NÊS
Pois assi se fazem as cousas.
Bem sabedes vós marido
quanto vos amo
sempre fostes percebido
pera gamo.
Carregado ides, noss’amo.
com duas lousas.
P ERO
I NÊS
Pois assi se fazem as cousas.
Bem sabedes vós marido
quanto vos quero
119
1130
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
sempre fostes percebido
1140
pera cervo.
Agora vos tomou o demo
com duas lousas.
P ERO
Pois assi se fazem as cousas.
(II, pp. 593-594.)
Depois do convincente estudo de Viegas Guerreiro resta, contudo, uma
questão: conto ou provérbio? De facto, Gil Vicente utiliza um provérbio
como ponto de partida da sua peça. Más quiero asno que me lleve que
caballo que me derrue que se encontra documentado no Vocabulario de
refranes e a própria designação dada por Gil Vicente — «exemplo» — é
expressão por ele utilizada, correntemente, para os provérbios 50 (mas aplicável também aos contos durante a Idade Média). No caso da relação
entre os provérbios e a lírica, como é bem sabido, muitos deles nasceram
à luz de um conjunto de versos de canções. Em Gonzalo Correas podemos
ver como é frequente encontrar-se expressões como «refrán que salió de
cantar» ou «fue cantar»; também Margit Frenk lembrou as imprecisas fronteiras entre provérbios e estribillos 51 . Claro que o próprio romanceiro
também deu origem a «elementos fraseológicos del lenguaje» 52. Aqui, neste caso, inclino-me a que o conto que deu origem aos que hoje podem
ser ouvidos na tradição oral poderia ter como sentença final o provérbio
que Gil Vicente recordou na sua didascália. Como nota ilustrativa, veja-se
como os exemplos de El conde Lucanor incluem expressões como «et por
que don Iohan touo este buen exienplo, fizo escriur en este libro et fizo
estos viessos que dizen assi: Por obras et maneras podras conosçer / a los
moços quales duelen los mas seer» 53.
50 Cf. Maria Josefa Postigo Aldeamil, «Contrubución al estudio de los refranes en Gil
Vicente», Paremia, 6, 1996, p. 501.
51 Estudios sobre lírica antigua, Madrid, Castalia, 1978, pp. 154-171.
52 Ramón Menéndez Pidal, Romancero hispánico, II, Madrid, Espasa Calpe, 1968,
pp. 184-189.
53 Don Juan Manuel, Obras Completas, II, ed. José Manuel Blecua, Madrid, Gredos, 1983,
p. 184.
120
IV. GIL VICENTE E A CULTURA POPULAR
A LGUMAS
NOTAS FINAIS
Como muito bem escreveu José Augusto Cardoso Bernardes, «a presença da cultura popular no teatro vicentino tem sido consensualmente
realçada por quase todos os estudiosos» 54. Ele próprio recordará que
a presença da cultura popular na obra de Gil Vicente foi, [...], já operativamente
comprovada, quer através do estudo da linguagem (Paul Teyssier), quer através
da inspiração temática (Hamilton de Faria e Constantine Stathatos). A inspiração popular pode inclusivamente ser detectada tanto no domínio da sátira
(recorde-se a este propósito a importância nodal que Pimpão atribui à farsa),
como no que respeita ao lirismo (v. os estudos de Almeida Pavão e de Stephen
Reckert sobre a lírica).55
Pela minha parte, optei, numa perspetiva mais tradicional, por convocar
um conjunto de géneros que ostentam o rótulo do «popular» de modo a
observar a íntima relação que estabelecem com o texto vicentino e tentar
entender o seu funcionamento quando incorporados num texto dramático
independente dos mesmos. É claro que Gil Vicente não se furtou às preferências dadas, na sua época, à cultura tradicional; nem podia. A sua relação
com um «público» obrigou-o, sem dúvida, a dar uma especial atenção ao
gosto dos seus destinatários que, pela vastíssima documentação que conhecemos da corte dos Reis Católicos, nos traduz um enorme encantamento
pela literatura tradicional ou tradicionalizante. Como sabemos, uma enorme
viragem, na corte destes monarcas, deu-se nos campos da literatura e da
música: os cancioneiros passam a estampar nas suas páginas numerosos
romances e vilhancicos.
54 José Augusto Cardoso Bernardes, Sátira e Lirismo. Modelos de Síntese no Teatro de Gil
Vicente, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1996, p. 333.
55 José Augusto Cardoso Bernardes, op. cit. No capítulo em que se inserem estas palavras,
inscritas num subcapítulo intitulado «A cultura popular e o problema do ‘Carnaval’», Cardoso
Bernardes dedicar-se-á «à luz de novas coordenadas» — isto é, das «teses sobre a cultura
popular defendidas por Mikhail Bakhtin» — a verificar a sua aplicabilidade ao estudo de Gil
Vicente.
121
I PARTE – TEXTOS E CONTEXTOS
Contudo, curiosamente, o primeiro a plasmar no teatro este novo gosto
foi Gil Vicente. Com ele, o teatro, para além de muitas outras novidades
técnicas e estéticas, introduz uma novidade estrutural: normaliza-se a sincrética atitude de incorporar ao novo discurso artístico textos oriundos de
outras fontes e registos. A dialética entre o texto herdado e o texto novo
dá à obra de Gil Vicente um cunho verdadeiramente inovador: ninguém o
fizera antes. Para isso, o dramaturgo português socorreu-se de versões de
géneros tradicionais que circulavam pela voz de um coletivo epocal (prefiro esta designação à de povo, demasiado redutora) ou, essencialmente,
em folhetos e cancioneiros (manuscritos ou impressos). Com eles, operou
de duas formas: ou os incorporou, sem desvirtuar a pureza das suas fontes,
ou, aproveitando-se de excertos ínfimos, os recriou com a mestria de quem
se sente também elo da cadeia de transmissão da tradição. Asensio deu
algumas pistas para a difícil decifração da autoria; Margit Frenk apontou
outras para a determinação do texto tradicional «autêntico». O primeiro, no
entanto, com excessivas dúvidas sobre a tradicionalidade dos textos vicentinos, a segunda, com demasiado otimismo na certificação do que é
herança e do que é criação. Ambos, contudo, rendidos ao modo de soldar
materiais diversos, oferecendo, graças à redundância artística, uma nova
dimensão às suas obras.
Assim, o romanceiro e a poesia lírica tradicionais, bem como esses
fragmentos poéticos que são os sentenciosos provérbios, se por vezes
deram o mote, outras, encontraram em Gil Vicente um novo criador e,
com ele, novos textos passaram a engrossar o caudaloso rio da tradição.
Mas também através do conto Gil Vicente encontrou partituras para a
«fábula» de algumas das suas obras ou, pelo menos, motivos que o ajudaram a preencher e enriquecer o sentido de algumas figuras ou de
algumas ações.
A literatura popular teve, como se viu, um relevante papel na obra
vicentina, e o seu pioneirismo já foi sobejamente destacado. Note-se como,
curiosamente, alguns séculos depois, alguém que quis restaurar o teatro
em Portugal também recorreu à cultura tradicional (tanto no drama como
na poesia) e ainda que sob a capa de outras estratégias retóricas (os tempos já são outros) veio a ter o mesmo papel pioneiro.
122