águas
negras
estudos afro-luso-amazônicos
no Oitocentos
Aldrin Moura de Figueiredo
Maria de Nazaré Sarges
Daniel Souza Barroso
organizadores
Universidade Federal do Pará
Belém, 2021
Copyriht © 2021 autores
dados internacionais de catalogação na publicação (cip) de acordo com isbd
biblioteca central da ufpa – belém (pa)
a282a
Águas Negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos / Aldrin Moura
de Figueiredo, Maria de Nazaré Sarges, Daniel Souza Barroso (Organizadores);
Bárbara da Fonseca Palha… et al. Belém: ufpa, Cátedra João Lúcio
de Azevedo, 2021.
272 p. : il.; 21 cm.
isbn 978-65-86640-43-4
1. Negros – Belém (pa) - História. 2. Negros – Belém (pa) – Séc. XiX. 3.
Escravidão – Belém (pa). 4. Arte – Belém (pa) – Séc. XiX. 5. Belém (pa) –
Condições sociais. 6. Portugal – Relações exteriores – Brasil. i. Figueiredo,
Aldrin Moura de, org. ii. Sarges, Maria de Nazaré, org. iii. Barroso, Daniel
Souza, org. iv. Palha, Bárbara da Fonseca, [et al.].
cdd: 22. ed. 326.098115
Elaborado por Elisangela Silva da Costa – crb-2/983
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Impresso no Brasil
9.
o pincel de ébano:
Crispim do Amaral e uma Cenografia Afro-amazônica
no Apogeu da Ópera em Belém do Pará (Século xix)
Silvio Ferreira Rodrigues1
Nada mais característico do gosto das elites paraenses do final do século
XiX do que a ópera. Ópera, do latim opus, quer dizer obra, que acabou por
nomear o gênero artístico teatral que consiste num drama encenado acompanhado de música e canto, via de regra com a presença de diálogo falado.
Em Belém, em 1878, foi inaugurado o templo local da ópera – o Theatro
da Paz. Quatro anos depois, subiu pela primeira vez a seu palco, o maestro
Carlos Gomes.
Naquele momento, já havia se consolidado a imagem de “um Carlos
Gomes feito gênio nacional, intérprete dos sentimentos, das paixões e da
alma dos brasileiros”2. As homenagens que recebeu em 21 de agosto de 1882,
no Seminário do Carmo, onde foi recepcionado pelo bispo Dom Antônio de
Macedo Costa, são as mais eloquentes demonstrações desse apreço. Além de
apresentações musicais, poemas e discursos ocorridos num salão que trazia
um dístico com a frese “Glória ao gênio”, o evento, segundo a imprensa,
encerrou-se com “um quadro vivo representando o cantor do Guarani: um
1.
2.
Doutor em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Escola de Aplicação
da UFPA (EAUFPA).
COELHO, Geraldo Mártires. No Coração do Povo: o monumento à República em Belém (18911897). Belém: Paka-Tatu, 2003. p. 23.
193
anjo ornava-lhe a fronte com uma lindíssima coroa de louro”. Pouco antes
do encerramento, Crispim do Amaral, tido então como hábil “músico amador”, ao lado de um pianista, havia lançado mão de sua costumeira flauta
para executar a peça musical Fantasia sobre o Guarani, duo em homenagem ao festejado músico3. O “humilde artista”, por assim dizer, reforçava o
pedestal cultural onde figurava magistralmente o “grande maestro”.
Desse modo, como ainda ocorreria várias vezes no Pará, Carlos Gomes
era enquadrado por seus aduladores na figura de herói, para não dizer santo,
que a pátria deveria reverenciar. A distância hierárquica que separa o maestro e o flautista, é claro, não surpreende se levarmos em conta a cena lírica
da época, quando Carlos Gomes estava no ápice da fama e Crispim do Amaral, em início de carreira. Se isso, em parte, explica o espaço diferenciado
que ocuparam no evento do Seminário do Carmo, decerto não é o suficiente
para justificar o lugar que posteriormente coube a cada um deles na história
do teatro na Amazônia. Carlos Gomes, como bem sabemos, antes de falecer
em Belém, em 1896, passaria pouquíssimas vezes pela região e, ainda assim,
gozaria de imenso prestígio no panteão da posteridade. Seu busto em mármore de Carrara repousa solenemente no salão nobre do Theatro da Paz.
Crispim do Amaral, por sua vez, apesar da amplitude de sua obra no cenário
artístico amazônico, seria relegado à poeira do tempo.
O silenciamento sobre Crispim do Amaral no ambiente teatral junta-se ao silenciamento de muitos outros artistas negros na história do teatro brasileiro. Tomemos, como exemplo, a figura de Arthur Rodrigues da
Rocha, dramaturgo negro gaúcho que, segundo Renata Geraldes, apesar da
fama de suas peças em circulação no século XiX “e da mobilização suscitada
pelos debates sobre a condição do negro na sociedade pós-abolicionista, a
projeção nacional do seu nome não foi o suficiente para consagrá-lo como
importante dramaturgo brasileiro”4. De semelhante modo, Silvia Souza, que
estuda o teatro fluminense no século XiX5, chama a atenção para o ator e
3.
4.
5.
“Carlos Gomes”. O Liberal do Pará, Belém, 22 de agosto de 1882, p. 1.
GERALDES, Renata Romero. Teatro e escravidão: a poética abolicionista na dramaturgia de
Arthur Rocha. 2018. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária). Instituto de Estudos
da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 15.
Para alguns estudos mais aprofundados sobre a história social do teatro analisado por Silvia
Souza, ver SOUZA, Silvia Cristina Martins de. As noites do Ginásio: Teatro e tensões Culturais
na Corte (1832-1868). Campinas: Editora da UNICAMP, 2002; SOUZA, Silvia Cristina Martins
194 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
dramaturgo mestiço Francisco Correa Vasques: “Relegado à vala comum do
anonimato pela historiografia do teatro brasileiro por longo tempo, Vasques
tem sido reabilitado nas últimas décadas”6. Sobre a trajetória desse influente
artista na história do teatro brasileiro, assim se refere:
[...] Fluminense, mulato, filho natural nascido no interior de uma família de poucas posses, sem formação letrada, foi nos palcos que Vasques encontrou seu meio de
sobrevivência e uma forma de inserção social. Desde o ano de 1859, quando escreveu
O Sr. José Maria Assombrado pelo Mágico, sua primeira cena cômica, até o ano de
sua morte, em 1892, Vasques dedicou-se simultaneamente à carreira de ator e à de
dramaturgo, chegando a escrever mais de sessenta peças teatrais, a maior parte delas
num gênero dramático: as cenas cômicas. Esta dupla trajetória transformou-o em um
dos atores e dramaturgos brasileiros mais reconhecidos no Rio de Janeiro do século
XiX, muito embora sua atuação como teatrólogo seja raramente mencionada nos trabalhos clássicos que se dedicam à história do teatro brasileiro7.
No entanto, a ausência de estudos a respeito da atuação de artistas negros
no teatro e na ópera não é um problema exclusivo da historiografia brasileira. Essa amnesia afeta o campo em âmbito internacional. Mas graças a
algumas felizes inciativas, a questão agora passa por uma rigorosa revisão
crítica. Um bom exemplo está em Black Opera: history, power, engagement,
livro de Naomi Adele André, publicado em 20188. A autora mostra como,
de filmes clássicos, como Carmen Jones, a obras contemporâneas, como O
6.
7.
8.
de. Carpinteiros teatrais, cenas cômicas e diversidade cultural no Rio de Janeiro oitocentista:
ensaios de história social da cultura. Londrina: Eduel, 2010; SOUZA, Silvia Cristina Martins de.
Scenas Comicas de Francisco Correa Vasques. Curitiba: Prismas, 2017.
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Três folhetins inéditos de Francisco Correa Vasques (Gazeta
da Tarde, Rio de Janeiro, 1883). Revista de História Regional 24(1): 199-212, 2019, p. 200.
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. Um Offenbach tropical: Francisco Correa Vasques e o teatro
musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XiX. História e Perspectivas, Uberlândia (34): 225-259, jan.jun.2006, p. 229-228.
Em Black Opera, Naomi André baseia-se nas experiências de artistas e do público para explorar
a ressonância desse gênero musical nos ouvintes de hoje. Interagindo com criadores e intérpretes, bem como com as próprias obras, a autora revela como a ópera negra desenterra verdades
suprimidas. Essas verdades provocam uma reconsideração complexa, embora desconfortável,
de gênero, racismo e outras ideologias opressivas. A ópera, por sua vez, atua como uma força
cultural e política que emprega um imenso poder transformador para representar ou mesmo
libertar. Ver: ANDRE, Naomi. Black Opera: history, power, engagement. Urbana: University of
Illinois Press, 2018.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 195
Diário de Sally Hemings e U-Carmen eKhayelitsha, artistas e compositores americanos e sul-africanos usaram a ópera para reivindicar o lugar dos
negros na história. Outra contribuição aparece em Blackness in Opera, uma
coletânea de ensaios organizada em 2012 por Naomi André, Karen Bryan
e Eric Saylor, a qual examina as interseções entre raça e música no gênero
multifacetado da ópera9. Ali diversos estudiosos colocam óperas conhecidas
(Porgy and Bess, Aida, Treemonisha) ao lado de obras menos conhecidas
(Koanga, de Frederick Delius; Blue Steel, de William Grant Still; e Ouanga!,
de Clarence Cameron White) para revelar criticamente um novo contexto
histórico, reinventando a raça e a negritude na ópera. Os ensaios tocam
em questões sobre como a negritude foi representada nessas óperas, como
os negros foram caracterizados, a interpretação de papéis racializados por
negros e brancos, as controvérsias sobre raça no teatro e o uso de blackface,
assim como as extensões da negritude na grande ópera, no teatro musical e
no cinema.
Dialogando com essa historiografia, abordo aqui a atuação de Crispim do Amaral como cenógrafo no ambiente teatral de Belém do Pará do final do século XiX.
Recuperar sua trajetória nesse contexto cultural é, portanto, mais do que valorizar
a memória de um artista esquecido. Trata-se, sobretudo, de tentar recompor um dos
papéis do negro na sociedade do espetáculo da época.
É claro que muitos desses ambientes artísticos não eram os locais mais receptivos a um afrodescendente no Brasil. A Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
Janeiro, por exemplo, guardiã de um ideário elitista, impunha inúmeras dificuldades
à formação e reconhecimento de artistas negros. Marcelo Silveira aponta que, na
construção dessas barreiras, entravam em jogo uma concepção de nação, defesas
científicas e preconceitos cristalizados para defender estéticas e formas de ensino que
perduram até hoje na instituição10. As contradições em torno da presença e representação do negro aparecem também no teatro desse tempo. Luiz Costa-Lima Neto,
num sugestivo artigo, desvela “algumas teias de relações socioculturais e políticas
9.
ANDRE, Naomi; BRYAN, Karen M., SAYLOR, Eric (Org.). Blackness in Opera. Urbana: University of Illinois Press, 2012.
10. SILVEIRA, Marcelo da Rocha. “A arte e o Artista Negro na Academia no Século XiX”. Revista Z
Cultural, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, 2019, p.1. Na década de 1880, José Roberto Teixeira Leite
fez um importante estudo sobre a vida e a obra de alguns pintores negros no Brasil no século
XiX, que inclui breves biografias de artistas como Crispim do Amaral. Ver LEITE, José Roberto
Teixeira. Pintores Negros dos Oitocentos. Ed. Emanuel Araújo. São Paulo: MWM, Knorr, 1988.
196 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
nas quais os teatros imperiais tomavam parte, servindo como elos que relacionavam
os diversos estratos da escala social”11. Apoiando-se nos jornais da época, mostra
como os espetáculos na capital imperial espelhavam a realidade social do regime
escravocrata. Ora, por meio dos anúncios de espetáculos nos jornais também é possível perceber a presença de uma cenografia afro-amazônica no século XiX. Submetidos
a uma análise adequada, esses fragmentos lançam luz sobre um passado pouco evidente à primeira vista. Assim, como afirma Ginzburg, se “a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la”12. Seguindo os
indícios da atuação de Crispim do Amaral presentes nos anúncios de peças teatrais,
perceberemos que esses espaços, tidos geralmente como “brancos”, eram marcados
pela presença negra.
um intelectual negro na amazônia das“raças cruzadas” e
ocultadas
O pernambucano Crispim do Amaral (1858-1911), pela multiplicidade de
atividades que exerceu, foi um artista difícil de classificar. Desenhista, caricaturista, ilustrador, cenógrafo, decorador, pintor, professor de desenho e
pintura, músico, ator, se esse artista múltiplo não se acomoda a uma única
classificação profissional, quando se trata de sua cor e origem no ambiente
racista do final século XiX, a coisa muda de figura. Em 1879, o próprio Crispim daria um retrato de si como “homem de cor”, e acrescentava: “Sou de
estatura regular, olhos rasgados [...], tez morena, fronte espaçosa, cabelos
castanhos e escuros”13. A declaração pública do artista, que circulava pelos
espaços privilegiados das elites amazônicas, expunha às claras a ascendência
negra, filha do cativeiro ainda não extinto naquela data. O seu talento e a
cor de sua pele foram uma constante na retina daqueles que frequentavam
o universo artístico e intelectual de Belém nas últimas décadas do Oitocentos. Bastava ir a um espetáculo no luxuoso Theatro da Paz para ver as mais
11. COSTA-LIMA NETO, Luiz. O Teatro das Contradições: o negro nas atividades musicais nos
palcos da corte imperial durante o século XiX. Opus, Goiânia, v. 14, n. 2, p. 37-71, dez. 2008.
p. 39-40.
12. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989. p. 177.
13. AMARAL, Crispim, apud SALLES, Vicente. “Ainda Crispim do Amaral”. A Província do Pará,
Belém, domingo, 19 de novembro, 2º. Caderno, p. 12.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 197
impressionantes cenografias de peças executadas pelo “distinto cenógrafo
Crispim do Amaral”14; a um sarau, onde ele arrancava risadas da plateia
com sua atuação cômica15; ou mesmo a um concerto musical, onde tomava
parte com outros músicos16.
figura i: Retrato de Crispim do Amaral
fonte: Coleção Vicente Salles
Nessa época, Crispim do Amaral se tornou um dos principais protagonistas da vida artística na Amazônia. Sua postura abolicionista e republicana
e a inserção que teve nas principais questões sociais do país fazem lembrar
figuras como Ferreira de Menezes, Luiz Gama, Machado de Assis, José do
Patrocínio, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos, Theophilo Dias de Castro e outros “homens livres de cor” das últimas décadas do século XiX e
início do século XX. Eles não estiveram alheios aos debates que envolviam
inúmeros projetos político-culturais pensados para o Brasil. Não obstante
o preconceito que pesava sobre a sua origem racial, esses literatos negros
construíram seu entendimento sobre o país e o futuro que almejavam. Como
sugere Ana Flávia Pinto, eles “buscaram de diferentes modos conquistar e
manter seus espaços no debate público sobre os rumos do país”. Confron-
14. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 13 de outubro de 1888, p. 3.
15. “Sarao dramático-musical”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 24 de dezembro de 1886, p. 3.
16. “Beneficio”. Diário de Notícias, Belém, domingo, 22 de fevereiro de 1891, p. 2.
198 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
tando as cotidianas práticas de “preconceito de cor”, ressalta a historiadora,
essas destacadas personalidades da época “não apenas colaboraram para
as discussões travadas em jornais diários, abolicionistas, negros, literários,
como também protagonizaram a criação de mecanismos e instrumentos
de resistência, confronto e diálogo”17. A presença de influentes intelectuais
negros na sociedade brasileira remonta ainda à primeira metade do século
XiX. Esse é o caso do tipógrafo negro Francisco Paula de Brito (1809-1861),
o qual, como mostra Rodrigo Godoi, transformou uma pequena livraria no
Rio de Janeiro, adquirida em 1831, numa das maiores editoras do Segundo
Reinado, cabendo-lhe, em 1851, o título de impressor da Casa Imperial,
concedido pelo imperador18.
A propósito, a livraria de Paula de Brito, esse “mestiço inteligente”, nas
palavras de Silvio Romero, era frequentada por Machado de Assis na juventude e teria contribuído para a formação do escritor de sucesso que se tornou19. O mesmo Silvio Romero, num balanço feito sobre Machado de Assis
em 1897, esboça a biografia do escritor, revisa sua fortuna crítica e analisa
suas matrizes intelectuais. O juízo que faz sobre o romancista passa, sobretudo, por uma alta carga de preconceito racial. Tomando traços psicológicos
de Machado de Assis, frutos de uma suposta ancestralidade inferior, assim
se refere Romero: “Machado de Assis não sai fora da lei comum, não pôde
sair, e ai dele, se saísse. Não teria valor. Ele é um dos nossos, um genuíno
representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho
tocar neste ponto”. Mais à frente, completa: “Sim, Machado de Assis é um
brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente
a sua psicologia, nem o peculiar sainete psicológico originado daí”20. Uma
crítica sutil a pensamentos racistas como esse já havia sido feita pelo próprio
Machado de Assis em Memória Póstumas de Brás Cubas, romance publi-
17. PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes Laços em Linhas Rotas: literatos negros, racismo e
cidadania na segunda metade do século XiX. 2014. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2014, p. 1-2.
18. GODOI, Rodrigo Camargo de. Um Editor no Império: Francisco de Paula Brito (1809-1861).
2018. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018.
19. ROMERO, Silvio. Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira. Rio de Janeiro:
Laemmert & C., 1897. p. 7.
20. Idem, p. 17-18.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 199
cado em 1880 e que “buscava representar a classe senhorial no período em
que vivera o ápice de seu poder e prestígio social”, isto é, entre 1840 e
187121. Brás Cubas, o protagonista da história, articula a política de domínio paternalista com aspectos da onda de ideias cientificistas europeias desse
tempo, em especial o darwinismo social, “como forma de explicar a reprodução das desigualdades socais”22.
A ciência racial que procurava relacionar as características físicas dos
povos aos seus graus de civilização e que teve em Francis Galton (18221911) – cientista inglês criador do conceito de eugenia – um dos maiores defensores, não deixou de ter ressonância na Amazônia. Consta dessa
época, por exemplo, a ideia de que a região seria uma terra exclusivamente
de indígenas, sem a presença negra a espreitar um lugar no cadeirão étnico
em construção. Sua formulação nasce em uma geração de intelectuais obstinados em demarcar as fronteiras étnicas da mestiçagem brasileira. Na
Amazônia, o mais destacado foi José Veríssimo (1857-1916), jornalista,
professor, etnólogo, crítico e historiador da literatura. As interpretações
de José Veríssimo sobre a presença negra na Amazônia e suas vinculações
ao problema da mestiçagem no Brasil serviriam de base para as conclusões
que marcariam a obra de outro intelectual dessa geração, o médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906). Essa genealogia, como
afirma Aldrin Figueiredo, deu forma à suposta inexistência da presença
negra no contexto demográfico da Amazônia, implicando na permanência
da região como “terra de índio”23.
No entanto, as marcas culturais da influência negra podiam ser percebidas claramente na região e remetiam a povos de diferentes origens. Tal
diversidade ligava-se às antigas rotas do tráfico, que trouxeram esses imigrantes forçados para a América24. Diluídos em meio a população, seus des-
21. CHALHOUB, Sidney. “Para que Servem os Narizes”. In: CHALHOUB, Sidney; MARQUES,
Vera Regina Beltrão; SAMPAIO, Gabriela dos Reis; SOBRINHO, Carlos Roberto Galvão (Org.)
Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. p. 19.
22. Idem, p. 21.
23. FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. “Negro em Terra de Índio: matrizes intelectuais das teorias
racistas na Amazônia do século XiX”. In: CAMPOS, Cleise et al. (Org.). Políticas Públicas de
Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sirius; UERJ, 2003. p. 131-145.
24. Aqueles que chegaram à capitania do Grão-Pará pertenciam a diversas nações, reinos e etnias
africanas. Algumas das regiões ou lugares de onde provinham os cativos eram: Bissau, Cacheu,
200 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
cendentes eram facilmente encontrados na capital paraense nos tempos da
belle époque, o que incomodava aqueles que se alimentavam das teorias
racistas europeias, segundo as quais a miscigenação degenerava os povos.
Compartilhava dessa posição, por exemplo, Eduardo Léger Lobão Junior,
médico maranhense radicado em Belém, leitor atento de José Veríssimo e Silvio Romero e profundo admirador de Nina Rodrigues, de quem foi aluno na
Faculdade de Medicina da Bahia. Em 1901, Lobão Junior deu a público suas
preconceituosas reflexões a respeito da mestiçagem na Amazônia, lamentando que, em todos os tempos e lugares do “mundo culto”, procurava-se
melhorar, “a perfeiçoar as raças”, coisa que não se via em Belém do Pará.
Dizia ele: “Penetrai nos nossos Clubs que tereis a confirmação do nosso
atraso. Lá encontrareis, logo nos seus umbrais, desde o cafuz, cafuso, carafuso, até o alvo sem brancura”. Era triste, afirmava ele, ver a nossa população constituída de “mais gente de sangue inferior do que de sangue nobre”,
levando o Pará a assemelhar-se à Bahia. Mais triste ainda era ver um mestiço
“casando com uma branca”25.
Ainda segundo o médico, não havia dúvidas de que tínhamos “mestiços
de alto valor”, porém nunca a história teria registrado um mestiço, e muito
menos um negro, genial: “Nunca houve um mestiço ou um negro que fosse
da estatura mental dos grandes brancos, quer nas artes, quer nas ciências”26.
A confirmação de seus preconceitos estava assentada no que seriam os grandes nomes do passado: “Os Homero, Virgílio, Aristoteles, Dante, Descartes,
Goethe, Spinosa, Miguel Angelo, Raphael, Kant, Bichat, Laplace, Newton
[...] não eram mestiços, indios, nem negros”27.
É provável que Lobão Junior tenha encontrado Crispim em algum
momento, uma vez que circulavam pelos mesmos espaços em Belém. Ou,
pelo menos, leu na imprensa as elogiosas críticas à performance do artista
no teatro, na pintura e na música. O certo é que esse negro talentoso falava
fluentemente francês e dominava os códigos da “alta cultura” quando isso
Luanda, Benguela, Cabina, Angola e Moçambique. Ver: VERGOLINO-HENRY, Anaíza;
FIGUEIREDO, Arthur Napoleão. A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: Arquivo Público do Pará, 1990. p. 49-50.
25. LOBÃO JUNIOR, Eduardo Léger. A Medicina em Belém: o mesticismo na sociedade belemnense.
Pará: Typ. de Tavares Cardoso, 1901, p. 83.
26. Idem, p. 84.
27. LOBÃO JUNIOR, A Medicina em Belém..., 1901, p. 85.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 201
era sinônimo de “civilização”. Articulado e de educação refinada, Crispim
estava mais para dar lições à classe senhorial do que aprender algo com ela.
Em 1883, por exemplo, aparece como professor do Colégio Visconde de
Souza Franco28, estabelecimento cujo diretor orgulhava-se de ter “um corpo
docente ilustrado”29. Três anos depois, toma acento como professor no rigoroso Ateneu Paraense30. Em 1892, já sob o regime republicano, é nomeado
pelo governador Lauro Sodré para reger interinamente a cadeira de desenho
de paisagens e ornatos na Escola Normal31. De certa forma, a posição de
Crispim confirma a tese de que os homens livres de cor tiverem importante
papel no Brasil, mesmo antes da abolição. Eles atingiram considerável mobilidade ocupacional, sendo admitidos em ocupações especializadas e, ocasionalmente, em posições proeminentes, como artistas, políticos e escritores,
enquanto a escravidão ainda era dominante no país32.
negros tomam a cena: crispim do amaral no teatro do pará
oitocentista
As trajetórias de Francisco Vasques, Arthur da Rocha e Crispim do Amaral
mostram o quanto a atuação de “homens de cor” no teatro oitocentista era
algo mais comum do que se imagina. Essa forte presença, no entanto, podia
ser notada ainda no século anterior, como é o caso do mestiço Padre Ventura, muito popular no Rio de Janeiro, considerado o precursor da ópera no
Brasil; ou do mestiço Manuel Luís, dono de uma das primeiras companhias
de teatro da época, cujo elenco era de maioria mestiça. Entre os séculos Xviii
e XiX, negros e mestiços se notabilizaram em papéis de atores, diretores e
administradores de companhias, como a atriz Chica da Silva, os atores Vito-
28. O Colégio Visconde de Souza Franco, no qual Crispim do Amaral atuou como professor de
desenho, foi uma instituição de ensino fundada em Belém ainda no século XiX. Portanto, não se
trata do atual Colégio Souza Franco situado na Avenida Almirante Barroso, no bairro do Marco,
e onde funcionou a antiga Escola de Agronomia.
29. “Collegio Visconde de Souza Franco”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 12 de janeiro de
1883, p. 3.
30. “Atheneu Paraense”. O Liberal do Pará, Belém, domingo, 21 de dezembro de 1886, p. 2.
31. “Repartições Publicas”. A República, Belém, quarta-feira, 27 de abril de 1892, p. 2.
32. SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro
(1870-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 60.
202 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
riano, Xisto Bahia, Caetano Lopes dos Santos, Maria Joaquina, José Inácio
da Costa (o Capacho) e o palhaço Benjamim, só para citar alguns dos mais
conhecidos33.
A vida de Crispim, como mostra Salles, esteve intimamente relacionada
ao mundo do teatro. Nas últimas décadas do século XiX, quando a capital
paraense ostentava uma efervescência artística proporcionada pelos recursos
oriundos da exportação da borracha, o empresário pernambucano Vicente
Pontes de Oliveira, proprietário da companhia onde trabalhava Crispim, “era
velho conhecido da plateia local, durante anos arrendatário do Teatro Providência, acanhado pardieiro”. Foi nos bastidores dessa casa de espetáculos
que Crispim desenvolveu sua primeira atividade, “em longa temporada que
se entenderia pelos anos seguintes”34.
Nesse ambiente artístico, Crispim do Amaral teve a oportunidade de
dividir o palco e trocar experiência com Xisto de Paula Bahia (1841-1894),
que, como vimos, era um ator negro de destaque no cenário teatral. Em
dezembro de 1878, por exemplo, quando a companhia de Vicente Pontes
de Oliveira apresentou, no Theatro da Paz, o drama português A Cigana
de Lisboa, que promoveu a estreia, no Pará, da cantora Léonie Villiot,
do Alcazar do Rio de Janeiro, Crispim e Xisto atuaram juntos na peça35.
Àquela altura, Xisto já era admirado e querido pelo público, para o qual
se apresentava desde a década de 1860. Natural da Bahia, viria a ser um
dos maiores nomes da arte cênica brasileira no final do século, elogiado
pelo afamado dramaturgo Arthur Azevedo (1855-1908)36. Ainda nessa
transmissão de saberes, poderíamos mencionar outros artistas que contribuíram para a formação de Crispim, como o cenógrafo francês León
Chapelin, com quem aprendeu a pintar cenografias e a falar francês; o
já citado ator e empresário Vicente Pontes de Oliveira, que dominava as
praças do Maranhão e do Pará e em cuja companhia Crispim viajou país
afora; a atriz Manuela Lucci, esposa de Vicente e que, após a morte do
33. LIMA, Evani Tavares. “Por uma História Negra do Teatro Brasileiro”. Urdimento, Florianópolis,
v. 1, n. 24, p. 92-104, julho 2015. p. 97.
34. SALLES, Vicente. “Crispim do Amaral no Grão-Pará”. A Província do Pará. Belém, Domingo,
20 de setembro de 1992, 2º. Caderno, p. 9.
35. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 7 de dezembro de 1878, p. 3.
36. SALLES, Vicente. Épocas do Teatro no Grão-Pará: ou apresentação do teatro de época. Belém:
UFPA, 1994. v. 1, p. 82.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 203
marido em 1882, tornou-se empresária e continuou a contratar Crispim
para pintar as cenografias das peças. Manuela, por sinal, era atriz experiente, tendo se destacado nas praças do Norte e Nordeste e no Rio de
Janeiro. Na empresa do ator Germano Francisco de Oliveira, ela atuou em
muitos papeis de destaques, como na figura da cortesã Marguerite Gauthier de A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho37. Manuela era
como aquelas novas “rainhas do palco” da segunda metade do século XiX
que eram “mulheres objetos, cada vez mais erotizadas”, de acordo com
Christophe Charle38. Nesse caso, assemelha-se à atriz Sarah Bernhardt, que
embora tenha atuado em vários papéis de relevo, deveu “o seu primeiro
triunfo às femmes fatales, como Marguerite Gauthier”39. Segundo Salles,
atuando nos palcos de Recife a Belém, Manuela foi considerada a primeira
figura dramática da época. Após se casar com Vicente, passou a excursionar com ele, mantendo contato com vários círculos de artistas, especialmente aqueles que atuavam no Alcazar do Rio de Janeiro40.
Assim como essas conhecidas figuras do teatro brasileiro, Crispim fez
parte de um considerável contingente de artistas recrutados pelas companhias do século XiX, que cruzavam o Brasil de norte a sul apresentando-se
nas principais capitais das províncias do Império. O resumo biográfico de
Crispim é revelador desses múltiplos contatos e da inserção social que o teatro lhe proporcionou. Nascido em Olinda, Crispim estudou cenografia com
Léon Chapelin, cenógrafo de uma companhia de opereta desembarcada em
Recife em 1867. Aos 18 anos, Crispim partiu para o Norte e chegou a Belém
do Pará por volta de 1876, engajado na companhia de Vicente Pontes de Oliveira. Na capital paraense, trabalhou como cenógrafo e decorador em diversos teatros. Ao mesmo tempo, publicou caricaturas na imprensa impulsionada pela litografia do alemão Karl Wiegandt. Nessa época, também editou
e ilustrou o jornal O Estafeta (1879) e a revista A Semana Illustrada (1887).
No cenário cosmopolita de Belém e Manaus, ao lado dos irmãos Manuel do
Amaral e Libânio do Amaral, conviveu com círculos de artistas italianos,
37. Idem, p. 79.
38. CHARLE, Christophe. A Gênese da Sociedade do Espetáculo: teatro em Paris, Berlim, Londres
e Viena. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 25.
39. Ibidem.
40. SALLES, Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 79-78.
204 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
alemães, franceses e brasileiros atuantes na Amazônia no ramo da pintura,
como Domenico De Angelis. Na década de 1890, realizou suas principais
obras de decoração: em 1890, assinou contrato para confeccionar o pano
de boca do Theatro da Paz, executado em Paris, no ateliê Carpezat, e entre
1894 e 1896, trabalhou na decoração do Teatro Amazonas. Acabadas essas
obras, partiu novamente para Paris. Retornou ao Brasil em 1902, dirigindo-se para o Rio de Janeiro. Ali foi um dos fundadores e diretores da revista O
Malho. Logo depois, lançou as revistas A Avenida (1903), que circulou até
1905, e O Pau (1905)41.
Crispim do Amaral, portanto, soube tirar proveito dessa longa vivência
no ambiente artístico amazônico. Na época em que ele e seus companheiros de profissão exibiam-se no Teatro Providência, essa casa de espetáculos,
fundada em 1835, já era realmente considerada um “parteiro”, como frisou
Salles. Em abriu de 1870, por exemplo, um articulista do O Liberal do Pará
chamava a atenção do presidente da província para que lançasse “suas vistas
sobre esse pardieiro que se chama Teatro Providência, verdadeira armadilha” que, mais dias ou menos dias, desabaria “sobre a cabeças de centenas
de pessoas”. E arrematava em seguida: “Parece incrível que no centro de
uma capital se consinta uma casa em plena ruína, recebendo quase sempre
imenso povo destinados a espetáculos públicos”42. Já no Largo de Nazaré,
nos arrabaldes da cidade, em melhores condições encontrava-se o recém-construído Teatro Chalet, cuja inauguração contaria, como anunciava
Vicente Pontes de Oliveira, arrematante da casa, com a estreia de artistas
do Alcazar Lírico do Rio de Janeiro43. Pouco tempo depois, o teatro recebia
uma companhia francesa que prometia uma “récita extraordinária”44. Nas
décadas seguintes, Belém apresentaria numerosas casas de espetáculos no
Largo da Pólvora (atual Praça da República), onde foi erguido o Theatro da
Paz. Nesse entorno, proliferaram cafés-concertos, hotéis e estabelecimentos
requintados, como o Café Chic. Na década de 1880, ali foi erguido o Pavilhão de Recreios, num terreno baldio, onde se realizavam bailes, ouvia-se
música e praticava-se jogos de azar. Ainda nas proximidades, existia uma
41.
42.
43.
44.
SALLES, “Crispim do Amaral no Grão-Pará”, 1992, p. 9.
“Não é política”. O Liberal do Pará, Belém, quarta-feira, 6 de abril de 1870, p. 2.
“Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, terça-feira, 21 de junho de 1870, p.2.
“Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, terça-feira, 19 de julho de 1870, p. 2.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 205
grande construção em madeira com fachada gradeada, denominada Teatro-Circo Cosmopolita, que abrigava um enorme carrossel ricamente decorado
e palco onde se exibiam companhias de revista, vaudevilles, dramas, óperas
líricas e cômicas, operetas, acrobatas e trapezistas, mímicos, ilusionistas e
outras atrações45.
Vale dizer que esse aumento no número de teatros e a diversificação
dos espetáculos no Pará estiveram ligados ao crescimento de sua capital,
ao desenvolvimento dos transportes e ao deslocamento de pessoas e mercadorias na segunda metade do século XiX. Belém, como se sabe, despontou
então como principal porto de escoamento da borracha e importante rota
comercial no Atlântico, especialmente depois da abertura do rio Amazonas à
navegação internacional em 186746. Tais mudanças criaram condições para
que os moradores da cidade dispusessem de produtos e serviços variados.
Somou-se a isso a vigorosa expansão da população mediante a imigração,
que trouxe artistas de diversas origens. Sem muita seleção de clientela e distinção de tarefas, eles realizavam desde elaboradas pinturas até simples produção de anúncios para tabuletas de tavernas. Atendendo à demanda do
público, podiam ser encontrados em Belém gravadores, cenógrafos, decoradores, retratistas, paisagistas, fotógrafos e mesmo caricaturistas. Em meados
da década de 1860, por exemplo, transferiu-se para Belém o cenógrafo Giuseppe Leone Righini (1820-1884), pintor italiano que, na década anterior,
gozara de prestígio ao executar cenografias para os teatros de São Luís do
Maranhão47. Assim como ele, existiam muitos outros, como o pintor francês
Eduard Langlois, o qual, em setembro de 1880, tirava retrato a óleo e a crayon e encarrega-se também de qualquer obra de pintura, tabuletas, dístico
e tudo que dissesse respeito à arte; podia ser encontrado no Teatro-Circo
Pavilhão oferecendo seus serviços a “preços cômodos”48. Ao gosto do freguês, em 1883, semelhantes serviços eram prestados por Crispim e comer-
45. SALLES, Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 89.
46. Para se ter uma ideia, nesse tempo, mais da metade do comércio estrangeiro passou a ser feito com
a Grã-Bretanha, seguida por Estados Unidos, França, Portugal e cidades hanseáticas. PENTEADO,
Antonio Rocha. Belém: estudo de geografia urbana. Belém: UFPA, 1968. p. 127.
47. RODRIGUES, Silvio Ferreira. Todos os Caminhos Partem de Roma: arte italiana e romanização
entre o Império e a República em Belém do Pará (1867-1892). 2015. Tese de Doutorado (História)
- Universidade Federal do Pará, Belém, 2015. p. 106.
48. “Atenção”. O Liberal do Pará, Belém, sexta-feira, 8 de setembro de 1880, p. 3.
206 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
cializados no ateliê da loja Fotografia Sul-Americana, situada à rua Espírito
Santo49, número 44. Pelo anúncio, sabemos que, assim como ocorria em
seus cenários, Crispim pintava fundos de paisagens, ruínas, salas, jardins e
outros. Fundos esses, como ressaltava o anúncio, comparáveis “aos melhores vindos dos Estados Unidos”50.
Por fim, não seria exagero considerar Crispim do Amaral uma espécie
de mediador cultural na belle époque. Ao mesmo tempo em que executava
cenários para óperas, pintava estampas para mastro nas festividades de santo
e organizava espetáculos no teatro de marionetes no Largo de Nazaré51. Ou
melhor, participava ativamente do que se pode chamar de circularidade cultural, onde se estabelece uma relação de influências recíprocas entre a cultura da classe dominante e a da classe subalterna, num movimento de baixo
para cima, bem como de cima para baixo52. O mesmo podemos dizer sobre
dramaturgos, diretores, atores, músicos e empresários teatrais contemporâneos de Crispim, que cruzavam constantemente a fronteira entre o erudito e
o popular. Nesse tempo, ao adentrar uma sala de espetáculos, a elite branca
poderia ver o negro Xisto Bahia encenando uma peça do negro Francisco
Vasques, com cenografia do negro Crispim.
a sociedade encenada e a cenografia do social nos pincéis de
crispim do amaral
Crispim criou cenografias para uma variedade de gêneros demandados por
um público que esperava encontrar, nas peças, a realização de seus desejos
ou a confirmação de seus preconceitos. Enfim, produziu para o teatro amazônico em pleno surgimento da chamada “sociedade do espetáculo”, no sentido atribuído por Christophe Charle, que assim a define:
Lugar que também convida ao sonho, no tempo e no espaço: este é o século do
teatro histórico e do espetáculo feérico, da peça com efeitos especiais e da revista musical, em que a atualidade se converte num carnaval das vaidades e dos chistes. Uma
49.
50.
51.
52.
Atual rua Dr. Assis, no bairro da Cidade Velha.
“Photografia Sul-americana”. Dário de Notícias, Belém, quarta-feira, 31 de janeiro de 1883, p. 4.
“As Navalhas”. O Cosmopolita, Belém, 30 de novembro de 1885, p. 3.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido
pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.10.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 207
confrontação cada vez mais realista ou cada vez mais fantasiosa com o sórdido, o ridículo, o dramático de personagens mais ou menos parecidos com aqueles que os veem e
projetam nos atores e nas atrizes suas fantasias, a raiva que o presente lhes infunde ou
o desejo de esquecer viajando no tempo e no espaço sem sair da poltrona [...]53.
No contexto agitado de uma Amazônia cada vez mais conectada com
uma cultura global que permeava os espetáculos, os palcos dos teatros se
convertiam em lugares de contestação social, de questionamento das hierarquias de gênero, classe e raça, em fórum político. “Conservatórios das convenções, locais onde eclodem transgressões que preparam a liberdade dos
corpos e mentes”, como afirma Charle, “os teatros do século XiX, epicentro
da sociedade do espetáculo no sentido amplo, permitem, assim, apreender
todas as contradições desse período”54.
Ao mesmo tempo em que se apresentava como espaço de tenções, o teatro servia também de ambiente apropriado ao culto cívico de reafirmação da
ordem. O auge da ópera no Pará coincide ainda com um período de investimento na imagem do imperador como autoridade máxima da nação. Sobre
a figura de Dom Pedro II, constitui-se o ícone exemplar do político liberal e
intelectual amante das ciências e das artes55. Durante o seu reinado se desenvolveu, com maior clareza, uma política cultural que se propunha a dar uma
nova “cara” à nação. Portanto, era preciso criar pontos de referências, por
meio dos quais os habitantes desse imenso território se reconhecessem como
parte de um mesmo povo. A inauguração do Theatro da Paz, em fevereiro
de 1878, atendeu a esse propósito. O programa apresentado pela companhia
de Vicente Pontes de Oliveira para mais de mil pessoas começou com a chegada do presidente da província, abrindo-se a cena onde se achava o retrato
do imperador56. Em 24 de março, a mesma companhia anunciou, para o dia
seguinte, um espetáculo para celebrar o aniversário do jubileu da Constituição do Império. O evento prometia exibir a estátua equestre de Dom Pedro I,
“no ato de apresentar ao povo a carta constitucional”. A estátua, segundo
53. CHARLE, A Gênese da Sociedade do Espetáculo..., 2012, p. 20.
54. Ibidem.
55. Para um estudo biográfico do imperador D. Pedro II, ver SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas
do Imperador. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
56. NOBRE, Ulisses. “Theatro da Paz”. In: MOURA Ignacio Baptista de (Org.). Annuario de Belém
em Commemoração do seu tricentenario, 1616-1916: historico, litterario e commercial. Belém:
Imprensa Official, 1915. p. 52-53.
208 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
o anúncio, havia sido feita por Crispim do Amaral e era cópia da que se
via na praça da Constituição, atual praça Tiradentes, no Rio de Janeiro57.
Ou melhor, tomava como referência o conjunto escultórico executado pelo
artista francês Louis Rochet e cuja inauguração, em 1862, marcou a história da escultura no Brasil. Como afirma Paulo Knauss, a estátua equestre
de Dom Pedro I “abriu a era da escultura cívica de lógica monumental que
mobilizava a sociedade em torno do culto da nação”58.
Porém, para além desses eventos cívicos, os anos entre o final da 1870 e
início da década de 1890 foram intensos para Crispim do Amaral como cenógrafo. Acompanhando os anúncios de espetáculos que saíam na imprensa, o
vemos pintando cenários para peças de diversos gêneros teatrais, que eram
sucesso na Europa e nas capitais brasileiras. Entre elas, constam as peças
literárias que levavam à cena consagrados escritores do Velho Mundo, como
Soulié, Alexandre Dumas (pai), Dumas Filho, Sardou, Zola e Saint-Pierre.
Além de renomadas peças e da ópera italiana, Crispim aparece produzindo
cenografias para os gêneros mistos da cultura média, que então conquistavam popularidade internacional (operetas, revistas, variedades, music hall)59.
De fato, esses trabalhos já são vistos desde os primeiros anos de atividades de Crispim em Belém. Em outubro de 1878, a empresa de Vicente
anunciou uma série de espetáculos no Theatro da Paz, com a estreia de
comédias consideradas “gênero absolutamente novo” na cidade, sendo a
decoração das peças realizadas por Crispim, apresentado como cenógrafo
da companhia60.
No início da década seguinte, Crispim pintou cenografia para as chamadas “peças de costumes portugueses”, que haviam tido grande sucesso na
Corte e em Portugal, e foram reencenadas no Pará. São inúmeras as apresentações de diversas companhias que tinham, na assinatura cenográfica de
Crispim, um dos principais atrativos para o público. Em 13 de outubro de
1883, a empresa de Manuela Lucci anunciou um “grande espetáculo de costumes portugueses” no Theatro da Paz, com a peça marítima Desordem
57. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, domingo, 24 de março de 1878, p. 3.
58. KNAUSS, Paulo. A festa da imagem: a afirmação da escultura pública no Brasil do século XiX.
19&20, Rio de Janeiro, v. 5, n. 4, out./dez. 2010. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/
obras/pknauss.htm.
59. CHARLE, A Gênese da Sociedade do Espetáculo..., 2012, p. 34.
60. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, quinta-feira, 24 de outubro de 1878, p. 3.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 209
no Alto Mar. O drama, dizia o anúncio, “baseia-se em fatos verdadeiros,
tais como um pavoroso incêndio que houve no Porto em 1876, e um crime
cometido a bordo de um navio que seguia para o Rio de Janeiro”, crime esse
“que ainda se recorda com horror os habitantes daquela cidade”. O cenário
que apresentava o efeito do mar, bem como os dois navios que eram vistos
no correr do drama, estava “confiado à execução do distinto cenógrafo Crispim do Amaral”61. Uma semana depois, a mesma empresa anunciava Nossa
Senhora da Bonança, outra peça marítima portuguesa, cujo cenário novamente era devido ao pincel de Crispim62. Uma peça marítima portuguesa
apresentou também a empresa da atriz Apolônia Pinto, em maio de 1888, no
Teatro-Circo Cosmopolita. Trata-se de Um Drama no Alto Mar, peça que,
segundo o anúncio, “tão brilhante sucesso há alcançado em todos os teatros
de Portugal e do Brasil”. A novidade vinha logo de cara: “A empresa pede
atenção do respeitável público para os cenários confeccionados pelo talentoso sr. C. do Amaral, que muito excedem em perspectiva e efeitos aos que
foram pintados na Corte na sua primitiva”63. Já em maio de 1891, a grande
atração na reabertura do Teatro-Circo Cosmopolita foi o novo pano de boca
pintado por Crispim, coroado com a encenação do drama de costume português José do Telhado64.
Peças como essa, que exibiam cenários da região Entre Douro e Minho,
poderiam trazer saudosas lembranças à colônia lusitana no Pará ou provocar sentimentos ambíguos diante de personagens como José do Telhado, salteador à maneira de Robin Hood. Em suma, o teatro era capaz de acelerar
mudanças nos hábitos e afetar os códigos morais. Nesse sentido, não faltaram encenações de autores que haviam escandalizado até mesmo críticos na
França, como o alemão Jacques Offenbach. Sucesso na Europa, as operetas
de Offenbach gozavam de popularidade no Brasil desde meados da década
de 1860. O seu Orfeu nos Infernos, por exemplo, foi parodiado por Francisco Vasques no teatro Fênix Dramático, no Rio de Janeiro, em 1868, sob
o título de Orfeu na Roça65. A paródia trazia para o debate público, entre
61.
62.
63.
64.
65.
“Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, sábado, 13 de outubro de 1883, p. 3.
“Theatro da Paz”. Diário de Notícias, Belém, domingo, 21 de outubro de 1883, p. 4.
“Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, domingo, 27 de maio de 1888, p. 4.
“Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 28 de maio de 1891, p. 1.
SOUZA, Silvia Cristina Martins de. “Um Offenbach Tropical: Francisco Correa Vasques e o
teatro musicado no Rio de Janeiro da segunda metade do século XiX”. História e Perspectivas,
Uberlândia, v. 1, n. 34, p. 225-259, jan./ jun. 2006, p. 227.
210 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
outros temas, a espinhosa questão da emancipação dos escravizados66. Em
Belém, em 1870, a produtiva companhia de Vicente Pontes de Oliveira encenou, no Teatro Chalet, a opereta L’Enlèvement d’Hélène, original francês de
Offenbach67. Sem dúvida, abundaram encenações de autores que questionavam os valores estabelecidos. Em maio de 1878, a mesma companhia levou
à cena no Theatro da Paz o drama O Casal das Giestas (La Closerie des
Genêts) do romancista francês Frédéric Soulié (1800-1847), cuja cenografia Crispim dividiu com seu mestre Léon Chapelin68. Para se ter uma ideia,
Soulié foi, ao lado de Honoré de Balzac, Eugène Sue e Alexandre Dumas,
um dos grandes novelistas da Monarquia de Julho69. Autor fértil e popular
na época, seus romances apresentam uma gama de diferentes temas e desnudam a intimidade da aristocracia e da alta burguesia, cujos defeitos morais
estão representados em adultérios, incestos e assassinatos70. O povo, por
sua vez, está presente na vida quotidiana, nos dias exaustivos de trabalho,
no salário miserável e nas revoltas, como em Le Conseiller d’État (1835).
Seu texto mais famoso, porém, é Les Mémoires du Diable, romance escrito
em tom irônico, que revive o tema clássico do pacto com o demônio71. No
teatro, seu maior sucesso é justamente La Closerie des Genêts, representado
pela primeira vez no teatro Ambigu-Comique, em 14 de outubro de 184672.
Crispim ainda pintou cenários para outros clássicos como, por exemplo, O Conde de Monte Cristo, drama baseado no romance de Alexandre
Dumas (pai), levado à cena em abril de 1888, no Teatro-Circo Cosmopolita,
pela empresa da atriz Apolônia Pinto. Ao lado de Os Três Mosqueteiros, O
Conde de Monte Cristo, concluído em 1844, é a obra de maior sucesso de
Alexandre Dumas73.
66. SOUZA, “Um Offenbach tropical...”, 2006, p. 252.
67. “Theatro Chalet”. O Liberal do Pará, Belém, 19 de julho de 1870, p. 2.
68. “Theatro da Paz”. O Liberal do Pará, Belém, quinta-feira, 23 de maio de 1878, p. 3.
69. Monarquia de Julho é o nome com o qual a historiografia costuma designar o período histórico
que decorreu na França de 1830 a 1848, entre dois dos principais processos revolucionários
considerados como ciclos da revolução liberal ou revolução burguesa – as revoluções de 1830
(a revolução de julho) e as revoluções de 1848 (a primavera dos povos).
70. CHAMPION, Maurice. Frédéric Soulié, sa vie et ses ouvrages. Paris: Moquet, 1847. p. 26.
71. Idem, p. 28.
72. Idem, p. 30.
73. O romance narra a história de Edmond Dantès, marinheiro do navio Faraó, detido na costa
de Marselha. Acusado injustamente de ser um espião bonarpatista, Edmond é encarcerado por
anos na ilha-prisão do castelo de If, onde faz amizade com o abade Faria, que revela a ele uma
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 211
figura ii: Imagem parcial do anúncio de O Conde de Monte-Cristo no
Teatro-Circo Cosmopolita
fonte: Diario de Noticias, 19 de abril de 1888
São poucos os anúncios que descrevem em detalhes a cenografia das
peças. No caso de O Conde de Monte Cristo, temos uma descrição parcial
do cenário pintando por Crispim, que buscava surpreender o imaginário dos
expectadores, atraí-los para dentro da cena. Segundo o anúncio, no primeiro
quadro, aparecia um pátio de uma taverna em Marselha, com rochedos e o
mar ao fundo. No segundo, apareciam dois cárceres no castelo de If, onde
estavam presos Dantès e o abade Faria. Era uma “cena inteiramente nova,
pintada expressamente para esta grandiosa peça pelo distinto cenógrafo
Crispim do Amaral”. No terceiro quadro, apresentando “cena completamente nova e de efeito deslumbrante”, constava o exterior do castelo sobre
o mar. Do lado esquerdo, via-se a muralha do castelo com um baluarte, uma
rocha alta que se ligava quase ao castelo, mar em toda a cena e, ao fundo,
a crista de um rochedo. Também um “importantíssimo trabalho do sr. Cris-
miseteriosa fortuna. Com a morte do abade, Edmond escapa da prisão e toma posse do teseouro,
transformando-se no implacável Conde de Monte Cristo. Rico e com acesso à alta sociedade,
aproveita para se vingar daqueles que tramaram para que levasse uma vida de prisioneiro.
DUMAS, Alexandre. O Conde de Monte Cristo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 2v.
212 | águas negras: estudos afro-luso-amazônicos no oitocentos
pim do Amaral”. No quarto quadro, aparecia uma gruta na ilha do Monte
Cristo. Ao fundo, mar e horizonte: “Cena toda nova e de grande efeito pintada pelo sr. Crispim do Amaral”. No quinto, aparecia uma estalagem pobre
de Gaspard Caderousse. No sexto, constava o “deslumbrante palácio do
Conde de Monte-Cristo, arquitetado pelo sistema oriental”, uma grandiosa
cena, “inteiramente nova”, dessa vez “devida aos pinceis dos distintos artistas italianos Croier e Barione”. No sétimo quadro, aparecia uma rica sala no
palácio do Conde Morcerf. Por fim, o oitavo apresentava a sala modesta da
casa de Morrel, tendo ao fundo um terraço sobre o mar. A seu tempo, via-se
entrar no porto a imagem do brigue Faraó74.
O expectador, estimulado pela cenografia, era transportado à época e
ao local dos acontecimentos, e enredado pelo clima emocional da peça que,
por vezes, incluía o anseio por liberdade. Vale dizer que a empresa de Apolônia esteve entre aquelas que, desde a década de 1870, passavam por Belém
difundindo dramas abolicionistas. A circulação dos ideários humanitários
enunciados nessa dramaturgia, como sugere Renata Geraldes, deu origem
a um fenômeno que “conferiu novos contornos ao teatro: trata-se de uma
‘rede’ de artistas (escritores, tradutores, ensaiadores, empresários, atores,
dentre outros) comprometidos com a abolição de Norte a Sul do Brasil”75.
Não por acaso um dos espetáculos de maior repercussão da empresa ocorreu
em 13 de maio de 1888, data da promulgação da Lei Áurea, com a representação de A Cabana do Pai Tomás, na tradução livre do ensaiador e diretor
Júlio Xavier76. A peça baseia-se no romance Uncle Tom’s Cabin, de Harriet
Beecher Stowe, editado em 1852. A influência desse romance extrapolou
as fronteiras do Sul escravista e do Norte abolicionista dos Estados Unidos, tendo chegado ao Brasil mediado por Portugal e França77. Tematizando
74. “Theatro-Circo Cosmopolita”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 19 de abril de 1888, p. 4.
75. GERALDES, Renata Romero. Teatro e Escravidão: a poética abolicionista na dramaturgia de
Arthur Rocha. 2018. Dissertação (Mestrado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2018. p. 30.
76. SALLES, “Épocas do Teatro no Grão-Pará..., 1994, p. 20.
77. Para uma análise detalhada do processo de publicação de A Cabana do Pai Tomás no Brasil
escravista, ver FERRETTI, Danilo José Zioni. A Publicação de A cabana do Pai Tomás no
Brasil Escravista: o “momento europeu” da edição Rey e Belhatte (1853). Varia História, Belo
Horizonte, v. 33, n. 61, p. 189-223, abril 2017.
o pincel de ébano: crispim do amaral e uma cenografia afro-amazônica... | 213
a escravidão norte-americana, o romance inspirou peças país afora, sendo
encenado nas capitais das províncias do Império.
Três anos antes, no mesmo clima antiescravagista, Crispim havia produzido o cenário para a peça Paulo e Virginia exibida no Theatro da Paz. A
peça baseava-se no romance de mesmo nome do escritor francês Bernardin
de Saint-Pierre (1737-1818), publicado no final século Xviii. Paulo e Virginia, inspirado em ideais iluministas, aborda sentimentos ambivalentes, como
amor, solidão, pudor e felicidade78.
figura iii: Imagem parcial do anúncio de Paulo e Virgínia no Theatro da Paz
fonte: Diario do Grão-Pará, 03 de novembro de 1885.
De acordo com Eduardo Santos e Orna Livin, que analisaram a adaptação do romance para o teatro no Brasil entre os anos de 1840 e 1890, a primeira adaptação de Paulo e Virginia subiu aos palcos cariocas em novembro
de 1822. Em 1848, passa por uma nova adaptação feita pela Companhia
78. O romance conta a história de duas crianças que vivem na bucólica Ile de France (atual Ilhas
Maurício). Na adolescência, surgem sentimentos românticos entre os dois personagens. Para
evitar o relacionamento, a mãe de Virgínia envia a jovem para Paris. Vários anos depois, Virgínia
regressa à Ile de France, mas o navio Saint-Géran que a traz de volta naufraga devido a uma
tempestade. Após ver Virginia morrer afogada no naufrágio, Paulo não demora a sucumbir à dor
e à solidão. SAINT-PIERRE, Bernardin de. Paulo e Virgínia. São Paulo: Ícones, 1986.
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Dramática Portuguesa e é encenada no Teatro São Pedro de Alcântara. Já
na segunda metade do século, aumentam consideravelmente as encenações,
inclusive em outros gêneros, como comédias, que foram representadas principalmente nas províncias do Nordeste, Sudeste e Sul. A partir de 1882, as
adaptações “ganharam nova montagem, dessa vez, atrelada ao contexto histórico pelo qual o Brasil estava passando, sobretudo, a campanha pela abolição da escravatura”79. Foi essa versão que chegou ao Pará em novembro
de 1885 pela empresa do ator Soares de Medeiros. Segundo o anúncio, pela
primeira vez na província teria lugar a exibição do “espetáculo de drama
abolicionista, com 4 atos e 5 quadros, ornada de canções e danças extraídas
da conhecida novela de B. de Saint-Pierre, intitulada Paulo e Virginia”. A
respeito do quinto quadro, que tratava do naufrágio do brigue San Géran,
informava que o cenário era novo e apropriado, bem como “inteiramente
nova a cenografia do Brigue, que assombra a vista do público, cuja beleza
de arte é devida ao engenho cenográfico do talentoso artista pintor Crispim
do Amaral”80.
Pela década de 1890, Crispim continuaria a fazer parte desse processo
de integração da Amazônia à cultura global dos espetáculos. Esse é ocaso da
ópera Don Pasquale81, exibida pela primeira vez no Theatro da Paz em 28
de março de 1891. A peça chegou ao Pará pela Companhia Lírica Italiana
e foi dedicada a Lauro Sodré (governador do Estado) e a Paes de Carvalho,
ambos cabeças do regime republicano no Pará.
79. SANTOS, Eduarda Berteli M. dos; LEVIN, Orna Messer. A Adaptação do Romance Paulo e Virginia, de Jacques-Henri Bernardin de Saint Pierre para o teatro entre as décadas de 1840 e 1890. Anais
do xxiv Congresso de Iniciação Científica da UNICAMP, 12 a 21 de out., Campinas, 2016. p.1.
80. “Theatro da Paz”. Diario do Grão-Pará, Belém, 3 de novembro de 1885, p. 3.
81. Don Pasquale, de Gaetano Donizetti (1797-1848), com libreto de Giovanni Ruffini (18071881), é uma ópera-bufa em três atos. Foi escrita quando Donizetti foi nomeado diretor musical
da corte do imperador Fernando I da Áustria. A ópera estreou em 3 de janeiro de 1843 no Théâtre Italien de Paris, com Giulia Grisi (1873-1921), como Norina, e Luigi Lablache, como Don
Pasquale. No mesmo ano, foi também apresentada em Londres e Viena; nos anos seguintes, esteve nos palcos de diversas cidades da Europa e chegou a Nova York em 1846. Em 1904, Enrico
Caruso (1873-1921) liderou o elenco em nova montagem em Nova York. No Brasil, a primeira
montagem foi levada ao palco do Teatro Provisório do Rio de Janeiro em 12 de fevereiro de
1853. LAZZARI, Afonso. Giovanni Ruffini, Gaetano Donizetti e il “Don Pasquale”: da documenti inediti. Firenze: Rassegna Nazionale, 1915; ARAGONA, Livio; FORNONI, Federico.
Don Pasquale: un romano a Parigi. Bergamo: Fondazione Donizetti, 2015.
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figura iv: Imagem parcial do anúcio de Dom Pasquale no Theatro da Paz
fonte: Diario de Noticias, 26 de março de 1891
Dessa vez, porém, Crispim não aparece como cenógrafo, mas na figura
de mediador, que trouxe cenógrafos da Ópera de Paris, como Eugène Carpezat, em cujo ateliê confeccionou o pano de boca do teatro. Os artistas
franceses, dizia o anúncio, pintaram um “esplêndido salão” para o qual era
chamada a atenção do público82.
Belém do Pará, portanto, seguia em sintonia com as principais capitais
do mundo do espetáculo. O que era apresentado nos palcos de seus teatros
também era apreciado por milhares de espectadores em cidades como Paris,
Viena, Londres, Berlim, Roma, Milão, Madri, Moscou, Nova York, Lisboa,
Buenos Aires, Rio de Janeiro, e outras capitais. Peças estrangeiras de sucesso
podiam ser encenadas no original, traduzidas ou parodiadas para melhor
adaptarem-se ao público local. Assim, longe de uma relação invariável de
inovação e atraso, o nexo entre centro e periferia, como sugere Ginzburg,
acontecia em uma “relação móvel, sujeita a acelerações e tensões bruscas,
ligada a modificações políticas e sociais e não apenas artísticas”83. Em meio
82. “Theatro da Paz”. Diario de Noticias, Belém, quinta-feira, 26 de março de 1891, p. 1.
83. GINZBURG, Carlo. A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989.
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a esse contexto, o cenógrafo negro Crispim do Amaral mediava e produzia
uma arte conectada com essa cultura global.
considerações finais
Sem dúvida, Crispim do Amaral foi figura de primeiro plano na cena teatral na Amazônia oitocentista. Esse polivalente artista negro transitou com
desenvoltura entre o erudito e o popular, o local e o global, num intenso
diálogo cultural que nos permite conectar a história da região ao resto do
mundo. A maneira como se comportava nos palcos ou o som que tirava de
sua flauta, infelizmente, só nos são acessíveis indiretamente por meio da
crítica nos jornais. O mesmo vale para as centografias que pintou para os
espetáculos, essas obras efêmeras das quais foram testemunhas apenas os
espectores presentes nas apresentações nos palcos.
De qualquer modo, sabemos que as cenografias de Crisipim para o teatro foram abundantes. Seu pincel e sua atuação permitiram-lhe acesso aos
círculos dos poderosos da época, pricipalmente nos anos inciais da república. Na sessão cívica ocorrida no Theatro da Paz em 22 de fevereiro de
1891, em memória de Bejamim Constant (1836-1891), que seria consagrado pela Constituição como fudador da repúlica, Crispim foi requisitado
a dar contorno ao novo herói da pátria. O salão nobre do teatro, segundo
o noticiário, “achava-se ricamente ornamentado tendo no fundo um lindo
docel com o retrato do eminente cidadão, habilíssimo trabalho de Crispim
do Amaral”84. Depois de celebrar o morto ilustre, chegava a vez de exaltar o
vivo influente. Assim, em 21 de maço, a imprensa informava que o “habil e
festejado Crispim do Amaral” expôs na Loja Filial, à rua Conselhiero João
Alfredo, “um retrato do eminente e prestigiado chefe do partido reublicano
José Paes de Carvalho”. O trabalho, segundo o articulista, era feito a pastel,
“inciado entre nós por aquele artista”; em seguida, resaltava sua qualidade:
“Notamos ser aquele trabalho de magnífico efeito, já pela semelhança, já
pelas nuances que ali se apresenta”; e convidava “o público a ir apreciar
aquela obra d’arte”85.
84. “Benjamim Constant”. Diario de Noticias, Belém, terça-feira, 24 de fevereiro de 1891, p. 2.
85. “Chrispim do Amaral”. Diario de Noticias. Belém, sábado, 21 de março de 1891, p. 2.
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As habilidades de Crispim eram reconhecidas bem antes disso. No entanto,
na época da monarquia, não garantiram a ele a subvenção para ir estudar
em Roma, dentro da política da província que enviava jovens artistas para se
aperfeiçoarem na Itália, semelhante ao que ocorria na Corte86. Seu requerimento chegou à Assembleia Provincial em março de 188387, porém o pedido
desse artitsta, que se sentia “com irresistível vocação para a arte da pintura”, foi negado88. Se a monarquia dava as costas a Crispim, a república,
ao requerer os seus serviços, transformava-o em uma espécie de cenógrafo
ofiacial do regime. Foi assim que se anunciou, para 14 de agosto de 1891, no
Theatro da Paz, na presença do governador Lauro Sodré, a apresentação ao
público do grande pano de boca “represetando a apoteóse da República”,
bem como “os magnificos cenários pintados na Europa, sob a direção do
talentoso artista Crispim do Amaral”89.
Era então dado início a um acelerado processo de sustituição dos símbolos da monarquia pelos do novo regime, cuja alegoria da república de
Crispim é um marco. Por outro lado, com o passar dos anos, a prórpia figura
do artista como autor da obra começaria a cair no esquecimento. Em junho
de 1913, apenas dois anos após a sua morte no Rio de janeiro, um cronista
do jornal Estado do Pará, sob o pseudômo Mónoculo, precisou rebater as
afirmações equivocadas que um crítico de teatro do jornal O Heraldo exprimira a respeito da autoria do pano de boca do Theatro da Paz. No ocasião,
Mónoculo, muito incomodado com os erros de atribuição, procurou esclarecer a Max Pathé, psieudônimo do outro cronista, que o trabalho “não foi
pintado por De Angelis, e sim em Paris, por Crispim do Amaral, cuja bela
e avantajada figura do mestiço está reproduzida no militar que naquela tela
se pode ver”90.
No entanto, o que prevaleceu foi uma teimosa dúvida sobre a autoria da
obra. Na década de 1970, a dúvida se converteu em outras hipóteses. Paolo
Ricci, por exemplo, ao fazer um resumo biográfico de Crispim em 1978,
interrompe a pesquisa no momento em que a primeira tentativa de contra86. RODRIGUES, Silvio Ferreira. “‘Il Modello e Il Disegno Sono Italiani’: os pintores brasileiros e a
cultura artística europeia na Amazônia Imperial (1840-1880)”. Faces da História, Assis-SP, v. 5,
n. 2, p. 85-102, jul./dez., 2018.
87. “Assembleia provincial”. Diario de Notícias, Belém, sexta-feira, 9 de março de 1883, p. 2.
88. “Chrispim do Amaral”. Diario de Noticias, Belém, quarta-feira, 25 de julho de 1883, p. 1.
89. “Theatro da Paz”. A República, Belém, quarta-feira, 12 de agosto de 1891, p. 1.
90. “Teatro e Cinema”. Estado do Pará, Belém, terça-feira, 3 de junho de 2012, p. 5.
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tar o artista para a tarefa havia sido questionada por Antônio José Ferreira
Braga, um dos últimos presidentes da província do Pará no Império. Sem
avançar, Ricci não se dá conta de que Crispim assinou um novo contrato sob
o regime republicano. Mesmo asim, não deixa de dar uma solução rápida,
expressa numa nota de rodapé de seu relatório: “O pano de boca foi pintado em Paris, pelo cenógrafo francês Carpezet [...]”91. Sua afirmação ressou
por bastante tempo. Entretanto, ainda em 1974, Clarival Valladares havia
voltado a levantar a hipótese da autoria de Crispim, seguido por Salles nas
décadas seguintes92. Finalmente, pesquisas recentes, como a de Rose Silveira
e principalmente a de Denise Corrêa, confirmaram essa hipótese93.
O debate sobre a autoria do pano de boca é emblemático do processo de
silenciamento da atuação de Crispim no universo das artes cênicas paraenses
que, como vimos, relaciona-se ao campo mais amplo da supressão do papel
negro na história do teatro. A trajetória do artista, porém, mostra que ele
foi um dos mais requisatados na sociedade do espetáculo da época, cujas
cenografias traziam as marcas de um tempo de aceleradas tansformações nos
padrões de comportamento. Assim, recompor essa história é mais do que
dar um lugar na mémória a um artista olvidado como tantos outros. De tudo
o que foi dito, tavez o mais importante seja pensar que a ópera e o teatro
dos brancos na Amazônia eram, em grande parte, feitos por negros. Enfim,
seguir os passos de Crispim do Amaral no teatro paraense é levar em conta a
dimensão fundamental da presença do artista negro, do afrodescendente na
história da arte do Brasil94.
91. RICCI, Paolo. As Artes Plásticas no Estado do Pará. (in folio) s/d, p. 109.
92. VALLADARES, Clarival do Prado. Restauração e Recuperação do Teatro Amazonas. Manaus:
Governo do Estado do Amazonas; Rio de Janeiro: Bloch, 1974. p. 60; SALLES, Vicente. “Crispim do Amaral”. In: ARAUJO, Emanoel (Org.). A Mão Afro-Brasileira. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo; Museu Afro Brasil, 2010. p. 231.
93. SILVEIRA, Rose. Histórias Invisíveis do Teatro da Paz: da construção à primeira reforma –
Belém do Grão-Pará (1869-1890). Belém: Paka-Tatu, 2010. p. 247; CORREA, Denise Avelino.
Alegoria da República: o pano de boca da sala de espetáculos do Theatro da Paz (1890) e a representação da nação paraense republicana. 2017. Dissertação (Mestrado em História da Arte)
– Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2017. p. 74.
94. CHIARELLI, Tadeu. “Artistas de Ascendência Africana na Arte Brasileira: presença/ausência?”
Arte!Brasileiros, São Paulo, 11 nov. 2020. (Opinião). Disponível em: https://artebrasileiros.com.
br/semfoto/artistas-de-ascendencia-africana-na-arte-brasileira-presenca-ausencia/.
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