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águas negras estudos afro-luso-amazônicos no Oitocentos Aldrin Moura de Figueiredo Maria de Nazaré Sarges Daniel Souza Barroso organizadores Universidade Federal do Pará Belém, 2021 Copyriht © 2021 autores dados internacionais de catalogação na publicação (cip) de acordo com isbd biblioteca central da ufpa – belém (pa) a282a Águas Negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos / Aldrin Moura de Figueiredo, Maria de Nazaré Sarges, Daniel Souza Barroso (Organizadores); Bárbara da Fonseca Palha… et al. Belém: ufpa, Cátedra João Lúcio de Azevedo, 2021. 272 p. : il.; 21 cm. isbn 978-65-86640-43-4 1. Negros – Belém (pa) - História. 2. Negros – Belém (pa) – Séc. XiX. 3. Escravidão – Belém (pa). 4. Arte – Belém (pa) – Séc. XiX. 5. Belém (pa) – Condições sociais. 6. Portugal – Relações exteriores – Brasil. i. Figueiredo, Aldrin Moura de, org. ii. Sarges, Maria de Nazaré, org. iii. Barroso, Daniel Souza, org. iv. Palha, Bárbara da Fonseca, [et al.]. cdd: 22. ed. 326.098115 Elaborado por Elisangela Silva da Costa – crb-2/983 Depósito legal realizado na Biblioteca Nacional, em conformidade com a Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004. cátedra João lúcio de azevedo, camões i. e. Rua Augusto Corrêa, 01 Cidade Universitária Professor José da Silveira Netto, pavilhão e – ufpa internacionalização, Setor Básico, Guamá cep 66075-110, Belém-Pará-Brasil Tel. Pphist: 55 91 3201 8195 cjla@ufpa.br Impresso no Brasil 9. o pincel de ébano: Crispim do Amaral e uma Cenografia Afro-amazônica no Apogeu da Ópera em Belém do Pará (Século xix) Silvio Ferreira Rodrigues1 Nada mais característico do gosto das elites paraenses do final do século XiX do que a ópera. Ópera, do latim opus, quer dizer obra, que acabou por nomear o gênero artístico teatral que consiste num drama encenado acompanhado de música e canto, via de regra com a presença de diálogo falado. Em Belém, em 1878, foi inaugurado o templo local da ópera – o Theatro da Paz. Quatro anos depois, subiu pela primeira vez a seu palco, o maestro Carlos Gomes. Naquele momento, já havia se consolidado a imagem de “um Carlos Gomes feito gênio nacional, intérprete dos sentimentos, das paixões e da alma dos brasileiros”2. As homenagens que recebeu em 21 de agosto de 1882, no Seminário do Carmo, onde foi recepcionado pelo bispo Dom Antônio de Macedo Costa, são as mais eloquentes demonstrações desse apreço. Além de apresentações musicais, poemas e discursos ocorridos num salão que trazia um dístico com a frese “Glória ao gênio”, o evento, segundo a imprensa, encerrou-se com “um quadro vivo representando o cantor do Guarani: um 1. 2. Doutor em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Escola de Aplicação da UFPA (EAUFPA). COELHO, Geraldo Mártires. No Coração do Povo: o monumento à República em Belém (18911897). Belém: Paka-Tatu, 2003. p. 23. 193 anjo ornava-lhe a fronte com uma lindíssima coroa de louro”. Pouco antes do encerramento, Crispim do Amaral, tido então como hábil “músico amador”, ao lado de um pianista, havia lançado mão de sua costumeira flauta para executar a peça musical Fantasia sobre o Guarani, duo em homenagem ao festejado músico3. O “humilde artista”, por assim dizer, reforçava o pedestal cultural onde figurava magistralmente o “grande maestro”. Desse modo, como ainda ocorreria várias vezes no Pará, Carlos Gomes era enquadrado por seus aduladores na figura de herói, para não dizer santo, que a pátria deveria reverenciar. A distância hierárquica que separa o maestro e o flautista, é claro, não surpreende se levarmos em conta a cena lírica da época, quando Carlos Gomes estava no ápice da fama e Crispim do Amaral, em início de carreira. Se isso, em parte, explica o espaço diferenciado que ocuparam no evento do Seminário do Carmo, decerto não é o suficiente para justificar o lugar que posteriormente coube a cada um deles na história do teatro na Amazônia. Carlos Gomes, como bem sabemos, antes de falecer em Belém, em 1896, passaria pouquíssimas vezes pela região e, ainda assim, gozaria de imenso prestígio no panteão da posteridade. Seu busto em mármore de Carrara repousa solenemente no salão nobre do Theatro da Paz. Crispim do Amaral, por sua vez, apesar da amplitude de sua obra no cenário artístico amazônico, seria relegado à poeira do tempo. O silenciamento sobre Crispim do Amaral no ambiente teatral junta-se ao silenciamento de muitos outros artistas negros na história do teatro brasileiro. Tomemos, como exemplo, a figura de Arthur Rodrigues da Rocha, dramaturgo negro gaúcho que, segundo Renata Geraldes, apesar da fama de suas peças em circulação no século XiX “e da mobilização suscitada pelos debates sobre a condição do negro na sociedade pós-abolicionista, a projeção nacional do seu nome não foi o suficiente para consagrá-lo como importante dramaturgo brasileiro”4. De semelhante modo, Silvia Souza, que estuda o teatro fluminense no século XiX5, chama a atenção para o ator e 3. 4. 5. “Carlos Gomes”. O Liberal do Pará, Belém, 22 de agosto de 1882, p. 1. GERALDES, Renata Romero. Teatro e escravidão: a poética abolicionista na dramaturgia de Arthur Rocha. 2018. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 15. Para alguns estudos mais aprofundados sobre a história social do teatro analisado por Silvia Souza, ver SOUZA, Silvia Cristina Martins de. As noites do Ginásio: Teatro e tensões Culturais na Corte (1832-1868). Campinas: Editora da UNICAMP, 2002; SOUZA, Silvia Cristina Martins 194 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos dramaturgo mestiço Francisco Correa Vasques: “Relegado à vala comum do anonimato pela historiografia do teatro brasileiro por longo tempo, Vasques tem sido reabilitado nas últimas décadas”6. Sobre a trajetória desse influente artista na história do teatro brasileiro, assim se refere: [...] Fluminense, mulato, filho natural nascido no interior de uma família de poucas posses, sem formação letrada, foi nos palcos que Vasques encontrou seu meio de sobrevivência e uma forma de inserção social. Desde o ano de 1859, quando escreveu O Sr. José Maria Assombrado pelo Mágico, sua primeira cena cômica, até o ano de sua morte, em 1892, Vasques dedicou-se simultaneamente à carreira de ator e à de dramaturgo, chegando a escrever mais de sessenta peças teatrais, a maior parte delas num gênero dramático: as cenas cômicas. Esta dupla trajetória transformou-o em um dos atores e dramaturgos brasileiros mais reconhecidos no Rio de Janeiro do século XiX, muito embora sua atuação como teatrólogo seja raramente mencionada nos trabalhos clássicos que se dedicam à história do teatro brasileiro7. No entanto, a ausência de estudos a respeito da atuação de artistas negros no teatro e na ópera não é um problema exclusivo da historiografia brasileira. Essa amnesia afeta o campo em âmbito internacional. Mas graças a algumas felizes inciativas, a questão agora passa por uma rigorosa revisão crítica. Um bom exemplo está em Black Opera: history, power, engagement, livro de Naomi Adele André, publicado em 20188. A autora mostra como, de filmes clássicos, como Carmen Jones, a obras contemporâneas, como O 6. 7. 8. de. Carpinteiros teatrais, cenas cômicas e diversidade cultural no Rio de Janeiro oitocentista: ensaios de história social da cultura. Londrina: Eduel, 2010; SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Scenas Comicas de Francisco Correa Vasques. Curitiba: Prismas, 2017. SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Três folhetins inéditos de Francisco Correa Vasques (Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 1883). Revista de História Regional 24(1): 199-212, 2019, p. 200. SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XiX. História e Perspectivas, Uberlândia (34): 225-259, jan.jun.2006, p. 229-228. Em Black Opera, Naomi André baseia-se nas experiências de artistas e do público para explorar a ressonância desse gênero musical nos ouvintes de hoje. Interagindo com criadores e intérpretes, bem como com as próprias obras, a autora revela como a ópera negra desenterra verdades suprimidas. Essas verdades provocam uma reconsideração complexa, embora desconfortável, de gênero, racismo e outras ideologias opressivas. A ópera, por sua vez, atua como uma força cultural e política que emprega um imenso poder transformador para representar ou mesmo libertar. Ver: ANDRE, Naomi. Black Opera: history, power, engagement. Urbana: University of Illinois Press, 2018. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 195 Diário de Sally Hemings e U-Carmen eKhayelitsha, artistas e compositores americanos e sul-africanos usaram a ópera para reivindicar o lugar dos negros na história. Outra contribuição aparece em Blackness in Opera, uma coletânea de ensaios organizada em 2012 por Naomi André, Karen Bryan e Eric Saylor, a qual examina as interseções entre raça e música no gênero multifacetado da ópera9. Ali diversos estudiosos colocam óperas conhecidas (Porgy and Bess, Aida, Treemonisha) ao lado de obras menos conhecidas (Koanga, de Frederick Delius; Blue Steel, de William Grant Still; e Ouanga!, de Clarence Cameron White) para revelar criticamente um novo contexto histórico, reinventando a raça e a negritude na ópera. Os ensaios tocam em questões sobre como a negritude foi representada nessas óperas, como os negros foram caracterizados, a interpretação de papéis racializados por negros e brancos, as controvérsias sobre raça no teatro e o uso de blackface, assim como as extensões da negritude na grande ópera, no teatro musical e no cinema. Dialogando com essa historiografia, abordo aqui a atuação de Crispim do Amaral como cenógrafo no ambiente teatral de Belém do Pará do final do século XiX. Recuperar sua trajetória nesse contexto cultural é, portanto, mais do que valorizar a memória de um artista esquecido. Trata-se, sobretudo, de tentar recompor um dos papéis do negro na sociedade do espetáculo da época. É claro que muitos desses ambientes artísticos não eram os locais mais receptivos a um afrodescendente no Brasil. A Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, por exemplo, guardiã de um ideário elitista, impunha inúmeras dificuldades à formação e reconhecimento de artistas negros. Marcelo Silveira aponta que, na construção dessas barreiras, entravam em jogo uma concepção de nação, defesas científicas e preconceitos cristalizados para defender estéticas e formas de ensino que perduram até hoje na instituição10. As contradições em torno da presença e representação do negro aparecem também no teatro desse tempo. Luiz Costa-Lima Neto, num sugestivo artigo, desvela “algumas teias de relações socioculturais e políticas 9. ANDRE, Naomi; BRYAN, Karen M., SAYLOR, Eric (Org.). Blackness in Opera. Urbana: University of Illinois Press, 2012. 10. SILVEIRA, Marcelo da Rocha. “A arte e o Artista Negro na Academia no Século XiX”. Revista Z Cultural, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, 2019, p.1. Na década de 1880, José Roberto Teixeira Leite fez um importante estudo sobre a vida e a obra de alguns pintores negros no Brasil no século XiX, que inclui breves biografias de artistas como Crispim do Amaral. Ver LEITE, José Roberto Teixeira. Pintores Negros dos Oitocentos. Ed. Emanuel Araújo. São Paulo: MWM, Knorr, 1988. 196 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos nas quais os teatros imperiais tomavam parte, servindo como elos que relacionavam os diversos estratos da escala social”11. Apoiando-se nos jornais da época, mostra como os espetáculos na capital imperial espelhavam a realidade social do regime escravocrata. Ora, por meio dos anúncios de espetáculos nos jornais também é possível perceber a presença de uma cenografia afro-amazônica no século XiX. Submetidos a uma análise adequada, esses fragmentos lançam luz sobre um passado pouco evidente à primeira vista. Assim, como afirma Ginzburg, se “a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la”12. Seguindo os indícios da atuação de Crispim do Amaral presentes nos anúncios de peças teatrais, perceberemos que esses espaços, tidos geralmente como “brancos”, eram marcados pela presença negra. um intelectual negro na amazônia das“raças cruzadas” e ocultadas O pernambucano Crispim do Amaral (1858-1911), pela multiplicidade de atividades que exerceu, foi um artista difícil de classificar. Desenhista, caricaturista, ilustrador, cenógrafo, decorador, pintor, professor de desenho e pintura, músico, ator, se esse artista múltiplo não se acomoda a uma única classificação profissional, quando se trata de sua cor e origem no ambiente racista do final século XiX, a coisa muda de figura. Em 1879, o próprio Crispim daria um retrato de si como “homem de cor”, e acrescentava: “Sou de estatura regular, olhos rasgados [...], tez morena, fronte espaçosa, cabelos castanhos e escuros”13. A declaração pública do artista, que circulava pelos espaços privilegiados das elites amazônicas, expunha às claras a ascendência negra, filha do cativeiro ainda não extinto naquela data. O seu talento e a cor de sua pele foram uma constante na retina daqueles que frequentavam o universo artístico e intelectual de Belém nas últimas décadas do Oitocentos. Bastava ir a um espetáculo no luxuoso Theatro da Paz para ver as mais 11. COSTA-LIMA NETO, Luiz. O Teatro das Contradições: o negro nas atividades musicais nos palcos da corte imperial durante o século XiX. Opus, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 37-71, dez. 2008. p. 39-40. 12. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 177. 13. AMARAL, Crispim, apud SALLES, Vicente. “Ainda Crispim do Amaral”. A Província do Pará, Belém, domingo, 19 de novembro, 2º. Caderno, p. 12. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 197 impressionantes cenografias de peças executadas pelo “distinto cenógrafo Crispim do Amaral”14; a um sarau, onde ele arrancava risadas da plateia com sua atuação cômica15; ou mesmo a um concerto musical, onde tomava parte com outros músicos16. figura i: Retrato de Crispim do Amaral fonte: Coleção Vicente Salles Nessa época, Crispim do Amaral se tornou um dos principais protagonistas da vida artística na Amazônia. Sua postura abolicionista e republicana e a inserção que teve nas principais questões sociais do país fazem lembrar figuras como Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos, Theophilo Dias de Castro e outros “homens livres de cor” das últimas décadas do século XiX e início do século XX. Eles não estiveram alheios aos debates que envolviam inúmeros projetos político-culturais pensados para o Brasil. Não obstante o preconceito que pesava sobre a sua origem racial, esses literatos negros construíram seu entendimento sobre o país e o futuro que almejavam. Como sugere Ana Flávia Pinto, eles “buscaram de diferentes modos conquistar e manter seus espaços no debate público sobre os rumos do país”. Confron- 14. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 13 de outubro de 1888, p. 3. 15. “Sarao dramático-musical”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 24 de dezembro de 1886, p. 3. 16. “Beneficio”. Diário de Notícias, Belém, domingo, 22 de fevereiro de 1891, p. 2. 198 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos tando as cotidianas práticas de “preconceito de cor”, ressalta a historiadora, essas destacadas personalidades da época “não apenas colaboraram para as discussões travadas em jornais diários, abolicionistas, negros, literários, como também protagonizaram a criação de mecanismos e instrumentos de resistência, confronto e diálogo”17. A presença de influentes intelectuais negros na sociedade brasileira remonta ainda à primeira metade do século XiX. Esse é o caso do tipógrafo negro Francisco Paula de Brito (1809-1861), o qual, como mostra Rodrigo Godoi, transformou uma pequena livraria no Rio de Janeiro, adquirida em 1831, numa das maiores editoras do Segundo Reinado, cabendo-lhe, em 1851, o título de impressor da Casa Imperial, concedido pelo imperador18. A propósito, a livraria de Paula de Brito, esse “mestiço inteligente”, nas palavras de Silvio Romero, era frequentada por Machado de Assis na juventude e teria contribuído para a formação do escritor de sucesso que se tornou19. O mesmo Silvio Romero, num balanço feito sobre Machado de Assis em 1897, esboça a biografia do escritor, revisa sua fortuna crítica e analisa suas matrizes intelectuais. O juízo que faz sobre o romancista passa, sobretudo, por uma alta carga de preconceito racial. Tomando traços psicológicos de Machado de Assis, frutos de uma suposta ancestralidade inferior, assim se refere Romero: “Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pôde sair, e ai dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto”. Mais à frente, completa: “Sim, Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua psicologia, nem o peculiar sainete psicológico originado daí”20. Uma crítica sutil a pensamentos racistas como esse já havia sido feita pelo próprio Machado de Assis em Memória Póstumas de Brás Cubas, romance publi- 17. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes Laços em Linhas Rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do século XiX. 2014. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014, p. 1-2. 18. GODOI, Rodrigo Camargo de. Um Editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861). 2018. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. 19. ROMERO, Silvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1897. p. 7. 20. Idem, p. 17-18. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 199 cado em 1880 e que “buscava representar a classe senhorial no período em que vivera o ápice de seu poder e prestígio social”, isto é, entre 1840 e 187121. Brás Cubas, o protagonista da história, articula a política de domínio paternalista com aspectos da onda de ideias cientificistas europeias desse tempo, em especial o darwinismo social, “como forma de explicar a reprodução das desigualdades socais”22. A ciência racial que procurava relacionar as características físicas dos povos aos seus graus de civilização e que teve em Francis Galton (18221911) – cientista inglês criador do conceito de eugenia – um dos maiores defensores, não deixou de ter ressonância na Amazônia. Consta dessa época, por exemplo, a ideia de que a região seria uma terra exclusivamente de indígenas, sem a presença negra a espreitar um lugar no cadeirão étnico em construção. Sua formulação nasce em uma geração de intelectuais obstinados em demarcar as fronteiras étnicas da mestiçagem brasileira. Na Amazônia, o mais destacado foi José Veríssimo (1857-1916), jornalista, professor, etnólogo, crítico e historiador da literatura. As interpretações de José Veríssimo sobre a presença negra na Amazônia e suas vinculações ao problema da mestiçagem no Brasil serviriam de base para as conclusões que marcariam a obra de outro intelectual dessa geração, o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Essa genealogia, como afirma Aldrin Figueiredo, deu forma à suposta inexistência da presença negra no contexto demográfico da Amazônia, implicando na permanência da região como “terra de índio”23. No entanto, as marcas culturais da influência negra podiam ser percebidas claramente na região e remetiam a povos de diferentes origens. Tal diversidade ligava-se às antigas rotas do tráfico, que trouxeram esses imigrantes forçados para a América24. Diluídos em meio a população, seus des- 21. CHALHOUB, Sidney. “Para que Servem os Narizes”. In: CHALHOUB, Sidney; MARQUES, Vera Regina Beltrão; SAMPAIO, Gabriela dos Reis; SOBRINHO, Carlos Roberto Galvão (Org.) Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. p. 19. 22. Idem, p. 21. 23. FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Negro em Terra de Índio: matrizes intelectuais das teorias racistas na Amazônia do século XiX”. In: CAMPOS, Cleise et al. (Org.). Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sirius; UERJ, 2003. p. 131-145. 24. Aqueles que chegaram à capitania do Grão-Pará pertenciam a diversas nações, reinos e etnias africanas. Algumas das regiões ou lugares de onde provinham os cativos eram: Bissau, Cacheu, 200 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos cendentes eram facilmente encontrados na capital paraense nos tempos da belle époque, o que incomodava aqueles que se alimentavam das teorias racistas europeias, segundo as quais a miscigenação degenerava os povos. Compartilhava dessa posição, por exemplo, Eduardo Léger Lobão Junior, médico maranhense radicado em Belém, leitor atento de José Veríssimo e Silvio Romero e profundo admirador de Nina Rodrigues, de quem foi aluno na Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1901, Lobão Junior deu a público suas preconceituosas reflexões a respeito da mestiçagem na Amazônia, lamentando que, em todos os tempos e lugares do “mundo culto”, procurava-se melhorar, “a perfeiçoar as raças”, coisa que não se via em Belém do Pará. Dizia ele: “Penetrai nos nossos Clubs que tereis a confirmação do nosso atraso. Lá encontrareis, logo nos seus umbrais, desde o cafuz, cafuso, carafuso, até o alvo sem brancura”. Era triste, afirmava ele, ver a nossa população constituída de “mais gente de sangue inferior do que de sangue nobre”, levando o Pará a assemelhar-se à Bahia. Mais triste ainda era ver um mestiço “casando com uma branca”25. Ainda segundo o médico, não havia dúvidas de que tínhamos “mestiços de alto valor”, porém nunca a história teria registrado um mestiço, e muito menos um negro, genial: “Nunca houve um mestiço ou um negro que fosse da estatura mental dos grandes brancos, quer nas artes, quer nas ciências”26. A confirmação de seus preconceitos estava assentada no que seriam os grandes nomes do passado: “Os Homero, Virgílio, Aristoteles, Dante, Descartes, Goethe, Spinosa, Miguel Angelo, Raphael, Kant, Bichat, Laplace, Newton [...] não eram mestiços, indios, nem negros”27. É provável que Lobão Junior tenha encontrado Crispim em algum momento, uma vez que circulavam pelos mesmos espaços em Belém. Ou, pelo menos, leu na imprensa as elogiosas críticas à performance do artista no teatro, na pintura e na música. O certo é que esse negro talentoso falava fluentemente francês e dominava os códigos da “alta cultura” quando isso Luanda, Benguela, Cabina, Angola e Moçambique. Ver: VERGOLINO-HENRY, Anaíza; FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990. p. 49-50. 25. LOBÃO JUNIOR, Eduardo Léger. A Medicina em Belém: o mesticismo na sociedade belemnense. Pará: Typ. de Tavares Cardoso, 1901, p. 83. 26. Idem, p. 84. 27. LOBÃO JUNIOR, A Medicina em Belém..., 1901, p. 85. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 201 era sinônimo de “civilização”. Articulado e de educação refinada, Crispim estava mais para dar lições à classe senhorial do que aprender algo com ela. Em 1883, por exemplo, aparece como professor do Colégio Visconde de Souza Franco28, estabelecimento cujo diretor orgulhava-se de ter “um corpo docente ilustrado”29. Três anos depois, toma acento como professor no rigoroso Ateneu Paraense30. Em 1892, já sob o regime republicano, é nomeado pelo governador Lauro Sodré para reger interinamente a cadeira de desenho de paisagens e ornatos na Escola Normal31. De certa forma, a posição de Crispim confirma a tese de que os homens livres de cor tiverem importante papel no Brasil, mesmo antes da abolição. Eles atingiram considerável mobilidade ocupacional, sendo admitidos em ocupações especializadas e, ocasionalmente, em posições proeminentes, como artistas, políticos e escritores, enquanto a escravidão ainda era dominante no país32. negros tomam a cena: crispim do amaral no teatro do pará oitocentista As trajetórias de Francisco Vasques, Arthur da Rocha e Crispim do Amaral mostram o quanto a atuação de “homens de cor” no teatro oitocentista era algo mais comum do que se imagina. Essa forte presença, no entanto, podia ser notada ainda no século anterior, como é o caso do mestiço Padre Ventura, muito popular no Rio de Janeiro, considerado o precursor da ópera no Brasil; ou do mestiço Manuel Luís, dono de uma das primeiras companhias de teatro da época, cujo elenco era de maioria mestiça. Entre os séculos Xviii e XiX, negros e mestiços se notabilizaram em papéis de atores, diretores e administradores de companhias, como a atriz Chica da Silva, os atores Vito- 28. O Colégio Visconde de Souza Franco, no qual Crispim do Amaral atuou como professor de desenho, foi uma instituição de ensino fundada em Belém ainda no século XiX. Portanto, não se trata do atual Colégio Souza Franco situado na Avenida Almirante Barroso, no bairro do Marco, e onde funcionou a antiga Escola de Agronomia. 29. “Collegio Visconde de Souza Franco”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 12 de janeiro de 1883, p. 3. 30. “Atheneu Paraense”. O Liberal do Pará, Belém, domingo, 21 de dezembro de 1886, p. 2. 31. “Repartições Publicas”. A República, Belém, quarta-feira, 27 de abril de 1892, p. 2. 32. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 60. 202 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos riano, Xisto Bahia, Caetano Lopes dos Santos, Maria Joaquina, José Inácio da Costa (o Capacho) e o palhaço Benjamim, só para citar alguns dos mais conhecidos33. A vida de Crispim, como mostra Salles, esteve intimamente relacionada ao mundo do teatro. Nas últimas décadas do século XiX, quando a capital paraense ostentava uma efervescência artística proporcionada pelos recursos oriundos da exportação da borracha, o empresário pernambucano Vicente Pontes de Oliveira, proprietário da companhia onde trabalhava Crispim, “era velho conhecido da plateia local, durante anos arrendatário do Teatro Providência, acanhado pardieiro”. Foi nos bastidores dessa casa de espetáculos que Crispim desenvolveu sua primeira atividade, “em longa temporada que se entenderia pelos anos seguintes”34. Nesse ambiente artístico, Crispim do Amaral teve a oportunidade de dividir o palco e trocar experiência com Xisto de Paula Bahia (1841-1894), que, como vimos, era um ator negro de destaque no cenário teatral. Em dezembro de 1878, por exemplo, quando a companhia de Vicente Pontes de Oliveira apresentou, no Theatro da Paz, o drama português A Cigana de Lisboa, que promoveu a estreia, no Pará, da cantora Léonie Villiot, do Alcazar do Rio de Janeiro, Crispim e Xisto atuaram juntos na peça35. Àquela altura, Xisto já era admirado e querido pelo público, para o qual se apresentava desde a década de 1860. Natural da Bahia, viria a ser um dos maiores nomes da arte cênica brasileira no final do século, elogiado pelo afamado dramaturgo Arthur Azevedo (1855-1908)36. Ainda nessa transmissão de saberes, poderíamos mencionar outros artistas que contribuíram para a formação de Crispim, como o cenógrafo francês León Chapelin, com quem aprendeu a pintar cenografias e a falar francês; o já citado ator e empresário Vicente Pontes de Oliveira, que dominava as praças do Maranhão e do Pará e em cuja companhia Crispim viajou país afora; a atriz Manuela Lucci, esposa de Vicente e que, após a morte do 33. LIMA, Evani Tavares. “Por uma História Negra do Teatro Brasileiro”. Urdimento, Florianópolis, v. 1, n. 24, p. 92-104, julho 2015. p. 97. 34. SALLES, Vicente. “Crispim do Amaral no Grão-Pará”. A Província do Pará. Belém, Domingo, 20 de setembro de 1992, 2º. Caderno, p. 9. 35. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 7 de dezembro de 1878, p. 3. 36. SALLES, Vicente. Épocas do Teatro no Grão-Pará: ou apresentação do teatro de época. Belém: UFPA, 1994. v. 1, p. 82. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 203 marido em 1882, tornou-se empresária e continuou a contratar Crispim para pintar as cenografias das peças. Manuela, por sinal, era atriz experiente, tendo se destacado nas praças do Norte e Nordeste e no Rio de Janeiro. Na empresa do ator Germano Francisco de Oliveira, ela atuou em muitos papeis de destaques, como na figura da cortesã Marguerite Gauthier de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho37. Manuela era como aquelas novas “rainhas do palco” da segunda metade do século XiX que eram “mulheres objetos, cada vez mais erotizadas”, de acordo com Christophe Charle38. Nesse caso, assemelha-se à atriz Sarah Bernhardt, que embora tenha atuado em vários papéis de relevo, deveu “o seu primeiro triunfo às femmes fatales, como Marguerite Gauthier”39. Segundo Salles, atuando nos palcos de Recife a Belém, Manuela foi considerada a primeira figura dramática da época. Após se casar com Vicente, passou a excursionar com ele, mantendo contato com vários círculos de artistas, especialmente aqueles que atuavam no Alcazar do Rio de Janeiro40. Assim como essas conhecidas figuras do teatro brasileiro, Crispim fez parte de um considerável contingente de artistas recrutados pelas companhias do século XiX, que cruzavam o Brasil de norte a sul apresentando-se nas principais capitais das províncias do Império. O resumo biográfico de Crispim é revelador desses múltiplos contatos e da inserção social que o teatro lhe proporcionou. Nascido em Olinda, Crispim estudou cenografia com Léon Chapelin, cenógrafo de uma companhia de opereta desembarcada em Recife em 1867. Aos 18 anos, Crispim partiu para o Norte e chegou a Belém do Pará por volta de 1876, engajado na companhia de Vicente Pontes de Oliveira. Na capital paraense, trabalhou como cenógrafo e decorador em diversos teatros. Ao mesmo tempo, publicou caricaturas na imprensa impulsionada pela litografia do alemão Karl Wiegandt. Nessa época, também editou e ilustrou o jornal O Estafeta (1879) e a revista A Semana Illustrada (1887). No cenário cosmopolita de Belém e Manaus, ao lado dos irmãos Manuel do Amaral e Libânio do Amaral, conviveu com círculos de artistas italianos, 37. Idem, p. 79. 38. CHARLE, Christophe. A Gênese da Sociedade do Espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 25. 39. Ibidem. 40. SALLES, Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 79-78. 204 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos alemães, franceses e brasileiros atuantes na Amazônia no ramo da pintura, como Domenico De Angelis. Na década de 1890, realizou suas principais obras de decoração: em 1890, assinou contrato para confeccionar o pano de boca do Theatro da Paz, executado em Paris, no ateliê Carpezat, e entre 1894 e 1896, trabalhou na decoração do Teatro Amazonas. Acabadas essas obras, partiu novamente para Paris. Retornou ao Brasil em 1902, dirigindo-se para o Rio de Janeiro. Ali foi um dos fundadores e diretores da revista O Malho. Logo depois, lançou as revistas A Avenida (1903), que circulou até 1905, e O Pau (1905)41. Crispim do Amaral, portanto, soube tirar proveito dessa longa vivência no ambiente artístico amazônico. Na época em que ele e seus companheiros de profissão exibiam-se no Teatro Providência, essa casa de espetáculos, fundada em 1835, já era realmente considerada um “parteiro”, como frisou Salles. Em abriu de 1870, por exemplo, um articulista do O Liberal do Pará chamava a atenção do presidente da província para que lançasse “suas vistas sobre esse pardieiro que se chama Teatro Providência, verdadeira armadilha” que, mais dias ou menos dias, desabaria “sobre a cabeças de centenas de pessoas”. E arrematava em seguida: “Parece incrível que no centro de uma capital se consinta uma casa em plena ruína, recebendo quase sempre imenso povo destinados a espetáculos públicos”42. Já no Largo de Nazaré, nos arrabaldes da cidade, em melhores condições encontrava-se o recém-construído Teatro Chalet, cuja inauguração contaria, como anunciava Vicente Pontes de Oliveira, arrematante da casa, com a estreia de artistas do Alcazar Lírico do Rio de Janeiro43. Pouco tempo depois, o teatro recebia uma companhia francesa que prometia uma “récita extraordinária”44. Nas décadas seguintes, Belém apresentaria numerosas casas de espetáculos no Largo da Pólvora (atual Praça da República), onde foi erguido o Theatro da Paz. Nesse entorno, proliferaram cafés-concertos, hotéis e estabelecimentos requintados, como o Café Chic. Na década de 1880, ali foi erguido o Pavilhão de Recreios, num terreno baldio, onde se realizavam bailes, ouvia-se música e praticava-se jogos de azar. Ainda nas proximidades, existia uma 41. 42. 43. 44. SALLES, “Crispim do Amaral no Grão-Pará”, 1992, p. 9. “Não é política”. O Liberal do Pará, Belém, quarta-feira, 6 de abril de 1870, p. 2. “Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, terça-feira, 21 de junho de 1870, p.2. “Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, terça-feira, 19 de julho de 1870, p. 2. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 205 grande construção em madeira com fachada gradeada, denominada Teatro-Circo Cosmopolita, que abrigava um enorme carrossel ricamente decorado e palco onde se exibiam companhias de revista, vaudevilles, dramas, óperas líricas e cômicas, operetas, acrobatas e trapezistas, mímicos, ilusionistas e outras atrações45. Vale dizer que esse aumento no número de teatros e a diversificação dos espetáculos no Pará estiveram ligados ao crescimento de sua capital, ao desenvolvimento dos transportes e ao deslocamento de pessoas e mercadorias na segunda metade do século XiX. Belém, como se sabe, despontou então como principal porto de escoamento da borracha e importante rota comercial no Atlântico, especialmente depois da abertura do rio Amazonas à navegação internacional em 186746. Tais mudanças criaram condições para que os moradores da cidade dispusessem de produtos e serviços variados. Somou-se a isso a vigorosa expansão da população mediante a imigração, que trouxe artistas de diversas origens. Sem muita seleção de clientela e distinção de tarefas, eles realizavam desde elaboradas pinturas até simples produção de anúncios para tabuletas de tavernas. Atendendo à demanda do público, podiam ser encontrados em Belém gravadores, cenógrafos, decoradores, retratistas, paisagistas, fotógrafos e mesmo caricaturistas. Em meados da década de 1860, por exemplo, transferiu-se para Belém o cenógrafo Giuseppe Leone Righini (1820-1884), pintor italiano que, na década anterior, gozara de prestígio ao executar cenografias para os teatros de São Luís do Maranhão47. Assim como ele, existiam muitos outros, como o pintor francês Eduard Langlois, o qual, em setembro de 1880, tirava retrato a óleo e a crayon e encarrega-se também de qualquer obra de pintura, tabuletas, dístico e tudo que dissesse respeito à arte; podia ser encontrado no Teatro-Circo Pavilhão oferecendo seus serviços a “preços cômodos”48. Ao gosto do freguês, em 1883, semelhantes serviços eram prestados por Crispim e comer- 45. SALLES, Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 89. 46. Para se ter uma ideia, nesse tempo, mais da metade do comércio estrangeiro passou a ser feito com a Grã-Bretanha, seguida por Estados Unidos, França, Portugal e cidades hanseáticas. PENTEADO, Antonio Rocha. Belém: estudo de geografia urbana. Belém: UFPA, 1968. p. 127. 47. RODRIGUES, Silvio Ferreira. Todos os Caminhos Partem de Roma: arte italiana e romanização entre o Império e a República em Belém do Pará (1867-1892). 2015. Tese de Doutorado (História) - Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. p. 106. 48. “Atenção”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 8 de setembro de 1880, p. 3. 206 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos cializados no ateliê da loja Fotografia Sul-Americana, situada à rua Espírito Santo49, número 44. Pelo anúncio, sabemos que, assim como ocorria em seus cenários, Crispim pintava fundos de paisagens, ruínas, salas, jardins e outros. Fundos esses, como ressaltava o anúncio, comparáveis “aos melhores vindos dos Estados Unidos”50. Por fim, não seria exagero considerar Crispim do Amaral uma espécie de mediador cultural na belle époque. Ao mesmo tempo em que executava cenários para óperas, pintava estampas para mastro nas festividades de santo e organizava espetáculos no teatro de marionetes no Largo de Nazaré51. Ou melhor, participava ativamente do que se pode chamar de circularidade cultural, onde se estabelece uma relação de influências recíprocas entre a cultura da classe dominante e a da classe subalterna, num movimento de baixo para cima, bem como de cima para baixo52. O mesmo podemos dizer sobre dramaturgos, diretores, atores, músicos e empresários teatrais contemporâneos de Crispim, que cruzavam constantemente a fronteira entre o erudito e o popular. Nesse tempo, ao adentrar uma sala de espetáculos, a elite branca poderia ver o negro Xisto Bahia encenando uma peça do negro Francisco Vasques, com cenografia do negro Crispim. a sociedade encenada e a cenografia do social nos pincéis de crispim do amaral Crispim criou cenografias para uma variedade de gêneros demandados por um público que esperava encontrar, nas peças, a realização de seus desejos ou a confirmação de seus preconceitos. Enfim, produziu para o teatro amazônico em pleno surgimento da chamada “sociedade do espetáculo”, no sentido atribuído por Christophe Charle, que assim a define: Lugar que também convida ao sonho, no tempo e no espaço: este é o século do teatro histórico e do espetáculo feérico, da peça com efeitos especiais e da revista musical, em que a atualidade se converte num carnaval das vaidades e dos chistes. Uma 49. 50. 51. 52. Atual rua Dr. Assis, no bairro da Cidade Velha. “Photografia Sul-americana”. Dário de Notícias, Belém, quarta-feira, 31 de janeiro de 1883, p. 4. “As Navalhas”. O Cosmopolita, Belém, 30 de novembro de 1885, p. 3. GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.10. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 207 confrontação cada vez mais realista ou cada vez mais fantasiosa com o sórdido, o ridículo, o dramático de personagens mais ou menos parecidos com aqueles que os veem e projetam nos atores e nas atrizes suas fantasias, a raiva que o presente lhes infunde ou o desejo de esquecer viajando no tempo e no espaço sem sair da poltrona [...]53. No contexto agitado de uma Amazônia cada vez mais conectada com uma cultura global que permeava os espetáculos, os palcos dos teatros se convertiam em lugares de contestação social, de questionamento das hierarquias de gênero, classe e raça, em fórum político. “Conservatórios das convenções, locais onde eclodem transgressões que preparam a liberdade dos corpos e mentes”, como afirma Charle, “os teatros do século XiX, epicentro da sociedade do espetáculo no sentido amplo, permitem, assim, apreender todas as contradições desse período”54. Ao mesmo tempo em que se apresentava como espaço de tenções, o teatro servia também de ambiente apropriado ao culto cívico de reafirmação da ordem. O auge da ópera no Pará coincide ainda com um período de investimento na imagem do imperador como autoridade máxima da nação. Sobre a figura de Dom Pedro II, constitui-se o ícone exemplar do político liberal e intelectual amante das ciências e das artes55. Durante o seu reinado se desenvolveu, com maior clareza, uma política cultural que se propunha a dar uma nova “cara” à nação. Portanto, era preciso criar pontos de referências, por meio dos quais os habitantes desse imenso território se reconhecessem como parte de um mesmo povo. A inauguração do Theatro da Paz, em fevereiro de 1878, atendeu a esse propósito. O programa apresentado pela companhia de Vicente Pontes de Oliveira para mais de mil pessoas começou com a chegada do presidente da província, abrindo-se a cena onde se achava o retrato do imperador56. Em 24 de março, a mesma companhia anunciou, para o dia seguinte, um espetáculo para celebrar o aniversário do jubileu da Constituição do Império. O evento prometia exibir a estátua equestre de Dom Pedro I, “no ato de apresentar ao povo a carta constitucional”. A estátua, segundo 53. CHARLE, A Gênese da Sociedade do Espetáculo..., 2012, p. 20. 54. Ibidem. 55. Para um estudo biográfico do imperador D. Pedro II, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 56. NOBRE, Ulisses. “Theatro da Paz”. In: MOURA Ignacio Baptista de (Org.). Annuario de Belém em Commemoração do seu tricentenario, 1616-1916: historico, litterario e commercial. Belém: Imprensa Official, 1915. p. 52-53. 208 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos o anúncio, havia sido feita por Crispim do Amaral e era cópia da que se via na praça da Constituição, atual praça Tiradentes, no Rio de Janeiro57. Ou melhor, tomava como referência o conjunto escultórico executado pelo artista francês Louis Rochet e cuja inauguração, em 1862, marcou a história da escultura no Brasil. Como afirma Paulo Knauss, a estátua equestre de Dom Pedro I “abriu a era da escultura cívica de lógica monumental que mobilizava a sociedade em torno do culto da nação”58. Porém, para além desses eventos cívicos, os anos entre o final da 1870 e início da década de 1890 foram intensos para Crispim do Amaral como cenógrafo. Acompanhando os anúncios de espetáculos que saíam na imprensa, o vemos pintando cenários para peças de diversos gêneros teatrais, que eram sucesso na Europa e nas capitais brasileiras. Entre elas, constam as peças literárias que levavam à cena consagrados escritores do Velho Mundo, como Soulié, Alexandre Dumas (pai), Dumas Filho, Sardou, Zola e Saint-Pierre. Além de renomadas peças e da ópera italiana, Crispim aparece produzindo cenografias para os gêneros mistos da cultura média, que então conquistavam popularidade internacional (operetas, revistas, variedades, music hall)59. De fato, esses trabalhos já são vistos desde os primeiros anos de atividades de Crispim em Belém. Em outubro de 1878, a empresa de Vicente anunciou uma série de espetáculos no Theatro da Paz, com a estreia de comédias consideradas “gênero absolutamente novo” na cidade, sendo a decoração das peças realizadas por Crispim, apresentado como cenógrafo da companhia60. No início da década seguinte, Crispim pintou cenografia para as chamadas “peças de costumes portugueses”, que haviam tido grande sucesso na Corte e em Portugal, e foram reencenadas no Pará. São inúmeras as apresentações de diversas companhias que tinham, na assinatura cenográfica de Crispim, um dos principais atrativos para o público. Em 13 de outubro de 1883, a empresa de Manuela Lucci anunciou um “grande espetáculo de costumes portugueses” no Theatro da Paz, com a peça marítima Desordem 57. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, domingo, 24 de março de 1878, p. 3. 58. KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XiX. 19&20, Rio de Janeiro, v. 5, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ obras/pknauss.htm. 59. CHARLE, A Gênese da Sociedade do Espetáculo..., 2012, p. 34. 60. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, quinta-feira, 24 de outubro de 1878, p. 3. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 209 no Alto Mar. O drama, dizia o anúncio, “baseia-se em fatos verdadeiros, tais como um pavoroso incêndio que houve no Porto em 1876, e um crime cometido a bordo de um navio que seguia para o Rio de Janeiro”, crime esse “que ainda se recorda com horror os habitantes daquela cidade”. O cenário que apresentava o efeito do mar, bem como os dois navios que eram vistos no correr do drama, estava “confiado à execução do distinto cenógrafo Crispim do Amaral”61. Uma semana depois, a mesma empresa anunciava Nossa Senhora da Bonança, outra peça marítima portuguesa, cujo cenário novamente era devido ao pincel de Crispim62. Uma peça marítima portuguesa apresentou também a empresa da atriz Apolônia Pinto, em maio de 1888, no Teatro-Circo Cosmopolita. Trata-se de Um Drama no Alto Mar, peça que, segundo o anúncio, “tão brilhante sucesso há alcançado em todos os teatros de Portugal e do Brasil”. A novidade vinha logo de cara: “A empresa pede atenção do respeitável público para os cenários confeccionados pelo talentoso sr. C. do Amaral, que muito excedem em perspectiva e efeitos aos que foram pintados na Corte na sua primitiva”63. Já em maio de 1891, a grande atração na reabertura do Teatro-Circo Cosmopolita foi o novo pano de boca pintado por Crispim, coroado com a encenação do drama de costume português José do Telhado64. Peças como essa, que exibiam cenários da região Entre Douro e Minho, poderiam trazer saudosas lembranças à colônia lusitana no Pará ou provocar sentimentos ambíguos diante de personagens como José do Telhado, salteador à maneira de Robin Hood. Em suma, o teatro era capaz de acelerar mudanças nos hábitos e afetar os códigos morais. Nesse sentido, não faltaram encenações de autores que haviam escandalizado até mesmo críticos na França, como o alemão Jacques Offenbach. Sucesso na Europa, as operetas de Offenbach gozavam de popularidade no Brasil desde meados da década de 1860. O seu Orfeu nos Infernos, por exemplo, foi parodiado por Francisco Vasques no teatro Fênix Dramático, no Rio de Janeiro, em 1868, sob o título de Orfeu na Roça65. A paródia trazia para o debate público, entre 61. 62. 63. 64. 65. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 13 de outubro de 1883, p. 3. “Theatro da Paz”. Diário de Notícias, Belém, domingo, 21 de outubro de 1883, p. 4. “Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, domingo, 27 de maio de 1888, p. 4. “Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 28 de maio de 1891, p. 1. SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Um Offenbach Tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XiX”. História e Perspectivas, Uberlândia, v. 1, n. 34, p. 225-259, jan./ jun. 2006, p. 227. 210 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos outros temas, a espinhosa questão da emancipação dos escravizados66. Em Belém, em 1870, a produtiva companhia de Vicente Pontes de Oliveira encenou, no Teatro Chalet, a opereta L’Enlèvement d’Hélène, original francês de Offenbach67. Sem dúvida, abundaram encenações de autores que questionavam os valores estabelecidos. Em maio de 1878, a mesma companhia levou à cena no Theatro da Paz o drama O Casal das Giestas (La Closerie des Genêts) do romancista francês Frédéric Soulié (1800-1847), cuja cenografia Crispim dividiu com seu mestre Léon Chapelin68. Para se ter uma ideia, Soulié foi, ao lado de Honoré de Balzac, Eugène Sue e Alexandre Dumas, um dos grandes novelistas da Monarquia de Julho69. Autor fértil e popular na época, seus romances apresentam uma gama de diferentes temas e desnudam a intimidade da aristocracia e da alta burguesia, cujos defeitos morais estão representados em adultérios, incestos e assassinatos70. O povo, por sua vez, está presente na vida quotidiana, nos dias exaustivos de trabalho, no salário miserável e nas revoltas, como em Le Conseiller d’État (1835). Seu texto mais famoso, porém, é Les Mémoires du Diable, romance escrito em tom irônico, que revive o tema clássico do pacto com o demônio71. No teatro, seu maior sucesso é justamente La Closerie des Genêts, representado pela primeira vez no teatro Ambigu-Comique, em 14 de outubro de 184672. Crispim ainda pintou cenários para outros clássicos como, por exemplo, O Conde de Monte Cristo, drama baseado no romance de Alexandre Dumas (pai), levado à cena em abril de 1888, no Teatro-Circo Cosmopolita, pela empresa da atriz Apolônia Pinto. Ao lado de Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, concluído em 1844, é a obra de maior sucesso de Alexandre Dumas73. 66. SOUZA, “Um Offenbach tropical...”, 2006, p. 252. 67. “Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, 19 de julho de 1870, p. 2. 68. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, quinta-feira, 23 de maio de 1878, p. 3. 69. Monarquia de Julho é o nome com o qual a historiografia costuma designar o período histórico que decorreu na França de 1830 a 1848, entre dois dos principais processos revolucionários considerados como ciclos da revolução liberal ou revolução burguesa – as revoluções de 1830 (a revolução de julho) e as revoluções de 1848 (a primavera dos povos). 70. CHAMPION, Maurice. Frédéric Soulié, sa vie et ses ouvrages. Paris: Moquet, 1847. p. 26. 71. Idem, p. 28. 72. Idem, p. 30. 73. O romance narra a história de Edmond Dantès, marinheiro do navio Faraó, detido na costa de Marselha. Acusado injustamente de ser um espião bonarpatista, Edmond é encarcerado por anos na ilha-prisão do castelo de If, onde faz amizade com o abade Faria, que revela a ele uma o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 211 figura ii: Imagem parcial do anúncio de O Conde de Monte-Cristo no Teatro-Circo Cosmopolita fonte: Diario de Noticias, 19 de abril de 1888 São poucos os anúncios que descrevem em detalhes a cenografia das peças. No caso de O Conde de Monte Cristo, temos uma descrição parcial do cenário pintando por Crispim, que buscava surpreender o imaginário dos expectadores, atraí-los para dentro da cena. Segundo o anúncio, no primeiro quadro, aparecia um pátio de uma taverna em Marselha, com rochedos e o mar ao fundo. No segundo, apareciam dois cárceres no castelo de If, onde estavam presos Dantès e o abade Faria. Era uma “cena inteiramente nova, pintada expressamente para esta grandiosa peça pelo distinto cenógrafo Crispim do Amaral”. No terceiro quadro, apresentando “cena completamente nova e de efeito deslumbrante”, constava o exterior do castelo sobre o mar. Do lado esquerdo, via-se a muralha do castelo com um baluarte, uma rocha alta que se ligava quase ao castelo, mar em toda a cena e, ao fundo, a crista de um rochedo. Também um “importantíssimo trabalho do sr. Cris- miseteriosa fortuna. Com a morte do abade, Edmond escapa da prisão e toma posse do teseouro, transformando-se no implacável Conde de Monte Cristo. Rico e com acesso à alta sociedade, aproveita para se vingar daqueles que tramaram para que levasse uma vida de prisioneiro. DUMAS, Alexandre. O Conde de Monte Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 2v. 212 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos pim do Amaral”. No quarto quadro, aparecia uma gruta na ilha do Monte Cristo. Ao fundo, mar e horizonte: “Cena toda nova e de grande efeito pintada pelo sr. Crispim do Amaral”. No quinto, aparecia uma estalagem pobre de Gaspard Caderousse. No sexto, constava o “deslumbrante palácio do Conde de Monte-Cristo, arquitetado pelo sistema oriental”, uma grandiosa cena, “inteiramente nova”, dessa vez “devida aos pinceis dos distintos artistas italianos Croier e Barione”. No sétimo quadro, aparecia uma rica sala no palácio do Conde Morcerf. Por fim, o oitavo apresentava a sala modesta da casa de Morrel, tendo ao fundo um terraço sobre o mar. A seu tempo, via-se entrar no porto a imagem do brigue Faraó74. O expectador, estimulado pela cenografia, era transportado à época e ao local dos acontecimentos, e enredado pelo clima emocional da peça que, por vezes, incluía o anseio por liberdade. Vale dizer que a empresa de Apolônia esteve entre aquelas que, desde a década de 1870, passavam por Belém difundindo dramas abolicionistas. A circulação dos ideários humanitários enunciados nessa dramaturgia, como sugere Renata Geraldes, deu origem a um fenômeno que “conferiu novos contornos ao teatro: trata-se de uma ‘rede’ de artistas (escritores, tradutores, ensaiadores, empresários, atores, dentre outros) comprometidos com a abolição de Norte a Sul do Brasil”75. Não por acaso um dos espetáculos de maior repercussão da empresa ocorreu em 13 de maio de 1888, data da promulgação da Lei Áurea, com a representação de A Cabana do Pai Tomás, na tradução livre do ensaiador e diretor Júlio Xavier76. A peça baseia-se no romance Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher Stowe, editado em 1852. A influência desse romance extrapolou as fronteiras do Sul escravista e do Norte abolicionista dos Estados Unidos, tendo chegado ao Brasil mediado por Portugal e França77. Tematizando 74. “Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 19 de abril de 1888, p. 4. 75. GERALDES, Renata Romero. Teatro e Escravidão: a poética abolicionista na dramaturgia de Arthur Rocha. 2018. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. p. 30. 76. SALLES, “Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 20. 77. Para uma análise detalhada do processo de publicação de A Cabana do Pai Tomás no Brasil escravista, ver FERRETTI, Danilo José Zioni. A Publicação de A cabana do Pai Tomás no Brasil Escravista: o “momento europeu” da edição Rey e Belhatte (1853). Varia História, Belo Horizonte, v. 33, n. 61, p. 189-223, abril 2017. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 213 a escravidão norte-americana, o romance inspirou peças país afora, sendo encenado nas capitais das províncias do Império. Três anos antes, no mesmo clima antiescravagista, Crispim havia produzido o cenário para a peça Paulo e Virginia exibida no Theatro da Paz. A peça baseava-se no romance de mesmo nome do escritor francês Bernardin de Saint-Pierre (1737-1818), publicado no final século Xviii. Paulo e Virginia, inspirado em ideais iluministas, aborda sentimentos ambivalentes, como amor, solidão, pudor e felicidade78. figura iii: Imagem parcial do anúncio de Paulo e Virgínia no Theatro da Paz fonte: Diario do Grão-Pará, 03 de novembro de 1885. De acordo com Eduardo Santos e Orna Livin, que analisaram a adaptação do romance para o teatro no Brasil entre os anos de 1840 e 1890, a primeira adaptação de Paulo e Virginia subiu aos palcos cariocas em novembro de 1822. Em 1848, passa por uma nova adaptação feita pela Companhia 78. O romance conta a história de duas crianças que vivem na bucólica Ile de France (atual Ilhas Maurício). Na adolescência, surgem sentimentos românticos entre os dois personagens. Para evitar o relacionamento, a mãe de Virgínia envia a jovem para Paris. Vários anos depois, Virgínia regressa à Ile de France, mas o navio Saint-Géran que a traz de volta naufraga devido a uma tempestade. Após ver Virginia morrer afogada no naufrágio, Paulo não demora a sucumbir à dor e à solidão. SAINT-PIERRE, Bernardin de. Paulo e Virgínia. São Paulo: Ícones, 1986. 214 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos Dramática Portuguesa e é encenada no Teatro São Pedro de Alcântara. Já na segunda metade do século, aumentam consideravelmente as encenações, inclusive em outros gêneros, como comédias, que foram representadas principalmente nas províncias do Nordeste, Sudeste e Sul. A partir de 1882, as adaptações “ganharam nova montagem, dessa vez, atrelada ao contexto histórico pelo qual o Brasil estava passando, sobretudo, a campanha pela abolição da escravatura”79. Foi essa versão que chegou ao Pará em novembro de 1885 pela empresa do ator Soares de Medeiros. Segundo o anúncio, pela primeira vez na província teria lugar a exibição do “espetáculo de drama abolicionista, com 4 atos e 5 quadros, ornada de canções e danças extraídas da conhecida novela de B. de Saint-Pierre, intitulada Paulo e Virginia”. A respeito do quinto quadro, que tratava do naufrágio do brigue San Géran, informava que o cenário era novo e apropriado, bem como “inteiramente nova a cenografia do Brigue, que assombra a vista do público, cuja beleza de arte é devida ao engenho cenográfico do talentoso artista pintor Crispim do Amaral”80. Pela década de 1890, Crispim continuaria a fazer parte desse processo de integração da Amazônia à cultura global dos espetáculos. Esse é ocaso da ópera Don Pasquale81, exibida pela primeira vez no Theatro da Paz em 28 de março de 1891. A peça chegou ao Pará pela Companhia Lírica Italiana e foi dedicada a Lauro Sodré (governador do Estado) e a Paes de Carvalho, ambos cabeças do regime republicano no Pará. 79. SANTOS, Eduarda Berteli M. dos; LEVIN, Orna Messer. A Adaptação do Romance Paulo e Virginia, de Jacques-Henri Bernardin de Saint Pierre para o teatro entre as décadas de 1840 e 1890. Anais do xxiv Congresso de Iniciação Científica da UNICAMP, 12 a 21 de out., Campinas, 2016. p.1. 80. “Theatro da Paz”. Diario do Grão-Pará, Belém, 3 de novembro de 1885, p. 3. 81. Don Pasquale, de Gaetano Donizetti (1797-1848), com libreto de Giovanni Ruffini (18071881), é uma ópera-bufa em três atos. Foi escrita quando Donizetti foi nomeado diretor musical da corte do imperador Fernando I da Áustria. A ópera estreou em 3 de janeiro de 1843 no Théâtre Italien de Paris, com Giulia Grisi (1873-1921), como Norina, e Luigi Lablache, como Don Pasquale. No mesmo ano, foi também apresentada em Londres e Viena; nos anos seguintes, esteve nos palcos de diversas cidades da Europa e chegou a Nova York em 1846. Em 1904, Enrico Caruso (1873-1921) liderou o elenco em nova montagem em Nova York. No Brasil, a primeira montagem foi levada ao palco do Teatro Provisório do Rio de Janeiro em 12 de fevereiro de 1853. LAZZARI, Afonso. Giovanni Ruffini, Gaetano Donizetti e il “Don Pasquale”: da documenti inediti. Firenze: Rassegna Nazionale, 1915; ARAGONA, Livio; FORNONI, Federico. Don Pasquale: un romano a Parigi. Bergamo: Fondazione Donizetti, 2015. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 215 figura iv: Imagem parcial do anúcio de Dom Pasquale no Theatro da Paz fonte: Diario de Noticias, 26 de março de 1891 Dessa vez, porém, Crispim não aparece como cenógrafo, mas na figura de mediador, que trouxe cenógrafos da Ópera de Paris, como Eugène Carpezat, em cujo ateliê confeccionou o pano de boca do teatro. Os artistas franceses, dizia o anúncio, pintaram um “esplêndido salão” para o qual era chamada a atenção do público82. Belém do Pará, portanto, seguia em sintonia com as principais capitais do mundo do espetáculo. O que era apresentado nos palcos de seus teatros também era apreciado por milhares de espectadores em cidades como Paris, Viena, Londres, Berlim, Roma, Milão, Madri, Moscou, Nova York, Lisboa, Buenos Aires, Rio de Janeiro, e outras capitais. Peças estrangeiras de sucesso podiam ser encenadas no original, traduzidas ou parodiadas para melhor adaptarem-se ao público local. Assim, longe de uma relação invariável de inovação e atraso, o nexo entre centro e periferia, como sugere Ginzburg, acontecia em uma “relação móvel, sujeita a acelerações e tensões bruscas, ligada a modificações políticas e sociais e não apenas artísticas”83. Em meio 82. “Theatro da Paz”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 26 de março de 1891, p. 1. 83. GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989. 216 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos a esse contexto, o cenógrafo negro Crispim do Amaral mediava e produzia uma arte conectada com essa cultura global. considerações finais Sem dúvida, Crispim do Amaral foi figura de primeiro plano na cena teatral na Amazônia oitocentista. Esse polivalente artista negro transitou com desenvoltura entre o erudito e o popular, o local e o global, num intenso diálogo cultural que nos permite conectar a história da região ao resto do mundo. A maneira como se comportava nos palcos ou o som que tirava de sua flauta, infelizmente, só nos são acessíveis indiretamente por meio da crítica nos jornais. O mesmo vale para as centografias que pintou para os espetáculos, essas obras efêmeras das quais foram testemunhas apenas os espectores presentes nas apresentações nos palcos. De qualquer modo, sabemos que as cenografias de Crisipim para o teatro foram abundantes. Seu pincel e sua atuação permitiram-lhe acesso aos círculos dos poderosos da época, pricipalmente nos anos inciais da república. Na sessão cívica ocorrida no Theatro da Paz em 22 de fevereiro de 1891, em memória de Bejamim Constant (1836-1891), que seria consagrado pela Constituição como fudador da repúlica, Crispim foi requisitado a dar contorno ao novo herói da pátria. O salão nobre do teatro, segundo o noticiário, “achava-se ricamente ornamentado tendo no fundo um lindo docel com o retrato do eminente cidadão, habilíssimo trabalho de Crispim do Amaral”84. Depois de celebrar o morto ilustre, chegava a vez de exaltar o vivo influente. Assim, em 21 de maço, a imprensa informava que o “habil e festejado Crispim do Amaral” expôs na Loja Filial, à rua Conselhiero João Alfredo, “um retrato do eminente e prestigiado chefe do partido reublicano José Paes de Carvalho”. O trabalho, segundo o articulista, era feito a pastel, “inciado entre nós por aquele artista”; em seguida, resaltava sua qualidade: “Notamos ser aquele trabalho de magnífico efeito, já pela semelhança, já pelas nuances que ali se apresenta”; e convidava “o público a ir apreciar aquela obra d’arte”85. 84. “Benjamim Constant”. Diario de Noticias, Belém, terça-feira, 24 de fevereiro de 1891, p. 2. 85. “Chrispim do Amaral”. Diario de Noticias. Belém, sábado, 21 de março de 1891, p. 2. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 217 As habilidades de Crispim eram reconhecidas bem antes disso. No entanto, na época da monarquia, não garantiram a ele a subvenção para ir estudar em Roma, dentro da política da província que enviava jovens artistas para se aperfeiçoarem na Itália, semelhante ao que ocorria na Corte86. Seu requerimento chegou à Assembleia Provincial em março de 188387, porém o pedido desse artitsta, que se sentia “com irresistível vocação para a arte da pintura”, foi negado88. Se a monarquia dava as costas a Crispim, a república, ao requerer os seus serviços, transformava-o em uma espécie de cenógrafo ofiacial do regime. Foi assim que se anunciou, para 14 de agosto de 1891, no Theatro da Paz, na presença do governador Lauro Sodré, a apresentação ao público do grande pano de boca “represetando a apoteóse da República”, bem como “os magnificos cenários pintados na Europa, sob a direção do talentoso artista Crispim do Amaral”89. Era então dado início a um acelerado processo de sustituição dos símbolos da monarquia pelos do novo regime, cuja alegoria da república de Crispim é um marco. Por outro lado, com o passar dos anos, a prórpia figura do artista como autor da obra começaria a cair no esquecimento. Em junho de 1913, apenas dois anos após a sua morte no Rio de janeiro, um cronista do jornal Estado do Pará, sob o pseudômo Mónoculo, precisou rebater as afirmações equivocadas que um crítico de teatro do jornal O Heraldo exprimira a respeito da autoria do pano de boca do Theatro da Paz. No ocasião, Mónoculo, muito incomodado com os erros de atribuição, procurou esclarecer a Max Pathé, psieudônimo do outro cronista, que o trabalho “não foi pintado por De Angelis, e sim em Paris, por Crispim do Amaral, cuja bela e avantajada figura do mestiço está reproduzida no militar que naquela tela se pode ver”90. No entanto, o que prevaleceu foi uma teimosa dúvida sobre a autoria da obra. Na década de 1970, a dúvida se converteu em outras hipóteses. Paolo Ricci, por exemplo, ao fazer um resumo biográfico de Crispim em 1978, interrompe a pesquisa no momento em que a primeira tentativa de contra86. RODRIGUES, Silvio Ferreira. “‘Il Modello e Il Disegno Sono Italiani’: os pintores brasileiros e a cultura artística europeia na Amazônia Imperial (1840-1880)”. Faces da História, Assis-SP, v. 5, n. 2, p. 85-102, jul./dez., 2018. 87. “Assembleia provincial”. Diario de Notícias, Belém, sexta-feira, 9 de março de 1883, p. 2. 88. “Chrispim do Amaral”. Diario de Noticias, Belém, quarta-feira, 25 de julho de 1883, p. 1. 89. “Theatro da Paz”. A República, Belém, quarta-feira, 12 de agosto de 1891, p. 1. 90. “Teatro e Cinema”. Estado do Pará, Belém, terça-feira, 3 de junho de 2012, p. 5. 218 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos tar o artista para a tarefa havia sido questionada por Antônio José Ferreira Braga, um dos últimos presidentes da província do Pará no Império. Sem avançar, Ricci não se dá conta de que Crispim assinou um novo contrato sob o regime republicano. Mesmo asim, não deixa de dar uma solução rápida, expressa numa nota de rodapé de seu relatório: “O pano de boca foi pintado em Paris, pelo cenógrafo francês Carpezet [...]”91. Sua afirmação ressou por bastante tempo. Entretanto, ainda em 1974, Clarival Valladares havia voltado a levantar a hipótese da autoria de Crispim, seguido por Salles nas décadas seguintes92. Finalmente, pesquisas recentes, como a de Rose Silveira e principalmente a de Denise Corrêa, confirmaram essa hipótese93. O debate sobre a autoria do pano de boca é emblemático do processo de silenciamento da atuação de Crispim no universo das artes cênicas paraenses que, como vimos, relaciona-se ao campo mais amplo da supressão do papel negro na história do teatro. A trajetória do artista, porém, mostra que ele foi um dos mais requisatados na sociedade do espetáculo da época, cujas cenografias traziam as marcas de um tempo de aceleradas tansformações nos padrões de comportamento. Assim, recompor essa história é mais do que dar um lugar na mémória a um artista olvidado como tantos outros. De tudo o que foi dito, tavez o mais importante seja pensar que a ópera e o teatro dos brancos na Amazônia eram, em grande parte, feitos por negros. Enfim, seguir os passos de Crispim do Amaral no teatro paraense é levar em conta a dimensão fundamental da presença do artista negro, do afrodescendente na história da arte do Brasil94. 91. RICCI, Paolo. As Artes Plásticas no Estado do Pará. (in folio) s/d, p. 109. 92. VALLADARES, Clarival do Prado. Restauração e Recuperação do Teatro Amazonas. Manaus: Governo do Estado do Amazonas; Rio de Janeiro: Bloch, 1974. p. 60; SALLES, Vicente. “Crispim do Amaral”. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A Mão Afro-Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Museu Afro Brasil, 2010. p. 231. 93. SILVEIRA, Rose. Histórias Invisíveis do Teatro da Paz: da construção à primeira reforma – Belém do Grão-Pará (1869-1890). Belém: Paka-Tatu, 2010. p. 247; CORREA, Denise Avelino. Alegoria da República: o pano de boca da sala de espetáculos do Theatro da Paz (1890) e a representação da nação paraense republicana. 2017. Dissertação (Mestrado em História da Arte) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2017. p. 74. 94. CHIARELLI, Tadeu. “Artistas de Ascendência Africana na Arte Brasileira: presença/ausência?” Arte!Brasileiros, São Paulo, 11 nov. 2020. (Opinião). Disponível em: https://artebrasileiros.com. br/semfoto/artistas-de-ascendencia-africana-na-arte-brasileira-presenca-ausencia/. o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 219